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V.6, N. 2 : Jul-Dez 2022 Comité/Comitê Editorial Alice Vazarin Perez André de Cesaro Heloíse Reis Ventura João Barros Júlia Montezini da Silva Maria Eduarda Souza Martins Sérgio Pedro da Silva Capa: Felipe Vieira Revista Espirales Dossiê (v. 6, n. 2, jul-dez 2022) - Foz do Iguaçu, PR. Universidade Federal da Integração Latino-Americana: 92 páginas. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/espirales/index. ISSN 2594-9721. 1.Relações Internacionais. 2.Educação. 3.Ciência Política. 4.Cultura. 5.História. 6.Economia. 7.Comunicação. Contatos Revista Espirales - Unila - Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporâneo da América Latina (PPG-ICAL) Parque Tecnológico Itaipu - PTI (Bloco 4 – Espaço 3 – Salas 5 e 6) Av. Tancredo Neves, 6731 - Foz do Iguaçu/PR, Brasil. Cep 85867-970. Endereço eletrônico: https://revistas.unila.edu.br/espirales/index Email: revistaespirales@gmail.com Sumário 4 Apresentação Mateus Fávaro Reis 6 Breve apresentação do projeto (Re)pensa Humanidade: editorial e arquivo virtual de produções Originárias Ana Laura de Morais Uba e Barbosa 22 Neoliberalismo e institucionalidade em período de redemocratização no Chile: os discursos feministas em Mensaje (1983-1990) Iasmin do Prado Gomes 37 “Sulenado” a História da América Priscila Ribeiro Dorella e Tereza M. Spyer Dulci 52 “Pluriversidade: um esboço sobre a implementação do ensino de histórias indígenas em universidades públicas brasileiras Mateus F́varo Reis, Isáas dos Anjos Borja e Mauro Ćsar de Castro J́nior 72 Sin Estado. Notas generales sobre la autonomia vista desde México Daniel Inclán Solís DOSSIÊ HISTÓRIAS E ESTUDOS DECOLONIAIS/ANTICOLONIAIS EM ABYA YALA APRESENTAÇÃO Mateus Fávaro Reis1 O presente dossiê enfoca alguns dos debates ocorridos durante a realização do I Simpósio: Histórias e Estudos decoloniais/anticoloniais em Abya Yala, organizado pelo Grupo de Estudos em História das Américas (GEHA) e pelo (Re)pensa Humanidade, no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), nos dias 04 e 05 de outubro de 2022. O GEHA foi fundado em 2010, com dedicação ao estudo da história do nosso continente, suas relações com a Europa, África e Ásia, bem como as inter-relações continentais. Os principais objetivos do GEHA constituem em debater pesquisas, promover atualização, trocar experiências e discutir questões relativas à pesquisa e ao ensino de História da América. Os temas abordados são amplos de modo a expressar a diversidade de interesses que preside a área na atualidade, cobrindo da conquista e colonização aos mais recentes acontecimentos. São tratadas temáticas dos diversos domínios históricos, tais como política, sociedade, cultura, e economia, assim, como temáticas relativas às histórias de gênero, viagens, do cinema, historiografia e relações internacionais. O projeto editorial, arquivo virtual e extensionista (RE)PENSA HUMANIDADE (www.repensahumanidade.com) – idealizado e coordenado por Ana Laura de Moraes Uba e Barbosa – busca uma maior aproximação dos discentes da graduação e da pós-graduação com os debates decoloniais e de autoria indígena em Abya Yala, mais precisamente com a prática da decolonização do ensino de história, por meio da formulação de conteúdos educacionais que ressignifiquem e rememorem a consciência histórica e a memória coletiva nesta sociedade, barrando exotismos, estereótipos pejorativos e subalternização dos corpos, etnias e histórias indígenas, retomando os saberes e afetos propostos majoritariamente pelo movimento e colaboradores de demandas e potência indígena que relevem outra possibilidade, organização e concepção de humanidade. 1 Doutor em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente do curso de História e da PósGraduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Presidente do Grupo de Estudos em História das Américas (GEHA). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 4-5. 4 As participações englobaram significativas abordagens sobre as possibilidades das correntes decoloniais, ações que estão transformando a educação e modos de trocas de conhecimento, com a inserção de memórias e realidades sociais que promovem a pluralização dos protagonismos sociais, reforçam as lutas antirracistas e permitem o respeito de novas epistemes nos cenários universitários. Questionadoras das imposições coloniais, discutimos sobre agências de diferentes movimentos, de forma transdisciplinar e tentamos, de forma coletiva, demonstrar resultados de pesquisas e desafios enfrentados contra a invisibilidade de disciplinas sobre Histórias Indígenas. Abordamos, além disso, alguns enfrentamentos sociais e intelectuais feministas, em face de violências transtemporais de gênero, urgências na constituição de políticas públicas e manifestos para o fortalecimento das lutas contra os retrocessos de direitos e espaços sociais constantemente em disputa na América Latina. Em suma, o presente dossiê visa a propor uma contribuição para a produção e divulgação de conhecimento em conjunto e com diálogos mais plurais, distante da competitividade acadêmica ou disputa de pensamento, entendendo que todas as demandas, ações e práticas sejam contribuições ao discurso e descolonização integral de nossa memória, prática e interação social, onde todas as interpretações devem ser discutidas e respeitadas. Os principais debates pelos quais navegamos, enfatizaram a necessidade de se tratar com mais solidez o lugar das histórias indígenas em nossos currículos e produções interpretativas, em geral; as formas como a violência se arquiteta e se alimenta; algumas lutas feministas em diferentes países latino-americanos; bem como ter como horizonte o futuro das ações – para além das teorias – decoloniais, contracoloniais e anticoloniais. Por fim, cabe destacar algumas questões fundamentais: 1) Mesmo após doze anos de vigência da Lei 11.645 de 2008, infelizmente, observam-se singelas ações pedagógicas e estratégias de intervenção nos currículos, e particularmente no quadro de disciplinas obrigatórias, nas universidades brasileiras, que efetivamente englobem pensamentos indígenas e autorias de pessoas e/ou coletivos originários; 2) Os debates decoloniais, contracoloniais e anticoloniais ainda não ocupam um espaço de destaque em nossas carreiras, particularmente nos cursos de história; 3) Tampouco, há ênfase sobre estudos de gênero e sexualidades em nossos currículos e 4) As narrativas sobre a produção e perpetuação da violência precisam de mais e renovados enfoques. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 4-5. 5 BREVE APRESENTAÇÃO DO PROJETO (RE)PENSA HUMANIDADE: EDITORIAL E ARQUIVO VIRTUAL DE PRODUÇÕES ORIGINÁRIAS Ana Laura de Morais Uba e Barbosa1 Conheça o Projeto A plataforma virtual “(RE)pensa Humaninade” (www.repensahumanidade.com.br) é um produto ainda em construção que tem formato de editorial e arquivo virtual pensado a partir das urgências contra a permanência de movimentos e referenciais tutelares ainda presentes em estudos e transmissões das chamadas “temáticas indígenas”. Constitui-se como um projeto que caminha junto ao enfrentamento de lugares estáticos e marcados da existência Originária que, de formas equivocada e simplista, acabam por anular e silenciar a participação destes povos ao longo do tempo. Coloca-se à reflexão de uma construção histórico-social onde, infelizmente e majoritariamente, há prerrogativas estruturadas de objetificação, infantilização e extinção destes corpos, territórios e memórias como constantes nas narrativas das chamadas Histórias Oficiais baseadas, por sua vez, em referenciais teóricos tidos como cânones clássicos, cujo papel principal é materializar estereótipos pejorativos sobre a contribuição, as existências e vivências Originárias na História do Brasil na memória, e no ensino. Movimento este que, estendendo a História das Américas, insiste em honrar e minimizar as atrocidades advindas dos movimentos de invasão colonial, das ideias imperialistas, e da ação desenvolvimentista do processo da “civilidade”, que disseminou a hegemonia e uma memória subalterna dos saberes e lugares de Origem. Em enfrentamento e rompimento deste mecanismo rumo à orientação teórica para a interpretação, a produção dos conteúdos, e as ações do (RE)Pensa Humanidade, busca-se informações e aprofundamentos teóricos, metodológicos, e práticos junto ao estudo e a processos de conhecimento aliados ao movimento de autoria Originária anti-colonial e 1 Ana Laura Uba é graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), atualmente mestranda bolsista CAPES/Cnpq atuando na linha 3: poder, instituição e linguagem no programa de pós graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (PPGHIS-UFOP), co-orientadora do núcleo de extensão: (RE)Pensa Humanidade: plataforma educacional para a suspensão desta humanidade e idealizadora do editorial e plataforma virtual (RE)Pensa Humanidade que pode ser acessado em: www.repensahumanidade.com. Email: analaurauba@me.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/8347980571948410. . Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 6 decolonial criando, assim, maior proximidade da realidade local do território, sem influência da legitimação externa e eurocentrada. Sendo assim, a prioridade do projeto é construir conteúdos e redes que partem da lente e dos saberes da autoinscrição Originária, tendo como princípio uma prática coletiva, investigativa, e científica que realiza maior escuta e visibilidade ao campo epistêmico Originário e aos seus saberes de Origem, justamente com o intuito de possibilitar aliança e fortalecimento de outras transmissões historiográficas, didáticas e sociais das “Histórias e Temáticas Indígenas”, almejando pertencimentos e afetos. Destarte, como referido, o projeto e plataforma (RE)Pensa Humanidade se constitui em espaço virtual de caráteres público e educacional –voltados à formação, planejamento, construção, disponibilização, transmissões e divulgação dos múltiplos conhecimentos e produções científicas, educativas, mostras de artes audiovisuais, e obras literárias de Povos Originários de Abya Yala –atualmente focalizado no Brasil, a partir da demanda sintetizada pela LEI.11.645 de 2008 que determina a obrigatoriedade do ensino e estudo das contribuições e permanências Originárias na História e formação nacional que ainda são superficiais dentro de muitas instituições de ensino formal. É importante destacar que o projeto tem o compromisso de permanecer aliado à ações que intensifiquem a representatividade Originária em autoinscrição e própria autoria, entendendo não ser mais possível reproduzir uma mentalidade de ensino que trate a existência e as contribuições originárias, cabíveis na educação e na memória social, como uma temática unilateral. Este, portanto, é o ponto motivador da exequibilidade do projeto em pauta, que se prontificou em colaborar com a ruptura de uma estrutura colonial produtora de narrativas excludentes advindas de Histórias Oficiais. A ideia é, justamente, a de tecer uma rede possível de produção e divulgação de maior legitimidade, mais próxima à Origem, em confluência com a realidade local tecendo uma rede possível de divulgação mais justa e democrática de posicionamentos, memória, protagonismo, vivência, permanência, e existência de comunidades e pessoas em uma organização sóciohistórica em enfrentamento a inúmeras formas de subalternização e epistemicídios recorrentes nesta Humanidade. Em uma prática coletiva científica de aportes teóricos decolonial, anticolonial, maioritariamente junto a referencial bibliográfico latinoamericano e Originário, o projeto e plataforma vem sendo construído desde o ano de 2021 junto ao processo de titulação de Mestre em História da presente autora, com suporte institucional autorizado via Núcleo de Extensão Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 7 da Universidade Federal de Ouro Preto-MG, contando com uma equipe, atualmente, de onze colaboradores sendo, estes, alunos de graduação, pós graduação e professores integrantes do Departamento de História. O intuito é o de aproximar e subsidiar a formação dos integrantes junto ao conhecimento, ao movimento teórico intelectual, e a debates decoloniais com base em autorias e produções multidisciplinares de pessoas “indígenas" de diferentes áreas e titulações. Assim, a proposta do projeto, precisamente, é a de visibilizar, divulgar e de se tornar um aliado na construção de viabilidade mais democrática, inclusiva e acessível a conteúdos, estudos, produções artísticas e material didáticos, dentre outros conteúdos ligados às denominadas “Temáticas Indígenas”. Trata-se de proporcionar narrativas plurais, reflexivas, com referências a particulares da diversidade e multiplicidade de mais de 305 inscrições étnicas que formam a população que ocupa o território “Brasil”, (RE)Pensando a convivialidade, onde se faça ser possível a concepção de outros mundos, plurais e transversais. Acredita-se na mudança desta convivialidade pautada em relações mais horizontalizadas e afetivas, sendo esta realidade possível a partir da construção de conteúdos plurais que respeitem a transversalidade do tempo e que sejam representativos diante do multiculturalismo que formula a realidade latino americana e que, sobretudo, formam a historicidade, a organização da sociedade brasileira. Considera-se que, infelizmente esse conteúdo ainda se encontra majoritariamente negligenciado nos departamentos de formação universitária, sendo este trabalho um indicativo dos problemas e negligências apontados ao Ofício do Historiador e ao ensino de História. O propósito é o de evidenciar a insuficiência de referenciais indigenistas e tutelares para tratar “Temáticas Indígenas”, evidenciando outras possibilidades ao ofício do historiador e do Ensino de História incluindo perspectivas que demostrem a autonomia, a potencialidade, e o pertencimento advindos dos debates anticolonial, decolonial e Originário. Estes são a base para a compreensão mais ampla da realidade social, dando aporte à construção de narrativas históricas multilaterais, que ressignifiquem a consciência histórica e a memória coletiva, em retomada e valorização dos limites, saberes e afetos propostos pela potência Originária. Trata-se de entender o coletivo e as formas de estar no mundo confluentes a um organismo vivo e único como a Terra, distanciados da pretensão desacerbada advinda do Antropocentrismo e do materialismo, traçando outras possibilidades à continuidade desta humanidade, em uma convivialidade plural onde a diferença não seja apontada como inferior. Nesses termos, como plano de exequibilidade desta proposta de descolonização do ensino de História por meio da formulação de conteúdos educacionais apresenta-se, de forma parcial, os Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 8 conteúdos produzidos pelo projeto (RE)Pensa Humanidade que foram idealizados partindo da urgência de conteúdos voltados sobre a permanência e a memória Originárias na formação da História e da sociedade nacional para além dos odores da invasão datada em 1500. Assim, nossa prioridade é a de demonstrar que a contribuição originária não está estática ao processo colonial e nem mesmo sintetizada na valorização da natureza, à condição de aldeamentos ou a qualquer outro lugar marcado ao “indígena”. O objetivo deste trabalho é demonstrar ser possível a construção de outros mundos socioculturais que incluam a participação originária em diferentes assuntos do desenvolvimento desta Humanidade, destacando-se o campo epistêmico Originário em princípio da construção do bem viver distante de contextos de disputas de poder e classificações pejorativas que, infelizmente, ainda ecoam em muitos espaços de memória e conhecimento. Para melhor visibilidade dos conteúdos produzidos pelo projeto (RE)Pensa Humanidade, realizou-se o mapeamento da organização do arquivo virtual em oito abas, quais sejam: Início: apresentação do resumo, objetivos e aliados do projeto; Pesquisa&Saberes: cataloga os conteúdos de subsídios à pesquisa científica; Krauma: apresenta os conteúdos advindo de obras literárias; Educação: disponibiliza planos de aulas e unidades didáticas com manuais do professor; Etnomídia: dá acesso à catalogação fílmico disponível em streaming e análises de filmes; PodCast: acesso a temporadas e episódios de entrevistas ou debates semiestruturados; Colaboradores: apresenta, em autobio, os colaboradores e suas funções no editorial; JUNTOS !: aba de envio de opinião, arquivos, e cadastro de usuários com o intuito de (RE)Pensar juntos. Em organização da propostas de editorial dos conteúdos didático-pedagógicos, culturais, e de história pública, optou-se por realizar uma subdivisão de tarefas em cinco setores, “Educação”, “Acadêmico”, “Etnomídia”, ‘Podcast” e “Literatura”, dimensionados em três eixos principais de ação metodológica: o primeiro eixo demarca críticas à permanência colonialista em transmissão, ofícios, escrita e ensino que envolvem registros historiográficos em torno das experiências, memórias, existências, protagonismo e história de Povos Originários em território nacional. Como segundo eixo, apresenta-se os desafios e, ao mesmo tempo, propõe-se e se demonstra práticas de transformações localizadas nas transmissões de experiências e protagonismos dos Povos Originários na configuração de memórias e Histórias Oficiais que, em urgência, devem ultrapassar marcos da história colonial, negando a forma estática que comunidades e corpos Originários. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 9 Em terceiro eixo apresenta-se a proposta de produção coletiva, aberta sempre à novas articulações pessoais e institucionais que prezam pelo fortalecimento dos produtos e produções didáticos-pedagógicos, midiáticos, áudiovisuais e científicos em comunhão com teorias decoloniais e práticas que contribuam com a descolonização de relações e práticas neste núcleo da Humanidade. As mesmas devem se articular não somente às demandas de visibilidades originárias, se orientam em reposicionar práticas multilaterais e transdisciplinares nos processos educacionais e na memória social, com respeito a diferenças, afetos, horizontalização epistêmicas, interpretativas plurais e nunca tutelares, em aliança à autoinscrição originária. Destaca-se que é urgente a descolonização das mentalidades atuais para que se compreender múltiplas existências, crenças, saberes e comportamentos sociais horizontalizados, fluidos ao bem viver. Produtos do editorial Finalizando o bloco de argumentos e levantes teóricos que são urgentes, é necessário também demonstrar de forma parcial o que vem sendo desenvolvido no corpo editorial do projeto, apresentando o quantitativo dos produtos desenvolvidos pelos cinco setores de produção. Eles foram pensados e organizados pela idealizadora e coordenadora do projeto junto aos colaboradores acima mencionados, essenciais para o desenvolvimento de todos os conteúdos que compõem o arquivo (Quadro 1). Nesse ponto, é fundamental destacar a importância do envolvimento de discentes com o referencial teórico decolonial, autorias e produções originárias e latino-americanas para melhor interpretação da realidade social local e transformação do ensino de História, onde pluralidades sejam apresentadas com afeto e pertencimento à maioria social que é plural e protagonista da História nacional que transcende códigos hegemônicos. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 10 Quadro 1 – Conteúdos da plataforma SETOR ACADÊMICO SOBRE: Voltado à pesquisa e leitura de textos acadêmicos produzidos nas áreas de: Direito, Antropologia, História, e Literatura indígena brasileira como um compilado de referências que integralizou o movimento de reexistir a partir do domínio das mesmas técnicas e estudos acadêmicos, porém trazendo outros olhares que ressignifica lugares marcados e narrativas talvez equivocadas sobre como é pertencer no mundo, e como então podemos dar continuidade de uma humanidade em equidade e respeito. Cumprindo com o objetivo de ocupar os espaços científicos e acadêmicos como aliados não indígenas ao movimento de visibilizar e basear-se as produções particulares junto a mentalidades, reivindicações, referências bibliográficas e projetos de sujeitos e comunidades Originárias, foi trazendo estes olhares e interpretações como centro da articulação teórica a produção historiográfica. EQUIPE SETORIAL ATUAL (2022) : Mauro César de Castro aluno graduação História UFOP Milena Pereira Macedo aluna graduação História UFOP Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP ANO DE PRODUÇÃO: 2021 - 2022 N° DE CONTEÚDOS: 14 ACESSO: LINK ABA TÍTULO DO CONTEÚDO PRODUTO AUTORIA (RE)PENSA Conhecendo movimentos de retomadaKatarismo. Mapa de Ideias Ana Laura Uba Um pontapé para visibilizar a Intelectualidade Indígena Mapa de Ideias Mauro César de C. Junior e Milena P. Macedo Urgências na produção historiográfica Apresentação setorial Ana Laura Uba, Mauro César de C. Junior e Milena P. Macedo RESENHA: “Lugares de Origem” de Ailton Krenak e Yussef Campos Resenha de Obra Mauro César de C. Junior e Milena P. Macedo óticas sob o alcance e poderes da vivência social-humana. Resenha de Obra Mauro César de C. Junior e Milena P. Macedo Destaques fundamentais de alguns princípios básicos Resenha de Obra Milena Pereira Um quase checklist de como vivencia a convivialidade Resenha de Obra Mauro César de Castro Junior Suporte ao educar na epistemologia Xakriabá Resenha de Obra Mariana Laurentino TAMBETÁ um suporte para escuta e reflexão do Ofício em conversas com Ailton Krenak Resenha de Obra Natália Cristina Santiago Lembretes reflexivos em meio do Isolamento social Resenha de Obra Rafaela Areal Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 11 Encontros: destaques a alguns capítulos Resenha de Obra Fadí Fada Campolina Transmissão e aportes a existência “Uma outra História a escrita indígena no Brasil” Resenha de Obra Milena Pereira (RE)Pensando vive(re)s para convivialidades Resenha de Obra Mauro César de C. Junior e Milena P. Macedo Uma breve orientação sobre cinema e educação Resenha de Obra Rafaela Areal SETOR EDUCAÇÃO SOBRE: Abarca compreensão das legislações nos campos da Educação e referentes povos indígenas; do Manual de Transdiciplinaridade da temática indígena da ONU; e o estudo pedagógico e estratégico da BNCC para a formulação do conteúdo para além do ensino de história dirigido ao ensino infantil. Enfrentando os limites decorrentes da pouca ação e articulação institucional para fazer cumprir com a demanda de atualização e formação docente trazidas pela Lei.11645/08 o setor impulsionou alunos a buscarem com mais autonomia o preenchimento do quase abismo teórico que vão ao encontro do protagonismo e existência de povos Originários , africanos e afrodiaspóricos nos cursos de formação que serão responsáveis por transmitir estes conhecimentos e debates a alunos da educação básica e demais educandos. EQUIPE SETORIAL ATUAL (2022) : Mariana T. Laurentino aluna graduação História UFOP Fadí Fada Campolina aluno graduação História UFOP Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP ANO DE PRODUÇÃO: 2021 - 2022 N° DE CONTEÚDOS: 10 ACESSO: LINK ABA TÍTULO DO CONTEÚDO PRODUTO AUTORIA (RE)PENSA Povos Originários contra o extermínio em resistência e luta. Ensaio livre Ana Vitória Vieira Manual do professor e a temática indígena na Escola alguns apontamentos básicos. Ensaio livre Gabriela Medeiros Eu no mundo e o mundo em mim Fundamental II Unidade Didática Mayara Pacces e Fadí Campolina Eu no mundo e o mundo em mim Fundamental II Manual do professor Mayara Pacces e Fadí Campolina Nacionalismo, pertencimento e mitos de Origem Plano de aula BNCC Ana Vitória Vieira Tem luta indígena sim na formação dos Estados Nacionais Plano de aula BNCC Ana Vitória Vieira (Não)existir a Povos Originários: um Plano Político Plano de aula BNCC Ana Vitória Vieira Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 12 Hegemonia VS Pluralidade: sobre poder e hierarquia Plano de aula BNCC Ana Vitória Vieira Título a definir - Material temático - Ensino Médio Unidade Didática Fadí Campolina e Mariana Laurentino Título a definir - Material temático - Ensino Médio Manual do professor Fadí Campolina e Mariana Laurentino SETOR LITERATURA SOBRE: É um espaço para visibilizar obras já publicadas de autores-autodeclarados indígenas, convidados para transmitir experiências diante o processo de construção da Obra, expondo sobre pertencimento, resgate, inquietação, denúncias, vivências e sobretudo interpretações sobre a convivialidade íntima e coletiva que de forma transtemporal se inicia a partir de um marco cultural e social imposto que é a inscrição como <<indígenas>> demarcando experiências diferenciadas nesta configuração social, histórica e institucional que sempre apontam como o outro, ou distinto. EQUIPE SETORIAL ATUAL (2022) : Isaías Xipu Puri Mestrando Letras PÓSLET - UFOP Maria Eduarda Câmara Graduação História UFOP Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP ANO DE PRODUÇÃO: 2021 - 2022 N° DE CONTEÚDOS: 10 ACESSO: LINK ABA TÍTULO DO CONTEÚDO PRODUTO AUTORIA (RE)PENSA As literaturas de autoria indígena e a indigestão antropofágica ou folclorização Ensaio livre Isaías Xipu Puri Pertencimento construído em “Metade Cara, metade máscara” Resenha de Obra Isaías Xipu Puri Conheça!: A queda do Céu, palavras de um xamã Yanomami Texto-post informativo Isaías Xipu Puri Conheça!: Artistas Indígenas contemporâneos Texto-post informativo Isaías Xipu Puri Conheça!: Pensamento Originário Texto-post informativo Isaías Xipu Puri Conheça!: Movimento originário Texto-post informativo Isaías Xipu Puri Conheça!: Intelectualidade e autoria Indígena em fortalecimento coletivo Texto-post informativo Isaías Xipu Puri KAUMA: CONEXÕES LITERÁRIAS Ensaio livre Isaías Xipu Puri RESENHA: EU SOU MACUXI E OUTRAS HISTÓRIAS Resenha de Obra Maria Eduarda Câmara RESENHA: SABERES DA FLORESTA Resenha de Obra Maria Eduarda Câmara Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 13 SETOR PODCAST Fortalecendo este movimento de renovação técnico-teórica e também como forma de colaborar com o descolonizar frente a produções hegemônicas e colonialistas impostos pelo processo técnico e unilateral da escrita, esta foi a forma de produzir mantendo distância da individualidade e de hierarquizações propostas pela normativa científica. Esta confere distância, imparcialidade, observação e classificação superficial, se dedicando à produção de roteiros semiestruturados para apresentar e visibilizar algumas referências, conceitos, reflexões e vivências cotidianas, sempre integralizado a pessoas e comunidades originárias e seus olhares diante das realidades social, econômica, cosmológica, institucional e política. O setor vem se dedicando em aprofundar manejos e ensino técnico operativo de produções de áudio, atento a mecanismos de edição considerando cuidados linguísticos voltados a uma melhor compreensão do público alvo, que se encontra em dimensões intelectuais distintas. Estas vêm sendo demonstradas junto aos roteiros e à realização de entrevistas com participantes ativos de movimentos de resgate e descolonização das mentalidades, relações e formas de conviver e de identificar a origem comunitária neste organismo. SOBRE: EQUIPE SETORIAL ATUAL (2022) : Maria Fernanda Vargas Graduação História UFOP Gabriela Lorryne Santos Medeiros Graduação História UFOP Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP SETOR ETNOMÍDIA ANO DE PRODUÇÃO: 2021- 2022 ACESSO: N° DE CONTEÚDOS: 6 LINK ABA TÍTULO DO CONTEÚDO PRODUTO AUTORIA (RE)PENSA GUERREIRAS EPISÓDIO NARRATIVO: AudioCast com transcrição. Mariana Laurentino e Natália C. Santiago INTELECTUAIS INDÍGENAS AudioCast com transcrição. Mariana Laurentino e Maria Fernanda Vargas ZIEL KARAPOTÓ escuta sobre Arte educação, performance e produções audiovisuais. ENTREVISTA: VideoCast com legenda. Maria Fernanda Vargas e Gabriela Lorryne Santos Medeiros MARCELO KRAHÔ escutas sobre a ativismo e realidade LGBTQI+ no movimento Originário. ENTREVISTA: VideoCast com legenda. Maria Fernanda Vargas e Gabriela Lorryne Santos Medeiros OLINDA TUPINAMBÁ escutas sobre produção de cinema autônomo de uma mulher indígena. ENTREVISTA: VideoCast com legenda. Maria Fernanda Vargas e Gabriela Lorryne Santos Medeiros FRANCY BANIWA escutas sobre representação Originária nos espaços educativos. ENTREVISTA: VideoCast com legenda. Maria Fernanda Vargas e Gabriela Lorryne Santos Medeiros Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 14 SETOR ETNOMÍDIA SOBRE: Aliado ao objetivo de quebrar estereótipos e detendo imaginários de povos originários estáticos ao primitivismo que, de forma equivocada, tendenciosa e pejorativa, ainda reportam a uma realidade tutelar, superficial e exótica de modos e experiências originárias, o setor procura, por meio de divulgações críticas e elaborações de uso de conteúdos audiovisuais para educação, indicar e visibilizar a ampla produção originária de conteúdos em áudio visual e obras cinematográficas com exercícios de catalogação de obras, artistas e páginas livres. Possibilita-se, dessa forma, a aproximação de público amplo a produtores e atores do movimento de articulação de mídias originárias que existem e dominam as possibilidades de comunicação e tecnologia desta temporalidade para articular e realizar autonomias pelo ato de “ocupar telas” para apresentar-se e auto inscrever suas dissensões forjadas e mostradas, até então, sob recortes de olhares superficiais. Setor responsável pelo desenvolvimento de técnicas voltadas à análise de filmes para a compreensão de amplo público, a partir de um olhar subjetivo e de compreensão integral das particularidades originárias. EQUIPE SETORIAL ATUAL (2022) : ANO DE PRODUÇÃO: Rafaela Oliveira Areal Graduação História UFOP 2021 - 2022 ACESSO: N° DE CONTEÚDOS: Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP 7 LINK ABA TÍTULO DO CONTEÚDO PRODUTO AUTORIA (RE)PENSA Falas da Terra RESENHA DE FILME Rafaela O. Areal O abraço da serpente RESENHA DE FILME Rafaela O. Areal Prosa pos filmes com ZIEL KARAPOTÓ CURADORIA FÍLMICA Ana Laura M. Uba Prosa pos filmes com MARCELO KRAHÔ CURADORIA FÍLMICA Ana Laura M. Uba Prosa pos filmes com OLINDA YAWAR CURADORIA FÍLMICA Ana Laura M. Uba Prosa pós filmes com FRANCY BANIWA CURADORIA FÍLMICA Ana Laura M. Uba Prosa pos filmes com LIAN GAIA CURADORIA FÍLMICA Ana Laura M. Uba I MOSTRA (RE)PENSA DE CINEMA ORIGINÁRIO NO CINE VILA RICA (nota 2). EVENTO EDUCATIVO E CULTURAL EQUIPE (RE)PENSA Fonte: dados originais da pesquisa.2 2 A I MOSTRA (RE)PENSA DE CINEMA ORIGINÁRIO aconteceu entre 18:00 e 23:00 dos dias 26 a 30 de Setembro de 2022, na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, em específico nas nas dependências do Cine Club Vila Rica. A semana de exibição dos filmes, bem como os ciclos de debates permitirão a aproximação das comunidades locais e das escolas com fontes advindas de memória, história e comunicação oral, apoiadas a tradições e saberes dos povos originais do Brasil, que serão trabalhadas para articulação de novas possibilidades de discussões, símbolos e construção de espaços de memória, que formará nossa apresentação de conteúdos e colaborar com Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 15 O quadro acima tem a intenção de afirmar como é possível a produção e referenciação de estudos e narrativas que valorizam múltiplos conhecimentos, sem deixar de lado a especificidade disciplinar e rigores teóricos, assegurando também que os conteúdos estejam orientados pela transversalidade do tempo e da sociedade. Uma vez que o projeto está sendo construído em um ambiente coletivo, a fluidez e a expansão da produtividade se tornam um diferencial, onde desafios e habilidades entre o grupo acabam por potencializar a conclusão dos materiais, além destes serem revisados e ajustados de forma multilateral, dando mais qualidade e inclusão a trabalhos produzidos de forma individual. Observa-se que os conteúdos possuem um direcionamento principal a ser abordado, seguindo o padrão das escolhas bibliográficas e referências previamente propostas para o desenvolvimento do conteúdo (re)pensa, porém, assegura-se um referencial central que faz parte do centro epistemológico originário que pode ser classificado como princípios de respeito, horizontalidade e equidade. Este, são formas de se ocupar o mundo em equilíbrio com os aspectos naturais e sem exageros da “parafernália da modernidade”, privilegiando a tradição oral e os saberes adquiridos com a vivência permanente, entendendo que o bem viver e bem- estar social dependem de uma rede cíclica de cuidado contrária à sobreposição de domínio e de outras interpretações que veem o natural somente como recursos disponíveis. Interpreta-se que a existência de uma centralidade de equilíbrio em meio a este saber, comportamento, mentalidade e conhecimentos encontra-se como a principal ideia para que se atinja a tão desejada continuidade da Humanidade. Em outras palavras, adiar o fim do mundo seria possível com a retomada da escuta ao saber ancestral, compreendendo a Origem e os lugares naturais de cada um dos seres, reconhecendo o papel fundamental de cada um no ciclo do tempo e do espaço. Portanto, estas interpretações não podem mais estar classificadas como desvio teórico ou temática isolada do cânone da historiografia: o otimismo da produção e a defesa deste projeto são o desenvolvimento de um Ofício que permita e construir narrativas que concebem diferentes mundos e subjetividades, se conectando e pertencendo aos Saberes e formas do conhecimento de Origem, possibilitando a compreensão do ser humano fora de um olhar limitado a comparações externas. Estes fazem com que se perca autonomia e potencialidades próprias, isolando a oportunidade e a naturalidade de explorar diferentes abordagens da produção de conhecimento possibilidades mais plurais, transversais e complexas a construção da consciência histórica local, historiografia e do ensino de história rompendo com pejorativos transtemporais ao “indígena” Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 16 e saberes, como as escutas sonoras, histórias orais, impactos visuais, transcrições de histórias, etc. Este resgate é urgente ao presente que vem sendo materializado com inúmeras abordagens virtuais e, sobretudo, inclusiva a todes, onde resgate e transversalidade são cotidiano e constituem a base para as ciências que devem ser desenvolvidas para o bem viver de existências, que são múltiplas e cíclicas. Arquivo virtual Os conteúdos reunidos no arquivo virtual possibilitam maior democratização do acesso a conteúdos específicos de autoria e produção Originária que devem ser incluídos em todas as etapas formativas em afirmação de outras abordagens epistemológicas e concepções de narrativas historiográficas que promovem a descolonização do ensino para a formação de nossas mentalidades, (re)organizando imaginários e protagonismos que envolvam as chamadas "temáticas e histórias indígenas”. Compreende-se, aqui, múltiplas dimensões, particularidades e possibilidades não mais fechadas em marcos temporais e agências históricas ainda hegemônicas, levando em conta que referências e produções originárias podem e devem aparecer em qualquer assunto da formação sócio-histórica, proporcionando perspectivas de diagnosticar e propor soluções ao adoecimento e pessimismo presentes na convivialidade contemporânea global, estes advindos dos processos de colonialidade que narram a formação sócio-histórica em uma série de disputas territoriais, de poder com explorações e extermínios naturalizados pela cultura do domínio que distancia do caráter afetivo e coletivo. Acreditando ser aliado a uma (re)educação social e histórica, o projeto (RE)Pensa Humanidade vê como uma das suas capacidades, por meio do acesso e possibilidades dos trabalhos coletivos, retomar a saúde, o respeito e o otimismo nas diversidades nesta rede multidimensional que vivencia a humanidade e seus registros, sendo capaz, assim, de valorizar, transmitir e mapear múltiplas possibilidades nos elementos materiais e imateriais presentes no pensamento Originário e seus saberes. Possibilita-se, então, a construção de pertencimento e identificação em uma narrativa e a partir de um conhecimento plural que devem tecer a transmissão da historicidade não só do presente, mas revendo as lentes do passado como plural e subjetivo. Com base no exposto, e na ideia de que as práticas culturais são criadas e reinventadas para responderem às circunstâncias e à realidade em que se vive encoraja-se, nesse espaço de (re)criação de uma historiografia com autonomia e por outras epistemes que permitam a Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 17 pluralidade de perspectivas e de protagonismos mais autênticos à temporalidade, compreendida, aqui, como múltipla. Enseja-se, em síntese, contribuir para a produção de uma mentalidade condizente às realidades locais, constituídas transversalmente, em busca de uma melhor convivialidade global. Nesse sentido, no horizonte da continuidade mesma da humanidade, considera-se urgente reconstruir, de forma mais afetiva à realidade, estruturas que abarque as linguagens e as percepções históricas de múltiplos agentes sociais detentores de inscrições próprias, livres de tutelas externas que, equivocadamente, vêm impondo uma historicidade de hierarquização limitada a comparações hegemônicas que forjam relações de poder e, consequentemente, autenticidades. Nessa esteira, deve-se assumir como possível uma produção acadêmica, política, sócio-histórica, etc. mais íntegra às complexidades dos mundos, em nome da pluralidade cultural e das particularidades dos sujeitos de uma maneira especial, com mais afeto, alegria, proximidade, respeito e profundidade. Nessa perspectiva, a realização da pesquisa prescinde de práticas e procedimentos efetivos à descolonização dos ofícios intelectual, científico, e do ser íntimo/social, em movimento de deslocamento e ruptura com referenciais que, de forma transtemporal, vêm apagando e subalternizando potencialidades de pertencimento Originários e Sulistas em nossos modos técnicos e sociais. Nesse âmbito, é fundamental romper com formações e imaginários acadêmicos e científicos que alimentem pré-concepções, equívocos, simplismos e exotificações geradores de sentimentos e comportamentos sociais discriminatórios de corpos "indígenas" destinados ao epistemicídio e aos genocídios. Nesses termos, captar e divulgar os conteúdos aventados toca no tipo de informação e transmissão com que a pesquisa se compromete, o que constitui, ao mesmo tempo, o ponto de partida e a própria oportunidade de mudança. É, então, partindo do olhar e das referências próprias destes "povos", que se torna factível visibilizar e potencializar sua autoinscrição de existência e resistência, fundando-se outras abordagens e narrativas de História Oficial a serem implementadas junto ao Ensino de História na contramão dos contínuos exotismos que se traduzem em estereótipos pejorativos, culminando na subalternização dos corpos e etnias num movimento de silenciamento da pluralidade e da transtemporalidade das "humanidades". A ideia é a de se voltar às particularidades e demandas do próprio território brasileiro sem exclusões e hierarquias superficiais que reforçam o vencedor diante do silenciamento de um suposto vencedor. Trata-se de uma ação pela existência e experiências do outro, da formulação de mundos outros. Deve-se, assim arcar com o tempo prospectivo, especialista em Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 18 criar ausências no sentido mais peculiar da vida a gerar angústia e intolerância imperiais para o sujeito que resiste no mundo vital opressor, mas que ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar, como lembra Ailton Krenak em “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, pois sem esta vitalidade é impossível manter-se vivo para contar a História. Nesse sentido, os conteúdos articulados para a (RE)Pensa Humanidade ocupam este lugar da transmissão de conhecimentos e chamam a atenção para a revitalização das produções voltadas a uma mudança de referências. Todas as produções e conteúdos didático pedagógicos voltados à reflexão e ao ensino de História no que tange às "temáticas indígenas" partem da autoria, interpretação, e narrativas originárias sobre a realidade não só da comunidade, ou dos indivíduos autodeclarados indígenas, mas das relações de todos os seres, dando passagem a um debate, propondo práticas efetivas, sobre a continuidade desta humanidade com base na premissa de que “o todo” é fundamental. Ultrapassando, portanto, a construção de resistências territoriais, políticas, e identitárias, a (RE)Pensa trata de transmitir os olhares originários, multilaterais e plurais para os quais deve haver uma integração horizontal transversal (conexão e equidade) das relações entre todos os seres naturais e os que têm “intelectualidades”. Nesses termos, as narrativas originárias manifestam o repúdio a qualquer esgotamento, violência, ou inferiorização entre todos os seres, expressando suas máximas autonomia e liberdade, bem como a toda a forma de dominação e disputa de poderes. Por acreditar ser esse o caminho da equidade, optou-se por se orientar a partir destas referências, vivências e olhares. Destarte, nos conteúdos disponíveis na plataforma (Re)Pensa Humanidade é prioridade colaborar com a revitalização de práticas sem presença ou imposições hegemônicas, ressignificando-se as ações do tempo presente que envolvem os povos originários. Outro ponto é ampliar seu protagonismo, sobretudo, na construção de conhecimentos, superando os determinantes de supostos primitivismo e invalidez social. A ideia é empregar sua plena colaboração nas atividades intelectuais humanas históricas, políticas, sociais e ressemantizar a longa e pejorativa tradição acadêmica, mostrando a ampla produção existente de autonomia e autoria originárias sobre vivências. Nessa transposição epistemológica, descoloniza-se práticas metodológicas e objetivas, concretas, rompendo os silenciamentos sobre os povos originais na História gerados, por sua vez, pela observação colonialista fria e simplista. Trafega-se, assim, na contramão dos fundamentos alienantes do epistemicídio que lançam os seres à competitividade e à hierarquização, tornando a guerra de poderes intrínseca à humanidade. Assim, parte-se do Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 19 princípio de que, utilizando-se o ofício e o fazer históricos e pedagógicos para reelaborar conhecimentos de formas afetiva, plural, transgressora e dicotômica, levando em conta as subjetividades e as particularidade de seres e coletivos, rompe-se com a atual lógica intolerante e individualista global que ao longo do tempo, a historiografia parece (re)produzir em imaginários coletivos, marcando “os subordinados” e os “vencedores” como bonança. Não se pretende apontar críticas muito severas a uma obscuridade de fatores que a antropologia histórica do século XX encobre, a saber a História originária que, particularmente na historiografia do Brasil, não atinge vínculos de identidade suficientes para nos aproximar à ancestralidade e a práticas que seriam advindas dos habitantes originais, pois a narrativa de barbárie, exotismo e incapacidade impede de serem visualizados outros aspectos desses. Porém, deve-se assumir a insuficiência, ainda que tardiamente, com mais alteridade, levantar questões ao silenciado e dificuldades em dar conta efetivamente das visões e particularidades de sociedades originárias. Pesquisadores oriundos do mundo colonizador/colonialista, mesmo propondo investigações que provoquem proximidade e reconhecimento, ainda assim não conseguem mudar o cenário mais geral – como é observado na coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha (1992), “História dos Índios no Brasil”, ou nos significativos trabalhos realizados por John Monteiro (1994, 2001, 2003). Por fim, pretende-se demonstrar que – diante de produções repetitivas, brancas, violentas, silenciosas e simplistas – investigar as obras e produções recentes de Povos Originários se apresenta como meio de romper com a dinâmica de “dominados versus dominadores”. Afinal, as perspectivas dos dominadores não assumem experiências abismais do tempo atual, de pandemia, com a conclusão de que progresso e capitalismo global não se fazem magistrais, e sim perigosos à existência. Defende-se que o colapso do tempo presente vê as consequências de despersonalizar as relações em dimensões dúbias da materialidade e do cosmos. O mito violento de sua origem, as práticas do epistemicídio e a negligência aos seus resquícios no espaço comum fizeram experimentar com angústia o distanciamento de afetos quando substituído por materialidade e sequestro dos sonhos. Sonhos estes que serão entendidos como a pulsão para questionarmos nossas ações naturais para suprir um desejo de ocupar o espaço e se promover a partir da aquisição material infinita. Isso alerta para a instabilidade de atingir desejos a partir da incompreensão de sequestro do tempo, produção e disputa. É um devir importante ressaltar que descolonizar é colocar-se contra as diferentes formas de dominação, adequando epistemologia à própria realidade, recuperando autoestima diante das próprias enunciações. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21. 20 Bibliografia BANIWA, Andŕ Fernando. Bem Viver e Viver bem: Segundo o Povo Baniwa no Noroeste Amaẑnico Brasileiro. 1 ed. Curitiba: Editora UFPR , 2019. CHAVES, Pedro Ĵnatas. Did́tica, decolonialidade e epistemologias do sul: uma proposta insurgente contra a neoliberalizã̧o do ensino escolar e universit́rio. 1 ed. Editora CRV.2021. CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa. Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010. KAMBEBA, Márcia Wayna. Territ́rio, identidade, meḿria e cultura dos povos da terra. In: KAMBEA, Márcia Wayna. O Lugar do Saber Ancestral. 2 ed. São Paulo: UK’A, 2021. KRENAK, Ailton. A humanidade que pensamos ser. In: KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. 1[ ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. KRENAK, Ailton. Que ĺnguas falam as Universidades ? In: PIMENTA, A. N.; MENEZES, P. M (org). Firmando o Ṕ no Territ́rio: Temáticas Indígenas em Escolas. Rio de Janeiro: Pachamama, 2020. MUNDURUKU, Daniel. A Sabedoria Ind́gena por dentro. In: MUNDURUKU, Daniel. O Banquete dos Deuses: Conversa sobre a Origem e a Cultura Brasileira. 2a ed. São Paulo: Global, 2009. 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Pesquisadoras do Sul Global chamam a atenção para o fato de que grande parte das teorias feministas produzidas pelo Norte não contemplam as experiências de mulheres latino-americanas, pois estudar as suas realidades implica em reconhecimento de histórias caracterizadas por aspectos como colonialismo, racismo e imperialismo. Dessa forma, estudar a História das Mulheres da América Latina pede a desconstrução de categorias, conceitos e periodizações pré-estabelecidas pela ciência ocidental e a construção de metodologias próprias que almejem romper com a colonização teórica do pensamento feminista latino-americano (ODILA; RAGO, 2019). Um exemplo de exercício epistêmico que corrobora para com o questionamento de estruturas coloniais é o seguinte trecho do texto de Joênia Wapichana presente no manifesto “Feminismo para os 99%” publicado em 2019: As relações de poder precisam ser revistas, subvertidas, transformadas - sejam elas entre homens e mulheres, entre seres humanos de culturas e origens diferentes, entre seres humanos e o planeta, entre os donos do capital e dos meios de produção e os que entram com sua força de trabalho e de reprodução social, ou que trazem à humanidade cultura e criatividade. Assim, é fundamental um olhar específico de inclusão dos segmentos invisíveis nos espaços de poder - um olhar que abarque e seja abarcado pelos povos indígenas. O que queremos é um convívio sem dominante e nem dominado, com complementação e nunca exploração, cultivando relações colaborativas coletivas, reestruturando a noção de poder e direcionando nosso pensamento para a igualdade - política, econômica e social (WAPICHANA, 2019, pp.2-3). Nesta pesquisa, falaremos sobre um movimento feminista que contém as suas particularidades e limitações: um feminismo que eclodiu em meio à ditadura militar no Chile (1973-1990) e corresponde à segunda onda dos feminismos do país. Ressaltamos que as divisões em ondas não são um consenso entre os estudos feministas que, assim como todo 1 Mestranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 22 campo de conhecimento, apresentam heterogeneidade. Geralmente, as segundas ondas dos feminismos são datadas conforme acontecimentos estadunidenses e europeus. No entanto, autoras latino-americanas salientam a importância de formulações específicas para o entendimento destes movimentos em nossa região. Reivindicar as particularidades das organizações de mulheres do Sul, não implica em descartar as colaborações do Norte para com as suas práticas e teorias. Convém sublinhar que pensar o feminismo a partir de diferentes ondas reforça a ideia da existência de centros irradiadores e suas margens; é como se uma pedra tivesse sido atirada na água, formando várias ondas. Estas vão se abrindo e apontando para a circulação de discursos e teorias que partem de um centro produtor, sendo este, em geral, os países considerados desenvolvidos do hemisfério norte; em seguida, dirigemse para o hemisfério sul, localização principal dos países considerados subdesenvolvidos (PEDRO, 2001, p.3). Historiadoras como Joana Maria Pedro (2008), têm contribuído para os estudos dos feminismos da América do Sul no século XX. Um de seus trabalhos, investigou as relações dos protestos de maio de 1968 desenvolvidos na França e em outras partes do mundo com as segundas ondas dos feminismos, evidenciando quais são os seus legados para os movimentos de mulheres do Cone Sul. Segundo Pedro (2008), essas mobilizações foram caracterizadas por frases de efeito e palavras de ordem que denunciaram a subordinação feminina e estão presentes em muros e ruas de países latino-americanos na contemporaneidade. Assim como os demais movimentos, o feminismo de “Segunda Onda” produziu uma “fraseologia” que tentava indicar, através das palavras, uma explicação para a subordinação das mulheres. Palavras como “patriarcado”, “condição feminina”, “relações de gênero”, “relações de sexo”, indicavam divisões, posições e disputas. Produziu frases de efeito, numa mistura geralmente bem-humorada, mas muitas vezes também trágica, para atrair a atenção e formular suas reivindicações, por vezes acompanhada, também, de dramatizações (PEDRO, 2008, p.60). Na primeira onda dos feminismos (fins do séc. XIX e início do XX), houve intervenções em prol de direitos políticos e institucionais, enquanto a segunda (meados dos anos 1960) incorporou consideravelmente temáticas sobre a sexualidade. Ao contrário dos feminismos da primeira onda que, no geral, contaram com mulheres letradas da classe média, os da segunda se articularam com diversos grupos que também lutavam contra as opressões. Porém, é digno de nota que nos Estados Unidos, os movimentos negros consistiram em inspiração para os de libertação das mulheres nas duas divisões e ambos se radicalizaram e potencializaram as suas pautas com o decorrer de suas atuações (BARRANCOS, 2008; DAVIS, 2016; PEDRO, 2008, p. 67). A intelectual Angela Davis afirmou que “Quando a verdadeira história da causa Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 23 antiescravagista for escrita, as mulheres ocuparão um vasto espaço em suas páginas; porque a causa das pessoas escravas tem sido particularmente uma causa das mulheres.”2 É importante enfatizarmos que cada força política e social agiu de acordo com o contexto histórico e as resistências e as repressões desencadeadas em seu espaço-tempo. As suas ações foram determinadas pela materialidade, o que nos possibilita induzir que movimentos com reivindicações semelhantes poderiam agir de maneira distinta conforme a sua localidade e temporalidade. Por isso, ressaltamos que as sujeitas de nossa investigação englobam um feminismo muito particular e complexo que possui semelhanças com os feminismos das segundas ondas e as reivindicações feministas chilenas de projeção nacional, mas também diferenças e contradições. Algumas semelhanças são a compreensão de que o pessoal é político e a preocupação em tecer epistemologias feministas. A politização do espaço privado se manifestou nas produções teóricas das sujeitas que compunham estes movimentos, algo que é notável nas publicações materializadas em Mensaje. Além disso, temos outra característica em comum entre o nosso objeto de estudo e grande parte dos movimentos de mulheres na América do Sul: as manifestações contra as ditaduras militares. É interessante o quanto as organizações de mulheres desse período articularam áreas como feminismo e democracia, denunciando as violações aos direitos humanos protagonizadas pelo Estado. Já uma diferença entre o feminismo materializado em nossa fonte e as segundas ondas dos feminismos na América Latina é o fato dele não ter explorado de forma significativa questões que englobam a sexualidade feminina. Por mais que tenha articulado de maneira instigante as opressões impostas às mulheres nos campos público e privado, as produções feministas em Mensaje não deram ênfase a assuntos como o divórcio, a pílula anticoncepcional e o aborto. Acreditamos que tal fato se deu porque o impresso em destaque é católico e os seguintes temas eram caros para a hierarquia eclesiástica e a sociedade chilena historicamente caracterizada pelo conservadorismo. Vale ressaltar que muitas das agentes que atuaram em organizações feministas eram religiosas e encontraram na tutela da Igreja Católica ferramentas de sobrevivência em um cenário de intensa perseguição política aos indivíduos contrários aos ideais e ações protagonizados pelo estado ditatorial. Também destacamos que apesar das inúmeras intersecções, os movimentos feministas da América do Sul possuem marcos diversos que, assim como as suas ondas, não contém 2 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Boitempo, 1. ed., 2016, p.49. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 24 absoluta concordância. No Brasil, os anos de 1972 e 1979 foram marcantes porque dataram a construção dos primeiros grupos de consciência (onde eram discutidas as realidades de mulheres) em São Paulo e Rio de Janeiro e a promulgação da anistia, respectivamente. Na Argentina da década de 1970, ocorreram a formação de várias organizações feministas. Já na Bolívia, a consolidação de grupos de consciência se deu apenas em fins da década de 1980. O país viveu ditaduras que dificultaram a formação de encontros e discussões em momentos anteriores. No Paraguai, as primeiras organizações de mulheres surgiram no início da década de 1980 perante a ditadura de Alfredo Strossner. Enquanto no Uruguai, alguns direitos feministas foram conquistados antes da década de 1960 (PEDRO, 2001). E no Chile? Como a eclosão feminista se manifestou? Iremos explorar a questão no próximo tópico. Movimentos feministas durante a ditadura militar chilena O golpe de 11 de setembro de 1973 contra Salvador Allende possibilitou mecanismos para que organizações feministas chilenas surgissem reivindicando democracia e autonomia para as mulheres nos âmbitos público e privado. O movimento feminista chileno eclodiu, dando fim ao que autoras nomearam como “Silêncio Feminista”. Para Julieta Kirkwood (1982), a precursora da segunda onda do feminismo chileno, este “silêncio” teve início após a conquista do voto feminino em 19493 quando houve o declínio da participação feminina em organizações sociais e políticas e findou-se em 1973 com a instauração da ditadura militar. Os feminismos no Chile foram de grande importância para a reivindicação pela democracia e participação feminina em espaços públicos, sobretudo em cargos e partidos políticos. Atuou de maneira destacável na busca por desaparecidos e na luta internacionalista do exílio, caracterizando-se por forte teor político porque a sua própria eclosão se deu em resposta ao contexto de repressão e autoritarismo. Segundo Sepúlveda (2013), “No es aventurado decir que sus prácticas de resistencia están en la base del proceso de redemocratización vivido en el país.”4 Por isso, devemos ter em mente que geralmente a segunda onda dos movimentos feministas no Chile é dividida em três fases: nos anos iniciais enfatizou a defesa da vida e a luta 3 Vale lembrar que o voto feminino foi conquistado em dezembro de 1948 e oficialmente praticado em 1949. No entanto, se estendeu apenas às mulheres alfabetizadas. Somente em 1970, foi estipulado o voto para todas as mulheres chilenas (BARRANCOS, 2022, p.168). 4 SEPÚLVEDA, Vanessa. Democracia en el país y en la casa. Reflexión y activismo feminista durante la ditadura de Pinochet (1973-1990). Cuadernos Kóre. Revista de historia y pensamiento de género Nº 8 (Primavera-Verano 2013), p. 98. Disponível em www.uc3m.es/cuadernoskore. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 25 por justiça para com os indivíduos que tiveram direitos humanos violados pela ditadura militar. Entre fins da década de 1970 e início da de 1980, construiu os primeiros grupos feministas e encontros de mulheres da América Latina e do Caribe, etapa caracterizada por início de problematizações exclusivamente femininas. Já entre 1982 e 1986, realizou forte mobilização contra a repressão do Estado, ampliou o contato com o feminismo latino-americano e contou com grandes coordenadoras de grupos de mulheres (WOITOWICZP; PEDRO, 2009). No fim da década, a preocupação com a inserção feminina na democracia se fez presente, ambas as fases são perceptíveis nas trajetórias das militantes que atuaram em Mensaje, sendo as duas últimas mais explícitas no recorte temporal que contempla esta pesquisa. Muitas das sujeitas que foram às ruas reivindicar democracia não se declararam como feministas nos anos iniciais das mobilizações contra a ditadura militar. No entanto, a partir de seu desejo de seguir o modelo cultural de boas mães e esposas historicamente fomentado pela sociedade chilena, formaram agrupações de familiares e vítimas da repressão (exilados, perseguidos, torturados, etc) e grupos tutelados pela Igreja Católica. Posteriormente, estas organizações discutiram sobre a condição da mulher, abordando temas como a sexualidade e autoconsciência. Assim, agentes que inicialmente se mobilizaram contra as violações aos direitos humanos se reconheceram enquanto feministas e entenderam que as opressões do gênero e da política estavam interligadas (VALDÉS, 1987, págs. 13-14). A partir da década de 1980, houve uma maior rearticulação das forças sociais devido ao exercício de abertura democrática em curso no país. Uma das bases dessas reivindicações populares foram grupos de mulheres como a Agrupación de Mujeres Democráticas e o CODEM (Comisión de Derechos de la Mujer). Em 1983, o processo de explosão feminista foi itensificado, assim como a participação de partidos políticos na esfera pública chilena. Duas instituições de mulheres se destacaram neste cenário: o MEMCH '83 (Movimiento pro Emancipación de la Mujer Chilena) que englobou a maior parte das organizações sociais femininas de oposição ao autoritarismo e o grupo Mujeres por la Vida que contemplou amplos setores políticos, partidários, independentes e feministas de oposição a Pinochet (VALDÉS, 1987). Democracia en el país y en la casa O ano de 1983 consistiu em um momento simbólico para os feminismos chilenos tanto do ponto de vista prático quanto do teórico. Neste momento, o slogan Democracia en el país y en la casa se fez presente entre os movimentos liderados por mulheres que denunciaram as Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 26 repressões desenvolvidas pelo regime de exceção e o patriarcado que estabelecia papéis de gênero nas esferas públicas e privadas (KIRKWOOD, 1982; SEPÚLVEDA, 2013). A força mobilizadora destas organizações mostrou que o pessoal é político e que, ao contrário do que muitos pensavam, feminismo e política não eram áreas dissociáveis. Além disso, chamou a atenção para questões da esfera privada que envolviam a violência doméstica e o trabalho de reprodução social, o que não agradou setores conservadores da sociedade chilena. O movimento feminista irrompeu com força no movimento de mulheres contra a ditadura, que continuava sendo considerada uma contradição secundária. “Democracia no país e em casa” foi o lema que sintetizou nossas reivindicações e encontrou sentido em muitas mulheres que trabalhavam sem remuneração e reconhecimento no âmbito doméstico; em algumas que militavam em organizações de estrutura patriarcal; em outras que viviam uma realidade oculta no âmbito privado: a violência doméstica – para mencionar apenas uma (CONTRERAS, 2017, p. 224). De acordo com Teresa Valdés (1987), as mulheres chilenas vivenciaram uma dupla opressão: a dominação de gênero resultante da estrutura patriarcal e a dominação política imposta pela ditadura. Ao levarmos em consideração o modelo econômico e ideológico defendido pelo autoritarismo, a situação se agravou porque foram as mulheres o grupo mais afetado pelas medidas neoliberais e conservadoras de Augusto Pinochet. Dessa forma, a carestia dos alimentos e o desemprego gerados pela crise econômica de 1982 também eram pautas femininas. É digno de nota que as agentes de classes menos abastadas necessitavam sustentar as suas famílias e sofriam com o mercado de trabalho que impôs ao gênero feminino, salários baixos e condições precárias de sobrevivência. A sociedade chilena da época estava inserida em uma tradição patriarcal latinoamericana. O modelo de família defendido era funcional para o sistema capitalista vigente. A mulher era o indivíduo responsável pela reprodução cotidiana e generacional da força de trabalho e da socialização, aspecto muito criticado pelo slogan Democracia en el país y en la casa. Assim, as mulheres tiveram as suas experiências destinadas ao espaço privado enquanto os homens ocuparam o público e foram encarregados de desenvolver ações consideradas produtivas para a nação chilena. A dominação materializada nas ações do Estado se conectou com a dominação de gênero existente nas relações pessoais. Os salários precários impostos às mulheres e a desvalorização das atividades de reprodução social, assim como a sua não remuneração também foram concebidos como formas de dominação de gênero (KIRKWOOD, 1982; SEPÚLVEDA, 2013; VALDÉS, 1987). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 27 A teoria de reprodução social muito discutida por feministas marxistas se relaciona diretamente com as denúncias elaboradas pelas feministas chilenas. A teoria defende que o capitalismo em conjunto com toda a sua estrutura de exploração, fomenta o sexismo, acentuando a subordinação das mulheres. A separação da produção de pessoas da obtenção do lucro imposta pelo sistema, outorgou ao gênero feminino um trabalho não remunerado. Sem o trabalho de reprodução social desenvolvido por mulheres, sobretudo negras, indígenas e periféricas, não existe vida e força de trabalho. Assim, a organização da reprodução social tem a opressão de gênero como uma de suas bases e se beneficia da dicotomia público-privado para gerar lucros (ARRUZZA, BHATTACHARYA, FRASER, org. 2019, p.37-38). O trabalho doméstico, afetivo, de cuidados, estipulado como gratuito e obrigatório, é a chave da produtividade do salário, sua parte oculta, sua dobra secreta. Por que oculta e secreta? Porque é próprio do capitalismo explorar esse trabalho através de sua divisão sexual, o que permite hierarquizar a relação entre sexos (ainda mais em relação aos corpos feminizados e subordinar o trabalho grátis, enquanto ele é desvalorizado politicamente (GAGO, 2020, p. 41). Dora Barrancos (2008) argumentou em Maestras, librepensadoras y feministas en la Argentina (1900-1912) que a historiografia demorou a reconhecer a participação feminina em esferas que não abrangem a vida doméstica. Afinal, nas décadas finais do século XIX ocorreu uma maior separação entre as esferas pública e privada, sendo destinadas às mulheres as tarefas reprodutivas da vida humana. Para a autora, esta divisão e a reformulação dos códigos civis latino-americanos que expressaram a institucionalidade republicana contribuíram para que as mulheres fossem privadas de seus direitos. Uma breve história de Mensaje Mensaje é uma revista católica fundada pelo jesuíta Padre Hurtado em 1951 na cidade de Santiago, capital do Chile. O impresso circula no país na atualidade e até a data de escrita deste artigo publicou 714 edições. Entre os seus propósitos estão retratar para o público as realidades nacional e internacional de maneira crítica e cristã, usando como ferramenta o humanismo cristão - uma alternativa ao comunismo ateísta e ao capitalismo explorador5. Vale ressaltar que teve relações com a Vicaría de la Solidaridad (1973-1992), instituição criada pela 5 Informações disponíveis no site oficial da revista https://www.mensaje.cl/sobre-nosotros/ Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 28 Igreja Católica chilena que se tornou um grande instrumento de denúncia aos direitos humanos violados pelo autoritarismo6. Ao longo de sua história, contou com um corpo editorial múltiplo composto por integrantes da Companhia de Jesus7 e por profissionais de áreas como economia, política, literatura, história e afins. Perante o recorte temporal usado neste trabalho (1983-1990), sofreu censura da ditadura militar, tendo edições extraviadas nos correios, perdas de patrocínios e páginas em branco por causa do seu conteúdo contrário ao governo. Além disso, um de seus diretores, Renato Hevia, foi preso em 1985 sob a acusação do Ministro do Interior de Augusto Pinochet devido a um editorial que questionou as violações aos direitos humanos cometidas pelo estado ditatorial. Discursos feministas em Mensaje Uma de nossas hipóteses é que Mensaje incorporou produções feministas em suas edições devido às manifestações populares que ocorreram no Chile em 1983. A crise econômica de 1982 rompeu com a ideia de milagre econômico imposto pela ditadura e corroborou para que setores que anteriormente haviam apoiado o golpe contra Salvador Allende, se somassem às mobilizações contra o autoritarismo do Estado. Os movimentos feministas alcançaram atuação de destaque no cenário nacional, não é por acaso que o slogan Democracia en el país y en la casa assumiu muita força neste período. Além disso, a Igreja Católica sofreu pressões internas e externas no que tange às suas ações contra a violação aos direitos humanos cometidas pelos militares. A entidade e seus diversos segmentos se viram obrigados a se aproximar de movimentos sociais e denunciar as formas de perseguição política instauradas pelo governo de Augusto Pinochet (CRUZ, 2015). É interessante o quanto o conteúdo das produções feministas em Mensaje acompanharam as transformações políticas do país, moldando-se conforme as demandas da conjuntura nacional e internacional. A partir de 1988, ano da realização do plebiscito que optou pelo fim da ditadura militar com 55,99% de um total de 7.435.913 votos (Memoria Chilena), os discursos feministas materializados em nossa fonte expressaram um tom de unidade não apenas entre os movimentos de mulheres, mas também entre toda a sociedade chilena. Observa- 6 La Vicaría de la Solidaridad (1973-1992). Disponível no site Memoria Chilena http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-3547.html. 7 A Companhia de Jesus foi uma ordem religiosa fundada em 1539 por São Inácio de Loyola, se caracterizou pela obediência ao papado e por rígida disciplina espiritual (Memoria Chilena). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 29 se um discurso que prezou pela institucionalidade e conciliação com o neoliberalismo fomentado pelo próprio regime de exceção. Nelly Richard (2001), identificou as problemáticas dos discursos feministas chilenos que marcaram o período de transição democrática, iniciado depois do plebiscito de 1988 e importante sinalizador do processo de abertura para a democracia. Os governos da Concertación de Partidos por la Democracia (1988-2009)8 deram continuidade às políticas neoliberais impostas pela ditadura de Augusto Pinochet que conciliaram repressão e modernização. Para a autora, a política de transição adotou o consenso como forma de neutralizar forças que anteriormente se encontravam em disputa. Um organismo que materializa muito bem o discurso conciliador presente nos movimentos feministas é a Concertación de Mujeres por la Democracia: Nesse ciclo de resistência, surgiram órgãos específicos de defesa dos direitos humanos e o Movimento Concertación das Mulheres pela Democracia que, por um lado, serviu como instrumento unificador e, por outro, criou resistências por sua adesão à frente de centro-esquerda Concertación. A agitação das mulheres foi decisiva no referendo em que triunfou o “Não” - em outubro de 1988 - que impediu Pinochet de prolongar a ditadura por mais uma década. O slogan fundamental que uniu a maioria dos movimentos - para além de sua disparidade - era “Democracia no país e em casa” (BARRANCOS, 2022, p. 170). Dessa forma, consenso, memória e mercado foram a fórmula instrumentalizadora desta “democracia da transição” que moldou discursos e silenciou violências cometidas pelos militares. As negociações geradas pela democracia moderada contribuíram para a fragmentação e dispersão dos movimentos de mulheres que se radicalizaram nos anos de autoritarismo. Afinal, os mecanismos de transição fizeram muitas delas abandonarem a dinâmica de atuação em movimentos sociais impulsionadas pela promessa de exercer funções estatais que lhes possibilitasse disseminar a consciência de gênero em redes institucionais. A ideia era promover uma maior atuação do gênero feminino em cargos de representação pública da sociedade. No Chile, os anos 80 são considerados como o momento do surgimento de grupos importantes, mas ainda temerosos da ditadura de Pinochet. De acordo com Nelly Richard (2001), um feminismo dividido entre o autônomo e o socialista. Argumenta ela que a “transição” chilena significou fragmentação, uma dispersão dos movimentos 8 A Concertación de Partidos por la Democracia tinha como objetivo lançar uma candidatura única para as eleições presidenciais de 14 de dezembro de 1989. No caso, Patricio Aylwin, eleito com 55,17% dos votos. Era composta pelo Partido Democrata Cristão, o Partido Socialista, o Partido pela Democracia e o Partido Radical Social Democrata. Posteriormente, a Concertación elegeu outros três governos: Eduardo Frei (1994-2000), Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010) (Memoria Chilena). Ainda nos dias atuais, a coalizão é criticada por pactuar com as políticas de conciliação e fomentar o neoliberalismo instaurado pela ditadura militar (LIMÓN, 2021). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 30 sociais que exerceram grande força político-contestadora nos tempos da luta contra a ditadura (PEDRO, 2001, p. 5). A reivindicação da unidade em prol do processo de abertura democrática esteve presente no texto Demandas de las mujeres a la democracia de Alicia Frohmann, publicado em Mensaje na sessão Hechos y comentarios de agosto de 1988. O artigo, mencionou que 22 coletivos e organizações feministas apresentaram em julho daquele ano uma proposta que prezou a união entre todas as mulheres chilenas. Além disso, enfatizou que estas sujeitas deveriam manifestar quais são as suas demandas frente a democracia e a necessidade de incorporá-las no projeto político aspirado pela maioria da população. Alicia Frohmann (1988), assim como outras feministas atuantes em Mensaje, defendeu que não existe democracia sem a participação feminina em todos os âmbitos políticos e sociais e para sustentar a sua ideia mencionou mobilizações e marcos históricos protagonizados por mulheres. A autora salientou que a proposta feminista das instituições que se reuniram fez uso de documentos marcantes dos movimentos de mulheres no Chile como a plataforma do MEMCH’83 (Movimiento pro Emancipación de la Mujer Chilena) e o ofício apresentado na Asamblea de la Civilidad em 1986. Observamos no artigo, o resgate histórico do passado das mulheres chilenas para articulação no presente e construção de um futuro emancipador e feminista. Mesmo com todos os silêncios decorrentes das estruturas de poder, a importância de valorização das mulheres enquanto trabalhadoras foi outro ponto levantado pelo documento construído pelos coletivos e organizações feministas. Esta valorização não passava apenas pelo plano social, mas também pelo econômico. Esta lógica reconheceu que o trabalho doméstico deveria ser remunerado e o entendeu enquanto atividade essencial para a reprodução da vida e força de trabalho existente na sociedade chilena. Con este fin, se propone que el trabajo doméstico sea compartido por hombres y mujeres; que se asegure una previsión para la dueña de casa; que se garantice el derecho de las mujeres a un trabajo remunerado y elimine todo tipo de discriminación en cuanto a sueldo y salario y acceso a cargos de responsabilidades y directivos (FROHMANN, 1988, Mensaje, n◦ 371, jul., p. 342). Os debates sobre os salários destinados às mulheres são uma das características da economia feminista emancipatória. É uma necessidade do sistema capitalista usufruir do trabalho não remunerado das mulheres e ordenar o salário como ferramenta de manutenção da divisão entre o público e o privado e hierarquização entre os gêneros (GAGO, 2020). Mesmo Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 31 com a demanda explícita por remuneração do trabalho doméstico, o texto não desenvolveu uma crítica direta ao capitalismo explorador orquestrado pela ditadura. O que evidencia o tom moderado existente entre as atuantes de Mensaje e solidifica a ideia de que o golpe de 11 de setembro de 1973 não foi apenas um plano de destruição da Unidade Popular, mas também um projeto de desarticulação dos partidos políticos, implementação da modernização socioeconômica e despolitização do povo chileno, o que inclui o enfraquecimento das mobilizações radicais advindas dos movimentos feministas (VALDIVIA, 2015). No entanto, em 1986, a própria Alicia Frohmann escreveu para a sessão Libros de Mensaje um texto chamado El trabajo doméstico remunerado. Nele, a autora desenvolveu uma resenha crítica do livro Yo trabajo así … en casa particular de autoria de Rosalba Todaro e Thelma Gálvez, publicado pelo Centro de Estudios de la Mujer9. A obra conta a história de quatro trabalhadoras de casas particulares, Magdalena, Luz, Patrícia e Elcira. Na resenha, Frohmann (1986), usou em diversos momentos o termo "trabalhadoras" ao se referir às condições de trabalho precarizadas das protagonistas do livro e a invisibilidade que este tipo de atividade recebe. Ela realizou uma crítica um pouco mais direta ao sistema capitalista ao dizer que as condições de trabalho atribuídas à estas sujeitas não era um dado natural e sim, o resultado de uma estrutura sociocultural hierarquizada que sustenta a opressão da mulher e a dupla opressão sofrida pelas mulheres que trabalham com o serviço doméstico. Uma comparação entre os dois textos publicados pela escritora e as demais produções da revista, nos permite induzir que houve uma transição entre o tom adotado pelas feministas de 1986 para 1988. Ao que tudo indica, a mudança de postura é decorrente da conjuntura política chilena que substituiu a denúncia explícita do capital pela conciliação entre amplos setores políticos, econômicos e sociais. Um outro texto importante para pensarmos tal questão é Una aproximación histórica: sobre la vocación política de las mujeres de Mariana Aylwin, publicado em setembro de 1990. O artigo é uma versão do trabalho apresentado no seminário ¿Existe la vocación política de la mujer? realizado em Santiago, contém cinco páginas, está presente na seção intitulada Sociedad e dividido em sete tópicos: La lucha por el voto femenino, Sorprendente retirada, Mujeres en el Parlamento, Protagonismo en crisis de sobrevivencia, Situación legal desmedrada, Políticas estatales hacia la Mujer e ¿Servir sin mandar?. A escolha por analisar esse artigo se deu porque 9 O Centro de Estudios de la Mujer foi criado em abril de 1984 por um grupo de pesquisadoras das áreas das ciências sociais e econômicas. A instituição se dedica aos estudos sobre gênero e desenvolve formações, assessorias e investigações nas áreas de Trabalho e Emprego, Cidadania e Política e Políticas Públicas. Disponível em https://cem.cl/nosotras/. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 32 ele explicita muito bem a articulação entre discursos feministas, institucionalidade, neoliberalismo e a política do consenso estipulada pela Concertación. O escrito realizou uma análise da participação política das chilenas no mundo político formal e as políticas estatais destinadas às mulheres ao longo dos acontecimentos históricos. Ao desenvolver as suas ideias, apontou a dificuldade da integração feminina na vida política e a existência de toda uma estrutura que impede o acesso feminino a este ambiente, condicionando-lhe uma participação pública limitada. Ao defender que a vocação política tem gênero, buscou por respostas na história recente do Chile para sustentar o seu argumento. O texto da historiadora, também exemplifica o compromisso das feministas em Mensaje em romper com a dicotomia público-privado e de salientar o quanto as tarefas de reprodução social demandam que o Estado elabore iniciativas de proteção às mulheres e sua família. Ao longo de seu escrito, por exemplo, foi destacado o quanto as leis de jardins de infância foram praticamente elaboradas por parlamentares mulheres durante o “Silêncio Feminista” e o fato das mulheres atuantes no Congresso, enfatizarem as suas condições de mães e esposas de forma conservadora, assim como os próprios homens fizeram. É interessante que o trabalho de Mariana Aylwin (1990) foi o mais completo que encontramos em Mensaje se levarmos em consideração o resgate da luta histórica das mulheres no Chile. O texto foi publicado em setembro de 1990 quando o seu pai, Patricio Aylwin, já havia tomado posse como presidente da República. É notável que a sua publicação conteve cinco páginas e esteve presente na sessão Sociedad, entre os escritos analisados neste trabalho, está entre os que possuem um maior número de páginas. Será que o espaço recebido pela autora no impresso consistia em forma de expressar para o público leitor de Mensaje o compromisso do novo governo com as pautas femininas? Provavelmente, o ato foi uma maneira de explicitar o apoio da revista ao programa político desenvolvido pela Concertación. Outro aspecto que necessita ser considerado é que Mariana Aylwin criou em 1987 a Concertación de Mujeres por la Democracia e paralelamente foi nomeada como vice-diretora nacional do Departamento de la Mujer del Partido Demócrata Cristiano e secretária executiva da Fundación para el Desarrollo y la Cultura Popular. No mesmo ano da publicação de seu texto, assumiu o cargo de Dirección de Estudios del Ministerio Secretaría General de la Presidencia. Os dados evidenciam que a historiadora teve participação direta e nada imparcial Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 33 na política chilena de seu contexto e que cabe a nós investigar a intencionalidade por trás de seu discurso10. Vale destacar que as conexões entre feminismos, institucionalidade e neoliberalismo se manifestaram em outras produções expressas em Mensaje durante o recorte temporal de 1983 a 1990, ao todo foram mais de 20 textos mapeados e investigados, porém os materiais aqui mencionados foram escolhidos para compor este trabalho por acreditarmos que melhor comportam os seus objetivos. Outro ponto a ser observado é que a própria esquerda concebia o feminismo como subalterno e alegava que as suas reivindicações eram opressoras e radicais. O fato foi denunciado por mulheres em nossa fonte e debatido dentro das diversas organizações feministas daquele contexto. Às mulheres componentes de instituições de esquerda eram destinadas tarefas domésticas, um reflexo do que a sociedade como um todo esperava do sujeito mulher. Em Acerca del lugar de las mujeres en política ¿Una mujer presidente?, Josefina Rosseti (1988), por exemplo, salientou que as mulheres correspondiam à metade da população eleitoral do Chile e mesmo assim não participavam, de forma destacada, das análises políticas do país. Ao refletir sobre a pouca expressão de lideranças femininas nos cargos públicos destacou “¿Participar en política para servir el café?”11. Uma crítica a hierarquia de gênero presente dentro dos partidos e outras instituições que enxergavam a participação feminina na política como uma extensão do espaço privado. Considerações Finais Observa-se que o feminismo materializado em Mensaje está inserido entre as inúmeras formulações teóricas que abrangem as segundas ondas dos feminismos latino-americanos e apresenta similitudes com as suas principais características: o entendimento de que o pessoal é político, o uso de frases de efeito como Democracia en el país y en la casa e a denúncia da violação aos direitos humanos cometidas pelos militares. No entanto, contém as suas diferenças, sendo a mais marcante, o não aprofundamento de temáticas sobre a sexualidade feminina. O que evidencia a complexidade de nossa fonte e a multiplicidade de movimentos feministas existentes na América Latina da década de 1980 e no próprio Chile. 10 Mariana Aylwin Oyarzún, Reseñas biográficas parlamentarias. Disponível em https://www.bcn.cl/historiapolitica/resenas_biograficas/wiki/Mariana_Aylwin_Oyarz%C3%BAn. Acesso em 20 de outubro de 2022. 11 ROSSETI, J. Acerca del lugar de las mujeres en política: ¿Una mujer presidente?, Mensaje, Santiago, n◦ 368, Maio, 1988, p. 145. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 34 Reiteramos que a mulher era uma das bases de sustentação da estrutura social chilena, reprodutora da força de trabalho e foi diretamente afetada pela crise econômica que gerou baixos salários e carestia de itens básicos de consumo. Logo, estas questões eram caras para elas, principalmente para as não-brancas e pobres. Somada à crise econômica, havia o grande número de desaparecidos e perseguidos pela repressão do Estado, o que mobilizou até mesmo sujeitas que nunca se organizaram politicamente antes, a protestarem em nome da sua família. Porém, a exploração econômica que sustentou essa estrutura social não foi discutida de forma profunda nos textos investigados neste trabalho. Os discursos aqui presentes adotaram um caráter de conciliação com o neoliberalismo e a institucionalidade conforme o processo democrático ganhou corpo, sobretudo a partir do ano de 1988. O que não significa que as feministas atuantes em Mensaje desconheciam as realidades das sujeitas que mais sofreram com os impactos econômicos do governo de Augusto Pinochet, mas que optaram por seguir um caminho de negociações e concessões que interferiu diretamente em seus discursos e práticas. Afinal, diante da conjuntura de repressão, esta pode ter sido a única forma de sobrevivência e participação política que encontraram. Referências ARRUZZA, BHATTACHARYA, FRASER. org. Feminismo para os 99% - Um manifesto. Editora Boitempo, 1.ed. 8 mar. 2019. BARRANCOS, Dora. Chile. In: História dos feminismos na América Latina. 1.ed., Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2022, p. 159-172. BARRANCOS, Dora. Maestras, librepensadoras y feministas en la Argentina (1900-1912). In: ALTAMIRANO, Carlos; MYERS, Jorge. 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Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36. 35 KIRKWOOD, Julieta. Ser política en Chile: Las feministas y los partidos políticos, 2.ed, Santiago, Cuarto Propio, 1982. LARGO, Eliana. 50 anos de feminismo no Chile: texto e contexto. In: 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. Ed.1, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, FAPESP, 2017, p. 99135. LIMÓN, Tinta. Chile em chamas: a revolta antineoliberal. São Paulo, Editora Elefante, 2021. ODILA, Maria. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças. HOLLANDA, Heloisa (org.). In: Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019, p. 357-369. PEDRO, Joana. Os feminismos e os muros de 1968, no Cone Sul. Clio - Série Revista de Pesquisa Histórica, n. 26-1, 2008. PEDRO, Joana. 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Nós nos conhecemos desde 2008, quando fizemos disciplinas juntas no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Desde então, participamos de algumas iniciativas em conjunto, com destaque para atuação na Diretoria da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC), gestão 2020-2022. As reflexões que apresentaremos nas páginas a seguir são fruto da apresentação que fizemos no “Primeiro Simpósio do Grupo de Estudos de História das Américas (GEHA)”, intitulado “História e Estudos Decolonais/Anticoloniais em Abya Yala”, realizado no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), nos dias 3 e 4 de outubro de 2022. Neste evento tivemos a oportunidade de compartilhar com os(as) presentes um pouco das nossas trajetórias, especialmente no que tange às experiências que vivenciamos nas nossas respectivas universidades: Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Assim, o objetivo aqui é apresentar, a partir das nossas trajetórias e de algumas experiências, certas inquietações sobre o tema do impacto da formação acadêmica em universidades “centrais” - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e USP - e sobre o trabalho na área de História da América nas universidades “periféricas” em que atuamos: UFV e UNILA. Da UFMG a UFV (Priscila): Realizei grande parte da minha formação acadêmica no Departamento de História da UFMG. Fui bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico 1 Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora do Mestrado Profissional em Patrimônio, Paisagens e Cidadania. 2 Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Coordenadora da Especialização em Ensino de História e América Latina (EHAL) e professora dos seguintes programas de pós-graduação: Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL) e Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 37 (CNPq) no Projeto “Brasiliana – Escritos e Leituras da Nação”, coordenado por Eliana Dutra, que me apresentou um campo amplo de estudos sobre a História Intelectual. A partir dessa experiência em que tive a chance de estudar sobre intelectuais brasileiros dos anos de 1930, fui desenvolvendo o interesse em pensar sobre como os intelectuais brasileiros compreendiam a América Latina. Três professores(as) foram fundamentais nesse processo. Cristina Campolina, que me fez ver a História da América de uma forma instigante, divertida e criativa, Antônio Mitre, que com sua inteligência e sensibilidade me fez admirar a história do pensamento intelectual e político latino-americano e Kátia Gerab Baggio, que me ensinou de forma atenta e crítica como realizar pesquisas na área da História da América. Segui sob a sua orientação no bacharelado (2003), mestrado (2004-2006) e doutorado (2008-2012). Defendi a minha monografia de bacharelado sobre as visões de intelectuais da Coleção Brasiliana em relação aos conflitos de fronteira do Brasil no século XIX. Nesse mesmo ano de 2003, passei no mestrado na linha de História e Culturas Políticas, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trabalhei no mestrado sobre um intelectual esquecido, que foi precursor dos estudos hispano-americanos no Brasil, Silvio Julio de Albuquerque Lima (1895-1984). Esse trabalho me ajudou a entender melhor os significados do reconhecimento intelectual, os desafios de pensar a América Latina no Brasil e os silêncios da história. Continuei no doutorado com a história intelectual, na mesma linha de História e Culturas Políticas, com o apoio do Cnpq. A diferença foi que optei por estudar não mais intelectuais esquecidos, mas sim um intelectual célebre, Octavio Paz, reconhecido com o Nobel de literatura. Encontrei nas polêmicas políticas do poeta um caminho para compreender parte da sua trajetória. Tive a oportunidade de fazer um estágio de doutorado na Universidade Autonóma de México (UNAM), em 2009, sob a orientação de Álvaro Matute. Entre 2008 e 2010, fiz disciplinas de doutorado na USP, o que me levou a criar um vínculo intelectual e afetivo, cada vez maior, com a ANPLHAC, fundada pelas professoras Maria Ligia Prado e Maria Helena Capelato. O resultado do meu trabalho de doutorado foi publicado pela editora Alameda, em 2013, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Prêmio Teses UFMG. Paralelo a todos esses anos de formação, participei de congressos no Brasil e no exterior e lecionei como professora substituta na UFV, na UFMG e no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET). Em 2012, tomei posse como professora efetiva de História das Américas, no Departamento de História da UFV. Em 2017, tive o interesse de Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 38 conhecer melhor a história intelectual norte-americano porque passei a lecionar também História dos Estados Unidos. Optei por fazer o meu pós-doutorado sobre Susan Sontag em Berkeley, na Universidade da Califórnia, sob a supervisão de Richard Cándida Smith, que transita entre as histórias intelectuais e artísticas da América Latina e dos Estados Unidos. O seu livro Improvised Continent: Pan Americanism and Cultural Exchange (2017) é um bom exemplo nessa direção. Desde então, venho atuando no ensino, pesquisa e extensão na UFV que tem o orgulho de poder enaltecer a sua história agrária construída por décadas com o apoio norte-americano. Encontrei, inicialmente, um desafio enorme de estabelecer interlocutores porque pensava sempre nas possibilidades dadas nos centros universitários hegemônicos do Brasil. Era como se a minha formação me levasse ao entendimento de que o que acontecia nas universidades periféricas não servia de material para pesquisa em História das Américas. Nem podia imaginar como o acesso à informação poderia mudar de forma tão vertiginosa como vem acontecendo nos últimos tempos. Assim, comecei a achar absurdo todos esses pensamentos que tinha sobre centro/periferia e descobri na extensão uma forma de estar na universidade. As leituras de Paulo Freire, Fals Borda e Tim Ingold me ajudaram a ver a importância de estar na universidade, me tornando sensível às questões sociais e aberta aos processos dialógicos de produção de conhecimento. Não vivi a extensão na minha graduação, para falar a verdade, nunca soube o que era e nem como podia atuar nela, apenas que era algo menor do que o ensino e a pesquisa. Essa última parte segue sendo vigente, pois a extensão universitária é o elemento mais desvalorizado da universidade pública. Mas esse foi o lugar mais interessante que descobri depois de muito tempo de universidade porque é um lugar de escuta sensível, de renunciar a certezas científicas, de aprender fazendo com os outros e de descobrir como podemos produzir conhecimento para vivermos em comunidade. Talvez se a pesquisa e o ensino tivessem radicalmente comprometidos com a sociedade, a extensão poderia deixar de existir, mas ela segue sendo fundamental para colocar em evidência a função pública da universidade. Desse modo, realizei com os estudantes projetos de extensão no interior da Amazônia, contei e ouvi histórias sobre a América Latina em programas de música na rádio da universidade FM 100,7, interagi com as comunidades locais indígenas e quilombolas coordenando a Troca de Saberes da UFV, etc. Até que em 2020 veio a pandemia e o meu reencontro com a minha amiga Tereza Spyer me levou a uma profusão de novas experiências. Comecei a participar do Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 39 grupo interdisciplinar “Decolonizando a América Latina e os seus espaços”, fiz parte da diretoria da ANPHLAC, organizei dossiês sobre feminismos latino-americanos e iniciei uma série de leituras decoloniais que me fizeram compreender os limites do meu processo de formação e a necessidade, como diz Catherine Walsh, de aprender a desaprender para voltar a aprender de um modo muy otro. Sim, de um modo muy otro. Não temos como voltar a normalidade de histórias excludentes estando diante dos desafios políticos, sociais e ambientais do nosso tempo. Silvia Rivera Cusiquanqui foi muito importante nesse sentido: Os temas retornam, mas as disjunções e saídas são diversas; retornar-se, mas não ao mesmo ponto. É como um movimento em espiral. A memória histórica se reativa e, ao mesmo tempo, se reelabora e se ressignifica nas crises e nos ciclos de rebelião posteriores. É evidente que, em uma situação colonial, o “não dito” é o que mais significa; as palavras encobrem mais do que revelam e a linguagem simbólica toma a cena. (CUSIQUANQUI, 2021, p. 19) Embora não estejamos em uma “situação colonial”, é por meio do “não dito” que encontrei a história da América Latina na UFV. A história dita na instituição é a da influência de homens brancos, letrados e heterosexuais, que orientaram um sistema de autoridade vinculado ao poder econômico norte-americano. Um dos efeitos dessa história é que em vez de produzir uma ciência de ponta que sirva a comunidade no plural, produz uma ciência que se distancia de muitas redes locais de interlocução e de saberes tradicionais. Pensemos sobre a história da América Latina na UFV. Desde a década de 1930, a instituição recebe um número expressivo de estudantes e professores(as) de diversos países da América Latina que atuaram e atuam, fundamentalmente, nas áreas de ciências agrárias e biológicas gerando transformações culturais, econômicas e sociais na cidade de Viçosa. De acordo com o Departamento de Relações Internacionais da universidade, a maioria dos(as) latino-americanos(as) vem nos últimos tempos da Colômbia e muitos deles(as) realizam pesquisas com bolsas do governo brasileiro e norte-americano. Alguns chegam com famílias. Apesar de terem se tornado o maior grupo de estrangeiros da instituição, o lugar que ocuparam e ocupam fica na sombra da importância destinada aos norte-americanos e europeus. Basta observar as notícias já publicadas nos jornais do passado, e agora no site da UFV. Vale mencionar que é recorrente tanto na universidade quanto na cidade o entendimento de que o Brasil não faz parte da América Latina e que os hispano-americanos (colombianos, mexicanos, peruanos etc.) são mais ou menos a mesma coisa porque falam espanhol. Interessante é observar que a forma com que os(as) estudantes latino-americanos(as) são apresentados ocorre por meio de uma espécie de “feira de nações” em que muitos estereótipos Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 40 de diversos países são reafirmados e muitas nuances são difíceis de serem percebidas. Como afirma Rita Segato: Nuestros países saben muy poco unos de otros e intercambian muy poco sus experiencias, excepto cuando son transmitidas por el gran mercado comprador de ideas, el Norte, o a través de representaciones autorizadas y oficiales de sus realidades, que, muchas veces, filtran las dinámicas conflictivas internas (SEGATO, 2021, p.?). Com vistas a compreender melhor essas relações, surgiu o projeto de extensão “Latino Americanes como nós” (https://projetoidentidades.wixsite.com/latinoamericanes) elaborado com dez estudantes de graduação (Nicolle Lima, Mateus Rocha, Isabela Barçante, Cindy Guinsberg, Priyanka Dhingara, Virginnya Faltz, Maria Izabel Sousa, Davi Andrade, Mariana Tiso e Giovanna Martins) interessados(as) em refletir sobre trajetórias de vida; em pesquisar nos arquivos; em discutir uma bibliografia pertinente e em elaborar um conhecimento crítico em conjunto com os(as) latino-americanos(as) que sirva a comunidade de Viçosa. Apoiados(as) em dados institucionais e histórias orais, o intuito foi construir uma exposição virtual em que o foco foi apresentar para o público outras narrativas possíveis sobre a América Latina em Viçosa; valorizar a trajetória científica e familiar dos(as) estudantes e professores(as); demonstrar que as identidades não estão vinculadas apenas as nacionalidades e construir esteticamente um arranjo capaz de diluir certos preconceitos e desconhecimentos sobre Nuestra América existentes na comunidade local. Tu Dios es judío, tu música es negra, tu carro es japonés, tu pizza es italiana, tu gas es argelino, tu café es brasileiro, tu democracia es griega, tus números son árabes, tus letras son latinas. Yo soy tu vecino. y aún me llamas extranjero? Eduardo Galeano, El Cazador de Historias Construímos uma exposição sobre a história da América Latina na UFV no contexto da pandemia da Covid-19. Não podíamos deixar de considerar que a América Latina sofreu fortes impactos causados pela pandemia. Tornou-se o epicentro da doença em 2020, atingindo a triste marca de milhões de vidas perdidas. A criação de uma exposição virtual foi uma iniciativa inovadora que buscou contribuir com a construção de um futuro plural, democrático e Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 41 participativo. A exposição virtual “LatinoAmericanes como nós” propõe um canal de interlocução com toda a comunidade para conhecer histórias e contribuir para modificar o jeito de ver a América Latina. Apresentamos programas de rádio, documentários, documentos de arquivos, manifestações artísticas, artigos, etc. Segundo o Museu da Pessoa, o contato com histórias de vida pode contribuir com o combate à intolerância ao modificar formas de pensar e agir. E esse trabalho mudou de alguma forma todos que se envolveram com o projeto. A estudante de História, Giovana Martins Silva, escreveu no site do projeto que: A experiência que tenho vivido em nosso Projeto de Extensão, desde o grupo de estudos, neste momento em que temos que pensar em outras formas de interação e reinventar o contato com o outro, tem me levado constantemente a ressignificar os nossos instrumentos e os lugares. Lugares na nossa América Latina que se distanciam não só territorialmente, mas simbolicamente, e da mesma forma, se aproximam. Pensar na minha experiência no Projeto de Extensão me leva para diversos momentos, me lembra de diversos rostos, vozes, referências... E me voltar para isso me faz perceber que foram diversos os significados que eu atribuí ao projeto, foram diversas as minhas posições diante do grupo, foram diversas as sensações, e em meio a tudo isso eu posso ver o que aprendi com cada um de vocês, com os estudantes latinoamericanes, e aprendi muito sobre mim também. Nosso projeto só faz sentido porque está sendo pensado com respeito a todos os integrantes e aos latino-americanes, porque todos, de maneiras distintas, estão enfrentando muitas barreiras. Barreiras muito difíceis ou impossíveis de serem transpostas, e nós, como historiadores e professores em formação, temos que refletir incansavelmente sobre estas barreiras e agir sobre elas. E é gratificante compor este projeto porque é isto que viemos e vimos tentando fazer! Esta iniciativa abre uma janela para a História da América Latina na comunidade de Viçosa. Vamos seguir verificando o número de participantes e buscando desenvolver, ao longo do processo, estratégias para ampliar a participação pública, com o apoio do Departamento de História e do setor de informática da UFV. Com essas histórias compartilhadas percebemos que apesar das memórias e dos passados não seguirem necessariamente um caminho comum, observamos que os(as) estudantes de outros países da América Latina e as pessoas da cidade de Viçosa envolvidas no projeto se sentiram parte da mesma comunidade. O retorno mais interessante desse trabalho veio com o “Manifesto dos estudantes estrangeiros da América Latina”: Manifestación de voluntad para la Creación de una Asociación de Estudiantes Latinoamericanos en ViçosaBrasil � � � � � � �� Nosotros, los estudiantes extranjeros de América Latina en Viçosa MG - Brasil, reconocemos el valor que tiene estudiar en la Universidad Federal de Viçosa y sabemos el papel transformador que esta experiencia académica tiene para nuestras vidas. Entendemos también que es una gran oportunidad estar aquí y que tuvimos que vencer muchas dificultades para lograrlo. Por tanto, afirmamos la importancia de que todos los que emprendimos este Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 42 proyecto de vida podamos terminarlo de forma satisfactoria y de que más estudiantes puedan tener esta oportunidad. Los estudiantes latinoamericanos somos la mayoría (58%) del total de estudiantes extranjeros de la Universidad Federal de Viçosa (UFV). Según la Dirección de Relaciones Internacionales (DRI) de la UFV, para el año 2019 se reportó que existían 186 estudiantes latinoamericanos, siendo 104 colombianos, 23 peruanos, 8 mexicanos, 8 ecuatorianos, 6 chilenos, 6 bolivianos, 5 paraguayos, 5 costarricenses, 5 venezolanos, 4 argentinos, 3 panameños, 2 cubanos, 2 haitianos, 2 hondureños, 2 uruguayos y 1 nicaragüense. Nuestra llegada y permanencia en Viçosa implica un movimiento económico para la ciudad y un intercambio cultural que permite su internacionalización y la de la UFV. Sin embargo, nuestra llegada y permanencia no siempre es fácil y exitosa. Algunos desafíos comunes deben ser enfrentados, tales como: encontrar un lugar para vivir, buscar recursos económicos cuando no se cuenta con una beca, resolver procedimientos burocráticos ante la UFV y de legalidad de la estadía en Brasil ante la Policía Federal, acceso a servicios de salud y asesoría jurídica en caso de violación a los derechos fundamentales, entre otros. Existen también otras complicaciones que han perturbado el bienestar de algunos estudiantes, como la falta de información sobre la prestación de servicios de salud, apoyo emocional y psicológico y de asesoría jurídica en caso de violación a los derechos fundamentales, tales como abuso laboral o sexual. Frecuentemente estos desafíos no son compartidos y expuestos por los estudiantes afectados, colocando en riesgo su bienestar y permanencia en la UFV y en Brasil. Estas vicisitudes podrían ser aminoradas para los estudiantes extranjeros, por medio de la consolidación de una red de apoyo. Por otro lado, nuestras experiencias también nos muestran la importancia y el gozo de estar juntos, de compartir momentos de diversión y triunfos, tanto académicos como personales. Varios han sido los eventos culturales, académicos, políticos, deportivos y fiestas organizadas por estudiantes latinoamericanos en Viçosa, en los cuales se ha contado con una gran participación de estudiantes, profesores y de la comunidad en general. Esto nos muestra que, aun dentro de nuestra diversidad compartimos elementos culturales que nos unen. Por eso consideramos que fortalecer de forma colectiva nuestras expresiones culturales, artísticas y sociales potencializa nuestra experiencia académica en la UFV. Nosotros, los estudiantes extranjeros latinoamericanos, nos hemos organizado de forma espontánea y solidaria para solucionar algunas de las dificultades mencionadas, así como para satisfacer nuestras necesidades de expresión. Sin embargo, consideramos importante formalizar esta organización para buscar soluciones que atiendan a más estudiantes y que generen espacios para fortalecer el intercambio cultural. Para alcanzar este objetivo planteamos la creación de una Asociación de Estudiantes como forma de caminar para una solidaridad organizada. Una asociación es “un grupo de personas con una finalidad común, que persigue la defensa de determinados intereses, sin tener el lucro como objetivo”, según la ley no 10.406/2002, Art. 53, del Código Civil de Brasil. La construcción de una asociación permitirá dar un respaldo jurídico a nuestras acciones y requerimientos, captar y administrar recursos a través de la formulación de proyectos y tener una mayor representatividad ante la UFV. Proponemos que esta asociación podría comenzar trabajando en seis líneas de acción, o ejes temáticos, de acuerdo con las motivaciones expuestas: intercambio cultural, bienestar social y emocional, trámites burocráticos, acogimiento de nuevos estudiantes, asesoría jurídica e intercambios académicos. Por las razones mencionadas, los estudiantes extranjeros latinoamericanos en Viçosa manifestamos de manera libre y consciente nuestra voluntad de asociarnos. En Viçosa, MG, a los diez días del mes de febrero del año 2022, las siguientes personas que manifestaron su voluntad en asociarse: Byron Javier Jimenez Fuentes Cristian Mauricio Vega Cuichán Deysy Yuliana Henao Montoya Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 43 Elizabeth Regina Alfaro Espinoza Erika Tatiana Cifuentes Vargas Fernando Ariel Colque Giuliana Shelly Lizana Flores Gloria Milena Rojas Plazas Javier Hernán Falconí Heredia Jose Jahir Morales Murillo Juan Anderson Ruiz Juan Sebastián Restrepo González Lucas David Pedroza Camacho Luis Gonzalo Salinas Jimenez Nancy Aidé Cardona Casas Naydu Shirley Rojas Higuera Rodolfo Mauricio Castillo Velasquez Roger Ivan Valderrama Londono Desse modo, no contexto de pandemia, que exigiu de todos(as) uma dramática readaptação e a necessidade de repensarmos o lugar que ocupamos na sociedade, tivemos a ideia de pesquisar sobre as identidades latino-americanas em Viçosa com os(as) próprios(as) estudantes latino-americanos(as) no intuito de transformar a compreensão sobre a universidade, dando visibilidade a esse aspecto histórico deixado de lado na instituição e na cidade. Por fim, descobri com essa experiência um outro modo de fazer universidade que me permitiu (re)conhecer os outros (des)conhecidos em nós. QR code da exposição - Latinoamericanes como nós - na UFV Da USP à UNILA (Tereza): Embora eu seja originalmente de Belo Horizonte e tenha estudado na UFMG (no colégio Centro Pedagógico e no Colégio Técnico), fiz minha formação acadêmica na USP, isto é, graduação, mestrado e doutorado em História (2011-2013). Na graduação tive a grata Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 44 oportunidade de ser bolsista do Programa de Educação Tutorial, PET-História USP, criado em 1995 por István Jancsó. Depois que o professor István faleceu, o tutor do programa foi Pedro Puntoni, da área de História do Brasil Colônia. Com Pedro tive a oportunidade de desenvolver uma pesquisa sobre o Brasil Holandês e participei de muitas atividades de formação do PET que me marcaram muito, além de ter convivido com colegas que hoje são grandes amigos(as). Já o mestrado e doutorado em História Social foi realizado na área de História da América, sob orientação de Maria Ligia Coelho Prado, ambos com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Nesse período, além de conviver com colegas da área de América, incluindo também orientandos(as) de Maria Helena Rolim Capelato, que hoje são amigos(as), tive a oportunidade de participar das edições da ANPHLAC e de outros eventos da área no Brasil e no exterior. E embora estes anos uspianos tenham sido muito profícuos, de enorme aprendizado, minha formação acadêmica foi pautada pelos temas, teorias e metodologias mais “clássicas” do campo da História, particularmente de corte marxista. Uma exceção, que recordo como algo que teve um impacto grande, foram os estudos pós-coloniais e subalternos, introduzidos por Maria Lígia e Maria Helena, nos quais destacavam-se mais os elementos interseccionais, isto é, o cruzamento entre os recortes de classe, raça e gênero. Mas as teorias, metodologias e epistemologias contra-hegemônicas só fizeram parte de fato da minha vida a partir do momento em que entrei na UNILA, em 2011. Vale destacar que estes 12 anos de UNILA têm sido maravilhosos, ainda que muito exaustivos, pois construir uma nova universidade é um empreendimento que exige um enorme comprometimento de todos(as). E aqui aproveito para sintetizar brevemente o contexto em que esta universidade foi criada. Desde os anos 90, o Brasil tem intensificado a sua presença no continente, especialmente na América do Sul, através do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Este bloco regional procurou inicialmente integrar os países do Cone Sul e mais tarde incorporou outros países sul-americanos. Com o MERCOSUL, houve o aprofundamento das relações culturais entre os países membros, especialmente através da educação, a cargo do Setor Educativo do Mercosul (SEM), espaço de coordenação das políticas educativas dos países do bloco (DULCI; MALHEIROS, 2021). Este organismo formulou um projeto denominado Universidade do Mercosul que, embora tenha sido aprovado pelos países membros, não foi ratificado pelas suas respectivas legislaturas. Esta proposta foi finalmente levada a cabo pelo Brasil, que transformou a ideia original de uma universidade dos países do MERCOSUL no Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 45 projeto de uma universidade federal brasileira com vocação internacional, orientada para a integração dos países da América Latina (MARTINS, 2010). Criada em 2010, a UNILA foi vista como um importante vetor de mudança do isolamento histórico do Brasil em relação aos demais países da região. Cumpre ressaltar que essa instituição é resultado da política externa do governo Lula (2003-2010), que procurou expandir a inserção internacional do Brasil através da cooperação e integração regional. A internacionalização do ensino superior foi uma das estratégias desta política, que defendia que o Brasil deveria ser um porta-voz dos interesses dos países em desenvolvimento, bem como atuar como promotor do desenvolvimento social em países com afinidades históricas e culturais com o Brasil, tais como os demais países da América Latina, do Caribe e de língua portuguesa (CARVALHO, ROSEVICS, 2013; DULCI, 2016). Além disso, o processo de criação da UNILA foi praticamente concomitante com a fundação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUR). Sob a perspectiva de “integrar para desenvolver”, a cooperação internacional através da educação tornou-se uma orientação estratégica da política externa brasileira. Esta instrumentalização da educação como estratégia de inserção internacional, diretamente relacionada com a expansão dos temas e atores da política externa brasileira, deu protagonismo ao Ministério da Educação. Assim, a UNILA, juntamente com a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Universidade da Integração Amazônica (UNIAM) e Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), faz parte das chamadas universidades “temáticas” ou de “integração”, destinadas à integração regional, especialmente no marco da Cooperação Sul-Sul (DULCI, 2016). Estas universidades foram concebidas sob os princípios da diplomacia de solidariedade, cooperação e integração, com vista a alianças estratégicas com países histórica e culturalmente próximos do Brasil. Os seus projetos institucionais, especialmente os da UNILA e da UNILAB, procuraram ultrapassar formas anteriores de cooperação internacional no domínio da educação, que funcionavam unilateralmente e a partir de uma perspectiva eurocêntrica. Além disso, buscaram ser contra-hegemônicos, empenhados na integração regional para além do aspecto econômico, atribuindo um valor especial aos aspectos políticos, sociais e culturais (RIBEIRO, 2015; DULCI, 2016). Um dos objetivos da UNILA é promover o desenvolvimento e a cooperação com base no conhecimento partilhado e na formação de pessoal qualificado para a região. Consistente com a política de expansão e internalização do ensino superior brasileiro, a universidade está Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 46 estrategicamente localizada em Foz do Iguaçu, na região da Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Para além da posição geográfica, foram consideradas a formação histórica da cidade, o seu carácter multiétnico e a coexistência trinacional (COMISSÃO DE IMPLANTAÇÃO DA UNILA, 2009). O projeto da UNILA visava criar uma universidade nova e mais democrática, baseada em três pilares: valorização do bilinguismo, da interdisciplinaridade e do multiculturalismo. Ainda de acordo com o projeto original, 50% dos(as) estudantes e professores(as) deveriam ser do Brasil e 50% de outros países da América Latina. Os fundamentos teóricos dessa proposta basearam-se principalmente em epistemologias não eurocêntricas, tais como a teoria da dependência, a análise do sistema-mundo, o marxismo contemporâneo e os estudos póscoloniais e decoloniais (COMISSÃO DE IMPLANTAÇÃO DA UNILA, 2009; DULCI, 2016). Este tecido intelectual, político e epistêmico é amplamente representado por pensadores(as) latino-americanos(as) e caribenhos(as), cujas obras influenciaram o projeto desta universidade, também destinada a combater as diferentes formas de dominação: cultural, linguística, científica, filosófica, política, econômica etc. Neste sentido, a UNILA foi constituída como um espaço privilegiado para a construção de conhecimento autônomo, coletivo, independente e com o aporte de epistemologias subalternas, para que, “a partir de baixo” e através da integração cultural e da cooperação solidária entre os países da região, pudesse combater a desigualdade e a opressão (COMISSÃO DE IMPLANTAÇÃO DA UNILA, 2009; DULCI, 2016). Um dos espaços institucionais que mais levou a frente esta proposta foi o Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL), particularmente a partir da atuação dos(as) docentes(as) e discentes(as) da Linha de Pesquisa “Cultura, colonialidade/decolonialidade e movimentos sociais”. Esta linha busca “uma reflexão em torno da integração ‘desde abaixo’, no âmbito dos movimentos sociais, da cultura e da interculturalidade crítica e descolonial”. Além disso, um de seus preceitos é que: (...) a perspectiva descolonial - como epistemologia em contínua construção - constitui uma proposta para compreender as relações de poder/domínio no espaço-tempo, a superação da matriz histórica-colonial de poder e a liberação dos sujeitos subalternizados por essa matriz, para uma efetiva integração (PPGICAL, 2022). Vale destacar que no âmbito do PPGICAL foi criado o Grupo de Pesquisa “Descolonizando as Relações Internacionais”. Cumpre dizer que a literatura do campo das Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 47 relações internacionais é muito “nortecentrada”, uma vez que quase todos os(as) autores(as) mainstream são da Europa ou dos Estados Unidos. Por isso, este grupo de pesquisa procura “sulear” às Relações Internacionais. Além disso, importa ressaltar que a expressão “sulear” foi utilizada por Paulo Freire em Pedagogia da Esperança e simboliza uma virada em relação à palavra “nortear” (FREIRE, 2015). Ao utilizarmos a palavra “sulear” buscamos valorizar primeiro as epistemologias, ontologias e os conhecimentos locais, isto é, do nosso sul epistemológico. Outra iniciativa que aprofundou as discussões acerca das propostas contra-hegemônicas oriundas da nossa região foram as atividades desenvolvidas pelo grupo de pesquisa “¡DALE! Decolonizar a América Latina e seus Espaços”, criado em 2016 por Leo Name. Entre as várias atividades do ¡DALE! é importante enfatizar que o grupo ofereceu em 2019 o minicurso de extensão “Insurgências decoloniais: geopolítica do conhecimento para outros mundos possíveis”. O curso foi ofertado por mim e pelo meu colega Gabriel Cunha e teve versões anteriores na Universidade Federal da Bahia e na UFMG. Tratou-se de uma introdução ao chamado giro decolonial, literatura centrada na América Latina e no Caribe com vistas a uma epistemologia própria e emancipadora. Com base na crítica ao eurocentrismo das ciências sociais, conceitos centrais da decolonialidade foram debatidos, tais como: colonialidades do poder, do ver, territorial e de gênero, geopolítica do conhecimento e desobediência epistêmica. Além disso, vale destacar que em 2020 o ¡DALE! organizou 2 edições do “Colóquio Virtual: Giro Decolonial” (http://abre.ai/coloquio1 e http://abre.ai/coloquio2); editou o um número da revista Redobra “Edição Temática: Insurgências Decoloniais” (http://www.redobra.ufba.br) e editou 2 volumes da Revista Epistemologias do Sul (“Dossiê: Giro Decolonial – Partes 1 e 2”; http://bit.ly/giro_20191 e http://bit.ly/giro_20192). Por fim, em 2021 e 2022 o grupo também publicou na Revista Epistemologias do Sul 4 dossiês: “Corpos e sujeitos na/da modernidade”, “Cineclube Cinelatino” e “Feminismos latino-americanos, ativismos e insurgências – Parte 1 e 2” (https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul). Com relação às atividades de ensino, importa dizer que entrei na UNILA em 2011, quando realizei um concurso para professora visitante para “Fundamentos da América Latina”, uma área que reúne algumas disciplinas que fazem parte do Ciclo Comum de Estudos (CCE) e, em 2013, fiz um outro concurso para professora efetiva para a cadeira de “História das Relações Internacionais”, subárea do curso de Relações Internacionais e Integração. Aqui gostaria de destacar minha experiência docente no CCE, que além das disciplinas de “Fundamentos da América Latina” têm matérias da área de “Línguas Adicionais” (português Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 48 e espanhol) e de “Epistemologia e Metodologia”. Acredito que o CCE é o núcleo formador latino-americanista da UNILA, pois foi planejado para todos os cursos de graduação da universidade e procura fornecer uma formação básica com o objetivo de democratizar o ensino superior, em oposição à estrutura clássica das instituições destinadas à formação das classes superiores, segmentadas e com pouco espaço para a inovação. A atuação na área de “Fundamentos da América Latina” me permitiu não só aprofundar as pesquisas no campo dos estudos latino-americanos, como também na área de História da América, particularmente as investigações sobre América Central e Caribe, que não tinham sido eixos centrais durante a minha formação na USP. Além disso, foi muito rica a possibilidade de expandir a interdisciplinaridade, pois ministrei estas disciplinas em praticamente todos os cursos de graduação da UNILA (27 no total). Já no âmbito da extensão, quero ressaltar aqui minha experiência como coordenadora do projeto de extensão Cineclube Cinelatino: Imagens da América Latina a Serem Decifradas. O cineclube está ativo desde 2012 e se dedica a difundir produções audiovisuais (curtas e longas-metragens) de países da América Latina e do Caribe, sejam falados em português, espanhol ou francês (mais eventualmente, exibem-se produções europeias em língua latina). Por meio das produções audiovisuais, o projeto procura promover a construção de um pensamento crítico-reflexivo a respeito dessa forma de arte e suas relações com temáticas pulsantes na nossa contemporaneidade. Igualmente, o Cineclube Cinelatino visa formar um público cineclubista e ampliar o conhecimento e o debate sobre o cinema produzido no mundo, com ênfase para as produções latino-americanas e caribenhas, historicamente marginalizadas pela cultura mainstream, em especial a hollywoodiana. Procurando estimular a integração latino-americana e caribenha por meio do cinema, as sessões são organizadas e construídas em conjunto com a comunidade. Um dos objetivos centrais é estimular pessoas que não pertencem ao meio universitário, que ainda estão em fase de formação, a ter o hábito de frequentar exibições audiovisuais fora do escopo do cinema hegemônico. Os(as) participantes são convidados(as) a conhecer a América Latina e o Caribe e algumas das principais questões que envolvem essa região por meio da compreensão das especificidades da linguagem cinematográfica produzida pela e na nossa região. Por fim, é importante ressaltar que o Cineclube Cinelatino apresenta uma abordagem intercultural e interdisciplinar, pois busca promover sessões de filmes seguidos de debates com convidados(as) de diversas origens e nacionalidades. Geralmente, os(as) debatedores(as) de cada sessão são uma combinação entre discentes, docentes, técnicos(as) da universidade e Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 49 membros da comunidade externa. Já na pandemia, com as exibições remotas, isso foi alterado e contamos naquela ocasião (2020-2021) também com debatedores(as) das equipes técnicas das produções e debatedores(as) de outras universidades e países. Desse modo, ao término de cada sessão do Cineclube Cinelatino, ocorrem discussões com o público presente mediadas pelo conjunto de debatedores(as). E essas discussões posteriormente geraram duas publicações: o livro Cinelatino: imagens da América Latina a serem decifradas https://portal.unila.edu.br/editora/livros/cinelatino publicado pela editora da Unila (Edunila) e o Dossiê Cinelatino, publicado na Revista Epistemologias do Sul (https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul). Referências ACOSTA, A. 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Cinelatino: imagens da América Latina a serem decifradas. 1. ed. Foz do Iguaçu: EDUNILA, 2020. DULCI, T.; FER, E; VITAL. Dossiê Cinelatino. Revista Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia, v. 4, 2020. DULCI, T.; MALHEIROS, M. As políticas de educação dentro do regionalismo póshegemônico mercosulino: uma análise a partir dos documentos das Cúpulas Sociais do Mercosul e do Plano Estratégico de Ação Social. Cadernos PROLAM/USP (Online), v. 20, p. 127-148, 2021. DULCI, T.; ORTIZ, C.; MALHEIROS, M. Existências e resistências: feminismos latinoamericanos (editorial). Revista Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/para/desde América Latina, Caribe, África e Ásia, v. 5, p. 10-19, 2021. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 50 FALS-BORDA, O. Una sociología sentipensante para América Latina. Bogotá: Siglo del Hombre Editores y CLACSO, 2009. FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2015. MARTINS, J. “Unila: uma Universidade Federal brasileira para América Latina”. Revista Ponto e Vírgula, São Paulo, n.7, p. 224-243, 2010. NAME, L.; DULCI, T.; CUNHA, G; BRITTO, M.; OLIVEIRA, A. Insurgências decoloniais: geopolítica do conhecimento para outros mundos possíveis. REDOBRA, v. 6, p. 318-335, 2020. NAME, L.; DULCI, T.; CUNHA, G. Editorial do Dossiê: Corpos e sujeitos na/da modernidade. Revista Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia, v. 4, p. 12-19, 2020. NAME, L.; DULCI, T.; CUNHA, G. Apresentação do Dossiê Giro Decolonial Parte 1: Artes visuais, arquiteturas e alteridades. Revista Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia, v. 3, p. 11-19, 2019. NAME, L.; DULCI, T.; CUNHA, G. Apresentação do Dossiê Giro Decolonial Parte 2: Gênero, raça, classe e geopolítica do conhecimento. Revista Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia, v. 3, p. 11-19, 2019. PPGICAL. Linhas de Pesquisa, 2022. Disponível https://portal.unila.edu.br/mestrado/ical/sobre-o-programa/linhas-de-pesquisa. em: QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Edgardo Lander (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, pp. 117-142. RIBEIRO, F. “UNILA e UNILAB: Uma abordagem sobre o processo de integração internacional do ensino superior a partir das universidades federais no Brasil”. In: Geosaberes, Fortaleza, v. 6, número especial (1), p. 63 – 71, outubro. 2015. SEGATO, R. Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021. TROUILLOT, M. R. Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História. Curitiba: Huya, 2016. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51. 51 PLURIVERSIDADE: UM ESBOÇO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIAS INDÍGENAS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS Mateus F́varo Reis1 Isáas dos Anjos Borja2 Mauro Ćsar de Castro J́nior3 Introdução Não é nada simples fazer uma reflexão sobre as possibilidades e os desafios ao se estudar as histórias dos povos originários4 das Américas, entrecruzando as interpretações elaboradas por representantes desses povos, as narrativas historiográficas, antropológicas e a etno-história (SACRISTAN, 1995). Além disso, tratar as populações indígenas como personagens dinâmicas, ativas e construtoras de suas histórias nem sempre é o caminho selecionado pelos cursos de história nas universidades brasileiras, a despeito das inúmeras iniciativas que vêm consolidando as pesquisas sobre as centenas de povos indígenas que habitam as Américas. Ultrapassar, ou problematizar, os mitos, preconceitos e estereótipos que foram construídos (e que constantemente se renovam) ao longo da invasão e colonização das Américas (MANDRINI, 2014), é um dos principais objetivos almejados pela Lei 11.645, de 2008, assim como preparar professoras(es) e pesquisadoras(es) para tratar adequadamente das relações étnico-raciais. Vale ressaltar que protagonismos de habitantes originais (KRENAK, 2019, p. 41) ou de povos originários (KRENAK, 2019, p. 28) foram construídos de forma significativa, ao se depararem com as constantes invasões que seus territórios sofreram ao longo do tempo, com os objetivos de resistirem, denunciarem e negociarem tais processos, colocando-se como agentes e sujeitos(as) de suas histórias. 1 Doutor em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente do curso de História e da pósgraduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto). Coordenador do Grupo de Estudos em História das Américas (GEHA). 2 Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 3 Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 4 A discussão sobre os conceitos de povos originários, indígenas, índios e ameríndios é ampla e envolve muitas divergências. Optamos pelo uso de povos originários, usada por Krenak, entre outros pensadores de diferentes povos. Críticas ao conceito de povos originários podem ser encontradas em Jorge Fernández Chiti (2010) e Silvia Rivera Cusicanqui (2010). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 52 Tanto no Brasil como em outros países de Abya Yala (PORTO-GONÇALVES, 2009), Afro-América Latina (GONZALEZ, 1988) e Nuestra América (MARTÍ, 1983), vozes originárias têm lutado por espaços nos ambientes de formulação de debates, projetos e tomadas de decisões, ainda que com grande resistência por parte de parte significativa da população de nossos países. Dizer que não há interesse de pesquisa sobre histórias indígenas é desconhecer, por exemplo, uma literatura sobre o tema que vem crescendo rapidamente nas últimas décadas, particularmente a partir da reorganização dos movimentos indígenas, em diferentes países, dos anos 1970 em diante (BURGUETE CAL Y MAYOR; ORTIZ-T, 2010). Podemos citar alguns exemplos de instituições fundadas pelos povos originários, com os objetivos de organizar e canalizar tais vozes: Taller de História Oral Andina (THOA), fundado na Bolívia, em 1983; Comunidad de Estudios Mayas, fundado na Guatemala, em 2012; Comunidad de História Mapuche/Centro de Estudios e Investigaciones Mapuche (CEIM), fundada no Chile, em 2014. Além disso, vale destacar a realização do Congreso Internacional Los Pueblos Indígenas de América Latina (CIPIAL), cuja terceira edição ocorreu em Brasília, em 2019, assim como diferentes grupos de estudo que se centram sobre as populações indígenas nos diversos países de Abya Yala. Por fim, e somente para salientar a importância que os povos originários têm conquistado mediante muitas lutas, foram fundadas dezenas de universidades indígenas ou interculturais, principalmente na América Latina, desde 1992. A seguir, são citados alguns exemplos importantes dessas iniciativas: 1) Em escala transnacional, a Red de Universidades Indígenas, Interculturales y Comunitarias de Abya Yala (RUIICAY); na Nicarágua, a Universidad de las Regiones Autónomas de la Costa Caribe Nicaragüense; no Equador, a Pluriversidad Intercultural de las Nacionalidades y Pueblos Indígenas “Amawtay Wasi”; na Colômbia, a Universidad Autónoma Indígena Intercultural; no México, entre outras, a Universidad Intercultural de Chiapas, de Quintana Roo e de Puebla, bem como a Universidad Autónoma Indígena de México e a Universidad Intercultural de los Pueblos del Sur; na Bolívia, a fundação de três universidades indígenas: UNIBOL Guaraní y de Pueblos de Tierras Bajas “Apiaguaiki Tupa”, UNIBOL Aymara “Tupak Katari” e UNIBOL Quechua “Casimiro Huanca”; bem como no Brasil, o Centro Amazônico de Formação Indígena (CAFI). Em suma, o cenário universitário latino-americano vem se diversificando e tem incorporado parte das histórias das populações indígenas, mas ainda há inúmeros desafios pela frente, principalmente nos cursos de história das universidades públicas brasileiras. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 53 Assim, o artigo propõe mapear a implementação de disciplinas sobre História(s) Indígena(s) nos currículos dos cursos de licenciatura e bacharelado em história, bem como levantar questões sobre algumas barreiras que não são facilmente transpostas quando se trata da realização de significativas transformações disciplinares. Para tanto, foi realizado um levantamento dos cursos de história que oferecem a disciplina obrigatória ou eletiva/optativa de histórias indígenas em seus currículos; e foi feito um mapeamento dos estados e regiões que dedicam mais espaço para as histórias indígenas nos currículos universitários públicos da carreira de história. Para terminar esta introdução, vale explicitar mais a hipótese que orienta o artigo, na forma de questões centrais. Em linhas gerais, pode-se afirmar que há dificuldades para a incorporação de histórias indígenas nos cursos de história das universidades públicas brasileiras? Se a resposta for positiva, cabe perguntar por que isso ocorre. Quais são as principais interpretações que são aventadas como obstáculos para a inclusão das histórias dos povos originários nos currículos? Há sensibilização por parte de professoras(es) universitários de história a respeito desta vastíssima área de estudos? Lutas conjuntas contra o silenciamento Desde o século XIX, é possível encontrar importantes personagens que silenciaram ou mesmo negaram a possibilidade de se trabalhar sobre as populações indígenas, nos campos da disciplina de história, a exemplo de Francisco Adolfo de Varnhagen, que em "História Geral do Brasil", publicado inicialmente, em 1854, afirmou que para os povos indígenas não havia história, mas apenas etnografia. Contudo, a perspectiva de Varnhagen não era a única possibilidade, como demonstrou Rodrigo Turin (2013). Houve inúmeros intelectuais que se debruçaram sobre as histórias das populações indígenas que habitavam o Brasil durante o século XIX. Atualmente, é difícil encontrar historiadoras(es) reconhecidas(os) que façam uma afirmação como a de Varnhagen, particularmente após os vários trabalhos publicados sobre os povos originários por autoras(es) brasileiras(os) e de outros países, como, por exemplo, a vasta, variada e bem documentada coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha (1992), "História dos Índios no Brasil", bem como os significativos trabalhos realizados por John Monteiro (1994, 2001, 2003). Somente a título de alguns exemplos, podemos encontrar atualmente pesquisas que tratam das diferentes historicidades que se arquitetam entre as populações indígenas (PITARCH; OROBITG, 2012), que enfatizam o seu dinamismo cultural Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 54 (BOCCARA, 2002); que demonstram os papéis de lideranças indígenas como significativos atores políticos, em diferentes momentos da história nas Américas (PAVEZ OJEDA, 2008); bem como obras de autoras(es) originárias(os) 5 ou intelectuais indígenas (ZAPATA, 2007 e 2017). Ainda assim, o panorama, particularmente no interior dos cursos de história parece estar enquadrado pela afirmação de Varnhagen, uma vez que a incorporação ou inclusão das histórias indígenas com destaque nos cursos de história não tem ocorrido de maneira rápida e livre de inúmeros obstáculos ou, em casos mais graves, de preconceitos que continuam a embasar as resistências por parte de professores) universitários em diferentes instituições brasileiras. Portanto, vale afirmar que o preconceito histórico contra as populações indígenas e a tentativa de sua superação, por meio de políticas de ações afirmativas, representa um grande desafio a ser enfrentado nos currículos dos cursos de história das universidades públicas, que pouco têm contribuído para uma profunda transformação dos sujeitos, temas e enfoques das abordagens historiográficas e históricas no Brasil. Metodologia Para pensar o mapeamento dos currículos, é importante incorporar as interpretações de Margarida Felgueiras (1994), sobre a formatação dos programas de história, ao perceber que se organizam por recortes cronológicos, por linhas de desenvolvimento, quadros históricos e/ou por conceitos ou temas. A incorporação de histórias indígenas implicaria a ênfase maior em se trabalhar com conceitos ou temas, mais do que grandes áreas, que inclusive estruturam os projetos de pesquisa na CAPES e CNPq e outras agências de fomento e avaliação dos programas de pós-graduação. Outra questão importante que enquadra o debate sobre o currículo de história diz respeito à formulação dos programas, ainda que com críticas constantes e revisões, com base no eixo de história da formação nacional e da assimilação da alteridade via "mestiçagem" da população brasileira (ZAMBONI, 1992/1993). Dentro dessa perspectiva, as populações indígenas foram constantemente vistas como assimiladas ou em vias de assimilação, o que contribuiu, não raramente, para uma espécie de silenciamento sobre suas ações ou trajetórias fora da ideia de formação do Estado nacional. 5 Entre muitas(os) outras(os), Silvia Rivera Cusicanqui, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Lia Minapoty, Daniel Munduruku, Davi Kopenawa, Célia Xakriabá, Ailton Krenak, Maribel Mora Curriao, Pablo Marimán Quemenado, Sergio Caniuqueo Huircapán, José Millalén Paillal Rodrigo Levil Chicahual, Ariruma Kowii Maldonado, Elías Ticona Mamani, Gladys Tzul Tzul, Marisol Ceh Moo. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 55 Por fim, vale dizer que diferentes autores têm debatido os currículos dos cursos de história e de outras áreas das ciências humanas, criticando a centralidade europeia ou "ocidental", ao propor que necessitamos problematizar mais a questão (MBEMBE, 2018). Um dos debates mais interessantes sobre o tema tem ocorrido em diferentes países, com ênfase para os latino-americanos, no interior da chamada corrente decolonial, (QUIJANO, 2014; WALSH, 2013; CUSICANQUI, 2017). O presente trabalho concentra-se na contabilização dos cursos de História em atividade nas universidades públicas do país e na oferta de disciplinas obrigatórias, optativas e/ou eletivas de histórias indígenas. A referência inicial para a pesquisa é o relatório realizado por Beatriz Carreta Corrêa da Silva, intitulado Levantamento e análise de informações sobre o desenvolvimento da temática 'História e cultura indígena' nos cursos de licenciatura de instituições públicas e privadas (2012), que abarca diferentes licenciaturas, para além das graduações em História. A presente pesquisa utilizou-se como fonte principal de dados o sistema e-MEC, do Ministério da Educação, que possui ferramentas que possibilitam identificar informações sobre os cursos do país. Em seguida, esses dados posteriormente dispostos em planilha foram verificados por meio de acesso aos sites das universidades e institutos mencionados no relatório fornecido pelo sistema e, em alguns casos, quando necessário, por meio de contato junto aos colegiados e departamentos dos cursos de História. Desse modo, tendo em vista os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares desses cursos, foram contabilizadas as disciplinas obrigatórias, optativas e eletivas de histórias indígenas. Sobre os programas e ementas, foi produzida ainda uma análise sobre os cursos de alguns estados que serão mencionados ao longo deste artigo, incluindo um levantamento bibliográfico no qual foram identificadas as principais obras citadas pelas disciplinas que abordam a temática em questão. Algumas das informações relevantes obtidas durante esse processo foram sistematizadas em gráficos e planilhas. Resultados e discussão Para pensarmos o mapeamento dos currículos, é importante incorporar as interpretações de Margarida Felgueiras (1994), sobre a formatação dos programas de história, ao perceber que se organizam por recortes cronológicos, por linhas de desenvolvimento, quadros históricos e/ou por conceitos ou temas. A incorporação de histórias indígenas implicaria a ênfase maior em se trabalhar com conceitos ou temas, mais do que grandes áreas, que inclusive estruturam os Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 56 projetos de pesquisa na CAPES e CNPq e outras agências de fomento e avaliação dos programas de pós-graduação. Outra questão importante que enquadra o debate sobre o currículo de história diz respeito à formulação dos programas, ainda que com críticas constantes e revisões, com base no eixo de história da formação nacional e da assimilação da alteridade via "mestiçagem" da população brasileira (ZAMBONI, 1992/1993). Dentro dessa perspectiva, as populações indígenas foram constantemente vistas como assimiladas ou em vias de assimilação, o que contribuiu, não raramente, para uma espécie de silenciamento sobre suas ações ou trajetórias fora da ideia de formação do Estado nacional. Por fim, vale dizer que diferentes autores têm debatido os currículos dos cursos de história e de outras áreas das ciências humanas, criticando a centralidade europeia ou "ocidental", ao propor que necessitamos problematizar mais a questão, entre perspectivas nacionais, comparadas (PRADO, 2005), conectadas (SUBRAHMANYAM, 1997), transnacionais (WEINSTEIN, 2013), transfronteiriças, ou globais (DAVIS, 2011). Um dos debates mais interessantes sobre o tema tem ocorrido em diferentes países, com ênfase para os latino-americanos, no interior da chamada corrente decolonial, (QUIJANO, 2014; WALSH, 2013; CUSICANQUI, 2017). O presente trabalho concentrou-se na contabilização dos cursos de História em atividade nas universidades públicas do país e na oferta de disciplinas obrigatórias e/ou optativas de histórias indígenas. Foi observada, também, a presença de conteúdo ligado à temática em outras disciplinas. A referência inicial para a pesquisa é o relatório realizado por Beatriz Carreta Corrêa da Silva, intitulado Levantamento e análise de informações sobre o desenvolvimento da temática 'História e cultura indígena' nos cursos de licenciatura de instituições públicas e privadas (2012), que abarca diferentes licenciaturas, para além das graduações em História. Entretanto, o trabalho não se aprofunda na exposição dos cursos, no mapeamento detalhado das regiões e estados que mais dedicam espaço em seus cursos à disciplina; tampouco faz grandes exposições sobre os programas de cursos e ementas especificamente integrantes da formação superior em História, sendo, portanto, um trabalho que envolve uma visão mais geral sobre a oferta da disciplina em dado momento. Nossas fontes iniciais foram coletadas via sistema e-MEC, do Ministério da Educação, que possui ferramentas que possibilitam identificar informações sobre os cursos do país. Em seguida, esses dados dispostos em planilha foram verificados por meio de acesso aos sites das universidades e institutos mencionados no relatório fornecido pelo sistema e, em alguns casos, Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 57 quando necessário, por meio de contato junto aos colegiados e departamentos dos cursos de História. Desse modo, ao analisar os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares desses cursos, foram contabilizadas as disciplinas obrigatórias e eletivas de história indígena e foram tomadas em nota outras que versavam sobre o assunto, para uma possível posterior discussão. Sobre os programas e ementas, foi produzida ainda uma análise sobre os cursos de alguns estados que serão mencionados ao longo deste documento, incluindo um levantamento bibliográfico no qual foram identificadas as principais obras citadas pelas disciplinas que abordam a temática em questão. Buscou-se, ademais, identificar Atas de reuniões e resoluções que abordam sobre a inclusão de disciplinas de história e cultura indígena nos cursos de História, sobre as quais também discutiremos brevemente neste relatório. Algumas das informações relevantes obtidas durante esse processo foram sistematizadas em gráficos e planilhas e comporão o anexo deste documento. Os cursos de graduação em História estão espalhados por todo o território nacional. Até o momento foram contabilizados, dentre universidades e institutos do segmento de ensino público, o total de duzentos e vinte e seis cursos de bacharelado e licenciatura, distribuídos entre as cinco regiões do país da seguinte maneira: trinta e dois na região Norte; setenta e três, no Nordeste; trinta e três, no Centro-Oeste; cinquenta e um, no Sudeste; e, por fim, trinta e sete cursos, na região Sul do país. Da oferta da disciplina, identificamos a presença de cento e quarenta e quatro disciplinas nos duzentos e vinte e seis cursos de História, que regionalmente estão dispostos como o seguinte: vinte e sete, na região Norte; trinta e nove, no Nordeste; trinta, no Centro-Oeste; vinte e um, no Sudeste; e vinte e sete, no Sul do país. Os gráficos a seguir detalham a relação entre oferta de cursos de História e a presença de disciplinas de histórias indígenas por unidade da federação. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 58 Região Nordeste. Sergipe Rio Grande do Norte Pernambuco Piauí Paraíba Maranhão Ceará Bahia Alagoas Alagoas Bahia Ceará 5 3 20 17 7 2 Cursos Disciplina Maranhã Paraíba o 8 1 5 3 Piauí 10 3 Rio Pernamb Grande Sergipe uco do Norte 8 8 2 5 5 0 Região Norte Tocantins Roraima Rondônia Pará Amazonas Amapá Acre Cursos Disciplina Acre 2 2 Amapá 2 2 Amazonas 11 10 Pará 11 9 Rondônia 2 1 Roraima 2 1 Tocantins 2 2 Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 59 Região Centro-Oeste. Mato Grosso do Sul Mato Grosso Goiás Distrito Federal Cursos Disciplina Distrito Federal 3 3 Goiás 18 17 Mato Grosso 3 2 Mato Grosso do Sul 9 8 Região Sudeste São Paulo Rio de Janeiro Minas Gerais Espírito Santo Cursos Disciplina Espírito Santo 3 2 Minas Gerais 24 10 Rio de Janeiro 15 7 São Paulo 9 2 Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 60 Região Sul Santa Catarina Rio Grande do Sul Paraná Cursos Disciplina Paraná 21 11 Rio Grande do Sul 11 11 Santa Catarina 5 5 Como pode ser observado nos gráficos acima, as regiões que mais se dedicam ao estudo de histórias indígenas nos cursos de História são o Norte, o Centro-Oeste e a região Sul. Esta conclusão pode ser obtida, considerando inclusive a diferença entre a real não oferta da disciplina e a ausência de informações a respeito dos cursos, sendo que nessas outras regiões, sob estes critérios prevalece a ausência de disciplinas sobre a temática à falta de dados; o gráfico com os dados por região e estado em anexo demonstra tal ponto. Em várias universidades do Norte do Brasil, são ministradas disciplinas sobre a formação dos estados específicos, como História do Acre, na UFAC; ou regionais, como História Indígena da Amazônia (UFAC), História da Amazônia (UFAM e UFPA), Arqueologia e História Indígena na Amazônia (UEPA); bem como História Indígena da Amazônia e História Indígena do Acre (UFAC), História e Culturas Indígenas (UNIFAP), História e Cultura dos Povos Indígenas (UNIR); História Indígena e do Indigenismo (UFAM e UFPA), História do Indigenismo e Educação Escolar Indígena (UEPA). Em outros estados, até o presente momento, conseguimos observar que há uma optativa em História Indígena (UFT) e um Tópico especial em Etno-história (UFRR). No Centro-Oeste, a UNB oferece uma optativa, na licenciatura, intitulada Laboratório de Ensino em História Indígena, e uma optativa, no bacharelado, com título Sociedades Indígenas. Em Goiás, ocorre a oferta de História e Cultura Indígena (UFG) e Ensino de História e Cultura Indígena (IFG). A UFMT oferece as disciplinas Antropologia e História, História e Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 61 Cultura Afro-brasileira e Indígena e Sociedades, relações de poder e culturas em Mato Grosso, que abordam referências e temáticas relacionadas aos povos originários. No Mato Grosso do Sul, temos as seguintes ofertas: História Indígena (UFGD), História Indígena (UFMS, Campo Grande) e Prática de Ensino e Pesquisa em História: Multiculturalismo, Povos Indígenas e Diversidade (UFMS, Três Lagoas). Contudo, não há autores indígenas, nem textos específicos sobre histórias indígenas, na ementa da disciplina. Em relação à região Sul, encontramos a UFPR oferece uma optativa, intitulada Etnologia Indígena; a UNESPAR (Paranaguá), Cultura Indígena e Populações; a UNESPAR (Paranavaí), História e Cultura dos Povos Indígenas e Afro-Brasileira; a UNICENTRO (Irati), Cultura Indígena, de forma obrigatória, e 3 optativas: Culturas Indígenas, História Indígena I e História Indígena II. Por fim, a UNILA oferece as seguintes disciplinas: História dos Indígenas da América do Sul, História dos Indígenas da América do Norte; entre outras disciplinas mais gerais. No Rio Grande do Sul, há a oferta de História da Cultura Indígena (FURG), História e Cultura Indígena na América (FURG-EAD), História Indígena (UFFS, Erechim). A UFRGS incluiu histórias indígenas como eletivas: História Indígena na América Povos Indígenas, Educação e Escola; e Pré-História Brasileira. Já a UFSM oferece História das Culturas Indígenas. Em Santa Catarina, temos o seguinte panorama: a UFSC oferece História Indígena, de forma obrigatória; e as optativas Tópico Especial: Escravidão Indígena na América Colonial, Laboratório de Ensino de História Indígena, Tópico Especial: Mitologia e Lendas Ameríndias, Tópico Especial: Etnoarqueologia e História Indígena nas Américas, Pré-história Geral e do Brasil, Tópico Especial - Um olhar sobre os índios do Brasil: O Ponto de Vista Francês. Por fim, a UDESC incluiu como obrigatória a disciplina de História Indígena6. Conforme criticado por Beatriz Carretta Corrêa da Silva no Levantamento e Análise de Informações Sobre o Desenvolvimento da Temática “História e Cultura Indígena” nos Cursos de Licenciatura de Instituições Públicas e Privadas (2012), do Ministério da Educação – a respeito dos cursos de História –, a presença do conteúdo referente às histórias indígenas nas disciplinas de América e Brasil é muito panorâmica. Diante da análise das ementas – descritas no anexo deste documento e inicialmente referente aos cursos da Bahia, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Sul e Goiás; os mais 6 Os dados são preliminares e precisam de novas revisões. Ainda não foi possível fazer um levantamento mais completo sobre as regiões Nordeste e Sudeste. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 62 populosos, com exceção de Minas, escolhido por ser o Estado de onde parte o estudo – podemos perceber que as disciplinas de História da América geralmente trazem o indígena na introdução, trabalhando questões relativas à alteridade, tendo em grande parte a menção dos maias, incas e astecas, sobre o t́tulo de “povos pŕ-colombianos”. Da mesma forma, os cursos de Brasil costumam colocar os povos indígenas nos “contatos” e quando se trata da exploração de sua mão de obra, limitando seu papel como sujeitos históricos a um passado de devastação, sofrimento e escravidão, embora algumas disciplinas tragam tópicos sobre resistência e movimentos indígenas e indigenistas. Foi possível observar, também, a partir das ementas dos cursos, certo esforço por incluir a temática indígena em disciplinas de história regional; como as dos cursos presentes nos estados do Pará, Rio Grande do Sul e Goiás, ainda que também se concentrem na ocupação humana de seus territórios (em diálogo com a arqueologia) e do período colonial. Muitos cursos possuem disciplinas que não cumprem com o próprio título, tendo em sua ementa fortes traços de uma historiografia tradicional, cujo sujeito central é o colonizador e o processo de colonização. Algumas disciplinas de História da América se propõem a discutir sobre movimentos sociais, incluindo os indígenas entre esses sujeitos, embora seja mais comum sua presença em uma América Colonial que em disciplinas que tratam de América Contemporânea. Para melhor ilustrar a realidade dos cursos sobre histórias indígenas nas universidades públicas brasileiras, a partir das ementas dos cursos analisados foi produzida uma relação de obras que constituem as indicações para leitura obrigatória e complementar das disciplinas que abordam especificamente do assunto. Os dados que seguem são das principais obras citadas por estado, onde é possível perceber a frequência de alguns trabalhos na área, sendo produzidos em sua grande maioria por pesquisadores da História, Antropologia e Ciências Sociais. Contudo, não cabe aqui discutir sobre os trabalhos. Vale ressaltar que algumas obras foram citadas mais vezes do que o indicado em números, pois algumas obras são compilações de trabalhos de autores diferentes e para melhor observação foram colocados de forma a evidenciar suas citações como trabalhos únicos. Portanto, foi possível observar que de forma geral, a obra mais citada foi História dos índios no Brasil (1992), organizado pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 63 1. Minas Gerais Nome da obra Bibliografia Complementar Bibliografia Obrigatória/ Básica ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2010. CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. São Paulo: SMC, 1992. 3 6 3 2. Bahia MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1992. SILVA, Aracy Lopes da e GRUPIONI, Luís D. B. (orgs). 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A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNSECO, 1995 4 3 3 3 3 Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 64 ALMEIDA, Maria R. Celestina. Os Índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. ALMEIDA, Maria R. Celestina. Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas para a História Indígena. In. ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: FAPERJ/Casa da Palavra, 2003. OLIVEIRA, João Pacheco; FREIRE, Carlos A. da Rocha. A presença Indígena na formação do Brasil. Brasília: MEC/UNESCO, 2006. MELLATI, J. Cesar. Índios do Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1994. GRUPIONI, Luís Donisete B. A formação de professores indígenas: repensando trajetórias. MEC/UNESCO, 2006. 3 5 4 1 3 1 2 4. Pará. CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo : FAPESP/Cia das Letras, 1992. 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Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra - índios e bandeirantes nas origens de São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 4 2 1 5 Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 65 RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das letras, 1995. KERN, Arno; SANTOS, Maria Cristina; GOLIN, Tau (Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. Povos Indígenas. Passo Fundo: UPF/Méritos, 2009. 5 v. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992. FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. FUNARI, Pedro Paulo & PINON, Ana. 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Foi possível observar também que alguns cursos investiram na interdisciplinaridade, numa relação com as Ciências Sociais e a Antropologia, o que pode contribuir para uma visão mais ampla dos sujeitos em questão e dos processos que envolvem a construção da realidade desses povos a partir de outros campos de estudo. Sobre a natureza das informações e dados obtidos nesta pesquisa, é importante sublinhar alguns pontos. Excluindo as disciplinas obrigatórias, que são constantes na grade curricular, a previsão de disciplinas optativas não necessariamente implica na oferta de tais disciplinas ao longo dos semestres. E, da mesma forma, a bibliografia mencionada pode sofrer alterações, tendo em vista as demandas de cada turma e o enfoque particular escolhido pelo professor. Se a ausência de informações em sites de algumas universidades e o não retorno das tentativas de contato foram grandes desafios enfrentados durante o primeiro ano da pesquisa – Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 66 uma vez que o levantamento visava englobar a totalidade dos cursos oferecidos pelas instituições públicas de ensino superior –, a pandemia do novo coronavírus, impôs adversidades novas que incidiram sobre o funcionamento das universidades. A proporção entre a ausência de informações foi relativamente pequena em relação à não oferta de disciplinas, considerando que o sistema do Ministério da Educação apontava cursos que não estavam mais em atividade e os que estavam para iniciar; ambos, entretanto, não entraram no presente levantamento, mas o número de atas ainda que discutiam especificamente sobre a implementação de disciplinas de histórias e culturas indígenas foi relativamente baixo, em relação a quantidade de documentos que implementam o estudo nos cursos de graduação (em especial os de licenciatura) no geral. A discussão do conteúdo referente ao estudo de histórias indígenas em outras disciplinas não parece ser um caminho favorável para o incentivo de pesquisa na área; tendo em vista as especificidades do campo de estudos, assim como a diversidade desses povos que constituíam o território que hoje corresponde ao Brasil, sua trajetória ao longo dos séculos durante o processo de colonização, no Brasil imperial e republicano. Tal complexidade pode ser observada pela proposta das diversas disciplinas mencionadas em anexo a este relatório, que optaram por uma abordagem geral sobre o assunto, trabalhando, em sua maioria, sobre conceitos e áreas do conhecimento que envolve seu estudo e em alguns casos os povos que hoje habitam o Brasil. No ensaio Da importância de pesquisarmos história dos povos indígenas nas universidades públicas e de a ensinarmos no ensino médio e fundamental (2015), Eduardo Natalino dos Santos evidencia, por meio de breves relatos sobre sua trajetória como aluno de graduação e pós-graduação, assim como de professor no ensino básico, que o maior desafio consiste, em certos casos, na imensa quantidade de dados a respeito da história das populações indígenas e não em sua ausência. No caso brasileiro, podemos levar em consideração a vasta produção acadêmica nas áreas da Antropologia e Arqueologia, embora o enfoque destas disciplinas se diferencie da História, considerando também que são em grande parte os egressos dos cursos de História que ministrarão o conteúdo referente no ensino fundamental e médio, principalmente após a regulamentação da ofício de historiador/a. Desse modo, como afirma o autor, Estamos tratando de um problema com desdobramentos políticos sérios, pois a visão que as sociedades ocidentais modernas possuem sobre os povos indígenas – a qual, é verdade, não depende apenas das aulas de História no ensino médio e fundamental – determina parcialmente suas relações com esses povos. Tais relações, como sabemos, têm se caracterizado pela assimetria política, pelo desrespeito às diferenças, pela violência e por uma série de atrocidades. (SANTOS, 2015, p. 18) Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 67 Segue, portanto, sendo objetivo desta pesquisa compreender melhor sobre as questões relativas à ausência e presença das histórias indígenas nas universidades públicas brasileiras. Considerando o lugar social do historiador e a efetivação ligada à qualidade do conteúdo referido na Lei Federal – base da discussão desta pesquisa –, os cursos de História são lugares estratégicos por excelência no que tange ao reconhecimento e consolidação do pensamento de que essas populações são sujeitas de sua própria história no passado e no presente. A necessidade de profissionais especializados se confunde com questões administrativas e financeiras, à demanda de interesse por parte dos estudantes; assim como da disposição de membros do corpo docente no investir de seus esforços no que tange não apenas ao reconhecimento da coetaneidade das populações indígenas, como também de posições e atitudes que além de não contribuírem com a luta por direitos desse grupo da sociedade, acabam se posicionando contra. O estudo de histórias indígenas se justifica, por fim, a partir da compreensão de que a história dessas populações deve ser pensada e escrita de forma a representar a pluralidade de povos e histórias, rejeitando imagens, discursos e narrativas que relacionam os indígenas ao passado, à integração e assimilação pela “sociedade”. Faz-se necessário discutir sobre as questões mais atuais sobre as populações indígenas, pensando nos reflexos do colonialismo e neocolonialismo sobre os corpos e mentes dos sujeitos, organizações sociais e subjetividades e políticas, assim como deve ser consideradas perspectivas que abordam a história desses povos em relação com o que tem sido observado e discutido em outros países da América. A atualização recorrente da bibliografia dos cursos também é um ponto importante, incluindo estudos que abordem sobre questões mais atuais, além de histórias trazidas pelos próprios sujeitos em estudo (cientistas, artistas, anciãs, lideranças, educadores, escritores, pessoas simples, etc.), possibilitando aos discentes o encontro com outras percepções sobre o mundo e sobre a humanidade. A ignorância e a insensibilidade também devem ser apontadas como um dos entraves que ganham um papel político diante do lugar que os cursos de formação superior exercem na construção da sociedade e evidenciam o quanto o ensino, a pesquisa e extensão voltados à temática indígena são de extrema importância no Brasil. Num contexto em que o movimento indígena discute a invisibilidade, os arcaísmos, preconceitos e anacronismos empreendidos contra sua população nos livros didáticos, nas escolas, universidades e demais espaços da sociedade, o ensino superior (e seus servidores e alunos) como um espaço de aprendizado e produção e troca de conhecimento, deve estar aberto a todos e todas e contribuir para uma Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 68 sociedade cada vez mais humana e menos eurocêntrica. Os povos originários de Abya Yala, Pindorama ou das Américas, como todos os demais povos, possuem memória, arte, cultura, pensamento, interesses, humanidade; e o conhecimento fruto do estudo da história desses povos representa, igualmente, a compreensão da história de nosso continente. Houve a implementação de disciplinas sobre Histórias Indígenas e sobre Políticas Indigenistas, principalmente em universidades do Norte, assim como em algumas do CentroOeste. Também houve preocupação em abordar temas relativos aos povos indígenas de forma transversal, particularmente em disciplinas que tratam da História da Amazônia ou PanAmazônia, bem como em disciplinas que abordam a formação de alguns estados, como no Acre, Mato Grosso e Rondônia. Contudo, referências de autores/as indígenas quase não aparecem, à exceção de Gersem Baniwa (2019), em alguns programas, o que continua a silenciar interpretações das principais pessoas que sofrem os processos de invasões de seus territórios. Assim, mesmo que os temas relacionados às histórias indígenas sejam incluídos, corremos o risco de continuar a ensinar e pesquisar histórias únicas, particularmente em relação aos grupos que mantêm seus poderes simbólicos. Os próximos passos de pesquisas e debates que envolvam os desafios enfrentados para a incorporação de histórias indígenas nos cursos de formação de pesquisadores e professores de história, não somente nas universidades públicas brasileiras, poderiam buscar a recuperação de parte dos debates que envolveram a implementação das disciplinas nos cursos; mensurar os termos que mais comumente foram utilizados para fazer referências aos povos indígenas nos debates; assim como, e ainda que inicialmente, abordar as ementas e programas dos cursos de histórias indígenas, para analisar criticamente os principais temas propostos pelas disciplinas. Referências BANIWA, G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula, Laced, 2019. BOCCARA, G. Colonización, resistencia y mestizaje en las Américas (siglos XVI-XX). Quito: Ediciones Abya-Yala, 2002. CUNHA, M. C. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. CUSICANQUI, S. R. 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Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 52-71 71 SIN ESTADO. NOTAS GENERALES SOBRE LA AUTONOMÍA VISTA DESDE MÉXICO Daniel Inclán Solís1 En un lugar de la bibliografía del que no quiero acordarme, se explicó alguna vez que hay escaleras para subir y escaleras para bajar; lo que no se dijo entonces es que también puede haber escaleras para ir hacia atrás. Los usuarios de estos útiles artefactos comprenderán, sin excesivo esfuerzo, que cualquier escalera va hacia atrás si uno la sube de espaldas, pero lo que en esos casos está por verse es el resultado de tan insólito proceso. Julio Cortázar, Instrucciones para subir una escalera al revés Introducción El proyecto civilizatorio capitalista, junto con la transformación de la cultura material, la reconfiguración técnica y la ortopedia de los cuerpos, construyó una serie de narrativas para legitimarse y para interpretar a las otras formas de vida colectiva, tanto las pretéritas como contemporáneas que no se identificaban plenamente con el nuevo modelo de vida. Se secularizaron viejas narrativas para establecer las relaciones de integración mediante las formas “in-civilizadas” (BARTA MURIÀ, 2011). Las mitografías capitalistas más importantes son: la libertad como necesidad, el progreso como movimiento irrefrenable de mejoras, la igualdad abstracta entre las personas, la llegada de un mundo mejor, la selectiva participación democrática, la necesidad de un orden estatal. Fue en la época ilustrada cuando se expandió la idea de transformaciones mundiales que llevarían a la “humanidad” a la emancipación y la integración absoluta (ISRAEL, 2012). Esta idea se sintetizó bajo la imagen de la revolución y la fundación de los nuevos estados: un cambio radical que abría la puerta a un “mundo libre” sintetizado bajo un sólido orden institucional.2 1 Doctor en Estudios Latinoamericanos por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Profesor del Programa de Postgrado en Estudios Latinoamericanos. 2 Siguiendo la propuesta de Akhil Gupta (2015), se escribirá estado con minúsculas para no caer en la trampa que cosifica o mistifica el proceso denotado por ese concepto. Para evitar la grandilocuencia del término se asume que el contexto de la oración permite reconocer el uso del sustantivo. En ese sentido, por estado no sólo se entiende la mediación política entre los intereses de la reproducción del capital y las necesidades de los distintos segmentos colectivos (materializados en instituciones burocráticas, marcos legales, estructuras represivas, formas de Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 72 Una versión secular de la utopía paradisiaca. Los protagonistas de esta “gesta” transitan por distintas posiciones a partir de la diseminación de la idea de la revolución. Primero los sectores ilustrados como cabezas de la transformación, de la mano de las masas; después las masas autoconscientes; después las masas explotadas, enterradoras del modo de producción que les oprime; después los partidos revolucionarios, representantes de esas masas; después los sindicatos, organizados de manera semiautónoma para llevar la consciencia revolucionaria; después las dirigencias guerrilleras; después los partidos ciudadanos; etcétera, etcétera. Las revoluciones se presentan como hechos ambiguos, cargados de tendencias transformadoras al tiempo que llenos de equívocos y prácticas reaccionarias (TRAVERSO, 2021). La actualidad de la revolución está pausada. Lo que permanece intacto es la necesidad de un estado para cualquiera de estas versiones; en todos los casos se repite la mitografía de la transformación radical encabezada por fuerzas elegidas, por su conciencia o por su posición productiva, entidades que redimirían a la humanidad en su conjunto mediante la creación de estados. En esa mitografía, los estados y sus revoluciones fundantes son el anuncio del tiempo futuro, y en los casos más sofisticados (por no decir los más delirantes), un proceso permanente de mejoras. La necesidad de la revolución y de los estados es desde siempre una forma de religión secular. Paralelamente a estos impulsos de transformación mesiánica, existen procesos, de pequeña escala, expresiones de autonomía, cuyo objetivo es recuperar las capacidades para dar contenido y forma a la vida, para construir espacios concretos en tiempo presente: ese mundo distinto lo viven en el aquí y ahora, no en el tiempo futuro, ni dirigidos por conciencias iluminadas, ni esperando la redención de todas las personas en la tierra. Para los tercos ejercicios de autonomía la cosa es más simple: construir mundos de vida habitables, en los que la vida es algo que merece ser vivido en el presente. Destacan, por su amplitud, diversidad, reiteración, su terquedad, las luchas indígenas y campesinas. Su disputa responde a las capacidades y necesidades concretas, no a deseos, mitografías, ni necesidades históricas. Estas tensiones se pueden plantear como la disputa permanente entre el mesianismo estatal y el realismo práctico de la autonomía, que encuentra en las movilizaciones campesinas, indígenas, algunos movimientos de mujeres y versiones disidentes de la organización obrera su delegación y dispositivos de gobierno); a esto se agrega la dimensión simbólica, una metafísica que sostiene una imagen de sujeto, sin serlo: los estados parece que actúan con autonomía, coherencia y unidad (BOURDIEU, 2014). La idea de una “ecuación” (resultado de relaciones entre el “estado”, la llamada sociedad civil y la burocracia) deja de lado el papel simbólico del funcionamiento estatal, en el que se acepta como concreta una relación que es, en casi todos sus niveles, abstracta e imaginaria. Es aquí donde se quiere poner el acento en relación con las diferencias étnicas que establecen relaciones contenciosas con los estados nación, en especial en México. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 73 mejor expresión. Aunque este es un conflicto general en la larga historia del capitalismo, lo que interesa en este texto es presentar su configuración en el caso mexicano en los últimos lustros, en los que se experimentan simultáneamente momentos creativos en el terreno de las autonomías y catástrofes en el terreno estatal, en especial con el momento progresista de los últimos años. Para ello se presentarán cuatro escenarios de la compleja autonomía: 1) la forma de la politicidad; 2) la construcción concreta de lo común; 3) la relación con la diversidad de formas (humanas y no humanas) y 4) el papel del territorio. A través de estas rutas se pretende demostrar que lo que está en juego es más que una disputa por proyectos que “unifiquen” la voluntad colectiva o de las mayorías; lo que se dirime son dos formas opuestas de politicidad, con escalas espaciales y temporales incompatibles, pero, sobre todo, con medios y objetivos contrapuestos. Mientras la forma estado sigue pugnando por el deseo de dirigir a las masas, la autonomía pugna porque cada colectividad y sus cuerpos se arriesgan a vivir el mundo que quieren, que mediante sus formas decidan qué es eso que se llama vida y qué contenidos tiene. En el caso mexicano se podrá ver con claridad que son dos formas que van por caminos distintos.3 Para el centralismo estatista, y su aparente necesidad histórica, la autonomía es un lastre y una amenaza al proyecto de la voluntad de las mayorías. Por lo que desconoce, niega y combate todos los esfuerzos que se llevan a cabo en su nombre. La pregunta por el cómo La práctica política moderna definió durante dos siglos el sentido de la acción a partir de una pregunta: ¿qué hacer? Esto se tradujo en proyectos de vanguardia, que bajo una idea vertical de la transformación generaban modelos de acción, que debían seguir los pasos programados desde la dirigencia y que, al producir las condiciones objetivas y subjetivas de la transformación, darían los resultados deseados en un futuro estatal. La expresión de este movimiento histórico son los estados nacionales, que pretenden representar a un amplio conjunto de proyectos culturales y decidir en favor de las mayorías (BUTLER; SPIVAK, 2009). De manera paralela, también existieron una multiplicidad de movilizaciones y esfuerzos emancipatorios que cuestionaban la idea de la dirigencia; que, de forma espontánea, y no por 3 La discusión sobre México, como nombre y como adjetivo, no se hace desde una perspectiva sustancialista, ni de necesidad histórica; México y lo mexicano se entiende como una disputa por un término y por una realidad histórica, ya sea por ampliar sus contenidos o por distanciarse de ellos. El estado mexicano no es una cosa, ni un proceso definido, sino una trama de relaciones de fuerza, que en algunos casos se define por la necesidad de la incorporación a lo que designa, en otros por alejarse y varios por salirse de esa enunciación Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 74 eso menos compleja o comprometida, construían escenarios de transformación. Estos se caracterizaban por una fuerte participación colectiva tanto en las decisiones, como en las acciones, que servían para definir métodos y formas de luchas diversas (FERRER, 2007). A este heterogéneo abanico de prácticas se les conoce como autónomas, como procesos que definen por sí mismo los contenidos políticos y su materialidad, en escenarios acotados, pero siempre con una lectura del proceso general de opresión. En América Latina los actores que dan forma a las prácticas autónomas son, sobre todo, las comunidades indígenas y campesinas; aunque hubo momentos en los que segmentos proletarios tomaron posiciones al margen de los partidos y las dirigencias sindicales, y más recientemente versiones de los movimientos de mujeres también apuestan por caminos de la autonomía (ESCOBAR, 2017). Los debates en torno a estas formas heterogéneas no son pocos. En muchos casos domina la lectura política ilustrada que configura a la autonomía como una distancia de las instituciones liberales, sean dominantes, como el estado, o intermedias como los partidos o los sindicatos, impidiendo los proyectos de transformación global.4 Algunos asumen que es sinónimo de autogestión: una capacidad de administración o gobierno propio, para decidir los asuntos de la vida colectiva. También hay quienes defienden la autonomía como un modelo, un camino para la emancipación. Desde otros miradores, la autonomía es una característica de la política moderna, que en el ejercicio de sus capacidades reflexivas transitan de un orden impuesto, heterónimo, a la posibilidad de un mundo propio, autónomo (CASTORIADIS, 2004). Al margen de estas discusiones, lo que demuestran los movimientos indígenas y campesinos en México es que la autonomía es un problema vivo, que se manifiesta en procesos de lucha, definidos por una dimensión contenciosa de múltiples escalas: la individual, la colectiva, en los que participan las formas de vida humana y no-humana. Su fundamento impugna los centros del proyecto civilizatorio moderno: la equivalencia artificial del orden de mercancías, el imperativo del trabajo, la necesidad del estado, lo inevitable de la ley, la preeminencia de la razón, la necesidad de la dirigencia, la prioridad del proyecto abstracto por sobre las vidas concretas. La autonomía es un medio puro, no busca nada por venir, se busca así misma, no es un paso para una mejora necesaria después de la imaginaria toma de un poder. 4 Incluso aproximaciones cercanas a las comunidades analizan las autonomías como una realidad cuya existencia debe plantearse en torno al estado, ya que representan minorías en relación con la mayoría nacional, como el caso de Héctor Díaz Polanco (2003 y 2006). Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 75 En el caso de las comunidades campesindias se pueden sacar algunas líneas generales de lo que se puede entender por autonomía (BARTRA, 2008), que además de contribuir a su teorización generan actividades prácticas en las que se pone en movimiento como forma de emancipación. En este caso la autonomía empieza como una negación de la totalidad del orden existente, no sólo de algunas de sus partes, las más visibles o las más duraderas: el estado, el trabajo explotado, el patriarcado, etc. La negación del mundo capitalista se hace reconociendo las múltiples formas de dominación y las maneras en las que las personas participan de ella, superando la dicotomía dominador-dominado, victimario-víctima, que durante décadas servía para explicar automáticamente la superación del capitalismo por parte de las víctimas (EZLN, 2103a). La negación del capitalismo implica reconocer sus múltiples formas de integración y mecanismos de reproducción, que no se resuelven por deseos o por buenas voluntades, sino horadándolo poco a poco. La autonomía no es una negación reactiva, que responde simétricamente a las estructuras de la dominación. La negación es un principio creativo, el de la construcción, aquí y ahora, del mundo que se quiere vivir. Es decir, es una reconstrucción del tiempo y del espacio, para producir presentes, no mundos futuros. Esta reelaboración pone en el centro los verbos por sobre las instituciones y sobre las recetas. Antes que la casa, el habitar; antes que la escuela el educar; antes que la salud el sanar (ESTEVA, 2013). La autonomía se presenta como un proceso material de primer orden, en el que también se juegan las formas subjetivas. No es una transformación de las cosas que antecede a la transformación de las percepciones. El cambio material es paralelo al cambio de la subjetividad. El tiempo es una materia central de la autonomía. Contrario a cierta corrientes presentistas y voluntaristas, los movimientos campesinos e indígenas demuestran que la autonomía para ser un presente necesita de varios pasados (BARTRA, 2021): el indígena, el campesino, el metropolitano, el de las múltiples voces en resistencia (nacionales e internacionales), etcétera. La autonomía conserva y transforma el tiempo, de ahí parte de su complejidad que abre el debate sobre las formas diversas de las subjetividades autónomas. Al interior mismo de un proyecto compartido de autonomía no hay una sola forma subjetiva, no hay una sola manera de actuar y comportarse. Por eso la autonomía se entiende como un principio de diferencia organizada en torno a un proyecto común. El centro de la diferencia es la dignidad (EZLN, 2013b), condición de todas las formas de existencia, humanas y no-humanas. No hay autonomía sin dignidad; y no hay dignidad sin trabajos colectivos: solo la fuerza del plural permite su existencia, no es una voluntad Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 76 individual, ni una cualidad que se despliega en automático. Se requieren, en cambio, muchos esfuerzos compartidos para que en el centro de todo esté la dignidad. Lo que guía la acción es una formulación inédita para las políticas de emancipación. En lugar del qué, las luchas por la autonomía se preguntan por el cómo. Y ya que no hay una única manera, ni un camino infalible; el cómo es una pregunta reiterada, que sirve para organizar una nueva forma y sentido de la vida. El cómo es núcleo problemático de la autonomía, nada está dado de una vez y para siempre. Lo que abre la puerta a la espontaneidad y la creatividad lúdicas (EZLN, 2016; ESCOBAR, 2017). Para no hacer del cómo un lastre, la posibilidad de divertirse y gozar se vuelve imperativa. Para pensar el papel de las autonomías se requiere trascender la imagen estrecha de los sujetos económicos (EZLN, 2016; POLANYI, 2009). Esto sólo es posible si, desde las realizaciones materiales de formas colectivas, se piensa en las dimensiones cualitativas de la economía (una economía sustantiva), que, a partir de la construcción de las condiciones de subsistencia, establece criterios de legitimación, dignidad y justicia (por fuera de todo orden institucional burocrático y de toda racionalidad económica abstracta). En estas formas de economía sustantiva se ponen en juego: 1) las experiencias grupales bajo un principio de igualdad; 2) las costumbres, a través de las cuales se reproduce un colectivo determinado; 3) las memorias de corta y larga duración, depositadas en las prácticas cotidianas; 4) las prácticas de cuidados, determinadas por lo que se considera una vida digna; 5) la restitución de la relación saber-hacer; 6) la construcción de un equilibro relativo entre las capacidades y las necesidades, para no desear más de lo que se puede satisfacer; 7) una interacción recíproca entre las formas de existencia (humanas y no-humanas); 8) un tipo particular de relaciones de complementariedad entre las diferencias internas (por cuestiones de género, sexo, cultura, edad). Para las prácticas autónomas un paso central es superar la enajenación de las capacidades productivas, mediante la construcción de una materialidad autodeterminada; para ello es necesario la recuperación de los medios de producción y la posibilidad de pensar, diseñar y realizar formas concretas de vidas colectivas. Además, las revueltas por la autonomía son excepcionales por muchas razones, entre ellas por poner en el centro de sus prácticas emancipadoras la superación de la dominación patriarcal (EZLN, 2013c). La crítica al patriarcado es parte de un amplio espectro de prácticas para superar la civilización capitalista Lo que las zapatistas llaman la triple opresión: ser mujer, indígena y pobre. A lo que suman una Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 77 fuerte transformación de las llamadas juventudes y las infancias, sujetos protagónicos del proceso de autonomía, fuerza vital y bisagra entre tiempos históricos. Esta forma de politicidad es incómoda a los proyectos del estado nación mexicano por cinco grandes razones, por lo que se producen prácticas de invisibilización y de ataques frontales. En principio, pone en duda la síntesis que presupone el estado, demostrando su carácter excluyente y sus lógicas patriarcales, racistas, clasistas y biocidas con las que opera: el estado es un gran padre, blanco, representante del progreso económico, que gobierna los ecosistemas a favor de las necesidades de las “mayorías” nacionales. En segundo lugar, desmiente la necesidad de la dirección y del proyecto, que pone a los especialistas en política en posiciones separadas del resto de las formas cotidianas, como si fueran las únicas personas capaces de decidir qué hacer. En tercer lugar, desmonta la idea de la masa como unidad de opresión o enajenación, que espera la “luz” de las inteligencias políticas porque son incapaces de cualquier ejercicio de politicidad más allá de las manifestaciones de descontento. En cuarto lugar, derriba la mitografía nacionalista, como una sustancia que corre por la sangre y por el aire, demostrando no sólo su carácter imaginario, por parte de las élites políticas e ilustradas, sino su tendencial movimiento de borramiento de las diferencias culturales, bajo los argumentos reiterados del desarrollo y la modernización. En quinto lugar, demuestran la falseada de la democracia participativa y ciudadana, que bajo una aparente disputa entre izquierdas y derechas, oculta que en cualquiera de sus versiones sirve para beneficiar la reproducción de capital. Lo común Las invectivas del gobierno mexicano a las revueltas de la autonomía suelen cuestionar su carácter minoritario, su visión reduccionista y localizada, así como su incapacidad para pensar en las necesidades de la nación. Atacan reiteradamente su idea de lo común, con el objetivo de demostrar que es opuesto a las necesidades de las mayorías, argumentando que abreva de un pasado arcaico y premoderno, que se opone al progreso y desarrollo económico. Las revueltas de la autonomía demuestran que la discusión sobre lo común es problema que no sólo atañe a sus proyectos y prácticas, sino al conjunto de actividades colectivas (EZLN, 2016; MIDNIGHT NOTES COLLECTIVE, 2001). Lo común es un problema, un problema estrictamente moderno. Antes de la modernidad estaba vinculado con las distintas formas de comunidad: productivas, políticas, religiosas, generalmente la combinación de todas. La Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 78 disolución de las viejas comunidades abrió la pregunta sobre lo común, que dejó de ser un asunto fácil de responder. En América Latina y en México el problema se desarrolló con especial intensidad y complejidad en los grupos étnicos. La destrucción de las viejas formas de vida por los procesos de colonización obligaba a una reconstrucción de sus mundos y un esfuerzo por rearmar sus vidas comunitarias. Lo que hoy existe de las comunidades indígenas es el resultado de un abigarramiento de matrices culturales, no es la continuidad de las formas paleoindias (existentes antes de la colonización).5 Los cambios fueron radicales, entre ellos la organización política, resultado de una reorganización espacial que fragmentaba los viejos trajines culturales (RIVERA CUSICANQUI, 2018). El modelo colonial, que impuso una santidad para cada poblado y una organización religiosa en torno a ella, sirvió, entre otras cosas, para impedir las alianzas entre grupos étnicos. Paradójicamente, esta forma colonial permitió la sobrevivencia de tres elementos centrales: las lenguas, el trabajo con la tierra y la reactualización de las cosmovisiones (MEDINA, 2000). De manera simultánea, en el múltiple proceso de colonización capitalista, en su versión europea, cercaba de las tierras comunes (MIDNIGHT NOTES COLLECTIVE, 1990). Desde entonces los comunes oscilan entre espacios de recomposición y la articulación de las fuerzas colectivas para integrarlas a la producción capitalista (volviéndolos espacios productores de mercancías, haciendo de los bienes comunes recursos y riquezas abstractas). La comunidad y lo común se vuelven problemas radicales de la vida moderna. Esfuerzos contemporáneos para repolitizar las fuerzas comunales son los que se llevaron a cabo en Oaxaca; plantearon una dimensión política más allá de la comunidad: la comunalidad. Que para Juan José Rendón (2003) y Floriberto Díaz (2014), los constructores del concepto, es voluntad de colectividad, de reiteraciones cíclicas, cotidianas y obligatorias, no sólo una realidad administrativa, ni una relación producto de trabajos con la tierra. Reconocen cuatro niveles fundamentales: el territorio, el trabajo, el poder político y la fiesta comunal; a los que se suman cuatro niveles complementarios o auxiliares: el derecho, la educación tradicional, la lengua y la cosmovisión. Años después, Jaime Martínez Luna (2009) agregó elementos más espirituales 5 Las comunidades indígenas no pueden entenderse al margen del colonialismo que las reconfiguró. Por ejemplo, la organización de cargos, su doble función, tanto de vínculo con la autoridad colonial, como de nexo con las fuerzas del mundo, es resultado de la presencia de excedentes abstractos (no sólo dinerarios), que obligó a la construcción de mecanismos de reequilibrio material y la transformación de los gastos improductivos en torno a las fiestas religiosas católicas más que a las fiestas agrícolas paleoindias, de ciclos más largos. Esto definió de manera radical las relaciones de parentesco. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 79 al concepto de comunalidad, definiéndola como una forma de vida que se asume como manera para conservar una identidad cultural arraigada en un territorio. La comunalidad tiene condiciones de posibilidad acotadas. Sólo puede suceder ahí donde hay una comunidad con cierta base productiva común, con una estructura política interna, con un orden simbólico compartido, entre esto un fuerte elemento religioso. Para las zonas en las que la comunidad se disolvió, fragmentó o recompuso, emerge de nuevo la problemática fundante: lo común. Hoy lo común oscila entre dos grandes posiciones, aquella que lo vincula con las comunidades arcaicas, presentándolo como imposible al margen de éstas. Por otro lado, aparece lo común como una suerte de esencia o sustancia, que bajo un principio de voluntad puede incorporar los elementos que crean convenientes. Pero lo común es más que eso; hay común sin comunidad y no es una necesidad de la vida política (GARCÉS, 2013). Las revueltas de la autonomía demuestran que, en lo común, como problema político reiterado, también se dirime la tensión entre el yo y el nosotros, porque no es un agregado de yo, ni una subsunción a un plural. Hay juegos dialécticos entre cada nivel. El yo sigue funcionando, como principio que recuerda que cada vida empieza en un cuerpo singular, que en su singularidad necesita de otras vidas, una vida que para poder vivirse depende de otras vidas, humanas y no-humanas. Acá el nosotros no es resultado de una agregación, sino de la construcción de relaciones entre vidas que quieren vivir y que establecen compromisos recíprocos, parentescos e implicaciones. Pero esto es propio de casi todas las relaciones humanas. ¿Qué lo hace particular en el problema del común? Cuáles son las relaciones en las que se crea lo común. Lo común es una producción que se hace desde lo singular y lo plural; no existe como un ex ante o una mera voluntad o un mero acuerdo (GUTIÉRREZ AGUILAR, 2017). Lo común se produce, como proceso agonístico, como polémica (en sentido amplio). Esto es clave para no caer en ciertas trampas que quieren hacer común todo (p.e., la internet, el agua, el conocimiento). Como relación de producción, lo común no escinde las esferas entre la producción y la reproducción, ambas dimensiones se juegan en un mismo proceso. Lo que no significa que no existan momentos y espacios de realización diferenciados, pero son parte de una red de acciones. Como producción, lo común necesita condiciones materiales y contenidos simbólicos. Materialidades de los más diversos órdenes, pero nada que no se pueda operar o intervenir es parte de lo común. De los contenidos simbólicos hay que reconocer una operación doble: la construcción de herencias y su actualización en el presente. Las herencias no son simples Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 80 formas, sino tiempos históricos que en la producción de lo común se entreveran, conviven sin hacer síntesis. Son las herencias las que hacen posible un presente común. La densidad de vínculos con el tiempo presente dependerá de la capacidad de producir herencias. Producir común es un hecho total, involucra lo político, lo ético, lo estético, lo mítico, lo técnico, etcétera. La relación con el tiempo en la producción de lo común no presupone una suerte de sentido único compartido. Por el contrario, lo común, en tanto relación abigarrada, es por excelencia el espacio de las diferencias y los disensos. La producción de lo común no es una ideología única o a un proyecto cerrado; es una de las formas de entenderse en el desacuerdo. En gran medida porque es una relación evanescente, una complicidad que dura sólo el tiempo de la producción de lo común. No está antes, ni necesariamente durará después. Lo común es una zona de encuentros, de tramas, en su triple sentido: de atravesar líneas, de construir conspiraciones y de florecimientos (GUTIÉRREZ AGUILAR; NAVARRO; LINSALTA, 2017). Es por lo que al tiempo que se producen acercamientos, también se construyen las condiciones de distanciamiento. Las personas que participan de la producción de lo común necesitan mecanismos para aproximarse, pero también para poder separarse. No es una condena, ni un castigo, es un proceso en construcción. Las revueltas de la autonomía también enseñan que tampoco hay que idealizar lo común y la comunalidad, porque hay formas que se organizan bajo estos principios para defender el orden capitalista. En otros casos, para generar condiciones de un mundo distinto que, bajo principios místicos defienden un orden perdido, generalmente de tipo religioso. La aglomeración de personas en defensa de proyectos bajo principios de responsabilidad y cooperación recíproca no son necesariamente emancipadores. También pueden ser espacios reaccionarios, ya sea por voluntad o por la inercia de las prácticas que promueven o la obsesión militante de conseguir un objetivo compartido. Desde el estado mexicano se combate la producción de lo común porque ataca uno de los núcleos duros de su poder: ser los constructores y directores de los proyectos de desarrollo, el único camino posible para la imaginaria población nacional. Desde las versiones más conservadoras, como las panistas hasta la versión de izquierda de aires transformadores, la producción de lo común de los proyectos autónomos es una piedra en el zapato, no sólo porque demuestran que hay otras formas de creación de cultura material alejadas de la idea de desarrollo, porque también dan cuenta de las capacidades creativas que existen en las distintas geografías del país, resultado de la combinación de saberes y de la reapropiación de tecnologías. Además, la producción de lo común es uno de los procesos que permite colectividades Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 81 concretas, por fuera de la mitografía nacionalista y de la confluencia de las necesidades de la mayoría, porque no hay común sin actividad participativa de las partes involucradas, contrario a la idea de la identidad nacional, que existe independientemente de las personas. Finalmente, la pelea contra lo común intenta proteger el sentido del estado moderno, presentarse como el ámbito universal de la socialización, porque la confluencia de cuerpos, ideas, posiciones en relación con un proyecto compartido, que solo pertenece a las personas que lo realizan, pone en crisis la idea de general y racional de la estatalidad y la institucionalidad integral en la que todo se subsume. Lo común demuestra un horizonte de diversidad que es contrario a la unidad de lo estatal. La terca diversidad En el siglo XXI, las formas estatales mexicanas lidian con el problema de la diversidad a través de la fuerza y de la folklorización. Por un lado, mediante la creación de leyes e instituciones que dicen representar y promover la diversidad, al tiempo que la domestican y la normalizan: solo la buena diversidad puede ser atendida, es decir, aquella que respete al estado que sistemáticamente la niega. Por otro lado, la innegable presencia de lo múltiple trata de contenerse mediante mecanismos de exhibición (en su doble sentido, como puesta a la vista y como puesta en peligro), para que sean forma hiperestetizadas y cargadas de un deber, que se convierte en condena, de reproducir incesantemente esa forma (AGUILAR, 2020). Si el estado se asume como una entidad orgánica e integral, ninguna diferencia real puede ir por sobre él, solo las diferencias cosificadas o minorizadas. Las diferencias, para poder existir en el estado deben presentarse como organizaciones privadas productivas, no como formas de vida, ni mucho menos como culturas materiales autónomas. A pesar de esto, viejas formas culturales se materializan a lo largo y ancho del país. Las comunidades campesinas, en especial las que practican ejercicios deliberados de autonomía, son y, muy probablemente, serán una necesidad para la realización de todos los proyectos de civilizatorios hasta ahora conocidos, al tiempo que representan un peligro, derivado de su relativa independencia y de su capacidad de reproducción al margen de los planes, estructuras y normas exógenas. Son formas culturales tercas (BARTRA, 2021). A imagen y semejanza de los entornos, cambian lentamente, son formas colectivas organizadas por tiempos cíclicos, en los que de manera sincrónica perviven cortas, medianas y largas duraciones. Sus ritmos acompasan los eternos retornos. Esto impacta en todos los ámbitos de su cultura material, desde Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 82 los medios para producir, hasta las maneras de concebir la vida y el lugar que cada cuerpo ocupa. Gracias a ese tiempo lento mantienen un equilibrio relativo entre lo que necesitan y las capacidades para satisfacerlo. Tiene una economía centrada en las personas, una economía sustantiva, concreta, de escalas de proximidad, en la que se conserva una relación orgánica entre lo que se sabe y lo que se hace. La división entre producción y reproducción es artificial, ahí donde se produce al mismo tiempo que generan las condiciones de la reproducción de las formas de vida, tanto las humanas como las naturales: producir la tierra es generar las condiciones de su reproducción; cuidar las formas de vida es el medio para la producción. Para lograr esta codeterminación es necesario el cultivo de la diferencia y la hospitalidad, nada bajo el principio de lo idéntico puede generar una relación orgánica entre producción y reproducción. La síntesis de esta relación son las parcelas de cultivo, espacios en los que conviven una diversidad de existencias bajo una lógica de hospitalidad, todas las vidas ahí contenidas se procuran unas a otras, garantizando la preproducción del conjunto (ESTEVA; MARIELLE, 2003). El ejemplo por excelencia es la milpa, en las enredaderas de calabaza que corren por el piso, conservan la humedad necesaria para las espigas de maíz, a cuyas sombras crecen las ramas del frijol, cuyas hojas alimentan la tierra para que los quelites y los quintoniles crezcan silvestremente en las estrías de la tierra no cultivada. La diversidad es la condición y el fin de la organización autónoma de los campesindios. Solo es posible como una articulación colectiva, una forma nosótrica (LENKERSDORF, 2008), que no es una agregación de existencias individuales, sino una articulación de formas que se codeterminan mediante divisiones complementarias no dicotómicas (p.e., un abajo que es al mismo tiempo abajo-abajo y abajo-arriba). Todas las existencias del “universo” concreto cuentan y son claves para la reproducción del mundo de la vida; cada trabajo singular es necesario en la reproducción del conjunto. Las revueltas de la autonomía imbrican las formas humanas y las formas naturales, demostrando radicalmente que no hay UNA humanidad, ni una naturaleza, como el pensamiento ilustrado inventó hacia finales del siglo XVIII (SAHLINS, 2011). Las formas humanas autónomas develan la radicalidad de la relación entre lo natural y lo humano, las formas humanas no existen al margen de los entornos naturales; y las formas naturales no existen al margen de las acciones humanas. De ahí la complejidad de su idea de territorio. Las autonomías campesinas e indígenas son formas de la diferencia, en el marco de relaciones de coproducción; son formas de proximidad concretas, no criterios abstractos. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 83 Cada terruño es único, cada relación de coproducción es una unidad desde la que se proyectan mundos, desde la que se conocen los demás mundos de la vida. No son formas aisladas y ensimismadas, como las construye la mitografía modernizante, son formas acotadas de internacionalismo, de integración y articulación. Dominadas por saberes vernáculos tendencialmente políglotas, alejados del monolingüismo impuesto por la educación escolarizada. Sus necesidades se traducen en complejos y entreverados trajines de intercambio; la autosuficiencias y autonomías relativas no significan clausura o encierro (RIVERA CUSICANQUI, 2018). Las formas diferenciadas crecen entre entramados, más o menos grandes, que aseguran el reconocimiento y el intercambio entre formas culturales. De tal suerte que las relaciones entre saber y hacer conservan al tiempo que se mueven y se adaptan. El constante flujo afianza saberes y permite la integración de otros, bajo principios de no subordinación sino de abigarramiento, de experimentación constante. Su vernáculo orden instrumental experimenta lentas pero constantes transformaciones, que afianzan saberes o que los modifican: cambian al conservar su identidad. Lo mismo sucede con sus estructuras de significación, en las que la verdad no está separada de las acciones; por lo que las transformaciones en las prácticas modifican las verdades y las significaciones como condición de conservarlas. Las verdades se viven, encarnan, se sienten. Lo que demuestra una dinámica ampliamente adaptativa, al tiempo que conservadora. Una dialéctica que permite que las formas campesinas sobrevivan a los más diversos esfuerzos por desaparecerlas. En su concreción son insubordinadas e inaprensibles en la lógica capitalista; orilleras del principio de valorización y de su lógica de identidad mercantil; insubordinadas a la estrategia de disolución de la reproducción de la producción; son insubordinadas a la dependencia instrumental de la tecnología capitalista cuyo fin es la ganancia infinita; son insubordinadas a una economía desincrustada, que funciona con independencia de las otras esferas de la vida colectiva; son insubordinadas a la especialización, la homogeneidad y la expansión de la producción capitalista (BARTRA, 2021). Tampoco hay que idealizarlas y convertirlas en la nueva forma del sujeto de la revolución. Son por eso semillas de algo distinto, pero no las depositarias de una transformación anunciada. Pero el estado mexicano no deja de ver en este cultivo de lo diverso un peligro constante, porque deslegitima la idea de la dependencia materializada en el estado. Lo diverso aparece aquí como una variación de lo mismo, no como los tonos de una política nacional. La diversidad que vaya más allá de esta unidad necesaria debe ser combatida por mecanismos combinados, unos para su integración y homologación, por medio de procesos modernizadores, vía proyectos Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 84 de desarrollo y reorganizaciones territoriales; además de procesos de desconocimiento o silenciamiento, calificando aquellos mundos concretos como expresiones aisladas y opuestas a las necesidades de la mayoría; y finalmente, mediante ataques directos, al calificarlas de atentar contra la eticidad que reclama el respeto a la nación: la libertad sólo se realiza en el estado, lo demás no existe (ESTEVA, 2021). Se niega así uno de los componentes más creativos de las revueltas de la autonomía: su espacialización, como base una cultura material propia. Los territorios y la autonomía El mayor ataque del estado-nación mexicano a las revueltas de la autonomía campesindias es contra sus materializaciones, en partículas la forma de construir territorios, ya sea por la recuperación de tierras o por la refuncionalización de las que ya ocupaban (EZLN, 2013a y 2013b). La defensa de la mediación estatal se sostiene por la idea de controlar un territorio como una unidad, cuyas divisiones son expresión de la racionalidad, a su vez, resultado de la voluntad de las personas que se sintetizan en el estado. La integralidad del estado moderno demuestra su mera formalidad al existir procesos territoriales a su interior como resultado de prácticas autónomas.6 La libertad positiva del estado nación no puede tolerar procesos que demuestren su parcialidad y selectividad, como la creación de órdenes territoriales autónomos. De ahí la fuerte virulencia del ataque contra el proceso que lleve a cabo esa tarea. Pero, de qué se habla cuando se habla de territorio. Hay dos posiciones que representan los polos dominantes del debate, una, fríamente moderna, que reduce al territorio a un contenedor de las acciones, una suerte de materia inerte en la que se escenifican los procesos humanos, que transforma a voluntad esas materialidades. El territorio aparece acá como una relación de separación y dominio de la materialidad. En el otro polo aparece una posición, romántica sobre todo, que otorga completa acción a los territorios, como parte de una temporalidad global del mundo, la del progreso. En este caso los territorios son determinaciones absolutas de las formas humanas. Al margen de este debate, hay posiciones más dinámicas, plantean la producción de territorios como una práctica autónoma en la que se vinculan de manera dialéctica las fuerzas humanas y las no-humanas, para producir entornos habitables para todas las existencias, 6 En muchas ocasiones estas formas territoriales se homologan con las formas que se generan por prácticas de empresas criminales, para demostrar la fragilidad del estado mexicano, dada la presencia de rupturas de la unidad territorial. Esta comparación, cuyos fines son criminalizar los procesos de autonomía, omiten señalar que los procesos de las corporaciones criminales se hacen de la mano de la acción estatal, no de manera casual (por la participación de personajes corruptos) sino de manera orgánica, son instituciones, pactos políticos y un segmento de poder los que están detrás de esos territorios criminales. Cosa muy distinta con los territorios que se producen desde la autonomía. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 85 bióticas y abióticas (DESCOLA, 2012). Es un falso problema el dominio de la materialidad, ni ésta se puede dominar, ni puede dominar al conjunto de la vida colectiva. En este caso el territorio aparece como resultado de un proceso de territorialización. De la producción de un complejo de relaciones de interdeterminación de las formas materiales, en su dimensión objetual y simbólica. Es el despliegue de una potencia colectiva en la que participan las distintas existencias bajo un proyecto cultural y político compartido. Esto no significa un relativismo en el sentido antropológico clásico. No es que haya UNA materialidad que es interpretada según posiciones culturales. Es la construcción de múltiples formas de materialidad, en la que cohabitan significaciones diferentes, subjetividades heterogéneas, tiempos entreverados, capacidades productivas, órdenes técnicos. La territorialización es el proceso de producción de territorio, en el que se expresa una lógica singular de forma de vida, tanto humana como no-humana, que, para diferenciar, se llamará territorialidad (HAESBAERT, 2011). La territorialidad refiere, entonces, a las características que cada colectividad establece sobre la vida misma, sobre la forma en la que se desarrolla entre existencias, en el tiempo, en el espacio, con contenidos simbólicos concretos. Siempre bajo el principio de unidad de diferencias no contrapuestas, sino complementarias. Nada es preexistente, todo es resultado de esa interacción producto de la territorialidad, ninguna existencia o contenido está antes. Acá se expresa con radicalidad la geo-grafía, la capacidad de escritura que tienen las comunidades para construir espacios habitables, mundo de la vida y sus gramáticas (PORTO-GONÇALVES, 2001). El territorio implica fronteras, puntos en los que esa realidad construida termina, entornos dinámicos que también definen la dimensión territorial. Las fronteras son también producto de relaciones, en este caso de dos o más procesos de territorialización que definen dónde termina el espacio de cada conjunto de existencias. Este no es un problema menor, ni solamente físico, también es temporal y simbólico. Una frontera es más que un límite, es un borde, un entorno que también es activo y en el que se juega la territorialidad en su conjunto. El problema de las fronteras se vincula con el de las escalas. Todo territorio tiene escalas materiales diferenciadas, que funcionan como una unidad. Los territorios están ocupados por cuerpos, pero los cuerpos no son territorios. Pensarlo así nos lleva a dos problemas: el de la centralidad de lo humano en los territorios o el de la multiplicación del territorio a todos los cuerpos por lo que se vuelve todo, entonces no tiene sentido hablar del territorio como algo específico. Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 86 Todo esto empezó a manifestarse de manera radical a finales del siglo XX, cuando las comunidades indígenas en varias partes del continente, marcharon para denunciar la destrucción de sus mundos por mecanismos modernizantes combinados, desde el exterminio hasta la reducción de sus espacios a mera tierra de trabajo. Las marchas por el territorio no paran desde entonces, ponen en el centro de la lucha de emancipación la territorialidad. En el contexto contemporáneo, las luchas por el territorio las encabezan las comunidades indígenas, las comunidades afro y varias versiones del campesinado. Es aquí donde permanece una capacidad de pelea y articulación que es muy difícil en otros entornos, como el urbano, aunque no imposible (ESCOBAR, 2014). El territorio funciona como una concepción relacional del mundo, en el que las existencias se implican unas a otras. Esta manera de existir como forma singular es resultado de prácticas, no son sólo imaginarios o representaciones; son actividades concretas que se articulan para producir territorio. Estas prácticas se sostienen mediante historias, en su doble sentido: como imbricaciones de tiempos históricos de distinta naturaleza y como narraciones que explican esos tiempos y sus sincronías asincrónicas, ya sea por mitografías o por explicaciones reflexivas. Las luchas por el territorio son, por tanto, políticas y culturales, no en el sentido restringido de ambos términos, sino en el ampliado (ESCOBAR, 2014; HAESBAERT, 2011). Políticas porque en ellas se juega la construcción de subjetividades con contenidos históricos determinados, que se despliegan en consecuencia con esos contenidos. Culturales en tanto productoras de una materialidad sensible y significativa específica. Son espacios vitales de complementariedad, no de relaciones instrumentales o de uso por jerarquía (lo humano sobre lo no-humano). Son posiciones étnico-políticas, que más que ser demostradas en un juego de verdades y de poder, son experimentadas por las personas que las producen y habitan. Algo que es central en estas luchas territoriales es su capacidad de adaptación y de refuncionalización de los órdenes materiales capitalistas (EZLN, 2016). No son formas puras, ni atrapadas en el tiempo, son procesos que se adaptan y modifican con el objetivo de defender el núcleo duro de su territorialidad mediante la incorporación de saberes, objetos y procesos generados fuera de sus territorios. Es así como este tipo de luchas es altamente creativo y adaptable. Recurriendo a múltiples formas de violencia para defender sus mundos, sus espacios de vida; incluida la violencia moderna por excelencia: la ley. Recuperar, restaurar y conservar son sólo algunas de las acciones más comunes. Las luchas territoriales están en el centro de la crisis del estado nación, no sólo porque se disputa el control de los bienes para convertirlos en mercancías; sobre todo porque es ahí donde Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 87 persisten las tercas rebeldías que siguen viviendo mundos distintos a los del mesianismo desarrollista. De ahí que sea uno de los puntos clave de su ataque desde las políticas estatales, sin importar la bandera del gobierno o los intereses con grupos capitalistas. Crear territorialidades autónomas es la mayor amenaza de las tercas rebeldías, que demuestran que partidos políticos, burócratas, intelectuales y gobiernos, solo son los mediadores entre el estado y la llamada sociedad cuando se respeta la ficción de la unidad y la integralidad del proyecto, que está diseñado y ejecutado para beneficiar a una minoría en nombre de las mayorías (ESTEVA, 2021). La territorialidad autónoma sale de esta ficción, no sólo la impugna, la agrieta al separarse de ella y demostrar que otras politicidades son posibles sobre bases materiales concretas, no sobre proyectos venideros o sueños, sino levantadas sobre ideas y acciones prácticas que se atreven a vivir la vida en un presente radical. Falta lo que falta ¿Hasta dónde alcanza la autonomía para enfrentar la crisis del capitalismo y sus manifestaciones en México? No se puede responder por especulación, ni por cuantificación. Alcanzan y alcanzarán en la medida que logren producir formas de vida dignas de ser vividas, que abran horizontes de presente como tiempo histórico denso, colmando de posibilidades que no están destinadas a salvar al mundo, aunque no dejan de pensar en un universal concreto: el sistema-tierra. Pero sus acciones no sirven para frenar los efectos catastróficos del colapso, entre ellos la devastación ambiental, ni la precarización generalizada de las formas de vida. Sirven para construir entornos próximos habitables. Lo que no es un retorno a tiempos premodernos, en los que las formas de vida humana estaban relativamente aisladas. Es más bien un despertar de la mitografía moderna de la humanidad como unidad, como gran sustantivo, que puede salvarse y mejorarse en su conjunto. Abre la puerta, en cambio, a vías universales desde lo concreto, desde la reposición de las relaciones entre las formas de la vida y los ambientes, reconociendo que la articulación de estos hace la totalidad del ecosistema planetario. Por otro lado, tampoco están exentas de contradicciones y de relaciones jerárquicas tendencialmente autoritarias. Dos de las experiencias más consolidadas de producción de presente, el zapatismo, se sostiene por una estructura militar. La reproducción lúdica de la vida en estas zonas es gracias a la presencia de una lógica bélica, actuante y potencial. Además, aparece el reto del esfuerzo y el sacrificio, no viven en el paraíso en el que consumen las Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 88 cosechas del tiempo de ocio. Cuidar cansa, reproducir la vida cansa, a veces al punto del hartazgo, algo que el combate a la escasez del capitalismo tiene claro. Entonces, no estamos ante la salvación del mundo, ni la humanidad, mucho menos ante la emergencia acelerada de paraísos en México. Más bien el escenario se dirime entre el cultivo arduo de compromisos de diversa naturaleza o la continuación de las mitografías modernas, de un mundo mejor que espera, y esperará, por un futuro. Estos movimientos se caracterizan, entre otras cosas, por responder de manera creativa y autónoma a dos necesidades básicas: la alimentación y los cuidados. Lo que no es posible sin la construcción de territorialidades, en su mayoría vinculadas a la tierra reapropiada o defendida durante mucho tiempo. En esta forma de producir territorios emerge una práctica densa de relaciones entre saberes y haceres; saben y pueden hacer el mundo que habitan, no dependen de conocimientos exógenos, ni de personas especializadas que indiquen qué hacer. Se distancian de los saberes expertos que dirigen a los estados modernos, que se materializan en territorios abstractos habitados por poblaciones genéricas. En los distintos ejercicios de autonomía juega un papel clave la relación de profanación de la técnica y las tecnologías capitalistas; no sólo por lógicas de reapropiación y refuncionalización, sino por la subversión de las relaciones jerárquicas de su uso, en especial las de género y las de edad. Se construyen así condiciones para disolver todo orden vertical, todo centralismo y todo vanguardismo. También hay que reconocer que son formas de historización, que disputan el tiempo en todos sus terrenos, como pasado reapropiable, como herencia y compromiso por los procesos derrotados y como construcción de presentes densos, sin importar su duración cronológica. Este tipo de prácticas están ahí desde hace mucho tiempo, invisibilizadas, negadas y hasta combatidas por los proyectos mesiánicos y vanguardistas de los distintos estados nación. Y hoy no dejan de ser objeto de ataques, tanto de los procesos reaccionarios como de los estereotipos de transformación, herederos y continuadores de la idea iluminista de revolución. Los estados nación son sus peores enemigos, ya que son una amenaza a la supuesta necesidad histórica que creen representar. En el contexto del colapso es más visible la fuerza e importancia de estas prácticas de proximidad, lejanas de mesianismos salvíficos. Encaran de manera directa la necesidad de resolver con autonomía y autodeterminación las necesidades básicas de las distintas formas de vida, cultivan y reproducen las condiciones materiales y simbólicas de sus mundos. Podrían caracterizarse como movimientos de reproducción, en un sentido amplio; en los que, como todo Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 72-92. 89 proceso reproductivo aparecen los procesos creativos y las lógicas lúdicas. Como lo dice reiteradamente Silvia Federici, no hay nada más creativo que la reproducción de las formas de la vida. A lo que se puede agregar el carácter lúdico, en un sentido benjaminiano, es decir, la capacidad de profanar los órdenes materiales, en especial el técnico, rompiendo el principio de repetición automática y abriendo la puerta a la experimentación. Se invierte la lectura de los actores, ya no son las vanguardias iluminadas, ni las organizaciones centralizadas, ni las fuerzas predestinadas. Mujeres y campesinos toman la delantera, no por ser los predestinados a salvar a la humanidad, sino por ser, en buena parte, los depositarios de esas artes de la resistencia y de la capacidad de reproducir la vida. A pesar de su pequeña escala prefiguran nuevas formas de internacionalismo, que no responde a un proyecto genérico, sino a un esfuerzo por compartir saberes para poder construir mundos de la vida. Practican aquello que teóricamente algunas personas llaman adaptación profunda, que, como toda adaptación es segmentada, parcial, empieza por mutaciones situadas, hasta que logran comunicarse y modificar escenarios más grandes. Bibliografía AGUILAR, Yanaya. Aá: manifiestos sobre la diversidad lingüística. Ciudad de México: Almadía, 2020. BARTRA MURIÀ, Roger. El mito del salvaje. Ciudad de México: Fondo de cultura económica, 2011. BARTRA, Armando De labores invisibles y rebeldías excéntricas In: Cuál es el futuro del capitalismo. Ciudad de México: UNAM/Akal, p. 2021. 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