V.6, N. 2 : Jul-Dez 2022
Comité/Comitê Editorial
Alice Vazarin Perez
André de Cesaro
Heloíse Reis Ventura
João Barros
Júlia Montezini da Silva
Maria Eduarda Souza Martins
Sérgio Pedro da Silva
Capa: Felipe Vieira
Revista Espirales Dossiê (v. 6, n. 2, jul-dez 2022) - Foz do Iguaçu, PR.
Universidade Federal da Integração Latino-Americana: 92 páginas. Disponível em:
https://revistas.unila.edu.br/espirales/index. ISSN 2594-9721.
1.Relações Internacionais. 2.Educação. 3.Ciência Política.
4.Cultura. 5.História. 6.Economia. 7.Comunicação.
Contatos
Revista Espirales - Unila - Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporâneo
da América Latina (PPG-ICAL)
Parque Tecnológico Itaipu - PTI (Bloco 4 – Espaço 3 – Salas 5 e 6) Av. Tancredo
Neves, 6731 - Foz do Iguaçu/PR, Brasil. Cep 85867-970.
Endereço eletrônico: https://revistas.unila.edu.br/espirales/index Email:
revistaespirales@gmail.com
Sumário
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Apresentação
Mateus Fávaro Reis
6
Breve apresentação do projeto (Re)pensa Humanidade: editorial e
arquivo virtual de produções Originárias
Ana Laura de Morais Uba e Barbosa
22 Neoliberalismo e institucionalidade em período de redemocratização
no Chile: os discursos feministas em Mensaje (1983-1990)
Iasmin do Prado Gomes
37 “Sulenado” a História da América
Priscila Ribeiro Dorella e Tereza M. Spyer Dulci
52 “Pluriversidade: um esboço sobre a implementação do ensino de
histórias indígenas em universidades públicas brasileiras
Mateus F́varo Reis, Isáas dos Anjos Borja e Mauro
Ćsar de Castro J́nior
72 Sin Estado. Notas generales sobre la autonomia vista desde México
Daniel Inclán Solís
DOSSIÊ HISTÓRIAS E ESTUDOS DECOLONIAIS/ANTICOLONIAIS
EM ABYA YALA
APRESENTAÇÃO
Mateus Fávaro Reis1
O presente dossiê enfoca alguns dos debates ocorridos durante a realização do I
Simpósio: Histórias e Estudos decoloniais/anticoloniais em Abya Yala, organizado pelo Grupo
de Estudos em História das Américas (GEHA) e pelo (Re)pensa Humanidade, no Instituto de
Ciências Humanas e Sociais (ICHS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), nos dias
04 e 05 de outubro de 2022.
O GEHA foi fundado em 2010, com dedicação ao estudo da história do nosso
continente, suas relações com a Europa, África e Ásia, bem como as inter-relações continentais.
Os principais objetivos do GEHA constituem em debater pesquisas, promover atualização,
trocar experiências e discutir questões relativas à pesquisa e ao ensino de História da América.
Os temas abordados são amplos de modo a expressar a diversidade de interesses que preside a
área na atualidade, cobrindo da conquista e colonização aos mais recentes acontecimentos. São
tratadas temáticas dos diversos domínios históricos, tais como política, sociedade, cultura, e
economia, assim, como temáticas relativas às histórias de gênero, viagens, do cinema,
historiografia e relações internacionais.
O projeto editorial, arquivo virtual e extensionista (RE)PENSA HUMANIDADE
(www.repensahumanidade.com) – idealizado e coordenado por Ana Laura de Moraes Uba e
Barbosa – busca uma maior aproximação dos discentes da graduação e da pós-graduação com
os debates decoloniais e de autoria indígena em Abya Yala, mais precisamente com a prática
da decolonização do ensino de história, por meio da formulação de conteúdos educacionais que
ressignifiquem e rememorem a consciência histórica e a memória coletiva nesta sociedade,
barrando exotismos, estereótipos pejorativos e subalternização dos corpos, etnias e histórias
indígenas, retomando os saberes e afetos propostos majoritariamente pelo movimento e
colaboradores de demandas e potência indígena que relevem outra possibilidade, organização
e concepção de humanidade.
1
Doutor em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente do curso de História e da PósGraduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Presidente do Grupo de Estudos em
História das Américas (GEHA).
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 4-5.
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As participações englobaram significativas abordagens sobre as possibilidades das
correntes decoloniais, ações que estão transformando a educação e modos de trocas de
conhecimento, com a inserção de memórias e realidades sociais que promovem a pluralização
dos protagonismos sociais, reforçam as lutas antirracistas e permitem o respeito de novas
epistemes nos cenários universitários.
Questionadoras das imposições coloniais, discutimos sobre agências de diferentes
movimentos, de forma transdisciplinar e tentamos, de forma coletiva, demonstrar resultados de
pesquisas e desafios enfrentados contra a invisibilidade de disciplinas sobre Histórias
Indígenas.
Abordamos, além disso, alguns enfrentamentos sociais e intelectuais feministas, em face
de violências transtemporais de gênero, urgências na constituição de políticas públicas e
manifestos para o fortalecimento das lutas contra os retrocessos de direitos e espaços sociais
constantemente em disputa na América Latina.
Em suma, o presente dossiê visa a propor uma contribuição para a produção e
divulgação de conhecimento em conjunto e com diálogos mais plurais, distante da
competitividade acadêmica ou disputa de pensamento, entendendo que todas as demandas,
ações e práticas sejam contribuições ao discurso e descolonização integral de nossa memória,
prática e interação social, onde todas as interpretações devem ser discutidas e respeitadas.
Os principais debates pelos quais navegamos, enfatizaram a necessidade de se tratar
com mais solidez o lugar das histórias indígenas em nossos currículos e produções
interpretativas, em geral; as formas como a violência se arquiteta e se alimenta; algumas lutas
feministas em diferentes países latino-americanos; bem como ter como horizonte o futuro das
ações – para além das teorias – decoloniais, contracoloniais e anticoloniais.
Por fim, cabe destacar algumas questões fundamentais: 1) Mesmo após doze anos de
vigência da Lei 11.645 de 2008, infelizmente, observam-se singelas ações pedagógicas e
estratégias de intervenção nos currículos, e particularmente no quadro de disciplinas
obrigatórias, nas universidades brasileiras, que efetivamente englobem pensamentos indígenas
e autorias de pessoas e/ou coletivos originários; 2) Os debates decoloniais, contracoloniais e
anticoloniais ainda não ocupam um espaço de destaque em nossas carreiras, particularmente
nos cursos de história; 3) Tampouco, há ênfase sobre estudos de gênero e sexualidades em
nossos currículos e 4) As narrativas sobre a produção e perpetuação da violência precisam de
mais e renovados enfoques.
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 4-5.
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BREVE APRESENTAÇÃO DO PROJETO (RE)PENSA HUMANIDADE:
EDITORIAL E ARQUIVO VIRTUAL DE PRODUÇÕES ORIGINÁRIAS
Ana Laura de Morais Uba e Barbosa1
Conheça o Projeto
A plataforma virtual “(RE)pensa Humaninade” (www.repensahumanidade.com.br) é
um produto ainda em construção que tem formato de editorial e arquivo virtual pensado a partir
das urgências contra a permanência de movimentos e referenciais tutelares ainda presentes em
estudos e transmissões das chamadas “temáticas indígenas”. Constitui-se como um projeto que
caminha junto ao enfrentamento de lugares estáticos e marcados da existência Originária que,
de formas equivocada e simplista, acabam por anular e silenciar a participação destes povos ao
longo do tempo.
Coloca-se à reflexão de uma construção histórico-social onde, infelizmente e
majoritariamente, há prerrogativas estruturadas de objetificação, infantilização e extinção
destes corpos, territórios e memórias como constantes nas narrativas das chamadas Histórias
Oficiais baseadas, por sua vez, em referenciais teóricos tidos como cânones clássicos, cujo
papel principal é materializar estereótipos pejorativos sobre a contribuição, as existências e
vivências Originárias na História do Brasil na memória, e no ensino. Movimento este que,
estendendo a História das Américas, insiste em honrar e minimizar as atrocidades advindas dos
movimentos de invasão colonial, das ideias imperialistas, e da ação desenvolvimentista do
processo da “civilidade”, que disseminou a hegemonia e uma memória subalterna dos saberes
e lugares de Origem.
Em enfrentamento e rompimento deste mecanismo rumo à orientação teórica para a
interpretação, a produção dos conteúdos, e as ações do (RE)Pensa Humanidade, busca-se
informações e aprofundamentos teóricos, metodológicos, e práticos junto ao estudo e a
processos de conhecimento aliados ao movimento de autoria Originária anti-colonial e
1
Ana Laura Uba é graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), atualmente mestranda
bolsista CAPES/Cnpq atuando na linha 3: poder, instituição e linguagem no programa de pós graduação em
História da Universidade Federal de Ouro Preto (PPGHIS-UFOP), co-orientadora do núcleo de extensão:
(RE)Pensa Humanidade: plataforma educacional para a suspensão desta humanidade e idealizadora do editorial e
plataforma virtual (RE)Pensa Humanidade que pode ser acessado em: www.repensahumanidade.com. Email:
analaurauba@me.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/8347980571948410.
.
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decolonial criando, assim, maior proximidade da realidade local do território, sem influência
da legitimação externa e eurocentrada.
Sendo assim, a prioridade do projeto é construir conteúdos e redes que partem da lente
e dos saberes da autoinscrição Originária, tendo como princípio uma prática coletiva,
investigativa, e científica que realiza maior escuta e visibilidade ao campo epistêmico
Originário e aos seus saberes de Origem, justamente com o intuito de possibilitar aliança e
fortalecimento de outras transmissões historiográficas, didáticas e sociais das “Histórias e
Temáticas Indígenas”, almejando pertencimentos e afetos.
Destarte, como referido, o projeto e plataforma (RE)Pensa Humanidade se constitui em
espaço virtual de caráteres público e educacional –voltados à formação, planejamento,
construção, disponibilização, transmissões e divulgação dos múltiplos conhecimentos e
produções científicas, educativas, mostras de artes audiovisuais, e obras literárias de Povos
Originários de Abya Yala –atualmente focalizado no Brasil, a partir da demanda sintetizada
pela LEI.11.645 de 2008 que determina a obrigatoriedade do ensino e estudo das contribuições
e permanências Originárias na História e formação nacional que ainda são superficiais dentro
de muitas instituições de ensino formal.
É importante destacar que o projeto tem o compromisso de permanecer aliado à ações
que intensifiquem a representatividade Originária em autoinscrição e própria autoria,
entendendo não ser mais possível reproduzir uma mentalidade de ensino que trate a existência
e as contribuições originárias, cabíveis na educação e na memória social, como uma temática
unilateral. Este, portanto, é o ponto motivador da exequibilidade do projeto em pauta, que se
prontificou em colaborar com a ruptura de uma estrutura colonial produtora de narrativas
excludentes advindas de Histórias Oficiais.
A ideia é, justamente, a de tecer uma rede possível de produção e divulgação de maior
legitimidade, mais próxima à Origem, em confluência com a realidade local tecendo uma rede
possível de divulgação mais justa e democrática de posicionamentos, memória, protagonismo,
vivência, permanência, e existência de comunidades e pessoas em uma organização sóciohistórica em enfrentamento a inúmeras formas de subalternização e epistemicídios recorrentes
nesta Humanidade.
Em uma prática coletiva científica de aportes teóricos decolonial, anticolonial,
maioritariamente junto a referencial bibliográfico latinoamericano e Originário, o projeto e
plataforma vem sendo construído desde o ano de 2021 junto ao processo de titulação de Mestre
em História da presente autora, com suporte institucional autorizado via Núcleo de Extensão
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da Universidade Federal de Ouro Preto-MG, contando com uma equipe, atualmente, de onze
colaboradores sendo, estes, alunos de graduação, pós graduação e professores integrantes do
Departamento de História. O intuito é o de aproximar e subsidiar a formação dos integrantes
junto ao conhecimento, ao movimento teórico intelectual, e a debates decoloniais com base em
autorias e produções multidisciplinares de pessoas “indígenas" de diferentes áreas e titulações.
Assim, a proposta do projeto, precisamente, é a de visibilizar, divulgar e de se tornar
um aliado na construção de viabilidade mais democrática, inclusiva e acessível a conteúdos,
estudos, produções artísticas e material didáticos, dentre outros conteúdos ligados às
denominadas “Temáticas Indígenas”. Trata-se de proporcionar narrativas plurais, reflexivas,
com referências a particulares da diversidade e multiplicidade de mais de 305 inscrições étnicas
que formam a população que ocupa o território “Brasil”, (RE)Pensando a convivialidade, onde
se faça ser possível a concepção de outros mundos, plurais e transversais.
Acredita-se
na
mudança
desta
convivialidade
pautada
em
relações
mais
horizontalizadas e afetivas, sendo esta realidade possível a partir da construção de conteúdos
plurais que respeitem a transversalidade do tempo e que sejam representativos diante do
multiculturalismo que formula a realidade latino americana e que, sobretudo, formam a
historicidade, a organização da sociedade brasileira. Considera-se que, infelizmente esse
conteúdo ainda se encontra majoritariamente negligenciado nos departamentos de formação
universitária, sendo este trabalho um indicativo dos problemas e negligências apontados ao
Ofício do Historiador e ao ensino de História.
O propósito é o de evidenciar a insuficiência de referenciais indigenistas e tutelares para
tratar “Temáticas Indígenas”, evidenciando outras possibilidades ao ofício do historiador e do
Ensino de História incluindo perspectivas que demostrem a autonomia, a potencialidade, e o
pertencimento advindos dos debates anticolonial, decolonial e Originário. Estes são a base para
a compreensão mais ampla da realidade social, dando aporte à construção de narrativas
históricas multilaterais, que ressignifiquem a consciência histórica e a memória coletiva, em
retomada e valorização dos limites, saberes e afetos propostos pela potência Originária.
Trata-se de entender o coletivo e as formas de estar no mundo confluentes a um
organismo vivo e único como a Terra, distanciados da pretensão desacerbada advinda do
Antropocentrismo e do materialismo, traçando outras possibilidades à continuidade desta
humanidade, em uma convivialidade plural onde a diferença não seja apontada como inferior.
Nesses termos, como plano de exequibilidade desta proposta de descolonização do ensino de
História por meio da formulação de conteúdos educacionais apresenta-se, de forma parcial, os
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conteúdos produzidos pelo projeto (RE)Pensa Humanidade que foram idealizados partindo da
urgência de conteúdos voltados sobre a permanência e a memória Originárias na formação da
História e da sociedade nacional para além dos odores da invasão datada em 1500.
Assim, nossa prioridade é a de demonstrar que a contribuição originária não está estática
ao processo colonial e nem mesmo sintetizada na valorização da natureza, à condição de
aldeamentos ou a qualquer outro lugar marcado ao “indígena”. O objetivo deste trabalho é
demonstrar ser possível a construção de outros mundos socioculturais que incluam a
participação originária em diferentes assuntos do desenvolvimento desta Humanidade,
destacando-se o campo epistêmico Originário em princípio da construção do bem viver distante
de contextos de disputas de poder e classificações pejorativas que, infelizmente, ainda ecoam
em muitos espaços de memória e conhecimento.
Para melhor visibilidade dos conteúdos produzidos pelo projeto (RE)Pensa
Humanidade, realizou-se o mapeamento da organização do arquivo virtual em oito abas, quais
sejam: Início: apresentação do resumo, objetivos e aliados do projeto; Pesquisa&Saberes:
cataloga os conteúdos de subsídios à pesquisa científica; Krauma: apresenta os conteúdos
advindo de obras literárias; Educação: disponibiliza planos de aulas e unidades didáticas com
manuais do professor; Etnomídia: dá acesso à catalogação fílmico disponível em streaming e
análises de filmes; PodCast: acesso a temporadas e episódios de entrevistas ou debates semiestruturados; Colaboradores: apresenta, em autobio, os colaboradores e suas funções no
editorial; JUNTOS !: aba de envio de opinião, arquivos, e cadastro de usuários com o intuito
de (RE)Pensar juntos.
Em organização da propostas de editorial dos conteúdos didático-pedagógicos,
culturais, e de história pública, optou-se por realizar uma subdivisão de tarefas em cinco setores,
“Educação”, “Acadêmico”, “Etnomídia”, ‘Podcast” e “Literatura”, dimensionados em três eixos
principais de ação metodológica: o primeiro eixo demarca críticas à permanência colonialista
em transmissão, ofícios, escrita e ensino que envolvem registros historiográficos em torno das
experiências, memórias, existências, protagonismo e história de Povos Originários em território
nacional. Como segundo eixo, apresenta-se os desafios e, ao mesmo tempo, propõe-se e se
demonstra práticas de transformações localizadas nas transmissões de experiências e
protagonismos dos Povos Originários na configuração de memórias e Histórias Oficiais que,
em urgência, devem ultrapassar marcos da história colonial, negando a forma estática que
comunidades e corpos Originários.
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Em terceiro eixo apresenta-se a proposta de produção coletiva, aberta sempre à novas
articulações pessoais e institucionais que prezam pelo fortalecimento dos produtos e produções
didáticos-pedagógicos, midiáticos, áudiovisuais e científicos em comunhão com teorias
decoloniais e práticas que contribuam com a descolonização de relações e práticas neste núcleo
da Humanidade. As mesmas devem se articular não somente às demandas de visibilidades
originárias, se orientam em reposicionar práticas multilaterais e transdisciplinares nos
processos educacionais e na memória social, com respeito a diferenças, afetos, horizontalização
epistêmicas, interpretativas plurais e nunca tutelares, em aliança à autoinscrição originária.
Destaca-se que é urgente a descolonização das mentalidades atuais para que se compreender
múltiplas existências, crenças, saberes e comportamentos sociais horizontalizados, fluidos ao
bem viver.
Produtos do editorial
Finalizando o bloco de argumentos e levantes teóricos que são urgentes, é necessário
também demonstrar de forma parcial o que vem sendo desenvolvido no corpo editorial do
projeto, apresentando o quantitativo dos produtos desenvolvidos pelos cinco setores de
produção. Eles foram pensados e organizados pela idealizadora e coordenadora do projeto junto
aos colaboradores acima mencionados, essenciais para o desenvolvimento de todos os
conteúdos que compõem o arquivo (Quadro 1).
Nesse ponto, é fundamental destacar a importância do envolvimento de discentes com
o referencial teórico decolonial, autorias e produções originárias e latino-americanas para
melhor interpretação da realidade social local e transformação do ensino de História, onde
pluralidades sejam apresentadas com afeto e pertencimento à maioria social que é plural e
protagonista da História nacional que transcende códigos hegemônicos.
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Quadro 1 – Conteúdos da plataforma
SETOR ACADÊMICO
SOBRE:
Voltado à pesquisa e leitura de textos acadêmicos produzidos nas áreas de: Direito,
Antropologia, História, e Literatura indígena brasileira como um compilado de referências
que integralizou o movimento de reexistir a partir do domínio das mesmas técnicas e
estudos acadêmicos, porém trazendo outros olhares que ressignifica lugares marcados e
narrativas talvez equivocadas sobre como é pertencer no mundo, e como então podemos
dar continuidade de uma humanidade em equidade e respeito. Cumprindo com o objetivo
de ocupar os espaços científicos e acadêmicos como aliados não indígenas ao movimento
de visibilizar e basear-se as produções particulares junto a mentalidades, reivindicações,
referências bibliográficas e projetos de sujeitos e comunidades Originárias, foi trazendo
estes olhares e interpretações como centro da articulação teórica a produção
historiográfica.
EQUIPE
SETORIAL
ATUAL (2022) :
Mauro César de Castro
aluno graduação
História UFOP
Milena Pereira Macedo aluna
graduação História UFOP
Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP
ANO DE
PRODUÇÃO:
2021 - 2022
N° DE CONTEÚDOS:
14
ACESSO:
LINK ABA
TÍTULO DO CONTEÚDO
PRODUTO
AUTORIA (RE)PENSA
Conhecendo movimentos de retomadaKatarismo.
Mapa de Ideias
Ana Laura Uba
Um pontapé para visibilizar a
Intelectualidade Indígena
Mapa de Ideias
Mauro César de C. Junior e
Milena P. Macedo
Urgências na produção historiográfica
Apresentação setorial
Ana Laura Uba, Mauro César
de C. Junior e Milena P.
Macedo
RESENHA: “Lugares de Origem” de
Ailton Krenak e Yussef Campos
Resenha de Obra
Mauro César de C. Junior e
Milena P. Macedo
óticas sob o alcance e poderes da vivência
social-humana.
Resenha de Obra
Mauro César de C. Junior e
Milena P. Macedo
Destaques fundamentais de alguns
princípios básicos
Resenha de Obra
Milena Pereira
Um quase checklist de como vivencia a
convivialidade
Resenha de Obra
Mauro César de Castro Junior
Suporte ao educar na epistemologia
Xakriabá
Resenha de Obra
Mariana Laurentino
TAMBETÁ um suporte para escuta e
reflexão do Ofício em conversas com Ailton
Krenak
Resenha de Obra
Natália Cristina Santiago
Lembretes reflexivos em meio do
Isolamento social
Resenha de Obra
Rafaela Areal
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21.
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Encontros: destaques a alguns capítulos
Resenha de Obra
Fadí Fada Campolina
Transmissão e aportes a existência “Uma
outra História a escrita indígena no Brasil”
Resenha de Obra
Milena Pereira
(RE)Pensando vive(re)s para
convivialidades
Resenha de Obra
Mauro César de C. Junior e
Milena P. Macedo
Uma breve orientação sobre cinema e
educação
Resenha de Obra
Rafaela Areal
SETOR EDUCAÇÃO
SOBRE:
Abarca compreensão das legislações nos campos da Educação e referentes povos
indígenas; do Manual de Transdiciplinaridade da temática indígena da ONU; e o estudo
pedagógico e estratégico da BNCC para a formulação do conteúdo para além do ensino
de história dirigido ao ensino infantil. Enfrentando os limites decorrentes da pouca ação
e articulação institucional para fazer cumprir com a demanda de atualização e formação
docente trazidas pela Lei.11645/08 o setor impulsionou alunos a buscarem com mais
autonomia o preenchimento do quase abismo teórico que vão ao encontro do
protagonismo e existência de povos Originários , africanos e afrodiaspóricos nos cursos
de formação que serão responsáveis por transmitir estes conhecimentos e debates a alunos
da educação básica e demais educandos.
EQUIPE
SETORIAL
ATUAL (2022) :
Mariana T. Laurentino
aluna graduação História
UFOP
Fadí Fada Campolina aluno
graduação História UFOP
Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP
ANO DE
PRODUÇÃO:
2021 - 2022
N° DE CONTEÚDOS:
10
ACESSO:
LINK ABA
TÍTULO DO CONTEÚDO
PRODUTO
AUTORIA (RE)PENSA
Povos Originários contra o extermínio em
resistência e luta.
Ensaio livre
Ana Vitória Vieira
Manual do professor e a temática indígena na
Escola alguns apontamentos básicos.
Ensaio livre
Gabriela Medeiros
Eu no mundo e o mundo em mim Fundamental II
Unidade Didática
Mayara Pacces e Fadí
Campolina
Eu no mundo e o mundo em mim Fundamental II
Manual do professor
Mayara Pacces e Fadí
Campolina
Nacionalismo, pertencimento e mitos de
Origem
Plano de aula BNCC
Ana Vitória Vieira
Tem luta indígena sim na formação dos
Estados Nacionais
Plano de aula BNCC
Ana Vitória Vieira
(Não)existir a Povos Originários: um Plano
Político
Plano de aula BNCC
Ana Vitória Vieira
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21.
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Hegemonia VS Pluralidade: sobre poder e
hierarquia
Plano de aula BNCC
Ana Vitória Vieira
Título a definir - Material temático - Ensino
Médio
Unidade Didática
Fadí Campolina e Mariana
Laurentino
Título a definir - Material temático - Ensino
Médio
Manual do professor
Fadí Campolina e Mariana
Laurentino
SETOR LITERATURA
SOBRE:
É um espaço para visibilizar obras já publicadas de autores-autodeclarados indígenas,
convidados para transmitir experiências diante o processo de construção da Obra,
expondo sobre pertencimento, resgate, inquietação, denúncias, vivências e sobretudo
interpretações sobre a convivialidade íntima e coletiva que de forma transtemporal se
inicia a partir de um marco cultural e social imposto que é a inscrição como
<<indígenas>> demarcando experiências diferenciadas nesta configuração social,
histórica e institucional que sempre apontam como o outro, ou distinto.
EQUIPE
SETORIAL
ATUAL (2022) :
Isaías Xipu Puri
Mestrando Letras
PÓSLET - UFOP
Maria Eduarda Câmara
Graduação História UFOP
Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP
ANO DE
PRODUÇÃO:
2021 - 2022
N° DE CONTEÚDOS:
10
ACESSO:
LINK ABA
TÍTULO DO CONTEÚDO
PRODUTO
AUTORIA (RE)PENSA
As literaturas de autoria indígena e a
indigestão antropofágica ou folclorização
Ensaio livre
Isaías Xipu Puri
Pertencimento construído em “Metade Cara,
metade máscara”
Resenha de Obra
Isaías Xipu Puri
Conheça!: A queda do Céu, palavras de um
xamã Yanomami
Texto-post informativo
Isaías Xipu Puri
Conheça!: Artistas Indígenas
contemporâneos
Texto-post informativo
Isaías Xipu Puri
Conheça!: Pensamento Originário
Texto-post informativo
Isaías Xipu Puri
Conheça!: Movimento originário
Texto-post informativo
Isaías Xipu Puri
Conheça!: Intelectualidade e autoria Indígena
em fortalecimento coletivo
Texto-post informativo
Isaías Xipu Puri
KAUMA: CONEXÕES LITERÁRIAS
Ensaio livre
Isaías Xipu Puri
RESENHA: EU SOU MACUXI E OUTRAS
HISTÓRIAS
Resenha de Obra
Maria Eduarda Câmara
RESENHA: SABERES DA FLORESTA
Resenha de Obra
Maria Eduarda Câmara
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21.
13
SETOR PODCAST
Fortalecendo este movimento de renovação técnico-teórica e também como forma de
colaborar com o descolonizar frente a produções hegemônicas e colonialistas impostos
pelo processo técnico e unilateral da escrita, esta foi a forma de produzir mantendo
distância da individualidade e de hierarquizações propostas pela normativa científica. Esta
confere distância, imparcialidade, observação e classificação superficial, se dedicando à
produção de roteiros semiestruturados para apresentar e visibilizar algumas referências,
conceitos, reflexões e vivências cotidianas, sempre integralizado a pessoas e comunidades
originárias e seus olhares diante das realidades social, econômica, cosmológica,
institucional e política. O setor vem se dedicando em aprofundar manejos e ensino técnico
operativo de produções de áudio, atento a mecanismos de edição considerando cuidados
linguísticos voltados a uma melhor compreensão do público alvo, que se encontra em
dimensões intelectuais distintas. Estas vêm sendo demonstradas junto aos roteiros e à
realização de entrevistas com participantes ativos de movimentos de resgate e
descolonização das mentalidades, relações e formas de conviver e de identificar a origem
comunitária neste organismo.
SOBRE:
EQUIPE
SETORIAL
ATUAL (2022) :
Maria Fernanda Vargas
Graduação História
UFOP
Gabriela Lorryne Santos
Medeiros
Graduação História UFOP
Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP
SETOR ETNOMÍDIA
ANO DE
PRODUÇÃO:
2021- 2022
ACESSO:
N° DE CONTEÚDOS:
6
LINK ABA
TÍTULO DO CONTEÚDO
PRODUTO
AUTORIA (RE)PENSA
GUERREIRAS
EPISÓDIO NARRATIVO:
AudioCast com transcrição.
Mariana Laurentino e Natália
C. Santiago
INTELECTUAIS INDÍGENAS
AudioCast com transcrição.
Mariana Laurentino e Maria
Fernanda Vargas
ZIEL KARAPOTÓ escuta sobre Arte
educação, performance e produções
audiovisuais.
ENTREVISTA: VideoCast
com legenda.
Maria Fernanda Vargas e
Gabriela Lorryne Santos
Medeiros
MARCELO KRAHÔ escutas sobre a
ativismo e realidade LGBTQI+ no
movimento Originário.
ENTREVISTA: VideoCast
com legenda.
Maria Fernanda Vargas e
Gabriela Lorryne Santos
Medeiros
OLINDA TUPINAMBÁ escutas sobre
produção de cinema autônomo de uma mulher
indígena.
ENTREVISTA: VideoCast
com legenda.
Maria Fernanda Vargas e
Gabriela Lorryne Santos
Medeiros
FRANCY BANIWA escutas sobre
representação Originária nos espaços
educativos.
ENTREVISTA: VideoCast
com legenda.
Maria Fernanda Vargas e
Gabriela Lorryne Santos
Medeiros
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 6-21.
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SETOR ETNOMÍDIA
SOBRE:
Aliado ao objetivo de quebrar estereótipos e detendo imaginários de povos originários
estáticos ao primitivismo que, de forma equivocada, tendenciosa e pejorativa, ainda
reportam a uma realidade tutelar, superficial e exótica de modos e experiências
originárias, o setor procura, por meio de divulgações críticas e elaborações de uso de
conteúdos audiovisuais para educação, indicar e visibilizar a ampla produção originária
de conteúdos em áudio visual e obras cinematográficas com exercícios de catalogação de
obras, artistas e páginas livres. Possibilita-se, dessa forma, a aproximação de público
amplo a produtores e atores do movimento de articulação de mídias originárias que
existem e dominam as possibilidades de comunicação e tecnologia desta temporalidade
para articular e realizar autonomias pelo ato de “ocupar telas” para apresentar-se e auto
inscrever suas dissensões forjadas e mostradas, até então, sob recortes de olhares
superficiais. Setor responsável pelo desenvolvimento de técnicas voltadas à análise de
filmes para a compreensão de amplo público, a partir de um olhar subjetivo e de
compreensão integral das particularidades originárias.
EQUIPE
SETORIAL
ATUAL (2022) :
ANO DE
PRODUÇÃO:
Rafaela Oliveira Areal
Graduação História UFOP
2021 - 2022
ACESSO:
N° DE CONTEÚDOS:
Ana Laura Uba orientação mestranda PPGHIS UFOP
7
LINK ABA
TÍTULO DO CONTEÚDO
PRODUTO
AUTORIA (RE)PENSA
Falas da Terra
RESENHA DE FILME
Rafaela O. Areal
O abraço da serpente
RESENHA DE FILME
Rafaela O. Areal
Prosa pos filmes com ZIEL KARAPOTÓ
CURADORIA FÍLMICA
Ana Laura M. Uba
Prosa pos filmes com MARCELO KRAHÔ
CURADORIA FÍLMICA
Ana Laura M. Uba
Prosa pos filmes com OLINDA YAWAR
CURADORIA FÍLMICA
Ana Laura M. Uba
Prosa pós filmes com FRANCY BANIWA
CURADORIA FÍLMICA
Ana Laura M. Uba
Prosa pos filmes com LIAN GAIA
CURADORIA FÍLMICA
Ana Laura M. Uba
I MOSTRA (RE)PENSA DE CINEMA
ORIGINÁRIO NO CINE VILA RICA (nota 2).
EVENTO EDUCATIVO
E CULTURAL
EQUIPE (RE)PENSA
Fonte: dados originais da pesquisa.2
2
A I MOSTRA (RE)PENSA DE CINEMA ORIGINÁRIO aconteceu entre 18:00 e 23:00 dos dias 26 a 30 de
Setembro de 2022, na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, em específico nas nas dependências do Cine Club Vila
Rica. A semana de exibição dos filmes, bem como os ciclos de debates permitirão a aproximação das comunidades
locais e das escolas com fontes advindas de memória, história e comunicação oral, apoiadas a tradições e saberes
dos povos originais do Brasil, que serão trabalhadas para articulação de novas possibilidades de discussões,
símbolos e construção de espaços de memória, que formará nossa apresentação de conteúdos e colaborar com
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O quadro acima tem a intenção de afirmar como é possível a produção e referenciação
de estudos e narrativas que valorizam múltiplos conhecimentos, sem deixar de lado a
especificidade disciplinar e rigores teóricos, assegurando também que os conteúdos estejam
orientados pela transversalidade do tempo e da sociedade. Uma vez que o projeto está sendo
construído em um ambiente coletivo, a fluidez e a expansão da produtividade se tornam um
diferencial, onde desafios e habilidades entre o grupo acabam por potencializar a conclusão dos
materiais, além destes serem revisados e ajustados de forma multilateral, dando mais qualidade
e inclusão a trabalhos produzidos de forma individual.
Observa-se que os conteúdos possuem um direcionamento principal a ser abordado,
seguindo o padrão das escolhas bibliográficas e referências previamente propostas para o
desenvolvimento do conteúdo (re)pensa, porém, assegura-se um referencial central que faz
parte do centro epistemológico originário que pode ser classificado como princípios de respeito,
horizontalidade e equidade. Este, são formas de se ocupar o mundo em equilíbrio com os
aspectos naturais e sem exageros da “parafernália da modernidade”, privilegiando a tradição
oral e os saberes adquiridos com a vivência permanente, entendendo que o bem viver e bem-
estar social dependem de uma rede cíclica de cuidado contrária à sobreposição de domínio e de
outras interpretações que veem o natural somente como recursos disponíveis.
Interpreta-se que a existência de uma centralidade de equilíbrio em meio a este saber,
comportamento, mentalidade e conhecimentos encontra-se como a principal ideia para que se
atinja a tão desejada continuidade da Humanidade. Em outras palavras, adiar o fim do mundo
seria possível com a retomada da escuta ao saber ancestral, compreendendo a Origem e os
lugares naturais de cada um dos seres, reconhecendo o papel fundamental de cada um no ciclo
do tempo e do espaço.
Portanto, estas interpretações não podem mais estar classificadas como desvio teórico
ou temática isolada do cânone da historiografia: o otimismo da produção e a defesa deste projeto
são o desenvolvimento de um Ofício que permita e construir narrativas que concebem diferentes
mundos e subjetividades, se conectando e pertencendo aos Saberes e formas do conhecimento
de Origem, possibilitando a compreensão do ser humano fora de um olhar limitado a
comparações externas.
Estes fazem com que se perca autonomia e potencialidades próprias, isolando a
oportunidade e a naturalidade de explorar diferentes abordagens da produção de conhecimento
possibilidades mais plurais, transversais e complexas a construção da consciência histórica local, historiografia e
do ensino de história rompendo com pejorativos transtemporais ao “indígena”
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e saberes, como as escutas sonoras, histórias orais, impactos visuais, transcrições de histórias,
etc. Este resgate é urgente ao presente que vem sendo materializado com inúmeras abordagens
virtuais e, sobretudo, inclusiva a todes, onde resgate e transversalidade são cotidiano e
constituem a base para as ciências que devem ser desenvolvidas para o bem viver de existências,
que são múltiplas e cíclicas.
Arquivo virtual
Os conteúdos reunidos no arquivo virtual possibilitam maior democratização do acesso
a conteúdos específicos de autoria e produção Originária que devem ser incluídos em todas as
etapas formativas em afirmação de outras abordagens epistemológicas e concepções de
narrativas historiográficas que promovem a descolonização do ensino para a formação de
nossas mentalidades, (re)organizando imaginários e protagonismos que envolvam as chamadas
"temáticas e histórias indígenas”.
Compreende-se, aqui, múltiplas dimensões, particularidades e possibilidades não mais
fechadas em marcos temporais e agências históricas ainda hegemônicas, levando em conta que
referências e produções originárias podem e devem aparecer em qualquer assunto da formação
sócio-histórica, proporcionando perspectivas de diagnosticar e propor soluções ao adoecimento
e pessimismo presentes na convivialidade contemporânea global, estes advindos dos processos
de colonialidade que narram a formação sócio-histórica em uma série de disputas territoriais,
de poder com explorações e extermínios naturalizados pela cultura do domínio que distancia
do caráter afetivo e coletivo.
Acreditando ser aliado a uma (re)educação social e histórica, o projeto (RE)Pensa
Humanidade vê como uma das suas capacidades, por meio do acesso e possibilidades dos
trabalhos coletivos, retomar a saúde, o respeito e o otimismo nas diversidades nesta rede
multidimensional que vivencia a humanidade e seus registros, sendo capaz, assim, de valorizar,
transmitir e mapear múltiplas possibilidades nos elementos materiais e imateriais presentes no
pensamento Originário e seus saberes. Possibilita-se, então, a construção de pertencimento e
identificação em uma narrativa e a partir de um conhecimento plural que devem tecer a
transmissão da historicidade não só do presente, mas revendo as lentes do passado como plural
e subjetivo.
Com base no exposto, e na ideia de que as práticas culturais são criadas e reinventadas
para responderem às circunstâncias e à realidade em que se vive encoraja-se, nesse espaço de
(re)criação de uma historiografia com autonomia e por outras epistemes que permitam a
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pluralidade de perspectivas e de protagonismos mais autênticos à temporalidade,
compreendida, aqui, como múltipla. Enseja-se, em síntese, contribuir para a produção de uma
mentalidade condizente às realidades locais, constituídas transversalmente, em busca de uma
melhor convivialidade global.
Nesse sentido, no horizonte da continuidade mesma da humanidade, considera-se
urgente reconstruir, de forma mais afetiva à realidade, estruturas que abarque as linguagens e
as percepções históricas de múltiplos agentes sociais detentores de inscrições próprias, livres
de tutelas externas que, equivocadamente, vêm impondo uma historicidade de hierarquização
limitada a comparações hegemônicas que forjam relações de poder e, consequentemente,
autenticidades. Nessa esteira, deve-se assumir como possível uma produção acadêmica,
política, sócio-histórica, etc. mais íntegra às complexidades dos mundos, em nome da
pluralidade cultural e das particularidades dos sujeitos de uma maneira especial, com mais
afeto, alegria, proximidade, respeito e profundidade.
Nessa perspectiva, a realização da pesquisa prescinde de práticas e procedimentos
efetivos à descolonização dos ofícios intelectual, científico, e do ser íntimo/social, em
movimento de deslocamento e ruptura com referenciais que, de forma transtemporal, vêm
apagando e subalternizando potencialidades de pertencimento Originários e Sulistas em nossos
modos técnicos e sociais. Nesse âmbito, é fundamental romper com formações e imaginários
acadêmicos e científicos que alimentem pré-concepções, equívocos, simplismos e exotificações
geradores de sentimentos e comportamentos sociais discriminatórios de corpos "indígenas"
destinados ao epistemicídio e aos genocídios.
Nesses termos, captar e divulgar os conteúdos aventados toca no tipo de informação e
transmissão com que a pesquisa se compromete, o que constitui, ao mesmo tempo, o ponto de
partida e a própria oportunidade de mudança. É, então, partindo do olhar e das referências
próprias destes "povos", que se torna factível visibilizar e potencializar sua autoinscrição de
existência e resistência, fundando-se outras abordagens e narrativas de História Oficial a serem
implementadas junto ao Ensino de História na contramão dos contínuos exotismos que se
traduzem em estereótipos pejorativos, culminando na subalternização dos corpos e etnias num
movimento de silenciamento da pluralidade e da transtemporalidade das "humanidades".
A ideia é a de se voltar às particularidades e demandas do próprio território brasileiro
sem exclusões e hierarquias superficiais que reforçam o vencedor diante do silenciamento de
um suposto vencedor. Trata-se de uma ação pela existência e experiências do outro, da
formulação de mundos outros. Deve-se, assim arcar com o tempo prospectivo, especialista em
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criar ausências no sentido mais peculiar da vida a gerar angústia e intolerância imperiais para o
sujeito que resiste no mundo vital opressor, mas que ainda é capaz de experimentar o prazer de
estar vivo, de dançar e de cantar, como lembra Ailton Krenak em “Ideias para Adiar o Fim do
Mundo”, pois sem esta vitalidade é impossível manter-se vivo para contar a História.
Nesse sentido, os conteúdos articulados para a (RE)Pensa Humanidade ocupam este
lugar da transmissão de conhecimentos e chamam a atenção para a revitalização das produções
voltadas a uma mudança de referências. Todas as produções e conteúdos didático pedagógicos
voltados à reflexão e ao ensino de História no que tange às "temáticas indígenas" partem da
autoria, interpretação, e narrativas originárias sobre a realidade não só da comunidade, ou dos
indivíduos autodeclarados indígenas, mas das relações de todos os seres, dando passagem a um
debate, propondo práticas efetivas, sobre a continuidade desta humanidade com base na
premissa de que “o todo” é fundamental.
Ultrapassando, portanto, a construção de resistências territoriais, políticas, e identitárias,
a (RE)Pensa trata de transmitir os olhares originários, multilaterais e plurais para os quais deve
haver uma integração horizontal transversal (conexão e equidade) das relações entre todos os
seres naturais e os que têm “intelectualidades”.
Nesses termos, as narrativas originárias manifestam o repúdio a qualquer esgotamento,
violência, ou inferiorização entre todos os seres, expressando suas máximas autonomia e
liberdade, bem como a toda a forma de dominação e disputa de poderes. Por acreditar ser esse
o caminho da equidade, optou-se por se orientar a partir destas referências, vivências e olhares.
Destarte, nos conteúdos disponíveis na plataforma (Re)Pensa Humanidade é prioridade
colaborar com a revitalização de práticas sem presença ou imposições hegemônicas,
ressignificando-se as ações do tempo presente que envolvem os povos originários. Outro ponto
é ampliar seu protagonismo, sobretudo, na construção de conhecimentos, superando os
determinantes de supostos primitivismo e invalidez social. A ideia é empregar sua plena
colaboração nas atividades intelectuais humanas históricas, políticas, sociais e ressemantizar a
longa e pejorativa tradição acadêmica, mostrando a ampla produção existente de autonomia e
autoria originárias sobre vivências.
Nessa transposição epistemológica, descoloniza-se práticas metodológicas e objetivas,
concretas, rompendo os silenciamentos sobre os povos originais na História gerados, por sua
vez, pela observação colonialista fria e simplista. Trafega-se, assim, na contramão dos
fundamentos alienantes do epistemicídio que lançam os seres à competitividade e à
hierarquização, tornando a guerra de poderes intrínseca à humanidade. Assim, parte-se do
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princípio de que, utilizando-se o ofício e o fazer históricos e pedagógicos para reelaborar
conhecimentos de formas afetiva, plural, transgressora e dicotômica, levando em conta as
subjetividades e as particularidade de seres e coletivos, rompe-se com a atual lógica intolerante
e individualista global que ao longo do tempo, a historiografia parece (re)produzir em
imaginários coletivos, marcando “os subordinados” e os “vencedores” como bonança.
Não se pretende apontar críticas muito severas a uma obscuridade de fatores que a
antropologia histórica do século XX encobre, a saber a História originária que, particularmente
na historiografia do Brasil, não atinge vínculos de identidade suficientes para nos aproximar à
ancestralidade e a práticas que seriam advindas dos habitantes originais, pois a narrativa de
barbárie, exotismo e incapacidade impede de serem visualizados outros aspectos desses.
Porém, deve-se assumir a insuficiência, ainda que tardiamente, com mais alteridade,
levantar questões ao silenciado e dificuldades em dar conta efetivamente das visões e
particularidades
de
sociedades
originárias.
Pesquisadores
oriundos
do
mundo
colonizador/colonialista, mesmo propondo investigações que provoquem proximidade e
reconhecimento, ainda assim não conseguem mudar o cenário mais geral – como é observado
na coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha (1992), “História dos Índios no
Brasil”, ou nos significativos trabalhos realizados por John Monteiro (1994, 2001, 2003).
Por fim, pretende-se demonstrar que – diante de produções repetitivas, brancas,
violentas, silenciosas e simplistas – investigar as obras e produções recentes de Povos
Originários se apresenta como meio de romper com a dinâmica de “dominados versus
dominadores”. Afinal, as perspectivas dos dominadores não assumem experiências abismais
do tempo atual, de pandemia, com a conclusão de que progresso e capitalismo global não se
fazem magistrais, e sim perigosos à existência.
Defende-se que o colapso do tempo presente vê as consequências de despersonalizar as
relações em dimensões dúbias da materialidade e do cosmos. O mito violento de sua origem,
as práticas do epistemicídio e a negligência aos seus resquícios no espaço comum fizeram
experimentar com angústia o distanciamento de afetos quando substituído por materialidade e
sequestro dos sonhos. Sonhos estes que serão entendidos como a pulsão para questionarmos
nossas ações naturais para suprir um desejo de ocupar o espaço e se promover a partir da
aquisição material infinita. Isso alerta para a instabilidade de atingir desejos a partir da
incompreensão de sequestro do tempo, produção e disputa. É um devir importante ressaltar
que descolonizar é colocar-se contra as diferentes formas de dominação, adequando
epistemologia à própria realidade, recuperando autoestima diante das próprias enunciações.
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NEOLIBERALISMO E INSTITUCIONALIDADE EM PERÍODO DE
REDEMOCRATIZAÇÃO NO CHILE:
OS DISCURSOS FEMINISTAS EM MENSAJE (1983-1990)
Iasmin do Prado Gomes1
Segunda onda dos feminismos
Os movimentos feministas da América Latina são múltiplos e exigem análises
específicas que nem sempre são capazes de abordar todas as complexidades vividas por
mulheres originárias, negras, quilombolas, trans, LGBTQIAP+ e com deficiência que ocupam
este território. Pesquisadoras do Sul Global chamam a atenção para o fato de que grande parte
das teorias feministas produzidas pelo Norte não contemplam as experiências de mulheres
latino-americanas, pois estudar as suas realidades implica em reconhecimento de histórias
caracterizadas por aspectos como colonialismo, racismo e imperialismo. Dessa forma, estudar
a História das Mulheres da América Latina pede a desconstrução de categorias, conceitos e
periodizações pré-estabelecidas pela ciência ocidental e a construção de metodologias próprias
que almejem romper com a colonização teórica do pensamento feminista latino-americano
(ODILA; RAGO, 2019). Um exemplo de exercício epistêmico que corrobora para com o
questionamento de estruturas coloniais é o seguinte trecho do texto de Joênia Wapichana
presente no manifesto “Feminismo para os 99%” publicado em 2019:
As relações de poder precisam ser revistas, subvertidas, transformadas - sejam elas
entre homens e mulheres, entre seres humanos de culturas e origens diferentes, entre
seres humanos e o planeta, entre os donos do capital e dos meios de produção e os que
entram com sua força de trabalho e de reprodução social, ou que trazem à humanidade
cultura e criatividade. Assim, é fundamental um olhar específico de inclusão dos
segmentos invisíveis nos espaços de poder - um olhar que abarque e seja abarcado
pelos povos indígenas. O que queremos é um convívio sem dominante e nem
dominado, com complementação e nunca exploração, cultivando relações
colaborativas coletivas, reestruturando a noção de poder e direcionando nosso
pensamento para a igualdade - política, econômica e social (WAPICHANA, 2019,
pp.2-3).
Nesta pesquisa, falaremos sobre um movimento feminista que contém as suas
particularidades e limitações: um feminismo que eclodiu em meio à ditadura militar no Chile
(1973-1990) e corresponde à segunda onda dos feminismos do país. Ressaltamos que as
divisões em ondas não são um consenso entre os estudos feministas que, assim como todo
1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
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campo de conhecimento, apresentam heterogeneidade. Geralmente, as segundas ondas dos
feminismos são datadas conforme acontecimentos estadunidenses e europeus. No entanto,
autoras latino-americanas salientam a importância de formulações específicas para o
entendimento destes movimentos em nossa região. Reivindicar as particularidades das
organizações de mulheres do Sul, não implica em descartar as colaborações do Norte para com
as suas práticas e teorias.
Convém sublinhar que pensar o feminismo a partir de diferentes ondas reforça a ideia
da existência de centros irradiadores e suas margens; é como se uma pedra tivesse
sido atirada na água, formando várias ondas. Estas vão se abrindo e apontando para a
circulação de discursos e teorias que partem de um centro produtor, sendo este, em
geral, os países considerados desenvolvidos do hemisfério norte; em seguida, dirigemse para o hemisfério sul, localização principal dos países considerados
subdesenvolvidos (PEDRO, 2001, p.3).
Historiadoras como Joana Maria Pedro (2008), têm contribuído para os estudos dos
feminismos da América do Sul no século XX. Um de seus trabalhos, investigou as relações dos
protestos de maio de 1968 desenvolvidos na França e em outras partes do mundo com as
segundas ondas dos feminismos, evidenciando quais são os seus legados para os movimentos
de mulheres do Cone Sul. Segundo Pedro (2008), essas mobilizações foram caracterizadas por
frases de efeito e palavras de ordem que denunciaram a subordinação feminina e estão presentes
em muros e ruas de países latino-americanos na contemporaneidade.
Assim como os demais movimentos, o feminismo de “Segunda Onda” produziu uma
“fraseologia” que tentava indicar, através das palavras, uma explicação para a
subordinação das mulheres. Palavras como “patriarcado”, “condição feminina”,
“relações de gênero”, “relações de sexo”, indicavam divisões, posições e disputas.
Produziu frases de efeito, numa mistura geralmente bem-humorada, mas muitas vezes
também trágica, para atrair a atenção e formular suas reivindicações, por vezes
acompanhada, também, de dramatizações (PEDRO, 2008, p.60).
Na primeira onda dos feminismos (fins do séc. XIX e início do XX), houve intervenções
em prol de direitos políticos e institucionais, enquanto a segunda (meados dos anos 1960)
incorporou consideravelmente temáticas sobre a sexualidade. Ao contrário dos feminismos da
primeira onda que, no geral, contaram com mulheres letradas da classe média, os da segunda
se articularam com diversos grupos que também lutavam contra as opressões. Porém, é digno
de nota que nos Estados Unidos, os movimentos negros consistiram em inspiração para os de
libertação das mulheres nas duas divisões e ambos se radicalizaram e potencializaram as suas
pautas com o decorrer de suas atuações (BARRANCOS, 2008; DAVIS, 2016; PEDRO, 2008,
p. 67). A intelectual Angela Davis afirmou que “Quando a verdadeira história da causa
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antiescravagista for escrita, as mulheres ocuparão um vasto espaço em suas páginas; porque a
causa das pessoas escravas tem sido particularmente uma causa das mulheres.”2
É importante enfatizarmos que cada força política e social agiu de acordo com o
contexto histórico e as resistências e as repressões desencadeadas em seu espaço-tempo. As
suas ações foram determinadas pela materialidade, o que nos possibilita induzir que
movimentos com reivindicações semelhantes poderiam agir de maneira distinta conforme a sua
localidade e temporalidade. Por isso, ressaltamos que as sujeitas de nossa investigação
englobam um feminismo muito particular e complexo que possui semelhanças com os
feminismos das segundas ondas e as reivindicações feministas chilenas de projeção nacional,
mas também diferenças e contradições.
Algumas semelhanças são a compreensão de que o pessoal é político e a preocupação
em tecer epistemologias feministas. A politização do espaço privado se manifestou nas
produções teóricas das sujeitas que compunham estes movimentos, algo que é notável nas
publicações materializadas em Mensaje. Além disso, temos outra característica em comum
entre o nosso objeto de estudo e grande parte dos movimentos de mulheres na América do Sul:
as manifestações contra as ditaduras militares. É interessante o quanto as organizações de
mulheres desse período articularam áreas como feminismo e democracia, denunciando as
violações aos direitos humanos protagonizadas pelo Estado.
Já uma diferença entre o feminismo materializado em nossa fonte e as segundas ondas
dos feminismos na América Latina é o fato dele não ter explorado de forma significativa
questões que englobam a sexualidade feminina. Por mais que tenha articulado de maneira
instigante as opressões impostas às mulheres nos campos público e privado, as produções
feministas em Mensaje não deram ênfase a assuntos como o divórcio, a pílula anticoncepcional
e o aborto. Acreditamos que tal fato se deu porque o impresso em destaque é católico e os
seguintes temas eram caros para a hierarquia eclesiástica e a sociedade chilena historicamente
caracterizada pelo conservadorismo. Vale ressaltar que muitas das agentes que atuaram em
organizações feministas eram religiosas e encontraram na tutela da Igreja Católica ferramentas
de sobrevivência em um cenário de intensa perseguição política aos indivíduos contrários aos
ideais e ações protagonizados pelo estado ditatorial.
Também destacamos que apesar das inúmeras intersecções, os movimentos feministas
da América do Sul possuem marcos diversos que, assim como as suas ondas, não contém
2
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Boitempo, 1. ed., 2016, p.49.
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absoluta concordância. No Brasil, os anos de 1972 e 1979 foram marcantes porque dataram a
construção dos primeiros grupos de consciência (onde eram discutidas as realidades de
mulheres) em São Paulo e Rio de Janeiro e a promulgação da anistia, respectivamente. Na
Argentina da década de 1970, ocorreram a formação de várias organizações feministas. Já na
Bolívia, a consolidação de grupos de consciência se deu apenas em fins da década de 1980. O
país viveu ditaduras que dificultaram a formação de encontros e discussões em momentos
anteriores. No Paraguai, as primeiras organizações de mulheres surgiram no início da década
de 1980 perante a ditadura de Alfredo Strossner. Enquanto no Uruguai, alguns direitos
feministas foram conquistados antes da década de 1960 (PEDRO, 2001). E no Chile? Como a
eclosão feminista se manifestou? Iremos explorar a questão no próximo tópico.
Movimentos feministas durante a ditadura militar chilena
O golpe de 11 de setembro de 1973 contra Salvador Allende possibilitou mecanismos
para que organizações feministas chilenas surgissem reivindicando democracia e autonomia
para as mulheres nos âmbitos público e privado. O movimento feminista chileno eclodiu, dando
fim ao que autoras nomearam como “Silêncio Feminista”. Para Julieta Kirkwood (1982), a
precursora da segunda onda do feminismo chileno, este “silêncio” teve início após a conquista
do voto feminino em 19493 quando houve o declínio da participação feminina em organizações
sociais e políticas e findou-se em 1973 com a instauração da ditadura militar.
Os feminismos no Chile foram de grande importância para a reivindicação pela
democracia e participação feminina em espaços públicos, sobretudo em cargos e partidos
políticos. Atuou de maneira destacável na busca por desaparecidos e na luta internacionalista
do exílio, caracterizando-se por forte teor político porque a sua própria eclosão se deu em
resposta ao contexto de repressão e autoritarismo. Segundo Sepúlveda (2013), “No es
aventurado decir que sus prácticas de resistencia están en la base del proceso de redemocratización vivido en el país.”4
Por isso, devemos ter em mente que geralmente a segunda onda dos movimentos
feministas no Chile é dividida em três fases: nos anos iniciais enfatizou a defesa da vida e a luta
3
Vale lembrar que o voto feminino foi conquistado em dezembro de 1948 e oficialmente praticado em 1949. No
entanto, se estendeu apenas às mulheres alfabetizadas. Somente em 1970, foi estipulado o voto para todas as
mulheres chilenas (BARRANCOS, 2022, p.168).
4
SEPÚLVEDA, Vanessa. Democracia en el país y en la casa. Reflexión y activismo feminista durante la ditadura
de Pinochet (1973-1990). Cuadernos Kóre. Revista de historia y pensamiento de género Nº 8 (Primavera-Verano
2013), p. 98. Disponível em www.uc3m.es/cuadernoskore.
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36.
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por justiça para com os indivíduos que tiveram direitos humanos violados pela ditadura militar.
Entre fins da década de 1970 e início da de 1980, construiu os primeiros grupos feministas e
encontros de mulheres da América Latina e do Caribe, etapa caracterizada por início de
problematizações exclusivamente femininas. Já entre 1982 e 1986, realizou forte mobilização
contra a repressão do Estado, ampliou o contato com o feminismo latino-americano e contou
com grandes coordenadoras de grupos de mulheres (WOITOWICZP; PEDRO, 2009). No fim
da década, a preocupação com a inserção feminina na democracia se fez presente, ambas as
fases são perceptíveis nas trajetórias das militantes que atuaram em Mensaje, sendo as duas
últimas mais explícitas no recorte temporal que contempla esta pesquisa.
Muitas das sujeitas que foram às ruas reivindicar democracia não se declararam como
feministas nos anos iniciais das mobilizações contra a ditadura militar. No entanto, a partir de
seu desejo de seguir o modelo cultural de boas mães e esposas historicamente fomentado pela
sociedade chilena, formaram agrupações de familiares e vítimas da repressão (exilados,
perseguidos, torturados, etc) e grupos tutelados pela Igreja Católica. Posteriormente, estas
organizações discutiram sobre a condição da mulher, abordando temas como a sexualidade e
autoconsciência. Assim, agentes que inicialmente se mobilizaram contra as violações aos
direitos humanos se reconheceram enquanto feministas e entenderam que as opressões do
gênero e da política estavam interligadas (VALDÉS, 1987, págs. 13-14).
A partir da década de 1980, houve uma maior rearticulação das forças sociais devido ao
exercício de abertura democrática em curso no país. Uma das bases dessas reivindicações
populares foram grupos de mulheres como a Agrupación de Mujeres Democráticas e o
CODEM (Comisión de Derechos de la Mujer). Em 1983, o processo de explosão feminista foi
itensificado, assim como a participação de partidos políticos na esfera pública chilena. Duas
instituições de mulheres se destacaram neste cenário: o MEMCH '83 (Movimiento pro
Emancipación de la Mujer Chilena) que englobou a maior parte das organizações sociais
femininas de oposição ao autoritarismo e o grupo Mujeres por la Vida que contemplou amplos
setores políticos, partidários, independentes e feministas de oposição a Pinochet (VALDÉS,
1987).
Democracia en el país y en la casa
O ano de 1983 consistiu em um momento simbólico para os feminismos chilenos tanto
do ponto de vista prático quanto do teórico. Neste momento, o slogan Democracia en el país
y en la casa se fez presente entre os movimentos liderados por mulheres que denunciaram as
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36.
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repressões desenvolvidas pelo regime de exceção e o patriarcado que estabelecia papéis de
gênero nas esferas públicas e privadas (KIRKWOOD, 1982; SEPÚLVEDA, 2013). A força
mobilizadora destas organizações mostrou que o pessoal é político e que, ao contrário do que
muitos pensavam, feminismo e política não eram áreas dissociáveis. Além disso, chamou a
atenção para questões da esfera privada que envolviam a violência doméstica e o trabalho de
reprodução social, o que não agradou setores conservadores da sociedade chilena.
O movimento feminista irrompeu com força no movimento de mulheres contra a
ditadura, que continuava sendo considerada uma contradição secundária.
“Democracia no país e em casa” foi o lema que sintetizou nossas reivindicações e
encontrou sentido em muitas mulheres que trabalhavam sem remuneração e
reconhecimento no âmbito doméstico; em algumas que militavam em organizações
de estrutura patriarcal; em outras que viviam uma realidade oculta no âmbito privado:
a violência doméstica – para mencionar apenas uma (CONTRERAS, 2017, p. 224).
De acordo com Teresa Valdés (1987), as mulheres chilenas vivenciaram uma dupla
opressão: a dominação de gênero resultante da estrutura patriarcal e a dominação política
imposta pela ditadura. Ao levarmos em consideração o modelo econômico e ideológico
defendido pelo autoritarismo, a situação se agravou porque foram as mulheres o grupo mais
afetado pelas medidas neoliberais e conservadoras de Augusto Pinochet. Dessa forma, a carestia
dos alimentos e o desemprego gerados pela crise econômica de 1982 também eram pautas
femininas. É digno de nota que as agentes de classes menos abastadas necessitavam sustentar
as suas famílias e sofriam com o mercado de trabalho que impôs ao gênero feminino, salários
baixos e condições precárias de sobrevivência.
A sociedade chilena da época estava inserida em uma tradição patriarcal latinoamericana. O modelo de família defendido era funcional para o sistema capitalista vigente. A
mulher era o indivíduo responsável pela reprodução cotidiana e generacional da força de
trabalho e da socialização, aspecto muito criticado pelo slogan Democracia en el país y en la
casa. Assim, as mulheres tiveram as suas experiências destinadas ao espaço privado enquanto
os homens ocuparam o público e foram encarregados de desenvolver ações consideradas
produtivas para a nação chilena. A dominação materializada nas ações do Estado se conectou
com a dominação de gênero existente nas relações pessoais. Os salários precários impostos às
mulheres e a desvalorização das atividades de reprodução social, assim como a sua não
remuneração também foram concebidos como formas de dominação de gênero (KIRKWOOD,
1982; SEPÚLVEDA, 2013; VALDÉS, 1987).
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A teoria de reprodução social muito discutida por feministas marxistas se relaciona
diretamente com as denúncias elaboradas pelas feministas chilenas. A teoria defende que o
capitalismo em conjunto com toda a sua estrutura de exploração, fomenta o sexismo,
acentuando a subordinação das mulheres. A separação da produção de pessoas da obtenção do
lucro imposta pelo sistema, outorgou ao gênero feminino um trabalho não remunerado. Sem o
trabalho de reprodução social desenvolvido por mulheres, sobretudo negras, indígenas e
periféricas, não existe vida e força de trabalho. Assim, a organização da reprodução social tem
a opressão de gênero como uma de suas bases e se beneficia da dicotomia público-privado para
gerar lucros (ARRUZZA, BHATTACHARYA, FRASER, org. 2019, p.37-38).
O trabalho doméstico, afetivo, de cuidados, estipulado como gratuito e obrigatório, é
a chave da produtividade do salário, sua parte oculta, sua dobra secreta. Por que oculta
e secreta? Porque é próprio do capitalismo explorar esse trabalho através de sua
divisão sexual, o que permite hierarquizar a relação entre sexos (ainda mais em relação
aos corpos feminizados e subordinar o trabalho grátis, enquanto ele é desvalorizado
politicamente (GAGO, 2020, p. 41).
Dora Barrancos (2008) argumentou em Maestras, librepensadoras y feministas en la
Argentina (1900-1912) que a historiografia demorou a reconhecer a participação feminina em
esferas que não abrangem a vida doméstica. Afinal, nas décadas finais do século XIX ocorreu
uma maior separação entre as esferas pública e privada, sendo destinadas às mulheres as tarefas
reprodutivas da vida humana. Para a autora, esta divisão e a reformulação dos códigos civis
latino-americanos que expressaram a institucionalidade republicana contribuíram para que as
mulheres fossem privadas de seus direitos.
Uma breve história de Mensaje
Mensaje é uma revista católica fundada pelo jesuíta Padre Hurtado em 1951 na cidade
de Santiago, capital do Chile. O impresso circula no país na atualidade e até a data de escrita
deste artigo publicou 714 edições. Entre os seus propósitos estão retratar para o público as
realidades nacional e internacional de maneira crítica e cristã, usando como ferramenta o
humanismo cristão - uma alternativa ao comunismo ateísta e ao capitalismo explorador5. Vale
ressaltar que teve relações com a Vicaría de la Solidaridad (1973-1992), instituição criada pela
5
Informações disponíveis no site oficial da revista https://www.mensaje.cl/sobre-nosotros/
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36.
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Igreja Católica chilena que se tornou um grande instrumento de denúncia aos direitos humanos
violados pelo autoritarismo6.
Ao longo de sua história, contou com um corpo editorial múltiplo composto por
integrantes da Companhia de Jesus7 e por profissionais de áreas como economia, política,
literatura, história e afins. Perante o recorte temporal usado neste trabalho (1983-1990), sofreu
censura da ditadura militar, tendo edições extraviadas nos correios, perdas de patrocínios e
páginas em branco por causa do seu conteúdo contrário ao governo. Além disso, um de seus
diretores, Renato Hevia, foi preso em 1985 sob a acusação do Ministro do Interior de Augusto
Pinochet devido a um editorial que questionou as violações aos direitos humanos cometidas
pelo estado ditatorial.
Discursos feministas em Mensaje
Uma de nossas hipóteses é que Mensaje incorporou produções feministas em suas
edições devido às manifestações populares que ocorreram no Chile em 1983. A crise econômica
de 1982 rompeu com a ideia de milagre econômico imposto pela ditadura e corroborou para
que setores que anteriormente haviam apoiado o golpe contra Salvador Allende, se somassem
às mobilizações contra o autoritarismo do Estado. Os movimentos feministas alcançaram
atuação de destaque no cenário nacional, não é por acaso que o slogan Democracia en el país
y en la casa assumiu muita força neste período. Além disso, a Igreja Católica sofreu pressões
internas e externas no que tange às suas ações contra a violação aos direitos humanos cometidas
pelos militares. A entidade e seus diversos segmentos se viram obrigados a se aproximar de
movimentos sociais e denunciar as formas de perseguição política instauradas pelo governo de
Augusto Pinochet (CRUZ, 2015).
É interessante o quanto o conteúdo das produções feministas em Mensaje
acompanharam as transformações políticas do país, moldando-se conforme as demandas da
conjuntura nacional e internacional. A partir de 1988, ano da realização do plebiscito que optou
pelo fim da ditadura militar com 55,99% de um total de 7.435.913 votos (Memoria Chilena),
os discursos feministas materializados em nossa fonte expressaram um tom de unidade não
apenas entre os movimentos de mulheres, mas também entre toda a sociedade chilena. Observa-
6
La Vicaría de la Solidaridad (1973-1992). Disponível no site Memoria Chilena
http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-3547.html.
7
A Companhia de Jesus foi uma ordem religiosa fundada em 1539 por São Inácio de Loyola, se caracterizou pela
obediência ao papado e por rígida disciplina espiritual (Memoria Chilena).
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se um discurso que prezou pela institucionalidade e conciliação com o neoliberalismo
fomentado pelo próprio regime de exceção.
Nelly Richard (2001), identificou as problemáticas dos discursos feministas chilenos
que marcaram o período de transição democrática, iniciado depois do plebiscito de 1988 e
importante sinalizador do processo de abertura para a democracia. Os governos da
Concertación de Partidos por la Democracia (1988-2009)8 deram continuidade às políticas
neoliberais impostas pela ditadura de Augusto Pinochet que conciliaram repressão e
modernização. Para a autora, a política de transição adotou o consenso como forma de
neutralizar forças que anteriormente se encontravam em disputa. Um organismo que materializa
muito bem o discurso conciliador presente nos movimentos feministas é a Concertación de
Mujeres por la Democracia:
Nesse ciclo de resistência, surgiram órgãos específicos de defesa dos direitos humanos
e o Movimento Concertación das Mulheres pela Democracia que, por um lado, serviu
como instrumento unificador e, por outro, criou resistências por sua adesão à frente
de centro-esquerda Concertación. A agitação das mulheres foi decisiva no referendo
em que triunfou o “Não” - em outubro de 1988 - que impediu Pinochet de prolongar
a ditadura por mais uma década. O slogan fundamental que uniu a maioria dos
movimentos - para além de sua disparidade - era “Democracia no país e em casa”
(BARRANCOS, 2022, p. 170).
Dessa forma, consenso, memória e mercado foram a fórmula instrumentalizadora desta
“democracia da transição” que moldou discursos e silenciou violências cometidas pelos
militares. As negociações geradas pela democracia moderada contribuíram para a fragmentação
e dispersão dos movimentos de mulheres que se radicalizaram nos anos de autoritarismo.
Afinal, os mecanismos de transição fizeram muitas delas abandonarem a dinâmica de atuação
em movimentos sociais impulsionadas pela promessa de exercer funções estatais que lhes
possibilitasse disseminar a consciência de gênero em redes institucionais. A ideia era promover
uma maior atuação do gênero feminino em cargos de representação pública da sociedade.
No Chile, os anos 80 são considerados como o momento do surgimento de grupos
importantes, mas ainda temerosos da ditadura de Pinochet. De acordo com Nelly
Richard (2001), um feminismo dividido entre o autônomo e o socialista. Argumenta
ela que a “transição” chilena significou fragmentação, uma dispersão dos movimentos
8
A Concertación de Partidos por la Democracia tinha como objetivo lançar uma candidatura única para as
eleições presidenciais de 14 de dezembro de 1989. No caso, Patricio Aylwin, eleito com 55,17% dos votos. Era
composta pelo Partido Democrata Cristão, o Partido Socialista, o Partido pela Democracia e o Partido Radical
Social Democrata. Posteriormente, a Concertación elegeu outros três governos: Eduardo Frei (1994-2000),
Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010) (Memoria Chilena). Ainda nos dias atuais, a coalizão
é criticada por pactuar com as políticas de conciliação e fomentar o neoliberalismo instaurado pela ditadura militar
(LIMÓN, 2021).
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sociais que exerceram grande força político-contestadora nos tempos da luta contra a
ditadura (PEDRO, 2001, p. 5).
A reivindicação da unidade em prol do processo de abertura democrática esteve presente
no texto Demandas de las mujeres a la democracia de Alicia Frohmann, publicado em Mensaje
na sessão Hechos y comentarios de agosto de 1988. O artigo, mencionou que 22 coletivos e
organizações feministas apresentaram em julho daquele ano uma proposta que prezou a união
entre todas as mulheres chilenas. Além disso, enfatizou que estas sujeitas deveriam manifestar
quais são as suas demandas frente a democracia e a necessidade de incorporá-las no projeto
político aspirado pela maioria da população.
Alicia Frohmann (1988), assim como outras feministas atuantes em Mensaje, defendeu
que não existe democracia sem a participação feminina em todos os âmbitos políticos e sociais
e para sustentar a sua ideia mencionou mobilizações e marcos históricos protagonizados por
mulheres. A autora salientou que a proposta feminista das instituições que se reuniram fez uso
de documentos marcantes dos movimentos de mulheres no Chile como a plataforma do
MEMCH’83 (Movimiento pro Emancipación de la Mujer Chilena) e o ofício apresentado na
Asamblea de la Civilidad em 1986. Observamos no artigo, o resgate histórico do passado das
mulheres chilenas para articulação no presente e construção de um futuro emancipador e
feminista.
Mesmo com todos os silêncios decorrentes das estruturas de poder, a importância de
valorização das mulheres enquanto trabalhadoras foi outro ponto levantado pelo documento
construído pelos coletivos e organizações feministas. Esta valorização não passava apenas pelo
plano social, mas também pelo econômico. Esta lógica reconheceu que o trabalho doméstico
deveria ser remunerado e o entendeu enquanto atividade essencial para a reprodução da vida e
força de trabalho existente na sociedade chilena.
Con este fin, se propone que el trabajo doméstico sea compartido por hombres y
mujeres; que se asegure una previsión para la dueña de casa; que se garantice el
derecho de las mujeres a un trabajo remunerado y elimine todo tipo de discriminación
en cuanto a sueldo y salario y acceso a cargos de responsabilidades y directivos
(FROHMANN, 1988, Mensaje, n◦ 371, jul., p. 342).
Os debates sobre os salários destinados às mulheres são uma das características da
economia feminista emancipatória. É uma necessidade do sistema capitalista usufruir do
trabalho não remunerado das mulheres e ordenar o salário como ferramenta de manutenção da
divisão entre o público e o privado e hierarquização entre os gêneros (GAGO, 2020). Mesmo
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com a demanda explícita por remuneração do trabalho doméstico, o texto não desenvolveu uma
crítica direta ao capitalismo explorador orquestrado pela ditadura. O que evidencia o tom
moderado existente entre as atuantes de Mensaje e solidifica a ideia de que o golpe de 11 de
setembro de 1973 não foi apenas um plano de destruição da Unidade Popular, mas também um
projeto de desarticulação dos partidos políticos, implementação da modernização
socioeconômica e despolitização do povo chileno, o que inclui o enfraquecimento das
mobilizações radicais advindas dos movimentos feministas (VALDIVIA, 2015).
No entanto, em 1986, a própria Alicia Frohmann escreveu para a sessão Libros de
Mensaje um texto chamado El trabajo doméstico remunerado. Nele, a autora desenvolveu uma
resenha crítica do livro Yo trabajo así … en casa particular de autoria de Rosalba Todaro e
Thelma Gálvez, publicado pelo Centro de Estudios de la Mujer9. A obra conta a história de
quatro trabalhadoras de casas particulares, Magdalena, Luz, Patrícia e Elcira.
Na resenha, Frohmann (1986), usou em diversos momentos o termo "trabalhadoras" ao
se referir às condições de trabalho precarizadas das protagonistas do livro e a invisibilidade que
este tipo de atividade recebe. Ela realizou uma crítica um pouco mais direta ao sistema
capitalista ao dizer que as condições de trabalho atribuídas à estas sujeitas não era um dado
natural e sim, o resultado de uma estrutura sociocultural hierarquizada que sustenta a opressão
da mulher e a dupla opressão sofrida pelas mulheres que trabalham com o serviço doméstico.
Uma comparação entre os dois textos publicados pela escritora e as demais produções da
revista, nos permite induzir que houve uma transição entre o tom adotado pelas feministas de
1986 para 1988. Ao que tudo indica, a mudança de postura é decorrente da conjuntura política
chilena que substituiu a denúncia explícita do capital pela conciliação entre amplos setores
políticos, econômicos e sociais.
Um outro texto importante para pensarmos tal questão é Una aproximación histórica:
sobre la vocación política de las mujeres de Mariana Aylwin, publicado em setembro de 1990.
O artigo é uma versão do trabalho apresentado no seminário ¿Existe la vocación política de la
mujer? realizado em Santiago, contém cinco páginas, está presente na seção intitulada Sociedad
e dividido em sete tópicos: La lucha por el voto femenino, Sorprendente retirada, Mujeres en
el Parlamento, Protagonismo en crisis de sobrevivencia, Situación legal desmedrada, Políticas
estatales hacia la Mujer e ¿Servir sin mandar?. A escolha por analisar esse artigo se deu porque
9
O Centro de Estudios de la Mujer foi criado em abril de 1984 por um grupo de pesquisadoras das áreas das
ciências sociais e econômicas. A instituição se dedica aos estudos sobre gênero e desenvolve formações,
assessorias e investigações nas áreas de Trabalho e Emprego, Cidadania e Política e Políticas Públicas. Disponível
em https://cem.cl/nosotras/.
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ele explicita muito bem a articulação entre discursos feministas, institucionalidade,
neoliberalismo e a política do consenso estipulada pela Concertación.
O escrito realizou uma análise da participação política das chilenas no mundo político
formal e as políticas estatais destinadas às mulheres ao longo dos acontecimentos históricos.
Ao desenvolver as suas ideias, apontou a dificuldade da integração feminina na vida política e
a existência de toda uma estrutura que impede o acesso feminino a este ambiente,
condicionando-lhe uma participação pública limitada. Ao defender que a vocação política tem
gênero, buscou por respostas na história recente do Chile para sustentar o seu argumento.
O texto da historiadora, também exemplifica o compromisso das feministas em Mensaje
em romper com a dicotomia público-privado e de salientar o quanto as tarefas de reprodução
social demandam que o Estado elabore iniciativas de proteção às mulheres e sua família. Ao
longo de seu escrito, por exemplo, foi destacado o quanto as leis de jardins de infância foram
praticamente elaboradas por parlamentares mulheres durante o “Silêncio Feminista” e o fato
das mulheres atuantes no Congresso, enfatizarem as suas condições de mães e esposas de forma
conservadora, assim como os próprios homens fizeram.
É interessante que o trabalho de Mariana Aylwin (1990) foi o mais completo que
encontramos em Mensaje se levarmos em consideração o resgate da luta histórica das mulheres
no Chile. O texto foi publicado em setembro de 1990 quando o seu pai, Patricio Aylwin, já
havia tomado posse como presidente da República. É notável que a sua publicação conteve
cinco páginas e esteve presente na sessão Sociedad, entre os escritos analisados neste trabalho,
está entre os que possuem um maior número de páginas. Será que o espaço recebido pela autora
no impresso consistia em forma de expressar para o público leitor de Mensaje o compromisso
do novo governo com as pautas femininas? Provavelmente, o ato foi uma maneira de explicitar
o apoio da revista ao programa político desenvolvido pela Concertación.
Outro aspecto que necessita ser considerado é que Mariana Aylwin criou em 1987 a
Concertación de Mujeres por la Democracia e paralelamente foi nomeada como vice-diretora
nacional do Departamento de la Mujer del Partido Demócrata Cristiano e secretária executiva
da Fundación para el Desarrollo y la Cultura Popular. No mesmo ano da publicação de seu
texto, assumiu o cargo de Dirección de Estudios del Ministerio Secretaría General de la
Presidencia. Os dados evidenciam que a historiadora teve participação direta e nada imparcial
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na política chilena de seu contexto e que cabe a nós investigar a intencionalidade por trás de
seu discurso10.
Vale destacar que as conexões entre feminismos, institucionalidade e neoliberalismo se
manifestaram em outras produções expressas em Mensaje durante o recorte temporal de 1983
a 1990, ao todo foram mais de 20 textos mapeados e investigados, porém os materiais aqui
mencionados foram escolhidos para compor este trabalho por acreditarmos que melhor
comportam os seus objetivos. Outro ponto a ser observado é que a própria esquerda concebia o
feminismo como subalterno e alegava que as suas reivindicações eram opressoras e radicais. O
fato foi denunciado por mulheres em nossa fonte e debatido dentro das diversas organizações
feministas daquele contexto. Às mulheres componentes de instituições de esquerda eram
destinadas tarefas domésticas, um reflexo do que a sociedade como um todo esperava do sujeito
mulher. Em Acerca del lugar de las mujeres en política ¿Una mujer presidente?, Josefina
Rosseti (1988), por exemplo, salientou que as mulheres correspondiam à metade da população
eleitoral do Chile e mesmo assim não participavam, de forma destacada, das análises políticas
do país. Ao refletir sobre a pouca expressão de lideranças femininas nos cargos públicos
destacou “¿Participar en política para servir el café?”11. Uma crítica a hierarquia de gênero
presente dentro dos partidos e outras instituições que enxergavam a participação feminina na
política como uma extensão do espaço privado.
Considerações Finais
Observa-se que o feminismo materializado em Mensaje está inserido entre as inúmeras
formulações teóricas que abrangem as segundas ondas dos feminismos latino-americanos e
apresenta similitudes com as suas principais características: o entendimento de que o pessoal é
político, o uso de frases de efeito como Democracia en el país y en la casa e a denúncia da
violação aos direitos humanos cometidas pelos militares. No entanto, contém as suas diferenças,
sendo a mais marcante, o não aprofundamento de temáticas sobre a sexualidade feminina. O
que evidencia a complexidade de nossa fonte e a multiplicidade de movimentos feministas
existentes na América Latina da década de 1980 e no próprio Chile.
10
Mariana
Aylwin
Oyarzún,
Reseñas
biográficas
parlamentarias.
Disponível
em
https://www.bcn.cl/historiapolitica/resenas_biograficas/wiki/Mariana_Aylwin_Oyarz%C3%BAn. Acesso em 20
de outubro de 2022.
11
ROSSETI, J. Acerca del lugar de las mujeres en política: ¿Una mujer presidente?, Mensaje, Santiago, n◦ 368,
Maio, 1988, p. 145.
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Reiteramos que a mulher era uma das bases de sustentação da estrutura social chilena,
reprodutora da força de trabalho e foi diretamente afetada pela crise econômica que gerou
baixos salários e carestia de itens básicos de consumo. Logo, estas questões eram caras para
elas, principalmente para as não-brancas e pobres. Somada à crise econômica, havia o grande
número de desaparecidos e perseguidos pela repressão do Estado, o que mobilizou até mesmo
sujeitas que nunca se organizaram politicamente antes, a protestarem em nome da sua família.
Porém, a exploração econômica que sustentou essa estrutura social não foi discutida de
forma profunda nos textos investigados neste trabalho. Os discursos aqui presentes adotaram
um caráter de conciliação com o neoliberalismo e a institucionalidade conforme o processo
democrático ganhou corpo, sobretudo a partir do ano de 1988. O que não significa que as
feministas atuantes em Mensaje desconheciam as realidades das sujeitas que mais sofreram com
os impactos econômicos do governo de Augusto Pinochet, mas que optaram por seguir um
caminho de negociações e concessões que interferiu diretamente em seus discursos e práticas.
Afinal, diante da conjuntura de repressão, esta pode ter sido a única forma de sobrevivência e
participação política que encontraram.
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https://www.bcn.cl/historiapolitica/resenas_biograficas/wiki/Mariana_Aylwin_Oyarz%C3%B
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Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 22-36.
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“SULEANDO” A HISTÓRIA DA AMÉRICA
Priscila Ribeiro Dorella1
Tereza M. Spyer Dulci2
Este artigo é resultado de uma parceria de longa data. Nós nos conhecemos desde 2008,
quando fizemos disciplinas juntas no Departamento de História da Universidade de São Paulo
(USP). Desde então, participamos de algumas iniciativas em conjunto, com destaque para
atuação na Diretoria da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das
Américas (ANPHLAC), gestão 2020-2022.
As reflexões que apresentaremos nas páginas a seguir são fruto da apresentação que
fizemos no “Primeiro Simpósio do Grupo de Estudos de História das Américas (GEHA)”,
intitulado “História e Estudos Decolonais/Anticoloniais em Abya Yala”, realizado no Instituto
de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), nos
dias 3 e 4 de outubro de 2022.
Neste evento tivemos a oportunidade de compartilhar com os(as) presentes um pouco
das nossas trajetórias, especialmente no que tange às experiências que vivenciamos nas nossas
respectivas universidades: Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA).
Assim, o objetivo aqui é apresentar, a partir das nossas trajetórias e de algumas
experiências, certas inquietações sobre o tema do impacto da formação acadêmica em
universidades “centrais” - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e USP - e sobre o
trabalho na área de História da América nas universidades “periféricas” em que atuamos: UFV
e UNILA.
Da UFMG a UFV (Priscila):
Realizei grande parte da minha formação acadêmica no Departamento de História da
UFMG. Fui bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
1
Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Universidade Federal
de Viçosa (UFV). Professora do Mestrado Profissional em Patrimônio, Paisagens e Cidadania.
2
Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA). Coordenadora da Especialização em Ensino de História e América Latina (EHAL) e
professora dos seguintes programas de pós-graduação: Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea
da América Latina (PPGICAL) e Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS).
Revista Espirales, Foz do Iguaçu, UNILA, ISSN 2594-9721 (eletrônico), v. 6, n. 2, 2022, p. 37-51.
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(CNPq) no Projeto “Brasiliana – Escritos e Leituras da Nação”, coordenado por Eliana Dutra,
que me apresentou um campo amplo de estudos sobre a História Intelectual. A partir dessa
experiência em que tive a chance de estudar sobre intelectuais brasileiros dos anos de 1930, fui
desenvolvendo o interesse em pensar sobre como os intelectuais brasileiros compreendiam a
América Latina. Três professores(as) foram fundamentais nesse processo. Cristina Campolina,
que me fez ver a História da América de uma forma instigante, divertida e criativa, Antônio
Mitre, que com sua inteligência e sensibilidade me fez admirar a história do pensamento
intelectual e político latino-americano e Kátia Gerab Baggio, que me ensinou de forma atenta
e crítica como realizar pesquisas na área da História da América. Segui sob a sua orientação no
bacharelado (2003), mestrado (2004-2006) e doutorado (2008-2012).
Defendi a minha monografia de bacharelado sobre as visões de intelectuais da Coleção
Brasiliana em relação aos conflitos de fronteira do Brasil no século XIX. Nesse mesmo ano de
2003, passei no mestrado na linha de História e Culturas Políticas, com o apoio da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trabalhei no mestrado sobre um
intelectual esquecido, que foi precursor dos estudos hispano-americanos no Brasil, Silvio Julio
de Albuquerque Lima (1895-1984).
Esse trabalho me ajudou a entender melhor os significados do reconhecimento
intelectual, os desafios de pensar a América Latina no Brasil e os silêncios da história. Continuei
no doutorado com a história intelectual, na mesma linha de História e Culturas Políticas, com
o apoio do Cnpq. A diferença foi que optei por estudar não mais intelectuais esquecidos, mas
sim um intelectual célebre, Octavio Paz, reconhecido com o Nobel de literatura. Encontrei nas
polêmicas políticas do poeta um caminho para compreender parte da sua trajetória. Tive a
oportunidade de fazer um estágio de doutorado na Universidade Autonóma de México
(UNAM), em 2009, sob a orientação de Álvaro Matute. Entre 2008 e 2010, fiz disciplinas de
doutorado na USP, o que me levou a criar um vínculo intelectual e afetivo, cada vez maior, com
a ANPLHAC, fundada pelas professoras Maria Ligia Prado e Maria Helena Capelato. O
resultado do meu trabalho de doutorado foi publicado pela editora Alameda, em 2013, com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Prêmio Teses
UFMG.
Paralelo a todos esses anos de formação, participei de congressos no Brasil e no exterior
e lecionei como professora substituta na UFV, na UFMG e no Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (CEFET). Em 2012, tomei posse como professora efetiva de
História das Américas, no Departamento de História da UFV. Em 2017, tive o interesse de
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conhecer melhor a história intelectual norte-americano porque passei a lecionar também
História dos Estados Unidos. Optei por fazer o meu pós-doutorado sobre Susan Sontag em
Berkeley, na Universidade da Califórnia, sob a supervisão de Richard Cándida Smith, que
transita entre as histórias intelectuais e artísticas da América Latina e dos Estados Unidos. O
seu livro Improvised Continent: Pan Americanism and Cultural Exchange (2017) é um bom
exemplo nessa direção.
Desde então, venho atuando no ensino, pesquisa e extensão na UFV que tem o orgulho
de poder enaltecer a sua história agrária construída por décadas com o apoio norte-americano.
Encontrei, inicialmente, um desafio enorme de estabelecer interlocutores porque pensava
sempre nas possibilidades dadas nos centros universitários hegemônicos do Brasil. Era como
se a minha formação me levasse ao entendimento de que o que acontecia nas universidades
periféricas não servia de material para pesquisa em História das Américas. Nem podia imaginar
como o acesso à informação poderia mudar de forma tão vertiginosa como vem acontecendo
nos últimos tempos.
Assim, comecei a achar absurdo todos esses pensamentos que tinha sobre
centro/periferia e descobri na extensão uma forma de estar na universidade. As leituras de Paulo
Freire, Fals Borda e Tim Ingold me ajudaram a ver a importância de estar na universidade, me
tornando sensível às questões sociais e aberta aos processos dialógicos de produção de
conhecimento.
Não vivi a extensão na minha graduação, para falar a verdade, nunca soube o que era e
nem como podia atuar nela, apenas que era algo menor do que o ensino e a pesquisa. Essa última
parte segue sendo vigente, pois a extensão universitária é o elemento mais desvalorizado da
universidade pública. Mas esse foi o lugar mais interessante que descobri depois de muito
tempo de universidade porque é um lugar de escuta sensível, de renunciar a certezas científicas,
de aprender fazendo com os outros e de descobrir como podemos produzir conhecimento para
vivermos em comunidade. Talvez se a pesquisa e o ensino tivessem radicalmente
comprometidos com a sociedade, a extensão poderia deixar de existir, mas ela segue sendo
fundamental para colocar em evidência a função pública da universidade.
Desse modo, realizei com os estudantes projetos de extensão no interior da Amazônia,
contei e ouvi histórias sobre a América Latina em programas de música na rádio da universidade
FM 100,7, interagi com as comunidades locais indígenas e quilombolas coordenando a Troca
de Saberes da UFV, etc. Até que em 2020 veio a pandemia e o meu reencontro com a minha
amiga Tereza Spyer me levou a uma profusão de novas experiências. Comecei a participar do
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grupo interdisciplinar “Decolonizando a América Latina e os seus espaços”, fiz parte da
diretoria da ANPHLAC, organizei dossiês sobre feminismos latino-americanos e iniciei uma
série de leituras decoloniais que me fizeram compreender os limites do meu processo de
formação e a necessidade, como diz Catherine Walsh, de aprender a desaprender para voltar a
aprender de um modo muy otro. Sim, de um modo muy otro. Não temos como voltar a
normalidade de histórias excludentes estando diante dos desafios políticos, sociais e ambientais
do nosso tempo. Silvia Rivera Cusiquanqui foi muito importante nesse sentido:
Os temas retornam, mas as disjunções e saídas são diversas; retornar-se, mas não ao
mesmo ponto. É como um movimento em espiral. A memória histórica se reativa e,
ao mesmo tempo, se reelabora e se ressignifica nas crises e nos ciclos de rebelião
posteriores. É evidente que, em uma situação colonial, o “não dito” é o que mais
significa; as palavras encobrem mais do que revelam e a linguagem simbólica toma a
cena. (CUSIQUANQUI, 2021, p. 19)
Embora não estejamos em uma “situação colonial”, é por meio do “não dito” que
encontrei a história da América Latina na UFV. A história dita na instituição é a da influência
de homens brancos, letrados e heterosexuais, que orientaram um sistema de autoridade
vinculado ao poder econômico norte-americano. Um dos efeitos dessa história é que em vez de
produzir uma ciência de ponta que sirva a comunidade no plural, produz uma ciência que se
distancia de muitas redes locais de interlocução e de saberes tradicionais.
Pensemos sobre a história da América Latina na UFV. Desde a década de 1930, a
instituição recebe um número expressivo de estudantes e professores(as) de diversos países da
América Latina que atuaram e atuam, fundamentalmente, nas áreas de ciências agrárias e
biológicas gerando transformações culturais, econômicas e sociais na cidade de Viçosa. De
acordo com o Departamento de Relações Internacionais da universidade, a maioria dos(as)
latino-americanos(as) vem nos últimos tempos da Colômbia e muitos deles(as) realizam
pesquisas com bolsas do governo brasileiro e norte-americano. Alguns chegam com famílias.
Apesar de terem se tornado o maior grupo de estrangeiros da instituição, o lugar que ocuparam
e ocupam fica na sombra da importância destinada aos norte-americanos e europeus.
Basta observar as notícias já publicadas nos jornais do passado, e agora no site da UFV.
Vale mencionar que é recorrente tanto na universidade quanto na cidade o entendimento de que
o Brasil não faz parte da América Latina e que os hispano-americanos (colombianos,
mexicanos, peruanos etc.) são mais ou menos a mesma coisa porque falam espanhol.
Interessante é observar que a forma com que os(as) estudantes latino-americanos(as) são
apresentados ocorre por meio de uma espécie de “feira de nações” em que muitos estereótipos
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de diversos países são reafirmados e muitas nuances são difíceis de serem percebidas. Como
afirma Rita Segato:
Nuestros países saben muy poco unos de otros e intercambian muy poco sus
experiencias, excepto cuando son transmitidas por el gran mercado comprador de
ideas, el Norte, o a través de representaciones autorizadas y oficiales de sus realidades,
que, muchas veces, filtran las dinámicas conflictivas internas (SEGATO, 2021, p.?).
Com vistas a compreender melhor essas relações, surgiu o projeto de extensão “Latino
Americanes como nós” (https://projetoidentidades.wixsite.com/latinoamericanes) elaborado
com dez estudantes de graduação (Nicolle Lima, Mateus Rocha, Isabela Barçante, Cindy
Guinsberg, Priyanka Dhingara, Virginnya Faltz, Maria Izabel Sousa, Davi Andrade, Mariana
Tiso e Giovanna Martins) interessados(as) em refletir sobre trajetórias de vida; em pesquisar
nos arquivos; em discutir uma bibliografia pertinente e em elaborar um conhecimento crítico
em conjunto com os(as) latino-americanos(as) que sirva a comunidade de Viçosa.
Apoiados(as) em dados institucionais e histórias orais, o intuito foi construir uma
exposição virtual em que o foco foi apresentar para o público outras narrativas possíveis sobre
a América Latina em Viçosa; valorizar a trajetória científica e familiar dos(as) estudantes e
professores(as); demonstrar que as identidades não estão vinculadas apenas as nacionalidades
e construir esteticamente um arranjo capaz de diluir certos preconceitos e desconhecimentos
sobre Nuestra América existentes na comunidade local.
Tu Dios es judío,
tu música es negra,
tu carro es japonés,
tu pizza es italiana,
tu gas es argelino,
tu café es brasileiro,
tu democracia es griega,
tus números son árabes,
tus letras son latinas.
Yo soy tu vecino.
y aún me llamas extranjero?
Eduardo Galeano,
El Cazador de Historias
Construímos uma exposição sobre a história da América Latina na UFV no contexto da
pandemia da Covid-19. Não podíamos deixar de considerar que a América Latina sofreu fortes
impactos causados pela pandemia. Tornou-se o epicentro da doença em 2020, atingindo a triste
marca de milhões de vidas perdidas. A criação de uma exposição virtual foi uma iniciativa
inovadora que buscou contribuir com a construção de um futuro plural, democrático e
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participativo. A exposição virtual “LatinoAmericanes como nós” propõe um canal de
interlocução com toda a comunidade para conhecer histórias e contribuir para modificar o jeito
de ver a América Latina. Apresentamos programas de rádio, documentários, documentos de
arquivos, manifestações artísticas, artigos, etc. Segundo o Museu da Pessoa, o contato com
histórias de vida pode contribuir com o combate à intolerância ao modificar formas de pensar
e agir. E esse trabalho mudou de alguma forma todos que se envolveram com o projeto. A
estudante de História, Giovana Martins Silva, escreveu no site do projeto que:
A experiência que tenho vivido em nosso Projeto de Extensão, desde o grupo de
estudos, neste momento em que temos que pensar em outras formas de interação e
reinventar o contato com o outro, tem me levado constantemente a ressignificar os
nossos instrumentos e os lugares. Lugares na nossa América Latina que se distanciam
não só territorialmente, mas simbolicamente, e da mesma forma, se aproximam.
Pensar na minha experiência no Projeto de Extensão me leva para diversos momentos,
me lembra de diversos rostos, vozes, referências... E me voltar para isso me faz
perceber que foram diversos os significados que eu atribuí ao projeto, foram diversas
as minhas posições diante do grupo, foram diversas as sensações, e em meio a tudo
isso eu posso ver o que aprendi com cada um de vocês, com os estudantes latinoamericanes, e aprendi muito sobre mim também. Nosso projeto só faz sentido porque
está sendo pensado com respeito a todos os integrantes e aos latino-americanes,
porque todos, de maneiras distintas, estão enfrentando muitas barreiras. Barreiras
muito difíceis ou impossíveis de serem transpostas, e nós, como historiadores e
professores em formação, temos que refletir incansavelmente sobre estas barreiras e
agir sobre elas. E é gratificante compor este projeto porque é isto que viemos e vimos
tentando fazer!
Esta iniciativa abre uma janela para a História da América Latina na comunidade de
Viçosa. Vamos seguir verificando o número de participantes e buscando desenvolver, ao longo
do processo, estratégias para ampliar a participação pública, com o apoio do Departamento de
História e do setor de informática da UFV. Com essas histórias compartilhadas percebemos que
apesar das memórias e dos passados não seguirem necessariamente um caminho comum,
observamos que os(as) estudantes de outros países da América Latina e as pessoas da cidade de
Viçosa envolvidas no projeto se sentiram parte da mesma comunidade. O retorno mais
interessante desse trabalho veio com o “Manifesto dos estudantes estrangeiros da América
Latina”:
Manifestación de voluntad para la Creación de una Asociación de Estudiantes Latinoamericanos en ViçosaBrasil �
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Nosotros, los estudiantes extranjeros de América Latina en Viçosa MG - Brasil, reconocemos el valor que tiene
estudiar en la Universidad Federal de Viçosa y sabemos el papel transformador que esta experiencia académica
tiene para nuestras vidas. Entendemos también que es una gran oportunidad estar aquí y que tuvimos que vencer
muchas dificultades para lograrlo. Por tanto, afirmamos la importancia de que todos los que emprendimos este
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proyecto de vida podamos terminarlo de forma satisfactoria y de que más estudiantes puedan tener esta
oportunidad.
Los estudiantes latinoamericanos somos la mayoría (58%) del total de estudiantes extranjeros de la Universidad
Federal de Viçosa (UFV). Según la Dirección de Relaciones Internacionales (DRI) de la UFV, para el año 2019
se reportó que existían 186 estudiantes latinoamericanos, siendo 104 colombianos, 23 peruanos, 8 mexicanos, 8
ecuatorianos, 6 chilenos, 6 bolivianos, 5 paraguayos, 5 costarricenses, 5 venezolanos, 4 argentinos, 3 panameños,
2 cubanos, 2 haitianos, 2 hondureños, 2 uruguayos y 1 nicaragüense. Nuestra llegada y permanencia en Viçosa
implica un movimiento económico para la ciudad y un intercambio cultural que permite su internacionalización y
la de la UFV.
Sin embargo, nuestra llegada y permanencia no siempre es fácil y exitosa. Algunos desafíos comunes deben ser
enfrentados, tales como: encontrar un lugar para vivir, buscar recursos económicos cuando no se cuenta con una
beca, resolver procedimientos burocráticos ante la UFV y de legalidad de la estadía en Brasil ante la Policía
Federal, acceso a servicios de salud y asesoría jurídica en caso de violación a los derechos fundamentales, entre
otros.
Existen también otras complicaciones que han perturbado el bienestar de algunos estudiantes, como la falta de
información sobre la prestación de servicios de salud, apoyo emocional y psicológico y de asesoría jurídica en
caso de violación a los derechos fundamentales, tales como abuso laboral o sexual. Frecuentemente estos desafíos
no son compartidos y expuestos por los estudiantes afectados, colocando en riesgo su bienestar y permanencia en
la UFV y en Brasil. Estas vicisitudes podrían ser aminoradas para los estudiantes extranjeros, por medio de la
consolidación de una red de apoyo.
Por otro lado, nuestras experiencias también nos muestran la importancia y el gozo de estar juntos, de compartir
momentos de diversión y triunfos, tanto académicos como personales. Varios han sido los eventos culturales,
académicos, políticos, deportivos y fiestas organizadas por estudiantes latinoamericanos en Viçosa, en los cuales
se ha contado con una gran participación de estudiantes, profesores y de la comunidad en general. Esto nos muestra
que, aun dentro de nuestra diversidad compartimos elementos culturales que nos unen. Por eso consideramos que
fortalecer de forma colectiva nuestras expresiones culturales, artísticas y sociales potencializa nuestra experiencia
académica en la UFV.
Nosotros, los estudiantes extranjeros latinoamericanos, nos hemos organizado de forma espontánea y solidaria
para solucionar algunas de las dificultades mencionadas, así como para satisfacer nuestras necesidades de
expresión. Sin embargo, consideramos importante formalizar esta organización para buscar soluciones que
atiendan a más estudiantes y que generen espacios para fortalecer el intercambio cultural. Para alcanzar este
objetivo planteamos la creación de una Asociación de Estudiantes como forma de caminar para una solidaridad
organizada.
Una asociación es “un grupo de personas con una finalidad común, que persigue la defensa de determinados
intereses, sin tener el lucro como objetivo”, según la ley no 10.406/2002, Art. 53, del Código Civil de Brasil. La
construcción de una asociación permitirá dar un respaldo jurídico a nuestras acciones y requerimientos, captar y
administrar recursos a través de la formulación de proyectos y tener una mayor representatividad ante la UFV.
Proponemos que esta asociación podría comenzar trabajando en seis líneas de acción, o ejes temáticos, de acuerdo
con las motivaciones expuestas: intercambio cultural, bienestar social y emocional, trámites burocráticos,
acogimiento de nuevos estudiantes, asesoría jurídica e intercambios académicos.
Por las razones mencionadas, los estudiantes extranjeros latinoamericanos en Viçosa manifestamos de manera
libre y consciente nuestra voluntad de asociarnos.
En Viçosa, MG, a los diez días del mes de febrero del año 2022, las siguientes personas que manifestaron su
voluntad en asociarse:
Byron Javier Jimenez Fuentes
Cristian Mauricio Vega Cuichán
Deysy Yuliana Henao Montoya
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Elizabeth Regina Alfaro Espinoza
Erika Tatiana Cifuentes Vargas
Fernando Ariel Colque
Giuliana Shelly Lizana Flores
Gloria Milena Rojas Plazas
Javier Hernán Falconí Heredia
Jose Jahir Morales Murillo
Juan Anderson Ruiz
Juan Sebastián Restrepo González
Lucas David Pedroza Camacho
Luis Gonzalo Salinas Jimenez
Nancy Aidé Cardona Casas
Naydu Shirley Rojas Higuera
Rodolfo Mauricio Castillo Velasquez
Roger Ivan Valderrama Londono
Desse modo, no contexto de pandemia, que exigiu de todos(as) uma dramática
readaptação e a necessidade de repensarmos o lugar que ocupamos na sociedade, tivemos a
ideia de pesquisar sobre as identidades latino-americanas em Viçosa com os(as) próprios(as)
estudantes latino-americanos(as) no intuito de transformar a compreensão sobre a universidade,
dando visibilidade a esse aspecto histórico deixado de lado na instituição e na cidade. Por fim,
descobri com essa experiência um outro modo de fazer universidade que me permitiu
(re)conhecer os outros (des)conhecidos em nós.
QR code da exposição - Latinoamericanes como nós - na UFV
Da USP à UNILA (Tereza):
Embora eu seja originalmente de Belo Horizonte e tenha estudado na UFMG (no colégio
Centro Pedagógico e no Colégio Técnico), fiz minha formação acadêmica na USP, isto é,
graduação, mestrado e doutorado em História (2011-2013). Na graduação tive a grata
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oportunidade de ser bolsista do Programa de Educação Tutorial, PET-História USP, criado em
1995 por István Jancsó. Depois que o professor István faleceu, o tutor do programa foi Pedro
Puntoni, da área de História do Brasil Colônia. Com Pedro tive a oportunidade de desenvolver
uma pesquisa sobre o Brasil Holandês e participei de muitas atividades de formação do PET
que me marcaram muito, além de ter convivido com colegas que hoje são grandes amigos(as).
Já o mestrado e doutorado em História Social foi realizado na área de História da
América, sob orientação de Maria Ligia Coelho Prado, ambos com bolsa da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Nesse período, além de conviver com
colegas da área de América, incluindo também orientandos(as) de Maria Helena Rolim
Capelato, que hoje são amigos(as), tive a oportunidade de participar das edições da ANPHLAC
e de outros eventos da área no Brasil e no exterior.
E embora estes anos uspianos tenham sido muito profícuos, de enorme aprendizado,
minha formação acadêmica foi pautada pelos temas, teorias e metodologias mais “clássicas” do
campo da História, particularmente de corte marxista. Uma exceção, que recordo como algo
que teve um impacto grande, foram os estudos pós-coloniais e subalternos, introduzidos por
Maria Lígia e Maria Helena, nos quais destacavam-se mais os elementos interseccionais, isto
é, o cruzamento entre os recortes de classe, raça e gênero.
Mas as teorias, metodologias e epistemologias contra-hegemônicas só fizeram parte de
fato da minha vida a partir do momento em que entrei na UNILA, em 2011. Vale destacar que
estes 12 anos de UNILA têm sido maravilhosos, ainda que muito exaustivos, pois construir uma
nova universidade é um empreendimento que exige um enorme comprometimento de todos(as).
E aqui aproveito para sintetizar brevemente o contexto em que esta universidade foi criada.
Desde os anos 90, o Brasil tem intensificado a sua presença no continente,
especialmente na América do Sul, através do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Este
bloco regional procurou inicialmente integrar os países do Cone Sul e mais tarde incorporou
outros países sul-americanos. Com o MERCOSUL, houve o aprofundamento das relações
culturais entre os países membros, especialmente através da educação, a cargo do Setor
Educativo do Mercosul (SEM), espaço de coordenação das políticas educativas dos países do
bloco (DULCI; MALHEIROS, 2021). Este organismo formulou um projeto denominado
Universidade do Mercosul que, embora tenha sido aprovado pelos países membros, não foi
ratificado pelas suas respectivas legislaturas. Esta proposta foi finalmente levada a cabo pelo
Brasil, que transformou a ideia original de uma universidade dos países do MERCOSUL no
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projeto de uma universidade federal brasileira com vocação internacional, orientada para a
integração dos países da América Latina (MARTINS, 2010).
Criada em 2010, a UNILA foi vista como um importante vetor de mudança do
isolamento histórico do Brasil em relação aos demais países da região. Cumpre ressaltar que
essa instituição é resultado da política externa do governo Lula (2003-2010), que procurou
expandir a inserção internacional do Brasil através da cooperação e integração regional. A
internacionalização do ensino superior foi uma das estratégias desta política, que defendia que
o Brasil deveria ser um porta-voz dos interesses dos países em desenvolvimento, bem como
atuar como promotor do desenvolvimento social em países com afinidades históricas e culturais
com o Brasil, tais como os demais países da América Latina, do Caribe e de língua portuguesa
(CARVALHO, ROSEVICS, 2013; DULCI, 2016).
Além disso, o processo de criação da UNILA foi praticamente concomitante com a
fundação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUR). Sob a perspectiva de “integrar
para desenvolver”, a cooperação internacional através da educação tornou-se uma orientação
estratégica da política externa brasileira. Esta instrumentalização da educação como estratégia
de inserção internacional, diretamente relacionada com a expansão dos temas e atores da
política externa brasileira, deu protagonismo ao Ministério da Educação. Assim, a UNILA,
juntamente com a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), Universidade da Integração Amazônica (UNIAM) e Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS), faz parte das chamadas universidades “temáticas” ou de “integração”,
destinadas à integração regional, especialmente no marco da Cooperação Sul-Sul (DULCI,
2016).
Estas universidades foram concebidas sob os princípios da diplomacia de solidariedade,
cooperação e integração, com vista a alianças estratégicas com países histórica e culturalmente
próximos do Brasil. Os seus projetos institucionais, especialmente os da UNILA e da UNILAB,
procuraram ultrapassar formas anteriores de cooperação internacional no domínio da educação,
que funcionavam unilateralmente e a partir de uma perspectiva eurocêntrica. Além disso,
buscaram ser contra-hegemônicos, empenhados na integração regional para além do aspecto
econômico, atribuindo um valor especial aos aspectos políticos, sociais e culturais (RIBEIRO,
2015; DULCI, 2016).
Um dos objetivos da UNILA é promover o desenvolvimento e a cooperação com base
no conhecimento partilhado e na formação de pessoal qualificado para a região. Consistente
com a política de expansão e internalização do ensino superior brasileiro, a universidade está
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estrategicamente localizada em Foz do Iguaçu, na região da Tríplice Fronteira (Argentina,
Brasil e Paraguai). Para além da posição geográfica, foram consideradas a formação histórica
da cidade, o seu carácter multiétnico e a coexistência trinacional (COMISSÃO DE
IMPLANTAÇÃO DA UNILA, 2009).
O projeto da UNILA visava criar uma universidade nova e mais democrática, baseada
em três pilares: valorização do bilinguismo, da interdisciplinaridade e do multiculturalismo.
Ainda de acordo com o projeto original, 50% dos(as) estudantes e professores(as) deveriam ser
do Brasil e 50% de outros países da América Latina. Os fundamentos teóricos dessa proposta
basearam-se principalmente em epistemologias não eurocêntricas, tais como a teoria da
dependência, a análise do sistema-mundo, o marxismo contemporâneo e os estudos póscoloniais e decoloniais (COMISSÃO DE IMPLANTAÇÃO DA UNILA, 2009; DULCI,
2016).
Este tecido intelectual, político e epistêmico é amplamente representado por
pensadores(as) latino-americanos(as) e caribenhos(as), cujas obras influenciaram o projeto
desta universidade, também destinada a combater as diferentes formas de dominação: cultural,
linguística, científica, filosófica, política, econômica etc. Neste sentido, a UNILA foi
constituída como um espaço privilegiado para a construção de conhecimento autônomo,
coletivo, independente e com o aporte de epistemologias subalternas, para que, “a partir de
baixo” e através da integração cultural e da cooperação solidária entre os países da região,
pudesse combater a desigualdade e a opressão (COMISSÃO DE IMPLANTAÇÃO DA
UNILA, 2009; DULCI, 2016).
Um dos espaços institucionais que mais levou a frente esta proposta foi o Programa de
Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL), particularmente
a partir da atuação dos(as) docentes(as) e discentes(as) da Linha de Pesquisa “Cultura,
colonialidade/decolonialidade e movimentos sociais”. Esta linha busca “uma reflexão em torno
da integração ‘desde abaixo’, no âmbito dos movimentos sociais, da cultura e da
interculturalidade crítica e descolonial”. Além disso, um de seus preceitos é que:
(...) a perspectiva descolonial - como epistemologia em contínua construção - constitui
uma proposta para compreender as relações de poder/domínio no espaço-tempo, a
superação da matriz histórica-colonial de poder e a liberação dos sujeitos
subalternizados por essa matriz, para uma efetiva integração (PPGICAL, 2022).
Vale destacar que no âmbito do PPGICAL foi criado o Grupo de Pesquisa
“Descolonizando as Relações Internacionais”. Cumpre dizer que a literatura do campo das
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relações internacionais é muito “nortecentrada”, uma vez que quase todos os(as) autores(as)
mainstream são da Europa ou dos Estados Unidos. Por isso, este grupo de pesquisa procura
“sulear” às Relações Internacionais. Além disso, importa ressaltar que a expressão “sulear” foi
utilizada por Paulo Freire em Pedagogia da Esperança e simboliza uma virada em relação à
palavra “nortear” (FREIRE, 2015). Ao utilizarmos a palavra “sulear” buscamos valorizar
primeiro as epistemologias, ontologias e os conhecimentos locais, isto é, do nosso sul
epistemológico.
Outra iniciativa que aprofundou as discussões acerca das propostas contra-hegemônicas
oriundas da nossa região foram as atividades desenvolvidas pelo grupo de pesquisa “¡DALE! Decolonizar a América Latina e seus Espaços”, criado em 2016 por Leo Name. Entre as várias
atividades do ¡DALE! é importante enfatizar que o grupo ofereceu em 2019 o minicurso de
extensão “Insurgências decoloniais: geopolítica do conhecimento para outros mundos
possíveis”. O curso foi ofertado por mim e pelo meu colega Gabriel Cunha e teve versões
anteriores na Universidade Federal da Bahia e na UFMG. Tratou-se de uma introdução ao
chamado giro decolonial, literatura centrada na América Latina e no Caribe com vistas a uma
epistemologia própria e emancipadora. Com base na crítica ao eurocentrismo das ciências
sociais, conceitos centrais da decolonialidade foram debatidos, tais como: colonialidades do
poder, do ver, territorial e de gênero, geopolítica do conhecimento e desobediência epistêmica.
Além disso, vale destacar que em 2020 o ¡DALE! organizou 2 edições do “Colóquio
Virtual: Giro Decolonial” (http://abre.ai/coloquio1 e http://abre.ai/coloquio2); editou o um
número
da
revista
Redobra
“Edição
Temática:
Insurgências
Decoloniais”
(http://www.redobra.ufba.br) e editou 2 volumes da Revista Epistemologias do Sul (“Dossiê:
Giro Decolonial – Partes 1 e 2”; http://bit.ly/giro_20191 e http://bit.ly/giro_20192). Por fim,
em 2021 e 2022 o grupo também publicou na Revista Epistemologias do Sul 4 dossiês: “Corpos
e sujeitos na/da modernidade”, “Cineclube Cinelatino” e “Feminismos latino-americanos,
ativismos e insurgências – Parte 1 e 2” (https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul).
Com relação às atividades de ensino, importa dizer que entrei na UNILA em 2011,
quando realizei um concurso para professora visitante para “Fundamentos da América Latina”,
uma área que reúne algumas disciplinas que fazem parte do Ciclo Comum de Estudos (CCE) e,
em 2013, fiz um outro concurso para professora efetiva para a cadeira de “História das Relações
Internacionais”, subárea do curso de Relações Internacionais e Integração.
Aqui gostaria de destacar minha experiência docente no CCE, que além das disciplinas
de “Fundamentos da América Latina” têm matérias da área de “Línguas Adicionais” (português
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e espanhol) e de “Epistemologia e Metodologia”. Acredito que o CCE é o núcleo formador
latino-americanista da UNILA, pois foi planejado para todos os cursos de graduação da
universidade e procura fornecer uma formação básica com o objetivo de democratizar o ensino
superior, em oposição à estrutura clássica das instituições destinadas à formação das classes
superiores, segmentadas e com pouco espaço para a inovação.
A atuação na área de “Fundamentos da América Latina” me permitiu não só aprofundar
as pesquisas no campo dos estudos latino-americanos, como também na área de História da
América, particularmente as investigações sobre América Central e Caribe, que não tinham sido
eixos centrais durante a minha formação na USP. Além disso, foi muito rica a possibilidade de
expandir a interdisciplinaridade, pois ministrei estas disciplinas em praticamente todos os
cursos de graduação da UNILA (27 no total).
Já no âmbito da extensão, quero ressaltar aqui minha experiência como coordenadora
do projeto de extensão Cineclube Cinelatino: Imagens da América Latina a Serem Decifradas.
O cineclube está ativo desde 2012 e se dedica a difundir produções audiovisuais (curtas e
longas-metragens) de países da América Latina e do Caribe, sejam falados em português,
espanhol ou francês (mais eventualmente, exibem-se produções europeias em língua latina).
Por meio das produções audiovisuais, o projeto procura promover a construção de um
pensamento crítico-reflexivo a respeito dessa forma de arte e suas relações com temáticas
pulsantes na nossa contemporaneidade. Igualmente, o Cineclube Cinelatino visa formar um
público cineclubista e ampliar o conhecimento e o debate sobre o cinema produzido no mundo,
com ênfase para as produções latino-americanas e caribenhas, historicamente marginalizadas
pela cultura mainstream, em especial a hollywoodiana.
Procurando estimular a integração latino-americana e caribenha por meio do cinema, as
sessões são organizadas e construídas em conjunto com a comunidade. Um dos objetivos
centrais é estimular pessoas que não pertencem ao meio universitário, que ainda estão em fase
de formação, a ter o hábito de frequentar exibições audiovisuais fora do escopo do cinema
hegemônico. Os(as) participantes são convidados(as) a conhecer a América Latina e o Caribe e
algumas das principais questões que envolvem essa região por meio da compreensão das
especificidades da linguagem cinematográfica produzida pela e na nossa região.
Por fim, é importante ressaltar que o Cineclube Cinelatino apresenta uma abordagem
intercultural e interdisciplinar, pois busca promover sessões de filmes seguidos de debates com
convidados(as) de diversas origens e nacionalidades. Geralmente, os(as) debatedores(as) de
cada sessão são uma combinação entre discentes, docentes, técnicos(as) da universidade e
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membros da comunidade externa. Já na pandemia, com as exibições remotas, isso foi alterado
e contamos naquela ocasião (2020-2021) também com debatedores(as) das equipes técnicas das
produções e debatedores(as) de outras universidades e países.
Desse modo, ao término de cada sessão do Cineclube Cinelatino, ocorrem discussões
com o público presente mediadas pelo conjunto de debatedores(as). E essas discussões
posteriormente geraram duas publicações: o livro Cinelatino: imagens da América Latina a
serem decifradas https://portal.unila.edu.br/editora/livros/cinelatino publicado pela editora da
Unila (Edunila) e o Dossiê Cinelatino, publicado na Revista Epistemologias do Sul
(https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul).
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50
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PLURIVERSIDADE: UM ESBOÇO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DO
ENSINO DE HISTÓRIAS INDÍGENAS EM UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS
Mateus F́varo Reis1
Isáas dos Anjos Borja2
Mauro Ćsar de Castro J́nior3
Introdução
Não é nada simples fazer uma reflexão sobre as possibilidades e os desafios ao se estudar
as histórias dos povos originários4 das Américas, entrecruzando as interpretações elaboradas
por representantes desses povos, as narrativas historiográficas, antropológicas e a etno-história
(SACRISTAN, 1995). Além disso, tratar as populações indígenas como personagens
dinâmicas, ativas e construtoras de suas histórias nem sempre é o caminho selecionado pelos
cursos de história nas universidades brasileiras, a despeito das inúmeras iniciativas que vêm
consolidando as pesquisas sobre as centenas de povos indígenas que habitam as Américas.
Ultrapassar, ou problematizar, os mitos, preconceitos e estereótipos que foram construídos (e
que constantemente se renovam) ao longo da invasão e colonização das Américas
(MANDRINI, 2014), é um dos principais objetivos almejados pela Lei 11.645, de 2008, assim
como preparar professoras(es) e pesquisadoras(es) para tratar adequadamente das relações
étnico-raciais.
Vale ressaltar que protagonismos de habitantes originais (KRENAK, 2019, p. 41) ou de
povos originários (KRENAK, 2019, p. 28) foram construídos de forma significativa, ao se
depararem com as constantes invasões que seus territórios sofreram ao longo do tempo, com os
objetivos de resistirem, denunciarem e negociarem tais processos, colocando-se como agentes
e sujeitos(as) de suas histórias.
1
Doutor em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente do curso de História e da pósgraduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto). Coordenador do Grupo de Estudos em História
das Américas (GEHA).
2
Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
3
Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
4
A discussão sobre os conceitos de povos originários, indígenas, índios e ameríndios é ampla e envolve muitas
divergências. Optamos pelo uso de povos originários, usada por Krenak, entre outros pensadores de diferentes
povos. Críticas ao conceito de povos originários podem ser encontradas em Jorge Fernández Chiti (2010) e Silvia
Rivera Cusicanqui (2010).
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Tanto no Brasil como em outros países de Abya Yala (PORTO-GONÇALVES, 2009),
Afro-América Latina (GONZALEZ, 1988) e Nuestra América (MARTÍ, 1983), vozes
originárias têm lutado por espaços nos ambientes de formulação de debates, projetos e tomadas
de decisões, ainda que com grande resistência por parte de parte significativa da população de
nossos países.
Dizer que não há interesse de pesquisa sobre histórias indígenas é desconhecer, por
exemplo, uma literatura sobre o tema que vem crescendo rapidamente nas últimas décadas,
particularmente a partir da reorganização dos movimentos indígenas, em diferentes países, dos
anos 1970 em diante (BURGUETE CAL Y MAYOR; ORTIZ-T, 2010).
Podemos citar alguns exemplos de instituições fundadas pelos povos originários, com
os objetivos de organizar e canalizar tais vozes: Taller de História Oral Andina (THOA),
fundado na Bolívia, em 1983; Comunidad de Estudios Mayas, fundado na Guatemala, em 2012;
Comunidad de História Mapuche/Centro de Estudios e Investigaciones Mapuche (CEIM),
fundada no Chile, em 2014.
Além disso, vale destacar a realização do Congreso Internacional Los Pueblos
Indígenas de América Latina (CIPIAL), cuja terceira edição ocorreu em Brasília, em 2019,
assim como diferentes grupos de estudo que se centram sobre as populações indígenas nos
diversos países de Abya Yala. Por fim, e somente para salientar a importância que os povos
originários têm conquistado mediante muitas lutas, foram fundadas dezenas de universidades
indígenas ou interculturais, principalmente na América Latina, desde 1992. A seguir, são
citados alguns exemplos importantes dessas iniciativas: 1) Em escala transnacional, a Red de
Universidades Indígenas, Interculturales y Comunitarias de Abya Yala (RUIICAY); na
Nicarágua, a Universidad de las Regiones Autónomas de la Costa Caribe Nicaragüense; no
Equador, a Pluriversidad Intercultural de las Nacionalidades y Pueblos Indígenas “Amawtay
Wasi”; na Colômbia, a Universidad Autónoma Indígena Intercultural; no México, entre outras,
a Universidad Intercultural de Chiapas, de Quintana Roo e de Puebla, bem como a Universidad
Autónoma Indígena de México e a Universidad Intercultural de los Pueblos del Sur; na Bolívia,
a fundação de três universidades indígenas: UNIBOL Guaraní y de Pueblos de Tierras Bajas
“Apiaguaiki Tupa”, UNIBOL Aymara “Tupak Katari” e UNIBOL Quechua “Casimiro
Huanca”; bem como no Brasil, o Centro Amazônico de Formação Indígena (CAFI).
Em suma, o cenário universitário latino-americano vem se diversificando e tem
incorporado parte das histórias das populações indígenas, mas ainda há inúmeros desafios pela
frente, principalmente nos cursos de história das universidades públicas brasileiras.
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Assim, o artigo propõe mapear a implementação de disciplinas sobre História(s)
Indígena(s) nos currículos dos cursos de licenciatura e bacharelado em história, bem como
levantar questões sobre algumas barreiras que não são facilmente transpostas quando se trata
da realização de significativas transformações disciplinares. Para tanto, foi realizado um
levantamento dos cursos de história que oferecem a disciplina obrigatória ou eletiva/optativa
de histórias indígenas em seus currículos; e foi feito um mapeamento dos estados e regiões que
dedicam mais espaço para as histórias indígenas nos currículos universitários públicos da
carreira de história.
Para terminar esta introdução, vale explicitar mais a hipótese que orienta o artigo, na
forma de questões centrais. Em linhas gerais, pode-se afirmar que há dificuldades para a
incorporação de histórias indígenas nos cursos de história das universidades públicas
brasileiras? Se a resposta for positiva, cabe perguntar por que isso ocorre. Quais são as
principais interpretações que são aventadas como obstáculos para a inclusão das histórias dos
povos originários nos currículos? Há sensibilização por parte de professoras(es) universitários
de história a respeito desta vastíssima área de estudos?
Lutas conjuntas contra o silenciamento
Desde o século XIX, é possível encontrar importantes personagens que silenciaram ou
mesmo negaram a possibilidade de se trabalhar sobre as populações indígenas, nos campos da
disciplina de história, a exemplo de Francisco Adolfo de Varnhagen, que em "História Geral do
Brasil", publicado inicialmente, em 1854, afirmou que para os povos indígenas não havia
história, mas apenas etnografia. Contudo, a perspectiva de Varnhagen não era a única
possibilidade, como demonstrou Rodrigo Turin (2013). Houve inúmeros intelectuais que se
debruçaram sobre as histórias das populações indígenas que habitavam o Brasil durante o século
XIX.
Atualmente, é difícil encontrar historiadoras(es) reconhecidas(os) que façam uma
afirmação como a de Varnhagen, particularmente após os vários trabalhos publicados sobre os
povos originários por autoras(es) brasileiras(os) e de outros países, como, por exemplo, a vasta,
variada e bem documentada coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha (1992),
"História dos Índios no Brasil", bem como os significativos trabalhos realizados por John
Monteiro (1994, 2001, 2003). Somente a título de alguns exemplos, podemos encontrar
atualmente pesquisas que tratam das diferentes historicidades que se arquitetam entre as
populações indígenas (PITARCH; OROBITG, 2012), que enfatizam o seu dinamismo cultural
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(BOCCARA, 2002); que demonstram os papéis de lideranças indígenas como significativos
atores políticos, em diferentes momentos da história nas Américas (PAVEZ OJEDA, 2008);
bem como obras de autoras(es) originárias(os) 5 ou intelectuais indígenas (ZAPATA, 2007 e
2017).
Ainda assim, o panorama, particularmente no interior dos cursos de história parece estar
enquadrado pela afirmação de Varnhagen, uma vez que a incorporação ou inclusão das histórias
indígenas com destaque nos cursos de história não tem ocorrido de maneira rápida e livre de
inúmeros obstáculos ou, em casos mais graves, de preconceitos que continuam a embasar as
resistências por parte de professores) universitários em diferentes instituições brasileiras.
Portanto, vale afirmar que o preconceito histórico contra as populações indígenas e a tentativa
de sua superação, por meio de políticas de ações afirmativas, representa um grande desafio a
ser enfrentado nos currículos dos cursos de história das universidades públicas, que pouco têm
contribuído para uma profunda transformação dos sujeitos, temas e enfoques das abordagens
historiográficas e históricas no Brasil.
Metodologia
Para pensar o mapeamento dos currículos, é importante incorporar as interpretações de
Margarida Felgueiras (1994), sobre a formatação dos programas de história, ao perceber que se
organizam por recortes cronológicos, por linhas de desenvolvimento, quadros históricos e/ou
por conceitos ou temas. A incorporação de histórias indígenas implicaria a ênfase maior em se
trabalhar com conceitos ou temas, mais do que grandes áreas, que inclusive estruturam os
projetos de pesquisa na CAPES e CNPq e outras agências de fomento e avaliação dos
programas de pós-graduação.
Outra questão importante que enquadra o debate sobre o currículo de história diz
respeito à formulação dos programas, ainda que com críticas constantes e revisões, com base
no eixo de história da formação nacional e da assimilação da alteridade via "mestiçagem" da
população brasileira (ZAMBONI, 1992/1993).
Dentro dessa perspectiva, as populações indígenas foram constantemente vistas como
assimiladas ou em vias de assimilação, o que contribuiu, não raramente, para uma espécie de
silenciamento sobre suas ações ou trajetórias fora da ideia de formação do Estado nacional.
5
Entre muitas(os) outras(os), Silvia Rivera Cusicanqui, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Lia Minapoty, Daniel
Munduruku, Davi Kopenawa, Célia Xakriabá, Ailton Krenak, Maribel Mora Curriao, Pablo Marimán Quemenado,
Sergio Caniuqueo Huircapán, José Millalén Paillal Rodrigo Levil Chicahual, Ariruma Kowii Maldonado, Elías
Ticona Mamani, Gladys Tzul Tzul, Marisol Ceh Moo.
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Por fim, vale dizer que diferentes autores têm debatido os currículos dos cursos de
história e de outras áreas das ciências humanas, criticando a centralidade europeia ou
"ocidental", ao propor que necessitamos problematizar mais a questão (MBEMBE, 2018). Um
dos debates mais interessantes sobre o tema tem ocorrido em diferentes países, com ênfase para
os latino-americanos, no interior da chamada corrente decolonial, (QUIJANO, 2014; WALSH,
2013; CUSICANQUI, 2017).
O presente trabalho concentra-se na contabilização dos cursos de História em atividade
nas universidades públicas do país e na oferta de disciplinas obrigatórias, optativas e/ou eletivas
de histórias indígenas. A referência inicial para a pesquisa é o relatório realizado por Beatriz
Carreta Corrêa da Silva, intitulado Levantamento e análise de informações sobre o
desenvolvimento da temática 'História e cultura indígena' nos cursos de licenciatura de
instituições públicas e privadas (2012), que abarca diferentes licenciaturas, para além das
graduações em História.
A presente pesquisa utilizou-se como fonte principal de dados o sistema e-MEC, do
Ministério da Educação, que possui ferramentas que possibilitam identificar informações sobre
os cursos do país. Em seguida, esses dados posteriormente dispostos em planilha foram
verificados por meio de acesso aos sites das universidades e institutos mencionados no relatório
fornecido pelo sistema e, em alguns casos, quando necessário, por meio de contato junto aos
colegiados e departamentos dos cursos de História.
Desse modo, tendo em vista os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares desses
cursos, foram contabilizadas as disciplinas obrigatórias, optativas e eletivas de histórias
indígenas. Sobre os programas e ementas, foi produzida ainda uma análise sobre os cursos de
alguns estados que serão mencionados ao longo deste artigo, incluindo um levantamento
bibliográfico no qual foram identificadas as principais obras citadas pelas disciplinas que
abordam a temática em questão. Algumas das informações relevantes obtidas durante esse
processo foram sistematizadas em gráficos e planilhas.
Resultados e discussão
Para pensarmos o mapeamento dos currículos, é importante incorporar as interpretações
de Margarida Felgueiras (1994), sobre a formatação dos programas de história, ao perceber que
se organizam por recortes cronológicos, por linhas de desenvolvimento, quadros históricos e/ou
por conceitos ou temas. A incorporação de histórias indígenas implicaria a ênfase maior em se
trabalhar com conceitos ou temas, mais do que grandes áreas, que inclusive estruturam os
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projetos de pesquisa na CAPES e CNPq e outras agências de fomento e avaliação dos
programas de pós-graduação.
Outra questão importante que enquadra o debate sobre o currículo de história diz
respeito à formulação dos programas, ainda que com críticas constantes e revisões, com base
no eixo de história da formação nacional e da assimilação da alteridade via "mestiçagem" da
população brasileira (ZAMBONI, 1992/1993). Dentro dessa perspectiva, as populações
indígenas foram constantemente vistas como assimiladas ou em vias de assimilação, o que
contribuiu, não raramente, para uma espécie de silenciamento sobre suas ações ou trajetórias
fora da ideia de formação do Estado nacional.
Por fim, vale dizer que diferentes autores têm debatido os currículos dos cursos de
história e de outras áreas das ciências humanas, criticando a centralidade europeia ou
"ocidental", ao propor que necessitamos problematizar mais a questão, entre perspectivas
nacionais,
comparadas
(PRADO,
2005),
conectadas
(SUBRAHMANYAM,
1997),
transnacionais (WEINSTEIN, 2013), transfronteiriças, ou globais (DAVIS, 2011). Um dos
debates mais interessantes sobre o tema tem ocorrido em diferentes países, com ênfase para os
latino-americanos, no interior da chamada corrente decolonial, (QUIJANO, 2014; WALSH,
2013; CUSICANQUI, 2017).
O presente trabalho concentrou-se na contabilização dos cursos de História em atividade
nas universidades públicas do país e na oferta de disciplinas obrigatórias e/ou optativas de
histórias indígenas. Foi observada, também, a presença de conteúdo ligado à temática em outras
disciplinas. A referência inicial para a pesquisa é o relatório realizado por Beatriz Carreta
Corrêa da Silva, intitulado Levantamento e análise de informações sobre o desenvolvimento da
temática 'História e cultura indígena' nos cursos de licenciatura de instituições públicas e
privadas (2012), que abarca diferentes licenciaturas, para além das graduações em História.
Entretanto, o trabalho não se aprofunda na exposição dos cursos, no mapeamento detalhado das
regiões e estados que mais dedicam espaço em seus cursos à disciplina; tampouco faz grandes
exposições sobre os programas de cursos e ementas especificamente integrantes da formação
superior em História, sendo, portanto, um trabalho que envolve uma visão mais geral sobre a
oferta da disciplina em dado momento.
Nossas fontes iniciais foram coletadas via sistema e-MEC, do Ministério da Educação,
que possui ferramentas que possibilitam identificar informações sobre os cursos do país. Em
seguida, esses dados dispostos em planilha foram verificados por meio de acesso aos sites das
universidades e institutos mencionados no relatório fornecido pelo sistema e, em alguns casos,
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quando necessário, por meio de contato junto aos colegiados e departamentos dos cursos de
História.
Desse modo, ao analisar os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares desses
cursos, foram contabilizadas as disciplinas obrigatórias e eletivas de história indígena e foram
tomadas em nota outras que versavam sobre o assunto, para uma possível posterior discussão.
Sobre os programas e ementas, foi produzida ainda uma análise sobre os cursos de alguns
estados que serão mencionados ao longo deste documento, incluindo um levantamento
bibliográfico no qual foram identificadas as principais obras citadas pelas disciplinas que
abordam a temática em questão.
Buscou-se, ademais, identificar Atas de reuniões e resoluções que abordam sobre a
inclusão de disciplinas de história e cultura indígena nos cursos de História, sobre as quais
também discutiremos brevemente neste relatório. Algumas das informações relevantes obtidas
durante esse processo foram sistematizadas em gráficos e planilhas e comporão o anexo deste
documento.
Os cursos de graduação em História estão espalhados por todo o território nacional. Até
o momento foram contabilizados, dentre universidades e institutos do segmento de ensino
público, o total de duzentos e vinte e seis cursos de bacharelado e licenciatura, distribuídos entre
as cinco regiões do país da seguinte maneira: trinta e dois na região Norte; setenta e três, no
Nordeste; trinta e três, no Centro-Oeste; cinquenta e um, no Sudeste; e, por fim, trinta e sete
cursos, na região Sul do país. Da oferta da disciplina, identificamos a presença de cento e
quarenta e quatro disciplinas nos duzentos e vinte e seis cursos de História, que regionalmente
estão dispostos como o seguinte: vinte e sete, na região Norte; trinta e nove, no Nordeste; trinta,
no Centro-Oeste; vinte e um, no Sudeste; e vinte e sete, no Sul do país. Os gráficos a seguir
detalham a relação entre oferta de cursos de História e a presença de disciplinas de histórias
indígenas por unidade da federação.
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Região Nordeste.
Sergipe
Rio Grande do Norte
Pernambuco
Piauí
Paraíba
Maranhão
Ceará
Bahia
Alagoas
Alagoas
Bahia
Ceará
5
3
20
17
7
2
Cursos
Disciplina
Maranhã
Paraíba
o
8
1
5
3
Piauí
10
3
Rio
Pernamb
Grande Sergipe
uco
do Norte
8
8
2
5
5
0
Região Norte
Tocantins
Roraima
Rondônia
Pará
Amazonas
Amapá
Acre
Cursos
Disciplina
Acre
2
2
Amapá
2
2
Amazonas
11
10
Pará
11
9
Rondônia
2
1
Roraima
2
1
Tocantins
2
2
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Região Centro-Oeste.
Mato Grosso do Sul
Mato Grosso
Goiás
Distrito Federal
Cursos
Disciplina
Distrito Federal
3
3
Goiás
18
17
Mato Grosso
3
2
Mato Grosso do Sul
9
8
Região Sudeste
São Paulo
Rio de Janeiro
Minas Gerais
Espírito Santo
Cursos
Disciplina
Espírito Santo
3
2
Minas Gerais
24
10
Rio de Janeiro
15
7
São Paulo
9
2
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Região Sul
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
Paraná
Cursos
Disciplina
Paraná
21
11
Rio Grande do Sul
11
11
Santa Catarina
5
5
Como pode ser observado nos gráficos acima, as regiões que mais se dedicam ao estudo
de histórias indígenas nos cursos de História são o Norte, o Centro-Oeste e a região Sul. Esta
conclusão pode ser obtida, considerando inclusive a diferença entre a real não oferta da
disciplina e a ausência de informações a respeito dos cursos, sendo que nessas outras regiões,
sob estes critérios prevalece a ausência de disciplinas sobre a temática à falta de dados; o gráfico
com os dados por região e estado em anexo demonstra tal ponto.
Em várias universidades do Norte do Brasil, são ministradas disciplinas sobre a
formação dos estados específicos, como História do Acre, na UFAC; ou regionais, como
História Indígena da Amazônia (UFAC), História da Amazônia (UFAM e UFPA), Arqueologia
e História Indígena na Amazônia (UEPA); bem como História Indígena da Amazônia e História
Indígena do Acre (UFAC), História e Culturas Indígenas (UNIFAP), História e Cultura dos
Povos Indígenas (UNIR); História Indígena e do Indigenismo (UFAM e UFPA), História do
Indigenismo e Educação Escolar Indígena (UEPA). Em outros estados, até o presente momento,
conseguimos observar que há uma optativa em História Indígena (UFT) e um Tópico especial
em Etno-história (UFRR).
No Centro-Oeste, a UNB oferece uma optativa, na licenciatura, intitulada Laboratório
de Ensino em História Indígena, e uma optativa, no bacharelado, com título Sociedades
Indígenas. Em Goiás, ocorre a oferta de História e Cultura Indígena (UFG) e Ensino de História
e Cultura Indígena (IFG). A UFMT oferece as disciplinas Antropologia e História, História e
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Cultura Afro-brasileira e Indígena e Sociedades, relações de poder e culturas em Mato Grosso,
que abordam referências e temáticas relacionadas aos povos originários. No Mato Grosso do
Sul, temos as seguintes ofertas: História Indígena (UFGD), História Indígena (UFMS, Campo
Grande) e Prática de Ensino e Pesquisa em História: Multiculturalismo, Povos Indígenas e
Diversidade (UFMS, Três Lagoas). Contudo, não há autores indígenas, nem textos específicos
sobre histórias indígenas, na ementa da disciplina.
Em relação à região Sul, encontramos a UFPR oferece uma optativa, intitulada
Etnologia Indígena; a UNESPAR (Paranaguá), Cultura Indígena e Populações; a UNESPAR
(Paranavaí), História e Cultura dos Povos Indígenas e Afro-Brasileira; a UNICENTRO (Irati),
Cultura Indígena, de forma obrigatória, e 3 optativas: Culturas Indígenas, História Indígena I e
História Indígena II. Por fim, a UNILA oferece as seguintes disciplinas: História dos Indígenas
da América do Sul, História dos Indígenas da América do Norte; entre outras disciplinas mais
gerais.
No Rio Grande do Sul, há a oferta de História da Cultura Indígena (FURG), História e
Cultura Indígena na América (FURG-EAD), História Indígena (UFFS, Erechim). A UFRGS
incluiu histórias indígenas como eletivas: História Indígena na América Povos Indígenas,
Educação e Escola; e Pré-História Brasileira. Já a UFSM oferece História das Culturas
Indígenas.
Em Santa Catarina, temos o seguinte panorama: a UFSC oferece História Indígena, de
forma obrigatória; e as optativas Tópico Especial: Escravidão Indígena na América Colonial,
Laboratório de Ensino de História Indígena, Tópico Especial: Mitologia e Lendas Ameríndias,
Tópico Especial: Etnoarqueologia e História Indígena nas Américas, Pré-história Geral e do
Brasil, Tópico Especial - Um olhar sobre os índios do Brasil: O Ponto de Vista Francês. Por
fim, a UDESC incluiu como obrigatória a disciplina de História Indígena6.
Conforme criticado por Beatriz Carretta Corrêa da Silva no Levantamento e Análise de
Informações Sobre o Desenvolvimento da Temática “História e Cultura Indígena” nos Cursos
de Licenciatura de Instituições Públicas e Privadas (2012), do Ministério da Educação – a
respeito dos cursos de História –, a presença do conteúdo referente às histórias indígenas nas
disciplinas de América e Brasil é muito panorâmica.
Diante da análise das ementas – descritas no anexo deste documento e inicialmente
referente aos cursos da Bahia, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Sul e Goiás; os mais
6
Os dados são preliminares e precisam de novas revisões. Ainda não foi possível fazer um levantamento mais
completo sobre as regiões Nordeste e Sudeste.
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populosos, com exceção de Minas, escolhido por ser o Estado de onde parte o estudo – podemos
perceber que as disciplinas de História da América geralmente trazem o indígena na introdução,
trabalhando questões relativas à alteridade, tendo em grande parte a menção dos maias, incas e
astecas, sobre o t́tulo de “povos pŕ-colombianos”.
Da mesma forma, os cursos de Brasil costumam colocar os povos indígenas nos
“contatos” e quando se trata da exploração de sua mão de obra, limitando seu papel como
sujeitos históricos a um passado de devastação, sofrimento e escravidão, embora algumas
disciplinas tragam tópicos sobre resistência e movimentos indígenas e indigenistas.
Foi possível observar, também, a partir das ementas dos cursos, certo esforço por incluir
a temática indígena em disciplinas de história regional; como as dos cursos presentes nos
estados do Pará, Rio Grande do Sul e Goiás, ainda que também se concentrem na ocupação
humana de seus territórios (em diálogo com a arqueologia) e do período colonial.
Muitos cursos possuem disciplinas que não cumprem com o próprio título, tendo em sua
ementa fortes traços de uma historiografia tradicional, cujo sujeito central é o colonizador e o
processo de colonização. Algumas disciplinas de História da América se propõem a discutir
sobre movimentos sociais, incluindo os indígenas entre esses sujeitos, embora seja mais comum
sua presença em uma América Colonial que em disciplinas que tratam de América
Contemporânea.
Para melhor ilustrar a realidade dos cursos sobre histórias indígenas nas universidades
públicas brasileiras, a partir das ementas dos cursos analisados foi produzida uma relação de
obras que constituem as indicações para leitura obrigatória e complementar das disciplinas que
abordam especificamente do assunto. Os dados que seguem são das principais obras citadas por
estado, onde é possível perceber a frequência de alguns trabalhos na área, sendo produzidos em
sua grande maioria por pesquisadores da História, Antropologia e Ciências Sociais. Contudo,
não cabe aqui discutir sobre os trabalhos.
Vale ressaltar que algumas obras foram citadas mais vezes do que o indicado em
números, pois algumas obras são compilações de trabalhos de autores diferentes e para melhor
observação foram colocados de forma a evidenciar suas citações como trabalhos únicos.
Portanto, foi possível observar que de forma geral, a obra mais citada foi História dos índios
no Brasil (1992), organizado pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha.
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1. Minas Gerais
Nome da obra
Bibliografia
Complementar
Bibliografia
Obrigatória/
Básica
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na
História do Brasil. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2010.
CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.). História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras:
Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil.
São Paulo: SMC, 1992.
3
6
3
2. Bahia
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) História dos Índios
no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1992.
SILVA, Aracy Lopes da e GRUPIONI, Luís D. B. (orgs).
A Temática Indígena na Escola, Brasília,
MEC/MARI/UNESCO, 1995, pp. 221-228.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios - catolicismo e
rebeldia no Brasil Colonial. S. Paulo: Cia. Das Letras,
1995. p. 71-100.
ALMEIDA, M. R. C – Metamorfoses Indígenas:
identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003 pp. 257280
PUNTONI, P. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e
a colonização do sertão nordeste do Brasil (1650-1720).
São Paulo, Hucitec/Edusp, 2002, pp. 49-87.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Brasília: Ed.
UNB, 1963
4
5
2
7
3
1
3
1
2
2
2
1
2
3. Goiás
CUNHA, M. C. da. História dos índios no Brasil. São
Paulo, Companhia das Letras/Fapesp, 2002.
RIBEIRO, Darcy, 1922-1997. O povo brasileiro: a
formação e o sentido do Brasil, São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na
história do Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2010.
SILVA, Aracy Lopes da. GRUPIONI, Luís Donisete
Benzi (org.). A temática indígena na
escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º
graus. Brasília: MEC/MARI/UNSECO, 1995
4
3
3
3
3
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64
ALMEIDA, Maria R. Celestina. Os Índios na História
do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
ALMEIDA, Maria R. Celestina. Identidades étnicas e
culturais: novas perspectivas para a História Indígena.
In. ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de
História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de
Janeiro: FAPERJ/Casa da Palavra, 2003.
OLIVEIRA, João Pacheco; FREIRE, Carlos A. da
Rocha. A presença Indígena na formação do Brasil.
Brasília: MEC/UNESCO, 2006.
MELLATI, J. Cesar. Índios do Brasil. São Paulo:
HUCITEC, 1994.
GRUPIONI, Luís Donisete B. A formação de
professores indígenas: repensando trajetórias.
MEC/UNESCO, 2006.
3
5
4
1
3
1
2
4. Pará.
CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.) História dos
Índios no Brasil. São Paulo : FAPESP/Cia das Letras,
1992.
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (org). Sociedades
Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro/São
Paulo. Editorada UFRJ/Marco Zero, 1987.
ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o
Branco: cosmologias do contato no norte amazônico.
São Paulo: Ed. da UNESP; Imprensa Oficial do Estado,
2002.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra. Índios e
Bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia
das Letras, 1994.
SILVA, Aracy Lopes; GRUPIONI, Luís Donisete
(orgs.). A Temática Indígena na Escola: Novos subsídios
para Professores de 1º e 2º Graus. Brasília: MEC; MARI;
UNESCO, 1995.
MONTEIRO, John M. Tupis, tapuias e historiadores.
Estudos de História Indígena e do Indigenismo.
Campinas: Tese de Livre Docência/UNICAMP, 2001.
7
3
3
1
2
2
1
1
2
5. Rio Grande do Sul
CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria
Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na
história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra - índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
4
2
1
5
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65
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a
integração das populações indígenas no Brasil
moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo
e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia
das letras, 1995.
KERN, Arno; SANTOS, Maria Cristina; GOLIN, Tau
(Org.). História Geral do Rio Grande
do Sul. Povos Indígenas. Passo Fundo: UPF/Méritos,
2009. 5 v.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na
História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos
Índios do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FUNARI, Pedro Paulo & PINON, Ana. A temática
indígena na escola. São Paulo: Contexto, 2011.
GRUPIONI, Luís Donizete, SILVA, Aracy L., (org.).
A temática indígena na escola: novos subsídios para
professores de 1º e 2º graus. São Paulo: Global, 1998.
3
2
3
2
1
3
3
2
2
2
3
2
2
2
2
Considerações finais
Embora a presença de disciplinas de História e Cultura Indígena seja aparentemente
comum aos cursos de História das universidades públicas do país, ainda é necessário maior
apoio e investimento para a sua consolidação.
Muitos cursos se dedicam a introduzir os graduandos em questões teóricometodológicas inerentes ao estudo de história indígena, além de promoverem a produção de
material didático, o ensino e a pesquisa na área. Foi possível observar também que alguns cursos
investiram na interdisciplinaridade, numa relação com as Ciências Sociais e a Antropologia, o
que pode contribuir para uma visão mais ampla dos sujeitos em questão e dos processos que
envolvem a construção da realidade desses povos a partir de outros campos de estudo.
Sobre a natureza das informações e dados obtidos nesta pesquisa, é importante sublinhar
alguns pontos. Excluindo as disciplinas obrigatórias, que são constantes na grade curricular, a
previsão de disciplinas optativas não necessariamente implica na oferta de tais disciplinas ao
longo dos semestres. E, da mesma forma, a bibliografia mencionada pode sofrer alterações,
tendo em vista as demandas de cada turma e o enfoque particular escolhido pelo professor.
Se a ausência de informações em sites de algumas universidades e o não retorno das
tentativas de contato foram grandes desafios enfrentados durante o primeiro ano da pesquisa –
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uma vez que o levantamento visava englobar a totalidade dos cursos oferecidos pelas
instituições públicas de ensino superior –, a pandemia do novo coronavírus, impôs adversidades
novas que incidiram sobre o funcionamento das universidades. A proporção entre a ausência de
informações foi relativamente pequena em relação à não oferta de disciplinas, considerando
que o sistema do Ministério da Educação apontava cursos que não estavam mais em atividade
e os que estavam para iniciar; ambos, entretanto, não entraram no presente levantamento, mas
o número de atas ainda que discutiam especificamente sobre a implementação de disciplinas de
histórias e culturas indígenas foi relativamente baixo, em relação a quantidade de documentos
que implementam o estudo nos cursos de graduação (em especial os de licenciatura) no geral.
A discussão do conteúdo referente ao estudo de histórias indígenas em outras disciplinas
não parece ser um caminho favorável para o incentivo de pesquisa na área; tendo em vista as
especificidades do campo de estudos, assim como a diversidade desses povos que constituíam
o território que hoje corresponde ao Brasil, sua trajetória ao longo dos séculos durante o
processo de colonização, no Brasil imperial e republicano. Tal complexidade pode ser
observada pela proposta das diversas disciplinas mencionadas em anexo a este relatório, que
optaram por uma abordagem geral sobre o assunto, trabalhando, em sua maioria, sobre
conceitos e áreas do conhecimento que envolve seu estudo e em alguns casos os povos que hoje
habitam o Brasil.
No ensaio Da importância de pesquisarmos história dos povos indígenas nas
universidades públicas e de a ensinarmos no ensino médio e fundamental (2015), Eduardo
Natalino dos Santos evidencia, por meio de breves relatos sobre sua trajetória como aluno de
graduação e pós-graduação, assim como de professor no ensino básico, que o maior desafio
consiste, em certos casos, na imensa quantidade de dados a respeito da história das populações
indígenas e não em sua ausência. No caso brasileiro, podemos levar em consideração a vasta
produção acadêmica nas áreas da Antropologia e Arqueologia, embora o enfoque destas
disciplinas se diferencie da História, considerando também que são em grande parte os egressos
dos cursos de História que ministrarão o conteúdo referente no ensino fundamental e médio,
principalmente após a regulamentação da ofício de historiador/a. Desse modo, como afirma o
autor,
Estamos tratando de um problema com desdobramentos políticos sérios, pois a visão
que as sociedades ocidentais modernas possuem sobre os povos indígenas – a qual, é
verdade, não depende apenas das aulas de História no ensino médio e fundamental –
determina parcialmente suas relações com esses povos. Tais relações, como sabemos,
têm se caracterizado pela assimetria política, pelo desrespeito às diferenças, pela
violência e por uma série de atrocidades. (SANTOS, 2015, p. 18)
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Segue, portanto, sendo objetivo desta pesquisa compreender melhor sobre as questões
relativas à ausência e presença das histórias indígenas nas universidades públicas brasileiras.
Considerando o lugar social do historiador e a efetivação ligada à qualidade do conteúdo
referido na Lei Federal – base da discussão desta pesquisa –, os cursos de História são lugares
estratégicos por excelência no que tange ao reconhecimento e consolidação do pensamento de
que essas populações são sujeitas de sua própria história no passado e no presente. A
necessidade de profissionais especializados se confunde com questões administrativas e
financeiras, à demanda de interesse por parte dos estudantes; assim como da disposição de
membros do corpo docente no investir de seus esforços no que tange não apenas ao
reconhecimento da coetaneidade das populações indígenas, como também de posições e
atitudes que além de não contribuírem com a luta por direitos desse grupo da sociedade, acabam
se posicionando contra.
O estudo de histórias indígenas se justifica, por fim, a partir da compreensão de que a
história dessas populações deve ser pensada e escrita de forma a representar a pluralidade de
povos e histórias, rejeitando imagens, discursos e narrativas que relacionam os indígenas ao
passado, à integração e assimilação pela “sociedade”.
Faz-se necessário discutir sobre as questões mais atuais sobre as populações indígenas,
pensando nos reflexos do colonialismo e neocolonialismo sobre os corpos e mentes dos sujeitos,
organizações sociais e subjetividades e políticas, assim como deve ser consideradas
perspectivas que abordam a história desses povos em relação com o que tem sido observado e
discutido em outros países da América. A atualização recorrente da bibliografia dos cursos
também é um ponto importante, incluindo estudos que abordem sobre questões mais atuais,
além de histórias trazidas pelos próprios sujeitos em estudo (cientistas, artistas, anciãs,
lideranças, educadores, escritores, pessoas simples, etc.), possibilitando aos discentes o
encontro com outras percepções sobre o mundo e sobre a humanidade.
A ignorância e a insensibilidade também devem ser apontadas como um dos entraves
que ganham um papel político diante do lugar que os cursos de formação superior exercem na
construção da sociedade e evidenciam o quanto o ensino, a pesquisa e extensão voltados à
temática indígena são de extrema importância no Brasil. Num contexto em que o movimento
indígena discute a invisibilidade, os arcaísmos, preconceitos e anacronismos empreendidos
contra sua população nos livros didáticos, nas escolas, universidades e demais espaços da
sociedade, o ensino superior (e seus servidores e alunos) como um espaço de aprendizado e
produção e troca de conhecimento, deve estar aberto a todos e todas e contribuir para uma
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sociedade cada vez mais humana e menos eurocêntrica. Os povos originários de Abya Yala,
Pindorama ou das Américas, como todos os demais povos, possuem memória, arte, cultura,
pensamento, interesses, humanidade; e o conhecimento fruto do estudo da história desses povos
representa, igualmente, a compreensão da história de nosso continente.
Houve a implementação de disciplinas sobre Histórias Indígenas e sobre Políticas
Indigenistas, principalmente em universidades do Norte, assim como em algumas do CentroOeste. Também houve preocupação em abordar temas relativos aos povos indígenas de forma
transversal, particularmente em disciplinas que tratam da História da Amazônia ou PanAmazônia, bem como em disciplinas que abordam a formação de alguns estados, como no Acre,
Mato Grosso e Rondônia. Contudo, referências de autores/as indígenas quase não aparecem, à
exceção de Gersem Baniwa (2019), em alguns programas, o que continua a silenciar
interpretações das principais pessoas que sofrem os processos de invasões de seus territórios.
Assim, mesmo que os temas relacionados às histórias indígenas sejam incluídos, corremos o
risco de continuar a ensinar e pesquisar histórias únicas, particularmente em relação aos grupos
que mantêm seus poderes simbólicos.
Os próximos passos de pesquisas e debates que envolvam os desafios enfrentados para
a incorporação de histórias indígenas nos cursos de formação de pesquisadores e professores
de história, não somente nas universidades públicas brasileiras, poderiam buscar a recuperação
de parte dos debates que envolveram a implementação das disciplinas nos cursos; mensurar os
termos que mais comumente foram utilizados para fazer referências aos povos indígenas nos
debates; assim como, e ainda que inicialmente, abordar as ementas e programas dos cursos de
histórias indígenas, para analisar criticamente os principais temas propostos pelas disciplinas.
Referências
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Janeiro: Mórula, Laced, 2019.
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SIN ESTADO. NOTAS GENERALES SOBRE LA AUTONOMÍA VISTA
DESDE MÉXICO
Daniel Inclán Solís1
En un lugar de la bibliografía del que no quiero
acordarme, se explicó alguna vez que hay escaleras para
subir y escaleras para bajar; lo que no se dijo entonces es
que también puede haber escaleras para ir hacia atrás.
Los usuarios de estos útiles artefactos comprenderán, sin
excesivo esfuerzo, que cualquier escalera va hacia atrás si
uno la sube de espaldas, pero lo que en esos casos está por
verse es el resultado de tan insólito proceso.
Julio Cortázar, Instrucciones para subir una escalera al
revés
Introducción
El proyecto civilizatorio capitalista, junto con la transformación de la cultura material, la
reconfiguración técnica y la ortopedia de los cuerpos, construyó una serie de narrativas para
legitimarse y para interpretar a las otras formas de vida colectiva, tanto las pretéritas como
contemporáneas que no se identificaban plenamente con el nuevo modelo de vida. Se
secularizaron viejas narrativas para establecer las relaciones de integración mediante las formas
“in-civilizadas” (BARTA MURIÀ, 2011). Las mitografías capitalistas más importantes son: la
libertad como necesidad, el progreso como movimiento irrefrenable de mejoras, la igualdad
abstracta entre las personas, la llegada de un mundo mejor, la selectiva participación
democrática, la necesidad de un orden estatal.
Fue en la época ilustrada cuando se expandió la idea de transformaciones mundiales que
llevarían a la “humanidad” a la emancipación y la integración absoluta (ISRAEL, 2012). Esta
idea se sintetizó bajo la imagen de la revolución y la fundación de los nuevos estados: un cambio
radical que abría la puerta a un “mundo libre” sintetizado bajo un sólido orden institucional.2
1
Doctor en Estudios Latinoamericanos por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma
de México (UNAM). Profesor del Programa de Postgrado en Estudios Latinoamericanos.
2
Siguiendo la propuesta de Akhil Gupta (2015), se escribirá estado con minúsculas para no caer en la trampa que
cosifica o mistifica el proceso denotado por ese concepto. Para evitar la grandilocuencia del término se asume que
el contexto de la oración permite reconocer el uso del sustantivo. En ese sentido, por estado no sólo se entiende la
mediación política entre los intereses de la reproducción del capital y las necesidades de los distintos segmentos
colectivos (materializados en instituciones burocráticas, marcos legales, estructuras represivas, formas de
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Una versión secular de la utopía paradisiaca. Los protagonistas de esta “gesta” transitan por
distintas posiciones a partir de la diseminación de la idea de la revolución. Primero los sectores
ilustrados como cabezas de la transformación, de la mano de las masas; después las masas
autoconscientes; después las masas explotadas, enterradoras del modo de producción que les
oprime; después los partidos revolucionarios, representantes de esas masas; después los
sindicatos, organizados de manera semiautónoma para llevar la consciencia revolucionaria;
después las dirigencias guerrilleras; después los partidos ciudadanos; etcétera, etcétera. Las
revoluciones se presentan como hechos ambiguos, cargados de tendencias transformadoras al
tiempo que llenos de equívocos y prácticas reaccionarias (TRAVERSO, 2021). La actualidad
de la revolución está pausada. Lo que permanece intacto es la necesidad de un estado para
cualquiera de estas versiones; en todos los casos se repite la mitografía de la transformación
radical encabezada por fuerzas elegidas, por su conciencia o por su posición productiva,
entidades que redimirían a la humanidad en su conjunto mediante la creación de estados. En
esa mitografía, los estados y sus revoluciones fundantes son el anuncio del tiempo futuro, y en
los casos más sofisticados (por no decir los más delirantes), un proceso permanente de mejoras.
La necesidad de la revolución y de los estados es desde siempre una forma de religión secular.
Paralelamente a estos impulsos de transformación mesiánica, existen procesos, de pequeña
escala, expresiones de autonomía, cuyo objetivo es recuperar las capacidades para dar contenido
y forma a la vida, para construir espacios concretos en tiempo presente: ese mundo distinto lo
viven en el aquí y ahora, no en el tiempo futuro, ni dirigidos por conciencias iluminadas, ni
esperando la redención de todas las personas en la tierra. Para los tercos ejercicios de autonomía
la cosa es más simple: construir mundos de vida habitables, en los que la vida es algo que
merece ser vivido en el presente. Destacan, por su amplitud, diversidad, reiteración, su
terquedad, las luchas indígenas y campesinas. Su disputa responde a las capacidades y
necesidades concretas, no a deseos, mitografías, ni necesidades históricas.
Estas tensiones se pueden plantear como la disputa permanente entre el mesianismo estatal
y el realismo práctico de la autonomía, que encuentra en las movilizaciones campesinas,
indígenas, algunos movimientos de mujeres y versiones disidentes de la organización obrera su
delegación y dispositivos de gobierno); a esto se agrega la dimensión simbólica, una metafísica que sostiene una
imagen de sujeto, sin serlo: los estados parece que actúan con autonomía, coherencia y unidad (BOURDIEU,
2014). La idea de una “ecuación” (resultado de relaciones entre el “estado”, la llamada sociedad civil y la
burocracia) deja de lado el papel simbólico del funcionamiento estatal, en el que se acepta como concreta una
relación que es, en casi todos sus niveles, abstracta e imaginaria. Es aquí donde se quiere poner el acento en
relación con las diferencias étnicas que establecen relaciones contenciosas con los estados nación, en especial en
México.
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mejor expresión. Aunque este es un conflicto general en la larga historia del capitalismo, lo que
interesa en este texto es presentar su configuración en el caso mexicano en los últimos lustros,
en los que se experimentan simultáneamente momentos creativos en el terreno de las
autonomías y catástrofes en el terreno estatal, en especial con el momento progresista de los
últimos años.
Para ello se presentarán cuatro escenarios de la compleja autonomía: 1) la forma de la
politicidad; 2) la construcción concreta de lo común; 3) la relación con la diversidad de formas
(humanas y no humanas) y 4) el papel del territorio. A través de estas rutas se pretende
demostrar que lo que está en juego es más que una disputa por proyectos que “unifiquen” la
voluntad colectiva o de las mayorías; lo que se dirime son dos formas opuestas de politicidad,
con escalas espaciales y temporales incompatibles, pero, sobre todo, con medios y objetivos
contrapuestos. Mientras la forma estado sigue pugnando por el deseo de dirigir a las masas, la
autonomía pugna porque cada colectividad y sus cuerpos se arriesgan a vivir el mundo que
quieren, que mediante sus formas decidan qué es eso que se llama vida y qué contenidos tiene.
En el caso mexicano se podrá ver con claridad que son dos formas que van por caminos
distintos.3 Para el centralismo estatista, y su aparente necesidad histórica, la autonomía es un
lastre y una amenaza al proyecto de la voluntad de las mayorías. Por lo que desconoce, niega y
combate todos los esfuerzos que se llevan a cabo en su nombre.
La pregunta por el cómo
La práctica política moderna definió durante dos siglos el sentido de la acción a partir
de una pregunta: ¿qué hacer? Esto se tradujo en proyectos de vanguardia, que bajo una idea
vertical de la transformación generaban modelos de acción, que debían seguir los pasos
programados desde la dirigencia y que, al producir las condiciones objetivas y subjetivas de la
transformación, darían los resultados deseados en un futuro estatal. La expresión de este
movimiento histórico son los estados nacionales, que pretenden representar a un amplio
conjunto de proyectos culturales y decidir en favor de las mayorías (BUTLER; SPIVAK, 2009).
De manera paralela, también existieron una multiplicidad de movilizaciones y esfuerzos
emancipatorios que cuestionaban la idea de la dirigencia; que, de forma espontánea, y no por
3
La discusión sobre México, como nombre y como adjetivo, no se hace desde una perspectiva sustancialista, ni
de necesidad histórica; México y lo mexicano se entiende como una disputa por un término y por una realidad
histórica, ya sea por ampliar sus contenidos o por distanciarse de ellos. El estado mexicano no es una cosa, ni un
proceso definido, sino una trama de relaciones de fuerza, que en algunos casos se define por la necesidad de la
incorporación a lo que designa, en otros por alejarse y varios por salirse de esa enunciación
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eso menos compleja o comprometida, construían escenarios de transformación. Estos se
caracterizaban por una fuerte participación colectiva tanto en las decisiones, como en las
acciones, que servían para definir métodos y formas de luchas diversas (FERRER, 2007). A
este heterogéneo abanico de prácticas se les conoce como autónomas, como procesos que
definen por sí mismo los contenidos políticos y su materialidad, en escenarios acotados, pero
siempre con una lectura del proceso general de opresión.
En América Latina los actores que dan forma a las prácticas autónomas son, sobre todo,
las comunidades indígenas y campesinas; aunque hubo momentos en los que segmentos
proletarios tomaron posiciones al margen de los partidos y las dirigencias sindicales, y más
recientemente versiones de los movimientos de mujeres también apuestan por caminos de la
autonomía (ESCOBAR, 2017). Los debates en torno a estas formas heterogéneas no son pocos.
En muchos casos domina la lectura política ilustrada que configura a la autonomía como una
distancia de las instituciones liberales, sean dominantes, como el estado, o intermedias como
los partidos o los sindicatos, impidiendo los proyectos de transformación global.4 Algunos
asumen que es sinónimo de autogestión: una capacidad de administración o gobierno propio,
para decidir los asuntos de la vida colectiva. También hay quienes defienden la autonomía como
un modelo, un camino para la emancipación. Desde otros miradores, la autonomía es una
característica de la política moderna, que en el ejercicio de sus capacidades reflexivas transitan
de un orden impuesto, heterónimo, a la posibilidad de un mundo propio, autónomo
(CASTORIADIS, 2004).
Al margen de estas discusiones, lo que demuestran los movimientos indígenas y
campesinos en México es que la autonomía es un problema vivo, que se manifiesta en procesos
de lucha, definidos por una dimensión contenciosa de múltiples escalas: la individual, la
colectiva, en los que participan las formas de vida humana y no-humana. Su fundamento
impugna los centros del proyecto civilizatorio moderno: la equivalencia artificial del orden de
mercancías, el imperativo del trabajo, la necesidad del estado, lo inevitable de la ley, la
preeminencia de la razón, la necesidad de la dirigencia, la prioridad del proyecto abstracto por
sobre las vidas concretas. La autonomía es un medio puro, no busca nada por venir, se busca
así misma, no es un paso para una mejora necesaria después de la imaginaria toma de un poder.
4
Incluso aproximaciones cercanas a las comunidades analizan las autonomías como una realidad cuya existencia
debe plantearse en torno al estado, ya que representan minorías en relación con la mayoría nacional, como el caso
de Héctor Díaz Polanco (2003 y 2006).
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En el caso de las comunidades campesindias se pueden sacar algunas líneas generales de
lo que se puede entender por autonomía (BARTRA, 2008), que además de contribuir a su
teorización generan actividades prácticas en las que se pone en movimiento como forma de
emancipación. En este caso la autonomía empieza como una negación de la totalidad del orden
existente, no sólo de algunas de sus partes, las más visibles o las más duraderas: el estado, el
trabajo explotado, el patriarcado, etc. La negación del mundo capitalista se hace reconociendo
las múltiples formas de dominación y las maneras en las que las personas participan de ella,
superando la dicotomía dominador-dominado, victimario-víctima, que durante décadas servía
para explicar automáticamente la superación del capitalismo por parte de las víctimas (EZLN,
2103a). La negación del capitalismo implica reconocer sus múltiples formas de integración y
mecanismos de reproducción, que no se resuelven por deseos o por buenas voluntades, sino
horadándolo poco a poco.
La autonomía no es una negación reactiva, que responde simétricamente a las estructuras
de la dominación. La negación es un principio creativo, el de la construcción, aquí y ahora, del
mundo que se quiere vivir. Es decir, es una reconstrucción del tiempo y del espacio, para
producir presentes, no mundos futuros. Esta reelaboración pone en el centro los verbos por
sobre las instituciones y sobre las recetas. Antes que la casa, el habitar; antes que la escuela el
educar; antes que la salud el sanar (ESTEVA, 2013). La autonomía se presenta como un proceso
material de primer orden, en el que también se juegan las formas subjetivas. No es una
transformación de las cosas que antecede a la transformación de las percepciones. El cambio
material es paralelo al cambio de la subjetividad.
El tiempo es una materia central de la autonomía. Contrario a cierta corrientes presentistas
y voluntaristas, los movimientos campesinos e indígenas demuestran que la autonomía para ser
un presente necesita de varios pasados (BARTRA, 2021): el indígena, el campesino, el
metropolitano, el de las múltiples voces en resistencia (nacionales e internacionales), etcétera.
La autonomía conserva y transforma el tiempo, de ahí parte de su complejidad que abre el
debate sobre las formas diversas de las subjetividades autónomas. Al interior mismo de un
proyecto compartido de autonomía no hay una sola forma subjetiva, no hay una sola manera de
actuar y comportarse. Por eso la autonomía se entiende como un principio de diferencia
organizada en torno a un proyecto común.
El centro de la diferencia es la dignidad (EZLN, 2013b), condición de todas las formas de
existencia, humanas y no-humanas. No hay autonomía sin dignidad; y no hay dignidad sin
trabajos colectivos: solo la fuerza del plural permite su existencia, no es una voluntad
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individual, ni una cualidad que se despliega en automático. Se requieren, en cambio, muchos
esfuerzos compartidos para que en el centro de todo esté la dignidad.
Lo que guía la acción es una formulación inédita para las políticas de emancipación. En
lugar del qué, las luchas por la autonomía se preguntan por el cómo. Y ya que no hay una única
manera, ni un camino infalible; el cómo es una pregunta reiterada, que sirve para organizar una
nueva forma y sentido de la vida. El cómo es núcleo problemático de la autonomía, nada está
dado de una vez y para siempre. Lo que abre la puerta a la espontaneidad y la creatividad lúdicas
(EZLN, 2016; ESCOBAR, 2017). Para no hacer del cómo un lastre, la posibilidad de divertirse
y gozar se vuelve imperativa.
Para pensar el papel de las autonomías se requiere trascender la imagen estrecha de los
sujetos económicos (EZLN, 2016; POLANYI, 2009). Esto sólo es posible si, desde las
realizaciones materiales de formas colectivas, se piensa en las dimensiones cualitativas de la
economía (una economía sustantiva), que, a partir de la construcción de las condiciones de
subsistencia, establece criterios de legitimación, dignidad y justicia (por fuera de todo orden
institucional burocrático y de toda racionalidad económica abstracta). En estas formas de
economía sustantiva se ponen en juego: 1) las experiencias grupales bajo un principio de
igualdad; 2) las costumbres, a través de las cuales se reproduce un colectivo determinado; 3)
las memorias de corta y larga duración, depositadas en las prácticas cotidianas; 4) las prácticas
de cuidados, determinadas por lo que se considera una vida digna; 5) la restitución de la relación
saber-hacer; 6) la construcción de un equilibro relativo entre las capacidades y las necesidades,
para no desear más de lo que se puede satisfacer; 7) una interacción recíproca entre las formas
de existencia (humanas y no-humanas); 8) un tipo particular de relaciones de
complementariedad entre las diferencias internas (por cuestiones de género, sexo, cultura,
edad).
Para las prácticas autónomas un paso central es superar la enajenación de las capacidades
productivas, mediante la construcción de una materialidad autodeterminada; para ello es
necesario la recuperación de los medios de producción y la posibilidad de pensar, diseñar y
realizar formas concretas de vidas colectivas. Además, las revueltas por la autonomía son
excepcionales por muchas razones, entre ellas por poner en el centro de sus prácticas
emancipadoras la superación de la dominación patriarcal (EZLN, 2013c). La crítica al
patriarcado es parte de un amplio espectro de prácticas para superar la civilización capitalista
Lo que las zapatistas llaman la triple opresión: ser mujer, indígena y pobre. A lo que suman una
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fuerte transformación de las llamadas juventudes y las infancias, sujetos protagónicos del
proceso de autonomía, fuerza vital y bisagra entre tiempos históricos.
Esta forma de politicidad es incómoda a los proyectos del estado nación mexicano por
cinco grandes razones, por lo que se producen prácticas de invisibilización y de ataques
frontales. En principio, pone en duda la síntesis que presupone el estado, demostrando su
carácter excluyente y sus lógicas patriarcales, racistas, clasistas y biocidas con las que opera: el
estado es un gran padre, blanco, representante del progreso económico, que gobierna los
ecosistemas a favor de las necesidades de las “mayorías” nacionales. En segundo lugar,
desmiente la necesidad de la dirección y del proyecto, que pone a los especialistas en política
en posiciones separadas del resto de las formas cotidianas, como si fueran las únicas personas
capaces de decidir qué hacer. En tercer lugar, desmonta la idea de la masa como unidad de
opresión o enajenación, que espera la “luz” de las inteligencias políticas porque son incapaces
de cualquier ejercicio de politicidad más allá de las manifestaciones de descontento. En cuarto
lugar, derriba la mitografía nacionalista, como una sustancia que corre por la sangre y por el
aire, demostrando no sólo su carácter imaginario, por parte de las élites políticas e ilustradas,
sino su tendencial movimiento de borramiento de las diferencias culturales, bajo los argumentos
reiterados del desarrollo y la modernización. En quinto lugar, demuestran la falseada de la
democracia participativa y ciudadana, que bajo una aparente disputa entre izquierdas y
derechas, oculta que en cualquiera de sus versiones sirve para beneficiar la reproducción de
capital.
Lo común
Las invectivas del gobierno mexicano a las revueltas de la autonomía suelen cuestionar
su carácter minoritario, su visión reduccionista y localizada, así como su incapacidad para
pensar en las necesidades de la nación. Atacan reiteradamente su idea de lo común, con el
objetivo de demostrar que es opuesto a las necesidades de las mayorías, argumentando que
abreva de un pasado arcaico y premoderno, que se opone al progreso y desarrollo económico.
Las revueltas de la autonomía demuestran que la discusión sobre lo común es problema que no
sólo atañe a sus proyectos y prácticas, sino al conjunto de actividades colectivas (EZLN, 2016;
MIDNIGHT NOTES COLLECTIVE, 2001). Lo común es un problema, un problema
estrictamente moderno. Antes de la modernidad estaba vinculado con las distintas formas de
comunidad: productivas, políticas, religiosas, generalmente la combinación de todas. La
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disolución de las viejas comunidades abrió la pregunta sobre lo común, que dejó de ser un
asunto fácil de responder.
En América Latina y en México el problema se desarrolló con especial intensidad y
complejidad en los grupos étnicos. La destrucción de las viejas formas de vida por los procesos
de colonización obligaba a una reconstrucción de sus mundos y un esfuerzo por rearmar sus
vidas comunitarias. Lo que hoy existe de las comunidades indígenas es el resultado de un
abigarramiento de matrices culturales, no es la continuidad de las formas paleoindias (existentes
antes de la colonización).5 Los cambios fueron radicales, entre ellos la organización política,
resultado de una reorganización espacial que fragmentaba los viejos trajines culturales
(RIVERA CUSICANQUI, 2018). El modelo colonial, que impuso una santidad para cada
poblado y una organización religiosa en torno a ella, sirvió, entre otras cosas, para impedir las
alianzas entre grupos étnicos. Paradójicamente, esta forma colonial permitió la sobrevivencia
de tres elementos centrales: las lenguas, el trabajo con la tierra y la reactualización de las
cosmovisiones (MEDINA, 2000). De manera simultánea, en el múltiple proceso de
colonización capitalista, en su versión europea, cercaba de las tierras comunes (MIDNIGHT
NOTES COLLECTIVE, 1990). Desde entonces los comunes oscilan entre espacios de
recomposición y la articulación de las fuerzas colectivas para integrarlas a la producción
capitalista (volviéndolos espacios productores de mercancías, haciendo de los bienes comunes
recursos y riquezas abstractas).
La comunidad y lo común se vuelven problemas radicales de la vida moderna. Esfuerzos
contemporáneos para repolitizar las fuerzas comunales son los que se llevaron a cabo en
Oaxaca; plantearon una dimensión política más allá de la comunidad: la comunalidad. Que para
Juan José Rendón (2003) y Floriberto Díaz (2014), los constructores del concepto, es voluntad
de colectividad, de reiteraciones cíclicas, cotidianas y obligatorias, no sólo una realidad
administrativa, ni una relación producto de trabajos con la tierra. Reconocen cuatro niveles
fundamentales: el territorio, el trabajo, el poder político y la fiesta comunal; a los que se suman
cuatro niveles complementarios o auxiliares: el derecho, la educación tradicional, la lengua y
la cosmovisión. Años después, Jaime Martínez Luna (2009) agregó elementos más espirituales
5
Las comunidades indígenas no pueden entenderse al margen del colonialismo que las reconfiguró. Por ejemplo,
la organización de cargos, su doble función, tanto de vínculo con la autoridad colonial, como de nexo con las
fuerzas del mundo, es resultado de la presencia de excedentes abstractos (no sólo dinerarios), que obligó a la
construcción de mecanismos de reequilibrio material y la transformación de los gastos improductivos en torno a
las fiestas religiosas católicas más que a las fiestas agrícolas paleoindias, de ciclos más largos. Esto definió de
manera radical las relaciones de parentesco.
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al concepto de comunalidad, definiéndola como una forma de vida que se asume como manera
para conservar una identidad cultural arraigada en un territorio.
La comunalidad tiene condiciones de posibilidad acotadas. Sólo puede suceder ahí donde
hay una comunidad con cierta base productiva común, con una estructura política interna, con
un orden simbólico compartido, entre esto un fuerte elemento religioso.
Para las zonas en las que la comunidad se disolvió, fragmentó o recompuso, emerge de
nuevo la problemática fundante: lo común. Hoy lo común oscila entre dos grandes posiciones,
aquella que lo vincula con las comunidades arcaicas, presentándolo como imposible al margen
de éstas. Por otro lado, aparece lo común como una suerte de esencia o sustancia, que bajo un
principio de voluntad puede incorporar los elementos que crean convenientes. Pero lo común
es más que eso; hay común sin comunidad y no es una necesidad de la vida política (GARCÉS,
2013).
Las revueltas de la autonomía demuestran que, en lo común, como problema político
reiterado, también se dirime la tensión entre el yo y el nosotros, porque no es un agregado de
yo, ni una subsunción a un plural. Hay juegos dialécticos entre cada nivel. El yo sigue
funcionando, como principio que recuerda que cada vida empieza en un cuerpo singular, que
en su singularidad necesita de otras vidas, una vida que para poder vivirse depende de otras
vidas, humanas y no-humanas. Acá el nosotros no es resultado de una agregación, sino de la
construcción de relaciones entre vidas que quieren vivir y que establecen compromisos
recíprocos, parentescos e implicaciones.
Pero esto es propio de casi todas las relaciones humanas. ¿Qué lo hace particular en el
problema del común? Cuáles son las relaciones en las que se crea lo común. Lo común es una
producción que se hace desde lo singular y lo plural; no existe como un ex ante o una mera
voluntad o un mero acuerdo (GUTIÉRREZ AGUILAR, 2017). Lo común se produce, como
proceso agonístico, como polémica (en sentido amplio). Esto es clave para no caer en ciertas
trampas que quieren hacer común todo (p.e., la internet, el agua, el conocimiento). Como
relación de producción, lo común no escinde las esferas entre la producción y la reproducción,
ambas dimensiones se juegan en un mismo proceso. Lo que no significa que no existan
momentos y espacios de realización diferenciados, pero son parte de una red de acciones.
Como producción, lo común necesita condiciones materiales y contenidos simbólicos.
Materialidades de los más diversos órdenes, pero nada que no se pueda operar o intervenir es
parte de lo común. De los contenidos simbólicos hay que reconocer una operación doble: la
construcción de herencias y su actualización en el presente. Las herencias no son simples
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formas, sino tiempos históricos que en la producción de lo común se entreveran, conviven sin
hacer síntesis. Son las herencias las que hacen posible un presente común. La densidad de
vínculos con el tiempo presente dependerá de la capacidad de producir herencias. Producir
común es un hecho total, involucra lo político, lo ético, lo estético, lo mítico, lo técnico, etcétera.
La relación con el tiempo en la producción de lo común no presupone una suerte de sentido
único compartido. Por el contrario, lo común, en tanto relación abigarrada, es por excelencia el
espacio de las diferencias y los disensos. La producción de lo común no es una ideología única
o a un proyecto cerrado; es una de las formas de entenderse en el desacuerdo. En gran medida
porque es una relación evanescente, una complicidad que dura sólo el tiempo de la producción
de lo común. No está antes, ni necesariamente durará después.
Lo común es una zona de encuentros, de tramas, en su triple sentido: de atravesar líneas,
de construir conspiraciones y de florecimientos (GUTIÉRREZ AGUILAR; NAVARRO;
LINSALTA, 2017). Es por lo que al tiempo que se producen acercamientos, también se
construyen las condiciones de distanciamiento. Las personas que participan de la producción
de lo común necesitan mecanismos para aproximarse, pero también para poder separarse. No
es una condena, ni un castigo, es un proceso en construcción.
Las revueltas de la autonomía también enseñan que tampoco hay que idealizar lo común y
la comunalidad, porque hay formas que se organizan bajo estos principios para defender el
orden capitalista. En otros casos, para generar condiciones de un mundo distinto que, bajo
principios místicos defienden un orden perdido, generalmente de tipo religioso. La
aglomeración de personas en defensa de proyectos bajo principios de responsabilidad y
cooperación recíproca no son necesariamente emancipadores. También pueden ser espacios
reaccionarios, ya sea por voluntad o por la inercia de las prácticas que promueven o la obsesión
militante de conseguir un objetivo compartido.
Desde el estado mexicano se combate la producción de lo común porque ataca uno de los
núcleos duros de su poder: ser los constructores y directores de los proyectos de desarrollo, el
único camino posible para la imaginaria población nacional. Desde las versiones más
conservadoras, como las panistas hasta la versión de izquierda de aires transformadores, la
producción de lo común de los proyectos autónomos es una piedra en el zapato, no sólo porque
demuestran que hay otras formas de creación de cultura material alejadas de la idea de
desarrollo, porque también dan cuenta de las capacidades creativas que existen en las distintas
geografías del país, resultado de la combinación de saberes y de la reapropiación de tecnologías.
Además, la producción de lo común es uno de los procesos que permite colectividades
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concretas, por fuera de la mitografía nacionalista y de la confluencia de las necesidades de la
mayoría, porque no hay común sin actividad participativa de las partes involucradas, contrario
a la idea de la identidad nacional, que existe independientemente de las personas. Finalmente,
la pelea contra lo común intenta proteger el sentido del estado moderno, presentarse como el
ámbito universal de la socialización, porque la confluencia de cuerpos, ideas, posiciones en
relación con un proyecto compartido, que solo pertenece a las personas que lo realizan, pone
en crisis la idea de general y racional de la estatalidad y la institucionalidad integral en la que
todo se subsume. Lo común demuestra un horizonte de diversidad que es contrario a la unidad
de lo estatal.
La terca diversidad
En el siglo
XXI,
las formas estatales mexicanas lidian con el problema de la diversidad a
través de la fuerza y de la folklorización. Por un lado, mediante la creación de leyes e
instituciones que dicen representar y promover la diversidad, al tiempo que la domestican y la
normalizan: solo la buena diversidad puede ser atendida, es decir, aquella que respete al estado
que sistemáticamente la niega. Por otro lado, la innegable presencia de lo múltiple trata de
contenerse mediante mecanismos de exhibición (en su doble sentido, como puesta a la vista y
como puesta en peligro), para que sean forma hiperestetizadas y cargadas de un deber, que se
convierte en condena, de reproducir incesantemente esa forma (AGUILAR, 2020). Si el estado
se asume como una entidad orgánica e integral, ninguna diferencia real puede ir por sobre él,
solo las diferencias cosificadas o minorizadas. Las diferencias, para poder existir en el estado
deben presentarse como organizaciones privadas productivas, no como formas de vida, ni
mucho menos como culturas materiales autónomas.
A pesar de esto, viejas formas culturales se materializan a lo largo y ancho del país. Las
comunidades campesinas, en especial las que practican ejercicios deliberados de autonomía,
son y, muy probablemente, serán una necesidad para la realización de todos los proyectos de
civilizatorios hasta ahora conocidos, al tiempo que representan un peligro, derivado de su
relativa independencia y de su capacidad de reproducción al margen de los planes, estructuras
y normas exógenas. Son formas culturales tercas (BARTRA, 2021). A imagen y semejanza de
los entornos, cambian lentamente, son formas colectivas organizadas por tiempos cíclicos, en
los que de manera sincrónica perviven cortas, medianas y largas duraciones. Sus ritmos
acompasan los eternos retornos. Esto impacta en todos los ámbitos de su cultura material, desde
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los medios para producir, hasta las maneras de concebir la vida y el lugar que cada cuerpo
ocupa.
Gracias a ese tiempo lento mantienen un equilibrio relativo entre lo que necesitan y las
capacidades para satisfacerlo. Tiene una economía centrada en las personas, una economía
sustantiva, concreta, de escalas de proximidad, en la que se conserva una relación orgánica entre
lo que se sabe y lo que se hace. La división entre producción y reproducción es artificial, ahí
donde se produce al mismo tiempo que generan las condiciones de la reproducción de las
formas de vida, tanto las humanas como las naturales: producir la tierra es generar las
condiciones de su reproducción; cuidar las formas de vida es el medio para la producción.
Para lograr esta codeterminación es necesario el cultivo de la diferencia y la hospitalidad,
nada bajo el principio de lo idéntico puede generar una relación orgánica entre producción y
reproducción. La síntesis de esta relación son las parcelas de cultivo, espacios en los que
conviven una diversidad de existencias bajo una lógica de hospitalidad, todas las vidas ahí
contenidas se procuran unas a otras, garantizando la preproducción del conjunto (ESTEVA;
MARIELLE, 2003). El ejemplo por excelencia es la milpa, en las enredaderas de calabaza que
corren por el piso, conservan la humedad necesaria para las espigas de maíz, a cuyas sombras
crecen las ramas del frijol, cuyas hojas alimentan la tierra para que los quelites y los quintoniles
crezcan silvestremente en las estrías de la tierra no cultivada.
La diversidad es la condición y el fin de la organización autónoma de los campesindios.
Solo es posible como una articulación colectiva, una forma nosótrica (LENKERSDORF, 2008),
que no es una agregación de existencias individuales, sino una articulación de formas que se
codeterminan mediante divisiones complementarias no dicotómicas (p.e., un abajo que es al
mismo tiempo abajo-abajo y abajo-arriba). Todas las existencias del “universo” concreto
cuentan y son claves para la reproducción del mundo de la vida; cada trabajo singular es
necesario en la reproducción del conjunto.
Las revueltas de la autonomía imbrican las formas humanas y las formas naturales,
demostrando radicalmente que no hay UNA humanidad, ni una naturaleza, como el pensamiento
ilustrado inventó hacia finales del siglo
XVIII
(SAHLINS, 2011). Las formas humanas
autónomas develan la radicalidad de la relación entre lo natural y lo humano, las formas
humanas no existen al margen de los entornos naturales; y las formas naturales no existen al
margen de las acciones humanas. De ahí la complejidad de su idea de territorio. Las autonomías
campesinas e indígenas son formas de la diferencia, en el marco de relaciones de coproducción;
son formas de proximidad concretas, no criterios abstractos.
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Cada terruño es único, cada relación de coproducción es una unidad desde la que se
proyectan mundos, desde la que se conocen los demás mundos de la vida. No son formas
aisladas y ensimismadas, como las construye la mitografía modernizante, son formas acotadas
de internacionalismo, de integración y articulación. Dominadas por saberes vernáculos
tendencialmente políglotas, alejados del monolingüismo impuesto por la educación
escolarizada. Sus necesidades se traducen en complejos y entreverados trajines de intercambio;
la autosuficiencias y autonomías relativas no significan clausura o encierro (RIVERA
CUSICANQUI, 2018). Las formas diferenciadas crecen entre entramados, más o menos
grandes, que aseguran el reconocimiento y el intercambio entre formas culturales.
De tal suerte que las relaciones entre saber y hacer conservan al tiempo que se mueven y
se adaptan. El constante flujo afianza saberes y permite la integración de otros, bajo principios
de no subordinación sino de abigarramiento, de experimentación constante. Su vernáculo orden
instrumental experimenta lentas pero constantes transformaciones, que afianzan saberes o que
los modifican: cambian al conservar su identidad. Lo mismo sucede con sus estructuras de
significación, en las que la verdad no está separada de las acciones; por lo que las
transformaciones en las prácticas modifican las verdades y las significaciones como condición
de conservarlas. Las verdades se viven, encarnan, se sienten. Lo que demuestra una dinámica
ampliamente adaptativa, al tiempo que conservadora. Una dialéctica que permite que las formas
campesinas sobrevivan a los más diversos esfuerzos por desaparecerlas.
En su concreción son insubordinadas e inaprensibles en la lógica capitalista; orilleras del
principio de valorización y de su lógica de identidad mercantil; insubordinadas a la estrategia
de disolución de la reproducción de la producción; son insubordinadas a la dependencia
instrumental de la tecnología capitalista cuyo fin es la ganancia infinita; son insubordinadas a
una economía desincrustada, que funciona con independencia de las otras esferas de la vida
colectiva; son insubordinadas a la especialización, la homogeneidad y la expansión de la
producción capitalista (BARTRA, 2021).
Tampoco hay que idealizarlas y convertirlas en la nueva forma del sujeto de la revolución.
Son por eso semillas de algo distinto, pero no las depositarias de una transformación anunciada.
Pero el estado mexicano no deja de ver en este cultivo de lo diverso un peligro constante,
porque deslegitima la idea de la dependencia materializada en el estado. Lo diverso aparece
aquí como una variación de lo mismo, no como los tonos de una política nacional. La diversidad
que vaya más allá de esta unidad necesaria debe ser combatida por mecanismos combinados,
unos para su integración y homologación, por medio de procesos modernizadores, vía proyectos
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de desarrollo y reorganizaciones territoriales; además de procesos de desconocimiento o
silenciamiento, calificando aquellos mundos concretos como expresiones aisladas y opuestas a
las necesidades de la mayoría; y finalmente, mediante ataques directos, al calificarlas de atentar
contra la eticidad que reclama el respeto a la nación: la libertad sólo se realiza en el estado, lo
demás no existe (ESTEVA, 2021). Se niega así uno de los componentes más creativos de las
revueltas de la autonomía: su espacialización, como base una cultura material propia.
Los territorios y la autonomía
El mayor ataque del estado-nación mexicano a las revueltas de la autonomía
campesindias es contra sus materializaciones, en partículas la forma de construir territorios, ya
sea por la recuperación de tierras o por la refuncionalización de las que ya ocupaban (EZLN,
2013a y 2013b). La defensa de la mediación estatal se sostiene por la idea de controlar un
territorio como una unidad, cuyas divisiones son expresión de la racionalidad, a su vez,
resultado de la voluntad de las personas que se sintetizan en el estado. La integralidad del estado
moderno demuestra su mera formalidad al existir procesos territoriales a su interior como
resultado de prácticas autónomas.6 La libertad positiva del estado nación no puede tolerar
procesos que demuestren su parcialidad y selectividad, como la creación de órdenes territoriales
autónomos. De ahí la fuerte virulencia del ataque contra el proceso que lleve a cabo esa tarea.
Pero, de qué se habla cuando se habla de territorio. Hay dos posiciones que representan los
polos dominantes del debate, una, fríamente moderna, que reduce al territorio a un contenedor
de las acciones, una suerte de materia inerte en la que se escenifican los procesos humanos, que
transforma a voluntad esas materialidades. El territorio aparece acá como una relación de
separación y dominio de la materialidad. En el otro polo aparece una posición, romántica sobre
todo, que otorga completa acción a los territorios, como parte de una temporalidad global del
mundo, la del progreso. En este caso los territorios son determinaciones absolutas de las formas
humanas. Al margen de este debate, hay posiciones más dinámicas, plantean la producción de
territorios como una práctica autónoma en la que se vinculan de manera dialéctica las fuerzas
humanas y las no-humanas, para producir entornos habitables para todas las existencias,
6
En muchas ocasiones estas formas territoriales se homologan con las formas que se generan por prácticas de
empresas criminales, para demostrar la fragilidad del estado mexicano, dada la presencia de rupturas de la unidad
territorial. Esta comparación, cuyos fines son criminalizar los procesos de autonomía, omiten señalar que los
procesos de las corporaciones criminales se hacen de la mano de la acción estatal, no de manera casual (por la
participación de personajes corruptos) sino de manera orgánica, son instituciones, pactos políticos y un segmento
de poder los que están detrás de esos territorios criminales. Cosa muy distinta con los territorios que se producen
desde la autonomía.
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bióticas y abióticas (DESCOLA, 2012). Es un falso problema el dominio de la materialidad, ni
ésta se puede dominar, ni puede dominar al conjunto de la vida colectiva.
En este caso el territorio aparece como resultado de un proceso de territorialización. De la
producción de un complejo de relaciones de interdeterminación de las formas materiales, en su
dimensión objetual y simbólica. Es el despliegue de una potencia colectiva en la que participan
las distintas existencias bajo un proyecto cultural y político compartido. Esto no significa un
relativismo en el sentido antropológico clásico. No es que haya
UNA
materialidad que es
interpretada según posiciones culturales. Es la construcción de múltiples formas de
materialidad, en la que cohabitan significaciones diferentes, subjetividades heterogéneas,
tiempos entreverados, capacidades productivas, órdenes técnicos. La territorialización es el
proceso de producción de territorio, en el que se expresa una lógica singular de forma de vida,
tanto humana como no-humana, que, para diferenciar, se llamará territorialidad
(HAESBAERT, 2011).
La territorialidad refiere, entonces, a las características que cada colectividad establece
sobre la vida misma, sobre la forma en la que se desarrolla entre existencias, en el tiempo, en
el espacio, con contenidos simbólicos concretos. Siempre bajo el principio de unidad de
diferencias no contrapuestas, sino complementarias. Nada es preexistente, todo es resultado de
esa interacción producto de la territorialidad, ninguna existencia o contenido está antes. Acá se
expresa con radicalidad la geo-grafía, la capacidad de escritura que tienen las comunidades para
construir espacios habitables, mundo de la vida y sus gramáticas (PORTO-GONÇALVES,
2001). El territorio implica fronteras, puntos en los que esa realidad construida termina,
entornos dinámicos que también definen la dimensión territorial. Las fronteras son también
producto de relaciones, en este caso de dos o más procesos de territorialización que definen
dónde termina el espacio de cada conjunto de existencias. Este no es un problema menor, ni
solamente físico, también es temporal y simbólico. Una frontera es más que un límite, es un
borde, un entorno que también es activo y en el que se juega la territorialidad en su conjunto.
El problema de las fronteras se vincula con el de las escalas. Todo territorio tiene escalas
materiales diferenciadas, que funcionan como una unidad. Los territorios están ocupados por
cuerpos, pero los cuerpos no son territorios. Pensarlo así nos lleva a dos problemas: el de la
centralidad de lo humano en los territorios o el de la multiplicación del territorio a todos los
cuerpos por lo que se vuelve todo, entonces no tiene sentido hablar del territorio como algo
específico.
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Todo esto empezó a manifestarse de manera radical a finales del siglo
XX,
cuando las
comunidades indígenas en varias partes del continente, marcharon para denunciar la
destrucción de sus mundos por mecanismos modernizantes combinados, desde el exterminio
hasta la reducción de sus espacios a mera tierra de trabajo. Las marchas por el territorio no
paran desde entonces, ponen en el centro de la lucha de emancipación la territorialidad.
En el contexto contemporáneo, las luchas por el territorio las encabezan las comunidades
indígenas, las comunidades afro y varias versiones del campesinado. Es aquí donde permanece
una capacidad de pelea y articulación que es muy difícil en otros entornos, como el urbano,
aunque no imposible (ESCOBAR, 2014). El territorio funciona como una concepción relacional
del mundo, en el que las existencias se implican unas a otras. Esta manera de existir como forma
singular es resultado de prácticas, no son sólo imaginarios o representaciones; son actividades
concretas que se articulan para producir territorio. Estas prácticas se sostienen mediante
historias, en su doble sentido: como imbricaciones de tiempos históricos de distinta naturaleza
y como narraciones que explican esos tiempos y sus sincronías asincrónicas, ya sea por
mitografías o por explicaciones reflexivas.
Las luchas por el territorio son, por tanto, políticas y culturales, no en el sentido restringido
de ambos términos, sino en el ampliado (ESCOBAR, 2014; HAESBAERT, 2011). Políticas
porque en ellas se juega la construcción de subjetividades con contenidos históricos
determinados, que se despliegan en consecuencia con esos contenidos. Culturales en tanto
productoras de una materialidad sensible y significativa específica. Son espacios vitales de
complementariedad, no de relaciones instrumentales o de uso por jerarquía (lo humano sobre
lo no-humano). Son posiciones étnico-políticas, que más que ser demostradas en un juego de
verdades y de poder, son experimentadas por las personas que las producen y habitan.
Algo que es central en estas luchas territoriales es su capacidad de adaptación y de
refuncionalización de los órdenes materiales capitalistas (EZLN, 2016). No son formas puras,
ni atrapadas en el tiempo, son procesos que se adaptan y modifican con el objetivo de defender
el núcleo duro de su territorialidad mediante la incorporación de saberes, objetos y procesos
generados fuera de sus territorios. Es así como este tipo de luchas es altamente creativo y
adaptable. Recurriendo a múltiples formas de violencia para defender sus mundos, sus espacios
de vida; incluida la violencia moderna por excelencia: la ley. Recuperar, restaurar y conservar
son sólo algunas de las acciones más comunes.
Las luchas territoriales están en el centro de la crisis del estado nación, no sólo porque se
disputa el control de los bienes para convertirlos en mercancías; sobre todo porque es ahí donde
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persisten las tercas rebeldías que siguen viviendo mundos distintos a los del mesianismo
desarrollista.
De ahí que sea uno de los puntos clave de su ataque desde las políticas estatales, sin
importar la bandera del gobierno o los intereses con grupos capitalistas. Crear territorialidades
autónomas es la mayor amenaza de las tercas rebeldías, que demuestran que partidos políticos,
burócratas, intelectuales y gobiernos, solo son los mediadores entre el estado y la llamada
sociedad cuando se respeta la ficción de la unidad y la integralidad del proyecto, que está
diseñado y ejecutado para beneficiar a una minoría en nombre de las mayorías (ESTEVA,
2021). La territorialidad autónoma sale de esta ficción, no sólo la impugna, la agrieta al
separarse de ella y demostrar que otras politicidades son posibles sobre bases materiales
concretas, no sobre proyectos venideros o sueños, sino levantadas sobre ideas y acciones
prácticas que se atreven a vivir la vida en un presente radical.
Falta lo que falta
¿Hasta dónde alcanza la autonomía para enfrentar la crisis del capitalismo y sus
manifestaciones en México? No se puede responder por especulación, ni por cuantificación.
Alcanzan y alcanzarán en la medida que logren producir formas de vida dignas de ser vividas,
que abran horizontes de presente como tiempo histórico denso, colmando de posibilidades que
no están destinadas a salvar al mundo, aunque no dejan de pensar en un universal concreto: el
sistema-tierra. Pero sus acciones no sirven para frenar los efectos catastróficos del colapso,
entre ellos la devastación ambiental, ni la precarización generalizada de las formas de vida.
Sirven para construir entornos próximos habitables. Lo que no es un retorno a tiempos
premodernos, en los que las formas de vida humana estaban relativamente aisladas. Es más bien
un despertar de la mitografía moderna de la humanidad como unidad, como gran sustantivo,
que puede salvarse y mejorarse en su conjunto. Abre la puerta, en cambio, a vías universales
desde lo concreto, desde la reposición de las relaciones entre las formas de la vida y los
ambientes, reconociendo que la articulación de estos hace la totalidad del ecosistema planetario.
Por otro lado, tampoco están exentas de contradicciones y de relaciones jerárquicas
tendencialmente autoritarias. Dos de las experiencias más consolidadas de producción de
presente, el zapatismo, se sostiene por una estructura militar. La reproducción lúdica de la vida
en estas zonas es gracias a la presencia de una lógica bélica, actuante y potencial. Además,
aparece el reto del esfuerzo y el sacrificio, no viven en el paraíso en el que consumen las
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cosechas del tiempo de ocio. Cuidar cansa, reproducir la vida cansa, a veces al punto del
hartazgo, algo que el combate a la escasez del capitalismo tiene claro.
Entonces, no estamos ante la salvación del mundo, ni la humanidad, mucho menos ante la
emergencia acelerada de paraísos en México. Más bien el escenario se dirime entre el cultivo
arduo de compromisos de diversa naturaleza o la continuación de las mitografías modernas, de
un mundo mejor que espera, y esperará, por un futuro.
Estos movimientos se caracterizan, entre otras cosas, por responder de manera creativa y
autónoma a dos necesidades básicas: la alimentación y los cuidados. Lo que no es posible sin
la construcción de territorialidades, en su mayoría vinculadas a la tierra reapropiada o defendida
durante mucho tiempo. En esta forma de producir territorios emerge una práctica densa de
relaciones entre saberes y haceres; saben y pueden hacer el mundo que habitan, no dependen
de conocimientos exógenos, ni de personas especializadas que indiquen qué hacer. Se
distancian de los saberes expertos que dirigen a los estados modernos, que se materializan en
territorios abstractos habitados por poblaciones genéricas.
En los distintos ejercicios de autonomía juega un papel clave la relación de profanación de
la técnica y las tecnologías capitalistas; no sólo por lógicas de reapropiación y
refuncionalización, sino por la subversión de las relaciones jerárquicas de su uso, en especial
las de género y las de edad. Se construyen así condiciones para disolver todo orden vertical,
todo centralismo y todo vanguardismo. También hay que reconocer que son formas de
historización, que disputan el tiempo en todos sus terrenos, como pasado reapropiable, como
herencia y compromiso por los procesos derrotados y como construcción de presentes densos,
sin importar su duración cronológica.
Este tipo de prácticas están ahí desde hace mucho tiempo, invisibilizadas, negadas y hasta
combatidas por los proyectos mesiánicos y vanguardistas de los distintos estados nación. Y hoy
no dejan de ser objeto de ataques, tanto de los procesos reaccionarios como de los estereotipos
de transformación, herederos y continuadores de la idea iluminista de revolución. Los estados
nación son sus peores enemigos, ya que son una amenaza a la supuesta necesidad histórica que
creen representar.
En el contexto del colapso es más visible la fuerza e importancia de estas prácticas de
proximidad, lejanas de mesianismos salvíficos. Encaran de manera directa la necesidad de
resolver con autonomía y autodeterminación las necesidades básicas de las distintas formas de
vida, cultivan y reproducen las condiciones materiales y simbólicas de sus mundos. Podrían
caracterizarse como movimientos de reproducción, en un sentido amplio; en los que, como todo
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proceso reproductivo aparecen los procesos creativos y las lógicas lúdicas. Como lo dice
reiteradamente Silvia Federici, no hay nada más creativo que la reproducción de las formas de
la vida. A lo que se puede agregar el carácter lúdico, en un sentido benjaminiano, es decir, la
capacidad de profanar los órdenes materiales, en especial el técnico, rompiendo el principio de
repetición automática y abriendo la puerta a la experimentación.
Se invierte la lectura de los actores, ya no son las vanguardias iluminadas, ni las
organizaciones centralizadas, ni las fuerzas predestinadas. Mujeres y campesinos toman la
delantera, no por ser los predestinados a salvar a la humanidad, sino por ser, en buena parte, los
depositarios de esas artes de la resistencia y de la capacidad de reproducir la vida. A pesar de
su pequeña escala prefiguran nuevas formas de internacionalismo, que no responde a un
proyecto genérico, sino a un esfuerzo por compartir saberes para poder construir mundos de la
vida. Practican aquello que teóricamente algunas personas llaman adaptación profunda, que,
como toda adaptación es segmentada, parcial, empieza por mutaciones situadas, hasta que
logran comunicarse y modificar escenarios más grandes.
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