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Paulo Manuel Ferreira da Cunha O NOVO CINEMA PORTUGUÊS. POLÍTICAS PÚBLICAS E MODOS DE PRODUÇÃO (1949-1980) Tese de doutoramento em Estudos Contemporâneos, orientada por António Pedro Couto da Rocha Pita e apresentada ao Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra Apoio financeiro no âmbito do QREN - POPH - Tipologia 4.1 - Formação Avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCTES (Bolsa de Investigação SFRH / BD / 37436 / 2007) Setembro 2014 Agradecimentos Um percurso destes não seria possível sem o apoio de muitas pessoas. Ao meu orientador, António Pedro Pita, pela forma como me acolheu no seu grupo de trabalho e como me acompanhou ao longo deste moroso projecto de investigação, devo um sincero agradecimento, mas também pela amizade e generosidade com que acompanha o meu trabalho desde a licenciatura. Ao querido amigo Daniel Ribas, por toda a ajuda manifestada sobre as mais variadas formas, de que nunca conseguirei encontrar uma medida justa. A sua presença está em cada página deste volume e esteve em todos os dias da sua escrita. Ao Paulo Jorge Granja, ao Tiago Baptista e à Ana Isabel Soares, agradeço a presença amiga neste longo percurso que, também com o Daniel Ribas, resultaria nessa incrível aventura chamada AIM - Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Aos amigos Jorge Luiz Cruz, Leandro Mendonça e Michelle Sales agradeço toda a ajuda e amizade que me deram durante estes anos de diálogos atlânticos. Também no Brasil, agradeço o ânimo dos amigos Carolin Overhoff Ferreira, Fátima Bueno, Mauro Rovai, Rodrigo Guéron, Afrânio Mendes Catani, Nay Araújo, Danielle Ellery, Márcia Motta e Guiomar Ramos. Obrigado aos amigos que partilharam muitos debates ao longos destes anos, em várias latitudes: Maria do Carmo Piçarra, Sofia Sampaio, José Filipe Costa, Susana Viegas, Sérgio Dias Branco, Manuela Penafria, Iván Villarmea, Mirian Tavares, Sílvia Vieira, Leonor Areal, Malte Hagener, Alice Samara, Ana Catarina Pereira e Wiliam Pianco. Agradeço às muitas instituições que tornaram possível e facilitaram a minha pesquisa: CEIS20 (Dra. Isabel Luciano, Marlene Taveira e Ângela Lopes); Torre do Tombo (Paulo Tremoceiro); Centro de Documentação da Cinemateca Portuguesa e Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (Sara Moreira e Luís Gameiro); Instituto de Cinema e Audiovisual (Hugo Lourenço, Paulo Gonçalves e Paula Louro); Sociedade Martins Sarmento; Biblioteca Nacional; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; Biblioteca Municipal Pública do Porto; Cineclube de Guimarães; Arquivo Municipal Alfredo Pimenta; Instituto Nacional de Estatística; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Cinemateca Brasileira; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Aos camaradas cinéfilos do Cineclube de Guimarães, devo toda a amizade, paciência e motivação com que partilharam tantas lutas comigo: Carlos Mesquita, Alexandra Xavier, Rui Silva, Adriana Miranda Ribeiro, Helena Leite, Nuno Rocha Vieira, Miguel Oliveira, José Jordão, Benjamim Sampaio, Sara Oliveira, Iris Leite, Sílvia Martins, Luísa Alvão e Sílvia Gomes. Aos amigos de sempre, agradeço o apoio e amizade: Filipe Rodrigues, Pedro Vieira, Pedro Costa, Sónia Teixeira, Sandra Madureira, Rui Abreu, Luís Silva, Martine Cunha, Sérgio Cunha, Alexandra Marques, Marisa Vieira, Angélique Freitas, Carla Guimarães, Cláudia Silva, Agostinho Novais, César Ribeiro e Miguel Nuno. Obrigado aos meus pais e ao meu irmão Rui, por tudo. 2 Resumo É objectivo da presente tese trabalhar organizadamente com uma série de dados relacionados com a prática e o estudo do cinema para tentar compreender, na sua complexidade, aquilo que entendo como o Novo cinema português, um momento de renovação na história do cinema português que entendi balizar entre 1949 e 1980: um período delimitado entre o abandono de António Ferro da direcção do Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura Popular (1949) e a remodelação da Cinemateca Portuguesa no contexto da reorganização institucional do pós-25 de Abril (1980), então dotada de autonomia administrativa e financeira e equiparada a Direcção-Geral, no seio da Secretaria de Estado da Cultura. Em concreto, pretende-se: caracterizar este período do cinema português atendendo à contraposição entre “velho cinema“ e “novo cinema“; estudar a evolução do cinema português tendo em atenção o processo de internacionalização da cultura portuguesa, avaliando o seu impacto na prática artística e cultural e o seu processo de circulação e apropriação; compreender a relação entre o poder político e a prática cultural e artística; e avaliar a importância da expressão artística como manifestação social. Ao longo do presente texto, investigarei as linhas gerais das políticas públicas para o cinema em Portugal e os modos de produção do cinema português entre 1949-1980, procurando identificar, caracterizar e analisar as tentativas de renovação promovidas no cinema português ao longo desse período, nomeadamente: o fim do projecto cultural e artístico de António Ferro e os vazio institucional dos anos que se seguiram; a afirmação dos movimentos neo-realista e cineclubista; as transformações estruturais promovidas por César Moreira Baptista; o surgimento do cinema moderno; a radicalização das propostas e a opção por um modelo cooperativo; as fracturas e as cisões de Abril; e a afirmação definitiva de uma estratégia de internacionalização da produção e da circulação do cinema português. Como uma hipótese de trabalho para compreender esse período na sua complexidade, optei por desenvolver o conceito de “modo de produção“, um conceito que pretende contribuir para uma revisão e uma viragem historiográfica que passa pela valorização de factores extrafílmicos que influenciam de forma determinante a produção e circulação de cinema, contrariando uma visão estereotipada dominante que desconhece, desconfia ou ignora as importantes fontes históricas que não têm sido utilizadas na compreensão do objecto em estudo nesta tese, e alargar a análise para além dos habituais materiais fílmico e textual (crítico e teórico). Considero fundamental sublinhar, entre outros aspectos, a importância da distribuição, exibição e recepção dos filmes para compreender a evolução do sistema produtivo no cinema português no período aqui em estudo, assim como a transformação da ideia de cinema, crítica e cinefilia que tanto contribuiria para a renovação do cinema português. Desvalorizar ou ignorar 3 estas questões no estudo do cinema português é particularmente grave porque elas estão significativamente relacionadas com a prática fílmica, e estiveram sempre presentes no processo de afirmação e reconhecimento do Novo cinema português. É, em linhas muito gerais, este o tipo de abordagem que proponho para estudar o cinema no período balizado entre 1949 e 1980. Acredito que seja necessária uma abordagem mais ampla do objecto para o compreender em toda a sua complexidade. À tradicional análise estilista mais habitual nos escritos sobre o cinema português, pretendo acrescentar a análise de outros aspectos: nível da organização empresarial, condições de penetração no mercado exibidor e distribuidor nacional e internacional, produção e regulamentação de legislação, investimento estatal e a evolução tecnológica. Palavras-chave: Novo cinema português; políticas públicas; modos de produção; cinema de arte; Abstrat The goal of this thesis is to work, on an organised manner, with a series of data related to the practice and study of cinema, in order to understand what I define as New Portuguese Cinema, in all its complexity. It is a renovation moment in the history of the Portuguese cinema, which I decided to limit between 1949 and 1980: a period ranging from the abandonment of the Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura Popular (1949) by António Ferro to the remodelling of the Cinemateca Portuguesa, which had administrative and financial independency and was considered to be a Directorate-General within the Secretariat of State for Culture, due to the institutional reorganization that took place after 25th April 1974 (1980). In practice, I wish to: characterize this period of the Portuguese cinema, taking into consideration the conflict between “old cinema” and “new cinema”; study the evolution of the Portuguese cinema while taking into account the internationalization process of the Portuguese culture and evaluating its impact in the artistic and cultural practice and its process of circulation and appropriation; understand the relationship between political power and cultural and artistic practice; and evaluate the importance of the artistic expression as a social manifestation. Throughout this text, I will analyse the broad lines of public politics for cinema in Portugal and the Portuguese cinema’s ways of production between 1949-1980, aiming to identify, characterize and scrutinize the renewal attempts over this period, namely: the end of António Ferro’s cultural and artistic project and the institutional void of the following years; the affirmation of the neo-realistic and film society movements; the structural transformations of César Moreira Baptista; the birth of modern cinema; the radicalisation of proposals and the adoption of a cooperative model; the divisions and partitions that occurred after 25th April 1974; 4 and the definitive confirmation of the internationalization strategy in the production and spread of the Portuguese cinema. As a working hypothesis to understand this period in all its complexity, I decided to develop the “way of production” concept, which intends to contribute to a historical turn and revision by valuing the extra film factors that firmly influence the production and spread of cinema. This contradicts the dominant stereotyped vision that does not know, distrusts or ignores the important historical sources that were not used to understand the object of this thesis. The concept also aims at extending the analysis beyond the usual filmic and textual materials (criticism and theoretical). I think that it is essential to stress the importance of distribution, exhibition and reception of movies, among other things, to understand the evolution of the production system in Portuguese cinema during the period in analysis, as well as the transformation of the idea of cinema, criticism and love of the cinema that would contribute so much to the its renewal. It is particularly serious to underestimate or ignore these questions in the study of the Portuguese cinema because they are significantly related with the film practice and they have always been present in the process of affirmation and recognition of the New Portuguese cinema. On a very general level, this is the approach that I propose to study cinema in the 19491980 period. I believe that it is necessary a broader analysis of the object to understand it in all its complexity. To the traditional analysis that is more usual in the written records on the Portuguese cinema, I intend to add the study of other aspects: the level of business organisation, the conditions to enter in national and international markets that exhibit and distribute cinema, the production and regulation of legislation, the governmental investment and the technological evolution. Keywords: New Portuguese cinema; public policies; production mode; art cinema; 5 Índice Introdução..................................................................................................... 9 1. O estado da arte......................................................................................... 17 1.1. Histórias da história do cinema português.................................................... 17 1.2. Para uma arqueologia do Novo cinema português........................................... 21 1.3. Para uma releitura do Novo cinema português............................................... 32 1.4. Memória, crítica e historiografia.................................................................. 52 2. As políticas públicas para o cinema em Portugal (1949-1980)........................ 61 2.1. A falência do projecto cultural de António Ferro............................................. 61 2.1.1. 1955: ano zero de quê?..................................................................... 71 2.1.2. Circulação, distribuição e recepção..................................................... 81 2.2. César Moreira Baptista............................................................................... 98 2.2.1. “O Estado não pode ser produtor de filmes“......................................... 101 2.2.2. A televisão pública......................................................................... 110 2.2.3. As bolsas de estudo........................................................................ 126 2.2.4. Os festivais internacionais de cinema................................................. 134 2.2.5. Censura: entre contradições e excepções............................................ 142 2.3. A Lei 7/71............................................................................................. 146 2.3.1. O Instituto Português de Cinema....................................................... 150 2.3.2. A Escola Superior de Cinema............................................................. 161 2.4. Durante e depois de Abril: refundar todo o cinema português......................... 164 2.4.1. A inversão da marcha da História e do Cinema..................................... 171 2.4.2. O estado das coisas......................................................................... 191 2.4.3. Fechar Abril.................................................................................. 205 3. Modos de produção no cinema português (1949-1980)................................ 212 3.1. Neo-realismo......................................................................................... 212 3.1.1. O caso Manuel Guimarães................................................................. 221 3.1.2. Crítica cinematográfica: os profetas da desgraça.................................. 241 3.2. Cineclubismo......................................................................................... 261 3.2.1. Federação Portuguesa de Cine-Clubes................................................ 269 3.2.2. De Dom Roberto à Semana de Estudos do Novo Cinema Português ........... 280 3.2.3. O cineclubismo entre as lutas de Abril................................................ 290 3.3. Cinema de amadores................................................................................ 297 3.3.1. Os casos António Campos e António Reis............................................ 309 3.3.2. Federação Portuguesa de Cinema de Amadores.................................... 320 6 3.4. Cinema moderno..................................................................................... 333 3.4.1. Manoel de Oliveira.......................................................................... 335 3.4.2. Curtas-metragens........................................................................... 352 3.4.3. Produções António da Cunha Telles................................................... 361 3.4.4. Radicalismo e experimentalismo....................................................... 376 3.5. Uma terceira via?.................................................................................... 386 3.5.1. Manuel Queiroz, Francisco de Castro e Felipe de Solms.......................... 389 3.5.2. Artur Semedo................................................................................ 398 3.6. Cooperativas.......................................................................................... 401 3.6.1. Centro Português de Cinema............................................................. 403 3.6.2. ACOBAC........................................................................................ 422 3.7. Co-produção.......................................................................................... 426 3.7.1. Departamento de Co-produção de Cinema da RTP................................. 430 3.7.2. Paulo Branco................................................................................. 435 4. Algumas reflexões finais.......................................................................... 440 4.1. O que foi o Novo cinema português?.......................................................... 440 4.1.1. Internacionalização........................................................................ 443 4.1.2. Estatização................................................................................... 445 4.1.3. Canonização.................................................................................. 448 4.2. Oxalá.................................................................................................... 451 Anexos....................................................................................................... 452 Fontes e bibliografia................................................................................... 483 7 Não sei se a história que lhes quero contar é inteiramente verdadeira. Parte dela eu só conheço por ouvir falar. Depois de muitos anos, várias coisas permanecem obscuras, e muitas perguntas continuam sem resposta. Mas acho que devo contar os estranhos acontecimentos que ocorreram na nossa aldeia. Quem sabe, eles possam esclarecer algumas coisas que ocorreram neste país. Das weiβe Band - Eine deutsche Kindergeschichte (O Lenço Branco, 2009), de Michael Haneke. 8 Introdução É objectivo desta presente tese trabalhar organizadamente com uma série de dados relacionados com a prática e o estudo do cinema para tentar compreender, na sua complexidade, aquilo que entendo como o Novo cinema português, um momento de renovação na história do cinema português que entendi balizar entre 1949 e 1980: o abandono de António Ferro da direcção do Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura Popular (1949) e a remodelação da Cinemateca Portuguesa no contexto da reorganização institucional do pós-25 de Abril (1980), então dotada de autonomia administrativa e financeira e equiparada a Direcção-Geral, no seio da Secretaria de Estado da Cultura). Em concreto, pretende-se: caracterizar este período do cinema português atendendo à contraposição entre “velho cinema“ e “novo cinema“; estudar a evolução do cinema português tendo em atenção o processo de internacionalização da cultura portuguesa, avaliando o seu impacto na prática artística e cultural e o seu processo de circulação e apropriação; compreender a relação entre o poder político e a prática cultural e artística; e avaliar a importância da expressão artística como manifestação social. Este projecto de trabalho surgiu naturalmente após a conclusão da minha dissertação de mestrado intitulada “Os filhos bastardos“. Afirmação e reconhecimento do Novo cinema português 1967-74 (2005), orientada por Rui Bebiano e desenvolvida no âmbito do curso de mestrado em História das Ideologias e Utopias Contemporâneas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Desse trabalho sobre o processo de discussão e elaboração da legislação cinematográfica de 1971, que vigorou em Portugal, grosso modo, desde o período marcelista até à actualidade, procurei compreender, na totalidade, a surpreendente afirmação de Paulo Filipe Monteiro (2000: 306): “Dizemos apenas que, ao contrário do movimento cineclubista, que o Estado Novo, mesmo na sua fase marcelista, não hesitou em extinguir, o chamado ‘novo cinema’ pôde, ainda antes do 25 de Abril, controlar todos ou quase todos os lugares da instituição ‘cinema’, tendo assim nas mãos o poder de produzir, ensinar e criticar, apesar do seu alinhamento político à esquerda“. A principal conclusão desse trabalho resultou a percepção de que a nova legislação culminou um longo e complexo processo que reflectia uma mudança de paradigma na produção e recepção de cinema em Portugal. A criação do Instituto Português de Cinema e da Escola Superior de Cinema, ambos em 1973, promoveram transformações 9 estruturais no cinema português que ainda são visíveis na actualidade, pautando o modelo de intervenção política cultural pública no cinema nas últimas quatro décadas. Fiquei convencido, desde então, que essa mudança de paradigma só foi possível devido ao claro desinvestimento estatal no fenómeno cinematográfico verificado após da citada saída de António Ferro da direcção do SNI. Na minha opinião, foi o fim do projecto cultural e artístico desse dirigente, que vigorara durante a segunda metade da década de 1930 e a primeira da seguinte, que criou um vazio político e que permitiu a afirmação de vários projectos culturais e artísticos alternativos, na sua maioria desfasados com as coordenadas ideológicas do Estado Novo. Era também minha convicção que, por motivos distintos, esse vazio institucional vigorou durante três décadas, até inícios da década de 80. Passado o fulgor revolucionário, a política cinematográfica do Estado português foi-se definindo a partir de dois momentos simbólicos: a chegada de João Bénard da Costa à Cinemateca Portuguesa e a declaração de Lucas Pires da infeliz e célebre expressão fortemente estigmatizada que reduzia a produção cinematográfica aos “filmes para Bragança“ ou dos “filmes para Paris“.1 Procurando condicionar objectivamente o poder político e as orientações da política cultural e artística dos responsáveis governativos, as principais figuras das “facções em confronto“ apresentavam os seus argumentos. Alguns sucessos e meios-sucessos nas bilheteiras, na primeira metade da década, entusiasmam os que ainda acreditavam na reconciliação com o público e com a viabilização de uma indústria rentável de cinema em Portugal (Cunha, 2013b: 216). Apesar da aparente “indecisão“ governamental em relação à “guerra“ entre os defensores de Bragança e de Paris, o poder político tratou de “estabilizar“ os seus principais “braços“ no meio cinematográfico: após o falecimento de Manuel Félix Ribeiro, a direcção do organismo foi entregue a Luís de Pina (1982-91), secundado por João Bénard da Costa (director-adjunto entre 1980-1991); após nove comissões administrativas, a direcção do então IPC foi entregue a Luís Salgado de Matos, que cumpriu funções entre 1983 e 1990; depois de ser director do Canal 2 da televisão pública portuguesa (RTP) entre 1978 e 1979, Fernando Lopes criou e dirigiu o departamento de co-produções internacionais da RTP entre 1979 e 1993 e que foi determinante no apoio financeiro à produção; finalmente, a Escola Superior de Cinema 1 A depreciativa designação “filmes para Bragança“ referia-se às obras com uma preocupação mais comercial e popular, destinadas a agradar ao grande público nacional, enquanto os “filmes para Paris“ seriam as obras com preocupações estéticas e artísticas mais elaboradas, usando-se a capital francesa como referência cultural e artística de um património cinematográfico supranacional. 10 também viu definida a sua situação administrativa, mantendo um grupo de professores consolidado sob a direcção de José Bogalheiro (1986-95). Em suma, nessa primeira metade da década de 1980, apesar da relativa instabilidade governativa2, o poder político tratou de lançar as bases para uma política pública de cinema que beneficiaria a vontade de internacionalização defendido pela facção dos “filmes para Paris“. Parece-me evidente que esta ideia de internacionalização foi a natural conclusão de um longo processo iniciado nos anos 60, promovido por uma geração de cineastas formados em instituições de ensino ou formação profissional estrangeiras, e que operou uma significativa mudança de paradigma no cinema português. Ao contrário do paradigma de um cinema nacional para um público lusofalante tentado por António Ferro (1933-49), nos anos 60 e 70, esta geração lançou bases para uma internacionalização que se consolidaria de forma inequívoca e se institucionalizaria ao longo dos anos 80 (Cunha, 2013b: 237). Augusto M. Seabra afirma que, a par duma “inegável pujança criativa“, os anos 80, marcados por “uma constante sobreposição entre os objectos do discurso, os filmes e as políticas de produção“, “tendeu à afirmação obsessionalmente reiterada de uma 'diferença portuguesa'“ (Seabra, 2000: 15). Em suma, para além da mudança de política pública para o cinema, pode-se considerar que os anos 80 foram essencialmente um momento de transformação dos modos de produção em vigor no cinema português. Na sua tese de doutoramento, Leandro Mendonça levantou, pertinentemente, a questão do conceito de “modo de produção“ como uma hipótese de trabalho para compreender um período similar no caso do cinema brasileiro dos anos 50 e 60: “[modo de produção] era um conceito que, a princípio, só poderia ser aplicado nos estudos sistêmicos de largo alcance, sobre toda uma sociedade.“ (Mendonça, 2007: 9). No trabalho desenvolvido, este investigador e professor brasileiro assumiu “a continuidade com uma tradição dos estudos sobre audiovisual que vem se consolidando nas últimas décadas e busca agregar novas temáticas e novas abordagens e, especialmente, os aspectos econômicos como focos centrais para a construção teórica.“ (Ibidem: 10-11). Em suma, Mendonça propôs “juntar em uma análise a legislação, a organização empresarial, a recepção, a distribuição, o modo de filmar, o financiamento, entre outras questões, em sua relação com resultado estético“ (Ibidem: 11). Mas a sua abordagem 2 V Governo Constitucional (1979-80; iniciativa presidencial), VI Governo Constitucional (1980-81; coligação PSD+CDS+PPM), VII Governo Constitucional (1981; coligação PSD+CDS+PPM), VIII Governo Constitucional (1981-83; coligação PSD+CDS+PPM), IX Governo Constitucional (1983-85; acordo parlamentar PS+PSD). 11 também “significou a afirmação da existência de modos de produção diferentes, convivendo no mesmo momento histórico e ocupando nichos distintos no espaço de sobrevivência.“ (Ibidem). O objectivo final da proposta de Mendonça era então trabalhar o conceito de modo de produção das ciências sociais, desde o marxismo clássico, e torná-lo operacional para demonstrar a sua utilidade historiográfica, “que se construiu na maior parte do tempo como uma história da arte, para proximidade do objecto e criar fortes ligações com o estatuto da práxis e do real.“ (Ibidem: 11). Naturalmente, também me interessam as reflexões que Francesco Casetti sublinha em Teorias do cinema (1994: 319-334): as histórias tradicionais do cinema, ao centrar a sua atenção no filme e ignorando os factores tecnológicos, económicos e sociais, limitavam gravemente a compreensão da complexidade do cinema. Robert Stam, na sua Introdução à teoria do cinema, também alertara que história do cinema não era apenas a história dos filmes e dos cineastas, mas também, por exemplo, a história dos vários significados que os públicos têm atribuído aos filmes (Stam, 2006: 255-260). Em linhas gerais, estas novas abordagens são resultado de uma viragem historiográfica que se iniciou simbolicamente em Brighton, em 1978: nesse ano, a Fédération Internationale des archives du Film (FIAF) organizou o seu segundo simpósio histórico que contou com a presença de diversos investigadores e arquivistas para partilhar e debater as suas mais recentes pesquisas. Esse importante simpósio permitiu reavaliar as histórias do cinema produzidas anteriormente, evidenciando a necessidade de se valorizar, para além dos próprios filmes, o contexto cultural, económico e social onde eles surgiam (Costa, 2005: 91). Por outro lado, como sublinha Tiago Baptista (2003: 8-9), a “reviravolta historiográfica“ verificada após esse simpósio de Brighton também passava pela reavaliação da história até então “canonizada“ pela visão estilística dos historiadores da arte. A extensão do corpus a obras até então consideradas menores também contribuiu para a reavaliação de ideias autorais e questionar interpretações historiográficas anteriores. Mas foi David Bordwell quem introduziu a questão dos “modos de produção“ nos estudos de cinema, já relacionando os filmes com a normatividade técnica do sistema produtivo, mas ainda não considerando aspectos como a distribuição e a exibição nem elementos ligados à economia. Dialogando com outros trabalhos recentes, pretendo questionar a prática historiográfica em torno do cinema que desconhece, desconfia ou ignora de importantes 12 fontes históricas que não têm sido utilizadas na compreensão do objecto em estudo nesta tese, e alargar a análise para além dos habituais materiais fílmico e textual (crítico e teórico). Trata-se de partir da proposta historiográfica que David Bordwell, Janet Staiger e Kristin Thompson (1985) estabeleceram para estudar o estilo cinematográfico e, seguindo a análise de Richard Allen (1985: 86-87), tentar ampliar o estudo às formas técnicas e económicas que influenciam e condicionam esse estilo: “Alargar este campo significa que se deve olhar com precisão para formas de inserção no mercado exibidor e distribuidor nas suas características de mercado hegemonizado pelo cinema estrangeiro e tentar descobrir se existiram estratégias de ascensão e sobrevivência para casa uma das formas de expressão, produção e inserção no mercado que concorriam em uma mesma época.“ (Mendonça, 2007: 24). Tal como Leandro Mendonça entendeu para o caso do cinema brasileiro, também eu considero fundamental sublinhar a importância da distribuição, exibição e recepção dos filmes para compreender a evolução do cinema português no período aqui em estudo. Desvalorizar ou ignorar estas questões no estudo do cinema português é particularmente grave porque elas estão significativamente relacionadas com a prática fílmica, e estiveram sempre presentes no processo de afirmação e reconhecimento do Novo cinema português. Em 2003, Emeterio Diez Puertas denunciava o mesmo em relação à história do cinema no país vizinho e questionava-se sobre a metodologia mais adequada3, lembrando a origem etimológica da própria palavra cinema: “(…) designava algo mais que o filme. O conceito era uma abreviação de cinematógrafo, um dos inventos para a rodagem, edição e projecção de filmes. Só mais tarde, quando se pretende dar aos filmes um estatuto artístico, aparece o conceito de cinema como abreviatura de cinematografia, que passa a designar a arte da representação do movimento pela fotografia. É naquele momento que os filmes se estudam com os três ramos tradicionais dedicados aos objectos estéticos: a teoria da arte/teoria cinematográfica, a crítica da 3 “Quizás algunos entiendan que com este plateamiento no puede escribirse una historia del cinema digna del tal nombre, pero les aseguro que la idea de una historia del cine total tampoco se encuentra plasmada en ninguna de las publicaciones hasta hoy editadas, pues, en realidade, las obras generales sobre el cinema español solo se ocupan de un aspecto muy limitado: la historia de las películas. (…)“ / (…) Pero, sobre todo, los historiadores difieren en su distinta concepción de lo que debe ser la Historia del Cine. Esto incluye desde el método de trabajo (la critica especulativa o la textual, la documentación superficial o rigurosa, la cuantificación o no de los hechos…) hasta el próprio tema de estúdio: la Historia del Cinema es la historia de las películas?, de las estrelas?, de los autores?, de los signos que dan sentido a laspelículas?, de la tecnologia que las materializa?, de los hombres que producen, usan y piensan las películas? (…)“(Diez Puertas 2003: 10-12). 13 arte/crítica cinematográfica e a história da arte/história do cinema.“ (Diez Puertas, 2003: 12). Fazendo uso de novos núcleos documentais – arquivos oficiais e privados, filmotecas, imprensa diária, boletins de associações profissionais e políticas, entrevistas e textos escritos na primeira pessoa (diários, biografias, livros de memórias, etc.) – e de metodologias provenientes de distintas origens (escola do Anais, historiografia marxista, Social History britânica e norte-americana), Diez Puertas propõe uma História Social do Cinema: “No nosso caso, abordamos a história social desde um ponto de vista materialista e dialéctico. Isto, em absoluto, não significa cair no paradigma marxista nem em qualquer outro. (…) Para nós, o modelo teórico é uma fonte de sugestões, de críticas, de novas aproximações e hipóteses, um meio de nos relaciona com a tradição através da aplicação de uma série de conceitos que consideramos património comum da historiografia.“ (Ibidem: 17). Finalmente, Diez Puertas estrutura o seu livro em torno de três análises – estrutura económica do cinema, usos sociais do cinema e linguagem do cinema – que correspondem a três aspectos complementares: as relações económicas, sociais e estéticas (Ibidem: 19). É, em linhas muito gerais, este o tipo de abordagem que proponho para estudar o cinema no período balizado entre 1949 e 1980. Acredito que seja necessária uma abordagem mais ampla do objecto para o compreender em toda a sua complexidade. À tradicional análise estilista mais habitual nos escritos sobre o cinema português, pretendo acrescentar a análise de outros aspectos: nível da organização empresarial, condições de penetração no mercado exibidor e distribuidor nacional e internacional, produção e regulamentação de legislação, investimento estatal e a evolução tecnológica. A abordagem é, portanto, parcial, olhando as obras como pequenos objectos independentes e impedem uma visão mais geral e integrada. Como alerta Leandro Mendonça (2007: 21-22), esta abordagem condiciona o trabalho historiográfico: “demonstra uma opção de organização das fontes e, mais ainda, o tipo de pergunta que se fez a elas.“ Um bom exemplo é o caso do célebre suposto “ano zero“ do cinema português. Na história do cinema português, o ano de 1955 é considerado por muitos autores como um “ano zero“ uma vez que durante o mesmo não estreou nas salas portuguesas nenhum 14 filme de longa-metragem de produção nacional. Mas mesmo considerando apenas os filmes, esses autores também desvalorizam os 99 filmes de produção portuguesa com metragem inferior a 1.000 metros de película ou com menos de 60 minutos de duração, segundo dados recolhidos por José de Matos-Cruz (1989: 112-114). Esses 99 filmes não são considerados como significativos para quem defende a teoria do “ano zero“ porque, para a generalidade dos autores, a produção cinematográfica parece limitar-se aos filmes de longa-metragem ou, como na época eram mais populares, os filmes de fundo. Em termos de metragem, esses 99 filmes de curta-metragem equivalem, aproximadamente, a cerca de 30 mil metros, ou seja, a cerca de 10 longas-metragens. Tal como ficou demonstrado no simpósio de Brighton em 1978 para outro período e corpus, é por demais evidente que estes dados quantitativos permitem olhar para o objecto de uma forma radicalmente distinta daquela que tem sido repetidamente feita. O objectivo de ampliar o núcleo de fontes documentais não implica ignorar ou desvalorizar as fontes existentes e já analisadas, mas procurar novas relações, fazer novas questões e tentar novas reflexões. O tipo de escrita sobre cinema que predominou durante décadas no cinema português foi a abordagem “estilística“, que se aproxima do quadro metodológico da história da arte e que reconhece essencialmente as obras fílmicas e que as considera sobretudo através da sua organização temática ou conteúdo formal. Dado a diversidade do objecto de estudo, decidi recorrer a contributos, recursos e metodologias diversificadas, mais próximas e usuais a outras áreas disciplinares — desde a sociologia, semiótica, antropologia, estudos visuais, estudos culturais e estudos literários, entre outros — que me dão novas possibilidade de leitura e interpretação. Em última análise, com este trabalho, espero contribuir para, além de compreender diversos aspectos da história do cinema português, também “trazer um acréscimo de nitidez ao conhecimento da história cultural do País“, “aclarando alguns dos seus aspectos ideológicos e artísticos.“ (Pita, 2000: 42) O presente volume encontra-se estruturado em quatro momentos: No primeiro capítulo onde procuro fazer um ponto de situação sobre os estudos desenvolvidos sobre a temática em análise, um necessário ponto de partida para uma revisão que espero que possa contribuir para fundamentar a minha abordagem e as minhas opções metodológicas e científicas, e ajudar a clarificar dados contraditórios, pondo em diálogo e/ou em confronto a produção de conhecimento proveniente de diferentes cronologias, geografias e áreas disciplinares. 15 No segundo, dedicado às políticas públicas para o cinema português ente 1949 e 1980, procurar caracterizar, analisar e compreender a intervenção do Estado e do poder político na evolução do cinema português, através de uma visão alargada que tenta trabalhar organizadamente e compreender a grande narrativa que foi sendo construída acerca do cinema português no período em estudo. No terceiro, procurarei expor, com o maior número de documentos e de pormenores possível, analisar e reflectir sobre a evolução nos modos de produção no cinema português entre 1949 e 1980. Depois de analisar, no capítulo anterior, a política pública que definia a principal narrativa para o cinema Portugal nesse período, é agora importante analisar as várias contra-narrativas que, ao longo do mesmo período, procuraram questionar, contrariar, explorar ou transformar o cinema português como foi sendo definido pelo poder político. E, finalmente, o quarto é o momento de tecer algumas considerações finais, sobre o objecto de estudo e sobre o contributo da minha investigação para o seu conhecimento. A reflexão final procura sintetizar de forma clara quais foram as grandes transformações que ocorreram no cinema português entre 1949 e 1980 e responder com clareza a uma questão central: o que foi o Novo cinema português? 16 1. O estado da arte Parece-me essencial começar esta reflexão por fazer um ponto da situação sobre os estudos desenvolvidos sobre a temática em análise. Fazer o estado da arte é uma etapa fundamental para sistematizar de forma crítica e analítica a produção e circulação de conhecimento em relação ao objecto que me proponho estudar. É o ponto de partida para uma revisão que espero que possa contribuir para fundamentar a minha abordagem e as minhas opções metodológicas e científicas, e ajudar a clarificar dados contraditórios, pondo em diálogo e/ou em confronto a produção de conhecimento proveniente de diferentes cronologias, geografias e áreas disciplinares. Decidi dividir este primeiro capítulo em quatro momentos: primeiro, procuro caracterizar em termos muito gerais a história da história do cinema português para, num segundo momento, me debruçar especificamente sobre a arqueologia do Novo cinema português, nas suas diferentes aplicações; depois procurarei analisar a revisão historiográfica e crítica produzida a propósito do período em estudo nesta tese e, finalmente, pretendo fazer uma reflexão, em jeito de balanço, sobre as relações entre cinema, memória, crítica e historiografia. 1.1. Histórias da história do cinema português A primeira etapa será, obrigatoriamente, uma abordagem sintética através da história da história do cinema português, procurando conhecer de que forma a evolução do cinema português condicionou ou promoveu a interpretação do período em análise nesta tese e, em concreto, um exercício arqueológico que pretende esclarecer a origem do termo Novo cinema português e a forma como foi (re)definido ao longo das décadas seguintes. A história da história do cinema português é uma temática que me fascina particularmente desde que, em 1999, comecei a estudar e a investigar sobre cinema português. As lições e alertas de Fausto Cruchinho, António Pedro Pita e Luís Reis Torgal, ainda nos tempos da minha licenciatura, despertaram a minha curiosidade para acompanhar e estudar esta questão ao longo da última década e meia. E esta temática da história da história do cinema português desenvolveu-se sobretudo nesse período. Luís Reis Torgal foi o primeiro historiador a mostrar-se atento a estas questões, em dois textos fundamentais (Torgal 1998: 200-202; 2000: 14-15), alertando para a 17 necessidade de desconstruir as diversas representações da história do cinema português produzidas até então. Depois dos estudos precursores de Marc Ferro sobre as relações complexas entre história e cinema (Ferro 1977; 1984; 1997), o cinema começou a ser encarado como um importante objecto de estudo sujeito à metodologia crítica própria do conhecimento histórico. Na viragem para os anos 90, esta consciencialização permitiu a elaboração das primeiras dissertações realizadas em Portugal no campo metodológico da história, quer sobre cinema estrangeiro como sobre o próprio cinema nacional, e para o desenvolvimento de projectos curriculares em diversas instituições de ensino superior. Destes centros têm surgido um leque diversificado, mas cientificamente reconhecido, de estudos sobre a temática da história do cinema português que têm contribuído de forma positiva para a exploração de novas questões pertinentes e para a reavaliação de velhos assuntos. A este núcleo de autores deve-se uma abordagem metodológica rigorosa que trata o objecto cinematográfico como parte integrante da história da cultura, recusando o carácter secundário e menosprezado com que foi tratado no passado pela “velha história“. Paralelamente a este esforço de legitimação científica do objecto cinematográfico, assiste-se a uma natural valorização da história do cinema português junto de importantes obras colectivas de carácter geral (Cunha 2005: 13-14). A primeira fase da escrita sobre a história do cinema português, que balizei entre o primeiro texto conhecido dedicado à história do cinema português (Panorama histórico do Cinema Português, de Manuel Félix Ribeiro, 1946) e a primeira obra inteiramente dedicada à história do cinema nacional (Aventura do Cinema Português, de Luís de Pina, 1977), é marcada por um importante conjunto de figuras (Jorge Pelayo, António Horta e Costa, Henrique Alves Costa, Fernando Duarte, Chitónio Montalverde, Manuel Moutinho Múrias, Alice Gamito) que se destacaram sobretudo na inventariação e reunião de materiais dispersos e cuja validade e pertinência viriam a ser demonstrados posteriormente. Os textos identificados nestes anos filiam-se igualmente num tipo de narrativa exclusivamente expositiva e pessoalizada. De modo geral, os primeiros escritores de história do cinema português dão um maior realce a apreciações críticas com forte pendor pessoal do que propriamente ao estudo metodológico e científico que se exigia. Desta fase ficaram preciosos vestígios arqueológicos que documentam exemplarmente o tipo de visão promovida por um grupo de autores sobre o percurso do cinema português. Maioritariamente apoiados em registos de tipo memorialista, estes autores construíram um imaginário cinéfilo português onde privilegiam a instauração 18 de um período dourado ancorado na “comédia à portuguesa“ e nos “filmes históricos“ enquadrados na visão oficial do regime (Ibidem: 15). Os escritos sobre cinema de jornalistas cinematográficos revelavam, na generalidade, conteúdos mediáticos como a divulgação de informações sem grande cuidado analítico. Infelizmente, este tipo de escritos denunciava pouco interesse pelo desenvolvimento de uma historiografia, apesar de divulgar figuras e formas históricas do cinema mundial. O segundo período na produção historiográfica do cinema português desenvolvese em pouco mais de uma década (1977-94), onde predomina a produção historiográfica de Luís de Pina, João Bénard da Costa e de outros contributos esparsos mas significativos (António Roma Torres, Eduardo Geada, Lauro António, Germano Cleto, Henrique Alves Costa, Eduardo Prado Coelho, Salvato Teles Menezes, António Videira Santos). Nesta altura, transita-se de um registo geralmente memorialista com algumas pretensões historicizantes para a consciência da necessidade de bases científicas e metodológicas interdisciplinares. Apesar da importância da continuidade de inventariação de informação, tarefa oportunamente iniciada e muito bem desenvolvido pela Cinemateca Portuguesa (José Matos-Cruz, António J. Ferreira, José Navarro de Andrade, Manuel S. Fonseca, Manuel Cintra Ferreira e José Manuel Costa), alguns interessados alertam para a urgência de se iniciar um tratamento crítico dos dados disponíveis e a disponibilizar (Ibidem: 15-16). O último período da produção historiográfica (1995-2013) ficou marcado pelo crescente interesse despertado no domínio próprio do conhecimento histórico na sua articulação com outros saberes. A valorização científica do cinema português como objecto de estudo permitiu desenvolver uma prática historiográfica que tinha sido iniciada por autores relacionados com o meio cinematográfico. Por outro lado, a década de 90 assiste a um retorno de uma forte actividade editorial de publicações periódicas dedicadas ao cinema, o que possibilitou a popularização de assuntos menos mediáticos, como os que se relacionam com a própria história do cinema português (Ibidem: 16). Só muito recentemente é que a designada “gente do cinema“ perdeu o monopólio da escrita sobre o cinema português, permitindo o desenvolvimento de uma produção historiográfica independente que parte sobretudo de centro de investigação agregados a instituições de ensino superior. Estes novos autores, com preocupações metodológicas, procuram desenvolver um trabalho sem compromissos aparentes com o objecto de estudo. O facto de provirem de áreas exteriores à cinematográfica parece 19 dotá-los de uma certa independência em relação às relações de afectividade e cumplicidade que vigoram entre a “família cinéfila“ (Ibidem: 41). É ainda evidente que a história do cinema português, apesar de inúmeros contributos recentes de diversas áreas disciplinares e interdisciplinares4, continua em fase de franca revisão metodológica. Desde os inícios dos anos 90, o objecto de estudo cinema português “começa a adquirir estatuto universitário, dando lugar a teses académicas focadas por diversos ângulos de análise e diferentes metodologias“, despertando a atenção de diversos domínios disciplinares (Torgal 2000: 13-14). Mas nos últimos anos, o trabalho desenvolvido em diversas instituições de ensino e investigação superior Em 2007, a publicação de uma nova obra coordenada por uma investigadora estrangeira então radicada em Portugal, Carolin Overhoff Ferreira, reunia um conjunto de investigadores — alguns também presentes na publicação coordenada por Luís Reis Torgal — a trabalhar em Portugal e no estrangeiro sobre temáticas relacionadas com o cinema português. O cinema português através dos seus filmes (2007) junta vários textos inéditos ou resultantes de capítulos de teses académicas, reflectindo uma renovação historiográfica em torno do cinema português. São abordagens distintas, porque desenvolvidas por investigadores provenientes de diversas áreas disciplinares que abordam o cinema português e a sua história de formas metodologicamente heterogéneas, mas contribuem globalmente para um novo olhar inclusivo sobre o objecto de estudo. Por terem sido êxitos editoriais, estas duas obras marcam um ponto de viragem na produção historiográfica que se desenvolvia nas universidades por esses anos e que começavam a garantir maior visibilidade no mercado editorial nacional graças, do meu ponto de vista, a um interesse crescente por essa renovação autoral. Atentos a este sucesso, nos últimos anos, o mercado editorial tem mostrado um crescente interesse pela publicação integral ou revista de diversas teses académicas que antes ficavam fechadas nas instituições universitárias e que agora circulam e contribuem para o debate público sobre o cinema português e a sua história. Este interesse das editoras 4 Entre os trabalhos mais recentes destaco, por me terem sido particularmente úteis nesta investigação, as teses de doutoramento de Michelle Sales (Em busca de um Novo Cinema Português), Catarina Alves Costa (Camponeses do Cinema: a Representação da Cultura Popular no Cinema Português entre 1960 e 1970), Manuel Penafria (O Documentarismo do Cinema, Uma Reflexão sobre o Filme Documentário), Leonor Areal (Um País Imaginado. Ficções do real no cinema português), Paulo Miguel Martins (O Cinema Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985), Maria do Carmo Piçarra (Azuis ultramarinos: propaganda colonial nas actualidades filmadas no estado novo e censura a três filmes de autor); e a tese de mestrado de Paulo Jorge Granja (As origens do Movimento dos Cine-clubes em Portugal: 1924-1955) 20 comerciais favorece também a crescente curiosidade dos meios de comunicação social que recorrem, insistentemente, a trabalho académicos para tentarem contextualizar questões actuais do panorama cinematográfico. 1.2. Para uma arqueologia do Novo cinema português Feita uma panorâmica sobre a produção historiográfica sobre o cinema português, é o momento de analisar, especificamente, o surgimento e a consolidação da expressão Novo cinema português ou de outras expressões similares produzidas sobre o mesmo período ou corpus fílmico ou autoral. O trabalho desenvolvido directamente nas fontes é fundamental para identificar e localizar o momento em que se constroem a “unidade“ e a “singularidade“ de um corpus e a forma como ele é legitimado. A tentação de “fazer história“ momentaneamente é forte e atractiva para a generalidade da crítica cinematográfica, mas a história retrospectiva só se fará posteriormente e terá de estar atenta a esses fenómenos de construção espontânea e instantânea que, em alguns casos, se instituem fortemente. Para se estudar critica e retrospectivamente a história do cinema português que chegou à actualidade é fundamental identificar e localizar os vários momentos-chave em que se pretendeu “fazer história“ espontânea e momentaneamente e em que se procurou sistematizar unidades e singularidades em torno de filmes e de autores. Em 1961, o Jornal de Letras e Artes (20-XII-1961: 5) publicava uma entrevista com François Truffaut onde o jovem cineasta francês explicava, no seu entender, o surgimento e a popularização da expressão nouvelle vague: Eu acredito que a nouvelle vague foi uma realidade antecipada. Foi uma invenção de jornalistas que acabou por se tornar algo efectivo. Em todo caso, se não tivesse criado esse slogan jornalístico no momento em que se realizava o festival de Cannes, tenho certeza de que essa designação ou alguma outra semelhante teria sido criada pela força das circunstâncias, no instante em que se tomasse consciência do número dos “primeiros filmes“. (…) Inicialmente a nouvelle vague designava uma pesquisa oficial realizada na França por não sei que serviço de estatística, sobre a juventude francesa em geral. A nouvelle vague eram os futuros engenheiros, médicos e advogados. (…) 21 Depois, diante dos acasos do festival uma mostra de filmes de jovens cineastas – não somente da França, mas também dos países estrangeiros –, os jornalistas que cobriam a área de cinema serviramse dessa expressão para designar um certo grupo de novos cineastas, que não vinham necessariamente da crítica, uma vez que tanto Alain Resnais quanto Marcel Camus estavam incluídos nesse rol, e assim se forjou esse slogan. Mas, na minha opinião, ele não correspondia à realidade, na medida em que, no estrangeiro, acreditou-se, por exemplo, que havia uma associação de jovens cineastas franceses que se reunia regularmente e tinha um plano, uma mesma estética, quando na verdade não era nada disso e o que de facto havia era um ajuntamento fictício, apenas aparente. (…) Vejo apenas um ponto em comum entre os jovens cineastas: todos eles se preocupavam com o sucesso de bilheteira, enquanto os antigos realizadores preferiam retratar a época. Não há nenhum paradoxo no que digo, pois, com excepção dessa característica, há basicamente apenas diferenças entre nós. Claro, nós conhecemo-nos, gostamos dos mesmos filmes, gostamos de trocar ideias, mas, quando se julga na tela o resultado de nossas realizações, constata-se imediatamente que os filmes de Chabrol não têm nada a ver com os de Louis Malle, que por sua vez não parecem nada com os meus. Os filmes dos jovens cineastas parecem bastante com quem os faz, pois são realizados em total liberdade. E realmente a liberdade é o único ponto que temos em comum. Há muito que os realizadores franceses tinham perdido o hábito de escolher o assunto a ser filmado, isto é, uma concepção de filme que trouxesse dentro de si, algo que sentissem visceralmente, que existisse em suas cabeças. Ao tornarem-se vedetas, os cineastas franceses passaram a ser muito solicitados. Então, passaram a escolher em função das propostas que recebiam. Em França, a expressão Nouvelle vague foi usada pela primeira vez, a 3 de Outubro de 1957, na revista L'Express, no artigo “Raport sur la jeunesse“ assinado pela jornalista Françoise Giroud. Um anos meio depois, em Junho de 1958, a mesma Giroud publicaria o livro La Nouvelle Vague: Portrait de la jeunesse, que popularizaria a expressão nouvelle vague. Apesar de não se referir directamente ao cinema, Giroud usava a expressão para caracterizar uma vontade de mudança cada vez mais visível na sociedade francesa. Quem primeiro a aplicou ao cinema foi o crítico Pierre Billard, em Fevereiro de 1958. No Verão de 1959, durante o Festival de Cannes, o termo começou a ser usado com insistência pela imprensa local a propósito da estreia de dois filmes realizados por dois jovens franceses — Les Cousins de Claude Chabrol e Les Quatre Cents Coups, de François Truffaut — e prontamente difundido pela imprensa internacional presente no certame (Baecque & Toubiana 2000: 135). Em Portugal, acredito que aconteceu algo muito semelhante. Já em 1977, Eduardo Geada alertava para esta hipótese: 22 “Em Portugal, como em todo o lado, a designação de «cinema novo» começou por ser uma fórmula jornalística, cujo principal objectivo era promover o chamado cinema de autor, contra a dominação económica e ideológica do cinema industrial controlado por Hollywood, de onde, aliás, tinham surgido os expoentes máximos da política de autores, defendida, na época, pelos Cahiers du Cinéma. No início dos anos sessenta, ao cinema de autor, produzido sobretudo na Europa, passou a chamar-se cinema novo, na esteira da nova vaga francesa; novo porque tinha a particularidade de ser jovem, tanto no que diz respeito à idade dos realizadores como no que se refere a uma maneira diferente, outra, possivelmente nova, de pensar e fazer o cinema“ (Geada 1977: 92). No entanto, para mim, mais do que uma construção historiográfica ou jornalística, o chamado Novo cinema português foi sobretudo uma construção crítica. Os seus limites cronológicos, as fronteiras estéticas, os seus protagonistas e o seu corpus fílmico e textual desse momento do cinema português foram sendo definidos pela imprensa cinematográfica, uma vez que o lento e tardio desenvolvimento da historiografia cinematográfica portuguesa permitiu, durante décadas, que a imprensa assumisse um papel de análise e sistematização do objecto cinematográfico muito além da sua função primordial. No estudo deste complexo período, Paulo Filipe Monteiro (1995: 655) acha fundamental descortinar as principais características do Novo cinema português: conhecer o momento em que este adquiriu “visibilidade enquanto conjunto“ e perceber as “divergências e polémicas que ainda hoje subsistem sobre a designação e a datação do novo movimento“. Para evitar quaisquer contaminações ou deturpações promovidas ou consagradas por essa construção crítica, proponho identificar os momentos de maior visibilidade e inventariar as expressões e definições e a que corpus fílmico e autoral surgia associadas. Nos últimos anos, tem-se problematizado acerca das leituras feitas sobre esse período do Novo cinema português à luz de novos pressupostos históricos e estéticos. Entre outras questões, alguns autores têm sugerido novas interpretações para diversos factos, aclarando dúvidas antigas e equacionando novos paradoxos. Desde inícios da década de 50, um pouco por toda a escrita de cinema, desde a crítica à crónica, mas sobretudo na imprensa especializada, generalizava-se em Portugal a convicção na necessidade de emergir uma nova maneira de ver e fazer cinema. Perante o quadro de crise do panorama cinematográfico nacional, conhecendo os exemplos de renovação de diversas cinematografias estrangeiras e, sobretudo, pela alteração de 23 mentalidade na sociedade portuguesa, popularizou-se uma certa ideia de inovação, de renovação e de ruptura com o estado vigente das coisas neste domínio. A reivindicação de um novo cinema tornou-se considerável desde a contestação bastante precoce à legislação proteccionista de 19485, desenvolvendo-se posteriormente sobretudo na recepção crítica aos filmes produzidos por uma estrutura viciada e criativamente estagnada. Iniciado em publicações conotadas com a oposição, este discurso renovador alastrou-se gradualmente à generalidade das publicações dedicadas ao cinema. Consolidado essencialmente na escrita, este programa de intenções procurava uma materialização na produção fílmica de então, tendo assumido rapidamente uma relação com as experiências de cinema pretensamente neo-realista protagonizadas por Manuel de Guimarães e outros autores. Frustradas as expectativas depositadas nestas experiências, a crítica mais exigente e descomprometida continuava insatisfeita. As publicações que mostravam maior inconformidade, tanto em noticiá-la como em promovê-la, eram: Imagem (2.ª série, 1954-61), dirigida por Ernesto de Sousa e conotada com o movimento cineclubista; a Filme (1959-64), dirigida por Luís de Pina e que, apesar do subsídio do Fundo do Cinema Nacional, adoptou uma progressiva visão crítica em relação ao cinema produzido; o Diário de Lisboa, onde Lauro António era o responsável pela crítica cinematográfica (a partir de 1965) e dava voz a um conjunto de colaboradores que incluía os principais elementos da “nova crítica“ e os elementos mais exigentes da “velha crítica“. Em Março de 1955, com alguma surpresa, Leitão de Barros começava por apelar à “moralização“ da nossa cinematografia, apelo corroborado por vários críticos da época (Diário de Notícias, 1-III-1955: 5). Nesse mesmo ano, Manuel de Azevedo publicava, no Norte Desportivo, um importante alerta: “Não se divisa ainda, mas pressente-se que virá. Não se sabe quando, nem como, mas adivinha-se“ (Norte Desportivo, 22-V-1955: 6). Ao percorrer os textos da época verifica-se uma rica e diversificada utilização de adjectivos que procuravam caracterizar o cinema que se pretendia erguer. Por estes anos, houve também quem falasse de “um cinema independente“ e clamava-se por “sangue novo“ (Filme, XI-1960: 17-20), houve quem apelasse aos “novos e renovadores 5 A denominada “lei de protecção ao cinema nacional“ pretendia iniciar uma reforma estrutural na produção de cinema português, apresentando o Fundo de Cinema Nacional e o Conselho de Cinema como principais instrumentos reguladores da actividade cinematográfica em Portugal. No entanto, devido a pressões de vários interesses corporativos, a legislação nunca foi regulamentada na íntegra, impedindo a concretização de alguns aspectos fundamentais como a questão do contingente (obrigação de exibição de filmes nacionais em proporção aos filmes estrangeiros exibidos). 24 cineastas do futuro“ (Gazeta Musical, III-1961: 216), houve quem defendesse um “cinema puro“ e um “cinema moderno“ (Imagem, IX-1958: 384-387) ou quem reivindicasse “um cinema de qualidade, incorruptível, exigente e franco“, a “libertação“ do cinema português da “impureza“ e “imbecilidade“ daqueles que promovem um “negócio sujo“ (Gazeta Musical, III-1961: 217). Apesar das distintas designações, o que permanece comum é um desejo de mudança, de urgente renovação estética da cinematografia portuguesa. Contra um cinema “velho“ e “decadente“, exigia-se um cinema “honesto e simples“ (Eurico Costa cit. in Cruchinho 2001: 220). Curiosamente, a expressão “nova vaga“ começava a surgir com alguma frequência na imprensa. O primeiro uso de tal expressão, segundo o que consegui apurar, parece dever-se a Luís de Pina que, num artigo dedicado ao filme As Pedras e o Tempo, integra Fernando Lopes na “tímida nouvelle vague portuguesa, que, mais tarde ou mais cedo, acabará por fazer sentir a sua influência renovadora“ (Filme, X-1960: 43). De uma forma recorrente, a revista Celulóide foi a publicação que mais generalizou a designação de “nova vaga“ para identificar um grupo de realizadores que se estrearam em vários géneros cinematográficos, desde o cinema de fundo à curta-metragem. Em Janeiro de 1964, em número dedicado ao cinema português, a Celulóide apresenta uma oportuna compilação de dados que incluem uma cronologia básica, uma relação cronológica entre realizadores do velho e do novo cinema, e entrevistas com as duas figuras do momento: o produtor Cunha Telles e o realizador Paulo Rocha. O maior interesse deste número recai sobre uma introdução histórica ao “Cinema novo Português“. Apesar de situar o nascimento do cinema novo português em 1945, data da fundação do Cineclube do Porto, só cerca de duas décadas depois, com Os Verdes Anos é que se assiste à “desejada vitória de uma nova geração“. Distinguindo os filmes de Manuel Guimarães (O Desterrado, 1949; Saltimbancos, 1951), Manuel de Oliveira (O Pão, 1958; Acto da Primavera, 1963), Ernesto de Sousa (Dom Roberto, 1962) e Artur Ramos (Pássaros de Asas Cortadas, 1962) como etapas preparatórias da “nossa nova vaga“ que chegou com Os Verdes Anos. O mesmo artigo cola inequivocamente a “nova vaga portuguesa“ à nouvelle vague, sobretudo pela influência teórica da crítica e prática do movimento cineclubista na formação dos dois movimentos (Celulóide, I-1964: 1-2). Em Setembro do mesmo ano, respondendo à excelente receptividade do número anterior (Idem, IV-1964: 4), a Celulóide dedica um novo número ao cinema português, agora integrando um breve “dicionário da nova vaga portuguesa“, artigos sobre Os Verdes Anos e Belarmino, e um artigo sobre os conceitos de produção no novo cinema. Destaque na 25 revista merece também a recepção do novo cinema na crítica estrangeira, noticiando a participação de realizadores em iniciativas e alguns artigos dedicados ao novo cinema português, como o de Pierre Kast publicado na revista Cahiers du Cinéma, uma lettre de Lisbonne onde o realizador se refere aos novos valores do cinema português como a “nova vaga portuguesa“ (Ibidem: 3). A frequente colagem do novo cinema à nouvelle vague promovida por esta publicação parece-me corresponder à reprodução de uma vontade do seu editor em afastar estes filmes das experiências neo-realistas da década anterior. Afecto a uma esfera de influência mais próxima do Estado Novo, que lhe mereceu aliás uma acesa polémica com Manuel de Azevedo a propósito da criação da Federação Nacional de Cineclubes, Fernando Duarte destaca “as modernas tendências do cinema português“ como um movimento de renovação substancialmente diferente dos preconizados na década anterior. Afastando-se de um cinema que visa “deliberadamente a mensagem ou a crítica social“ (cinema neo-realista), o “filme-esperança“ de Paulo Rocha filia-se numa ideia distinta de cinema (fazer filmes “como um pintor pinta um quadro“), revelando uma “pureza“ e uma “sinceridade“ descomprometidas próprias de “gente nova“ (Celulóide, I-1964: 2). Contrapondo-se ideologicamente a Baptista Bastos na exigência de um cinema na mais “genuína ortodoxia neo-realista“, expressa numa série de textos do autor sobre os caminhos futuros do cinema português (Imagem, IX-1958: 393-394), o dirigente cineclubista de Rio Maior serviu-se das revistas Visor e Celulóide para vincular uma ideia de cinema afastada de possíveis influências do “realismo socialista“ veiculado pelos “intelectuais da miséria“.6 Outra designação com alguma repercussão neste período foi a de “jovem cinema“. A sua mais significativa aplicação deve-se a Paulo Rocha que, numa entrevista à revista Cahiers du Cinéma, caracterizou como “jovem cinema“ o movimento de renovação que atravessava o cinema português (Celulóide, XII-1966: 3). Em França, também foi esta a expressão escolhida para a mostra de cinema português decorrida em Nice (Jeune Cinema Portugais, 1972). Contudo, a utilização mais significativa da expressão deu-se no próprio Ofício do cinema em Portugal, depoimento colectivo dos próprios realizadores. 6 Expressão usada por José Manuel da Costa a propósito da avaliação do filme Nazaré (1953), de Manuel Guimarães (Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1980: 167). 26 Entre Junho e Dezembro de 1956, Nuno Portas assegurou uma coluna no Diário de Lisboa que contou pouco mais de uma dezena de artigos. Sob o título “Para um novo cinema novo“, o crítico consagrou a designação “cinema novo“ enquanto expressão representativa da “luta de uma geração – a geração que ‘quer’ um cinema novo“ (Diário de Lisboa, 10-VII-1956: 7). A utilização da expressão “cinema novo“ ainda não representava o plano de intenções concretas dedicado a uma certa renovação estética do cinema português que se iria revelar alguns anos depois. No entanto, Nuno Portas alertava que o “ressurgimento“ do cinema português só seria possível se o esforço “fosse gerado e alimentado […] numa corrente cultural mais vasta, se exprimisse as preocupações de toda uma geração em face da realidade que a cerca“ (Idem, 24-VII1956: 7). Contudo, a expressão que mais se generalizou no discurso regenerador foi “novo cinema“. Em Novembro de 1960 e Fevereiro seguinte, a revista Filme dedicou dois dossiers aos actores e técnicos do “novo cinema português“, onde inclui os jovens Fernando Lopes, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Manuel de Oliveira e Manuel Costa e Silva. Na introdução a este dossier, afirma-se que “o futuro do cinema português está pois nas mãos das personalidades que reunimos nesta página“ e exigia-se “lugar aos novos!“ (Filme, XI-1960: 17-20; Idem, II-1961: 42). Dois anos depois, um novo artigo dedicado ao “novo cinema“ incluía agora, para além dos anteriores, Artur Ramos, Pedro Martins e Ernesto de Sousa (Idem, IX-1963: 11). Significativa é também a programação de filmes integrada na “semana do novo cinema português“, iniciativa do Cineclube do Porto. Para além dos novos – apresentação das obras produzidos por Cunha Telles – foi exibida uma retrospectiva do cinema português que incluía Leitão de Barros, Manuel de Oliveira e Brum do Canto. Numa iniciativa dedicado ao “novo cinema“, as obras de Ernesto de Sousa e de Artur Ramos também tiveram espaço para discussão, acompanhando os colóquios dedicados aos “novos“ Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo, e ao veterano Manuel de Oliveira (Celulóide, VIII-1967: 15). Estas diversas aplicações do termo “novo cinema“ fazem entender que esta designação se refere à produção fílmica surgida no início da década de 60, caracterizando um conjunto de obras que, independentemente das formas e conteúdos propostos, concorriam para o objectivo comum de regenerar o cinema português. De uma forma aparentemente simples, como observa Lauro António, a generalização da designação “novo cinema“ deve-se sobretudo ao sentido antagónico com que esta 27 expressão se distingue da designação “velho cinema“ (apud Semana do Novo Cinema Português: programa, 1968: 9). Apesar de tudo, a designação mais expressiva e abrangente, no meu entender, foi utilizada por Alves Costa: “não se pode falar (como agora está na moda) de uma ‘nova vaga’, mas sim de um ‘outro cinema’ que virá finalmente contrabalançar essa série de filmes tradicionalmente medíocres“ (Ibidem: 8). No “outro cinema“ cabem todo o tipo de oposições ao “velho cinema“, e se algumas designações anteriores poderiam promover exclusões7, esta parece aquela que permite englobar a diversidade de elementos que promoveram a oposição estética a um modelo de cinema julgado unanimemente falido. Infelizmente, esta designação não conheceu uma repercussão significativa. Todavia, apesar de ser reclamada desde a década de 50, a “revolução fílmica“ só terá acontecido a partir de 1963, materializado sobretudo nas obras Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963), Belarmino (Fernando Lopes, 1964) e Domingo à Tarde (António de Macedo, 1965), primeiras obras de fundo de jovens realizadores que, ao contrário de experiências anteriores, conseguiram romper com a produção portuguesa dominante de então. Já preconizada por filmes documentais e de curta-metragem, foi apenas com estas obras que o “novo cinema“ chegou ao público e à generalidade da crítica. No entanto, o outro pólo de acção do “novo cinema“ – a escrita – tinha já consagrado o “novo cinema“ como plano de intenções, ainda que precário e pouco definido, que identificava um grupo heteróclito de nomes. Definitivamente, o conceito “novo cinema“ estabelece dois níveis distintos, mas complementares, de acção: a escrita e a realização. Estes exemplos, que integram as Produções Cunha Telles, constituem o núcleo de produção do designado “cinema novo“. A utilização do termo “cinema novo“ irá representar uma propositada demarcação de propostas anteriores, nomeadamente Dom Roberto e Pássaros de Asas Cortados, ainda enquadradas na expressão “novo cinema“, mas definitivamente excluídas do “cinema novo“. A grande responsabilidade pela generalização da expressão “cinema novo“ deve-se essencialmente a João Bénard da Costa e a Luís de Pina. A estes dois cinéfilos e estudiosos do nosso cinema deve-se também o início do estudo do período em causa, dedicando-lhe particular destaque em vários textos publicados em revistas e edições da Cinemateca Portuguesa. 7 As expressões “jovem cinema“, “nova vaga“ ou “novo cinema“, ao querer atribuir uma conotação etária ao termo “novo“ poderiam excluir deste movimento alguns cineastas cronologicamente mais velhos como Manuel de Oliveira ou Ernesto de Sousa. 28 Apesar do surto considerável na produção historiográfica relativa ao cinema português desenvolvido pela Cinemateca Portuguesa, a primeira iniciativa pública de exibição e debate do novo cinema teve lugar na Figueira da Foz, num dos festivais de cinema mais importantes no país. Sob coordenação do activo José Vieira Marques e de Germano Cleto, o Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz dedicou, em 1981, um colóquio subordinado ao tema “Manuel de Oliveira e vinte anos do novo cinema português“. Em apoio a esse colóquio, foi editado um significativo documento dactilografado intitulado Novo Cinema Português 1961-1981 (1981) onde se transcreviam entrevistas inéditas feitas a António da Cunha Telles, António de Macedo e Fernando Matos Silva. Ao invés de procurar sistematizar uma visão sobre os acontecimentos, esta espécie de catálogo preocupa-se mais em registar os relatos e as opiniões de alguns dos protagonistas mais activos no período em causa. No entanto, esta publicação teve uma circulação muito limitada, sem edição comercial, e sem a primeira publicação dedicada exclusivamente à temática do novo cinema a surgir ao mercado editorial chega apenas em 1985, da responsabilidade da Cinemateca Portuguesa, destinada a acompanhar a primeira retrospectiva integral dos filmes que integram esse momento. Foi a partir dessa publicação que se generalizou e consagrou definitivamente o termo “cinema novo“, que passou a representar a visão “oficial“ que se estabeleceu a partir da retrospectiva organizada pela Cinemateca em 1985. Para além do significado desta publicação, ficou também a iniciativa inédita de exibir os filmes cerca de duas décadas depois e reunir os protagonistas desse período histórico no cinema português. Cinema Novo Português 1960-74 é pois um oportuno catálogo que integra dois estudos – «Quando o Cinema era Novo», de Luís de Pina, e «Cinema Novo Português: Revolta ou Revolução?», de João Bénard da Costa – que se complementam. Assinados por dois dos principais responsáveis pela valorização deste período, esses textos integram a reunião de importantes documentos considerados fundamentais para se iniciar uma tentativa de compreensão do cinema novo: entrevistas com o produtor Cunha Telles e com o presidente do Centro Português de Cinema (CPC), Fernando Lopes; inquérito aos cineastas referenciados com este movimento; antologia de textos, que integra o Ofício do cinema em Portugal e o modus vivendi entre a Fundação Gulbenkian e o CPC; a transcrição de uma mesa-redonda com os principais participantes na retrospectiva; finalmente, um breve dicionário de autores da autoria de José de Matos-Cruz e Jorge Leitão Ramos. 29 Com cerca de uma década de distância, a instituição encarregada de preservar o património cinematográfico e promover o estudo do cinema português achou oportuno dedicar atenção a um dos momentos fundamentais da nossa cinematografia. Através desta publicação, Luís de Pina e Bénard da Costa divulgaram as suas visões desse período e, de forma consistente, impuseram essas visões como matéria de facto. Felizmente, o posterior desenvolvimento de vários estudos sobre este período possibilitou uma problematização de alguns dados e a construção de outras visões. Qual era então o discurso vinculado na publicação em causa? Luís de Pina considera que as figuras do cinema novo integram “uma geração de resistência, uma geração de esquerda ou, pelo menos, inconformada“. Enterrados os mitos do velho cinema e do próprio Estado Novo, estes cinéfilos apresentam como característica comum a crença na impossibilidade de “um cinema de prestígio formal e vazio de conteúdos“, apostando num “cinema de reticência e de dúvida“, que expresse a sensibilidade colectiva da sociedade portuguesa (Pina, 1977: 70). Comungando da mesma visão, João Bénard da Costa reforça a ideia que, independentemente de filiações ideológicas diversas, esta geração se encontra unida pelas mesmas convicções estéticas, nomeadamente a defesa do cinema de autor e na reclamação “dum novo cinema para Portugal e dum novo Portugal para o cinema“ (Costa, 1985: 15). Em última análise, a geração do “cinema novo“ constituiria uma segunda “ínclita geração“ no cinema português. Depois do pretenso marasmo e da decadência dos anos 50, a geração de 60, ainda que sob pretextos distintos, tentou recupera o fulgor característico da geração de Leitão de Barros, Lopes Ribeiro, Chianca de Garcia e Brum de Canto. De acordo com esta ideia, atribui-se a esta geração a responsabilidade pela “regeneração“ ou “ressurgimento“ de um cinema em crise. A designação de “segundo cinema novo português“, adoptada por Bénard da Costa, pressupõe então a existência de uma “segunda revolução“ no panorama cinematográfico português, um corte radical com o presente através de um regresso a uma “idade do ouro“ que, para o autor, se encontra no passado. Nesta visão cíclica e romântica da história do cinema português há ainda necessidade de mitificar um herói, uma espécie de líder que guiará o colectivo ao triunfo final.8 Para o grupo principal do 8 Alberto Seixas Santos, nas páginas d’O Tempo e o Modo (X-1964: 134-135), alertava para o perigo de as “bocas mais jovens“ exaltarem Oliveira como mito de uma geração. Por estes anos, são relevantes as diversas homenagens à obra deste cineasta, desde cerimónias públicas a páginas dedicadas nas principais publicações especializadas em cinema. 30 “novo cinema“, o percurso de Manuel de Oliveira tornava-o no líder ideal para patrocinar uma eventual “revolução estética“. Para Bénard da Costa, esta aparente união de esforços da juventude cinéfila desenvolve-se em dois momentos fundamentais: o primeiro com António da Cunha Telles a desempenhar o papel aglutinador enquanto, no segundo, a Fundação Gulbenkian e o CPC repartem as respectivas responsabilidades. O segundo momento, pela singularidade das condições de produção e pela evolução do próprio “cinema novo“, possui características estéticas diferenciadas dos filmes produzidos por Cunha Telles. Por outro lado, parece definitiva a exclusão deste movimento das obras consideradas precursoras como Dom Roberto e Pássaro de Asas Cortadas, por serem considerados filmes herdeiros de pressupostos ideológicos e estéticos radicados no passado e na tradição ortodoxa neo-realista. Ao contrário da geração de 50, para os jovens realizadores do “cinema novo“ os cineclubes são apenas um ponto de passagem e perderam uma influência na formação teórica e ideológica que desempenharam junto de outros cinéfilos. Para estes autores, o factor “novo“ destes filmes apenas se vislumbra no plano das intenções. Tal como Fernando Duarte, mas por razões distintas, Bénard da Costa tem sido o autor que mais tem insistido na afirmação da ruptura entre as tentativas de renovação de Ernesto de Sousa e Artur Ramos com os filmes que compõem o “cinema novo“. O autor afirma mesmo que o “cinema novo“ é concretizado “por gente que só tangencialmente confluía com o movimento crítico da década anterior e dele era praticamente desconhecida“ (Ibidem: 26). Obviamente, esta ideia é contrariada pelos percursos pessoais de diversas figuras do novo cinema que passaram pelos cineclubes.9 Em 1973, na II Semana Internacional de Cinema da Figueira da Foz, numa mesaredonda dedicada aos “Temas do Novo Cinema Português“, também Alberto Seixas Santos defendia já a ideia de balizar o “cinema novo“ a partir da obra de Paulo Rocha, excluindo do movimento as obras de Ernesto de Sousa e de Artur Ramos (Plateia, 6-X1973: 51-52). Não tenho quaisquer dúvidas que a exclusão desses filmes precursores do núcleo do “cinema novo“ pretende afastar essa revolução da influência da “ortodoxia neorealista“, aproximando-o definitivamente ao discurso antagónico dos “formalistas“ e do 9 Alberto Seixas Santos, Alfredo Tropa, Cunha Telles, António Faria, António de Macedo, Faria de Almeida, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Rogério Ceitil, António Escudeiro e Henrique Espírito Santo, entre outros. 31 “cinema idealista“ defendido pelo grupo d’O Tempo e o Modo. Como resume o autor, a “revolução não constitui numa mudança de nomes, mas numa mudança de natureza“, e essa mudança de natureza permitiu a afirmação de “filmes que só ao próprio autor responsabilizam, ou seja, filmes independentes“ (Costa 1985: 44). Atento, Manuel S. Fonseca alerta que “são as posições de O Tempo e o Modo que definem uma linha estética divisória no ‘Novo Cinema’“, sobretudo com a defesa das obras de Paulo Rocha e Fernando Lopes e com a desvalorização e esquecimento de António de Macedo (Lopes, 1985: 61). Membro essencial na orientação da revista de pensamento e acção, Bénard da Costa terá perpetuado uma visão discriminatória e subjectiva promovida pelo grupo de intelectuais d’O Tempo e o Modo em relação à afirmação do novo cinema. 1.3. Para uma releitura do Novo cinema português A terceira etapa é importante porque pretende avaliar um momento de viragem na produção e difusão de conhecimento sobre o Novo cinema português. Nas últimas duas décadas, sensivelmente a partir de 1995, tem-se problematizado o Novo cinema português à luz de novos pressupostos históricos e estéticos. Entre outras questões, alguns autores têm multiplicado novas interpretações para diversos factos, aclarando dúvidas antigas e equacionando novos paradoxos. Na sua tese de doutoramento, ao trabalhar com o mesmo período cronológico que proponho para a minha tese, Leonor Areal (2008: 108-109) havia já deixado pertinentes e importantes alertas metodológicos: “(…) Abordar um vasto número de filmes – como este que aqui me proponho abranger e que conta com cerca de 150 filmes num período que extravasa as três décadas centrais de 1950 a 1980 (indo por vezes investigar algumas raízes, ramos caídos e frutos extemporâneos) – colocou-me desde início diversas dificuldades, começando pela necessidade de ver e anotar utilmente todos esses filmes, passando pela capacidade de guardar na memória as miríades de imagens, sentidos e histórias diferentes, e desembocando na grande questão metodológica: como tratar tanta informação cinematográfica, como encontrar um fio de leitura coerente ou condutor e, principalmente, como conciliar escalas de análise tão diferentes – da microanálise da obra à macroanálise de movimentos, tendências, linguagens, estilísticas, ideologias, representações, etc. O problema seguinte foi depois: como tratar essa matéria já da (minha) memória, e proveniente da outra matéria fílmica (imagem, som, movimento, personagens) e narrativa (verbal, ideológica e contextual); mais difícil é ainda: como dar conta desse tempo tornado percepção, ou sensação ou metatempo, para conseguir reconstituir o 32 outro tempo original da diegese. Personagens, acções, sensibilidades, ideias – tudo isto como um pedaço de vida complexa se congrega numa obra cinematográfica e tudo se multiplica a um grau exponencial de complexidade quando comparamos filmes, autores e épocas. (…) Para esta hipótese, a teoria cinematográfica – dispersa por várias tendências – não tinha uma resposta prévia. Nem eram as teorias cinematográficas capazes de me responder às perguntas metodológicas atrás feitas; nem sequer a bibliografia existente acerca do cinema português, já que deriva de posturas críticas e intenções diversas da minha. Assim, a resposta a estas questões só pude encontrá-la, aos poucos, depois de conhecer os filmes. A metodologia aplicada não deriva de uma definição anterior, pelo contrário, resulta dessas dúvidas e dessa hipótese confrontadas com o seu objecto. A componente de teoria (atrás) elaborada nasceu por isso do confronto da investigadora com o seu objecto e das necessidades de reflexão entretanto surgidas. (…)“ Tal como Leonor Areal relata, também eu tive consciência das dificuldades que a minha proposta comportava, em particular face a uma produção bibliográfica dominante sobre o objecto que derivavam de “posturas críticas e intenções“ distintas da que proponho. Já em 2005, ao concluir a minha dissertação de mestrado, apercebera-me da urgente necessidade de rever este período da história do cinema português, um período que, ironicamente, apesar de ser dos mais estudados da história do cinema português, é também aquele onde subsiste um maior número de contradições, mitos instituídos e considerações extremamente subjectivas que dificultam a sua compreensão em toda a sua complexidade. Noutra passagem da sua tese de doutoramento, Leonor Areal (2008: 392) ressalta ainda a necessidade de rever e corrigir, histórica e criticamente, o que se entende por Novo cinema português: Geralmente as transições estéticas e culturais são graduais e encontram em certos momentos, em certas obras ou acontecimentos, sinais de renovação mais notória que se erigem depois em marcos de uma evolução desenhada por clivagens. Porém, a clivagem entendida como sinal da mudança é frequentemente diagnosticada a posteriori, quando a possibilidade ou a necessidade de fazer história se impõe, ou até revista e corrigida, como acontecerá com o Novo Cinema Português; Uma das figuras mais críticas às interpretações que defendia a existência de um movimento denominado “cinema novo“, como preconizado oficialmente pela Cinemateca Portuguesa, foi o cineasta José Fonseca e Costa. Personalidade fundamental na resistência cultural e política ao regime, este realizador começou o seu percurso pelo 33 cineclubismo, foi preso político e fez parte do grupo fundador do CPC. Numa carta tornada pública acerca da retrospectiva organizada pela Cinemateca em 1985, Fonseca e Costa rejeita qualquer filiação no movimento do “cinema novo“, não reconhecendo sequer quaisquer “premissas estéticas“ ou “conotações políticas ou culturais“ que possam considerar esse conjunto de filmes e autores como um movimento (Cinema Novo Português, 1985: 72). Já em 1973, o mesmo Fonseca e Costa afirmava: “Não tenho nada a ver com o ‘cinema novo’, estética e ideologicamente; pelo menos, nada tenho em comum com os que aceitam esse rótulo“ (Plateia, 4-I-1974: 26). Mais recentemente, o cineasta reiterou, em entrevista, a sua convicção de que não existe qualquer tipo de unidade estética entre as propostas que incluem a designação “cinema novo“. O realizador salienta ainda que esta tentativa de criar artificialmente uma unidade que nunca existiu foi promovida por um grupo que pretende afirmar um conceito de cinema português através da imposição de uma espécie de “ditadura estética“. Na sua opinião, esta obsessão em refazer a história provocou omissões e deturpações de factos relevantes à compreensão do período do novo cinema que, hoje, correm o risco de não serem conhecidos ou ratificados (José Fonseca e Costa cit. in Cunha 2005). Opinião idêntica tem António Faria, que na referida publicação de 1985 revela não conhecer um “fundamento que ligasse um conjunto de filmes“. Para este realizador, a “designação ‘cinema novo’ pode ser um conceito de marketing ou obra do mero acaso“ (Cinema Novo Português, 1985: 73). Outra figura bastante crítica das visões preconizadas por Bénard da Costa tem sido António de Macedo, outro protagonista que esteve nos momentos altos e baixos do movimento de renovação. Posto de parte do grupo fundador do CPC, junto com Cunha Telles, Macedo teve um percurso consideravelmente oposto ao do resto do núcleo no pós-25 de Abril. As suas divergências com a facção do “cinema novo“ relativamente à questão do público e de subsídios públicos afastaram gradualmente o realizador da produção e da influência de outrora. Protagonista do período do “novo cinema“, Macedo adverte que os escritos do “cine-historiador“ Bénard da Costa “muita dor de cabeça hãode provocar aos investigadores do futuro, pelas tendenciosas omissões e outras graves distorcidelas que contêm, fruto de uma redutora e monodireccional entronização da tal turris ebúrnea“ (Matos-Cruz 1999: 38). Se, como adverte Fernando Lopes, Macedo “foi sempre um personagem estranho, bizarro, marginal“ (Lopes, 1985: 59) em relação aos principais núcleos criativos da 34 geração de 60 que se reuniam nas célebres tertúlias dos cafés das Avenidas Novas, não tenho muita dificuldade em entender esta posição do realizador. Independentemente das suas razões, Macedo denota uma coerência no discurso em reacção ao movimento: já em Outubro de 1967, o realizador não poupava ataques ao “pseudo-cinema Novo“, negando categoricamente a existência de qualquer “movimento sócio-cultural“ no cinema português (Plateia, 24-X-1967: 22). A visão deste autor sobre o período em estudo encontra-se indirectamente expressa em Novo Cinema, Cinema Novo (1960–1974)10. A grande divergência desta proposta em relação à versão consagrada pela publicação de 1985 reside na clara desmitificação da importância do grupo do “cinema novo“. Através de um interessante conjunto de monólogos — a ausência de diálogo parece só por si um facto considerável — dos protagonistas, assiste-se à desvalorização da suposta unidade estética que marcou o grupo do “cinema novo“. Embora possa aceitar o “cinema novo“ enquanto designação de um período marcado pela afirmação de uma produção independente, Macedo inclui-se no grupo de figuras que rejeitam qualquer unidade estética ou ética para este período. Curiosamente, já em 1968, na resposta a um inquérito publicado no Jornal de Letras, o próprio Cunha Telles alertava para os perigos decorrentes para o cinema português de uma tentativa de “mitificar o aparecimento de uns tantos cineastas“. No mesmo inquérito, o produtor alerta também para o facto de uma parte significativa daquilo que se convencionou chamar de “novo cinema“ andar “tão afastado dos seus fins primeiros…“ (Jornal de Letras e Artes, VI-1968: 26). No mesmo contexto, o produtor afirmaria: “A ambição dos jovens cineastas, inventando uma etiqueta chamada CINEMA NOVO, muleta para as suas limitações, será a sua perdição“ (Monteiro 1974: 21). Também Seixas Santos, apesar de pertencer ao grupo que é acusado de impor artificialmente a unidade ao cinema novo, manifestou publicamente o seu desagrado por se atribuir ao novo cinema uma homogeneidade estética inexistente: “Nunca houve uniformidade de métodos de produção, nem identidade estética entre os diversos realizadores do cinema português activos nos anos 60. Só preocupações de modernidade ligam Belarmino e Domingo à Tarde“ (Cinema Novo Português, 1985: 77). Mais recentemente, o mesmo realizador reiterou que a unidade do novo cinema se estruturou a partir de um inimigo comum, da ideia comum de rejeição total do velho 10 Episódio da série História do Cinema Português, produzida para a RTP pela Acetato entre 1997-1998. 35 cinema, de uma clara intenção de ruptura. Apesar das diferentes ideias de cinema, o novo cinema defendia o cinema de autor. O rótulo generalizado pode ser um ‘slogan’ artificial, mas pretende definir essencialmente a oposição ao velho cinema (Alberto Seixas Santos cit. in Cunha 2005). O momento de maior visibilidade das divergências que marcaram as principais rupturas na geração de 60 deu-se aquando da retrospectiva do “cinema novo português“, promovida pela Cinemateca em Abril de 1985. Augusto M. Seabra e Pedro Borges – nas páginas do Expresso e do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, respectivamente – foram os principais responsáveis pela agitação do debate público em torno deste ciclo. Pedro Borges começa por realçar a “aura de ‘heroísmo’ e ‘autoridade moral’ de que grande parte da geração que então começou a fazer cinema“, questionando-se de seguida sobre “a própria eventualidade de ter existido entre nós, como em muitos outros países depois dos anos 60, um ‘cinema novo’ enquanto movimento ou tendência que tivesse agrupado filmes e realizadores“. Ao contrário do que se verificou noutros países, pode-se constatar que a proclamada ruptura com o velho cinema nunca produziu um cinema com “formulação teórica e prática próprias“ e, em contrapartida, hoje são bastante visíveis a “ingenuidade“, “contradições e indefinições“ das obras então apresentadas (JL, 16/22-IV-1985: 4-5). Entretanto, algumas semanas antes deste ciclo, Augusto M. Seabra havia protagonizado um embate frontal com Bénard da Costa a propósito da programação da Cinemateca. Entre outras considerações, o crítico acusava o responsável da Cinemateca de “dirigista“, “falsário“ ou “carpideiro de um cinema irremediavelmente passado“. No que respeita especificamente ao ciclo, o crítico do Expresso ironizava acerca das “excessivas justificações [da Cinemateca] para dar a ver filmes“. No mesmo texto, o autor não deixa de reparar que apesar deste ciclo não se chamar Homenagem a… “não deixa de se inscrever numa estratégia geracional de resposta a algo mais do que ‘dificuldades para uma produção’“ (Expresso, 5-VI-1985: 2). As acusações de Augusto M. Seabra parecem posicionar-se na mesma direcção de anteriores reparos por parte de outros autores, nomeadamente em relação a um certo paternalismo ou a uma espécie de tutela estética em relação ao suposto movimento do “cinema novo“. António Cabrita, também jornalista do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, aproveitou a oportunidade oferecida no colóquio que encerrou o ciclo para questionar as “relações subterrâneas“ existentes entre a geração do “cinema novo“. Usando 36 palavras de Paulo Rocha, o jornalista considera que as relações de “carácter obscuro, elitista, de vocação dirigista“ produzem um cúmplice discurso “messiânico“ que visa controlar os jogos de poder do cinema português de então (Cinema Novo Português, 1985: 147-148). No entanto, a questão da “revolução“ introduzida pela geração de 60 também não é unânime no seio da própria geração. O factor mais relevante das divergências sobre o novo cinema vividas no seio da própria geração ganha visibilidade na participação dos realizadores na retrospectiva em causa: dos vinte e três realizadores com obras exibidas apenas seis compareceram ao debate. São particularmente significativas as faltas dos “dissidentes crónicos“ Fonseca e Costa e António de Macedo, mas também de nomes como João César Monteiro e Fernando Matos Silva, membros do núcleo duro de geração de 60. Este aparente desinteresse parece-me demonstrar uma clara desaprovação pelo teor mítico e messiânico da homenagem promovida pela Cinemateca. Em 1993, a Cinemateca promove um ciclo dedicado ao “cinema novo“. Intitulada Cinema Novo Português: Trinta Anos Depois, este ciclo pretende celebrar o trigésimo aniversário da estreia de Os Verdes Anos. Para além do filme de Paulo Rocha, Belarmino e Dom Roberto foram os outros títulos escolhidos para integrar este pequeno ciclo. Simultaneamente, o ciclo servia também para o lançamento público de uma colecção de videocassetes da responsabilidade da Filmes Lusomundo dedicada ao tema “novo cinema português“ (Expresso, 8-V-1993: 15). O interesse desta colecção reside na surpreendente flexibilidade com que são incluídos alguns títulos: para além dos filmes produzidos por Cunha Telles e pelo CPC, a colecção rompe as barreiras cronológicas convencionadas e inclui nos títulos editados obras de Artur Semedo (O Barão de Altamira, 1985; Querido Lilás, 1987), João Botelho (Tempos Difíceis, 1988), José Fonseca e Costa (A Mulher do Próximo, 1988), Ana Luísa Guimarães (A Nuvem, 1991), Luís Filipe Rocha (Amor e Dedinhos de Pé, 1991) ou Jorge Marecos Duarte (Encontros Imperfeitos, 1993). Questionável, no mínimo, é a inclusão nesta colecção do filme Raça (1961), obra de Augusto Fraga, membro da designada “geração dos assistentes“ e uma das principais referências do velho cinema dos anos 50 e 60. Desconheço qual o critério de selecção utilizado para a reunião destes títulos sob o rótulo de “novo cinema português“, mas dificilmente se encontra alguma justificação minimamente aceitável para este aproveitamento abusivo da designação. 37 Mais recentemente, João César Monteiro (2005) e António de Macedo (2012) também seriam alvo de retrospectivas organizadas pela Cinemateca Portuguesa, com a publicação dos respectivos catálogos. No caso de Monteiro, o catálogo editado por João Nicolau dedica uma parte muito substancial aos escritos sobre cinema do autor dispersos por diversas publicações periódicas (Imagem, Jornal de Letras e Artes, O Tempo e o Modo, Diário de Lisboa e Cinéfilo), reconhecendo a importância de analisar essa fase de escrita para se entender a complexidade da sua obra cinematográfica. O cinema de António de Macedo, coordenado por Manuel Mozos, também reúne alguns textos fundamentais da autoria do cineasta homónimo, nomeadamente da fase inicial da sua carreira cinematográfica. Fora da Cinemateca, mas com o seu apoio, também se realizou outra retrospectiva sobre um autor do Novo cinema português. Em 2006, por iniciativa do ABC Cine-Clube de Lisboa, Alberto Seixas Santos foi alvo de uma homenagem pública, por ocasião do seu 70.º aniversário de vida, e de uma retrospectiva com os seus filmes e outros filmes referenciais para a sua formação cinéfila e cinematográfica que decorreu no extinto cinema Quarteto. Atento a todas as polémicas e divergências, Paulo Filipe Monteiro dedicou particular atenção ao estudo deste período. Este investigador começa por alertar que, na história do cinema português, “estamos a lidar com conceitos particularmente pouco estáveis e pouco inocentes“ (Monteiro 1995: 631). No estudo deste período, torna-se fundamental descortinar as principais características do novo cinema: conhecer o momento em que este adquiriu “visibilidade enquanto conjunto“ e perceber as “divergências e polémicas que ainda hoje subsistem sobre a designação e a datação do novo movimento“ (Ibidem: 655). Para este autor, a confusão entre novo cinema e cinema novo serve para caracterizar duas tendências opostas no movimento renovador: “a que prefere um cinema novo em que, como no brasileiro, a possibilidade de afirmação de um cinema nacional está intimamente ligada a um conteúdo político, e outra em que o ‘novo cinema’ é mais parente da ‘nova vaga’ francesa, a da francesa política dos autores, em que a liberdade de criação não aceita liberdades determinadas, excepto a de impor o cinema como arte“ (Ibidem). Como conclusão, Paulo Filipe Monteiro aponta que a expressão “cinema novo“ tenha “já talvez triunfado independentemente da discussão conceptual que existia na origem“ (Ibidem: 656). Nos últimos textos, este autor tem 38 insistido num regresso à expressão mais geral de “novo cinema“, tentando repor a totalidade do movimento renovador, independentemente das questões conceptuais. Lauro António é outro autor que também tem promovido um regresso à designação “novo cinema“. Numa publicação a propósito da comemoração dos 40 anos da crise académica de 1962, o novo cinema é abordado no contexto de mudança e ruptura social protagonizada pelas culturas juvenis da geração de 60. A recuperação da designação “novo cinema“ coincide necessariamente com a restituição de Dom Roberto e Pássaros de Asas Cortadas como fronteira desse momento (António 2002b: 8-9). Outra das ideias fundamentais desenvolvida por Paulo Filipe Monteiro neste domínio tem sido a designada “tomada do poder“ pelo cinema novo. Os paradoxos “de um regime que põem no poder elementos que não lhe são afectos“ e de “elementos que, embora não afectos ao regime, pelas suas mãos acedem ao poder“ são novas variantes de uma temática que podem condicionar as velhas explicações e originar novas interpretações (Monteiro 2000: 329). Os trabalhos de Paulo Filipe Monteiro inserem-se num conjunto significativo de projecto de investigação universitária que promove uma oportuna reavaliação e reinterpretação da história do cinema português recente. Mas esta questão relativa às relações entre o Estado Novo e a nova geração cinéfila havia já sido avançada por Jorge Leitão Ramos: “Quando chegou a Revolução já nada havia a resolver nessa disputa“. Como anos mais tarde Monteiro viria a comprovar e a desenvolver, o Estado Novo reconheceu que “o cinema português era o cinema Novo, apesar de não afecto ao regime“ (Ramos 1989: 12). A confirmação desta ideia permitiu olhar com outro olhar para as relações entre a geração do cinema novo e o poder político de então. A generalidade dos autores que estudaram o período do novo cinema tendem a aceitar a ideia da “tomada do poder“ conforme esta foi “relatada“ pelos supostos vencedores. De resto, a versão saída da retrospectiva organizada pela Cinemateca foi fundamental para consolidar a tese segundo a qual a geração de 60 constituiu uma “pequena máfia cinéfila“11 que, através do que António-Pedro Vasconcelos designou por “terrorismo“ crítico (Cinema Novo Português, 1985: 80), conseguiu ocupar as posições estratégicas no cinema português. Contudo, em 1977, na primeira história do cinema português publicada, Luís de Pina analisava a situação pelo ângulo contrário. O poder não terá sido conquistado pelos jovens cinéfilos mas, pelo contrário, entregue a estes pelo próprio regime: “Alguns 11 “Era o princípio de uma pequena máfia cinéfila a sonhar com revoluções lisboetas.“ Expressão utilizada por Paulo Rocha (Andrade, 1996: 23). 39 comentadores falam de hipocrisia do governo, em reconhecer a esquerda, em tentar salvar as aparências, mas o que se passou foi muito simples: os membros do Conselho sentiam já que outro cinema não era possível“. Mais adiante, o autor prossegue: “o próprio Estado reconhece a força da nova geração e o tipo de cinema que pretende, pelo menos o mais sério culturalmente numa actividade em que os sub-produtos atingem o aviltamento total“ (Pina 1977: 83-84; 119). Todavia, esta é uma reflexão que retomarei mais tarde. Em 2001, um dos estudos mais esclarecidos sobre esta temática pertence a Fausto Cruchinho, investigador que tem dedicado especial interesse ao estudo do novo cinema português. Num artigo onde procura “determinar a filiação estética do Cinema Novo“, o autor alerta para o facto de o cinema novo “ter triunfado pela mão de laicos“, valorizando uma ruptura já referida entre os dois primeiros actos do cinema novo e as matrizes teórica neo-realista e a prática cineclubista. A provocação de Fausto Cruchinho revela-se na exposição de uma aproximação entre o cinema novo de Os Verdes Anos e Belarmino com os filmes que, uma década antes, António Ferro designava por “filmes do quotidiano“. Apesar de parecer uma heresia aos olhos dos “mais genuínos ortodoxos“, esta provocação assenta em pressupostos puramente estéticos. De resto, apesar da sua relação ideológica com a herança neo-realista, os filmes do cinema novo assemelham-se mais às “histórias contadas naturalmente, como se escreve bem ou se pinta bem, sem a preocupação dos grandes momentos, mas feitos pelo contrário, com os nadas de todos os dias, com os pequenos dramas sem espectaculosidade“ do que a Dom Roberto, único “fruto bacteriologicamente puro“ do cineclubismo (Cruchinho 2001: 237). Curiosamente, na primeira obra dedicada à história do cinema português, Luís de Pina falava já de uma semelhança intencional dos profetas do novo cinema e dos objectivos da política cinematográfica de António Ferro: “A ‘política do espírito’ de António Ferro tentou levá-lo [cinema português] para outros rumos, mas eram também rumos de convenção, de predomínio formal, de estilização expressiva que o conduziam para longe do verdadeiro espectáculo popular que ele deverá ser sempre“ (Pina 1977: 118). Eduardo Paz Barroso é outro autor que se tem dedicado ao estudo da prática crítica em torno do cinema português nos anos 60 e 70 tendo mesmo sido esse o objecto da sua tese de doutoramento (Barroso 2002). Percorrendo os diversos núcleos da crítica cinematográfica (imprensa, cineclubes), o autor analisa a argumentação e os diversos 40 discursos utilizados na afirmação do cinema de autor em Portugal. De uma forma original, Paz Barroso reflecte acerca das relações entre a crítica e as doutrinas e ideologias, fazendo um importante levantamento das principais influências ideológicas da prática crítica em Portugal (existencialismo, catolicismo, formalismo, realismo, marxismo, estruturalismo e psicanálise). Estes trabalhos de Fausto Cruchinho, Paulo Filipe Monteiro e Eduardo Paz Barroso integram um importante surto de estudos que, sobretudo desde os inícios dos anos 90, vão dedicando à temática do cinema português uma observação mais rigorosa. Gradualmente, o objecto de estudo cinema português “começa a adquirir estatuto universitário, dando lugar a teses académicas focadas por diversos ângulos de análise e diferentes metodologias“, despertando a atenção de diversos domínios disciplinares. O natural interesse por parte dos historiadores em explorar um filão da história da cultura como o cinema permitiu o surgimento de trabalho de reconhecido valor científico. Esta tardia mas intensa consciencialização permitiu a elaboração das primeiras dissertações no campo metodológico da história (Torgal 2000: 13-14). Importa sublinhar que esta temática do “novo cinema“ tem merecido um destaque muito significativo na maioria das obras publicadas no estrangeiro dedicadas ao cinema português12. Como esclarece José de Matos-Cruz, a temática do “cinema novo português começou a ser estudado em paralelo com outros ‘cinemas novos’ (o do Brasil, do Canadá, da Alemanha, da Suíça)“, tendo particular destaque as co-produções de Cunha Telles e as diversas participações de actores franceses e brasileiros em filmes portugueses (Matos-Cruz cit. in Costa 1985: 30). Numa obra de referência dedicada à história mundial do cinema, assinada por Georges Sadoul, as únicas referências ao cinema português do período 1958-1974 resume-se a duas breves frases: “Em Portugal as condições de criação são ainda mais difíceis. Depois de 1960 podemos assinalar Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, Belarmino, de Fernando Lopes, e Dom Roberto, de Ernesto de Sousa, melancólica evocação da Lisboa pobre por meio de observação de um animador de fantoches“ (Sadoul 1983: 578). Em outra obra de referência, escrita por Gaston Haustrate, destaca-se a influência do neorealismo em Dom Roberto, da nouvelle vague na obra de Paulo Rocha e do free cinema em Fernando Lopes, assim como a importância do regresso de Manoel de Oliveira e de obras 12 Por exemplo: Portogallo: “Cinema Novo“ e oltre… (1988), Lo Stato delle cose: il nuovo cinema portighese (1995) e Amori di perdizioni: stori di cinema portoghese 1970-1999 (1999), coordenado por Roberto Turigliatto. 41 do circuit parallèle ao cinema oficial como O Cerco, Nojo aos Cães e O Recado (Haustrate 1997: 186-187). De resto, a visão oficial da Cinemateca em relação ao cinema novo tem permitido a divulgação das principais obras e dos seus autores através de importantes retrospectivas em iniciativas significativas como festivais de cinema e cinematecas estrangeiras. A versão oficial tem imposto, aos olhos externos, que o cinema português praticamente não existia antes do “cinema novo“ e aproveita o prestígio internacional de figuras como Manoel de Oliveira e João César Monteiro para os colar ao rótulo paternal do “cinema novo“. Em 2006, uma colectânea de textos de João Mário Grilo reunidas sob o título de O Cinema da Não-Ilusão. Histórias para o Cinema Português, incluía uma primeira parte intitulada “Pequena História do Cinema Português“ que recupera e actualiza um texto publicado originalmente em 1992. Em cerca de 25 páginas, de uma forma muito sucinta e breve, fazendo justiça ao título dessa secção, Grilo divide a história do cinema português em quatro capítulos: “Começos“ (1896-1930), “Um cinema de actores“ (19301950), “Um cinema de autores“ (1960-1990) e “Um cinema de produtores“ (1990-). Desde logo, atendendo a critérios quantitativos, as décadas de 1960-90 são, inequivocamente as mais valorizadas pelo autor: os dois primeiros momentos ocupam apenas três páginas cada e o último seis, enquanto esse período denominado Um cinema de autores ocupa 13 páginas do total do texto. A visão do autor sobre o período em análise nesta tese é consentânea com a visão consagrada no catálogo/publicação da Cinemateca que acompanhou a retrospectiva de 1985. À parte as telegráficas referências ao “ano zero do cinema português“, os anos 50 praticamente não existem nessa história do cinema português, destacando-se apenas, no final da década, os apoios públicos concedidos pelo SNI a Manoel de Oliveira e o início da concessão de bolsas de estudos pelo mesmo organismo. Essa década de “cinema moribundo“ (Grilo 2006: 18) é tão menosprezada que até fica fora da própria divisão cronológica presente nos títulos dos textos. No ano seguinte surgiria no mercado a obra O cinema português através dos seus filmes (2007) que contrariava esta visão qualitativa da história do cinema português. Esta publicação propunha uma reavaliação do corpus fílmico habitual das histórias do cinema português anteriores, como declara a coordenadora Carolin Overhoff Ferreira (2007: 9): 42 “Parece-me extremamente importante valorizar todo o tipo de filmes, para poder entender melhor uma época, e não unicamente aqueles que sobressaem por serem esteticamente mais bem conseguidos (...). De facto, o livro tentou incluir tanto o filme de autor (Brandos Costumes, Le Soulier de satin, Trás-os-Montes) como o filme comercial (O Leão da Estrela, Os Três da Vida Airada, O Lugar do Morto, Tentação). Apesar disso, vários autores discutem a constante redefinição da relação entre o filme popular e o filme artístico, relação esta que se tornou conflituosa a partir de meados dos anos 70.“ A própria estrutura do livro respeita um equilíbrio cronológico dos filmes analisados: dos anos 50 (“estagnação e neo-realismo“) são quatro (Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro; Os Três da Vida Airada, de Perdigão Queiroga; Nazaré, de Manuel Guimarães; Chaimite, de Jorge Brum do Canto); dos anos 60 (“um novo cinema“) são dois (Os Verdes Anos, de Paulo Rocha; Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes); e dos anos 70 (“após o 25 de Abril“) são cinco (Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos; Que farei eu com esta espada?, de João César Monteiro; Continuar a Viver - Os Índios da Meia Praia, de António da Cunha Telles; Trás-os-Montes, de António Reis; Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira). O equilíbrio é também uma preocupação de Leonor Areal na sua detalhada obra Cinema Português: Um País Imaginado (2011). Versão da sua tese de doutoramento datada de 2008, esta publicação aborda de forma detalhada e diacrónica o cinema português das décadas de 1950, 60 e 70, procurando tratar de forma idêntica “o cinema conformista, o neo-realismo, o novo cinema e o cinema livre“, ainda que resuma o seu corpus às longas-metragens de ficção. A sua metodologia foca-se nos filmes, “uma perspectiva analítica de cada filme“, cruzando abordagens espácio-cartográfica, sociográfica e etnográfica. Da análise individual dos filmes, Leonor Areal destaca dois grande núcleos temático-formais: "Dois movimentos artísticos se salientam neste período: o neorealismo com seu único representante Manuel Guimarães; e o novo cinema dos anos 60, composto de uma diversidade de autores e apresentando uma linha de evolução estética consistente, apesar das diferenças autorais. Estes dois movimentos de resistência estéticoideológica tentavam a custo existir numa sociedade totalitária vivendo sob o regime do Estado Novo e sujeita aos condicionalismos severos da censura oficial." (Areal, 2008: iv) Leonor Areal tem sido, sem dúvida, a autora que mais tem trabalhado na revisão crítica da obra de Manuel Guimarães e do seu cinema neo-realista, sobre o contexto de resistência que envolveu a primeira fase da sua carreira, nomeadamente as três 43 primeiras longas-metragens, realizadas nos anos 50: Saltimbancos (1951), Nazaré (1952) e Vidas sem Rumo (1956). Sobre a década seguinte, Areal também tem defendido o retorno à expressão Novo cinema em vez de Cinema novo e tem tratado com particular interesse a acuidade os mecanismo de censura ao cinema durante essa fase do Estado Novo. No mesmo sentido de reavaliação da história do cinema português, seriam publicadas uma tese de mestrado e três teses de doutoramento de duas investigadoras estrangeiras que em muito contribuíram para uma releitura necessária da década de 1950. Começo pela dissertação de mestrado de Paulo Granja, defendida em 2006: As origens do movimento dos cineclubes em Portugal 1924-55 é um trabalho obrigatório para se compreender a génese e o crescimento do movimento cineclubista português no segundo quartel do séc. XX. De uma forma clara, Paulo Granja traça o cenário da evolução das associações cinematográficas portuguesas desde o cinema mudo até à repressão do movimento cineclubista promovida pelo Estado Novo nos anos 50. Para além da escolha do tema pouco tratado, Paulo Granja tem também o mérito de identificar e recuperar diversas fontes dispersas por arquivos de alguns desses cineclubes, particularmente os de Faro, Porto, Viseu, Coimbra, mas também em arquivos generalistas como o da Fundação Mário Soares ou do próprio Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Referindo-se particularmente aos anos 50, Granja demonstra que, apesar de todos os entraves e vigilância política, os cineclubes foram um importante foco de dinamização cultural e artística e contribuíram decisivamente para transformações estruturais na forma de se entender o fenómeno cinematográfico em Portugal. Defendida em 2002, mas apenas publicada em 2006, a tese de doutoramento de Christel Henry, A Cidade das Flores - Para uma recepção cultural em Portugal do cinema neo-realista Italiano como metáfora possível de uma ausência, inclui um extensíssimo estudo sobre as publicações periódicas portuguesas de temática cinematográfica durante os anos 50, nomeadamente a Imagem (1.ª e 2.ª séries), a Filme, a Visor e a sua sucessora Celulóide, e também sobre a crítica de cinema produzida e publicada em alguns dos principais cineclubes portugueses desse período, nomeadamente o Clube Português de Cinematografia/Cine-Clube do Porto, o Centro Cultural de Cinema (Lisboa), o Cine-Clube de Faro, o Cine-Clube Imagem (Lisboa), o Cine-Clube do Barreiro, 44 o Cineclube de Espinho, o Cine-Clube Universitário de Lisboa, o Cine-Clube de Rio Maior e o ABC Cine-Clube (Lisboa). O tema central da sua investigação, a recepção do cinema neo-realista italiano em Portugal, serviu de mote para uma reavaliação da década de 1950 e do debate em torno do neo-realismo cinematográfico português. De forma abundantemente documentada, Christel Henry demonstra que esse debate animou os núcleos de discussão cinéfila e cinematográfica durante vários anos, contribuindo claramente para a oposição cultural ao Estado Novo, considerada como um projecto de política cultural ortodoxa e unidimensional, e à discussão de novas hipóteses e projectos para o presente e futuro do próprio cinema português. Deste estudo resulta, fundamentalmente, uma reavaliação dos anos 1950, contrariando uma ideia estabelecida de que esse período tinha sido uma fase decadente, uma espécie de “idade das trevas“ de que o célebre “ano zero do cinema português“ é o ponto mais baixo. De acordo com a análise de Christel Henry, os acalorados debates e a vitalidade dos movimentos neo-realista e cineclubista contribuíram decisiva e inequivocamente para a renovação do panorama cinematográfico em Portugal. Fruto da sua tese de doutoramento, Michelle Sales publicaria, em 2011, o livro Em busca de um Novo cinema português, um contributo fundamental de mais alguém que está fora (geograficamente) mas que estuda detalhadamente o período em análise: Contaminado por um olhar estrangeiro, o trabalho tem como ponto estruturante a tentativa de historicizar aquilo que se convencionou chamar de cinema novo português (ou novo cinema português) tateando entre os limites da história, a análise dos filmes e das principais influências e o questionamento do estabelecimento de certos cânones. Um pouco à maneira de Glauber Rocha que, com o Revisão crítica do cinema brasileiro, inventa tradições e antecedentes para o moderno cinema brasileiro – contemporâneo ao cinema novo português – a justificativa capital que nos move é a defesa de uma postura inquietante e desestruturadora que menos prevê conclusões do que sinalizações para futuros desdobramentos. (Sales 2011: 3). Entre várias questões, Michelle Sales aborda a relação paternal de Manoel de Oliveira com a geração do Novo cinema português (Ibidem: 105-111), a influência do neo-realismo literário nessa renovação estética (Ibidem: 113-140) e a produção e recepção do filme Dom Roberto de Ernesto de Sousa (Ibidem: 140-52). São todas questões pertinentes que questionam uma série de convenções da história do Novo cinema português que tem condicionado o reconhecimento das obras de Manuel 45 Guimarães e Ernesto de Sousa, só para dar dois exemplos, na renovação estética que alterou o cinema português nesse período. Em suma, Michelle Sales (2011: 6) defende: O novo cinema, como se afirma aqui, nasce da efervescência da vida cultural portuguesa ao longo dos anos 1950, contrariando o ponto de vista consensual, que percebe a mencionada década como os anos negros do cinema português. A experiência do cineclubismo, a enorme difusão e veiculação das revistas especializadas, bem como a atuação de Manuel Guimarães, Alves Redol e Leão Penedo são o ponto de partida para o debate em torno das feições de um novo cinema que se dá, sobretudo, ao longo dos anos 1950 e dos anos 1960. Recentemente, em Cinema Português: Um Guia Essencial (SESI-SP Editora, 2013), uma obra colectiva que coordenei em parceria com Michelle Sales e que contou com a colaboração de diversos investigadores portugueses e brasileiros, surgiram várias hipóteses de periodização para uma síntese da história do cinema português. A opção de dividir o objecto por décadas pretender, sobretudo, rejeitar algumas unidades impostas a determinados períodos históricos em publicações anteriores que reduzem a leitura de fenómenos complexos a um filme ou a um autor. Refiro-me agora apenas aos capítulos referentes às décadas de 1950, 1960 e 1970 por corresponderem aos limites cronológicas desta tese. Em “1950-59: Anos de cinefilia e formação“, Michelle Sales (2013: 152-172) reitera a importância dos movimentos cineclubista e neo-realista e o caso Manuel Guimarães nas transformações estruturais, geralmente desvalorizadas, que seriam fundamentais para a renovação estética das décadas seguintes. Michelle Sales também destaca a importância de um corpus fílmico pouco valorizado, o cinema amador e todo o circuito de produção e distribuição alternativo que conseguiria notória visibilidade nacional e internacional desde finais dos anos 1950 através de diversos festivais de cinema de amadores, estrategicamente apoiado pela UNICA - Union Internationale du Cinéma Non Professionel, que, já em 1954, havia organizado o seu congresso anual em Lisboa. No capítulo seguinte, “1960-69: Quando o cinema português foi moderno“ (Cunha 2013a: 173-191), da minha responsabilidade, procurei deixar claro que, apesar de ser dos períodos mais estudados da história do cinema português, a década de 60 também é aquela onde subsiste um maior número de contradições, mitos instituídos e considerações extremamente subjectivas que dificultam a compreensão desse período em toda a sua complexidade. Mais do que redefinição do corpus fílmico e textual, a principal conclusão deste texto passa pelo processo de internacionalização do cinema 46 português que operou uma mudança de paradigma com o cinema das décadas anteriores: (...) ao propor uma ruptura com os projectos anteriores de um cinema nacional para um público português (ou luso-falante, no caso das colónias ultramarinas e da colónia de portugueses e lusodescendentes no Brasil) e uma aproximação estética ao cinema moderno das novas vagas europeias e ao seu crescente circuito de divulgação que passava pelos festivais de cinema e pela exibição em contextos culturais. (Ibidem: 188) Finalmente, no capítulo “1970-79: O cinema na transição democrática“, Jorge Cruz (2013: 192-214) centra a sua análise e reflexão no modo de produção cooperativo, analisando as principais transformações vividas na sociedade portuguesa desse período. Em jeito de conclusão, Jorge Cruz afirma que o conturbado processo produtivo do filme Amor de Perdição (1976-78) de Manoel de Oliveira marcou simbolicamente a falência do modo de produção cooperativo, o fim da “produção militante do 'cinema de Abril“', e lançou um novo paradigma que vingaria na década de 1980, o da internacionalização do cinema português (Ibidem: 214). No estudo da década de 1970, O cinema ao poder! (2002) é uma obra obrigatória. Da autoria do investigador e cineasta José Filipe Costa, este trabalho foi um importante contributo para conhecer um período do cinema português muito complexo, conturbado e marcado por jogos de poder subterrâneos e invisíveis. Muito do que é hoje o cinema português resulta de políticas de cinema que foram definidas nesses anos. Mais do que os próprios filmes foi, portanto, necessário conhecer os grupos, as instituições, as experiências e os projetos que existiram nesse período crucial da democratização da sociedade portuguesa e que influências exerceram sobre o cinema português atual. O trabalho de José Filipe Costa analisa, documentada e exaustivamente, o período dito revolucionário balizado entre 25 de Abril de 1974 e Junho de 1976, acompanhando todas os conflitos e cisões sindicais, a discussão para a revisão da legislação cinematográfica, a criação de grupos de trabalho como via de transição para a socialização do cinema e a constituição das Unidades de Produção. Para além de diversos documentos inéditos ou pouco divulgados, coligidos em acervos pessoais ou em publicações periódicas, o autor também inclui a transcrição de cinco entrevistas (Manuel Neves, Alberto Seixas Santos, Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos e Vasco Pinto Leite) que acrescentam muita informação ao conhecimento desse período. Neste importante estudo, o autor demonstra a necessidade de valorizar novas fontes e recuperar e disponibilizar documentos esquecidos, perdidos, ignorados ou 47 inacessíveis, para permitir leituras posteriores. Ainda assim, José Filipe Costa alerta para o facto de não ter conseguido localizar muita documentação por dificuldades de acesso a espólios de institutos públicos por esses ainda não estarem tratados arquivisticamente. Esta informação sugere que muita documentação importante continua por consultar e por analisar. No seu ensaio ilustrado publicado em 2008, A invenção do cinema português, Tiago Baptista dá continuidade às suas reflexões sobre a historiografia sobre cinema português13, concluindo que uma das principais transformações da década de 1970 foi a “desnacionalização“ do cinema português: Era este, aliás, o principal argumento apresentado para reivindicar o financiamento e a protecção estatal de uma pequena cinematografia nacional de qualidade que nunca seria capaz de competir com o cinema de entretenimento estrangeiro no mercado livre. Esta posição acabou por ser assumida pelo próprio Estado em 1971 com a aprovação de uma nova lei de cinema e a criação do Instituto Português de Cinema (IPC). Já foi por diversas vezes notada a inversão presente naquela designação relativamente ao nome do organismo criado pela lei de 1948 (o Fundo do Cinema Nacional): a antiga formulação, que sublinhava a defesa de um cinema nacional, dava lugar a um organismo português de cinema. O que esta inversão assinala é uma aparente 'desnacionalização' do cinema. Ou, mais exactamente, um descomprometimento ou uma desresponsabilização do Estado em relação ao cinema por ele financiado. Formalmente, o cinema apoiado pelo IPC já não tinha de ser português (como era condição sob a vigência do Fundo do Cinema Nacional), mas sim produzido em Portugal. O sistema de financiamento foi por isso alterado para taxar de forma mais severa o cinema estrangeiro distribuído no país: enquanto a lei de 1948 cobrava taxas fixas segundo a categoria dos filmes estreados, a lei de 1971 passaria a cobrar um imposto percentual sobre todos os bilhetes emitidos. Esta alteração permitiu um aumento considerável das verbas disponíveis para financiar filmes portugueses, aumento esse feito à custa dos lucros do cinema estrangeiro. Deste modo, o Estado reconhecia que o cinema nacional era (ou devia ser) não apenas uma forma de arte, mas também uma parte integrante do património cultural português, que precisava de ser protegida da hegemonia do cinema internacional. (Baptista 2008: 85-86) Em suma, os textos supra citados de Jorge Cruz, José Filipe Costa e Tiago Baptista parecem suficientemente esclarecedores que as transformações mais significativas que 13 «Cinema e Nação: os primeiros trinta anos de “filmes tipicamente portugueses“», in Actas do Colóquio “Transformações Estruturais do Campo Cultural Português, 1900-1950″ (Coimbra: CEIS20/FLUC, 2008), 347-364; «Franceses tipicamente portugueses. Roger Lion, Maurice Mariaud e Georges Pallu: da norma ao modo de produção do cinema mudo em Portugal», in Tiago Baptista e Nuno Sena (org.), Lion, Mariaud, Pallu: franceses tipicamente portugueses (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2003), 37-96. 48 se operaram neste período não foram propriamente visíveis nos filmes, mas sobretudo nos seus modos de produção e de circulação. Especificamente sobre o corpus fílmico, publicaram-se também duas importantes obras, resultantes também de teses de doutoramento, recuperam filmes pouco conhecido, ignorados ou desvalorizados nas súmulas históricas mais lidas. A primeira, em termos cronológicos, foi O Paradigma do Documentário: António Campos, Cineasta (2009), de Manuela Penafria, que centra a atenção no cineasta amador que se destacou no documentário etnográfico. Figura marginal, mas igualmente incontornável, Campos é um exemplo de um nome surgido fora dos meios e espaços convencionais mas que ocupou um lugar fundamental na renovação estética do cinema português. Se o documentário já é relativamente ignorado pelo cânone ficcional, o cinema amador e o filme etnográfico são nichos ainda mais marginais e frequentemente desvalorizados. Manuela Penafria analisa a sua obra e considera qua a filmografia de António Campos (...) abre a perspectiva de uma praxis cinematográfica onde o documentário não é apenas uma opção do realizador, mas um modo de estar no panorama da criação de imagens em movimento e essa sua filmografia poderá servir de inspiração a novos realizadores e contribuir para discutir a especificidade da cinematografia portuguesa. E Manuela Penafria define dois objectivos principais para o seu estudo: (...) contribuir para aprofundar o conhecimento do nosso património cinematográfico e contribuir para recuperar a memória de um realizador ressaltando que o conhecimento da sua filmografia se encontra aberta a mais interpretações que aquelas a que António Campos tem sido sujeito. (Ibidem) O segundo estudo é O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985 (2011), publicação que tem por base o projecto de doutoramento de Paulo Miguel Martins, reúne, pela primeira vez, vários dados significativos sobre filmes industriais produzidos em Portugal entre 1933 e 1985. Recorrendo a fundos documentais inéditos ou pouco conhecidos, nomeadamente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, e a uma série de testemunhos orais de realizadores e técnicos, Paulo Miguel Martins sublinha a importância dessa produção cinematográfica considerada “menor“ como documentos históricos valiosos capazes de oferecer leituras alternativas à história do documentário português, valorizando variáveis técnicas, económicas e sociais que são fundamentais para analisar esse complexo fenómeno cinematográfico. 49 O principal mérito deste trabalho é contrariar a tendência, predominante nos estudos de cinema, de desvalorizar tudo o que não entre no convencional cânone de filmes de longa-metragem de ficção e ignorar uma produção cinematográfica que até é quantitativamente superior. Entre outros méritos, Paulo Miguel Martins consegue, com sucesso, corrigir algumas afirmações generalizantes que permitem re-equacionar pressupostos errados entretanto estabelecidos sobre os modos de produção no cinema português: Em segundo lugar, o documentarismo industrial, tal como o cultural ou turístico, permitiu a muitos cineastas começarem a trabalhar e a iniciar as suas carreiras em objectos áudio-visuais mais curtos e de mais simples execução, possibilitando a 'experimentação' e a prática da arte visual e sonora de um modo regular, imediato e concreto, que se veio a reflectir depois no maior domínio técnico, artístico e da estrutura narrativa nas longas-metragens. Foi como que uma escola de iniciação e um abrir de portas para o exercício cinematográfico [...]. (Martins 2011: 180) No entanto, como nota Sofia Sampaio (2012: 203-204), o trabalho desenvolvido por Paulo Miguel Martins acaba por ser traído por pressupostos que ele próprio denunciara: “Não há dúvida que o critério decisivo [de selecção do corpus fílmico] foi um critério artístico, e não histórico: todos os filmes foram escolhidos por serem 'documentários indicados pelos próprios cineastas e críticos do cinema como os mais representativos de diferentes décadas e de diferentes realizadores' (p. 185). Daí a exclusão do trabalho de Maria Luísa Bívar, a realizadora que mais documentários industriais produziu, mas que Martins não considera um caso paradigmático (p. 149). Daí, também, outros enfoques analíticos: o papel que os documentários industriais desempenharam como terreno de experimentação para os cineastas do 'novo cinema'; a importância atribuída (sobretudo na primeira parte) às salas de cinema convencionais, em detrimento de outros públicos e circuitos de exibição (ex. Casas do Povo, cineclubes, escolas, sanatórios, igrejas, as próprias empresas, que Martins, de resto, refere, mas não desenvolve - pp. 89-90, 126, 206). e a sobrevalorização de dois dos muitos usos a que o filme industrial se prestava, nomeadamente, o prestígio e a construção de uma memória colectiva, cujas ramificações e implicações sociais não são suficientemente explorada.“ Ainda segundo Sofia Sampaio, apesar de valorizar as relações sociais, materiais e simbólicos, formais e informais, Martins “acaba por abraçar uma visão estetizante do filme industrial, que radica na noção (tendencialmente a-histórica) do cinema como arte“, contrariando a tendência teórica mais recente dos estudos sobre esses filmes e 50 convergindo para “perspectivas autorais que tendem a valorizar o documento industrial pelo seu contributo, sobretudo ao nível formal, para o cânone ficcional“ (Ibidem: 204). Finalmente, recuo um pouco no tempo, até 2005, para recuperar uma ideia que avancei na minha dissertação de mestrado, quando usei a expressão Novo cinema português enquanto sinónimo de “um período de vigência (1955-74) de um plano de intenções homogéneas em prol da renovação estética e ética do cinema português“. Nesse mesmo texto, rejeitei usar o termo “no sentido de definir um movimento estético unitário“, optando entendê-la essencialmente como “conceptualização de uma unidade formada em oposição a uma ideia de cinema vigente na cinematografia portuguesa particularmente desde a década de 1950“ (Cunha 2005: 18). Condicionado pelo curto período de tempo disponível para a investigação da dissertação de mestrado, fechei o período de análise a dois marcos que considerava significativos e fracturantes na história do cinema português: o suposto “ano zero“ do cinema português e a Revolução de Abril. No entanto, logo percebi que esses anos tinham sido, no que diz respeito à história do cinema português, menos significativos e menos fracturantes do que inicialmente supunha. Se 1949, com a saída de António Ferro da direcção do SNI, foi muito mais fracturante do que 1955, em termos cinematográficos a revolução que mais marcou o cinema português na década de 70 foi a da aprovação da Lei 7/71 que, entre outras coisas, criou o Instituto Português de Cinema e redefiniu a política pública de cinema. Por outro lado, o modo de produção cooperativo que vingou na viragem da década de 60 para 70, sobreviveria à Revolução e seria dominante até final da década. Parece-me, portanto, que nenhuma dessa barreiras cronológicas iniciais (1955 e 1974) serviriam de referência para estudos futuros mais abrangentes e de maior fôlego. Basicamente, propunha então que, em vez de se definir um corpus de filmes ou de autores, com todas as condicionantes de subjectividade que isso comporta, se estudasse o Novo cinema português como um recorte cronológico marcado por algumas características dominantes, nomeadamente a oposição a uma ideia de cinema vigente durante as décadas 30 e 40. Esta minha leitura defendia uma heterogeneidade estética, formal e temática para as várias propostas avançadas entre as décadas de 50, 60 e 70, e contraria as hipóteses de leitura de que alguns desses filmes ou desses autores pudessem constituiriam grupos ou movimentos hegemónicos. Continuo ainda convencido que será essa a melhor aplicação da expressão Novo cinema português: uma espécie de zeitgeist que atravessou três décadas do cinema 51 português que conheceu várias propostas formais e informais de renovação estética e técnica do cinema português com protagonistas, objectivos e métodos diferentes. Nesse período, é possível identificar propostas de renovação com corpus fílmicos e autorais distintas que coexistiram no espaço e no tempo. Mais do que um cânone fechado como foi definido gradualmente pela crítica ao abrigo da expressão “cinema novo“, entendo que o Novo cinema português é um momento marcado pela heterogeneidade de propostas, com critérios inclusivos e não-discricionários, que se distingue pelos modos de produção do que por filmes ou por leituras subjectivos de carácter estético. Já ficou implícito e documentado, mas não é demasiado ressaltar que para a recente releitura a que a história do cinema português tem sido sujeita, e muito particularmente durante o período de vigência do Estado Novo, tem sido decisiva a disponibilização de inúmeras fontes, até há poucos anos inexistentes ou inacessíveis, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento. 1.4. Memória, crítica e historiografia Para fechar este primeiro capítulo é o momento de reflectir criticamente sobre as relações entre cinema, memória, crítica e historiografia e que influências terão exercido na forma como se interpreta hoje a história do cinema português e, em particular, o Novo cinema português. Quase nove anos depois de ter feito o estado da arte para o capítulo introdutório da minha dissertação de mestrado (Cunha 2005), volto a recuperar uma frase que então de serviu de mote para esse exercício de revisão: Usa-se a expressão ‘história mal contada’ quando, depois de ouvirmos uma, nos fica a sensação de que muito ficou por dizer e que entre a narração e a verdade vai a légua da póvoa. Presume-se que o contador sabe o que não diz ou diz o que não sabe. (Costa 1998: 47) Esta citação de Bénard da Costa é o melhor ponto de partida para a reflexão possível neste momento. Se o autor presume duas conclusões possíveis para as “histórias mal contadas“ – “o contador sabe o que não diz ou diz o que não sabe“ – acrescento aqui uma terceira: o contador diz o que lhe convém e como lhe convém. Ao longo dos vários estudos realizados em torno do cinema português tornou-se claro que 52 os autores das diversas súmulas históricas, movidos por interesses pessoais ou corporativos, construíram e divulgaram visões diametralmente opostas sobre um mesmo objecto de estudo. Por outro lado, só muito recentemente é que a designada “gente do cinema“ 14 perdeu o monopólio da escrita sobre o cinema português, permitindo o desenvolvimento de uma produção historiográfica independente que parte sobretudo de centro de investigação agregados a instituições de ensino superior. Estes novos autores, com preocupações metodológicas, procuram desenvolver um trabalho sem compromissos aparentes com o objecto de estudo. O facto de provirem de áreas exteriores à cinematográfica parece dotá-los de uma certa independência em relação às relações de afectividade e cumplicidade que vigoram entre a “família cinéfila“. Apesar de lembrar que “o passado não é o mesmo para todos“, o historiador francês Marc Ferro alerta para as diversas tentativas em uniformizar o passado através de vários aparelhos de reprodução, procurando que uma memória colectiva se imponha como “verdade histórica“. Esta instrumentalização da memória e da história parece orientar-se pela máxima recordada por Marc Ferro – “Controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar ascendentes e contestações“ – e permite que a história assuma uma dupla função de terapêutica e militância (Ferro [s.d.]: 15-17). Tal como acontece com as outras áreas disciplinares, a História, devido à constante redefinição metodológica, tem permitido reequacionar problemas antigos e, por vezes, revolucionar o conhecimento de certas temáticas. O que tenho verificado no caso específico da história do cinema português é a recente revelação da diversidade de representação e interpretação de factos, à luz de novos dados e da reavaliação das fontes disponíveis. Devido à relativa proximidade cronológica com o período em estudo, os historiadores que se dedicam ao trajecto do cinema português na segunda metade do séc. XX beneficiam do privilégio de poderem contactar directamente com algumas fontes significativas. No entanto, este contacto directo com as fontes orais ainda disponíveis merece, para além de cuidados metodológicos, a consciente percepção dos perigos de trabalhar com um objecto assente na subjectividade e na selectividade. 14 Até 1990, como penso ter ficado claro nas páginas anteriores, os principais autores que escreviam sobre a história do cinema português eram pessoas ligadas à actividade cinematográfica: Manuel Félix Ribeiro era funcionário do Secretariado Nacional de Informação e foi o primeiro director da Cinemateca Portuguesa; Luís de Pina, que lhe sucedeu na direcção desse organismo público, desempenhou diversas funções públicas como administrativo; João Bénard da Costa, apesar da formação superior em HistóricoFilosóficas, destacou-se sobretudo como curador e programador de cinema, primeiro na Fundação Calouste Gulbenkian e depois na Cinemateca Portuguesa. 53 Por um lado, a petite histoire do cinema português ainda está por fazer. Parece-nos que a importância dos encontros informais e relações subterrâneas entre os diversos protagonistas e figurantes do Novo cinema é mais importante do que parece à primeira vista. O jogo de cumplicidades e de influências que alguns denunciaram por diversas vezes – recordo o debate final da retrospectiva organizada pela Cinemateca Portuguesa em 1985 – parece ter desempenhado um papel dinâmico na construção da história e parece também fundamental na construção da visão histórica sobre alguns períodos do cinema português. Um exemplo esclarecedor sobre a ajuda que a petite histoire pode prestar à “grande história“ foi o relatado por António de Macedo acerca do processo de obtenção da autorização excepcional de exibição do seu filme Nojo aos Cães no Festival de Bérgamo, apesar da inflexível proibição de exibição do filme nas salas nacionais: A situação era delicada, se os broncos das comissões de censura vissem o filme, que, do ponto de vista deles, devia ter peçonha até aos olhos, não haveria autorização. O Francisco de Castro [produtor] então lembrou-se de uma maroteira: como o despacho final dependia da autoridade do dr. Caetano de Carvalho, então director-geral, por sinal muito amigo dele, convidou-o a assistir a uma projecção privada no estúdio das ‘Produções Francisco de Castro’, na Rua Damasceno Monteiro, com a presença do realizador, mal a cópia acabasse de sair do laboratório. O director-geral anuiu. O Castro organizou um bufete cheio de aperitivos e de garrafas de bom whisky, o dr. Caetano de Carvalho apresentou-se com o chefe da repartição, que era o saudoso dr. Félix Ribeiro, e passámos todos uma tarde agradabilíssima, a ver o filme, bobina a bobina, à medida que as bobinas chegavam do laboratório, conversando muito e bebendo mais. À saída, dizia-me o director-geral com um brilho de felicidade nos olhos: - Senhor Arquitecto (era comigo), para a próxima faça um filme mais optimista, este é muito deprimente. Amanhã sem falta terá a autorização para ir a Bérgamo. (Macedo 2007: 29) Esta transcrição não pretende, de forma alguma, atenuar ou aligeirar a castradora influência da censura na actividade cinematográfica portuguesa, mas apenas a importância da complexa rede de relações subterrâneas de cumplicidade no desenlace de algumas decisões contraditórias relativas às práticas discriminatórias positivas e negativas no período do designado Novo cinema português. A par da petite histoire, o papel da memória afigura-se essencial à produção historiográfica em torno do Novo cinema português. Como refere Fernando Catroga, autor de referência no estudo da memória, esta assume um carácter subjectivo e selectivo na construção do passado, privilegiando o “cariz totalizador e teleológico da 54 recordação“ onde a história e a ficção se misturam e os factos se miscigenam com conotações estéticas e éticas (Catroga 2001: 20-21). Regressando ao texto de Bénard da Costa, na história do cinema português é perfeitamente visível que “os paladares mudem com os tempos e mudem com as vontades“, e esta permeabilidade a pressupostos ideológicos parecem suficientes para justificar o facto de não existir uma história consensual do cinema português, mas antes uma diversidade de “histórias do cinema português, mal contadas e mal vistas“ (Costa 1998: 47). Fernando Catroga acentua que é natural “que cada presente construa a sua própria história, não só em função da onticidade do que ocorreu, mas também das necessidades e lutas do presente.“ Mais, é a memória “quem dá futuros ao passado“, desempenhando uma importante função social através das “liturgias próprias centradas em reavivamentos“ e dos “ritos que o reproduzem e transmitem“ (Catroga 2001: 22-23). Atendendo a estas palavras, pode-se considerar que a Cinemateca tem tido um papel crucial na promoção e divulgação de ritos e liturgias que tentam impor uma certa visão do cinema português das décadas de 1960-70, nomeadamente as retrospectivas de 1985 e 1993, a publicação de obras de pretensão historicizante ou a mediatização de obras publicadas pelo seu responsável máximo. Em última análise, o comprometimento estético ou ético da generalidade dos autores das diversas súmulas da história do cinema português prejudicou o desenvolvimento de uma historiografia mais isenta e objectiva em torno da temática. No período do Novo cinema, entendo que a Cinemateca Portuguesa desempenhou um papel fundamental na legitimação de uma visão polémica do passado, nomeadamente através da celebração de liturgias – retrospectiva e publicação – que permitiram, como é a sua função, “criar coerência e perpetuar o sentimento de pertença e de continuidade“. Acentuando a “acção recriadora“ da memória, Fernando Catroga reforça um dos argumentos mais repetidos pelos vários críticos à “verdade oficial“ promovida pela Cinemateca e pelo seu director: “Recordar é, não só seleccionar e esquecer, mas também uma operação de resgate“ (Ibidem: 29-31). Fernando Catroga conclui que não se pode ignorar que “a historiografia também funciona como fonte produtora (e legitimadora) de memórias e tradições, chegando mesmo a fornecer credibilidade cientificista a novos mitos de (re)fundação de grupos e da própria nação (reinvenção e sacralização das origens e de momentos de grandeza simbolizados em ‘heróis’ individuais e colectivos)“ (Ibidem: 50). 55 Paulo Filipe Monteiro corrobora esta considerações sobre a “invenção da tradição“ a propósito do caso concreto da investigação em torno do Novo cinema português: É nessa década que começa a fazer-se um trabalho de afirmação do Novo Cinema português: uma invenção da tradição que, inevitavelmente, significa a exclusão das tradições que a nova geração considera não corresponderem à essência do cinema (moderno) português» (Monteiro 2004: 33). A propósito da invenção das tradições, Eric Hobsbawn (1997: 9) distingue claramente entre “tradição genuína“ — a que surge de forma espontânea e se perde no tempo — e “tradição inventada“ — que é instituída, de forma insistente e muito rápida, através da repetição simbólica e ritualizada e que obedece a um conjunto de regras reguladas e formalmente institucionalizadas. Sobre estas considerações de Fernando Catroga, Paulo Filipe Monteiro e Eric Hobsbawn, deixo aqui apenas alguns exemplos desta prática memorialista pouco rigorosa que tem sido recorrente nos escritos sobre a história do cinema português e que tem feito perpetuar leituras e interpretações pouco claras ou mesmo incorrectas. Em primeiro lugar, o caso da crítica diária no Diário de Lisboa. Segundo João Bénard da Costa, Lauro António começou a fazer crítica diária de cinema no Diário de Lisboa em 1965, inaugurando uma prática que mais tarde seria reproduzida por outros títulos generalistas: 1965 é ano dum acontecimento de bastantes consequências: o Diário de Lisboa confia a Lauro António (outro nome recentemente chegada à crítica) a recensão das estreias cinematográficas. Até aí, esta (a chamada 'crítica de cinema', diariamente inserida nos jornais) limitava-se a cumprir, mais ou menos directamente, fins publicitários. Todos os filmes eram, ao exibir-se em Portugal, excelentes e iguais em alto interesse. Permitiam-se variações de adjectivos, mas jamais execuções, sumárias ou elaboradas. O Diário de Lisboa cortou com esta tradição quase cinquentenária e Lauro António começou a escrever dos seus gostos e desgostos. Caiu-lhe o Carmo e a Trindade e os distribuidores chegaram a ameaçar o jornal com o corte de publicidade. Conseguiram correr com João César Monteiro, que com ele alternava de modo particularmente mais virulento, e só não conseguiram correr com o Lauro António porque, com abaixoassinados e tudo, toda a gente se bateu por ele. Outros jornais passaram a seguir o exemplo e, no fim da década, a 'velha crítica' estava sepulta. (Costa 1985: 29) Uma versão mais resumida é reproduzida noutra publicação do autor: Até 65, as críticas dos diários eram meras recensões publicitárias. A distribuição cinematográfica reagiu muito mal à inovação (chegou a ameaçar com a retirada de publicidade) e a prática só se generalizou no início dos anos 70. (Costa 1991: 124). 56 No entanto, a versão do próprio Lauro António, confirmada pelas publicações do próprio Diário de Lisboa, é substancialmente diferente: Em fins de 1967, eu [Lauro António] e o Eduardo Prado Coelho fomos convidados pelo Ruella Ramos a escrever diariamente no prestigiado ‘Diário de Lisboa’, então possivelmente o melhor jornal português, uma espécie de ‘Le Monde’ à escala portuguesa. [...] Começámos a escrever e, no início de 1968, estalou uma bronca monstruosa, que fez de nós dois ‘heróis nacionais’ de um dia para o outro. (António, 2008a: 79) A “bronca“ a que Lauro António se refere teve como principal protagonista uma associação de exibidores de cinema de Lisboa designada Cineasso – Cinemas Associados, Lda. Dirigida pelo Eng. José Gil, a Cineasso agregava os maiores espaços de exibição da capital: Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden e S. Luiz. Considerando-se ameaçado nos seus interesses, numa época em que o número de espectadores cinematográficos baixava consideravelmente, a Cineasso decidiu intervir de forma rápida e eficaz. No dia 23 de Fevereiro, enviou uma carta ao director do jornal: Confirmamos o nosso telefonema de hoje no sentido de ser anulada a publicidade sob a rubrica ‘Cartaz dos Cinemas’, relativamente aos nossos cinemas ‘Alvalade’, ‘Eden’, ‘Estúdio’, ‘Europa’, ‘Império’, ‘Monumental’ e ‘São Luiz’. Tivemos ocasião de manifestar a VV. Ex.as o nosso desapontamento e discordância pela orientação dada recentemente a certas notícias de estreias publicadas no jornal de VV. Ex.as, porque consideramos que não é aceitável que nas mesmas se desacreditem os espectáculos. A chamada liberdade de imprensa nada tem que ser invocada ao considerarem as relações entre entidades de interesses ligados, como é o caso da imprensa que carece da publicidade e da indústria que não pode viver sem ela. A crítica cinematográfica exercida com independência absoluta e sujeita a controvérsias de outros técnicos, está lógica e naturalmente reservada à imprensa da especialidade. Na diária, a confusão só pode gerar este lamentável atropelo de entidades que sempre prezaram muito o ‘Diário de Lisboa’ e nele tiveram um dos melhores defensores dos legítimos anseios da indústria dos espectáculos. A decisão que nos vimos forçados a tomar será complementada com a supressão de toda e qualquer publicidade das empresas nossas associadas. (Diário de Lisboa, 28-II1968: 1) A Cineasso ameaçou e cumpriu. No dia 28 de Fevereiro, a publicidade dos seus cinemas associados desapareceu das páginas do jornal. Entre as semanas que durou o boicote, apenas encontrei nas páginas do Diário de Lisboa publicidade de espaços exibidores que não integravam a Cineasso: Avis, São Jorge, Roma, Mundial, Europa, 57 Condes, Politeama, Estúdio 444. Em resposta, o Diário de Lisboa mediatizou a questão nas suas páginas e, entre o dia 29 de Fevereiro e 2 de Março, publicou diversas mensagens de apoio à sua atitude e de repúdio à intimidação da Cineasso, entre as quais uma assinada por diversos intelectuais ligados à imprensa e à crítica. A Cineasso acabaria por ceder e tudo voltaria, gradualmente, ao normal. A publicidade mais rentável, os cartazes ilustrados, só mais tarde voltariam a ter a regularidade que se verificava antes do boicote (Cunha 2008). O primeiro equívoco de Bénard da Costa prende-se com a datação deste episódio: de acordo com o depoimento de Lauro António (2008a) e da pesquisa feita directamente no próprio Diário de Lisboa, esta polémica ocorreu no início de 1968 e não em 1965. Este pequeno desvio de 3 anos poderia não ser significativo, mas neste caso concreto é, nomeadamente por ter ocorrido poucas semanas após a realização, no Porto, da Semana de Estudos do Novo Cinema Português. Para além de errar na cronologia, a versão de Bénard da Costa também induz em erro ao dizer que os exibidores ameaçaram com o boicote quando, na realidade, materializaram mesmo o boicote e só cederam por causa da campanha mediática promovida pelo Diário de Lisboa. Em relação ao afastamento de João César Monteiro, e após uma minuciosa pesquisa nos seis meses anteriores à polémica, constatei que o jovem crítico não escrevia no Diário de Lisboa à época da polémica com os exibidores. E de acordo com a publicação da Cinemateca Portuguesa dedicada ao cineasta, João César Monteiro só colaboraria com o diurno lisboeta a partir de 1970, primeiro na secção dedicada à crítica e mais tarde no suplemento literário. Agora o segundo caso. Em Março de 1964, num dos primeiros sinais de reconhecimento internacional, Pierre Kast assinava na Cahiers du Cinéma um texto intitulado Lettre de Lisbonne (Março de 1964: 41-42), em que anunciava a “nouvelle vague portugaise“ promovida por cinco portugueses “unis comme les doigts de la main“ (unidos como os dedos de uma mão). Citando o texto original, Bénard da Costa (1985: 30) identifica os “dedos“ referindo explicitamente os seus sobrenomes: “Rocha, Lopes, Fonseca e Costa, Cunha Telles e Oliveira“. No entanto, no texto original, os cinco “dedos“ identificados por Pierre Kast foram Paulo Rocha, Fernando Lopes, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães e António da Cunha Telles. O nome de Oliveira é referido como uma referência para todos os outros, como um “ainé“ (“amo“), um “artisan type complet“ (artista completo) que “fait tout chez lui, à Porto, tout seul“ (faz tudo em casa, no Porto, sozinho). 58 Pode parecer um pormenor, mas esta exclusão de Manuel Guimarães dessa “mão“ que estaria a promover a “nouvelle vague portugaise“ servia sobretudo as teses que queriam demarcar o novo cinema dos anos 60 das experiências precursoras como Dom Roberto, Pássaros de Asas Cortadas ou os filmes “neo-realistas“ de Manuel Guimarães. Para além disso, a inclusão do nome de Manuel Guimarães (em 1964 contava 49 anos de idade) punha em causa o carácter geracional da “revolução cinemanovista“ e a sua suposta autonomia em relação ao movimento neo-realista. Finalmente, um terceiro caso. O filme Catembe, realizado em 1965 por Faria de Almeida, em Lisboa e em Moçambique, é célebre por ter sido o filme português mais “esquartejado“ pela censura do Estado Novo. Devido ao silêncio do seu realizador, que durante décadas não se pronunciou sobre esse traumático processo, muito se escreveu e especulou sobre a produção, a rodagem e a montagem do filme. Uma das ideias que se instalou sobre a produção do filme é que o facto de a sua exibição ter sido proibida agravou a precariedade financeira das Produções Cunha Telles e contribuiu para o fecho dessa jovem casa produtora: Mudar de Vida, filme também de mudança de Paulo Rocha, entre o legado europeu de Verdes Anos e os rumos futuros da sua obra (com coisas belíssimas, mas afectado por um 'corte epistemológico') foi o canto do cisne, no mesmo ano em que a censura proibia pela primeira vez (e do bolso de Cunha Telles saiu esse dinheiro) um fruto do cinema novo: Catembe de Faria de Almeida. (Costa 1985: 31) Mais uma vez, depois de trabalhos científicos que procuraram as fontes, percebese que a leitura é incorrecta e mais subjectiva do que se pretendia. De acordo com as pesquisas de Maria do Carmo Piçarra, o projecto Catembe beneficiou de um apoio total de 350 contos provenientes do SNI (200 contos de subsídio a fundo perdido e mais um empréstimo de 150 contos) e o próprio Faria de Almeida também desempenhou funções de produtor, tentando obter financiamento local para a rodagem do filme e dirigindo a produção durante a maior parte da rodagem (os primeiros quinze dias de um máximo de três semanas), porque Cunha Telles permanecera em Lisboa. Por outro lado, como a equipa de rodagem era reduzida e Faria de Almeida ainda se socorreu de apoios familiares, o investimento de Cunha Telles não terá sido significativo. Finalmente, o próprio Faria de Almeida esclarece que reembolsou Cunha Telles para que o produtor madeirense “deixasse de ter qualquer direito sobre o filme“ (Piçarra 2012: 252-264). Ainda a propósito das Produções Cunha Telles, convém relembrar que existem outros relatos contraditórios em relação ao financiamento de outros filmes, 59 nomeadamente Os Verdes Anos e Mudar de Vida, ambos de Paulo Rocha, que pretendi aclarar numa comunicação que apresentei durante os trabalhos de investigação para esta tese (Cunha 2011). Estes exemplos parecem mostrar que é necessário e urgente rever as fontes no estudo da história do cinema português, questionando ideias-feitas ou mitos instituídos pela crítica ou por escritos sobre cinema produzidos por autores “comprometidos“ com o próprio objecto de estudo. Interessa voltar às fontes, reconstruir o corpus documental e fílmico, rever e reler depoimentos e testemunhos, em suma, fazer um trabalho arqueológico de base, evitando releituras anacrónicas ou comprometidas do passado e procurar olhar o objecto de uma forma inédita, atendendo a diversos factores contextuais até aqui pouco ou nada considerados. 60 2. As políticas públicas para o cinema em Portugal (1949-1980) Neste capítulo, dedicado às políticas públicas para o cinema português ente 1949 e 1980, procurarei caracterizar, analisar e compreender a intervenção do Estado e do poder político na evolução do cinema português, através de uma visão alargada que tentará compreender a grande narrativa que foi sendo construída acerca do cinema português no período em estudo. Tentarei definir as principais características desse período do cinema português atendendo às contraposições e tenções entre “velho cinema“ e “novo cinema“, as transformações estruturais e a afirmação de vontades políticas, ideológicas e estéticas para o cinema português. 2.1. A falência do projecto cultural de António Ferro Simbolicamente, o princípio do fim do consulado de António Ferro à frente do SPN/SNI terá sido assinalado pela mudança de designação do organismo público. Em 1944, pelo decreto n.º 33.545, de 23 de Fevereiro, o termo “Propaganda“ caía da designação oficial do organismo guardião da política cultural do regime para dar lugar ao termo “Informação“. Mais do que uma mera alteração simultaneamente lexical e semântica, esta mudança marca uma significativa alteração de estratégia e dos objectivos na execução da política cultural do regime. A evidente conotação do termo Propaganda com os regimes fascistas precipitava uma considerável redefinição na acção do organismo, estendida agora à supervisão dos serviços de censura e de todas as formas de comunicação social.15 A redefinição das funções de António Ferro anunciava a falência do seu projecto cultural. O forte investimento ideológico no sector cultural não produzira resultados práticos significativos para a tão desejada “regeneração“ da cultura portuguesa. O caso específico do cinema é bem demonstrativo das ambições e dos limites com que se deparou a Política do Espírito. A perda de influência e a fragmentação do núcleo de 15 Entre as novas competências do Secretariado Nacional de Informação conta-se a tutela da Emissora Nacional e da Direcção-Geral de Espectáculos. O organismo reforçava assim o estatuto de maior instrumento ao serviço do controlo cultural do Estado Novo. 61 cineastas próximos ao poder é também significativa do estado de crise que afectava a política cinematográfica do regime.16 A partir de 1946, António Ferro inicia um conjunto de comunicações públicas que se pautam sobretudo por um tom auto-crítico em relação ao panorama cultural português. Três discursos fundamentais marcaram a resignação de António Ferro perante o assumido fracasso do seu projecto cultural: “Grandeza e Miséria do Cinema Português“ (12-VIII-1946), “O Estado e o Cinema“ (30-XII-1947) e “O Cinema e o Teatro“ (21-XI-1949). No primeiro, António Ferro lançava severas críticas ao panorama cinematográfico nacional, reconhecendo que os problemas do cinema português eram conjunturais — manifesta falta de qualificação dos diversos profissionais envolvidos na indústria cinematográfica, desde os produtores e argumentistas, aos actores e técnicos17 — e estruturais — na má interpretação e má aplicação do fenómeno cinematográfico no panorama cultural português —, mas ambos poderiam ser ultrapassados com uma forte intervenção estatal na cultura portuguesa. No segundo, o mais célebre, António Ferro proferiu, provavelmente, o mais desconcertante e demolidor dos seus discursos. Ao longo de uma espécie de “via sacra“, em que percorre todos os géneros cinematográficos produzidos em Portugal durante a sua regência na tutela da propaganda e informação, Ferro denuncia ferozmente a falta de vitalidade criativa e capacidade profícua do sector cinematográfico nacional. Repartindo acusações, o próprio dirigente não se iliba das suas responsabilidades enquanto “timoneiro“ do fracassado projecto de regeneração da cultura cinematográfica portuguesa. O discurso abre com algumas referências concretas à positiva intervenção proteccionista do Estado nos assuntos cinematográficos, lamentando que, apesar do importante investimento estatal, o sector cinematográfico não tenha correspondido às expectativas: não obstante dispor de dois “caminhos“ distintos para o desenvolvimento do cinema nacional – a arte ou a indústria – os produtores não souberam aproveitar as oportunidades oferecidas. 16 António Lopes Ribeiro abandonava as longas-metragens com O Primo Basílio (1959) e Leitão de Barros com Vendaval Maravilhoso (1949), enquanto Brum do Canto iniciava um exílio voluntário do cinema após a rodagem de Chaimite (1953) e Chianca de Garcia partira já em 1938 para o Brasil. 17 Segundo António Ferro, os problemas do cinema português são: “o mal de retórica“, “falta de ritmo“, “falta de cuidado“, “cemitério de vedetas“ e “os argumentos“. Cf. Ferro 1950: 48-52. 62 Através da revisitação de toda a produção fílmica dos anos em que dirigiu o SPN/SNI, Ferro traça um diagnóstico arrasador do seu projecto de renovação da cinematografia nacional. Para além de ignorar os seus alertas para garantir uma “certa elevação“ do gosto e dos métodos de exploração comercial, os produtores são ainda acusados de optarem por “servir, obedientemente, pela lei do menor esforço, o chamado gosto popular“. Na sua opinião, o cinema abstraiu-se de qualquer missão civilizadora, servindo sobretudo de veículo de reprodução aos decadentes valores vigentes, e escusando-se de contribuir com o esforço colectivo de regeneração da Nação exigido pelo Estado Novo e por António Ferro em particular. A Política do Espírito, que tanto havia prometido, fracassara nos seus intentos. No entanto, Ferro continuava a acreditar que o mau gosto geral do público era “educável“, desde que houvesse vontade e empenhamento das pessoas responsáveis pela criação e divulgação artística, nomeadamente produtores e realizadores. A então recémpublicada Lei 2.027, como se verá adiante, era apontada no discurso como instrumento indispensável ao futuro desenvolvimento do cinema Finalmente, no último dos três discursos, António Ferro recupera as críticas anteriores e, fundamentalmente, reitera o apelo à mobilização de esforços na missão última de dar um novo rumo ao cinema nacional. Neste derradeiro discurso enquanto director do SNI, Ferro ensaia uma nova crítica, agora de ordem financeira e operativa. Em “erros de administração“, António Ferro reconhece que a indústria cinematográfica portuguesa necessita de novos administradores, de uma nova estrutura, mais sólida a nível operacional e financeiro. Além de retirar alguma responsabilidade operativa ao Estado, libertando-o para funções reguladoras e proteccionistas, a profissionalização progressiva dos homens do cinema poderia evitar a “natural tendência para o esbanjamento“ que se verifica na produção fílmica. Por um lado, uma gestão mais responsável poderia resolver outros problemas de carácter material, como a aquisição de novos e melhores equipamentos e o investimento no sector da exibição. Por outro lado, entendia-se que novas estratégias de produção seriam benéficas para o desenvolvimento de um mercado mais diversificado, apostando, para além das grandes produções, também em produções médias (“filmes francamente baratos“), de modo a potencializar os recursos e a revitalizar o sector (Ibidem: 87-88). Na opinião de Ferro, o cinema português não estava, de todo, condenado ao insucesso. Dotado de razoáveis recursos materiais e humanos, passíveis de uma valorização, o cinema nacional necessitava sobretudo de “uma orientação, um caminho 63 a seguir e, ainda o mais difícil, a obediência, sem excessos de individualismo, a essa orientação“ (Ibidem: 88). Esta frase parece encerrar, afinal, a maior das críticas de Ferro: denuncia a inoperacionalidade manifestada por alguns sectores do regime; denuncia a ociosidade e falta de iniciativa dos agentes privados da indústria cinematográfica; e, finalmente, denuncia também os inimigos da primeira hora, aqueles que nunca permitiram o êxito da Política do Espírito ao intoxicarem a opinião pública com um discurso “reaccionário“. Distribuídos temporalmente por três anos e meio, estes discursos contêm uma importante unidade na reflexão dos problemas essenciais à renovação da cultura portuguesa. Da sua leitura ressalta uma significativa insatisfação pelo estado geral da cinematografia nacional, materializada através de um conjunto de acusações concretas que enunciam os vários problemas que impediriam, no entender de Ferro, o desenvolvimento qualitativo do cinema português. Apesar de acreditar na possibilidade de renovação do cinema português, Ferro não parece crente de que a viabilidade dessa renovação possa passar pelo seu projecto cultural. As razões que afastaram António Ferro do SPN/SNI permanecem pouco claras e foram interpretadas de várias maneiras. As principais versões apontam para a insatisfação de Salazar ou do próprio Ferro, “que pedira a demissão por se sentir incapaz de fazer mais do que já tinha feito“ (Castro 1987: 96-97)18. Acredito que a demissão de Ferro esteja directamente relacionada com o fracasso do seu projecto de política cultural e de educação do povo, a célebre Política do Espírito. Sabendo que os conceitos de política e de propaganda sofreram uma clara alteração provocada pela falência dos regimes fascista e nazi, e que Salazar pretendeu acompanhar essa transformação19, não é de estranhar a vontade do ditador de se afastar definitivamente desse projecto cultural da Política do Espírito. Para agravar, a frágil concretização do projecto — perante tão altas expectativas — parece não ter favorecido a sua continuidade. Por seu lado, Ferro parece ter compreendido as mudanças políticas e ideológicas do contexto internacional e, sobretudo, as dificuldades que se avizinhavam; por isso, terá aceitado a redefinição das suas competências e a resignação ao seu projecto cultural. O “acto de contrição“ presente nos três discursos referidos parece ser um 18 Segundo a esposa de António Ferro, o abandono deste do SPN/SNI deve-se a precoces problemas de saúde, relacionados com o excesso de trabalho a que esteve sujeito enquanto político. 19 Foi precisamente em 1944 que o Secretariado de Propaganda Nacional foi rebaptizado como Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo. Mais do que uma reorientação ideológica, não se pode deixar de notar na substituição do termo Propaganda pelo termo Informação. 64 reconhecimento público de resignação política protagonizado por um dirigente desiludido e desacreditado pela sua principal base de apoio. Para António Rodrigues, António Ferro não encarava a sua demissão como uma derrota pessoal, mas apenas lamentava “o não saber que fazer com as censuradas ilusões de modernidade mantidas desde a juventude“. Ainda para o mesmo autor, o fracasso da Política do Espírito deve-se a razões de ordem estrutural da sociedade e da cultura portuguesas, nomeadamente a “mentalidade conservadora e obstrucionista“ expressa pelo Estado Novo e pelo próprio Oliveira Salazar (Rodrigues 1987: XXIV). Reconheço uma certa insatisfação de Ferro perante uma visão materialista de Salazar da política cultural. Apesar de admirar o sentido de Estado do ditador, António Ferro não terá aceitado que Salazar tenha desistido do seu programa de regeneração cultural e artística. Ultrapassado o período de forte investimento ideológico do Estado Novo e agravada a oposição interna e externa ao regime, a justificação de um projecto cultural como o de Ferro perdera a actualidade e falira politicamente. No entanto, mesmo antes de se afastar, António Ferro conseguia fizer aprovar a primeira lei geral de cinema em Portugal20, a Lei 2.027, de 18 de Fevereiro de 1948. A publicação desse extenso diploma era o culminar de um longo processo que admitia o fracasso da estratégia de António Ferro. A primeira versão da “lei de protecção ao cinema nacional“ foi publicada a 24 de Dezembro de 1946, sob a forma de decreto n.º 36.058, beneficiando claramente o sector da produção e “trincava forte nos distribuidores e exibidores.“ Mas, segundo João Bénard da Costa (1998: 54), apenas três dias depois, a 27 de Dezembro, “depois de os americanos ameaçarem com boicote“, “Salazar em pessoa mudou o decreto“ e, no início de 1947, “recambiou-o para a Assembleia Nacional para os deputados da nação o discutirem.“ Reforçando a ideia generalizada da importância da legislação para o futuro do cinema português, “o ano foi escaldante, com cada um a mexer os cordelinhos que podia.“ Depois de os deputados rejeitarem a “versão soft emendada pelo Chefe“, o processo regressou à Câmara Corporativa para novo parecer e, finalmente, a 18 de Fevereiro de 1948, a Lei 2.027 era publicada e seria regulamentada em 1949 (Ibidem). 20 Até 1948 havia sido aprovada legislação diversa sobre a produção e exibição cinematográfica — a famosa “lei dos cem metros“ (decreto n.º 13.564, de 6 de Maio de 1927), uma comissão de estudo do cinema educativo (decreto n.º 20.859, de 4 de Fevereiro de 1932) ou a regulamentação da frequência dos espectadores menores (Lei n.º 1.974, de 16 de Fevereiro de 1939), para dar alguns exemplos — mas tratou-se de diplomas isolados produzidos sem concertação, como aconteceria com a Lei 2.027. Para conhecer a legislação cinematográfica produzida em Portugal até 1980, ver Anexos, A. 65 Do ponto de vista meramente teórico, a polémica legislação parecia beneficiar sobretudo o sector da produção, nomeadamente com a criação do Fundo do cinema nacional (FCN): “Artigo 1.º A fim de proteger, coordenar e estimular a produção do cinema nacional, e tendo em atenção a sua função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural, é criado o Fundo do cinema nacional.“ Na prática, de todas as finalidades do FCN, sobressaia a “concessão às entidades produtoras de filmes portugueses de subsídios destinados a cobrir parte do custo desses filmes“ (Art. 7.º, 1.º). Para além de eventuais dotações extraordinárias por parte do Estado, a principal forma de financiamento do FCN seriam as receitas resultantes das taxas de licença de exibição, que incidia, acima de tudo, sobre os filmes estrangeiros21. O que também desagradou aos sectores da distribuição e da exibição foi a criação de um “contingente de filmes portugueses“: “Artigo 17.º Todos os cinemas são obrigados a exibir filmes portugueses de grande metragem, na proporção mínima de uma semana de cinema nacional por cada cinco semanas de cinema estrangeiro, independentemente do número de espectáculos semanais.“ Como filme português, de acordo com o artigo 11.º, considerava-se os filmes que cumprissem três condições: “ser falado em língua portuguesa“, ser produzido em estúdios e laboratórios portugueses e “ser representativo do espírito português, quer traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo, quer se inspire nos grande temas da vida e da cultura universais.“ Inequivocamente, a terceira das condições considerada na nova legislação para definir — e, consequentemente, financiar — o filme português ia ao encontro dos “caminhos seguros“, sugeridos pelo próprio Ferro no discurso “O Estado e o Cinema“ acima referido, para a afirmação do cinema português: os filmes históricos, os documentários e os “filmes de natureza poética“ (Ferro 1950: 64-65). Segundo Ferro, fora dos apoios deveriam ficar também outros filmes tidos como responsáveis pela crise criativa do cinema português: “filmes regionais ou folclóricos“, os “filmes extraídos de romances ou de peças teatrais“, os filmes policiais e, 21 Filmes de fundo (com mais de 1.800 metros): categoria A (filme principal em sessões de estreia): 10.000$00, categoria B (filmes destinados a programas duplos): 5.000$00; Filmes de complemento: categoria C (farsas e atrações musicais): 500$00; categoria D (desenhos animados): 400$00; categoria E (documentários e congéneres): 200$00; categoria F (actualidades): 100$00. 66 principalmente, os filmes cómicos. Baseados em fórmulas simples e repetitivas, e explorando os “chavões“, estes géneros fílmicos representam “o que há de mais inferior na nossa mentalidade“. Os filmes regionais e folclóricos, com o “bailaricos“ e cantigas “nitidamente metidos a martelo“, reproduzem visões estilizadas e depreciativas do regionalismo e folclore portugueses. Os filmes extraídos de romances ou de peças teatrais, com enormes potencialidades, não correspondem às qualidades da nossa literatura. Dos filmes policiais, apenas se registam “fracas e infelizes tentativas“. Finalmente, os filmes cómicos, esse “cancro do cinema nacional“, registam um enorme êxito comercial, impossibilitando um desenvolvimento equilibrado dos outros géneros e, principalmente dos técnicos e artistas portugueses (Ibidem: 63-67). No entanto, apesar da criação do FCN e do contingente para filmes portugueses, a nova legislação não iria produzir efeitos práticos por falta de regulamentação. Um bom exemplo desta inércia é o caso da Cinemateca Nacional: criada formalmente pela lei 2.027 (Art. 7.º, 6.º), os depósitos de filmes só seriam construídos em 1954 e a abertura da biblioteca e o início das actividades de programação só aconteceriam em 1958. Um pouco por toda a imprensa diária e periódica mais distante do regime, a lei 2.027 foi recebida com certo receio e desilusão. Como resume Luís de Pina, depois do “aceso debate na Assembleia Nacional, de viva polémica nos jornais, e do protesto isolado, mas contundente, de Roberto Nobre“, a lei de protecção ao cinema nacional era finalmente publicada. Contudo, “o diploma não só ignorava ou desacautelava a situação efectiva da economia do cinema português, como também só viria a ser regulamentado muito depois em aspectos fundamentais da sua aplicação“. As críticas mais frequentes diziam respeito à precária situação do circuito de exibição e das salas de cinema, à hegemonia na exibição do filme estrangeiro, e à “política de compadrio“ que vigorava na atribuição de subsídios à produção, “obrigando os filmes a seguirem a regra do jogo cultural e político“ do regime (Pina 1977: 54-56). Roberto Nobre, experiente crítico de cinema da Seara Nova e da Vértice, publicaria um texto, prontamente proibido pela Censura, no qual fazia uma violenta análise da nova lei: “O SNI quer pôr os cineastas directamente ao serviço da sua política, prendendo-os pela barriga, 'sugerindo' o que lhe apetecer, e sem despender um centavo, pois é ao Cinema que se vai buscar o 'fundo' — e será o público em última análise que pagará esse novo aspecto da sua política.“ (Nobre, 1946: 27-28). Luís de Pina (1977: 134-135) considera que a legislação de 1948, como muitas que a precederam, denuncia a hesitação do legislador “entre o encorajamento e a limitação“, 67 tendo sido também prejudicada porque a sua regulamentação foi sucessivamente adiada (só definida em 1956). Também Bénard da Costa (1998: 54) atribui ao legislador pouca determinação e convicção na produção e aplicação da lei: “Só em 1948, a 18 de Fevereiro, houve lei. Foi regulamentada em 1949, ano efectivo da passagem da teoria à prática. Criou-se o 'Fundo do Cinema Nacional', mas quem quisesse beneficiar dele não podia andar metido em brejeirices ou nas comédias a que Ferro chamava cancros. E aos exibidores e distribuidores exigia-se o mesmo que sempre se exigira. Que ajudassem como queriam e como pudessem.“ Os anos seguintes comprovaram as piores expectativas. Quando se procurava uma renovação da cinematografia portuguesa, bem expressa nos últimos discursos de António Ferro enquanto director do SNI, a legislação vigente demonstrava na prática que era ineficaz e desadequada às necessidades da tão ambicionada renovação. A espera da “lei de protecção ao cinema nacional“ – devido à deriva ideológica e perda de significado político do SNI, agravada pela criação da televisão pública – deixara o mercado cinematográfico entregue à exploração dos interesses de exibidores e distribuidores dependentes da importação de cinema estrangeiro. Os dois principais defeitos da nova legislação revelavam-se ao nível da letra da lei e da regulamentação de algumas disposições fundamentais. A fragilidade do vocabulário utilizado permitiu deturpações e interpretações subjectivas usadas por interesses privados e afectando o sector da produção. A nível da distribuição e exibição, o cinema português viu-se prejudicado sobretudo com o atraso da entrada em vigor de importantes disposições legais. Só a título de exemplo, convém sublinhar que os importantes artigos 17.º, 18.º, 19.º e 21.º da Lei 2.027, referentes à exibição de filmes portugueses de longa-metragem em regime de estreia22, só seriam regulamentados pelo Decreto n.º 40.715, de 2 de Agosto de 1956. Para além da falta de regulamentação, o afastamento de António Ferro também terá sido determinante na falta de resultados práticos. Após a demissão de António Ferro, o sector cultural do Estado Novo conhece um período de clara descaracterização ideológica. Ultrapassado o período de forte investimento ideológico do Estado Novo23 e 22 Esta legislação específica fixava as condições de distribuição dos filmes portugueses, impondo a exploração “à percentagem“ para as exibições de estreia, e obrigava os exibidores a mantê-los em cartaz enquanto mantivessem as receitas da semana anterior acima dos 60% da receita máxima realizável. Mais importante, este novo decreto regulamentava a quota de exibição de filmes portugueses nos cinemas de estreia de Lisboa e do Porto. 23 “Mas o tempo correu, os pioneiros envelheceram, António Ferro saiu para a diplomacia, o organismo cresceu, absorveu novas tarefas, admitiu muito pessoal que já não tinha o fogo, o entusiasmo, a 68 agravada a oposição interna e externa ao regime, a justificação de um projecto cultural como o de Ferro perdera a actualidade e falira politicamente. Ao mentor da Política do Espírito sucedem António Eça de Queirós (1949-51), José Manuel Pereira da Costa (1951-56) e Eduardo Brazão (1956-58), cujos apagados consulados ficariam marcados pela falência técnica do cinema português. Apesar do prestígio de António Eça de Queirós, sobretudo por ser filho do escritor Eça de Queirós, o seu consulado enquanto director interino foi breve: de 7 de Novembro de 1949 a 27 de Fevereiro de 1951. Proveniente dos meios da extrema-direita fascistas e integralista, António Eça de Queirós acompanhou Ferro como um dos quadros iniciais do SPN, estando ligado à criação da Acção Escolar Vanguarda (1934), a primeira organização juvenil fascista que precedeu a Mocidade Portuguesa. A sua proximidade com Ferro levou-o a ser nomeado sub-director do SPN a partir de 1943 e a assumir um papel de destaque na gestão dos serviços de imprensa do regime (Eliade, 1988: 95). Em 1951, deixou a direcção do SNI para assumir a Presidência da Direcção da Emissora Nacional de Difusão, onde permaneceria até 1959. José Manuel Pereira da Costa foi o director que lhe sucedeu no SNI: um antigo jornalista que chegou a presidir ao Sindicato Nacional de Jornalistas, tornou-se num funcionário de carreira sem grandes linhas programáticas, limitando-se “a gerir a situação encontrada, concentrando as suas energias na melhoria da eficiência do sistema censório“ (Fontes, b: em linha). É no seu consulado, entre 1 de Março de 1951 e 5 de Fevereiro de 1956, que surgem diversas iniciativas: a criação da Comissão de Exame da Literatura e Espectáculos para Menores (Decreto-Lei n.º 38.964, de 27 de Outubro de 1952), “satisfazendo uma exigência há muito reclamada por sectores católicos“ (Ibidem), e regulação sobre a assistência de menores a espectáculos públicos; a criação da Federação Portuguesa dos Cineclubes (Decreto-Lei 40.572, de 16 de Abril de 1956), que apertava o cerco ao movimento cineclubista; completada no ano seguinte com o Dec. 41.062, que restringia a circulação de filmes em formato reduzido (16 mm e 8 mm); a integração no SNI das Casas de Portugal, que passaram a ser utilizadas como suas secções no estrangeiro. O sucessor de Pereira da Costa foi Eduardo Brazão, filho do reconhecido actor homónimo, que chefiou o SNI entre 6 de Fevereiro de 1956 e 31 de Janeiro de 1958. Brazão chegou à direcção do SNI pela influência de Marcelo Caetano, que meses antes imaginação (e até a fidelidade ideológica...) das primeiras horas e apenas procurava ganhar a vida.“ (Caetano, 1977: 460). Este balanço feito pelo então Ministro da Presidência e futuro Presidente do Conselho é bem demonstrativo da deriva do SNI resultante do afastamento de António Ferro. 69 assumira o Ministério da Presidência (Julho de 1955). Quando aceitou a tutela de Ministro da Presidência, uma das competências que Marcelo Caetano herdou passava pelo controlo do SNI, que se encontrava “caído no marasmo“ e cujos contratos com os seus quadros “davam a impressão de se estar a lidar com amadores“ (Caetano, 1977: 460). A missão de Brazão consistia em “organizar a casa, tarefa difícil devido aos muitos chefes vitalícios que era impossível desalojar, e imprimir-lhes novo dinamismo“ (Ibidem). Em linhas gerais, o SNI adoptava duas directivas principais: “as de promoção, apoio, colaboração à imprensa“; e “as de polícia dos delitos de imprensa que pertencia a uma Direcção dos Serviços de Censura“. Nas palavras do próprio, o “Secretariado deveria ser o alimentador, o acelerador; a censura o freio, o travão...“ (Ibidem: 469). O período subsequente ao abandono de António Ferro ficou marcado por uma visível desorientação ideológica e estética na intervenção cultural do Estado, em particular no sector cinematográfico. O claro desinvestimento que marcou os consulados dos sucessores do intelectual fundador do SPN/SNI denota também uma certa crise ideológica e orgânica do Estado Novo que, durante as décadas de 40 e 50, acumulou crises políticas e sociais que fragilizaram o regime. Ao contrário dos projectos “concretos“ de António Ferro – Cinema Ambulante, Teatro do Povo, Bibliotecas Itinerantes, Bailado Verde Gaio e produção directa de outras diversas iniciativas –, os seus sucessores procuraram assegurar a gestão de projectos anteriores e revelaram sobretudo a falta da orientação ideológica que marcara os anos de Ferro. Os dados financeiros do Fundo do Cinema Nacional referentes à década seguinte ao abandono de António Ferro são expressivos — sobretudo na coluna das despesas — da perda de importância do cinema no contexto da política pública para a cultura. Esse instrumento de fomento da indústria cinematográfica, a principal novidade da lei 2.207 e a grande esperança para o sector da produção, não registou os resultados antecipados pelos mais optimistas, que esperavam um fundo de incentivo e de apoio à produção que dinamizasse e aumentasse exponencialmente a produção de cinema português. Tabela n.º 1 Relatórios financeiros do Fundo do Cinema Nacional (fonte: dados compilados a partir de ANTT/SNI, caixas 605, 670, 718, 851, 4612 e 4998) Ano 1949 1950 1951 1952 Orçamentado 7.000.000$00 2.500.000$00 3.100.000$00 3.000.000$00 Despesas 4.558.700$00 4.559.961$10 2.668.094$70 2.073.394$50 70 Receitas 6.705.430$00 2.496.990$00 3.006.402$20 3.459.843$70 Saldo 2.146.730$00 -2.062.971$90 338.308$50 1.386.449$20 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 Total 3.500.000$00 3.500.000$00 3.500.000$00 4.200.000$00 4.200.000$00 4.200.000$00 ? ? ? 2.566.644$70 2.030.588$70 4.981.177$50 3.794.957$80 4.631.245$30 4.121.668$20 5.090.641$00 4.750.573$40 45.817.646$90 2.967.540$20 4.137.972$50 3.436.166$60 3.582.866$30 3.886.915$90 5.112.629$90 4.661.866$70 3.818.840$70 47.273.464$70 400.896$50 2.107.384$80 1.545.011$10 -212.091$50 -744.330$60 990.961$70 -428.775$00 -931.733$30 1.445.817$80 Nos números referentes às despesas, é notório que, após os dois anos iniciais, os gastos do Fundo desceram abruptamente em cerca de 50%, só recuperando os valores iniciais a partir de 1955. Neste período de 12 anos (1949-1960), o que se verifica é que, apesar da quebra das receitas, o funcionamento do Fundo de Cinema Nacional foi garantido pelas receitas do próprio mercado cinematográfico. Para um fundo de que se esperava que revitalizasse a produção de cinema português, o FCN apenas serviu para angariar dinheiro vindo do próprio mercado, através das licenças e taxas de exibição sobretudo, para continuar a produzir e a financiar filmes de propaganda: Cantinas Escolares (1950, Fernando Garcia), O Jubileu de Salazar (1953, António Lopes Ribeiro), A Casa do Gaiato (1954, Silva Brandão), 30 Anos com Salazar (1957, António Lopes Ribeiro), Portugal no Oriente (1958, António Lopes Ribeiro) e Rapsódia Portuguesa (1959, João Mendes), entre muitos outros, são expressivos exemplos dessa política. 2.1.1. 1955: ano zero de quê? O suposto “apagamento“ político do SNI verificado ao longo da década de 1950, para além do insucesso do legado de António Ferro, terá significado também uma “idade das trevas“ para o cinema português, simbolicamente materializado, em 1955, com o célebre “ano zero do cinema português“. Na história do cinema português, o ano de 1955 é considerado por muitos autores como um “ano zero“ para o cinema português uma vez que durante o mesmo não estreou nas salas portuguesas nenhum filme de longa-metragem de produção nacional. Apesar de se concluir com isto que terá havido uma estagnação da produção cinematográfica, não podemos ignorar que, de acordo com o Prontuário do Cinema Português de José de Matos-Cruz (1989: 112-114), nesse ano 71 estrearam nas salas 99 filmes de produção portuguesa com metragem inferior a 1.800 metros de película ou com menos de 60 minutos de duração. Esses 99 filmes não são considerados como significativos para quem defende a teoria do “ano zero“ porque, para a generalidade dos autores, a produção cinematográfica parece limitar-se aos filmes de longa-metragem ou, como na época era mais populares chamar-lhes, filmes de fundo. Em termos de metragem, esses 99 filmes de curta-metragem equivalem, aproximadamente, a cerca de 30 mil metros, ou seja, a cerca de 10 longas-metragens. A historiografia clássica produzida sobre o fenómeno cinematográfico constrói uma interpretação da realidade que parte de uma visão selectiva da produção elaborada em torno de paradigmas que condicionam a priori os próprios limites do objecto cinematográfico. Por isso, exceptuando alguns casos excepcionais – o clássico Douro, faina fluvial (1931) de Manoel de Oliveira ou o recentemente premiado Arena (2009) de João Salaviza, a produção de filmes de curta-metragem é frequentemente menorizada ou secundarizada nos estudos historiográficos e estéticos elaborados em torno do objecto cinema português. O mesmo se passa com géneros cinematográficos considerados “menores“ para a generalidade dos autores com abordagens mais estilísticas, como o filme documentário. Infelizmente, esta sucessiva desvalorização destes objectos de estudo tem influenciado significativamente a constituição de um corpus bibliográfico e de um corpus fílmico deficitário, que condiciona o estudo do cinema em Portugal. A valorização de um grande número de filmes permite expandir e alargar interpretações do passado em função de novos dados e indicadores agora aceites como fontes historiográficas. A desvalorização da curta-metragem talvez fosse adequada à produção cinematográfica das décadas de 1930 e 40, quando a produção desses filmes era efectivamente minoritária. No entanto, segundo dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), entre 1945 e 1954 houve uma evolução na produção cinematográfica portuguesa no sentido do aumento de filmes de pequena-metragem, então balizados até aos 1.800 metros de película. Tabela n.º 2 Filmes portugueses produzidos entre 1945 e 1954, em metros de película utilizada (fonte: dados compilados a partir do Anuário Estatístico 1954: 132) 72 Ano Total de película em metros 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 20.700 34.692 36.508 20.802 37.468 32.216 31.500 39.138 37.467 26.664 Filmes de grandemetragem (mais de 1.800m) 13.865 24.480 26.131 10.224 20.536 9.300 13.838 22.115 11.500 8.690 Filmes de pequenametragem (menos de 1.800m) 6.835 10.212 10.777 10.578 16.932 22.662 17.662 17.023 25.967 16.974 % de filmes de pequenametragem 33% 29% 30% 51% 45% 70% 56% 43% 69% 64% Depois de uma posição marcadamente minoritária verificada no triénio 19451946-1947, a rondar apenas os 30 por cento, a produção de curtas-metragens conseguiu equilibrar as contas em relação à produção de longas-metragens e, a partir de 1950, passou mesmo a ser maioritária, com a excepção verificada em 1952. A partir de 1953, beneficiando sobretudo de uma quebra acentuada na produção das longas, a curtametragem torna-se o género mais produzido em Portugal. No período imediatamente seguinte, agora a partir dos dados compilados no Prontuário do Cinema Português de José Matos-Cruz (1989: 112-118), faço notar que a importância dos filmes de curtas-metragens no panorama da produção cinematográfica portuguesa foi, entre 1955 e 1960, esmagadora, fundamental e inegável para a sobrevivência do sector. Tabela n.º 3 Filmes portugueses estreados entre 1955 e 1960 (fonte: dados compilados a partir do Prontuário do Cinema Português) Ano Total 1955 1956 1957 1958 1959 1960 99 134 110 163 163 148 Longas-metragens 0 4 4 6 4 3 Curtas-metragens Metros 0 19,530 7,937 15,426 10,413 8,754 99 130 106 157 159 145 73 Metros 28,023 (1) 36,997 (2) 34,079 (3) 37,869 (4) 39,372 (5) 38,807 (6) % de Curtas em relação à produção total 100% 65% 81% 71% 79% 82% Notas: Apesar de estarem identificados como curtas-metragens, não foi possível determinar com exactidão a metragem de (1) 17 filmes; (2) 13 filmes; (3) 9 filmes; (4) 39 filmes; (5) 18 filmes; (6) 19 filmes. Na segunda metade da década de 50, e não obstante os dados relativos à metragem das curtas ser impreciso por defeito, o domínio deste género outrora minoritário no sector da produção é impressionante. Mesmo por defeito, as curtasmetragens representam cerca de 80% do total da produção cinematográfica portuguesa entre 1955-60. Apesar do crescimento, o domínio da produção de curtas beneficiou também de uma diminuição da produção de longas-metragens: por exemplo, em 1959 e 1960, a produção de longas foi inferior ao registo de 1945 enquanto, por seu lado, as curtas-metragens apresentam um aumento de mais de 500 por cento. Parece evidente que os anos 50 foram um período de mudança de paradigma na produção cinematográfica portuguesa. A falência do projecto cultural de António Ferro implicou também o desmoronar de um núcleo de realizadores que monopolizara a produção fílmica de longa-metragem ficcional. Desses filmes, produzidos e estreados entre 1933-44, cerca de 75 por cento do total são de: António Lopes Ribeiro (5), José Leitão de Barros (5), Jorge Brum do Canto (5), Chianca de Garcia (3) e Arthur Duarte (3). Após a saída de Ferro, estes realizadores foram abandonando a realização ao longo dos anos seguintes e deixando lugar à designada “geração dos assistentes“24, que se limitaram, na generalidade, a reproduzir os métodos de trabalho anteriores e lutar pela sobrevivência numa lógica de comodismo e mínimo risco, sem grandes preocupações estéticas ou artísticas. A reduzida dimensão e precariedade financeira do mercado português e o monopólio consolidado no sector da produção de longas-metragens, por um lado, e a necessidade de produzir filmes de curta-metragem de produção portuguesa para integrar os programas cinematográficos como exigia a legislação em vigor, por outro, 24 A “geração dos assistentes“ é uma designação pejorativa para a geração de realizadores que dominaram a produção cinematográfica nos anos 50. Esta designação justifica-se porque a maioria desses realizadores começaram a sua carreira como assistentes dos realizadores das duas décadas anteriores e a sua formação foi feita exclusivamente à base da experiência adquirida na produção. Assinalem-se: Fernando Garcia (estreou-se em Heróis do Mar, em 1949, depois de ter sido assistente de Jorge Brum do Canto, Francisco Ribeiro e Manoel de Oliveira), Constantino Esteves (estreou-se na realização em 1953, com O Comissário de Polícia, mas antes foi assistente de António Lopes Ribeiro e Jorge Brum do Canto), Augusto Fraga (estreou-se na realização com Sangue Toureiro, em 1958, mas antes foi assistente de realização em quatro filmes de Arthur Duarte) e Perdigão Queiroga (estreou-se em 1947, com Fado, História de uma cantadeira, mas antes foi assistente de câmara de Francisco Ribeiro, Jorge Brum do Canto e Manoel de Oliveira). Curiosamente, Manuel Guimarães, que foi assistente de Manoel de Oliveira, Jorge Brum do Canto, Arthur Duarte, Armando de Miranda e António Lopes Ribeiro, nunca surge creditado como integrante desta “geração dos assistentes“. 74 foram determinantes para a expansão do sector de produção ao nível da curtametragem. O aumento quantitativo promoveu também uma diversificação da produção. Mas outra questão fundamental, independentemente desta circunstância da desvalorização do género da curta-metragem, é a ideia generalizada, entre a história do cinema português canónica, de uma suposta “idade das trevas“ que o cinema português teria vivido durante a década de 50 e de que o suposto “ano zero“ de 1955 seria o momento simbólico mais marcante. O quadro seguinte conta o número de filmes estreados nas salas portuguesas e o número de entidades produtoras que os produziram. Tabela n.º 4 Produção de cinema em Portugal entre 1940-1959 (fonte: dados compilados a partir do Prontuário do Cinema Português) Ano Total de filmes estreados 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 56 69 35 31 29 41 57 71 59 98 98 78 92 110 108 99 142 115 165 176 Curtas-metragens (até 1.800 metros) 50 66 32 25 24 35 48 63 54 90 96 74 84 105 103 99 138 114 159 173 Longasmetragens (1) 6 3 3 6 5 6 9 8 5 8 2 4 8 5 5 0 4 1 6 3 Entidades produtores (2) 14 12 11 12 12 18 21 23 18 22 25 23 26 23 27 17 31 25 37 44 Notas: (1) Nesta categoria não estão contabilizadas longas-metragens de produção estrangeira com rodagem parcial ou integral em Portugal; ao contrário de outras contagens similares a esta, nesta contagem incluem-se as obras de ficção e de documentário; (2) Nesta categoria não estão contabilizadas as entidades produtoras em actividade em Portugal, mas apenas aquelas que estrearam filmes nesse ano civil. De uma análise isolada das diferentes colunas, é possível determinar várias tendências interessantes e pouco condizentes com a história canónica do cinema 75 português. Em relação às curtas-metragens e ao total de filmes, o ano 1955 está muito longe de ser um “ano zero“ do cinema português: mantém a média aproximada dos anos imediatamente anteriores e supera significativamente a média dos anos 40. Em relação às longas-metragens, o contexto já é diferente, registando-se uma quebra na tendência dos anos imediatamente anteriores: tem de se recuar até 1944 para se identificar um ano com menos entidades produtoras em actividade. Nas longas-metragens, apesar de 1950 e 1957 não serem assim tão díspares, o ano em questão destaca-se mesmo nestas balizas temporais como o único sem qualquer estreia. Ainda assim, convém não confundir, ao contrário do que acontece com a generalidade dos autores que mais insistem nesta tese do “ano zero“, produção com estreia, ou seja, apesar de não ter estreado nenhuma longa-metragem durante 1955, tal não significa que não houvesse alguma em processo de produção ou pós-produção. Meramente a título de exemplo, é importante recordar que nesse ano Manuel Guimarães remontava o seu filme Vidas sem Rumo, que havia sido esquartejado pela censura, e Artur Semedo também passou o ano na pós-produção de O Dinheiro dos Pobres, que havia sido rodado em Setembro de 1954 e só estrearia em Junho de 1956, também atrasado, em parte, pelos cortes da censura. É minha opinião que o endurecimento da repressão da censura ao cinema, acentuado na década de 1950, correspondeu a uma mudança de estratégia no seio da política pública em Portugal; entre 1933 e 1949, durante o período em que António Ferro dirigiu a política cultural e artística do Estado Novo, no momento da sua institucionalização e de assumido maior investimento ideológico, a censura ao cinema português fazia sentir-se sobretudo na fase da pré-produção. A monopolização dos meios de produção não permitia a concretização de projecto cinematográfico fora da alçada ou da vigilância oficial. De facto, não conheço neste período qualquer proibição integral de um filme e são poucos os exemplos de cortes de cenas por parte da censura. Entre os filmes produzidos entre 1933-1949, são publicamente conhecidos cortes em apenas dois filmes: Maria Papoila (1937), de Leitão de Barros, de que foram cortadas algumas cenas (Matos-Cruz, 1999: 55); e Aldeia da Roupa Branca (1938), de Chianca de Garcia, que teve um “pequeno corte“ por algo considerado “imoral“ (Ibidem: 56). Estes dois títulos foram assinados por duas das figuras cinéfilas mais marcantes das décadas iniciais do Estado Novo. Apesar de desconhecer concretamente quais as cenas ou planos cortados, acredito que se trataria de cortes pouco ou nada significativos na construção fílmica das obras. De resto, estes dois filmes constroem-se em torno de um confronto entre a valorizada imagem da mulher rural e a depreciada imagem da 76 mulher urbana, que se reforça essencialmente nos elementos visuais. Ambos os filmes apresentam algumas sequências filmadas em espaços considerados de alguma reserva moral, nomeadamente em casas de diversão como os cabarets, onde as mulheres fumam e bebem de forma social e moralmente reprováveis. Não estranharia, portanto, que os planos censurados integrassem algumas dessas sequências mais sensíveis para a moral dominante da época. Nesse período inicial de acção de António Ferro e do seu SPN, o regime conseguiu rodear-se de um importante conjunto de realizadores, que asseguraram uma produção de conteúdos geralmente condizentes com os princípios da Política do Espírito. Encabeçado por António Lopes Ribeiro e integrando figuras como Leitão de Barros, Brum do Canto, Chianca de Garcia e Arthur Duarte, este grupo monopolizou a produção fílmica de longa-metragem ficcional. A estratégia de António Ferro passou pelo apoio a iniciativas que se enquadrassem no espírito da sua política cultural. Desta forma, os meios e os recursos humanos da recém-criada e pequena “indústria“ cinematográfica portuguesa envolviam-se nestes projectos e não estariam disponíveis para noutros projectos. Porém, se nos 17 anos de consulado de Ferro só se conhecem cortes de censura em dois filmes, nos anos imediatamente seguintes estes intensificaram-se: Saltimbancos (1951), de Manuel Guimarães, e A Garça e a Serpente (1952), de Arthur Duarte tiveram alguns cortes (Ibidem: 97); Nazaré (1952), de Manuel Guimarães, teve muitos cortes da censura (Ibidem: 99); Vidas sem Rumo (1956), de Manuel Guimarães, viu a primeira versão do filme ser cortada em 45%, segundo o realizador, por critérios comerciais e de censura (Ibidem: 107). A repressão far-se-ia sentir ainda de outro modo, mais violento. Após uma década de existência, o movimento cineclubista conheceria um fulgor sem precedentes: surgiram dezenas de cineclubes em diversos pontos do país e os primeiros cineclubes nas antigas colónias ultramarinas. Depois de uma primeira vaga de repressão, que levaria à prisão de vários dirigentes cineclubistas na ressaca das eleições de 1947 e da ligação destes a movimentos da oposição (sobretudo ao Partido Comunista Português e ao Movimento de Unidade Democrática), em 1956, o SNI, em estreita colaboração com a Comissão Consultiva dos Cineclubes, iniciou o processo de criação da Federação Portuguesa dos Cineclubes. Hierarquicamente dependente do SNI, a sua criação era uma clara tentativa de vigiar e condicionar as actividades políticas dos cineclubes, isto apesar de o SNI prometer respeitar a autonomia, livre-iniciativa e liberdade cultural da 77 Federação e dos seus membros. Mas este será um caso de estudo que desenvolverei mais detalhadamente no próximo capítulo. Estes dados parecem reveladores de uma nova estratégia de acção política, que passou a privilegiar mais a repressão do que a prevenção, como suspeito que teria acontecido durante o período em que António Ferro dirigiu a política cultural do regime. Para além da acção da censura, que na década de 50 se intensificou e atrasou ou, eventualmente, impediu a produção de novos filmes, o Estado encontrou uma forma mais proactiva de condicionar a produção de cinema português durante estes anos. A encomenda de filmes e a concessão de subsídios e empréstimos, possível agora através de um mecanismo — o já citado Fundo do Cinema Nacional — que permitia ao Estado financiar a produção sem investir dinheiro do orçamento de Estado, foram outras políticas públicas de apoio à produção que contribuíram para um crescimento significativo do número de produções ao longo destas duas décadas. Tabela n.º 5 Apoios públicos à produção de cinema em Portugal, 1940-1959. (fonte: dados compilados a partir do Prontuário do Cinema Português) Ano Total de filmes produzidos 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 56 69 35 31 29 41 57 71 59 98 98 78 92 110 108 99 142 115 Total de filmes produzidos com apoio directo ou indirecto do Estado 24 47 17 12 15 11 26 31 21 35 44 32 50 66 60 66 87 77 Filmes com apoio directo do Estado Filmes com apoio indirecto do Estado Outros (Produção estrangeira ou produtor desconhecido) 12 37 10 5 4 3 13 12 10 21 15 14 22 17 11 16 28 17 12 10 7 7 11 8 13 19 11 14 29 18 28 49 49 50 59 60 25 14 7 9 6 8 8 7 6 11 9 15 8 17 15 15 23 14 78 165 176 1958 1959 127 117 55 42 72 75 3 20 De acordo com o quadro, verifica-se que, a partir de 1952, o apoio público à produção é sempre superior a 50 por cento dos filmes estreados em sala em cada ano. Os dados compilados neste quadro mostram também que nos anos 50 do século XX se consolidou uma tendência clara para privilegiar os apoios públicos indirectos, em detrimento dos directos. Tomando como exemplo o “ano zero“ 1955, dos 99 filmes seriados no Prontuário do Cinema Português (Matos-Cruz, 1989: 112-114), foi possível identificar 16 filmes produzidos directamente por organismos públicos (Serviços Cartográficos do Exército com 10; Câmara Municipal de Lisboa com 3; e Câmara Municipal da Figueira da Foz, Laboratório Nacional de Engenharia Civil e SNI todos com um cada). Com apoio indirecto do Estado, como o jornal de actualidades Imagens de Portugal (produção da SPAC subsidiada pelo SNI) ou a série sobre a Viagem Presidencial a África (produção de Ricardo Malheiro subsidiada pelo SNI), contam-se cerca de 50 filmes. Excluindo os 15 de produção estrangeira, de um total de 84 filmes produzidos em Portugal durante o ano de 1955, o Estado financiou, directa ou indirectamente, cerca de 80% da produção cinematográfica desse ano. Outra conclusão que resulta depois da compilação dos dados é que, nessa década de 50, há uma crescente diversificação das entidades públicas que apostam na produção. Para além dos Serviços Cartográficos do Exército, do SPN/SNI e da Agência Geral das Colónias/Ultramar, que tem uma actividade regular ao longo do período em análise, as restantes entidades e organismos públicos só se assumem como entidades produtoras mais activas e regulares já na década de 1950. Eis uma relação dos mais prolíficos: os Serviços Cartográficos do Exército (produziram, entre 1940 e 1959, 130 filmes); a SPN/SNI (produziu, entre 1940 e 1959, 62 filmes); as Câmaras Municipais (entre 1949 e 1957, a de Lisboa produziu 37 filmes); a Agência Geral das Colónias/do Ultramar (entre 1940 e 1958, foram produzidos 27 filmes); a Junta de Investigação do Ultramar (produziu, em 1958-59, 22 filmes); a Direcção Geral dos Serviços Agrícolas (entre 1940 e 1957, foram produzidos 22 filmes); a Campanha Nacional de Educação de Adultos (entre 1952 e 1956 foram produzidos 15 filmes). 79 Neste período, ainda que com números mais modestos e irregulares, identificamse outras entidades e organismos públicos entre os produtores de cinema: Direcção Geral do Ensino Primário, Direcção Geral da Saúde, Direcção Geral da Assistência, Junta de Acção Social, Junta de Energia Nuclear, Junta Nacional da Cortiça, Junta Central da Casa de Pescadores, Junta de Colonização Interna, Junta das Missões Coloniais, Força Aérea, Secretaria de Estado da Aeronáutica, Governo Geral do Estado da Índia, Governo Geral de Angola, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Ministérios (Interior, Justiça e Obras Públicas), Polícia de Viação e Trânsito, entre outros. Desde 1948, a publicação da “lei de protecção ao cinema nacional“ — que elegia a “função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural“ como fundamental na renovação do cinema português — comprometia alguns organismos oficiais a “utilizar o cinema como meio informativo e cultural de exposição e divulgação, por meio de filmes de actualidades, documentários e congéneres“, assim como a concessão de “subsídios destinados a auxiliar os estudos e investigações que visassem ao aperfeiçoamento técnico e artístico da cinematografia nacional“ (Ferro, 1950: 113131). Tal como aconteceu com a célebre “lei dos cem metros“ (1927), a nova legislação parece ter contribuído para um ligeiro surto na produção de filmes de curta-metragem, mais uma vez graças ao investimento de organismos públicos, nomeadamente na Campanha Nacional de Educação de Adultos (1953), importante iniciativa que permitiu a produção e exibição de dezenas de filmes educativos, entre os quais alguns de divulgação científica. Por outro lado, aproveitando as finalidades do Fundo do Cinema Nacional, o próprio Estado, através do Conselho de Cinema, começa a alterar a sua estratégia de intervenção e passa a privilegiar progressivamente a produção de filmes de curtametragem, permitindo o desenvolvimento de géneros cinematográficos. Para além da produção directa, contam-se ainda centenas de encomendas de filmes ou subsídios concedidos a produtores privados, como são os casos de Felipe de Solms, Ricardo Malheiro, António Lopes Ribeiro (SPAC, que produziu os jornais de actualidades Jornal Português e Imagens de Portugal), Perdição Queiroga (cuja produtora Doperfilme assumiu a responsabilidade pelo jornal de actualidades Imagens de Portugal a partir de 1958) e os “ultramarinos“ António de Sousa/João Silva (produtores de Actualidades de Angola) e Melo Pereira (produtor de Actualidades de Moçambique). 80 No sentido oposto, a discriminação positiva também reflecte uma mudança significativa na política cultural do regime. Julgo que a falência da política cinematográfica de Ferro se tornou evidente quando, logo em 1948, o prémio de melhor filme ficou por atribuir. Na década seguinte, entre 1950 e 1959, num total possível de 10 prémios para o melhor filme, foram atribuídos apenas quatro prémios (aos filmes Frei Luís de Sousa, 1950; Chaimite, 1953; Rapsódia Portuguesa, 1958; A Luz Vem do Alto, 1959).Torna-se evidente que, progressivamente, o regime deixou de se identificar com a produção cinematográfica nacional. Apesar das expectativas motivadas pela publicação de legislação diversa, que prometia o contrário, o apoio financeiro estatal à produção de longas-metragens nesta década foi muito discreto: Frei Luís de Sousa (1950), de António Lopes Ribeiro, foi o primeiro apoio do recém-criado Fundo de Cinema Nacional (Matos-Cruz, 1999: 93); e Rapsódia Portuguesa (1958), de João Mendes, a partir de uma ideia original do entretanto falecido António Ferro, recebeu o patrocínio do SNI (Ibidem: 109). 2.1.2. Circulação, distribuição e recepção Apesar de pouco valorizadas ou mesmo ignoradas em estudos sobre o cinema português, as questões sobre a circulação, distribuição e recepção de filmes são centrais para se entender na sua complexidade o fenómeno cinematográfico, desde a sua importância nas políticas culturais públicas, a sua instrumentalização ideológica ou a sua influência na (in)viabilidade de uma (proto) indústria cinematográfica em Portugal, entre outros aspectos. Constituindo fortes lóbis políticos, os sectores da distribuição e da exibição pressionavam as entidades públicas para fazer valer os seus interesses. Por exemplo, como explica João Bénard da Costa (1998: 55), durante o complexo processo de elaboração da Lei 2.207, o sector da distribuição, através da pressão dos grandes estúdios norte-americanos, conseguiu que o próprio “Salazar em pessoa“ mudasse o diploma inicial, que penalizava fortemente os sectores da distribuição e da exibição em favor do sector da produção: “No fundo — do tal Fundo [do Cinema Nacional] — o que contava era se os tais 80 por cento das receitas de exploração (...) eram para 'manter o cinema nacional' como queria [o cineasta Leitão de] Barros ou para construir mais salas que dessem vazão ao cinema de Hollywood. 81 Em anos de 'guerra fria' (quente começo dela) e do Plano Marshall (de que Salazar não se desinteressou tanto como se diz), contida a vaga de fundo que, no fim da guerra, parecera ameaçar os regimes de Salazar e de Franco, o Estado Maduro (que na prática sucedera ao Estado Novo, desde a remodelação ministerial de 44) não tinha quaisquer razões para querer aborrecer os americanos, em breve nossos aliados na NATO.“ Os dados oficiais publicados pelo INE fazem um diagnóstico do circuito de distribuição e exibição. Tabela n.º 6 Dados sobre Casas de Espectáculos, Salas de Cinema, Sessões e Espectadores em Portugal entre 1946 e 1960 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1946-60) Ano 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 Casas de espectáculos 433 471 475 483 507 483 478 494 487 488 488 493 485 483 476 Salas de Cinema 361 403 412 431 448 427 425 443 436 435 437 436 477 437 Lotação Sessões 203.990 229.274 232.428 242.128 256.376 254.293 253.176 260.986 265.692 261.940 267.256 270.037 265.297 259.326 54.840 59.887 62.229 62.116 64.871 64.388 70.021 71.332 72.335 74.965 76.213 78.941 80.077 79.606 Espectadores (milhões) 17.737 20.870 20.668 19.908 20.567 20.942 22.977 22.100 22.906 25.850 27.030 26.456 26.603 26.527 Com ligeiras variações, o número de casas de espectáculos licenciadas manteve-se estável ao longo do período em análise, crescendo apenas 10% no intervalo de uma década e meia. De facto, como demonstra Tiago Baptista para o caso de Lisboa (Baptista, 2007: 51), o aumento significativo das casas de espectáculos foi um fenómeno que se intensificou sobretudo na década de 1930. Mas os restantes indicadores são inequívocos quanto ao crescimento significativo do mercado cinematográfico: entre 1946 e 1960, o número de salas de cinema cresceu cerca de 20%, a sua lotação aumentou cerca de 30%, o número de sessões de cinema 82 aumentou e o número total de espectadores (bilhetes vendidos) aumentou em cerca de 45%. Naturalmente, a subida do número de sessões foi determinante para que, proporcionalmente, aumentasse o número de espectadores. Se em Lisboa e no Porto isso se traduziu num acréscimo das sessões diárias, nomeadamente do número de sessões nas matinés, nas cidades de média e pequena dimensão espalhadas pelo país foi determinante o aumento das sessões semanais, como comprova o estudo do caso da cidade de Guimarães (Cunha, no prelo), sensivelmente no mesmo período. O objectivo desta análise foi comparar dois contextos de distribuição e exibição diferentes: o de Lisboa e o do Porto, onde a oferta e a concorrência existiam, e o das médias e pequenas cidades, que representaria, à época, na sua totalidade, cerca de metade do mercado cinematográfico português. Em Guimarães, num concelho com cerca de 80 mil habitantes, entre 1938 e 1956 funcionou apenas uma casa de espectáculos — o Teatro Jordão, com lotação para cerca de mil espectadores — que monopolizava a oferta cultural na cidade e arredores.25 Com os dados seriais, primeiros mensais e depois semestrais, foi possível compilar um quadro, no qual se expressam os totais anuais de sessões, bilhetes vendidos e média de espectadores por sessão. Tabela n.º 7 Dados sobre Sessões e Espectadores de Cinema no Teatro Jordão (Guimarães) entre 1939 e 1956 (fonte: dados compilados a partir do espólio Teatro Jordão, Sociedade Martins Sarmento, Guimarães) Ano 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 N.º sessões de cinema 152 150 154 145 191 195 210 181 224 218 N.º bilhetes vendidos 66.168 76.140 76.574 83.493 125.269 121.487 123.819 96.128 110.498 114.427 25 Média de espectadores por sessão 435 508 497 576 656 623 590 531 493 525 Graças ao trabalho de preservação e salvaguarda da Sociedade Martins Sarmento, toda a documentação do Teatro Jordão, produzida pela própria empresa exploradora a pedido do Instituto Nacional de Estatística, com dados sobre número de sessões de cinema e bilhetes vendidos, está preservada. 83 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 192 222 232 254 263 251 229 288 131.785 135.561 140.131 147.619 121.175 86.811 120.423 107.923 686 611 604 581 461 346 526 375 O aumento das sessões de cinema no Teatro Jordão é notório a partir de 1943. Se entre 1939 e 1942 o número de sessões é estável, com uma média de três sessões por semana, a partir de 1943 verifica-se um aumento significativo, que atinge picos nos anos de 1945, 1947 e 1948, ultrapassando uma média de 4 sessões semanais. Em relação ao número de bilhetes vendidos, o aumento é ainda mais significativo e expressivo. Em apenas cinco anos, o Teatro Jordão conseguiu duplicar o número de espectadores: 66.168 em 1939 para 125.269 em 1943. O triénio 1943-44-45 é fulgurante também na média de espectadores por sessão, ultrapassando ou rondando os 600 bilhetes vendidos. Pode, portanto, concluir-se que a primeira metade da década de 1950 foi financeiramente proveitosa para os agentes cinematográficos. De uma média de três/quatro sessões semanais na década anterior, os anos 50 tiveram médias de quatro/cinco sessões semanais. (Apesar do aumento das sessões, o número de espectadores apresenta uma evolução em decréscimo depois de 1952.) Considerem-se, isolados, os anos de 1946 e 1956: aqueles que melhor permitem uma comparação das análises nacional e local. Se nacionalmente o número de sessões aumentou 40% nesse período, em Guimarães aumentou 60%, confirmando um aumento exponencial da oferta; quanto ao número de espectadores, se a nível nacional se assistiu a um acréscimo de 50% (de quase 18 para 27 milhões de espectadores ao ano), em Guimarães esse aumento foi apenas de 10% (de 96 para cerca de 108 mil). No meu entender, este crescimento residual está sobretudo relacionado com a limitação da sala e com a falta de concorrência verificada em Guimarães durante o período (no que diferia de Lisboa, onde abriram as salas de cinema do São Jorge, a 23 de Fevereiro de 1950, do Monumental, a 9 de Outubro de 1951, do Império, a 24 de Maio de 1952, do Alvalade, a 22 de Dezembro de 1953, do Avis, no ano de 1956 e do Cinema Roma, a 15 de Março de 1957, e onde surgia uma série de inovações tecnológicas que atraíam o público: a chegada do formato Cinemascope, no Tivoli, a 15 de Março de 1953; o primeiro 3D, no 84 Cinema Império, em Outubro do mesmo ano; e o 70mm, no Monumental, a 18 de Dezembro de 1956). Sem estes fenómenos — salas disponíveis para aumentar o número de sessões — nas cidades de média e pequena dimensão, e com a ocupação da sala no seu limite, o número anual de espectadores teve necessariamente de estagnar, no período em causa. Esta particularidade parece-me também justificar um fenómeno curioso e estranho que se verificava com frequência nas cidades de média e pequena dimensão: a popularidade dos filmes portugueses, medida em função do número de espectadores, era idêntica ou até superior à dos filmes estrangeiros. A escassez de cópias da generalidade dos filmes estrangeiros, que não satisfazia a procura dos exibidores nacionais, obrigava a que circulassem rapidamente e em poucas sessões fora das grandes cidades, ao contrário do que acontecia em Lisboa ou no Porto, onde os filmes ficavam em sala semanas a fio. Entre os títulos que tiveram direito a sessões extraordinárias em dias consecutivos contam-se alguns dos filmes mais populares da época26. Não deixa de ser surpreendente que, dos 65 êxitos de bilheteira, 37 desses filmes sejam de produção nacional. Mesmo com a condicionante das sessões extraordinárias, os filmes portugueses eram dos mais queridos dos espectadores vimaranenses. Mas, ao contrário da década de 1940, altura em que a maioria dos êxitos era de produção portuguesa, os filmes nacionais perderam popularidade, tendência que parece confirmar a tese de que os anos 50 marcaram o início de uma fase de afastamento do público português em relação ao cinema seu conterrâneo. Se é notório que os filmes portugueses foram perdendo sessões ou dias de exibição, destaquem-se os números muito modestos em sessões vimaranenses de filmes como Uma Vida Para Dois (691 espectadores para duas sessões realizadas a 10 de Julho de 1949), Amanhã como hoje (apenas 113 espectadores na sessão de 26 de Julho de 1951), Sonhar é Fácil (951 espectadores em duas sessões realizadas a 23 e 24 de Setembro de 1951), Chaimite (1.273 espectadores em três sessões realizadas a 4 e 5 de Outubro de 1953) ou O Cerro dos Enforcados (apenas 909 espectadores em duas sessões realizadas a 20 de Junho de 1954). Apesar de tudo, não se pode ignorar que, mais do que uma eventual perda de popularidade, nesse período houve uma diminuição significativa da oferta de longasmetragens de produção portuguesa e um significativo aumento da importação de filmes estrangeiros. O quadro seguinte mostra o acréscimo de filmes de longa-metragem em 26 Para consultar a lista completa destes filmes, ver Anexos, B. 85 circulação no mercado de distribuição português entre 1949 e 1957 e contabiliza o número de filmes exibidos pelas distribuidoras a operar em Portugal nesse período. Tabela n.º 8 Número de Filmes estreados em Portugal e respectivos Distribuidores (1949-57) (fonte: dados compilados a partir de Estreias em Portugal 1918-1958: 127-174) Total Sonoro Filme Fox Filmes MGM Doperfilme Paramount RKO SIF Castello Lopes Talma Filmes Columbia Filmes Mundial Filmes Filmes Albuquerque Filmitalus Exclusivos Triunfo Filmes Alcântara Vitória Filme Produções Aníbal Contreiras Imperial Filmes Distribuidores Reunidos Filmes Lusomundo Jarofilme Lisboa Filme Minerva Filmes Internacional Filmes Momento Filmes Europa Filmes Atlante Films Excelsa Filmes Lusa Artis Films Aliança Filme Filmes Progresso Ultra Filmes CCP Cinal Filmes Luís Machado Invicta Filme Águia Filmes Astória Filmes 358 245 224 198 194 193 182 173 142 141 116 108 88 85 73 67 66 58 57 47 34 32 27 25 13 5 3 3 3 2 2 2 1 1 1 1 1 1 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 20 19 19 21 27 20 18 27 10 42 25 22 18 16 23 15 22 7 46 26 26 23 15 36 16 15 13 9 19 8 8 8 3 9 8 6 45 34 29 26 25 27 31 14 27 2 10 10 10 10 7 12 7 2 7 46 25 35 19 27 22 22 23 15 13 12 12 17 12 6 12 5 5 8 6 45 29 33 16 25 18 16 19 9 26 21 17 15 17 12 8 9 5 9 7 8 14 9 9 3 5 3 4 10 16 2 4 13 2 9 1 7 3 7 6 6 11 4 3 5 4 3 2 2 1 34 27 16 19 27 13 22 17 17 31 10 14 12 10 9 4 12 7 7 11 3 5 38 32 23 22 19 14 17 21 22 37 16 6 16 4 17 5 12 6 11 15 1 8 11 9 6 5 15 3 12 16 2 8 4 2 17 3 3 1 2 3 3 1 1 1 1 2 1 1 1 1 1 1 86 42 28 21 34 13 20 25 15 22 32 20 Distribuidor não identificado 101 Total Distribuidores em actividade (1) 9 15 5 11 8 11 11 20 11 2291 263 286 315 354 358 373 342 389 393 24 24 21 21 23 24 24 25 24 Notas: (1) Naturalmente, este número peca por defeito, visto que, em alguns anos, os distribuidores não identificados podem aumentar significativamente. Entre as distribuidoras nacionais, destaque para a Sonoro Filme, que ocupa o 1.º lugar na lista e detinha 16% da quota de mercado, mas também para a Doperfilme, a SIF — Sociedade Importadora de Filmes (que assegurava em Portugal a distribuição de filmes do catálogo da Warner Bros.) e a histórica casa Castello Lopes, que detinham cada uma cerca de 8% de quota do mercado. Com a Talma Filmes (6%), a Mundial Filmes (5%) e a Filmes Albuquerque (5%), este conjunto de sete principais empresas nacionais controlavam cerca de 55% do mercado interno. A década de 1940 já havia assistido ao fecho de distribuidoras pioneiras — como Raul Lopes Freire ou Hamilcar da Costa — e de outras igualmente históricas — como a Aliança Filmes (fundada na Porto em 1933), a SPAC, que distribuía filmes europeus e americanos de pequenas produtoras e as suas próprias produções (Feitiço do Império, 1940; O Pai Tirano, 1941; O Pátio das Cantigas, 1942; Camões, 1946), ou a Filmes Lumiar. No período entre 1949 e 1957, verificou-se também o fim de actividade de outras casas distribuidoras: Filmes Luís Machado, que fizera a distribuição de sucessos nacionais como Aldeia da Roupa Branca (1938); Minerva Filmes, que funcionou até 1954; CCP — Companhia Cinematográfica de Portugal, fundada em 1913, que só distribuiu um filme neste período. Em contraciclo, regista-se a criação, em 1953, da distribuidora Filmes Lusomundo, que teria um desempenho modesto neste período mas que consolidaria a sua posição nas décadas seguintes. Como se pode ver no quadro, empresas criadas na década de 1940, como a Doperfilme (fundada em 1947, e que assegurava a representação em Portugal da Universal), a Exclusivo Filmes (fundada em 1944), a Talma Filmes e a Filmes Alcântara também consolidaram a sua posição neste período. Outras empresas históricas nacionais mantinham posições importantes no mercado interno: a líder Sonoro Filmes, criada em 1934; a Castello Lopes, empresa pioneira criada em 1917. Logo no seu segundo ano de existência, a Sonoro Filme, por aposta pessoal de Fernando Santos, um dos seus sócios fundadores, lançou-se também na produção, associando-se ao filme O Trevo de Quatro Folhas (1936, Chianca de Garcia), repetindo um 87 fórmula que afinal havia sido usada poucos anos antes por Leitão de Barros com a produção d'A Severa (1931): “(...) só devem produzir-se filmes que tenham, à partida, distribuição garantida. Em resumo: interessar o distribuidor na produção do cinema. Boa parte da crise do cinema português actual [1988] — mais de 30 filmes por estrear desde 1975 — nasce da incompreensão deste princípio básico, em que assentaram cinematografias mais sólidas, posto em prática pelos chamados 'comerciantes' do cinema nacional que conseguiram os maiores êxitos de mercado do seu tempo. (...) Seja como for, a Sonoro Filme decide investir na produção quando Chianca de Garcia e o Dr. Ricardo Jorge, animadores da sociedade 'Espectáculos de Arte', pedem a Fernando Santos o financiamento do filme O Trevo de Quatro Folhas. Conforme este nos confidenciou, foi então constituída a 'Sonarte' (tirada de Sonoro e Arte) para investir 600 contos no projecto, pois, segundo Chianca, metade da produção já estaria completa (...). Infelizmente, as coisas não se passaram assim: pouco ou nada tinha sido rodado e o filme acabou por custar 6000 contos. Mas este desaire não abalou a capacidade de investimento na produção nacional. 'Nesta época', explica-nos Fernando Santos, 'o distribuidor português tinha muito interesse em ter um filme nacional na sua lista, feita no princípio de cada época, pois negociava melhor com o exibidor a colocação dos restantes filmes dessa lista'. A Sonoro Filme, de facto, continua a participar na distribuição dos filmes portugueses financiando-os como garantia da sua efectiva expansão. Geralmente, o investimento feito — 200 contos — procurava assegurar o período de estreia do filme, as 8 ou 9 semanas habituais em Lisboa e no Porto, já que na Província, naturalmente, demorava mais.“ (Sonoro Filme, 1988: 21) Os investimentos da Sonoro Filme mantiveram-se ao longo da década de 30 e na seguinte27, mas diminuíram nos anos 5028, inclusive na própria distribuição do cinema português: “Poucos anos depois, surge uma nova geração de cineastas e uma nova forma de fazer cinema em Portugal. (...) morria uma forma de financiar o cinema português que dera bons frutos num quarto de século.“ (Ibidem: 22). O período áureo da Sonoro vai de 1940 a 1955, quando garante o exclusivo dos catálogos da norte-americana United Artists e da britânica Eagle-Lion e quando “ocupa“ quase em exclusividade o importante Cinema São Jorge (Ibidem: 24). Nesse período, a Sonoro Filme chega a dispor de um circuito de exploração de mais de 40 salas de cinema em todo o país, 27 Maria Papoila (1937, Leitão de Barros), Revolução de Maio (1937, António Lopes Ribeiro), A Varanda dos Rouxinóis (1939, Leitão de Barros), João Ratão (1940, Brum do Canto), Lobos da Serra (1942, Brum do Canto), Ala Arriba! (1942, Leitão de Barros), O Costa do Castelo (1943, Arthur Duarte), A Menina da Rádio (1944, Arthur Duarte), O Leão da Estrela (1948, Arthur Duarte) e A Morgadinha dos Canaviais (1949, Caetano Bonucci). 28 Um Marido Solteiro (1952, Fernando Garcia), Chaimite (1953, Brum do Canto) e Rapsódia Portuguesa (1958, João Mendes). 88 nomeadamente os lisboetas São Jorge e Avis e os portuenses São João e Águia de Ouro (Ibidem: 29). Em 1956, após a abertura da filial da Rank em Portugal, e a consequente perda do exclusivo do catálogo da United Artists, Fernando Santos decide vender a Sonoro Filme à recém-criada Filmes Lusomundo, que atravessava por dificuldades e assim ganharia uma posição dominante no mercado (Ibidem). Importa sublinhar que, no sentido inverso, algumas produtoras nacionais acumulavam também interesses no sector da distribuição: a Doperfilme, de Perdigão Queiroga, com uma posição privilegiada no mercado (4.º mais activo no acumulado do período retratado no quadro), as Produções Aníbal Contreiras, a Filmes Albuquerque e a Lisboa Filme. Mas a vida não corria de feição às produtoras: se a Doperfilme vingou neste período, graças ao negócio da distribuição e aos subsídios do SNI para a produção das actualidades Imagens de Portugal, as restantes produtoras/distribuidoras não tiveram a mesma sorte: três anos depois da morte do seu líder Francisco Quintela (num acidente de automóvel em 1951), a Lisboa Filme seria fundida com a Tobis; Aníbal Contreiras rumaria ao Brasil em 1957 e por lá permaneceria por quase uma década; a Filmes Albuquerque também encerraria actividade em 1958. Quanto às delegações dos grandes estúdios norte-americanos, continuavam a controlar quotas significativas do mercado de distribuição interna: a Fox Filmes (a mais antiga, criada em 1937, que ocupa o 2.º lugar neste período), a MGM (o 3.º mais activo), a Paramount (em 5.º na lista), a RKO (fundada em 1937, 6.º na lista) e a Columbia, criada apenas em 1952, mas que rapidamente atingiu uma quota significativa do mercado. Em conjunto, estas três empresas distribuidoras somam cerca de 45% do mercado entre 1949-1957. Entre as restantes estrangeiras, merecem destaque duas novas distribuidoras que entraram no mercado português nos anos 50: em 1950, a Filmitalus, especializada na distribuição de filmes italianos; em 1954, a Jarofilme, especializada em produções provenientes da Grã-Bretanha. No entanto, esta base de dados compilada por Luís de Pina (1993) contabiliza apenas as longas-metragens. Para uma relação em que se vejam contabilizados todos os filmes distribuídos em Portugal, será necessário recorrer aos dados publicados pelo INE, que estão disponíveis apenas para um período mais reduzido. Tabela n.º 9 Filmes exibidos nas salas portuguesas 1949 e 1954 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1950-54, INE) 89 Ano Filmes Metragem Filmes Metragem Filmes Metragem Filmes Metragem Outros Metragem Itália Filmes Inglaterra Metragem França Filmes EUA Metragem Espanha Filmes Portugal 1949 1950 1951 1952 1953 1954 55 59 53 47 75 60 35.856 30.899 34.471 30.143 37.467 26.569 63 38 134 75 90 87 35.612 22.688 57.417 59.826 46.132 76.628 598 675 821 768 548 496 581.788 689.315 838.354 797.724 617.900 606.176 81 81 34 73 93 96 94.240 68.459 24.414 33.452 83.235 131.275 73 117 99 42 68 36 68.468 91.389 116.258 50.741 78.513 66.983 19 41 31 38 90 114 42.805 74.474 62.367 92.407 166.616 226.256 14 14 20 11 50 49 38.995 38.995 47.241 26.277 107.070 93.869 Mais do que o número de filmes, que mistura curtas e longas-metragens, opto por observar os valores referentes às metragens. Se a exibição de filmes produzidos em Portugal foi a única a diminuir (cerca de 25%), se a dos filmes oriundos dos Estados Unidos e do Reino Unido se manteve idêntico (depois de uma oscilação na ordem dos 60%, no caso do Reino Unido), outros países viram aumentar a sua quota de mercado: a Itália, com um surpreendente aumento de 400%, a Espanha com um acréscimo de cerca de 120%, a França com um crescimento de cerca de 40%; a quota de filmes de outras origens estrangeiras também cresceu cerca de 150%. Assim, em 1954, o mercado cinematográfico de exibição encontrava-se dividido de uma forma ligeiramente diferente da que predominava em 1949, no que diz respeito à quota de mercado da origem dos filmes exibidos nas salas portuguesas: destaque-se a perda de mercado dos filmes de origem norte-americana e o aumento proporcional dos filmes de origem italiana. Gráficos n.º 1 e 2 Percentagem de filmes estreados em Portugal pelo país de origem (1949 e 1954) (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1950-54, INE) 90 Ainda que tal não possa ser demonstrado quantitativamente, acredito que a consolidação e a massificação do fenómeno cineclubista, que ressurgiu após a perseguição e repressão no período pós-eleições 1947, possam ter sido determinantes no aumento da importação de filmes italianos. A entrada no mercado nacional da Filmitalus, distribuidora criada em 1950 e que gradualmente consolida a sua posição no mercado interno (entre 1950 e 1957 importa 88 filmes de produção ou co-produção italiana), especializada na distribuição de filmes de origem italiana, teve um peso determinante no aumento da quota de mercado para as produções vindas de Itália. Por outro lado, convém não ignorar nem desvalorizar que o período em análise corresponde ao auge de popularidade do comediante italiano Totó (Antonio de Curtis) e, a par, ao auge da internacionalização do movimento cinematográfico neo-realista italiano.29 Meramente a título de exemplo, e sem pretender generalizar esta aparente ligação entre os cineclubes e um cinema italiano de cariz mais social e político, recupero aqui o relato de Paulo Jorge Granja (2006: 120) do episódio da suspensão, em 1953, da revista Imagem, e consequentemente do seu Clube Imagem, publicação que reproduzia as orientações estéticas predominantes entre os cineclubes: “a PIDE interromperia uma sessão no cinema Capitólio, que tudo leva a crer ter sido organizada pelo CI ou por 29 A este propósito, consultar Henry, 2006. 91 elementos próximos deste Clube, acabando por prender Vasco Granja, um dos seus principais dirigentes. Aparentemente, a sessão, em que se projectava o filme Il Cammino della speranza (O Caminho da Esperança, 1950), de Pietro Germi, destinava-se a recolher fundos para presos políticos, numa iniciativa indirectamente ligada ao PCP“. Paralelamente à formação do movimento cineclubista nos anos 50, surgiram algumas revistas cinematográficas portuguesas que, embora ideologicamente díspares, revelavam um interesse comum pela forma como o cinema italiano representava os problemas sociais do tempo (Henry, 2006: 304). A revista Imagem (a 1ª série, com direcção de Baptista Rosa, foi publicada entre 1950 e 1953) foi a que mais atenção dedicou ao cinema italiano e, particularmente, à defesa do neo-realismo italiano. Na sua 2ª série (1954-61), já sob a direcção de Ernesto de Sousa, o interesse intensifica-se, particularmente sobre as obras de Vittorio de Sica que estreiam por esses anos em Portugal: Ladrões de bicicletas (de 1948, que estreia em Portugal no final de 1950) e Humberto D (de 1952, que estreia nacional no início de 1953). Também por esses anos, autores relacionados com o movimento cineclubista publicariam volumes sobre o cinema italiano: Vitoriano Rosa escreveria O Moderno Cinema Italiano (1953, ed. de autor) e Manuel de Azevedo o livro O Cinema Italiano do Após Guerra e o Neorealismo (1957, ed. Contraponto). Embora já existissem 15 cineclubes activos em meados de 1955, Paulo Jorge Granja (2006: 149-150) afirma que, “ao contrário do que se poderia esperar, nada indica que existisse qualquer tipo de acção concertada entre os cineclubes antes dessa data.“ A existência anterior de relações pessoais e informais entre alguns dirigentes de diferentes cineclubes é confirmada pela troca de textos para as palestras ou boletins e pela convergência entre algumas posições estratégicas relativamente ao poder político. No entanto, estou em crer que a organização do Primeiro Encontro Nacional de Cineclubes, realizado em Coimbra em 1955, tenha sido um momento de viragem, tendo fomentado e potenciado relações formais e regulares. Ora, como tem sido demonstrado por estudos recentes, as salas de cinema de Lisboa continuavam a ocupar um espaço de exibição crucial no mercado interno. Numa análise de quatro processos localizados no Arquivo Nacional Torre do Tombo, referentes à distribuição e à exibição de quatro filmes portugueses produzidos entre 1959 e 1965 — O Primo Basílio (1959), de António Lopes Ribeiro, O Crime de Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães, Canção da Saudade (1964), de Henrique Campos, e As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó — procurei informações sobre o mercado de 92 distribuição cinematográfica em Portugal para o período balizado entre 1959 e 1965 para, em última análise, questionar a influência do sector da distribuição na produção e na própria recepção pública do cinema português. Foi possível localizar estes processos porque os filmes em causa beneficiaram de subsídios públicos sob a forma de empréstimos e, no processo de prestação de contas, os produtores dos filmes eram contratualmente obrigados a submeter relatórios mensais sobre as receitas dos filmes, para se poder processar o reembolso do empréstimo público. É possível que existam mais processos semelhantes referentes a outros filmes que beneficiaram de subsídios similares, mas a falta de tratamento arquivístico de várias fontes não me permitiu, até ao momento, localizá-los – nem comprovar a sua existência. O Primo Basílio (1959), de António Lopes Ribeiro, estreou em Lisboa, nos cinemas São Luiz, Politeama e Alvalade, no dia 1 de Dezembro de 1959. O Relatório do Fundo do Cinema Nacional cobre o período entre Dezembro de 1959 e Maio de 1968 e apresenta como total de receitas o valor de 908.747$0730. Da análise dos dados, resultou a seguinte divisão percentual: Tabela n.º 10 Percentagem das receitas do filme O Primo Basílio (fonte: compilado a partir de ANTT, fundo SNI, caixa 222) 1.º trimestre 2.º trimestre 3.º trimestre 4.º trimestre Total 1.º ano 59,55% 10,42% 9,69% 3,12% 82,78% O Crime de Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães, estreou em Lisboa, no cinema Éden, no dia 20 de Novembro de 1964. O respectivo Relatório do Fundo do Cinema Nacional, que cobre o período entre Dezembro de 1964 e Outubro de 1968, apresenta apenas a parte das receitas referentes apenas ao Produtor31: 328.298$05. Da análise dos dados, resultou a seguinte divisão percentual: 30 As receitas apuradas dizem respeito ao que o exibidor pagava, posteriormente dividido entre o produtor e o distribuidor. O montante de cada sessão variava conforme a proximidade da estreia e a localização da sala. Nos grandes centros verifica-se que, no geral, o produtor e o distribuidor recebiam uma percentagem das receitas de bilheteira. Na maioria dos casos, o aluguer da cópia era feito por um valor fixo, independentemente das eventuais receitas de bilheteira, que, com o passar do tempo, poderia atingir valores pouco significativos (como 100$00 ou 300$00 por sessão). 31 O subsídio foi contratualizado com as Produções António da Cunha Telles, que por sua vez fez um contrato de distribuição com a Lusomundo. Alegando que não tinha qualquer compromisso contratual com o Estado português, a Lusomundo recusou-se a enviar os relatórios mensais de receitas e aceitou apenas enviar os dados referentes à percentagem do Produtor, que variava, conforme as semanas e a localização geográfica das salas, entre os 25% e os 10%. 93 Tabela n.º 11 Percentagem das receitas do filme O Crime de Aldeia Velha (fonte: compilado a partir de ANTT, fundo SNI, caixa 225) 1.º trimestre 2.º trimestre 3.º trimestre 4.º trimestre Total 1.º ano 48,20% 8,97% 25,77% 3,73% 86,67% Canção da Saudade (1964), de Henrique Campos, estreia em Lisboa, no cinema Éden, a 18 de Setembro de 1964. O Relatório do Fundo do Cinema Nacional cobre o período entre Setembro de 1964 e Março de 1968, apresentando um total de receitas de 696.513$50. Da análise dos dados, resultou a seguinte divisão percentual: Tabela n.º 12 Percentagem das receitas do filme Canção da Saudade (fonte: compilado a partir de ANTT, fundo SNI, caixa 223) 1.º trimestre 2.º trimestre 3.º trimestre 4.º trimestre Total 1.º ano 68,29% 15,68% 5,76% 2,64% 92,37% O detalhe dos dados permitiu ainda concluir que o valor das exibições na cidade de Lisboa correspondeu a 276.942$60 (39,76%)32 e no Porto, em 3 semanas de estreia, a 76.274$80 (10,95%). Excepcional foi o caso do filme As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó. Estreou em Lisboa, no cinema Tivoli, a 15 de Março de 1965 e, segundo o Relatório do Fundo do Cinema Nacional, que cobriu o período entre Março de 1965 e Novembro de 1965, somou como total de receitas de bilheteira uns modestos 58.983$70, correspondendo 57.715$60 (97,85%) às salas de Lisboa e 1.268$10 (2,15%) às salas do Porto. A partir desta análise, é minha convicção que a influência das salas, com a sua lotação e investimento publicitário próprio, e das semanas de estreia, nomeadamente na cidade de Lisboa, é determinante para o sucesso comercial e consequente retorno financeiro do filme, porque representa uma percentagem elevada e a publicidade gerada pode favorecer os resultados das estreias nas cidades de pequena e média dimensão e a própria longevidade comercial do filme. A este propósito, os signatários d'O Ofício do 32 Quatro semanas de estreia no cinema Éden: 236.068$80 (33,89%); e duas semanas de reposição, nos cinemas Lys e Cinearte: 40.873$80 (5,87%). 94 Cinema em Portugal (1968: 14-15) argumentariam que “as bilheteiras dos cinemas de Lisboa arrecadam cerca de 60% do total das receitas obtidas no país“, justificando essa cifra com as “condições sócio-económicas“ que se então vivia em Portugal: “(...) São sobejamente conhecidos (e é notória a sua influência no consumo de cinema) o baixo nível de vida da população portuguesa, o seu consequente baixo poder de compra, o ainda elevado grau de analfabetismo — ou, se se preferir, o baixo grau de actualização cultural — bem como o acentuado despovoamento rural (...).“ Em contrapartida, a longevidade e a extensão do circuito de exibição nos espaços rurais, para além de implicar uma maior rentabilidade do investimento na produção, parece ser também um instrumento fundamental para assegurar a fidelização do público a médio e longo prazo. Em conclusão, apesar da abertura e da falência de várias empresas distribuidoras, o que se verifica ao longo do período em análise é que o número de distribuidores se mantém razoavelmente estável, oscilando entre as 21 e as 25 empresas em actividade, mostrando ser um sector consolidado e bem definido. Como foi referido na nota da tabela n.º 6, este número peca por defeito, uma vez que não foi possível identificar os distribuidores de um número residual de filmes em cada ano. Fundado em 1947, a União de Grémios dos Espectáculos era uma organização corporativa que reunia os diversos empresários ligados aos vários sectores cinematográficos dentro da lógica corporativa do Estado Novo, nomeadamente o Grémio Nacional das Empresas de Cinema, o Grémio Nacional das Empresas Teatrais e Similares e o Grémio Nacional das Empresas de Diversões Públicas. O Grémio era uma estrutura primária da pirâmide corporativa salazarista, uma espécie de sindicato das entidades patronais, que assegurava a representação destes na Câmara Corporativa. O seu primeiro presidente da direcção foi António Lopes Ribeiro, que permaneceu no cargo entre 194751, então ainda uma figura muito considerada e próxima do circulo do poder. Curiosamente, durante décadas, Lopes Ribeiro assumiu a direcção dos dois principais organismos sindicais da actividade cinematográfica33, assumindo um visível conflito de interesses que resultam da defesa de interesses antagónicos quer de profissionais de cinema como de empresas de cinema. 33 António Lopes Ribeiro pertenceu à direcção do SNPC nos primeiros anos de existência (1933-1944). Depois de uma passagem pela direcção da União de Grémios dos Espectáculos (1947-51), organismo de que foi o primeiro presidente da direcção, o “cineasta oficial“ do regime assumia a direcção do SNPC por um período de doze anos (1958-69). 95 À semelhança do que ocorreu durante o período inicial do Estado Novo em vários sectores da sociedade portuguesa, a actividade cinematográfica foi também alvo de uma estratégia legislativa que procurava impor ao sector uma estrutura corporativa. Aproveitando uma situação favorável na organização laboral do sector — Luís de Pina (1977: 134-135) frisa que “quanto à organização interna do cinema pouco ou nada existia [antes da institucionalização do Estado Novo], nem associações patronais nem sindicatos“ —, o regime tentou impor a sua organização corporativa do trabalho através de organismos que ajudou a criar, todos devidamente enquadrados no espírito corporativo preconizado então. Neste período, a actividade cinematográfica já era controlada pelo Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema (fundado em 1934, foi dirigido pelo realizador Fernando Garcia entre 1946-58 e pelo realizador e produtor António Lopes Ribeiro entre 1958-69), que agrupava indiscriminadamente trabalhadores das áreas da Produção, da Distribuição e da Exibição, e pelo Grémio Nacional das Empresas de Cinema. A criação da União de Grémios vinha aumentar o poder reivindicativo dos empresários ligados às actividades de cinema e a sua representação legal junto do Estado, nomeadamente na Corporação dos Espectáculos (criada em 1956), que assim passava a nomear os seus representantes. Até então, os representantes do sector na Câmara Corporativa eram nomeados pelo Governo a partir de personalidades inscritas nos Sindicatos, Grémios e Federações Nacionais. Esta estratégia favorecia simultaneamente o patronato, que assim julgava adquirir maior visibilidade e influência, e o regime, que podia exercer um melhor controlo sobre um organismo do que sobre três. Como observa Manuel Lisboa (1999: 125), os Grémios não se limitavam a defender os interesses patronais, mas aos agrupar empresas passavam também a defender uma posição dupla, por vezes conflituante: “eram organismos profissionais quando se entendiam ou desentendiam com os sindicatos de assalariados (...) acerca de problemas de trabalho e arredores; e eram organismos económicos quando orientavam e disciplinavam a produção, 'representando as empresas da sua categoria e defendendo, portanto, os interesses de todos os elementos que nelas participavam, desde os trabalhadores aos capitalistas'.“ Esta função reguladora permitia-lhes, por exemplo, de acordo com o Decreto nº 42661 de 20 de Novembro de 1959, serem consultados em processos de requerimento para a instalação ou reabertura de cinemas e cine-teatros, nomeadamente as empresas proprietárias e exploradoras de cinemas e cine-teatros já existentes na localidade. 96 Segundo o mesmo diploma, o Grémio Nacional das Empresas de Cinema teria também dois assentos (em cinco) — um para representantes da distribuição e outro da exibição — na Comissão de Condicionamento dos Recintos de Cinema. A partir de 1953, esta estrutura corporativa inicia a publicação do Boletim da União de Grémios de Espectáculos, um periódico mensal onde tornariam públicas e defenderiam as suas principais aspirações e interesses, fundado por B. Júdice da Costa e dirigido posteriormente por Campos Figueira de Gouveia, Vasco Morgado e Manuel Telles. De resto, a contestação à lei de “protecção ao cinema nacional“ de António Ferro foi um dos temas em focos nos editoriais desse Boletim. Sentindo-se prejudicados pela crescente hegemonia do cinema estrangeiro na exibição, os principais representantes dos diversos sectores da actividade cinematográfica começam a reivindicar a revisão da lei. Em Março de 1955, a União de Grémios dos Espectáculos apresentou uma extensa exposição ao Ministério da Presidência onde abordava questões como o estatuto dos espectáculos, os direitos de autor e a revisão da lei 2.027. Lembrando as reivindicações apresentadas anteriormente pelo Grémio, pretendendo alertar o governo para algumas questões que “o legislador não previu“, este organismo acrescenta alguns pontos à argumentação que defende a revisão da lei em aspectos relacionados com a produção, distribuição e exibição cinematográficas. Denunciando vários interesses específicos, convencidos “de que a revogação total de tão discutido diploma se torna difícil“, a exposição propõe alterações a vários artigos. As reivindicações apresentadas referem-se: à alteração de certas taxas de exibição (art. 5.º); à concessão de subsídios, créditos ou prémios aos produtores (art. 7.º e 8.º); à legalização da dobragem (art. 13.º); ao fomento das co-produções (art. 14.º); à autorização de importação de filmes culturais, educativos e artísticos falados em língua estrangeira (art. 15.º); e a regulamentação da exploração de filmes em 16 mm (art. 26.º). O organismo não se escusou a encerrar a exposição com a exigência da isenção do pagamento do imposto único e adicional e da taxa para a Segurança Social das empresas que exibissem filmes portugueses (Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, III1955: 1-12). 97 2.2. César Moreira Baptista Em 1956, Marcello Caetano, então Ministro da Presidência, reconhecia que a situação de crise no cinema português era preocupante, mas tentava ilibar o Estado das pretensas responsabilidades: “Muita gente se vira para o Estado, mas o Estado pode procurar melhorar as condições da produção nacional (e está a tentar fazê-lo), mas não pode tentar transformar-se em argumentista e realizador. Apareçam os homens de talento, surjam as iniciativas – e o estado fará, certamente, por cumprir para com eles o seu dever de apoio e estímulo“ (Pina, 1986: 134-135). Esta afirmação do principal responsável político de então pelo cinema reforça a ideia da inexistência de uma estratégia política destinada a ultrapassar a crise do cinema português. Reconhecendo alguma razão nas várias críticas à nova lei, o regime procura reagir através dos parcos instrumentos legais de que dispõe. Aproveitando as finalidades do Fundo do Cinema Nacional, o Conselho de Cinema procura remediar o mal cometido pela legislação que o criara e esboça uma alteração da sua estratégia de intervenção. Apesar de grande parte do seu orçamento se encaminhar para o apoio à produção, geralmente de um género de filmes populares e comerciais, o Conselho de Cinema decide privilegiar progressivamente a produção de filmes de curta-metragem, permitindo o desenvolvimento de géneros cinematográficos César Moreira Baptista foi nomeado Director do SNI no dia 1 de Fevereiro de 1958. Advogado de formação, Moreira Baptista desempenhou diversos cargos políticos e públicos durante o Estado Novo: foi chefe de repartição da Direcção Geral dos Combustíveis, vice-presidente da Comissão Reguladora do Comércio de Carvões, director da FNAT, presidente da Caixa de Previdência dos Organismos Económicos, presidente da Comissão Concelhia de Cascais da União Nacional, vogal da Comissão Distrital de Lisboa da União Nacional durante 8 anos, vogal da Comissão Executiva da União Nacional (1957), Presidente da Câmara Municipal de Sintra (1953-1957) e vogal do Conselho Nacional de Turismo (1957). Suspendeu o seu mandato parlamentar de deputado à Assembleia Nacional, para o qual tinha sido eleito no ano anterior, para assumir a direcção do SNI. Seguindo as directivas de Marcelo Caetano, de quem era amigo pessoal e aliado político, Moreira Baptista “procedeu a uma remodelação interna, reforçando os serviços de informação e do turismo, justificada como uma 'adaptação' às novas 'necessidades'“, pretendendo “essencialmente salvaguardar a imagem do regime (Melo, 1999: 169). Ainda que tenha dado continuando ao modelo de coação dos seus 98 antecessores à frente do SNI, Moreira Baptista “também pretendia intervir pela persuasão: o prémio, o subsídio, a consagração eram considerados instrumentos mais eficazes para influenciar a expressão cultural“, promovendo “a revitalização dos prémios, destacando o cerimonial do reconhecimento simbólico e diversificando as categorias e os potenciais premiados“ (Ibidem). Enquanto titular desse cargo, Moreira Baptista teve responsabilidade pelo silenciamento do movimento cineclubista e de luta contra outras formas de oposição cinéfila, mas também por um esforço de promoção de tímidas soluções para a crise do cinema português (curso de cinema do EUCE, bolsas de estudo). Os seus mandatos à frente da propaganda do regime foi de tal forma reconhecida que seria promovido a Secretário de Estado em 1968 e a Ministro do Interior em 1973. Se Bénard da Costa (1998: 57) acredita que “Marcello sempre fora muito céptico quanto às políticas de Ferro“, Carlos Fontes (a: em linha) sublinha essa mudança de paradigma na política cultural promovida por Moreira Baptista: “A difusão de uma cultura de massas no país, a partir dos anos sessenta, gerou elevadas expectativas de acesso ao consumo entre largas faixas da população urbana, deixando muito pouco espaço ao regime, para continuar a sustentar os valores tradicionais que haviam constituído o núcleo central das políticas culturais, entre os anos trinta e meados dos anos cinquenta. (...) Ao longo deste período, Moreira Baptista manteve uma enorme coerência na orientação que imprimiu a este organismo. Entre 1958 e 1973, Moreira Baptista procurou de forma sistemática transformar o SNI/SEIT num órgão essencialmente virado para o turismo de massas, a produção e controlo da informação veiculada pela comunicação social e a inspecção de certas actividades culturais. Era neste plano que se situavam os principais problemas de sobrevivência do regime. Estas alterações reflectiam também a própria evolução interna deste organismo. Há muito que deixara de ser identificado com uma instituição promotora de actividades culturais, para ser sobretudo um órgão conotado com a censura da imprensa e dos espectáculos. Moreira Baptista de forma persistente, foi secundarizando todas as estruturas de apoio à cultura criadas por António Ferro, transferindo parte delas para a FNAT e o Ministério da Educação. A Cultura Popular, núcleo central da Política do Espírito foi transformada num instrumento de animação turística. Um dos seus símbolos, o Museu de Arte Popular foi praticamente abandonado. As célebres intervenções do SNI, na produção ou apoio a exposições de artes plásticas, no país ou no estrangeiro, passaram a obedecer à mesma lógica de apoio ao turismo, ou simplesmente, confinaram-se a assinalar visitas ou comemorações oficiais. As exposições nos salões de exposição no Palácio Foz e na Galeria de Arte Moderna em Belém, pouco ultrapassaram esta perspectiva pragmática. Os “prémios“ quase 99 passavam despercebidos da comunicação social, tão pouco prestígio possuíam.“ Em suma, a orientação de Ferro para promover a “alta cultura“ seria abandonada ou desvalorizada para se investir numa estratégia mais virada para o “gosto popular“ ou para a “cultura de massas“. Mas a mudança mais significativa seria a tentativa de criar “um corpo de especialistas em comunicação de massas e turismo, promovendo para o efeito estudos e lançando uma publicação regular neste domínio“ (Ibidem). De facto, com Moreira Baptista, a estratégia política para a cultura alterou-se profundamente. O primeiro e mais expressivo indicador é mesmo o montante anual disponibilizado ao SNI através do Orçamento Geral do Estado. Tabela n.º 13 Orçamento do SNI no Orçamento Geral do Estado 1958-68 (fonte: dados compilados a partir do Orçamento Geral do Estado, 1958-68) Ano Total Despesa com pessoal 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 64.677.591$80 72.090.884$00 80.782.074$40 88.060.264$00 93.624.266$50 102.286.418$30 128.264.870$50 142.655.159$70 166.085.108$20 198.327.940$50 224.428.606$00 ? 12.287.264$00 14.363.583$00 ? ? 15.153.115$50 15.077.786$00 15.141.866$00 16.424.591$00 16.417.386$00 16.923.386$00 Despesa com material ? 1.254.000$00 1.180.000$00 ? ? 980.000$00 1.025.000$00 1.070.000$00 1.070.000$00 1.130.000$00 1.130.000$00 Pagamento de serviços e diversos encargos ? 58.549.620$00 65.238.491$40 ? ? 86.153.302$80 112.162.084$50 126.443.293$70 148.590.517$20 180.780.554$50 206.375.220$00 No espaço de uma década, o orçamento do SNI quase quadruplicou, e o investimento não foi feito ao nível da despesa corrente (pessoal e material, que só aumentou cerca de 25%), mas na despesa extraordinária, no pagamento de serviços e diversos encargos externo como a produção de filmes ou a concessão de subsídios a revistas e eventos ou as bolsas de formação. 100 2.2.1. “O Estado não pode ser produtor de filmes“ Apesar da natural discordância de inúmeras figuras do sector da produção34, em entrevista ao Diário de Notícias de New Bedford, Moreira Baptista declarava que o Estado não podia ser produtor de filmes nem proprietário de estúdios (apud Costa 1985: 22). Esta declaração podia parecer inequívoca, mas não expressava claramente a estratégia de Moreira Baptista para a intervenção do SNI com o cinema português: o novo responsável pela política cultural pretendia que o SNI controlasse de perto a produção e circulação do cinema português mas de uma forma menos visível do que sucedera durante o tempo de António Ferro. Insistindo, portanto, numa política desenvolvida após a saída de António Ferro, que privilegiava o apoio indirecto à produção em detrimento do apoio directo, Moreira Baptista pretendia instaurar um sistema de atribuição de subsídios que passasse sobretudo pelo Conselho de Cinema, um órgão especializado chefiado pelo próprio dirigente do SNI e composto por dois representantes da Junta Nacional de Educação, o dirigente da Inspecção Geral dos Espectáculos, um delegado da União de Grémios dos Espectáculos e outro do Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema. Fausto Cruchinho, num estudo inédito sobre o funcionamento do Conselho de Cinema, demonstrou de que forma o Estado português, através dos subsídios do SNI e depois da SEIT, apoiou a produção cinematográfica entre 1962-71. Criado pela Lei 2.207, o Conselho de Cinema dava pareceres sobre a aplicação do dinheiro do Fundo do Cinema Nacional. Analisando exaustivamente um corpus documental de 82 actas desse órgão, datadas entre Janeiro de 1962 e Dezembro de 1971, Cruchinho conclui, “praticamente todas as iniciativas de fundo do primeiro Conselho são da responsabilidade do seu presidente“ [César Moreira Baptista]. Uma das actas chamou a atenção de Cruchinho, a de 22 de Março de 1963, onde o director do SNI configurava uma estratégia para alterar as regras de atribuição de subsídios, “financiando a posteriori os filmes propostos, cabendo ao Conselho decidir se deve financiar e premiar o produto acabado“ (Cruchinho, 2000: 341). Segundo a dita acta, a estratégia proposta seria a seguinte: “(...) O Sr. Dr. César Moreira Baptista diz parecer-lhe que o regime, que aliás por disposição expressa da lei se tem seguido — o de seleccionar e subsidiar a priori os projectos de produção de filmes de 34 Por exemplo, na revista Imagem, Eurico da Costa discordava do titular da Cultura, reclamando: “o Estado pode e deve ser produtor“. 101 fundo que habitualmente lhe são presentes — apresenta os inconvenientes que sempre podem resultar de tal orientação ou seja, no caso do filme que não conseguiu alcançar uma qualidade satisfatória, o Conselho pode achar-se ligado, em certa medida, ao inêxito do filme. (...) De facto, seguindo os métodos que até aqui têm servido de base de apreciação e de resolução, podemos estar, involuntariamente, a facilitar o aparecimento de filmes que, por uma razão ou outra, não resultam. É o caso de Ribeira da Saudade, do Milionário, e, mesmo, de O Auto da Primavera.“ Ainda que a razão formal fosse salvaguardar uma eventual não identificação do SNI com os filmes por si financiados, parece-me claramente que esta nova orientação estratégia visava sobretudo a desvinculação inequívoca do Estado dos interesses corporativos dos produtores. Por um lado, Moreira Baptista reduziu as encomendas directas e a produção própria do SNI, ao mesmo tempo que, formalmente, empurrava a decisão sobre os apoios para um órgão formalmente independente do poder político do próprio SNI. Talvez por manifesta pressão do sector da produção, o modelo de financiamento não seria alterado, mantendo-se a avaliação dos projectos a priori. Com demasiadas produtoras dependentes dos financiamentos públicos para sobreviver, a mudança preconizada por Moreira Baptista em reunião do Conselho de Cinema poderia mesmo significar a estagnação ou mesmo a falência do sector de produção cinematográfica em Portugal. Ainda assim, os apoios directos e as encomendas foram reduzindo a sua proporção no total dos apoios públicos, como de resto vinha acontecendo nos consulados posteriores a António Ferro. No entanto, em sentido oposto ao SNI, outros organismos públicos, como a Agência Geral do Ultramar, os Serviços Cartográficos do Exército ou a Junta de Acção Social35, continuavam a apostar sobretudo na produção própria de filmes, talvez numa estratégia de maior controlo da informação. Assim, a produção conheceu um surto significativo entre 1961 e 1974, com especial destaque para os filmes de curta-metragem. Tabela n.º 14 35 O caso da Junta de Acção Social, de que tomei conhecimento recentemente através de um projecto de investigação desenvolvido por Frédric Vidal é surpreendente: se entre 1949 e 1959 produziram apenas 1 filme, entre 1960 e 1965 o organismo público produziu 86 filmes de variadas temáticas. A lista desses filmes pode ser consultada em WWW:<http://www.imdb.com/company/co0004618/?ref_=fn_al_co_1>. 102 Estreias de filmes portugueses entre 1961 e 1974 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE) Total Ano 1961 1963 1965 1967 1969 1970 1971 1972 1973 1974 Longas-metragens (superior a 1800m) Curtas-metragens (inferior a 1800m) Metros Filmes Metros Filmes Metros 37,167 49,207 48,465 71,991 72,826 79,464 68,115 86,171 64,970 77,845 1 6 6 6 4 5 2 8 2 8 2,100 14,587 15,061 16,391 10,674 14,257 4,807 22,361 5,570 26,050 108 121 109 186 205 221 216 219 203 182 35,067 34,620 33,404 55,600 62,152 65,207 63,308 63,810 59,400 51,795 % de curtas em relação aos Metros 94% 70% 69% 77% 85% 82% 93% 74% 91% 67% De acordo com o quadro anterior, segundo dados do INE, a estreia de filmes de curta-metragem atingiu um máximo entre 1969 e 1972, ultrapassando mesmo os 60 mil metros de película, o que corresponde a cerca de 20 longas-metragens. Este registo é ainda mais impressionante se porque poucos anos antes, entre 1961 e 1965, o número de estreia era sensivelmente metade desse valor. A produção dos filmes de curta-metragem, com equipas de filmagem e tempos de rodagem reduzidos, com orçamentos substancialmente reduzidos, com preocupações comerciais (ao nível da distribuição e exibição) reduzidas e com uma liberdade criativa apreciável tornaram este género de filmes – turístico, industrial, publicitário, institucional – um terreno privilegiado de aprendizagem, de treino e de experimentação na prática fílmica dos jovens cinéfilos aspirantes a realizadores. A dificuldade em filmar obras de fundo, vetadas pelos constrangimentos da censura e pela monopolização do Fundo pelos cineastas próximos do regime, remeteram os jovens realizadores para os géneros cinematográficos de certa forma marginalizados. Sofrendo influências das principais escolas europeias36, o género documentário possibilitava uma interessante vertente criativa, explorando sobretudo filmes marginalizados pelo mercado cinematográfico. 36 Como analisarei mais adiante, esta geração de realizadores portugueses foi, na sua maioria, beneficiária de importantes bolsas de estudo do Governo português ou da Fundação Calouste de Gulbenkian, recendendo formação nos principais centros de formação cinematográfica da Europa, como Londres, Paris e Roma. 103 Não foi, portanto, por mero acaso que a maioria dos cineastas da geração do Novo cinema português começou as suas carreiras cinematográficas (excluindo eventuais filmes escolares ou em regime amador) por filmes de curta-metragem. Muitas das experimentações feitas nestes filmes de curta-metragem foram depois tentadas nas primeiras longas-metragens destes realizadores. No entanto, pela fraca visibilidade dos filmes de curta-metragem, a renovação ética, estética e técnica promovida por uma nova geração só foi sendo reconhecida publicamente nas longas-metragens que eles foram apresentando. A lei de “protecção ao cinema“ de 1948, para fins tributários, estipulava quatro categorias de filmes de curta-metragem: farsas e atracções musicais; desenhos animados; documentários e congéneres; e actualidades. A partir de 1961, os relatórios estatísticos do INE definem cinco categorias para classificar os filmes de pequenametragem: a) Filmes recreativos, designação atribuída a obras de ficção ou “romanceadas“ também conhecidas como “fitas cómicas“ ou “farsas“. Esta nova categoria passa a incluir também os filmes de animação. b) Filmes documentários, designação abrangente que inclui os filmes turísticos, industriais, técnicos ou científicos. O principal objectivo destes filmes, e por isso eram maioritariamente financiados pelo organismo oficial da propaganda, era fomentar o sector turístico e industrial português, sendo exibidos em circuitos específicos no estrangeiro e também para promoção propagandística de Portugal junto das colónias de portugueses espalhados pelo mundo, particularmente nas Casas de Portugal em Nova Iorque, Rio de Janeiro, Paris, Londres e Madrid. c) Filmes culturais, ou filmes sobre temáticas relacionadas com as artes e letras. Esta categoria incluía também os filmes educativos ou formativos, nomeadamente os filmes destinados à Telescola, à semelhança do que tinha acontecido na década anterior com a Campanha Nacional de Educação de Adultos. d) Filmes de actualidades, também conhecidos como jornais de actualidades, eram filmes de teor noticioso com uma componente fortemente propagandística. e) Filmes de publicidade, categoria criada para diferenciar o forte crescimento deste género fílmico, motivado pela forte expansão da actividade publicitária em Portugal. 104 Naturalmente, a produção destes filmes de curta-metragem estavam directamente com as condições de exibição existentes no cinema português para este tipo de filmes. O quadro seguinte, adaptado dos anuários estatísticos do INE, regista o número de vezes que os filmes eram exibidos nas sessões comercias em Portugal continental e ilhas. Tabela n.º 15 Exibição de filmes de curta-metragem, por género, entre 1961 e 1980 Ano 1961 1962 1963 1965 1967 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE) Recreativos Documentários Culturais Actualidades Publicidade 1.028 4.978 2.042 8.897 25.948 1.379 3.857 1.968 10.540 27.130 1.040 4.861 1.937 11.179 27.952 1.206 5.706 1.708 8.982 25.161 1.620 6.967 2.666 16.068 26.106 1.997 7.904 3.691 16.827 18.827 2.281 9.287 3.361 17.771 18.248 2.610 10.489 3.369 18.814 13.767 3.979 11.246 3.210 18.326 16.625 2.720 12.160 4.188 18.231 19.074 2.676 11.853 3.421 20.377 27.601 2.267 9.435 2.168 14.957 24.534 2.647 8.989 2.228 10.176 34.280 2.780 7.016 2.088 8.361 30.197 1.726 7.029 1.918 8.732 24.614 2.368 5.867 1.192 6.136 22.686 2.188 6.815 1.197 5.423 23.234 De acordo com estes dados, é evidente o predomínio dos filmes publicitários e de actualidades no mercado exibidor português. Por serem de menor direcção e de interesse político (actualidades) e comercial (publicitários), os filmes destas categorias eram presença obrigatória em todos os programas cinematográficos deste período. Muitas vezes, uma mesma sessão de cinema poderia incluir diversos filmes publicitários, daí o número desnivelado de exibições deste género de filmes. Os jornais de actualidades também eram habituais em todos os programas cinematográficos. Das categorias minoritárias, os documentários eram os mais exibidos, ultrapassando mesmo, entre 1971 e 1974, a barreira das 10 mil exibições. Estes valores do início da década de 70 representavam mesmo um crescimento de 100 por cento em relação a período idêntico da década anterior. 105 O estatuto artístico da produção de curtas-metragens foi-se alterando ao longo do período aqui em estudo. De um género menor e, por vezes, desclassificado, a curtametragem foi conquistando um progressivo capital de confiança por parte da crítica e das autoridades políticas. Foi através das curtas-metragens que algumas das figuras de destaque no Novo cinema português obtiveram reconhecimento público e oficial por parte das autoridades culturais em relação às suas propostas. Para além deste reconhecimento oficial, as sucessivas distinções internacionais – entre selecções, menções ou prémios – obtidas por curtas-metragens portuguesas em diversos festivais de cinema internacionais devolviam ao SNI um capital político e cultural que as produções de longa-metragem nunca tinham conquistado internacionalmente. Ainda que se trata-se, na generalidade, de festivais especializados em géneros pouco mediáticos – filme industrial, filme publicitário, filme religioso – este reconhecimento internacional era importante para o reconhecimento do cinema português e da própria produção cultural e artística feita em Portugal. Se a União de Grémios dos Espectáculos mostrava preocupação com o incumprimento da lei, nomeadamente no artigo que previa a obrigatoriedade de exibição de filmes portugueses (uma semana de filmes portugueses por cada cinco semanas de filmes estrangeiros), o mesmo parecia não se passar com os responsáveis governativos. A 17 de Dezembro de 1959, através de um despacho do Ministério da Presidência, a União de Grémios dos Espectáculos era informada que: “(...) os filmes nacionais, até então produzidos e os que foram sendo concluídos nos anos subsequentes, deixaram de ser beneficiados não só da quota obrigatória como, também, das outras normas de protecção relativas a preços de aluguer, percentagens, mínimos de passagens, etc, etc. As produções portuguesas passam a entrar no jogo da oferta e da procura, em perfeita concorrência com os filmes estrangeiros, na sua totalidade de categoria manifestamente superior.“ (apud Cruchinho, 2000: 343). Esta medida, de entregar o cinema português ao “jogo da oferta e da procura“, tão desejada e reclamada pelo sector da distribuição, constituiu um rude golpe nos interesses dos produtores. Ainda que a medida não fosse formalizada publicamente, apenas pelo referido despacho ministerial dirigido aos interessados, foi algo que desresponsabilizava os sectores da distribuição e da exibição do incumprimento da lei em vigor. Esta questão haveria de voltar à discussão no seio do Conselho de Cinema em Janeiro de 1964, quando o próprio Moreira Baptista propôs ao representante da União 106 de Grémios dos Espectáculos “uma conciliação entre as partes até à saída de nova legislação“ (Ibidem). Neste período, os dados estatísticos referentes à exibição são positivos. Ano 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 Tabela n.º 16 Dados sobre Casas de Espectáculos, Salas de Cinema, Sessões, Espectadores e Receitas em Portugal entre 1961 e 1969 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1961-69, INE) Receita Espectadores Casas de Salas de Lotação Sessões (milhões de (milhões) espectáculos Cinema escudos) 471 435 260.278 80.964 26.110 195.590 500 546 265.216 82.417 25.552 193.436 492 450 263.062 82.528 26.702 193.502 490 441 258.367 82.657 24.487 196.880 497 449 264.256 83.242 25.660 217.611 489 439 261.265 85.408 28.341 230.141 531 482 273.965 96.184 27.671 267.279 544 492 276.700 97.042 26.618 268.876 532 484 275.215 100.139 26.413 281.473 Entre 1961 e 1969, todos os indicadores apresentam um saldo positivo: as salas de cinema aumentam cerca de 10%, o número de sessões cresce cerca de 25%; apesar da estabilização do número de espectadores, a receita cresce significativamente na ordem dos 45%. A análise comparativa entre as casas de espectáculos licenciadas e as salas de cinema não deixa quaisquer dúvidas que o cinema era o espectáculo mais popular e com maior oferta junto da população: em 1961, 92% das casas de espectáculos são salas de cinema; em 1969, o número cifra-se nos 91%. De resto, seria precisamente esta uma das argumentações usadas, em 1968, pelos signatários d'O Ofício do Cinema em Portugal (1968: 13), no ponto “Cinema: Cultura com 93% de alcance“, para exigir maior investimento público: “Certos factos nunca serão realçados em demasia. Na verdade, toda a gente sabe que desde há anos o cinema nacional vive sem qualquer estrutura, ao sabor das tentativas isoladas que de quando em quando vão surgindo e que sistematicamente soçobram por falta de apoios de tosa a ordem. Por outro lado, embora ninguém duvide que o cinema é a forma de expressão artística, ou espectáculo, se quisermos, mais acessível à grande massa de espectadores, muita gente ignora que entre nós ele absorve nada menos que cerca de 93% dos frequentadores de todos os espectáculos, incluindo mesmo os que, como os tauromáquicos, atraem verdadeiras multidões.“ 107 Apesar de perder público para a televisão, por ser um entretenimento mais “fácil“ e mais “barato“ (Ibidem: 16), o cinema continuava a ser um espectáculo público mais concorrido que o teatro (4%), o bailado (0,12%) ou a ópera (0,1%), excluindo-se o espectáculo futebolístico (Ibidem: 10-11). Mas, ainda para os signatários d'O Ofício, a saída do impasse passava, entre outras medidas, por “abrir mais salas“ e “diminuir a desproporção numérica entre os filmes portugueses e os estrangeiros“ (Ibidem: 19). À semelhança de outros mercados, o circuito português de exibição comercial estava dominado pela presença dos filmes de produção norte-americana. Tabela n.º 17 Filmes exibidos nas salas portuguesas 1963 e 1969 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE) Metragem Filmes Metragem Filmes Metragem Outros Filmes Metragem Itália 355 60.400 24 68.886 87 89.836 357 594.060 135 186.782 81 145.424 54 163.300 65 52.666 329 54.187 38 105.498 85 84.405 348 600.749 126 143.023 112 154.335 45 127.201 67 45.574 264 46.644 12 31.495 74 59.388 398 753.527 123 171.598 70 98.879 56 158.345 81 65.374 289 53.244 83 83.361 48 54.708 337 643.169 187 183.233 46 85.749 105 251.201 37 41.597 326 70.844 28 57.559 23 31.996 379 650.526 167 164.162 68 154.922 93 187.982 55 107.416 321 67.590 84 50.297 79 48.070 427 799.221 137 145.716 98 116.859 114 298.574 105 51.555 378 77.585 61 40.263 69 41.574 406 717.699 166 125.502 75 96.341 88 230.274 70 59.697 Filmes Metragem Inglaterra 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 Filmes Metragem França Ano Filmes Metragem EUA Filmes Espanha Metragem Alemanha Filmes Portugal Gráficos n.º 3 e 4 Percentagem de filmes estreados em Portugal pelo país de origem (1963 e 1969) (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1960-69, INE) 108 1963 Itália 12% Outros Portugal 4% 4% RFA 5% Inglater ra 11% 1969 Espanha 6% Itália 16% Outros 4% Inglater ra 7% Portugal 6% RFA 3% Espanha 3% França 9% França 14% EUA 52% EUA 44% No período em análise, os EUA recuperou alguma quota de mercado e fechou a década com 52% do total de filmes de longa-metragem distribuídos no circuito nacional. Os filmes de produção italiana continuavam a garantir um posição privilegiada, passando mesmo a ser o segundo país com mais filmes importados, ultrapassando cinematografias históricas como a da França e Inglaterra. De acordo com a argumentação dos signatários d'O Ofício, o elevado número de importação de filmes também se devia, em grande medida, ao “elevadíssimo“ número de distribuidores em actividade em Portugal (22 em 1968): o “cancro da distribuição“ agrava a situação do cinema português porque não há restrições à importação (exceptuando os “países do bloco socialista“), o contributo para o Fundo do Cinema Nacional é residual (deveria ser proporcional aos lucros) e porque, ao anular a quota para os filmes portugueses, “os distribuidores só aceitam a distribuição de filmes portugueses em condições perfeitamente ruinosas para os produtores“ (O Ofício do Cinema em Portugal, 1968: 22). Ainda neste contexto de exibição, no final da década de 50, coincidindo com o início do mandato de Moreira Baptista, há a assinalar, no dia 29 de Setembro de 1958, a inauguração oficial da Cinemateca Nacional, apresentando a I Retrospectiva do Cinema Português, com dez filmes mudos (1911-30). Como já foi referido antes, apesar de criada legalmente pela Lei 2.027 de 1948, a Cinemateca demoraria uma década exacta a iniciar efectivamente as suas funções. Mas os primeiros anos foram de programação esporádica: 109 II Retrospectiva do Cinema Português (3 sessões) em Julho de 1959; Retrospectiva do Cinema Alemão 1927-1934 (5 sessões) em Maio de 1960; III Retrospectiva do Cinema Português (8 sessões) em Junho de 1960; I Retrospectiva do Cinema Sonoro Português (6 sessões) em Outubro de 1960; II Retrospectiva do Cinema Sonoro Português (6 sessões) em Novembro e Dezembro de 1960; III Restropectiva do Cinema Sonoro Português (6 sessões) em Janeiro de 1961. Em suma, nos primeiros 4 anos de actividade efectiva, a Cinemateca organizou apenas 7 ciclos de cinema que totalizaram 44 sessões de cinema. Apesar de pouco significativa, estas primeiras sessões retrospectivas do cinema português, que recuperavam importantes obras do cinema mudo (dos pioneiros Os Crimes de Diogo Alves (1911) de João Tavares a alguns dos maiores êxitos da Invicta Filme, passando pelos primeiros filmes de Leitão de Barros e de Reinaldo Ferreira) ou do cinema sonoro (Ala-Arriba (1942) de Leitão de Barros ou Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira), foram importantes para se preservar e divulgar a própria memória cinéfila do cinema português. Apesar da Cinemateca estar sedeada em Lisboa, muitos destes ciclos de cinema puderam percorrer várias cidades portuguesas graças ao trabalho de alguns cineclubes. 2.2.2. A televisão pública Fora do cinema, neste período regista-se um acontecimento que iria influenciar decisivamente o rumo do cinema português nas décadas seguintes. Em 1957, depois das primeiras sessões experimentais no ano anterior, começam as emissões regulares de televisão, o novo meio comunicação onde o regime apostaria forte como veiculo privilegiado de ocupação dos tempos livres da população. Marcello Caetano, então Ministro da Presidência, foi indubitavelmente o principal responsável pelo processo de criação e estratégia dinâmica do novo serviço público. Tendo contactado com a nova e aliciante forma de comunicação, Caetano impulsionou definitivamente o arranque daquele serviço que se viria a transformar no melhor instrumento de propaganda ao serviço do regime. Mal se iniciaram as emissões regulares da RTP, logo a presença de Caetano se tornou frequente no écran, encarnando — na falta de Salazar — a personificação do regime: 110 “Fui o primeiro membro do Governo a utilizar a TV para expor ao País, em Junho de 1957, problemas de interesse geral. (...) Não imaginava que, anos antes, como chefe do Governo, ele me seria de tanta utilidade para o estabelecimento de uma corrente de comunicação entre mim e o povo português. Mas sabia, desde o início, que era o instrumento ideal para um Governo se tornar popular... se o merecesse“ (Caetano, 1977: 472). O precoce processo de instauração do serviço público de televisão em Portugal — antecedeu, por exemplo, a introdução da televisão pública em Espanha, Irlanda e Bélgica — só terá sido possível porque Marcelo Caetano estava sensibilizado e familiarizado com as novas formas do poder se relacionar com a Opinião Pública. Mesmo antes da criação da RTP, num discurso de 16 de Janeiro de 1956, Marcello Caetano afirmava veementemente: “A televisão é um instrumento de acção, benéfico ou maléfico, consoante o critério que presidir à sua utilização. O Governo espera que os dirigentes do novo serviço público saibam fazer desse instrumento um meio de elevação moral e cultural do povo português“ (Cádima, 1993: 30-31). O controlo da televisão por Marcelo Caetano começou a delinear-se desde o primeiro momento. Desde a condução dos primeiros estudos, a constituição da sociedade anónima, até à ocupação dos postos fundamentais ao controlo administrativo e programático do novo serviço público. Marcello Caetano marcou uma clara posição no seio do próprio regime, recrutando os elementos da sua confiança pessoal e institucional na União Nacional e na Mocidade Portuguesa, organizações que conhecia muito bem. Segundo uma detalhada investigação de Francisco Rui Cádima, a institucionalização do modelo burocrático de informação como novo discurso de propaganda é feita gradual mas solidamente. O alinhamento dos serviços noticiosos demonstrava um rigoroso respeito pela hierarquia política, dando prioridade às agendas ministeriais e das principais figuras do regime. O controlo político da informação televisiva respeitou as “grandes estratégias censurantes e persecutórias do regime e o seu desígnio político global“, dedicando-se à “omissão das opiniões discordantes das do regime e das suas estratégias, ou tão somente pela sua exclusão da ‘esfera pública’ enquanto campo autónomo, enquanto esfera de singularidades“ (Ibidem: 334-340)37. 37 Num segundo momento, nas direcções de Manuel Múrias e Ramiro Valadão, a introdução dos comentários e editoriais radicaliza a função ideológica da televisão. A vulgarização da opinião nos noticiários é uma das principais medidas para a uniformização e controlo absoluto da informação. 111 Apesar de pouco valorizada por Salazar, a televisão pública foi, nomeadamente através dos serviços noticiosos, o melhor veículo popular de transmissão do ideário do regime. Pela sua efectiva influência e pela sua eficaz instrumentalização, a RTP constitui-se gradualmente num dos principais responsáveis pela manutenção do regime político e social em vigor. Curiosamente, a estratégia de instrumentalização política da televisão era ainda mais ambiciosa, prevendo a extensão deste importante serviço público ao espaço ultramarino. Os números referentes ao pagamento da taxa aplicava aos aparelhos de televisão são esclarecedores da rápida expansão da recepção da televisão. Tabela n.º 18 Números de televisores sujeitos a taxa em Portugal (1957-69) (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE). Ano 1957 1958 1959 1960 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 Aparelhos 2.519 17.569 31.266 46.372 89.642 151.464 180.095 213.775 271.025 305.878 347.188 O alcance da televisão foi crescendo vertiginosamente ao longo da primeira década. Para além do número de aparelho vendidos, é importante recordar que muitos deles funcionavam em espaços de convívio público, como cafés ou sociedades recreativas, e isso aumentava ainda mais a sua potencial audiência. Mesmo que inicialmente fosse um fenómeno eminentemente urbano, a televisão foi chegando mais gradualmente aos espaços rurais do país e, só na década de 70, aos arquipélagos da Madeira e dos Açores (Teves, 2007c: 1). Por outro lado, a própria RTP foi aumentando a oferta, primeiro com o alargamento do horário de emissão38 e posteriormente com a 38 Iniciou as sessões apenas em horário nocturno (21h30 às 23h) à semana, com um suplemento ao final da tarde (18h às 19h) aos Domingos; a partir de 1959 passou a emitir das 20h30 às 23h30 (semana) e um complemento das 17h30 às 18h30 aos Domingos; a partir de 1964, o horário é alargado para as 15h30 às 18h30 e 18h45 às 24h aos dias de semana e das 12h15 às 13h30 e das 15h às 24h aos Domingos. 112 oferta de mais canais: o segundo canal a partir de 25 de Setembro de 1968, a RTP Madeira a partir de 6 de Agosto de 1972 e a RTP Açores a partir de 10 de Agosto de 1975. Nos primeiros anos de emissões, o cinema ocupou um lugar de destaque na grelha de programação da RTP, particularmente o cinema de ficção. No entanto, com o passar dos anos, o cinema de género documentário foi ganhando protagonismo e ocupando mais espaço na grelha de programação. Na tabela seguinte, estão registadas as horas de emissão de programas de e sobre cinema e o total de horas de emissão da televisão pública. Tabela n.º 19 Horas de emissão de programas de e sobre cinema (1964-74) (fonte: Anuários da RTP) Ano 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 Total de horas de emissão da RTP 2309 2359 2930 2996 3127 3166 2547 3820 3923 5105 5231 Total de horas da programação de cinema 180 (7,80%) 144 (6,10%) 168 (5,73%) 147 (4,91%) ? 221 (6,98%) 262 (10,29) 262 (6,86%) 274 (6,98) 652 (12,77%) 548 (10,48%) A programação de cinema na televisão pública começou por ser assegurada pela secção de Cinema e Noticiários, que integrava os serviços de produção da televisão pública. A direcção desta secção estava entregue a Manuel Figueira, jornalista com fortes relações pessoais a diversas figuras do universo cinematográfico, nomeadamente Artur Ramos, João Baptista Rosa e o jovem Fernando Lopes. Domingos Mascarenhas, um crítico de cinema afecto ao regime vigente a quem se atribuiu a expressão “a TV é o cinema dos pobres“ (Teves, 2007a: 6), desempenhou o cargo de chefe dos Serviços de Produção e Programas nos primeiros anos da televisão pública. Um desencontro com Manuel Figueira (seu subordinado hierárquico) terá estado na origem da saída de Mascarenhas dos quadros da RTP, em Março de 1959 (Ibidem). Em Dezembro de 1963, seria o próprio Manuel Figueira quem acabaria por deixar a RTP para se dedicar ao jornalismo impresso (Idem, 2007b: 7). 113 Até à saída de Domingos de Mascarenhas da televisão pública, a programação era definida por este e por Artur Ramos. Ironicamente, esta programação era então definida em diálogo entre um integralista afecto ao regime, já então de tendência marcelista, e um jovem realizador com ligações à oposição cultural ao regime. Artur Ramos acabaria por ser exonerado da RTP em 1961, “por informação da PIDE“ (Idem, 2007b: 6). O realizador acabaria por voltar à televisão pública em 1969. Entre os colaboradores mais influentes desta secção destaca-se o nome de Baptista Rosa, responsável pelas equipas de filmagem e de edição da produção própria da RTP. Para além destas funções, Baptista Rosa era também um “gerador de ideias“ e “idealizador de situações“ (Idem, 2007a: 8). Nos primeiros anos, Baptista Rosa tinha pouca disponibilidade pelas frequentes solicitações para longas missões no estrangeiro, nomeadamente no acompanhamento de viagens oficiais de estadistas portugueses. No entanto, com a formação de novos recursos humanos, Baptista Rosa ficou mais disponível para projectos mais pessoais. A rubrica Cinema 57 – o título da rubrica era composto pela palavra Cinema seguida do número do ano em que era produzido, denunciando precisamente uma vontade de acompanhar a actualidade cinematográfica – foi o primeiro programa sobre cinema exibido na televisão pública, logo no terceiro dia de emissões regulares. Produzido e apresentado por Baptista Rosa e Fernando Frazão, o programa de actualidades cinematográficas só haveria de se tornar regular a partir de 1962. Entre 1966-67 contaria também com a colaboração recorrente do realizador Oliveira Pinto. Apesar de um ritmo bastante irregular, o programa continuou em antena até 1974. Em Janeiro de 1960, a RTP emitiu o primeiro programa de uma série dedicada ao cinema que haveria de ganhar o estatuto de programa de culto para as primeiras gerações de telespectadores portugueses. Apresentado por António Lopes Ribeiro (o cineasta oficial da Política do Espírito de António Ferro) e com acompanhamento musical do maestro António Melo, o Museu do Cinema era anunciado aos telespectadores como um programa de retrospectiva do cinema mundial. O Museu de António Lopes Ribeiro fazia jus ao nome ao pretender dar a conhecer as obras mais significativas da arte cinematográfica. O formato do programa era muito simples: António Lopes Ribeiro apresentava e comentava a exibição de algumas obras seleccionadas como as mais representativas da história do cinema e o maestro António Melo acompanhava ao piano a projecção dos filmes mudos. Emitido durante década em meia, com cerca de 400 programas transmitidos – embora com alguns interregnos significativos de vários meses 114 e episódios em reposição – o Museu do Cinema foi sobretudo um importante divulgador da cultura cinéfila e da arte cinematográfica. Foi através deste programa que milhares de cinéfilos portugueses tiveram um primeiro, ou mesmo único, contacto com obras de referência fundamentais da história do cinema mundial.39 Para além de algumas emissões avulsas ou excepcionalmente integradas em rubricas dedicadas a filmes de longa-metragem, a RTP teve duas rubricas especializadas na emissão de curtas-metragens onde foram emitidos filmes de origem portuguesa: Cinema sem Estrelas e Cinemateca. Em Novembro de 1967, a RTP inaugurou, na sua programação, uma nova rubrica de temática cinematográfica. Produzida e apresentada por Baptista Rosa, Cinema sem Estrelas apresentava-se aos telespectadores como um exigente espaço de divulgação de um cinema alternativo contemporâneo, destinado a um público específico e interessado: “O que aconteceu ontem na Televisão portuguesa pode ter um grande significado. Pode ter sido a semente de ‘qualquer coisa’. Chamemos a essa qualquer coisa, por exemplo, o ‘cineclube de nós todos’, a antologia de cinema que a Televisão podia oferecer a todo o País. Sim, porque não me venham dizer que as pessoas inteligentes que ainda existem por essas vilas, por essas aldeias estejam condenadas, por toda a eternidade, a assistir às Maravilhas do Desmiolamento Universal, transmitidas nas ‘Noites de Cinema’… Não. Isso não é justo. Devia ser proibido por lei“ (Mário Castrim apud Diário de Lisboa, 7-VIII-1968: 6). O formato deste programa era muito semelhante ao popular e já citado Museu do Cinema de António Lopes Ribeiro. Baptista Rosa seleccionava, apresentava e comentava os filmes emitidos mas, por se tratar de cinema mais actual, por vezes, a rubrica poderia apresentar entrevistas e reportagens com os realizadores ou protagonistas. Pelas curtas seleccionadas, Cinema sem Estrelas aparenta ser um espaço dedicado ao filme documentário e particularmente ao novo cinema de origem europeia. Os filmes seleccionados eram sobretudo obras premiadas num circuito cinematográfico muito específico – o circuito dos festivais de cinema de prestígio internacional – referenciadas como os mais representativos das renovadas cinematografias europeias.40 39 Speed Kings (1915), de Bobby Burns e Walter Stull (emitido a 29.05.1960); O Fantasma da Ópera (1925), de Rupert Julian e Lon Chaney (17.07.1960); His Trust (1911), de David Griffith (24.07.1960); The Great Train Robbery (1903), de Edwin S. Porter (31.07.1960); A Temporary Truce (1912), de David Griffith (21.08.1960). 40 Panta Rhei (1951), de Bert Haanstra (06.08.1968); Naissance du cinéma (1950), de Roger Leenhardt (09.12.1968); Het huis (1961), de Louis Van Gasteren (15.03.1969); Wild Highlands (1961), de Ian Ferguson (01.10.1969); Hoppity Pop (1946), Begone Dull Care (1949) e A Phantasy (1952), todos de Norman McLaren (05.12.1969); Le cinéma du diable (1967), de Marcel L'Herbier (11.03.1970). 115 Em Outubro de 1972, a emissão principal da RTP estreou Cinemateca, novo programa cinematográfico dedicado ao cinema português. Concebido à semelhança do Museu de Lopes Ribeiro, este programa conduzido por António Ruano apresentava-se essencialmente como um espaço de divulgação daquilo que o programa designava por “primitivo“ cinema português. “Veremos, portanto, o que vai ser a ‘Cinemateca’ que não queremos avaliar na primeira emissão. Pois ainda acredito que as ‘promessas’ falhem e a realidade do cinema as possa ultrapassar. Porque António Ruano não se garantiu de bagagem que suporta uma exposição correcta nem de qualidades de expressão que prendam o espectador ao material apresentado. (…) Ora: ‘Cinemateca’ deu os primeiros passos. E isto de gatinhar é sempre incómodo. Veremos lá mais para diante. Com desejos ardentes de que a ‘Cinemateca’ e o ‘Museu do Cinema’ não venham a colidir. Estará o trânsito bem arrumado no Lumiar?“ (Mário Castrim apud Diário de Lisboa, 21-X-1972: 6). De acordo com o Anuário RTP de 1972, as primeiras 9 emissões de Cinemateca foram dedicadas maioritariamente ao cinema português, sendo emitidos excertos dos filmes mudos Os Crimes de Diogo Alves (1909-11), Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) ou Mulheres da Beira (1923). Para além dos excertos, o apresentador fazia também comentários sobre temas da história do cinema português, como “Imitação portuguesa de Charlie Chaplin“, “A acção da Lusitânia Filmes“ ou “A actividade da Invicta Filmes em Portugal“. Mas, tal como Mário Castrim vaticinara, após a emissão do primeiro programa de Cinemateca, o reportório nacional parece ter-se esgotado e a produção terá recorrido a alguns filmes estrangeiros. Entre Março e Junho de 1973, a Cinemateca apresentava filmes dedicados a temas como “Actores americanos“, “Cinema cómico americano dos anos 20“ e “Ciclo Méliès“. Infelizmente, a imprensa da época não divulgava os filmes exibidos nesta rubrica e os Anuários RTP não foram publicados em 1973-74, pelo que não consegui estabelecer com completo rigor o corpus fílmico desta Cinemateca. Gradualmente, a emissão de filmes de curta-metragem produzidas para cinema foi sendo substituída, na grelha da RTP, por produção interna da televisão pública. Dois dos exemplos mais significativos dessas curtas televisivas foram assinados por Augusto Cabrita, um activo da televisão pública: Viana e o seu termo (s.d.), emitido a 28-VIII1969; e Na corrente (s.d.), emitido a 31-XII-1969 e 15-II-1970. A RTP emitiu também três séries de filmes de pequena metragem produzidos por instituições públicas: a série Isto é Lisboa (produção da Câmara Municipal de Lisboa, 116 composta por dezenas de programas com duração entre os cinco e dez minutos emitidos entre 1959 e 1967); vários filmes produzidos pela Junta de Acção Social, emitidos entre 1959 e 1965, de frequência semanal, subordinados a temas como a prevenção de acidentes de trabalho e doenças profissionais, previdência social, ocupação dos tempos livres dos trabalhadores, entre outros; e vários filmes produzidos pela Agência Geral do Ultramar, emitidos em 1969, de frequência irregular, subordinados a aspectos turísticos e culturais das províncias ultramarinas. No que diz respeito à emissão de longas-metragens, as portuguesas ou de coprodução portuguesa foram as primeiras a ser escolhidas pelos programadores da RTP. Os filmes portugueses foram emitidos logo nos dois primeiros meses de emissões, preenchendo os serões das terças ou quartas-feiras. A emissão dos filmes era dividida em duas partes, sendo intercalada pelo principal serviço noticioso da grelha de programação. Depois de oito semanas consecutivas de emissão de longas-metragens, a RTP esteve longos oito meses sem emitir qualquer longa-metragem. Neste regresso, a emissão de longas abandonou o formato anterior, passando a ser emitido num único bloco e em horário posterior à emissão do serviço noticiário da noite. Em Fevereiro de 1958, depois de emitir 17 longas-metragens de produção ou coprodução portuguesa e apenas uma longa de origem estrangeira (El pórtico de la gloria, 1953, prod. Suévia Filmes), a RTP começou a emitir as primeiras longas em regime de reposição, um expediente que haveria de se vulgarizar e ser recorrente na programação de longas-metragens dos anos seguintes. Poucos meses depois, um crítico da TV Magazine lançava um alerta sobre a selecção dos filmes portugueses exibidos na televisão pública: “A nossa televisão, no louvável intuito de esclarecer o público sobre o que foi, e continua a ser, o cinema português, vem lançando a avalanche terrível das nossas principais peças arqueológicas fílmicas. Com uma breve pausa – que foi preenchida por um Colombo lírico e espanhol – têm desfilado ante os nossos olhos, arregalados e compadecidos, todos os monstros sagrados do nosso cinema. (…) - Que fins procura atingir a RTP, lançando dentro das nossas casas a fisionomia mazomba e grotesca de nosso cinema? Várias hipóteses se apresentam. Enumeremos: Pretende a RTP abalar a paz das nossas consciências? Deseja ela agitar ante os nossos olhos estarrecidos o lúgubre fantasma da ‘apagada e vil tristeza’ do nosso cinema? Quer ela levantar na nossa alma a onda do remorso? Pretende instaurar o terror, uma vez por semana, em nossas casas? Um desejo, simplesmente, divertirmo-nos? A esta última pergunta podemos, desde já, responder. Não. Pela nossa parte, este fúnebre tropel de cinzas não nos diverte absolutamente nada. Todos nós sabemos que estas diversas realizações cinematográficas – ‘Ribatejo’, ‘Pupilas…’, ‘Morgadinha’, etc. – foram tentativas honestas e bem 117 intencionadas. Mas infelizmente, isso, por si só, não chega.“ (J. Mota apud TV Magazine, 15-V-1958: 1). De facto, os filmes de fundo portugueses emitidos durante os primeiros anos da RTP privilegiavam sobretudo realizadores consagrados ou de cariz mais popular. Tanto uns como outros, eram essencialmente títulos produzidos nas décadas de 1930-40, ou seja, filmes com 20 ou mais anos de antiguidade. A partir de 1961, as longas-metragens começaram a ser exibidas na rubrica 7.ª Arte (emitida entre Julho de 1961 e Janeiro de 1968). Neste programa era emitida uma longa-metragem – a título de excepção foram exibidas algumas curtas – seleccionada e apresentada pelo realizador Fernando Garcia41, geral e maioritariamente de origem estrangeira. Em Abril de 1962, Fernando Garcia anunciou num dos programas que, a pedido de um grande número de telespectadores, a rubrica 7.ª Arte iria iniciar um ciclo exclusivamente dedicado ao cinema português. Em resposta a esta suposta “preferência dos telespectadores“, o crítico Dinis de Abreu punha o dedo na ferida: “Ora os filmes portugueses são tão poucos, tão fracos e tão vistos…“ (Rádio e Televisão, 14-IV-1962: 9). O modelo de emissão de longas-metragens, com apresentação e comentário prévio, foi gradualmente substituído a partir de finais de 1966. Surgiram então novos espaços de emissão – Noite de Cinema e Tarde de Cinema, que perdurariam até 1974 –, não passando de meros separadores na grelha de programação utilizados para anunciar a emissão de filmes de “grande metragem“. Ao contrário do que sucedeu durante a rubrica 7.ª Arte, em que a selecção dos filmes emitidos era assumida pelo seu apresentador, a selecção da Noite de Cinema e da Tarde de Cinema voltou a ser anónima aos olhos do telespectador. Nos últimos anos do período em estudo, a emissão das longas-metragens foi passando gradualmente para horários mais tardios, e um número significativo de filmes transitou para a segunda banda emissora. Esta perda de protagonismo deveu-se essencialmente ao aumento exponencial do tempo de emissão diário e à diversificação dos programas emitidos na grelha da televisão pública, nomeadamente o surgimento do 41 Estreando-se na realização de longas-metragens em 1949, com Heróis do Mar, o apresentador era um dos membros da depreciada “geração dos assistentes“, designação usada por diversos autores para classificar o grupo de realizadores que começaram a sua carreira como assistentes dos realizadores que constituíram o núcleo duro do projecto cinematográfico de António Ferro e porque a sua formação foi feita exclusivamente à base da experiência adquirida na produção. Antes de apresentar esta rubrica, Fernando Garcia fez parte de um núcleo de autores/críticos/jornalistas que, de uma forma comprometida, divulgavam e promoviam o cinema português que mais tarde seria baptizado pela crítica mais jovem como o “velho“ cinema português, em oposição ao Novo cinema português promovido pela geração de 1960-70. 118 popular Zip-Zip (1969), o pprimeiro talk show da televisão portuguesa que q alcançou um tremendo sucesso. Aindaa assim, já na década de 70, na tentativaa de melhorar a programação, aumentar o in interesse dos espectadores e fidelizar mais público, pú a Noite de Cinema passou a organizar ar com alguma frequência ciclos temáticos organizados o pelo crítico Luís de Pina. O gráfico seguinte apresenta ap a distribuição anual das longas-met etragens por país de origem. Nesta distribui uição usamos quatro categorias: produção portuguesa, p coprodução portuguesa, prod odução estrangeira e título não-discriminadoo. Por “produção portuguesa“ entendem-se ttodas as longas cujo produtor é português ou u onde o existe uma condição de co-produçãoo e um dos co-produtores é de origem portuguesa. p Por “produção estrangeira“ ent ntendem-se todas as longas em que os produt utores envolvidos não são de origem portugguesa. Por títulos não-discriminados entend ndem-se todas as longas cujo título não foi revelado re na programação publicada na imprens nsa consultada42. Gráfico n.º 5 Origem m das longas-metragens exibidas na RTP (fonte: dados compilados a partir p da imprensa generalista e Prontuário do Cin inema Português) 160 140 120 100 80 60 40 20 0 Produção Portugue uesa Produção Estrangeira 42 Títulos não-discri criminados Para consultar a lista integrall d de longas-metragens de produção ou co-produção port rtuguesa emitidas na RTP entre 1957 e 1974, ver Anexo xos, C. 119 A primeira conclusão que ressalta da análise destes dados parece óbvia: o cinema português começou por merecer o maior destaque por parte da televisão portuguesa mas, gradualmente, as produções cinematográficas de origem estrangeira foram ganhando terreno até que passaram a ser esmagadoramente hegemónicas. Se, no primeiro ano de emissões, o cinema português preencheu 91,7% das longas-metragens emitidas na televisão pública, essa importância foi decrescendo significativamente. Nos quatro anos seguintes, as longas-metragens de origem portuguesa ou de co-produção portuguesa ainda surgiam numa percentagem visível – valores entre os 30 e os 45%. No entanto, a partir de 1962, os valores passaram a ser residuais. Os anos de 1968 e 1970 podem ser considerados dois “ano zero“ do cinema português na televisão pública, pois em nenhum deles se encontra qualquer título de produção ou co-produção portuguesa entre as longas-metragens emitidas pela RTP. Ao longo do período em análise, a percentagem de todas as produções ou coproduções portuguesas cifra-se nos 8,5% de todas as longas-metragens emitidas pela televisão pública. Curiosamente, praticamente metade (56 em 114) das longasmetragens de produção nacional foram exibidas nos cinco primeiros anos do período em estudo (1957-1961). O período de maior escassez verificou-se entre 1965 e 1970, onde em seis anos apenas foram emitidas dez longas nacionais. O gráfico seguinte diz respeito apenas às longas-metragens de produção ou coprodução portuguesa. Neste estudo, a designação de “emissão de estreia“ refere-se à primeira emissão de um filme em televisão, enquanto a designação “emissão em reposição“ é aqui utilizada para designar todas as emissões de um filme registadas após a primeira emissão. Gráfico n.º 6 Comparativo entre longas-metragens portuguesas emitidas em estreia ou em reposição (fonte: dados compilados a partir da imprensa generalista e Prontuário do Cinema Português) 120 14 12 10 8 6 4 2 0 Longas-metrag agens portuguesas ou em co-produção emitidas em estre treia Longas-metrag agens portuguesas ou em co-produção emitidas em repo osição Praticamente metade de do total das emissões de longas-metragen ens em estreia na RTP (25 num total de 522 títulos) verificou-se nos dois primeiros anos an da televisão pública. Surpreendente é também o facto de a televisão pública não n ter estreado qualquer longa-metragem portuguesa durante mais de cinco anos de emissão, entre 1966 e 1970. Esta tendência de esq squecimento para com o cinema português,, quer q em estreias como em reposições, vinh ha-se tornado visível logo desde 1959. O que q os números revelam é que a RTP parece pa ter esgotado um reportório privileg egiado de filmes portugueses nos primeiross meses de emissões regulares. Logo no segun undo ano, apesar de estrearem catorze lon ngas, a televisão pública começou a emit itir as primeiras reposições, e logo em núm úmero considerável (mais de 40%). Esgotado do o “reportório“ inicial, ao invés de program ramar outros filmes inéditos, a RTP optou por or repor títulos já emitidos, numa intenção que qu seria aceitável caso tivesse sido acompanh nhada pela estreia regular de títulos inéditos. Nas 62 longas emitid idas em reposição entre 7 de Março de 19577 e 24 de Abril de 1974, os números també bém mostram uma desigualdade significa icativa. Entre os “campeões“ das reposiçõess encontram-se os seguintes títulos: - A Canção de Lisboa,, 5 emissões (1957, 1958, 1961, 1966, 1973); 121 - Chaimite, 5 emissões (1957, 1958, 1961, 1964, 1969); - O Pátio das Cantigas, 5 emissões (1961, 1961, 1972, 1972, 1974); - Aniki Bóbo, 4 emissões (1960, 1963, 1967, 1970); - A Canção da Terra, 4 emissões (1957, 1958, 1961, 1966); - Fátima, Terra de Fé, 4 emissões (1958, 1959, 1964, 1966); - Frei Luís de Sousa, 4 emissões (1957, 1958, 1959, 1964); - O Grande Elias, 4 emissões (1959, 1971, 1971, 1973); - O Pai Tirano, 4 emissões (1961, 1961, 1971, 1972); - As Pupilas do Senhor Reitor, 4 emissões (1958, 1959, 1964, 1971); - Ribatejo, 4 emissões (1958, 1959, 1964, 1971); - Sonhar é Fácil, 4 emissões (1957, 1959, 1961, 1971); - Ala-Arriba, 3 emissões (1958, 1959, 1964); - Duas Causas, 3 emissões (1958, 1962, 1969); - Maria Papoila, 3 emissões (1961, 1965, 1973); - O Noivo das Caldas, 3 emissões (1963, 1969, 1971); Assim, nos primeiros dezassete anos da sua programação, a RTP estreou apenas 52 longas-metragens de produção ou co-produção portuguesa. A tabela seguinte apresenta a distribuição dos filmes emitidos na RTP pelos seus anos originais de produção e compara esses dados com o número de filmes estreados em sala no mesmo período. Tabela n.º 20 Longas-metragens portuguesas exibidas na RTP (1957-74) (fonte: dados compilados a partir da imprensa generalista e Prontuário do Cinema Português) Ano de Produção 1930-34 1935-39 1940-44 1945-49 1950-54 1955-59 1960-64 1965-69 1970-74 Total Total de longas nacionais emitidas 8 14 24 30 27 7 1 3 0 114 Longas nacionais emitidas em estreia 3 6 8 18 10 5 1 2 0 52 122 Total de longas nacionais estreadas em sala 4 10 15 39 24 12 25 23 18 170 Num primeiro momento, a atenção recai na década de 1960. Das 52 longas exibidas pela RTP, apenas três foram produções estreadas em salas de cinema nos anos 60 (29 Irmãos de Augusto Fraga, Belarmino de Fernando Lopes e As Ilhas Encantadas de Carlos Vilardebó). Numa década em que 48 longas estrearam nas salas portuguesas, apenas três mereceram honras de transmissão na RTP: a primeira longa de um dos realizadores da casa e simultaneamente do Novo cinema português – Fernando Lopes; um filme de um dos mais populares realizadores do então designado “velho cinema“, o mais comercial de então – Augusto Fraga; e a primeira longa de um jovem lusodescendente produzido pelo jovem produtor António da Cunha Telles – Carlos Vilardebó, com Amália Rodrigues como protagonista. A segunda observação prende-se com os números do período 1945-49, cujas 18 longas emitidas em estreia representam cerca de 35% do total de filmes portugueses emitidos em estreia na RTP no período aqui em estudo. Se adicionarmos às 18 longas produzidas entre 1945-49 as dez longas produzidas entre 1950-54, então ficamos com um total de vinte e oito longas, ou seja, cerca de 55% de todas as longas emitidas em estreia. É certo que o período 1945-49 é igualmente o período da história do cinema português aqui em análise que estreou mais longas em sala (39), mas o mesmo não se passa com o período 1950-54, cujos filmes de estreias em sala (24) são semelhantes aos de 1960-64 (25) e 1965-69 (23). No período em estudo, num total de 170 longas de produção ou co-produção portuguesas estreadas nas salas comerciais portuguesas entre 1930 e 1974, a RTP apenas emitiu 52 desses filmes, ou seja, cerca de 30%. Se aceitarmos que as razões de exploração cinematográfica poderiam impossibilitar a exibição dos filmes mais recentes e excluirmos das longas “transmissíveis“ os filmes estreados entre 1970 e 1974, então pode considerar-se que a RTP emitiu cerca de 34% dos 152 filmes “transmissíveis“. Infelizmente, apesar de diversas tentativas, não foi possível apurar a origem das cópias dos filmes emitidas na RTP neste período. Ignoro, portanto, se a disponibilidade das cópias “transmissíveis“ possa ter influenciado de forma irremediável a selecção dos filmes por parte dos programadores. Mas não ignoro nem desvalorizo o facto do apuramento posterior destes dados poder distorcer significativamente as conclusões sobre os rácios de difusão em sala/televisão. 123 A tabela seguinte apresenta a distribuição do corpus dos filmes pelos seus respectivos realizadores, comparando em simultâneo os filmes que estrearam em sala com os filmes emitidos na RTP em regime de estreia e de reposição: Tabela n.º 21 Realizadores das longas-metragens portuguesas exibidas na RTP (1957-74) (fonte: dados compilados a partir da imprensa generalista e Prontuário do Cinema Português) Jorge Brum do Canto José Leitão de Barros Henrique Campos Arthur Duarte António Lopes Ribeiro Perdigão Queiroga Francisco Ribeiro José Cottineli Telmo Manoel de Oliveira Augusto Fraga Eduardo Maroto Fernando Garcia José Buchs Caetano Bonucci E. Chianca de Garcia Ladislao Vajda Alejandro Perla Armando Vieira Pinto Armando Miranda Carlos Vilardebó Fernando Lopes João Moreira Manuel Guimarães Total Total de longas emitidas Emitidas em estreia Emitidas em reposição 18 14 13 13 13 6 5 5 4 3 3 2 2 2 2 2 1 1 1 1 1 1 1 114 6 6 6 6 5 3 1 1 1 2 2 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 52 12 8 7 7 8 3 4 4 3 1 1 0 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0 0 62 Longas estreadas em sala até 1974 10 15 18 14 8 7 1 1 3 9 2 4 1 1 6 4 2 1 10 1 2 1 7 Pela distribuição da tabela, ordenada quantitativamente de forma decrescente pelo número total de filmes emitidos na televisão pública, constata-se que há um grupo de realizadores privilegiado em relação à quantidade de filmes emitidos. Entre os privilegiados, encontram-se quatro dos nomes fundamentais do núcleo de realizadores que monopolizou a produção cinematográfica durante as décadas de 1930 e 1940: Jorge 124 Brum do Canto viu emitidas seis das dez longas realizadas até 1974; Arthur Duarte viu emitidas seis das suas 14 longas; Leitão de Barros viu emitidas seis das suas 15 longas; António Lopes Ribeiro viu emitidas cinco longas em oito estreadas em sala. Destes quatro realizadores do núcleo duro de António Ferro foram emitidas 23 longas em estreia, ou seja, 44% do total de filmes emitidos em estreia pela RTP. Se ponderarmos os números dos filmes emitidos em regime de reposição pela RTP, o favorecimento destes quatro realizadores é ainda mais expressivo: 58 filmes num total de 114, ou seja, 50,9% das longas-metragens portuguesas emitidas pela RTP entre 1957-74. Para além destes nomes, destaque também para Henrique Campos, um dos realizadores mais profícuos da designada “geração dos assistentes“, que monopolizou a produção na década de 1950, de quem a RTP emitiu seis longas num total de 18. Francisco Ribeiro (o popular actor Ribeirinho) e Cottineli Telmo também merecem destaque porque apenas assinaram um filme de longa-metragem cada um, tendo os mesmos encabeçado a lista de filmes portugueses mais vistos na televisão pública no período em estudo, com cinco emissões cada um. O destaque negativo vai, naturalmente, para Chianca de Garcia, Armando Miranda e Manuel Guimarães. Em relação ao primeiro, também uma das figuras de destaque dos anos 30, a par de Brum do Canto ou Leitão de Barros, apenas foi emitida na RTP uma longa-metragem entre seis possíveis, ficando por emitir um dos títulos ainda hoje mais populares da história do cinema português como Aldeia da Roupa Branca (1939). Armando de Miranda, outro dos mais profícuos nomes da “geração dos assistentes“, também só viu emitida uma longa num total de dez. O polémico, e diversas vezes censurado, Manuel Guimarães também só viu emitida uma longa entre sete títulos disponíveis. No entanto, no caso do mais neorealista dos realizadores portugueses, constantemente “perseguido“ pela acção da censura e conotado com forças políticas de oposição ao regime, a maior estranheza é mesmo a escolha do único filme emitido: enquanto o reportório do realizador incluía uma comédia musical politicamente inócua como A Costureirinha da Sé, a RTP emitiu o drama de inspiração neo-realista Saltimbancos. Dos realizadores completamente “ignorados“ pela RTP – de quem não foi emitido sequer um único título de longa-metragem – encontram-se nomes como: Constantino Esteves, outro dos profícuos realizadores da “geração dos assistentes“, com nove longas estreadas em sala até 1974; António de Macedo, o mais produtivo da geração de jovens cineastas das décadas de 1960 e 1970, com quatro longas estreadas neste período; e 125 Pedro Martins, realizador de comédias com alguma popularidade e dos quadros da RTP que estreou três longas entre 1964 e 1973. De entre os realizadores que procuravam, por estes anos, a renovação estética e ética do cinema português, a RTP emitiu filmes de: Manoel de Oliveira – O Pintor e a Cidade (1956); do polémico Manuel Guimarães – O Desterrado, premiado como melhor documentário pelo SNI em 1949, e Saltimbancos (1951); do jovem António de Macedo – Crónica do Esforço Perdido (1967), prémio para melhor documentário do SNI em 1967; e do outro jovem Fernando Lopes – As Pedras e o Tempo (1961), Belarmino (1964) e Cruzeiro do Sul (1967). Da década de 1960, ficaram por emitir na televisão vários títulos premiados pelo SNI: Retalhos da vida de um médico (1962), de Jorge Brum do Canto; As Palavras e os Fios (1962), de Fernando Lopes; A Cruz de Ferro (1967), de Jorge Brum do Canto; O Cerco (1969), de António Cunha Telles. De resto, à excepção de Belarmino, o mesmo aconteceu com todas as longasmetragens de referência do Novo cinema português. Veja-se, por exemplo, o caso dos filmes produzidos por António da Cunha Telles: entre 1962 e 1969, o jovem produtor foi responsável pela concretização de dez filmes que integravam o esforço de renovação da década de 60, mas apenas dois foram emitidos na RTP. Se a este corpus incluirmos mais três filmes considerados como tentativas de renovação (casos de Dom Roberto, Pássaros de Asas Cortadas, Acto da Primavera, só para falar de filmes de longa-metragem dos anos 60), então a percentagem de filmes do renovado cinema português produzidos na década de 60 emitidos na RTP cifra-se nos 15,4%. Em suma, neste período, a influência da RTP sobre o cinema português foi ambígua: por um lado, ajudou a formar jovens técnicos e deu espaço a programas de entretenimento ou cultura cinéfila, mas também divulgou e ajudou a popularizar um cânone cinematográfico muito afastado do cinema português que era exibido nas salas na época, contribuindo para um afastamento gradual do público português em relação ao seu próprio cinema. 2.2.3. As bolsas de estudo A partir da chegada de Moreira Baptista, o Conselho de Cinema começa a atribuir algumas verbas destinadas à abertura de concursos públicos para a concessão de bolsas de estudo destinadas à investigação que visassem o aperfeiçoamento técnico e artístico, 126 à formação de jovens portugueses em reputados estabelecimentos de ensino estrangeiros (realização, montagem, operador de imagem, caracterização, técnico de laboratório, decoração), e subsídios para iniciativas de fomento à formação de quadros técnicos (Curso de Cinema do Estúdio Universitário da Mocidade Portuguesa). Em Novembro de 1961, a criação do I Curso de Cinema no Estúdio Universitário de Cinema Experimental da Mocidade Portuguesa assumia a pretensão de colmatar uma lacuna fundamental ao mercado cinematográfico: “é imprescindível uma escola que forneça uma preparação sistemática e organizada a um nível que poderemos chamar precisamente universitário“ (Filme, XII-1961: 34). Presidida pelo realizador Fernando Garcia, mas entregue à responsabilidade directiva de António da Cunha Telles, esta primeira escola técnica de cinema pretendia formar novos quadros técnicos para renovar os recursos humanos do sector cinematográfico português.43 Sobre este curso, Cunha Telles afirmaria que esta iniciativa pretendia “formar rapidamente uma camada de técnicos, e aproveitar uma certa predisposição do Fundo do Cinema Nacional para a concessão de bolsas aos alunos com as melhores classificações.“ Reforçando a qualidade deste curso, Cunha Telles lembra que existia um acordo com o IDHEC para permitir aos formandos deste curso a entrada directa para o segundo ano dos cursos de especialização dessa instituição francesa. Para confirmar as expectativas, uma parte significativa destes primeiros formandos desenvolveram profissionalmente as suas carreiras nas Produções Cunha Telles e no CPC, confirmando posteriormente a qualidade da formação ministrada (Telles, 1985: 51). Por outro lado, alguns alunos deste curso também puderam estagiar com alguns nomes de referência do velho cinema, procurando sobretudo uma integração destes novos técnicos na indústria cinematográfica portuguesa (Jornal de Letras e Artes, 18-VI-1962: 5). Em 1969, no seu estilo polémico habitual, o crítico de cinema e aspirante a cineasta João César Monteiro afirmava nas páginas do Tempo e o Modo: “Faço parte da primeira geração de cineastas cultos existentes em Portugal. Por cineastas cultos, entendo pessoas que repetidamente fizeram pelos anos 60 o trajecto que vai do extinto cinema Gaio à 43 Ao longo do primeiro ano, duas centenas de alunos iriam receber sobretudo uma formação técnica que os preparava para trabalhar na indústria cinematográfica. O segundo ano estava reservado apenas a quarenta alunos e aprofundava os conhecimentos teóricos e técnicos iniciados no primeiro ano. Entre o corpo docente dos dois primeiros anos, verifica-se um hegemonia de figuras ligados ao novo cinema: Fernando Lopes, Eduardo Prado Coelho, Alberto Seixas Santos, António da Cunha Telles, Paulo Rocha, João Bénard da Costa, Rui Mário Gonçalves, Mário Barradas, Constança Capdevilla e Alberto Ferreira. Depois desta primeira experiência, a iniciativa teria continuidade em 1968, com a segunda edição coordenada por Luís Machado e, em 1972, com a terceira edição (Celulóide, IX-1973: 13-14; Plateia, 21XI-1972: 12). 127 Cinemateca da rua d’Ulm ou ao National Film Theatre. Pessoas que conseguiram farejar praticamente todo o cinema que se tem feito e, melhor ou pior, foram tirando do que viram as conclusões que melhor se lhes impunham.“ (O Tempo e o Modo, 69-70, III/IV-1969: 407). Numa entrevista ao Le Monde, por ocasião da Semaine du Jeune Cinema Portugais em Nice (1972), o cineasta Alberto Seixas Santos subscreve a ideia de Monteiro e afirma peremptoriamente: “Viemos para o cinema com uma bagagem intelectual diferente da dos nossos predecessores, com uma verdadeira cultura cinematográfica…“ (Seixas Santos apud Plateia, 582, 26-III-1972: 3). Paulo Rocha, outro cineasta da década de 1960, considera também a experiência europeia como estruturante da cultura cinéfila desta geração, sobretudo a influência das correntes de renovação das principais cinematografias europeias, onde aprenderam a entender o cinema como uma experiência artística e estética (Monteiro, 2000: 312). Na década de 1960, a afirmação do designado novo cinema português pressupunha uma ruptura radical com todo o passado cinematográfico português, poupando apenas alguns nomes à mediocridade dominante. As duas principais excepções eram Manoel de Oliveira e Manuel Guimarães, dois exemplos de uma ética singular e de um percurso marginal. Esteticamente, as referências desta geração eram quase exclusivamente estrangeiras. Assumindo uma ruptura com todo o passado, a nova geração pretende apoiar a sua afirmação na negação dos métodos e técnicas cinematográficas característicos do cinema português de então, criticando ainda a forte dependência do velho cinema de áreas do entretenimento com poucas afinidades com a estética cinematográfica, nomeadamente o teatro de revista ou o designado nacional-cançonetismo. Em rigor, esta geração que se pretendia afirmar como a “primeira geração de cineastas cultos portugueses“ deveria ter-se afirmado como “a primeira geração de cineastas portugueses formados no estrangeiro“. Apesar de alguns dos seus antecessores terem feito visitas de estudo a vários estúdios e laboratórios europeus, casos de António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros ou Manoel de Oliveira, a geração do novo cinema foi a primeira geração do cinema português a receber formação intensiva em centros de formação especializados. Mas convém sublinhar que, para esta geração, o facto de terem tido uma formação no estrangeiro, em cursos especializados, dotava-os, pela primeira vez na história do cinema português, de uma “verdadeira“ e “inédita“ cultura cinematográfica. 128 Para o desenvolvimento desta suposta “inédita cultura cinéfila portuguesa“ concorreram dois factores decisivos. O primeiro foi o contacto com os principais textos cinematográficos produzidos em toda a Europa, através da leitura de revistas de referência como as francesas Cahiers du Cinema e Positif ou as italianas Bianco & Nero e Cinema Nuovo. Na transição para a década de 60, este novo tipo de literatura vinda do estrangeiro veio quebrar uma relativa uniformidade crítica no panorama português, originando algumas querelas estéticas que iriam dominar as décadas seguintes. A leitura das revistas de cinema estrangeiras passou a ser o principal foco de dinamização das principais tertúlias cinéfilas lisboetas. Mais do que um mero exercício individual de leitura, estas publicações europeias fomentaram a formação de grupos constituídos por cinéfilos com maiores ou menores afinidades e cumplicidades estéticas e éticas. As tertúlias lisboetas mais célebres desses anos 60 eram conhecidas pelos nomes dos estabelecimentos onde tinham lugar – Martinho da Arcada, Brasileira do Chiado, Nicola, Café Gelo, Monte Carlo – e eram frequentadas por intelectuais, escritores, pintores, actores e encenadores de diversas afinidades ideológicas. Entre as tertúlias cinéfilas mais reconhecidas, destacavam-se sobretudo duas: a do “Vá-Vá“, um café da Avenida dos EUA que reunia sobretudo cinéfilos e universitários, e a do “Riba Douro“, um café da Avenida da Liberdade frequentado por pessoas da televisão e do Parque Mayer. A estas tertúlias ficariam ligados dois filmes fundamentais no início da década de 60: “Belarmino, escrito e dirigido por dois homens do ‘Riba Douro’, Baptista-Bastos e Fernando Lopes, e Os verdes anos, de Paulo Rocha, cuja derradeira e dramática cena se desenrola precisamente no ‘Vá-Vá’“ (Cinema Novo Português, 1985: 10). Ao longo dos tempos, diversos partidários destas tendências alimentaram acesas polémicas estéticas e éticas. No fundo, estes cinéfilos reproduziam em Portugal os mais intensos debates sobre cinema que se desenrolavam em diversas cinematografias europeias. O segundo factor decisivo seriam os já citados cursos de formação e estágios no estrangeiro de vários aspirantes promovidos pelo Fundo Nacional de Cinema e, posteriormente, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Reconhecendo a inviabilidade da designada “geração dos assistentes“ em garantir a renovação do cinema português, o Estado – através do recém-criado Fundo Nacional do Cinema – começou por promover medidas que visavam fomentar a renovação na indústria nacional de cinema: abertura de concursos públicos para a concessão de bolsas de estudo destinadas à investigação que visem o aperfeiçoamento técnico e artístico, à formação de jovens portugueses em 129 reputados estabelecimentos de ensino estrangeiros (realização, montagem, operador de imagem, caracterização, técnico de laboratório, decoração). Assim, entre 1958-68, o Fundo do Cinema Nacional atribuiu um total de 18 bolsas, assim distribuídas: Paris (6 bolsas): João Moreira de Carvalho (1958, Imagem); Manuel Costa e Silva (1959, Institute Des Hautes Études Cinematographiques); António da Cunha Telles (1959, IDHEC); Alfredo Tropa (1961, IDHEC); Teresa Olga Monteiro Lopes (1963, IDHEC); Lídia Ferreira de Sá Gouveia (1964, IDHEC, Decoração); Londres (5 bolsas): Fernando Lopes (1959, London School of Film Technique); Marques Lopes (1959, LSFT); Faria de Almeida (1961, LSFT); Eduardo Ferros (1961, LSFT); Fernando Matos Silva (1964, LSFT); Madrid (4 bolsas): José Joaquim Pereira (1958, Imagem); Martins dos Santos (1959); Adriano Cardoso Nazareth (1963, Imagem); Fernanda Pires dos Santos (1963, Montagem); Outros (3 bolsas): Manuel António Fernandes (1958, Caracterização); Maria da Glória Murteira Peres (1958, Laboratório); José Henrique da Conceição (1958, Laboratório); Respondendo a diversos apelos de vozes críticas em favor de uma intervenção da instituição no cinema, a partir de 1961, a Fundação Gulbenkian seguiu a mesma estratégia que tinha seguido em relação a outras áreas culturais e artísticas. Para além de financiar iniciativas pontuais (festivais de cinema, cineclubes, cinema amador), a instituição apostou essencialmente na concessão de bolsas de formação a diversos jovens aspirantes a realizadores. Entre 1961-74, a Fundação Gulbenkian atribuiu um total de 19 bolsas, assim distribuídas: Londres (10 bolsas): Eduardo Guedes (1961-63, LSFT); António Campos (1961, LSFT); Abel Santos (1961, LSFT); António Escudeiro (1962-63, LSFT); Alberto Seixas Santos (1963, LSFT); João César Monteiro (1963, LSFT); José de Sá Caetano (1963, LSFT); João Matos Silva (1968, LSFT); Jorge Silva Melo (1969-70, LSFT); António Jorge Marques (?, SFS); Paris (4 bolsas): António-Pedro Vasconcelos (1961-63, Filmologia na Sorbonne, orientação de Georges Sadoul); António da Cunha Telles (1970); Noémia Delgado (1973?, IDHEC); Solveig Nordlund (1973-74, IDHEC); 130 Outros (5 bolsas): Manuel Guimarães (1963); Teixeira da Fonseca (1964, RAI, Itália); Manuel Costa e Silva (1966, EUA); Elso Roque (1967); António da Cunha Telles (1969, EUA); Os resultados destas formações foram evidentes.44 A maioria destes nomes participou no processo de renovação do cinema português que caracterizou as décadas de 60-70 estão inscritos entre os bolseiros destas duas instituições. Mas, para além dos cursos de formação e estágios no estrangeiro, diversos jovens cinéfilos rumavam a Londres e Paris para se documentarem ou recrearem. Entre as paragens obrigatórias desses jovens cinéfilos encontravam-se as principais Cinematecas, salas de cinemas emblemáticas (National Film Theatre em Londres ou Cinema Gaio em Paris) e prestigiados espaços culturais. António-Pedro Vasconcelos relembra: “(...) quando comecei a perceber que o cinema ia ser a minha vida, a primeira coisa que quis foi ver os filmes do passado que haviam inspirado os cineastas que eu admirava. Não havia vídeo, em Portugal a televisão estava a começar, havia a censura, e a Cinemateca raramente fazia retrospectivas. Restava ir para Paris, onde, graças ao génio visionário de Henri Langlois, que tinha ‘inventado’ a Cinemateca, era possível ver todos os filmes do mundo.“ (Vasconcelos, 2008: em linha). Fernando Lopes (apud Cinema Novo Português, 1985: 73) refere também que, em Londres, para além da escola de cinema era frequentador assíduo do “National Film Theatre onde, finalmente, pude ver todos os clássicos que sonhava“. Alberto Seixas Santos (apud Ibidem: 145) lembra que, durante a sua estada em Paris, ele e AntónioPedro Vasconcelos eram espectadores assíduos das “três sessões da Cinemateca Francesa“. Num inquérito promovido pela Cinemateca Portuguesa em 1985 (Ibidem: 71-81), a propósito da primeira retrospectiva do novo cinema português, uma das principais questões dizia respeito às influências de cinematografias estrangeiras: Considera que os seus filmes (tanto ao nível da produção, como ao nível estético) se filiam, ou foram 44 Para além destes bolseiros do Fundo do Cinema e da Gulbenkian, outros cineastas e aspirantes receberam diversas formações no estrangeiro. Nas minhas pesquisas, consegui identificar, pelo menos, 8 casos: Artur Ramos (1951, IDHEC, bolsa paga pelo governo francês);, Paulo Rocha (1959-61, IDHEC, expensas próprias); José Fonseca e Costa (1961, Itália, estágio com Antonioni, expensas próprias); Luís Couto (1960?, Madrid); Luís Galvão Teles (1968-70, Paris); Eduardo Elyseu (19??, LSFT); Frederico Ferrão Katzeinstein (19??, LSFT); Manuel Orvalho Teixeira (19??, LSFT). 131 influenciados, em movimentos internacionais? Dos dez inquiridos, sete45 responderam afirmativamente: todos sentiam que a sua produção cinematográfica da época sofreu influências do que leram ou viram. Apesar da heterogeneidade de proveniências cultural e sócio-económica dos diversos bolseiros — acesso à cultura, os hábitos de leitura e outros aspectos conjunturais —, a estadia no estrangeiro influiu significativamente a forma de esta geração de cineastas revelados nas décadas de 60-70 a entender e de conceber o cinema. Em 1964, o sociólogo português Adérito Sedas Nunes não tinha dúvidas em concluir que a “modernização“ cultural e sociológica que a sociedade portuguesa então vivia se devia em grande medida à crescente abertura às influências exteriores, sobretudo europeia: “acesso à visão, e mesmo à vivência imaginária, de outras sociedades, outras condições de vida, outras formas de pensar e agir“ (Nunes, 2000: 50). A passagem de vários indivíduos por sociedades europeias permitiu que os “horizontes mentais“ e o “campo social de referência dos seus comportamentos, ideias, aspirações e decisões“ se abrissem a “uma nova dimensão“ e assumissem “novos elementos e perspectivas“ (Ibidem: 51). Para além da circulação de bens e mercadorias, que não são apenas comerciais, mas “também contactos humanos e sociais“, há ainda a registar a efectiva movimentação de pessoas pelas fronteiras da metrópole: “Ora, os passageiros entrados, que foram, em 1947, cerca de 131 mil, atingiram, em 1962, 970 mil (acréscimo de 639%); e os passageiros saídos, que não excederam 149 mil naquele ano, subiram a mais de um milhão (1014,4 milhares) em 1962 (acréscimo de 581%). Digamos que, em 15 anos, o movimento sextuplicou, grosso modo.“ (Ibidem: 48) A par destas passagens de indivíduos pela fronteira que são contabilizáveis, Adérito Sedas Nunes chama a atenção para “outros fenómenos relevantes“ de que não existe informação estatística utilizável: “Assim é com a difusão do conhecimento de idiomas estrangeiros, mormente sensível em camadas jovens da classe média (…); assim é também com a multiplicação e o provável alongamento das permanências de portugueses noutros países na qualidade de estudantes, bolseiros, técnicos, homens e negócios, participantes em organismos e reuniões internacionais ou até simples turistas“ (Ibidem: 50). Entre estes últimos encontravam-se diversos praticantes do turismo cultural e artístico ou, mais concretamente, do “turismo cinéfilo“. Desde 45 Faria de Almeida, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Ernesto de Sousa, António da Cunha Telles e Luís Galvão Teles. 132 meados dos anos 50, diversos jovens cinéfilos portugueses rumavam a Londres e Paris para se documentarem ou recrearem. Devido ao apertado clima de censura prévia vivido no Portugal de então, muitos dos filmes referenciais da história do cinema mundial estreavam no nosso país com alguns cortes dos censores ou nem sequer tinham autorização para estrear em território português, como no caso dos cineastas soviéticos. Por outro lado, os interesses económicos dos distribuidores e exibidores portugueses eram também pouco sensíveis aos apelos dos espectadores com hábitos de consumo minoritários, não tentando sequer importar para Portugal filmes que não dessem garantias mínimas de retorno financeiro, o que deixava de parte diversos filmes que não circulavam nos circuitos comerciais internacionais. O sociólogo remata com a seguinte conclusão: “ocorre como que uma progressiva diluição ou evanescência das fronteiras enquanto limites sociais e culturais“ e cada vez mais os indivíduos “tendem a agir, pensar, sentir e desejar, não já em função apenas de estímulos, imagens, oportunidades, solicitações e concepções internos à sociedade onde nasceram e onde estão, mas também em função de estímulos, imagens, oportunidades, solicitações e concepções recebidos do exterior da sociedade, ou nesse exterior apercebidos, através do contínuo fluxo de informação“ (Ibidem). Numa reflexão ensaística sobre juventude, rebeldia e resistência nos anos 60 em Portugal, Rui Bebiano lembra que a generalidade dos jovens dessa época “olhavam e liam“ a sociedade à qual pertenciam “como se não fizessem parte dela, desenvolvendo uma forma de alteridade cultural – capaz de conter ideias, aspirações, costumes, atitudes, modos de ser, de parecer e de existir, pelos quais se distinguiam das gerações mais velhas – que se confrontava com a cultura dominante, rejeitando-a e, quando confrontada com a impossibilidade de a contrariar, procurando escapar-lhe.“ (Bebiano, 2003: 98) No caso particular dos jovens cinéfilos, a importação de “estímulos, imagens, oportunidades, solicitações e concepções“ foi fundamental na materialização de uma oposição fílmica que, em termos escritos, vinha já sendo divulgada desde a década de 1950. O contacto com cinematografias estrangeiras, desde as obras clássicas aos movimentos de ruptura, forneceu aos cinéfilos mais inconformados com o cinema português uma base de comparação onde estes reviam as suas objecções culturais e estéticas. 133 2.2.4. Os festivais internacionais de cinema Parece evidente que a atribuição de bolsas em instituições de formação técnica e superior no estrangeiro era já um sintoma de um processo de internacionalização que parecia ser prioritário para o novo SNI de Moreira Baptista. Neste contexto, a participação de filmes portugueses em festivais internacionais de cinema, sobretudo na Europa e na América Latina, também vai ser uma aposta muito importante por parte dos dirigentes políticos. De acordo com os dados que consultei nos processos de participação em festivais de cinema gerados pelo próprio SNI/SEIT, depositadas no fundo do Secretariado Nacional de Informação preservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não tenho dúvidas em afirmar que a partir de 1958 é notória uma nova estratégia de promoção internacional tentada pelo SNI com apoio claro de vários produtores, promovendo uma mudança de paradigma no cinema português que, em última análise, significou uma ruptura com os projectos anteriores de um cinema nacional para um público português (ou luso falante) e uma aproximação estética ao cinema moderno das novas vagas europeias. Até 1958, com a chegada de César Moreira Baptista à direcção do SNI, não havia qualquer estratégia de circulação de filmes pelos festivais de cinema europeus. No fundo, a presença de filmes portugueses dependia muito do dinamismo dos seus produtores ou distribuidores, que apostavam sobretudo na presença em festivais para rentabilizar comercialmente o filme e tentar vendê-lo para mercados estrangeiros. Uma das excepções aconteceu a propósito da participação de Portugal no Festival Internacional de Cinema de São Paulo em 1954. Dada a importância histórica desse evento, o SNI organizou a presença portuguesa e a delegação que viajaria, optando pela escolha da longa-metragem O Cerro dos Enforcados (1954), de Fernando Garcia, sobretudo por adaptar um conto de Eça de Queiroz. Outra das excepções aconteceu no Festival de Cannes de 1959, quando Portugal apostou fortemente na apresentação de Rapsódia Portuguesa, uma realização de João Mendes e escrita por Fernanda de Castro a partir de uma ideia de António Ferro. A presença deste filme em Cannes foi acompanhada por uma significativa operação de marketing que incluía oferta de brindes (barretes de campinos, chinelos e vinho do porto), figuração folclórica, publicidade nos jornais locais e a preparação de uma importante delegação com a presença de Amália Rodrigues e António Vilar. 134 Em Julho e Outubro de 1961, o SNI enviou a diversos festivais de cinema internacionais uma nota oficiosa que esclarecia os organizadores que, ao abrigo do Decreto-lei 31.134 (de 24 de Novembro de 1944), qualquer participação de filmes portugueses em eventos cinematográficos internacionais terá de ser mediada pelo SNI. De acordo com o diploma, no seu artigo 19.ª, “a exportação de filmes portugueses para o estrangeiro“ dependia “de autorização do Secretariado, do seu parecer favorável ou da aprovação prévia dos argumentos e elencos técnicos e artísticos“ (…). Por alguma razão que não consegui ainda apurar, o SNI sentiu necessidade de, quase 20 anos após a publicação desse diploma, lembrar aos organizadores dos eventos cinematográficos internacionais que queria tutelar a exportação do cinema português, quer fosse de carácter permanente (vendas de cópias para o circuito comercial) como temporária (empréstimo de cópias para o circuito não-comercial). A minha análise centra-se no conteúdo de 15 caixas com 261 processos relacionados com organizadores de festivais de cinema internacionais depositadas no fundo do Secretariado Nacional de Informação preservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.46 Cronologicamente, os processos dizem respeito ao espaço temporal 1955-1968, assim distribuídos: Gráfico n.º 7 Participação de filmes portugueses em festivais de cinema internacionais (fonte: dados compilados a partir de ANTT, fundo SNI, caixas 11, 28, 73, 138, 543, 1019, 1360, 1487, 1554, 1606, 1692, 1806, 2092, 2112, 2127) 46 Nessas caixas fazem ainda parte 13 processos relativos a pedidos de apoio a festivais portugueses, assim distribuídos: Guimarães – 3 (Festival Nacional de Cinema de Amadores, 1966-67-68); Lisboa – 3 (Festival de Cinema de Lisboa, 1966; Concurso Nacional de Cinema de Amadores, 1967; Festival Internacional de Arte Cinematográfica de Lisboa, 1968); Angola – 2 (Luanda e Lobito); Barreiro – 1 (Concurso Internacional de Cinema Amador, 1968); Coimbra – 1 (Festival Internacional de Filme Amador, 1968); Leiria – 1 (Semana do Filme Religioso de Amador, 1968); Porto – 1 (Festival Internacional de Filmes de Amadores, 1967); Taveiro – 1 (Festival Ibérico de Cinema Amador, 1968). Até à data da elaboração do presente texto foram esses os processos localizados, mas acredito que, nos próximos anos, com o processo de tratamento arquivístico em curso, seja possível localizar novos processos referentes ao período posterior a 1968. 135 40 35 30 25 20 15 10 5 0 1955 1956 1957 1958 58 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 Geograficamente, oss processos dividem-se pelos seguintes paíse íses: 61 processos referentes a festivais em IItália (Bérgamo, Génova, Trento, Veneza, Florença, Fl Cortina D’Ampezzo, Salerno, Milão ão, Trieste, Tirrena, Roma, Novara e Pádua) a), 41 em França (Cannes, Paris, Tours, Roll olle, Marselha, Asniéres e Carcassone), 38 em Espanha (San Sebastian, Valladolid, Bilb ilbau, Barcelona, Santander, Benidorm, Coru runha, Saragoça, Múrcia, Le Felguera, Cala la D’Or) e 21 na antiga República Federall Alemã (Berlim, Manheim e Salzgitter), para ra além de vários outros países em vários contin tinentes.47 Tematicamente, oss processos dividem-se da seguinte forma ma: 11 festivais generalistas; 48 especializa zados em cinema de amadores; 26 em filmes turísticos; t 13 em curtas-metragens; 12 em cinema cin religioso; 11 em género documentário; o; entre outros.48 Para além destes pro rocessos de participação oficial, tenho vind ndo a inventariar outras participações feitas as à margem do SNI/SEIT, por iniciativa dos os produtores ou realizadores. Cito apenas aalguns exemplos: a participação de O Pinto tor e a Cidade de Manoel de Oliveira em Cork rk (Irlanda); a participação de Os Verdes Anos os de Paulo Rocha em Locarno (Suíça) ou Accapulco (México); a participação de Belarmin ino de Fernando 47 Canadá – 12 (Vancouver); Au ustrália – 11 (Sidney e Melbourne); Bélgica – 10 (Bru ruxelas, Antuérpia e Ostende); EUA – 9 (San Francisco co e Los Altos Hills); Escócia – 8 (Edimburgo); Irlanda – 8 (Cork); Japão – 6 (Tóquio); Áustria – 5 (Viena); México M – 5 (Cidade do México e San Angel); Suíça – 4 (Genebra e Nyon); África do Sul – 3 (Durban e Ble leomfontein); Andorra – 3; Colômbia – 3 (Cartagena); ); Brasil – 2 (Rio de Janeiro); Inglaterra – 2 (Londres es e Oxford); Suécia – 2 (Estocolmo); Uruguai – 2 (Mont ntevideu); Argentina – 1 (Mar del Plata); Chile – 1 (San antiago); Paquistão – 1. 48 9 de filme artístico; 9 de filme me desportivo; 6 de cinema etnográfico; 4 de filme industrial; in 3 de filme científico; e dança, agrícola e ind ndependente cada com 1. 136 Lopes em Pesaro (Itália); a participação de Mudar de Vida de Paulo Rocha em São Paulo (Brasil); a participação de Nojo aos Cães de António de Macedo em Bérgamo (Itália); Na década de 60, realizavam-se na Europa quatro importantes festivais classificados, pela FIAPF (Federação Internacional das Associações de Produtores de Filmes), como categoria A: Veneza, Cannes, Berlim e San Sebastian. Em torno desses quatro festivais funcionavam dezenas de outros de média e pequena dimensão que, geralmente, se especializavam num tema, género ou formato específico. Desses, os mais mediáticos seriam Bérgamo, Pesaro, Firenzi, Tours, Manheim, Oberhausen, Locarno, Bruxelas e Cork. Ainda paralelo a este segundo núcleo, identificam-se outros festivais em áreas geográficas ou ideológicas distintas: Karlovy Vary e Moscovo no mundo socialista; Acapulco e Mar del Plata na América Latina; Calcutá e Nova Dheli na Ásia; Nova Iorque, Montreal e Los Angeles na América do Norte. Veneza era o festival mais antigo, criado em 1932, ligado à Bienal de Arte de Veneza. Durante o regime fascista de Mussolini foi usado como instrumento de propaganda e chegou a premiar um filme de Leitão de Barros: Ala-Arriba (1942). Depois da Segunda Guerra Mundial, perdeu protagonismo devido a diversas polémicas relacionadas com a figura de Luigi Chiarini, seu director artístico até 1968. Entre 1959 e 1965, Portugal apresentou 11 filmes: Imagens de Portugal; Actualidades de Angola; Actualidades de Moçambique, Fabricação de Carruagens, Janela Aberta, Lisboa vista pelas suas crianças (1959); As Pedras e o Tempo (1961); Acto da Primavera (1962); Verão Coincidente, Dom Roberto (1962); Domingo à tarde (1965); em 1960 e 1964, o SNI informou a organização que não estaria em condições para enviar representante oficial. Tratando-se de uma participação oficial feita por convite, os participantes portugueses eram escolhidos pelo próprio SNI e não por um comité de selecção do próprio festival, como aconteceria décadas mais tarde. O festival de Cannes foi criado em 1938, com apoio oficial do governo francês com fins de promoção turística da região Côte d’Azur. Este festival tornou-se o mais importante com a afirmação internacional da nouvelle vague. Também viveu tempos conturbados sobretudo durante o Maio de 1968 mas soube renovar-se criando secções paralelas como a Quinzena dos Realizadores ou o Mercado do Filme. Entre 1858-62, Portugal apresentou três filmes: Sintra (1958), Rapsódia Portuguesa (1959) e As Pedras e o Tempo (1961). Em 1960 e 1962 não participaram. Entre 1960-68, Portugal participou, também em Cannes, nos Rencontres Internationales du film pour la jeunesse em quatro 137 edições: Açores (1960), Aniki-Bóbó (1961), Sintra (1962) e Pedro, o pequeno burguês (1965). O festival de Berlim, criado em 1951 com fins políticos, não exibia filmes do bloco soviético. O seu director Alfred Bauer apostou em jovens realizadores e na privatização do festival, o que lhe trouxe enorme prestígio no final dos anos 60. Entre 1958-65, Portugal apresentou oficialmente 9 filmes: Pescadores de Amangau (1958); Amadeo Souza-Cardoso (1960); Paixão de Cristo na Pintura Antiga Portuguesa (1961); Barqueiros do Douro (1962); Retalhos da Vida de um Médico, Faianças Portuguesas (1963); Nicotiana (1964); Domingo à Tarde, Sobre a Terra e Sobre o Mar (1965). Em 1959, Portugal apresentou o filme Rapsódia Portuguesa mas o filme foi rejeitado porque já tinha sido exibido em Cannes. Em 1964, os responsáveis do SNI ainda ponderaram apresentar Os Verdes Anos, “por representar uma nova tendência no nosso panorama cinematográfico“, mas acabou por desistir da ideia. O festival de San Sebastian, criado em 1953, perderia a classificação de categoria A entre 1958-66. Voltou a ser reconhecido pela FIAPF sob direcção de Miguel de Echarri. Entre 1958 e 1964, Portugal apresentou representantes oficiais quatro filmes: Flores, Mundo de Beleza (1958); A Luz vem do Alto (1959); Raça (1961) e Aço Português (1962). Em 1964, a organização não seleccionou Os Verdes Anos. Em 1963-64, o SNI pensou em enviar Retalhos da Vida de um Médico e Acto da Primavera mas não chegou a concluir o processo. No início da década de 1970, goradas todas as expectativas de triunfar comercialmente no mercado interno, o circuito cinematográfico internacional surgiu como uma forma de viabilização económica e de legitimação artística para o Novo cinema português. Entusiasmados com o reconhecimento internacional de Manoel de Oliveira e com a boa recepção crítica que diversos novos cinemas receberam nos mais importantes festivais de cinema internacionais (cinema novo brasileiro, nova vaga polaca, jovem cinema jugoslavo, entre outros), o Novo cinema português optou definitivamente pelo caminho de internacionalização, que passava pela radicalização das propostas, e promoveu uma mudança de paradigma cultural e estético no cinema português. O cinema português abandonava definitivamente o velho projecto cultural de António Ferro, abdicando da sua vocação nacional e reclamando uma familiaridade com as renovadoras e jovens cinematografias europeias e mundiais. Não foi portanto estranho que, reconhecendo a importância da recepção crítica internacional, uma das preocupações do Centro Português de Cinema (CPC), e 138 posteriormente do Instituto Português de Cinema (IPC), passasse pela aposta na internacionalização de um certo cinema português, organizando mostras e sessões de divulgação de autores portugueses de referência. Mais do que as presenças nos principais festivais internacionais – que dependiam sempre da “boa vontade“ dos júris de selecção, raramente recompensavam os custos das representações e poucas menções ou prémios conquistavam –, o CPC decidiu apostar na promoção e divulgação em iniciativas não-competitivas e massificada das suas produções, nomeadamente mostras e ciclos. A primeira experiência mais significativa foi a organização, em Nice, c om a colaboração do festival cinematográfico local, da Semaine du Jeune Cinema Portugais em Março de 1972: uma selecção de filmes que incluía produções recentes do CPC, filmes das Produções António da Cunha Telles, filmes de João César Monteiro, António Campos, Cunha Telles e Rogério Ceitil (que ainda não pertenciam à cooperativa), e uma retrospectiva apreciável de Manoel de Oliveira. Mais do que uma simples mostra, esta iniciativa deu uma visibilidade mediática ao Novo cinema no mercado internacional que o cinema português nunca tinha tido até então, justificando o elevado investimento por parte do CPC na sua organização. O sucesso foi tal, do ponto de vista da repercussão crítica e da cobertura mediática, que o CPC voltaria a apostar neste tipo de iniciativas (Barcelona em 1973, Cinemateca Francesa em Paris em 1974) e o próprio IPC, que assumiria maior destaque após 1974-75, também privilegiou este modelo realizando mostras em Liége (Março de 1977), Poitiers (Abril de 1977), Madrid (Abril de 1977), Londres (Outubro de 1977), Manheim (Outubro de 1977), Amesterdão (Novembro de 1977), Leipzig (Dezembro de 1977) e Orense (Março de 1978). Os dados relevam claramente que, entre outros vários aspectos, a entrada de Moreira Baptista para a direcção do SNI representou uma mudança de política para o cinema português, que potenciou ou permitiu outras acções que se revelariam significativas para uma alteração conjuntural, e depois estrutural, do próprio cinema português. Em termos de representação portuguesa no estrangeiro, os resultados não se fizeram esperar: aumento significativo das presenças de filmes portugueses em festivais internacionais; maior atenção na selecção de festivais a participar, privilegiando os que tinham maior cobertura mediática; e uma alteração gradual e significativa do tipo de 139 filme selecionáveis para exportação, das encomendas públicas ou dos filmes turísticos convencionais49 para propostas de jovens realizadores com intuitos renovadores50. Os dados revelam ainda que o SNI mantinha relações privilegiadas com certos produtores, nomeadamente António da Cunha Telles, Felipe de Solms ou Francisco de Castro, como está documentado em diversa correspondência preservada nos processos consultados. A título de mero exemplo, posso deixar aqui alguns casos concretos: em 1962, o SNI foi convidado para participar no Festival de Melbourne (Austrália) e contactou os produtores António da Cunha Telles e Felipe de Solms com a proposta de custear apenas 50 por cento de cópias com legendas em inglês de Os Verdes Anos e Retalhos da Vida de um Médico; em 1964, após a não-selecção de Os Verdes Anos para San Sebastian, o produtor António da Cunha Telles conseguiu negociar com o SNI e a organização do certame o envio de Belarmino mas, à última hora, acabou por desistir por falta de condições financeiras; em 1965, depois de assegurar a presença de Domingo à tarde em Veneza, o produtor António da Cunha Telles tentou convencer, sem sucesso, o SNI e a organização do certame a aceitar também As Ilhas Encantadas; no mesmo ano, o mesmo produtor tenta, outra vez sem sucesso, levar As Ilhas Encantadas e Belarmino a Berlim. Em 1968, o SNI contactou António da Cunha Telles para propor o envio de As Ilhas Encantadas ao Certamen International de Cortometrages en Color de Barcelona, mas o produtor convenceu o organismo público a apresentar Os Caminhos do Sol. Finalmente, também parece claro que esta nova estratégia de Moreira Baptista parecia apostar significativamente no reforço do prestígio internacional do próprio SNI. Entre campanhas publicitárias, subsídios para financiar ou comparticipar viagens de actores e técnicos a festivais ou apoio para a legendagem de filmes expressamente realizadas para festivais, é notório um esforço de investimento financeiro e político para melhorar a representação de filmes portugueses em certames internacionais. Em alguns casos, em nome dessa representação de qualidade, o SNI entrava mesmo em certas contradições, como a autorização excepcional de participação de filmes proibidos em Portugal (Nojo aos cães de António de Macedo) ou de filmes produzidos fora da “esfera de influência“ do SNI e do próprio Estado Novo ou mesmo declaradamente contra a sua política cultural (D. Roberto de Ernesto de Sousa). 49 Janela Aberta (1958) de Silva Brandão; Henrique o Navegador (1960) de João Mendes; Azulejos de Portugal (1958) de Baptista Rosa; Lisboa vista pelas suas crianças (1958) de António Lopes Ribeiro; Paixão de Cristo nos Primitivos Portugueses (1961) de Baptista Rosa; Rapsódia Portuguesa (1959) de João Mendes. 50 As Pedras e o Tempo (1961) de Fernando Lopes; Verão Coincidente (1962) de António de Macedo; Os Caminhos do Sol (1966) de Carlos Vilardebó; Os Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha; Domingo à Tarde (1965) de António de Macedo. 140 O claro investimento da primeira década de César Moreira Baptista à frente do SNI conheceria uma inversão na viragem para a década de 70, precisamente no período que ficaria conhecido como a primavera marcelista. Tabela n.º 22 Orçamento da SEIT no Orçamento Geral do Estado 1969-74 (fonte: compilado a partir do Orçamento Geral do Estado) Ano Total Despesa com pessoal 1969 1970 1971 1972 1973 1974 242.855.594$70 296.600.998$40 173.826.954$00 175.913.374$00 181.949.123$00 196.003.652$00 20.585.786$00 28.270.010$00 ? ? ? ? Despesa com material 1.850.000$00 2.200.000$00 ? ? ? ? Pagamento de serviços e diversos encargos 220.419.808$70 266.130.988$40 ? ? ? ? Ao contrário do que se havia registado na década anterior (1958-68), em que o orçamento do SNI quase quadruplicou (ver Tabela 13), o orçamento da SEIT caiu cerca de 20% entre 1969 e 1974, registando-me mesmo um corte mais abrupto de cerca de 40% entre 1970 e 1971. Fausto Cruchinho (2000: 340-341) havia já alertado que com a “promoção“ do SNI a SEIT — o cinema deixou de ser competência e responsabilidade directa de César Moreira Baptista e passou para as “mãos“ de Caetano de Carvalho, Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos — notando uma “diminuição do valor estratégico do lugar“, situação que seria ainda agravada por uma aparente “diluição ou burocratização do posto“, que na prática prejudicaria a política de investimento verificada nos anos anteriores. A título de exemplo, Cruchicho aponta que a transição de Moreira Baptista para Caetano de Carvalho foi tão complexa que o Conselho de Cinema não realizou nenhuma reunião entre 26 de Julho de 1968 e 9 de Abril de 1969, ou seja, quase um ano de inactividade no principal órgão que decidia sobre a atribuição de apoios públicos à produção (Ibidem: 345). Por outro lado, ao comparar as despesas com pessoal em 1968 (16.923,386$00), o último ano de actividade do SNI, com a mesma rubrica em 1970 (28.270,010$00), o último ano em que a despesa foi discriminada no Orçamento Geral de Estado, verifica-se um aumento de 65% em apenas dois anos, quando nos dez anos anteriores tinha sido apenas de 25%. 141 2.2.5. Censura: entre contradições e excepções Neste período de transição marcelista, a Censura também iria intensificar a sua acção no cinema português. Também aqui, a acção do governo iria relevar-se contraditória: se, por um lado, se assistiu a um “abrandamento“ da censura em relação ao cinema estrangeiro, particularmente nas cenas de nudez, o comportamento em relação ao cinema português foi de intolerância. Ao contrário do que reproduz a generalidade da opinião publicada, a década de 1960 encerra profundas contradições no que diz respeito às relações entre o regime político e a geração do novo cinema português. As contradições deste período ao nível das relações entre poder político e o novo cinema começam ao analisarmos comparativamente as listas dos filmes censurados e dos filmes subsidiados com dinheiros públicos. Ironicamente, nessa lista comparativa encontramos dois filmes que são exemplos flagrantes do desacerto da nova estratégia cultural do regime: Catembe (1965), de Faria de Almeida, e Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo51, foram subsidiados pelo Fundo de Cinema Nacional e conheceram a dureza da censura. No caso do filme Catembe, o filme foi sujeito a 103 cortes. Tinha uma metragem original de 2400m e ficou reduzido a 1200m, apenas 48 minutos. Os cortes terão sido sugeridos pela Agência Geral do Ultramar. Todo o material cortado foi destruído. O filme acabou por não ser exibido (Candeias, 2003). Mas o cinema português da década de 60 conheceu ainda outros casos de cortes: Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos, teve 17 cortes impostos pela comissão de censura52; Os Verdes Anos (1962), de Paulo Rocha, também teria três frases 51 “O primeiro choque foi com o 'Domingo à Tarde'. O filme ficou concluído no Verão de 1965 e já tinha estreia no Império para Outubro. Foi submetido à censura obrigatória e depois de muito tempo por lá andar foi 'aprovado' com quatro cortes. Dois abrangiam a sequência do 'filme dentro do filme', onde o 'emissário das trevas' destrói um crucifixo, outro era a sequência da discoteca onde duas raparigas dançam uma com a outra, acariciando-se; e finalmente o quarto era uma parte do diálogo entre o 'diabo' e o padre, já quase no final.“ (António de Macedo apud Arte 7, 5, X-1992) 52 “Agora o que é importante, no que respeita à censura, é que esta intervém para limar todas as arestas, todas as imagens, até imagens simples, como a de um olhar para o relógio, a deixar perceber que o ricaço pensava estar já a perder muito tempo com o funeral da filha do chaffeur, ou a imagem de um olhar panorâmico para o copo de whisky, quando a filha percebe a estratégia do pai. Quer dizer: enquanto eu, através desses grandes planos e dessas panorâmicas, procurava transmitir essas diferenças de classe, de estatuto social, ou seja, procurava denunciar essas diferenças, a censura agia exactamente ao contrário, cortando todos os diálogos, todas as imagens, mesmo as que não tinham diálogos, que pudessem salientar o domínio de uma classe sobre outra. (...) 142 (“Então, há material novo desde a última vez que aqui estive?“; “Ó Raulinho, se vier gado jeitoso enxota ali para a mesa do canto“; “Portugal é um país pequeno, mas tem grandes mulheres“) e uma cena cortada (a cena em que o protagonista e um estrangeiro conversam com duas prostitutas na rua) (ANTT, SNI, IGAC, caixa 225). No filme A Caça (1963), de Manoel de Oliveira, a situação foi mais particular: o fim escolhido pelo realizador (a morte de uma personagem) foi considerado pessimista pela censura, que exigiu ao realizador – até porque o filme foi feito com fundos públicos – um final feliz; perante a impossibilidade de ver aprovado o filme como o havia concebido, Oliveira resolveu acrescentar cerca de 1 minuto ao filme, precisamente o prolongamento da cena final da morte, de forma que a personagem que deveria morrer fosse salva pelos seus companheiros. Mas a transição para a década de 1970 ficaria marcada sobretudo por um número inédito e significativo de proibições integrais por parte da censura cinematográfica: Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), de João César Monteiro, teve cortes da censura que inviabilizaram a sua distribuição comercial; Nojo aos Cães (1970), de António de Macedo foi proibido por ser considerado “perigoso e contrário aos interesses nacionais“ (Macedo, 2007: 28); Nem Amantes, Nem Amigos (1970), de Orlando Vitorino, só seria exibido pela primeira vez em Portugal em 1983, na Cinemateca Portuguesa (Matos-Cruz, 1999: 143); Grande, grande era a cidade (1971), de Rogério Ceitil e Lauro António, seria interdito após ante-estreia no Festival de Santarém (Ibidem: 145); Índia (1972), de António Faria, teve proibição integral (Ibidem: 159); Deixem-me ao menos subir às palmeiras (1972), de Lopes Barbosa, o primeiro filme feito no Ultramar por ultramarinos, também foi proibido na íntegra (Ibidem: 149); O MalAmado (1974), de Fernando Matos Silva, foi proibido na íntegra e o negativo foi confiscado (Ibidem: 154); Sofia e a Educação Sexual (1974), de Eduardo Geada, foi proibido na íntegra (Ibidem: 155).53 Digamos que nós sublinhámos mais aqueles aspectos a diferenciação de classes. E a verdade é que a peça no teatro não foi censurada, mas o filme levou dezassete cortes, cortes verdadeiros, cortes cirúrgicos exactamente nos planos ou nas cenas em que eu pretendia sublinhar a diferença de classes e o domínio de uma classe sobre a outra, o que evidenciava que a censura aos filmes era feita por gente que sabia de facto o que era cinema.“ (Artur Ramos apud Azededo, 1999) 53 Sobre este último, convém recuperar aqui o depoimento do realizador sobre o processo do filme com a censura: “Devíamos estar em fins de Março quando fui chamado ao edifício da censura, mesmo ao lado do Instituto Português de Cinema. Fui recebido, salvo erro, por Caetano de Carvalho, que me explicou as razões que, finalmente, tinham levado à reprovação filme. Que analisara a situação e que não era possível fazer cortes porque estes deixariam o filme sem sentido. Que as obras de arte não se deviam mutilar, pelo que era preferível pura e simplesmente proibi-las. Que, quando os distribuidores preferiam exibir os filmes com cortes, enganando assim os espectadores, o problema era deles e não da censura, que se limitava a cumprir uma missão patriótica.“ (Eduardo Geada apud Arte 7, 5, X-1992). 143 O caso de Nojo aos Cães também é particular: apesar da proibição integral em território nacional, o filme recebeu, como já referi, uma autorização excepcional por parte do SNI para participar no festival de cinema de Bérgamo (Macedo, 2007: 29). Destes oito títulos proibidos integralmente, não deixa de ser significativo que metade fazem referências directas ou indirectas à política colonial do regime: tanto Índia como Deixem-me... questionavam a ideia portuguesa de colonização exemplar, enquanto O Mal-Amado e Grande, Grande era a Cidade (1971) exploravam dois fait-divers relacionados com traumas resultantes da experiência colonial. No que diz respeito à atribuição de prémios ou subsídios, estes anos também registam algumas contradições significativas. Nos prémios de cinema do SNI, entre 1944 e 1973, em 30 edições do prémio, houve 14 edições em que não se atribuiu prémios à categoria de Melhor Filme e apenas 3 em que não foi atribuído o prémio para a melhor curta, com a particularidade que foi em edições em que não foram atribuídos prémios a nenhuma categoria. No entanto, em 1969 o prémio foi atribuído ex-aequo a duas curtas e, no ano seguinte, para além da curta premiada, foram distinguidas com uma menção honrosa a outras duas curtas. Assim, em 30 edições dos prémios, foram distinguidos, entre prémios e menções honrosas, um total de 30 curtas-metragens mas apenas 16 longas-metragens. Este indicador, parece-me inequívoco, abona exemplarmente acerca da diversidade e qualidade da produção cinematográfica no género da curta-metragem. Se os prémios atribuídos aos actores eram sobretudo distinções pessoais e uninominais, parece-me que as distinções atribuídas aos filmes de longa e curtametragem são sinais políticos que pretendem premiar, mais do que os filmes ou os seus promotores, tendências cinematográficas. Assim, entendo que os prémios atribuídos sucessivamente a Fernando Lopes (1962), Manuel Faria de Almeida (1965, 1966, 1969, 1970) e António de Macedo (1967, 1969, 1971) na categoria Prémio Paz dos Reis premiaram não apenas os realizadores mas uma tendência de renovação do cinema português em geral e na curta-metragem documental em particular. Ainda assim, no que diz respeito às longas-metragens, pelo maior mediatismo intrínseco do prémio, o SNI demorou mais tempo a reconhecer o contributo dos jovens cineastas para a renovação do cinema português. Apenas por duas ocasiões foram contemplados filmes do Novo cinema: O Cerco, de António Cunha Telles em 1969, Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes em 1971. Para além deste reconhecimento oficial, as sucessivas distinções internacionais – entre selecções, menções ou prémios – obtidas por curtas-metragens portuguesas em 144 diversos festivais de cinema internacionais devolviam ao SNI um capital político e cultural que as produções de longa-metragem nunca tinham conquistado internacionalmente. Ainda que se trata-se, na generalidade, de festivais especializados em géneros pouco mediáticos – filme industrial, filme publicitário, filme religioso – este reconhecimento internacional era importante para o reconhecimento do cinema português e da própria produção cultural e artística feita em Portugal. Sobre os subsídios, o estudo de Fausto Cruchinho (2000: 339-354) sobre o funcionamento do Conselho de Cinema é revelador da política de subsídios adoptada entre 1962 e 1971: “Ao contrário do que diz a opinião generalizada, não são os 'maus' filmes e os 'maus' realizadores os únicos beneficiados pelo Fundo. Se exceptuarmos o período de Caetano de Carvalho (19691971) — em que os filmes aprovados contemplam os 'velhos' realizadores (Henrique Campos e Constantino Esteves) a par com os 'novos' (Cunha Telles e António de Macedo) —, são sobretudo os realizadores do 'cinema novo' os mais contemplados.“ (Ibidem: 344) Se Verdes Anos, Rio do Ouro (projecto irrealizado de Paulo Rocha) e Belarmino não receberam qualquer apoio oficial, a partir de Domingo à Tarde quase todos os projectos apresentados pelo produtor/realizador Cunha Telles receberam apoio do Fundo: Catembe (1964) e A Feira (1970), de Faria de Almeida; Domingo à Tarde (1965) e Sete Balas para Selma (1967), de António de Macedo; As Ilhas Encantadas (1963) e A Caminho do Sol (1964), de Carlos Villardebó; O Cerco (1969) e Meus Amigos (1971), do próprio Cunha Telles. Para além dos filmes das produções de Cunha Telles, também outros nomes relevantes da geração do novo cinema receberam apoios financeiros à produção: Paulo Rocha com As Tentações de Santo Antão (projecto que não seria concretizado); António de Macedo com Almada Negreiros Vivo Hoje (1969); Fernando Lopes com Uma Abelha na Chuva (1971); Manuel Costa e Silva com Vermelho, Amarelo e Verde (1966); e Faria de Almeida com Portugal Desconhecido (1969). Para interpretar estes dados contraditórios, proponho uma hipótese que passa pela valorização de um aspecto fundamental geralmente desvalorizado pelos autores das principais obras sobre a história do cinema português: a complexa teia de relações pessoais e institucionais entre elementos do novo cinema e figuras de destaque do aparelho estatal e de várias instituições privadas parece fornecer inúmeras pistas para explicar várias questões aparentemente paradoxais e inexplicáveis. A importância dos encontros informais e relações subterrâneas entre os diversos protagonistas e figurantes do novo cinema sugere jogos de cumplicidades e de influências e valoriza a petite 145 histoire do cinema português como factor especulativo essencial para a compreensão de todo este período do novo cinema português. As listas de subsídios à produção, bolsas de estudo e prémios, atribuídos por instituições oficiais e privadas, o desempenho de diversas funções públicas, a participação em iniciativas privadas, a cumplicidade profissional, entre outros, são factores que revelam a importância que algumas relações pessoais e institucionais poderão ter interferido no processo de afirmação e reconhecimento do novo cinema. Parece evidente também que a ideia de uma censura cinematográfica irrepreensível e implacável está longe de ser a mais apropriada no caso do cinema português da década de 60 e da primeira metade da seguinte. Se na década de 50 a discriminação negativa ao cinema português foi mais coerente e eficaz – veja-se o exemplar caso de Manuel Guimarães –, o mesmo não sucedeu com o designado novo cinema português. Coerência e eficácia não são, definitivamente, as características que melhor assentam à acção da censura cinematográfica durante o período de afirmação e reconhecimento do novo cinema português. 2.3. A Lei 7/71 Ainda que durante a década de 1960 não tivesse sido publicada legislação para o sector cinematográfico, exceptuando a reorganização do SNI em SEIT, o debate político centrou-se muito na legislação para o sector e na necessidade da sua revisão. Respondendo a diversos apelos, o governo reconhecia a desadequação da Lei 2.027 e propunha-se a revogá-la parcial ou totalmente. Assim, a 20 de Novembro de 1959, por portaria publicada no Diário do Governo, a Presidência do Conselho nomeou uma “comissão destinada a estudar as medidas legislativas convenientes para actualização e reforma dos diplomas de protecção ao cinema“. Segundo a referida portaria, a iniciativa de constituição desta comissão resultou de uma exposição da União de Grémios dos Espectáculos ao Governo relativo às “dificuldades que se verificam no cumprimento das disposições legais relativas à protecção do cinema nacional“, mas também das conclusões apresentadas por uma “comissão encarregada de estudar a influência da televisão sobre a exploração teatral e cinematográfica“. Nessa mesma portaria, o Ministro da Presidência determinava a composição da comissão revisora da 146 legislação.54 As pressões corporativas exigiam, assim, uma reconfiguração da lei que regia a indústria cinematográfica. Desta primeira comissão, os únicos dados que conheço referem-se à realização da primeira sessão, a 12 de Abril de 1960, onde ficaram estabelecidas as normas para a elaboração dos trabalhos e a sua calendarização, tendo lugar durante dois dias por semana a partir do dia 2 de Maio seguinte (Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, IV-1960: 4). Dois anos depois desta reunião inaugural, um editorial do jornal O Século reitera a necessidade da revisão mas adverte: “Não é de esperar, todavia, que da comissão tenha saído o esboço daquela desejável ‘política cinematográfica’“ (Idem, IV-1962: 6). Assumindo um interesse público pela questão cinematográfica, o deputado Pinto de Menezes leva “o problema da Lei sobre o cinema nacional“ à Assembleia Nacional. Para além de expor as deficiências do regime tributário das actividades do espectáculo, este deputado exigiu uma “profunda e urgente reforma“ da Lei 2.027 (Diário das Sessões, 12-XII-1966: 824-826). No seguimento deste interesse, em 18 de Março de 1967, o deputado Filomeno Cartaxo apresentou um requerimento à Assembleia Nacional onde, “com vista à possível elaboração de um estudo“, solicitava ao SNI dados sobre “o número e montante dos subsídios e empréstimos concedidos pelo Fundo do Cinema Nacional“ para a “feitura de filmes de longa e curta metragem, com indicação dos títulos e nomes dos produtores e realizador“, “bolsas de estudo, com indicação do nome dos bolseiros e escolas e especialidade frequentadas“ e “dados estatísticos referentes ao movimento da Biblioteca e Cinemateca Nacionais“ (Idem, 18-III-1967: 1538-1539). Em Junho seguinte, agora por iniciativa do Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, foi constituída uma segunda comissão para proceder a estudos “com vista à revisão e actualização dos diplomas que criaram o Fundo do Cinema Nacional“.55 54 A comissão era presidida pelo auditor jurídico da Presidência do Conselho (Rui da Fonseca Garcia Pestana) e constituída por representantes do SNI (Júdice da Costa), Inspecção-Geral dos Espectáculos (José Fernandes Lebre), União de Grémios de Espectáculos, Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema e por “duas figuras idóneas“ de prestígio reconhecido, no caso Domingos Mascarenhas e Luís de Pina (Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, XI-1959: 4). 55 A comissão era presidida pelo Secretário Nacional da Informação e contava ainda com a participação do Inspector-Geral dos Espectáculos, Presidente da Corporação dos Espectáculos, Chefe da repartição da Cultura Popular, representante da Agência Geral do Ultramar (Ruy Heitor), representante do IMAVE (Luís de Pina), representante do Grémio Nacional das Empresas de Cinema (Jorge Galveias Rodrigues) e representante do SNPC (António Lopes Ribeiro). Para além destes representantes de organismos, foram nomeados para a comissão vários representantes dos diversos sectores da actividade cinematográfica: Francisco de Castro (produtor), Edmundo Ferreira de Almeida (distribuidor), José Manuel Castello Lopes (exibidor), José Gil (representante dos Laboratórios), José Nuno Serras Pereira (representante dos 147 Em 15 de Janeiro de 1969, na tomada de posse de Moreira Baptista como responsável pelo SEIT, na presença de um conjunto significativo de representantes da actividade cinematográfica, o novo Secretário avançava que as duas prioridades da sua acção seriam a apresentação de dois projectos de lei para o Teatro e o Cinema. Insatisfeito com o método de estudo seguido pelas comissões, Moreira Baptista garante que o projecto da nova legislação terá a “sua apreciação crítica pelos organismos interessados, nomeadamente os da organização corporativa“ (Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, I/II-1969: 6-9). Menos de uma semana depois, o recém-nomeado Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos visitou a Corporação e a União de Grémios dos Espectáculos para reafirmar as palavras de Moreira Baptista em relação ao projecto da nova lei. Prometendo um “diálogo franco e aberto“ com os “interesses privados“, Caetano Carvalho solicita a colaboração dos diversos organismos corporativos ligados ao cinema para proceder às tão reclamadas reformas na legislação que regulamentava o sector (Idem: 10-12). Em meados de 1969, quando se esperava que os trabalhos da segunda comissão tomassem o mesmo destino da anterior (Plateia, 14-I-1969: 3) é tornado público que a segunda comissão revisora da lei apresenta como conclusão um esboço do novo projecto de lei de cinema. Pode-se afirmar que a revisão da lei foi uma medida reivindicada pelos diversos sectores do panorama cinematográfica, desde a oposição à política cultural aos representantes dos diversos organismos corporativos. Anunciada a elaboração de um novo projecto, logo começou o lóbi de influências movido pelos diversos interessados que procuravam convencer os responsáveis pela elaboração do projecto da nova lei a ceder aos diversos e distintos argumentos. Em Novembro de 1969, o Diário de Lisboa organizou um importante debate que contou com a participação de realizadores, distribuidores, exibidores, produtores e cineclubistas. Moderado pelo respeitado Manuel de Azevedo, a mesa redonda Cinema Português – realidades e aspirações procurava debater sobre “os limites, as dificuldades e aspirações do incipiente cinema português“, procurando reunir os defensores dos principais interesses corporativos. Os realizadores Jorge Brum do Canto, também presidente do SNPC, e Fernando Lopes, o exibidor e distribuidor Gérard Castello Lopes, o “produtor-milagre“ António da Cunha Telles e o cineclubista Manuel Neves foram os Estúdios), Jorge Brum do Canto (cineasta) e Manuel Múrias (crítico) (Boletim da União, VIII/IX-1967: 19). 148 escolhidos para a exposição dos diferentes argumentos. Também presenciou o debate, apenas como observador, o jovem crítico e realizador João César Monteiro. Nesse debate, Jorge Brum do Canto, presidente do SNPC, radicaliza um discurso muitas vezes repetido pelo sector da produção: “Primeiro, nunca houve cinema em Portugal. Houve, volta e meia, alguns filmes.“ Vaticinando a crise do cinema português como crónica de países com um mercado interno pequeno, o realizador aponta duas medidas urgentes: “recriação de um espírito de apreço“ pelo cinema português e “provocar a construção de cinemas“. Considerando que a lei vigente foi contraproducente nas suas intenções, Brum do Canto alerta para a necessidade de repensar problemas fundamentais como a Censura ou a classificação dos espectáculos, assim como fomentar o cinema infantil para criar hábitos no público mais jovem (Diário de Lisboa, 7-XI-1969: 7). Rejeitando a actualidade de “um esquema tipicamente capitalista da produção e do consumo“, defendido por nesse debate pelo distribuidor Gérard Castello Lopes, o jovem Fernando Lopes acredita que a nova legislação cinematográfica deve tentar corresponder as exigências “da hora europeia dos anos 70“. Contudo, mais importante que a lei, o cinema português deve procurar uma mudança de mentalidade: “a livre circulação das ideias é condição vital para que a lei de protecção ao cinema não acabe, como a anterior, a fomentar, sobretudo, coisas espúrias que nada tinham a ver com o cinema e connosco“ (Idem: 8). Para o produtor Cunha Telles, ainda ressentido pelo fracasso comercial da sua experiência, o problema do cinema português continua a ser o público: “Porque pode haver uma melhor legislação, pode haver inúmeras salas, pode haver tudo, mas se o público continuar a não ir ver os filmes, não haverá sequer a justificação para um cinema português“. Cunha Telles também aponta a solução: “o esclarecimento do público com boas retrospectivas do cinema português de qualidade, através do País, comentadas e apresentadas por diversos realizadores; com a Imprensa; com os cineclubes“ (Idem, 14XI-1969: 3). Manuel de Azevedo aproveitou a intervenção de Cunha Telles para centrar o debate em torno da formação do público, “do acesso à cultura da grande massa, a qual não tem acompanhado a evolução cultural das ‘elites’ e, portanto, cada vez mais está afastada da exigência estética das minorias intelectuais“. O dirigente cineclubista Manuel Neves lembrou as dificuldades encontradas pela acção cineclubista na década anterior para propor uma solução mais popular e destinada às massas. A formação de 149 hábitos cinéfilos na população portuguesa deveria ser uma das principais preocupações da nova legislação, nomeadamente na regulamentação da “exploração efectiva de 16 milímetros“, um suporte mais adequado às condições sócio-económicas da sociedade portuguesa. Enquadrado na mentalidade cineclubista, Manuel Neves reservou às cooperativas culturais e a associações recreativas um papel fundamental no contacto e formação do público. Para encerrar o debate, Manuel de Azevedo lembrou que o cinema, enquanto veículo privilegiado de divulgação, tem responsabilidades de “trazer algo de útil ao homem como a uma comunidade“: o cinema português deve ser “capaz de conter em si elementos de desenvolvimento cultural, de fazer interessar as pessoas por diversos problemas; por difundir ciência; de divulgar problemas pedagógicos, cívicos, etc.“ (Idem: 4). Apesar da iniciativa pretender divulgar a opinião dos diversos sectores da actividade cinematográfica, os interlocutores convidados não eram representativos dos respectivos sectores. Na realidade, os realizadores, produtores e exibidor presentes no debate eram figuras com alguma relação directa ou indirecta com o Novo cinema. A ausência de realizadores ou produtores do velho cinema retirava ao debate qualquer pretensão de representação dos interesses corporativos. Em 22 de Janeiro de 1970, o governo apresenta à Assembleia Nacional a proposta de lei n.º 6/X, designada de “protecção do cinema nacional“. Conforme determinava o processo legislativo, a proposta foi encaminhada para a Câmara Corporativa para obtenção do respectivo parecer necessário. 2.3.1. O Instituto Português de Cinema A proposta, apresentada aos deputados ao longo de dez pontos, dizia-se inspirada pelas conclusões da comissão de revisão nomeada em 1967 e pelas diversas solicitações enviadas ao governo por diversos organismos com interesses no sector. Nessa proposta, o IPC era apresentado à Assembleia como uma super-estrutura com “acção orientadora, de coordenação e fiscalizadora de toda a actividade cinematográfica nacional“. Para além de regular a actividade industrial, o novo organismo incluía nas suas competências a realização de festivais e a promoção de publicações e organizações especializadas. Apesar de ser gerido por uma comissão administrativa cujos membros, à excepção do director, serão designados por inerência, a diversidade e representatividade que 150 compõe a comissão procurava assegurar “a justeza e equilíbrio da acção do Instituto relativamente aos interesses que lhe estão confiados“ (Diário das Sessões, 22-I-1970: 232 (11)). Uma das principais conclusões da comissão recaiu sobre a fragilidade financeira do Fundo do Cinema Nacional. Procurando dotar o novo organismo de mais recursos, o projecto previa uma reforma das taxas fiscais: a taxa de distribuição substituía a licença de exibição existente, que deixaria de ser uma quantia fixa e passaria a variar conforme o período de exibição e uma taxa fixa para curtas-metragens que isentava as de produção nacional e os filmes de actualidades. Outra fonte importante de financiamento passava a ser a publicidade efectuada no cinema e na televisão, através de uma taxa fixa paga pelos anunciantes. Finalmente, previa-se também uma receita significativa proveniente do imposto adicional cobrado ao espectador através do preço do bilhete. A intervenção financeira do IPC na produção não introduzia qualquer inovação em relação à anterior intervenção do Fundo. Para assegurar a assistência financeira seriam disponibilizados empréstimos, subsídios ou garantias de crédito. Outra forma de ajuda era a canalização de capitais estrangeiros através de acordos de co-produção ou coparticipação de empresas portuguesas. A inovação que se pretendia para os diversos sectores de apoio à produção, nomeadamente estúdios e laboratórios de som e imagem, através do “apetrechamento“ destas estruturas, procurava satisfazer as necessidades da actividade nacional e permitir a rentabilização do investimento. Outra medida há muito reclamada, sobretudo pelo sector da distribuição e da exibição, era a autorização da dobragem de filmes estrangeiros, “desde que não afecte a qualidade do filme“.56 Inactivo por insuficiência da produção nacional, o sistema de contingente, que obrigava à exibição de um determinado número de filmes portugueses em função dos filmes estrangeiros, voltava a ser consagrado como peça fundamental para a protecção do cinema nacional. Para o desenvolvimento do mercado interno era também necessário investir num alargamento significativo de salas de exibição, sobretudo nos espaços rurais. O novo projecto de lei previa ainda a concessão de assistência financeira e assistência técnica gratuita para remodelação, adaptação e construção de novos recintos. 56 Para os opositores à dobragem, esta técnica representa uma das maiores deturpações e violações ao filme enquanto obra artística e cultural. Para os defensores da dobragem, esta seria aplicada sobretudo ao cinema comercial, favorecendo assim a expansão do espectáculo cinematográfico junto das populações menos instruídas. 151 No mesmo dia em que o projecto de lei era enviado para a Câmara Corporativa, a Direcção do Grémio Nacional de Empresas de Cinema convocou uma reunião extraordinária cuja ordem de trabalho era a definição de uma estratégia de intervenção na discussão do projecto de lei. Considerando que as posições dos seus membros (Laboratórios, Produção, Importação e Distribuição, e Exibição) não receberam a devida atenção por parte da comissão que elaborou o projecto de lei, o Grémio deliberou o estabelecimento de: “(...) um grupo de trabalho que urgentemente elabore um comentário à proposta de lei para ser enviado à Corporação dos Espectáculos e eventualmente ser utilizado como subsídio pelo seu Presidente nos trabalhos de apreciação e elaboração do parecer da Câmara Corporativa, caso o entenda de alguma utilidade e pertinência“ (Boletim da União, I/II-1970: 38). Dois meses depois, a comissão constituída apresentava o respectivo comentário em nova reunião extraordinária da Direcção do Grémio. Alegando a urgência exigida, a comissão advertiu que “a referida apreciação não tem condições para ser publicada, mas tão-só para ser utilizada não oficialmente“ pelos representantes da Corporação dos Espectáculos na Câmara Corporativa. A terminar a reunião, a comissão agradeceu expressamente a Jorge Brum do Canto, relator do parecer da Câmara Corporativa, por “durante as oito longas sessões de trabalho“ da comissão ter atendido às explicações e argumentos expostos pelos representantes das empresas de cinema (Idem, III-1970: 24). Como pedira a comissão, este parecer não oficial não chegou a ser publicado, pelo que, apesar de se conhecer algumas medidas exigidas pelo organismo, não se conhece em concreto o seu conteúdo. Em 25 de Abril de 1970, três meses depois de remetida à Câmara Corporativa, este órgão emitia o seu parecer sobre a proposta de lei.57 O parecer apresentado dividia-se em três partes: uma apreciação na generalidade, uma apreciação na especialidade e a apresentação das conclusões finais. O primeiro reparo feito pelo parecer incidia sobre a pouca atenção dada ao cinema enquanto “actividade de criação cultural e artística“. Valorizando o aumento da 57 A secção encarregada de emitir o parecer foi a secção especializada nos Espectáculos, constituída por Manuel Joaquim Telles, Vasco Morgado, José Maria Caldeira Castel-Branco Mesquita e Carmo, José Firmino Henriques, Leão António d’Almeida e Jorge Brum do Canto, à qual foram agregados procuradores considerados como elementos úteis à discussão: Adérito de Oliveira Sedas Nunes, André Delaunay Gonçalves Pereira, António Duarte, António Jorge Martins da Motta Veiga, António Manuel Pinto Barbosa, Armando Manuel de Almeida Marques Guedes, Augusto de Castro, Bento de Mendonça Cabral Parreira do Amaral, Francisco de Paula Leite Pinto, João Manoel Nogueira Jordão Cortez Pinto, Joaquim Belford Correia da Silva (Paço d’Arcos), José Alfredo Soares Manso Preto e José Fernando Nunes Barata. 152 produção fílmica, o projecto parecia preocupar-se sobretudo com “uma produção talvez quantitativamente mais vultosa, mas de escasso ou nulo significado no plano da cultura e da arte.“ Para permitir o desenvolvimento qualitativo do cinema português, o parecer considerava determinante: “(...) o desenvolvimento, a par dos circuitos essencialmente comerciais, de um circuito paralelo de cinema de arte e ensaio, protegido por um estatuto próprio que defina condições especificamente destinadas a fomentar e proteger a produção, importação, distribuição e exibição de filmes dessa natureza“ (Diário das Sessões, 25-IV-1970: 902 (5)). Outra preocupação manifestada no parecer era o aparente esquecimento da formação de quadros técnicos. A Câmara Corporativa “recomenda vivamente“ que uma das competências do futuro IPC fosse a “formação de realizadores, técnicos e actores, quer no fomento de curtas e médias metragens de elevado teor artístico e de filmes em formatos reduzidos, cuja importância para a descoberta e afirmação de novos valores se reconhecer hoje ser decisiva“ (Idem: 902 (5-6)). Quanto aos aspectos financeiros da proposta, a principal atenção recaía sobre o financiamento do IPC. Seguindo o sistema de auto-financiamento do Fundo de Cinema Nacional, o novo organismo iria “ao cinema buscar dinheiro para o cinema, o que, sendo, embora, fazer das fraquezas força, se afigura perfeitamente razoável e certo.“ Na impossibilidade de ser directamente financiado pelo Orçamento Geral do Estado, o IPC impunha uma redefinição fiscal do sector cinematográfico, intenção que recolhia o apoio da Câmara mas que o projecto não se mostrava capaz de tornar operacional de uma forma desejada e eficaz. As principais críticas sobre o modelo de financiamento proposto recaiam sobre a “injustiça“ destas receitas provenientes da actividade cinematográfica também contemplarem o Fundo de Teatro. Comparativamente, o parecer considerava que a situação do cinema era quantitativamente inferior à do teatro, pelo que o dinheiro gerado pela actividade cinematográfica deveria ser aplicado exclusivamente no desenvolvimento material e humano do cinema português. As verbas atribuídas ao Fundo de Teatro deveriam ser encaminhadas para um reforço financeiro do IPC (Idem: 902 (6-7)). Em relação à orgânica do IPC, a Câmara Corporativa sustentava que este organismo, pela sua importância no desenvolvimento da actividade cinematográfica, deveria ter uma maior representatividade do sector corporativo nos seus órgãos de gestão (comissão administrativa) e consulta (Conselho de Cinema). Devido à 153 importância da estrutura, a Câmara entendia que o IPC devia ter personalidade jurídica e que não deveria estar subordinado à Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, gozando de autonomia administrativa e financeira. Procurando estabelecer uma relação mais próxima dos interesses privados, para além de diminuir a dependência orgânica da SEIT, o IPC deveria incluir na sua direcção uma representação significativa da organização corporativa, proporcionando um maior equilíbrio de interesses. Ao invés desta expansão de acção, deveria ser limitada a interferência do IPC na representação do cinema português a nível internacional, devendo caber esse papel à organização corporativa, nomeadamente à União de Grémios dos Espectáculos. A atribuição ao IPC da representação internacional do cinema português poderia provocar um conflito de interesses com a organização corporativa (Idem: 902 (7-9)). Quanto ao Conselho de Cinema, a Câmara recomendava que, contrariamente ao seu estatuto “vazio de funções“, o órgão consultivo do IPC “deverá, obrigatoriamente, pronunciar-se sobre todas as questões de interesses para as actividades cinematográficas, devendo mesmo ter competência deliberativa nas matérias de assistência financeira e de prémios.“ À semelhança do que reclamava para o IPC, também o Conselho de Cinema devia ter, através da Corporação dos Espectáculos, mais representantes da organização corporativa. Para valorizar a componente artística e cultural do cinema português, a Câmara propunha a inclusão no Conselho de Cinema de representantes da Academia Nacional de Belas-Artes e de associações culturais com interesse e acção na promoção da cultura cinematográfica (Idem: 902 (9-10)). Apesar das críticas e alguns reparos significativos, a proposta de lei recebeu o parecer positivo da Câmara Corporativa com uma sugestão de alteração à designação do projecto. O parecer reforçava a ideia de se alterar “lei de protecção do cinema nacional“ para “fomento e protecção do cinema nacional“, sublinhando a intenção de que a nova legislação procurararia, além de proteger o cinema nacional, fomentar o desenvolvimento industrial da actividade cinematográfica em Portugal (Idem). Em relação ao segundo título do projecto de lei, “Do fomento da indústria cinematográfica“, as reservas eram múltiplas e mais inflexíveis. As críticas começavam logo pelas definições das categoria de “produtor“ e “filme português“ consagradas na letra da lei, achando a Câmara Corporativa que eram ambíguas e permissivas à má qualidade e à má fé de alguns agentes do cinema. Procurando aumentar a produção fílmica e a ascensão de novos realizadores, o órgão consultivo também sugeria ao 154 Governo a inclusão na lei de apoios significativos à produção de média metragens (Idem: 902 (11-12)). A secção dedicada à “assistência financeira“, ou seja, às regras de concessão de apoios financeiros, era, obviamente, alvo de uma análise mais extensa e detalhada. Procurando resolver um dos maiores problemas estruturais do cinema português, “falta de capacidade financeira de produtores ocasionais“, a Câmara sugeria que o Estado exigisse que as empresas cinematográficas fossem “económica e financeiramente sãs.“ Esta secção alertava ainda para a exigência de explicitação do requisito de qualidade contemplado pelo texto da lei para os futuros beneficiários de apoios financeiros públicos. Para este parecer, as “garantias suficientes de qualidade“ eram o “cumprimento de todas as obrigações até à conclusão do filme, segundo o orçamento aprovado“ e a garantia de “estar assegurado o concurso dos meios humanos e materiais indispensáveis“ (Idem: 902 (12-13)). Com estas alterações, parece óbvio que a Câmara Corporativa pretendia dificultar a constituição de novas empresas e dificultar-lhes o acesso aos subsídios públicos, caminhando progressivamente para uma monopolização do sector. Como medida complementar para o desenvolvimento da produção fílmica, o parecer alertava para a “necessidade de proteger a curta e média metragem“ (Idem: 902 (13)). No que respeita à distribuição, a Câmara considera que “as vinte e quatro empresas distribuidoras existentes chegam, com folgada margem, para abastecer de filmes o mercado exibidor português.“ Como medida restritiva, o parecer sugeria que o IPC levantasse “restrições ao aparecimento de novas empresas nesse sector da actividade“ (Idem: 902 (15-17)). Estas regras beneficiavam claramente os estabelecimentos técnicos portugueses existentes, permitindo, mais uma vez, uma perigosa monopolização do mercado. Em suma, reafirmando uma velha exigência consagrada na anterior lei mas nunca aplicada, a Câmara reafirmava o desejo de fiscalização sobre o respeito pelo contingente estabelecido para o sector distribuidor. A fim de defender os interesses dos exibidores, o parecer apelava ao apoio financeiro estatal para a construção de novas salas de exibição, nomeadamente a criação de uma nova classe destinada à exibição de “cinema de arte e ensaio“, projectando assim um novo estilo de salas com características mais específicas. Para promover o desenvolvimento em regiões do país sem salas comerciais, o parecer sugeria um programa especial que garantisse a exclusividade de exibição às empresas 155 que estivessem dispostas a investir na construção de novos espaços, procurando o equilíbrio do mercado (Idem: 902 (17-18)). Apesar de globalmente positivo, o parecer da Câmara Corporativa não se poupava nas criticas a alguns aspectos que considerava insuficientes no texto do projecto proposto. As considerações feitas a propósito da composição e competência do IPC e do Conselho de Cinema demonstram sobretudo um interesse em acentuar a representação corporativa e, consequentemente, diminuir a influência e interferência de organismos estatais na condução do cinema português. Estas considerações iam naturalmente ao encontro dos interesses corporativos de alguns organismos envolvidos na actividade cinematográfica com participação activa na Câmara. Em última análise, a proposta de alteração da designação do projecto de lei – acrescentando o termo “fomento“ – parecia ser bem representativa das prioridades deste parecer. Depois de passar pela Câmara Corporativa, o projecto de lei chegava à Assembleia Nacional para discussão. Iniciada a 7 de Janeiro de 1971, quase um ano após a sua apresentação no órgão legislativo, a discussão do projecto de lei estaria na ordem do dia durante quase um mês. Aprovada na generalidade, o projecto de lei começou a ser discutido na especialidade no dia 26 de Janeiro, onde foram propostas e aceites alterações que reforçaram a dependência administrativa e financeira do IPC em relação à dinâmica burocrática do SEIT e à pesada máquina estatal, rejeitando assim a personalidade jurídica tão reivindicada para o futuro IPC.58 Cerca de dez meses depois, a referida comissão apresenta a versão definitiva do diploma para aprovação da Assembleia Nacional. No dia 19 de Novembro de 1971, o texto foi apresentado e aprovado pelos deputados sem qualquer reclamação apresentada, sendo publicada em Diário da República no dia 7 de Dezembro seguinte. O debate na especialidade seria dominado quase exclusivamente pelo deputado Veiga de Macedo e pelas propostas de alteração promovidas pela Comissão de Educação Nacional, Cultura Popular e Interesses Espirituais e Morais. O parecer emitido pela Câmara Corporativa, tal como se previa, não foi significativo para o debate, e apenas foi atendido em matérias que não comprometiam os interesses do poder político. Quanto à prestação dos deputados da “ala liberal“ no debate na especialidade, posso afirmar que foi um pouco discreta e efectivamente pouco consequente (Cunha, 2005: 146). Seguido com algum interesse pela imprensa, o debate da nova lei recebeu um interesse diferenciado por parte dos diversos órgãos de comunicação social: o oficial 58 Mais informações sobre os debates na generalidade e especialidade desta lei em Cunha, 2005: 132-148. 156 Diário de Notícias, na sua habitual página dedicada às actividades da Assembleia Nacional, noticia as diversas intervenções com um tom meramente descritivo e relator, transcrevendo apenas trechos das diversas intervenções, denotando um tom monótono e despersonalizado que era significativo do tipo de apreciação feita por um jornal conotado com o cumprimento de formalidades; por outro lado, o Diário de Lisboa, apesar da sua rubrica Fim de Tarde em S. Bento (assinado pelo histórico dirigente cineclubiusta e jornalista Manuel de Azevedo) relatar as actividades diárias da Assembleia Nacional, preferiu dar um destaque significativo às intervenções dos deputados da “ala liberal“, assumindo uma inequívoca postura selectiva e crítica ao tratamento do debate em torno do projecto de lei, dando também destaque às iniciativas dos interesses corporativos durante o debate demonstra a intenção de promover o pluralismo de ideias na discussão pública do diploma (Ibidem: 146-147). Quanto às reacções corporativas, pode-se constatar uma diversidade de comentários e posições oficiais. Um curioso editorial do órgão informativo da União de Grémio dos Espectáculos deixava um alerta que resume exemplarmente a expectativa geral em relação à nova legislação: “Não esqueçamos, porém, que as leis, como as árvores, só darão bons frutos, se lhes forem prestados diligentes cuidados de assistência, e, entre eles, as duas operações de oportunidade ciclar, o corte e o excerto, e, para já, a maior prudência nos regulamentos“ (Boletim da União, XI/XII- 1971: 1). Seixas Santos (apud Cunha, 2005: 147) considera positivo o facto de a lei aprovada ter tentado retirar todas as referências corporativas ao texto, assim como a imposição das “quotas“ e do “imposto adicional“ apresentarem boas perspectivas de aumentar consideravelmente a produção. Cunha Telles atribui à lei uma importância fundamental não só no aumento da produção, através do IPC, mas sobretudo pela criação de “condições para a sua exibição, consagrando a quota de écran“ (Cinema Novo Português, 1985: 57). Apesar de aprovada em Janeiro de 1971, e de publicada em Dezembro seguinte, a regulamentação da lei revelar-se-ia um processo moroso e penoso para aqueles que lhe reservavam enorme expectativa. Pareciam concretizar-se todos os alertas feitos durante a discussão na Assembleia Nacional a propósito de uma suposta obscuridade na regulamentação da lei. A nova legislação entregava à responsabilidade do IPC o estabelecimento anual da percentagem de filmes estrangeiros a distribuir em função da produção de filmes portugueses, assim como a divisão do contingente pelas empresas distribuidoras. Para a 157 exibição, também ficava estabelecido um regime de “quotas“. À semelhança do “contingente“ de distribuição, a nova lei previa um “contingente“ de exibição, a designada “quota de ecran“, cuja aplicação e regulamentação dependerá também do estabelecido pelo IPC (Idem, 29-I-1971: 1521). À semelhança do “contingente“ da distribuição, esta “quota“ também procurava beneficiar directamente a produção. Procurando consensos, a comissão nomeada pela SEIT59 para estudar e preparar a regulamentação decidiu pedir a colaboração dos vários parceiros da actividade cinematográfica. Mais uma vez, estes parceiros tentaram exercer as influências possíveis na defesa dos seus interesses. A criação do previsto novo imposto “adicional“ continuava a ser o ponto de discórdia entre produtores, que iriam ser os principais beneficiados, e os sectores da distribuição e da exibição, que tudo fizeram para atrasar a regulamentação da nova lei. Na sessão do dia 14 de Março de 1973, o deputado Magalhães Mota levava à Assembleia Nacional o seu protesto em relação ao atraso da regulamentação da lei do cinema. Em resposta, a SEIT justifica a demora dos diplomas com a complexidade e conflito de interesses revelados pelos diversos sectores. Por outro lado, devido à orgânica burocrática do aparelho estatal, as propostas dos regulamentos percorreram “outros departamentos governamentais que tiveram de apreciar aqueles textos“ e apenas foram entregues ao grupo de trabalho em Outubro de 1972. Finalmente, em Janeiro e Fevereiro seguintes, a OCDE convocou “peritos“ portugueses a Paris para apreciar a nova lei de cinema portuguesa “em face dos compromissos assumidos pelo nosso país perante aquela organização.“ Aprovados e revistos os textos em definitivo, em Fevereiro, os regulamentos foram enviados ao Governo (Idem, III/IV- 1973: 6-8). Em Abril e Junho seguintes, foram publicados dois decretos-lei que regulamentavam o funcionamento do IPC e adoptam outras providências atinentes à execução dos princípios gerais definidos na Lei 7/71. Em Julho seguinte, a lei entrava finalmente em vigor. Quase dois anos após a publicação da lei, no final de Outubro de 1973, o IPC conhecia finalmente o seu secretário-geral. Carlos Assis de Brito, “um administrador com larga experiência nos meandros da comercialização de filmes“ (Plateia, 10-XI-1973: 7), que “tomará sobre os seus ombros uma tarefa ciclópica: 59 A comissão de regulamentação foi composta por representantes da SEIT (Caetano de Carvalho) e dos diversos organismos corporativos: José Maria Alves, Manuel Félix Ribeiro (Cinemateca), Pinto Caldeira, Manuel Pires, Alberto Pelotte, Paulo Rosa, Brum do Canto (SNPC), Vasco Morgado, Lopes Ribeiro (produtor), Virgílio Macieira e Faria de Almeida (realizador). Para ajudar aos trabalhos, foram ouvidas opiniões específicas ligadas aos sectores da actividade cinematográfica: Manuel Telles, Allen Valle, Galveias Roque (produção) e José Gil (laboratórios). 158 marcou-se passo durante tantos anos, ficaram tantos problemas por resolver, agravaram-se tantas situações, que o esforço a despender requer a sagacidade de um David e a força de um Golias“ (Idem, 7-IV-1973: 7). Assis de Brito, para além de ser sobrinho de António Lopes Ribeiro, desenvolveu a sua actividade cinematográfica no sector da distribuição, sobretudo na empresa Cineasso. Apesar da nomeação de uma figura relacionada com o sector da distribuição poder significar uma cedência aos interesses das empresas cinematográficas, o novo director-geral do IPC daria todas as garantias de isenção e de gestão equilibrada do organismo. Inspirado e influenciado por organismos estrangeiros bem sucedidos – Instituto Nacional de Cinema brasileiro (Diário das Sessões, 7-I-1971: 1265), britânico ou sueco (Celulóide, X-1968: 1) –, o novo organismo parecia fadado a recuperar a influência estatal na produção perdida desde a criação do CPC. Para Bénard da Costa, o “Estado (mesmo que o não confessasse) lera atentamente“ O Ofício do Cinema em Portugal. Do mesmo modo, parecia evidente um certo receio do Estado a propósito da “intromissão“ da Fundação Gulbenkian no apoio à nova geração do cinema português (Costa, 1991: 130). O Conselho de Cinema, outro órgão do IPC, também sofreu profundas alterações em relação à constituição e dinâmica anterior. Duplicando o número de membros, o órgão teria como presidente o responsável máximo pela SEIT e como vice-presidente o director-geral da Cultura Popular e Espectáculos, sendo composto por uma ampla representação dos diversos interesses da actividade cinematográfica.60 O diploma previa ainda a participação de um representante do Ministério do Ultramar, quando se tomarem decisões a aplicar nas províncias ultramarinas, e ainda “quaisquer individualidade cuja participação seja de interesse para os assuntos a tratar“, sem direito a voto e por convite expresso do responsável máximo do SEIT. Em Março de 1974, era apresentado o primeiro plano de produção do IPC que, de uma forma inédita, privilegia abertamente um núcleo de cineastas do novo cinema. De um total inédito de vinte e três projectos apresentados, o Conselho de Cinema decidiuse por beneficiar projectos de fundadores e membros do CPC, um estreante e Manuel 60 Integravam ainda o Conselho de Cinema o presidente da Corporação dos Espectáculos, quatro representantes da mesma corporação indicados pela secção de cinema, representante da Junta de Educação Nacional, representante do IMAVE, secretário-geral do IPC, director do Serviços de Espectáculos, chefe da Repartição do Teatro, Cinema e Etnografia, director dos Serviços do Trabalho da Direcção-geral do Trabalho e Corporações, um representante do Cinema de Amadores e um crítico da especialidade nomeados pela SEIT. 159 Guimarães, uma figura do velho cinema que procurara por várias vezes a renovação.61 Na curta-metragem, de quarenta e um projectos concorrentes foram contemplados cinco projectos de jovens promessas.62 O orçamento para o primeiro plano de produção despertou muita expectativa no meio cinematográfico nacional. Cerca de um ano antes da sua aprovação, aquando da publicação da regulamentação da lei 7/71, vários cinéfilos, entre eles Vitoriano Rosa, exultavam com os “meios financeiros jamais imaginados entre nós“ e lembravam que “poucos países do mundo podem orgulhar-se de vir a dispor, por intermédio dos cofres do Estado, de somas tão astronómicas“ (Plateia, 5-V-1973: 7). Procurando refrear os ânimos, Caetano de Carvalho alertava para os riscos de previsões sem conhecimento de dados estatísticos credíveis e para o facto do orçamento do IPC não beneficiar exclusivamente a produção, mas também o Fundo de Socorro Social, Caixa de Previdência e Câmaras Municipais (Idem, 26-V-1973: 1). A confirmação de um elevado montante permitiu beneficiar um total de oito longas-metragens, ou seja, um plano do IPC igualava os dois primeiros planos do CPC. Como alerta Bénard da Costa, o cinema português passou “a contar com 10 vezes mais dinheiro do que em 68 tinha (3800 contos foi a verba do Fundo nesse ano, e foi um recorde)“ (Costa, 1985: 35). A nova reforma tributária dotou o IPC de um orçamento que permitia promover uma política que privilegiasse a produção e a formação de um corpus para o cinema português, tal como havia proposto o CPC. Propositadamente ou não, o IPC lograra “sangrar“ um dos principais “inimigos“ à política cinematográfica oficial, permitindo “a continuação da política da Gulbenkian com outros meios“ (Idem, 1991: 13). Por outro lado, o IPC e o Conselho de Cinema faziam valer “claramente uma vontade de saneamento“ do cinema português, excluindo sobretudo os “tradicionais realizadores do cinema comercial, homens que de há 30 anos para cá têm feito uma triste carreira na cedência moral e na mediocridade profissional“ (Ibidem). Procurando reagir à suposta estratégia de “esvaziamento“ do CPC promovida pelo IPC, que ia “aliciando“ os cooperantes com as “promessas“ de financiamento, alguns membros do CPC propõem uma redefinição para a cooperativa: “poderá vir a concentrar a sua acção num programa de carácter mais experimental“ (Cinéfilo, 16-III61 Os contemplados do primeiro plano foram: Manuel Guimarães (Cântico Final), Artur Ramos (Matai-vos uns aos Outros), Manuel de Oliveira (Benilde ou a virgem-mãe), António de Macedo (O Princípio da Sabedoria), Fonseca e Costa (Mefistófeles e Maria Antónia), Paulo Rocha (A Ilha dos Amores), Cunha Telles (Continuar a Viver) e Sá Caetano (Os Corpos Celestes). 62 Lauro António (Vamos ao Nimas), Ricardo Ruas Neto (A Lenda do Mar Tenebroso), António Escudeiro (Os Últimos Aventureiros), Sinde Filipe (O Piano) e Hélder Mendes (As Aves Migratórias). 160 1974: 22). Outro factor revelador da influência do novo cinema no novo Conselho de Cinema é a adopção do projecto Museu da Imagem e do Som, reclamado n'O Ofício do Cinema em Portugal e iniciado pelo CPC, como analisarei no capítulo seguinte. Luís de Pina lembra que “alguns comentadores falam em hipocrisia do governo, em reconhecer a esquerda, em tentar salvar as aparências“. Mas, na sua opinião, o sucedido tem uma explicação óbvia: “os membros do Conselho sentiam já que outro cinema não era possível, que o peso das novas soluções apontadas de há alguns anos pelos novos cineastas, fosse qual fosse a sua orientação, tinha de levar finalmente à reformulação do tipo de cinema que interessava fazer entre nós“ (Pina, 1977: 84). Influência capital neste plano teve, provavelmente, Pedro Pinto, sucessor de Moreira Baptista na direcção da SEIT. Empossado em Novembro de 1973, o novo Secretário de Estado pertence a uma geração política influenciada pela renovação marcelista. Segundo testemunhos, o novo dirigente “tinha ar de ser uma pessoa polida e com quem se podia negociar“ (Lopes, 1985: 69). Vindo de Paris, o novo responsável pelo cinema mantinha relações de amizade com Artur Ramos e, por intermédio deste, travou conhecimento com diversas figuras do novo cinema e da oposição cultural à política anterior (Macedo apud Cunha, 2005: 154). De uma forma explícita, Luís de Pina atribui a Pedro Pinto a responsabilidade do Conselho de Cinema ter resolvido “abrir um pouco os critérios de julgamento dos projectos, quer no plano legal quer no plano político“ (Pina, 1986: 170). Aparentemente, os sectores mais ortodoxos do regime, que desconfiavam da nova geração, não terão aceitado bem a relativa abertura preconizada por Pedro Pinto. Alguma imprensa da época fazia eco da suposta substituição do titular da SEIT, dando certa a eventual nomeação de Caetano de Carvalho como o próximo secretário de estado (Plateia, 23-III-1974: 7), o que provavelmente não se concretizaria por causa do golpe militar de 25 de Abril de 1974. 2.3.2. A Escola Superior de Cinema Paralelamente à discussão da nova lei de cinema, decorreria também o processo de reforma do Conservatório Nacional que passava, entre outras coisas, pela inclusão do ensino de cinema. 161 Em Janeiro de 1967, Inocêncio Galvão Teles, então ministro da Educação Nacional, designou António Lopes Ribeiro, na qualidade de vogal da Junta Nacional de Educação, para relator de um projecto intitulado Sugestões para uma revisão dos estudos do Conservatório Nacional, apresentado por Ivo Cruz, então director da instituição. Na primeira sessão dedicada à elaboração do referido projecto, Lopes Ribeiro apresentou uma proposta que colheu a unanimidade dos presentes: “sugeri que seria útil uma visita prévia às principais escolas europeias de música, de dança e de artes dramáticas“. Desta viagem, realizada pelo próprio Lopes Ribeiro e por Ivo Cruz, resultaria o “1.º Relatório referente à Reestruturação dos estudos do Conservatório Nacional“, apresentado em 22 de Julho de 1967 (Ribeiro, 1972: 7-9). No decurso de trinta e dois dias, estes observadores visitaram trinta e três estabelecimentos de ensino em oito países da Europa, mas apenas em três existia o ensino de cursos de arte cinematográfica. Na generalidade dos países, o estudo do cinema é ministrado por institutos especializados, como o IDHEC ou a London School of Film Technique (Ibidem: 58-59). Apresentadas as observações recolhidas pela “missão de estudo no estrangeiro“, Lopes Ribeiro ficou incumbido de elaborar um segundo relatório, agora destinado a tecer conclusões tendo em vista a reforma do Conservatório Nacional. Apresentado a 6 de Outubro seguinte, este relatório incluía um ponto dedicado à questão do ensino do cinema no Conservatório Nacional. “Razões por que se não propõe a criação de uma escola oficial de cinema“ é a entrada no índice do relatório que introduz a reflexão de Lopes Ribeiro sobre a questão. Apoiando-se na “experiência adquirida“, o antigo cineasta “oficial“ do regime revela a sua “convicção de que, no caso português, o progresso da cinematografia não depende basilarmente da criação de uma escola nacional formadora de cineastas.“ Entre os argumentos contam-se: “o condicionalismo asfixiante do mercado interno“, “as deficiências gritantes da infra-estrutura industrial“, a dificuldade em “recrutar para essa escola de cinema pessoal docente habilitado“ e “a aprendizagem dos ofícios cinematográficos ainda se faz fundamentalmente de forma empírica e artesanal“. Posto isto, Lopes Ribeiro propõe a continuidade da política cinematográfica do regime: “o sistema adoptado até aqui pelo Fundo do Cinema Nacional, enviando bolseiros às escolas de cinema, estúdios e laboratórios estrangeiros, parece-nos largamente suficiente e tem provado ser bastante eficaz“ (Ibidem: 94-96). Em Dezembro de 1969, José Hermano Saraiva, à data Ministro da Educação Nacional, incumbiu Lopes Ribeiro de redigir um anteprojecto de lei baseado nas 162 conclusões do segundo relatório. O projecto de lei elaborado por José Hermano Saraiva respeitava as conclusões de Lopes Ribeiro e não previa a inclusão do cinema na reforma do Conservatório Nacional. Quando este projecto de lei deveria ser apresentado à Assembleia Nacional e à Câmara Corporativa, José Veiga Simão é nomeado Ministro da Educação Nacional e o anteprojecto de lei é então reavaliado. Lopes Ribeiro foi então consultado pelo novo responsável ministerial a propósito dos relatórios por si elaborados e pelo anteprojecto de lei existente (Ibidem: 10-11). Em 30 de Setembro de 1971, Veiga Simão anuncia a reforma do Conservatório Nacional, nomeando para o efeito uma comissão orientadora da reforma presidida “pela distinta musicóloga D. Madalena de Azeredo Perdigão“ (Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, IX-X- 1971: 1). Para consultor da reforma na área cinematográfica, a esposa do presidente da Gulbenkian nomeou pouco depois Alberto Seixas Santos, uma figura do novo cinema que Bénard da Costa classifica como a “eminência parda“ de todo o movimento, “tendo tido nos bastidores um papel fundamental“ (Costa, 1985: 41). Em Maio seguinte, a Comissão orientadora propôs ao Ministério a constituição de um subgrupo de trabalho dedicado exclusivamente ao cinema.63 Alberto Seixas Santos começou por rejeitar categoricamente os pareceres de António Lopes Ribeiro em relação à não viabilidade da criação de uma escola superior de cinema na reforma do Conservatório. Conhecedor exímio da London School of Film Technique, que frequentou como bolseiro, e do IDHEC, que conhecia através de amigos, Seixas Santos traçou um plano curricular tributários dos estabelecimentos que eram uma referência europeia no ensino cinematográfico. A 19 de Novembro do ano seguinte, através da televisão pública, Veiga Simão anunciava finalmente a criação de novas instituições de ensino superior, entre as quais se incluía o Ensino Superior de Cinema.64 O corpo docente convidado procurava responder a questões práticas como o aproveitamento de disciplinas já existentes no Conservatório (Eduardo Prado Coelho e Rui Mário Gonçalves), a valorização de figuras 63 Uma vez aprovado, esse grupo de trabalho integraria figuras do novo cinema como Cunha Telles, Paulo Rocha, Fernando Lopes e outras figuras de reconhecido valor como José Vieira Marques e Bénard da Costa. Segundo Seixas Santos, o critério de seleccionar estas figuras foi sobretudo a experiência adquirida em matéria cinematográfica, quer em instituições estrangeiras como em actividades nacionais ligadas ao cinema (Vida Mundial, 20- IV-1973: 18-19). 64 A estrutura do curso dividia-se por quatro anos – um de formação geral e três de especialização – e conferia aos seus finalistas o grau académico de bacharelato. Ao contrário de todas as experiências anteriores, este curso era ministrado em regime de horário completo, este curso exigindo uma dedicação total aos seus alunos. Este facto serviu de pretexto para algumas vozes reclamarem bolsas de estudo para os frequentadores do curso. Os dezanove candidatos admitidos no primeiro ano respondiam aos prérequisitos exigidos para frequência do curso: diploma do 7.º ano de ensino liceal ou equivalente e idade inferior a 35 anos (Plateia, 27-I-1973: 13). 163 com passado e experiência na actividade cinematográfica (Paulo Rocha, Fernando Lopes e Cunha Telles) e a tentativa de chamar para a área cinematográfica figuras com conhecimentos interdisciplinares, como eram os casos de Luís Filipe Pires, Mário Barradas e Alberto Ferreira (Vida Mundial, 20-IV-1973: 18-19). Por iniciativa do Ministério da Educação Nacional, com a colaboração da Fundação Gulbenkian, o novo poder político fazia uma nova demonstração de confiança à nova geração. Para a recém-criada Escola Piloto de Cinema do Conservatório Nacional, integrada numa reforma geral no ensino artístico português, é nomeado director Alberto Seixas Santos, que se faz acompanhar pelos principais nomes do “núcleo duro“ do CPC. Não restam dúvidas, no meu ponto de vista, que este curso é “filho“ exclusivo do triunfo da geração do novo cinema. O melhor exemplo desta paternidade, na minha opinião, é a própria selecção dos docentes da instituição. Para o seu director, as principais consequências da nova escola superior seriam, entre outras, a “afirmação consciente duma profissão e duma classe“, a “formação de quadros jovens, competentes e altamente especializados, com uma nova consciência da sua função social“ e a “actualização através de seminários de reciclagem de profissionais já em exercício“. De uma forma geral, a Escola de Cinema pretendia conciliar a “longa prática empírica“ e “uma boa formação prático-teórica“, preparando os seus futuros formandos para o desenvolvimento de uma cultura cinematográfica e para mercado de trabalho (Ibidem: 23). Para Luís de Pina, a criação da Escola de Cinema é, sobretudo, um sintoma de um interesse manifestado acentuadamente pelo poder político em relação ao cinema português e às reivindicações de renovação preconizadas pelo novo cinema (Pina, 1977: 80). No entender de Paulo Filipe Monteiro, o aspecto mais significativo da criação desta instituição reside nas figuras escolhidas para a estruturar e dirigir: a chamada de Seixas Santos significa o reconhecimento oficial do contributo de uma “facção“ de elementos do novo cinema com menor intervenção política oposicionista e, consequentemente, com maior intervenção oposicionista estética (Monteiro, 2000: 326-329). 2.4. Durante e depois de Abril: refundar todo o cinema português “A 29 de abril de 1974, cineastas e figuras ligadas às artes desceram a rua São Pedro de Alcântara em Lisboa para ocupar o Instituto Português de Cinema (IPC), no seguimento do golpe militar 164 do dia anterior. A marcha dava corpo a uma ambição recente: a refundação de todo o cinema português, do seu enquadramento legal às estruturas de produção, distribuição e exibição até à conceção do seu papel político e social num Portugal novo. No contexto revolucionário emergente, o cinema português deveria atuar como motor transformador do país, libertando-se ao mesmo tempo da hegemonia do cinema norte-americano que tinha asfixiado a sua produção e exibição.“ (Costa, 2014: 10) Num curto parágrafo, José Filipe Costa conseguiu resumir de forma esclarecedora o que aconteceu nos meses imediatamente seguintes ao 25 de Abril de 1974: “a refundação de todo o cinema português, do seu enquadramento legal às estruturas de produção, distribuição e exibição até à conceção do seu papel político e social num Portugal novo.“ Os cineastas trataram, desde cedo, de liderar esse momento e movimento revolucionário, na expectativa de aproveitar uma “oportunidade histórica para retirar o poder da distribuição e exibição em fazer circular e reproduzir o hegemónico cinema norte-americano pelo país, com a sua força de assimilação política e cultural“, aquele que foi o momento “em que mais nítida foi a linha divisória entre o setor de produção e o setor da distribuição e exibição na história do cinema português.“ (Ibidem: 11) Entre as medidas mais radicais, os cineastas chegaram mesmo a discutir a possibilidade de “abolição total da sua entrada [filmes norte-americanos] no mercado português“ ou a “socialização de toda a atividade cinematográfica“. (Ibidem) Nesse momento histórico, parafraseando António-Pedro Vasconcelos, os cineastas queriam “tomar conta do cinema“, com tudo o que isso significava, ou seja, não controlar apenas a produção de cinema português, mas também todo o outro cinema que viesse a entrar e a ser exibido no país (Ibidem: 28). Para tutelar toda a actividade cinematográfia, os cineastas pensavam num organismo centralizador, o Instituto Português da Actividade Cinematográfica (IPAC), que concretizaria na prática a socialização dos meios de produção, distribuição e exibição. Esta nova estrutura pretendia “alargar o cinema às classes populares“, dandolhes “cinema português, falado em português“, para “promovê-las cultural e politicamente através do filme, sob pena de se perder um dos mais poderosos meios de expressão e comunicação de massas“ (Ibidem: 36): “Ao diagnóstico histórico subjazia uma visão prospetiva, cujo horizonte fundamental era a socialização conjunta dos meios de produção, distribuição e exibição. O IPAC seria a face operativa de todo este projeto, entidade a gerir pelos “trabalhadores do filme, seja qual for a sua especialização.“ Apesar da vontade de um verdadeiro 165 relançamento de todo o setor cinematográfico, o IPAC deveria nascer à sombra daquilo que a Lei 7/71 institucionalizava como responsabilidade do Estado em relação ao cinema. O seu sistema de financiamento era o que vigorava no momento e as suas instalações funcionariam no edifício do IPC.“ (Ibidem: 37-38) Naturalmente, desde cedo se adivinhava uma eventual cisão no interior do Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema (SNPC), nomeadamente devido à incompatibilidade de interesses entre os sectores da produção (técnicos e realizadores) e da distribuição e exibição (arrumadores, empregados de bilheteira e projecionistas). No fundo, este era já um conflito que se vivia no interior do SNPC desde a sua criação no contexto corporativo do Estado Novo, numa lógica de representação unitária e concentracionária dos trabalhadores. Em menos de um mês, em inferioridade numérica em relação aos trabalhadores dos sectores da distribuição e exibição, a maioria dos trabalhadores do sector da produção deixava o histórico SPC para criar o novo no Sindicato dos Trabalhadores do Filme, mais tarde denominado Sindicato dos Trabalhadores da Produção do Cinema e Televisão (STPCT).65 O principal motivo de discórdia era o ambicioso projecto dos cineastas e técnicos de refundar o cinema português “a partir da base“, o que implicava reorganização dos circuitos de exibição até então “largamente dependentes do imperialismo americano“, algo que preocupava e assustava os trabalhadores da distribuição e exibição: “Assim e para sermos claros, aos interesses (legítimos, de resto) dos trabalhadores da exibição e da distribuição - largamente dependentes do imperialismo americano e das manobras das firmas que monopolizam o comércio do cinema em Portugal - opõem-se os interesses dos trabalhadores do filme, isto é: daqueles poucos (ainda) que em Portugal querem que o cinema - desde a produção à exibição seja português, anti-imperialista e com uma função social e política que lhe tem sido, sistematicamente, negada.“ (Cinéfilo, 25-V-1974). A alternativa ao modelo que vigorou no mercado cinematográfico português nas décadas anteriores seria então construir um modelo de produção e circulação de cinema com um cunho mais nacional, mais de acordo com a realidade social e a identidade cultural do país ou, noutras palavras mais usadas na época, “fazer do cinema em Portugal um instrumento dinâmico popular de cultura e consciencialização política“. (Costa, 2014: 22) 65 Para mais informações sobre as linhas programáticas destes sindicatos e dos partidos políticos que os sustentavam, aconselha-se a leitura atenta de Costa, 2014: 40-45. 166 Mas são os militares, através do Movimento das Forças Armadas (MFA), quem anuncia a abolição da censura e a necessidade de elaborar uma nova lei do Cinema, um novo quadro legal que deveriam “ser propostos pelos próprios profissionais“: “Na complexa situação política entre 1974 e 1979, a preponderância dos militares na sociedade portuguesa surge como uma referência incontornável. Com ou contra eles, apoiando uma ou outra das suas facções, se posicionavam as diversas forças políticas. Ora, a facção preponderante no MFA, a partir de Setembro de 1974, assume como objectivo político a criação de uma sociedade socialista, de inspiração marxista. Nesta, a cultura popular, numa visão essencialmente basista, é encarada não apenas a expressão da identidade nacional, mas sobretudo como um factor de mobilização do povo para os novos desígnios que lhe eram traçados. A animação cultural, sob a forma de “campanhas“ procura não apenas promover a alfabetização, mas também o esclarecimento político e a dinamização da cultura popular como instrumento de mobilização.“ (Fontes, c: em linha) Mas, em pouco tempo, o consenso que ligava as figuras que marcharam no dia 26 de Abril foi “estilhaçado“ durante o Período Revolucionário em Curso (PREC): “Os cineastas dividiram-se quanto ao modelo institucional a adotar, que tipo de estruturas de produção criar e que agentes deveriam implementar estas mudanças“ (Costa, 2014: 10-11). As primeiras medidas da política de cinema de Vasco Pinto Leite66, nomeado Director-Geral da Cultura Popular e dos Espectáculos em Agosto de 1974, iam também no sentido de uma gestão de consensos entre os vários “grupos representativos“ da actividade, criando para esse feito a Comissão Consultiva para as Actividades Cinematográficas (CCAC)67, que funcionaria no Ministério da Comunicação Social até 23 66 Vasco Pinto Leite (1953-) foi um engenheiro civil português que se notabilizou nos anos 60 enquanto cineasta amador. Após o 25 de Abril de 1974, foi Director Geral da Cultura e Espectáculos e Presidente da Comissão Administrativa do Instituto Português de Cinema, por inerência do cargo, durante o II Governo provisório. Durante os V e VI Governos provisórios desempenhou as funções de Director do Gabinete de Programação Cultural e Delegado da Secretaria de Estado da Cultura na Comissão que elaborou o Projecto de Acordo Cultural com os novos países de língua oficial portuguesa. 67 Esta entidade era composta por 36 elementos, 8 funcionários públicos e 24 representantes de várias organizações. Os próprios partidos políticos (PCP, PS e PPD) tinham lugar na CCAC, que contava com a participação das seguintes entidades (por ordem alfabética): Associação Portuguesa de Estúdios Laboratórios Distribuidores e Exibidores de Filmes; Associação Portuguesa de Produtores de Filmes (em formação); Centro Português de Cinema; Comissão de Classificação Etária de Espetáculos Cinematográficos; Direção de Serviços de Espetáculos; Escola Piloto de cinema do Conservatório Nacional; Federação Portuguesa de Cinema de Amadores; Comissão Portuguesa da Federação Portuguesa de Cineclubes; Festivais de Cinema e Animação Cultural; Instituto Português de Cinema; Instituto de tecnologia Educativa (Ministério de Educação e Cultura); Ministério do Trabalho (Direção-Geral de Trabalho); Partido Comunista Português; Partido Socialista; Partido Popular Democrático; Radiotelevisão Portuguesa; Secção de Cinema da Associação Portuguesa de Críticos (em formação); Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema e Sindicato dos Trabalhadores da Produção de Cinema e Televisão (em formação) (Costa, 2014: 57-58). 167 de Janeiro de 1975, com a missão de contribuir para a definição das políticas do Estado para o cinema. Face às pressões dos realizadores, e receando que Vasco Pinto Leite privilegiasse as reivindicações dos sectores ligados à produção, as empresas de distribuição e exibição movimentaram-se no sentido de reforçar a sua posição através da pressão de organismos internacionais: “Em 1975 registaram-se diversas visitas do Secretário-Geral da Federação Internacional das Associações de Produtores de Filmes, Alphonse Brisson, a Portugal. A Federação ameaçava boicotar a entrada de filmes estrangeiros em Portugal caso a nova lei penalizadora do modo de funcionamento da distribuição e exibição fosse aprovada. Na última visita a Portugal, Brisson fez-se mesmo acompanhar pelos representantes americano, inglês, francês e italiano. As potências de produção cinematográfica juntavam-se assim ao braço de ferro que se fazia entre os setores no país.“ (Ibidem: 65). Neste contexto, as cooperativas cinematográficas juntaram-se na Associação de Cooperativas e Organismos de Base da Atividade Cinematográfica (ACOBAC), formando “uma frente comum de oposição às políticas de cinema propostas por Vasco Pinto Leite“ (Ibidem: 53). As cooperativas pretendiam que a nova legislação incluísse “uma cláusula que contemplasse a canalização de uma percentagem das receitas dos filmes diretamente para as cooperativas“, solicitação não atendida por Vasco Pinto Leite, alegando “que a capitalização das cooperativas não se integrava nos princípios socialistas da nova constituição“ (Ibidem: 66). Recusando a referência ao capitalismo, os realizadores exigiam essa medida como garantia de “autonomia e independência ideológica das cooperativas relativamente ao Estado“ (Ibidem: 67). Em Fevereiro de 1975, o CCAC acabaria por ser extinto por Pinto Leite e substituído pelo Grupo de Trabalho (GT), uma entidade mais ágil composta apenas por representantes da Comissão Dinamizadora Central da 5ª Divisão do MFA, do IPC, dos cineclubes, e dos sindicatos STPCT e SPC (não comparecendo às primeiras reuniões, o SPC acabaria por ser substituído pelo INATEL na composição do GT) (Ibidem: 69-70). A acção GT seria decisivamente influenciada pela tentativa de golpe reaccionário comandado por António de Spínola a 11 de Março de 1975, acelerando a “via para o socialismo“ sobre a orientação de Jorge Correia Jesuíno, Ministro da Comunicação Social em três governos provisórios consecutivos (24 de Fevereiro a 19 de Setembro de 1975): “Com o 11 de março de 1975 parece, finalmente, ter sido ultrapassado o espírito de colaboração de classes que travou por completo a ação do cinema justamente no momento em que ele melhor poderia ter servido a luta das classes trabalhadoras pela sua 168 emancipação. Esperam os profissionais de cinema poder, a partir do 11 de março, tomar em suas mãos o destino do cinema nacional (deixarem de ser meros “consultivos“ para passarem a ser mais “deliberativos“) e superar as inúmeras divergências individuais e políticas que, até então, não tinham permitido uma plataforma de entendimento onde, na pluralidade ideológica inevitável, se pudesse conceber a aplicação de princípios de unidade tendentes à formação de uma frente cultural interveniente e eficaz.“ (Ibidem: 76) Mas, um ano após o 25 de Abril, ainda nenhum plano de produção tinha sido aprovado pelo IPC, e o imposto adicional criado pela Lei 7/71 (15% das verbas provenientes dos bilhetes de cinema) estava a ser direccionado para as campanhas de Dinamização Cultural do MFA, medida que desagradou aos representantes dos realizadores e que motivou o STPCT a abandonar o GT. Dois meses mais tarde, “vendo diminuir a sua capacidade de intervenção“, o STPCT tentou regressar ao GT, mas sem sucesso (Ibidem: 78-80). Seria então o novo GT a definir o Plano de Produção de 1975 (tornado público a 3 de Junho de 1975) e, sobretudo, o designado Plano Intercalar: “O Plano Intercalar do Grupo de Trabalho previa um conjunto de tarefas e atividades a cumprir tão abrangentes que lhe delega, por inerência, um conjunto de competências de grande alcance na redefinição de todas as estruturas, atribuindo-lhe uma posição estratégica na negociação com as instituições, organismos e associações de cinema. E, sobretudo, permitia-lhe a gestão do processo de fundação de uma Distribuidora Pública e de um Circuito Popular de Exibição. No plano de coordenação e administração da produção, cabia ao Grupo de Trabalho a negociação de tabelas de serviços com laboratórios e estúdios, tabelas salariais, quadros técnicos do IPC, o apoio aos estabelecimentos técnicos, na qual se incluía a nacionalização da Tobis, o seu reequipamento e plano financeiro. As outras tarefas do Grupo de Trabalho eram: a constituição de um parque material de filmagem e de um parque humano, as chamadas Unidades de Produção, com “reconversão das produtoras existentes“; o estabelecimento de uma política de produção de filmes, o que englobava o lançamento de princípios orientadores e ainda a integração da produção no projeto de Dinamização Cultural; e o funcionamento de um Jornal de Atualidades. No capítulo da distribuição, previa-se a criação de uma Distribuidora Pública. O Grupo ficaria encarregue da sua gestão administrativa e financeira, coordenando esforços com o IPC, e de estudar opções para uma eventual nacionalização da distribuição. Era igualmente incumbido de sondar a existência de espaços e equipamento técnicos para a implementação de um Circuito Popular de Exibição e a utilização do circuito privado para distribuição dos filmes da Distribuidora Pública. Começava-se mesmo a constituir um parque de material, onde entrava uma quantidade de projetores de 16 mm de modo a fazer passar pelas sociedades recreativas um circuito alternativo de distribuição e exibição.“ (Ibidem: 80-81). 169 Naturalmente, o grupo de cineastas ligado ao STPCT e às cooperativas não se revia nas novas orientações políticas para o cinema e contestaria publicamente o plano de produção do IPC para 1975, considerando-o “ideologicamente inconsequente, divisionista e desenquadrado do processo revolucionário“68 (Ibidem: 88): “O Plano de Produção de 1975 não selecionava apenas os filmes a produzir no futuro, mas prefigurava também os pilares fundamentais de um sistema administrativo e económico, a erigir a médio e longo prazo. Mencionavam-se de novo diretrizes a serem traduzidas na lei de cinema, tal como a formação de uma distribuidora pública e de um circuito popular de exibição que, como já foi referido, integravam os Princípios Genéricos e o Plano Intercalar do Grupo de Trabalho. Peças importantes de um projeto estrutural e abrangente, à luz do qual deviam ser lidas as próprias escolhas dos filmes.“ (Ibidem: 85). Em reunião plenária que decorreu nas Caldas da Rainha, em Junho de 1975, os representantes das cooperativas resolveram, em retaliação às “arbitrariedades“ cometidas pelo IPC, pela Direcção Geral da Cultura Popular e Espectáculos e pelo próprio Ministério da Comunicação Social, retirar imediatamente os seus filmes de festivais e outros certames nacionais e internacionais (Cineclube, 5, VIII-1975: 20). Em pleno Gonçalvismo69, e na ressaca do 11 de Março, o Governo optou por um programa político de cinema em Portugal que previa “o controle estatal dos três ramos da atividade, o pleno emprego dos trabalhadores de cinema e a produção de um novo conjunto filmes a sintonizar com o processo revolucionário em curso“ (Ibidem: 99). Assim, em linhas gerais, existam dois grupos distintos com dois projectos alternativos para a reorganização do cinema português: “De um lado, estavam os elementos das Unidades de Produção criadas nesse ano no IPC e, do outro lado, aqueles que pertenciam às cooperativas de produção cinematográfica.“ (Costa, 2014: 11) O Núcleo das Unidades de Produção do IPC funcionou de Agosto de 1975 a Junho de 1976, chegando a agrupar cerca de centena e meia de trabalhadores, entre técnicos, administrativos e realizadores, caracterizou-se por uma tentativa de “estatização da produção“, tendendo para “a crescente concentração de toda a atividade num mesmo organismo que contemplava a propriedade estatal dos filmes, uma hierarquia centrada 68 José Filipe Costa (2014: 91-98) acompanha o interessante debate público, na RTP e no jornal Expresso, entre vários agentes políticos e figuras da cultura acerca do tipo de cinema levar ao país em revolução (capítulo 3.4. Cinema popular versus cinema de elites). 69 Vasco Gonçalves foi primeiro-ministro de 9 de Julho de 1974 a 19 de Setembro de 1975. Próximos do PCP, os governos de Vasco Gonçalves seriam responsáveis pela reforma agrária, pelas nacionalizações de várias empresas privadas (banca, seguros, transportes públicos, entre outros) e pela instituição do subsídio de desemprego e do salário mínimo para os funcionários públicos. 170 sobre o Estado“ (Ibidem: 117). Do outro lado, as cooperativas insistiam na “socialização e organização basista da produção, mas com independência das cooperativas relativamente ao poder estatal.“ (Ibidem: 118) A nomeação de Almeida Santos como Ministro da Comunicação Social, em Setembro de 1975, alteraria novamente o xadrez político: “A remodelação governamental decorrida na passagem do V para o VI Governo Provisório, nesse mesmo mês e, depois, o 25 de novembro, eram acontecimentos com força contrária às políticas de Vasco Pinto Leite, dando alento ao posicionamento das cooperativas no campo político. Para estas, a desagregação das Unidades de Produção no IPC era prioritária. Os novos governantes que passaram então a tutelar o cinema tiveram um papel significativo na reconfiguração desse campo. Almeida Santos, que vinha do PS, foi nomeado a 19 de setembro de 1975 para o lugar de Ministro da Comunicação Social, substituindo Correia Jesuíno. Mais tarde, em janeiro de 1976, David MourãoFerreira entrou para o lugar de Secretário de Estado da Cultura. Eduardo Prado Coelho foi escolhido para Diretor Geral da Ação Cultural ainda na vigência de Correia Jesuíno. Vasco Pinto Leite foi reconduzido, no seguimento da remodelação governamental, para o cargo de Diretor da Programação Cultural. O resultado destas movimentações no tabuleiro político foi o desmantelamento das Unidades de Produção.“ (Ibidem) Os acontecimentos políticos do 25 de Novembro de 1975, com a vitória da facção militar de direita, afastaram definitivamente o cinema da “via para a transição para o socialismo“, ditando praticamente a desintegração das Unidades de Produção (Ibidem: 129). No mesmo sentido, sanadas as divergências sindicais, o SPC voltava a ter um papel determinante na representação do sector junto do poder político, registando-se um natural “afrouxamento“ nos discursos e nas reivindicações mais radicais sobre a socialização dos sectores da distribuição e exibição: “Ao invés, em 1976, a entrada de filmes do estrangeiro no mercado português era agora muito desejada, por ser geradora de receitas a canalizar para a produção cinematográfica nacional.“ (Ibidem) 2.4.1. A inversão da marcha da História e do Cinema Os últimos 4 meses de 1975, “durante os quais a Cultura não teve Secretário de Estado“ (Dionísio, 1994: 242), foram agitados e reveladores da inversão da “marcha da História“ e da mudança de rumo que a sociedade portuguesa iria testemunhar nos anos seguintes. Em Outubro desse ano, na discussão na Assembleia da República dos artigos 171 da Constituição refentes à Educação e Cultura percebe-se que não é apenas um modelo de política cultural que está em questão, mas “são projectos de sociedade que estão em jogo“ (Ibidem: 244)70. A viragem ditada pelo 25 de Novembro de 1975, que se iniciara em Setembro com as primeiras medidas do VI e último Governo provisório (19 de Setembro de 1975 a 23 de Julho de 1976), faz-se “à margem da Constituição“ e de “uma profunda alteração de nomes, de cargos, de lugares, de popularidades“: “Uma parte das 'pessoas da cultura' muda, durante estes meses, de emprego, de vida e de funções. É bem evidente que a personalidade, os gostos, as relações amizade/ camaradagem dos responsáveis pela política cultural terão cada vez mais influência nos acontecimentos e nas deslocação dos pontos de fricção dos intelectuais e artistas com o Poder. A mudança de rosto das instituições não vai tão cedo parar. Trata-se ainda de 'reparar injustiças' e 'recuperar valores'. Mas agora contra um duplo inimigo, contra dois 'arbítrios' — o do regime anteriores ao 25 de Abril e o do 'sectarismo' dos governos anteriores a Setembro de 75. O grau de intervenção polícia da Cultura, sobretudo em certos sectores, diminui. (...) (...) É nas artes colectivas, que simultaneamente precisam de dinheiro para existir e onde a palavra entra, que os conflitos continuam, ou se instalam. O cinema e o teatro serão os protagonistas de lutas que ainda hoje não tiveram fim, centradas na atribuição de subsídios por parte do Estado, mas que ultrapassam em muito a questão económica. Por razões a que não são também alheias as filiações partidárias dos intervenientes, o cinema acabará por conhecer uma solução provisória para os seus problemas, enquanto será a vez de o teatro iniciar uma oposição frontal ao Poder.“ (Ibidem: 244-246) “Internamente, a SEC [Secretaria de Estado da Cultura] vivia, como todo o país, numa enorme indefinição institucional, sobretudo devido à presença no seio de grupos políticos muito radicalizados, com fortes apoios externos. O mais pequeno acontecimento era logo motivo de manifestações pró ou contra numa comunicação social igualmente partidarizada. Procurando reforçar os mecanismos de controlo, em Setembro de 1976, passa para a dependência do Conselho de Ministros. Entretanto vai assumindo novas atribuições, assim como novos meios, facto que aumenta a turbulência interna. Com a extinção da Junta Nacional de Educação em Fevereiro de 1977 são-lhe transferidas algumas das suas secções. Uma reforma importante ocorre em Agosto deste ano, quando é finalmente publicada da sua lei 70 “O PS, o PPD e o CDS tinham recusado um ponto de redacção proposta pelo PCP que dizia: 'Sem prejuízo da liberdade cultural, filosófica, estética, política, ideológica e religiosa, o Estado apoiará as necessárias transformações culturais da sociedade portuguesa, no sentido da construção de uma sociedade socialista'.“ (Dionísio, 1994: 245) 172 orgânica. As indecisões persistem quanto à sua integração na estrutura governativa. ...)“ (Fontes, c: em linha) A gestão do IPC neste período é um excelente exemplo dessa instabilidade. Depois de um ano e meio sem qualquer nomeação para os cargos dirigentes, nos 7 anos seguintes o IPC haveria de ser gerido por 9 Comissões Administrativas, até que a 23 de Setembro de 1982 seria nomeada a sua primeira Direcção71 (Matos-Cruz, 2002: 15-17). A segunda metade de 1975 foi particularmente “esquizofrénica“ na gestão do IPC porque este organismo acolhia no mesmo edifício os representantes das Unidades de Produção e das cooperativas, facções antagónicas com projectos distintos e irreconciliáveis (Costa, 2014: 125). A situação de confronto agrava-se quando, em Julho de 1975, o SPC denuncia a “delapidação“ do património do IPC, que está a ser gerido pelos “trabalhadores da produção“ (Henriques Espírito Santo, Luís Gaspar e José Fonseca e Costa), e ameaça ocupá-lo (Dionísio, 1994: 247). As negociações lideradas por Eduardo Prado Coelho, então Director-geral de Acção Cultural responsável pelo sector cinematográfico, agudizaram a situação com a instauração de um inquérito à gestão do IPC (Ibidem). Ainda em 1975, o Governo avançava com o projecto de “descentralização“ das estruturas de cinema: “em fins de Outubro, criou centros regionais de cinema, centros de produção de cinema amador, e nomeou, no princípio de Novembro, a Comissão Instaladora da Cinemateca no Norte“ (Ibidem: 249). Para Eduarda Dionísio (1994: 268-270), no início de 1976 torna-se mais evidente que o VI Governo provisório “deixava de ter uma política clara para a cultura“: “A sua política cultural começa por ser uma política silenciosa. A demarcação das acções do V Governo e do PCP faz-se sobretudo a nível de despachos e de gabinete. Trata-se de substituir pessoas em cargos, de dar cargos a pessoas de uma outra família política. Por outro lado, trata-se de não dar continuidade a realizações em curso (quando elas são conotadas com o PCP ou a esquerda derrotada em 25 de Novembro e não envolvem nomes de prestígio — caso da Cooperativa do Circo) e de retomar as iniciativas de prestígio anteriormente inviabilizadas (caso da Exposição de Paris, que se transformara em Exposição de Roma).“ Só em meados de Abril é que a situação é, de certa forma, esclarecida pela publicação de um documento oficial da SEC onde se anunciam alguns princípios 71 A 1.ª Comissão foi nomeada a 26 de Setembro de 1975; a 2ª Comissão a 25 de Agosto de 1976; a 3.º Comissão a 27 de Julho de 1977; a 4.ª Comissão a 27 de Julho de 1978; a 5.ª Comissão a 16 de Fevereiro de 1979; a 6.ª Comissão a 13 de Fevereiro de 1980; a 7.ª Comissão a 13 de Agosto de 1980; a 8.ª Comissão a 23 de Julho de 1981; e a 9.ª e última Comissão a 8 de Fevereiro de 1982; a 1.º Direcção seria nomeada a 23 de Setembro de 1982; a 2.ª Direcção seria nomeada a 23 de Setembro de 1983 e vigoraria até 6 de Março de 1987. A composição de cada Comissão e Direcção está disponível em Matos-Cruz, 2002: 21. 173 orientadores: descentralizar e reestruturar, ainda que a sua acção permanecesse uma “manta de retalhos“ onde as “relações públicas“ entre pessoas da cultura e dirigentes políticos se sobrepunham “à existência de um programa“ (Ibidem: 270-271). Ainda assim, segundo Eduarda Dionísio (Ibidem), o cinema era a excepção ao estilo cultural “passadista“, “sisudo“ e “populista“ que marcava a acção governativa da SEC, que “ensaiou uma alternativa aos circuitos dominantes“. Mas, se ao nível da exibição a política de intervenção estava definida, no que diz respeito à produção e ao IPC a situação era bem mais complexa: “(...) O confronto SEC/IPC tinha sido reactivado em Março, com um despacho que separava do IPC o Núcleo de Produção, a que se seguiu, em Maio, um despacho que o suspendia durante oito dias para 'arrumar a casa' e que não foi 'acatado'. Novo despacho instaura uma sindicância ao Núcleo de Produção. Em Junho, o confronto tinha subido de tom: um comunicado da SEC, que faz a história do processo, ameaça de despedimento 160 trabalhadores do Núcleo de Produção, acusados de 'inadequação profissional' para as funções que exerciam, de usufruírem de 'pagamentos irregulares' e de contraimento de avultadas dívidas. Aí se relembram as ilegalidades cometidas durante o mandato anterior (que incluía a violação de várias leis e decretos anteriores ao 25 de Abril que não tinham sido revogados) e a prática de 'censura' então exercida na definição de critérios para atribuição de subsídios (os argumentos estarem 'inseridos' no PREC e os currículos dos seus realizadores). (...)“ (Ibidem: 273) Mais uma vez, na opinião de Eduarda Dionísio (Ibidem) trata-se sobretudo de um julgamento político — “em nome da moral, das leis vigentes, mesmo que anteriores ao 25 de Abril e, ao mesmo tempo, em nome da democracia“ — que visava penalizar “as veleidades totalitárias“ do Gonçalvismo. O I Governo Constitucional toma posse a 16 de Julho de 1976: a SEC transita da Comunicação Social para a Presidência do Conselho de Ministros, mas a permanência de David Mourão-Ferreira na Secretaria de Estado da Cultura, e que por lá permaneceria mais tempo72, é o melhor indicador de que a política cultural será de continuidade e de “arrumar a casa“: “Começa-se agora um lento apagar de memórias recentes (cuja aceleração só se dará mais tarde), sem todavia abdicar de práticas (colectivas, críticas, frontais, ideológicas) que se foram entretanto instalando, sem direitos de autor. A 'democratização da cultura' (e mesmo a 'cultura popular' do primeiro tempo da inversão da marcha) passou para segundo plano nesta viragem. A questão das 'classes 72 David Mourão-Ferreira (1927-1996) foi Secretário de Estado da Cultura do VI Governo provisório (19 de Setembro de 1975 a 23 de Julho de 1976), do I Governo constitucional (23 de Julho de 1976 a 30 de Janeiro de 1978) e do IV Governo constitucional (22 de novembro de 1978 a 1 de agosto de 1979). 174 sociais' começa a perder actualidade, de forma mais visível.“ (Ibidem: 282) Entre Maio de 1974 e Agosto de 1975, segundo Eduarda Dionísio (Ibidem: 416), o poder político manteve, “no essencial, a estrutura herdada do antigo regime“, com uma política cultural dividida entre duas instituições complementares com tutelas distintas: a Secretaria de Estado dos Assuntos Culturais e Investigação Científica (renomeada de Secretaria de Estados da Cultura e Educação Permanente a partir de Dezembro de 1974) dependente do Ministério da Educação e Cultura; e a Direcção-Geral da Cultura Popular e dos Espectáculos dependente do Ministério da Comunicação Social. Entre Setembro de 1975 e 1977, com a criação da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), as políticas para o cinema deixam de ser responsabilidade do Ministério da Comunicação Social e passam a balançar “entre a dependência do Primeiro-Ministro (I e IV Governos) e o Ministério da Educação (II e III Governos)“ (Ibidem: 417). Ainda que oficialmente recusasse quaisquer “propósitos didácticos, centralizadores ou dirigistas“, a nova SEC pretendia, simultaneamente, “prosseguir a acção encetada para pôr fim a situações aberrantes ante-25 de Abril e que os governos provisórios não conseguiram solucionar“ e estabelecer um novo quadro legislativo para o sector cultural, “renega[ndo] praticamente tudo o que foi feito depois do 25 de Abril“, procurando ainda o “'desfazer' explícito do processo 'revolucionário'“ (Ibidem: 284). Com a situação no IPC em vias de ser normalizada, a atenção da SEC vira-se também para a distribuição e exibição. No centro do debate público estavam na altura a discussão de diplomas específicos para proteger o “filme de qualidade“73 (que ficariam isentos de taxas), para sobretaxar os filmes pornográficos74 (taxas diferenciadas para o hardcore e para o softcore) e para definir uma nova solução para a classificação etárias dos espectáculos. O mercado da distribuição e exibição conheceu uma natural expansão durante o PREC: 73 Como seria expectável, a atribuição da classificação “filme de qualidade“ teria episódios polémicos com alguns casos de filmes portugueses, nomeadamente a recusa de atribuição aos filmes Veredas (1978, de João César Monteiro) e Ana (1982, de António Reis e Margarida Cordeiro), ou a atribuição ao filme O Rei das Berlengas (1978, de Artur Semedo). 74 A questão da exibição de filmes eróticos e pornográficos foi uma das questões particularmente sensíveis no contexto da extinção da censura no pós-25 de Abril. Sobre esta temática específica, consultar: Cunha, Paulo. 2013. “A censura depois da censura: o caso dos filmes eróticos e pornográficos (1974-76)“. In Censura nunca mais! A Censura ao Teatro e ao Cinema no Estado Novo, ed. Ana Cabrera, 177 - 204. ISBN: 978-989-622-543-8. Lisboa: Alétheia Editores; e Cunha, Paulo; Ramos, Maria C. P. 2013. “Censura, Nunca Mais? Estudos de caso durante o PREC“. In Media & Jornalismo, 23: 75 - 94. Centro de Investigação Media e Jornalismo, Lisboa. 175 Tabela n.º 23 Dados sobre Salas de Cinema, Lotação, Sessões e Espectadores no circuito comercial (1970-1980) (fonte: dados compilados a partir de Dionísio, 1994: 484-486) Ano 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 Salas de Cinema 485 474 461 452 459 482 475 474 448 435 423 Lotação (milhões) 273 267 261 260 261 268 263 260 249 241 237 Sessões (milhares) 101 101 107 112 121 136 149 155 153 164 171 Espectadores (milhões) 27.9 27.1 28 28.9 35.6 41.5 42.8 39.1 34 32.6 30.7 O fim da censura e a oportunidade de ver filmes até aí proibidos terá sido fundamental para o aumento das salas de cinema, do número de sessões e do número total de espectadores. O período do PREC significou mesmo uma tendência que se verificou ao longo da década e que contrariava o crescimento da década anterior (Ver Tabela n.º 6). Nos primeiros anos da década houve uma redução residual (cerca de 5%) mas consecutiva do total de salas de cinema75, que de resto retomaria a tendência a partir de 1977, com uma quebra já na ordem dos 10% nos últimos anos. A situação do mercado nacional de distribuição e exibição sofrera algumas alterações significativas no início da década de 70: “Os distribuidores vão-se associando em grandes grupos (Lusomundo, Doperfilme, Mundial Filmes, Castello Lopes) e procuram adquirir o maior número possível de salas, em Lisboa, Porto e província. Investem também fortemente no ultramar (Sulcine e Mundáfrica), sobretudo a partir de Luanda, onde é fundada a Angola Filmes, enquanto as distribuidoras americanas fecham ou se associam, restando apenas a Rank Filmes (United Artists) e a Columbia Warner. O parque exibidor continua dominado pelo filme americano (made in Hollywood ou produzido fora da Califórnia), criando dificuldades ao filme português e ao cinema de outras origens, bem como às salas independentes. Também neste domínio António da Cunha Telles se mostra inovador, fundando uma produtora-distribuidora, a Animatógrafo, com um programa nitidamente cultural, responsável pela importação de algumas obras-primas estrangeiras, de Eisenstein a Renoir, passando por Jean Vigo.“ (Pina, 1986: 176) 75 Só em Lisboa, encerraram por estes anos os cinemas Oriente, Texas (ambos em 1970), Municipal, Éden Cinema Alcântara (amos em 1971), Salão Portugal, Chiado Terrasse e Salão Lisboa (todos em 1972) e o Palatino (1974). 176 Mas, gostava de observar os números referentes aos espectadores de forma mais minuciosa: Gráfico n.º 8 Espectadores, em milhões, nas salas de cinema (1970-80) (fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 486) 60 50 41,5 40 30 42,8 39,1 35,6 27,9 1970 27,1 28 28,9 1971 1972 1973 34 32,6 30,7 20 10 0 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 Tal como se verificou no número de salas, a década divide-se em dois momentos: crescimento do número de espectadores até 1976 e quebra sucessiva até 1980, ainda que mantivesse registo superiores à primeira metade da década. Na primeira fase, o aumento do número de espectadores estará, naturalmente, relacionado com a abertura de novas salas de cinema em Lisboa76 e em várias localidades de pequena e média dimensão, a popularidade dos “filmes pornográficos-soft (que, no entanto, perderam o apelo do 'recente e finalmente autorizado')“, o crescimento do circuito de cinema militante e da actividade cultural de organismos públicos (Biblioteca Nacional, Cinemateca Portuguesa, Direcção Geral de Acção Cultural, por exemplo) (Dionísio, 1994: 250-251). 76 Berna (21-X-1970), Apolo 70 (V-1971), Londres (30-I-1972), Castil (1973), Pathé (1973), Nimas (1974), Caleidoscópio (1-IX-1974), Cinebolso (1975), Quarteto (21-XI-1975). 177 Eduarda Dionísio (Ibidem: 257) nota ainda que em 1976, apesar de menos filmes terem estreado, ainda se registou um crescimento no número de espectadores, registo que terá beneficiado da programação nesse Verão de diversos filmes de “grande afluência“ em reposição (E Tudo o Vento Levou; Quo Vadis), da popularidade dos filmes eróticos (Emmanuelle, a Antivirgem; Pato com Laranjas; Kamasutra) e da abundância de filmes de autor (Bergman, Godard, Tarkovsky, Buñuel, Fellini).77 Em 1979, no jornal Expresso, Rui Cádima (apud Ibidem: 311) resume o panorama cinematográfico desse ano e a estratégia dos distribuidores para reconquistar o público: entre estreias e reposições, foram exibidos 454 filmes no mercado interno, 63 eram “porno“, 34 “westernspaghetti“, 10 “catástrofe“, 32 “kung fu“, 44 “melodramas“. Luís de Pina (1986: 181-182) também alerta para as particularidades desse período: “Os filmes pornográficos, depois do escândalo inicial, acabaram por se concentrar em dois ou três cinemas de Lisboa e do Porto (embora façam boa carreira na província, por vezes os únicos filmes com público...). Mas a chegada de Garganta Funda e outras obras do género, em 1976, provocou grande afluência de público e esse ano foi talvez o que registou maior número de espectadores na história da nossa exibição. Vieram também muitos filmes políticos e militantes (o Cinema Universal, em Lisboa, especializou-se, durante algum tempo, nesse modelo) e várias películas que se encontravam proibidas (desde O Couraçado Potemkine até Laranja Mecânica), mas em breve tudo regressava às tendências habituais do público, que descobria nos melodramas indianos uma nova atracção. Quem esperava que a liberdade conquistada para os filmes nacionais e estrangeiros fosse o mais ampla possível enganou-se, pois ela depende dos compromissos da distribuição, mais dominada do que nunca, no último decénio, pelas majors americanas. De resto, os sectores da distribuição e da exibição continuaram a ser privados, diante de uma produção praticamente nacionalizada, para a qual foi tentado, nos primeiros anos da Revolução, um 'circuito paralelo' ou cultural, fora dos circuitos comerciais (que recusaram a nacionalização) e correspondente à intenção socializante do Governo. E a exibição dos filmes depende fundamentalmente dos interesses (económicos) do distribuidor e do exibidor, motivo pelo qual se registaram atrasos em estreias de filmes portugueses e, em última análise, se negou a exibição de várias obras, que ficaram na prateleira ou viram a luz do dia em especialíssimas condições de estreia. Julgamos, no entanto, que o filme português continua a recolher as preferências do público, desde que tenha uma qualidade possível, muitas vezes inexistente em filmes que eram puros pretextos políticos ou acusavam uma insipiência confrangedora.“ 77 Em Março de 1977, a revista Isto é espectáculo publicava uma lista de cerca de 30 filmes que circulavam no mercado nacional em “cópias novas“. No seu primeiro número, de 27-I-1978, a revista Isto é cinema enumera cerca de 40 filmes clássicos de várias nacionalidades que estavam em reposição em diversas salas de cinema portuguesas. 178 No entanto, no caso da distribuição e exibição é necessário atender aos contextos opostos que se verificavam em Lisboa e no resto do país. Se na capital do país a oferta diversificou, também fruto da concorrência comercial e da existência de diversos circuitos alternativos como a Cinemateca, a Casa da Imprensa ou a Gulbenkian, no resto do país a situação não era tão positiva: muita da oferta cinematográfica não chegava a estrear fora de Lisboa78 e, numa parte significativa das vezes, por serem o “fim da cadeia“, as películas chegavam em péssimas condições de projecção79. Em 1968, segundo dados oficiais do INE, Portugal era o país europeu com o menos índice de espectadores: “(...) em 1968, cada português foi 3 vezes ao cinema, enquanto cada francês ou cada belga foi 4 vezes, cada norte-americano 7 vezes, cada romeno 10 vezes, cada italiano ou cada espanhol 11 vezes, cada soviético 20 vezes (...)“ (Cineclube, 14/15, X-1977: 4) A mesma fonte relata que o “grosso“ da assistência está concentrado em Lisboa e Porto, onde se concentram 87 cinemas de classe A (cinemas de estreia com mais de 500 lugares) e B (estúdios e cine-teatros), enquanto as 228 salas de classe C e D concentramse na “província“ e nas Ilhas adjacentes. O índice da ida ao cinema (medido em número de vezes ao ano por cada cidadão) dos vários distritos era o seguinte: Tabela n.º 24 Índice de ida ao cinema por habitante/ano (fonte: Cineclube, 14/15, X-1977: 4) Aveiro Beja Braga Bragança Castelo Branco Coimbra Évora Faro Guarda Leiria Lisboa Portalegre Porto Santarém 2,0 1,3 0,9 0,2 0,1 1,8 2,6 6,2 0,7 2,1 7,4 0,5 3,3 1,9 78 Entre 1974 e 1980, a revista Cineclube, editada pelo Cineclube do Porto e, portanto, sediada nessa cidade, publica extensas listas de filmes exibidos, em circuito comercial e alternativos, em Lisboa que não chegam à cidade do Porto. 79 A este propósito ver, por exemplo, algumas reclamações em: Diário de Lisboa, 18-IV-1980; Cineclube, 21/22, IV-1979; e Cineclube, 26/27, XII-1980. 179 Setúbal Viana do Castelo Vila Real Viseu 4,7 1,1 0,6 0,6 Exceptuando Faro, cuja taxa é inflacionada por causa do fenómeno turístico, os distritos com maior índice de ida ao cinema são distritos mais industrializados e onde se concentra maior poder de compra e concentração de população e onde se regista uma “maior resistência ao obscurantismo“ (Ibidem). Por outro lado, a crescente monopolização do mercado da distribuição também favorecia as assimetrias regionais: “(...) os grupos Lusomundo (principais cinemas de Lisboa e do Porto, e 80 cinemas na província) e Castello Lopes, directamente ligados ao capital financeiro, servidos pelos produtos das 'major companies' americanas, e o grupo Doper-Mundial, ligado ao capital africano e que mantém o seu mercado nas ex-colónias portuguesas. Há ainda duas outras distribuidoras (Rank e Columbia-Warner) que são filiais portuguesas das casas-mães estrangeiras (...)“ (Ibidem: 5) A indefinição vivida no pós-25 de Abri, perante avanços e recuos do poder político, deixou o sector da distribuição livre para salvaguardar da maneira que melhor entendeu cenários considerados indesejáveis, como a nacionalização, optando pela exportação de divisas, medida que penalizava todo o meio cinematográfico, particularmente a produção: “(...) Tal facto permitiu que as empresas sobrefacturassem a importação de filmes (a revista Variety de 1975 anuncia que a firma Castello Lopes comprou o filme Papillon por 100 000 dólares, considerando este preço um recorde absoluto, que tinha o duplo interesse da exportação massiva de divisas e descapitalização da empresa, no caso de se levantar a hipótese da sua nacionalização). Calcula-se que, em 1974, saíram do país 74 299 contos em divisas, correspondendo ao total de compras a fixo e à percentagem, deduzindo as amortizações (?). Em 1973, saiu sensivelmente a mesma quantia, correspondendo à importação de 340 filmes. Em 1975, importaram-se 443 filmes, o que pode ser considerado uma aberração num país com 306 postos de exibição (a título de comparação, a Espanha importa 400 filmes para 7 000 cinemas). (Ibidem) Thomas Elsaesser (1989: 15) descreve um cenário semelhante na Alemanha durante os anos 70, nomeadamente a influência dos distribuidores na produção e a hegemonia das filiais das empresas norte-americanas: “(...) Consequently, distributors became the real force in the industry and gained the uooer hand over both production and exhibition. Yet it was the American Major companies who controlled 180 the German market both directly and indirectly. While some cinema chains, in the aftermath of the botched UFI decartelisation plans, had been quietly taken over by a handful of German entrepreneurs, distribuition was heavely dominated by Hollywood firms and its subsidiaries. (...) By the early 1970s, not a single commercial distribuitor had survived in West Germany that was not Americancontrolled and, here too, Hollywood effectively ran the show without seeming to do so. (...)“ Durante esta década, o mercado de distribuição conheceu algumas transformações significativas. Tabela n.º 25 Filmes exibidos nas salas portuguesas (1970-1980) (fonte: compilado a partir dos Anuários Estatísticos 1970-80) Ano Metragem Filmes Metragem Metragem Filmes Metragem Filmes Filmes Metragem Outros Filmes Itália Metragem Inglaterra Filmes França Metragem EUA Filmes Espanha Metragem Alemanha Filmes Portugal 1979 1980 43 55 17.440 40.860 79 43 78.350 34.610 9 0 4.370 0 199 137 417.730 368.230 125 116 198.710 184.355 99 71 278.325 174.900 97 66 217.150 185. 550 154 121 340.740 229.595 Só dispondo dos dados referentes a 1979 e 1980, decidi comparar o ano de 1980 com o último ano (1969) em que consegui apurar dados similares para proceder a uma análise comparativa da situação. Gráficos n.º 9 e 10 Percentagem de filmes estreados em Portugal pelo país de origem (1969 e 1980) (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1969-80, INE) 181 1980 1969 Itália 16% Outros 4% Inglater ra 7% Portugal 6% RFA 3% Portugal 3% RFA 3% Outros 19% Espanha 3% Espanha 0% EUA 30% Itália 15% França 9% EUA 52% Inglaterr a 15% França 15% A particularidade de maior destaque é mesmo o aumento exponencial de filmes de outras nacionalidades que não as mais tradicionais no nosso mercado. Se em 1969, esses filmes representavam apenas 6% da quota de mercado, em 1980 essa quota chegava aos 19%. Em Maio de 1978, a revista Isto é cinema (17, 19-V-1978: 37) alertava para o crescente interesse das empresas distribuidoras no cinema indiano80 e, naturalmente, dos cinemas de países socialistas do leste europeu que eram malditos ou proibidos antes de 1974: “Para além de serem exibidos integralmente, passou-se a ver de tudo um pouco, desde o libelo revolucionário da América Latina (Glauber Rocha, Littin, Sanjines, etc.) até às raras obras da China ou da Albânia; do forte contingente europeu ocidental às quase até então ignoradas cinematografias do Leste (com as suas revelações e as suas desilusões); da tradicional produção norte americana (que durante ano e meio chegou a ensaiar um arremedo de boicote, congelando a exportação de obras para Portugal, sob o argumento da desregularização de contas) à mais arrojada produção de jovens 80 Para além das cinematográficas historicamente maioritárias no mercado português (EUA, Alemanha, França, Inglaterra e Itália), em 1977 estrearam nas salas portuguesas 22 filmes indianos (5% de um total de 436), 18 filmes de Hong-Kong, 7 da Suécia, 7 do Canadá, 5 da Dinamarca, Jugoslávia, Checoslováquia, Japão e Brasil, 3 da União Soviética, Hungria, México e Portugal, entre muitos outros. Cf. Isto é cinema, 10, 31-III-198: 33). Por outro lado, em contexto de cinema não-comercial, sucedem-se mostras e semanas de divulgação de cinema de países como Cuba (Cinemateca), Argélia (Cinemateca), Polónia (Gulbenkian), Bulgária (Apolo 70) e União Soviética (Berna), só para dar alguns exemplos que decorreram entre Fevereiro e Março de 1978, em Lisboa. 182 cine nematografias que um pouco por todo o lado pproliferam. (Lauro Antó tónio in Isto é cinema, 11, 7-IV-1978: 3)“ Se o cinema europeu u conquistou muita quota de mercado na prim rimeira metade da década, sobretudo pelo au aumento de filmes de autor e de filmes eróti ticos (na maioria dinamarqueses e suecos) no n circuito comercial, os filmes de produçãoo norte-americana n conheceram uma tendência ia oposta. Gráfico n.º 11 Estreiass de d filmes no circuito comercial (1970-80) (fo (fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 486) 600 500 443 400 317 310 332 346 425 445 445 460 475 361 300 200 142 104 105 05 100 93 99 1973 1974 76 89 1975 1976 112 122 139 174 0 1970 1971 19722 total 1977 1978 1979 1980 EUA O cinema de origem norte-americana, n depois de atingir um mínim nimo histórico em 1975 (apenas 76 filmes de longa-metragem estreados nas salas port rtuguesas, 17%), começa uma recuperação consecutiva c que culminaria com os 174 film mes estreados em 1980 (45%, a melhor quota ta desde 1970) (Dionísio, 1994: 486). Entre Abril de 19744 e Abril de 1978, Henrique Leonor Pina (Cin Cineclube, 18/19, Outubro de 1978) contabil ilizou 51 entidades distribuidoras em activida idade no mercado português. Tabela n.º 26 Distribuição de filmes noo mercado português entre Abril de 1974 e A Abril de 1978 (font nte: Cineclube, 18/19, Outubro de 1978) 183 Distribuidora Castello Lopes Columbia-Warner Lusomundo Doperfilme Mundial Filmes Sonoro Filme SIF Talma Rank Distribuidores Reunidos Exclusivos Triunfo Filmes Ocidente Astória Filmes Filmitalus Animatógrafo Sofilmes Rivus Internacional Imperial Filmes Sacil Outros pequenos distribuidores Associações e Embaixadas Filmes 310 182 177 140 111 102 85 84 80 79 78 68 64 60 55 54 53 51 50 40 120 56 Percentagem 14,9% 8,8% 8,5% 6,7% 49,2% 5,3% 4,9% 4,0% 4,0% 3,8% 3,8% 3,7% 3,2% 3,0% 43,4% 2,9% 2,6% 2,6% 2,5% 2,4% 2,4% 1,9% 5,8% 1,6% As delegações dos grandes estúdios norte-americanos estavam agora reduzidas apenas a duas (Columbia na 2.ª e Rank na 9.ª posição), mas o cinema norte-americano continuava a ser distribuído pelas principais distribuidoras do mercado, nomeadamente a Castello Lopes, a Lusomundo e a Sonoro Filme, assegurando quase 25% dos filmes distribuídos ao longo deste período de quatro anos. Os cinemas de origem italiana (20,7%), francesa (17,7%) e inglesa (15,2%) também detinham importantes posições na importação de filmes. Apesar das promessas de apoio à produção, os distribuidores e exibidores continuavam a ser os maiores beneficiados com a actividade cinematográfica: “(...) o filme é comprado ao produtor estrangeiro, ao qual o distribuidor português paga os 'royalties' (em função do número de cópias a exibir) e a(s) cópia(s) do filme. Em seguida, vêm as despesas de importação propriamente ditas (taxas, licenças), as despesas de exibição (legendagem, revisão, expedição). Das receitas brutas de bilheteira são retirados à cabeça 15%, dos quais a maior parte vai para o Instituto Português de Cinema, que a reinveste na Actividade (assistência à produção, exibição privada, cinemateca, etc.), e 7,5% que constituem o fundo empresarial, que devia servir para o incremento do parque de exibição mas que fica na posse dos exibidores. O resto vai para o exibidor (de 50 a 70%), para o distribuidor (de 30 a 50%) e o restante (de 15 a 30%) para o produtor, no caso da compra ser feita à percentagem. Quando se trata de filiais 184 de firmas estrangeiras, a distribuidora retira um mínimo (abaixo dos 30 %), para poder enviar um máximo de divisas para a sociedade-mãe no estrangeiro. (...) Além disso, põe-se para os monopólios, uma questão de rentabilidade imediata: para rentabilizar um filme importado, são precisos 30 000 espectadores; para um filme português, são precisos 10 vezes mais. (...)“ (Cineclube, 14/15, X-1977: 5) Mas, num “pais [que] docilmente se abandona à colonização dos sonhos importados“ (António-Pedro Vasconcelos apud Isto é o cinema, 12, 14-IV-1978: 6), a situação era particular e preocupantemente difícil para os filmes portugueses: dos 30 filmes produzidos em 1976, entre Agosto e Dezembro não estrearia nenhum das salas nacionais. Neste capítulo particular, o ano até já conhecera dois “acontecimentos“: “A exibição de Deus, Pátria e Autoridade, de Rui Simões, no Universal [“terá tido perto de 40 mil espectadores“], antes das eleições, e de Trás-os-Montes, de António Reis [e Margarida Cordeiro], no Satélite [11 mil espectadores], depois das eleições são dois acontecimentos culturais. Um, mais pelo tipo de consumo que dele é feito, o outro, mais pelo produto em si, relacionam-se de algum modo com uma cultura popular emergente. (...)“ (Dionísio, 1994: 274-275) Em Abril de 1978, o jornalista Mário Damas Nunes (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978: 12) escrevia que “a pouco e pouco o cinema português parece começar a furar o cerco a que até aqui parecia estar condenado“, acusando que a “sentença foi há muito tempo passada por distribuidores e exibidores pouco interessados em perder dinheiro com uma programação que lhes deixasse as casas vazias.“ Depois de acusar os distribuidores e exibidores, o jornalista esclarece que não serão esses os maiores culpados: “(...) O que não podemos esperar (utopicamente) é que sejam esses homens de negócios a furar o cerco a que o próprio cinema português (?) os habituou. (...) (...) Por outro lado o IPC deve mostrar-se verdadeiramente ao serviço da divulgação interna do cinema que produziu ou subsidiou e que nós pagámos. Pouco importa que os festivais internacionais vejam aquilo que a nossa gente pagou e não chegou a ver. É cá que teremos de criar público interessado e não exibir o cinema em salas de arte e ensaio onde a intelectual sociedade vá passear os olhos olhando para nós com o olhar exótico ou enternecido por uma 'cinematografiazinha curiosa'.“ Noutra publicação, um comentador havia feito, quase um ano antes, um alerta esclarecedor sobre o estado das coisas: “(...) Quando há filmes portugueses já prontos para estrear, não se estreiam porque ninguém quer perder dinheiro, e o tempo da Canção de Lisboa ou de Capas Negras já lá vai. 185 Sem qualquer disposição legal que apoie o cinema português e o cinema de qualidade parece-nos difícil sair deste beco onde todos barafustam, com razão e sem ela.“ (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9) Por estes meses, o Governo ainda propõe que o Teatro São Luiz passasse a ser uma sala de cinema exclusivamente dedicada a filmes portugueses, com programação a cargo do Centro Português de Cinema (CPC), mas a medida não é bem aceite e acaba por não se concretizar (Dionísio, 1994: 250-251). O mesmo Governo, em 1976, numa tentativa de “proteger“ e promover a circulação de cinema português, havia alterado as regras de importação de filmes: a taxação da importação de filmes estrangeiros atingiu 60% de imposto, o que motivou uma greve alfandegária dos distribuidores e exibidores; mas, como as licenças de exibição, que rondavam os 15 mil contos, faziam muita falta ao orçamento do IPC, o Governo acabaria por ceder perante a pressão dos distribuidores e exibidores (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9). Entre 1977 e 1978, o IPC tentou negociar com a Associação Portuguesa das Empresas Cinematográficas (APEC) um mecanismo de protecção para o cinema português, sem obter sucesso (Isto é cinema, 17, 19-V-1978: 5). Nas salas, os resultados de bilheteira não eram muito animadores. De resto, entre finais de 1974 e inícios de 1975, como recupera José Filipe Costa (2014: 32-35), o (in)sucesso do cinema português nas bilheteiras das salas de cinema tinha sido o centro de uma política entre os trabalhadores do Cinema Londres, em Lisboa, e o seu programador, António-Pedro Vasconcelos. O programador começou por acusar os trabalhadores do cinema de não quererem filmes portugueses nas salas porque isso implicaria menos espectadores e, consequentemente, menos gorjetas, um complemento significativo aos seus salários. Um dos principais argumentos dos funcionários foram as estatísticas respeitantes às últimas sessões dedicadas ao cinema português naquela sala de cinema: 10-nov-1972 – Os Verdes Anos – 112 espectadores – 25,3% da lotação da sala; 24-fev-1973 – O Passado e o Presente – 152 espectadores – 34,4%; 8-mar-1974 – O Passado e o Presente – 196 espectadores – 44,4%; 9-mar-1974 – Acto da Primavera – 173 espectadores – 39,2%; 17-mai-1874 – Mudar de vida – 113 espectadores – 25,4%; 13-jul-1974 – Perdido por cem – 126 espectadores – 28,5%; 19-jul-1974 – O Cerco – 43 espectadores – 9,7%; Como observa José Filipe Costa, os trabalhadores não usaram estes dados para comparar com outros filmes estrangeiros, nomeadamente de produção norte-americana, mas sobretudo para questionar se esses filmes portugueses, e os que estavam então em 186 produção, seriam os mais indicados para vingar no mercado comercial nacional. Em jeito de provocação, os trabalhadores do Londres ainda deixavam uma estatística curiosa: o próprio programador “também não é grande apaixonado [de cinema português], pois em 260 sessões da meia-noite apenas selecionou 7 filmes portugueses, o que representa 3%.“ (Ibidem: 34). Vasconcelos argumentava com a “sempiterna discussão em torno da formação de públicos e de hábitos de receção dos espetadores portugueses“, ressalvando que, para que o cinema português “adquirisse espaço de visibilidade, haveria que aproximar mais fortemente a cadeia da produção do sistema de exibição“ (Ibidem: 34-35). Independentemente de serem os filmes mais adequados para concorrer com os filmes estrangeiros que eram distribuídos nas salas portuguesas, e já se viu que a diversidade era dominante, interessa saber quais filmes tiveram estreia comercial e quais os seus totais de números de espectadores. Tabela n.º 27 Número de Espectadores dos Filmes Portugueses no circuito comercial (1975-80) (fonte: dados oficiais fornecidos pelo ICA81) Estreia Início Produção Título Realizador Produtor Distribuidor Espectadores 1975 * Brandos Costumes A. Seixas Santos CPC Castello Lopes 7.731 1975 1974 Cartas na Mesa Rogério Ceitil CPC * 1975 1974 Benilde ou a Virgem Mãe Manuel de Oliveira Tobis * 1976 1974 Cântico Final Manuel Guimarães M. Guimarães Castello Lopes Filmes Lusomundo IPC 1976 1975 Deus, Pátria , Autoridade Rui Simões Rui Simões IPC/Rui Simões 22.188 1976 * O Funeral do Patrão RTP Animatógrafo 505 1976 1974 Trás-os-Montes CPC V O Filmes 10.335 1976 1975 Prole Filme IPC * 1977 1974 Barronhos Os Demónios de Alcácer Quibir Eduardo Geada António Reis e Margarida Cordeiro Luís Filipe Costa José Fonseca e Costa Tobis Animatógrafo 10.978 1977 1974 O Princípio da Sabedoria António de Macedo Cinequanon 1977 1974 As Ruinas no Interior José de Sá Caetano 1978 1975 A Confederação Luís Galvão teles 1978 1975 Nós Por Cá Todos Bem Fernando Lopes 1978 1975 O Rei das Berlengas 1978 1975 Veredas 1979 1975 Amor de Perdição Manoel de Oliveira IPC 1979 1975 As Horas de Maria António de Macedo Cinequanon * Tobis Astória Filmes/Cinequipa Animatógrafo 4.562 Cinequanon Exclusivos Triunfo 19.029 CPC Animatógrafo 15.077 Artur Semedo IPC Filmes Ocidente 30.370 João César Monteiro J. C. Monteiro V O Filmes V O Filmes/Ver Filmes Cinequanon 7.825 81 772 4.058 23.969 Apesar de classificados como oficiais, estes dados não eram registados directamente pelo IPC (actual ICA), mas comunicados pelos produtores ou distribuidores dos filmes. Quer para efeitos de evasão fiscal como por questões de marketing, estes números poderão não corresponder à realidade, mas são os dados que existem e foram validados à época pelo IPC. 187 1979 1975 Recompensa Arthur Duarte Arthur Duarte 1980 1979 Bárbara Alfredo Tropa RTP 1980 1975 O Diabo Desceu à Vila Teixeira da Fonseca 1980 1977 Lauro António 1980 1977 Manhã Submersa O Princípe com Orelhas de Burro Teixeira da Fonseca Lauro António António de Macedo Cinequanon 1980 1975 A Santa Aliança Eduardo Geada 1980 1978 Verde Por Fora, Vermelho Por Dentro Ricardo Costa Sofilmes Filmes Lusomundo 8.305 35.576 Imperial Filmes 3.673 44.036 Eduardo Geada Sonoro Filme Filmes Lusomundo Distribuidores Reunidos Diafilme Doperfilme 5.127 2.837 7.130 Notas: *Não existem dados De notar que o filme Nós por cá todos bem registou mais de 4 mil espectadores na semana de estreia, no cinema Quarteto, o que foi considerado um êxito à época. A este propósito Pedro Bandeira Freire, programador daquele cinema lisboeta, declararia: “Curiosamente, Nós por cá todos bem tem estado, desde a estreia, melhor que os outros filmes em exibição no Quarteto. Para mim, e de um ponto de vista comercial, trata-se de um filme com um público específico, esgotado o qual em duas ou três semanas, a bilheteira caía redonda. Foi o que aconteceu com outro filmes português, Os Demónios de Alcácer Kibir ou, por exemplo, com O Vale das Abelhas, filme checoslovaco. Mas talvez seja esta a ocasião para ver alargado o público de cinema de qualidade. Pelos menos, a reacção do público desta primeira semana assim o deixa prever. Felizmente.“ (Isto é cinema, 10, 31-III-1978: 24) No mesmo ano, O Rei das Berlengas de Artur Semedo haveria de dobrar o número de espectadores do filme de Fernando Lopes. Os outros êxitos seriam: A Confederação, uma sátira de ficção científica político-social em tons muito apropriados à ressaca do Verão Quente de 1975; As Horas de Maria, um filme polémico hostilizado pelos sectores católicos mais conservadores; e Bárbara e Manhã Submersa, dois filmes com um estilo narrativo muito clássico. No início da produção de Kilas, o mau da fita, que viria a ser um sucesso de bilheteira em 1981 ao ultrapassar a mítica barreira dos 100 mil espectadores (121.269 espectadores), José Fonseca e Costa lembrava precisamente que “o filme português não pode nem deve ficar à margem do cinema estrangeiro que invade as nossas salas de exibição“ (Idem, 4, 17-II-1978: 6). Na ocasião, Fonseca e Costa alertava também para a necessidade do cinema português procurar mercados estrangeiros para exportação, nomeadamente os de língua portuguesa e o mercado ibérico (Ibidem). O problema capital era mesmo a reduzida dimensão do mercado interno — “o cinema português vai sobrevivendo, timidamente, fazendo das tripas coração“ (Idem, 2, 188 3-II-1978: 18) — e o péssimo desempenho dos filmes portugueses nesse próprio mercado: Tabela n.º 28 Comparativo de número de Espectadores de filmes portugueses e total do circuito comercial (1975-80) (fonte: compilado a partir de dados do ICA e Dionísio, 1994: 486) Ano 1975 1976 1977 1978 1979 1980 Filmes Portugueses 7.731 (0,02%) 33.028 (0,08%) 16.312 (0,04%) 72.301 (0,21%) 36.332 (0,11%) 98.379 (0,32%) Total 41.500.000 42.800.000 39.100.000 34.000.000 32.600.000 30.700.000 Neste período, em comparação com o total de espectadores registados em cada ano, o acumulado de espectadores dos filmes portugueses cresceu dos 0,02% de 1975 para os cerca de 0,32% de 1980. São, como é evidente, números insustentáveis em qualquer lógica financeira de mercado e que inviabilizava qualquer sobrevivência do cinema português sem apoio público. Mas, por estes anos, para o cinema português é igualmente fundamental a circulação por um circuito cultural paralelo ao circuito comercial. Muitos filmes portugueses percorrem o país em sessões organizadas por organismos públicos ou por entidade privadas de teor associativo, como os cineclubes ou associações de estudantes. Para agravar a situação, a partir de 1975, o número de curtas-metragens estreadas nas salas portuguesas também conhece uma inflexão na evolução que vinha protagonizando desde os anos 40 e diminui drasticamente. Tabela n.º 29 Estreias de filmes portugueses entre 1975 e 1980 (fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE) Ano 1975 1976 1977 1978* 1979* 1980* Total Metros 42.915 25.635 25.480 27.076 20.540 35.110 Longas-metragens (superior a 1800m) Filmes Metros 4 11.950 3 8.490 2 6.150 4 11.690 3 9.900 7 21.050 189 Filmes 102 50 70 46 36 46 Curtas-metragens (inferior a 1800m) Metros % de curtas 30.965 72% 17.145 67% 19.330 76% 15.386 57% 10.640 52% 14.060 40% * A partir de 1978, o INE passou a classificar como filmes de curta-metragem filmes com menos de 1,600 metros de película. O decréscimo de estreias de curtas-metragens entra numa tendência consolidada desde 1975. Em cinco anos apenas, tanto em número de filmes como em película utilizada, a estreia de filmes de curta-metragem foi reduzida em mais de 50 por cento, voltando aos valores mais baixos desde 1949 (16,932 metros de película). Ainda assim, em 1978 e 1979, apesar da acentuada quebra na estreia, os filmes de curta-metragem ainda constituíam a maioria dos filmes de produção portuguesa estreados em salas portuguesas. Em 1980, as curtas perderiam a maioria porque nesse ano registou-se um número extraordinário de estreias de filmes de longa-metragem, a mais alta desde 1974. Naturalmente, os motivos de ordem financeira também influenciaram esta quebra na produção. Em Outubro de 1978, Henrique Espírito Santo elabora um documento onde demonstra que, no imediato pós-25 de Abril, os custos associados à compra e revelação de película aumentaram exponencialmente: Tabela n.º 30 Preços de película e utilização de esquipamentos para produção de cinema (fonte: Cineclube, 18/19, X-1978: 33) 1974 1975/76 1977/78 Película - negativo 35mm cor (metro) 16$50 21$50 39$70 Película - negativo 16mm cor (metro) 9$00 13$40 22$90 6$30 8$00 8$50 5$80 7$50 8$00 Estúdio de Som - misturas (hora) 800$00 1000$00 1500$00 Estúdio de Filmagem (dia) 1000$00 - 2500$00 Sala de Montagem (semana) 2000$00 3500$00 4300$00 Laboratório - revelação 35mm cor (metro) Laboratório - revelação 16mm cor (metro) Ainda de acordo com Henrique Espírito Santo (Cineclube, 18/19, X-1978: 33), se em 1974 uma longa-metragem de 110 minutos rodada em 35mm custaria algo em torno 190 dos 3000/3500 contos, em 1978 o valor necessário para uma longa da mesma dimensão em película de 16mm aumentou para cerca de 5000/6000 contos.82 Outra das razões pelo aumento exponencial na produção de curtas-metragens desde os anos 50 e durante a década seguinte foi o número considerável de filmes produzidos por encomenda ou nos serviços internos de várias entidades públicas, algo que se alterou significativamente com a queda do Estado Novo: “De resto, os serviços de cinema oficiais ou desapareceram, ou deixaram de produzir, ou mudaram a sua política de produção, como foi o caso do Instituto de Tecnologia Educativa, da Junta de Acção Social ou dos Serviços Cartográficos do Exército. Grande parte dos filmes do sector é agora rodada em 16 milímetros, sem hipótese de distribuição comercial, sem esquecer que os horários das salas não permitem agora a exibição normal de complementos. O documentário tornou-se, assim, a grande vítima.“ (Pina, 1986: ) Com uma opção que passava pela centralização dos serviços de produção de cinema no IPC, deixou de fazer sentido que entidades públicas ou dependentes do Estado tivessem serviços cinematográficos ou que recorressem a empresas privadas, política que desagradava de forma particular às cooperativas de cinema que lutavam pela sobrevivência e pelo direito de aceder a financiamento público. 2.4.2. O estado das coisas Em Junho de 1977, o IPC enviou a toda a imprensa um relatório relativo aos anos 1974-76 com a discriminação de todo as despesas e receitas, nomeadamente as receitas provenientes do imposto adicional e as despesas com os planos de produção. Ano 1974 1975 Tabela n.º 31 Relatório e contas do IPC (1974-76) (fonte: Isto é espectáculo, 8, VII-VIII-1977: 17) “Total do adicional “Verbas gastas na Produção“ arrecadado pelo IPC“ 59.557079$20 12.426574$80 (subsídios) 25.520620$00 (participação financeira) 73.670145$40 2.378767$00 (empréstimos) 82 Este cálculo é feito contabilizando os seguintes materiais e serviços: 25 mil metros de negativo, 15 mil metros de positivo, cerca de 30 mil metros de magnético, 3 mil metros de negativo de som e 3 mil de positivo de som para cópia síncrona; tem pode rodagem de 8 a 12 semanas com uma equipa de 20/25 técnicos; 8 a 12 semanas em sala de montagem. 191 1976 76.799190$70 Total 210.026415$30 50.455185$50 (participação financeira) 77500$00 (empréstimo) 90.858647$30 Ao prever receitas específicas para outras rubricas que não a produção, o orçamento para 1977 pretendia: “(...) ser um primeiro passo no sentido da correcção de uma situação perfeitamente desequilibrada, na qual se gastaram mais de 50% do orçamento [dos anos anteriores] na produção, sem investimento nas infra-estruturas, nomeadamente laboratórios, estúdios, salas de exibição, circuito de distribuição complementar e Cinemateca.“ (Isto é espectáculo, 8, VII-VIII-1977: 17) E eram várias as rúbricas contempladas: Infra-estruturas (laboratórios e estúdios): 9 mil contos; Melhoramento de sala de exibição: 16 mil contos; Circuito complementar (aquisição de salas, melhoramentos e tiragem de cópias): 16 mil contos; Aquisição de cópias, festivais nacionais e Cinemateca: 6,5 mil contos. Um investimento total de 47,5 mil contos que, por esses anos, representava aproximadamente 70% do orçamento anual do IPC. O IPC tornava-se, gradualmente, a peça fundamental para todo o sector cinematográfico, deixando de ser apenas visto como um “fundo“ de apoio à produção e assumindo, ou reclamando, um papel regulador nos ramos da distribuição e exibição. Ainda assim, apesar das expectativas, a tomada de acção era algo mais complexo: “Mas o ano que terminou deixou, em aberto quase tudo, inclusive o que pretendeu arrumar à pressa. Legalmente não se pode falar sequer de vazio, mas de caos. As coisas funcionam por inércia, os cinemas abrem as portas, o público paga os bilhetes, o exibidor e o distribuidor arrecadam as massas, pagam os filmes, as rendas, os vencimentos, algumas contribuições (como já vimos), arrecadam o resto. Os filmes portugueses são produzidos pelo Instituto Português de Cinema que para o efeito organizou, cheio de boa vontade, uma distribuição de verbas pelos mais necessitados (os que não estavam a trabalhar) a que chamou de 'plano de emergência'.“ (...) (...) Se o marasmo caracterizou o panorama a nível de centros de decisão, já o mesmo não se poderá dizer da actividade que se desenvolveu um pouco por todo o lado, com a finalidade de mostrar filmes inéditos no nosso país, quer seja em festivais, ciclos, retrospectivas, etc.“ (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9). Apesar de tudo, segundo o mesmo autor, o ano de 1976 trouxe uma acalmia, sobretudo se comparado com o ano antecedente, “que, sem dar para adormecer, permitiu pelo menos respirar“ (Ibidem). Mas o ano de 1977 voltava a focar-se na 192 resolução possível do impasse vivido no seio do IPC. Cada vez mais longe dos debates de Abril, o poder político parecia querer normalizar a situação da atribuição de apoios à produção: em Março é constituída um grupo de trabalho para começar a elaborar uma proposta de nova lei de cinema, com representantes dos vários sectores (Seixas Santos pelo IPC, José Manuel Castello Lopes pela distribuição, Rogério de Freitas e João Lourenço pela Direcção Geral dos Espectáculos e um representante por designar pelo SPC); em Abril, são anunciados os resultados do concurso de apoio à produção para 1977 (atribuídos por uma comissão composta por Rogério de Freitas, Duarte Barroso e Eduardo Prado Coelho); em Maio, o IPC investe 500 contos na presença portuguesa no festival de Cannes e em Julho marca presença no festival de Moscovo (Dionísio: 1994: 290-293). Desbloqueada a situação dos planos de produção, os problema agora eram outros: o plano de produção para 1977 contemplava apenas 14 longas-metragens, 3 filmes de animação e 7 curtas-metragens dos 219 pedidos recebidos pelo IPC (75 longasmetragens, 20 filmes animação e 124 curtas-metragens); a conclusão das produções dos anos anteriores eram adiadas consecutivamente, acumulando-se dezenas de projectos em produção sem data de estreia definida; na distribuição e exibição, depois da greve de 1976, problemas alfandegários voltavam a prejudicar gravemente a actividade de algumas empresas do sector83. Do plano de produção para 1977 é necessário realçar uma importante novidade: “o facto de, pela primeira vez, e com o objectivo de abrir a profissão a novos valores o Instituto subsidiar a produção de 2 filmes para iniciados.“ (Celulóide, VII-1977: 5)84 No concurso de apoio referente a 1978, o IPC recebe 79 propostas de longas, 18 de médias, 34 de curtas e 14 filmes de animação. Para esse ano, o orçamento para o apoio à produção seria de 35 mil contos e o total dos orçamentos dos projectos a concurso ronda os 500 mil contos. Entretanto, a própria Fundação Calouste Gulbenkian recebia também cerca de 20 pedidos de apoio à produção (Isto é o cinema, 2, 3-II-1978: 17). Mesmo depois de concluído o contrato celebrado com o CPC, a Fundação Gulbenkian continuou, 83 “(...) os filmes amontoaram-se na alfândega sem que se possam 'levantar', o que tem prejudicado visivelmente os distribuidores e exibidores portugueses, nalguns casos de forma dramática (veja-se o caso Universal-Animatógrafo, e leiam-se as inquietas declarações do seu administrador, o realizador António da Cunha Telles).“ (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9). 84 Os “iniciados“ contemplados com subsídios para a produção de uma curta foram: Noronha da Costa, António Drago, João Botelho, José Ribeiro Mendes, Pedro Bandeira Freire, Sérgio Ferreira e Vicente Jorge Silva. 193 ainda que de forma mais pontual, a participar financeiramente na produção de vários filmes, nomeadamente integrados do projecto Museu da Imagem e do Som. A emissão na RTP da versão de Amor de Perdição realizada por Manoel de Oliveira em Novembro e Dezembro de 1978 (o filme foi emitido em 6 sessões semanais, aos domingos à noite) motivou um interessante debate público acerca do cinema português que Fausto Cruchinho (2001) analisou e que é esclarecedor da relação entre o cinema português, o poder político e a sociedade portuguesa de então. Na época, um dos argumentos mais usados para “atacar“ o filme, como resume Fausto Cruchinho, era o suposto despesismo que a produção cinematográfica implicava para o erário público (segundo a imprensa da época, o filme teria custado entre 12 mil e 24 mil contos, o maior orçamento jamais visto para uma produção portuguesa)85: “(...) Se Manuel de Oliveira tivesse filmado 'O Amor de Perdição' em 8mm pago pelo seu bolso, dando à obra a interpretação que lhe apetecesse, e projectando-a em casa para quem a quisesse ver, tudo estaria certo. Mas, quando se vem a terreiro mostrar como foi gasto o dinheiro do POVO, é justo que o POVO saia contemplado com alguns juros do capital coercivamente empatado... Como? Pois bem: criando uma obra que seja elo de ligação entre Camilo e o POVO, isto é, uma obra que ajude o POVO a mastigar o acepipe, de maneira a poder tomar-lhe o gosto e a habituar-se a um paladar que obviamente não tinha.“ (Mário Clemente apud Cruchinho, 2001: 8). Também se questionou, entre outras coisas, a participação financeira da RTP na produção de cinema. Nesta questão particular, interessa recuperar um texto de AntónioPedro Vasconcelos publicado no Expresso (apud Cruchinho: 2001: 9): “Se pensarmos que a RTP paga normalmente por qualquer episódio da mesma duração, aviado à pressa por um dos vários realizadores de serviço que recentemente se acolhem ao 95 da Alameda das Linhas de Torres (sede da RTP) uma soma que anda à volta de novecentos contos, poder-se-á acusá-la de tudo menos de perdulária administração. (...) Mais: parte substancial da verba investida traduziu-se em serviços da Tobis, que participou com os Estúdios, normalmente parados, e com o laboratório, a troco de cobrar as primeiras receitas e de um volume de trabalho noutros filmes, razoavelmente compensador. (...)“ Mas, entre 1975-77, a RTP já tinha demonstrado ser determinante para a sobrevivência de várias produtoras de cinema, nomeadamente as cooperativas Cinequipa e Cinequanon e a Planigrafe, que nesse período produziram dezenas de curtas 85 Manoel de Oliveira “defendeu-se“ e ao seu filme ressaltando que a produção contava com centenas de actores e figurantes, que o filme teria uma duração final de 4 horas e 50 minutos e que “o filme é caro por o país ser pobre“, o que é diferente“ (Manoel de Oliveira apud Cruchinho, 2001: 6). 194 e médias metragens para a televisão pública portuguesa (Isto é espectáculo, 6, V-1977: 36-37). Em 1979, Victor Cunha Rego, responsável pela RTP, aceita uma sugestão de Fernando Lopes e cria o Departamento de Co-produção de Cinema da RTP, entregandolhe a sua direcção: visando já a Europa, “foi delineada a ideia de fazer um serviço público de apoio ao cinema português, de modo a que a RTP passasse a ser um elemento importante na produção cinematográfica“; “o dr. Brás Teixeira [vice-presidente da RTP] considerava, então, que a RTP estava em condições de poder ser uma espécie de segundo IPC - ou mais - com capacidade para decidir sobre todos os filmes que se iam fazer“ (Ibidem: 88-90).86 À semelhança do que acontecera durante a década de 60, a venda de aparelhos de televisão continuou a crescer durante a década, com particular incidência entre 197577. Gráfico n.º 12 Número de aparelhos de Televisão registados, em milhares (1970-80) (fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 484) 1600 1,381 1400 1,137 1200 1,149 1978 1979 914 1000 800 600 400 1,174 472 542 608 674 722 387 200 0 1970 1971 1972 1973 1974 1975 86 1976 1977 1980 Entre 1979 e 1993, o departamento de co-produções internacionais seria determinante no apoio financeiro à produção de jovens cineastas e outros consagrados. Nesse período, a RTP tornou-se num importante co-produtor de cinema português, associando-se a dezenas de projectos ou fazendo diversas encomendas, como abordarei no capítulo seguinte. 195 Os anos de 1976 e 1977 revelam, segundo Eduarda Dionísio (1994: 254-256), “transferências de consumos culturais“ significativas, apesar da autora considerar que os números das estatísticas oficiais pecam por defeito87: “Em 77, começa a ser notória a preferência pelo espectáculo que se vê em casa (televisão) em relação aos que exigem saídas de casa e gastos (cinema, teatro). São estes os dois anos em que o número de aparelhos de televisão (registados) sobem mais: fazem-se as últimas aquisições de televisões pós-25 de Abril. Em relação a 72, o número de televisores mais que duplicou. Entre 77 e 79 parece estabilizar, à espera da televisão a cores, que Tomás Rosa [Ministro do Trabalho] começa a anunciar em 77... (...) Apesar dos numerosos saneamentos e substituições, a televisão não modifica fundamentalmente o figurino. Mas é em 1977 que se dá o grande acontecimento televisivo que é a transmissão da telenovela brasileira Gabriela (prevista, aliás, desde 1975) e que virá a ter efeitos perversos mais ou menos previsíveis. Só em 1977 a televisão passará a ser uma concorrente do cinema, cuja frequência ainda aumenta em 1976 (quase 43 milhões de idas ao cinema). É no ano seguinte que se inicia o movimento contrário que a Europa já há uns anos registava a não mais será possível suster. (...)“ Apesar da transferência de consumos culturais e recreativos dos espectadores de cinema para a televisão, a programação de cinema continua a ter uma presença importante na grelha da RTP durante a década de 70, com uma emissão média diária estável, e por enquanto ainda superior à telenovela. Gráfico n.º 13 Número de horas de cinema e telenovela nos dois canais da RTP (1970-80) (fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 484) 87 Eduarda Dionísio (1994: 479) alerta para alguns factos: “as estatísticas não são neutras“; “as comparações são muitas vezes impossíveis“ porque “as rubricas mudam de ano para ano“; “aparecem números que dirão pouco“; “basta pensar nos espectáculos feitos em salas não 'licenciadas', e ao ar livre, (...) nas televisões que não eram registadas, para não poder levar à letra os números que aqui se transcrevem que, no entanto, darão uma 'ordem de grandeza'.“ 196 4 3,5 3 3 2,4 2,5 2 2,4 2,5 2,3 2,3 2,4 0,4 0,5 1979 1980 1,9 1,5 1 0,5 0,7 0,3 0,2 0,4 0 0 1975 1976 0 1973 1974 cinema 1977 1978 telenovela Como é natural, os cânones estéticos e cinéfilos também se alteram no pós-25 de Abril: por exemplo, o mítico programa de cinema mudo Museu do Cinema de António Lopes Ribeiro desaparece da grelha (regressaria em 1982) e, em sua substituição, surge o programa Cineclube 2, apresentado por António-Pedro Vasconcelos, onde era transmitido cinema clássico, particularmente de produção europeia; Vasco Granja surge na programação com programas de cinema de animação (Animação e Cinema de Animação, sendo que este duraria 16 anos), e que seria importantíssimo na divulgação do cinema de animação dos países do leste europeu; no segundo canal, na rúbrica Cinemateca, são repostos alguns clássicos mudos portugueses, como Maria do Mar ou Lisboa, Crónica Anedótica, e ciclos temáticos sobre cineastas, como o dedicado a Leitão de Barros apresentado por Lauro António. Muitas destas alterações seriam da responsabilidade da nova equipa de programação do segundo canal da televisão pública dirigida por Fernando Lopes, nomeado, em 1978, por João Soares Louro, então presidente da RTP, com o objectivo de, nas palavras do próprio Fernando Lopes (apud Andrade, 1996: 88), “criar essa autonomia no espírito, no corpo, na imagem e no rosto, de modo que se pudesse até competir com o primeiro canal“. Neste segundo canal da televisão pública seriam exibidos então diversos trabalhos estrangeiros que dificilmente o seriam na RTP1. Apesar de ser acabar por ser de curta duração — em 1979, com a mudança de governo, Fernando Lopes seria afastado da direcção da RTP2 —, esta experiência de programação 197 alternativa ficaria na memória de muitos espectadores como marcante e muitas das suas inovações permaneceriam na grelha com as direcções de programação seguintes. Por outro lado, depois de uns anos marcada e declaradamente mais militantes e ideológica, o principal canal da televisão optava por uma programação mais recreativa e sem grandes propósitos formativos. Mas, no debate público acerca da transmissão televisiva da versão oliveiriana de Amor de Perdição, independentemente do autor ou do filme em causa, a questão de fundo parece-me que seria ainda a intervenção do Estado no apoio à produção de cinema. Como questão política que era, o debate sobre essa questão foi recorrente ao longo do ano. A 4 de Maio, um longo debate (6 horas) no Centro Nacional de Cultura reuniu o Secretário de Estado da Cultura (António Ribeiro Reis) e várias figuras da área do cinema: Fernando Lopes (RTP), Seixas Santos (IPC), Nunes de Carvalho (Sindicato), José Manuel Castello Lopes (representante dos distribuidores), António de Macedo, Cunha Telles (Tóbis) e António-Pedro Vasconcelos (representante dos Cineastas Associados88). Considerado por Francisco Belard na revista Isto é cinema (16, 19-V-1978: 4) como “a noite mais longa do cinema português“, o debate concluiu-se com o Secretário de Estado da Cultura a declarar que a “indústria cinematográfica, no campo da produção, terá de continuar a viver à custa do Estado“. Um editorial da revista Isto é cinema (15, 5-V-1978: 1) fazia um resumo esclarecedor do ponto de situação do cinema português: “Uma das medidas a curto prazo do já longínquo e porventura ignorado Programa do Movimento das Forças Armadas era, na sua alínea d), a promulgação de uma nova lei de Imprensa, Rádio, Televisão, Teatro e Cinema. Previsão acertadíssima, os quatro anos da Revolução de Abril não conseguiram concretizá-la: nestes 48 meses, o cinema português conquistou a liberdade de expressão mas parece não ter conquistado mais nada, exceptuando o trabalho parcelar de alguns e as novas formas de expressão onde preparam as imagens portuguesas do futuro. Continuava a faltar, até há poucos dias, a unidade de pensamento e acção entre o Estado e os cineastas, perdida em tricas, partidarizações, compadrios, mediocridades, falcatruas, dispersões e mentiras. O grande movimento solidário, que, apoiado em disposições normativas, realistas e globais, começasse a tentar construir por baixo, com a participação de todos, o edifício — porventura modesto mas sólido e funcional — do cinema português, nunca se concretizou.“ 88 “(...) grupo recentemente constituído de que fazem parte, entre outros, Manuel de Oliveira, António Reis e Paulo Rocha (...)“ (Isto é cinema, 16, 19-V-1978: 4). 198 Politicamente, o ano de 1978 ficaria marcado por alguma instabilidade governativa: nesse ano civil houve 4 Governos em exercício89 e igual número de Secretários de Estado da Cultura (David Mourão-Ferreira, António Ribeiro Reis, Teresa Santa Clara Gomes e novamente Mourão-Ferreira): “Não se sabe onde começa e acaba a acção de cada um. (...) O tempo que medeia entre a 'crise' do anterior e a tomada de posse do seguinte é um tempo indefinido, de expectativa e de desculpa, durante o qual vai saindo (nalguns casos abundante) legislação. Cada governo receberá heranças, nuns casos bem-vindas (do II para o III) e noutros indesejadas (do III para o IV).“ (Dionísio, 1994: 307) Entre outras medidas, no final de 1977, a SEC reformulou o sistema tributário ao suspender o imposto adicional, histórica exigência dos sectores da distribuição e exibição, e compensando o IPC com verbas provenientes do Orçamento Geral do Estado. Ainda assim, a 2 de Maio de 1978, com 5 meses de atraso, o Diário da República publicava as normas para os concursos de apoio à produção e orçava o IPC com 70 mil contos. Nesse e nos anos seguintes, o atraso da abertura dos concursos e da consequente publicação de resultados era constante. Ainda assim, mesmo com atraso, os planos de produção para esses anos foram sendo publicados. Tabela n.º 32 Planos de produção do IPC (1978-80) (fonte: dados compilados a partir de informações do ICA90) 1978 1979 1980 8 4 3 Curtas-metragens 5.393.000$00 7.171.000$00 513.000$00 7 7 2 Longas-metragens 36.519.801$12 58.358.000$65 9.924.999$74 Do plano de produção de 1978 para o de 1979, apesar do número de projectos de curta-metragem cair para metade e do número de longas se manter, verifica-se um aumento considerável dos fundos atribuídos pelo IPC. Ainda em Outubro de 1978, António-Pedro Vasconcelos, em artigo de opinião nas páginas do Expresso, sublinhava que o cinema continuava a ser “regido por uma lei do fascismo“ [Lei 7/71], que o IPC havia sido transformado em “produtor-patrão“, que a televisão “tem dado filmes a fazer a amigos“, em suma, que o “cinema continua nas 89 O I Governo constitucional até 30 de Janeiro de 1978, o II Governo até 29 de Agosto de 1978, o III Governo até 22 de Novembro de 1978 e o IV Governo daí em diante. 90 Para consultar a totalidade dos dados relativos aos valores detalhados dos filmes apoiados por estes planos de produção, ver Anexos, D. 199 mãos do Estado“ e que se assiste à “lenta agonia“ e a “um enterro de primeira“ do cinema português (Dionísio, 1994: 313). Uns meses antes, em Abril, o mesmo Vasconcelos estava entre os signatários91 que acusavam o IPC de ser “uma cópia envergonhada dos esquemas do Leste“ (Isto é cinema, 15, 5-V-1978: 14). Nessa mesma carta pública ao SEC, os cineastas signatários, receando o futuro, “apontam linhas de rumo para a definição de uma política de cinema em Portugal“: “Qualquer cálculo que se faça sobre a viabilidade económica do cinema português, a curto prazo, responderá pela negativa. Como o teatro, a música ou a ópera, mas com responsabilidades e potencialidades bem maiores, o filme português terá que continuar, ainda durante bastante tempo, a viver, total ou parcialmente, de apoios do Estado. Convém, no entanto, dizer com clareza que o conflito tão acariciado entre filmes ditos 'comerciais' e filmes ditos 'artísticos' é um falso dilema, apenas invocado por quem não está interessado na existência autónoma de um cinema nacional, mas sim em transformálo em produtos conformistas de gosto duvidoso que não merecem nem precisam do apoio do Estado. (...) (...) O Estado deverá, por isso, providenciar para criar condições de gradual emancipação do cinema, mantendo-se como árbitro e garante do que os seus apoios não vão contribuir para filmes que desvirtuem os objectivos que norteiam a acção da SEC nem lhes adulterem a autenticidade da expressão.“ (Isto é cinema, 15, 5-V-1978: 14) Em 1979, sem plano divulgado até Novembro, o IPC torna público um “plano de produção de emergência“ para desbloquear a situação de 3 longas-metragens e 4 a 6 curtas. O júri nomeado92 deverá seleccionar filmes “previamente escolhidos para serem subsidiados em 1979“ nos seguintes critérios: “um projecto com objectivos eminentemente culturais e estéticos, uma primeira obra e um projecto que procure conciliar a qualidade final com a mais ampla aceitação por parte do público“ (Celulóide, 285-286, XII-1979: 13). E assim, em poucas palavras, o poder político incluía nos critérios de selecção de projectos a beneficiar de apoio público à produção a questão da “reconciliação do cinema português com o seu público“ e recentrava todo o debate sobre a intervenção do Estado na produção de cinema. Em termos de opinião pública e publicada, seria nestes anos que se iniciou um debate aguerrido, que continuaria anos 80 adentro, entre duas 91 António-Pedro Vasconcelos, António Reis, Margarida Cordeiro, João Botelho, Jorge Alves da Silva, Paulo Rocha e Manoel de Oliveira. 92 Composto por João Bénard da Costa, Henrique Alves Costa, Henrique Espírito Santo, Eduardo Prado Coelho e Rui Mário Gonçalves. 200 formas antagónicas e irreconciliáveis de ver e fazer cinema: de um lado os defensores de um cinema português que voltasse a ser de “fácil percepção“ e “eminentemente comercial“, um cinema “não-chato“, que tomasse em conta a dimensão espectáculo do cinema e a fidelização do grande público; do outro lado, os defensores da persistência num “cinema de autor“, marcado por uma “intransigente radicalidade“ e “exigência estética“, sem abdicar de um quadro de referências estéticas e cinéfilas pouco familiar à generalidade dos espectadores (Cunha, 2013b: 216). Procurando condicionar objectivamente o poder político e as orientações da política cultural e artística dos responsáveis governativos, as principais figuras das “facções em confronto“ apresentavam os seus argumentos. Alguns sucessos e meiossucessos nas bilheteiras na primeira metade da década93 entusiasmariam os que ainda acreditavam na reconciliação com o público e a viabilização de uma indústria rentável de cinema em Portugal. Por outro lado, as recepções críticas internacionais positivas e as presenças em certames de prestígio de diversos filmes94 colocariam o nome de diversos realizadores portugueses nos circuitos cinematográficos internacionais e davam projeção à política cinematográfica portuguesa além-fronteiras. No entanto, à excepção de Francisca (76.132 espectadores), nenhuma das outras obras conseguiria resultados de bilheteria significativos no mercado interno português95 (Ibidem: 216217). A par da questão da “reconciliação“ do cinema português com o seu público surgia também a questão do modo de produção industrial, onde o caso da Tobis ocupava uma posição extremamente sensível e central. Sem recuar em demasia no tempo nem me perder na extensa cronologia da Tobis96, parece-me essencial fazer uma breve panorâmica do percurso atribulado da empresa desde 1957, simultaneamente o ano em que a RTP iniciou as suas emissões e em que é feita uma avaliação dos imóveis 93 Manhã submersa (1980, Lauro António) somou 44.036 espectadores; Kilas, o mau da fita (1981. José Fonseca e Costa) at ingiu 121.269 espec tadores; Oxalá (1981, António-Pedro Vasconcelos) registou 89.484 espectadores; A vida é bela?! (1982, Luís Gaivão Teles) somou 140.074 espect adores; Sem sombra de pecado (1983, José Fonseca e Costa) 92.080 espectadores; Os abismos da meia-noite (1984, António de Macedo) 100.408 espec tadores; e Crónica dos bons malandros (1984, Fernando Lopes) totalizou 67.760 espectadores 94 Francisca (1981, Manoel de Oliveira) esteve presente em Berlim, Silvestre (1981, João César Monteiro) em Veneza, Conversa acabada (1981, João Botelho) em Cannes, A ilha dos amores (1982, Paulo Rocha) em Cannes, Ana (1982, António Reis e Margarida Cordeiro) p resente em Berlim e vencedor em Vallad olid, Gestos e fragmentos (1982, Alberto Seixas Santos) est eve presente em Berlim. 95 Silvestre somou 9.950 espectadores; Conversa acabada apenas chegou aos 14.302 espectadores; A ilha dos amores só estrearia comercialmente em 1991 (!!), totalizando 4.800 espectadores; Ana só estreou em 1985, totalizando 3.233 espectadores; e Gestos e fragmentos nunca estreou comercialmente. 96 Para consultar a cronologia exaustiva e ofical da Tobis, ver Anexos, E. 201 pertencentes à Tobis na tentativa de encontrar uma solução de saneamento financeiro através de um plano de urbanização dos terrenos ocupados pelas instalações e transferência dos estúdios e laboratórios para os arredores de Lisboa. Nesse mesmo ano, em Outubro, iniciam-se negociações entre as duas entidades para saber da possibilidade de a RTP adquirir o activo imobilizado da Tobis, que nunca se concretizaria. No entanto, em Junho de 1967, a RTP alugaria à Tobis o Estúdio 2 por um período de um ano. Em 1965, a Câmara Municipal de Lisboa adquire a Quinta dos Lilases e a Quinta das Conchas e, um ano mais tarde, encomenda ao Engenheiro Mota Carvalho a elaboração de um estudo económico sobre os efeitos da urbanização dos terrenos da Tobis. Em Abril de 1969, um despacho do Presidente da Câmara de Lisboa aprovava o Plano Base da Urbanização dos terrenos da Tobis. Em Janeiro seguinte, é nomeada uma comissão, composta pelo presidente do Conselho de Administração da Tobis, o Inspector Superior da Secretaria de Estado e representantes da União de Grémios e do Sindicatos, presidida pelo Director Geral Cultura Popular e Espectáculos, para se pronunciar sobre o plano estabelecido para as novas instalações da Tobis. Em cerca de um mês, a 18 de Fevereiro de 1970, iniciavam-se as demolições no complexo da Tobis: demolição dos edifícios da Administração, garagem, casa do Barão e do guarda, e demolição do Estúdio 2. Em Fevereiro de 1971 é assinado um contrato com um empreiteiro para construção dos arruamentos dos lotes de terrenos da Tobis a urbanizar e, precisamente um ano depois, é adquirido de um terreno em Queluz, na área contigua à mata do Palácio de Queluz, para construção do novo Estúdio da Tobis e instalações complementares numa área de 40 000 m2, que não se chegaria a concretizar. No pós-25 de Abril, merece ainda registo a garantia de empréstimo que o IPC concedeu à Tobis de um empréstimo no valor de 7.000 contos, em Novembro de 1976, para a construção do novo laboratório. Mas em Julho do ano seguinte, o mesmo IPC deixava de ser accionista da Tobis, passando a titularidade das suas acções nessa empresa para o Instituto das Participações do Estado (art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 285/77). Passados alguns anos, a situação da empresa e do seu complexo continuava num impasse. Em 1977, prevendo a demolição dos estúdios da Tobis, a SEC avançava com a hipótese de um acordo entre o IPC e a RTP para o cinema pudesse potenciar a utilização, sem prejuízo ou restrições, do novo complexo de estúdios de imagem, estúdios de som e outros serviços técnicos que a RTP planeava para breve, propondo em troca o uso dos laboratórios da Tobis pela RTP nas mesmas condições (Isto é espectáculo, 8, VII-VIII202 1978: 19). A tutela considerava que o complexo técnico da Tobis estava obsoleto e desadequado às necessidades do cinema de então e não queria investir mais dinheiro na sua manutenção, optando por uma solução mais radical que previa apenas os laboratórios. António de Macedo (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978: 8) queixava-se da “ignorância dos técnicos“ da Tobis a propósito de uma máquina que ampliava película de 16 para 35mm. Coincidência ou não, nesse mesmo ano, o técnico inglês Paul Reed efectuava uma peritagem aos laboratórios da Tobis, concluindo o elevado grau de caducidade da quase totalidade do seu equipamento e a necessidade de dotá-lo de meios técnicos adequados. Em Maio desse ano, no debate sobre o cinema português que decorreu no Centro Nacional de Cultura, o Secretário de Estado da Cultura, António Ribeiro Reis, reconhecia que a acção do Estado nos anos anteriores tinha sido mais vocacionada para a produção em detrimento da criação de infra-estruturas técnicas. Fernando Belard (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978: 7-8) reportava a preocupação de muitos ligados ao sector do cinema: “(...) precisamente os estúdios — os da Tobis, que não tivemos outros, nem os teremos em meados de Maio, data fatídica há muito aprazada para a conversão em escombros desses edifícios meio arruinados, que ao longo de quarenta e cinco anos foram a casa encantada e desencantada em que se fez o cinema entre nós. (...) E acontece que o complexo da Tobis, laboratórios e estúdios, deficientes e caducos, são entretanto os únicos. A sua condenação à morte próxima é um golpe gravíssimo na balbuciante indústria do filme em Portugal, de que eles são museu possível e de cuja memória guardem dele. (...) Não poderá ser imolado sem uma alternativa imediatamente operacional, por meros critérios de merceeiro —como dizia há pouco tempo Paulo Rocha, que nos seus estúdios filma actualmente —, mesmo que para tanto exista cobertura legal. É altura do poder político que também queira ser vontade cultural tomar as atitudes que se esperam com lucidez. Para já, suster o processo de demolição que nesta altura seria, pelo menos, insensata, preparando alternativas para a instalação adequada de uma fábrica nova para o cinema que é preciso e possível.“ Entretanto, nesse mesmo mês, enquanto se falava do eventual “funeral“ da Tobis, o Governo chama Cunha Telles para integrar a Comissão Administrativa da Tobis. Um mês após a nomeação, Cunha Telles, em entrevista à revista Isto é cinema (13, 21-IV1978: 6-8), reconhecia que o futuro da Tobis dependia essencialmente do poder político, nomeadamente o autárquico: “(...) Isso, evidentemente, não depende de nós; depende do poder político. Se a Câmara Municipal de Lisboa, hoje presidida por 203 Aquilino Ribeiro Machado — homem muito ligado aos assuntos culturais — nos puder dar o seu apoio e nos encontrar outro terreno em troca, mesmo na periferia (e até com menor valor por metro quadrado), faremos tudo por criar um complexo industrial que possa dar resposta satisfatória ao cinema português, e ao cinema internacional que possa vir a ser feito. (...)“ Apontando para a internacionalização da prestação de serviços da Tobis — “esse mercado inclui grande parte da África e da América Latina, que carecem de laboratórios de cinema a cores“ —, Cunha Telles estimava que o novo complexo poderia implicar um investimento na ordem dos 50 a 70 mil contos, sendo um investimento necessário para “uma viragem de tipo industrial“ para o cinema português (Ibidem). Finalmente, em Junho de 1979, um despacho do Secretário de Estado da Cultura definia para a Tobis uma programação financeira que, a médio prazo, permitisse fortalecer a substância patrimonial da empresa e assegurar a existência de uma indústria, capaz de responder, em termos de ordem técnica, não só às exigências no mercado interno, como sobretudo, concorrer em condições de preço e de qualidade no mercado internacional. Mas, ao contrário do que significou para a Tobis, 1979 volta a ser um ano agitado no IPC. Em Fevereiro é nomeada a 5.ª Comissão Administrativa, que é composta, entre outros, por Henrique Espírito Santo e António da Cunha Telles, o multifacetado produtor-realizador-distribuidor que estará no IPC durante um ano (16 de Fevereiro de 1979 a 13 de Fevereiro de 1980), no qual, “com a ajuda do Secretário de Estado da Cultura David Mourão-Ferreira, desbloqueou 37 das 40 produções que encontrara paradas“ e, sobretudo, terá sido determinante numa mudança significativa a política de apoio à produção, “reforçando o papel do produtor (que passou a ser responsabilizável pela conclusão de cada filme subsidiado)“ (Lameira, 2014). A responsabilização foi uma mudança significativa de acção na relação do IPC com os beneficiários dos subsídios públicos, porque pretendia ser uma medida simultaneamente moralizadora e dissuasora de más práticas que ocorriam nesse instituto público desde 1974 e que há muito o poder político pretendia implementar: “(...) Quanto a esse aspecto, aquele membro do Governo [Secretário de Estado da Cultura, António Ribeiro Reis] deixou pendente a possibilidade de responsabilização — maxime em tribunal — de cineastas que cometeram ou consentiram irregularidades ou não cumpriram os contratos com o IPC. (...)“ (Isto é cinema, 17, 19-V1978: 6) 204 “A tentativa de ocupação dos lugares-chave do poder, cuja função era definir e implementar uma nova política de cinema, motivaria um constante reequilíbro de forças. O palco principal destas movimentações era o IPC. Quem dominasse este palco possuía o poder de controlar a produção de imagens. Além do Instituto que detinha as condições financeiras necessárias à produção cinematográfica, a RTP surgia também como palco de extrema apetência: era uma estrutura mais organizada e que chegava a audiências mais vastas e recônditas que o cinema.“ (Costa, 2014: 108) Na segunda metade dos anos 70, como penso ter já ficado claro, o IPC tornou-se claramente no instrumento privilegiado para a instauração da política pública que o poder político foi definindo para o cinema. 2.4.3. Fechar Abril Num texto de balanço do ano e da década, João Bénard da Costa (apud Dionísio, 1994: 304) nota que “os programas dos partidos não divergem em relação ao que propõem para a cultura“. Eduarda Dionísio concorda: “A ideia de 'consenso nacional' vai substituindo a de 'unidade', o que parece acontecer com mais facilidade e mais rapidamente na Cultura. (...) Os conflitos na Cultura abrandam e, quando existem, começam a usar-se as armas legais e institucionais. (...)“ (Ibidem) E, a mesma autora, conclui: “Estes dois anos [1978-79] são a verdadeira despedida do que ainda restava do 25 de Abril nas práticas e nos desejos, nas coincidências e, simultaneamente, é o tempo em que se vão cumprir (ainda), com alguns atraso, projectos (quase) fora de tempo agora, ligados à liquidação (que nunca se chegou a completar) de um passado indesejado.“ (Ibidem: 308) Na minha opinião, muito do que seria o futuro do cinema português nas décadas seguintes teria como protagonistas duas instituições públicas até então pouco valorizadas no contexto das políticas públicas: a Cinemateca e a Escola Superior de Cinema. A Cinemateca Portuguesa é convertida em instituto público com personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira. As instalações do Palácio Foz, dada a elevada taxa de ocupação de várias outras entidades (Direcção Geral de Acção Cultural, por exemplo), eram já manifestamente insuficientes para a Cinemateca, ao que acrescia 205 os cuidados necessários com os depósitos de filmes que nesse edifício eram precários (Isto é cinema, 3, 10-II-1978: 23). Em Abril, o Estado adquiria o actual edifício sede da Cinemateca, sito na Rua Barata Salgueiro, que sofreria obras de remodelação e para onde se mudaria em Janeiro de 1981. O orçamento do IPC para 1977 já previa a mudança de instalações da Cinemateca para um novo espaço onde pudesse albergar três salas de exibição, uma biblioteca e um museu do cinema. O mesmo documento previa ainda a abertura de duas salas de exibição e uma biblioteca da Cinemateca no Porto e a abertura, nos anos seguintes, de salas em “outros pontos do País“ (Isto é espectáculo, 8, VII-VIII-1977: 17). Curiosamente, já em Fevereiro de 1975, uma moção apresentada pelo ABC Cineclube e pelo Cineclube Imagem ao responsável político pela tutela do cinema propunha a criação de “delegações da cinemateca em diversos pontos do país, de funcionamento autónomo quanto possível“ (Cineclube, 2, II-1975: 27). A autonomia da Cinemateca Portuguesa revelar-se-ia nas décadas seguintes um dos momentos mais marcantes para o cinema português. A Cinemateca Portuguesa deixou de ser um depósito de filmes e um mero organizador de irregulares ciclos de cinema. Instalada em novas instalações, a Cinemateca passou a organizar importantes retrospetivas de cinema português, a coordenar catálogos dedicados a realizadores e atores97, a promover monografias sobre figuras precursoras98, a estimular o estudo dos principais momentos históricos e movimentos estéticos99 e a história da própria instituição100, transformando-se no principal núcleo de produção editorial sobre cinema português (Cunha, 2003: 14-15). João Bénard da Costa, vindo da Fundação Calouste Gulbenkian onde dirigia desde 1969 o seu serviço de cinema e onde deixara uma obra de reconhecido mérito enquanto 97 Manoel de Oliveira (1981), Arthur Duarte (1982), Dina Teresa, a Severa (1982), José Leitão de Barros (1982), Raul de Caldevilla e o seu tempo (1982), António Lopes Ribeiro (1983), Chianca de Garcia (1983), Ernesto de Albuquerque (1983), João Tavares e o primitivo cinema português (1983), Jorge Brum do Canto (1984), António Silva (1985), António Vilar (1985), Homenagem a Nascimento Fernandes (1986), Laura Alves (1986), Elvira Velez (1992), Erico Braga (1993), Aurélio da Paz dos Reis (1996), Beatriz Costa (1996), Fernando Lopes por Cá (1996), Paulo Rocha e o Rio do Ouro (1996). 98 Alberto Armando Pereira (1984), Baptista Rosa (1984), Homenagem ao Dr. Manuel Félix Ribeiro (1985), Fernando Carneiro Mendes (1986), 70 Anos de Filmes Castello Lopes (1986), Aníbal Contreiras (1987), Artur Costa de Macedo (1987), Aquilino Mendes (1989), Gentil Marques (1989), Homenagem a João Moreira (1991), Jasmin no Cinema Português, uma homenagem (1996), A Dupla Vida de Isabel Ruth (1999). 99 Encontro com o Cinema Português (1983), 25 de Abril – Imagens (1984), Cinema Novo Português 1960-74 (1985), A Fotografia Animada em Portugal 1894-1895-1896-1897 (1986), Da Lanterna Mágica ao Cinematográfico (1986), Paz dos Reis ou Pinto Moreira? (1986), Lisboa Filme – Um Sonho Vencido (1987), Sonoro Filmes (1988), A comédia popular portuguesa de António Silva a Herman José (1988), Cardo as Charlot em Portugal (1989), Amor de Perdição – Georges Pallu, 1921 (1995). 100 Panorama do Cinema Português (1980), Encontro (Inaugural) com o Cinema Português (1982), Cinemateca – 25 Anos (1983). 206 programador, foi um dos principais responsáveis por uma crescente influência da Cinemateca juntos dos decisores do poder político com tutela sobre o sector cultural. Subdirector entre 1980-91 e director da instituição entre 1991-2009, Bénard da Costa tornou-se o autêntico “Senhor Cinemateca“ e elemento decisivo na construção da identidade dessa instituição. Ao longo das décadas seguintes, as linhas de orientação da programação e da atividade editorial da Cinemateca reflectiram as fortes ideias matrizes que marcam a personalidade do seu director. Do mesmo modo, a valorização pessoal de um certo cinema de autor, veiculada desde meados dos anos 60, principalmente nas páginas d’O Tempo e o Modo, tornou-se gradualmente, nas suas linhas gerais e na visão oficial da instituição sobre o cinema português dos últimos quarenta anos (Ibidem: 18). Em 1980, com a nomeação de João Bénard da Costa por Vasco Pulido Valente como subdirector da Cinemateca, tinha início uma autêntica “revolução cinéfila silenciosa“ que transformaria o cinema português nas décadas seguintes: “Foi, assim, possível criar e estimular um público essencialmente cinéfilo, na sua esmagadora maioria formado por jovens, que faz hoje em Portugal, da Avenida de Berna à Rua Barata Salgueiro, o percurso que fazia em Paris, da Rue d'Ulm ao Palácio Chaillot, a geração do novo cinema português nos anos 50 e 60, para ver os filmes preparados na prestigiosa Cinemateca Francesa por Henri Langlois, cuja amizade por Félix Ribeiro e Bénard da Costa permitiu dar às respectivas instituições o dinamismo requerido. Para acompanharem estas retrospectivas, estiveram em Portugal cineastas de todo o mundo, como Joris Ivens, Michelangelo Antonioni, Georges Franju, Jacques Demy, Luis Berlanga, François Truffaut, Jacques Rivette, Hansjurgen Syberberg, Budd Boetticher, Istvan Gaal, Judit Elek, Juan Luis Buñuel, Helga Sanders-Brahms, Marcel Ophuls, Victor Erice e a ensaísta Lotte F. Eisner, que veio falar de Fritz Lang.“ (Pina, 1986: 209) Outra instituição pública participou activamente dessa “revolução cinéfila silenciosa“: depois de alguma instabilidade e várias dificuldades vividas durante os anos do PREC101, a Escola Superior de Cinema retomou a sua actividade e o ano lectivo 197576 foi uma espécie de recomeço do projecto pedagógico do curso criado no período marcelista. Na opinião de José Bogalheiro (1988: 46), responsável pelo curso de Cinema entre 1986 e 1995, os anos da viragem da década de 1970 para 1980 constituíram uma “época cinzenta“ na história da escola: 101 O primeiro ano lectivo (1973-74) da Escola Superior de Cinema, integrada no Conservatório Nacional, seria interrompido pelo 25 de Abril e pelo PREC que lhe seguiu. 207 “ (...) são os conflitos entre os gestores nomeados pelo ministério e os professores, é a falta de recursos e de condições para poder funcionar, é a existência de um corpo estudantil algo flutuante resultante da falta de professores, percursos curriculares ziguezagueantes, desinteresse e abandono da Escola por parte os alunos. Eu suponho, como dizia há pouco, que isto não é desligável da situação concreta que se vivia na 'comunidade cinematográfica fora da Escola. Quer dizer, nesta altura era provavelmente um reflexo daquilo que se passava lá fora, embora a Escola, de algum modo, sempre tenha tido com a profissão uma 'relação perturbada'.“ No entanto, esta foi a mais importante instituição superior de ensino de cinema nos últimos 40 anos. Pelo quadro de professores passaram algumas das figuras mais importantes do Novo cinema português, nomeadamente Alberto Seixas Santos, Paulo Rocha, Fernando Lopes, António da Cunha Telles e António Reis. Alberto Seixas Santos, que leccionou ininterruptamente entre 1980-2002, foi provavelmente a figura mais marcante na instituição ao longo da sua existência. António Reis foi um dos professores que mais marcou a escola, lecionando diversas disciplinas entre 1977-91, considerado pelo realizador Joaquim Leitão, seu aluno na Escola, como “o professor que mais marcou toda esta geração. Ele passou as coisas muito em termos de paixão, e isso é uma coisa que me tocava e com a qual aprendi algo que não sabia que podia ser assim“. Daniel Ribas (2014: 136) considera mesmo que a sua influência é “tão preponderante que acaba por ser uma segunda figura paternal, tal como Oliveira fora nos anos 60“. Ao longo de décadas, os mais internacionalmente premiados e reconhecidos realizadores102 do cinema português passaram pela Escola Superior de Cinema, tendo recebido uma formação técnica e estética que reflecte muito dos valores e crenças da geração do Novo cinema português, nomeadamente a intransigência estética, o acentuado carácter autoral e uma filiação de princípios no cinema artístico moderno. Mais do que uma filiação na história do próprio cinema português, sobretudo através dos professores, a ESC inicia também os seus alunos numa filiação no cinema moderno, promovendo um corpus fílmico claramente definido e canonizado. É precisamente a primeira turma de cineastas saída da Escola na viragem para os anos 80 que pretende também ganhar o seu espaço no cinema português e tentar influenciar o poder político. João Botelho, por exemplo, estará em muitas das “batalhas“ 102 Meramente a título de exemplo, posso citar os nomes de João Botelho, Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Miguel Gomes ou João Salaviza. 208 travadas no início dos anos 80 sobre o rumo do cinema português e, sobretudo, sobre a intervenção estatal no apoio à produção103. Penso que o papel da Cinemateca Portuguesa e da Escola de Cinema, que tem sido geralmente desvalorizados ou mesmo ignorados, foi determinante em várias transformações “silenciosas“ ou menos “visíveis“ que alteraram significativamente a forma de se fazer cinema em Portugal. Acredito que a influência destas instituições na formação e consolidação de uma cultura cinéfila e cinematográfica sobre várias gerações de cinéfilos e aspirantes a cineastas foi fundamental e quantitativamente incalculável. A 31 de Dezembro de 1979, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 533 esclarecida definitivamente que “apoio estatal não significa intervenção do Estado“ e que, para além da fiscalização “da boa aplicação dos dinheiros públicos e das escolhas dos elementos orientadores das entidades públicas competentes“, o Estado iria assegurar aos agentes do sector “a mais ampla liberdade criativa“ e a necessária autonomia financeira. O art. 2.º do mesmo Decreto-Lei n.º 533 determinava que a “assistência financeira à produção de filmes pelo Instituto Português de Cinema“ passasse a ser orientada pela Lei 7/71. Não deixa de ser irónico e surpreendente que depois de tanta discussão e de tantas mudança, ultrapassado os sensíveis períodos revolucionário (1974-75) e pósrevolucionário (1976-77), as políticas públicas para o cinema regressassem ao antes do 25 de Abril, estabilizando os princípios orientadores gerais definidos pela Lei 7/71, a legislação marcelista que uns apelidavam de progressista e outros de fascista. Sobre essa legislação, João Mário Grilo (2006: 24) afirmaria que ela “introduz algumas soluções financeiras extremamente progressistas“. A 3 de Junho de 1980, a legislação que determinava o estabelecimento de um “plano intercalar de produção que possibilitasse a realização de filmes de utilidade social imediata e de concretização rápida“ (Decreto-Lei n.º 257 de 26 de Maio de 1975) era revogado por se considerar que estava em curso a preparação de uma nova lei do cinema e a reestruturação do IPC. Como sublinha José Filipe Costa (2014: 130), apesar de todas as movimentações, estratégias, propostas, projectos e afins, “nenhum novo regime jurídico substituiria o de 1971, que perduraria pelos anos 80 e 90.“ Apesar de todas os conflitos e cisões vividos durante o PREC, o momento histórico para refundar o cinema português passara sem que algumas das questões mais estruturais fossem reformadas: 103 Sobre esta questão, consultar Cunha, 2013b: 222-226. 209 “Mas o braço estatal acabou por não tocar naquilo que era o essencial do modelo económico em que se moviam as distribuidoras e exibidoras privadas, mesmo que ao longo do tempo tenha, de vários modos, apoiado a distribuição de filmes cujo perfil não se encaixava na lógica da máxima rentabilização lucrativa. Por outras palavras, a complexa questão da difusão do cinema português, num mercado de livre concorrência, continuaria a assombrar a discussão sobre a atividade. A grande questão da distribuição e exibição levantada com a Revolução continuaria pendente, ressoando na atualidade. Em certa medida, a “viagem“ encetada naquela manhã de 29 de abril de 1974 pelas gentes da produção que iam ocupar o IPC, acabou por se prolongar no tempo, sem fim à vista. “ (Ibidem) A restruturação mais significativa da SEC, que vigoraria até 1992, seria definida pelo governo de coligação Aliança Democrática (AD) (Decreto Lei n.º 59/80, de 3 de Abril), que a devolveria para a esfera da Presidência do Conselho de Ministros, e que teve em Vasco Pulido Valente, enquanto Secretário de Estado Adjunto de Francisco Sá Carneiro, o principal mentor (Ibidem). Ainda que num Conselho de Ministros de Setembro de 1975 se tenha falado de um ante-projecto de Ministério da Cultura, e de novo a seguir às presidenciais de 1976, só em 1981, durante um governo da AD, é que a Cultura seria elevada à categoria de Ministério (Ibidem: 417-418): “Com a chegada ao poder, em 1980, da Aliança Democrática, liderada por forças de direita, abre-se uma ruptura com o poder dos militares e o modelo de sociedade consagrado na Constituição de 1976. O que se traduziu numa profunda inflexão na política cultural que vinha sendo seguida. A SEC é reformada em Abril de 1980, mais tarde falar-se-á de uma verdadeira refundação. Consagrou-se uma nova dependência institucional - o Conselho de Ministros, de modo a acentuar o seu carácter político. A reforma então decretada foi a mais longa de todas, mantendo-se praticamente sem grandes alterações até 1989. Numa clara substituição dos discursos políticos anteriores, a tónica é agora colocada na defesa do património cultural, em especial o de natureza edificada, assim como no acesso do povo à cultura erudita, omitindo-se a questão de lhe facultar meios para desenvolver a sua própria cultura. Embora muito fragilizados, rapidamente os novos dirigentes da SEC procuram pôr fim a todas as estruturas que haviam sido criadas para apoiar e difundir a cultura popular, ou conotadas com acções de mobilização das populações em defesa da Revolução. Entre as primeiras medidas adoptadas figurava a drástica redução dos apoios aos centros culturais regionais, às associações locais, mas também, se inicia o processo de desactivação das instalações na zona de Belém, símbolos por excelência da anterior política cultural.“ (Fontes, c: em linha) 210 No plano mais geral da política cultural, segundo Eduarda Dionísio (1994: 332), o final da década assistiu “ao regresso de alguns temas culturais dos primeiros meses da democracia“, nomeadamente a “democratização da cultura“ e a “'fruição' dos 'bens culturais'“, e a um progressivo “fazer de pazes“ entre os “agentes culturais“ e o poder político. 211 3. Modos de produção no cinema português (1949-1980) No presente capítulo, procurarei expor, com o maior número de documentos e de pormenores possível, analisar e reflectir sobre a evolução nos modos de produção no cinema português entre 1949 e 1980. Depois de analisar, no capítulo anterior, a política pública que definia a principal narrativa para o cinema Portugal nas balizas cronológicas definidas, é agora importante analisar as várias contra-narrativa que, ao longo do mesmo período, procuraram questionar, contrariar, explorar ou transformar o cinema português como foi sendo definido pelo poder político. Ao longo das páginas que se seguem, farei um esforço para tentar documentar exaustivamente os vários momentos onde foram mais ou menos visíveis, mais ou menos conseguidas, muitas as tentativas de renovação do cinema português. O conceito de modo de produção é central neste capítulo, procurando compreender a evolução do cinema português nesse período em toda a sua complexidade, convocando diversos aspectos para uma análise global que reconheça a importância dos aspectos estéticos e estilísticos, mas também a influência de vários aspectos extra-fílmicos mas fundamentais para a sua concretização, como a organização industrial e empresarial, a circulação e recepção, as fontes e as formas de financiamento, entre outros. O conceito de modo de produção parece-me o instrumento indicado para aplicar num estudo de largo alcance como aqui proponho, que procura relacionar o cinema português com a a economia, a política e a realidade social vivida em Portugal aos longo de três décadas da segunda metade do séc. XX. 3.1. Neo-realismo Eufemismo inventado para ocultar a expressão “realismo socialista“, tão adversa ao Estado Novo, o neo-realismo foi um movimento artístico e ideológico que exerceu uma importante contestação ao regime a partir de revistas culturais que abordavam problemas de cariz ideológico e estético, e com origens em contexto internacional.104 Por causa das grandes linhas de orientação programática do movimento – a afirmação de um novo humanismo, “constituído em função de uma forte preocupação com as 104 As principais publicações de inspiração progressista e filiadas em movimentos de pendor democrático foram: a Seara Nova (fundada em 1921, Lisboa), a Vértice (fundada em 1942, Coimbra), O Diabo (1934-40, Lisboa) e o Sol Nascente (1937-40, Porto). 212 condições sociais de existência humana“ (Reis, 1999: 598) – os neo-realistas mereceram a designação, por parte do poder vigente, de “os intelectuais da miséria“105. Questão complexa, como ressalva Michelle Sales, o neo-realismo português não é um conceito ou movimento consensual: “Por outro lado, o próprio conceito de neo-realismo em Portugal, admitido pelos escritores da época um termo falho e insuficiente para caracterizar o movimento, implica, segundo António Pedro Pita, a constatação de um problema, pois 'o neo-realismo constitui uma problemática, isto é, um questionamento sistemático nos domínios da arte, da filosofia, da ciência e da política'. O neo-realismo, ainda de acordo com António Pedro Pita, traz na sua gênese uma questão, sobretudo ética e estética. Superficialmente criticado por ser uma literatura de comunicação imediata com um grande público e, por isso, desatenta à forma e à experimentação, o neo-realismo, contrapondo-se aos movimentos modernistas que o antecederam, contrapondo-se, sobretudo à posição política da Geração da Revista Presença, representada pelo poeta José Régio, foi facilmente apontado como um movimento de geração no qual o conteúdo se sobrepunha à importância da forma. (...) A idéia de que a linguagem neo-realista como matéria significante, ou seja como uma linguagem cujo fim é a própria linguagem, não se realizou, de acordo com o pensamento de Carlos Reis, é corroborada pela idéia de que a literatura neo-realista estava imbuída de uma funcionalidade histórica que prejudicaria o debate estético. Dito de outra maneira, ao neo-realismo foi atribuído o mito de que o compromisso em representar a história a fim de conscientizar os homens e transformar a sociedade limitaria o campo do exercício formal e experimental. Porém, o que veio a se confirmar, seguindo o pensamento de António Pedro Pita, ao apontar para a heterogeneidade formal do grupo neo-realista português, é exatamente o contrário: há por parte de alguns artistas, como Carlos de Oliveira e Mário Dionísio, uma constante busca de aperfeiçoamento da linguagem, representando o desejo de buscar a melhor forma de representação do real, ou a forma que é melhor capaz de representar a realidade.“ (Sales, 2010: 171-172) Michelle Sales (Ibidem: 173-174) discorda da perspectiva defendida por Carlos Reis e Christel Henry de que “a estética neo-realista em Portugal não conseguiu superar a dicotomia forma/conteúdo“, acreditando em relacionamentos estéticos e políticos entre o neo-realismo e o cinema moderno que despontaria nos anos 60. Mais do que uma escola estética ou de uma posição política, Sales (Ibidem: 171) defende que o neorealismo pressupõe “um movimento de criação e produção artístico-cultural“ que também envolveu o cinema português. 105 Expressão usada por José Manuel Pereira da Costa a propósito da avaliação do filme Nazaré (1953), de Manuel Guimarães (Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1980: 167). 213 Também na forma cinematográfica, o neo-realismo foi uma questão polémica no contexto português como internacional. Mark Shiel (2006: 1) lembra que poucos momentos na história do cinema foram e são tão discutidos como o neo-realismo italiano, sobretudo porque promoveu uma série de transformações no cinema clássico e na sua transição para o cinema moderno. Este autor prefere não limitar cronológica e geograficamente o neo-realismo mas antes entendê-lo como uma manifestação histórica e cultural mais profunda e abrangente que, graças a uma série de inovações, alterou a percepção do que se entendia por realismo e pela sua representação: “(...) a preference for location filming, the use of nonprofessional actors, the avoidance of ornamental mise-en-scène, a preference for natural light, a freely-moving documentary style of photography, a non-interventionist approach to film directing, and an avoidance of complex editing and other post-production processes likely to focus attention on the contrivance of the film image.“ (Ibidem: 2) A este propósito, André Bazin (1991: 247-248, 267-268) destaca a importância do movimento neo-realista para um novo olhar sobre o mundo, acentuando as características atrás abordadas e uma adesão a um mistério do real. Christel Henry (2006: 35) reconhece que o neo-realismo é um termo que se define com alguma dificuldade, uma vez que ele se inscreve profundamente na história da cultura italiana mas vai ser influenciado também pelo cinema russo dos anos 20, pelo novo romance americano de Hemingway, Faulkner ou John dos Passos e pelo realismo poético francês dos anos 30. Naturalmente, o neo-realismo conheceu uma evolução e fases distintas: “os mestres“ que mais reconhecimento alcançaram (Roberto Rosselini, Vittorio De Sica, Luchino Visconti e Giuseppe De Santis); outros cineastas mais moderados que se aproximaram pontualmente ao movimento (Aldo Vergano, Pietro Germi, Alberto Lattuada, Luigi Zampa e Carlo Lizzani); o “neo-realismo cor-de-rosa“ que procurou aligeirar o drama com a comédia (Castellani, Luciano Emmer, Luigi Comencini, Mário Monicelli, Ettore Giannini); e os “filhos do neo-realismo“, ou seja, realizadores mais jovens que acusam nas suas obras mais modernistas várias influências do movimento (Michelangelo Antonioni e Federico Fellini) (Ibidem: 44-83). Leitão Ramos (2007: 523) é um dos autores que afirma que “o neo-realismo nunca existiu, deveras, no cinema português“, apesar de a sua influência enquanto movimento ter sido “muito vasta, multímoda e frutífera“. A aproximação de vários escritores neorealista à produção cinematográfica e o “ar do tempo que, historicamente, ia acenando promessas de mudança“ (Ibidem: 246) terão sido os responsáveis por esse equívoco. 214 Também Roberto Nobre (1964: 158-184) considera que, neste particular, existem vários “equívocos neo-realistas“: “Quando, nestes últimos vinte anos [1940-1960], o cinema português, prevendo adesão de simpatias no público e facilidades de embaratecimento nas execução, tentou a estética neo-realista segundo o modelo verista italiano não obteve êxito. A verdade é que os filmes feitos não estiveram à altura de o merecer. Isto não quer significar, no entanto, que o caminho não fosse oportuno ou estivesse errado, mas apenas que foi desacertada a interpretação do modo de se caminhar nele, mesmo quanto à noção da sua base, isto é, quanto à interpretação do próprio conceito neorealista. Como já disse, houve entre nós várias antecipações nesse aspecto, muito significativas e encorajantes. Os Lobos (e mesmo Mulheres da Beira), Maria do Mar, Canção da Terra, Ala Arriba, grande parte do Aniki-Bóbó, etc., pareciam predispor-nos para uma escola em que não era necessária uma apurada aparelhagem de estúdio, nem custosa encenação. Refiro-me, evidentemente, aos aspectos estéticos da escola, e não, por enquanto, às implicações humanas e sociais que muitos buscam nela, o que leva, prosélitos e antagonistas, a amá-la ou a detestá-la por motivos alheios à arte, ao seu poder de expressão estética, ética e intelectual. (...)“ A questão já era colocada em 1941, nas páginas da Seara Nova, quando o mesmo Roberto Nobre alertava: “(...) alguns, entre os quais me encontro, temo-nos batido pela efectivação dum cinema, popular sim, mas humanizado, coerente, observado, único capaz de ser compreendido por nós e por estrangeiros, pois é o único caminho para que os nossos filmes tenham carácter, verdade, profundidade. (...) Filmes arrancados à vida do nosso povo, às suas alegrias, labutas e sofrimentos, sim. Mas sem fazer marionetas à moda do Minho, e antes a dar-lhe humanidade e verdade. Assim surgirá obra simples e grande, que pode mostrar-se em toda a parte sem pedir desculpa. E não é só nos temas de província. Na cidade também há bons temas no género.“ (Seara Nova, 10-V-1941) Nobre, declarado defensor de um cinema com sentido humano e popular, denunciava o cinema “popularucho“ e de “pseudo-folclore“, imposto durante a década de 30, e reclamava um regresso à maneira como se retratou o povo em filmes como Nazaré e Maria do Mar, ambos de Leitão de Barros, que mostravam “a sua humildade dramática, e, nisso, os seus entusiasmos, desconfianças, raivas, egoísmos, ternuras e heroísmos“ (Ibidem). Vários foram os filmes que, por diversas razões, foram anunciados ou classificados como neo-realistas: Pão Nosso (1940, Armando de Miranda), Aniki-Bóbó (1942, Manoel de Oliveira), Serra Brava (1948, Armando de Miranda), Sonhar é Fácil (1951, Perdigão Queiroga) ou Madragoa (1951, Perdigão Queiroga). 215 Com dois filmes nesta lista, Armando de Miranda é um caso interessante. Depois de assinar alguns documentários, Miranda procurou, no primeiro filme, dar uma imagem realista do Alentejo, pretendendo mostrar “o Alentejo tal como ele é, e não fabricado nos estúdios!“. Apesar das intenções iniciais, o filme não haveria de convencer a crítica, que acusava precisamente o filme de ter um “olhar turístico“: “O argumento de Pão Nosso...é inconsistente. Só uma ideia turística do Alentejo permitiria aquela confusão, entre os problemas de um trabalhador irreal e de um lavrador irreal, a servirem de motivo para a constante alteração dos vários planos das figuras principais e das tomadas de vistas na charneca imensa. (...) Concluímos que nos tínhamos enganado. O filme arrojadamente revolucionário envolverase numa atmosfera de misticismo ingénuo (...). Não é este o filme dos camponeses do Alentejo, é uma fantasia sobre a vida do Alentejo e dos camponeses (...), numa intenção socialista cristã (...); a Avé Maria final também está muito deslocada. A população do Alentejo é a menos religiosa do país. É impossível observar no Alentejo, em qualquer parte do Alentejo, o quadro que Armando de Miranda inventou“. (O Diabo, 3-VIII-1940) O segundo filme, também rodado fora de estúdio, no caso na serra do Soajo, foi lançado no Brasil como um filme de “inspiração neo-realista, pois a sequência foge a tudo que já foi feito pelo cinema português, (...) à maneira dos mais fortes filmes do cinema italiano“ (Diário Carioca, 12-VIII-1953: 7), mas a mensagem final de reconciliação social e de redenção religiosa e mística não se coadunam com a mensagem neo-realista. Por contar com o argumento co-assinado por Leão Penedo e por abordar alguns problemas sociais, Sonhar é Fácil também foi visto como uma tentativa de cinema neorealista, mas a matriz da comédia à portuguesa presente ao longo do filme, o happy-end onde o espírito corporativo derrota a luta de classes demarcam inequivocamente este filme dos pressupostos programáticos do neo-realismo. No seguimento, e praticamente com a mesma equipa, Perdigão Queiroga realizaria Madragoa, um drama ambientado em Lisboa com um enredo amoroso marcado por diferenças sociais, mas o final feliz reconciliador semelhante ao anterior continuava a ser pouco neo-realista. Naturalmente, o caso de Aniki-Bóbó também é particular porque o filme só foi considerado neo-realista mais de uma década após a sua estreia. Num texto onde aprofunda arqueologicamente a questão, Tiago Baptista (2007) esclarece: “(...) À dificuldade de enquadrar este filme no cinema do seu tempo, juntou-se mais tarde a dificuldade de o contextualizar na obra subsequente de Manoel de Oliveira. Torna-se por isso difícil falar da primeira longa-metragem de ficção de Oliveira sem falar da sua recepção, processo não isento de algumas categorizações 216 problemáticas como foi, acima de todas, a que o relacionou retrospectivamente, já na década de cinquenta, com o cinema neorealista italiano dos anos quarenta. Pouco amado aquando da estreia em Dezembro 1942, AnikiBóbó foi reabilitado na década de cinquenta, em grande medida na sequência da estreia e relativo bom acolhimento dos dois filmes seguintes de Oliveira, O Pintor e a Cidade (1956) e O Pão (1959). AnikiBóbó passou então em sessões de cine-clubes, foi seleccionado para festivais no estrangeiro (São Paulo; Cannes, 1961) e recebeu as primeiras referências nos Cahiers du Cinéma (em 1952, por José Augusto França; em 1957, por André Bazin). Foi no curto texto de Bazin que surgiu, aliás, a primeira referência directa ao neo-realismo italiano. Recém regressado de uma visita a Portugal onde privara longa e intimamente com Oliveira e pudera ver Douro, Faina Fluvial (1931) e O Pintor e a Cidade (1956) — mas não Aniki-Bóbó (!) —, Bazin escreveu uma curta nota sobre o realizador português apresentando-o como 'l’auteur de Aniki-Bóbó qui, dès 1944 [sic] et sous l’influence directe du cinéma italien, s’accordait au grand mouvemente néorealiste.' Não tendo visto o filme, Bazin talvez se apoiasse na Histoire du cinéma mondial de Georges Sadoul, publicada em Paris em 1949, onde se estabelecia idêncitca relação (embora menos directa) entre o filme de Oliveira e o cinema neo-realista italiano. Salvo raras excepções, a crítica portuguesa resistiu a esta 'filiação precursora' do filme no neo-realismo italiano e as reavaliações dos anos cinquenta foram no sentido de integrar AnikiBóbó numa certa tendência histórica do cinema português descrita como 'lirismo documental' (Luis de Pina), 'verismo' (Roberto Nobre e João Bénard da Costa), ou 'realismo poético' (Luís Neves Real e o próprio Oliveira (...). As semelhanças esgotam-se no campo formal porque é impossível deixar de notar a ausência de um discurso social ou político em Aniki-Bóbó.“ Por ser parcialmente rodado fora do estúdio e por ser interpretado maioritariamente por crianças não-actores, o filme encaixaria no “modelo“ neo-realista. Mas Michelle Sales (2010: 190) sublinha que o neo-realismo italiano também não foi tão homogêneo assim, citando o pensamento revisionista de Peter Bondanella: “Além de concluir que o neo-realismo não se bastou como um movimento cinematográfico que se consagrou pelo uso de não-atores, locações autênticas e roteiro mínimo, o pensador americano aponta para o fato de estas características, tão facilmente apontadas como adjetivos do cinema pós-guerra italiano, começaram a ser implementadas ainda durante o período fascista e, muitas vezes, para filmes em benefício do regime de Mussolini, já que, com a criação, em 1935, do Centro Sperimentale de Cinematografia, muito dos cineastas consagradas pelo neo-realismo italiano tiveram ali sua formação, como é o caso do próprio Rossellini – que realizou para o regime fascista a trilogia La nave biaca (1941), Un pilota ritorna (1942) e L´uomo dalla croce (1943) nos quais o estilo realista que o consagraria já está posto“. 217 Em suma, segundo Bondanella (2006: 34) e Sales (Ibidem: 191), mais do que as questões estéticas, o que unificou um corpo de filme sob a designação comum de neorealismo “foi a crítica social, inicialmente de fundo marxista“. Christel Henry (2006: 24) reforça esta ideia, ressalvando que: “(...) o neo-realismo foi para os intelectuais portugueses de esquerda mais do que um acontecimento cinematográfico sem igual na história do cinema, um ponto de partida para um discurso periférico que mais tinha a ver com a ideologia e a política na sua acepção mais vasta, mais do que com a própria arte cinematográfica“. No entanto, a mesma autora (Ibidem: 312) acredita que “o movimento neorealista revelou-se totalmente ultrapassado na alvorada do ‘Cinema Novo'“, nomeadamente do ponto de vista estético. Por seu lado, Michelle Sales (2010: 173-174) sustenta que existe uma “relação do neo-realismo com o novo cinema do ponto de vista político, mas sobretudo do ponto de vista estético“. Sobre esta polémica, talvez seja interessante observar o que aconteceu fora de Portugal. András Bálint Kovács (2007: 276-277) reforça a ideia de que o neo-realismo é mais do que um estilo cinematográfico, pautando sobretudo por uma atitude ética e por uma aproximação ao realismo como forma de filmar. O autor húngaro sublinha que foram estas características que perpetuaram e mantiveram o neo-realismo actual mesmo após as mudanças estéticas visíveis a partir do final da década de 1950 e o surgimento do cinema moderno. Ao cinema moderno, o neo-realismo deixaria como herança o realismo livre (free realism): “(...) Italian neorealism was the most obvious model for this kind of 'free realism', which is why neorealism became the most widespread immediate reference for modern cinema relative to which most filmmakers defined themselves, taking positions at various distances from it at the beginning of the 1960s. As a general rule we can assert that the deeper a film was influenced by modernism, even in the realist trend, the farther it strayed not only from classical style but from neorealism also. However, that does not mean that all the new filmmakers of the modernist mainstream were necessarily close to neorealism, and vice versa, that a kind of neorealist revival occurred in national cinemas where modernism appeared most forcefully.“ Se em Itália a influência do neo-realismo no início do cinema moderno foi mais clara e consensual, em França, por exemplo, e apesar da excelente recepção crítica de André Bazin e do seu grupo de discípulos críticos, os jovens realizadores do cinema moderno relacionavam-se com o neo-realismo de uma forma extremamente ambígua: 218 “(...) They talked about neorealism a lot in their writings and conversations, they even compared their own films especially to Rossellini, but the way they utilized the elements of their realist style only vaguely suggested neorealism, or even could be seen as a parody of it. Neorealism interested them as moviegoers rather then as filmmakers.“ (Ibidem: 278) Também Fernando Mascarello (2006), no compêndio que organizou sobre a história do cinema mundial, não hesita em colocar o neo-realismo italiano no capítulo dedicado ao cinema moderno. Nesse capítulo, da autoria de Mariarosario Fabris (Ibidem: 217), a autora procura resumir a influência do neo-realismo no cinema contemporâneo: “Adotando as palavras de Micciché, definiríamos o neo-realismo como uma 'ética da estética' (...) que não teve tempo de se transformar numa 'estética', pois, por não ter conseguido constituir plenamente sua poética nem ampliar seus conteúdos, capitulou ante os acontecimentos político-sociais que se desenrolaram na Itália do pós-guerra. Ao sucumbir, entretanto, o neo-realismo não deixou de alimentar o cinema italiano e mundial com seu impulso moral, sua vocação transgressora, seu engajamento, representando, segundo Hennebelle, 'um prelúdio à insurreição anti-hollywoodiana' (...) que caracterizará as novas cinematografias dos anos 1960. (...)“ Finalmente, Mark Shiel (2006: 124) enumera vários casos de cinemas, entre eles modernos, de várias partes do mundo onde é reconhecida a influência do neo-realismo: “By this time, however, the long-lasting and widespread influence of neorealism was in evidence as national cinemas around the world incorporated many of its artistic innovations, examining modernisation, urbanization and their political and philosophical ramifications in various contexts. Only a few years after Rome, Open City, one could see signs of a neorealist influence in the anti-formulaic tendencies and low-budget aesthetics of some American film noirs as They Live by Night (Nicholas Ray, 1948) and The Naked City (Jules Dassin, 1948). Elsewhere, neorealism fed into movements for social and political reform as in its influence upon Andrzej Wajda's A Generation (1955), Satyajit Ray's Pather Panchali (1955), Youssef Chachine's Cairo Station (1958), Nagisa Oshima's Cruel Story of Youth (1956), Glauber Rocha's Barravento (1958) and Tómas Gutierrez Alea's Memories of Underdevelopment (1968). In documentary film, the Zavattinian model of unmediated interaction of camera and environment was emuled in the cinéma vérité of Jean Rouch's La pyramide humaine (1960) and the 'direc cinema' of Robert Drew's Primary (1960). It's social concern was echoed on portraits of working-class inner-city youth in Britain such as Karel Reicz's We Are The Lamberth Boys (1959) and John Schlesinger's A Kind of Loving (1962). In France, the nouvelle vague internalised many neorealist lessons in their engagmente with an everyday Paris, filmed always on location with natural light and highly mobile cameras, and often with an improvisational approach to scripting and shooting. In Italy, the neorealist influence continued in the work of Francesco Rosi and Ermanno Olmi, in Gillo Pontecorvo's Battle of Algiers (1966) and, 219 perhaps most of all, in Pier Paolo Pasolini who built upon his first screenwriting credit on Fellini's The Nights of Cabiria with Accattone (1961), The Gospel According to Matthew (1964) and Theorem (1968). Many of these filmmakers took for granted neorealism's emphasis on the creative freedom of the director and took inspiration from its belief in cinema as a medium of particular political and poetic potential. Not surprisingly, this was especially evident in the work of filmmakers attracted by neorealism's particular ability to explore relationships of power, engagement and disaffection on the modern city — from film noir, wich spoke in a dystopian way to processes of urbanisation and modernisation in US society even more intense than some of post-war Italy, to the diverse injustices of the postcolonial city in Chachine, Alea and Pontecorvo.“ No caso português, Paulo Filipe Monteiro (2004: 31-33) sublinha que, para o seu reconhecimento europeu, foi fundamental “uma invenção da tradição que, inevitavelmente, significa a exclusão das tradições que a nova geração considera não corresponderem à essência do cinema (moderno) português“, assim como a filiação em Manoel de Oliveira e a “rejeição de quaisquer laivos de neo-realismo ou de cinema politicamente militante“, como os casos dos filmes de Manuel Guimarães e Ernesto de Sousa. Leonor Areal (2008: 393) lembra que a “própria definição de um marco inicial, um ponto de viragem a partir do qual se aplica uma categoria estética ou de movimento“ será “taxativa e não corresponde a uma descrição das obras ou das realidades do cinema, que de facto evolui de outro modo“. Em suma, apesar de se reconhecer o passado cineclubista de vários dos realizadores da geração de 60 (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo, Alberto Seixas Santos, Fonseca e Costa, entre outros) — alguns dos quais foram inclusive dirigentes cineclubistas — e de serem reconhecíveis várias influências técnicas e estéticas do neo-realismo nos filmes produzidos por estes realizadores nos anos 60, uma certa crítica mais formalista, como tentarei demonstrar mais adiante, insistiu no afastamento do cinema moderno português dos sectores mais à esquerda da oposição cultural, nomeadamente o neo-realismo e o cineclubismo. O caso Manuel Guimarães é, no contexto português, exemplar desse debate sobre a existência ou não de um cinema neo-realista português e sobre a eventual influência deste ideário, literário e cinematográfico, sobre a geração de cineastas que surgiriam na transição e no decorrer dos anos 60. Para além disso, mesmo durante os anos 60, o debate sobre a presença ou ausência da estética neo-realista no cinema português esteve presente na recepção crítica a vários filmes: Os Verdes Anos, Belarmino, Mudar de 220 Vida e Uma abelha na chuva, entre outros. Estes dois exemplos — Manuel Guimarães e recepção crítica do Novo cinema português — serão agora analisados em pormenor. Para concluir esta análise, recupero uma afirmação de Christel Henry (2006: 444): “Resumindo, em Portugal, o neo-realismo foi um percurso crítico e não uma concretização em termos fílmicos. Um percurso sem dúvida obrigatório para a formação intelectual de esquerda, no seu sentido mais abrangente, nesses difíceis anos 50.“ Apesar de alguns autores discutirem a existência ou não de uma cinema neorealista produzido em Portugal, o que é inequívoco é que a influência do cinema e dos escritos neo-realistas numa geração de intelectuais portugueses foi uma realidade e isso contribuiu de forma determinante para que o neo-realismo se afirmasse em Portugal como um importante projecto de oposição cultural ao regime instalado, também no que diz respeito ao fenómeno cinematográfico. 3.1.1. O caso Manuel Guimarães Apesar dos filmes neo-realistas constituírem uma minoria no cinema produzido nas décadas de 1940-1950, o plano de intenções desses filmes afirmava-se como a alternativa mais concreta e consistente para o futuro do cinema português. Manuel Guimarães é um dos casos mais singulares desse período. De esperança a desilusão na tentativa de renovação do cinema português, a sua obra – em particular as suas três primeiras longa-metragens – dividiu a crítica do seu tempo de uma forma pouco habitual. O primeiro contacto directo com o cinema ocorreu em 1942, quando Guimarães foi assistente de realização de Manoel de Oliveira na rodagem de Aniki-Bóbó. Prosseguiu uma carreira de assistente de realização com outros realizadores influentes no cinema português: de António Lopes Ribeiro em Amor de Perdição (1943) e Frei Luís de Sousa (1950); de Jorge Brum do Canto em Ladrão, Precisa-se (1946); de Arthur Duarte em O Leão da Estrela (1947) e O Grande Elias (1950); e de Armando de Miranda em A Volta do José do Telhado (1948). Manifestamente fora da estratégia de uniformização cultural de António Ferro, uma plêiade de intelectuais e artistas de diferentes orientações ideológicas tentou por diversas ocasiões propor alternativas aos programas oficiais. A emancipação 221 cinematográfica de Manuel Guimarães coincidiu com esse período de reivindicação de um novo cinema, que se desenvolveu sobretudo na recepção crítica aos filmes produzidos por uma estrutura viciada e criativamente estagnada: “Os filmes nacionais não acompanham a vida real, os acontecimentos do país, melhor, acompanharam-nos segundo uma determinada óptica de propaganda ou de acatitamento formal. (…) O verdadeiro Portugal não se vê, escondido atrás de documentários técnicos exaltantes das respectivas actividades, de jornais de actualidades inaugurativos e propagandísticos, de filmes turísticos acatitados e para ver as vistas, escondido ainda em fitas de fundo onde se vão aproveitar os restos da comédia, os novos ídolos desportivos ou canoros, o sangue e os toiros, o fado e o folclore.“ (Pina, 1977: 100101). A defesa e valorização de um cinema diferente, longe do artificialismo e populismo dominantes, e a recusa de um cinema conformista e de puro entretenimento — a comédia revisteira e a “fita de barbas“ (adaptações literárias e históricas) —, apontavam para um regresso à vida real e ao quotidiano. Esta exigência de um cinema de denúncia e reflexão social contrariava os cânones oficiais que preferiam e promoviam um cinema socialmente amorfo e politicamente inócuo. A concepção do cinema enquanto arte eminentemente social, atenta às transformações da sociedade, desenvolveu-se no contexto do debate acerca da responsabilidade social das artes desenvolvida pelos intelectuais neo-realistas. O neorealismo, como já referi, foi um movimento artístico e ideológico que exerceu uma importante contestação ao regime a partir de revistas culturais que versavam problemas de cariz ideológico e estético. Ao longo da década de 50, o cinema português conheceu algumas adaptações de romances neo-realistas ou a colaboração de autores neo-realistas, dos quais, as obras de Manuel Guimarães são as mais significativas. Em traços gerais, tanto Saltimbancos (1951) como Nazaré, as duas primeiras longas-metragens de Manuel Guimarães, respeitavam as grandes linhas de força do discurso programático do neo-realismo: “Uma grande atenção ao mundo social e económico, bem como às distorções que o sistema capitalista nele agudiza; a configuração de um novo humanismo, justamente constituído em função de uma forte preocupação com as condições sociais da existência humana; a valorização dos componentes de conteúdo da obra literária, em detrimento de preocupações de ordem formal; o privilégio da narrativa como veículo preferencial de representação das contradições que preocupam o Neo-Realismo“ (Reis, 1999: 598). 222 Rodado entre Junho e Julho de 1951, Saltimbancos estrearia em Janeiro de 1952, tendo sido antecedido por algum entusiasmo nos meios cinematográfico e cultural lisboeta, nomeadamente devido à esperança depositada no jovem realizador Manuel Guimarães e à colaboração directa no filme do autor neo-realista Leão Penedo. Antes da estreia, a revista Imagem publicou dois artigos de apresentação do filme: o primeiro, ainda durante a rodagem, introduz o tema do filme e o elenco, com destaque para realizador e argumentista; e segundo artigo reproduz uma conversa com a protagonista Helga Liné. Aquando da estreia, o filme Saltimbancos começou a ser publicitado na imprensa portuguesa por um conjunto de quadros que pretendiam valorizar o filme pela sua singularidade e originalidade no contexto cinematográfico português. “Um filme edificado com o esforço e sacrifício de todos os seus artistas e técnicos!“ “Um caminho novo para o cinema português Um filme que fala á alma do povo mas não especula com o sentimento popular.“ “Um filme sério, honesto, diferente!“ “O primeiro filme português de categoria internacional. Uma história humana escrita por Leão Penedo. Um filme trágico e risonho como a própria Vida.“ “Apesar da tragédia há lugar para o amor. Uma paixão nasceu e triunfou quando tudo parecia perdido.“ “Uma farsa? Um drama? Uma comédia? Um filme diferente! Um filme que abre novos horizontes ao cinema nacional.“ “Um filme trágico e risonho como a própria vida! A vagabundagem forçada dum punhado de gente que diverte os outros sem cuidar de si. Um filme feito com a verdade das horas amargas.“ A ideia orientadora desta campanha publicitária seria demarcar Saltimbancos de toda a produção nacional recente: “MANUEL GUIMARÃES rubricou-a sem qualquer intuito comercial, fazendo um trabalho absolutamente diferente de todos os restantes filmes portugueses“. Outra ideia presente no texto publicitário que acompanhava a promoção do filme parece ser a aproximação ao neo-realismo italiano: “SALTIMBANCOS, distribuição da LISBOA FILME, é uma fita portuguesa que marca um caminho totalmente diverso às películas nacionais, com uma realização mais profunda e humana, orientação que consagrados cineastas com ‘cátedra’ 223 estão actualmente dando aos seus trabalhos, na nítida evolução que a 7.ª arte está sofrendo.“ As críticas publicadas na imprensa diária parecem nortear-se essencialmente por premissas ideológicas. Manuel Moutinho, em crítica publicada no Diário da Manhã (27I-1952: 4), acusa o filme de pretender agradar a uma “reduzida elite, falsa elite, que detesta o cinema-espectáculo, esquecendo-se de que ele é, principalmente, espectáculo“. Para este crítico, a adaptação cinematográfica resultou muito retórica e perdeu o realismo e autenticidade da obra literária que o inspirou, apesar de considerar a obra de Leão Penedo um “livrinho de insignificante literatura“. Perante as críticas de teor ideológico, a revista Imagem, dirigida por Baptista Rosa, dedicou um número especial a Saltimbancos. Na prática, este era um significativo manifesto de “defesa coral“ do filme e do seu realizador que contava com a colaboração de destacados intelectuais e nomes da cultura portuguesa de então, como Fernando Namora, Alves Redol, Piteira Santos, Roberto Nobre, Luiz Francisco Rebello ou José Cardoso Pires, apesar de se rever nos textos que o entusiasmo estético não seria muito convicto (Ramos, 2007: 248). O segundo filme de Guimarães, Nazaré, seria rodado logo entre Maio e Junho de 1952, enquanto o primeiro filme ainda estava em cartaz, e estrearia ainda nesse ano, a 12 de Dezembro. Alguma imprensa, particularmente a popular revista Plateia, seguiu com alguma atenção os desenvolvimentos relacionados com o filme, nomeadamente a escolha dos intérpretes e a rodagem na vila piscatória mais cinematográfica de Portugal. Pela leitura atenta da publicidade feita na imprensa, depressa se constata que esta segunda longa-metragem de Manuel Guimarães apostava mais na imagem e reputação dos seus intérpretes do que na originalidade da trama ou na reputação do seu realizador: “Virgílio Teixeira. Num papel diferente de todos os que tem desempenhado na sua carreira de artista cinematográfico, Virgílio vai mostrar uma faceta inédita do seu temperamento.“ “Quem viu Saltimbancos vai poder sentir que, para além de uma beleza expressiva de mulher, há uma actriz de cinema em plena ascensão, tal a maneira como Helga se integrou no ambiente nazareno que a envolvia.“ “Artur Semedo. O papel de Arrais do filme Nazaré não podia encontrar um intérprete tão à altura de seu talhe psicológico. Pela dureza que esconde um fundo humano, pelo heroísmo com que defronta o mar, o público vai achar-se perante um autêntico pescador 224 da Nazaré, apreciando até onde é possível obter-se a fusão do artista com o personagem que faz viver.“ Tal como no filme anterior, a recepção crítica a Nazaré variou conforme o posicionamento ideológicos dos seus autores: enquanto os defensores salientavam as “boas intenções“ do realizador e da obra e todas as contrariedades como atenuantes (Diário Popular, 14-XII-1952: 2-4; Diário de Lisboa, 13-XII-1952: 5), os detractores desconfiavam mais uma vez dos objectivos políticos da colaboração dos “profetas da desgraça“ em filmes portugueses (Diário da Manhã, 14-XII-1952: 4). Depois de Saltimbancos, Guimarães insistia novamente num registo fílmico que denota claras influências de estéticas renovadoras vindas da Europa, nomeadamente do neo-realismo italiano. Na época, vários autores apontavam o trajecto da recente cinematografia italiana como exemplo a seguir, nomeadamente pelas similaridades que supostamente aproximavam o cinema português do italiano anterior à guerra: as mesmas dificuldades conjunturais e o semelhante percurso político e cultural na década de 30 faziam prever que também no cinema nacional fosse possível uma revolução idêntica à italiana. Adaptada a partir de um romance de Alves Redol, a história de Nazaré não apresentava contornos muito complexos ou originais. Apesar do conteúdo não ser inédito, a abordagem proposta por Guimarães era claramente diferente das ensaiadas por Leitão de Barros. Ao contrário do que sucedia em Maria do Mar ou Ala-Arriba, onde predomina a exposição dos usos e costumes locais sob uma perspectiva folclórica contemplativa, Nazaré dava maior destaque aos aspectos sociais segundo uma óptica neo-realista. O filme está repleto de figuras e de situações que revelam as condutas sócio-culturais e ético-morais do pescador nazareno, nomeadamente a valorização do conflito de classes e a desigualdade social. A valorização do conflito de classes e da posse da propriedade estão presentes na relação entre o arrais Manel Manata e Ti Augusto Mar Ruim (Luís de Campos), um rico armador da região temido por todos pelo seu autoritarismo, mas desrespeitado pelos pescadores porque “nunca foi ao mar“. Este “burguês“ local é um homem sem escrúpulos que explora os pescadores da sua comunidade e que tenta aproveitar-se de Maria da Nazaré num momento de maior fragilidade desta. A oposição entre a precariedade das condições de vida e de trabalho dos pescadores e respectivas famílias e a ostentação gratuita dos privilegiados reforça as clivagens sociais e a desigualdade entre as classes. 225 A consciência de classe e da condição de pescador está presente entre os homens que integram o grupo liderado pelo arrais Manel. O espírito colectivo, a entreajuda e a solidariedade de grupo está sempre presente nas diversas sequências da labuta marítima ou dos hábitos sociais da comunidade. Às estereotipadas personagens principais, o filme acrescentava ainda as personagens-tipo mais características do folclore nazareno: as mães e noivas fieis e leais muito sofredoras com os sustos e as mortes no mar; os jovens rapazes que tentam afirmar-se socialmente como adultos através da pesca; os sempre respeitados idosos, como o Ti Manel Peixe Mau (José Victor), que, com todas as suas histórias, são os melhores conselheiros no que respeita ao amor e à morte. Apesar de recusar o habitual folclore, e para um filme de ruptura como se anunciava e como era esperado, Nazaré denota diversas semelhanças com o tipo de filme populista e ruralista tão profícuo nas décadas de 30 e 40. Nitidamente influenciado pelas referências estéticas de Maria do Mar, o realizador recorreu às esgotadas sequências da faina diária de pesca, dos choros colectivos das mulheres na praia, dos bailaricos e cantigas na praia e das esforçadas tentativas de filmar os pescadores no mar. Invariavelmente, Nazaré relançou e acalorou o debate acerca das possibilidades de existência dum cinema neo-realista produzido em Portugal. Um dos críticos de referência das décadas de 40 e 50, Roberto Nobre (1964: 160-164), incluía esta obra entre os “equívocos neo-realistas“ que nasceram da precipitação de alguns entusiastas e da necessidade de renovação da cinematografia nacional. Vitima dos “lugar-comum das ideias, das estéticas“, o neo-realismo cinematográfico viu-se frequentemente reduzido ao rótulo simplicista de “arte despenteada“ (Ibidem). Rejeitando este rótulo, Nobre (Ibidem) lembra que “só muito aparentemente as obras-primas do cinema neo-realista italiano são simples, ocasionais e despreocupadas.“ O próprio cartaz promocional do filme é uma ilustração com traços nitidamente neo-realistas. Ilustrativo e simbólico, o cartaz mostra duas mãos ensanguentadas agarradas a um remo sobre um fundo dominado por uma onda selvagem. As mãos sofredoras parecem agarrar o remo até ao limite das forças humanas, numa luta desigual contra a natureza, uma luta constante pela sobrevivência e pela dignidade social. O sentido colectivo da classe e da luta está expresso simbolicamente nestas mãos despegadas de um qualquer corpo concreto, as mãos e os dedos como entidades plurais e abstractas, que não individualizam. 226 Noutro sentido, mais político-ideológico, o cartaz também pode ser lido como uma valorização da resistência cultural e ideológica do movimento neo-realista ao regime vigente, ou seja, a luta desigual da oposição neo-realista contra um regime de censura e opressão ditatorial institucionalizado. Em 1953, num ofício enviado directamente pelo próprio director do SNI ao próprio Presidente do Conselho, José Manuel Pereira da Costa resumia a Oliveira Salazar, em breves palavras, a posição do regime acerca dos filmes adaptados de romances neo-realistas: “Nem por divertimento nem por obrigação pude ainda ver o filme ‘Nazaré’. A realização é inteiramente de iniciativa particular e tem raízes naquele grupo de ‘intelectuais da miséria’ ao qual nunca são estranhas intenções políticas e sociais em arte e em literatura“ (Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1980: 167). De uma forma esperada, o regime, e a censura em particular, ainda não estavam preparados para revelar a dura realidade da vida do pescador, preferindo uma visão mais corporativista e romântica da sua realidade. Tal como acontecera com Saltimbancos, também este Nazaré foi desfigurado pela acção da censura prévia, em particular uma passagem que o próprio realizador muitas vezes relembrou: um pescador desesperado vê-se obrigado a penhorar o próprio casaco que o agasalha para se poder alimentar e à sua família. Ao que parece, Henrique Tenreiro, presidente da Direcção da Junta Central das Casas dos Pescadores e reconhecido ‘patrão das pescas’, ficou muito susceptibilizado com esta sequência do filme que punha em causa a imagem pública do pescador propagandeada e difundida pelo Estado Novo, o eterno trabalhador remediado que vive na alegria da pobreza (Cleto, 1979: 24).106 Tal como Saltimbancos, a recepção crítica a Nazaré variou conforme o posicionamento ideológico dos seus autores. Os argumentos publicados assumiram uma dualidade opinativa inconciliável: os defensores salientavam as “boas intenções“ do realizador e da obra e todas as contrariedades como atenuantes; os detractores desconfiavam dos objectivos políticos da colaboração dos “profetas da desgraças“ em filmes portugueses. Dos primeiros, os argumentos mais frequentes apelavam à “sinceridade“, “honestidade“, “autenticidade“ e “seriedade“ da obra e dos seus autores, Manuel Guimarães e Alves Redol. Os nomes mais próximos dos círculos neo-realistas e das reivindicações renovadoras para o cinema português ressalvavam o carácter alternativo da obra em 106 Leonor Areal, na sua tese de doutoramento (2008: 340-342), faz uma análise pormenorizada ao guião e ao relatório de censura ao filme. 227 relação à produção dominante e a tentativa de consolidar um cinema neo-realista. Contudo, a imprensa mais conservadora e afecta ao regime, nomeadamente o Diário da Manhã (14-XII-1952: 5), não dava tréguas ao avanço neo-realista. Apesar de reconhecer as características alternativas do autor e do próprio filme, o crítico Manuel Moutinho não se deixou convencer pelas “boas intenções“ anunciadas e denunciava os objectivos ideológicos que norteavam e estavam presentes na obra. Tal como a crítica cinematográfica de então, também a produção historiográfica em torno do cinema português se dividiu em relação a Guimarães e à sua obra. As súmulas históricas do cinema português mais divulgadas — da responsabilidade de autores como João Bénard da Costa ou Luís de Pina — fazem referências breves e pouco abonatórias à obra de Manuel Guimarães, não hesitando em aproximá-lo dos “meios de esquerda“ e dos “intelectuais de esquerda“, desvalorizando a originalidade da sua cinematografia (Costa, 1991: 108). Outros autores, menos divulgados, como Henrique Alves Costa (1978: 104), lembram Manuel Guimarães como “um homem simples, modesto, sincero, honesto, que não ignorava nem escondia as suas limitações, que aguentava com estoicismo os seus desaires, na esperança sempre adiada de um dia poder dar a medida total das suas capacidades“. No mesmo sentido, Roberto Nobre (1964: 172-176) sublinha que Guimarães foi o realizador que mais tentou “atingir o neorealismo“, uma figura cheia de intenções que, devido a diversas dificuldades, nunca logrou superar as expectativas criadas. Jorge Leitão Ramos (1989: 191-192) ressalva que Manuel Guimarães foi “o único que emergiu“ da sua geração e, “não podendo receber franco aplauso merece, pelo menos, simpatia“. A sua terceira longa-metragem, Vidas sem Rumo, foi um momento de viragem na carreira de Manuel Guimarães. Enquanto projecto, Vidas sem Rumo existia pelo menos desde 1948, antes mesmo de Saltimbancos e Nazaré. No entanto, a sua rodagem só começaria em 1952, com um segundo argumento feito em colaboração com Alves Redol. Vidas sem Rumo haveria de sofrer inúmeros cortes da censura e o realizador só o deu por concluído em 1956, depois de ter filmado uma segunda vez um número significativo de cenas e de ter substituído uma actriz, para conseguir que o filme resultante tivesse ainda inteireza. Ainda assim, o filme só seria aprovado com cortes da censura. Leonor Areal faz uma interessante análise do filme: “Essa história que se esconde em três linhas de uma menção jornalística é uma história de gente pobre e sem esperança, personagens que não correspondem em nada aos clichés do retrato de cidade activa e trabalhadora que as banais imagens iniciais nos deram. 228 Vidas Sem Rumo intenta um retrato aprofundado de uma população urbana até então quase ausente do cinema – pela escolha das personagens mais marginais de entre os marginais: vadios, pedintes, estivadores, aleijados, velhos, negros, contrabandistas, prostitutas, varinas, etc. (...) A trama desenvolve-se com simplicidade e tudo acontece em sequência temporal, no espaço de dois dias e duas noites, em que seguimos a acção atrás dos passos relatados pelo narrador. O espectador terá entrada nas casas dos personagens, ouvindo-lhes as conversas, as queixas, as zangas, os beijos – tudo o que o narrador não viu mas imaginou (...). A narrativa desenvolve-se como um mistério policial cujas lacunas o espectador vai desvendando uma por uma. (...) Na escolha destas personagens marginais, revela-se um partipris, um interesse declarado pelo mundo dos miseráveis, os “injustiçados“ da vida, poderia dizer-se com a ressalva de que neste olhar não há qualquer visão justiceira nem sequer uma acusação implícita à injustiça social. O filme — através do olhar compassivo do narrador, alter-ego do olhar do realizador — constata, observa, compreende, mas não tira conclusões. O narrador putativo, e com ele o espectador, é levado a identificar-se com os sofrimentos das personagens e com a inevitabilidade da sua condição existencial.“ (Areal, 2008: 344) Estreado em Setembro de 1956, a publicidade ao filme assentava precisamente nas suas próprias dificuldades de produção, ainda que não o declarasse explicitamente por causa da vigilância da censura: “Uma jornada inédita nos anais do cinema nacional. (...) Um filme Português. Diferente! Realista! Estranho! Humano! Poético! (...) Uma história nova sobre muitos dramas ignorados das vielas… (...) Um filme feito com corajosa sinceridade! (...)“ (Diário de Lisboa, 12-IX-1956: 4) “A mais discutida produção do cinema nacional. Uma história realizada com corajosa sinceridade“ (Idem, 19-IX-1956: 5) “Um êxito que representa um violento grito de protesto do público contra todos os derrotistas“ (Idem, 26-IX-1956: 5) Manuel Moutinho, em crítica publicada no Diário da Manhã (14-VI-1956: 4), parece justificar os cortes da censura denunciando as pretensões ideológicas do realizador que tentou “fazer mais um ensaio português de cinema político“. Alves Redol 229 também é visado: “a sua pseudo-sequência, os seus diálogos são literária e dramaticamente muito inferiores.“ Tecnicamente, as dificuldades financeiras e materiais parecem justificar a mediocridade com que o crítico avalia o filme. Por seu lado, o crítico “F.“, do diário República (13-9-1956: 4), considera que Vidas sem Rumo representa “um admirável esforço de integração da cinematografia portuguesa em novos moldes, que não tenham os touros, os fados, os chamados ambiente típicos e turísticos – que, afinal, não o são.“ Estas duas posições são exemplarmente demonstrativas da forma como a crítica cinematográfica da época dividiu a sua apreciação da obra de Manuel Guimarães em função das suas referências ideológicas. Invariavelmente, a recepção crítica mais próxima dos valores estadonovistas, nomeadamente os círculos católicos e conservadores, não pouparam as primeiras três obras do realizador, denunciando sobretudo as suas pretensas intenções neo-realistas. Já a crítica mais oposicionista à política cultural do regime cerrou fileiras na defesa e no apoio ao jovem cineasta, apesar de reconhecer debilidades técnicas e artísticas nas obras em questão. “Sem qualquer dúvida, pode-se considerar que a censura a esses filmes de Manuel Guimarães foi movida por razões puramente ideológicas. A declarada influência da literatura neorrealista neles foi vista pelo regime como uma ameaça à sua organização e ordem política. O tratamento da crítica mais conservadora e os próprios relatórios de visionamento dos filmes pelos censores não deixam margem para dúvidas, tratou-se claramente de uma censura ideológica.“ (Sales, 2013: 167) Na época, o jovem realizador ainda entusiasmou a generalidade da crítica que, de forma mais ou menos declarada, valorizou as tentativas de ruptura com o velho cinema. Apesar da defesa feita por nomes ligados ao neo-realismo e à resistência cultural ao regime, os mesmos que já se haviam embandeirado antes para defender Saltimbancos, as esperanças depositadas em Guimarães foram-se esvanecendo, perdendo-se o entusiasmo inicial à volta deste jovem promissor. O próprio cineasta, devido às enormes dificuldades financeiras e às fortes mutilações impostas pela censura oficial, acabou por “ceder“ ao mercado. E o momento de “cedência“ ou de “viragem“ na sua carreira aconteceria com o filme A Costureirinha da Sé: “Senti-me perdido, desorientado, vencido, desmoralizado. Sofri uma enorme depressão, uma terrível angústia (...) Ninguém sonha hoje os sacrifícios e o heroísmo que eram necessários para se fazer um filme independente e sem apoios financeiros...“ (Guimarães apud Alves Costa, 1978: 106) 230 “'A Costureirinha da Sé' foi, a seguir, o resultado duma depressão moral e do cansaço total. Engolido pela engrenagem, tinha de sobreviver com a responsabilidade às costas de centenas de contos de prejuízos com os filmes anteriores. Ninguém queria nada comigo. Era uma espécie de realizador maldito cá na terra. Este último filme — feito com o intuito de me salvar... — foi outro fracasso e fiquei mais empenhado do que antes. Não tinha mais qualquer oportunidade. Tornei-me novamente assistente de outros realizadores e voltei às artes gráficas até surgir a possibilidade de 'O Crime de Aldeia Velha' e depois a de 'O Trigo e o Joio'.“ (Guimarães apud Duarte, 1975: 29). De resto, as circunstâncias que o levaram a, em 1957, ter voltado a trabalhar nas artes gráficas e na ilustração e de, em 1959, ter exercido funções de assistente de realização de António Lopes Ribeiro em O Primo Basílio, indiciam que a sua situação financeira não seria confortável. Comédia musical baseada numa popular opereta de Arnaldo Leite e Heitor Campos Monteiro, que fizera muito sucesso comercial uns anos antes, A Costureirinha da Sé assumia o tom de uma crónica bairrista do Porto, “através de uma aguarela viva de costumes populares, em que se sublinha a faina ribeirinha e o formigueiro humano da laboriosa cidade“, que contava a história de uma frágil e ingénua costureira chamada Aurora, uma jovem das origens humildes do bairro da Sé, que trabalhava num atelier de costura e estava apaixonada por Armando, motorista de táxi, mas por quem teria de disputar uma “batalha amorosa“ com uma vizinha. Estreado a 11 de Fevereiro de 1959, primeiro no Porto e só duas semanas depois em Lisboa, este seria o maior sucesso comercial de Manuel Guimarães, talvez também porque era protagonizado pela cançonetista Maria de Fátima Bravo, então no auge da sua popularidade. Ironicamente, como observa Leonor Areal, com este filme o cineasta voltaria a ser alvo de “censura“, mas distinta da anterior: “a censura geral (a outra censura, a do juízo dos críticos) que não estava preparada para esse desvio ideológico e que doravante tomaria Manuel Guimarães como um proscrito da história do cinema.“ (Areal, 2008: 332) Apesar da presença de Manuel de Azevedo como assistente de realização, os colaboradores habituais de Guimarães não participaram neste filmes. Novidades eram as colaborações de Perdigão Queiroga na direcção de fotografia e de Jaime Mendes na direcção musical, figuras com vasta experiência no cinema português de cariz mais comercial. 231 Em suma, para a crítica, o filme parecia ditar o fim de linha para a carreira cinematográfica de Guimarães: “Considerado pela generalidade dos críticos como a nódoa da carreira de Manuel Guimarães, foi este o filme que lhe destruiu a reputação, penalizando-o com a desvalorização da sua obra por todo. Os motivos para este descrédito tão forte residem na opção pelo género da comédia e na “transigência“ com o cançonetismo, que era (já desde António Ferro) considerado a pecha da cinematografia nacional, virada para o êxito comercial fácil e subsidiária do teatro de revista. À época, o discurso crítico execrava o “popularucho“ do nosso cinema e Guimarães cometeu o pecado de executar esta pirueta inesperada, contrariando todas as expectativas depositadas nele, como autor “sério, honesto e sincero“.“ (Ibidem: 346) Apesar de tudo, Leonor Areal (Ibidem: 346-347) reavalia o filme e aponta algumas características que não seriam tão “inéditas“ ou “incaracterísticas“ ao percurso estético e ético do realizador portuense: “(...) Visto a distância de 50 anos e sem os preconceitos moralistas daquela época, a Costureirinha apresenta características originais e é portador de uma ironia perspicaz sobre a sua actualidade e sem complexos ideológicos, faceta desconhecida do temperamento de Manuel Guimarães. Este é aliás um dos filmes de Manuel Guimarães mais atento à transformação da realidade social contemporânea. Ao debruçar-se sobre a pequena-burguesia em ascensão, Manuel Guimarães presta atenção a uma mutação que precisamente tem, como novo paradigma, a cultura de televisão, nesse ano introduzida em Portugal, com os seus concursos e publicidade. A vontade de ascensão social aparece nas preocupações das várias personagens e tem aqui o barbeiro como representante da cultura erudita e o acordeonista como a figura simbólica do poeta sonhador e sentimental. Aliás, é curioso observar o reaparecimento dos saltimbancos do primeiro filme, aqui já urbanizados, na família que tem uma barraca de tiro na feira.“ (Ibidem: 346-347) Leonor Areal (2008: 347) considera mesmo que “apesar da sua alegria televisiva e fantasiosa“, A Costureirinha da Sé é um filme “bastante realista e pouco idealista“ e, “mais do que pertencer ao género do nacional-cançonetismo, este é um filme sobre o nacional-cançonetismo“, que recusa propositadamente o melodrama e que é pontuado recorrentemente por uma “ironia essencial“ (Ibidem: 348-349). Também por este período, Manuel Guimarães começa a realizar algumas curtasmetragens documentais: As Corridas Internacionais do Porto (1956, prod. Lisboa Filme), XXX Volta a Portugal em Bicicleta (1957), Vinhos Bi-Seculares (1961), Porto, Capital do Trabalho (1961) e Barcelos (1961). Pelos género de filmes, não é estranho que Manuel Guimarães os tenha realizado e, em parte, produzido, provavelmente por razões de 232 ordem financeira, ou seja, para recuperar algum dinheiro investidos nos filmes anteriores ou para preparar projectos futuros. Em 1959, inspirado em acontecimentos verídicos ocorridos duas décadas e meia antes na aldeia de Soalhães, em Marco de Canavezes, Bernardo Santareno escrevia uma peça de teatro intitulada O Crime de Aldeia Velha: “uma mulher foi queimada viva por, supostamente, estar possuída pelo diabo, tendo os seus executantes em seguida rezado para que a vítima ressuscitasse“ (Palinhos, 2013: 437). Apesar de alguns autores apontarem Cunha Telles como o autor do projecto, e de ter escolhido Guimarães para o realizar, o próprio produtor disse à imprensa da época que o projecto era do realizador e esse foi precisamente um dos motivos de interesse para ele se associar enquanto produtor: “(…) Acontece que, de momento, surgiu a oportunidade de produzir ‘Crime de Aldeia Velha’, e como de forma alguma quero estar parado, e o assunto me interessou, não hesitei. (…) De há muito tempo que Manuel Guimarães trabalha neste filme. A preparação feita com cuidado, tempo, reflexão e competência é excelente realidade em Manuel Guimarães. Interessei-me pelo filme confiante nas qualidades de Guimarães e, também, perante a leitura do guião pronto a filmar.“ (António da Cunha Telles apud Rádio e Televisão, II-1963) Leonor Areal (2008: 332) observa que esta colaboração entre Cunha Telles e Guimarães “indica algum apreço da geração do novo cinema pela obra do veterano“. De facto, apesar de ter desiludo muitos dos seus defensores da sua fase mais “neo-realista“, esta colaboração com Cunha Telles, o “produtor do Cinema novo“, é um indicador suficientemente esclarecedor de algum reconhecimento por parte da nova geração de cinéfilos que passaria à realização na década de 1960. A par de Manuel de Oliveira, Manuel Guimarães é uma das excepções que a nova geração reconhecia do cinema português do passado e do presente, sobre tudo como exemplos “de uma ética singular e de um percurso marginal“ (Cunha, 2013: 175).107 No filme destaca-se ainda a rodagem em cenários reais e a fotografia do francês Luc Mirot, responsável pela mesma função em Os Verdes Anos, uma das “marcas“ das Produções António da Cunha Telles. Por outro lado, faltam ao filme de Guimarães outras características atribuídas ao “modo de produção“ de Cunha Telles: construção abstracta 107 Por outro lado, como documentarei mais adiante, de acordo com os arquivos do SNI, António da Cunha Telles também apresentou a concurso para apoio à produção onde propunha produzir projectos com realizadores esteticamente tão diferentes como José Fonseca e Costa, Manoel de Oliveira, Herlânder Peyroteo ou Fernando Garcia. 233 da realidade, subjectividade no olhar do realizador e um uso narrativo do som na montagem e na mise-en-scéne. Como alerta Luís de Pina (1986: 161), a narrativa do filme conservava a estrutura da peça teatral de Bernardo Santareno e não dava “muita liberdade ao realizador“, mas a marca de Guimarães era visível nomeadamente no “ambiente“ do filme: “a pobreza, o isolamento, a superstição, a atraso, enfim“. Apesar da colaboração com o “produtor-milagre“ do cinema português, a produção do filme não deixo de ter alguns contratempos. Em Abril de 1964, Rui Gomes queixavase à revista Rádio e Televisão (4-IV-1964: 14) que a produção do filme “portou-se“ de “forma nada simpática“, porque havia contratado um período de rodagem de dois meses e ela já contava cinco meses e ainda não estava concluída. No entanto, no ano seguinte, Cunha Telles voltaria a associar-se como co-produtor de um filme de Manuel Guimarães, agora baseado num romance de Fernando Namora. O Trigo e o Joio (1965) seria, na opinião de Leonor Areal (2008: 351), “o último filme da linha estética neo-realista que caracteriza a obra de Manuel de Guimarães“, onde os protagonistas voltam a ser “os marginais da sociedade“, num filme “sobre o modo de organização social do trabalho rural, particularmente descrevendo as migrações sazonais de trabalhadores do norte para fazer as searas“. Ainda assim, mesmo “inserindo-se claramente numa linha estética neo-realista, não é um filme de confronto com os poderes, ou com a ideologia estado-novista“ (Ibidem: 353). Como resume Leonor Areal (Ibidem) o filme recupera “uma ideologia de resistência sócio-política (latente e quase omissa)“ que já estava presente em Saltimbancos, Nazaré e Vidas sem Rumo, ainda que aqui surja menos pessimista e mais luminosa do que nessas obras anteriores. Em suma, as marcas do cinema mais inconformista de Guimarães continuam presentes: “(...) a latência de uma contra-moral contida nesse retrato sobretudo quando aponta o orgulho do maltês em pagar as suas dívidas, assumindo a culpa e rejeitando a ajuda do lavrador como quem rejeita um paternalismo subjacente e afirma a independência a todo o custo.“ (Ibidem: 352) Talvez por esta presença, o filme seria alvo de cortes da censura que considerou mesmo “necessário tomar providências para que o filme não saia do país“ (Ibidem: 354358). O processo documenta ainda o recurso da distribuidora Espectáculos Rivus na tentativa de negociação dos cortes com a censura para permitir a estreia de uma versão do filme, ainda considerando que “muitos desses cortes [mutilam] (...) gravemente a 234 narrativa, o seu significado humano e poético, a sua coerência psicológica, e ainda os valores plásticos“ (ANTT-SNI-IGAC-2inc-proc.18059-A: 42). Depois do recurso, a comissão de censura reconsideraria e eliminava cinco dos dez cortes iniciais, mantendo os restantes cinco: “Os motivos dos cortes são relativamente óbvios; o primeiro omitindo as cenas eróticas; os restantes - mesquinhos até - cortando ou pequenas frases consideradas com segundo sentido subversivo, ou as cenas em que o lavrador mostra agressividade e se esboça um conflito que poderia ser lido alegoricamente como conflito de classes. Estes cortes correspondem exactamente às cenas que nos mostrariam alguma conflitualidade, gerando um contraste com a bondade dos personagens, e dando-nos destes uma imagem não tão idealista como deixei atrás apontado.“ (Areal, 2008: 355) Perante isto, o próprio Manuel Guimarães decidiu apresentar uma nova versão montada do filme, que seria a que estrearia nas salas, onde assume “algumas correcções puramente de ordem técnica e narrativa“. Leonor Areal (Ibidem: 356) desconfia dessa justificação e arrisca que “os cortes feitos demonstram uma intencionalidade diferente, escondendo provavelmente uma coacção pessoal e a possibilidade concedida de ser o próprio autor a reformular o filme“. Curiosamente, o filme seria elogiado, na recepção crítica pela imprensa de então, por uma aproximação ao modo de filmar da nova geração, “nomeadamente pelo uso de elipses“, mas Leonor Areal (Ibidem: 332) alerta que muitas das elipses não seriam mais do que precisamente as consequências directas dos vários cortes da censura a que o filme foi sujeito. A seguir a O Trigo e o Joio, Manuel Guimarães solicitou uma bolsa à Fundação Calouste Gulbenkian para receber formação em Itália. Em 1965, durante a sua viagem ao país do neo-realismo, Guimarães conheceu e viu em acção os realizadores Marco Ferreri, Mário Monicelli, Pietro Germi, Vittoria De Sica e Federico Fellini, enquanto este filmava e montava Julieta dos Espinhos (Duarte, 1975: 10-11). Nos anos seguintes, Manuel Guimarães voltaria à realização de inúmeros documentários: O Porto, Escola de Artistas (1967, prod. SNI), Ensino das Belas Artes (1967, prod. SNI), Artes Gráficas (1967, prod. SNI), Tapetes de Viana do Castelo (1967, prod. Ricardo Malheiro/Cultura Filmes), O Ritmo na Vida (1968, prod. Ricardo Malheiro), Tráfego e Estiva (1968, prod. Ricardo Malheiro), Expressos Lisboa - Madrid (1969), António Duarte (1969, prod. Ricardo Malheiro/Cultura Filmes), Fernando Namora (1969, prod. Ricardo Malheiro), Resende (1970, prod. Ricardo Malheiro), Carta a Mestre Dórdio Gomes (1971, prod. Manuel Guimarães) e Areia Mar - Mar Areia (1973). 235 Exceptuando poucos destes títulos, a generalidade apresenta um tipo de abordagem mais cultural e artística, alguns produzidos por Ricardo Malheiro, produtor eclético que por esses anos havia também proporcionado trabalhos de realizador a João César Monteiro (Sophia de Mello Breyner Andresen, 1969), Alberto Seixas Santos (A Arte e o Ofício de Ourives, 1968) e António-Pedro Vasconcelos (Tapeçaria, uma tradição que revive, 1968; 27 Minutos com Fernando Lopes-Graça, 1971) em documentários de registo semelhante. Mas o mais surpreendente desta lista foram as encomendas do SNI. Após ter sido um realizador maldito nos anos 50, um dos principais “inimigos“ da política cultural do Estado Novo e uma vítima da censura, Manuel Guimarães era finalmente subsidiado com fundos públicos. Talvez estes apoios estivessem relacionados com a aproximação de Manuel Guimarães ao produtor Cunha Telles e consequente reconhecimento da sua importância pela nova geração cinéfila, mas essa é apenas uma hipótese que eu não posso afirmar ou documentar categoricamente. Na década seguinte, Guimarães voltaria à comédia com Lotação Esgotada (1972). Ao contrário do tom aligeirado de A Costureirinha da Sé, esta comédia era uma sátira ao poder patriarcal e às hierarquias do poder local. Baseada numa história original de Artur Semedo, o filme conta a história da rivalidade entre o Presidente e o Vice-Presidente da Câmara de um pequeno município que se materializa em torno da luta pela construção de um novo cemitério porque o anterior tinha esgotado a lotação (Matos-Cruz, 1999: 150). Luís Miguel Oliveira (1997) aproxima o filme da comédia de humor negro, considerando mesmo, entre outros aspectos, ser “bastante interessante – e arrojada, num filme pré-25 de Abril – a caracterização do Padre, sempre na órbita de um ou outro dos rivais conforme os benefícios prometidos, numa contundente sátira à promiscuidade das relações entre a Igreja e o poder político“. Falecido prematuramente em Janeiro 1975, quando contava apenas 59 anos, Manuel Guimarães deixaria inacabado o filme Cântico Final, que seria finalizado pelo seu filho Dórdio Guimarães. Num filme “filosófico, ou melhor, existencial“ (Areal, 2008: 360),é contada a história de Mário (Ruy de Carvalho) e do seu regresso à aldeia serrana natal onde pretende passar os últimos dias de vida, já que se encontra doente de um cancro em estado terminal. Para Areal (Ibidem: 358), este filme representa “um triplo testamento de geração: o testamento do protagonista, o do realizador e o do escritor cuja obra adapta, Vergílio Ferreira“. 236 A pré-produção do filme remonta a 1973, quando o filme seria um dos contemplados no primeiro plano de produção do IPC. Contrariando todas as expectativas, Manuel Guimarães recebeu um apoio financeiro do instituto público para rodar aquela que seria a sua última longa-metragem (embora já em consonância com o apoio às suas curtas-metragens). Por outro lado, a pós-produção foi assegurada pelo próprio filho e seu assistente de realização neste e noutros filmes. Alves Costa, num texto intitulado “O cinema português de luto“ (Cineclube, 2, II975: 14-16), lembrava que a carreira de Guimarães poderia ter sido bem distinta não fosse a acção castradora da censura, mas elogiou o espírito de sacrifício e de persistência do cineasta que, apesar de marginalizado, fez com que deixasse uma obra de resistência singular na história do cinema português. Apesar de depreciativamente etiquetado como “pretensamente neo-realista“, este cineasta foi o mais coerente e persistente defensor de um neo-realismo para o cinema português. Por isso, neste contexto, pode afirmar-se que Manuel Guimarães foi o mais interessante cineasta português da cinematograficamente medíocre década de 1950. A este propósito, Leonor Areal (2008: 330) defende: “(...) Guimarães é todo o cinema neo-realista português — movimento composto de um só cultor — apesar de alguma historiografia lhe negar esse lugar, ora negando a existência de neorealismo em Portugal, ora englobando nessa categoria filmes de outros realizadores que descaracterizam esse neo-realismo que se diz que não houve... (...) Em Portugal, o espírito neo-realista está sobretudo ligado a uma geração que se define por referentes literários e ideológicos comuns, tanto como por afinidades e amizades. E embora muitas obras do neorealismo literário tenham sido transpostas para o cinema — em adaptações várias que continuarão pelas décadas seguintes, marcando uma visão política da sociedade portuguesa e diversas reconstituições históricas — não podemos apelidá-las de cinema neo-realista, quando em certos casos (Jorge Brum do Canto ou Perdigão Queiroga, por exemplo) o tratamento narrativo acaba por revelar um ponto de vista ideologicamente conformista.“ Para a investigadora, o cinema de Manuel Guimarães é mesmo um caso singular no contexto português: “A obra de Guimarães afirma-se perante dificuldades concretas – a penúria financeira e os cortes da censura - num contexto onde está fora de possibilidade a expressão autêntica de uma visão antagonista da sociedade. Porém, enquanto acto de resistência ideológica, está sempre cautelosamente omissa dos seus filmes qualquer relação com a oposição política (clandestina) ao regime ditatorial. E como a combatividade não podia ser mostrada, logo, não podia existir, onde 237 não é possível combater, resta a resistência – que é o que temos: um neo-realismo de resistência. O neo-realismo de Manuel Guimarães procura combater essa limitação escolhendo temas de marginalidade social: os saltimbancos, os pescadores, os estivadores e contrabandistas de Lisboa, os malteses e serrazinos do Alentejo. E há outra característica que o distingue de todo os cineastas dos anos 50: o desfecho trágico a que sucumbem os seus protagonistas, exprimindo essencialmente a desesperança e uma ausência de saídas. Além desse fatalismo tout-court, que faz rematar as histórias por mortes inevitáveis, outra forma de exprimir a inexprimível revolta é a demissão de qualquer moralismo, sem o que a vida nos aparece pintada como constatação de facto. Por acréscimo específico e cultural, étnico quase, emerge ainda uma tristeza conformada, silenciosa e silenciada – por vezes melodramática, nos momentos em que irrompe sob a forma de um grito ou de um soluço histérico. É esse o seu sentimentalismo próprio (e muito português).“ (Ibidem: 330-331) O próprio Manuel Guimarães, num excerto de uma entrevista de 1963, recuperada por Leonor Areal (Ibidem: 366), diria a propósito da primeira fase da sua carreira cinematográfica: “Considero-os como exercícios. Nada mais. A curta metragem 'O Desterrado' foi o princípio. Actualmente, não se pode ver, com os seus arrebatamentos expressionistas e a sua sinceridade romântica. É ridículo. 'Saltimbancos', de Leão Penedo, que foi o meu primeiro filme de fundo, enferma de muita coisa semelhante. Foi sempre um filme inacabado, feito em condições únicas em Portugal, sem capital, sem ajudas, e só com os sacrifícios de todos os colaboradores. O filme reflecte tudo isso e resulta como obra de amador – incipiente. Não interessa. 'Nazaré' pretendeu ser um filme realista com todas as suas implicações. Um filme de mar é um filme caro e difícil, para o qual não estávamos preparados, nem material nem tecnicamente. Apesar de sequências que não repudio. Sofreu amputações das quais se ressentiu consideravelmente. Quanto a 'Vidas sem Rumo' era uma história minha, e talvez por isso o considere, entre todos os meus filmes, o melhor“. Em 1972, certamente recuperada alguma auto-estima, o mesmo Guimarães mostrava-se “mais consciente do papel histórico dos seus filmes“: “Os quatro primeiros filmes que realizei, considero-os um pequeno marco na história do cinema português. Embora não conseguidos totalmente, mesmo assim, foram um caminho que apontei para um verdadeiro e autêntico cinema nacional. Eu estava só, lutando ferozmente contra uma engrenagem que do cinema apenas se queria servir, sem olhar a meios nem a sequências. Os que podiam estar a meu lado, ou melhor, eu ao lado deles, tinham cruzado os braços, desistido, sem forças uns, descrentes outros. Os novos de hoje, felizmente, não sabem nem sonham os sacrifícios, melhor, o heroísmo que era necessário possuir nesse tempo para se fazer um filme com independência, sem qualquer apoio financeiro. (...) Quero com tudo isto dizer que os meus filmes eram bons? Evidentemente que não. Mal 238 acabados, mal estruturados, esteticamente indefinidos, tiveram o mérito de ser uma atitude de dignidade artística“. (Guimarães apud Areal, Ibidem) Em suma, Leonor Areal defende que, apesar da “consistência, determinação e originalidade“ que ocupa na história do cinema português, a obra de Manuel Guimarães “foi, ao longo de cinco décadas, sendo sucessivamente diminuída pela crítica histórica“ (Ibidem: 332). Ao contrário de Luís de Pina (1986: 125-126), que recusa que a obra de Guimarães seja neo-realista, Areal sustenta precisamente que o contrário: “No panorama de convencionalismo e moralismo do cinema da década de 50, os filme de Manuel Guimarães destacam-se pelo afrontamento de situações humanas próximas da maior miséria material e pela equação de dilemas humanos que evidenciam uma miséria humana, sua vertente moral. Perspectiva que é construída através do desenvolvimento psicológico das personagens – e por meio de um retrato pintado com ambiguidades. O contrário da dualidade entre bons e maus comportamentos que caracteriza o maniqueísmo dos filmes dos seus colegas conformistas. Há em Manuel Guimarães um programa político, sim, mas um programa humanístico. E um programa estético que passa por uma abordagem psicologista e que prudentemente nunca acusa o poder, as autoridades, o sistema político – apenas mostra a realidade difícil e a impossibilidade de uma solução na vida dos que estão no fundo da escala social.“ (Ibidem) Por outro lado, autores como Leitão Ramos (2007: 52) reconhecem à obra de Manuel Guimarães, particularmente a trilogia dos anos 50, apenas “uma vontade de mudança, um solitário gesto no pântano (...), como testemunho de algo que era justo, como tentativa“, distanciando-a daquilo que ocorreria na década de 1960. Ao contrário do que a história do cinema português convencionou, acredito, Michelle Sales (2010: 188), que estas experiências fílmicas dos anos 50, nomeadamente o caso Manuel Guimarães, foram determinantes para o que sucederia na década seguinte em termos de produção cinematográfica. Não acredito que tenham sido apenas e só meros ou meras “vontades“, “gestos“ ou “testemunhos“, mas como uma pré-história que contribuiria decisivamente para a “revolução“ estética que aconteceria na década seguinte. Leonor Areal (2008: 334-335) sublinha que Manuel Guimarães tentou, em Saltimbancos, um modo de produção alternativo ao que sucedia em Portugal naquele tempo: “Será interessante assinalar que este filme foi feito sem financiamento, ou seja, foi produzido por uma reunião de esforços do colectivo de actores e técnicos que deram o seu trabalho gratuitamente para tornarem possível a realização de um projecto de 239 filme que pretendia renovar e reagir contra o cinema comercial e medíocre. Que um filme tenha resultado de um tal empenho colectivo reflecte-se cristalinamente no conteúdo narrativo do filme e na voz off do trapezista declarando-se capaz de todos os sacrifícios por amor à arte e para manter vivo o circo; tal como Manuel Guimarães e seus colaboradores o fizeram para manter vivo o cinema, com o entusiasmo de quem acredita poder fazer renascer esperanças e sonhos. (...) Tudo isto sem dar o desconto das dificuldades por que passaram os artistas e técnicos — os dias em que não havia que comer ou não havia película para filmar e foi preciso o realizador vender a mobília ou Maria Olguim empenhar jóias para comprar metragem de película. E diz o narrador em desabafo: 'por que é tão difícil viver, quando só temos o nosso trabalho para dar?' — frase que pode ser extrapolada para a actividade artística ou qualquer outra profissão mal remunerada, e onde está contida uma alusão crítica e política, discreta, como tinha que ser para o filme passar na censura.“ E a imprensa da época sublinhava precisamente essa particularidade: “Os produtores negam-se a capitalizar o novo filme, porque a história não tem pés nem cabeça... Mas Manuel Guimarães não desiste e junta à sua volta um núcleo de técnicos e artistas que se agrupam em sociedade, oferecendo o seu trabalho voluntarioso. Alguns desistem de participar noutros filmes onde a remuneração seria certa. São casos únicos que bem revelam o desinteresse material em troca duma película feita em moldes diferentes. (...) É o próprio realizador que espera todas as manhãs a abertura do estabelecimento e corre com mais uma bobina até aos estúdios. Ele próprio vende todo o mobiliário de sua casa; Maria Olguim separa-se das jóias, e alguém mais hipoteca o automóvel. Mas o filme não faltará na máquina, todos os dias, alimentando o sonho em que todos acreditam. Os almoços nos estúdios são reduzidos, meia dose para cada um e, quantas vezes, uma sanduíche a crédito na taberna mais próxima. Ninguém levanta o mais pequeno protesto mesmo quando se trabalham horas seguidas com o estômago vazio...“ (Imagem, nº 13, I1952, apud Ibidem). Manuel Guimarães voltaria a “este esquema de cooperação“ para produzir os seus dois filmes seguintes, Nazaré e Vidas sem Rumo, filmes que antecedem outros exemplos conhecido de produção independente, como a cooperativa de artistas de Cais do Sodré (1946) e a Cooperativa do Espectador de Dom Roberto (1962) (Areal, 2008: 334). Por outro lado, as co-produções também foram uma fórmula tentada por Guimarães: O Crime de Aldeia Velha com Cunha Telles e a Tobis; O Trigo e o Joio teve como co-produtores novamente Cunha Telles e a Tobis, mais uma entidade designada “Artistas e Técnicos Associados“ (Matos-Cruz, 1999: 130), para além do próprio realizador; Lotação Esgotada foi uma co-produção com a Ulisseia Filmes. 240 Em suma, Manuel Guimarães tentou algumas formas de produção que diferiam um pouco dos métodos mais convencionais, procurando soluções para contornar as dificuldade de financiamento crónicas do cinema português e agravadas no caso de um cineasta sem apoios públicos. O seu contributo para a renovação do cinema português neste período e nas décadas seguintes seria fundamental, mais como referência ética do que propriamente estética. Mas apesar das reservas da nova geração cinéfila, que talvez o visse como um realizador de um cinema datado, o seu lugar na história do Novo cinema português permanecerá como um símbolo de resistência e forte oposição a uma política cultural e como representante de um modo de produção neo-realista que deixou uma marca em várias gerações. 3.1.2. Crítica cinematográfica: os profetas da desgraça Um núcleo importante, com forte articulação aos movimentos neo-realismo e cineclubista, era constituído pela crítica cultural e cinematográfica. Durante a década de 50, em plena crise da cinematografia portuguesa, diversas publicações especializadas em cinema desempenharam um importante papel na denúncia da crise e na tentativa de propor uma renovação credível. Num período em que se exigia renovação, o sector da crítica mais exigente conheceu, de uma forma espontânea e consistente, o surgimento da uma nova crítica, constituída por jovens valores emergentes de tertúlias artísticas e dos meios universitários. Mas antes de me abordar essa renovação, será interessante perceber como se desenvolveu a crítica de cinema em Portugal desde os primeiros textos sobre cinema, ainda na década de 20. Em Outubro de 1927, o Diário de Lisboa tornou-se o primeiro jornal diário português a incluir uma página dedicada exclusivamente a assuntos cinematográficos. Tratava-se da página inicialmente intitulada Arte Cinematográfica/O claro-escuro animado, da responsabilidade de António Lopes Ribeiro que assinava os textos sob o célebre pseudónimo de Retardador. Posteriormente, a página seria rebaptizada de A Semana Cinematográfica: “Não queremos deixar passar em claro o facto de ter sido o ‘Diário de Lisboa’ o primeiro grande jornal que inseriu uma página semanal exclusivamente dedicada a assuntos cinematográficos, incluindo não só a resenha e apreciação critica de todos os filmes projectados nas telas da capital, mas também artigos orientadores e de interesse geral.“ (Diário de Lisboa, 20-X-1928: 3) 241 Entre 1927 e 1930, António Lopes Ribeiro assegurou uma colaboração contínua com este periódico. Nesse período, para além das suas crónicas e críticas, o Retardador publicou também outro géneros de textos, entre os quais o diário da sua viagem cinéfila à Europa de Leste (Polónia e URSS). Finda a colaboração de Lopes Ribeiro, a informação cinematográfica permaneceu no Diário de Lisboa, mas então em textos diários sem assinatura a que apenas assinalavam as estreias nas salas, integrando a rúbrica Teatros e Cinemas, ou a divulgar curiosidades das estrelas, na rúbrica Atrás do Reposteiro. Lopes Ribeiro saiu desse diário generalista para integrar a redacção de uma revista especializada em cinema, naquele que seria o primeiro surto significativo de publicações periódicas especificamente cinematográficas que se verificou na transição da década de 1920 para a seguinte: Cinéfilo (Lisboa, 1928-39); Imagem: Tribuna Livre de Cinema (Lisboa, 1928); Imagem (Lisboa, 1930-35); Kino (Lisboa, 1930-31); Animatógrafo (Lisboa, 1.ª série 1933); Cine-Jornal (Lisboa, 1935-40); Animatógrafo (Lisboa, 2.ª e 3.ª séries, 1940-42). Este núcleo de publicações surge na transição para o cinema sonoro e na época das primeiras tentativas de constituição de uma estrutura industrial de produção contínua. O objecto cinematográfico era tratado nessas revistas essencialmente como entretenimento ou espectáculo. Dos responsáveis e colaboradores destas publicações sairia o grupo de cineastas que dominaram a produção na década de 1930-40: António Lopes Ribeiro (director da Animatógrafo e Kino e colaborador da Imagem: Tribuna Livre de Cinema e Imagem), Jorge Brum do Canto (colaborador da Cinéfilo, Imagem: Tribuna Livre de Cinema e Imagem), Chianca de Garcia (director da Imagem, colaborador da Imagem: Tribuna Livre de Cinema), Leitão de Barros (colaborador da Imagem) e Cottinelli Telmo (colaborador da Imagem e Kino). Para além dos cineastas, escreveram também nestas publicações aqueles que se tornariam os mais produtivos críticos de cinema das décadas de 1930-50: Domingos de Mascarenhas (redactor da Animatógrafo, colaborador da Cinéfilo, Imagem e Kino), Fernando Fragoso (director da Imagem, colaborador da Cinéfilo e Animatógrafo), Augusto Fraga (director da Cinéfilo e colaborador da Animatógrafo) e Fernando Garcia (colaborador da Animatógrafo). Além de críticos, estas últimas figuras também se tornaram parte activa na indústria cinematográfica: Domingos Mascarenhas tornou-se produtor em O Cerro dos Enforcados, 1954; Fernando Fragoso assinou diversos argumentos, diálogos e 242 sequências em diversos filmes108; Augusto Fraga foi realizador109, assistente de realização e produção, argumentista, montador, produtor e actor; Fernando Garcia foi realizador110, assistente de realização e produção, argumentista, montador e actor. Estes nomes e os anteriores constituem portanto o primeiro núcleo de críticos/jornalistas cinematográficos profissionais em Portugal, tendo publicado na imprensa diária mais afecta ao regime (Diário da Manhã e Diário de Notícias) e nos microfones da Emissora Nacional, que por esses anos começara também a dar espaço aos assuntos cinematográficos em programas específicos na sua grelha de programação111, onde faziam sobretudo a divulgação e a promoção de um certo cinema português e de um cânone cinematográfico clássico. É também a este núcleo de autores que se deve os primeiros escritos com pretensões historiográficas em torno do cinema português. A obra colectiva A Maravilhosa História da Arte das Imagens, iniciativa coordenada por Fernando Fragoso e Raúl Faria da Fonseca, editada em fascículos entre 1949 e 1956, constituiu um esforço conjunto de diversos autores em divulgar alguns dados sobre a nossa cinematografia. Idealizada por jornalistas, esta obra, no que respeita ao cinema português, revela pouca exigência na análise e problematização dos dados avançados. A actividade crítica de Roberto Nobre é uma das mais interessantes do panorama cinematográfico nacional deste período. Escritas ao longo de quatro décadas e espalhada por diversas publicações, destacam-se os textos de crítica de Nobre publicados em algumas publicações situadas na oposição ao Estado Novo: o semanário de crítica literária e artística O Diabo (1937-40), com críticas relativas sobretudo a filmes portugueses e estrangeiros; a revista mensal de divulgação social e científica, arte e literatura, Pensamento (1939), órgão do Instituto de Cultura Socialista, onde divulgou um texto teórico; a Vértice, onde escreve valiosas considerações sobre diversos assuntos 108 João Ratão, 1940; O Costa do Castelo, 1943, A Menina da Rádio, 1944; O Leão da Estrela, 1947; O Grande Elias, 1950; A Garça e a Serpente, 1952; O Noivo das Caldas, 1956; Perdeu-se um Marido, 1957; Dois Dias no Paraíso, 1958; A Luz vem do Alto, 1959; Raça, 1961; Um Dia na Vida, 1962; A Cruz de Ferro, 1968; Traição Inverosímil, 1971. 109 O Sangue Toureiro, 1958; O Tarzan do 5.º Esquerdo, 1958; O Passarinho da Ribeira, 1960; Raça, 1961; Um Dia na Vida, 1962; Uma Hora de Amor, 1964; Vinte e Nove Irmãos, 1965; A Voz do Sangue, 1966; Traição Inverosímil, 1971. 110 Heróis do Mar, 1949; Um Marido Solteiro, 1952; O Cerro dos Enforcados, 1954; Agora é que são Elas, 1954. 111 A Rádio foi também um veículo de divulgação cinéfilo e tinha espaços próprios para a crítica de cinema: na Emissora Nacional, no final dos anos 50 e inícios dos anos 60, mantinha em antenas os programas Rádio-Cinema, que contava com a colaboração de Félix Ribeiro e Fernando Garcia, e Espectáculo, com Goulart Nogueira e Jorge Pelayo; a Rádio Renascença também emitiu programas de crítica católica, como o Zoom, o CCC=CCC: Cineclube Católico igual a Cinema com Critério e o Panorâmica. 243 relacionados com os aspectos culturais do cinema (1945-64); a Seara Nova, onde escreveu uma centena de importantes textos ao longo de uma década (1940-52) que ajudam a caracterizar o panorama cinéfilo português de então; o jornal Batalha, onde iniciou o seu percurso tecendo comentários sobre problemas mais mediáticos; no Diário Popular e no O Primeiro de Janeiro contribuiria pontualmente com as páginas especializadas em assuntos cinematográficos. A figura de Roberto Nobre está envolvida nos momentos e nas questões mais importantes do cinema português. Na oposição cultural e ideológica ao Estado Novo, o crítico não poupas as denúncias de falência do “cinema oficial“ produzido nas décadas de 30 e 40. Do mesmo modo, tornou-se definitivamente mediático pela sua corajosa oposição à famosa lei de protecção do cinema nacional de António Ferro através do opúsculo O Fundo (1948), prontamente apreendido pela PIDE. Em oposição à concepção crítica de Roberto Nobre, mas também na oposição ao regime e ao modelo cultural dominante, Manuel de Azevedo recusava a ideia do cinema como “arte pura cem por cento, amante do individualismo e do subjectivismo“. Estas diferentes concepções do cinema são o fruto da distância que separa os dois autores, “uma distância teórica e artística e, em certa medida, política.“ (Pita, 2000: 57-59) O histórico dirigente cineclubista Manuel de Azevedo era um dos nomes mais destacados e reconhecidos de uma crítica minoritária e marginalizada no panorama cinematográfico português de então. Em oposição ao núcleo da crítica dita “oficial“, começou a despontar em diversas publicações de carácter cultural e artístico uma crítica que ficou conotada com a oposição política e cultural ao regime: Seara Nova (Lisboa, 1921-); Presença (Coimbra, 1927-40); O Diabo (Lisboa, 1934-40); Sol Nascente (Porto, 1937-40); Sol (Lisboa, 1942-49); Vértice (Coimbra, 1942-); Pensamento (Lisboa,1931). Ao contrário da crítica dominante, a crítica de cinema publicada nestes títulos tinha pouco alcance mediático e pouca influência junto dos espectadores de cinema. No entanto, estas publicações tinham o mérito de reunir, entre os colaboradores, muitos intelectuais, artistas e ensaístas que escreveram os mais interessantes textos sobre cinema deste período: José Régio (colaborador da Presença e Movimento), Adolfo Casais Monteiro (Presença e Movimento), José Gomes Ferreira (Presença e Seara Nova) e Roberto Nobre (O Diabo, Seara Nova, Vértice e Pensamento). Para António Pedro Pita (Ibidem: 59), Manuel de Azevedo foi mesmo “o mais destacado ideólogo do enraizamento social do cinema e da noção de que o cinema é ‘a expressão viva da própria vida’“, ideia fundamental do “neo-realismo“ e que difundiu 244 um “programa de perspectivação marxista de vários aspectos da sociedade portuguesa“. Ao contrário do ideário anarco-sindicalista de Roberto Nobre, o grupo de Manuel de Azevedo defendia que “não é a consciência que determina o ser social, mas, inversamente, o ser social que determina a consciência“ e que o cinema, enquanto linguagem privilegiada da vida social, assumia uma importância capital no debate teórico acerca das relações entre o Homem e a Arte (Ibidem). A percepção do cinema enquanto “arte eminentemente social“ e a sua afirmação como obra artística pressupunham uma redefinição do papel do artista e do público, insistindo no princípio marxista de que “a cultura é uma expressão da realidade social“ (Ibidem: 59-60). A partir de 1945, o Diário de Lisboa passou a publicar uma nova página temática dedicada ao cinema, teatro e rádio: a Êxito. A página começou por ser coordenada por Augusto Fraga, um dos críticos do núcleo dominante da escrita cinematográfica portuguesa, mas a partir de 1961 Manuel de Azevedo assumiu a coordenação da página Êxito e, também abrangendo a televisão, passou a ser mais crítica e mais exigente em relação ao próprio cinema português. As décadas de 1950-60 passam a ser de confronto aberto entre concepções críticas antagónicas e inconciliáveis. Se durante a política cultural de António Ferro a monopolização dos meios de produção não permitia diversificar a oferta cinematográfica, a estreia de filmes produzidos fora dos círculos afectos ao regime provocou uma reacção violenta. O primeiro caso mais visível foi o de Manuel Guimarães: a recepção critica aos seus três primeiros filmes – Saltimbancos (1951), Nazaré (1952) e Vidas sem Rumo (1956) –, como já referi no subcapítulo anterior, são exemplares para conhecermos e compreendermos a geografia e as motivações da crítica cinematográfica deste período. Dos críticos em actividade na década de 1950 e na transição para a seguinte, Christel Henry (2006: 134-229) identificaria três tendências globais mais representativas e respectivos autores mais destacados: os de tendência marxista (Baptista-Bastos), os críticos moderados de Esquerda (Manuel de Azevedo, Vitoriano Rosa, Armindo Blanco e José-Augusto França) e os críticos partidários do regime salazarista (Domingos Mascarenhas). Devido a diferentes filiações ideológicas das suas direcções e colaboradores, esta “nova crítica“ constituiu vários núcleos de acção, por vezes antagónicos, que se apoiavam em importantes publicações. Entre as revistas mais críticas da política cultural do governo encontra-se a Imagem (1950-1961) que, a partir de 1952, ultrapassado um 245 discurso inicial de certa moderação, ataca e classifica o sector cinematográfico nacional como uma “cidadela de analfabetos e comerciantes“. Em 1954, face ao “insucesso que tem rodeado as últimas produções nacionais apresentadas“, esta revista sentenciava a morte do cinema velho com uma ideia de esperança, exigindo uma “urgente e adequada solução“ e apregoando que “este fim trágico pode gerar um princípio risonho“ (Imagem, VI-1954: 175). Este período ficaria também marcado por uma inédita agitação editorial por parte dos sectores mais activos da oposição cultural ao regime (Pina, 1977: 171201).112 Sobre o panorama crítico da década de 50, Christel Henry (2006: 233) sublinha ser “interessante constatar que o clima de guerra-fria que reinava então se repercutia igualmente nestas revistas, embora as desavenças fossem muito mais atenuadas e disfarçadas do que nos livros ou compilações de críticas“ publicados em Portugal no mesmo período: “(...) De facto, as críticas que vão aparecer nas revistas especializadas nunca vão atingira a raiva anti-comunista de Domingos Mascarenhas patente nos textos incluídos tardiamente no segundo volume de Fitas e franjas, nem o dogmatismo marxista ortodoxo de Baptista-Bastos de que estão imbuídos O cinema na polémica do tempo e O filme e o realismo.“ (Ibidem) A revista Imagem foi a revista que “defendeu o neo-realismo com mais vigor“, destacando-se os “escritos pertinentes e inovadores de José Ernesto de Sousa na segunda série da revista (Ibidem). Para além da revista Imagem, “sem dúvida a mais importante a todos os níveis (cultural, divulgação cinematográfica, repercussão no movimento cineclubista, etc.)“, Henry (Ibidem) destaca também as revista Visor e Celulóide, ambas dirigidas por Fernando Duarte, e a Filme, “revista de uma certa envergadura, mas limitada pela vontade de ficar neutra a qualquer preço“, dirigida por Luís de Pina. Catarina Alves Costa (2012: 81) também sublinha a importância destas publicações para entender o cinema exibido em Portugal e a própria produção de filmes portugueses: “(...) Estes suportes permitem perceber, de modo mais detalhado, a forma como era recebido, criticado e apropriado o cinema que era visto quer nos circuitos mais comerciais, quer nos mais 112 São particularmente significativas as publicações de Luís Neves Real (Cartas Abertas aos Senhores Deputados da Nação, 1955), Manuel de Azevedo (Perspectiva do Cinema Português, 1951, À Margem do Cinema Nacional, 1956) e Baptista Bastos (O Cinema na Polémica do Tempo, 1959), assim como traduções de obras de Sergei Eisenstein (Reflexões de um Cineasta, 1961), Vsevolod Pudovkine (Argumento e planificação, 1961) e Georges Sadoul (História do Cinema Mundial e As maravilhas do cinema, 1959). 246 alternativos. Por outro lado, detectam-se divisões entre uma esquerda marxista e uma humanista, presentes na 2ª série da revista Imagem, mas também entre revistas como a Celulóide ou a Visor, que se integram numa política de direita, sem incorporar, mais uma vez, as teorias da cultura do espírito de António Ferro.“ Henry (Ibidem: 304) alerta para o particular confronto entre a crítica de esquerda (“entre uma esquerda moderada e uma ideologia marxista“) da revista Imagem e a crítica católica das revistas dirigidas por Fernando Duarte, Visor e Celulóide. Geralmente menos referida, a crítica católica também ocupou um papel importante no panorama crítico português, em particular no processo de renovação da crítica e do próprio cinema português. Criado em 1951, o Boletim Cinematográfico era editado pelo Secretariado do Cinema e da Rádio da Acção Católica Portuguesa de regularidade semanal que publicava uma crítica de teor mais moral sobre os filmes em exibição nas salas portuguesas. A própria criação do Secretariado do Cinema e da Rádio, que remontava a 1938, foi muito influenciada pela carta encíclica Vigilanti Cura de Leão XI (1936) que elogiava as Legião da Decência norte-americana e alertava para o poder de influência do cinema e para “a necessidade de vigiar os filmes“ produzidos e os que estão nas salas em exibição, através da publicação de boletins regulares onde os católicos pudessem colher informação acerca da classificação moral dos filmes. No entanto, mesmo antes dessa encíclica, na Rádio Renascença, o Monsenhor Manuel Lopes da Cruz havia já definido uma grelha de classificação moral dos filmes em exibição nas salas portuguesas: “Aprováveis“, “Toleráveis (para adultos da vida e com sólida formação cristã)“ e “Condenáveis“. Antes do Boletim Cinematográfico, a crítica de cinema católica era publicada no diário Novidades, que atribuía as classificações morais dos filmes nos mesmos moldes da Rádio Renascença. Em meados dos anos 50, começa a surgir um movimento católico que entende o cinema de uma forma distinta: os católicos progressistas. Por suposta aproximação aos comunistas, o Papa Pio XII excomungou esse movimento católico francês, cujo membros eram conotados com as teses do personalismo cristão e do socialismo humanista, correntes que preconizam uma concepção libertária e progressiva da História e do Homem. Em Portugal, apesar de rejeitarem expressamente o rótulo, um significativo grupo de figuras católicas – onde se incluíam João Bénard da Costa, António Alçada Baptista, Pedro Tamen, Nuno Portas, Adérito Sedas Nunes, entre outros – foram catalogados por 247 certos sectores da sociedade portuguesa como “católicos progressistas“. Crítico ao regime, este grupo de “católicos progressistas“ defendia sobretudo os valores do pluralismo, universalismo e contemporaneidade. Os momentos de maior visibilidade da oposição católica ao regime ocorreram aquando do apoio à candidatura presidencial de Humberto Delgado (1958), no envolvimento na chamada “revolta da Sé“ (1961) e na condenação da política colonial, em particular após o famoso caso da “vigília na Capela do Rato“ (1973). Em Portugal, na área do cinema, o primeiro espaço de acção deste novo pensamento cristão seria o Centro Cultural de Cinema, um cineclube de inspiração cristã criado em 1955 pela revista Encontro, editada pela Juventude Universitária Católica (JUC). Presidido por Pedro Tamen até 1959, por esse cineclube passariam outros estudantes universitários católicos como Nuno Portas, Nuno Bragança, Helena Vaz da Silva, João Bénard da Costa, Duarte Nuno Simões e João Vaz da Silva, entre outros. A partir de 1959, Francisco Sarsfield Cabral seria o novo Presidente da Direcção e por esse cineclube passariam outros universitários católicos como Paulo Rocha, Manuel Lucena ou Magalhães Mota. Do sucesso desse universitário Centro Cultural de Cinema nasceria o Cineclube Católico, criado por decisão do Secretariado de Cinema e Rádio. Sedeado em Lisboa, este novo cineclube procurou conquistar o seu espaço numa cidade que já contava com os três cineclubes bem populares e influentes: ABC Cineclube, Cineclube Imagem e Cineclube Universitário de Lisboa. O seu posicionamento conservador, a sua relação hierárquica com a Igreja Católica e o clima da perseguição e repressão vivido no seio dos cineclubes por esses anos dificultou a integração do Cineclube Católico no movimento cineclubista português. No Porto, em 1962, também surgiria um cineclube de inspiração cristã, o Cineclube da Boavista, com a mesma missão do congénere lisboeta. Por esses anos, o padre José Vieira Marques criaria o Centro de Estudos Cinematográficos, que publicaria a página Pelo Mundo do Cinema no jornal Novidades e que estaria na origem da criação do Festival de Cinema da Figueira da Foz. Mas, no campo da crítica, o meio mais influente e significativo para o que aqui me ocupa foi a revista O Tempo e o Modo. Revista de pensamento e acção, o grupo inicial d' O Tempo e o Modo era influenciado pela doutrina do Concílio Vaticano II, realizado em Outubro de 1962, perfilhava a filosofia de Mounier e reconhecia influências directas das revistas Esprit e Concilium. 248 A primeira série, de Janeiro de 1963 a Maio de 1970, foi dirigida por António Alçada Baptista, tendo João Bénard da Costa como chefe de redacção e Pedro Tamen como editor literário.113 Sobre esta publicação, Daniel Pires (1999: 558) resumiria: “O Tempo e o Modo trilhou um percurso pleno de vicissitudes no seu longo historial. A sua 1.ª fase, teve como pedra-de-toque o diálogo, a confluência de forças de diversos quadrantes, o auscultar de sensibilidades diferentes. Na fundação da revista convergiram três gerações: os católicos progressistas, seus principais dinamizadores, que estiveram no 1.º Congresso da JUC e que tinham integrado o jornal universitário Encontro, fundado em Janeiro de 1956; um grupo republicano e laico que viria a ser o embrião do futuro Partido Socialista, nas pessoas de Mário Soares e de Salgado Zenha; um sector estudantil que energicamente lutou pela autonomia da Academia, pela renovação e democratização da Universidade, pelo Associativismo como direito inalienável, e que vivenciou directamente a crise universitária de 1962, membros do MAR — Movimento de Acção Revolucionária —, caso de Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Nuno Bragança e de Vasco Pulido Valente.“ Este grupo de críticos seria muito influenciado pela revista francesa Cahiers du Cinéma. Eduardo Paz Barroso (2002: 228) sublinha mesmo que esta influência, que se fez sentir mais nos sectores progressistas do pensamento católico, ajudou a consolidar a noção de autoria e “a deixar de lado uma suspeição que pairava sobre o cinema americano“: “A situação intelectual típica dessa transição para os anos 60, passava pela '(...) defesa apaixonada de Welles e dos novos cineastas americanos revelados na década, sobretudo Aldrich, Brooks, Anthony Mann e, principalmente, o muito amado Nick Ray. Defendidos desde 56 nos dois cineclubes universitários de Lisboa (entre polémicas furiosas, em que os termos de 'formalista' e ' idealista' tinham forte conotação pejorativa) para esses cineastas se reclamavam também o estatuto de autor, aparecendo os seus filmes, nas páginas de Êxito, (onde Eurico da Costa e Nuno Portas já tinham substituído Fraga, como Ernesto de Sousa substituíra Baptista Rosa na Imagem) como sinal da contradição que opunha os críticos, na primeira adaptação a Portugal das famosas 'estrelinhas' dos Cahiers (...)'. Face a uma confrontação de mentalidades e à apresentação de novos mecanismos de apreciação cinematográfica, como a classificação decorrente da atribuição qualitativa de uma pontuação aos filmes, acaba por ser toda uma ruptura epistemológica que está em curso.“ 113 Ao longo desta série, foram publicados textos de diversos autores de referência nacional e internacional: Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Vasco Pulido Valente, Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Mário Soares, M. S. Lourenço, Bento do Carmo, João César Monteiro, Luís Miguel Cintra, AntónioPedro Vasconcelos, Mário Murteira, Francisco Sarsfield Cabral, Adérito Nunes, Sottomayor Cardia, Salgado Zenha, Salgado Matos, José-Augusto França, Mário Dionísio, André Gorz, Georges Burdeau, Jean-Paul Sartre, Edgar Morin, D. Helder da Câmara, Mamadou Dia. 249 Robert Stam (2006: 154-155) sublinha que a transição dos anos 60 para os anos 70 ficaria “marcada por uma proliferação de periódicos de cinema marxistas ou de inflexão esquerdista“, e dá vários exemplos: Positif, Cinéthique, Cinémaction e (os recémconvertidos à esquerda) Cahiers du Cinéma na França; Screen e Framework na Inglaterra; Cine-Tracts e, mais tarde, Cine-Action no Canadá; Jump Cut e Cineaste nos Estados Unidos; Ombre Rossi e Filmcritica na Itália, Hablemos de Cine no Peru; e Cine Cubano em Cuba. Em Portugal, talvez tenha sido o renovado Diário de Lisboa a ocupar esse espaço de influência, pelo menos no que diz respeito à crítica cinematográfica. De seguida, analiso um dos momentos fundamentais na afirmação da crítica de cinema em Portugal: o início da crítica diária no jornal Diário de Lisboa, em 1968, que revolucionou a história da crítica na imprensa portuguesa e alterou radicalmente o panorama da crítica de cinema em Portugal. “Em fins de 1967, eu [Lauro António] e o Eduardo Prado Coelho fomos convidados pelo Ruella Ramos a escrever diariamente no prestigiado ‘Diário de Lisboa’, então possivelmente o melhor jornal português, uma espécie de ‘Le Monde’ à escala portuguesa. Ruella Ramos era o director, mas o homem que comandava as finanças era Lopes do Souto, que nos contratou por vinte e cinco tostões a crónica, mais direito a bilhetes à borla para as salas de cinema onde os filmes estreavam. Começámos a escrever e, no início de 1968, estalou uma bronca monstruosa, que fez de nós dois ‘heróis nacionais’ de um dia para o outro.“ (António, 2008: 79) A “bronca“ a que Lauro António se refere teve como principal protagonista uma associação de exibidores de cinema de Lisboa, a Cineasso (Cinemas Associados, Lda). Dirigida pelo Eng. José Gil, a Cineasso agregava os maiores espaços de exibição da capital: Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden e S. Luiz. Considerando-se ameaçado nos seus interesses, numa época em que o número de espectadores cinematográficos baixava consideravelmente, a Cineasso decidiu intervir de forma considerada rápida e eficaz. No dia 23 de Fevereiro, enviou uma carta ao director do jornal que foi publicada com destaque de primeira página no dia 28 seguinte: “Confirmamos o nosso telefonema de hoje no sentido de ser anulada a publicidade sob a rubrica ‘Cartaz dos Cinemas’, relativamente aos nossos cinemas ‘Alvalade’, ‘Eden’, ‘Estúdio’, ‘Europa’, ‘Império’, ‘Monumental’ e ‘São Luiz’. Tivemos ocasião de manifestar a VV. Ex.as o nosso desapontamento e discordância pela orientação dada recentemente a certas notícias de estreias publicadas no jornal de VV. Ex.as, porque 250 consideramos que não é aceitável que nas mesmas se desacreditem os espectáculos. A chamada liberdade de imprensa nada tem que ser invocada ao considerarem as relações entre entidades de interesses ligados, como é o caso da imprensa que carece da publicidade e da indústria que não pode viver sem ela. A crítica cinematográfica exercida com independência absoluta e sujeita a controvérsias de outros técnicos, está lógica e naturalmente reservada à imprensa da especialidade. Na diária, a confusão só pode gerar este lamentável atropelo de entidades que sempre prezaram muito o ‘Diário de Lisboa’ e nele tiveram um dos melhores defensores dos legítimos anseios da indústria dos espectáculos. A decisão que nos vimos forçados a tomar será complementada com a supressão de toda e qualquer publicidade das empresas nossas associadas.“ (Diário de Lisboa, 28-II-1968: 1). O teor do texto acima transcrito faz-me acreditar que esta carta foi apenas o culminar de um processo de pressão feito ao jornal por parte da Cineasso e que duraria há já algum tempo, nomeadamente através de conversas telefónicas e mesmo presenciais. A Cineasso ameaçou e cumpriu. Nesse mesmo dia, a publicidade dos seus associados desapareceu das páginas do jornal. Nas restantes semanas que durou o boicote, apenas encontrei nas páginas do Diário de Lisboa publicidade de espaços exibidores que não integravam a Cineasso: Avis, São Jorge, Roma, Mundial, Europa, Condes, Politeama, Estúdio 444. Até 1967, quando Lauro António e Eduardo Prado Coelho iniciaram a sua colaboração no Diário de Lisboa, a generalidade da critica cinematográfica publicada na imprensa diária era uma forma de publicidade indirecta patrocinada pelos distribuidores e exibidores, como relata Lauro António (2008: 79): “Não havia crítica diária nos jornais diários. Existia uma resenha efectuada normalmente por um velho jornalista que percorria as salas com filmes em estreia, pedia o programa com o resumo do argumento, via quinze minutos, e desandava para outra sala ou regressava à redacção para escrevinhar algumas linhas assinadas por iniciais que normalmente não correspondiam a nada.“ De facto, a generalidade dos textos publicados na imprensa portuguesa de então sob a forma de crítica cinematográfica nem sequer eram assinados pelo jornalista responsável. Por vezes, não eram sequer assinados mas, geralmente, os textos eram assinados com iniciais ou sob um pseudónimo recorrente na época: a palavra Visor seguido de número ou inicial. Na pesquisa efectuada no Diário de Lisboa durante os 251 meses de Setembro e Dezembro de 1967, os textos eram assinados sempre com esse tipo de código: Visor 60, Visor 96, Visor 35, Visor 087, Visor 33, Visor 888, Visor A, Visor 13. Muitas vezes, o uso de alguns desses códigos denunciava uma intenção irónica ou sarcástica do próprio autor: por exemplo, numa altura em que os filmes de espionagem de James Bond 007 eram os principais sucessos de bilheteira nas salas portuguesas, um dos textos aparece assinado por Visor 006,5 (zero, zero, seis e meio). Em relação aos textos propriamente ditos, alguns eram muito semelhantes ou mesmo iguais aos publicados noutros jornais. Para esta coincidência só me ocorre uma explicação: os textos publicados eram geralmente “inspirados“ ou mesmo simples e puras transcrições dos textos fornecidos nos press releases dos distribuidores, exibidores ou das agências de publicidade. Dos jornais diários de maior tiragem nacional, o Diário de Lisboa era o que exibia mais publicidade cinematográfica directa. Essa publicidade directa era feita exclusivamente sob forma de cartaz ilustrado com destaque para os principais protagonistas e, por vezes, para o realizador. Os cartazes publicitários eram de grande dimensão, ocupando por vezes mais de metade da página de formato A3 do jornal. Com o passar do dia de estreia, o cartaz ia perdendo dimensão e acabava por dar lugar à estreia seguinte. Nos dias da véspera de estreia e da estreia, os diferentes cartazes publicitários chegavam mesmo a ocupar três das páginas de destaque do jornal, geralmente a partir da página 4. Os outros jornais com publicidade directa aos espectáculos cinematográficos eram, sobretudo, os de maior tiragem na capital: os oficiosos Diário de Notícias e Diário da Manhã. No entanto, nestas publicações, o espaço dedicado aos cartazes não era tão visível como no Diário de Lisboa. Outros jornais de menor tiragem – República ou Diário Popular – e a generalidade das revistas culturais, não apresentavam este tipo de publicidade. Com a publicação da carta da Cineasso na primeira página, o Diário de Lisboa apresentava também uma declaração de intenções intitulada “Um ataque rechaçado. Sete cinemas coligados pretenderam reduzir ao silêncio a crítica do Diário de Lisboa“: “Não se trata, porém, apenas de uma deplorável e afrontosa manobra de intimidação, empreendida por um grupo de interesses que não sabe, nem quer saber, de mais nada que não sejam os seus interesses e, por isso, julga que todos têem pela mesma cartilha. (...) Pôs-se, desse modo, em prática um processo de dignificação geral: respeito pelo público, respeito pelo trabalho, respeito pela crítica, respeito pela opinião. 252 Só o gerente do ‘consórcio’ de interesses é que levanta a luva: não quer crítica, quer só reclamos; não quer esclarecimento, quer só confusão. Exactamente como os fabricantes de chouriço com carne abatidos sem fiscalização sanitária, ou como os fabricantes de ‘whisky’ de Sacavém. (...) Como se vê pela sua leitura, não vem o documento acima transcrito com a pretensão, ao menos, de impugnar especificamente esta ou aquela opinião expressa sobre este ou aquele filme, não contradiz nem menciona algum juízo que tenha sido formulado, não vem alegar parcialidade nem incompetência. Vem apenas insurgir-se contra o princípio do livre exercício da crítica. Nem mais nem menos. Esquece, porém, que é precisamente pelos princípios que nos batemos e de que não sabemos, nem saberemos, abdicar, seja perante que potências for, em relação aqueles que escolhemos como orientadores da nossa acção.“ (Diário de Lisboa, 28-II-1968: 1). Com o apoio incondicional do Conselho de Administração e da Direcção do jornal, a redação assumiu a defesa dos seus colaboradores e não cedeu à intimidação desses jovens críticos que tanto incomodavam os interesses dos exibidores. Lauro António (1942-) era um jovem cinéfilo – tinha então 25 anos – com passado activo no movimento cineclubista (membro do Cineclube Universitário de Lisboa e dirigente do ABC Cineclube). Tinha-se iniciado na crítica em 1963 (com 19 anos!), na página temática Bastidores do jornal A República, sob coordenação de Baptista-Bastos, onde escrevia “à borla“. Depois passou pela revista Rádio e Televisão, onde recebeu “guia de marcha“ por defender um filme italiano e ser acusado por um leitor de ser “comunista“, e finalmente pela revista Plateia, onde “escrevia sobre realizadores e entrevistava personalidades“. (António, 2008a: 79-80) Eduardo Prado Coelho (1944-2007) tinha então 23 anos e não tinha um passado público na crítica cinematográfica. Filho de um prestigiado professor catedrático da Universidade de Lisboa, Prado Coelho colaborava no suplemento Diário de Lisboa Juvenil como escritor e critico literário desde os 15 anos. Entre o dia 29 de Fevereiro e 2 de Março, o Diário de Lisboa publicou diversas mensagens de apoio à sua atitude e de repúdio à intimidação da Cineasso, entre as quais uma assinada por diversos intelectuais ligados à imprensa e à crítica: “Porque, embora a execução dessa ameaça se tenha verificado apenas em relação ao nosso jornal, o certo é que ela fica no ar pondo em risco o direito de opinião e a independência de todos os jornais. (...) Certo, as opiniões dos críticos são, por sua vez, discutíveis. Nada é definitivo. Mas é precisamente no confronto das opiniões que se forma ‘a opinião’ dominante. 253 A crítica, quando esclarecida e isenta, não ataca, nem adula. Serve o público. E na medida em que o serve, dignifica o próprio espectáculo. (...) António de Oliveira Pinto, Fernando Assis Pacheco, Joaquim Benite, José Carlos de Vasconcelos, Luís de Oliveira Nunes, Manuel de Azevedo, Manuel Beça, Mário Castrim e Pedro Alvim.“ (Diário de Lisboa, 29-II-1968: 28) “A Direcção do Sindicato Nacional dos Jornalistas felicita calorosamente V. Pela independência manifestada pelo ‘Diário de Lisboa’ perante a inadmissível e inqualificável tentativa de coartar o direito de crítica. A importante atitude do ‘Diário de Lisboa’ concorre para dignificar os seus mais directos servidores, os jornalistas, que este sindicato representa. Direcção do Sindicato Nacional de Jornalistas.“ (Idem, 1-III1968: 2) “Assombrado e indignado pela insólita e deplorável tentativa de coacção do ‘trust’ de cinemas de Lisboa ‘Cineasso’, manifesto minha total solidariedade aos críticos do ‘Diário de Lisboa’ e manifesto a minha maior satisfação pela denúncia da infeliz manobra e pela digna atitude assumida pelo vosso jornal. Henrique Alves Costa.“ (Idem, 2-III-1968: 12) “Ao termos conhecimento da atitude prepotente de um dirigente da ‘Cineasso’ em relação ao vosso jornal e á independência dos críticos que nele colaboram, vimos afirmar-vos o nosso apoio e o propósito de o divulgarmos junto dos nosso dois mil associados. Direcção do Cine-Clube do Porto.“ (Ibidem) “Esperemos que para bem da clara informação do público, este caso seja o arranque para um saneamento geral, o qual, estou certo disso, só beneficiará as partes interessantes. Uma, a Imprensa, na medida em que nobilitará um dos seus sectores: outra, a exibição e a distribuição cinematográfica, na medida em que o cinema é muito grande para precisar de favores. ...E quem ganhará será o público, que tem o inalienável direito de ser seriamente informado. Manuel Gama, crítico da Emissora Nacional.“ (Ibidem) “O cinema que gostaríamos de fazer nada tem a ver com a ‘indústria do espectáculo’ tal como a concebe a ‘Cineasso’. Só será vivo e actuante como desejaríamos no dia em que a actividade crítica for independente. A atitude agora assumida pelo ‘Diário de Lisboa’, ao denunciar publicamente um tipo de pressões de há muito entre nós praticado e em grande parte responsável pela indigência a que chegou a nossa crítica cinematográfica, pode ser o primeiro passo no sentido de um amplo esclarecimento público acerca do conjunto de circunstâncias que condiciona e afecta, asfixiando-o, o cinema em Portugal. Também o cinema português é vitima de coligações de interesses, que nos reduzem ao silêncio ou á prática de actividades cinematográficas menores. (...) 254 A solidariedade que os signatários pretendem, pública e imediatamente manifestar-lhe (não fora esta última circunstância e com certeza outros cineastas gostariam de fazê-lo) implica, do mesmo passo, uma sugestão: a de que o ‘Diário de Lisboa’ abra as suas colunas a um vasto debate de todos os problemas que minam desde a base o cinema português. Entretanto, não queremos também deixar de testemunhar-lhe o nosso aplauso por ter finalmente desvendado o mistério da analfabeta e abstrusa ‘unanimidade crítica’ de que a imprensa diária portuguesa parecia exemplo vivo. Estamos incondicionalmente do seu lado: deste modo é que o ‘Diário de Lisboa’ pode vir a ser ‘um dos melhores defensores dos legítimos anseios da indústria do espectáculo’. Assim os outros jornais portugueses se disponham a seguir-lhe o exemplo: talvez, deste modo, se possa ainda evitar que o cinema – até como indústria do espectáculo – seja destruído pelo aço... (...) Acácio de Almeida, Alfredo Tropa, António Escudeiro, António Macedo, António-Pedro de Vasconcelos, Artur Ramos, Ernesto de Oliveira, Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, Gonçalves Preto, Henrique Espírito Santo, João Matos Silva, José Fonseca Costa, Manuel Costa e Silva, M. Faria de Almeida, Manuel Ruas, Paulo Rocha e Seixas Santos.“ (Ibidem) À excepção de Gonçalves Preto e Henrique Espírito Santo, esta última carta foi assinada por 16 dos 20 elementos da nova geração cinéfila que por esses dias ultimavam o documento O Oficio do Cinema em Portugal, que seria entregue à Fundação Calouste Gulbenkian a 30 de Abril desse ano e que daria origem à cooperativa de produção Centro Português de Cinema. No dia 14 de Março, após duas semanas de boicote, o Diário de Lisboa publica uma nova carta da Cineasso: “Agora, que supomos terminada a campanha a que deu lugar, consideramos necessário trazer igualmente ao conhecimento público o esclarecimento do que foi julgado atentório da liberdade de criticar. O processo da crítica – a crítica da Crítica e a qualificação dos que a exercem – não nos compete. Nunca esteve nem está em causa a liberdade da Crítica, nem o relevo ou a modéstia do destaque que se lhe confere no jornal de V. Ex.as. Não pusemos em causa essa liberdade, agora ou em qualquer ocasião. Pretendemos, sim, que ao público não seja dada uma ideia depreciativa do valor do espectáculo, através de comentários à margem do assunto criticado. É no desejo de evitar controvérsias, que nada vinham acrescentar ao que verbalmente dissemos, que nos dispensamos de exemplificar. Esgotados os repetidos argumentos, só nos restava fazer sentir o nosso desagrado cortando as relações comerciais com V. Ex.as. (...) Julgamos útil, no entanto, acrescentar o seguinte: não houve qualquer coligação contra o ‘Diário de Lisboa’. (...) 255 Julgando ter dado o indispensável esclarecimento que a publicação da nossa carta e subsequente campanha aconselhavam, damos por nós o caso como encerrado.“ (Idem, 14-III-1968:10) A Cineasso acabaria por ceder e tudo voltaria, gradualmente, ao normal. No entanto, a publicidade mais rentável, os cartazes ilustrados, só mais tarde voltariam a ter a regularidade que se verificava antes do boicote. A sucessão de acontecimentos decorridos entre Dezembro de 1967 e Março de 1968 mudou efectivamente a maneira de fazer crítica na imprensa generalista portuguesa. No entanto, a novidade das críticas de Lauro António e Eduardo Prado Coelho publicadas a partir do último mês de 1967 não estava na independência e isenção das apreciações, mas na projecção mediática que essa crítica independente e isenta conquistou pela primeira vez na história da imprensa generalista portuguesa. Até então, a crítica independente e isenta era publicada em algumas publicações periódicas de cariz cultural com pouca difusão junto do grande público de cinema, apesar de circularem eficazmente em círculos intelectuais e culturais mais circunscritos. Este episódio acabou por ser favorável aos críticos do Diário de Lisboa por duas razões fundamentais: porque a direcção do jornal soube inflamar a situação em seu favor e porque a mobilização dos diversos sectores da actividade cinematográfica – realizadores da nova geração dos anos 60, jornalistas, críticos, dirigentes cineclubistas, técnicos cinematográficos, entre outros – conseguiu sensibilizar o grande público de cinema de então. Seria interessante – se fosse possível – analisar as receitas de bilheteira das sete salas da Cineasso antes, durante e depois da polémica para compreender se o público teve efeito directo no desenlace em favor do Diário de Lisboa. Na opinião de Lauro António, o mediatizado braço de ferro entre a associação de exibidores Cineasso e o Diário de Lisboa acabou por ser favorável ao periódico essencialmente porque o prestígio do jornal era então enorme ao nível da crítica publicada: “(...) numa época em que este jornal era a cartilha da crítica e da opinião em Portugal, entre finais da década de 60 e meados dos anos 70. Na televisão dominava Mário Castrim, no cinema tínhamos aparecido eu [Lauro António] e o Eduardo Prado Coelho, na música, a voz era a do Mário Vieira de Carvalho, no bailado, escrevia Manuela de Azevedo, e havia ainda gente muito interessante nas artes plásticas, na literatura, até na tauromaquia a crítica era afamada. Havia suplementos culturais e sentia-se que o papel da crítica tinha uma influência decisiva.“ (António, 2008b). 256 Segundo o mesmo Lauro António, esses anos foram o período de maior reconhecimento público da crítica de cinema em Portugal: “A importância da crítica era mais do que evidente. Uma boa crítica a um filme podia desencadear uma carreira de várias semanas. Num dia estreou-se ‘O Soldado Azul’, no Berna, quase sem público, dois dias depois saía uma crítica minha [Lauro António] no ‘DL’, elogiosa, e mostrando como, através de um western, se podia abordar a guerra do Vietname, e nessa mesma noite a esta sala esgotava (com imensos ‘DL’ debaixo do braço, confidenciou-me depois um dos porteiros) e mantinha o filme em estreia longas semanas. Um distribuidor, tempos depois, informava-me que ‘O Pequeno Grande Homem’ de Arthur Penn, tinha sido totalmente proibido pela censura, apenas porque ‘depois o Lauro António escrever por aí que o filme se refere à guerra do Vietname e é um problema’. O filme haveria de ser libertado com cortes, depois do recurso da distribuidora Rivus, ligada ao cinema Monumental. Um filme admirável de Altman, ‘Nashville’, passou uma rápida semana no Berna. Quando a minha crítica saiu o filme já estava a sair do cartaz. Mas foi reposto no Nimas, com um excerto da crítica no anúncio, e fez quase três meses de excelentes lotações. A crítica tinha um poder que hoje em dia não tem.“ (António, 2008a: 80) O prestígio crescente da crítica independente e isenta do Diário de Lisboa haveria de fazer estender, gradualmente, o novo modo de fazer crítica de cinema em Portugal à generalidade da imprensa diária portuguesa durante a década seguinte. No entanto, já antes, em meados dos anos 50 e nos inícios dos anos 60, as páginas do Diário de Lisboa haviam acolhido duas rubricas de crítica cinematográfica e cinéfila muito particulares: entre Julho e Novembro de 1956, o crítico e dirigente cineclubista universitário Nuno Portas assinou uma rubrica intitulado “Para um Cinema Novo“, onde seriam apresentados os “seus pontos de vista sobre os nossos problemas culturais cinematográficos (Diário de Lisboa, 10-VII-1956: 7); entre 6 de Março e 29 de Agosto de 1961, todas as Terças-feiras, Alberto Seixas Santos e António-Pedro Vasconcelos escreviam a rubrica “Campo-contra-campo“, um texto desenvolvido em forma de diálogo entre os dois jovens cinéfilos que integrava a página Êxito. Apesar de efémera, esta experiência é “um bom exemplo de toda a confrontação de ideias e de tomadas de posição estética“ que marcou o panorama crítico deste período, considerados como “um sinal relevante de mudança, e como tal com invulgar capacidade de agitarem concepções ligadas à tradição da Esquerda, procurando acertar os passos da Nouvelle Vague“ (Barroso, 2002: 229). Bénard da Costa (1985: 22) lembra que, por esses anos, o debate focava-se na polémica entre os defensores de um “cinema moral e as lições combinadas do neo257 realismo italiano e do realismo poético“ e o “cinema moderno, na sendo do que a França propunha“. As querelas ideológicas desse final de década de 50 e início da década de 60 quebrou a “relativa uniformidade crítica que, em torno das escola e autores já citados, reunira, com pequenas diferenças ou clivagens, a crítica da resistência“ (Ibidem). A leitura das revistas de cinema estrangeiras passou a ser o principal foco de dinamização das principais tertúlias cinéfilas lisboetas. Mais do que um mero exercício individual de leitura, estas publicações europeias fomentaram a formação de grupos constituídos por cinéfilos com maiores ou menores afinidades e cumplicidades estéticas e éticas. As tertúlias lisboetas mais célebres desses anos 60 eram conhecidas pelos nomes dos estabelecimentos onde tinham lugar – Martinho da Arcada, Brasileira do Chiado, Nicola, Café Gelo, Monte Carlo – e eram frequentadas por intelectuais, escritores, pintores, actores e encenadores de diversas afinidades ideológicas. Entre as tertúlias cinéfilas mais reconhecidas, destacavam-se sobretudo duas: a do “Vá-Vá“, um café da Avenida dos EUA que reunia sobretudo cinéfilos e universitários; e a do “Riba Douro“, um café da Avenida da Liberdade frequentado por pessoas da televisão e do Parque Mayer. A estas tertúlias ficariam ligados dois filmes fundamentais no início da década de 60: “Belarmino, escrito e dirigido por dois homens do ‘Riba Douro’, Baptista-Bastos e Fernando Lopes, e Os verdes anos, de Paulo Rocha, cuja derradeira e dramática cena se desenrola precisamente no ‘Vá-Vá’“ (Pina, 1985: 10). As tertúlias do “Vá-Vá“ e do “Riba Douro“ representavam, grosso modo, as duas principais tendências estéticas e éticas dominantes no seio dos jovens cinéfilos da década de 60: os “formalistas“ e os “realistas“. A tertúlia do “Vá-Vá“ era dominada pelo designado grupo “dos Cahiers du Cinema“, composto por cinéfilos que “proclamavam um cinema afim da nouvelle vague francesa e que se reclamavam das teorias dos Cahiers du Cinema e da visão auteurista do cinema“ (Monteiro, 2000: 330). Os elementos deste grupo eram designados de “formalistas“ pela valorização da pesquisa formal e do experimentalismo cinematográfico tendo como objecto o próprio tratamento da matéria cinematográfica. Estes “formalistas“ faziam a apologia de um cinema visual, que desenvolvesse esteticamente uma linguagem cinematográfica exigente e autónoma. Dentro deste grupo havia um núcleo muito particular formado por Alberto Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro que se auto-denominavam de “kimonistas“, em referência à peça de vestuário kimono e como uma referência à obra do japonês Kenji Mizoguchi. 258 Em oposição a estes “formalistas“, existia um grupo mais influenciado pela crítica e teoria cinematográfica italiana que defendia um cinema realista de conteúdo social. Influenciado pelo neo-realismo cinematográfico italiano e pelo neo-realismo literário português, estes cinéfilos faziam da actividade cineclubista e das publicações de cariz cultural e artístico os seus principais meios de afirmação: “defesa no neo-realismo italiano, do realismo mexicano, do realismo poético francês, da sobriedade do cinema britânico, na impossibilidade de defender (e de ver) o ‘cinema dos cinemas’: o soviético“ (Costa, 1985: 20). Ao longo dos tempos, diversos partidários destas tendências alimentaram acesas polémicas estéticas e éticas. No fundo, estes cinéfilos reproduziam em Portugal os mais intensos debates sobre cinema que se desenrolavam em diversas cinematografias europeias. Para o lado dos “formalistas“, o autor de referência era André Bazin (191858) e os seus jovens discípulos, enquanto para o lado dos “realistas“, os autores de referência eram Guido Aristarco (1918-96), Giorgi Lukács (1885-1971) ou Antonio Gramsci (1891-1937). Em 1973, o renascimento da histórica revista Cinéfilo, propriedade do jornal O Século, seria outro momento marcante na história da imprensa cinematográfica portuguesa. Depois de ter interrompido a sua publicação em 1939, a Cinéfilo voltaria a ser publicada em Outubro de 1973, com a promessa de “defesa intransigente do cinema e dos espectáculos portugueses, quer no plano cultural quer no plano económico“ (Pelayo, 2001: 170). Dirigida por Fernando Lopes, com António-Pedro Vasconcelos como chefe de redacção e João César Monteiro como redactor principal114, a revista Cinéfilo marcou o debate cinematográfico e cultural dos últimos anos do Marcelismo. Fernando Lopes (Andrade, 1996: 86) defende mesmo que a revista fez “algumas rupturas no interior da esquerda“ e que preparou “sem saber muitas das discussões que vieram logo a seguir ao 25 de Abril“. A atitude irreverente e provocadora da revista, que lhe valeu problemas com a censura, convivia com um lado mais sério de promoção de uma cultura cinematográfica moderna, nomeadamente o número especial dedicado a Roberto Rosselini aquando do ciclo de cinema que a Fundação Gulbenkian lhe dedicou em Novembro de 1973. 114 Entre os colaboradores contavam-se os nomes de Fernando Cabral Martins, Eduardo Prado Coelho, Vasco Pulido Valente, Alberto Seixas Santos, Roby Amorim, Eduardo Geada, Henrique Alves Costa, Eduardo Guerra carneiro, Adelino Tavares da Silva, entre outros. 259 Na transição para os anos 70, como resume Paz Barroso (2002: 252) “estava já generalizada a designação de autor, utilizada para diferenciar um filme que surgisse com preocupações culturais e sociais.“ No entanto, esta questão não estava sempre “a salvo de reticências que desembocam em dúvidas e diferendos ideológicos“, nomeadamente na recepção dos filmes de António de Macedo (Sete balas para Selma e A Promessa)115 e de Fonseca e Costa (O Recado)116. No entanto, a recepção crítica ao filme O Passado e o Presente foi uma demonstração do consenso que o cinema de autor colhia em confronto com o cinema comercial: “A crítica mais tradicional ficou perplexa ou condenou em bloco. Mas a nova crítica cerrou fileiras“ (Monteiro, 1995: 677-678). Porém, como confessa Fernando Lopes (1985: 65), a recepção crítica do filme foi também influenciada pela defesa de interesses subterrâneos: “Talvez, no CPC, alguns colegas meus não gostassem do filme, particularmente o Macedo que, diga-se, nunca terá gostado muito do Oliveira. […] Como o filme desempenhava um papel importante no lançamento do Centro, o António de Macedo foi impecável, nunca se pronunciando publicamente contra o filme. A mesma coisa se passou com o Artur Ramos“. Pela condição de ser a primeira obra da cooperativa e de ser assinada por Manoel de Oliveira, a defesa estratégica desta obra representava provavelmente a afirmação estética do programa de intervenção do CPC e a sobrevivência do próprio cinema moderno. Mesmo sem interferir activamente na produção de filmes, a importância da crítica de cinema para o estabelecimento e consolidação de uma cultura fílmica e cinéfila foi determinante para a renovação do cinema português. Desde o espaço que abriu para novos cinéfilos e futuros cineastas, a crítica cinematográfica foi, no Portugal das décadas de 1950-60, um espaço de debate e reflexão sobre diversas concepções de cinema e sobre vários projectos de intervenção. 115 Sete balas para Selma terá sido, muito provavelmente, o filme português mais atacado pela crítica cinematográfica durante a década de 60. João César Monteiro protagonizou as palavras mais ferozes, ao acusar o produtor e o realizador de traição à “batalha comum por um Cinema Novo“: este filme “só pode ser encarado como empresa reaccionária, carregada de balas que se desfecham traiçoeiramente nas costas dos promotores de uma revolução cinematográfica em Portugal“ (O Tempo e o Modo, I-1969: 125). Nas páginas da revista Cinéfilo, António-Pedro Vasconcelos é um dos mais inconformados, atacando violentamente Macedo a propósito do filme A Promessa (Cinéfilo, 9-II-1974: 25). 116 Em clara alusão ao passado ideológico de Fonseca e Costa, João César Monteiro referiu-se à primeira obra deste autor como o “cacilheiro Potenkin“, demonstrando publicamente todo “o pó“ que tinha em relação ao autor e “particularmente àquele filme“ (Fernando Lopes apud Andrade, 1996: 84). 260 3.2. Cineclubismo Em entrevista, o realizador Alberto Seixas Santos declararia: “(...) creio que não houve cinema neo-realista em Portugal, o nosso neo-realismo foi o movimento cineclubista“ (apud Henry, 2006: 21). A partir desta declaração, Catarina Alves Costa (2012: 80-81) conclui: “Trata-se aqui da diferença entre aquilo que os realizadores de cinema faziam, o que o público da elite cultural consumia e o modo como recebia o cinema vindo do estrangeiro, guiado, em grande parte, pela crítica e pela intelligentzia da época. O espírito do neo-realismo, não tendo podido concretizar-se na película, por razões políticas e históricas, exceptuando alguns casos (...), passou pelo espírito construtivo, batalhador, e formador de consciências operado pelo cineclubismo, tão forte em Portugal. (...) Se a concretização do neo-realismo se deu em Portugal fortemente na literatura, quando passamos para o domínio do cinema, e exceptuando experiências pontuais como a de Ernesto de Sousa ou Manuel de Guimarães, este movimento apareceu associado e centrado nos guiões, nos conteúdos, na crítica escrita; não tanto na realização. (...)“ A emergente “rapaziada dos cineclubes“ era o outro importante núcleo de acção na oposição cultural à política do Estado Novo, a quem Leitão de Barros atribuía um papel “activo e pujante“ na renovação estética do cinema português (Diário de Notícias, 1-III-1955: 5). Esta “rapaziada dos cineclubes“ integrava, desde a publicação da legislação de 1948, o grupo de “profetas da desgraça“ que avaliavam negativamente o papel intervencionista do Estado na cultura portuguesa e que anunciavam o seu iminente colapso. A “rapaziada dos cineclubes“ pertencia a uma geração cinéfila bastante diferente das anteriores, uma geração com um forte entusiasmo cinéfilo e político, assim como um significativo desejo de renovação e inovação. O movimento dos cineclubes é um objecto de estudo particularmente complexo na história do cinema português. As múltiplas contradições e omissões na(s) história(s) desse movimento e a falta de investigações históricas sobre a génese e crescimento deste fenómeno têm dificultado o seu estudo de uma forma mais integrada. Como alerta Paulo Jorge Granja, a historiografia sobre os cineclubes e o movimento cineclubista em Portugal “– até há bem pouco tempo, quase sempre escrita na primeira pessoa –, costuma eludir ou só muito superficialmente abordar vários factos cujo conhecimento nos parece indispensável a uma melhor compreensão da [sua] história“ (Granja, 2006: 6). 261 Muito mais do que um simples movimento cinéfilo, o movimento cineclubista desempenhou, durante o Portugal estadonovista, um importante papel de resistência cultural e mesmo de oposição política à ditadura vigente, e a sua evolução ajuda a compreender com maior alcance as mutações sócio-culturais e politico-ideológicas de Portugal no pós-Segunda Guerra Mundial. Os dados aqui reproduzidos procuram apenas caracterizar sumariamente o movimento e enquadrá-lo nas problemáticas culturais e artísticas transversais que marcaram esse período. Como defende Paulo Jorge Granja (2007: 363), o movimento cineclubista alimentou em Portugal, entre 1924 e 1967, “duas ambições aparentemente irreconciliáveis“: “(...) por um lado, defender o cinema como uma arte universal, por outro, afirmar a legitimidade do cinema de acordo com critérios estéticos tendencialmente exclusivistas, ou seja, por outras palavras, como procuraram defender a cinefilia ora como prática cultural de massas, ora como prática cultural de elites. (...) Inicia-se, assim, um divórcio, que haveria de persistir até aos nossos dias, ente uma cinefilia popular, pouco preocupada com o estatuto estético ou cultural do cinema, e uma cinefilia erudita ou intelectual, que se apropriaria do cinema para fazer dele uma arte. E os cineclubes ver-se-iam eles próprios, salvo raras excepções, divididos entre a necessidade de atrair o maior número de sócios para legitimar o cinema como arte universal e a vontade de ver o cinema erigido ao estatuto de arte superior, isto é, de arte de elite.“ Ao longo desse período, a função ou a pretensão do movimento cineclubista seria a de constituir e formar “comunidades interpretativas de cinéfilos que seriam formadas a partir da exibição e discussão de filmes considerados “dignos de apreciação estética“ e passiveis de “competências culturais específicas de interpretação do cinema como arte“ (Ibidem: 634-365). A questão À semelhança do que aconteceu no resto da Europa, também em Portugal as primeiras associações cinematográficas de espectadores surgiram ainda durante o cinema mudo, com a criação no Porto e em Lisboa, em 1924, de duas instituições homónimas: Associação dos Amigos do Cinema. De acordo com as pesquisas de Paulo Jorge Granja, os antecedentes embrionários do movimento cineclubista conheceriam novos episódios no início dos anos 30, com a identificação de alguns projectos planeados e/ou concretizados tais como: Cine-Clube de Portugal (Lisboa, 1931), CineClube de Portugal (Faro, 1931), Cineclube Movimento (Porto, 1933), Cine Clube Português (Coimbra, 1933), Sociedade Portuguesa de Cinematografia (Lisboa, 1933); ou 262 os clubes de cinema de amadores como a Secção de Cinematografia do Grémio Português de Cinematografia (1932), a Associação dos Amadores Cinematográficos de Portugal (1932) ou o Grupo Único dos Amadores de Cinema de Portugal (1934) (Ibidem: 8-11; 1630). Christel Henry (2002: 243-244) ainda identifica o Clube Animatógrafo (Lisboa, 1940) e o Círculo de Cinema (Lisboa, 1943). No entanto, o movimento cineclubista só se considera iniciado em Portugal com a fundação do Belcine – Clube de Cinema da Parede, em 1943, e sobretudo com a constituição, em Abril de 1945, do Clube Português de Cinematografia (CPC/CCP), no Porto. Esta nova geração de cinéfilos denota um forte entusiasmo cinéfilo e político e prova que afinal o público português não era tão mau como muitos pretendiam afirmar. Apesar de ter sido fundados mais tarde, o Cineclube do Porto assumiu maior protagonismo porque o Belcine era sobretudo um clube de cinema de amadores, ainda que funcionasse nos moldes de um cineclube convencional, e porque se tornou mais activo a nível editorial, publicando diversas obras de reconhecido interesse e valor cinematográfico.117 Este movimento agregava sobretudo estudantes universitários, “gente de cultura e animação, de um modo geral gente para quem o cinema é algo mais que um projecto cinéfilo“. Reconhecendo a capacidade do cinema de análise e reflexão política, social e cultural, “intransigentes e entusiastas, os cineclubistas são combatidos, mas a sua actividade influencia outras actividades e outros núcleos, interessando movimentos ideológicos diferentes pela mesma preocupação transformadora“ (Pina, 1977: 62). O ano de 1946 seria particularmente activo no que diz respeito ao cineclubismo, registando-se o surgimento de três novos cineclubes: Círculo de Cinema de Lisboa, (CCL), Círculo de Cultura Cinematográfica – Cine-Clube Universitário de Coimbra (CCC), Clube de Amadores da Arte Cinematográfica (Lisboa). No ano seguinte surgiriam mais dois: Lusocine Clube (Lisboa, da fusão do Clube de Amadores da Arte Cinematográfica com a União de Cineastas Amadores) e Cine-Clube Olhanense. O desenvolvimento de um sólido espírito associativo aliado a algumas condições técnicas e materiais favoráveis, a meta da criação de uma possível Federação Portuguesa de Cine-Clubes, e a consolidação do fenómeno cineclubista internacionalmente (constituição de uma Federação Internacional, em Cannes, 30 de Novembro de 1947) 117 As Modernas Tendências do Cinema Europeu (obra colectiva, 1949); Charles Chaplin (obra colectiva, 1949); O Cinema e a Criança (obra colectiva, 1954), Perspectiva do Cinema Português (Manuel de Azevedo, 1951); Iniciação à Técnica e Estética Cinematográfica (F. Gonçalves Lavrador, 1955); História da Imprensa Cinematográfica (Henrique Alves Costa, 1954). Em defesa do cinema (Luís Neves Real, 1955). 263 são factores determinantes para encarar os novos desafios com outras perspectivas mais optimistas. A realização do Primeiro Congresso Internacional dos Cineclubes teve como representante português o cineclubista portuense Manuel de Azevedo, que foi convidado pela Federação Francesa de Cineclubes em representação dos quatro cineclubes portugueses então em actividade: Clube Português de Cinematografia (Porto), Belcine (Parede), Circulo de Cinema (Lisboa) e Círculo de Cultura Cinematográfica (Coimbra) (Cineclube, 3, IV-1975: 14). No entanto, as iniciativas cineclubistas começaram a deparar-se com vários obstáculos, nomeadamente com problemas burocráticos relacionados com licenças de exibição para películas antigas e, mais grave, com a vigilância da polícia política. Um dos exemplos dados por Roberto Nobre, a propósito da proibição de exibição de Berlim, Sinfonia duma Capital, de Walter Ruthman, é bastante elucidativo. Apesar de deter direitos de exibição para sessões culturais sem fins lucrativos, os cine-clubes não podem ter acesso às películas mais antigas, como as produções da Invicta Filmes ou os filmes mudos Nazaré, Praia de Pescadores e Maria do Mar, ambos de Leitão de Barros, devido a uma exigência financeira da Inspecção Geral dos Espectáculos, prejudicando assim «uma das maiores razões de ser dos cine-clubes, um dos motivos fundamentais para que foram criados em todo o mundo.“ “(...) E assim a cultura do cinema, mesmo do cinema nacional, está impedida, em virtude de não estar ressalvada a intenção cultural sem fim lucrativo». A feliz solução encontrou-se numa pequena sala de projecções da Embaixada Britânica, «onde podem ser exibidos, sem restrições, os Clássicos do Cinema, pois é considerado terreno estrangeiro“. (Seara Nova, 1070, 31-I-1948) Desde cedo que a PIDE seguia atentamente as actividades de alguns dos mais activos animadores dos cineclubes, nomeadamente por actividades políticas ligadas a movimentos da oposição ao regime, como Partido Comunista Português (PCP), o Movimento de Unidade Democrática (MUD) ou o Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUDJ). No Porto, para além de Manuel de Azevedo, que como vimos já tinha sido várias vezes detido por suspeita de pertencer ao PCP, José Borrego seria um dos primeiros dirigentes cineclubistas a despertar a atenção das autoridades devido ao seu activismo político, por ser um dos responsáveis da célula do MUD na Escola de Belas Artes do Porto, e acabaria preso a 13 de Abril de 1947. Em Coimbra, Rui Grácio, um dos principais dirigentes do CCC e membro da Comissão Central do MUDJ, seria também detido a 17 de Abril de 1947. As detenções de José Borrego e Rui Grácio integravam-se 264 numa vaga repressiva mais vasta, que o regime, recomposto depois da remodelação governamental de Fevereiro, levaria a cabo, entre Março e Maio de 1947 contra o MUDJ (Granja, 2006: 99-101). Em Lisboa, também o Círculo de Cinema, um importante cineclube que contava com cerca de 3 mil associados, teria uma “existência curta e uma morte violenta“, com a prisão de vários dirigentes, entre os quais José Ernesto de Sousa, e com o encerramento da actividade por acção da PIDE por ainda não ter estatutos homologados (Cineclube, 3, IV-1945: 15) Já antes das detenções de Grácio e Borrego, vários outros cine-clubistas seriam referenciados pela PIDE pelo simples facto de participarem em iniciativas ou assinarem petições do MUDJ e do MUD — como aconteceria, por exemplo, com Costa Campos e Nataniel Costa, do CCL, e Manuel de Azevedo e Virgílio Pereira, do CPC/CCP. Mas a acção policial que “maior impacto teria no movimento dos cineclubes, até porque visaria directamente o cineclube que à data mais sócios teria [aproximadamente 2 mil sócios], ocorreria a 31 de Janeiro de 1948, com o assalto à sede do CCL e à detenção de vários dos seus dirigentes e sócios [António Ferreira Pinto de Carvalho, João António da Silva, José Ernesto de Sousa, Manuel Isidro Pousal Domingues, Carlos Vieira, Humberto Pereira e Hélder David Meneses].“ (Granja, 2006: 101-102). Embora a PIDE não conseguisse provar cabalmente qualquer “actividade subversiva“ no CCL, nem provar que o CCL se tinha desviado do “objectivo de cultura e divulgação cinematográfica“ com que tinha sido criado ou estabelecer qualquer ligação com o PCP, esta acção repressiva integrava-se numa acção mais vasta, que haveria de culminar na ilegalização do MUD em Março desse mesmo ano. No caso do CCL, o assalto à sua sede parece, também, relacionar-se com a suspeita de que os seus membros estariam a duplicar circulares clandestinas para a campanha do candidato oposicionista Norton de Matos ao cargo de Presidente da República (Ibidem: 102). Mas haveria também consequências para o movimento cineclubista: “(...) em pouco tempo a repressão do Estado acabaria por abater-se sobre os cine-clubes, extinguindo dois deles e acabando por colocar indirectamente em causa a existência dos restantes. A extinção e repressão dos cine-clubes far-se-ia, no entanto, a coberto da censura, pouco ou nada transpirando para opinião pública. (…) Com o movimento dos cine-clubes destroçado, apenas o CPCCCP continuaria em actividade, escudado na sua inscrição na FPCE [Federação Portuguesa das Colectividades de Educação e Recreio do Distrito do Porto] e, depois de Julho de 1948, no reconhecimento dos seus Estatutos pelo Governo Civil daquela cidade“ (Ibidem: 105-106). 265 Em 1948, Manuel de Azevedo publicaria um livro intitulado O Movimento dos Cineclubes onde fazia uma panorâmica do movimento internacional cineclubista e um relatório na sua participação, enquanto delegado representante de quatro cineclubes portugueses, no I Congresso da Federação Internacional dos Cineclubes (Pelayo, 2001: 86). Simultaneamente, a publicação deste livro poderia ser também encarada como uma “prova de vida“ do movimento cineclubista português, procurando através do mercado editorial um mediatismo para o movimento. Depois da repressão de 1948, só muito lentamente o movimento dos cineclubes voltaria a dar sinais de vitalidade. O CPC/CCP continuava a ser o único em actividade oficial, mas em 1949 nascia, aparentemente das cinzas do extinto CCC/CCUC, o Clube de Cinema de Coimbra (CCC). Nesse ano e no seguinte, Paulo Jorge Granja também sinalizou algumas notícias de que também em Olhão, Mirandela, Castelo Branco, Faro e Lisboa se tentariam criar novos cineclubes. Em Lisboa, por exemplo, existem referências concretas a três tentativas: “a de um Cine-Clube Popular, dirigido pelo jornalista e realizador Gentil Marques, e patrocinado pelo Diário Popular; a de um Cine-Clube de Lisboa, aparentemente ligado à organização dos Festivais do Cinema Europeu no Ateneu Comercial de Lisboa de 1948 e 1949, e, finalmente, a de um Centro Cultural Cinematográfico, ligado a um programa da Rádio Renascença intitulado ‘A Arte das Imagens’.“ (Granja, 2006: 107-108). O movimento começa a reconstruir-se a partir de 1950: ABC Cine-Clube de Lisboa, fundado por Carlos Carvalho a 1 de Novembro de 1950, apresentaria a sua primeira sessão apenas a 14 de Abril de 1951; também em Lisboa, o Cine-Clube Imagem é criado a 20 de Junho de 1951, por iniciativa da revista com o mesmo nome; em Março de 1952 aparecia o Cine-Clube Universitário de Lisboa, aparentemente por iniciativa de um grupo de estudantes do ensino superior; o Cine-Clube de Rio Maior, o primeiro cineclube a surgir fora de uma das três principais cidades, inicia a sua actividade a 24 de Julho de 1952 e, pouco depois, funda a revista Visor; em Coimbra, em finais de 1952, depois da prolongada inactividade do CCC, surge o Círculo de Cultura Cinematográfica/Cine-Clube Universitário de Coimbra, promovido por um grupo de estudantes universitários ligados à Mocidade Portuguesa (Ibidem: 109-113). Em 1952, o Cineclube do Porto é novamente vítima da perseguição política do regime, agora na figura do Governador Civil do Porto: a associação foi ameaçada de encerramento por eventuais irregularidades relacionadas com a homologação do seus estatutos, que estavam em vigor desde 1948. Mesmo esclarecida a situação, nos meses 266 seguintes seriam proibidas, sem justificação, três palestras que habitualmente acompanhavam as sessões. Na imprensa, por acção da censura prévia, nenhum deste episódios seria tornado público (Cineclube, 3, IV-1975: 16). Infelizmente, o ano de 1953 ficaria marcado pela suspensão da revista Imagem, e do seu Cine-Clube Imagem, uma publicação que reproduzia as orientações estéticas predominantes entre os cineclubes: “(...) a PIDE interromperia uma sessão no cinema Capitólio, que tudo leva a crer ter sido organizada pelo CI ou por elementos próximos deste Clube, acabando por prender Vasco Granja, um dos seus principais dirigentes. Aparentemente, a sessão, em que se projectava o filme Il Cammino della speranza (O Caminho da Esperança, 1950), de Pietro Germi, destinava-se a recolher fundos para presos políticos, numa iniciativa indirectamente ligada ao PCP“ (Ibidem: 120). Em Lisboa, também o Universitário de Lisboa suspenderia as suas actividades, em finais de 1953 e, no Porto, um dos dois únicos cineclubes legalizados, também sofria a sua primeira tentativa de silenciamento por parte das autoridades, tendo visto proibidas três das palestras que habitualmente organizara (Ibidem: 121-122). Em 1954, contrariando o policiamento ideológico da polícia política do Estado Novo, o movimento ganha um novo alento, com o reatamento das actividades no CineClube Imagem e no Universitário de Lisboa, e com o surgimento do Cineclube de Estremoz e do Cine-Clube Universitário do Porto (Ibidem: 123-124). Na noite de 19 de Dezembro de 1954, a pretexto de uma retrospectiva do cinema português, o Cineclube do Porto exibiu o filme Aniki-Bóbó e homenageou Manoel de Oliveira. No ano seguinte, o Cineclube de Estremoz fazia uma homenagem semelhante e, em 1957, publicaria uma obra com textos de vários autores intitulada Manuel de Oliveira. A reacção do público cinéfilo, e do cineclubista em particular, foi bastante positiva, ao mesmo tempo que a crítica começava a questionar os critérios de atribuição de subsídios públicos do SNI. Mesmo antes do prémio internacional conquistado por O Pintor e a Cidade em Cork (1957) e da excelente recepção em Paris e Veneza no mesmo ano, o reconhecimento público de Manoel de Oliveira tinha começado com as homenagens dos cineclubes. De resto, este reconhecimento da família cineclubista também terá contribuído para que o cineasta portuense retomasse a sua actividade cinematográfica, que se encontrava suspensa desde Aniki-Bóbó (1942). Em 1956, Nuno Portas assinou um artigo no Diário de Lisboa (2-X-1956: 10) onde pretendia esclarecer alguns aspectos em relação ao público do fenómeno 267 cinematográfico. Afirmando que “não há um público, mas públicos“, o crítico apresenta quatro categorias distintas: “a) um subpúblico do pequeno aglomerado da nossa Província que consome o filme porque os bonecos falam português (…); b) um público primário para quem o cinema é o divertimento que faz esquecer o dia-a-dia e ao qual exige que não faça pensar, que lhe dê a passagem para uma ilusória fuga à existência (…); c) um público primário exigente, que influenciado pela Imprensa e por outros factores, pede já ao filme ‘qualidade técnica’, e ‘problemas’, ‘realismo’, mas ao qual falta uma base cultural que lhe permita separar o trigo do joio (…); d) um público exigente que integra o cinema na cultura, responde por esse país fora ao esforço do cineclubismo e tende a contagiar novas camadas“ (Ibidem). Gradualmente, esta ideia de que as sessões cineclubistas oferecem mais ao fenómeno cinematográfico do que a mera projecção do filme, contribuindo para uma cultura cinematográfico que não está disponível nas salas comerciais, instala-se a consolida-se ao logo desta década: “Para um cineclube que nasceu com a missão de 'esclarecer a todo custo' o público afeito às sessões comerciais – sessões que, do ponto de vista material, não se diferenciavam das cineclubistas, já que eram 'as mesmas salas de espetáculo, com os mesmos meios de projecção e o mesmo material fílmico' – o critério de partilha não poderia radicar no filme em si, concentrando-se no direcionamento dado à sessão.“ (Zanoni, no prelo) No entanto, para alguns detractores, o sucesso público do movimento cineclubista devia-se apenas ou sobretudo às vantajosas condições financeiras oferecidas aos cineclubistas: “(...) até que prova em contrário seja feita, estamos em crer que o grande público dos Cine-Clubes não constitui aquela selecção de cultores da Arte cinematográfica que e pretende criar ou reunir (...). Se o grande número dos actuais sócios das suas colectividades se contenta em ver filmes em boas condições económicas, isso não significa êxito. (...) isso quererá dizer que a missão [dos cineclubes] não está a ser cumprida.“ (Cinema de Amadores, IV-1962: 2117) António Tiago Acabado, histórico e dinâmico dirigente cineclubista alentejano, estimava que o movimento cineclubista havia estagnado entre 1950 e 1958 e que 80% dos cineclubistas sê-lo-iam apenas por motivos económicos, o que representava um evidente fracasso da divulgação da cultura cinematográfica pelas massas (Granja, 2007: 377). 268 Após uma década de existência, o movimento cineclubista conheceria um fulgor sem precedentes, sendo criados dezenas de cineclubes em diversos pontos do país e os primeiros cineclubes nas antigas colónias ultramarinas.118 No entanto, embora já existissem 15 cineclubes activos em meados de 1955, Paulo Jorge Granja (2006: 149150) defende que, “ao contrário do que se poderia esperar, nada indica que existisse qualquer tipo de acção concertada entre os cineclubes antes dessa data.“ A existência de relações pessoas e informais entre alguns dirigentes de diferentes cineclubes é confirmada pela troca de textos para as palestras ou boletins e pela convergência entre algumas posições estratégicas relativamente ao poder político. O Primeiro Encontro Nacional de Cineclubes, realizado em Coimbra, parece ter sido um momento de viragem, tendo fomentado e potenciado relações formais e regulares. O desejado encontro concretizou-se em Coimbra, a 15 de Agosto de 1955, reunindo um total de 11 dos 15 cineclubes em actividade119 que representam uma massa associativa de cerca de 10 mil pessoas, mostrando a todos que o movimento atingiu a fase adulta, “capaz de progredir em proporções nunca sonhadas pelos precursores“. Os resultados práticos desta reunião, para além da troca de ideias, foram a formação de duas comissões: a Comissão Representativa, responsável por “solicitar às entidades oficiais auxílios e facilidades“; e a Comissão Consultiva, responsável pela constituição de novos cineclubes e pela cooperação entre os cineclubes existentes por todo o país. 3.2.1. Federação Portuguesa de Cine-Clubes O choque directo entre o movimento dos cineclubes e o poder político do Estado Novo começou em 1955, com a realização do primeiro Encontro Nacional de Cineclubes em Coimbra. Nesse encontro, onde se fizeram representar quinze cineclubes, o 118 1955: Cineclubes de Castelo Branco, de Oliveira de Azeméis, de Aveiro, de Vila Real de Santo António, de Viana do Castelo, de Santarém, de Viseu, Clube de Cinema de Braga, Secção de Cinema do Círculo Cultural Escalabitano, Secção de Cinema do Conselho Cultural da Assembleia de Vale de Cambra, Cultura, Desporto e Turismo. 1956: Setúbal, Faro, Figueira de Foz, Tortosendo, Espinho, Olhanense, Torres Vedras, Centro Cultural de Cinema (Lisboa), Leiria; Beira (Moçambique), Huambo (Angola) e Benguela (Angola). 1957: Beja; Lobito (Angola), Moçâmedes (Angola) e Lourenço Marques (Moçambique). 1958: Guimarães, Santiago do Cacém, Régua, Católico (Lisboa); Luanda (Angola) e Quelimane (Moçambique). 1959: Bombarral, Moura, Universitário de Cinema (Porto, 2.ª tentativa), Funchal; Huila (Angola). 119 Estiveram presentes os cineclubes Imagem, do Porto, Universitário do Porto (em formação), Coimbra, Castelo Branco, Santarém, Rio Maior, Estremoz e Vila Real de Santo António, e faltaram apenas Aveiro, Oliveira de Azeméis, ABC e Universitário de Lisboa (Cineclube, 4, VI-1975: 5). 269 movimento alertou para a necessidade de legislação que regulasse o “estatuto do cinema não-comercial“ e exigiu a criação de uma Federação Nacional dos Cineclubes. Após a realização do Primeiro Encontro de Cineclubes, Manuel de Azevedo (CPC/CCP) envolveu-se numa acesa polémica discussão pública com Fernando Duarte (CCRM), a propósito da publicação de um texto, na revista Visor, que propunha a criação de uma Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC) onde estivesse representado o Ministério da Educação Nacional. Em claro desacordo, Manuel de Azevedo defendia um modelo estatutário que visasse claramente uma autonomia política e ideológica dos cineclubes face ao poder centralizador do Estado Novo. Para Azevedo, uma hipotética FPCC teria de ser, “por definição, constituída pelos cine-clubes“, e incompatível com a tutela de quaisquer Ministério ou instituição pública. Em Fevereiro de 1956, depois desta acesa polémica, Manuel de Azevedo vinha alertar para as possíveis represálias oficiais em relação aos cineclubes que se opunham à proposta do CCRM: os estatutos de 15 cineclubes estavam suspensos no Ministério da Educação Nacional, à espera de uma aprovação oficial. Um mês depois, o Secretariado Nacional de Informação, em colaboração com a Comissão Consultiva dos Cineclubes, iniciou o processo de criação da FPCC, prometendo respeitar a autonomia, livre-iniciativa e liberdade cultural da Federação e dos seus membros. Manuel de Azevedo foi a primeira voz crítica pública: será que a criação da FPCC “vem inteiramente ao encontro das necessidades dos cine-clubes?“ Contrariando algumas expectativas optimistas, Azevedo começava por alertar para o processo de formação dos estatutos da FPCC, entregue a uma Comissão própria “constituída na sua maioria por indivíduos alheios ao cine-clubismo“ (Ibidem: 34-35). No fundo, neste debate argumentava-se contra e a favor da regulamentação da actividade cineclubista em Portugal: Fernando Duarte (CCRM) apelava à necessidade de “disciplinar“ o movimento, nomeadamente através da FPCC e da “ajuda“ da autoridade pública; Manuel de Azevedo (CPC/CCP) defendia a total autonomia dos cineclubes, recusando qualquer espécie de regulamentação pública. Invariavelmente, a posição de Duarte e do CCRM seria irreparavelmente desacreditada perante o movimento dos cineclubes, prevalecendo a unidade da maior parte dos cineclubes em volta da posição de Azevedo e do CPC/CCP, contra a proposta de uma Federação que viesse limitar a autonomia dos cineclubes (Granja, 2006: 167-168). A primeira referência que encontrei à criação de uma Federação de Cineclubes data de Fevereiro de 1947, quando Guilherme Ramos Pereira, um cineasta amador do 270 Porto reclamava a criação de uma estrutura federativa nacional como “instituição apta a coordenar e auxiliar solidamente os cine-clubes“ (Cinema de Amadores, II/III-1947: 79). Não era, portanto, a criação de uma estrutura federativa que preocupava o movimento cineclubista, mas sobretudo que propósitos serviria. As exigências dos cineclubes sempre foram recebidas com desconfiança pelo Estado, que tratou de tomar as devidas precauções. O regime começou por criar a já anunciada FPCC, dependente do Ministério da Educação Nacional (decreto-lei 40.572, de 16 de Abril de 1956), e suspende os estatutos de alguns cineclubes que se mostraram mais críticos à Federação e à intervenção do regime (Azevedo, 1956: 121-127). Os primeiros artigos do decreto-lei 40.572 não deixam quaisquer dúvidas dos reais objectivos da FPCC: “Art. 3.º São atribuições da Federação: 1.º Informar e submeter à aprovação do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo os estatutos dos novos cineclubes; 2.º Facultar aos clubes federados informações e apresentar-lhes sugestões tendentes a facilitar a organização das suas sessões; Art. 5.º À comissão organizadora compete: (…) 3. Preparar um projecto de estatutos a submeter à aprovação da Presidência do Conselho. (…) Art. 8.º A criação de novos cineclubes fica dependente da aprovação dos respectivos estatutos pelo Secretariado Nacional da Informação, precedendo parecer da Federação. Art. 9.º Pertencerá ao Secretariado Nacional da Informação a inspecção e fiscalização da actividade dos cineclubes.“ De acordo com o texto legislativo, o Estado Novo criava esta estrutura como reconhecimento do crescimento da actividade cineclubista e como movimento com actividades relevantes na educação e cultura. Mas, na prática, esta FPCC era uma clara tentativa de vigiar e condicionar as actividades políticas dos cineclubes e era também uma resposta preventiva a uma ideia que tinha surgido no ano anterior no Primeiro Encontro de Cineclubes. Para integrar a Comissão organizadora da FPCC o SNI nomearia dois representantes de cineclubes para dar a aparência de uma gestão democrática120: 120 Presidida pelo próprio Moreira Baptista, que delega a sua representação em Júdice da Costa, a Comissão Organizadora era constituída por Domingos Mascarenhas (director da revista Estúdio, crítico de cinema na Emissora Nacional e conselheiro da Tobis), Fernando Garcia (presidente do SNPC e membro do Conselho de Cinema), António de Meneses (presidente da direcção do ABC e funcionário do SNI) e Alves Castela (representante do Cineclube de Santarém, que havia sido fundado em Dezembro de 1955) (Cineclube, 21/22, IV-1979: 4). 271 “(...) E esses dois cineclubistas vão buscá-los ao ABC Cineclube de Lisboa cujo presidente da direcção era uma pessoa baça, conformista e assustada e ao Cineclube de Santarém que se julgava inofensivo e na órbita do 'Cine-clube de Rio Maior' que dirigia Fernando Duarte. (...) Por trás de tudo isto já pairava a sombra do sinistro chefe da 3.ª Repartição do SNI, Dr. Judice da Costa, futuro coveiro de muitos cineclubes aos quais votava uma embirração pidesca e obstinada, como depois de verá.“ (Cineclube, 5, VIII-1975: 4-5) A reacção dos cineclubes far-se-ia sentir no II Encontro Nacional, que se realizou na Figueira da Foz, em Agosto de 1956, que reuniu cerca de uma centena de dirigentes e delegados de 21 cineclubes121. Nessa reunião, os elementos do ABC e do Imagem decidiram abandonar a Comissão organizadora da FPCC. Mais tarde, o SNI nomearia como representantes dos cineclubes elementos do Católico de Lisboa e Fernando Duarte, presidente do Cineclube de Rio Maior (Ibidem: 5). Um Novembro do ano seguinte, em Lisboa, reuniu o III Encontro Nacional, com um recorde de cineclubes participantes. Entre outras discussões, surgiu a ideia de criar os teleclubes, “associações de tele-espectadores (...) que se juntariam para apreciar e discutir os programas de TV“, ideia prontamente afastada pelo poder político. (Idem, 6/7, X-XII: 44-45) Para a realização do IV Encontro, que teria lugar em Santarém, e para evitar problemas desnecessários, o movimento cineclubista decidiu convidar representantes do SNI e da FPCC para assistir aos trabalhos, uma vez que nesse Encontro iriam ser discutidos os futuros estatutos da FPCC. O SNI fez-se representar pelo próprio Moreira Baptista, que discursou de forma tão elogiosa em relação aos cineclubes que o último parágrafo acabaria por ser “cortado pela censura à imprensa...“ (Idem, 6/7, X-XII: 45) Entretanto, começavam a surgir os primeiros problemas relacionados com os estatutos-tipo impostos pelo SNI através da FPCC: “(...) E o Dr. Jucide da Costa igualmente cumpriu a sua ameaça preparando o célebre 'estatuto-tipo dos cineclubes' que subrepticiamente começou a tentar impor a partir do que ele considerava os cineclubes mais vulneráveis. E o mais vulnerável era o cineclube de Setúbal, recém-constituído e que ainda não tinha estatutos aprovados. E foi ocasionalmente (num encontro de um dirigente setubalense com um dirigente dum cineclube de Lisboa) que se soube da marosca. (...)“(Ibidem) 121 ABC, Centro Cultural de Cinema, Beira (Moçambique), Aveiro, Castelo Branco, Espinho, Estremoz, Faro, Figueira da Foz, Imagem, Olhanense, Oliveira de Azeméis, Porto, Santarém, Setúbal, Universitário de Lisboa, Viana do Castelo, Braga e Coimbra. Não se fez representar o Cineclube de Rio Maior (Cineclube, 6/7, X/XII-1975: 44). 272 Fundado em 1958, o Cineclube de Guimarães passaria pelas mesmas dificuldades na aprovação dos seus estatutos. Em 1960, o SNI não homologou três nomes de sócios eleitos pela Assembleia geral do Cineclube de Guimarães, dando indicações para que fossem substituídos. Apesar dos protestos e votos de repúdio da associação, os três nomes censurados foram substituídos. No ano seguinte, a censura política prosseguiu com a rejeição de mais dois associados eleitos democraticamente. No dia 25 de Março de 1960, a PIDE emitia um ofício interno, posteriormente dirigido ao SNI, onde se lia que Santos Simões “não tem idoneidade política para o desempenho da função proposta“ (ANTT-PIDE-SC-CI(2)-8566-7536: folha 288). Entretanto, outro relatório da delegação do Porto da PIDE, datado de 29 de Setembro de 1961, referia-se a Santos Simões como um “elemento declaradamente desafecto ao actual Regime“ e até transcrevia uma opinião inconveniente do visado a propósito “dos acontecimentos de Angola“ [início da guerra colonial no território a partir de Fevereiro de 1961]: “Está-se a colher o fruto daquilo que se semeou. Sempre disse que o abandono a que aquilo foi votado daria o resultado que se está vendo“ (Ibidem: folha 277). A indignação levou a que as posições se radicalizassem ao ponto de, na Assembleia eleitoral de 15 de Dezembro de 1961, os associados do Cineclube de Guimarães tivessem eleito para os órgãos directivos três dos nomes censurados anteriormente, numa acção que adquiriu contornos de provocação ao poder político vigente. A reacção do SNI foi pronta: os nomes foram novamente reprovados e o chefe da Delegação da Inspecção Geral dos Espectáculos do Porto visitou pessoalmente o Cineclube de Guimarães para proceder a uma verificação dos livros de actas e dos relatórios e contas. Depois de novos votos de protesto contra a acção arbitrária do SNI, da indicação de novos nomes para substituir os reprovados, de nova recusa dos órgãos democraticamente eleitos, a situação acalmaria em Dezembro de 1963 com uma solução criativa sui generis: “(...) Dada a persistência da perseguição política manifestada através das rejeições do SNI, que causavam não só perturbação nas actividades do Cine-Clube mas também um natural desgaste na imagem da Colectividade, foi decidido abrir uma segunda frente, isto é, propor sócias para os Corpos Gerentes. Foi um aviso ao SNI e um tipo de ameaça à sua acção desgastante, a fim de procurar estancar a autêntica hemorragia de dirigentes. (...)“ (Simões, 1996: 32). 273 Importa realçar que, ao longo deste processo, apesar da perseguição política movida por instâncias superiores do regime, nomeadamente a PIDE e o SNI, o poder político local manteve os apoios regulares ao Cineclube de Guimarães, reconhecendo a sua acção cultural e a própria identificação da cidade com este projectos. Por todo o país, vários cineclubes indignaram-se e procuraram lutar contra a nova legislação, mas a medida teve efeitos rápidos, dando início a um período de perseguição política que levou a uma efectiva vigilância da PIDE sobre as actividades cineclubistas (selecção de filmes, organização de palestras, entre outros), ao encerramento e extinção de diversos cineclubes nos anos seguintes, à proibição do quinto Encontro Nacional de Cineclubes previsto para Torres Vedras (1959), e que pretendia transformar os cineclubes em “simples episódios do circuito comercial de arte e ensaio e sobretudo punha debaixo de controlo o que antes era um movimento disperso e subversivo; depois, já nos anos sessenta, virá o saque das instalações e dos documentos dos cineclubes.“ (Monteiro, 2000: 308). Em Fevereiro de 1960, num texto intitulado “Os cine-clubes das ilhas e do ultramar“, a revista Celulóide (26, II-1960: 9) lembrava: “(...) [não será] por acidente que existem no ultramar, no continente africano, nove cine-clubes portugueses, o da Beira, de Huambo, de Benguela, de Lourenço Marques, de Luanda, de Moçamedes, do Lobito, de Quelimane e da Huíla, por ordem do seu aparecimento.“ As actividades dos cineclubes angolanos e moçambicanos são destacados pela revista porque “tem lugar de evidência no panorama cine-clubístico português e até dentro de todas as actividades culturais do nosso País.“ Nesse mesmo texto, era revelada uma carta de um dirigente do Cineclube de Benguela, em que J. Branco destaca um objectivo fundamental para o seu cineclube: “função divulgadora do cinema em todos os s/ aspectos, junto de um público que embora muito vasto é bastante heterogéneo, tendo por principal objectivo fomentar o interesse pelo cinema como fenómeno artístico, despertar no associado um sentido crítico cada vez mais apurado, transformar o frequentador do cinema num espectador mentalmente activo.“ (...) E limitámo-nos a só isto [sessões de cinema] por falta de colaboradores. (…) E, sobretudo… falta de dinheiro… porque tudo custa cada vez mais dinheiro.“ (Ibidem) 274 Contudo, uma das principais dificuldades dos cineclubistas angolanos e moçambicanos, não referida no texto, era obviamente a vigilância e a perseguição política por parte da PIDE e de outras entidades locais. No final dos anos 50, figuras como Vítor Silva Tavares e Francisco Castro Rodrigues, dois exemplos dos primeiros dirigentes cineclubistas angolanos, chegavam a Angola (Benguela e Lobito, respectivamente) e, para além do passado cineclubista em Lisboa, levavam também com eles diversos problemas com a polícia política do Estado Novo, nomeadamente por ligações ao MUD e ao PCP (Cunha, 2013c: 48-49). Do mesmo modo, não pode deixar de ser notada e considerada a presença de activistas políticos relacionados com o movimento de libertação e das independências africanas entre os quadros fundadores ou dirigentes de inúmeros cineclubes angolanos. Esta relação parece-me suficiente para atribuir também aos cineclubes angolanos um envolvimento na oposição cultural ou na resistência política ao regime estadonovista, à clara semelhança do que aconteceu com o movimento cineclubista da então metrópole (Ibidem: 60). Não é, portanto, estranho que, com dirigentes relacionados com movimentos de oposição política ao regime, quer com intervenções culturais ou eminentemente políticas, a PIDE e outras autoridades locais exercessem uma atenta vigilância sobre as suas movimentações e sobre os cineclubes que dirigiam ou dos quais eram meros associados. No caso de Moçambique, Guido Convents (2011: 213-216) que a existência dos cineclubes foi importante e determinante para “o desenvolvimento duma contracultura“ em relação ao cinema hegemónico norte-americano, proporcionando aos cinéfilos moçambicanos “outras imagens, estéticas e histórias que não correspondam a uma só fórmula (os géneros) de Hollywood“. Curiosamente, como desenvolverei mais adiante, o fenómeno cineclubista moçambicano surge associado à prática de cinema de amadores: “(...) De facto, a vontade de fazer filmes era também um dos estímulos para se organizarem em cineclubes“ (Convents, 2011: 317). Mas, ao contrário do que aconteceu em Angola, em que o cineclubismo fomentou o desenvolvimento do cinema de amadores, em Moçambique para que foi a necessidade de regular a prática do cinema de amadores que promoveu o surgimento dos primeiros cineclubes locais. Por exemplo, o Cine-Clube da Beira, fundado em 1956, que era o herdeiro de uma associação anterior fundada três anos antes designada Grupo de Amadores de Cinema da Beira, definia como seu objectivo 275 criar uma secção de cinema de amadores (Ibidem: 220-221). Por seu lado, o Cine-Clube de Lourenço Marques tinha um núcleo de produção e realização e ministrava um curso elementar de cinema dirigido por Faria de Almeida (Ibidem: 232). Os cineclubes moçambicanos, como os angolanos, também beneficiaram muito da divulgação e promoção feita por meio radiofónico, uma vez que era comum que os cineclubes tivessem os seus próprios programas de rádio para divulgação das suas actividades: o Cine-Clube da Beira tinha um programa quinzenal na rádio Aero-Clube da Beira e o Cine-Clube de Lourenço Marques tinha um programa de quinze minutos na Rádio Clube de Moçambique (Ibidem: 225/230). Do mesmo modo, tal como acontecia em Portugal continental, os cineclubes ultramarinos editavam os seus boletins onde, citando textos de congéneres portugueses, mostravam estar perfeitamente integrados no movimento cineclubista português e, sobretudo, fortaleciam as relações inter-associativas e cinéfilas. Para além de se envolverem activamente no movimento cineclubista português, participando logo no III Encontro Nacional em Lisboa e em vários das reuniões anuais seguintes, os cineclubes moçambicanos também mantiveram relações frequentes com os congéneres dos países vizinhos. Foi por intermédio da Federation of Film Societies of South and Central Africa que os cineclubes moçambicanos teriam acesso a filmes proibidos em Portugal, como o caso de O Couraçado Potemkine (Serguei Eisenstein, 1925) ou A Mãe (Vsevolod Pudovkin, 1926) (Ibidem: 219). No entanto, Convents sustenta que, ao contrário da generalidade dos cineclubes portugueses, os congéneres moçambicanos foram mais influenciados pelo catolicismo e pela Igreja Católica do que propriamente por outros movimentos, como o Partido Comunista. No início dos anos 50, a própria Igreja Católica moçambicana dispunha de uma circuito de exibição próprio na província que totalizava 6 salas de cinema sonoro que anualmente “registam quase tanto público como os cinemas comerciais“, vendendo cerca de 192 mil bilhetes em 1952, assim como 10 máquinas de projecção Pathé Baby que permitia organizar cerca de 144 sessões anuais de cinema que reuniam cerca de 25.500 indígenas (Ibidem: 234). Ainda assim, o mesmo autor sublinha, os cineclubes usavam os “pontos de vista católicos para defender claramente posições que podem ser consideradas, indirectamente, como uma crítica contra a ditadura e o colonialismo“ (Ibidem: 224). O movimento dos cineclubes conheceu o auge de expansão e afirmação, grosso modo, entre 1945 (fundação do Clube Português de Cinematografia, Porto) e 1959 (proibição do quinto Encontro Nacional de Cineclubes, Torres Vedras). Em cerca de 276 década e meia foram fundados cerca de quarenta cineclubes, distribuídos por todo o país e por diversos meios sócio-económicos e culturais. Para além de cerca de 60 processos individuais de cineclubes, então existentes em Portugal e nas então colónias, existem ainda processos específicos no Arquivo Nacional Torre do Tombo, no fundo Direcção Geral de Espectáculos, neste período, sobre cineclubes que foram extintos entre a criação da Federação Portuguesa de cineclubes e 1966. Nessas duas pastas precisamente intituladas Cineclubes extintos por regiões, contam os processos de extinção de 11 cineclubes: Régua, Santiago do Cacém, Setúbal, Vila Real de Santo António, Castelo Branco, Braga, Funchal, Odemira, Oliveira de Azeméis, Portalegre e Portimão (ANTT-SNI-IGAC, cx. 58-59). Da análise destes 11 processos de extinção revelam algumas práticas e estratégias recorrentes na relação entre o Estado Novo e os cineclubes. A primeira medida era saber se os cineclubes em actividade tinham os seus estatutos formalmente aprovados em Diário do Governo e pedir relações dos elementos que integravam os corpos dirigentes. Logo após a criação da FPCC, o SNI tratou de contactar os cineclubes em actividade para saber quais os que tinham os seus estatutos aprovados em Diário do Governo: Imagem, CCC Lisboa, Católico Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Castelo Branco, Faro, Viana do Castelo, Vizeu, Figueira da Foz, Olhanense, Oliveira de Azeméis e Vila Real de Santo António. Os cineclubes que não tinham estatutos aprovados teriam de se submeter ao novo regime legal e adoptar os estatutos-tipo impostos pela FPCC. Assim aconteceu em 1957 com os estatutos de CC Funchal, Espinho e Torres Vedras. Os cineclubes com estatutos aprovados anteriores à criação da FPCC seriam alvo de várias diligências no sentido de os “convencer“ a adoptar o novo estatuto-tipo. Em vários casos, os processos da Torre do Tombo documentam diligências do SNI junto de autoridades locais — Câmaras Municipais e Governos Civis — no sentido de interceder junto da AG do CC para convencer os associados a aceitar os estatutos-tipo. “pois só assim este Secretariado passará a auxiliar materialmente o Cineclube“ (Ibidem). No caso desta aproximação “amigável“ não surtir resultados, o SNI avançava para uma aproximação mais “hostil“. Essa estratégia assumiu várias modalidades, conforme os casos: a) Extinção por falta de estatutos-aprovados: CC Régua foi extinto em 1962 porque se recusou sistematicamente a adoptar os estatutos-tipo da FPCC; Estatutos revogados (20-jan-62) e os haveres do CCR foram entregues aos Bombeiros Voluntários; CC Setúbal viu a sua autonomia ser transferida para uma comissão administrativa nomeada pelo 277 SNI, justificada pela recusa do CC Setúbal adoptar os estatutos-tipo, apesar da intervenção do Governador Civil. b) Extinção por falta de homologação aos dirigentes cineclubistas: CC Santiago do Cacém suspendeu as suas actividades em agosto de 1961, devido a um vazio directivo motivado pelas sucessivas não-homologações de dirigentes cineclubistas pelo SNI, apesar das declarações de honra - “Declaro pela minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas“ (CC Santiago do Cacém, 1961); CC Vila Real de Santo António encerrou actividade em Maio de 1964 pela reprovação de 6 dirigentes por parte do SNI; CC Oliveira de Azeméis suspendeu actividade pela própria AG informa o SNI da suspensão das actividades por “ter esgotado todos os recursos possíveis e imaginários para tentar obter um elenco directivo“. c) Extinção por actividade irregular: CC Castelo Branco é extinto em 1962 por proposta do SNI “com fundamento na paralisação da sua actividade desde 1957“, com uma proposta para retirar os estatutos aprovados anterior à nova lei e que os bens revertam para a FPCC; CC Braga foi extinto por solicitação do SNI ao GC de Braga, porque o CCB deixou de exercer actividades desde 1957. A proposta é que seja retirada a aprovação dos estatutos e que se mande liquidar a associação; CC Funchal foi extinto por decisão da própria AG, que decidiu cessar actividade e que nomeou uma comissão liquidatária. Motivações financeiras e permanente pressão do SNI, que enviava sucessiva correspondência com questões burocráticas; CC Odemira foi extinto por falta de actividade; CC Portalegre cessou actividade em 1966; CC Portimão cessou actividade em 1964. De facto, a extinção por não-homologação dos corpos dirigentes democraticamente eleitos internamente ou pela irregularidade da actividade eram estratégias de acção do próprio SNI ou de outras autoridades nacionais (Inspecção Geral de Espectáculos) e locais (Câmaras Municipais e Governos Civis). O SNI, geralmente através da FPCC, exigia uma série de formalidades burocráticas, como a verificação dos relatórios e contas dos cineclubes ou a homologação dos corpos dirigentes eleitos, que na prática forçavam uma diminuição ou paralisação das actividades cineclubistas. O processo de homologação dos dirigentes era conduzido pelo SNI, mas envolvia diversas dimensões: era ouvida a PIDE, mas também autoridades locais como as Câmaras 278 Municipais, os Governos Civis, a PSP, as delegações locais da Legião Portuguesa e da União Nacional e, também, informantes. Os relatórios evocavam diversas razões para o não sancionamento de nomes: por serem “desafectos ao regime vigente“; por pertencer ao MUD (até existia um carimbo para registar essa condição!) ou ao MUD Juvenil; por ter acompanhado o General Delgado na campanha eleitoral de 1958 (CC VRSA, 1964); ou simplesmente por “não oferecer garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado“. A vigilância do SNI também se estendia às actividades intercineclubísticas, nomeadamente a realização do Encontro Nacional de Cineclubes, organizado desde 1955. O SNI começou por vigiar estas reuniões, mas em 1959 acabou por proibir a realização do V Encontro, que deveria ter lugar em Torres Vedras, com base numa formalidade. O SNI alegou que uma reunião desse tipo seria uma competência legar da FPCC. A FPCC ainda convidou o CCTV a integrar a comissão, mas assumindo a organização como lhe competia legalmente, algo que foi rejeitado por diversos cineclubes. A imprensa também estava sob rigoroso controlo: eram pedidos com frequência relatórios sobre textos escritos por dirigentes cineclubistas ou sobre assuntos relacionados com a FPCC. Por outro lado, o SNI também promovia formas de discriminação positiva, geralmente através da FPCC, da Cinemateca ou das autoridades locais: depois de ver os seus estatutos aprovados em 1965, o CC Odemira recebeu um subsídio mensal de 250 em 1965 e 300 em 1966 para a aquisição de um projector de 16mm; a FPCC enviava listas com curtas metragens estrangeiras de interesse cultural em distribuição comercial e listas de filmes disponíveis na Cinemateca para programação nos cineclubes, mas os empréstimos só eram permitidos aos cineclubes federados na FPCC. Com um esforço concertado dos seus diversos instrumentos de controlo social e cultural, o Estado Novo lograra, em cerca de duas décadas, esgotar os dois principais focos de oposição à sua política cultural. Apesar das tentativas de “assassinato“ – o termo é utilizado por Paulo Filipe Monteiro (2000: 308) – do movimento cineclubista pelo Estado Novo, aos anos 60 foram um período de uma resistência longa e discreta, mas presente, de que o surgimento de novos cineclubes é o melhor exemplo: Barreiro, Torres Novas e Portimão em 1960; Uíge (Angola) e Nampula (Moçambique) em 1962. O recrudescimento da vigilância da Censura e da PIDE – influenciada sobretudo pela candidatura presidencial de Humberto Delgado e outros acontecimentos políticos – 279 levou ainda à detenção temporária de Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, Vasco Granja, Henrique Espírito Santo e José Manuel Castello Lopes (Pina, 1978: 44), assim como as proibições da exibição livre de um filme de formato reduzido (produzido pelo Cineclube do Porto em 1957). No confronto ideológico vivido no final da década de 50, Paulo Jorge Granja (2006: 196) considera que o “confronto até poderá ter sido desejado pelos cine-clubes mais à esquerda como forma de radicalizar posições, confiantes de que a sua concepção de cultura pareceria ser sempre muito mais moderna e, por isso, mais apelativa para as classes médias instruídas que compunham o grosso dos seus sócios.“ Do lado do poder, Fausto Cruchinho (2001: 341) identifica duas figuras do aparelho estatal como responsáveis pelo silenciamento do movimento cineclubista: César Moreira Baptista, depois de ter desempenhado diversos cargos de responsabilidade intermédia em vários órgãos corporativos, foi responsável máximo pelo SNI/SEIT (1958-73), tendo promovido uma campanha pelo silenciamento do movimento cineclubista e de luta contra outras formas de oposição cinéfila; Bernardo Júdice da Costa é tido como a “eminência parda de Moreira Baptista na luta contra o movimento cineclubista“ e como uma figura afecta aos interesses corporativos da actividade cinematográfica, nomeadamente dos distribuidores. 3.2.2. De Dom Roberto à Semana de Estudos do Novo Cinema Português Com um esforço concertado dos seus diversos instrumentos de controlo social e cultural, o Estado Novo lograra, em cerca de duas décadas, esgotar os dois principais focos de oposição à sua política cultural. Apesar de percursos distintos, os movimentos cineclubista e neo-realista encontrar-se-iam numa derradeira tentativa de renovar o cinema português. O ambicioso projecto e a concretização da obra Dom Roberto (1962), de Ernesto de Sousa, foi o ponto de encontro e, simultaneamente, a falência dos dois movimentos. Alimentado no seio dos movimentos cineclubista e neo-realista, o filme era aguardado com muita expectativa porque pretendia romper com a política cinematográfica e com a filmografia obsoleta promovida nas décadas anteriores pelo Estado Novo. Apoiado por um argumento do escritor neo-realista Leão Penedo (havia já trabalhado com Manuel Guimarães em Saltimbancos, 1951), Ernesto de Sousa queria 280 fazer da história de um vagabundo sonhador e da sua misteriosa companheira um momento de viragem no cinema português. O percurso do próprio realizador, um exigente crítico de cinema e artista pluridisciplinar pioneiro das vanguardas desde os anos 40, também aumentava o capital de confiança depositado no projecto. O filme teve um longo processo de produção, inédito em Portugal: em Abril de 1959, a revista de cinema Imagem lançou a Cooperativa do Espectador, um novo modelo de financiamento que previa a venda prévia de bilhetes de cinema aos futuros espectadores; em início de 1961, reunidos os 600 contos necessários para a produção, o filme começou a ser rodado à margem de qualquer apoio oficial do Estado Novo; em meados de 1962, quando estreou, a promoção ao filme apresentava-o orgulhosamente como um sinal de optimismo para o futuro novo cinema português. Leonor Areal (2008: 334) também refere, para além da subscrição pública, alguns leilões organizados pelos cineclubes. As expectativas elevadas fizeram com que a desilusão fosse proporcionalmente maior. O filme começou por ser mal recebido precisamente nos núcleos que lhe tinham garantido a existência: rotulado de “resquício neo-realista“, o filme não tinha conseguido dar início a uma nova era cinematográfica em Portugal, mantendo muitas das características, sobretudo técnicas, que afastavam os cinéfilos do cinema português produzido no ideário vigente. O objectivo inicial seria contrariar o arquétipo base das comédias ou dramas musicais de então: histórias de portugueses da classe média urbana, economicamente remediados, socialmente conformados e politicamente inócuos. A apologia de valores como autoridade, família e trabalho enquadravam-se na ideologia vigente e eram veiculados, directa ou indirectamente, pela produção cinematográfica permitida pelo Secretariado Nacional de Informação. Para promover a renovação, Ernesto de Sousa reuniu uma equipa técnica maioritariamente jovem e inexperiente, mas “que em contrapartida foram equilibradas por um grande entusiasmo“, e apostou em inovações técnicas: “A esse respeito é interessante observar que todo o diálogo foi gravado directamente — síncrono — o que raramente se faz em Portugal e é considerado mais oneroso do que a dobragem. (...) São necessários ensaios como no teatro. No cinema têm mais importância as repetições feitas no momento das filmagens do que os ensaios anteriores, embora estes, por vezes, também sejam indispensáveis. Com efeito, no cinema há que obter uma espontaneidade que não é possível ensaiar antes. O papel de realizador é também o de criar um clima propício a essa espontaneidade. Esse 281 clima só se pode criar na própria altura das filmagens, na hora exacta e nervosa de entrar em acção.“ (Ernesto de Sousa apud Boletim Cooperativista, 106, VIII-1962: 12) Mas se Dom Roberto queria contrariar a ideia-base da “alegria na pobreza“, e ainda que tentasse fugir ao modelo narrativo dominante, o realizador não consegui desembaraçar-se da tentação de estereotipar certas figuras e situações: a acção decorre num pátio sem cantigas mas igual aos dos anos 30 e 40; o final feliz demasiado ingénuo e conformista. Ernesto de Sousa também não conseguiu sequer livrar-se de alguns vícios de produção e condicionalismos técnicos que afastavam o cinema português das novas vagas europeias em forte ascensão nesse período. Apesar do mérito de trazer para protagonistas duas personagens praticamente invisíveis no cinema português de então – vagabundos, marginais, sem-abrigos –, o filme centrava-se muita na vontade de passar uma mensagem social e com isso reabriu a velha discussão estética sobre a primazia da forma ou do conteúdo. A crítica da época reconhecia algumas qualidades do filme sobretudo na aproximação a temáticas neorealistas ou a uma certa ambiência poética, mas rejeitava qualquer semelhança com o cinema moderno. De facto, Dom Roberto não apresenta esses elementos narrativos e técnicos próprios da ruptura do cinema moderno – subjectividade e abstracionismo nos temas e nas personagens, narrativa e montagem não-linear ou descontinuada, reflexividade sobre o lugar do cinema na sociedade, entre outros – mas também não é propriamente um exemplo do velho cinema português das décadas anteriores. É claramente, e cada vez mais reconhecidamente, um filme-fronteira, de transição para um novo modelo estético que chegaria nos anos seguintes com jovens realizadores como Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo ou João César Monteiro e que ficaria conhecido como o novo cinema português. José Ernesto de Sousa era na altura redactor da revista Imagem e havia sido um dos fundadores do efémero Círculo de Cinema, um dos primeiros cineclubes portugueses, encerrado por ordem da PIDE (Henry, 2006: 246). Havia vivido em Paris entre 1949-52, “onde frequentou cursos de cinema da Cinemateca, da Sorbonne e do Institut de Hautes Études Cinematographiques, aulas de arte na Ecole du Louvre e fez o Cours d’Initiation aux Arts Plastiques de Jean d’Yvoire“ (Ernesto de Sousa: em linha) Apoiado apenas pelo entusiasmo cineclubista, Dom Roberto foi “o único fruto bacteriologicamente puro da geração cineclubista, ou seja, o único que ficou à margem 282 de qualquer contacto com as esferas oficiais, quer directa quer indirectamente“ (Costa, 1991: 117). À semelhança da recepção dos filmes de Manuel Guimarães (Saltimbancos, Nazaré, Vidas sem Rumo), com declaradas intenções neo-realistas, o esperado filme de Ernesto de Sousa foi recebido com desilusão pelos movimentos que o perfilharam ideologicamente. Rotulado de “resquício neo-realista“, Dom Roberto havia gorado as promessas de romper com o passado e de iniciar um novo cinema. Apesar do aparente insucesso, Michelle Sales (2011: 142-143) lembra que o filme despertou “o máximo interesse na crítica das revistas especializadas e da imprensa diária“ e venceu, em 1963, o Prémio dos Jovens Críticos do Festival de Cannes. No fundo, hoje o filme é visto apenas como “(...) algo que apenas agitou o caminho, preparou o terreno, pois a crítica que vinha, ao longo da década de 1950, constantemente debatendo sobre o modelo, a forma e a “reforma“ do cinema português não aceitou o filme que, ao apontar para a precariedade da vida portuguesa, retomando elementos da cultura popular e do melodrama não alcançou as expectativas - que eram grandes“. Parece óbvio que o fracasso comercial do filme Dom Roberto está relacionado com o esmorecer do movimento nessa viragem de década. Se o projecto nasceu num momento de euforia dos movimentos cineclubista e neo-realista, nesses três anos que se passaram até à estreia o cenário mudou radicalmente: a revista Imagem desapareceria em 1961, o surgimento de novos cineclubes abrandou e, consequentemente, o número de associados diminuiu. A falta de público cineclubista também ficaria associada ao fracasso comercial do filme Belarmino (1964), de Fernando Lopes. Com uma história de produção totalmente distintas, mas com um jovem realizador com passado cineclubista (foi associado do Cine-Clube Imagem), o produtor António da Cunha Telles optou por um lançamento do filme junto do circuito cineclubista (Jornal de Letras e Artes, IV-1970: 28-31). Tal como sucedeu com Dom Roberto, também este filme parece ter padecido da falta de entusiasmo que o movimento cineclubista vivia nesses anos de ressaca da perseguição política. Anos mais tarde, Luís de Pina atribuiria esta fragmentação do público cinéfilo, visível desde a década de 1950, ao novo ambiente cultural vivido sobretudo desde as experiências cineclubistas. O desenvolvimento destas experiências desde a década de 1950 marcou o ponto de cisão do público cinéfilo (Pina, 1977: 44). 283 A partir da experiência cineclubista, o público de cinema português diminuiu em número mas tornou-se progressivamente mais exigente e mais selectivo com a oferta cinematográfica. Para Adérito Sedas Nunes (2000: 33-34), a “modernização“ da sociedade portuguesa a partir dos anos 1960 deveu-se a dois factores essenciais: “o grau de urbanização das populações“ e “a densidade do escol cultural“. De facto, o espaço social da nova geração cinéfila reflectia as transformações da sociedade portuguesa: concentração urbana, juvenilização da intervenção política e cultural e expansão da formação superior. O imaginário social dos novos cineastas, e consequentemente dos seus filmes, deixa de ser o “pátio das cantigas“ e passam a ser as novas Avenidas de Lisboa, espaço onde habitam e convivem nas diversas tertúlias. O público de cinema nas décadas de 1960-70 passa a ser um público mais culto, com origem nos “cineclubes, grupos universitários, burguesia culta“ (Pina, 1977: 72). Em 1960, na rubrica Cinema do programa APA, no Rádio Clube Português, um dirigente do Cine-Clube Imagem declarava que um cineclube para subsistir precisava de número médio de 1200 associados, mas que 300 seria o número ideal para desempenhar a sua missão divulgadora da cultura cinematográfica (Cinema de Amadores, II/III-1960: 1814). Se estes números até poderiam ser uma realidade nas grandes cidades, como Lisboa, Porto, Luanda ou Lourenço Marques, dificilmente o seriam na generalidade dos cineclubes portugueses da “província“. Por outro lado, o confronto aberto entre cineclubes e poder político vivido no final dos anos 50 resultaria um claro prejuízo para o movimento cineclubista. Durante a década de 60 e inícios da seguinte, o movimento cineclubista sobreviveu mas perdeu muita da influência social e cultural que conquistara nos anos 50. A proibição da realização do V Encontro em 1959 representou o fim de um período áureo do cineclubismo em Portugal, um momento histórico em que vários cineclubes portugueses foram determinantes na formação de uma gerações de cinéfilos onde se incluíam algumas figuras que nos anos seguintes seriam influentes no cinema português: Alberto Seixas Santos, Alfredo Tropa, Cunha Telles, António Faria, António de Macedo, Faria de Almeida, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Rogério Ceitil, António Escudeiro e Henrique Espírito Santo, entre outros. Em 1961, um ano de estagnação do movimento, surgiram alguns apelos à intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian, que nesse mesmo ano havia concedido um apoio financeiro ao Cineclube Universitário de Lisboa. Roberto Nobre, numa extensa carta aberta dirigida ao presidente da Gulbenkian, apelava à intervenção da instituição 284 sobretudo na formação cinematográfica de novos valores e do próprio público, sugerindo a criação de uma escola de cinema, uma cinemateca e uma espécie de “supercineclube“ (Diário Popular, 27-VII-1961: 1/5). Fazendo eco a este apelo, Henrique Alves Costa aplaude particularmente a valorização do movimento cineclubista e apela ao apoio da Gulbenkian a este movimento progressivamente fragilizado e torna pública uma diligência anterior promovida por esta instituição à Fundação Gulbenkian: em 1959, o Cineclube do Porto havia dirigido à Gulbenkian uma “documentada exposição“ que alertava para a necessidade de uma intervenção directa da Fundação no cinema português (Ibidem, 10-VIII-1961: 1/5). Em Janeiro de 1964, a revista Cinema de Amadores (I-1964: 2274-2275) atribuía a “crise de orientação“ do movimento cineclubista à falta de “bons dirigentes “: “A atracção de um numerosos público cinematográfico na associação pelas simpáticas colectividades que foram surgindo pelo país inteiro permitia imaginar uma orientação isenta de grandes preocupações, limitada à escolha de filmes, e divulgação de opiniões críticas seleccionadas de acordo com o gosto ou a simpatia dos encarregados dessa função, ou da conveniência do ciclo em que fossem incluídas. Porém, como era de prever, semelhante sistema aparentemente satisfatório, em meia dúzia de anos provou a sua insuficiência como meio de bastar aos desejos e aos sonhos louváveis de alguns apaixonados do Cinema que aspiravam ver no cineclubismo um modo de glorificação da Sétima Arte. Por sua vez, o grande público dos cine clubes, a grande maioria dos espectadores das sessões dessas colectividades, quase simultaneamente começou a dar mostras de cansaço e a deixar de comparecer às exibições dos filmes. (...) O cineclubismo entre nós não deve morrer, porque ele pode ser um valioso esteio da cultura cinematográfica. A sua sobrevivência está porém, sujeita à competência e à dedicação dos responsáveis pela sua orientação. Veríamos com prazer que no início da próxima temporada cinematográfica um halo de renovação irradiasse das principais sessões a realizar, como reflexo de uma nova orientação destinada a dar ao movimento o sentido exacto das suas funções divulgadoras do Cinema como expressão de Arte e veículo de Cultura.“ Apesar de documentar uma quebra no número de associados, o artigo citado, certamente “visado pela censura“, não referia que uma das principais causas da quebra abrupta do número de associados estava relacionado com a suspensão ou encerramento de diversos cineclubes por todo o território, a perseguição de vários dirigentes e a forte acção de pressão e limitação sobre as actividades regulares de diversos cineclubes por iniciativa do SNI ou da própria PIDE. 285 Como resume Paulo Jorge Granja (2007: 380), “nunca se falou e se escreveu tanto sobre cinema como entre 1945 e meados dos anos 60, período áureo do movimento dos cineclubes“: “Ainda que [António-Pedro] Vasconcelos o ignorasse de forma ostensiva, com evidentes intuitos polémicos, seria precisamente a 'geração dos cineclubes' a conseguir ultrapassar 'a resistência dos intelectuais em reconhecer o cinema como fenómeno da cultura', tornado possível, a partir de finais dos anos 50, a afirmação inequívoca do cinema como arte em Portugal. (...) Apesar de pouco numerosos, foram eles a conseguir impor uma nova forma de ver o cinema, o que permitiria à geração seguinte fazer um outro cinema. (...) (...) paradoxalmente, o movimento dos cineclubes, que procurara afirmar a universalidade do cinema, conseguiria legitimar o cinema não através da divulgação da cultura cinematográfica de massas, mas sim pela formação de pequenos núcleos oriundos das elites intelectuais que acabariam por rebelar-se contra a cultura cinematográfica da maioria dos cineclubes.“ Apesar de todas as contrariedades ditadas pela perseguição e repressão política, são conhecidos episódios de resistência silenciosa durante os anos 60, como a exibição em circuitos restritos de filmes proibidos. Rita Capucho (2014) relata um desses episódios, ocorrido no Cineclube de Aveiro: “Mas, em 1967, de acordo com Matos Barbosa, o filme foi exibido em Portugal na sala de cinema do Vasco Branco. Fernando Oliveira, amigo de Matos Barbosa que vivia em Paris, contou que tinha uma cópia do “Couraçado de Potemkin“ em 8mm. O entusiasmo foi grande, e o grupo montou um esquema para que pudessem assistir ao filme. A pelicula seria enviada diretamente de Paris para Aveiro aos bocados. O processo demorou algum tempo, mas finalmente a cópia ficou completa e os frequentadores da sala de cinema da casa de Vasco Branco puderam ver este filme proibido, este mundo… conseguiram trazer o mundo a casa.“ Ainda que de forma simbólica, algumas figuras de destaque do movimentos cineclubista – como Henriques Alves Costa, Manuel de Azevedo ou Henrique Espírito Santo – teriam um papel importante no processo de afirmação e reconhecimento do Novo Cinema português. A importância da Semana de Estudos sobre o Novo Cinema Português, organizado pelo Cineclube do Porto em Dezembro de 1967, ou a intervenção de algumas figuras nas discussão pública em torno do que seria a Lei 7/71, tida como uma lei progressista e defensora dos interesses do cinema moderno português, são dois bons exemplos da presença do movimento cineclubista na história do cinema português. Segundo o testemunho de Fernando Lopes, na sequência das divergências que precipitaram a falência das Produções Cunha Telles, a trupe do novo cinema necessitava 286 de uma oportunidade colectiva de discussão e reflexão catártica, mas “um psicodrama desse tipo tinha de realizar-se fora de Lisboa.“ Surgiu então a ideia de contactar e propor ao Cineclube do Porto a realização de um Encontro onde seriam exibidos filmes e promovidos debates em torno do novo cinema português. Independente das “querelas ideológicas“ que animavam a população cinéfila lisboeta, respeitado pelo seu passado no protagonismo da luta pela causa cineclubista e dirigido por Henrique Alves Costa, uma figura consensual no seio do novo cinema, o Cineclube do Porto reunia todas as condições para empreender tal iniciativa (Lopes, 1985: 64). Entretanto, o Cineclube do Porto solicitava à Fundação Calouste Gulbenkian um subsídio para a iniciativa. A 14 de Novembro, o apoio da Gulbenkian avançava com uma sugestão: dedicar uma das sessões de trabalho “à ponderação de como seria desejável, do ponto de vista do cinema e dos artistas que a ele se consagram, que a Fundação interviesse.“ Desta proposta, assinada por Carlos Wallenstein, responsável pelo Sector de Teatro, surgiria a mesa-redonda intitulada “A Fundação Calouste Gulbenkian e o Cinema Português – Futuras Perspectivas para o Novo Cinema Português“ (Cunha, 2005: 56). Para estimular os trabalhos, o Cineclube do Porto decidiu convidar um variado leque de personalidades que considerasse ter, directa ou indirectamente, uma intervenção positiva na discussão do “estado cinéfilo da nação“. Entre os diversos convidados, quer como participantes ou como observadores, encontramos realizadores, aspirantes a realizadores, técnicos, distribuidores e exibidores, cineclubistas e críticos de cinema. Significativos do alcance pretendido para este evento foram os convites endereçados a algumas figuras de mérito cultural já à época reconhecido, mas com ligação indirecta à actividade cinematográfica, como José Cardoso Pires, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, José-Augusto França, José Tengarrinha, Fernando Lopes Graça, José Vaz Pereira, Francisco Rebello, Manuel da Fonseca, Manuel Jorge Veloso, Nuno de Bragança, Orlando de Carvalho, Jorge Peixinho e Urbano Tavares Rodrigues. Para além do mérito cultural reconhecido, estas figuras tinham em comum uma oposição mais ou menos activa contra a política cultural do regime. (Ibidem) Alguns participantes e observadores reservavam altas expectativas reservadas para o evento: Fonseca e Costa, numa carta dirigida à comissão organizadora do evento (Semana do Novo Cinema Português: Correspondência Avulsa, 11-XI-1967), felicitava o Cineclube do Porto por pretender organizar uma “coisa que não seja a criticazinha de circunstância a que nos habituaram alguns dos mais proeminentes e vetustos exegetas cinematográficos da nossa terra“, considerando que no “meio de tanta asneira é 287 consolador verificar que há quem esteja a ver as coisas com olhos de ver, analisando-as dentro do seu contexto.“ Durante a primeira semana de Dezembro, com o apoio financeiro da Câmara Municipal do Porto e da Fundação Gulbenkian, o novo cinema português era o tema em estudo e reflexão num evento organizado por um cineclube. Da concorrida mesaredonda realizada na última noite do evento haveria de resultar um breve relatório assinado por vários dos realizadores presentes dirigido à Fundação Gulbenkian, uma primeira versão do célebre Ofício do Cinema em Portugal. Este documento formalizava o principal debate ocorrido na semana: de que modo seria materializada a intervenção da Gulbenkian no novo cinema (Cunha, 2005: 57-58). Quando se esperava que a iniciativa organizada pelo Cineclube do Porto seria mais “um muro de lamentações dos cineastas portugueses que vinham tentando descobrir novos rumos para a nossa cinematografia“, o forte interesse manifestado pela Gulbenkian transformou a Semana de estudos num momento decisivo no triunfo do novo cinema (Celulóide, VIII-1971: 12). Inspirada numa iniciativa idêntica organizada pelo Cineclube de Pontevedra em relação ao novo cinema espanhol, a Semana não podia escapar à vigilância da Censura, que exigiu ler previamente os textos a apresentar nas sessões de debate. A iniciativa de organizar tão complexo evento devolveu alguma credibilidade e demonstração de vitalidade ao Cineclube do Porto e ao movimento cineclubista em geral.122 Desde 1959, com a proibição do V Encontro Nacional, o movimento entrara numa visível fase de decadência orgânica e dinâmica. Como reconheceu o próprio Cineclube do Porto, a Semana foi uma “realização adulta que deu ao Clube Português de Cinematografia grande publicidade e uma demonstração da capacidade de realização desta Associação“ (Relatório e Contas da Direcção, 1967: 11). No entanto, acredito que não fora o interesse da Gulbenkian e a sugestão de realização da mesa-redonda extraordinária, arrisco a especulação de que a Semana teria sido um fracasso. A melhor confirmação desta suposição poderá ser o fracasso revelado pela fraca participação de realizadores e críticos no Encontro de Realizadores, Técnicos e 122 Ainda assim, do ponto de vista financeiro, o evento só foi possível com o contributo extraordinário de várias pessoas e entidades: O custo total do evento foi de 102.674$80, enquanto as receitas ascenderam aos 108.850$00, excluindo as receitas de bilheteira. A Gulbenkian contribuiu com 50.000$00, a Câmara Municipal do Porto com 20.000$00 e o leilão de obras artísticas oferecidas por Júlio Pomar, Júlio Resende, José Rodrigues, Francisco Relógio, Augusto Gomes e Ângelo de Sousa rendeu 38.850$00. (Relatório e Contas da Direcção, 1967: 10-11). 288 Críticos, a pretendida sequela da Semana promovida pelo Cineclube do Porto (Cunha, 2005: 61). Em Dezembro de 1970, o Cineclube do Porto promovia o Encontro de Realizadores, Técnicos e Críticos, uma sequela da Semana do Novo Cinema Português, desta feita para debater a intervenção do novo cinema na formulação na nova lei de cinema. Apesar de ausências significativas, compareceram ao encontro realizadores influentes como Fonseca e Costa, António de Macedo e Cunha Telles. Tendo como contexto a discussão da nova lei de cinema, esta iniciativa procurou repetir a fórmula da anterior, mas a ausência significativa de vários realizadores e críticos convidados retirou algum protagonismo e a influência pretendida. Apesar de todas as expectativas, as principais propostas apresentadas foram apenas a criação de uma Associação de Realizadores de Cinema e a constituição de uma Cooperativa de Distribuidores (Ibidem: 131). Pouco antes, o Ofício do Cinema em Portugal (1968: 29) estimava que entre a proibição do V Encontro (1959) e a data de entrega do documento, em cerca de uma década, o movimento cineclubista perdera mais de 20 mil sócios e metade dos cineclubes em actividade. Naturalmente, o relatório assinado pelos elementos da nova geração “escondia“ ou não fazia referência à influência das “repressões mais musculadas do regime“ nesse enfraquecimento do movimento, atribuindo a causa do declínio a razões intrínseca ao próprio movimento cineclubista, que teria sido vítima do seu próprio sucesso (Granja, 2007: 381-382). Exceptuando os meses que antecederam e sucederam à realização da Semana de Estudos no Novo Cinema Português, entre finais de 1967 e inícios de 1968, o movimento cineclubista não conseguira, como acontecera antes, recuperar o fulgor e a vitalidade do violento “ataque“ de que fora vítima por parte do aparelho repressor do Estado Novo. A década de 60 assistiria a uma clara estagnação e lenta agonia do movimento que só esboçaria reacção após a queda da ditadura, já em meados da década seguinte. Para concluir, gostaria de recuperar uma reflexão de Catarina Alves Costa (2012: 80) sobre o movimento cineclubista português: “Este movimento não foi, no entanto, uniforme no nosso país, tendo existido cineclubes mais implantados num ambiente popular, como o do Barreiro, e outros mais ligados às elites lisboeta, como o Cineclube Imagem, ou portuense, caso do Cineclube do Porto. Havia, também, os cineclubes alinhados com a política cultural do salazarismo, como o de Rio Maior, que rejeitou o cinema italiano“. 289 Particularmente durante o Estado Novo, o movimento cineclubista em Portugal foi um fenómeno mais complexo do que se pode depreender de uma primeira abordagem. Consoante a sua localização geográfica e ou composição social, os cineclubes portugueses, apesar da repressão política e social que os condicionou durante os anos 50, foram muito influentes na formação de sucessivas gerações de espectadores. As suas programações e demais actividades — que na generalidade dos cineclubes ultrapassava largamente a mera exibição de filmes — são indicadores a considerar para compreender a dimensão social, política e cultural do fenómeno associativo cineclubista em Portugal. 3.2.3. O cineclubismo entre as lutas de Abril A realização, em Aveiro, logo nos dias 25 e 26 de Maio de 1974, do V Encontro Nacional de Cineclubes foi importante para a discussão da função do cinema na sociedade portuguesa no pós-25 de Abril e que papel poderia desempenhar o movimento cineclubista nesse momento tão marcante da História de Portugal. Sol de Carvalho, para além de representar o Cineclube Universitário de Lisboa, escreveu um relatório para a revista Cinéfilo (34, I-VI-1974: 34-43) onde resumiu as posições defendidas pelos diferentes cineclubes e deixou as suas impressões: “Como seria de esperar, este encontro revestiu-se de surpresas bastante importantes. De salientar, primeiro, o aparecimento público de cineclubes uns mais conscientes, outros não se apercebendo ainda da globalidade da problemática (e é de salientar a importância disto, dado o isolamento a que esses cineclubes eram votados), e que punham, todos eles, em causa a orientação fundamental que até aqui presidiu ao cineclubismo. Para al[em de algumas provocações de lamentável mau gosto (por exemplo, dizer que nem todos os cineclubes poderiam ter a mesma estratégia, dado que a massa de uns era operária e a de outros era estudantil, tentando atirar, assim, a massa estudantil contra a operária), o encontro decorreu numa passagem sucessiva a 'impasses' provenientes de duas concepções de fundo radicalmente opostas. (...) Uma dessas linhas, a linha reformista, representada por um número muito restrito de cineclubes, encabeçada pelo ABC, pretendia fundamentalmente formar uma federação a todo o custo, uma federação constituída, discutida e aprovada, separada das massas cineclubistas, e isto com a intenção de ter uma base material de acordo entre os diversos cineclubes, base material essa que lhes permitisse dividir entre os cineclubes essas possibilidades práticas que o Estado depois do 25 de Abril, se encontra disposto a dar. (...) 290 A outra alternativa, radicalmente oposta, caracterizou-se essencialmente por (...) uma tomada (tanto mais colectiva quanto possível) de posição de massas que fosse verdadeiramente progressista, defendendo uma cultura ao serviço do povo, na defesa de uma prática cineclubista nesse sentido. O encontro teve perfeitamente bem claras, e desde o início, essas duas posições: logo na formação da mesa que foi formada, segundo proposta aprovada do ABC, pelos cineclubes (aliás, dos seus representantes) do Porto, ABC, Barreiro, Aveiro. (...)“ (Ibidem: 41-42) Em suma, enquanto uns (ABC, Porto, Barreiro, Aveiro, Bento de Jesus Caraça, Coimbra, Guimarães, Boavista e Torres Novas) pretendiam criar imediatamente uma nova Federação que substituísse a anterior FPCC, outros (Universitário de Lisboa, Santarém, Viseu, Torres Vedras, Católico e Imagem) pretendiam marcar um novo Encontro Nacional que fosse alargado a todos os cineclubistas e não apenas aos seus dirigentes, propondo que a questão fosse discutida em reunião de assembleia-geral de associados a realizar internamente em cada um dos cineclubes. A tese aprovada seria esta última, ficando o ABC encarregue de coordenar a comunicação entre os diversos cineclubes. Henrique Alves Costa, o veterano dirigente do Cineclube do Porto, em texto publicado na revista Cineclube (12/13, X/XII-1976: 4), lamentava o impasse criado nesse Encontro a oportunidade perdida, uma vez que, exceptuando o Cineclube que dirigia, nenhum outro cineclube discutiu internamente os novos estatutos para a nova FPCC, fazendo com que o assunto se arrastasse sem resultados práticos. Os cineclubes continuavam sem um veículo de representação colectiva que pressionasse o poder político, o que levou inclusive a “situações ambíguas com consequências funestas“ para todo o movimento, enfraquecendo-o e dividindo-o, gerando inclusive momento de tensão e conflito entre alguns cineclubes (Ibidem). No contexto dos vários debates de Abril, o movimento cineclubista tentou fazer valer a sua posição enquanto um circuito de exibição paralela ao comercial de forma a contribuir para a descentralização e democratização cultural do país depois de décadas de ditadura, nomeadamente com a criação de uma Cinemateca no Porto e noutras localidades do país (Idem, 1, XII-1974: 19-21), mas as divisões no seio do próprio movimento cineclubista fragilizavam uma tomada de posição mais forte e significativa juntos dos agentes políticos. Naturalmente, a futura lei de cinema estava no centro das atenção do movimento cineclubista, reclamando ser voz activa na sua elaboração antes da discussão pública, 291 “como órgãos de cultura cinematográfica“, e defendendo medidas que protegessem e fomentassem a exibição de cinema não-comercial, através de isenções fiscais ou apoios públicos (Ibidem: 18). Por outro lado, o movimento cineclubista preferia uma estratégia de “colectivização“ do cinema em vez da sua “estatização“ ou de qualquer forma de “dirigismo cultural“ (Ibidem). Os dois principais cineclubes lisboetas, o ABC e o Imagem, talvez pela proximidade em relação ao centro de decisão do poder político e de algum prestígio histórico, assumiram uma posição mais interventiva no debate acerca do cinema no pós-25 de Abril. Outros cineclubes igualmente históricos e com um passado de resistência, como o do Porto, mantiveram uma intervenção activa, mas aparentemente menos mediática no plano político. O ABC, e particularmente o seu dirigente Manuel Neves, seria acusado de se assumir ilegitimamente como representante dos cineclubes, condição que lhe permitiria ser nomeado para a comissão de redacção da nova lei e para o Grupo de Trabalho do IPC (Idem, 5, VIII-1975: 19). É o próprio Manuel Neves quem esclarece o sucedido, em entrevista a José Filipe Costa (2014: 134-137): “Fui nomeado para a Comissão Consultiva das Atividades Cinematográficas em representação dos cineclubes do Sul. O processo foi complicado. Fui contestado por parte do cineclube Universitário. Eu era conotado com determinada tendência política, eles estavam do lado do MRPP e eu era conotado com o PCP. As pessoas sabiam que o cineclube ABC, aliás como muitos outros cineclubes, eram influenciados por pessoas ligadas ao PCP ou próximas do PCP. (...) Só mais tarde o meu nome foi contestado, mas isso é inseparável do processo das Unidades de Produção. Depois, de entre os elementos da Comissão Consultiva, onde estavam representados distribuidores, comissão etária, cineclubes, enfim, onde todas as organizações e instâncias relacionadas com o cinema, do ponto de vista económico, administrativo e cultural, fui eleito para um grupo de trabalho que acompanharia as modificações necessárias no IPC e aprovaria o plano de produção de 75. (...) Os problemas só se começaram a pôr no concreto quando se começou a tentar construir o edifício que resultava das discussões da Comissão e dos encontros que se foram organizando. Por exemplo, em encontro com cineastas - um até foi num fim-de-semana no hotel das Arribas, na Praia Grande - essas pessoas foram discutindo com alguns membros do grupo de trabalho esse edifício das Unidades de Produção. Mas a dado momento criou-se uma situação de rutura com a aprovação do plano de 75. Isto porque havia pressões várias sobre o próprio ministro Correia Jesuíno e sobre o Diretor Geral dos espetáculos, Vasco Pinto Leite, no sentido de excluir uns projetos em detrimento de outros. Até publiquei um artigo no Século que revelava a extensão do apoio pedido no conjunto dos projetos, que era 292 qualquer coisa como 800 mil contos. Era preciso excluir e o critério que se seguiu tinha a ver com a situação que se vivia na época. Tentou-se encontrar pontos de equilíbrio em termos de produção, porque, entretanto, há um fenómeno de que as pessoas se esqueceram que era a paralisia do cinema publicitário. Esta gente caiu toda no IPC e havia que resolver a situação. Eram pessoas suscetíveis de serem reconvertidas profissionalmente. (...)“ À semelhança do país, o Verão de 1975 também foi muito agitado no seio do movimento cineclubista: o Cineclube do Porto marca o II Encontro do Cinema Português, para se realizar entre 20-22 de Junho de 1975; no entanto, sem reunir consensos, o encontro é adiado pela organização do Porto; por sugestão do crítico de cinema Camacho Costa, que via urgência em debater vários assuntos, o encontro é remarcado para as Caldas da Rainha, e realiza-se a 27, 28 e 29 de Junho, reunindo diversas pessoas ligadas à produção, à crítica, à política e ao movimento cineclubista. Nessa reunião, é aprovada uma moção para retirar a confiança associativa a Manuel Neves do ABC enquanto representante dos cineclubes portugueses (Cineclube, 5, VIII1975: 12). O encontro organizado pelo Cineclube do Porto, previsto para Junho, realizar-seia nos dias 5 e 6 de Julho, mas a adesão dos profissionais do sector foi muito reduzida. Apenas marcaram presença seis cineclubes (o organizador, ABC, Universitário de Lisboa, Imagem, Coimbra e Barreiro), dois críticos de cinema (Machado da Luz e Roma Torres), alguns técnicos e figuras ligadas ao IPC e alguns cineclubistas. Apesar disso, foi aprovada por unanimidade uma proposta de realização de um Congresso Nacional das Actividades Cinematográficas como forma de ultrapassar os diferendos surgidos recentemente no seio do movimento cineclubista e do sector cinematográfico em geral (Ibidem: 31-32). Semanas depois, o VI Encontro Nacional de Cineclubes teria lugar em Vila Franca de Xira, a 19 e 20 de Julho. Em cima da mesa, entre outros assuntos mais genéricos, estaria o caso de Manuel Neves e da representação do movimento cineclubista. Pouco concorrido, apenas se fizeram representar os organizadores (Vilafranquense, Universitário de Lisboa) e os cineclubes Católico de Lisboa, Viseu e Torres Vedras) (Ibidem: 46-47), mas nesse encontro seria constituído um Secretariado Nacional Provisório de Cineclubes, composto inicialmente pelo Vilafranquense, Católico e Universitário de Lisboa mas aberto a todos os potenciais interessados, que se propunha a “ligar os cineclubes enquanto organizações culturais de massas aos órgãos de vontade popular“, “promover o contacto e colaboração a nível nacional e regional“ e 293 “incrementar o aparecimento de novos cineclubes por todo o país (...) e incentivar o aparecimento de secções de cinema em todas as colectividades populares, clubes de bairro, etc.“ (Idem, 6/7, X-XII-1975: 53-54) A 30 de Maio de 1976, o Cineclube de Torres Vedras convocou o VIII Encontro Nacional dos Cineclubes para os dias 23-25 de Julho, ao qual compareceram apenas representantes de sete cineclubes (Faro, ABC, Barreiro, Figueira da Foz, Torres Vedras, Universitário de Lisboa e Católico). O biénio 1975-76 foi particularmente negativo para o movimento associativo, e com consequência significativa para o futuro: “(...) A partir de 1975, os cineclubes estão ainda mais dispersos e enfraquecidos. Nenhum esforço persistente e empenhado foi feito para reatar o Encontro de Aveiro com vista à criação (ou recuperação) de uma Federação, coisa que exigia, também, diligências paralelas, a nível governamental, no sentido de se revogar o Decreto-Lei do anterior regime que criava a Federação Portuguesa dos Cineclubes, ou se lhe introduzir as emendas necessárias e imprescindíveis. Paradoxalmente, os cineclubes, em vez de procurarem unir-se, naquilo que tinham de propósitos comuns, isolaram-se, silenciaram, antagonizaram-se... e deixaram-se levar por influências partidárias.“ (Idem, 12/13, X/XII-1976: 5) Como sublinha Marta Ribeiro (2012: VII), a criação do Cineclube do Norte, em Abril de 1977, “representa a alteração nas dinâmicas culturais cineclubistas no período pós 25 de Abril de 74“. A origem do Cineclube do Norte está relacionada com a forte pressão exercida pelo PCP sobre o Cineclube do Porto e com o consequente afastamento do histórico dirigente Alves Costa da direcção. Nascido de uma dissidência política no seio do Cineclube do Porto, e visto que só seria formal e legalmente reconhecido em Junho de 1978, teve um primeiro ano de actividade com várias limitações, mas desempenhou uma importante acção de promoção da cultura cinematográfica e de divulgação do cinema português (Ibidem: 49-51). Mais importante e determinantes ainda seria a acção do Cineclube do Norte na criação da renovada Federação Portuguesa de Cineclubes, sendo seu membro fundador e mantendo-se na direcção durante vários anos (Ibidem: 53). Este caso da criação do Cineclube do Norte e da cisão vivida no seio do mais histórico cineclube português é um exemplo esclarecedor do tipo de vulnerabilidades e instabilidades vividas no movimento cineclubista durante este período. Apesar das divisões, o movimento ia crescendo com a criação de novos cineclubes: Bento de Jesus Caraça e Racal (Sines) em 1974; Movimento (Lisboa) e Vila Franca de Xira em 1975; 294 Nascente (Espinho) em 1976; o de Leiria e o de Braga reaparecem em 1977 e são criados o Cineclube do Norte (Porto) e o de Lamego; Cineclube da Ilha Terceira e Octopus (Póvoa de Varzim) em 1978 (Conceição, 2002: 41-42). Editorialmente, os cineclubes também intensificariam as suas actividades: o Universitário de Lisboa começa a publicação do Cine-Arma (1976-82), fortemente politizado e defensor de “um cinema patriótico, científico e de massas“; o Cineclube do Porto inicia a publicação da revista Cineclube (1974-1985); o Católico de Lisboa lança a revista Panorâmica (1975-1980); em Coimbra, o Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra publica a revista Zoom (1977). O ano de 1977 seria de viragem para o movimento cineclubista. Reunidos no Festival Internacional da Figueira da Foz, 14 cineclubes acertariam algumas agulhas sob o patrocínio do Cineclube do Norte e agendam o IX Encontro Nacional para Espinho, que se realizará em simultâneo com a primeira edição do Cinanima (26 e 27 de Novembro de 1977). Para além de “fechar um ciclo de indecisões em que o cineclubismo português se viu envolvido“, desse Encontro sairia uma Comissão Técnica (formada por representantes dos cineclubes do Norte, Nascente e Universitário de Lisboa) com a missão de reunir apoios para a criação de uma Federação nacional (Cineclube, 21/22, IV1979: 6-7). Em 1978, depois de mais reuniões de trabalho em Lisboa (21-22 de Janeiro) e Coimbra (11-12 de Fevereiro), envolvendo diversos cineclubes na elaboração e discussão dos estatutos da futura estrutura federativa, os estatutos da Federação Portuguesa de Cineclubes seriam aprovados no Porto, nos dias 25 e 26 de Fevereiro. A 15 de Abril é reconhecida a existência legal e os primeiros órgãos foram eleitos no dia 17 de Junho123 e empossados um mês mais tarde (Ibidem: 7). A criação da Federação Portuguesa de Cineclubes, representando 27 organismos e mais de 20 mil sócios (Dionísio, 1994: 309), foi um momento crucial para agrupar um movimento cineclubista que mostrava ainda grande vitalidade: contavam-se então em Portugal um total de 30 cineclubes (27 inscritos na FPCC), mais dois em formação (Sintra e Barcelos) e vários outros com perspectivas de formação (Católico de Oeiras, Católico de Paço de Arcos, Católico de Carcavelos e Católico do Estoril) (Cineclube, 21/22, IV-1979: 8). Em Dezembro de 1978, os cineclubes em actividade eram já 35, razoavelmente distribuídos pelo território nacional (12 na zona norte, 11 na centro e sul 123 Assembleia geral: Presidente - Faro, Vice-Presidente - Torres Vedras, Secretário - Guimarães; Direcção Nascente, Porto, Imagem, Norte, Católico, Universitário de Lisboa e Santarém; Conselho Fiscal: Presidente - CEC (Coimbra), Secretário - Vilafranquense, Relator - Ilha Terceira. 295 e 1 nas ilhas), mas com maior incidência nos espaços fortemente industrializados (29) e no litoral do país (31) (Idem, 20, XII-1978: 3) Luís de Pina achava que a situação do movimento cineclubista havia-se alterado substancialmente no pós-25 de Abril: “Mas a explosão cultural desordenada nascida de Abril teve outras consequências. Paradoxalmente, o movimento cineclubista, dispondo agora de uma Federação eleita em plena liberdade, destruídos os condicionalismos censórios, perdeu quase toda a sua influência cultural anterior, pois o público dispõe neste momento de muitas outras alternativas de formação, desde os programas de cinema da RTP às videocassetes, desde os ciclos retrospectivos da Cinemateca Portuguesa, da Fundação Gulbenkian e de outras instituições aos numerosos festivais e certames cinematográficos que se organizam um pouco por todo o País, passando pelo próprio desgaste da velha fórmula de acção cineclubista, que encontra dificuldades cada vez maiores de programação em vários níveis.“ Pina, 1986: 206 De facto, as condições do mercado afastavam cada vez mais os cineclubes das projecções em película de 35mm, empurrando o circuito de exibição cineclubista para uma posição marginal e pouco atractiva para a adesão de novos associados. O momento histórico era outro e o fim da censura e da repressão política e a consequente perda de importância na oposição cultural ao regime ditatorial recolocaram o movimento cineclubista num lugar de menor influência na sociedade portuguesa. Durante os anos do PREC, uma das alternativas à disposição de vários cineclubes portugueses seriam as cedências de cópia de filmes de diversas cinematográficas estrangeiras, nomeadamente dos países do bloco socialista (Polónia, Bulgária, URSS, RDA, Checoslováquia, entre outros), através das suas embaixadas em Lisboa, numa programação marcada “por forte tendência ideológica“ (Simões, 1996: 67), que acabaria por agravar ainda mais a perda gradual de público. Nos anos seguintes, como resume Natália Casqueira (1997: 89-91), a crise agravarse-ia: “A crise dos cineclubes, que acompanhou o próprio processo de crise do cinema ao longo da década de 80, com a diminuição do número de salas de exibição e do número de espectadores, acabou por revelar a vivência de situações particulares, de contextos sócioculturais específicos e de limitações materiais e humanas muito próprias dos cineclubes locais, mas que espelhavam, numa dimensão mais ampla, a insularidade cultural de algumas franjas temáticas e formais do cinema nos circuitos da criação/produção/difusão e nos espaços de recepção/consumo culturais. (...) A crise do cineclubismo aparece, assim, contextualizada no seio da crise mais global do associativismo cultural que, aliada à perda da centralidade cultural e do poder de mobilização do cinema no universo 296 das práticas culturais dos indivíduos/grupos e à banalização dos modos de recepção do filme (vídeo e televisão), tornam a prática cineclubística uma prática confrontada com modalidades e graus de participação associativas decrescentes e/ou estagnadas. (...) Perante a insuficiência dos meios e a relativa eficácia cultural das estratégias cineclubísticas, pode pensar-se que os cineclubes 'deixaram de funcionar como memória do cinema para passarem a ser, também eles, um lugar de amnésia ou tão só de gestão da memória de um presente fugidio'. (...)“ Ao longo do período aqui em análise, o movimento cineclubista, apesar de todas as contrariedade e repressões, exerceu uma influência incalculável na mudança de paradigmas no cinema português. Ainda que não directamente produzisse cinema, com a excepção de cinema de formato reduzido como tentarei demonstrar de seguida, o movimento cineclubista foi, em Portugal, “uma certa forma de crítica“ (Barroso, 2002: 97-100) que se manifestava sobretudo na sua programação mas também nas suas publicações. O cineclubismo contribui de forma significativa para alterar a forma de ver e entender o cinema em Portugal durante as décadas de 50-70, como André Bazin (apud Granja, 2008: 425) o reconheceu bem cedo, ao ponto de falar de uma "espantosa revolução" que foi operada em vários países por esse movimento. 3.3. Cinema de amadores Em 1955, durante o encontro de Angers (França), a UNICA definiu como cinema amador ou não-profissional toda a “obra criada por indivíduos ou grupos de indivíduos que não trabalham com fins lucrativos ou financeiros“. Quatro anos mais tarde, a Comissão Coordenadora do Cinema de Amador acrescentava ainda que todo o filme “que tenha sido objecto de uma retribuição directa ou indirecta, ou que ulteriormente aceite transação comercial“ perderia a classificação de filme amador. Entre os filmes de amadores podem identificar-se diversos tipos ou géneros: filmes de família, caseiros, domésticos, experimentais, de viagem, de férias, entre muitos outros. No entanto, o que me interessa e o que me ocupará aqui nas próximas páginas não é tanto a simples produção de cinema feita por não-profissionais, mas sobretudo a produção de cinema feito por cineastas amadores destinada à exibição pública, ainda que enquadrada em um circuito alternativo de circulação. Interessa-me identificar e 297 documentar o processo de produção e circulação de filmes de cineastas amadores, assim como a cultura cinematográfica e cinéfila associada aos seus praticantes e espectadores. O crescimento do cinema de amadores ou cinema de formato reduzido, como era mais popularmente designado à época, foi de tal forma impressionante durante a década de 50 e 60 que mereceu uma atenção e estatuto especiais na elaboração da lei 7/71. Pela limitação de recursos humanos e financeiros, os cineastas amadores trabalhavam essencialmente com película de formato reduzido (8mm, 9,5mm, 16mm), em filmes de curta-metragem e em registo documental. O cinema de amadores foi um circuito de produção e exibição alternativo que se expandiu incrivelmente desde meados dos anos 50. Organizados em associações locais, e posteriormente na Federação Nacional de Cinema de Amadores (1968), inúmeros cineastas amadores conseguiram notória visibilidade nacional e internacional desde finais dos anos 50 através da criação de um circuito nacional e internacional de festivais de cinema de amadores, estrategicamente apoiado pela UNICA que, já em 1954, havia organizado o seu congresso anual em Lisboa e que regressaria a Portugal em 1972, ao Estoril. Ao longo das décadas, várias figuras e instituições em muito contribuíram para o reconhecimento artístico e cultural do cinema de amadores: Vasco Branco, Vasco Pinto Leite, Centro de Cinema Experimental do Cineclube do Porto, Clube Português de Cinema de Amadores de Lisboa, entre outros. Este grupo de cineastas também era também animado por uma das mais antigas publicações cinematográficas portuguesas, a Cinema de Amadores, editada pela Pathé Baby Portugal. Apesar de ser um projecto editorial com um propósito comercial bem definido, a revista servia à época como um importante meio de comunicação entre cineastas amadores de vários pontos do país, das antigas colónias ultramarinas e até de outros países europeus. Hoje, essa publicação é ainda mais importante enquanto repositório documental que cobre detalhadamente uma temática então pouco valorizada e portanto algo marginalizada, revelando-se fundamental, como se verá nas próximas páginas, para estabelecer uma cronologia e uma arqueologia deste fenómeno. A criação, em Junho de 1938, pela Pathé Baby Portugal, de um importante concurso nacional teria um impacto importante na expansão do cinema de formato reduzido. O Concurso do Melhor Filmes de Amador de 9,5mm, apesar de acolhido com certa reserva pelos cineastas amadores que não estavam “habituados a competições“, foi um “verdadeiro sucesso“. A segunda edição seria organizada em 1940 e a terceira em 298 1943, esta que já passou a incluir os restantes formatos de amador, 8mm e 16mm.124 Nestas primeiras edições, entre os premiados surgem já nomes que se destacariam nas décadas seguintes (Mateus Júnior) e que até passariam ao cinema profissional (Carlos Tudela). (Cinema de Amadores, II-1946: 6). As origens do cinema de amadores em Portugal remonta aos anos 30, mas só na década de 1950 é que o fenómeno atingiria um maior mediatismo e uma alcance nacional. O decréscimo de actividade verificado até meados da década de 40 estava relacionado com a falta de “filme virgem“, por consequência da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, findo o conflito, o fornecimento de película 9,5mm foi restabelecido e a produção recuperou após uma estagnação de cerca de 4 anos (Ibidem: 5). Entretanto, no resto do país também se fez sentir as consequências da guerra, ao ponto da Pathé Baby Portugal ter decidido suspender o concurso nacional para filmes de amadores em alguns dos anos do conflito. Em Lisboa, o Clube Português de Cinema de Amadores também se vira obrigado a suspender as suas actividades por falta de acesso à película e por dificuldades sentidas na manutenção dos equipamentos durante o período da Segunda Guerra Mundial (Idem, X-1946: 113). Este lisboeta Clube Português de Cinema de Amadores foi o grande pioneiro deste fenómeno em Portugal, tendo sido inclusive o primeiro representante português nos eventos da UNICA. Secção da Sociedade de Propaganda de Portugal, também conhecida como Touring Club de Portugal, uma entidade privada fundada em 1906 com intuitos de promover a pratica turística, o Clube Português de Cinema de Amadores começou por organizar as primeiras sessões públicas de exibição de filmes de amadores. Mas, na transição para os anos 40, o Porto assistiu à formação de um importante núcleo de produção e exibição de cinema de amadores: “Foi sem dúvida interessante a actividade dos amadores de cinema, no Norte, durante o sombrio ano de 1939, data em que as iniciativas esporádicas começaram precisamente a dar lugar a realizações sob alicerces sensivelmente definidos e duma apreciável continuidade. Com o início das hostilidades, longe de afrouxar, as realizações dos amadores de cinema multiplicaram-se: O 'Condor Cine Clube', a 'Ada', a 'S.F.A.', a 'I.F.A.' e os irmãos Barros, de parceria com Francisco Pais, movimentavam então a capital do Norte (...)“ (Idem, II-1946: 5) A criação do Clube Português de Cinematografia/Cineclube do Porto também foi muito importante para os cineastas amadores porque inscrevia nos seus objetivos a 124 A Pathé Baby Portugal organizaria ainda uma 4.ª edição em 1946 e uma 5.ª em 1948. Depois de um longo interregno, a 6.ª edição seria organizada em 1957. 299 produção de filmes em 8mm, 9,5mm e 16mm e porque acolhei no seu seio vários cineastas amadores vindos de outras estruturas precedentes, como António Lopes Fernandes e Augusto Romariz da 'Ada' ou Manuel Ferraz da 'S.F.A.' (Ibidem: 11). Logo em Março de 1946, o Cineclube do Porto anunciava um ambicioso programa de produção com vários filmes: Sonhos de Férias (16mm) de Hipólito Duarte (presidente da direcção); Fui ver a Primavera (9,5mm) de António Lopes Fernandes; Rapsódia Urbana (9,5mm) de Augusto Romariz; uma película sobre a Casa do Gaiato e o Padre Américo de Manuel Ferraz; Beira Mar de Valverde; e “uma película de bonecos animados“ de Jorge Tavares (Idem, III-1946: 22-23) A partir de Abril desse mesmo ano, com a adesão ao grupo do profissional Fernando Neves, o Cineclube do Porto passou a dispor também de uma câmara de 35mm (Idem, IV-1946: 31). O tempo era de expansão e optimismo para os cineastas amadores e para os cineclubistas do Porto, mas Guilherme Ramos Pereira alertava que, para além da causa comum — cinema —, os interesses e as necessidades de cineastas amadores e cineclubistas eram distintos e seria necessário atender a alguns cuidados para que pudesse haver uma coexistência pacífica (Ibidem: 30-31). Talvez a criação, anos mais tarde, da secção de cinema experimental do Cineclube do Porto, especializada em cinema de amadores, tenha sido uma solução para conciliar os diferentes interesses e necessidades. À semelhança do que aconteceu em torno do Cineclube do Porto, também o cineclube Belcine foi uma estrutura importante para a consolidação e desenvolvimento da prática de cinema de amadores na região da Parede e nas zonas envolventes. De facto, a actividade de cinema de amadores era inclusive mais importante no seio da associação do que a própria prática cineclubista, propondo-se ser “uma verdadeira escola onde os interessados possam dispor de materiais para completar na prática os conhecimentos que possam adquiri na teoria“ (Idem, V-1946: 45).No entanto, à semelhança de alguns clubes de cinema de amadores que o antecederam, o Belcine percebeu desde cedo que não poderia ser apenas um clube de cinema de amadores porque necessitaria de uma massa associativa numerosa para sobreviver e para se estabelecer (Ibidem: 46). E aqui reside outra diferença fundamental entre os cineastas amadores e os cineclubistas: apesar de um crescimento verificado no pós-Segunda Guerra Mundial, o fenómeno de cinema de amadores nunca se constituiu uma movimento de massas como o cineclubismo, nem sequer pode ser entendido como um movimento, apesar de haver 300 algum contacto e até coordenação de esforços entre cineastas amadores de vários pontos do país. No entanto, parece-me ser um fenómeno que poderia mobilizar apenas entre uma a duas centenas de entusiastas mas nunca os cerca de 20 mil associados que o movimento cineclubista chegou a agregar, por varias razões, nomeadamente a falta de condições financeiras indispensáveis para a aquisição de equipamento e de película e também de conhecimentos técnicos específicos.125 Só nos anos 60, depois de uma proliferação de festivais de cinema amador, é que se poderá começar a falar de um movimento de cinema amador, mas ainda assim nunca comparável quantitativamente ao que movimentou o cineclubismo. Paulo Jorge Granja (2007: 368) documenta , já no início da década de 1930, de um curioso debate acerca desta questão: “Aparentemente, os cinéfilos, nada queriam com os intelectuais, mas encorajados pela realização dos primeiros fonofilmes portugueses, muitos tentariam criar clubes de cinema de amador, pensando assim conseguir um passaporte para o estrelato do mundo do cinema. Entre 1931, data em que se criara a Secção de Cinematografia no Grémio Português de Fotografia, e 1933, ano em que surgiria o Grupo Único dos Amadores de Cinema em Portugal, vários grupos de cinéfilos propor-se-iam criar associações destinadas à produção de filmes. Em 1934, Aguinaldo Machado, na Invicta-Cine, resumia assim, depreciativamente, os seus objectivos: 'dar satisfação à vaidade de meia dúzia de cinéfilos pretensiosos e inconsistentes'. As poucas propostas de clubes apostados na exibição, surgidas ate 1933, não teriam mais sorte do que as anteriores. Daí que, em finais de 1933, o crítico João Santos propusesse na Invicta-Cine, a organização de uma Sociedade Portuguesa de Cinematografia, que, inspirada nas sociedades científicas, teria apenas 40 sócios: 'tantos quantos os 'imortais' da Academia das Ciências. A rejeição do modelo associativo reflectiria a apreciação negativa do autor em relação à actuação dos cineclubes, mas também não deixaria de relacionar-se com a rejeição da cinefilia dominante entre o 'grande público' e os clubes de cinema, como o revelava num artigo em que afirmava ser o 'cinéfilo português 'uma figura ridícula e absurda que só inspira comiseração e piedade,,,'“ Por outro lado, cineclubistas como Jorge Pelayo, dirigente do Belcine nos anos 40 e futuro funcionário do SNI, que nas páginas da revista Visor (4-XII-1956: 7) esclareciam cabalmente que “um cine-clube não é um clube de cinema de amadores, mas de amadores de cinema, agrupando assim os que admiram o cinema com o espectáculo 125 “Actualmente, pode-se computar cem algumas centenas, o número de praticantes do ciné-amadorismo que, na nossa terra, manejam com apreciável desembaraço uma câmara de filmar. Fazemos este cálculo baseados no que nos tem sido dado ver, e neste total incluímos apenas os autores de fotografia de razoável nível técnico, aos quais se pode dar já com justiça o título de amadores de cinema.“ (Cinema de Amadores, X/XI-1958: 1620) 301 construído por outrém“, sem pretensões de “fabricar“ o seu próprio cinema. Paulo Jorge Granja (2007: 373) sublinha que a questão continuava a ser sensível e a “gerar polémica“ entre os clubes de amadores e os cineclubes: os primeiros viam os segundos enquanto “clubesitos“ de jovens cinéfilos “romanticamente apaixonados pelas 'vedetas'“. Em 1954, um texto do ABC era particularmente provocador na descrição do que esses cineclubistas achavam dos clubes de cineastas amadores: “Estes clubes de amadores de cinema estão para o grande público como os conventos para o mundo católico, Ali só entram os iniciados ou os que sentem vocação para prosélitos“ (apud Ibidem: 376). Entretanto, em Lisboa, em Janeiro de 1946 era criada a União de Cineastas Amadores, uma associação dirigida pelo cineasta amador Jorge Rocha, que logo começara a organizar sessões de filmes em 9,5mm para o público lisboeta interessado (Cinema de Amadores: V-1946: 55). Em 1947, também em Lisboa, seria criado o Pathé Clube Português, recuperando uma ideia que nascera antes da Segunda Guerra Mundial, que se propunha “reunir todos os amadores de cinema trabalhando em qualquer formato, bem como os amadores da fotografia“ (Idem, II/III-1947: 40). Outro importante núcleo de produção de cinema de amadores em Lisboa era a Ideal Filmes, uma produtora amadores de filmes em formato reduzida que existia já desde Janeiro de 1944 e contava entre os seus elementos, entre outros, Sebastião Peixoto e Alípio Alves Rodrigues (Idem, VIII-1946: 86-90), portanto em moldes diferentes das restantes associações ou cineclubes existentes à época. Sensivelmente por esta altura, em Lisboa, o Clube Português de Cinema de Amadores, presidido pelo “Dr. António de Menezes“ e contando também como dirigente com o “Engenheiro Frederico Oom“ e o “Arq. Mateus Júnior“ (Idem, X-1946: 113) era o mais importante pólo dinamizador do território nacional. O uso dos títulos académicos Doutor, Engenheiro ou Arquitecto pela publicação é um bom exemplo do estrato sócioeconómico predominante entre os cineastas amadores. No mês anterior, o editorial da mesma publicação (Idem, IX-1946: 97) referia-se às pessoas que demonstravam interesse pela prática mas não tinham condições financeiras para a mesma: “(...) Se bem que a causa principal seja a falta de meios materiais ou, para falar com mais clareza, assente no nível muito baixo dos ordenados dos empregados de carreira, caixeiros e operários que constituem as camadas onde pululam os 'simpatizantes' (...)“. 302 Por outro lado, esta ligação muito próxima entre cineastas amadores e cineclubismo também poderia trazer problemas de outra natureza, nomeadamente políticos. Invariavelmente, por mais distantes que pudessem estar de objectivos ideológicos, sempre que a perseguição política e a repressão aumentava sobre o movimento cineclubista, os núcleos de cinema de amadores também seriam vigiados e incomodados. No entanto, havia casos excepcionais que fugiam a esta regra, como a Secção de Cinema da Câmara Municipal de Lisboa, que tinha como principal objectivo “constituir uma cinemateca onde serão arquivados todas as mais importantes realizações da CML, que assim terá o seu arquivo cinematográfico“ (Idem, VI/VII-1949: 287) Dirigida pelo arquitecto Mateus Júnior e por José Espinho, esta secção organizou a sua primeira sessão pública em Junho de 1949, três meses após a sua criação, onde foi exibido o primeiro filme da secção, um filme sobre o bairro de Alvalade (Ibidem).126 Em apenas três anos de actividade, esta secção produziu 20 filmes e organizou 1.381 sessões pública às quais assistiram quase meio milhão de espectadores: Tabela n.º 33 Sessões de cinema de amadores organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa entre 1949 e 1952 (fonte: compilado a partir de Cinema de Amadores, X/XI-1952: 729-731) Sessões Espectadores Pavilhão dos Desportos 1950 1951 1952 Subtotal 150 165 114 429 45.080 49.600 34.200 128.880 Bairro Doutor Oliveira Salazar (Alvito) 1951 1952 Subtotal 31 35 66 6.100 7.000 13.100 Quinta das Furnas e da Boa Vista Furnas Boa Vista Subtotal 31 35 66 10.500 11.300 21.800 Feira Popular 126 Entre outros filmes previstos, contam-se reportagens sobre a visita do General De Gaulle a Lisboa, a demolição do Arco de Santana e da Praça da Figueira, todos exclusivamente em formato reduzido. 303 1949 1950 1951 1952 Subtotal 160 284 262 114 820 48.000 102.523 95.400 73.200 319.123 Total 1.381 428.903 A partir de 1953, é o próprio SNI quem se associa na organização sessões pontuais com filmes de amadores. A cedência da sala para a realização da sessão no Palácio Foz, a 27 de Março de 1953, numa iniciativa do Clube Português de Cinema de Amadores (Idem, II/III-1953: 780-782), constituiu um momento simbólico no reconhecimento da importância social e cultural desta prática cinematográfica, mas também um sinal de que o SNI estava atento às actividades cada vez mais mediáticas. Um anos e alguns meses antes, já Gonzalez de Castro, um cineasta amador ouvido num inquérito sobre a sua actividade e as perspectivas futuras para o cinema de amadores em Portugal, acreditava que seria fundamental que o reconhecimento público do SNI a essa prática se fizesse sobre a forma da instituição de prémios oficiais (Idem, XII-1951: 494) Em 1953, um editorial da revista Cinema de Amadores (VIII/IX-1953: 842-843) recuperava essa medida como um “estímulo necessário“ que o poder político poderia prestar à prática cinematográfica amadora, assim como “facilidades para importação temporária de filmes estrangeiros de amadores (sistema de permuta)“ e a “cedência de sala de cinema do SNI para a realização de sessões de filmes de amadores“. A partir de meados dos anos 50, o SNI passou a ter um membro no júri do maior concurso de cinema de amadores nacional, o Concurso Nacional de Filmes de Amadores organizado pelo Clube Português de Cinema de Amadores (Idem, VI/VII-1956: 1285). Para aumentar ainda mais a preocupação da censura e da polícia política, rapidamente os filmes de amadores portugueses começaram a circular internacionalmente. Ainda antes dos grandes certames da especialidade, os primeiros filmes portugueses a ser exibidos fora do país começaram a circular de uma forma informal, sempre que algum cineasta amador mais endinheirado o pudesse fazer. Em Abril de 1949, a revista Cinema de Amadores (IV/V-1949: 243-244) noticiava que o cineasta amador Alberto Schmidt esteve em digressão pela Suíça e “não quis perder a oportunidade de levar consigo alguns filmes de autores portugueses [do próprio Schmidt, Celestino Teixeira, Luís Mateus, Álvaro Antunes e Carlos Tudela], que fez exibir naquele país amigo, perante praticantes e entidades conhecedoras do assunto“. 304 Curiosamente, no número de Outubro da mesma publicação, um “leitor assíduo“ questionava-se: “Porque razão não mandámos Filmes Portugueses ao Concurso Internacional de 1949?“ A pergunta assumia contornos de escândalo e indignação com a resposta: apesar de Portugal ser membro da mais importante organização internacional de cinema de amadores, “em virtude de não ser possível a deslocação de um amador português a Cannes (?), foi a representação de Portugal entregue, a pedido de favor, ao representante espanhol.“ (Idem, X/XI-1949: 324-325) Coincidência ou não, em Agosto de 1950, a revista Cinema de Amadores noticiava que Portugal iria estar representado no XII Concurso Internacional de Cinema de Amadores organizado pela UNICA, que se realizaria no Luxemburgo: “(...) a Direcção do Clube Português de Cinema de Amadores, resolvera enviar ao Concurso Internacional do Luxemburgo, os filmes portugueses 'Assim é a Vida', de Álvaro Antunes, e 'Mau Caminho', de Carlos Tudela. Soubemos depois que os referidos filmes seriam levados por mão própria, e que o seu portador seria Álvaro Antunes. (...) — Digo-lhe sinceramente que o faço com prejuízo dos meus afazeres particulares, mas a Direcção do Clube tinha resolvido, e muito bem, apreciadas maduramente as vantagens que de aí adviriam para o cinema de amadores português, enviar filmes nacionais e estar presente na pessoa de um seu membro directivo não só no Concurso Internacional como no Congresso também Internacional que será levado a efeito na mesma data. — De facto, em nossa opinião achamos que o Clube Português de Cinema de Amadores, reconhecido pela União Internacional (UNICA) como representante dos amadores cineastas, de Portugal, não deve fugir à obrigação moral que tem de estar presente nas reuniões em que comparticipem outros países também praticantes desta modalidade de cinema. Não apenas para testemunhar o que ali se passa, mas sobretudo para que a sua voz seja ouvida e a sua presença seja sentida através de uma boa representação cinematográfica (...)“ (Idem, VIII/IX-1950: 446-447).127 A UNICA (Union Internationale du Cinéma Non Professionnel) foi a mais importante federação internacional de cineastas de amadores, mas existiam outras, como a Intercontinental Cine-Amateus League (ICAL), sedeada em Milão, ou a Union des Cineastes Amateus Huististes Mondiaux (UCAHM). Fundada em 1937, durante a Feira Mundial de Paris (França), a UNICA começou a organizar os seus encontros anuais a partir de 1931 (antes mesmo da sua instituição formal) em várias cidades europeias, excepção feita entre 1940 e 1945, por causa da Segunda Guerra Mundial, em que a 127 Entre 11 países participantes, Portugal conquistou um 8.º lugar com Assim é a Vida e um 10.º com Mau Caminho, assegurando um 7.º lugar na classificação geral final. 305 UNICA viveu em algum sobressalto e suspendeu temporariamente a organização do seu encontro nesses anos. A primeira participação portuguesa neste importante concurso acontecera em Maio de 1935, aquando da realização do IV Concurso que teve lugar em Barcelona. Portugal marcaria presença novamente na edição de 1936, em Berlim, na de 1939, em Zurique (Suíça), na de 1948, em Estocolmo (Suécia) e na de 1949, que se realizou em Capo dei Fiori (Itália). Até esse ano, Portugal participara em 5 dos 11 concursos organizados pela UNICA, uma presença modesta que seria contrariada na década seguinte (Idem, XII-1953/I-1954: 906-907). Apostados numa lógica de internacionalização, muito ligada à expansão do sector do turismo, em 1952 é organizado em Portugal o primeiro festival internacional do filme amador, no caso no Estoril. Promovido pela Sociedade de Propaganda da Costa do Sol e pelo Clube Português de Cinema de Amadores, esta primeira edição seria um fracasso nos seus intentos porque só apresentaram filmes a concurso cineastas portugueses (Idem, VIII/IX-1952: 708-709). Apesar disso, é de salientar mais este esforço no sentido da internacionalização do cinema de amadores portugueses. Dois anos depois, em 1954, Portugal acolhia os importantes XVI Concurso e XIII Congresso Internacional da UNICA, numa organização local do Clube Português de Cinema de Amadores que contaria com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do SNI, “onde o Cinema de Amadores conta bons e valiosos amigos, prontos a facilitar a sua tarefa“ (Idem, XII-1953/I-1954: 890-891). Evento mediático e de enorme repercussão internacional, quer na imprensa da especialidade como na generalista, esta organização foi determinante para a própria afirmação e reconhecimento do cinema de amadores portugueses junto do poder político como dos próprios pares internacionais. De tal modo, que nesse mesmo ano, Álvaro Antunes, cineasta amador e antigo dirigente do Clube Português de Cinema de Amadores seria presidente da UNICA para o biénio 1953-54 (Idem, VI/VII-1954: 962). Potenciado por estas actividades de caria internacional, gradualmente, o cinema de amadores tornava-se um fenómenos com mais praticantes e mais presente na sociedade, ao ponto de haver mesmo quem sugerisse a criação de secções de cinema para amadores nas delegações provinciais da Mocidade Portuguesa, dotadas de estúdios experimentais, para formar amadores interessados em tornar-se profissionais de cinema (Idem, II/III-1955: 1093). No contexto de “crise“ aparentemente então que se vivia, do ponto de vista do poder político, em que o cinema português era mesmo alvo de 306 intervenção na Assembleia Nacional, pelo deputado Elísio Pimenta, por continuar “a dar lamentáveis provas de incapacidade técnica e artística“, o cinema de amadores começou a ser cogitado em alguns sectores da sociedade como uma espaço de renovação que poderia beneficiar o próprio cinema profissional (Ibidem). Por outro lado, a recente legislação que impunha a classificação etária dos espectáculos públicos, incluindo o cinema, afastava das salas de cinema a maioria das crianças e adolescentes menores de 13 anos, pelo que o circuito de exibição do cinema de amadores poderia suprir essa falha e especializar-se na exibição de cinema cultural e educativo (Ibidem: 1094). Mas o cinema amador também era dado como um potencial parceiro para o ensino superior. Por exemplo, em vários hospitais era já possível proceder à filmagem, em formato reduzido, de diversos procedimentos cirúrgicos que depois poderiam ser utilizados em congressos médicos da especialidade ou mesmo em contexto de formação universitário de novos médicos (Idem, XII-1953/I-1954: 897). Neste sentido, à semelhança do que já fizera a Câmara Municipal de Lisboa, muitas outras entidades públicas vinham promovendo a prática de produção de cinema em formatos não-profissionais: “Compreendendo o vasto alcance da sua serventia posterior, diversas repartições do Estado Português, estabeleceram já serviços de cinema, onde se tem produzido curiosos filmes culturais, a par de valiosos documentários de actividades. Citemos, como exemplo, o Ministério das Obras Públicas, que tem presentemente na sua cinemateca variadíssimas películas documentando a construção de pontes, estradas e barragens, o Ministério do Exército, com o registo de diversos exercícios, exercícios e manobras, a Legião e a Mocidade Portuguesa, com algumas das suas actividades (...). (...) Permita-se-nos a sugestão de uma outra ideia, de dupla vantagem: mais económica — e com possibilidades de satisfazer a todas as 'Casas do Povo'. Seria a centralização do 'Cinema para Trabalhadores', na sede da Junta Central. Esta, adquirindo meia dúzia ou uma dezena de projectores, cedê-los-ia a cada 'Casa', com o respectivo programa de exibição, constituído por filmes da sua cinemateca, a qual, de princípio poderia estar limitada a um pequeno número de produções próprias, obtendo outras por empréstimo ou aluguer (...)“ (Idem, VIII/IX-1953: 845). Outro exemplo apontado como de sucesso desta estratégia de promover um circuito de produção e exibição de filmes educativos seria materializado pela Campanha Nacional de Educação de Adultos, promovido no âmbito do Ministério da Educação Nacional: 307 “Como se sabe, um interessante número de projectores de cinema, estão distribuídos por todo o país num curioso programa de utilização de filmes didácticos, no formato de 16mm, filmes estes que em grande parte tem sido produzidos pelos respectivos serviços da 'Campanha'. Assim, uma das modalidades do Cinema que na nossa revista tem encontrado o mais destacado interesse pela sua expansão, como é o Cinema Educativo, esta a ser adoptada pelo Organismo Nacional incumbido de velar pela instrução pública, e justamente através de um dos seus mais importantes departamentos, que nesse sector está a desenvolver um excelente trabalho de concepção e coordenação de ideias novas que a posteridade assinalará como eficaz e insuperável solução de um antigo e difícil problema nacional.“ (Idem, II/III-1956: 1244) Nestes casos, o exemplo não seria propriamente a produção, uma vez que esta era assegurada por profissionais, mas o modo de circulação destes filmes que poderiam inspirar o cinema de amadores a explorar as suas potencialidades. Para além da produção, o cinema de amadores também era um importante circuito de exibição alternativo, nomeadamente caseiro. Entre filmes para aluguer ou venda, só o catálogo da Pathé Baby Portugal disponibilizava mais de 30 mil títulos, divididos entre as categorias “Mudos“ (vários filmes protagonizados por Charlot), “Sonoros“ (vários títulos da Betty Boop), “Actualidades“, “Cómicos“ e “Desenhos Animados“ (vários títulos do Mickey e Popeye), disponíveis na sede da empresa em Lisboa e na filial portuense (Idem, II-1946: 12). A partir de 1946, os 5 melhores filmes dos concursos de filmes de amadores promovidos pela Pathé Baby Portugal passaram a integrar o catálogo da empresa (Idem, III-1946: 15).128 A 6 de Julho de 1946, a abertura de uma sala especializada em cinema de formato reduzido, a Sala Pathé Baby, propriedade da Pathé Baby Portugal, foi outro momento importante para credibilizar ainda mais o cinema de amadores, ainda mais com sessões semanais de entrada livre, um veiculo fundamental de divulgação de filmes amadores de produção nacional e particularmente da região Norte (Idem, VIII-1946: 93). E claro, a partir de 1957, a RTP passou a ser a obsessão dos cineastas de amadores na luta pelo seu reconhecimento. Domingos Mascarenhas, director da RTP, assegurava, logo nos primeiros meses de emissões que a televisão pública teria “muito prazer em programar filmes de amadores“, nomeando em concreto os casos de filmes dos cineastas amadores Mateus Júnior e Adriano Nazareth e os contactos feitos com o Clube Português 128 Para além da Pathé Baby, a UNICA também dispunha de um catálogo que disponibilizava aos seus associados. A UNICA recebia cópias de filmes que fossem premiados em concursos promovidos por entidades nacionais que fossem membros desta organização internacional (Cinema de Amadores, X-1946: 114). 308 de Cinema de Amadores (Idem, VI/VII-1957: 1436). Entre os projectos futuros, Mascarenhas divulgava também ser intenção da televisão pública estabelecer “uma rede de correspondentes em todo o País, constituída por actuais amadores“ e também a constituição de um arquivo fílmico para repetidas retransmissões de conteúdos que muito poderia beneficiar a divulgação do cinema de amadores (Ibidem: 1440). Ao longo destas primeiras décadas de actividade, mais do que um passatempo, a pratica do cinema de amadores contribui de forma decisivo para o desenvolvimento de uma cultura cinéfila que, a par de movimentos como o neo-realismo e o cineclubismo, alteraram substancialmente a forma de ver cinema durante a década de 50. António de Menezes, histórico cineasta amador, no discurso de abertura do I Festival Internacional do Filme Amador do Estoril, citava os exemplos de Jean Vigo e Robert Flaherty (Idem, VIII/IX-1952: 713) como modelos a seguir por cineastas amadores de Portugal. Ramos Pereira, um cineasta amador do Porto, lembrava o caso de Douro, Faina Fluvial, um filme que passou nas salas de cinema convencionais mas que havia sido feito por dois cineastas amadores (Manuel de Oliveira e António Mendes) “num ambiente de puro amadorismo“, mas servido por “uma grande cultura cinematográfica e um elevado sentido artístico e social“ (Idem, X/XI-1952: 732-733) Ainda que o cinema de amadores tivesse surgido numa lógica mais próxima do turismo e da promoção e divulgação turísticas129, no decorrer dos anos 50 essa prática cinematográfica começou a aproximar-se mais dos debates e torno do cinema educativo e a ficar sob o olhar mais atento do próprio SNI. Apesar do proximidade do movimento cineclubista, a vigilância e repressão ao cinema de amadores por parte das autoridade públicas, nomeadamente o SNI e a PIDE, nunca se assemelharia ao que aconteceu com alguns cineclubes portugueses neste período. 3.3.1. Os casos António Campos e António Reis A criação, em 1958, da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto significou uma mudança de rumo no fenómeno cinematográfico amador em Portugal. 129 “Um dos aspectos mais interessante do cinema de amadores português, é aquele que se verifica na propaganda das paisagens, dos costumes e dos cantares da nossa terra. Os filmes que os nossos cineastas têm enviado às competições estrangeiras, através do Clube Português de Cinema de Amadores, tem despertado um inusitado interessa nos meios onde se exibem. (...)“ (Cinema de Amadores, XII-1958/I1959: 1660). 309 Nos meses e anos seguintes, outros cineclubes seguiriam este exemplo, criando as suas próprias secções de cinema experimental: Centro de Cultura Cinematográfica de Beja, Centro de Estudos Cinematográficos de Coimbra, Cine-Clube de Setúbal, Cine-Clube de Rio Maior e Cine-Clube de Estremoz, só para citar alguns dos casos mais activos. No entanto, apesar de fazer uso da designação de experimental, a produção da generalidade destas secções era muito variada. Se, como penso ter ficado demonstrado nas páginas anteriores, o cinema de amadores de certa forma foi sendo institucionalizado e normalizado dentro de um ideário e de uma estratégia em parte definida pelo SNI e por outras entidades públicas, como a aposta em géneros como o cinema educativo e o filme científico, a criação destas várias secção de cinema experimental valorizava mais os aspectos estéticos e vanguardistas da própria prática cinematográfica amadora. Logo no ano seguinte à sua criação, o Cine-Clube do Porto lançaria a produção do filme Auto da Floripes, iniciativa que seria esclarecedora do tipo de cinema que animava estes amadores em particular. Com produção completamente amadora, o filme dividia-se em duas partes: uma primeira documental sobre a aldeia das Neves, no concelho de Caminha (Minho, Norte de Portugal), comunidade onde era interpretada anualmente, durante a romaria da Senhora das Neves, o Auto da Floripes; a segunda parte do filme regista cinematograficamente, in loco, a representação popular do Auto. Como sublinha Paulo Raposo (1998: 207), este filme insere-se na “vontade de incorporar um olhar quase experimental sobre as soluções performativas populares como objecto artístico, dando voz aos seus membros e participantes“. Em carta a Alves Costa, Manoel de Oliveira elogia este filme, como sendo “honesto“ e “amador“ no bom sentido, é também “um documento precioso de um auto antiquíssimo“, num caminho que indica o “(...) futuro do nosso cinema, a base experimental de expressão diversa e não académica nem convencional, pré-fabricada, unilateral ou tendenciosa [...] Este é que é o nosso cinema. Não é o neo-realismo italiano, ou a escola documentarista inglesa, ou a nova vaga francesa, etc. Já recebemos deles toda a boa lição, mas também temos alguma coisa de nosso a dizer. Qualquer coisa de particular que ninguém senão nós poderá revelar“. (apud Costa, 2012: 112). Apresentado em Lisboa em Janeiro de 1963, na sala da Shell Portuguesa, perante um público maioritariamente composto por dirigentes cineclubistas, o filme bom muito bem recebido. Entre outros elogios, e algumas críticas às limitações técnicas da produção, a revista Cinema de Amadores (I-1963: 2180-2181) alertava que esta 310 produção poderia ser o “gérmen de um Cinema Nacional 'válido', por que tanto anseiam os cine clubistas.“ Como nota Catarina Alves Costa (2012: 23), esta seria uma prática muito desenvolvida por “uma certa elite intelectual que, na década de 70, procurava no cinema uma forma de fazer etnografia local“, a maioria “que pouco ou nada se viu para lá dos circuitos académicos e museológicos“. A mesma investigadora fala ainda de “um movimento de incursão da esquerda na cultura popular, um movimento de intelectuais e também de cineastas“ que, a partir dos anos 60, criaram um cinema de raiz documental e que pretendia cultivar um imaginário ligado a uma ideia de povo com uma atitude estética, intelectual e política próprias (Idem, 2009: 86). Esta aproximação relativamente distinta da dominante na etnografia do Estado Novo à cultura e à arte populares acontecera já antes com o trabalho científico de Jorge Dias e a sua equipa a partir dos anos 40, e acontecia simultaneamente no meio artístico a partir de autores como Ernesto de Sousa, que, depois de um conjunto de primeiras aproximações ao tema publicadas na revista Seara Nova entre 1959 e 1961, “desenvolve então uma acção importante de coleccionador, divulgador e teórico da arte popular portuguesa“ (Leal, 2002: 272-273). Para além da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto, este tipo de produção cinematográfica iria ocupar dois cineastas amadores que se destacariam de uma forma muito particular, António Campos e António Reis. Nascido na cidade de Leiria, a 29 de Maio de 1922, devido a dificuldades financeiras, António Campos abandonou a escola, prosseguindo os seus estudos de forma autodidacta. Nesse expediente conseguiu concluir o curso geral dos liceus. Viveu algumas temporadas em Nine (Famalicão), pequena aldeia do norte de Portugal onde uma sua tia paterna era professora primária. Aos 22 anos regressou a Leiria, para junto da família materna, onde “descobre no cinema o sentido que lhe orienta o resto da sua vida.“ (Madeira, 2000: 17-18). Primeiro com uma Pathé de 9,5mm e depois com uma Payard de 8mm, Campos iniciou as suas primeiras experiências cinematográficas com pequenos filmes familiares e alguns registos de peças teatrais ou festas populares. No meio cultural leiriense, onde era evidente “uma forte consciência política de oposição ao regime salazarista“, aproximou-se de tertúlias culturais, do grupo de teatro amador de Miguel Joaquim Leitão e das actividades do Ateneu Comercial e do Cineclube de Leiria. 311 É já como funcionário da Escola Industrial e Comercial de Leiria, onde ingressara em 1946, que António Campos iniciou a sua carreira cinematográfica como cineasta amador, “nos sentidos artesanal e apaixonado da palavra“ (Ibidem). O primeiro filme foi um pequeno ensaio experimental intitulado Rio Lis (1957, 8mm), logo seguido por Um Tesoiro (1958, 8mm, 14’), filme de ficção interpretado por actores amadores e adaptado do conto homónimo de Loureiro Botas que foi premiado nos certames amadores de Carcassone (1958) e Paris (1960). A terceira obra foi O Senhor (1959, 8mm, 15’), um filme de ficção interpretado por actores amadores e adaptado do conto homónimo de Miguel Torga, premiado novamente em Carcassone (1959) e no Concurso Nacional do Clube Português de Cinema de Amadores na categoria de Enredo (1960). Em comum, estes primeiros filmes repartiam um mesmo modo de produção: “Os filmes, como continuaria a acontecer com a maioria dos seguintes, são feitos praticamente sem recurso nem rectaguarda. Os meios financeiros disponíveis eram escassos, desde que tinha a Payard, a maior parte do ordenado revertia para película e despesas de laboratório. (…) O filme [Um Tesoiro] é feito em 3 meses de preparação, estudos locais, luz, enquadramentos e personagens, em Outubro de Dezembro de 1957, e um de filmagens, em Fevereiro seguinte: cenários reais, intérpretes a desempenhar os seus próprios papéis e a intrometerem (ou ele por elas) as suas vidas na história que o filme conta, o que provavelmente justifica o comentário, anos mais tarde do realizador sobre o filme como precursor do ‘etnocinema’ que tentou prosseguir toda a vida.“ (…) A montagem [de O Senhor], mais solitária e ainda mais ‘artesanal’ do que a rodagem, é feita em casa, sem visionadora nem coladeira (a primeira coladeira é-lhe oferecida mais tarde por uma pessoa amiga) com recurso a uma lupa para os fotogramas, instrumentos improvisados e acetona para colar os planos. À semelhança do que aconteceu com outros dos seus filmes, o som, fabricado à parte, em gravação em fita magnética, é acertado com a imagem em horas de trabalho infindável de sincronização aos serões.“ (Ibidem: 20-21). Apesar de algumas tentativas, Campos teve muitas dificuldades em exibir publicamente os seus primeiros filmes. À excepção das sessões no Cineclube do Porto e no marginal circuito do cinema amador, as poucas projecções de Um Tesoiro e O Senhor foram privadas e discretas, certamente ditadas pela aproximação de António Campos a alguns núcleos de oposição cultural à ditadura salazarista. No entanto, o reconhecimento internacional, visível em algumas distinções conquistadas no estrangeiro, e um crescente prestígio no circuito do cinema amador permitiram a Campos alguma notoriedade pública local que terá levado a Comissão Municipal de Turismo de Leira a adquirir uma cópia do seu primeiro ensaio cinematográfico (Rio Lis) e 312 a lançá-lo num projecto donde resultaria Leiria 1960 (1960, 8mm, 15’), o seu último filme rodado em 8mm. Antes desconhecido no meio do cinema de amadores nacional, António Campos passou a ser considerado, “pela distinção recebida, e indubitavelmente justamente atribuída“, “um prometedor porvir no meio amador do cinema“ (Cinema de Amadores, VI/VII-1958: 1590). Em 1960, durante uma estada no Algarve, Campos ficou fascinado pela faina de uma pequena comunidade piscatória da ilha da Abóbora. Um ano mais tarde, Campos regressou, “sem equipa e com uma câmara emprestada de 16mm, e filmou a última campanha de atum do arraial desaparecido pouco depois.“ A Almadabra Atuneira (1961, 16mm, 26’) foi o primeiro filme de Campos de teor documental que o celebrizaria posteriormente: “dedicado ao cinema de cariz etnográfico e antropológico com especial interesse, tentando espreitar através das frestas que ainda subsistem a evolução social do seu país, mormente as de ordem económica e psicológica“ (António Campos apud Madeira, 2000: 22). Nesse mesmo ano em que Campos concluiu a rodagem do filme, a Fundação Calouste Gulbenkian concedeu-lhe uma bolsa de estudo de três meses e inteira autonomia em Londres. Na capital inglesa, o cineasta apresentou os seus filmes na London School of Filme Technique e no Overseas and Television Center, que lhe garantiram alguns elogios significativos. Em 1962, iniciou uma colaboração contratual com a Gulbenkian, através do Serviço de Projectos e Obras, donde resultariam encomendas de diversos filmes institucionais. Em Outubro de 1970, foi contratado para integrar o quadro de efectivos da Gulbenkian, no serviço de Auditório e Som, na qualidade de Técnico de Cinema, continuando a realizar filmes para a instituição. Em 1974, o seu vínculo laboral com a Gulbenkian passou a ser afecto ao serviço de Belas Artes, agora com a nova categoria de Realizador Cinematográfico, que perdurou até 1978 (Penafria, 2009: 10). Paralelamente a estas obrigações institucionais e a outras encomendas, Campos continuou a desenvolver alguns projectos pessoais, nomeadamente experiências plásticas e pictóricas em Retratos das margens do rio Lis (1965, 16mm, 10’), Chagall – Breve a Lua, Lua Cheia, Vai Aparecer (1966, 16 mm, 14’) e Colagens – Filme Inspirado no Ciclo de Uma Gota de Água (1967, 16mm, 6’). Em 1965, Campos regressou aos filmes de ficção com A Invenção do Amor (16mm, 29’), uma adaptação livre de um poema de 313 Daniel Filipe rodada em Leiria, Tomar e Lisboa, e mais uma vez “quase sem meios e pouco aparato técnico“. A particularidade deste filme é que foi o “primeiro que Campos filma em equipa“ (Madeira, 2000: 25), um filme “nascido das tertúlias havidas em Leiria entre António Campos e um conjunto de amigos que colaboraram na feitura do filme como actores, figurantes ou ajudantes em determinadas cenas“ (Penafria, 2009: 49). Em 1968, um encontro com Paulo Rocha daria início à produção de Vilarinho das Furnas (16mm, 77’), provavelmente a maior experiência cinematográfica de António Campos. No final desse ano, Paulo Rocha convenceu Campos a deslocar-se a uma pequena comunidade minhota cuja aldeia iria ser completamente submersa pela albufeira de uma barragem em construção. O objectivo inicial seria recolher algumas imagens para registo póstumo. Em Janeiro de 1969, depois de ler o livro Vilarinho das Furnas – Aldeia Comunitária (1948) do antropólogo Jorge Dias, Campos chegou a Vilarinho das Furnas e decidiu ficar para uma longa estadia de 18 meses, “instalando-se numa roulotte e mais tarde na casa do guarda florestal que lhe é emprestada“. Com uma equipa reduzida de colaboradores/amigos, e lutando contra a hostilidade inicial da generalidade da comunidade, Campos registou cinematograficamente as “últimas tarefas, a última procissão, a última apanha do milho“. Financeiramente, a produção foi muito atribulada, valendo in extremis um apoio financeiro da Gulbenkian que permitiu concluir o filme e saldar algumas dívidas mais urgentes. (António Campos apud Ibidem: 118-119, 160-161,170, 182, 190, 235). Apesar das dificuldades técnicas, o filme seria nomeado para o Prémio da Crítica do Festival Internacional de Cinema de Cannes (1972). Ainda (financeiramente) mal refeito da temporada em Vilarinho de Furnas, António Campos mergulhou num novo projecto, agora no nordeste transmontano. Em Fevereiro de 1971, Jorge Dias informou Campos da existência de uma isolada comunidade fronteiriça chamada Rio de Onor, no concelho de Bragança, que seria “a aldeia mais curiosa para filmar“. O cineasta instalou-se então em Rio de Onor entre Outubro de 1972 e Agosto de 1973, agora com o apoio financeiro da Gulbenkian e do CPC, mas o processo de produção de Falamos de Rio de Onor (16mm, 63’) acumulou estranhos contratempos (Madeira, 2000: 28-30). A colaboração do CPC foi ditada pela inclusão deste filme no projecto do Museu da Imagem e do Som, de que falarei adiante, e que pressupunha um “levantamento da realidade etnográfica do país“ mas, para o cineasta, o interesse por esta comunidade transmontana era sobretudo a possibilidade 314 de comparação entre Rio de Onor e Vilarinho das Furnas (António Campos apud Penafria, 2009: 224). No pós-25 de Abril, António Campos obteve, através do Instituto Português de Cinema, o primeiro subsídio oficial do estado português. O subsídio atribuído ao projecto sobre uma comunidade piscatória deu origem a dois filmes: A Festa (1975, 16mm, 24’) e Gente da Praia Vieira (1975, 16mm, 73’). O primeiro filme foi rodado durante a festa anual em honra de São Pedro promovida pelos pescadores da praia de Vieira de Leiria, entre 9 e 10 de Agosto de 1975. Apesar de se destinar originalmente ao projecto sobre os pescadores da praia de Vieira de Leiria, o material filmado durante esta festividade justificou, pelas suas características singulares, uma existência autónoma. Para Gente da Praia Vieira, António Campos recuperou excertos dos filmes Um Tesoiro e A Invenção do Amor e faz cruzar as linhas temáticas desses filmes com a realidade sóciocultural da comunidade piscatória que dá título ao filme. Aparentemente, como relata João Bénard da Costa (apud Madeira, 2000: 10-11), Campos tinha desenvolvido de forma autodidáctica uma cinefília muito peculiar: “Se eu queria ajuda dele para Ciclos da Gulbenkian, ele mostrava-se manifestamente desinteressado, muito longe da minha cinefilia, de Mizoguchi ou Ozu, de Bresson ou dos clássicos americanos. Não era esse o cinema dele. Tivemos conversas e mais conversas mas não levavam a lado nenhum. (…) E, quando, o ‘cinema oficial’ deu por ele e lhe concedeu um subsídio para a sua primeira ficção – Histórias Selvagens, 1978 – demitiu-se da Gulbenkian ‘tomando como definitivo um programa que eu disse não o ser’, como me escreveu numa carta dessa altura. (…) Só que não era o cinema dele. Duplamente não era o cinema dele. Nem o ‘documentário’ sobre a exposição ou a efeméride, nem o cinema, clássico ou moderno, vindo de outras culturas e de outros mundos. Nem o cinema antropológico, nem o cinema etnográfico. António Campos esteve também à margem de tudo isso. O que ele quis fixar – em imagens e sons – foram gentes e sítios com quem se sentia solidário e com quem se podia sentir mais solidário“. Em 1997, numa das últimas entrevistas, António Campos (apud Penafria, 2009: 22) declarava-se: “(...) desconfortável com um cinema onde predomine a figura do produtor e fortemente avesso a uma organização que pudesse afectar a sua liberdade“, procurando, sobretudo no documentário, um registo fílmico que lhe possibilitasse “um outro cinema mais arrojado, um ‘anticinema’ (…). O que interessa ao realizador é poder olhar pelo visor da câmara, interessa-lhe uma outra forma de produção mais pessoal e mais íntima no contacto com os intervenientes do filme e com os espectadores“. 315 O outro amador que começaria a sua actividade neste período, mas cujo reconhecimento seria mais tardio, foi António Reis. Nascido em Valadares, nos arredores do Porto, a 27 de Agosto de 1927, passou a sua infância e adolescência entre camponeses, pescadores e operários. As dificuldades financeiras da família levaram-no a ingressar precocemente no mercado de trabalho, desempenhando funções administrativas num escritório de uma fábrica de porcelanas. A par da vida laboral, Reis desenvolveu um activo autodidactismo nas áreas da pintura e da escultura. O seu autodidactismo era tal que, sem dinheiro para comprar livros, Reis pedia livros emprestados aos amigos e copiava à mão “livros de 500, 1000 páginas…“ (Margarida Cordeiro apud Moutinho, 1997: 9). O seu interesse pelas formas de expressão artística levou-o a participar em diversas tertúlias artísticas e culturais da cidade do Porto. O seu envolvimento em diversas acções de cultura popular e associativa tornou-o uma figura relativamente reconhecida na sociedade portuense. O Cineclube do Porto foi uma das associações a que Reis dedicou particular atenção. Em 1959, Reis participou activamente na concretização de Auto da Floripes (16mm, 60m), um projecto cinematográfico colectivo da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto. A experiência vivida em Auto da Floripes terá convencido Manoel de Oliveira a chamá-lo para desempenhar as funções de assistente de realização em Acto da Primavera (1963), registo cinematográfico da representação popular do Auto da Paixão por uma remota comunidade transmontana. A estreia de Reis na realização cinematográfica aconteceu logo nos meses seguintes. Em 1963, por encomenda da Câmara Municipal do Porto, assinou a curta Painéis do Porto (35mm, 570mt) para o produtor César Guerra Leal. O filme, apesar de ser “um documentário vivo sobre a capital do Norte“ (como então se denominavam os filmes de cariz meramente turístico), revelava um sentido poético e humano bastante invulgar para a produção cinematográfica da época, mas característico da escrita de Reis. No ano seguinte, agora em parceria com o seu produtor, co-assinou Do Rio ao Céu (35mm, 33mt), outro documentário turístico. De 1966 conta-se mais um trabalho co-realizado com Guerra Leal: Alto de Rabagão (35mm, 600mt), uma encomenda da empresa HidroEléctrica do Cávado para divulgação e promoção de projectos da empresa. Entretanto, desde final da década de 1950, António Reis começou também a publicar alguns trabalhos de poesia: Poemas Quotidianos (1957), Novos Poemas Quotidianos (1960) e a colaborar por diversas publicações culturais e artísticas. Segundo Jorge de Sena (apud Moutinho, 1997: 46), a poesia de Reis caracterizava-se por se 316 querer “muito singela, comedida, e discreta, registo de breves impressões e momentos de descoberta poética das coisas comuns da vida“. Apesar de Margarida Cordeiro (apud Ibidem: 9), “e pensando retrospectivamente“, achar que “nessa altura [Reis] era um neo-realista“, Fernando Martinho (apud Ibidem: 49) prefere falar em realismo intimista, porque a sua poesia “fixa-se essencialmente nos pequenos dramas e nas alegrias discretas da vida conjugal“. A paixão de Reis pela poesia popular levou-o a empreender diversas viagens pelo Portugal mais remoto para conhecer a cultura popular e alguns dos seus agentes. Como recorda Margarida Cordeiro (apud Ibidem: 12), eram frequentes as visitas de campo de António Reis em busca da poesia popular: “E o António – isto é a ‘pré-história’, no bom sentido – vinha na sua motazinha lá do Porto e entrava na Marateca a ‘todo o gás’ e depois ia dali para o Alentejo. E também foi para Trás-os-Montes. Falava com as pessoas. Em vez de tomar nota das suas coisas, preferia falar. Sempre foi o grande ‘defeito’ do António: ‘O momento é o que importa’. Eu não sei bem se é defeito, se não é. Mas não coligiu nada.“ Dessas viagens de recolha, ficaram como documentos um registo jornalístico de 1957130 e uma publicação de 1969131. Por volta de 1964, António Reis conheceu Margarida Cordeiro e, cinco anos mais tarde, deixaram o Porto e fixaram-se em Lisboa. Esta mudança, motivada por compromissos profissionais da esposa, permitiu uma maior aproximação de António Reis à geração de cinéfilos que reclamavam e promoviam, por esses anos, o proclamado “novo cinema português“ e que se preparavam para fundar o CPC. O primeiro contacto de Reis com este núcleo ocorreu por volta de 1964, quando Paulo Rocha o convidou para escrever os diálogos de Mudar de Vida (1966): “Quando voltei de Locarno, em 63, trazia já a ideia do ‘Mudar de Vida’. Pedi ajuda ao [Nuno] Bragança para os diálogos, mas ele não sabia nada de pescadores, e mandou-me para o Cardoso Pires. (…) O C.P. também sabia pouco de gente do mar, e mandou-me para a minha terra, o Porto, falar com o António Reis. (…) Estava a preparar uma tese de doutoramento numa universidade suíça sobre questões de cultura popular. E era sobretudo um grande poeta, de poucas palavras, que dizia o essencial através da experiência das coisas banais“ (Paulo Rocha apud Neves, 2005). 130 “Ouvindo António Reis, o poeta do Porto que foi ao Alentejo“. In: Jornal de Notícias, Suplemento literário, 4-VIII-1957. 131 “Trás-os-Montes: textos e fotos de António Reis“, ed. Boletim Casa Guérin. 317 Quando, em meados de 1969, Margarida Cordeiro contactou com algumas pinturas de Jaime Fernandes, logo convenceu António Reis e fazer um filme sobre esse singular artista plástico. Jaime (1974, 35mm, 35m) é uma média metragem de António Reis que, a partir de uns desenhos e de uns escritos, tentar revelar a personalidade de Jaime Fernandes (1900-1969), um anónimo doente psiquiátrico hospitalizado desde os 38 anos de idade. Depois de três décadas de internamento, Jaime Fernandes revelou-se, nos últimos três anos da sua vida, um prodigioso artista plástico e poeta. O realizador construiu o seu filme a partir dos desenhos e textos encontrados no asilo e através do contacto com a viúva e alguns conhecidos do artista. Como sublinha José Manuel Costa (Cinema Novo Português, 1985: 128-129), “não se trata portanto de um documentário sobre uma vida já então inexistente nem – muito menos – de uma ‘reconstituição’ dessa vida. O que Reis fez foi filmar e trabalhar sobre os materiais e figuras concretas que existiam no tempo da rodagem do filme e exclusivamente sobre isso. A evocação biográfica e a outra (humana, psicológica) surge por outros caminhos, ou seja, pelo próprio trabalho (que nesse sentido é documentário e é ficção sobre esses materiais.“ O percurso cinematográfico de António Reis prosseguiria depois do 25 de Abril com a trilogia sobre Trás-os-Montes, mas desse momento falarei mais adiante, no subcapítulo dedicado às cooperativas. Para além destes dois, muitos outros cineastas amadores haveriam de se destacar nestas décadas. Vasco Branco, natural de Aveiro, onde foi um dos fundadores do cineclube local (1955), foi talvez o caso mais mediático. Começou a ganhar algum protagonismo na década de 1960, quando começou a conquistar diversos galardões internacionais132 e os seus filmes começam a ser exibidos para um público universitário, nomeadamente na Escola Superior de Belas Artes do Porto (1960), no Centro de Estudos 132 Primeiro Prémio nas Jornadas do Filme de 8 mm de Paris, o Filme de Ouro no Concurso Internacional do Cinema de Amadores de Salzburgo, Menção Especial do Júri do Festival de Cannes, Prémio para o Melhor Filme no 2º Festival Internacional do Filme Amador de Huy (Bélgica), o Fortim de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Amadores de Calla d’Or (Espanha), o primeiro no Festival Internacional de Andorra, dois primeiros prémios no Festival Internacional de Viña del Mar (Chile), Ecrã de Prata no 4º Festival Internacional de Nyon (Suíça). Primeiro Prémio no Festival Internacional de Calla d’Or, Grande Prémio no Festival Ibérico de Barcelona, Medalha de Ouro no Festival Internacional de Amadores de La Coruña, Primeiro Prémio nas Jornadas Internacionais do Filme de 8mm em Paris, Prémio para o melhor filme de 8mm no 3º Festival Internacional de Cinema Amador de Touquet (França), Prémio para o Melhor Tema Humano no 1º Festival de Cinema Amador em Newark (EUA). Troféu para o Melhor Filme de 8 mm no Festival Internacional de La Montagne (França). Prémio do Melhor Enredo e Primeiro Prémio no Festival de Cristchurch (Nova Zelandia), Primeiro Prémio de Ficção no Festival de Cnstchurch (Nova Zelândia). Grande Prémio no “Scottish Film Festival“, Galardoado nos EUA em “Movies on a Schoestring“, entre outros (UBI, em linha). 318 Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra (1960) e no Cineclube Universitário de Lisboa (1961). Em Moçambique, destacava-se também um jovem cineasta amador e dirigente cineclubista de Lourenço Marques chamado Faria de Almeida. Nascido em 1934, na capital Lourenço Marques, o jovem cineasta amador foi um dos fundadores do CineClube de Lourenço Marques e responsável pela secção de cinema de amadores criada no seu seio. Começaria a realizar filmes em suporte 8mm até que, em 1961, com o filme O Mar e os Poetas, Faria de Almeida seria distinguido com uma menção honrosa no Festival de Toulon e selecção no prestigiado Concurso Internacional de Cinema de Amadores de Cannes. No ano seguinte, seria contemplado com uma bolsa do Fundo de Cinema Nacional e foi estudar cinema na London School of Film Technique, voltando a Moçambique em 1964 para realizar a sua primeira longa-metragem já como realizador profissional (Convents, 2011: 310-311). Francisco Saalfeld é outro caso de destaque porque passou rapidamente ao cinema profissional. Revelado nacionalmente pelo Concurso Nacional de 1962, seria distinguido no ano seguinte e nomeado um dos representantes nacionais ao festival da UNICA. Com apenas 5 anos de experiência como cineasta amador, tornou-se realizador e produtor profissional, desenvolvendo uma profícua carreira até final da década de 1960, nomeadamente no filme turístico e técnico. O seu primeiro filme profissional, Outono em Lisboa (1966), seria produzido pela Internacional Filmes e teria o apoio financeiro do Fundo do Cinema Nacional (Cinema de Amadores, XI-196: 2551). O caso de Pedro Figueiras Mathias é outro cado particular e, no mínimo, curioso: em 1965, o cineasta amador organizou um festival de cinema na sua sala se exibição privativa onde exibia apenas os seus filmes e onde se auto-premiava. Repetido nos anos seguintes, pelos menos até 1967, o Festival de Cinema destinava-se exclusivamente a divulgar os seus próprios trabalhos: “Iniciei as minhas actividades em 1964 com um filme de carácter comercial cuja fotografia foi captada por António de Almeida, funcionário da Pathé Baby, para ser exibido perante amigos meus quando do meu 37.º aniversário natalício. (...) (...) Serenei os ânimos e propus-me fazer com o meu tio o primeiro filme a sério. (...) Foi então que compreendi as minhas possibilidades neste género de gastar dinheiro...“ (Idem, V-1966: 2502) 319 3.3.2. Federação Portuguesa de Cinema de Amadores No final dos anos 50, os festivais de cinema de amadores tornam-se mais frequentes: em 1958, o Clube Português de Cinema de Amadores organiza em Lisboa a primeira edição de um evento que se tornaria muito concorrido ao longo dos anos; o Cineclube do Lobito (Angola) organiza o I Concurso de Cinema de Amadores do Lobito, o primeiro evento do género nas então colónias portuguesas133; em 1959, em Rio Maior, o cineclube local organiza também a primeira edição Festival de Cinema Amador, igualmente popular entre os cineastas amadores portugueses; também em 1959, o Cineclube de Setúbal organiza a primeira edição do seu Concurso Nacional. No entanto, o período de maior expansão do cinema de amadores seria entre 1964 e 1967, anos em que surgiram vários clubes espalhados pelo país e que culminaria com a criação, em 1968, da Federação Portuguesa de Cinema de Amadores (FPCA), que beneficiou do mediatismo para agregar ainda mais clubes espalhados pelo país e pelos antigos territórios coloniais. É neste período, após a realização dos primeiros concursos nacionais (Lobito, Luanda e Benguela), que o cinema de amadores em Angola começa a ganhar algum mediatismo. Tal como havia acontecido décadas antes em Portugal, também em Angola o movimento cineclubista esteve, desde cedo, ligado ao desenvolvimento do cinema de amadores e um seu importante promotor e divulgador. António J. Faria, do Huambo, declararia na revista Filme (30, IX-1961: 2): “Mas é o cinema de amadores que tem, sem dúvida alguma procurado manter uma linha reta, sólida e ascendente. Os cineclubes angolanos estão ligados a esse movimento, que se tem vindo a manifestar há já bastante tempo.“ 133 Em 1960, a terceira edição do evento passou a designar-se Concurso Nacional e a receber filmes de Portugal continental (Idem, 30, VI-1960: 8), contando com o apoio do Departamento Cultural da Câmara Municipal local e a Associação Comercial do Lobito e Catumbela e que premiou diversos realizadores amadores locais. Uma década depois do primeiro concurso local, surgiria o Festival Internacional de Cinema de Amadores do Lobito, cuja primeira edição aconteceu em 1968 — com o apoio da Union des Cineastes Amateurs Huitistes Mondiaux (Idem, 121, I-1968: 14-15) — e as seguintes a cada dois anos (1970, 1972, 1974). A organização seria da responsabilidade da Câmara Municipal do Lobito e da Companhia de Caminhos de Ferro do Lobito (Museu Virtual RTP, em linha). Em Outubro de 1959, o Cineclube de Luanda promoveu e organizou, com o apoio da Câmara Municipal local, “um concurso nacional de cinema de amadores, nos formatos de 8, 9,5 e 16mm“ (Idem, 24, XII1959: 20). Em Agosto de 1960, à semelhança de outros congéneres, o Cineclube de Benguela organizou o seu primeiro Concurso de Cinema de amadores (Idem, 33, IX-1960: 19). Na primeira edição, foram premiados cineastas amadores do Lobito (Joaquim Ferraz da Silva com a ficção Ouro de Morte) e de Benguela (José Joaquim Diogo Branco com o documentário I Rallye Automóvel de Benguela) (Celulóide, 36, XII-1960: 10). 320 E cita diversos exemplos de filmes rodados no Huambo e Luanda com apoio ou “ligados aos ambientes cineclubes“ locais. Depois de vários pioneiros que agiam mais os menos de forma isolada134, o surgimento de uma série de festivais de cinema de amadores em várias cidades angolanas, de carácter local, regional ou mesmo internacional, foi um fenómeno que acompanhou a geografia e a cronologia do movimento cineclubista angolano, mantendo uma relação directa e próxima com os próprios cineclubes ou os seus dirigentes e dinamizadores. Em 1956, um texto da Cinema de Amadores (VIII/IX-1956: 1314-1315) garantia que em Luanda, uma cidade com 25 mil “europeus“ residentes, existiam já cerca de 150 câmaras “aptas a funcionar“ e as casas que fornecem os equipamentos e a película, “que se contam por pouco mais de uma dezena“, “não se queixam das vendas desses artigos“. No entanto, Armando Tavares Santiago, ele próprio também cineasta amador, lamentava-se que “os possuidores destas câmaras limitam-se a impressionar toda a película com as gracinhas dos bebés, os passeios familiares e pouco mais.“ (Ibidem) A criação, na Sociedade Cultural de Angola, de uma secção de cinema e de uma sub-secção de cinema de amadores foi determinante para promover as potencialidades do filme amador, desde a organização de sessões de divulgação até aos populares concursos (Ibidem). Em Janeiro de 1970, a criação da Secção de Cinema de Amadores da Casa das Beiras do Lobito, federado desde logo na FPCA, permitiu “novas perspectivas (...) ao progresso da modalidade em Angola“, nomeadamente a organização de festivais e do I Encontro do Cinema de Amadores de Angola (1972), que contou com participantes de sete cidades angolanas135. Nos meses de Setembro e Outubro de 1971, uma delegação da FPCA visitou Angola e realizou sessões de divulgação e debates nas principais cidades angolanas, iniciativa que contou com o patrocínio do Ministério do Ultramar e do Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA) (UNICA, 1972: 32). Em Dezembro de 1973, uma nova delegação da FPCA rumava novamente a Angola e Moçambique, com o patrocínio do Ministério do Ultramar, para coordenar diversas actividades de cinema de amadores naqueles territórios (Cinema de Amadores, X/XII-1973: 3118). 134 Em Benguela, foi possível ainda identificar actividades cinematográficas desenvolvidas pelo cineasta amador Mário Melo: está a realizar, segundo noticia o Diário Ilustrado, um filme vanguardista intitulado ‘Boizinhos’.“ (Celulóide, 20, VIII-1959: 18). Só a título de exemplo, convém registar também que foi possível identificar outros cineastas amadores entre os premiados em vários concursos de cinema de amadores realizados em território angolano: Amaro Trindade, João Fragoso e José Joaquim Diogo Branco de Benguela (Idem, 33, IX-1960: 19; 36, XII-1960: 10). 135 Luanda, Malange, Nova Lisboa (Huambo), Sá da Bandeira (Huíla), Moçâmedes, Benguela e Lobito. 321 Em Moçambique, o processo foi semelhante. Os concursos de filmes de amadores foram determinantes para o crescimento do fenómeno, nomeadamente a realização do I Concurso Internacional de Lourenço Marques, uma organização do cineclube local onde se destacavam cineastas amadores como Faria de Almeida, Jorge Pais e Cassiano Caldas. Na cidade da Beira, onde pioneiros como Sérgio Guerra já fazia filmes amadores desde 1957, foi igualmente importante a acção da Secção de cinema de Amadores do Cineclube da Beira, particularmente do cineasta Artur Costa, que mais tarde trabalharia na RTP. Em 1963, esses dois cineclubes coordenaram esforços e organizaram um primeiro curso de iniciação à técnica e estética cinematográficas que muito incentivou a prática do cinema de amadores. Em 1963 organizar-se-iam dois eventos nessas duas principais cidades moçambicanas: o I Concurso Provincial de Lourenço Marques e o I Concurso Nacional da Beira. A estes dois núcleos, justar-se-ia nos anos seguintes a Secção de Cinema da Associação Académica de Moçambique, também com um trabalho meritório de divulgação junto da população estudantil do ensino superior (Ibidem: 34). Como já referi anteriormente, a prática cinematográfica amadora nasceu a par dos cineclubes em Moçambique, “onde os sócios não querem só ver e discutir filmes mas também aplicar a teoria na prática e realizar filmes“ (Convents: 2011: 317). Um dos primeiros clubes de amadores surgiria antes mesmo de 1951, ano em que o Núcleo d'Arte de Lourenço Marques organiza um concurso de cinema amador. Dois anos depois, em Fevereiro de 1953, surge o Grupo de Amadores de Cinema da Beira, que daria origem ao Cine-Clube da Beira (1956). A partir de 1960, o boletim Objectiva 60, órgão do Cine-Clube de Lourenço Marques, dedica uma secção especial ao cinema de amadores, onde se dava destaque à sua secção de cinema de amadores dirigida por Faria de Almeida. Em meados dos anos 60, em Lourenço Marques já existiam “várias lojas especializadas em material de cinema para amadores“. (Ibidem: 317-321). Em 1964, a RTP exibe o filme O Anúncio, produzido na secção de cinema amador do Cine-Clube da Beira por um colectivo dirigido por José Cardoso. É, naturalmente, um momento de entusiasmo e de reconhecimento para os cineastas amadores moçambicanos que, em meados dos anos 60, começam já a filmar regularmente em película de 16mm. No mesmo ano, os amadores da Beira tentam lançar o ambicioso projecto de produzir um Jornal Cinematográfico de Actualidades (Ibidem: 324-326). Mas, este mediatismo traria alguns dissabores: com filmes amadores a denunciar e condenar recorrentemente a guerra colonial e o colonialismo, “o interesse da polícia 322 política (a PIDE) pelas actividades e produções dos cine-clubes em Moçambique“ acentua-se (Ibidem: 328). Nos anos 70, a par do aumento de actividade de cinema de amadores nas duas principais cidades, registaram-se também algumas iniciativas dignas de nota em pequenas cidades como Quilimane, Nampula e Vila Pery. À semelhança do que aconteceu em Angola, também várias cidades de Moçambique receberam uma digressão da FPCA (Ibidem). Com um considerável aumento na participação de festivais e concursos de cinema no então território metropolitano, um dos problemas que começaram a levantar-se aos cineastas amadores era o cumprimentos de formalidade burocráticas aduaneiras e o pagamento de elevadas taxas alfandegárias (cerca de 275 escudos por filme). Naturalmente, o problema também se levantava em casos inversos, ou seja, no envio de filmes de Portugal continental para competições organizadas em Angola e Moçambique, embora penalizasse mais significativamente os cineastas “ultramarinos“. Em explicações à revista Cinema de Amadores (X-1963: 2255-2257), o Director Geral das Alfândegas esclarecia que os filmes não poderiam ser considerados produtos de origem nacional porque a película virgem era estrangeira e “as operações de impressionar e revelar não lhe conferem origem nacional“. No entanto, o mesmo responsável sugeria que os filmes fossem remetidos ao abrigo do regime de importação temporária e assim poderiam beneficiar de taxas menos elevadas. Os anos 60 foram de democratização no acesso aos materiais, nomeadamente “com a popularização dos filmes 8mm e Super 8, também pela Kodak, com preços que os tornavam acessíveis à burguesia emergente e às classes médias urbanas“ (Cruz, 2013b: 69) Em meados dos anos 60 regista-se um novo surto de competições nacionais e internacionais de cinema de amadores: Concurso de Filmes de Amadores da Figueira da Foz (1964); Festival Internacional de Filmes Amadores organizado pelo GCD da Companhia Nacional de Navegação (1964); Semana Internacional do Filme Amador da Figueira da Foz (1965), com o apoio da UCAHM; Bienal do Cinema Amador de Rio Maior (1965); Concurso de Cinema Amador e Experimental do ABC Cineclube de Lisboa (1965); Festival Internacional de Cinema de Amadores do Barreiro, organizado pelo Grupo Desportivo da CUF (1966); Festival Internacional do Filme Amador de Coimbra (1966); Festival Nacional de Cinema Amador de Guimarães (1966); Festival Internacional de Cinema de Amadores do Estoril, organizado pelo Clube Português de Cinema de 323 Amadores (1966); Festival Internacional do Lobito (1968); Festival de Cinema de Amadores de Luanda (1968), organizado pelo Centro de Informação e Turismo de Angola; Concurso da Federação Portuguesa de Cinema de Amadores (1969). Entre estes, surgiam também alguns certames mais especializados, como a Semana Internacional do Filme Religioso de Amador (1967), a decorrer em Fátima, ou o Festival Internacional de Filmes de Prevenção, organizado pelo Gabinete de Higiene e Seguranla do Trabalho da Junta de Acção Social (1967). Em 1965, uma iniciativa inédita promovida pelo Clube Português de Cinema de Amadores iria trazer grande mediatismo à prática de cinema de amadores: uma selecção dos “melhores“ filmes de amadores produzidos por vários cineastas amadores iria percorrer várias cidades do país como forma de promoção do cinema de amadores. O primeiro “circuito“ incluiu as cidades de Barcelos, Oliveira de Azeméis e Aveiro e as sessões eram organizadas localmente por membros do Clube Português de Cinema de Amadores, no caso, respectivamente, Carlos Basto, Manuel Matos Barbosa e Vasco Branco (Cinema de Amadores, IV-1965: 2390). Ironicamente, por estes anos, em simultâneo ao “ataque“ que desferiu ao movimento cineclubista, o SNI ia atribuindo diversos subsídios pontuais a vários cineclubes, nomeadamente apoios destinados à produção de filmes amadores ou à realização de concursos para esse tipo de produções, que acabavam por servir os mesmo fins de vigilância e tentativa de controlo: “Alguns cine clubes, até favorecidos pela concessão de subsídios do SNI, começaram já a dedicar particular atenção à feitura de pequenos filmes, para o que criaram secções de cinema experimental, com directrizes definidas naturalmente, com orientadores adestrados e alunos-componentes dando provas de vocação e desejo de aprender a de colaborar. (...)“ (Idem, IV/V-1960: 1853) Em 1962, a revista Cinema de Amadores (VII-1962: 2124) congratulava-se que o Cinema de Amadores em Portugal vivia o seu melhor momento materializado no recorde de 21 inscrições de filmes no Concurso Nacional de Filmes de Amadores, organizado pelo Clube Português de Cinema de Amadores e ainda o mais importante do género em Portugal. Para além da consolidação de alguns já veteranos cineastas amadores, a revista falava ainda do “aparecimento de novos nomes“ e do trabalho desenvolvido pelo clube anfitrião num “insistente e persistente“ esforço de divulgação desta prática cinematográfica em Portugal. 324 Meses mais tarde, a mesma publicação (Idem, I-1963: 2170-2171) regozijava-se novamente com as actividades desenvolvidas pelos cineastas amadores portugueses: organização de 6 grandes festivais de cinema em Portugal (dois em Lisboa, e um em Évora, Sintra, Barreiro, Lourenço Marques) e participação e e premiações nos principais festivais internacionais (Paris, Viena, Cannes e D'Huy). Como observa Luís de Pina (1978: 149), a “subida do nível de vida“ na sociedade portuguesa na década de 60 contribuiu para o “consequente aumento de disponibilidades cinematográficas“. No entanto, considero que, ao contrário do que acontecia com o movimento cineclubista, a relativa “apatia“ política dos cineastas amadores e o alcance mais reduzido do circuito de produção e exibição dos filmes amadores foram importantes para que o poder político não interviesse de forma tão violenta junto da prática de cinema de amadores. No entanto, o crescimento do fenómeno, tanto na metrópole como no Ultramar, mantinham atentas as autoridades públicas, desde o SNI e a PIDE, mas também a Mocidade Portuguesa, que pareciam empenhados em acompanhar a evolução desta prática com particular atenção, tentando manter contacto e colaboração com alguns núcleos e assim ir monitorando as suas actividades. A notícia da organização, em meados de 1963, do primeiro Curso de Cinema do Estúdio Universitário de Cinema Experimental, promovido pela Mocidade Portuguesa, foi acolhida com particular entusiasmo no seio dos cineastas amadores portugueses, considerando que este tipo de iniciativas “só pode trazer benefícios a Cinema Nacional e esperamos com ansiedade o ingresso no Cinema Amador de alguns alunos deste Curso“ (Idem, IV-1963: 2198-2199). Cerca de um ano antes, a delegação de Portimão da Mocidade Portuguesa criava a sua subsecção de cinema, composta por adolescentes com cerca de 15-16 anos que estavam filiados nessa organização juvenil, com supervisão de um experiente cineasta amador local, e que vinha participando em alguns concursos e festivais nacional da especialidade (Idem: VII-1963: 2225). Apesar do seu crescimento, a prática cinematográfica amadora continuava muito limitada e o número de filmes que eram exibidos publicamente permanecia residual: por estes anos, os concursos nacionais apresentavam pouco pais de duas dezenas de filmes em competição e os nomes dos cineastas envolvidos não ultrapassavam a dezena e meia. Em Janeiro de 1965, reunia-se me Coimbra o I Encontro do Cinema Amador Português, iniciativa que nasceu meses antes o decorrer da Semana Internacional do 325 Filme Amador da Figueira da Foz e que pretendia “proceder a uma análise da posição atingida pelo cinema amador em Portugal e das condições em que se tem processado a sua evolução“ (Idem, I-1965: 2477). Enquanto representante oficial de Portugal na UNICA, o Clube Português de Cinema de Amadores teria um papel fundamental na preparação e coordenação da constituição da Federação Portuguesa de Cinema de Amadores, contactando os eventuais interessados. ao fim de três meses de trabalho, a proposta de estatutos era aprovada internamente e entregues às autoridades competentes em Março de 1968. Após a criação da FPCA, o Clube Português delegou na nova estrutura federativa a representação portuguesa na UNICA (Idem, X/XII-1968: 2726). Entre a missão da nova estrutura federativa estava a divulgação e promoção da prática do cinema de amadores, o reconhecimento da acção dos seus praticantes e a coordenação de esforços para o desenvolvimento e crescimento dessa prática em Portugal: “Os clubes mais esclarecidos e a FPCA têm a nítida noção do papel que o cinema pode desempenhar, sobretudo se se considerarem os aspectos da sua necessária e até inevitável democratização em relação a camadas ate agora alheias a esta actuação. (...) Finalmente, deverá acentuar-se que a FPCA procura intensamente fazer cair as barreiras que separam os vários elementos ligados ao cinema — profissionais, amadores, críticos, organismos oficiais e particulares e público (melhor dizendo, os diversos públicos — com o obejctivo de fazer convergir esforços no sentido da promoção dum Cinema Português. Todos juntos, num intercâmbio frequente, poderão contribuir para uma personalização e planificação do cinema português e assim fornecer uma imagem real, viva e actual da sociedade portuguesa e do espírito do seu povo“ (UNICA, 1972: 30) Naturalmente, uma das razões de ser de uma estrutura federativa como esta passava pela “banalização“ ou “vulgarização“ desta prática. A promoção do cinema amador junto das escolas e de organismos culturais também era uma das preocupações da FPCA: “(...) Na sequência de vários pedidos de colaboração que vêm sendo solicitados à FPCA, foram, recentemente, realizadas sessões de divulgação, com projecção de filmes seguidas de debate , na Associação do Pessoal do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e no colégio Valsassina, em Lisboa. (...) Ainda neste colégio, vai, agora, ter lugar um ciclo de iniciação de cinema, sendo abordados os aspectos teóricos e práticos da concepção e das técnicas cinematográficas, da estética e da história do 326 cinema, a que se seguirá a realização de um filme de aplicação por uma jovem equipa. Os orientadores são alguns dos dirigentes e colaboradores da FPCA.“ (Cinema de Amadores, I/III-1973: 3054) O desenvolvimento de actividades formativas e culturais parecia ser uma das vantagens da prática cinematográfica amadora, contribuindo para a valorização dessa actividade. No entanto, após sensivelmente quatro anos de actividade da FPCA, Manuel Matos Barbosa, um cineasta amador de Oliveira de Azeméis reconhecido no meio, alertava para o facto do cinema de amadores ainda ser visto como um meio “bastante fechado, sufocado em parte pelos seus regulamentos, com bastante receio de enfrentar os problemas sociais“ (Idem, IV/VI-1973: 3076). Matos Barbosa transparecia um pouco preocupado e desiludido, mas seria evidente que a vigilância e o controlo das autoridades políticas sairia beneficiada e reforçada com a criação dessa estrutura agregadora. Em Outubro de 1970, decorre em Aveiro, organizado pela secção de Fotografia e Cinema do Clube dos Galitos, o I Congresso Nacional de Cinema de Amadores, que seria importante para consolidar a rede de relações estabelecida desde a criação da FPCA. Dados inéditos e documentação de espólios particulares fornecidos por Rita Capucho mostram uma dimensão considerável na organização deste evento, que pretendeu reunir representantes da prática de cinema de amadores de vários pontos do país e das então colónias ultramarinas. Também por isso, passaram a ser mais frequente a colaboração da FPCA e o SNI, como a realização de sessões de divulgação de filmes de amadores no Palácio Foz, assim como com a própria Cinemateca Nacional, que anunciava, em Abril de 1973, a criação de uma secção especializada em cinema de amadores portugueses que esperava integrar na sua colecção filmes que fossem doados por cineastas amadores portugueses (Ibidem: 3086). Em 1972, a FPCA contava com 15 clubes federados136, sendo que 3 estavam sediados em territórios ultramarinos. Nota-se a ausência nesta federação de vários cineclubes portugueses que mantinham em actividade as suas secções de cinema 136 Clube Galitos de Aveiro, Clube Micro-Cine (Lisboa), Cine Clube da Beira (Moçambique), Grupo Cultural Desportivo da Companhia Nacional de Navegação (Lisboa), Convívio (Guimarães), Cineclube do Porto, Clube Português de Cinema de Amadores (Lisboa), Casa das Beiras do Lobito (Angola), CAT Paula Dias (Aveiro), Clube de Cineastas Amadores de Coimbra, Cine Clube de Torres Novas, Esperança Atlético Clube Portimonense (Portimão), Círculo Cultural de Setúbal, Círculo de Arte e Recreio (Guimarães) e Grupo Desportivo e Cultural da Lupral (Benguela, Angola). 327 experimental, pelo que o número de núcleos de produção em Portugal seria substancialmente maior do que estes 15 clubes federados. Presumo, que a má experiência dos cineclubes com a Federação Portuguesa de Cine-Clubes possa ter tido algumas influência neste afastamento dos cineclubes de uma estrutura como a FPCA. Assim, entre os federados, encontravam-se diversas entidades com largas tradições na prática de cinema de amadores espalhados por vários pontos do território. Para além dos mais antigos e reconhecidos, o Núcleo dos Cineastas Independentes, fundado em 1952, era uma das principais entidades dinamizadores da prática de cinema de amadores no início dos anos 70, assim como o lisboeta Clube Micro Cine, fundado em 1966, e o Clube de Cineastas Amadores de Coimbra. O envio de delegações da FPCA para os territórios ultramarinos, nomeadamente Angola e Moçambique, com o apoio de entidades oficiais, pretendia manter e reforçar essa representatividade da estrutura e potenciar o seu crescimento e influência no terreno. A reforma do Conservatório Nacional também poderia beneficiar os praticantes de cinema amador, mas ao contrário do que seria a sua função, a acção do poder político não tornara acessível o acesso aos meios de formação profissional de cinema: “(...) existe um Conservatório de Cinema de acesso limitado. (...) No Conservatório que cá existe, verifica-se a mesma coisa: só lá entra quem tem dinheiro na carteira e uma ou duas casas para as bandas de Cascais. É claro que destes cursos limitados só se parem obras limitadas, cujos temas, de uma esterilidade total vão de imbecilidade de uma educação sexual (com a Sofia lá do sítio) até à estupidez dos filmes estúpidos, que para nada servem...“ (Cineclube, 8, II-1976: 19) A publicação da Lei 7/71 mostrava que o cinema de formato reduzido era uma preocupação constante para o poder político. No seu capítulo V, a nova legislação previa que a produção, distribuição e exibição de filmes em suportes inferiores aos 35mm também ficavam sujeitas às disposições gerais da lei e que haveria de ser criado um regime de excepção, a estabelecer futuramente pelo IPC, para os “filmes de arte e ensaio“. Ao IPC, de acordo com a alínea d) da Base II, competia também “estimular o desenvolvimento do cinema de arte e ensaio e do cinema de amadores“. Apesar da produção de filmes amadores, ao contrário dos filmes comerciais, não necessitar de visto prévio do IPC, a legislação era omissa em relação à distribuição e à exibição pública de filmes em formato reduzido. Apesar de não haver legislação específica, em 1973, por exemplo, um filme do cineasta amador Vasco Branco era retido pela Comissão de Censura, enquanto no ano anterior José Barbosa viu serem cortados 328 alguns planos do seu filme Geração 70 por acção da censura (Cinema de Amadores, VII/IX-1974: 3169). Ofícios provenientes de espólios particulares disponibilizados por Rita Capucho documentam o processo de censura ao filme O Ensaio (1973), de Vasco Branco, mediado pela FPCA: o filme seria proibido de ser exibido em Portugal metropolitano (continente e ilhas adjacentes) aparentemente pela sua mensagem pacifista e humanista e por se ter inspirado em textos de Jean-Paul Sartre escrito a propósito da Guerra da Argélia. No final de 1973, as páginas do Diário de Lisboa acolhiam uma polémica acerca do cinema de amadores que motivaria uma carta aberta de Henrique Alves Costa que traça, em breve palavras, um retrato esclarecedor do contexto vivido pelo cinema de amadores por esses anos: “(...) Os meus reparos e a minha discordância face a processos que caíram na autocontemplação e na rotina, são — sabem-no os que conhecem a minha simpatia e o meu apreço pelo cinema amador — a melhor e mais honrada contribuição que posso dar para o progresso do vosso cinema que tantas vezes tenho defendido. (...) O cinema amador português é, hoje em dia, uma realidade. Muito importante ou não, o cinema amador português — libertado, finalmente, do 'filmezinho-para-a-família-ver' — vai ganhando relevo ao tornar-se, pouco a pouco, forma de expressão artística. (...) Comecemos pelos festivais. A eles se deve a inicial saída a público do cinema amador. A sua multiplicação pelo País não só oferece, aos cineastas, a oportunidade de dar a conhecer as suas obras, como também, ao público, a possibilidade de tomar contacto com um cinema sobre o qual, muitas vezes está mal informado e que considera no sentido pejorativo da palavra 'amador': sinónimo de mal feito, incipiente, desajeitado. (...) Deste modo, penso que há que repensar os festivais em termos diferentes, modificar os regulamentos, organizar debates públicos ou mesa redondas circunscritas a cineastas e críticos de cinema, e... reduzir drasticamente o número de prémios. (...) Os cineastas amadores tem na mão um trunfo admirável: liberdade de criação e independência. Nenhuma imposição de ordem comercial ou qualquer outra (e pior) espécie os coage. (...) Se cada cineasta amador, na sua região (ou em regiões vizinhas da sua), se aplicasse numa tal tarefa, se colectiva e seriamente os amadores planificassem um trabalho desta natureza e envergadura (o que implica um prévio estudo para cada filme e uma aplicação formal que não consente improvisos e facilidades, pois cada obra deverá apresentar-se cinematograficamente bem estruturada e bem acabada), então o cinema amador português dava ao País uma inestimável e valiosa contribuição. É neste caminho e — onde está quase tudo por fazer — que eu gostaria de meter os amadores... e entusiasmá-los a levar a cabo, a longo prazo, o que poderia ser o mais importante empreendimento cinematográfico nacional. (...) 329 Infelizmente, o cineasta amado, por via de regra, tende para o melodrama ou para a contemplação da Natureza, para o já visto ou para a tristeza. Inventa muito pouco 9e aqui eu ponho como excepção os filmes abstractos de Vasco Branco), tem pouca imaginação, pouco sentido crítico e nem sequer tem o sentido de reportagem. É ainda acanhado. Não tem chispa (como dizia, no colóquio de Guimarães, um cineasta espanhol referindo-se ao cinema amador ibérico). Não é atrevido. E muito menos irreverente. (...) Sim, os cineastas portugueses vão lá fora e fazem boa figura, o cinema amador português é tão bom ou melhro do que muito cinema amador estrangeiro. É um facto. Mas o que isso prova? É um facto que não significa grande coisa porque a bitola de valores é feita à medida da insignificância (na sua média) do cinema amador estrangeiro... Ora, não é a fraqueza dos outros que nos confere força. Quando muito dá-nos uma ilusão de força... que não temos. É esta ilusão que é necessário desfazer para se acabar com um mal-entendido e se andar realmente para a frente. (...) (...) Separando, de vez, o cinema amador do 'cinema para a família' (separação em que os próprios amadores estão agora empenhados), resta aos amadores ganharem perfeita consciência do que podem fazer (mesmo tendo em conta as suas limitações), utilizando, com maiores ambições, a sua liberdade e independência (a sua imaginação e a sua habilidade) na criação de um cinema não comercial (documentaristapoético-humorista-crítico) artisticamente válido, que, de algum modo, contribua para o conhecimento da realidade portuguesa (...).“ (Idem, X/XII-1973: 3121-3123; IV/VI-1974: 3155-3158) Entretanto, com a Revolução dos Cravos, tudo se altera: “Efectivamente são os cineastas amadores aqueles que em Portugal mais gritam que o cinema deve estar ao lado dos trabalhadores na defesa dos seus interesses. E até com uma certa razão, já que o cinema de amadores encerra neste momento, e mais que qualquer outro, as condições mais objectivas e favoráveis para se encontrar ao alcance da classe trabalhadora. (...) O cinema de amadores é também aquele que mais se coaduna e compatibiliza com a criação de centro regionais ou outros organismos que tenham por fim o estímulo pela criação e gosto do cinema. Com esse objectivo, o governo português concedeu um apoio financeiro (ainda o ano passado) para a criação de centros de produção e dinamização do cinema de amadores. (...) O cinema de amadores foi sempre obra de alguns pequenos burgueses bem instalados na vida, com dinheiro para empatar na compra de material cinematográfico necessário que, apesar de tudo, não se encontra ao alcance da bolsa de qualquer um. Com a garantia de vinda de subsídios a nível oficial, a realização de filmes me Super 8 poderá ser muito mais alargada e, essencialmente, pô-la à disposição daqueles que menos possibilidades têm, levar e incrementar o cinema às classes mais desfavorecidas neste sector que ainda são os trabalhadores. (...) 330 A cinematografia portuguesa (filmes de amadores ou não) não pode aguentar o ritmo imposto pelas cinematografias capitalistas (os nossos cineastas esperam este ou aquele subsídio de quem dependem para dar largas à sua imaginação e criatividade). (...) “ (Cineclube, 8, II-1976: 18-19) Pouco tempo depois de Abril de 1974, a nomeação de Vasco Pinto Leite, um reconhecido cineasta amador e então Presidente da Direcção da FPCA, como Director Geral da Cultura Popular e Espectáculos foi recebida no meio do cinema de amadores com especial “regozijo pela confiança que o Governo Provisório nele depositou“ (Cinema de Amadores, VII/IX-1974: 3161). Ainda em 1974, a partir do mês de Julho, a RTP passou a dedicar um programa quinzenal ao cinema de amadores portugueses, produzido em colaboração com a FPCA, onde seriam exibidos filmes e “discutidos vários aspectos do movimento“ com a presença de várias figuras de destaque do cinema de amadores em Portugal (Idem, VII/IX-1974: 3162). Prevendo uma permanência em antena, a FPCA envidou vários esforços junto dos seus associados e de outras entidade produtoras de filmes amadores não federadas no sentido de disponibilizar cópias do seus filmes “de modo a que o programa constitua uma panorâmica tanto quanto possível completa do movimento no nosso País“ (Idem, X/XII-1974: 3188). A fortalecer este reconhecimento público, a FPCA seria também convocada para dar o seu parecer e participar activamente na elaboração do novo projecto de lei do cinema que contava com a participação de dezenas de entidades (Ibidem: 3168-3169). Já poucos meses antes da Revolução, a nomeação de um representante para a composição do Conselho do Cinema (composto por 13 elementos) era também um sinal de reconhecimento pela importância deste sector cinematográfico no contexto português. Entretanto, a Federação Portuguesa de Cinema de Amadores é convertida na Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais. Ainda se colocou em hipótese a junção da FPCA com a FPCC para a criação de uma única estrutura mais fortalecida, mas essa hipótese acabou rejeitado por manifesto conflito de interesses dos associados das duas entidades. A nova Federação pretendia assumir agora um papel importante na coordenação de uma sector que, com o fim da ditadura e de qualquer tipo de entrave censório, multiplicaria exponencialmente a sua actrividade: 331 “O cinema dito 'amador', agora designado por cinema 'de formato reduzido', na linha de um maior comprometimento formal e substancial, que vinha já dos anos 70, parece ter deixado definitivamente a tradição de 'filme familiar', improvisado e manifestamente medíocre. Congressos nacionais, festivais de cinema (Guimarães e Algarve, por exemplo), encontros internacionais, publicações especializadas, são parte de uma acção concertada, partindo do trabalho da Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais, com relevo para alguns clubes do sector, como o Núcleo dos Cineastas Independentes.“ (Pina, 1986: 206-207) Em Junho de 1977, reunia em Évora o Encontro Nacional de Cinema NãoProfissional da Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais, numa iniciativa do Micro-Cine, o Zoom e o Núcleo de Cineastas Independente, com o apoio do Centro Cultural de Évora, numa competição marcada pelas distinções atribuídas ao Núcleo dos Cineastas Independentes (Cineclube, 14-15, X-1977: 53). Nesse mesmo ano, em Outubro, a oitava edição do Festival Internacional de Cinema de Amadores de Guimarães reunia 56 filmes proveniente de 17 países137. Com dois núcleos de produção em Guimarães (Convívio e Círculo de Arte e Recreio), um em Braga (Associação Cultural de Fotografia e Cinema de Amador de Braga) e o histórico Cine-Clube do Porto, a região Norte vai-se destacando gradualmente, e década de 1980 adentro, como um importante pólo na produção e circulação de cinema de amadores em Portugal. Ao longo das décadas de 50-70, apesar de não ter tido a dimensão numérico atingida pelo movimento cineclubista, o circuito de produção e exibição do cinema de amadores atingiu uma dimensão considerável no panorama cinematográfico nacional, contribuindo positivamente para a revelação de inúmeros cineastas amadores e inclusive para a passagem de alguns para o cinema profissional (António Campos, António Reis, Faria de Almeida, entre outros). Por outro lado, o processo de internacionalização do cinema de amadores português seria importante como uma espécie de um ensaio para um processo mais vasto de internacionalização que iria acontecer já no decorrer dos anos 60. Finalmente, o desenvolvimento de diversos clubes de amadores e de secções de cinema experimental foi determinante para que milhares de praticantes pudessem contactar, ainda que a vontade “normalizadora“ fosse notória, com estéticas e técnicas cinematográficas diversas e diferentes das convencionais e dominantes. 137 RFA (6), Áustria (2), Bélgica, Brasil (2), Bulgária (5), Espanha, Estado Unidos (7), Finlândia, Hungria (4), Itália (2), Japão, Luxemburgo, Malta, Suíça, Suécia, Turquia e Portugal (19). 332 3.4. Cinema moderno Na sua obra Screening Modernism. European Art Cinema, 1950-1980 (2007), András Bálint Kovács propõe analisar exaustivamente, histórica e esteticamente, o cinema de arte (art cinema) que foi produzido em vários países europeus desde meados da década de 50 até meados dos anos 70 do século XX. Não se trata, portanto, de uma história geral do cinema europeu desse período porque o autor defende que as obras fílmicas que podem ser classificadas como art cinema constituem apenas uma excepção à produção cinematográfica europeia do mesmo período. Em última análise, Kovács procura compreender a formação do cinema moderno através da emergência da noção de cinema de autor (cinema of auteurship, do termo francês auteur), recusando absolutamente a ideia de que o cinema de arte moderno possa constituir um estilo homogéneo. Para sustentar essa tese, Kovács propõe-se analisar atentamente as formas modernas de cada autor através de possíveis variações geográficas (regionais ou nacionais), culturais ou mesmo individuais, mas também através do estudo da evolução dos diversos movimentos ou correntes nacionais ou geracionais. No primeiro momento, através de uma abordagem mais formalista e teórica, Kovács tenta desenvolver uma noção de cinema de arte que seja definida por um conjunto de características estilísticas e estéticas próprias e com contextos históricos e filosóficos precisos. Partindo da análise de três conceitos-chave – moderno, modernista e vanguarda –, o autor pretende demonstrar que o cinema de arte foi um fenómeno fortemente influenciado pelos contextos artísticos de vanguarda que surgiram nas décadas de 1920 e 1960. O cinema de arte foi uma consequência directa da transposição ao cinema das teorias e princípios desses movimentos artísticos vanguardistas que, lentamente, se foi institucionalizando enquanto uma produção cinematográfica autónoma que se pretendia diferenciar quer do cinema de entretenimento de massas como do cinema experimental de vanguarda. No segunda parte do livro, Kóvacs procura descrever as diversas variações estilísticas do cinema moderno europeu das décadas de 60 e 70, nomeadamente através da caracterização dos seus processos narrativos, estilos visuais, conceitos estéticos e referências culturais e artísticas. Esta caracterização exaustiva envolve a análise de 241 filmes produzidos e estreados entre 1958 (Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais e Les 333 400 coups, de François Truffaut) e 1978 (Les rendez-vous d’Anna, de Chantal Akerman) em 14 países europeus – França, Itália, Polónia, Suécia, Grã-Bretanha, União Soviética, Checoslováquia, Hungria, Alemanha Ocidental, Espanha, Jugoslávia, Suíça, Grécia, Bélgica – e no México (dois filmes do espanhol Luís Buñuel). A definição deste corpus fílmico pretende ser uma súmula representativa de todo o cinema moderno europeu do período em estudo. Salta à vista a ausência do cinema feito em Portugal nesse período. O seu ponto de partida será demonstrar que o modernismo não constitui um estilo cinematográfico por si só. O cinema é considerado moderno por reflectir nos seus processos criativos um conjunto de características – nomeadamente narrativas e visuais – de diversas correntes de arte vanguardistas. A principal tese que Kovács apresenta nessa obra é a sua convicção de que o cinema moderno europeu, mais do que o conjunto de movimentos nacionais de renovação cinematográfica, foi uma realidade bastante heterogénea e de forte pendor transnacional com importantes referências a outras formas de expressão artísticas ou culturais da Europa do pós-Segunda Guerra Mundial. No fim da análise do corpus fílmico, Kovács propõe três características temáticas que são recorrentes no cinema moderno e que podem identificar um filme como sendo moderno: a) distanciamento do ser individual do meio social circundante; b) redefinição conceptual, subjectiva e mitológica do conceito de realidade (reality); c) reforço da ideia de vazio existencial (nothingness) por detrás da realidade visível (surface reality). Para além destas características temáticas, o cinema de arte moderno analisado por Kovács também apresenta três termos muito recorrentes: a) Abstracção, porque o filme moderno pretende abstrair-se da forma tradicional de representação artística do natural ou o real, impondo novos modelos de representação abstractos; b) Subjectividade, porque o filme moderno revela sobretudo uma inédita visão artística (a new artistic way), a visão do autor, sobre a realidade; c) Reflexão, porque o filme moderno é construído precisamente para ser encarado pelo espectador enquanto um exercício de reflexão sobre a realidade. 334 3.4.1. Manoel de Oliveira Na década de 1960, a afirmação da nova geração de cinéfilos modernos pressupunha uma ruptura radical com todo o passado cinematográfico português. Pontualmente, algumas figuras do passado eram poupadas à mediocridade, mas apenas um cineasta foi resgatado e reivindicado como património cinéfilo por essa geração dos anos 60. Progressivamente, algumas figuras do passado foram-se aproximando do cinema moderno: Manuel Guimarães, um dos nomes mais interessantes da medíocre década de 1950, teve como produtor em O Crime de Aldeia Velha (1964) o jovem António da Cunha Telles; Jorge Brum do Canto, um dos realizadores vanguardistas dos anos 30 que se “auto-exilou“ depois de Chaimite (1953), tentou uma aproximação à geração de 60 no contexto da elaboração e discussão da legislação cinematográfica de 1971; Artur Semedo, o actor “neo-realista“ dos filmes de Manuel Guimarães e galã do cinema português na década de 60, também tentou uma aproximação a várias figuras da nova geração (Cinema Novo Português, 1985: 146). Apesar das diversas aproximações, apenas Manoel de Oliveira foi reclamado como referência “paternal“ de um cinema português que não envergonhava a nova geração. No entanto, a relação directa de Oliveira com esta geração limitou-se, de facto, à participação na “Semana do Novo Cinema Português“ de 1967 e ao início do processo de produção de O Passado e o Presente. A nível pessoal, Oliveira sempre se mostrou muito reservado em relação a um envolvimento directo ou a um comprometimento mais sério com a nova geração cinéfila. Desde o início da sua carreira cinematográfica, Manoel de Oliveira optou por uma atitude de autonomia, independência e certa marginalidade no relacionamento com o meio cinéfilo envolvente. Até O Passado e o Presente (1971), Oliveira foi o produtor de todos os seus filmes e fazia questão de gerir de forma autoritária os seus projectos desde a concepção à conclusão. Para os defensores incondicionais de um cinema de autor, o exemplo do singular percurso cinematográfico de Manoel de Oliveira desde Douro, Faina Fluvial (1931) assumia o carácter de mito. Apesar de algumas divergências específicas na apreciação da obra de Oliveira, a generalidade dos jovens realizadores que reivindicavam uma renovação total no cinema português revia no cineasta as referências estética e ética necessárias à afirmação de uma ideia de cinema enquanto linguagem artística. Esteticamente, e sobretudo a partir de O Pintor e a Cidade (1956), a obra de Oliveira afastou-o irremediavelmente de todo o cinema português produzido no seu tempo, mas 335 aproximou-o, antes por cumplicidade do que por influência, de certos autores de referência na cinematografia europeia tidos como modernos. Eticamente, o facto de o cineasta ter percorrido um caminho marginal e independente do ponto de vista produtivo e criativo contribuiu para que os cinéfilos imbuídos de desejo de mudança e renovação o valorizassem enquanto um modelo de autor descomprometido, intransigente e impermeável às dificuldades. Na noite de 19 de Dezembro de 1954, a pretexto de uma retrospectiva do cinema português, o Cineclube do Porto exibiu o filme Aniki-Bóbó e homenageou Manoel de Oliveira. Nesse momento, para a generalidade da sociedade portuguesa, Oliveira era um industrial com 46 anos, antigo praticante de automobilismo e de ginástica, que tinha também desenvolvido, em tempos, uma carreira de realizador de cinema entre 1931 e 1942. Dessa passagem pelo cinema resultaram cinco curtas-metragens, uma longametragem e vários outros projectos que não foram realizados. Até 1942, Oliveira concebeu oito esboços de filmes que nunca conseguiria concretizar: A Bruma (1931), Ritos de Água (1931), Luz (1931), Desemprego (1934), Gigantes do Douro (1934), A Mulher que Passa (1938), Prostituição (1938) e Gente Miúda (1941). Apesar de alguns elogios de certos sectores da crítica e de alguns meios intelectuais e artísticos a Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bóbó, as suas duas principais obras de referências, Oliveira era uma figura manifestamente desconhecida do grande público nacional. Ainda assim, na cidade do Porto, o realizador era uma figura cara ao meio cultural e artístico local. A cidade tinha sido o berço do cinema português – foi aí que nasceu Aurélio da Paz dos Reis e que foram rodados os primeiros filmes realizados por portugueses, em 1896. Paralelamente, constituía um espaço de cinefilia, apoiado pelo maior e mais importante cineclube português de então, o célebre Clube Português de Cinematografia, fundado em 1945 e dirigido por Henrique Alves Costa. Apesar de todas estas condições especiais, o Porto era insignificante no contexto da produção cinematográfica portuguesa de então. Por tudo isto, insistir em prosseguir uma carreira cinematográfica aí era, por si só, um acto de marginalidade e de isolamento. Sobre a pouca visibilidade de Manoel de Oliveira na sociedade portuguesa da altura, Paulo Rocha (apud Melo, 1996: 44) recorda que, em finais dos anos 50, quando o conheceu pessoalmente, Oliveira era uma figura à margem do precário panorama cinematográfico português: “Quando o conheci era aluno no IDHEC [Paris]. Ele estava a fazer ao mesmo tempo O Pão, A Caça e O Acto da Primavera. Eu ia ver o material à mesa de montagem que ele tinha no Porto. Aquilo não era 336 nada industrial ou limpinho, via-se que tinha filmado quase sempre sem luzes, com luz natural, as panorâmicas tremiam e, às vezes, a montagem dava saltos. Era o contrário do que eu podia ver em Paris. Sentia-se o olhar de um homem só, o Manoel não era nada o realizador que é hoje, não era conhecido na Europa, em Portugal havia dez pessoas que gostavam dele. Achava que não teria futuro nenhum, que não voltaria a filmar.“ Sobre a homenagem do Cineclube do Porto, o crítico Manuel Pina não tinha dúvidas ao afirmar, na revista Imagem (1955: 455), que “Manuel de Oliveira continua a ser a única figura válida do nosso cinema“ e em sentenciar que “o cinema nacional precisa do sangue jovem de homens como Manuel de Oliveira“. João Bénard da Costa (Cinema Novo Português, 1985: 20) lembra que é precisamente a segunda série da revista Imagem, publicada a partir de Janeiro de 1954, que promove “a primeira tentativa unificada de recuperar como mestre Manoel de Oliveira, único cineasta português que poderia servir de exemplo“, estratégia bem expressa na publicação de “argumentos esquecidos de Oliveira“ como o projecto não-concretizado Bruma. Nesse mesmo ano, os filmes Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bóbó integravam a representação portuguesa ao I Festival Internacional de Cinema de São Paulo, no Brasil. e ainda em 1954, dando crédito à sua crescente curiosidade pela recente evolução dos novos processos cinematográficos, Oliveira ruma à Alemanha para fazer um estágio intensivo nas oficinas da AGFA, em Leverkusen, com o objectivo de estudar a cor aplicada ao cinema. No regresso, passa por Munique para adquirir uma máquina de filmar com as novas evoluções tecnológicas. Em 1956, após um interregno da actividade cinematográfica que se iniciara em 1942, o nome de Manoel de Oliveira regressa às telas em O Pintor e a Cidade, uma obra de curta-metragem que mudou radicalmente as referências cinematográficas de Oliveira. Abandonando as experiências de montagem iniciadas com Douro, o realizador afasta-se também do universo narrativo de Aniki-Bóbó. O próprio Oliveira (apud Costa, 1991: 110) viria a confessar posteriormente que O Pintor e a Cidade foi um momento determinante “na mudança da minha reflexão sobre cinema“: “Porque essa noção de plano longo, extremamente longo, propositadamente longo, não a fui buscar a outros filmes que conhecia. Não se faziam planos assim, em parte nenhuma do mundo, em nenhuma cinematografia. Em 1956, não se faziam ou eu não os conhecia.“ Junto da crítica nacional, o filme suscitou “viva polémica“: “Alguns dizem-no uma reportagem rápida e superficial. Outros, afirmam-no profundo e cheio de significado.“ 337 (Nuno Portas apud Diário de Lisboa, 27-XI-1956: 7). O entusiasmo dos mais optimistas prenunciou o sucesso internacional do filme, que granjeou diversos elogios em Paris e Veneza e veio a conquistar um importante prémio no festival irlandês de Cork. Em Portugal, o documentário também recebeu o prémio de melhor fotografia do SNI, uma decisão significativa que antevia uma alteração na relação daquela instituição com o cineasta. A presença deste filme no festival de Veneza de 1957 marcou definitivamente a carreira internacional de Manoel de Oliveira. No prestigiado certame italiano, o filme foi visto e elogiado pelo crítico francês André Bazin, um dos fundadores e “pai referencial“ dos Cahiers du Cinéma. Apresentados por intermédio de Joaquim Novais Teixeira, jornalista português radicado em Paris e colaborador de diversos jornais brasileiros, Oliveira e Bazin tornam-se grandes amigos. Sobre esta aproximação, Jacques Lemière (2001: 120) lembra: “É André Bazin ‘que acaba de ver um filme de um desconhecido’, quando Oliveira, uma manhã de 1957, em Veneza, a conselho de um amigo, lhe mostra ‘O Pintor e a Cidade’, que recebera um acolhimento caloroso no festival de documentários realizado paralelamente à Mostra. Bazin só depois descobre ‘Douro, Faina Fluvial’, já no Porto, onde esteve a convite de Manoel de Oliveira; fica surpreendido pelas diferenças na montagem dos dois filmes e consagra-lhe um artigo em Outubro de 1957, nos Cahiers du Cinéma (Positif, a revista rival, dedica um artigo geral à sua obra, em Outubro de 1957, depois de uma primeira menção no seu número 4 de 1953).“ Em Agosto de 1957, Manoel de Oliveira recebeu André Bazin na sua residência no Douro para uma curta estadia de férias passadas entre o Porto, o Douro e o Minho. Para além das viagens pelo Norte de Portugal, Bazin pôde visionar toda a obra de Oliveira e escrever sobre ela no regresso a França. Esta estada cimentou definitivamente o reconhecimento internacional do cineasta português, sobretudo entre os leitores cinéfilos da revista francesa. Ainda nesse ano, o Cineclube de Estremoz publicou uma obra com textos de vários autores, intitulada Manuel de Oliveira. A reacção do público cinéfilo, e do cineclubista em particular, foi bastante positiva, ao mesmo tempo que a crítica começava a questionar os critérios de atribuição de subsídios do SNI. Uma redefinição da estratégia de apoio público ao cinema, seguramente influenciada pelas recentes homenagens e pelo sucesso internacional de O Pintor e Cidade, levou o SNI a atribuir, em 1958, dois subsídios a Oliveira para realizar os surpreendentes Acto da Primavera e A Caça. 338 João Bénard da Costa (1985: 22) afirma com segurança esta relação entre as homenagens e a redefinição da política de apoio do SNI: “Louvores gerais, neste sector da crítica que gerava o novo cinema, só a O Pintor e a Cidade. E a aclamação unânime em torno de Oliveira, deu finalmente, resultados: a Federação Nacional de Moagem lhe encomendou O Pão (59) como o Fundo o contemplou pela primeira vez (em 58) para os filmes que cinco anos depois seriam A Caça e Acto da Primavera.“ Em 1959, portanto, sob encomenda da Federação Nacional de Industriais da Moagem, e a pretexto de fazer um documentário técnico, Oliveira realiza O Pão (1959), um filme que explora o ritual das implicações sociais, religiosas e místicas do cultivo do trigo: “o trabalho para seu sustento engrandece o homem“ e “o pão, símbolo divino/humano de partilha“; o motor do filme assenta na relação entre o homem e a máquina, na velha dicotomia entre o espiritual e o material (Matos-Cruz, 1996: 76). Mas a história do cinema português é pródiga em contradições e na mesma época em que lhe foram atribuídos os subsídios públicos, Oliveira foi preso pela PIDE, num processo ainda hoje pouco conhecido. Esta detenção, assim como a de outros cinéfilos – José Fonseca e Costa, Vasco Granja, Henrique Espírito Santo e José Manuel Castello Lopes – parecia justificar-se na época por um recrudescimento da vigilância da Censura e da política política (PIDE) na ressaca do “terramoto Delgado“138 e outros acontecimentos políticos (Pina, 1978: 44). Segundo os arquivos da PIDE (Registo Geral de Presos, livro 133, registo 26500), o “industrial“ Manoel de Oliveira foi “capturado em 5-12-63, pela delegação do Porto, por actividades contra a segurança do Estado“, e foi “restituído à liberdade em 11-12-63“. No processo n.º 524-CI(1) do arquivo da PIDE/DGS regista-se que Oliveira já estava referenciado junto da polícia política do regime desde Maio desse ano. O processo individual n.º 21484 dos arquivos da PIDE/DGS aponta razões políticas para a detenção do cineasta, nomeadamente a ligação a organizações clandestinas de oposição ao regime. O incumprimento do contrato em relação a estes dois filmes levaria o SNI a voltar a impor restrições ao realizador em dois projectos que não se concretizaram: Saudosa 138 Em 1957, Humberto Delgado (1906-1965) apresenta-se como candidato às eleições para a Presidência da República contra o candidato do Regime e apoioado pela maioria da oposição. Durante a campanha eleitoral, Delgado entrou em choque directo com Salazar – atitude que lhe valeu o cognome de “General sem medo“ - e a sua ditadura e mobilizou de forma espontânea a generalidade da população portuguesa. As eleições não foram livres e Humberto Delgado acabou derrotado. O futuro do “General sem medo“ passou pelo exílio no Brasil. Acabou assassinado pela polícia política de Salazar em Badajoz, Espanha. 339 Rosa, apresentado aos concursos de 1962 e 1963, e Velha Casa – Monstruosidades Vulgares, apresentado aos concursos de 1963 e 1964 (cf. Cruchinho, 2001: 345). Neste período, por motivos diversos, Oliveira também deixou por realizar os projectos Retratos de um Povo, Bairro de Xangai, Vilarinho da Furna ou De dois mil não passarás. Concretizado em 1962, Acto da Primavera era uma representação popular do Auto da Paixão de Cristo (a partir do texto quinhentista de Francisco Vaz de Guimarães), rodado in loco numa pequena comunidade transmontana. Insistindo num documentarismo experimental, Oliveira inicia um estilo de cinema designado por “cinema da palavra“, “um cinema em que a palavra (o teatro) se tornava no próprio cerne da sua existência“ (Costa, 1991 122). Com notórias influências de Luís Buñuel, A Caça (1964), por outro lado, é uma metáfora criativa da violência humana e da natureza. A recepção crítica destas obras mereceu uma “homenagem nacional“ promovida pela revista Plateia (Setembro), almoço de homenagem em Lisboa (28 de Setembro), retrospectiva no Cineclube de Beja (30 de Setembro) e no Cineclube do Porto (13 de Outubro), um número especial da revista Filme (Dezembro) e a conquista do Prémio da Casa da Imprensa. A Cinemateca Nacional aderiu às diversas iniciativas, cedendo por empréstimo as cópias dos filmes de Oliveira que integravam o seu espólio. Até a televisão pública portuguesa homenageou Oliveira, emitindo o filme Aniki-Bóbó (24 de Setembro) e um programa especial com entrevista ao cineasta (28 de Setembro). Da nota de intenções e justificação da homenagem promovida pela Filme (XII1963: 1), constam as seguintes passagens: “Nada mais justo, nada mais imperioso do que a homenagem agora prestada a um homem que, há 34 anos, vem mostrando que o cinema português existe. […] Se olharmos a história do cinema português, vemos uma figura atravessá-la luminosamente sem um momento de transigência, sem um segundo de mau gosto, sem um instante de desvio, sempre no rumo da qualidade, da perfeição artística e humana, procurando, experimentando, tentando sempre. […] Por tudo isso o cinema português, fora de fronteiras, é apenas Manuel de Oliveira, por isso o seu nome figura em todas as histórias de cinema, por isso críticos e ensaístas se dedicam à sua obra, por isso os festivais querem mostrar fitas suas. Os prémios, as manifestações de apreço e, a exibição comercial do Acto da Primavera em Paris, bem revelam a estima que nos cinemas adultos desperta a sua obra.“ Na nota de intenções Baptista Rosa, director da revista Plateia (IX-1963: 1) fazia o apelo: “Ora o caso de Manuel de Oliveira, porque é exemplo ímpar no Cinema Português, merece e devia ser realçado, sobretudo numa altura em que se vislumbram novos horizontes e se acredita na 340 possibilidade do filme feito em Portugal por gente nova. A esses, aos que têm sobre si concentradas a esperança e a atenção dos que crêem na possibilidade de um filme português digno, a esses se aponta o caso – que é um exemplo – do cineasta portuense. […] Uma homenagem a Manuel de Oliveira! Que ela fique como testemunho de admiração à sua valiosíssima obra e seja promessa de que os novos – os do novo cinema português – vejam também na integridade, na intransigência, no aprumo moral do seu autor um exemplo a seguir!“ Internacionalmente, o filme também recolheu vários elogios depois de ter estreado comercialmente na sala Studio du Val de Grâce de Paris. Para além da Medalha de Ouro do Festival de Siena em 1964, o cineasta seria ainda homenageado, conforme Lemière (2001: 120), na Suíça e em França: “Mais tarde, os jovens herdeiros de Bazin retomarão a relação (interrompida, pela morte daquele), entre Bazin e Oliveira. Progressivamente, à medida que os filmes do realizador vão sendo exibidos em retrospectivas e em festivais, serão eles a criar a noção de obra de Oliveira em artigos nos Cahiers du Cinéma: Festival de Locarno, em 1964, Cinemateca Francesa, em 1965. (…) Jacques Bontemps, em 1964, presta homenagem ‘à excepção portuguesa’ que, com ‘A Caça’ e com ‘Verdes Anos’ de Paulo Rocha, salva o Festival de Locarno ‘das más intenções’ do resto da selecção. Depois surgem as rigorosas ‘Notas sobre a obra de M. de Oliveira’, nos Cahiers de Fevereiro de 1966, sob a pena de Jean-Claude Biette (para ‘A Caça’ e ‘Acto da Primavera’ exibidos na retrospectiva da Cinemateca Francesa).“ De facto, a figura e a obra de Manoel de Oliveira conquistavam, desde meados dos anos 50, um significativo reconhecimento cinéfilo internacional. A juntar aos prémios e menções elogiosas a O Pintor e a Cidade (em Cork, São Francisco e Barcelona), O Pão (em Cork e Bilbau) e Acto da Primavera, Oliveira veria também reconhecido internacionalmente, quase duas décadas depois, o seu primeiro filme de longametragem: em 1961, Aniki-Bóbó recebeu uma Menção Honrosa no Festival da Juventude de Cannes. No ano seguinte, Oliveira integrou o júri internacional do III Rassegna del Cinema Latino-Americano de Sestri-Levante, em Itália, que contou com outras figuras notáveis como Edgar Morin (França), Gideon Bachman (EUA), Giulio Cesare Castello (Itália), Kashito Kawakita (Japão), R. N. Saksena (Índia), Luís Berlanga (Espanha), Joris Ivens (Holanda), Renato May (Itália), Louis Marcorelles (França), Tino Ranieri (Itália) e Manuel Villegas López (Espanha). Em Dezembro de 1965 e em Fevereiro do ano seguinte, a revista Cahiers du Cinéma publicou dois artigos sobre a obra de Oliveira. Internamente, o realizador era cada vez mais uma referência para a jovem geração. Sobre este crescente estatuto, António-Pedro Vasconcelos (Cinema Novo Português, 1985: 143) recorda: 341 [H]ouve uma ruptura total entre nós e a geração precedente. O único cineasta que ‘salvávamos’ era o Manoel de Oliveira, praticamente sem filmar, desde Aniki-Bóbó e que retomara a sua actividade subitamente no final dos anos 50. […] A ruptura era com o passado. A nossa visão do velho cinema seria talvez demasiado severa e demasiado ingrata, mas na verdade não tínhamos referências no passado, tirando o Oliveira. Alberto Seixas Santos (Ibidem: 145) também lembra que “o Paulo Rocha tinha um pai expresso que era o Oliveira“. Apesar desta afirmação ser extensível à quase totalidade dos seus colegas de geração, o próprio Paulo Rocha (apud Melo, 1996: 55) confessa que “gostaria de ser considerado como herdeiro de Manuel de Oliveira“, mas afasta essa ideia porque não terá conhecido “suficientemente cedo a sua obra completa.“ No entanto, desde que se conheceram pessoalmente, Oliveira e Rocha mantiveram uma relação de amizade próxima. Ainda enquanto estudante em Paris, Paulo Rocha colaborou de forma activa com Oliveira na conclusão de Acto da Primavera. As imagens de filmes de actualidades que compõem a sequência final do filme foram seleccionadas por Paulo Rocha, que a pedido expresso do próprio Oliveira as procurou em alguns arquivos fílmicos parisienses. Sensivelmente na mesma altura, no final de 1961, Manoel de Oliveira e Paulo Rocha apresentaram ao SNI um pedido de subsídio à produção para um projecto comum. O projecto de longa-metragem, intitulado Saudosa Rosa, “uma quase comédia musical“ de aspirações etnográficas, rodado exclusivamente em cenários naturais, juntava o produtor Manoel de Oliveira – que assinaria também a direcção de fotografia – ao estreante e desconhecido realizador Paulo Rocha. A participação financeira do SNI seria negada ao projecto porque Manoel de Oliveira se encontrava alegadamente em situação de incumprimento face aos contratos anteriores dos filmes A Caça e Representação Popular do Auto da Paixão (título de rodagem de Acto da Primavera). O projecto Saudosa Rosa acabaria por ser abandonado devido à falta de apoio financeira à produção por parte do SNI e ao envolvimento de Paulo Rocha com o produtor António da Cunha Telles (ANTT-IGAC-1inc, caixa 689, processo 9). O projecto Rio do Ouro (1964) que, a ser concretizado, seria a segunda longametragem de Paulo Rocha, constituía, nas palavras do próprio, “uma homenagem aos lugares de Manoel de Oliveira (o rio Douro – a amizade).“ Esta cumplicidade com Paulo Rocha não fazem dele um herdeiro natural, mas acusam uma enorme cumplicidade 342 pessoal e artística entre os dois portuenses, que fomentou também a aproximação de Oliveira a outros membros da nova geração. Fernando Lopes (1985: 60) lembra alguns momentos dessa proximidade estética inicial: “Foi à sua custa que Manoel de Oliveira fez A Caça, um filme que nos impressionou muito e que alguns de nós consideramos ser o melhor filme que ele fez até hoje, e que poderia ter sido um vei possível para o cinema português. Lembro-me bem de ter visto o filme numa sessão privada com o Fonseca e Costa, o Cardoso Pires e o Cunha Telles, que tinha muito viva a ideia de que era preciso apanhar o Oliveira para o núcleo de 3 ou 4 cineastas que poderiam aparecer internacionalmente como a imagem do cinema português…“ Sobre a relação de Fonseca e Costa com Oliveira, convém realçar que foi o jovem cinéfilo e realizador, que entretanto estagiara em Itália com Michelangelo Antonioni, quem realizou o trailer promocional de Acto da Primavera. Em 1966, o jovem produtor António da Cunha Telles tentou produzir um filme com realização de Manoel de Oliveira. Apresentado ao SNI em Janeiro de 1966 para pedido de um subsídio à produção, o projecto A Faca e o Rio era bastante ambicioso e pretendia contar com a participação de Anna Karina como protagonista (ANTT-IGAC-1inc, caixa 693, processo 4). A escolha de um dos ícones da nouvelle vague e musa de Jean-Luc Godard (com um cachet que representava um terço do orçamento total) e a previsão de rodagem parcial do filme no Brasil demonstram um enorme desejo de internacionalização do cinema português, neste projecto tentado pelos produtor e realizador portugueses mais prestigiados fora de portas. O projecto acabaria por ver rejeitado o pedido de subsídio e não avançou. Em Setembro de 1964, num debate promovido pela revista O Tempo e o Modo (1964: 134-135) em torno dos filmes Os Verdes Anos e Belarmino – “os primeiros filmes que uma geração ousa reivindicar“ –, Alberto Seixas Santos (Cinema Novo Português, 1985: 27) apresentava as primeiras reservas públicas à influência de Oliveira sobre a jovem geração: “Em meio século de cinema português contam-se pelos dedos – contam-se ainda – os homens e as obras dignas de estima. Quatro nomes, Leitão de Barros, Brum do Canto, Cotinelli Telmo e Manuel de Oliveira. Três filmes, Maria do Mar, A Canção da Terra e A Canção de Lisboa, e uma obra, a única coerente de todo o nosso infeliz cinema, cartada corajosamente jogada e perdida. Perdida pelos erros do cineasta, perdida também pelas limitações do cinema que quis servir. Manuel de Oliveira, mestre exemplar de moralidade não o é obrigatoriamente de cinema. E esta afirmação é um aviso que é bom 343 seja feito hoje, quando o mestre do norte começa a tomar, nas bocas mais jovens, as cores exaltantes do mito.“ Mas a aproximação de Manoel de Oliveira aos jovens cineastas do Novo Cinema era cada vez mais evidente e inevitável. Ainda em Março desse ano, Pierre Kast assinava na Cahiers du Cinéma (III-1964: 41-42) um texto intitulado Lettre de Lisbonne, em que anunciava a “nouvelle vague portugaise“ promovida por cinco portugueses “unis comme les doigts de la main“ (unidos como os dedos de uma mão) – Paulo Rocha, Fernando Lopes, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães e António da Cunha Telles – que “aiment un ainé, Manuel de Oliveira“ (amavam um ancião, Manoel de Oliveira). O “idoso“ adorado por estes jovens é apresentado por Pierre Kast como um “artisan type complet“ (arteão de mão cheia) que “fait tout chez lui, à Porto, tout seul“ (faz tudo em casa, no Porto, sozinho). Em Setembro seguinte, em artigo sob a forma de “dicionário da nova vaga portuguesa“, a revista Celulóide (IX-1964: 9) inclui o nome de Manoel de Oliveira entre os jovens da “nova vaga“: “Apaixonado do cinema, cineasta talentoso, o caso de Manuel de Oliveira é único na história do cinema português. Ele foi sempre um exemplo, um autor vanguardista, distinto dos seus colegas em idade, em espírito e em significado, foi o primeiro realizador da nova vaga portuguesa.“ Nesse mesmo mês, a “homenagem nacional“ promovida pela revista Plateia tinha contado com a participação de várias figuras do novo cinema, como Nuno Bragança, António Reis, Paulo Rocha e José Fonseca e Costa, entre outros. Em 1966, Oliveira participou numa entrevista a Paulo Rocha e Fernando Lopes, conduzida por Gérard Castello Lopes e António-Pedro Vasconcelos e publicada na revista O Tempo e o Modo (40, VII-1966: 715-739; 51, VIII-1966: 849-872). A certa altura dessa entrevista – que foi, na verdade, mais uma mesa-redonda –, Fernando Lopes afirmou, a respeito da história do cinema português, que houve um “salto“, do “ponto de vista cultural“, entre A Canção de Lisboa e Os Verdes Anos: “passaram-se trinta anos mais ou menos, e no meio disso só houve o caso de Manuel de Oliveira que isoladamente continuou a fazer obras“. Poucos meses depois, Paulo Rocha voltaria a elogiar a singularidade de Manoel de Oliveira numa entrevista dada à Cahiers du Cinéma (X-1966: 22) a propósito do seu filme Mudar de Vida: 344 “Temos o caso de Manuel de Oliveira, que é um bom exemplo, para tudo o resto. Tem presentemente cinquenta e seis anos, fez duas longas-metragens. Começou a vida profissional aos dezanove anos, comprando uma máquina e realizando Douro, Faina Fluvial, que representa um dos mais belos inícios da história do cinema: fazer aquilo há vinte anos, é Orson Welles sem a América. […] Se no passado, a indústria e os responsáveis não admitiram que, para o progresso do nosso cinema, Oliveira deveria ter dirigido um filme todos os anos, não se vê porque irão agora mudar de atitude. Ele poderia ter feito uma grande obra. Em lugar disso, nada mais temos do que fragmentos e quase todos desconhecidos do público português. Agora Oliveira começa a ser conhecido dos críticos europeus. Nada impede, contudo, que novamente todos os anos lhe recusem subsídios ou apoios, oficiais ou particulares. Mesmo a Fundação Gulbenkian. As pessoas que assim agem tomam grandes responsabilidades: trata-se de um crime contra a cultura.“ Em Dezembro de 1967, o Cineclube do Porto organizou uma semana de exibição e debate designada “Semana do Novo Cinema Português“. Para estimular os trabalhos, a direcção do Cineclube do Porto decidiu convidar um leque variado de personalidades que consideraram ter, directa ou indirectamente, uma intervenção positiva na discussão do “estado cinéfilo da nação“. Demonstrando que este encontro não se destinava apenas a figuras cronologicamente mais novas, foram convidados vários elementos de gerações mais velhas que, de certa forma, sempre preconizaram uma renovação e se apresentavam como contributos válidos, como os cineastas Manoel de Oliveira e Manuel Guimarães, ou os críticos Roberto Nobre e Manuel de Azevedo. Os convites selectivos endereçados excepcionalmente a algumas figuras de outras gerações, da crítica à realização, deixam supor que a geração do Novo Cinema Português valorizava não só o passado destas figuras mas também os hipotéticos contributos que pudessem dar no presente e no futuro para a afirmação e reconhecimento do esforço de renovação estética que pretendiam. A presença de Oliveira entre os convidados “seniores“ parece ser bastante representativa da sua importância junto da nova geração de cineastas. E Oliveira correspondeu às expectativas da organização. Não só compareceu como foi parte activa no debate mais importante da iniciativa. O ponto alto do encontro estava reservado para o penúltimo dia, quando se realizou uma mesa-redonda subordinada à hipótese de uma provável intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian junto da nova geração. A sessão foi a mais concorrida e contou com a presença de todas as figuras fundamentais do então Novo Cinema. Desta agitada mesa-redonda haveria de resultar um breve relatório assinado por vários dos realizadores presentes – incluindo Manoel de 345 Oliveira – dirigido à Gulbenkian, numa primeira versão do célebre Ofício do Cinema em Portugal. Apresentadas as duas principais propostas em debate, venceu a designada “solução total“ defendida sobretudo por José Fonseca e Costa, António de Macedo e Fernando Lopes, segundo a qual se preconizava “a ideia de um bloco de cineastas que estabeleceriam entre si certas regras para dividir o dinheiro“ (Cinema Novo Português, 1985: 64). A proposta vencida, defendida por figuras como Manoel de Oliveira e Paulo Rocha, designada por “ideia dos subsídios de qualidade“, previa a preservação de “uma diáfana qualidade de artistas que pairam acima dos dinheiros e das discussões para os arranjarem“ (ibid.:). Uma das decisões mais significativas dessa mesa-redonda foi o compromisso assumido entre todos, antes mesmo de se conhecer a viabilidade do apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian, de “fazer regressar o Manoel de Oliveira ao cinema de ficção“ (ibid.). No entanto, e contrariando esta versão dos acontecimentos, Paulo Rocha (apud Ibidem: 76) afirmou que o “cinema novo decidiu apoiar o Manoel“ num “célebre almoço na Casa do Alentejo [em Lisboa]“. Esta afirmação de Rocha supõe que o compromisso de Manoel de Oliveira com os jovens do Novo Cinema foi tomado antes da reunião que teve lugar no Porto. Aceitando esta versão adiantada por Paulo Rocha, a defesa do regresso de Oliveira como “bandeira“ da nova geração reveste-se ainda de maior relevância. O prestígio de Manoel de Oliveira e a sua importância na legitimação da nova geração de realizadores são ainda mais reforçados. Em finais de 1967, Oliveira acabava de fazer 59 anos e encontrava-se sem filmar uma longa-metragem desde Acto da Primavera (1962). Depois de vários interregnos, o cineasta fazia uma nova “travessia do deserto“ mas, desta vez, denotava já sinais privados de desencorajamento e de desespero face à situação. Sobre esta desilusão de Oliveira com o cinema português, Paulo Rocha (apud Queiroga, 1998) recorda: “Eu ainda tenho uma carta, quando estou a acabar o Mudar de Vida, do Manuel de Oliveira, em que ele me diz: ‘Dou-lhe os parabéns, você ainda consegue filmar. Pois olhe, eu já acabei a minha obra, a minha carreira. Nunca mais conseguirei filmar. Estou para aqui no Porto e não se consegue fazer nada.’ É uma carta extremamente pessimista, de 1966 ou 1967, em que ele, não sei, deveria ter 50 e tal anos e achava que a carreira dele tinha acabado.“ Ainda a este propósito, António-Pedro Vasconcelos também sublinha o mesmo sentimento (Ibidem): 346 “E nós dizíamos todos – o Manoel de Oliveira tinha 60 anos na altura: ‘É preciso dar uma chance ao Oliveira’. Lembro-me que ele teve o orçamento mais caro de todos, toda a gente contribuiu, toda a gente estava disposta a sacrificar-se para que ele fosse um dos primeiros a filmar a cores – poucos de nós filmamos a cores – e todos nós no íntimo dizíamos: ‘Provavelmente é o último filme que o Manoel de Oliveira vai fazer’.“ Para a generalidade dos elementos que assinaram o Ofício do Cinema em Portugal, era fundamental reforçar o papel “aglutinador“ da figura de Manoel de Oliveira em relação às heterogeneidades do Novo Cinema e permitir que este filmasse a sua “última“ obra. Esta possibilidade seria a moeda de troca para convencer Oliveira a “apadrinhar“ o grupo na missiva junto da Gulbenkian. Segundo Fernando Lopes (Cinema Novo Português, 1985: 64), o cineasta parece ter cumprido a sua parte do acordo: “Julgo que ele [Azeredo Perdigão] se chegou a entusiasmar tanto com o Centro […] porque no Centro estava o Manoel de Oliveira e porque o Manoel lhe disse que, não sendo embora aquela a fórmula por si pretendida, o que nós fizéssemos ele fazia connosco.“ Para António de Macedo (apud Cunha, 2005: 64-65), a Gulbenkian sempre rejeitou ajudar financeiramente o Novo Cinema com os pretextos de os estatutos da instituição só permitirem a intervenção com fins caritativos e artísticos, e de o cinema não ser visto como objecto de expressão cultural ou artística, mas exclusivamente como indústria. De acordo com o cineasta, com o tempo, vários factores permitiram alterar esta conjectura: o arrojo estético das propostas das Produções Cunha Telles; a evolução da obra de Manoel de Oliveira, sobretudo com Acto da Primavera e A Caça, e a sua “colagem“ à nova geração; e a formação cultural de jovens realizadores no estrangeiro. Fernando Lopes não se cansa de insistir que a “batalha“ pelo reconhecimento institucional do Centro Português de Cinema (CPC) só foi possível devido ao empenho pessoal do presidente da Gulbenkian. Por mais que uma vez, Lopes (1985: 63-64) sustenta a tese de que Azeredo Perdigão “deve ter ido às mais altas instâncias“ e deve ter apostado “o seu prestígio de jurista e o peso da Fundação Gulbenkian“ para ver aprovados os estatutos pelo Ministério do Interior. A justificação deste interesse reparte-se, ainda segundo Fernando Lopes (Ibidem), por três argumentos: “o Centro reunia todos os cineastas e técnicos que podiam dar alguma coisa ao cinema português“; “o João Bénard da Costa foi junto do Dr. Azeredo Perdigão apóstolo do Centro“; e “no Centro estava Manoel de Oliveira“. 347 Em Setembro de 1970, depois de algumas negociações e ultrapassados obstáculos burocráticos, a Fundação Calouste Gulbenkian desbloqueou finalmente o dinheiro prometido, o que permitiu o arranque das primeiras produções do CPC e a assinatura dos primeiros quatro contratos, com Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, Alfredo Tropa e António-Pedro Vasconcelos (Cinema Novo Português, 1985: 35-38). A escolha destes quatro projectos do primeiro plano de produção resultou do seio da própria cooperativa. No caso de Oliveira, a decisão tinha sido tomada já no Porto, em Dezembro de 1967, ou mesmo antes, como afirma Paulo Rocha. De qualquer forma, a decisão foi aprovada publicamente pelos participantes na mesa-redonda, ao assumir o compromisso de fazer regressar o veterano realizador ao cinema de ficção. Sobre esta decisão, Lopes (1985: 64) lembra que “não houve qualquer discussão“ e justifica a decisão de então: O ponto comum [dos jovens cinéfilos] era, de facto, a defesa de um cinema português com existência estética e social. Ao que se juntava a questão da defesa táctica de Manoel de Oliveira. Esclareço que, desde sempre o Oliveira provocou paixões e posições divididas. Para o António-Pedro [Vasconcelos] as dúvidas eram muitas, mesmo se mais tarde veio a ser capital na ajuda que prestou na produção do Amor de Perdição e do Francisca, embora oportunisticamente fosse o Paulo Branco a recolher os louros, o que muito me irrita. Também para o Seixas Santos, obviamente, o Manoel de Oliveira estava longe de ser o cineasta dos seus amores. O João César Monteiro, esse sim, é o primeiro dos cineastas novos a defender o Manoel de Oliveira, talvez por espírito de contradição… Havia, claro, o Paulo Rocha que se queria um discípulo, mesmo um herdeiro… […] O Fonseca e Costa foi não só um defensor, como teve uma ligação particular ao Oliveira. […] Creio que o Fonseca gostava sinceramente do Oliveira e entendia que um filme como A Caça podia ter sido todo um programa do cinema português. A rodagem de O Passado e o Presente teve um custo final de cerca de três mil contos, uma produção significativa para a época, sobretudo por ter sido rodado em película a cores. Apesar de representar uma percentagem gigantesca no orçamento total do CPC, os membros da cooperativa não manifestaram – pelo menos publicamente – qualquer tipo de discordância quanto à concretização do projecto. Em contrapartida, os outros três projectos do primeiro plano de produção saíram “prejudicados“, por terem tido de dividir entre si cerca de mil e quinhentos contos (sensibilizada pelas dificuldades, a Gulbenkian havia actualizado o subsídio inicial de três mil e duzentos para quatro mil e quinhentos contos). Para além de um custo substancialmente mais barato – Perdido por cem… e Pedro Só custaram apenas cerca de novecentos contos cada 348 e foram filmados em película a preto-e-branco –, os restantes filmes registaram enormes atrasos e diversas dificuldades de produção (Ibidem: 40). A escolha do “último“ filme de Oliveira para a apresentação pública do projecto CPC foi também bastante significativa. A sessão de gala no Auditório da Gulbenkian, a 25 de Fevereiro de 1972, à qual assistiria o próprio Presidente da República, permitiu, através de uma manifestação pública, consagrar este projecto como o momento de afirmação definitivo do Novo Cinema. No discurso de apresentação da sessão, da responsabilidade do presidente da direcção do CPC, Fernando Lopes (Ibidem: 104) começa por se referir a Oliveira como um cineasta “cuja obra tem merecido, a vários títulos, a reflexão atenta e inquieta dos novos cineastas portugueses“ e comenta o percurso da sua obra: “Data de 1929, já lá vão 43 anos, o início das filmagens de Douro, Faina Fluvial, acontecimento importante na cultura portuguesa e, porque não dizê-lo, na história do cinema mundial. Entre esta obraprima e o filme que hoje vamos ver, a carreira de Manoel de Oliveira retrata dramática mas exemplarmente, através dos seus longos e frustrantes silêncios a que se viu constrangida, o que tem sido o ofício do cinema em Portugal.“ Para terminar o seu discurso, Lopes reafirmava publicamente, sem deixar margens para dúvidas, que o filme de Oliveira que o CPC produziu era a prova inequívoca que a nova geração se orgulhava “de o ter na sua família“ (Ibidem). Esta iniciativa permitiu que a Gulbenkian e o CPC exigissem ao regime o reconhecimento expresso da “falência estatal da produção cinematográfica por intermédio do Fundo do Cinema Nacional“, bem como a perda da “tutela da produção“, através da imposição de um “modelo de produção liberto de todos os condicionalismos“. Por outro lado, o CPC impunha uma nova ideia de cinema – “visão do cinema como facto cultural“ – e afirmava-se como “o único agente efectivo da produção cinematográfica em Portugal“ (Ibidem: 102). Com O Passado e o Presente, mais uma vez, o cinema de Oliveira “deu azo a grande expectativa, e maior polémica.“ Não ficando indiferente, Oliveira continuava a dividir opiniões: “A crítica mais tradicional ficou perplexa ou condenou em bloco. Mas a nova crítica cerrou fileiras“ (Monteiro, 1995: 677-678). João Bénard da Costa (1985: 39) resume da seguinte forma a recepção do filme: “Inclassificável continuava Oliveira com a obra que, de novo, o tornava no mais polémico cineasta português. O Passado e o Presente foi, de todos os filmes desse ‘lote’ [primeiro plano de produções do 349 CPC], o mais apaixonadamente defendido e o mais apaixonadamente atacado.“ Mais recentemente, o mesmo Bénard da Costa (2001: 10) resumiu a recepção ao filme em duas posições completamente antagónicas: “Para os detractores – e muitas figuras conhecidas da cultura portuguesa o foram – o sóbrio Oliveira dos filmes precedentes, que soubera documentar tão bem o Porto ribeirinho ou representações ancestrais transmontanas, perdia-se numa ficção pretensiosa que de mau teatro passara a péssimo cinema. Para os defensores – que até aí tinham visto em Oliveira mais um exemplo moral do que um expoente da modernidade – ‘O Passado e o Presente’, subvertendo os códigos da representação, assumindo a teatralidade como matéria especular e virando as costas quer ao naturalismo quer ao realismo, era uma proposta original na querela iconográfica do tempo, e o primeiro filme moderno do seu autor.“ Sobre este aspecto, Fernando Lopes (1985: 65) confessa que a recepção crítica do filme foi também influenciada pela defesa dos interesses subterrâneos da cooperativa e de toda a família do Novo Cinema: “Tanto que, depois da estreia na Gulbenkian, quando a fita começa a receber maus tratos, nós saltámos todos em defesa do Manoel e do Passado e o Presente. Porque em revistas como a ‘Seara Nova’ e a ‘Vértice’, ou nos meios intelectuais, pessoas como o José Gomes Ferreira e o Carlos de Oliveira levantaram sérias reservas… […] Só que nós respeitávamos muito pessoas como o Carlos de Oliveira e o José Gomes Ferreira. Ainda se fossem outros… o próprio Abelaira, já mais próximo de nós, punha as maiores dúvidas. De maneira que nós entrámos no chamado terrorismo… […] Por exemplo, o César [Monteiro] escreveu provavelmente o melhor texto da sua vida. É a famosa teoria de que o cineasta é grande demais para o país, donde a necessidade de o cortar aos bocados… Talvez, no CPC, alguns colegas meus não gostassem do filme, particularmente o Macedo que, diga-se, nunca terá gostado muito do Oliveira. No que era coerente. Como o filme desempenhava um papel importante no lançamento do Centro, o António de Macedo foi impecável, nunca se pronunciando publicamente contra o filme. A mesma coisa se passou com o Artur Ramos. Nisso houve unidade, pelo menos durante o primeiro ano de funcionamento.“ Pela condição de ser a primeira obra da cooperativa e de ser assinada por Manoel de Oliveira, a defesa estratégica desta obra representava provavelmente a afirmação estética do programa de intervenção do CPC e a sobrevivência do próprio Novo Cinema. No que diz respeito ao relacionamento dos jovens cinéfilos da sua geração com Oliveira, o sempre polémico João César Monteiro (Diário de Lisboa, 10-III-1972: 1) chega à seguinte síntese: 350 “(...) sempre me quis parecer que as afinidades reivindicadas por alguns novos cineastas eram, consciente ou inconscientemente, uma forma de atenuar sobretudo a sua profunda solidão cultural, inventando a obra de um antepassado ilustre, ainda que exemplarmente frustrado por carências disto ou daquilo. E já que andamos nesta vida só para arranjar sarilhos, também me parece que, não raras vezes, se serviram do nome e do prestígio de Manoel de Oliveira para fins pouco louváveis (...).“ Fernando Lopes, por sua vez, contrapõe, afirmando que também “o Oliveira se aproveitou bem de todos nós, e ainda bem, porque isso lhe permitiu fazer algumas boas fitas“. Paulo Rocha (apud Queiroga, 1998) é mais contundente ao afirmar peremptoriamente: “Somos nós quem impõe a marca ‘Manoel de Oliveira’.“ Seja como for, efetivamente a geração de 1960 certamente reabilitou a carreira cinematográfica de Oliveira. A defesa e reivindicação de Manoel de Oliveira e da sua obra parece ter obedecido a uma estratégica táctica com o objectivo de atacar o velho cinema e de atrair o financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian; não se pode, contudo, ignorar alguns factos já relatados que ligam esteticamente alguns elementos do Novo Cinema a Oliveira. No fundo, mais do que uma influência estética, o cinema de Oliveira serviu sobretudo de referência ética aos jovens cinéfilos pelo seu singular e marginal percurso cinematográfica no panorama nacional. A recepção de O Passado e o Presente pela crítica reflecte, de forma evidente, uma preocupação com o projecto estético do seu realizador no contexto do projeto de um cinema novo português. O filme foi produzido na situação muito particular da afirmação e do reconhecimento do Novo Cinema Português, de rejeição das convenções cinematográficas tradicionais e de apologia de novas formas de pensar e de fazer cinema – um cinema moderno e artístico sem quaisquer concessões. Trata-se de uma proposta fílmica que se pretendia fracturante e de ruptura com fórmulas cinematográficas situadas fora de um imaginário cinéfilo que se vinha afirmando em certos circuitos cinematográficos internacionais e que tentava impor-se em Portugal. Entre defensores e detractores, poucos terão ficado indiferentes a esta obra. João César Monteiro (Diário de Lisboa, 10-III-1972: 2) denunciou essas reacções de forma tão irónica como esclarecedora, no que constitui uma das suas mais famosas afirmações sobre o realizador: “O problema, de resto, é só este: o país tem (inexplicavelmente) um cineasta demasiado grande para o tamanho que tem. Portanto, das duas uma: ou alargam o território ou encurtam o cineasta. Como nos tempos que correm é difícil alargar um território sugiro que se apequene o cineasta cortando-o às fatias e servindo-o frio ao público 351 do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. Resta dizer que, como todos os grandes e revolucionários filmes, também este tem o condão de desmascarar os imbecis e de propor uma lição de modernidade cinematográfica para quem a quiser e puder entender.“ O Passado e o Presente não foi na sua época uma obra unânime nem é actualmente uma das suas obras mais reconhecidas, mas é seguramente uma obra fundamental na construção do singular universo criativo e artístico de Manoel de Oliveira em forte diálogo com as propostas do Novo Cinema Português. Nesta obra, feita em completa liberdade criativa e produtiva, Oliveira deu continuidade ao caminho “moderno“ revelado com O Acto da Primavera e que tantos elogios e admirações provocou no seio da nova geração de cinéfilos que reclamavam uma renovação estética e ética do cinema português. Durante a produção, O Passado e o Presente foi visto, por muitos, como o último filme de Manoel de Oliveira, a derradeira oportunidade que um cineasta com 72 anos de idade teria para rodar uma última obra numa cinematografia débil e precária, do ponto de vista da produção, como a portuguesa. Ironicamente, o filme relançaria a carreira cinematográfica de Manoel de Oliveira de tal forma que foi o primeiro de uma rotina contínua de produção que perdura até à actualidade. Este filme cujo título parece esquecer “o futuro“, acabou por ser determinante na afirmação internacional do cinema português, muito por culpa dos jovens cinéfilos que o promoveram dentro e fora de portas, fazendo dele uma espécie de “porta-bandeira“ da causa da geração do cinema moderno em diversas mostras e festivais internacionais. 3.4.2. Curtas-metragens Durante os anos 40 e 50, muita da produção cinematográfica de curta-metragem não tinha como objectivo a distribuição nos circuitos comerciais, e como tal, não chegava à maioria do público, destinando-se a nichos – formação tecnológica, prevenção, investigação científica, entre outros – ou para a exibição televisiva. No final da década de 50, a criação da televisão pública passou a ter uma intervenção significativa no processo de produção e divulgação do panorama audiovisual português. No decorrer dos anos 60, o projecto Televisão Educativa (mais conhecido como “Telescola“), criado no âmbito dos trabalhos do Instituto dos Meios Audio-Visuais de 352 Ensino, foi uma importante experiência de sensibilização que contou com a colaboração de diversos cineastas do Novo Cinema, como Manuel Costa e Silva, Luís de Pina, Faria de Almeida, António-Pedro Vasconcelos e Abel Escoto. Ainda que as actividades deste instituto se centrassem essencialmente na produção e divulgação de filmes técnicos, particularmente agrícolas e industriais, foi uma experiência marcante para os realizadores que nele colaboraram. Na década de 60, o despontar de uma nova geração cinéfila trouxe consigo uma evidente renovação do panorama cinematográfico nacional. As novas concepções estéticas e políticas, aliadas à dificuldade crescente em realizar longas-metragens, levam muitos jovens realizadores a apostar no cinema alternativo, geralmente de carácter pedagógico ou cultural. Vários nomes da nova geração do cinema português – formados no estrangeiro com bolsas de estudo do Fundo do Cinema Nacional – encontravam no curta-metragem o único meio para exercitar e tentar ascender ao cinema de fundo, revitalizando e dinamizando esse género. A par destas iniciativas de instituições oficiais, identificam-se importantes acções de mecenato na produção de filmes de iniciativa privada, relacionado com o desenvolvimento da publicidade, permitia prestigiar as instituições promotoras. Ao longo da década de 60 estrear-se-iam na realização de longas-metragens diversos jovens cineastas desse núcleo fundador do cinema moderno. Desta nova geração, exceptuando Paulo Rocha, todos iniciaram a sua actividade profissional pelas curtas: Alfredo Tropa em Inundações, 1960; Fernando Lopes em As Pedras e o Tempo, 1961; António de Macedo em Verão coincidente, 1962; António da Cunha Telles em Os Transportes, 1962; Manuel Faria de Almeida em Faça segundo a arte, 1965; José Fonseca e Costa em Era o vento... e o mar – Sesimbra, 1966; António-Pedro Vasconcelos em Tapeçaria, uma tradição que revive, 1967; Fernando Matos Silva em Por um fio, 1968; João César Monteiro em Sophia de Mello Breyner Andresen, 1969; e Alberto Seixas Santos em A arte e o ofício do ourives, 1968. Destes autores que se destacariam nos filmes documentais sobressaem três, atribuindo uma maior visibilidade ao género: Fernando Lopes, António de Macedo e Manuel Faria de Almeida. As pedras e o tempo (1961) e As palavras e os fios (1962) são as primeiras obras de Fernando Lopes. De uma forma natural e reconhecida pelo próprio, são evidentes as influências éticas, estéticas e técnicas da escola documental inglesa e do recente movimento geracional do free cinema liderados por Tony Richardson, Karel Reisz e 353 Lindsay Anderson. A atenção às realidades sócio-culturais dos mais desfavorecidas e desprotegidos e às actividades laborais mais humildes e duras eram características muito marcantes do free cinema inglês, seguindo uma tradição inglesa de dar visibilidade a um cinema social-realista que pode ser filiado na escola documental e nas unidades de produção de John Grierson. No entanto, os jovens promotores e divulgadores do free cinema apostaram também no reforço do carácter individual das suas propostas, assumindo a subjectividade e abstracção do realizador como uma importante marca autoral. Financiado pelo SNI – Secretariado Nacional de Informação, As pedras e o tempo é um documentário sobre a cidade de Évora de então, embora apresente uma abordagem bastante singular ao tema. A nível da técnica cinematográfica, o filme distancia-se igualmente do modelo da época para este género de obras: uso de planos picados e contra-picados, uso de travellings, novo enquadramento e a montagem paralela. Este filme prenuncia claramente uma mudança em relação ao filme documental-turístico típico produzido por esses anos, como por exemplo uma banda sonora pouco convencional baseada em ruídos (“Por outro lado, a música do Filipe Sousa e a sonoplastia de Alexandre Gonçalves foram de tal modo novas que o misturador da Tóbis disse que aquilo não era com“, Fernando Lopes apud Andrade, 1996: 70). As palavras e os fios é um exemplar do que então se classificava como filme industrial – um género fílmico que elegia como tema a divulgação ao grande público do desenvolvimento industrial do país. Financiado por uma empresa privada, e por isso rodado nas instalações da Fábrica Nacional de Condutores Eléctricos e dos Cabos Armados e Telefónicos, As palavras e os fios apresenta importantes e interessantes inovações e experimentações ao nível da banda sonora. A banda sonora deste segundo filme é bem mais expressiva do que a apresentada no primeiro, como é amplamente demonstrado logo no genérico de abertura. O filme inclui seis sequências com banda musical jazzística, concebida por Manuel Jorge Veloso e interpretada pelo Quarteto do Hot Club Português. De um total de 11m57’’ de filme, as sequências musicadas a jazz preenchem 7m14’’, ou seja, mais de 60 por cento do tempo total. Para além de ser o primeiro filme português a incluir música jazz na sua banda sonora, o filme tem ainda mais duas sequências onde o som desempenha uma função narrativa importante: são duas sequências conduzidas pelos sons industriais ou tecnológicos dos processos de transformação na fábrica. Neste aspecto, o aproveitamento bruto e musical destes sons 354 industriais ou tecnológicos, também já tentado no filme anterior, tem alguma importância estética pela transformação artística operada dos sons do quotidiano. Depois da formação em Londres, Faria de Almeida regressa a Portugal e começa a trabalhar na sua primeira obra de grande fôlego: Catembe, um híbrido documental/ficcional sobre um bairro popular na outra margem da então Lourenço Marques. Depois da traumática mutilação por parte da Censura ao filme, Faria de Almeida dedica-se à produção de curtas-metragens documentais onde conquista notoriedade. A embalagem de vidro (1966), Para um álbum de Lisboa (1966) e A feira (1970) são apenas três das curtas documentais do realizador moçambicano que muito contribuíram para a renovação estética e técnica do cinema português. Em A feira, filme sem a tradicional narração verbal, que recorre antes ao uso criativo do som ambiente e de um ritmo invulgar neste género de filmes (fox-trot), Faria de Almeida constrói uma curta cheia de referências e citações cinéfilas aos tempos do cinema mudo. Em A embalagem de vidro, o realizador volta a abdicar da habitual locução narrativa monocórdica e imprime um ritmo visual e musical ao filme, fundindo o som de jazz improvisado de Manuel Jorge Veloso com os sons industriais da fábrica de vidro onde se ambienta parcialmente o filme. Reconhecemos aqui uma estética influenciada pelo cinema de animação clássico, nomeadamente ao nível do trabalho com os efeitos de cor. Em Para um álbum de Lisboa Almeida volta a recorrer aos aspectos visuais e musicais, construindo uma narrativa dinâmica e criativa sobre a cidade de Lisboa em primeiro plano e, tecendo algumas considerações sobre o passado e o presente do cinema português, numa espécie de subtexto com referências cinéfilas do mudo em tom bastante irónico e sarcástico. Ao longo da década de 60, intercalando com a produção de longas-metragens, António de Macedo foi investindo tempo em diversas curtas-metragens documentais, das quais aqui destacarei três: Verão coincidente (1963), Crónica do esforço perdido (1967) e Almada Negreiros Vivo Hoje (1969). Encomenda da Sociedade Central de Cervejas, Verão coincidente está longe de ser um convencional filme industrial - tão em voga na época. Adaptando um poema de Maria Teresa Horta, Macedo constrói um filme poético com uma linguagem visual muito marcada que alguns reconheceram logo na estreia: “é um filme de feição modernizante, de montagem abrupta, gritante, de imagens insólitas que tocam a nossa sensibilidade como os versos de um poema“ (Luís de Pina apud Cinema Novo Português, 1985: 122). 355 Patrocinado pela FNAT – Federação Nacional para Alegria no Trabalho, Crónica do esforço perdido é um documentário de prevenção que faz a apologia da ginástica de pausa como terapia ao stress laboral quotidiano. Mais uma vez, o filme foge ao documentário convencional: “a utilização do desenho animado para explicar as agressões físicas de um quotidiano violento; as viragens de cor, os paralíticos, as interrupções em negro como forma de materializar essa violência; os exercícios de ginástica de pausa filmados como quase ballet, com uma montagem curiosa e sobre música de Carlos Paredes…“ (Ramos, 1989: 112). Finalmente, Almada Negreiros Vivo Hoje é um documentário sobre José de Almada Negreiros que combina uma entrevista ao artista conduzida por António Macedo, Natália Correia e David Mourão-Ferreira, um inquérito de rua a estudantes e transeuntes lisboetas, imagens de obras emblemáticas do artista modernista e uma preparação de uma adaptação de um texto de Almada Negreiros (Deseja-Se Mulher) pelo próprio realizador. Também se trata de um documentário pouco convencional, que recorre a diversos métodos e referências cinéfilas, nomeadamente ao cinema-verdade de Jean Rouch: o filme de Macedo pretende provocar reacções à obra e à personalidade de Almada Negreiros. A postura do artista abordado (que se situa propositadamente entre o estatuto do homem e da personalidade) e a exposição física do próprio Macedo são características que acentuam o olhar subjectivo do realizador sobre o artista e a sua obra (particularmente na adaptação do texto Deseja-Se Mulher). Em suma, nestes três realizadores aqui destacados, mas também na generalidade dos realizadores da nova geração, ressaltam algumas características comuns que contribuíram decisivamente para a renovação do cinema português em geral e do cinema documental em particular: afirmação de uma visão subjectiva e autoral sobre a realidade; conjugação de referências cinéfilas clássicas com uma vontade de inovação técnica e vanguarda estética; e valorização do factor humano como elemento central do processo criativo. Em 1977, Luís de Pina já havia sublinhado as grandes características da produção desse período: “Alguns dos documentaristas da última década [60] acusam esse tom desenvolto, esse brilho formal do enquadramento e da cor, essa plástica jovem da acção visual, esse acentuar de efeitos (a ‘zoom’, a ‘tele-objectiva’, o ‘paralítico’) para destaque da fotogenia das pessoas e do mundo“ (Pina, 1977: 14). 356 A produção de filmes de curta-metragem, com equipas de filmagem, tempos de rodagem, orçamentos e preocupações comerciais (ao nível da distribuição e exibição) reduzidas, com uma paralela liberdade criativa apreciável, tornaram este género de filmes – turístico, industrial, publicitário, institucional – um terreno privilegiado de aprendizagem, de treino e de experimentação na prática fílmica dos jovens cinéfilos aspirantes a realizadores. A dificuldade em filmar obras de longa-metragem – vetadas pelos constrangimentos da censura e pela monopolização do Fundo por parte dos cineastas próximos do regime – remeteram os jovens realizadores para os géneros cinematográficos de certa forma marginalizados. Sofrendo influências das principais escolas europeias139, o género documentário possibilitava uma interessante vertente criativa, explorando sobretudo filmes marginalizados pelo mercado cinematográfico. Não foi, portanto, por acaso que a maioria dos cineastas da geração do Novo Cinema português começou as suas carreiras cinematográficas (excluindo eventuais filmes escolares ou em regime amador) por filmes de curta-metragem documentais. Muitas das experimentações feitas nestes filmes foram depois aplicadas nas primeiras longas-metragens destes realizadores. No entanto, pela fraca visibilidade do género documental, a renovação ética, estética e técnica promovida por uma nova geração só foi sendo reconhecida publicamente nas longas-metragens que eles foram apresentando. Depois do esforço de renovação da década anterior, assistiu-se na década de 70 a um momento de forte experimentação de formas e de tendências que conheceu uma maior expressão na produção de curtas-metragens documentais. Algumas propostas criativas ou tecnológicas de maior risco foram experimentadas por diversos autores nas curtas antes de as aplicarem nas longas: Fernando Lopes fez várias experiências de som em As pedras e o tempo; António de Macedo em Crónica do esforço perdido (1966); João César Monteiro, Paulo Rocha e António Reis experimentaram novas formas narrativas e visuais em Sophia de Mello Breyner Andressen (1969), A pousada das chagas (1972) e Jaime (1974), respectivamente. As duas primeiras já foram referidas anteriormente, e quanto às restantes, são três das curtas-metragens mais importantes de todo o cinema português. Dos três realizadores, o mais experiente era Paulo Rocha. Autor de duas longasmetragens (Os Verdes Anos, 1963, e Mudar de Vida, 1967), o cineasta portuense fez uma 139 Convém recordar que esta geração de realizadores portugueses foi, na sua maioria, beneficiária de importantes bolsas de estudo do Governo português ou da Fundação Calouste de Gulbenkian, recebendo formação nos principais centros de formação cinematográfica da Europa, como Londres, Paris e Roma. 357 passagem pela curta-metragem no início da década de 70 com duas encomendas: Sever do Vouga, uma experiência… (1971) e A pousada das chagas. O segundo foi uma encomenda expressa da Fundação Calouste Gulbenkian para fazer um documentário sobre a colecção de arte do Museu de Óbidos sem fins comerciais e, por isso mesmo, construído sem qualquer constrangimento do mercado ou do público. Afastando-se progressivamente dos registos anteriores, Rocha experimenta nesta curta um conceito de representação e de mise-en-scéne que seria concretizado em A ilha dos amores (1982). Como sublinha Manuel S. Fonseca, esta curta caracteriza-se por “um gosto barroco da cor, do mesmo modo que se torna inequívoco o domínio da câmara e da continuidade da mise-en-scéne, secundarizando uma montagem a que, em Mudar de Vida, se atribuía importância, senão primordial, pelo menos igual àquela. Acresce ainda uma obsessiva preocupação cénica, imitativa de resto da que as pinturas do Museu evidenciam na composição de uma Paixão onde misticismo e sensualismo são, como o claro-escuro, elementos indecomponíveis“ (Cinema Novo Português, 1985: 123). Apesar de se estrear na realização apenas no final da década de 60, João César Monteiro foi um dos elementos do núcleo fundador que promoveu a renovação no cinema português. Enfant terrible da crítica cinematográfica, Monteiro era presença assídua nas tertúlias culturais e cinéfilas que animavam a sociedade lisboeta desses anos. O seu filme de estreia foi Sophia de Mello Breyner Andressen - uma produção de Ricardo Malheiro para uma série de documentários sobre figuras das artes e letras portuguesas intitulada Cultura Filmes, que incluiu também 27 minutos com Fernando Lopes Graça (1969) de António-Pedro Vasconcelos e Fernando Namora (1969), de Manuel Guimarães. Desde o genérico (dito pelo próprio realizador), o documentário Sophia adopta uma atitude de experimentação que torna este filme único no cinema português: em vez de tentar uma clássica monografia sobre a sua obra, Monteiro acompanhou a poetisa numas férias em família no Algarve, filmando-a em interacção com os filhos e com alguns dos seus textos. António Reis foi uma das maiores revelações da década: Auto-didacta, poeta, cineclubista, membro activo do movimento associativo portuense, cineasta amador, colaborador de Manoel de Oliveira (Acto da Primavera) e Paulo Rocha (Mudar de Vida). Quando, em meados de 1969, a sua esposa e psiquiatra Margarida Cordeiro contactou com algumas pinturas de Jaime Fernandes expostas nas paredes do hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, logo o convenceu a fazer um filme sobre esse singular artista plástico. Jaime é uma curta-metragem de António Reis que, a partir de uns desenhos e de uns 358 escritos, tenta revelar a personalidade de Jaime Fernandes (1900-1969), um anónimo doente psiquiátrico hospitalizado desde os 38 anos de idade. Depois de três décadas de internamento, Jaime Fernandes revelou-se, nos últimos três anos de vida, um prodigioso artista plástico e poeta. O realizador construiu o seu filme a partir dos desenhos e textos encontrados no asilo e através do contacto com a viúva e alguns conhecidos do artista. Como sublinha José Manuel Costa, “não se trata portanto de um documentário sobre uma vida já então inexistente nem – muito menos – de uma ‘reconstituição’ dessa vida. O que Reis fez foi filmar e trabalhar sobre os materiais e figuras concretas que existiam no tempo da rodagem do filme e exclusivamente sobre isso. A evocação biográfica e a outra (humana, psicológica) surge por outros caminhos, ou seja, pelo próprio trabalho (que nesse sentido é documentário e é ficção sobre esses materiais“ (Cinema Novo Português, 1985: 128-129). António Reis seria o principal teorizador do Museu da Imagem e do Som, um dos projectos mais interessantes do Centro Português de Cinema (CPC) e do cinema português que também passava pela produção de documentários e de curtas-metragens. A concretização de Trás-os-Montes terá convencido definitivamente João Bénard da Costa – então director do Serviço de Cinema da Fundação Calouste Gulbenkian (19691991) – a relançar-se: “(...) numa pista antiga e sobre a qual muito falara com os homens da cooperativa [CPC]. A produção de uma série de filmes que dessem conta do Portugal desconhecido que está à espera de nós, de tradições e costumes em vias de desaparecer, mas também de filmes biográficos sobre alguns dos nossos grandes vivos“ (Costa, 2007: 44). Os acontecimentos políticos e sociais de 1974 vieram alterar radicalmente o panorama cinematográfico português. As novas orientações políticas e estéticas saídas da revolução promovem uma redefinição temática do filme científico, preocupando-se sobretudo com temas de carácter social e político, assuntos que durante o regime anterior teriam sérias dificuldades em ser produzidos. No rescaldo da revolução, a generalidade da produção fílmica optava pelo tratamento de temas polémicos e marginalizados pela opinião pública. Mais uma vez, a politização da sociedade estendeu-se ao cinema, originando um conjunto de obras muito interessantes de carácter marcadamente ideológico. Independentemente da sua visibilidade ou reconhecimento à época, é evidente que este cinema de curta-metragem contribuiu para a afirmação e reconhecimento do 359 cinema moderno português. Num primeiro momento, sobretudo nos anos 60, foram as curtas-metragens destes jovens cinéfilos que participaram em festivais de cinema internacionais e que assim contribuíram decisivamente para a afirmação internacional do cinema português. Apesar de alguns autores reconhecerem a existência destas curtas documentais nas filmografias e nos percursos formativos de diversos autores do cinema moderno140, a generalidade não as consideram esteticamente relevantes e ignoram-nas nos seus estudos. Filmes de prenúncio, de transição ou de ruptura, as curtas produzidas no período aqui tratado – por comportarem menores riscos (de produção ou recepção) – foram um espaço de exercício, experimentação, inovação e formação para uma nova geração no cinema português. A renovação conhecida nesse período em Portugal não foi estranha a influência de diversas escolas e movimentos internacionais que por estes anos se destacavam sobretudo no campo do documental: National Board of Canada (1948-64), o Free Cinema britânico (1956-63), o documentarismo televisivo americano da NBC e CBS (1951-71), o Direct Cinema e o Cinéma Verité (1960-70). Nestes casos, o documentário, sempre um género desconsiderado e marginalizado pelos distribuidores e exibidores, foram um terreno propício à renovação e experimentação da linguagem cinematográfica (Ellis & McLane, 2005: 167-226). A recente edição em suporte DVD de algumas obras dos anos 50, 60 e 70 – particularmente sobre Manuel Guimarães, Fernando Lopes ou Alfredo Tropa – tem o mérito de recuperar do esquecimento algumas curtas-metragens documentais dos respectivos autores enquanto documentos fundamentais para conhecer e compreender o seu percurso artístico. A programação recente da própria Cinemateca Portuguesa, em rubricas como “Cinema Português: Primeiras Obras, Primeiras vezes“ ou “Abrir os Cofres“, tem devolvido aos espectadores interessados alguns desses filmes mais ignoradas. Progressivamente, graças ao trabalho de preservação e de conservação desenvolvido no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento da Cinemateca Portuguesa, à medida que vão sendo visionados por jovens investigadores e cinéfilos mais atentos, estes filmes vão sendo recuperados não só como objectos historiográficos 140 A retrospectiva programada em 1985 pela Cinemateca Portuguesa dedicada ao Novo cinema português incluiu no ciclo a exibição de 24 longas e 31 curtas-metragens. 360 mas também, em muitos casos pela primeira vez, enquanto objectos estéticos e artísticos que estão a alterar consideravelmente o estudo do cinema em Portugal. 3.4.3. Produções António da Cunha Telles A historiografia convencional define, em termos de produção fílmica, o dinâmico António da Cunha Telles no início do corte umbilical entre o novo e o velho cinema. Grosso modo, os filmes que integram as Produções Cunha Telles constituem o núcleo de produção do designado “cinema novo“. Nessa fronteira, geralmente definida por dois filmes — o já citado Dom Roberto e Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos — que ainda teriam sido produzidos de uma forma “clássica“ ou “velha“, Cunha Telles “criou as bases de um outro tipo de produção“ (Novo Cinema Português, 1981: 19). Paulo Filipe Monteiro destaca essa ruptura: “Percebe-se agora melhor por que razão tem parecido importante deslocar a fronteira do novo cinema do padrão de Pássaros de Asas Cortadas, e mesmo de Dom Roberto, filmes em que a história, o guião, os diálogos e os actores têm a maior importância. A orientação de Paulo Rocha define, de facto, melhor a doxa que dominará o novo movimento: um cinema que trabalha os espaços, os décors, as cores, as matérias, e pede para ser lido por esse lado, e não pelo da intriga e dos actores“ (Monteiro, 2000: 330). Para além das questões estéticas, o que também distingue o novo cinema em relação ao velho cinema é que tenha encontrado “uma 'ideia de produção' que se lhe soube adaptar“ (José Manuel Costa apud Mozos, 2014: 8). Cunha Telles (Enquadramento, 1-VI-1971: 12) corrobora esta ideia: “(...) Quando chego a Portugal, de regresso de Paris, está o Ernesto de Sousa a fazer o Dom Roberto e, tempos depois, o Artur Ramos começa Os Pássaros... Nós percebemos então uma coisa muito importante: é que se queríamos fazer cinema tínhamos que arrancar com estruturas totalmente diversas das do chamado 'cinema português'. Não é só preciso um realizador ter uma ideia diferente. Se as pessoas que trabalham com ele tiveram um certo número de vícios, ele acaba por ser arrastado e por fazer filmes que, finalmente, não correspondem ao que ele deseja. (...) se reflectirmos um pouco sobre esse filme [Pássaros de Asas Cortadas], veremos que ele foi feito por uma equipa que era quase integralmente aquela que trabalhava nos filmes que se faziam então. Automaticamente toda a equipa agira, enquadrava, filmava como sempre.“ 361 E em 1985, a propósito da mesma questão, acrescenta: “(...) O que se chamou 'Cinema Novo Português' define-se pela recusa global de tudo o que então se fazia em matéria de cinema português. Penso que a fractura dos filmes que produzi, com os outros dois — Dom Roberto e Pássaros de Asas Cortadas — que também queriam romper com o passado, reside na ligação destes dois com estruturas de produção e estruturas técnicas (...) que vinham do cinema português anterior. Ao contrário, nos Verdes Anos, todos os membros da equipa, desde o electricista ao realizador, estavam a fazer o primeiro filme...“ (Telles, 1985: 49) Chegado a Lisboa para estudar Medicina por volta de 1955, Cunha Telles trazia já uma vasta experiência enquanto cineasta amador, sobre tudo em filme de 9,5 mm, e envolve-se na animação do Centro Universitário de Cinema Experimental, ligado à rádio da Universidade de Lisboa, e que funcionaria como uma espécie de clube de cineastas amadores que trabalhavam já com filme de 16 mm. Essa experiência nesse suporte semiprofissional seria importante para que iniciasse uma colaboração regular como repórter de imagem da recém-criada RTP (Mozos, 2014: 35-36). Em 1961, depois de quatro anos radicado em Paris, onde se formou em realização e produção (IDHEC, com bolsa do Fundo de Cinema Nacional), em filmologia (Institut de Filmologie da Sorbonne) e em audiovisuais (Diploma Expert en Techniques Audiovisuelles do Centre Audiovisuel de L’Ecole Normale Supérieure de Saint-Cloud), António da Cunha Telles regressa a Portugal. Nesse mesmo ano, Cunha Telles é designado para dirigir o jornal de actualidade Imagens de Portugal, orienta o Curso de Cinema Experimental no Estúdio Universitário da Mocidade Portuguesa (onde Fernando Matos Silva, Alfredo Tropa, Acácio de Almeida, Elso Roque e Teresa Olga, entre outros, receberiam a primeira formação técnica) e assume funções de direcção nos serviços de cinema da Direcção-Geral do Ensino Primário. É neste organismo público que realiza a sua primeira curta: Os Transportes (1962). Precisamente em 1962, António da Cunha Telles inicia uma carreira de produtor e co-produtor que, até 1968, estaria sucessivamente associada a 17 filmes141. Como 141 Les vacances portugaises/Sorrisos do destino (1962, de Pierre Kast, co-prod. JAD Films, Clara D’Ovar); P.X.O. (1962, Jacques Doniol-Valcroze e Pierre Kast, MM); Os verdes Anos (1963, de Paulo Rocha); Os Caminhos do Sol (1963, de Carlos Vilardebó e Augusto Cabrita, CM); Le pas de trois (1964, de Alain Bornet, co-prod. JAD Films); La peau douce/Angústia (1964, de François Truffaut, co-prod. Films de Carosse, SEDIF); Le grain de sable (1964, de Pierre Kast, co-prod. George Glass, Franco-Londom Film, Eichberg, Eurocontinental); Belarmino (1964, de Fernando Lopes); O Crime de Aldeia Velha (1964, de Manuel 362 sublinha António Roma Torres (apud Mozos, 2014: 26), as primeiras experiências de Cunha Telles na área da produção “são relativamente convencionais e ligadas ao investimento em filmes de ficção com aparente intenção de propaganda turística“. Mas é dessa experiência que reforça o contacto com o meio francês da nouvelle vague, nomeadamente com Pierre Kast e com Clara d'Ovar, e que co-produz um filme de François Truffaut, parcialmente rodado em Lisboa. Estes anos de arranque na produção também foram importante porque é nessas coproduções ou em produções mais convencionais que Cunha Telles começa a “criar um esquema de produção contínua com uma equipa de técnicos disponíveis“, maioritariamente formados no curso que organizara meses antes, pretendendo consolidar “uma iniciativa estrutural e não propriamente um projecto estético ou ideológico, como haviam sido o esquema de produção ligado aos cineclubes“ (Ibidem: 27). O esquema de produção era, segundo o próprio Cunha Telles (1985: 51-52), muito simplificado em relação à época: “As estruturas de produção eram, na altura, mais simples do que hoje. Para se fazer um filme de fundo era necessária uma meia-dúzia de pessoas. Não havia som síncrono, filmava-se com uma velha Arri, que parecia uma metralhadora quando começava a filmar e que se levava debaixo do braço. Era uma estrutura ligeira, mas à medida que as fitas se sucediam umas às outras, havia pessoas que adquiriam uma enorme aprendizagem. (...) Penso que outro dos elementos fundamentais, perdido hoje em dia no cinema português, era a adequação entre o projecto do realizador e a produção. Os orçamentos e o modo de controlar os orçamentos não obedeciam a uma regra definitiva, antes se estabeleciam em função de cada filme. (...) O Fernando Lopes queria filmar quando o Belarmino estava de boa disposição, portanto arranjou uma equipa pequena, dotada de uma liberdade de movimentos, e a verdade é que a franqueza que há no filme, bem como a qualidade das imagens, é o resultado de uma equipa que não impõe esquemas à partida. Ou seja, em vez do dinheiro ser gasto por uma equipa de 20 pessoas, sob tensão, imobilizadas durante 6 semanas, é utilizado para uma rodagem com tempo quase ilimitado, com uma equipa mínima. Evidentemente com o António de Macedo, para o Domingo à Tarde, as concepções de filmagem são já diferentes. Ele é uma pessoa sistemática, com necessidade de uma equipa que pudesse dar a resposta certa, num tempo muito determinado. Guimarães, co-prod. Tóbis); O Trigo e o Joio (1965, de Manuel Guimarães, co-prod. Artistas e Técnicos Associados, Manuel Guimarães, Tóbis); As Ilhas Encantadas (1965, de Carlos Vilardebó); Catembe (1965, de Faria de Almeida, co-prod. Faria de Almeida); Domingo à Tarde (1966, de António de Macedo); Mudar de Vida (1966, de Paulo Rocha); Sete Balas Para Selma (1967, de António de Macedo, produção terminada pela Imperial Filmes); Alta Velocidade (1967, de António de Macedo, CM); Fado (1968, de António de Macedo, CM). 363 Era esta a filosofia das Produções Cunha Telles, nada de esquemas clássicos e pré-determinados, mas antes uma concepção flexível, procurando entender cada filme que se ia fazer e quais os meios adequados para esse filme. A partir dessas duas premissas determina-se então uma maneira de agir.“ Reflectindo esses expedientes, os orçamentos também eram muito diversificados: Belarmino custou cerca de 300 contos, Os Verdes Anos e Domingo à Tarde entre 700-800 contos142. A produtora ainda beneficiou da parceria com a Ulisseia Filmes de José Gil, que concedeu crédito no laboratório e os equipamentos. Das obras produzidas, duas foram recebidas com um entusiasmo e uma euforia fora do comum por parte de alguns sectores da crítica. Os Verdes Anos e Belarmino, entendidas como “sinais de ressurgimento“ do cinema português, foram consideradas “as duas primeiras obras que uma geração ousa reivindicar“ (O Tempo e o Modo, X-1964: 134-135). Uma nova geração emancipara-se perante as maiores contrariedades e, apesar de diferentes filiações estéticas, assumira uma vontade de ruptura com os parâmetros estéticos e temáticos do velho cinema. A boa recepção por parte de uma certa crítica nacional, e nomeadamente da crítica internacional, projecta estas obras para uma repercussão inédita, marcando pontos em vários certames estrangeiros. No entanto, a recepção do público não foi a esperada, contando-se sucessivos fracassos financeiros, apesar do baixo custo de produção. Segundo Bénard da Costa (1991: 125), a razão para o alheamento do público deveu-se ao “vanguardismo das propostas estéticas destes filmes“, assim como ao recrudescimento da censura, que impedia a chegada a Portugal das “novas vagas e novos cinemas“ que revolucionavam o cinema europeu. As dificuldades financeiras obrigaram Cunha Telles a procurar alternativas criativas e a promover uma nova estratégia de produção, onde se valorizava um forte carácter populista e comercial. A experiência Sete Balas para Selma resultou num rotundo fracasso comercial e promoveu a ruptura de Cunha Telles com a nova geração. Como já foi referido antes, João César Monteiro acusou mesmo o produtor e o realizador de traição à “batalha comum por um Cinema Novo“: este filme “só pode ser encarado como empresa reaccionária, carregada de balas que se desfecham traiçoeiramente nas 142 Só para contextualizar: A Canção da Terra (1938, Brum do Canto) e Ala-Arriba! (1942, Leitão de Barros) tinham custado cada 1200 contos; O Pai Tirano (1941, António Lopes Ribeiro) e Um Homem às Direitas (1944, Brum do Canto) custaram 1500 contos cada; Amor de Perdição (1943, António Lopes Ribeiro) e Ladrão Precisa-se! (1945, Brum do Canto) custaram 2000 contos; Fado, história de uma cantadeira (1948, Perdigão Queiroga) custou 2300 contos); Camões (1946, Leitão de Barros) custou 4800 contos (Ofício do Cinema em Portugal, 1968: 23-24). Já nos anos 60, Dom Roberto de Ernesto de Sousa tinha custado cerca de 1000-1200 contos (Ernesto de Sousa apud Boletim Cooperativista, 106, VIII-1962: 8). 364 costas dos promotores de uma revolução cinematográfica em Portugal“ (O Tempo e o Modo, I-1969: 125). Por outro lado, perante a impossibilidade de prosseguirem a realização de filmes de fundo, os realizadores da nova geração recorreram a géneros de cinema alternativos para continuarem a exercitar e a desenvolver a sua actividade. Como observa Luís de Pina, a nova geração desenvolveu-se técnica e artisticamente nos designados cinemas especializados, designadamente no documentário e no filme publicitário. Este “fenómeno curioso“, que permitiu “desenvolver um tipo de produção capaz de suportar as crises nas melhores condições“, foi “uma verdadeira escola de realizadores“ (Pina, 1977: 138). Perante a morte do velho cinema, e apesar da falência de Cunha Telles, a nova geração cinéfila mostrara capacidade de contrapor uma estética cinematográfica própria ao cinema português de então. Nos anos 60, António da Cunha Telles tentou um novo conceito e modelo de produção. Em 1964, num curioso artigo de Fernando Duarte (Celulóide, IX-1964, 12), a atividade de Cunha Telles era classificada como uma “produção cinematográfica em série industrial de qualidade artística superior“. Os conceitos e modelos de produção apresentados que serviriam de comparação com as Produções Cunha Telles foram a “produção em série industrial“ de Manuel Queiroz e a “produção ocasional de filmes“ onde se integrava a maioria dos produtores portugueses, como Francisco de Castro, Filipe de Solms e várias firmas distribuidoras. A nova “filosofia de produção“ de Cunha Telles distanciava-se do conceito tradicional de produção conhecido até então em Portugal. Rejeitando a concepção do produtor como figura de “mulher-a-dias“ ou “capataz“, responsável financeiro pelo filme, Cunha Telles seria um produtor que contraria a clássica tarefa de “administrar os dinheiros e criar uma estrutura“, impondo uma espécie de “produtor-autor“ que o cinema português desconhecia até então e que procura “intervir do ponto de vista da conceção artística – cinematográfica – pôr o realizador em contacto com profissionais de qualidade“ (Ibidem: 5-7). Consciente de que o chamado “cinema de autor“ desvaloriza ou elimina a influência do produtor tradicional, geralmente conduzida por motivos comerciais, Cunha Telles reinventa a função do produtor através de uma forte ligação criativa e estética com o realizador: “o produtor tem de ter um certo feeling, deve falar de cinema, saber o que é que um realizador quer“ (Idem, 1985: 55-56). 365 Em função de uma nova ideia de produção, a estratégia das Produções Cunha Telles desvalorizava as tradicionais planificações de tipo técnico e rigorosamente calculadas em favor dos aspetos estéticos da produção em causa: “nada de esquemas clássicos e pré-determinados, mas antes uma conceção flexível, procurando entender cada filme que se ia fazer e quais os meios adequados para esse filme.“ A estratégia de produção conduzia-se por aquilo que Cunha Telles define como uma “colagem da produção à própria personalidade do realizador“ (Ibidem: 52). A este carácter “auteurista“ do produtor Cunha Telles não serão estranhos dois factos significativos: em primeiro lugar, o produtor tinha formação de realização cinematográfica, curso que frequentara no IDHEC; em segundo lugar, o realizador tornou-se produtor por acaso, ou seja, existia um acordo tácito entre o núcleo das Produções Cunha Telles que previa a rotatividade nos cargos, tornando assim as posições como esporádicas. O carácter singular da “filosofia de produção“ de Cunha Telles também reflectia o facto dos principais colaboradores (Fernando Matos Silva, Elso Roque, Acácio de Almeida, Margaret Mangs, entre outros) se estrearem no cinema e supostamente estarem isentos de todos os “vícios“ que “corrompiam“ a generalidade dos quadros técnicos do cinema português. Simultaneamente, estes colaboradores foram progredindo estética e tecnicamente com a mentalidade da jovem casa produtora. Cunha Telles (1985: 49-50) insiste muito nessa particularidade como marca identitária das suas produções: “(...) não havia vícios. Não havia o enquadrar bem ou o representar bem, segundo parâmetros já viciados e desgastados do cinema anterior. (...) Portanto, quando se diz que o 'Cinema Novo' nasce da recusa do cinema anterior, importa acrescentar que também o cinema estabelecido nos recusou a nós. Foi essa recusa que juntou uma série de pessoas que queriam fazer filmes, custasse o que custasse, ainda para mais pessoas que estavam que estavam convencidas que os filmes que fariam, iam alterar o viver da cidade e o viver do país.“ Leonor Areal (2008: 418) também sublinha essa nova ideia produtiva: “Dentro da diversidade que faz o vigor tão desigual de cada filme, o que une este cinema jovem é uma ambição de fazer muito com poucos meios. A invenção surge também desse constrangimento criativo: a busca de soluções simples e económicas.“ À semelhança do que acontecera anos antes com a 'nouvelle vague' francesa, que reuniu o consenso da crítica de cinema e o agrado do público francês e internacional, a 366 geração que promoveu o designado novo cinema português tentou, numa primeira fase, conquistar o grande público sem prescindir da qualidade estética das suas propostas. A esperança de sucesso junto do público era tal que as Produções Cunha Telles se apoiavam numa estrutura de produção contínua pré-determinada, ou seja, segundo testemunho do próprio Cunha Telles (Cinema Novo Português, 1985: 51), os filmes foram rodados sucessivamente sem aguardar pelas estreias dos anteriores: “quando se estreia os Verdes Anos, já o Belarmino está filmado e quando este por sua vez estreia, já o Domingo à Tarde está filmado“. Como é possível confirmar em várias outras declarações e depoimentos de vários membros do novo cinema, sobretudo os elementos das Produções Cunha Telles, a falta de público foi uma desilusão e uma surpresa que contribuiu para a falência deste primeiro período dos anos 60. Como confessa Fernando Lopes (Jornal de Letras e Artes. 274. III-1970: 25), parece “que todos nós contávamos um pouco excessivamente com a existência de um público ‘esclarecido’, para utilizar um chavão da época, público que teria sido formado pelos cineclubes, público universitário, e outro, que de facto não apareceu para os nossos filmes“. Na mesma publicação, Paulo Rocha (Ibidem: 23) lembra que o novo cinema tentou “seduzir“ o público, mas este “não fez o que havia a fazer por parte dele, ou não o deixaram fazer, os distribuidores, as leis, o condicionalismo geral não o deixou fazer“. Finalmente, Cunha Telles (Idem, 275. IV1970: 28-31.: 29) lembra que, apesar das diferenciadas campanhas de marketing operadas nos seus diferentes filmes, o público “abandonou“ o compromisso assumido pelo novo cinema: “Em relação aos Verdes Anos tudo foi feito de acordo com o realizador […]. Em relação ao Belarmino o lançamento foi feito pela via dos cineclubes. […] Em relação ao Domingo à Tarde, o lançamento foi feito cientificamente por uma agência de publicidade […] que estudou a maneira de orientar o público“. O fracasso comercial dos filmes das Produções António da Cunha Telles (19621967) marcou de forma irremediável o relacionamento da nova geração de cineastas dos anos 60 com o(s) público(s) de cinema português. Recupero agora, cronologicamente, os dados concretos recolhidos sobre a recepção dos filmes produzidos pelas Produções António da Cunha Telles entre 1963-67: - Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, estreou, em Novembro de 1963, em simultâneo em duas salas de Lisboa – São Luís e Alvalade – permanecendo duas semanas em cartaz, totalizando 67 sessões (40 no São Luís e 27 em Alvalade). 367 - Belarmino (1964), de Fernando Lopes, estreou no Avis, em Lisboa, em Novembro de 1963, onde permaneceu cerca de três semanas, sendo exibido em 46 sessões. - Crime de Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães, estreou no Éden, em Lisboa, também em Novembro de 1963, onde permaneceu durante três semanas, totalizando 63 sessões. Na quarta semana passou para o Lys, também em Lisboa, onde foi exibido mais 8 vezes (total de 71 sessões). - As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó, estreou em Março de 1965 no Tivoli, em Lisboa. Permaneceu apenas a primeira semana em exibição, somando somente 19 sessões. - Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo, estreou no Império, em Lisboa, em Abril de 1965, onde permaneceu apenas uma semana (15 sessões), passando depois para o Estúdio onde esteve mais duas semanas e foi exibido em mais 31 sessões (46 sessões no total). - O Trigo e o Joio (1965), de Manuel Guimarães, estreou em Novembro de 1965, no Monumental, onde permaneceu duas semanas e registou um total de 30 sessões. - Catembe (1965), de Faria de Almeida, viu proibida a sua exibição pela censura. - Mudar de vida (1967), de Paulo Rocha, estreou na sala lisboeta Estúdio, em Abril de 1967. Permaneceu nesta sala durante cinco semanas consecutivas, durante as quais teve três sessões diárias. Totalizou 103 sessões, o melhor registo dos filmes das Produções Cunha Telles. - Sete balas para Selma (1967), de António de Macedo, estreou em Novembro de 1967, em duas salas lisboetas em simultâneo – Éden e Alvalade – onde permaneceu durante apenas a primeira semana. Na segunda semana passou para a sala Odeon. No total das três salas, totalizou três semanas em exibição e 53 sessões. Quando a média de permanência em sala em estreia seria de oito a nove semanas, o melhor que algum destes filmes conseguiu foi cinco semanas (Mudar da Vida), sendo que foi exibido em estreia numa sala estúdio, com uma lotação significativamente mais reduzida que as mais tradicionais salas de estreia. Exceptuando Catembe (que não estreou) e As Ilhas Encantadas (apenas uma semana), os outros filmes de Cunha Telles permaneceram entre duas e três semanas em sala, o que era manifestamente insuficiente inclusive para financiar a publicidade aos próprios filmes (que então rondaria entre 30 a 50 contos). 368 Perante a impossibilidade de prosseguirem a realização de filmes de fundo, os realizadores da nova geração recorreram a géneros de cinema alternativos para continuarem a exercitar e a desenvolver a sua actividade. Como observa Luís de Pina (1986: 143), a nova geração desenvolveu-se técnica e artisticamente nos designados cinemas especializados, particularmente no documentário institucional e no filme publicitário. Este “fenómeno curioso“, que permitiu “desenvolver um tipo de produção capaz de suportar as crises nas melhores condições“, foi “uma verdadeira escola de realizadores“ (Idem, 1977: 138). Perante a morte do velho cinema, e apesar da falência de Cunha Telles, a nova geração cinéfila continuava viva e mostrava capacidade de sobrevivência e vontade de contrapor uma estética cinematográfica própria ao cinema português de então. O mito do “produtor-milagre“ nasceu com a ideia de que António da Cunha Telles veio de Paris decidido a dedicar-se à produção. De facto, como o próprio confirma, a opção pela produção não foi uma opção mas antes um recurso. Cunha Telles, quando regressou de Paris, queria integrar-se no meio cinematográfico português: “Éramos [Cunha Telles e Paulo Rocha] completamente marginalizados por aquilo que se considerava a ‘indústria cinematográfica’ da altura. Lembro-me de ter ido pedir a um realizador [Perdigão Queiroga] um lugar de estagiário e de ele mo ter recusado.“ (apud Melo, 1996: 15). Numa entrevista de 1971 a Lauro António, Cunha Telles lembra: “Para começar não consigo arranjar trabalho como técnico. Estou, portanto, num beco sem saída. Procuro arranjar trabalho como assistente e as pessoas recusavam-me, pura e simplesmente. (…) Acontece que sou recusado sistematicamente. Eu e todos os dessa época. Globalmente. Devem ter pensado: ‘Alto lá! Mas como é que é isto, estes senhores que vêm lá de fora? Como é que é?’ E fomos postos de lado“ (Enquadramento, 1-VI-1971: 12). Em 1985, ainda a propósito desta questão, Cunha Telles acrescentaria: “Estou convencido que já se sabia o que nós queríamos. A pessoa a quem eu fui pedir para ser estagiário sabia perfeitamente que eu não queria fazer uma carreira de dez anos de 2.º assistente e quando tivesse 70 anos vir a fazer o meu primeiro filme de fundo. Sabiam que queríamos perceber como a profissão funcionava por cá para passar imediatamente à filmagem. No fundo, passa-se em Portugal o mesmo que em França e o inverso do que sucedeu em Itália. (...)“ (Telles, 1985: 50) Depois de ter tentado, em vão, integrar-se, Cunha Telles começou a trabalhar na sua primeira obra como realizador, contando com a colaboração de Paulo Rocha como 369 argumentista. Só as contrariedade financeiras fizeram com que Cunha Telles desistisse do seu próprio filme e produzisse o filme de Paulo Rocha: “Entretanto, desbloquearam-me os meios para fazer Os Verdes Anos. Foi o primeiro filme que produzi. Fez-se com muito pouco dinheiro. Uma parte era dinheiro pessoal do Paulo Rocha, outra era dinheiro meu. A Ulyssea participava com créditos de laboratório e assim se arrancou.“ (António da Cunha Telles apud Melo, 1996: 15) O filme de Paulo Rocha seria apenas o primeiro de um projecto muito mais vasto. De acordo com os arquivos do SNI, António da Cunha Telles apresentou a concurso para apoio à produção, entre 1962 e 1968, sete projectos de longa-metragem: Angola do nosso coração, a realizar pelo próprio António da Cunha Telles (apresentado ao SNI em 1962); O anjo ancorado, a realizar por José Fonseca e Costa (1963); Gaivotas em terra, a realizar por Herlânder Peyroteo (1963); Férias na Madeira, a realizar por Fernando Garcia (1963); Rio de Ouro, a realizar por Paulo Rocha (1964); A faca e o rio, a realizar por Manoel de Oliveira (1966); e Mais forte que tudo, a realizar pelo próprio António da Cunha Telles (1968). Houve também projectos que foram iniciados e nunca terminados, como o caso do filme de animação realizado por Mário Neves (1965). Em Março de 1964, em entrevista à revista Filme, Cunha Telles falava ainda em outros projecto de filme que não foram concretizados, entre eles Bonecos de Luz, a realizar por António Campos. Em suma, para além dos filmes que concretizou, Cunha Telles foi propondo e preparando muito mais projectos de produção. Estes projectos não concluídos ou por realizar alargam ainda mais a dimensão do que formam e do que poderiam ter sido as Produções António da Cunha Telles. Mas, por outro lado, destrói por completo qualquer ideia de produtor-autor ou de unidade estética atribuída à sua obra enquanto produtor. Se é um facto que essa cumplicidade aconteceu com Paulo Rocha e, até, com Fernando Lopes, o mesmo não se poderá considerar em relação aos outros projectos por si desenvolvidos. As relações pessoais e afinidades estéticas com os realizadores seus colaboradores foram muito distintas. Apesar de Cunha Telles insistir que “quis produzir filmes com as pessoas que acreditava que eram capazes de fazer os melhores filmes e que tinham os melhores projectos“ (apud Mozos, 2014: 27), parece mais razoável ler estes projectos como uma aposta declarada numa lógica industrial de produção que rentabilizaria os meios técnicos e humanos disponíveis aos produtor. 370 Olhando globalmente para produções portuguesas de Cunha Telles, a maioria destas características dificilmente pode ser encontrada nos filmes que produziu com Manuel Guimarães ou com António de Macedo, uma vez que a sua intervenção nos processos criativos dos diversos filmes foi significativamente diferente. O próprio Cunha Telles reconhece que algumas parcerias com certos realizadores prejudicaram a sua “reputação“ e as suas relações com alguns dos seus colaboradores próximos: “(...) Eu, na altura, fui muito criticado por todos os meus amigos por produzir — mais do que produzir — 'perder tempo' com ele [Manuel Guimarães]“. Para o produtor, as parcerias criativas e produtivas não existiram apenas com os seus amigos, mas com o valor que ia reconhecendo aos realizadores: “Ao invés do que se pensa, os filmes que eu produzi eram muito determinados por aquilo que valiam as pessoas, e não por serem 'amigos de café'. O Fernando Lopes, porque vi As Pedras e o Tempo, e o Macedo... Um dia estou no cinema Império e vejo uma curta-metragem que ele tinha feito a partir de um poema da Maria Teresa Horta, Verão Coincidente, que tinha sido financiado pelo Manuel Vinhas, e era muito bem esgalhado. O Macedo tinha uma técnica muito apurada, e fiquei de tal modo impressionado que fui falar com ele. Pareceu-me que também era um realizador e a produzir.“ Nos três casos que cito de seguida, respectivamente referentes às produções de O Crime de Aldeia Velha (Manuel Guimarães), Domingo à Tarde (António de Macedo) e Catembe (Faria de Almeida), parece que fica claro que muitos dos seus projectos foram mais fruto da ocasião e das circunstâncias do que propriamente uma estratégia deliberada e previamente planeada: “(…) Acontece que, de momento, surgiu a oportunidade de produzir ‘Crime de Aldeia Velha’, e como de forma alguma quero estar parado, e o assunto me interessou, não hesitei. (…) De há muito tempo que Manuel Guimarães trabalha neste filme. A preparação feita com cuidado, tempo, reflexão e competência é excelente realidade em Manuel Guimarães. Interessei-me pelo filme confiante nas qualidades de Guimarães e, também, perante a leitura do guião pronto a filmar.“ (Cunha Telles apud Rádio e Televisão, 23-II-1963: 11) “(...) Faria de Almeida: Mas aí também é importante o Cunha Telles, que tinha ocupado um lugar de chefia na Mocidade Portuguesa – não sei como lhe chamavam… Portanto era uma pessoa que inspirava uma certa confiança ao regime. Então se era ele a propor um filme sobre Lourenço Marques, por um realizador de Lourenço Marques e que tinha sido bolseiro do Fundo, parecia tudo muito bem. 371 Maria do Carmo Piçarra: Entretanto o apoio é aprovado. Há o telegrama do Cunha Telles para si em Paris, dando-lhe os parabéns. Quando o recebe, vem para Portugal ou vai logo para Lourenço Marques? FA: Venho para Portugal. MCP: E quando depois segue para Lourenço Marques, já vai com um pouco de dinheiro avançado pelo Fundo... FA: Eu vou sem dinheiro. O Cunha Telles é que comprava o filme, pagava às pessoas e queria as viagens de graça, pagas por não sei quem… Por não conseguir logo esse apoio é que demorou um certo tempo – uns quinze dias – a equipa a ir reunir-se comigo. MCP: Entretanto o Faria de Almeida está em Lourenço Marques... FA: A ver se consigo arranjar apoios. Há um hotel que dá alojamento para o (Augusto) Cabrita e para o (Alfredo) Tropa. Era o Avis. E eu fiquei em casa dos meus pais. MCP: A rodagem do Catembe dura quanto tempo? FA: Quinze dias, três semanas. (...)“ (Doc-Online, 6, VIII-2009: 246-247) “(...) Fui ter com o António da Cunha Telles – ainda não o conhecia – nos idos dos anos 60 para ver se ele queria produzir A Promessa, filme inspirado na peça de Bernardo Santareno e que era uma telha minha desde 1957 (…). O Telles aceitou e comprou os direitos ao Santareno por cinco contos! Os problemas começaram a surgir porque entretanto as ousadias produtivas do Cunha Telles não correram tão bem, economicamente, como ele desejava, e viu-se forçado a fazer cortes orçamentais, e então gerou-se um nó cego porque eu queria fazer A Promessa a cores e o Telles só tinha dinheiro – e nem por isso… para preto-e-branco. Foi então que um dia encontrei por acaso, na rua, o Fernando Namora que me perguntou se eu não estaria interessado em cinematizar um romance dele, o Domingo à Tarde, propondo-se inclusivamente arranjar dois financiadores que ele conhecia. Apresentei-o ao Telles, o negócio concertou-se, e fui a correr ler o romance que nessa data só conhecia de nome!“ (António de Macedo apud FestFigueira, 1998: 172) Tal como uma suposta unidade estética geralmente atribuída ao Novo Cinema português em geral por certos autores, também neste caso não existe uma identidade estética comum que se possa atribuir às Produções Cunha Telles. As características que geralmente lhe atribuem são sobretudo as características mais marcantes d’Os Verdes Anos e de Belarmino, as obras mais significativas que produziu: rodagem em exteriores, câmara bastante móvel, construção abstracta da realidade, subjectividade no olhar do realizador e um uso narrativo do som na montagem e na mise-en-scéne. Ainda assim, Cunha Telles assume uma diferença para as suas produções dos anos 60 por serem diferentes da generalidade da produção portuguesa da época, que era “feita através de processos muito clássicos e com equipas muito convencionais“ (apud Mozos, 2014: 41) 372 A imprensa da época referia-se ao modo de produção de António da Cunha Telles como algo de inédito em Portugal: equipa jovem e virtuosa, produção contínua, acordos de co-produção com produtores estrangeiros e um papel bastante interveniente no processo criativo do filme para além das tradicionais funções de produtor. Na realidade, estas marcas fortes do modo de produção das Produções Cunha Telles eram raras mas não inéditas no cinema português. Por exemplo, o sistema de produção contínua era comum, na mesma época, a produtores como Manuel Queiroz, Perdigão Queiroga, Felipe de Solms ou Francisco de Castro, que viviam exclusivamente da produção cinematográfica, ainda que fosse sobretudo na produção de filmes institucionais e turísticos. Quanto aos acordos de co-produção com países estrangeiros, o cinema português conhecera, entre os anos 40 e 60, diversas experiências com diversos parceiros espanhóis, por exemplo: Canção da Saudade/Los Gatos Negros (1964, de Henrique Campos). Mesmo ao nível da montagem financeira, a dinâmica das Produções Cunha Telles era semelhante aos restantes produtores do cinema português: “(...) E eles (a Vitória Filmes) davam avanços sobre as receitas da exploração dos filmes na província, o que era importante... (...) Porque o laboratório tinha um grande peso no custo de um filme. Hoje não é quase nada, mas na época o que custava caro num filme era a película e o laboratório; tendo essas duas coisas o filme estava feito. Os cachés dos atores e os salários dos técnicos não contavam.“ (Cunha Telles apud Mozos, 2014: 45) O fim do projecto de produção de Cunha Telles terá começado com a produção de As Ilhas Encantadas (1965, Carlos Vilardebó): apesar de financiamento externo, o filme teve um orçamento elevado e os resultados de bilheteira em Portugal e França foram desastrosos. A recepção crítica também foi bastante negativa: “(...) Na altura teve críticas tremendas, então em Portugal foi completamente vaiado, a começar pelo António-Pedro [Vasconcelos] que o 'apedrejou' de todas as maneiras possíveis e imaginárias.“ (Cunha Telles apud Mozos, 2014: 46) Cunha Telles sempre defendeu a via das co-produções para manter uma equilíbrio financeiro da sua produtora e para manter uma actividade regular, mas muitos dos seus amigos próximos discordavam dessa opção, preferindo que o dinheiro fosse investido em mais produções de jovens realizadores portugueses. A partir de finais de 1965, Cunha Telles começa a recorrer com mais frequência à produção de publicidade e dum jornal de actualidades chamado Cine-Almanaque (196768), co-produzido com os laboratórios da Ulisseia, realizado por Fernando Lopes e 373 filmado por António Escudeiro, que gerava algum lucro que seria depois investido em longas-metragens: “(...) Começámos a sentir que os filmes de fundo não nos iam dar dinheiro e tentamos montar uma estrutura rentável para fazer filmes de publicidade, agregando a essa estrutura quase todos os cineastas. Havia uma espécie de contrato de exclusividade que garantia a cada realizador um pagamento mensal. Com os lucros ganhos no fim de cada ano podia, então, investir-se em filmes de fundo. (...) Foi uma estrutura que não se aguentou muito tempo, porque os quadros da empresa, e não realizadores, se separaram para montar estruturas semelhantes um pouco por todo o lado.“ (Telles, 1985: 56) Este esquema, de resto, seria replicado por outros realizadores e produtores na mesma época, nomeadamente a Media Filmes de Fernando Lopes e Alfredo Tropa. Esta ideia do “suplício de Tântalo“ pretendia equilibrar financeiramente uma estrutura produtiva capaz de criar obras cinematográficas de qualidade (Lopes, 1985: 60). Mas a falência, e a cisão definitiva com os seus colaboradores e amigos, tornou-se efectiva com a produção de Sete balas para Selma (1967, António de Macedo), uma tentativa de filme cómico e de espionagem à portuguesa que esperava conciliar arte e público. As dificuldades financeiras obrigaram Cunha Telles a procurar alternativas criativas e a promover uma nova estratégia de produção, onde se valorizava um forte carácter populista e comercial. A experiência Sete balas para Selma resultou num rotundo fracasso comercial e promoveu a ruptura de Cunha Telles com a nova geração. A zanga foi sério e deixou traumas143, ao ponto de Cunha Telles ter optado por ficar fora do esforço colectivo que levaria à criação do CPC: “Ao que parece (...) houve lá pela casa (e das produções do dito) grande discussão. Uns (e tinham sido os filhos) acusavam-no de esbanjar dinheiro. com mais olhos que barriga; o produtor (e, entre 67 e 69, multiplicou as declarações nesse sentido) dizia que a fauna por ele 'lançada' era de ingratos, que queria comer lagosta à custa dele e preferia os lucros da publicidade (onde, é certo, todos relativamente prosperavam) à tuberculose que tão bem ficava aos artistas.“ (Costa, 1985: 31) Em 1969, já com uma nova produtora (CineNovo), Cunha Telles estreia a sua primeira longa-metragem O Cerco, que venceria o Prémio Melhor Filme do SNI e seria o maior êxito de bilheteira dos anos 60: “O Cerco, sozinho, fez mais receitas do que todos 143 Os dois primeiros filmes realizados por Cunha Telles — O Cerco (1969) e Meus Amigos (1974) — estão repletos de referências directas e indirectas a esses anos de conflito e cisão. 374 os filmes portugueses que eu tinha produzido antes.“ (Cunha Telles apud Mozos, 2014: 47). No entanto, a sua produção tinha sido muito complicada: Cunha Telles estava praticamente falido, mas conseguiu comprar 10 mil metros de película ao Paulo Rocha que sobraram da rodagem de Mudar de Vida; e fez ainda um acordo muito vantajoso com a Ulisseia Filmes, que assegurava as despesas de laboratório, equipamento e cópias do filme; mesmo depois de concluído, nenhum distribuidor português quer comprar o filme. Cunha Telles pede uma bolsa à Gulbenkian e parte para Paris com uma cópia do filme legendada em francês. Aí mostra o filme a Louis Mascorelles, que o selecciona para a exigente e prestigiada Semana da Crítica do Festival de Cannes desse ano. e que lhe dá grande destaque no prestigiado diário Le Monde. A estreia em Paris é um sucesso e tem imensa cobertura mediática, não só da imprensa cinematográfica mas também generalista (Ibidem: 48). Em Portugal o êxito repete-se e o filme está três meses consecutivos em exibição no cinema Estúdio no Cinema Império. Ao contrário de outros produtores deste período, Cunha Telles inovou claramente na questão da circulação dos seus filmes: “(...) Lembro-me perfeitamente de ter andado com eles [os filmes] às costas, às vezes mesmo com o desinteresse dos próprios realizadores. Recordo-me do I Festival de Pesaro, onde é exibido o Belarmino que eu levei dentro de uma mala daqui para Roma para entregar ao director do Festival; Os Verdes Anos vai a diversos festivais também; vai a Locarno, vai a Acapulco, enfim, há uma movimentação dos filmes portugueses. (...)“ (Enquadramento, 1-VI-1971: 13) Mesmo sem esperar grande retorno financeiro dos filmes, Cunha Telles percebeu rapidamente que seria fundamental pô-los a circular, estabelecendo parcerias com agentes internacionais de várias áreas (incluindo televisões). Por exemplo, no caso de Os Verdes Anos, Cunha Telles (1985: 53) lembra que a sua percentagem nas receitas de bilheteira das semanas de estreia foi apenas de 20 contos (o filme custara entre 700-800 contos) e que foi a venda do filme para uma estação televisiva do Canadá (rendeu 4.000 dólares) que ajudou a equilibrar o orçamento, mas sem o pagar na totalidade. No início da década de 1970, Cunha Telles voltaria a ter também um importante papel nos sectores da distribuição e da exibição, criando a distribuidora Animatógrafo e assumindo a programação do cinema Universal. Primeiro ocupando as designadas salas de arte e ensaio e depois o Universal. Cunha Telles torna-se possível o contacto do público português com os filmes clássicos e com as mais revolucionárias, alternativas e militantes obras que o cinema mundial produzia (Lauro António apud Mozos, 2014: 17). 375 O caso das Produções António da Cunha Telles é exemplar para demonstrar a necessidade de refazer a história do cinema português neste período, procurando olhar o objecto de uma forma inédita, atendendo a diversos factores contextuais até aqui pouco ou nada considerados. É necessário e urgente rever as fontes no estudo da história do cinema português, lê-las criticamente e questionar várias ideias-feitas ou mitos instituídos pela crítica ou por escritos sobre cinema produzidos por autores “comprometidos“ com o próprio objecto de estudo. Esse trabalho é fundamental para analisar e compreender, em detalhe e na sua complexidade, os modos de produção do cinema português nos anos 60, um período de profundas alterações técnicas e tecnológicas no meio cinematográfico em que esses aspectos teriam uma grande influência na forma de ver e fazer cinema. 3.4.4. Radicalismo e experimentalismo Os três filmes que Jean-Luc Godard realizou em 1966 — Masculin féminin; Made in USA; 2 ou 3 choses que je sais d'elle — anunciavam já o clima de radicalização política e de agitação social que se vivia nas sociedade ocidentais por esses anos. Nos anos seguintes, com filmes como La Chinoise (1967), Week End (1967) ou Le vent d'est (1970), Godard protagonizaria uma viragem radical no cinema moderno, explorando outras formas de representação e de realidade (Kovács, 2007: 349-350). O clima de agitação social e política culminaria com uma série de acontecimentos em 1968: crescimento do movimento estudantil nos Estados Unidos e em França, greves e manifestações de operários na Polónia, reformas económicas na Hungria, reformas políticas na Checoslováquia e consequente intervenção militar soviética, contestação à Guerra do Vietname, entre outros. No cinema, o caso Langlois144 e o consequente boicote no festival de Cannes de 1968 foram dois dos momentos mais simbólicos dessa agitação. Emergia então uma nova cultura de esquerda radical que valorizava a ideia de auto-determinação e emancipação dos indivíduos das instituições tradicionais e a propagação de um conjunto de ideias e atitudes influenciados pelas teorias marxistas e 144 Em 1968, o Ministro da Cultura francês André Malraux retirou todos os fundos públicos à instituição numa tentativa de afastamento de Henri Langlois da direcção da Cinemateca Francesa, um dos seus fundadores em 1936. A pressão ministerial mobilizou a Esquerda francesa e agregou nomes como Truffaut, Godard, Rivette ou Roland Barthes. 376 psicanalíticas, assim como a rejeição da estrutura social e das relações de poder tradicionais (Ibidem: 352-353). Robert Stam (2006: 152) ressalta que esta “Nova Esquerda“ que derrubou o regime de Charles de Gaulle em França e que se distinguia da “Velha Esquerda“ por ser “antiautoritária, socialista, igualitária e antiburocrática“ e por incorporar novas teorias como a psicanálise, o feminismo e o anticolonialismo numa “ crítica abrangente de alienação social“. Robert Stam (Ibidem) filia o pensamento cinematográfico desta “Nova Esquerda“ em debates teóricos anteriores (Eisenstein, Vertov, Pudovkin, Brecht, Benjamin, Kracauer, Adorno, Horkheimer) e recuperando alguns: “o de Eisenstein e Vertov sobre o experimentalismo no cinema, o de Brecht e Lukács sobre o realismo e o de Benjamin e Adorno sobre o papel ideológico dos meios de massa“. Surgem então, um pouco por todo o mundo, movimento de renovação extremamente politizados e radicalizados: o Tercer Cine na Argentina, o Cinema Novo no Brasil, a Nueva Ola no México, o Neues Deutches Kino na Alemanha, o Giovanne Cinema em Itália, o New American Cinema nos Estados Unidos e o New Índian Cinema na Índia (Ibidem: 154). Para Michael O'Pray (2003: 69), foi este o momento em que as novas vagas se reaproximaram-se das vanguardas depois de uma série de concessões iniciais — conservadorismo formal e narrativo, uso de actores profissionais e estrelas de cinema, orçamentos avultados, a institucionalização de um circuito de exibição — que descaracterizaram esses movimentos na transição da crítica para a prática cinematográfica. Peter Wollen chamaria esta tendência de “contra-cinema“ (counter-cinema), referindo-se concretamente a um conjunto de filme surgidos a partir da segunda metade da década de 1960, que apresentavam em comum uma contestação ao cinema clássico ou dominante (mainstream, simbolicamente representado pela indústria de Hollywood e da Mosfilm145) e às suas formas e linguagens dominantes (Kuhn & Westwell, 2012: 9899). Godard foi o cineasta mais radical e assumiu informalmente a liderança simbólica desta viragem, mas muitos outros cineastas contribuiriam para a radicalização do 145 Estúdio de cinema russo, apontado por muitos autores como a mais antiga cidade cinemática da Europa, remontando a 1920. Durante a União Soviética, a Mosfilm tornou-se um símbolo da produção cinematográfica soviética, acolhendo diversos cineastas soviéticos (Eisenstein, Kuleshov, Pudovkin, Tarkovsky, entre outros) e estrangeiros (Akira Kurosawa, Vittorio de Sica, entre outros). Após a condenação da política estalinista, a Mosfilm passou a ser vista pela Esquerda mais radical como um símbolo da industrialização e normalização da produção cinematográfica. 377 discurso e da prática cinematográfica desse “contra-cinema“ ou “anti-cinema“: JeanMarie Straub, Jean-Pierre Gorin (que formou, com Godard, o Grupo Dziga Vertov), Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Dusân Makavejev, Chris Marker (que liderava o colectivo Medvedkine), Costa-Gravas, Marguerite Duras, Rainer Werner Fassbinder, Fernando Solanas, Humberto Soiás e Sergio Giral. No entanto, enquanto o surgimento do modernismo cinematográfico no final dos anos 50 era sobretudo alimentado pela história da arte e do próprio cinema, esta atmosfera política e social muito particular do final dos anos 60 teria um impacto determinante no cinema moderno e na sua reconfiguração em modernismo político: “(...) While the beginning of modernism was driven by influences coming from within the art world and film history itself, the main determining factor of the second phase of modernism was rather the ideological and political environment. Basically no sectors of art cinema remained intact from the influence of the 'new reality' around it, although the different responses of these trends varied widely. However, when I use the term 'political modernism' to describe this period, it is not only to refer to the direct impact of politics on modern cinema but also to designate a more self-conscious, ideologically based filmmaking style that dominated this period as opposed to the more emotional, subjective, or instinctive attitude of the first period. All the trends of the period of political modernism derive from the same basic experience of the mid-1960s: not only traditional forms of representation became void but perceived reality also started to change dramatically around cinema. Cinema of the 1950s was obsolete but so was the reality of the 1950s. The common experience of the mid-1960s as reflected in modern cinema was that a certain sense of reality had disappeared. There was a strong sense of radical transformation, which at the same time could not be formulated in solid sociological and economic facts like at the time of neorealism. The only support the filmmaker had was his own imagination or ideology about what kind of reality was about to come into being. That same recognition led Godard to say in 1965, 'Nothing has been made yet. Everything remains to be done'. There is more to this idea than the romantic egocentrism of the modernism of the early sixties. There is the recognition that the auteur is not only the master of a work of art but also the auteur of a certain coherent vision of reality - an alternate universe of which the work of art is the most authentic expression. The auteur is not only the center of the film but also the focus of a reality envisioned in the film. The auteur is not only making a film but he has to create a whole universe of his own, whether constructed of factual or imaginary elements. These universes are not meant to be 'real' in the sense of empirical experience, they are rather meant to stand for the 'real'. This idea was not independent from the vast trend of conceptual art taking shape just about the same period, which is why we can give another name to this period: conceptual modernism.“ (Ibidem: 355356). 378 Kovács (2007: 356) identifica ainda quatro importantes pontos que alterariam a forma de entender o cinema moderno europeu e que estariam em diversos filmes produzidos depois de 1967: o cinema teria de reconstruir o próprio conceito de realidade; o cinema poderia ser usado como um ameio de acção política directa; a narração cinematográfica passou a ser uma forma de transmitir um discurso autoral e conceptual; e o artista deve criar o seu próprio universo ideológico e mitológico. Em suma, Kovács divide este contra-cinema em duas fases, uma primeira de radicalização das formas do cinema moderno (1967-71) e uma segunda de dissolução de qualquer herança do paradigma moderno (1972-75): “From a stylistic point of view, this period could be divided into two parts. The first part dates from 1967 until around 1971, and the second from 1972 until the end of the decade. The period of the late sixties is predominantly characterized by various forms of modernist radicalism, while the seventies by the slow dissolution of the modernist paradigm. It was a return of the classical paradigm on the one hand, and the slow transition of modernism into postmodernism on the other. Until about 1975, we can still speak about the hegemony of the modernist movement in European art cinema. That will no longer be the case by the end of the decade, when pure modernist forms become extremely rare. In the third period of late modern cinema we can see the dominance of different forms of ornamental and theatrical styles. The minimalist form is represented by Chantal Ackerman and Marguerite Duras alone, but after 1975 the ornamental and theatrical forms are also very scarce. Different forms of naturalism disappeared almost completely, with Hungarian cinema as the exception, but this continuation was for predominantly political reasons.“ (Ibidem: 382) Em mais que uma entrevista, ouvi o realizador António de Macedo usar a expressão “filmes de desespero“ para classificar um conjunto de três filmes – o seu Nojo aos cães, O cerco (António da Cunha Telles, 1969-70) e Uma abelha na chuva (Fernando Lopes, 1968-70) – que foram produzidos sensivelmente na mesma época (entre 196872) e que atravessaram penosas condições de produção. Segundo Macedo, foram mesmo concebidos com um mesmo espírito de revolta perante o panorama do cinema português de então. Nas palavras do próprio Macedo (apud Queiroga, 1998), estes filmes foram “feitos com ‘sangue, suor e lágrimas de quem os dirigiu e dos directos colaboradores’, sacrifícios apenas mitigado pelo contributo de empresas a que os cineastas estavam ligados.“ Decidi recuperar a expressão de “filmes do desespero“ para a aplicar a um outro corpus fílmico. Por a considerar mais adequada, prefiro relacionar a expressão “filmes do desespero“ a um conjunto de quatro filmes produzidos entre 1968 e 1973 que 379 assinalaram o momento de maior radicalidade e experimentação estética no percurso do Novo cinema português: Uma abelha na chuva, Nojo aos cães, Pousada das chagas (Paulo Rocha, 1971-72) e A sagrada família: fragmentos de um filme-esmola (João César Monteiro, 1973). Do corpus proposto por Macedo, decidi excluir O cerco para esta minha classificação porque, apesar de ser um filme feito com “sangue, suor e lágrimas“, penso que não opta abertamente pela radicalização estética enquanto estratégia criativa, mas antes por mecanismos de rentabilização financeira – como a inclusão de product placement, por exemplo – e na conquista do gosto do grande público. Do mesmo modo, decidi incluir duas curtas-metragens, injustamente ignoradas, de dois dos cineastas mais experimentais do Novo cinema português, precisamente porque são dois dos filmes mais radicais e experimentais deste período. Começo por Uma abelha na chuva, o primeiro em termos cronológicos: “A ‘Abelha na chuva’ é o filme que eu fiz auto-financiado, com a colaboração de amigos. Portanto, eu fiz o filme que quis fazer, na minha cabeça e um pouco, digamos, frustrado com o não-êxito comercial do ‘Belarmino’. Eventualmente, se o ‘Belarmino’ tivesse sido um êxito comercial, eu não teria feito aquela ‘Abelha na chuva que fiz. Então, se é para ser radical, vamos ser radicais até ao fim!“ (Fernando Lopes apud Queiroga, 1998). Depois de Belarmino, Fernando Lopes surpreendeu com uma obra muito distinta da sua primeira longa. Como sustenta José Manuel Costa (Cinema Novo Português, 1985: 131), esta evolução foi muito natural no contexto das novas vagas europeias, seguindo um caminho radicalizado na oposição à narrativa clássica americana e à interpretação naturalista. A produção de Uma abelha na chuva, a partir da obra homónima de Carlos de Oliveira, começou em 1968, na ressaca da falência das Produções António da Cunha Telles, e prolongar-se-ia até 1972. Das inúmeras dificuldades de produção, a falta de dinheiro foi a mais significativa e ditou a adopção de uma estratégia experimental por parte do seu realizador-produtor: a rodagem e montagem do filme foram sendo intercaladas pela produção de pequenos filmes publicitários que asseguravam a subsistência da empresa Média Films. O moroso processo de montagem favoreceu o espírito de experimentação e o desejo de desafiar as convenções. Fernando Lopes desmontou o enredo da obra de Carlos de Oliveira – eliminando personagens e grande parte das contextualizações geográficas e sociológicas, e reinventou a obra de uma forma surpreendente. As experimentações também se 380 verificam ao nível da banda sonora, apostando recorrentemente no desfasamento entre a imagem e o som. Com Uma abelha na chuva, Fernando Lopes (Jornal de Letras e Artes, 274, III1970: 25) pareceu assumir um risco justificado pelo “desespero“: “Apostámos sinceramente em filmes muito pessoais, sem nos importarmos que viessem a atrair 8 ou 80 espectadores“. O segundo filme que quero tratar é Nojo aos Cães: “Eu próprio fiz o Nojo aos cães também nessa situação de desespero, em que eu disse: ‘Vou fazer um filme da minha própria revolta!’ Portanto, até contrariando, em certa maneira as minhas próprias convicções de que o filme tem de ser, naturalmente a expressão do seu autor, mas também tem que ser um cinema que o público possa ver agradavelmente e possa ver sem problemas, que não afaste o público.“ (António de Macedo apud Queiroga, 1998). Nojo aos cães é uma obra totalmente independente de constrangimentos económicos ou comerciais, tendo sido produzido sem qualquer subsídio oficial ou mecenato na Fundação Calouste Gulbenkian. Tal como Uma abelha na chuva, este filme foi um projecto pessoal do realizador que o concretizou entre outros trabalhos de carácter mais técnicos, como os filmes institucionais e publicitários. Por dificuldades financeiras, Macedo decide rodar o filme em película positiva – que significava menores custos que a película negativa – o que dava ao filme um efeito estético inovador. Como conta o realizador, estas experiências pictóricas começaram por volta de 1962 e haviam sido já experimentadas em Domingo à tarde (Macedo, 2007: 5). Para além dos materiais, o pendor experimentalista do filme também está presente no “uso desarticulado de registos visuais e sonoros“ e a montagem cria um efeito de “distanciação-precaridade“. O filme foi considerado “perigoso e contrário aos interesses nacionais“ e a sua exibição foi proibida pela censura até 1974. Apesar de proibido pela censura, Macedo consegui uma autorização excepcional para participar no Festival de Bérgamo de 1970, para o qual foi seleccionado. O terceiro filme do desespero é Pousada das Chagas. Encomenda da Fundação Calouste de Gulbenkian, trata-se um filme bastante representativo de uma transição de paradigma estético verificado Novo cinema português na viragem para a década de 1970, onde sobressai de forma clara e definitiva a rejeição das influências formais e estética do neo-realismo e da nouvelle vague. 381 Apesar da encomenda ser para realizar um filme promocional da colecção de arte do museu de arte sacra de Óbidos, Rocha constrói um complexo processo de reflexão sobre as fronteiras do documentário e da ficção que constituiria o início de um processo de mudança na cinematografia do cineasta. Confessando alguma desilusão e descrença no cinema clássico após a realização de Mudar de Vida, Paulo Rocha iniciou as suas experiências formalmente mais radicais com Sever do Vouga... Uma Experiência (1970), um projecto que contou com a colaboração de Fernando Lopes e Manoel de Oliveira. Encomenda da Shell Portuguesa, o documentário deveria retratar uma cooperativa agrícola local, mas Rocha interessa-se mais por uma abordagem etnográfica e antropológica sobre o quotidiano, os gestos e as palavras dos locais. Mas A Pousada das Chagas foi uma experiência mais radical: “Enchi os bolsos com bocados de papel — citações de Rimbaud, Légende Dorée, Camões, Lao-Tse — e fui para Óbidos filmar conjuntamente com Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, pessoas de talento quase insolente. O que emergiu foi um ‘drama sacro’ modernista, uma colagem de vozes, textos, objectos, espaços, pulsações. Corpos que ardem, que sofrem, que irradiam energia“. A desilusão com o cinema narrativo clássico fez de A Pousadas das Chagas uma complexa experiência em termos formais: Rocha optou por fundir (o termo que ele usou foi “processo de colagem“) inúmeras referências artísticas e culturais que interessavam ao cineasta e que ele também explorava em termos visuais e performativos. Uma das particularidades do filme é a colaboração de Jorge Peixinho na banda sonora, também contribuindo como elemento importante nas “colagens“ que o filme experimenta. Depois da guitarra virtuosa de Carlos Paredes, Paulo Rocha assegurou a colaboração do compositor vanguardista que, com o seu percurso experimental, também oferecia novas formas sonoras para o seu cinema. O cineasta confessa mesmo que Stockhausen e as suas “colagens“ foram umas das principais influências na concepção do projecto. Este filme marcaria também o primeiro encontro entre Paulo Rocha e Luís Miguel Cintra, um actor que se tornaria uma referência máxima do cinema de Manoel de Oliveira, João César Monteiro e do próprio Paulo Rocha. Figura tutelar do grupo independente Teatro da Cornucópia, que fundaria com Jorge Silva Melo em 1973, Luís Miguel Cintra era, à data da rodagem d’A Pousada das Chagas, um jovem actor de teatro com reduzida experiência cinematográfica (contava apenas com a presença apenas na curta Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), realizada por João 382 César Monteiro). Apesar dos seus 22 anos de idade, Cintra acumulava já uma interessante experiência em teatro, desde dos tempos dos grupos de teatro universitário até à frequência da Bristol Old Vic Theatre School, uma prestigiada escola britânica de formação teatral. Quanto a Jorge Silva Melo, o outro fundador da Cornucópia, participou no filme como assistente de realização. E tal como Cintra, Silva Melo também manteria uma prolífica colaboração com Paulo Rocha: foi seu actor em A Ilha dos Amores e coargumentista de O Desejado; convidou Rocha para ser figurante na sua primeira obra pra cinema, Passagem ou a Meio Caminho (1980). Esta presença de pessoas ligadas à Cornucópia parece-me marcar também uma aproximação do cinema de Rocha às formas de representação teatral que seria mais visível a partir d’A Pousada das Chagas e nos filmes “japoneses“. De certa forma, apesar de algumas experiências formais tentadas nos filmes da sua fase japonesa, Paulo Rocha retomaria as experiências mais radicais na sua cinematografia com Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989). Complexo e falso documentário sobre a obra do artista modernista Amadeo de Souza Cardoso (18871918), Rocha prossegue as suas experiência de fusão (ou de “colagem“) envolvendo diversos registos artísticos, nomeadamente a pintura, a poesia e a performance. Rocha explora os diversos materiais artísticos e pessoais (cartas, diários, fotografias) de Amadeo — um pouco à semelhança do que António Reis fizera em Jaime (1974) — mas cruza-os com momentos ficcionais (“documentários culturais faz-me pavor, eu gosto é de actores...“), livremente inspirados em alguns desses materiais, num trabalho interessante de reterritorialização da obra modernista de Amadeo de Souza Cardoso, estabelecendo novas leituras e relações entre o homem, a obra e o meio. Entre os experimentalismos da Pousada conta-se: um gosto barroco da cor, uma excessiva preocupação cénica e uma interpretação demasiado teatral. Paulo Rocha resumiria estas experiências a uma tentativa de promover uma estética do excesso que segue os mecanismos da arte moderna e que denota uma clara influencia do cinema de Glauber Rocha. Paulo Rocha havia conhecido Glauber Rocha em Cannes (1964) e voltariam a encontrar-se em Acapulco (1965) e Montreal (1967). Tal como conheceu Glauber, Paulo Rocha conhecera dezenas de outros jovens cineastas de vários pontos do mundo, mas com o baiano houve uma atração recíproca. Os constantes encontros aproximam-nos, mas o encontro em Acapulco foi, decisivamente, o mais intenso: 383 “A vinda do Geraldo del Rey para fazer o papel de Adelino vinha da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e meia encontrávamo- nos, ora em Paris, ora em festivais. Eu estava em Acapulco com os Verdes quando lá apareceu como produtor dos Fuzis. Ficou no meu quarto, discutíamos a noite inteira.“ Paulo Rocha vira em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) uma semelhança com o teatro japonês clássico, mas também o lado literário do filme e a sua intensidade visual que se aproximava do Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira. Mas o jovem cineasta português apreciava sobre tudo o lirismo anti-racional que impunha às suas representações populares e do mundo rural de onde era originário. Paulo Rocha ficara fascinado e identificava-se com muitas dessas ideias. Em Acapulco passaram dez dias juntos e acabaram a partilhar o quarto, enquanto Glauber estava a preparar Terra em Transe e partilhava todo o tipo de pensamento com Paulo Rocha. Mudar de Vida iria ser influenciado por essas conversas, desde logo com a escolha de Geraldo del Rey, o actor glauberiano que encarnava toda a violência e visualidade do nordeste brasileiro, para protagonista da história de amores trágicos no meio dos pescadores do Furadouro. Para M. S. Fonseca (Cinema Novo Português, 1985: 123), uma das principais características de Pousada das chagas é uma “cada vez mais expressa consciência da forma e matéria cinematográfica (…) que implica um – também consciente e premeditado – decréscimo da comunicação com grandes públicos“. Finalmente, A sagrada família: fragmentos de um filme-esmola (1971-72) foi a terceira obra de João César Monteiro – depois da encomenda Sophia (1968) e do projecto pessoalíssimo Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), subsidiado parcialmente pela Fundação Calouste Gulbenkian. A sagrada família é mais uma obra experimental que segue o caminho traçado em Quem espera…, mas desta feita mais intimista e com uma atitude mais radical e provocadora, mesmo ofensiva em relação aos próprios espectadores. Sobre este filme, M. S. Fonseca (Ibidem: 134) afirmaria: “A sagrada família é talvez o único filme português feito de raiva. A depuração formal é extrema e corresponde, de resto, a igual depuração temática, se é que faz algum sentido estar separar uma e outra num filme além dos limites como é este.“ O radicalismo do filme era tão consciente que João César Monteiro, apesar de ver concluída a rodagem vários meses antes da revolução de 1974, decidiu preservar o filme 384 e não arriscou sequer submetê-lo ao visionamento do exame prévio. O filme acabaria por ser exibido publicamente apenas depois do fim da ditadura, em 1975. Já na sua experiência cinematográfica anterior – onde a censura pretendia impor vários cortes a Quem espera… – o cineasta optara por recusar as “sugestões“ da censura, ainda que isso significasse a não exibição do filme. Esta opção de Monteiro demonstra exemplarmente que estes “filmes de desespero“ eram produzidos para uma espécie de catarse do seu autor e não admitiam qualquer espécie de intervenção exterior – quer das características do mercado cinematográfico quer da acção da própria censura. Em suma, César Monteiro parece-me resumir exemplarmente o espírito dos cineastas por detrás destes “filmes do desespero“: “Só me interessa fazer filmes onde o grande centro seja o meu umbigo – que não é notável –, sem público, fora do público, contra o público, de preferência em casa e em sítios da casa, como a banheira, a cama e a retrete. […] O público, para mim, não existe. […] Quando tiver de fazer um filme para o público, acho que faço um filme pornográfico e espectacular“ (João César Monteiro apud Cinema Novo, 17, III-VII-1981: 20). Apesar de excessiva e radical, esta declaração de João César Monteiro expressa de forma inequívoca e transparente uma importante fase do novo cinema português, uma fase transitória entre as Produções António da Cunha Telles e a criação do Centro Português de Cinema. O principal motivo do fracasso comercial das Produções Cunha Telles terá sido o não-convencimento de um grande público que, alegadamente, era detentor de uma menor cultura cinéfila. No período do novo cinema, quem ditava o sucesso comercial de um filme não era o público cinéfilo, mas o grande público composto maioritariamente por espectadores da classe média urbana que, décadas antes, sentenciava o sucesso da comédia à portuguesa. Faltou talvez um apelo ao espectador convencional, depositando-se imensa expectativa nos espectadores tidos como mais “esclarecidos“ que, reflectindo as discussões internas do novo cinema, não correspondeu massivamente ao apelo (Cunha, 2007: 357). Apesar do sucesso pontual de algum filme específico, esta derrota sempre foi assumida como o “calcanhar de Aquiles“ do novo cinema: “não tanto pela não entrada de dinheiro (as receitas de bilheteira, num mercado reduzido como o português, nunca mais voltarão a poder cobrir os custos de um filme, com valores crescentes a partir dos anos setenta), mas pelo défice de legitimação, que se irá acentuando“ (Monteiro, 2000: 335). 385 Ironicamente, foi o fracasso comercial das primeiras propostas fílmicas que parece ter convencido a generalidade dos cineastas que a sua existência teria de ser garantida à margem das leis do mercado. Esta consciência de uma posição de marginalidade perante o mercado cinematográfico potenciou uma prática fílmica mais voltada para o radicalismo e o experimentalismo. A partir de 1968, o moroso processo de formação da cooperativa de produção Centro Português de Cinema permitiu a esta nova geração de cineastas “fazer filmes em cuja concepção a conquista de um público não pesava, ou se quiserem não era um elemento vital“. Como lembra Fernando Lopes (1985: 66), o que mais interessava à geração do novo cinema “era a presença em Festivais e a reacção da crítica internacional. Julgávamos que os filmes acabariam por se impor de fora para dentro“ (Ibidem). Progressivamente, a nova geração de cineastas passou a ter outro público de referência que não o português. As boas recepções internacionais de alguns filmes dos anos 60 parece ter convencido a apostarem definitivamente na internacionalização dos seus filmes. Ao contrário do grande público português, que estava condicionado por décadas de censura cinematográfica e de isolamento cultural sentenciados pela ditadura salazarista, os jovens cineastas português acreditavam que o público cinéfilo internacional estaria preparado para receber e aceitar as novas propostas fílmicas, viabilizando financeira e esteticamente o novo cinema português. 3.5. Uma terceira via? Em Outubro de 1963, Luís de Pina assinava um editorial na revista Filme onde alertava para um fenómeno recente e para uma confusão que parecia ocorrer no meio cinematográfico português da época em tornos de ideias como moda e modernidade, novidade: “Abundam, nos domínios da arte cinematográfica, exigências de modernidade e progresso. 'O cinema tem de reflectir o seu tempo com as formas e os conceitos desse mesmo tempo' – afirma-se. E assim é. Os problemas de cada época são diferentes, vão-se modificando de acordo com a evolução natural do homem e da sociedade, dentro de uma linha imutável de valores que lhe cumpre acatar e estimular para sua melhoria espiritual. O homem de hoje nada tem que ver – excepto no essencial – com o homem do séc. XIX e por isso também a arte de hoje não pode ser igual à do século anterior. O retrato que nos dá 386 desse homem é diferente, quer no objecto em si quer na forma de o apresentar. Para o homem novo, consequentemente, arte nova. Para o homem moderno, arte moderna. Mas esta modernidade terá de significar progresso interior, humano, espiritual, adiantamento em relação aos cânones estéticos e filosóficos anteriores. Tem de depurar, aprofundando, a existência do homem, as suas inquietações e anseios. Depuração e aprofundamento temporal e no espírito, caminho de transcendência. Nestas duas operações do espírito é importante saber reconhecer a autenticidade do verdadeiro progresso. Pois já não é progresso admitir como modernos, como actuais, conceitos e formas artísticas semelhantes às do passado. Torna-se necessário pesar as experiências, analisar as tentativas, julgar os resultados para sabermos se estamos em face de uma autêntica modernidade, de um autêntico progresso estético. Acontece, porém, nos tempos de hoje, que todas essas aspirações à 'novidade' se sucedem, como afirmou há pouco A. Lopes Ribeiro, 'em ritmo tão vertiginoso que não lhe deixa tempo para a analisar convenientemente, passando-lhe as desvantagens em face das vantagens, os defeitos em relação às qualidades, quantas vezes apenas aparente'. É assim, muito daquilo que nos é anunciado como modernidade, como progresso, não passa de moda. Ora a moda pode muitas vezes voltar ao passado, não diz respeito às inquietações e aspirações fundamentais do homem-artista, mas sim a um comando orientado do gosto capaz de ser copiado e limitado, mas nunca susceptível de gerar conceitos e formas verdadeiramente originais e válidas em relação ao que veio de trás, correspondentes a exigências profundas da evolução do pensamento humano. A moda reflecte o presente, a modernidade antecipa o futuro. Por isso exige reflexão, estudo, julgamento sério, sensato e reservado, para que se possam colher os seus fecundos frutos. A moda faz a sua época e passa, a modernidade projecta-se sempre nos tempos futuros, é elo e uma cadeia. Eis porque não devemos ir atrás de modas culturais, tantas vezes impingidas, tantas vezes mascaradas, tantas vezes falsas, mas que o público aceita como tal 'porque é bom andar na moda'. Saber ser moderno, sabendo recusar a moda, é manter-se na permanência dos valores que fazem a verdadeira arte, ontem como hoje.“ (Filme, 55, X1963: 1) No cerne do problema parecia estar uma série de produções que denotavam uma aparente preocupação com a adopção de um estilo moderno, que rompesse com a produção convencional no cinema português, mas que segundo Pina estariam longe de uma “autêntica modernidade“ e mais próximos de uma qualquer moda efémera que copia modelos do passado e os tenta reactualizar, reflectindo o presente mas mostrando clara incapacidade de antecipar o futuro. Apesar de ainda não ser a modernidade que chegara anos antes a outras cinematografias e que começavam a ter eco em Portugal, é possível identificar um corpus 387 fílmico que surge no início da década de 60 que procura renovar o cinema português de então “a partir de dentro“, ou seja, que parece aperceber-se que está a ficar obsoleto e ultrapassado e que tenta alterar algumas fórmulas para garantir a sua própria sobrevivência. São alguns desses casos que procuraram uma terceira via no cinema português, um tipo de cinema que pudesse ter “qualidade artística“ sem abdicar da sua natureza comercial e de meio privilegiado de entretenimento, que pretendo analisar nas próximas páginas, procurando identificar estratégias produtivas, criativas e comerciais e analisar processos de afirmação de uma renovação estética. Como ressalvaria Leonor Areal (2008: 385), tratam-se de filmes que “mesmo alinhado[s] com o poder financiador e com a moral de estado, não estava[m] alheio[s] ao ar dos tempos, e propiciou outros desvios (...)“. Trata-se, naturalmente, de um corpus fílmico geralmente desconhecido, ignorado ou menosprezado nas histórias mais convencionais do cinema português, mas que me interessa abordar aqui precisamente como sintoma de uma vontade de renovação que marcou indelevelmente esse período e que também parecer ter influenciado o próprio cinema comercial. “Mas o espírito do cinema novo português influenciou os próprios realizadores comerciais, os próprios veteranos, tal como na França os temas e os processos da 'nouvelle vague' se fizeram sentir em cineastas como René Clement ou Marcel Carné. Augusto Fraga, em 'Raça', e 'Um dia de vida' e Constantino Esteves, em '9 rapazes e um cão', dão uma atmosfera diferente, mais séria e mais actual ao seu cinema, numa linha de rumo que provém directamente do cinema novo. '9 rapazes e um cão' de Constantino Esteves, tem uma história populista, prejudicada talvez pelo excessivo tom melodramático. Mas é um filme que redime em parte o autor do comercial 'Miúdo da Bica' e traz de novo para o cinema português, um grupo de intérpretes infantis, absolutamente, na linha e na melhor tradição do 'AnikiBóbó', que o mesmo é dizer, do cinema novo português.“ (Celulóide, IV-1964: 8) Durante os anos 60, foram várias as figuras do “velho cinema“ que não ficaram indiferentes aos ventos de mudança que sopravam da Europa e que contribuíram para uma mudança radical da forma de ver e entender o cinema e a cinefilia. Três dos produtores mais emblemáticos do “velho cinema“ e um caso mais irreverente tentaram renovar a sua actividade, experimentando fórmulas diferentes que pretendo abordar de seguida. 388 3.5.1. Manuel Queiroz, Francisco de Castro e Felipe de Solms Manuel Queiroz começou a trabalhar em cinema na Lisboa Filme, em 1946, para onde foi trabalhar como chefe de escritório e, mais tarde, como auxiliar da gerência (Ramos, 1989: 321). No final dos anos 40 começa a produzir documentários, mas só na década seguinte passaria a director de produção de longa-metragem, com O Noivo das Caldas (1956, Arthur Duarte) e Perdeu-se um marido (1957, Henrique Campos). Sairia da Lisboa Filme em 1957 para se estabelecer como produtor independente (Ibidem). A experiência não seria duradoira, mas produziria três longas-metragens com o realizador Augusto Fraga: Sangue Toureiro (1958), O Tarzan do 5.º Esquerdo (1958) e O Passarinho da Ribeira (1959). Em 1960-61 trabalha como gerente de distribuição na Filmes Castello Lopes (Ibidem), mas mantém a sua actividade como director de produção em filmes como Raça (1961, Augusto Fraga, com produção da Imperial Filmes), A Ribeira da Saudade (1961, João Mendes, prod. Felipe de Solms) e O Milionário (1962, Perdigão Queiroga, com produção de Felipe de Solms) (Ibidem). Em 1962, Manuel Queiroz funda a Cinedex, que produziria 10 longas-metragens em 3 anos: Um Dia de Vida (1962, de Augusto Fraga) Pássaros de Asas Cortadas (1962, de Artur Ramos), O Miúdo da Bica (1963, de Constantino Esteves), 9 Rapazes e 1 cão (1963, Constantino Esteves), Uma Hora de Amor (1964, Augusto Fraga), A Última Pega (1964, Constantino Esteves), Um Cão e dois destinos (1964, Alain Bornet), Rapazes de Táxis (1965, Constantino Esteves), 29 Irmãos (1965, Augusto Fraga) e A Voz do Sangue (1965, Augusto Fraga). Em 1965, em dificuldades financeiras que deixariam inacabado o filme Férias em Portugal, Queiroz extinguiu a Cinedex e partiu para Angola. Regressaria a Portugal dez anos depois, em 1975, para retomar a actividade como director de produção em A Recompensa (1976, Artur Ramos). Em 1978 seria um dos fundadores da cooperativa Forum, onde produziria vários documentários de “cariz político e de temática industrial“, a série para televisão Retalhos da Vida de um Médico (1978-79, Artur Duarte) e A Noite e a Madrugada (1985, Artur Ramos) (Ibidem: 321-322). Segundo Leitão Ramos (1989: 322), Queiroz foi “um dos mais importantes produtores de um cinema rasteiro, fotonovelesco e nacional-cançonetismo, cujo êxito comercial era quase sempre certo nas salas do Odeon ou do Eden.“ A sua estratégia era 389 aproveitar a popularidade de figuras da rádio para protagonizar os seus filmes, garantindo um aparente retorno financeiro como um tipo de “cinema degradado e reaccionário“: Tony de Matos em Rapazes de Táxis, António Calvário em Uma Hora de Amor e Rapazes de Táxis, Fernando Farinha em O Miúdo da Bica e A Última Pega, e Amália Rodrigues e o toureiro Diamantino Viseu em Sangue Toureiro. Naturalmente, o filme de género musical seria uma das principais apostas de Queiroz. O primeiro seria O Miúdo da Bica, inspirado na biografia do próprio Fernando Farinha, o protagonista do filme e vedeta do fado: “As canções são evidentemente o prato forte deste filme e o seu atractivo, para além do pitoresco do bairro da Bica e das vistas de Lisboa diálogos, fortemente carregados de mensagens moralizadoras conformista e atrasado uma série de clichés quase idiotas o conformismo e o reaccionarismo expresso nos filmes situacionistas, um conformismo estranhamente maior que o dos filmes dos anos 30 e 40, onde as questões de moralidade estão muito presentes, mas o maniqueísmo é menor“ (Areal, 2008: 239). No ano seguinte seria a vez de António Calvário protagonizar Uma Hora de Amor. Repetindo a fórmula de “sucesso“ (comercial) do filme anterior, Queiroz contratou Calvário no auge do seu mediatismo e sucesso: havia sido coroado Rei da Rádio e vencido recentemente o Festival RTP da Canção, participando consequentemente no Festival da Eurovisão em representação de Portugal. O par amoroso do filme era composto com Madalena Iglésias, que aqui também se estreava no cinema e que também conquistara grande sucesso na rádio e televisão. A narrativa do filme, muito simples e de tom melodramático, centra-se na trajectória de um trabalhador fabril que é descoberto por um empresário que o lança como cançonetista, que se envolverá num triângulo amoroso com uma artista de rádio e tv e uma amiga que adoece gravemente. No ano seguinte, Calvário voltaria a protagonizar outro filme do género. Apesar da aparência, Rapazes de Táxis “não é propriamente policial, mas principalmente moralista em relação à regulação das relações entre patrão e empregados“, construindo-se numa esquema de filme musical. Curiosamente, apesar de um “irrealismo que tem um estatuto de fantasia musical, não motivada diegeticamente“, o filme desenrola-se no universo da pequena burguesia que é mostrado com algum realismo (Ibidem: 193). Baseado numa opereta homónima e protagonizado por António Silva, O Passarinho da Ribeira é uma comédia que gira em torno de peripécias relacionadas com esquemas de contrabando e um caso de reconciliação familiar, sempre pontuado por momentos musicais. 390 A comédia, ao estilo da revista do Parque Mayer, foi outro género popular entre as produções de Manuel Queiroz. Protagonizado por Raul Solnado, popular actor de revista à época, O Tarzan do 5.º Esquerdo aborda as peripécias de um casal recém-casado que se envolve num esquema pouco ortodoxo para conseguirem sucesso nos negócios. O western ribatejano, valorizando a “valentia dos homens ribatejanos e a sua religiosidade total e, curiosamente, a submissão à autoridade“ (Ibidem: 200), também foi tema de dois filmes produzidos por Queiroz: A Última Pega junta, numa narrativa simples e linear, os três ingredientes principais destes género: “as vistas da lezíria (com algumas cenas documentais, filmadas de grua), as cenas de tourada (também documentais) e os fados (corporizados na figura de um autêntico cavaleiro e cantor)“ (Ibidem: 199); Sangue Toureiro, primeira longa-metragem a cores no cinema português, o que significou um grande investimento do produtor, apresenta-se como “uma história linear e muito simples entremeada de vários números de fado e de tourada“, com personagens esquemáticas e “sem revelo psicológico nem grandes dilemas“ (Ibidem). Queiroz tentou também, em vão, produzir filmes para um público infanto-juvenil, nomeadamente com 9 Rapazes e 1 cão e Um Cão e dois destinos, filmes protagonizados pelo cão Farrusco, que se tornaria num caso de popularidade na imprensa da época. O filme assume, na figura de autoridade deste polícia zelador da paz e da boa educação, um propósito didáctico e moralista que configura uma visão de sociedade ordeira, controlada, modesta e pobrezinha. Filmado em Campolide, apresenta o bairro como uma pequena aldeia onde todos se conhecem, uma espécie de sociedade modelo – modelo para crianças, bem se vê – mas onde desponta a ameaça da nova geração irreverente. Esta actualidade de referências dá-nos alguns sinais de época: os métodos modernos da professora nova, o facto já elogiado de ela trabalhar e ser útil, mesmo sem ter necessidade e em vez de namorar; o “snack-bar“, bar de balcão corrido, novidade à época, e as más companhias que ameaçam os jovens, cujos pais – comerciantes abastados – não conseguem por fraqueza controlar. Finalmente, existe um outro núcleo de filmes produzidos por Queiroz que são marcados por um tom assumidamente dramático e que retratam alguns dramas do quotidiano, marcados por um tom de “boas intenções e intuitos moralizadores“ (Areal, 2008: 235): Raça é “um drama familiar que pretende falar de problemas sociais, em particular do caso 'banal' das mães solteiras, dos filhos naturais e dos esforços para apoiar socialmente os mais pobres no acesso à saúde“ (Ibidem); Pássaros de Asas Cortados, adaptado obra homónima de Luiz Francisco Rebello, conta a história de Elsa, 391 filha de uma família da alta burguesia do final dos anos 50, que se debate com o ambiente dissimulado e corrupto a que pertence; Um dia de Vida aborda um conflito moral entre gerações através de história de um pai de família desempregado que é peça de um triângulo amoroso protagonizado pelo seu filho e pela madrasta/actual esposa; 29 Irmãos, “o único filme contemporâneo da guerra 'no Ultramar' que não escamoteia a existência dessa guerra que até nos jornais era negada“146 (Ibidem), fala do regresso de um soldado da guerra e da rejeição da noiva, que entretanto decidira enveredar pela vida religiosa; A Voz do Sangue, também rodado em Angola, reconstitui a saga duma família entre os anos 1940 e 1961, culminando no dilema dum advogado tem de defender em tribunal um homem que desconhecia ser o seu pai. Como resume Leonor Areal (Ibidem: 187), estes dramas reproduzem um “atavismo ideológico, apesar de tocar temas moralmente delicados na altura“, com uma “divisão um tanto maniqueísta, típica do cinema moralista, entre personagens bons e maus, comportamentos correctos e censuráveis, honestos e corruptos ou perdidos“. Em última análise, a abordagem destes temas incómodos, do ponto de vista social e político, é sempre feita de acordo com a ideologia oficial, procurando “explicar, resolver e moralizar os conflitos sociais patentes“ (Ibidem: 239) A carreira de produtor de Manuel Queiroz ficaria ainda marcada pela relação com três realizadores: Augusto Fraga, Constantino Esteves e Artur Ramos. Com um passado ligado à crítica cinematográfica dos anos 30 e 40 (Imagem, Animatógrafo e Cinéfilo), Augusto Fraga começou por realizar pequenos filmes destinados a ilustrar canções popularizadas na rádio, espécies de videoclips, passando depois por Espanha onde, em alguns meses, filmaria algumas curtas metragens. Regressado a Portugal, foi realizando alternadamente curtas, documentários e filmes de fundo, “tornando-se cada vez mais perceptível uma colagem às ideias do regime, visível também na sua produção cinematográfica“ (Murtinheira, a: em linha). Constantino Esteves começou a sua carreira no exercício de funções de assistente de realização em filmes de António Lopes Ribeiro (O Pai Tirano, 1941), Jorge Brum do Canto (Fátima, Terra de Fé, 1943; Ladrão, Precisa-se!..., 1946) e Armando Vieira Pinto (Eram Duzentos Irmãos, 1952), antes de se estrear na realização com O Comissário de 146 “(...) O alinhamento político de Augusto Fraga permitiu-lhe fazer o único filme que fala da guerra de África no seu tempo – tema tabu na cinematografia portuguesa até 74. Mesmo se assume uma defesa da guerra sob o ponto de vista do regime, recorrendo à fusão narrativa de imagens documentais de guerra com planos ficcionados e exaltando o sacrifício dos soldados justificado em nome do patriotismo, este filme faz-se voz de um sofrimento confessado e admite que muitos lá morreram – o que nem na imprensa da época era admitido pela Censura“. (Areal, 2008: 238) 392 Polícia (1953). Depois de um interregno de uma década, voltaria à realização em 1963 para a sua fase mais produtiva, realizando 8 longas-metragem até 1974. O seu currículo ficaria marcado pela defesa de um cinema comercial, nomeadamente pelos filmes protagonizados por “cantores quase totalmente desprovidos de qualidades na área da representação, aliada a enredos pouco inspirados“ (Ibidem). Sobre o sucesso comercial dos seus filmes, Constantino Esteves lembra (Murtinheira, b: em linha) que foi o seu filme O Miúdo da Bica que “havia salvo o produtor, Manuel Queiroz, da falência que o desaire financeiro dum projecto mais intelectual (o filme Pássaro de Asas Cortadas, de Artur Ramos) lhe ia provocando“. O caso Artur Ramos é, portanto, mais particular na filmografia produzida por Manuel Queiroz. Aluno no IDHEC com uma bolsa do governo francês, por onde depois passariam outros jovens portugueses, Artur Ramos foi o primeiro realizador da RTP, encenando e realizando a transmissão televisiva de dezenas de peças de teatro de vários autores (Tchecov, Molière, Marivaux, Bernard Shaw, Oscar Wilde, O’Neill, Maeterlinck, Dürrematt, Gil Vicente, António Ferreira, Alfredo Cortez, Sttau Monteiro, Mário de Carvalho) e realizou as primeiras séries de televisão e dezenas de telefilmes. Antes de entrar para a televisão pública portuguesa, contava apenas com a experiência na assistência de realização em Os Amantes do Tejo (1955, Henri Verneuil). Em 1962 realizaria Pássaros de Asas Cortadas, que Leonor Areal (2008: 412) lembra ser um filme “a que a historiografia tem dado pouco relevo“, mas é um “marco de consciência social, único na forma como critica a classe abastada e o seu exercício do poder sobre as classes dependentes“. Apesar da realização e do argumento parecerem “um tanto clássicos, ou para outros convencionais, ainda não mostrando a desejada inovação das formas de narração, a crítica social que faz (mesmo com os cortes da censura) é a mais contundente desse primeiro período de renovação“ (Ibidem). Finalmente, uma nota para Alain Bornet, um realizador francês viera a Portugal para realizar um filme co-produzido por Cunha Telles (Le pas de trois, 1964) e que realizaria também o filme Um Cão e Dois destinos. Bornet seria o único realizador estrangeiro com que Queiroz trabalharia durante a sua carreira de produtor. Francisco de Castro começou a sua carreira cinematográfica como figurante em vários filmes: O Pai Tirano (1941, António Lopes Ribeiro), O Pátio das Cantigas (1941, Francisco Ribeiro), Amor de Perdição (1943, António Lopes Ribeiro), A Menina da Rádio (1944, Arthur Duarte) e Ladrão, Precisa-se!... (1946, Jorge Brum do Canto). Trabalhou depois como assistente artístico na FNAT, onde rodou alguns documentários. Foi 393 empresário teatral, produzindo algumas revistas entre 1958-59. Ainda nos anos 50, trabalharia na Belarte, empresa publicitária (Ramos, 1989: 87). Excepcionalmente, Castro também passaria pela realização, assinado quatro documentários entre 1960-62: Primeiros Jogos Desportivos Luso-Brasileiros (1960), Jogos Luso-Brasileiros (1960), O Homem e a Máquina (1961, prod. Junta de Acção Social) e Um dia com os Trabalhadores (1962). Nos anos 60 funda a Produções Francisco de Castro, com particular actividade na produção de documentários turísticos e industriais. Entre 1968-75, Castro produziu o jornal de actualidades quinzenal Actualidades Portuguesas, terminando no ano em que o produtor se exilou no Brasil. Regressaria em 1978 para integrar a Coopercine, uma cooperativa de cinema que sucedera às Produções Francisco de Castro (Ibidem). Na longa-metragem, Castro seguiria um padrão comercial e apostaria sobretudo em parcerias de co-produções. As Pupilas do Senhor Reitor (1960, Perdigão Queiroga, coprod. com Perdigão Queiroga), Nojo aos Cães (1970, António de Macedo, co-prod. com António de Macedo) e A Promessa (1972, António de Macedo, co-prod. com António de Macedo e Tobis) são três exemplos de co-produções feitas com parceiros portugueses, mas seria mais frequentes as parcerias com empresas produtoras de Espanha — Canção da Saudade/Los Gatos Negros (1964, Henrique Campos/ José Luis Monter, co-prod. Cooperativa Cinematográfica Alcazaba), Os 5 avisos de Satanás (1969, José Luís Merino, co-prod. Hispamer Films e Ibérica Filmes), Crime de Amor (1972, Rafael Moreno Alba, coprod. com Talia Films e Americo Coimbra) — e do Brasil, nomeadamente o filme brasileiro de Anselmo Duarte O Pagador de Promessas, que venceria o grande prémio em Cannes em 1962, co-produzido com a Cinedistri. O caso d'A Canção da Saudade é particular: o filme teve duas versões finais, uma para o mercado português falada em português e realizada por Henrique Campos e outra falada em castelhano destinada ao mercado espanhol. com realização de José Luís Monter. Tanto Campos como Monter pertenciam a uma segunda linha de realizadores nos seus países. Neste filme, à semelhança de Manuel Queiroz e da Cinedex, Castro também tentou a estratégia de contratar figuras populares para protagonizar o filme: o músico yé-yé Vítor Gomes e a actriz de revista Florbela Queirós, mas também os cançonetistas Tony de Matos, Simone de Oliveira e Madalena Iglésias, entre outros. O filme inclui ainda excertos de vários filmes portugueses dos anos 30 e 40 — A Canção de Lisboa (1933, Cottinelli Telmo), Bocage (1936, Leitão de Barros), A Aldeia da Roupa Branca (1938, Chianca de Garcia) e O Pátio das Cantigas (1942, Francisco Ribeiro) — 394 como tentativa de recuperar uma cderta tradição muscial do cinema português dessas décadas. Perante um argumento tão frágil, a presença de várias figuras do “nacional cançonetismo“, muito populares na rádio, revista e televisão da época, o elenco reúne também figuras de outras tendências musicais, como o yé-yé , o twist ou o rock. A nota dominante destes filmes e da generalidade das suas produções, como acontecia com Manuel Queiroz, era o tom conformista que apostava sobretudo em fazer entretenimento com um sentido moralizante. Apesar de alusões à rebeldia juvenil ou à liberdade sexual, a mensagem última do filme era sempre normalizadora e conciliadora. A mesma mensagem surge em Pão, Amor e Totobola (1964, Henrique Campos), um filme que “revela uma série de mutações socioeconómicas onde se salienta um conflito de gerações, mas sobretudo o fascínio pelo consumo dos novos electrodomésticos e o recém inaugurado jogo de sorte Totobola“ (Areal, 2008: 190), onde um conflito entre pai e filha, a propósito de comportamentos considerados desviantes para a época (namorar em lugares menos próprios, frequentar discotecas e dançar rock' and roll) é sanado pelo recém-lançado jogo do totobola. Curiosamente, em A Canção da Saudade ocorre um conflito de gerações que, a meu ver, pode muito bem ser entendido como uma alusão ao conflito entre o velho e o novo cinema: pais e filhos tem hábitos sociais distintos e ouvem músicas diferentes características desses estilo de vida, mas o filme promove “uma glorificação de vários géneros musicais, modernizando-se segundo os gostos mais juvenis, mas principalmente reforçando o valor das músicas mais antigas“ (Areal, 2008: 243). Produtor marcante nos anos 60 e 70, produzindo dezenas de filmes industriais e publicitários, Castro ficaria também associado a alguns nomes da nova geração, nomeadamente António de Macedo, José Fonseca e Costa147, Faria de Almeida148 e Fernando Matos Silva149, mas também ao director de fotografia António Escudeiro e ao montador João Carlos Gorjão (Ibidem: 88). Com Macedo a relação foi próxima: produzir-lhe-ia várias curtas150 e duas das suas longas-metragens em condições particulares. A intervenção de Castro em Nojo aos Cães 147 Era o vento... e o mar (1966), A metafísica do Chocolate (1967) e A cidade (1967). V Centenário de Gil Vicente (1966) e Loures (1970-74). 149 Estoril - Costa do Sol (1972). 150 Nicotiana (1962), 1X2 (1963), Verão Coincidente (1963), Crónica do esforço perdido (1966), Afonso Lopes Vieira (1966), Fernão Mendes Pinto (1966), A ginástica na prevenção dos acidentes (1967), A Revelação (1967), Albufeira (1968), Almada Negreiros, Vivo, Hoje (1969), A história breve da madeira aglomerada (1970), Totobola - Relatório e contas (1970), Do outro lado do rio (1971), 5 temas para refinaria e quarteto (1971), Inauguração da doca Alfredo da Silva (1972, co-realizado com Victor Barbosa), 148 395 e A Promessa teria passado pelo empréstimo de material e pela influência do cineastas junto do meio cinematográfico, de forma a conseguir melhores condições negociais, e das autoridades públicas, para contornar eventuais problemas com a censura, como aconteceria de facto com o filme Nojo aos Cães. Em suma, tanto Queiroz como Castro são os maiores representantes de um tipo de cinema tematicamente conformista e tecnicamente convencional. O relativo sucesso comercial que alguns dos seus filmes conquistaram deveu-se sobretudo à popularidade dos seus protagonistas, recrutados criteriosamente de entre os mais populares e mediáticos nomes da rádio, da revista e da televisão. Finalmente, o produtor Felipe de Solms também tentaria renovar o seu reportório no decorrer dos anos 60. Contando com dezenas de curtas no seu currículo, a maioria encomendas ou filmes subsidiados por dinheiros públicos, Solms produziria alguns filmes fora do seu registo habitual. O primeiro destaque vai para dois filmes realizados por Jorge Brum do Canto, também ele uma figura do “velho cinema“ que ensaiava um regresso em moldes distintos: Retalhos da Vida de um Médico (1963) e Fado Corrido (1964). Adaptado da obra homónima do escritor neo-realista Fenando Namora, o primeiro filme depois de um longo interregno pós-Chaimite de quase uma década, Retalhos da Vida de um Médico foi um filme que não correspondeu às expectativas, sendo considerado por Leonor Areal (2008: 387) como um “caso exemplar de como a adaptação pode transformar o conteúdo da obra literária, afastando-se do neo-realismo original para se tornar convencional e conservadora“, quer do ponto de vista estético como ideológico. O segundo filme, também produzido por Solms, era uma adaptação de um conto de David Mourão-Ferreira (“Agora: Fado Corrido“, publicado na obra Gaivotas em Terra) e tinha como protagonista Amália Rodrigues. Apesar de dar uma visão mais ambígua da profissão de fadista, em comparação com os filmes da época, o filme defrauda as expectativas de quem esperava que pudesse pôr “em causa a ordem do real ou a ordem social estabelecida“ (Ibidem: 223). Ou seja, em suma, apesar de pequenas variações formais ou narrativas, como a presença de música jazz na banda sonora ou de uma perseguição de carro filmada, estes dois filmes de Brum do Canto produzidos por Felipe de Solms procuram uma aproximação aos sectores mais renovadores do cinema português mas nunca concretizam essa renovação ou a construção de uma alternativa significativa. O Leite (1972), Marconi - Via Satélite (1973), A criança e a justiça (1973), Cenas de caça no Baixo Alentejo (1973). 396 A comédia, no seu registo “de trocadilhos e peripécias caricatas, perseguições, quedas e sustos, destinadas a provocar a risada infantil“ (Ibidem: 174), também seria uma das apostas de Solms. Entregue ao realizador Pedro Martins, Aqui há Fantasmas (1963) adaptava uma peça homónima de Henrique Santana que obtivera bastante sucesso no Parque Mayer, onde de resto foi recrutar o próprio Henrique Santana e a popular Irene Cruz, para além de António Silva e Ribeirinho, dois veteranos da comédia à portuguesa. Apesar de procurar um tom de comédia mais moderno, a montagem de Constantino Esteves, a fotografia de Abel Escoto e a produção executiva de Manuel Queiroz comprometeram qualquer hipótese de renovação. Com o mesmo realizador, Solms produziria Bonança e Companhia (1969), uma comédia que incorporava alguns aspecto do western e procurava tirar proveito da popularidade que a série norteamericana Bonanza (1959-73) conquistava desde 1961 na televisão portuguesa. Para o elenco, Martins e Solms voltavam a recrutar actores muito populares no Parque Mayer, como Eugénio Salvador, Nicolau Breyner, Francisco Nicholson (que também era responsável pelos diálogos), Mariema e Manuela Maria. O filme de acção, pouco comum no cinema potuguês, foi outro dos géneros tentados pelo produtor Felipe de Solms. Entregando novamente a realização a Pedro Martins, com um elenco novamente recheado de nomes sonantes da revista do Parque Mayer (Nicholson, Breyner, Glória de Matos, Armando Cortez) e uma banda sonora com canções de Simone de Oliveira e Duo Ouro Negro, Operação Dinamite (1967) foi filmado em Lisboa e seus arredores e em Luanda. A história do filme rodava em torno das peripécias de um espião norte-americano de passagem por Lisboa e Luanda, para tentar recuperar um importante dossier roubado no Pentágono. O outro filmes rodado neste género chama-se Via Macau (1966), realizado pelo francês Jean Leduc, foi rodado em regime de co-produção (com a francesa Les Films de l'Olivier) nesse território asiático então sob administração portuguesa, em Hong-Kong, Lisboa e arredores. A acção do filme envolvia espiões e contrabandistas de armas em trânsito por Lisboa e Macau e a banda sonora do filme incluía três fados interpretados por Amália Rodrigues. Em comum, estes dois filmes tentavam aproveitar a enorme popularidade dos filmes de espionagem, nomeadamente o sucesso da série de filmes protagonizados pela personagem James Bond. Tal como aconteceu com Queiroz e Castro, apesar das boas intenções, a inclusão de vedetas da televisão, rádio, teatro de revista e de história de acção muito em voga na época não eram suficientes para renovar o cinema português, mas apenas para lhe dar 397 uma certa aparência internacional. Usando a terminologia de Luís de Pina usada nas páginas anteriores, aquilo que era anunciado ao público como elementos “de modernidade, como progresso“, não passava de mais uma “moda“. 3.5.2. Artur Semedo Nos antípodas do discurso conformista e normalizador da “comédia à portuguesa“ politicamente correcta e corrigida pelos mecanismos de censura, estava um caso muito particular do cinema português, Artur Semedo. Com uma formação de base de actor teatral no Conservatório Nacional, Artur Semedo inicia a sua carreira cinematográfica em dobragens e figurações. As primeiras interpretações enquanto protagonista – em Saltimbancos (1951) e Nazaré (1952) – valem-lhe o título de “actor neo-realista do cinema português“ (Visor, 1, IV-1953: 14), mas participa em vários filmes de géneros variados, incluindo o épico Chaimite (1953, Brum do Canto), o vetusto O Cerro dos Enforcados (1954, Fernando Garcia) ou o cómico Perdeu-se um Marido (1957, Henrique Campos). Em 1956, a par de uma fulgurante carreira de actor teatral, estreou-se na realização com o drama O dinheiro dos pobres. Após sofrer um desgosto amoroso, Manuel das Dores é ordenado padre e cria um orfanato, que é desvastado por um incêndio. Com a ajuda de um professor, o padre Manuel consegue o dinheiro necessário para a reconstrução, mas é roubado pelo próprio irmão. Sem o querer denunciar, o padre acaba preso e julgado, sendo salvo na última hora pelo irmão criminoso que confessa o crime e o iliba (Matos-Cruz, 1999: 104). Leonor Areal (2008: 234-235) aponta algumas particularidades neste filme: “Não era, apesar de tudo, vulgar num filme da época falar-se por junto de tantos tabus: a vida amorosa de um padre, a prostituição ou a violação a que quase assistimos, vendo a violência do homem e a sugestão dada no plano do violador aproximando-se, num plano subjectivo, assustadoramente sobre a câmara, sequência elipticamente cortada por um plano negro. E se essa ousadia é possível, será porque este padre representa, impolutamente, a garantia de um comportamento moral, que se opõe e distingue das imoralidades do mundo representadas pelo tratante seu irmão, personagem completamente negativo, mas considerado como 'doente'. O padre é a antítese desse mundo corrupto de gente perdida. Porém, enquanto modelo de conduta, não é ele quem repreende os comportamentos dos outros, esses outros que aparecem mais como 398 vítimas das circunstâncias do que maldosos em si: a mulher vítima da violação; o violador vítima de uma abstracta 'doença' que o torna despeitado e violento, algum trauma radicado numa infância aludida. Há uma benevolência cristã que perdoa os comportamentos reprováveis, mostrando-os no horror da sua maldade, como forma de moralização preventiva.“ Vitima da acção da censura, o filme veria cortada uma cena final que o tornava normalizador, glorificando a religião como elemento fundamental na regulação da sociedade. Um pouco à semelhança do que acontecer com Vidas sem Rumo de Manuel Guimarães sensivelmente na mesma altura, a censura transformara um filme com um final ambíguo, complexo e problematizante numa história moralizante com final feliz, normalizando um discurso tido como desviante e pouco digno. “(...) Um final de tal forma angustioso, representado pelo afastamento dramático entre a mãe e o filho, só pode ter por motivo a condenação social do seu comportamento moralmente inaceitável. A ostracização da mãe, que ninguém acusa, mas que se assume como auto-punição, não podia senão ser demasiado incómoda“ (Ibidem). Depois de uma passagem pela televisão portuguesa (1960-61), onde protagoniza o galã da série cómica A Lena e o Carlos (1960) e participa noutras produções, e pelo Brasil (1962-65), onde trabalha com o veterano português Armando de Miranda (A Montanha dos Sete Ecos, 1963), com um dos pais do cinema baiano Roberto Pires (Tocaia no Asfalto, 1962) e com o argentino Carlos Hugo Christensen (Viagem aos seios de Duília, 1964; Crónica da Cidade Amada, 1964). Regressa a Portugal e aposta no teatro cómico e na revista à portuguesa, mantendo a presença na televisão e a colaboração pontual como actor de cinema, no filme missionário Uma Vontade Maior (1967, Carlos Tudela), na comédia A Maluquinha de Arroios (1970, Henrique Campos) e, pela quarta vez, num filme de Manuel Guimarães (Lotação Esgotada). Neste filme de Guimarães, Semedo seria também o responsável pelo argumento original, pouco depois adaptado à televisão brasileira por Dias Gomes (O Bem Amado, 1973). Em 1973, volta à realização e produção, realizando Malteses, burgueses e às vezes, um ensaio de um tipo de humor que pretendia recuperar um estilo revisteiro de denúncia dissimulada que não conseguira, ainda, romper as amarras da censura marcelista. Rodado em Angola, o filme aborda as peripécias de um empresário que se vê obrigado a fugir de Portugal e decide radicar-se em Angola para aí prosseguir com os seus esquemas fraudulentos. Mais uma vez, ainda que agora de forma mais sublime, 399 Semedo realiza um filme “que oferece inúmeros trocadilhos verbais de sentido político“, que passaria pela censura “talvez pelo tom jocoso que lhe retira o conteúdo mais evidentemente crítico, ou possivelmente por o filme ter estreado em Angola, onde a censura era mais tolerante“ (Areal, 2008: 407). Leonor Areal (Ibidem: 447) alude precisamente à dificuldade de arrumação deste filme no contexto do cinema português da época: “Pode surpreender que este filme seja colocado na secção do novo cinema, mas dificilmente poderei encaixá-lo no capítulo referente ao cinema convencional, porque este não é de facto um filme conformista. A forma de sátira que assume dá-lhe um carácter de resistência, e cabe neste conjunto porque traz efectivamente algo de novo ao cinema português, anunciando um filão de novas sátiras que virão a surgir ao longo dos anos seguintes, já em liberdade total. Nada há neste filme que o aproxime esteticamente do novo cinema; mas há uma irreverência afirmada e patente, que encontra o caminho possível para se afirmar através da sátira, modo expressivo que sempre se deixa ler a diferentes níveis e que muito claramente, aqui, tanto atinge pelo retrato caricato os personagens poderosos do Portugal de então (os caciques, os industriais, os oportunistas) como consegue introduzir uma série de piadas verbais que fazem trocadilho com questões políticas sem chegar a pôr em causa a instância política propriamente.“ No mesmo ano, Semedo protagonizaria Sofia e a Educação Sexual, a estreia do crítico de cinema Eduardo Geada nas longas-metragens e outro filme que não escaparia às malhas da censura: o filme seria proibido integralmente e só estrearia após o 25 de Abril de 1974. Para além da sua participação como actor, Semedo seria também coprodutor deste filme que, segundo Leonor Areal (Ibidem: 457), “confronta a ideologia oficial no campo, por definição, do interdito: a sexualidade feminina e o papel das mulheres numa sociedade patriarcal, onde a noção de 'liberdade' tem um sentido sexualmente restrito“, atrevendo-se “a falar de sexualidade de um ponto de vista político“. Durante o PREC, Semedo faria a produção executiva de Os Demónios de Alcácer Kibir (1977, Fonseca e Costa) e protagonizaria O Funeral do Patrão (1978, Eduardo Geada). Seria também logo em 1975 que começaria a trabalhar no que seria O Rei das Berlengas ou a independência das ditas, a primeira comédia portuguesa feita sem restrições da censura política. Definindo este filme como “político, apolítico e apocalíptico“, Semedo “ataca“ violenta e impiedosamente as principais instituições do regime salazarista: desmitifica o clero e os dogmas religiosos (como a castidade e o “curso de santidade“ de Teresinha), caricaturiza as principais referências históricas nacionais (desde D. Afonso Henriques ao Marquês de Pombal), ridiculariza a autoridade 400 civil e política, menoriza a importância da linhagem familiar e da subalternização laboral na hierarquização das relações sociais. A constante requisição dos seus serviços de actor (entre 1976 e 1985 integrou o elenco de dez longas-metragens, um telefilme e três séries para televisão) só lhe permitiu regressar à realização em 1985, com O Barão de Altamira. O princípio orientador deste filme era semelhante ao anterior: usar a comédia para parodiar as instituições mais conservadoras da sociedade portuguesa. No entanto, o momento cronológico (mais de uma década após a queda da ditadura) e a ausência de Mário Viegas não permitiram que se repetisse o êxito de O Rei das Berlengas. A estratégia era a mesma, mas o país mudara, assim como a relação dos portugueses com o humor, explorando temas mais relacionados com os costumes do que com uma crítica política. O Rei das Berlengas ficaria como o exemplo máximo da comédia satírica de Artur Semedo: humor do absurdo, da ironia, do sarcasmo, do non-sense, do burlesco, da provocação e dos excessos como meios para conduzir uma atenta e corrosiva crítica social, política, histórica e humana. Sobretudo nesta obra, Artur Semedo usou o humor como um exercício de exorcismo sarcástico dos fantasmas do passado, denúncia dos problemas do presente e antevisão das ameaças do futuro, com o perigo de uma guerra civil ou da intervenção militar estrangeira. Com características muito marcadas – alguns autores falam mesmo de um “cinema de autor“ – Artur Semedo rompeu com o discurso conformista e normalizador da “comédia à portuguesa“ e criou um discurso cómico com pretensões radicalmente opostas, onde usava o humor como mecanismo de ridicularização e subversão da ordem instituída. Assumindo uma militância ideológica – “sou definitivamente contra a arte pela arte“, afirmaria o realizador em 1979 –, Semedo pretendia que as suas obras fossem agressivamente catárticas e combatessem a pesada herança de décadas de ditadura. Recuperando a tradição sarcástica do teatro vicentino – “riendo castigat mores“ –, Semedo pretendia que os seus filmes fossem cívica e humanamente interventivos e que contribuíssem para uma “desmistificação dos mitos“, necessária e urgente na sociedade portuguesa recém-democratizada. 3.6. Cooperativas 401 Na história do cinema português, a formação de cooperativas de produção já havia conhecido alguns episódios. O caso mais célebre era a Cooperativa do Espectador (1960), sociedade constituída para rodar o filme Dom Roberto, mas a sociedade Artistas Unidos, constituída para o filme Cais do Sodré (1946), de Alejandro Perla, é o primeiro filme no cinema português produzido em regime de cooperativa. Estes dois exemplos de produção em cooperativa, pelo seu carácter restrito e esporádico, não tiveram continuidade nem grande influência no sector da produção. Há ainda a acrescentar a estar os modelos proto-cooperantes de algumas das produções de Manuel Guimarães, nomeadamente Nazaré (1952) e Vidas Sem Rumo (1956). Em entrevista à publicação Boletim Cooperativista, em Agosto de 1962, Ernesto de Sousa revelava que a sua Cooperativa do Espectador se inspirara em organizações semelhantes existentes em França e no Japão “conseguidas e organizadas em moldes diversos, mas todas com bons resultados no sentido de uma independência da produção em face aos grandes interesses industriais e comerciais do cinema.“ Ainda assim, apesar da subscrição pública, a produção do filme só seria possível com a participação, através da cedência de serviços ou adiantamento de receitas, dos laboratórios Ulisseia Filmes e do distribuidor Imperial Filmes e, sobretudo, “a cooperação dos diferentes trabalhadores de filme, actores e técnicos“151. Em suma, subtraindo estas fontes de financiamento, a comparticipação dos espectadores propriamente ditos, e que emprestavam o nome à própria designação da cooperativa, pode ser calculado em cerca de 20-25% do valor total necessário à produção do filme, o que o torna bem mais residual e simbólico do que alguns investigadores o consideram. Por outro lado, o projecto inicial de Ernesto de Sousa para a sua Cooperativa do Espectador não seria financiar apenas o seu filme, mas criar uma estrutura de produção mais duradoura que pudesse produzir filmes de forma contínua — preferencialmente “aos filmes de curta metragem, favorecendo assim um meio onde os jovens possam mais facilmente revelar-se“ — que dependeria das receitas de exploração da bilheteira. Como o desempenho comercial do filme foi manifestamente inferior às expectativas, a Cooperativa do Espectador ficou por essa produção. No entanto, apesar do relativo insucesso desta iniciativa, se for entendido como um projecto duradouro e não para apenas o filme Dom Roberto, o fenómeno cooperativista continuava na ordem do dia no debate cinematográfico. De tal forma que, 151 “Todos aceitámos inverter a totalidade ou quase totalidade dos nossos honorários na comparticipação do capital necessário para a produção. Mais de 60 por cento do custo de produção é a soma da nossa comparticipação.“(Ernesto de Sousa apud Boletim Cooperativista, 106, VIII-1962: 8) 402 em Fevereiro de 1963, o Cineclube do Porto, através da sua Secção de Cinema Pedagógico, decidiu organizar um ciclo de cinema e palestras sobre cooperativismo, procurando demonstrar que “pedagogicamente o Cooperativismo é uma escola para a concretização dos anseios do indivíduo como ser social“ e contribuir “para a valorização e educação do espírito cooperativista“ (Boletim Cooperativista, 112, II-1963: 11). O modelo não teria continuidade, mas anos mais tarde, perto do fim das Produções Cunha Telles, a criação da empresa Media Filmes (Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, Alfredo Tropa, Alberto Seixas Santos e Manuel Costa e Silva) e da Unifilme (produtora d'O Recado, de José Fonseca e Costa, 1972) ou a Cinenovo do próprio Cunha Telles (para produzir O Cerco, 1969), com uma filosofia de produção contínua de produção de filmes publicitários e turísticos, enquadra-se já num princípio de produção pró-cooperativa (Cunha, 2005: 70), possibilitando um novo modelo de financiamento que anunciava já um ímpeto cooperativo entre alguns realizadores, propondo uma produção independente que assentava a sua sobrevivência financeira na realização de encomendas ou filmes publicitários mas que tinham como objectivo produzir cinema de longa-metragem para o circuito comercial. Estas foram, seguramente, experiências de sucesso para muitos dos cooperantes que estariam, poucos meses depois, na génese da mais bem sucedida cooperativa de cinema da história do cinema português, o Centro Português de Cinema. 3.6.1. Centro Português de Cinema Em vésperas da realização da Semana do Porto, a relação da Gulbenkian com o novo cinema português conhecera já alguns episódios anteriores. A política de atribuição de bolsas de estudo seguida pela Fundação para outras áreas artísticas começou, desde 1961, a beneficiar vários aspirantes a realizador ou técnico cinematográficos, que rumavam ao estrangeiro em busca de formação, como registei no capítulo anterior. Significativos são também o apoio financeiro ao Festival Internacional de Arte Cinematográfica de Lisboa (1964-65), ao Cineclube Universitário de Lisboa (1961) e a certames de cinema amador, a atribuição de uma bolsa de estudo a Fernando Duarte para estudar os cinemas de arte e ensaio no país vizinho (Plateia, 10-IX-1968: 16), e a encomenda do primeiro filme exclusivamente financiado pela Fundação (Idem, 18-VI-1968: 15). Nas palavras do próprio presidente Azeredo Perdigão, os primeiros 403 passos da Fundação neste sentido “foram naturalmente incertos e espaçados“, reconhecendo que “pouco se fez no sector do teatro e menos ainda do cinema“ (Idem, 14-III-1972: 20). Instituída em 1956, com finalidades caritativas, científicas e culturais, a Fundação Gulbenkian começou por intervir no desenvolvimento de expressões artísticas como a dança (Grupo Gulbenkian de Bailado) e, sobretudo, a música (Orquestra e Coro Gulbenkian). Segundo o III relatório do Presidente, respeitante aos anos 1963-65, a Gulbenkian gastou uma média anual de 5.900 contos com o Teatro, 14.230 contos com a Música e apenas 200 contos com o Cinema (Ofício do Cinema em Portugal, 1968: 39). Atentos a estas intervenções, alguns cinéfilos começaram, desde muito cedo, a reclamar idêntica atenção para o cinema português.152 Roberto Nobre levou o apelo para a imprensa generalista, aproveitando as páginas do Diário Popular onde colaborava regularmente. Numa extensa carta aberta dirigida ao presidente da Gulbenkian, o reputado crítico apela à intervenção da instituição sobretudo na formação cinematográfica de novos valores e do próprio público, sugerindo a criação de uma escola de cinema, uma cinemateca e uma espécie de “supercineclube“ (Diário Popular, 27-VII-1961: 1-5). No mesmo jornal, o histórico dirigente cineclubista Henrique Alves Costa apela ao apoio da Gulbenkian ao movimento cineclubista que então se encontrava particularmente fragilizado. Neste mesmo artigo, torna pública uma diligência anterior promovida por esta instituição à Fundação Gulbenkian: em 1959, o Cineclube do Porto havia dirigido à Gulbenkian uma “documentada exposição“ que alertava para a necessidade de uma intervenção directa da Fundação no cinema português (Diário Popular, 10-VIII-1961: 1-5). No final de Outubro do mesmo ano, foi a vez de Manuel de Azevedo aproveitar a sua coluna no Diário de Lisboa para apelar à intervenção da Fundação Gulbenkian. Curiosamente, no mesmo artigo, Azevedo recorda que este apelo tinha já sido lançado por outras figuras do contexto cinematográfico, nomeadamente José-Augusto França e Henrique Alves Costa (Diário de Lisboa, 31-X-1961: 11). 152 O primeiro, ao que apurei, terá sido o dirigente cineclubista Fernando Duarte que, num editorial de Fevereiro de 1961 da revista Celulóide, questionava Azeredo Perdigão sobre a possibilidade de criação na instituição de “uma secção onde se encare o Cinema, em todas as suas facetas, tirando dele todos os ensinamentos essenciais, dando-lhe o lugar que lhe pertence afinal no âmbito das actividades culturais da Fundação Gulbenkian“ (Celulóide, II-1961: 1). 404 Segundo Bénard da Costa, “a partir de 65, quando as coisas se puseram mais feias“, várias figuras do novo cinema (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo e Cunha Telles) “começam abertamente a criticar a Fundação Gulbenkian por nada ter feito pelo cinema em quase dez anos de existência.“ A estratégia de responsabilização da Gulbenkian alastrava-se também a vários críticos e jornalistas com “recados mais os menos explícitos à Fundação“ (Costa, 1985: 33). De um modo geral, a nova geração considerava a intervenção da Gulbenkian, através da concessão de bolsas e subsídios, insuficiente e parcelar para a resolução da crise: “O caso resolve-se não com subsídios, que não passam de balões de oxigénio, mas com uma política realista em relação a todos os problemas do cinema“ (Plateia, 30-VI-1970: 46). Para António de Macedo, a Gulbenkian sempre rejeitou ajudar financeiramente a nova geração com o pretexto que os estatutos da instituição só permitirem a intervenção com fins caritativos e artísticos, e o cinema então não era visto como objecto de expressão cultural ou artística, mas exclusivamente como indústria. Com o tempo, vários factores permitiram alterar esta conjectura: o arrojo estético das propostas das Produções Cunha Telles; a evolução da obra de Manuel de Oliveira, sobretudo Acto da Primavera e A Caça, e a sua “colagem“ à nova geração; e a formação cultural de jovens realizadores no estrangeiro. (Cunha, 2005: 64-65) Respondendo aos diversos e insistentes apelos, em Outubro de 1966, o Conselho de Administração da Fundação Gulbenkian assume a primeira posição pública em relação a uma hipotética intervenção no cinema português. Clarificando pouco as suas intenções, remetendo medidas mais objectivas para um estudo então ainda em curso, a instituição apenas reforça a intenção de intervir exclusivamente “por um cinema de índole estritamente cultural“ (Celulóide, X-1966: 1). Por outro lado, como revelou Fernando Lopes, a Gulbenkian já tinha “sondado“ informalmente as intenções do grupo, sobretudo através de Victor Sá Machado, “grande amigo de José Fonseca e Costa – são os dois de Angola“. Supostamente, nesta fase, a Gulbenkian pretendia apoiar apenas financeiramente alguns projectos individuais específicos de reconhecido valor artístico e cultural (Lopes, 1985: 63). O ano de 1967 haveria de proporcionar novos encontros da Gulbenkian com a trupe do novo cinema. Ao longo do ano, a alguns realizadores que promoveram “diligências junto da Fundação Calouste Gulbenkian para considerar formas de apoio ao cinema“, os responsáveis por aquela instituição refugiam-se em argumentos estatutários para justificar a recusa de apoio a actividades industriais (Matos-Cruz, 405 2000: 67). Contudo, em Dezembro desse ano, a Gulbenkian parece querer assumir um interesse oficial na área cinematográfica e faz-se representar – apenas como observador – na sede do Cineclube do Porto pelo actor Carlos Wallenstein, responsável pelo sector de Teatro. Tal como a própria Gulbenkian havia sugerido meses antes, os cinéfilos presentes também debateram sobre a melhor forma de intervenção da instituição no novo cinema. Atento, Carlos Wallenstein estaria no Porto para se certificar da credibilidade e da possibilidade em apoiar colectivamente os elementos do novo cinema. E, se o representante da instituição tinha ido ao Porto para assistir a uma reunião com “vinte representantes duma classe“, quando chegou encontrou “um grupo que, embora estética e ideologicamente não homogéneo, representava com propriedade o que já se chamava de ‘novo cinema’ português, representando igualmente uma geração – a primeira do cinema nacional – culturalmente preparada e desejosa de cortar com o recente passado, rotineiro e medíocre, da nossa cinematografia“ (Celulóide, VIII-1971: 13). A 30 de Abril de 1968, o esperado Ofício do Cinema em Portugal era entregue à Fundação. O documento agora apresentado, para além de respeitar o manifesto na primeira versão saída da Semana organizada pelo Cineclube do Porto, formalizava o início das negociações para a constituição do futuro CPC.153 Entre Dezembro de 1967 e Março de 1968, os responsáveis pelo relatório reuniram-se por várias vezes para prepararem um relatório credível ao ponto de convencer o presidente da Gulbenkian a investir financeiramente no novo cinema. O documento apresentava uma estrutura simples e objectiva. Iniciava com uma exposição abrangente sobre o estado da cinematografia portuguesa, analisando o cinema enquanto veículo cultural subvalorizado, mas também como potencial actividade industrial.154 De um modo sintético, era também abordada a actuação dos diversos organismos público com responsabilidades no sector (Fundo e Cinemateca) e as 153 O relatório foi entregue por uma delegação composta por Manuel de Oliveira, António de Macedo, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos, Alfredo Tropa, Artur Ramos e Ernesto de Oliveira (Jornal de Letras e Artes, 262: 20). Para conhecer as principais passagens do Ofício do Cinema em Portugal, ver Cunha, 2005. 154 As primeiras conclusões sobre a crise apontam para condições sócio-económicas (“fraco poder de compra do consumidor, baixo nível cultural e despovoamento rural“), condições financeiras (“falta de força financeira da produção, viciação da estrutura do binómio distribuição-exibição“), condições culturais (“inexistência duma estratégia coerente e global na formação de espectadores“) e “afastamento do público“. Mais uma vez, os signatários realçam a ineficácia das iniciativas públicas ou particulares praticadas até então (Oficio do Cinema em Portugal, 1968: 33-34). 406 iniciativas particulares (Cineclubismo, Casa da Imprensa, CEC/AAC e Fundação Gulbenkian) (Cunha, 2005: 67). A atenção da segunda parte do documento recaia exclusivamente sobre a Gulbenkian e as suas potencialidades em promover uma solução global para a crise. Crentes de que a solução para a crise passava pela criação de condições necessárias à produção contínua de conteúdos cinematográficos, os signatários defendiam que a “consequência lógica“ de uma intervenção da Gulbenkian só se poderia traduzir na “criação de um Serviço de Cinema dentro da própria Fundação, o qual poderia tomar a designação de Centro Gulbenkian de Cinema.“ Lembrando a atenção já dispendida para outras artes pela Gulbenkian, os cinéfilos reforçam o carácter específico e complexo da produção fílmica, “desde os recursos financeiros que exige, aos colaboradores humanos, forçosamente numerosos“ (Ibidem: 36-38). Entregue ao próprio Azeredo Perdigão, a principal solicitação do programa proposto pelos cinéfilos foi “liminarmente recusada“ pelo presidente da Fundação. Em contrapartida ao proposto Centro Gulbenkian de Cinema pretendido, a Gulbenkian sugeria a criação de um organismo autónomo, dotado de estatutos e personalidade jurídica própria, uma espécie de sociedade cooperativa que pudesse manter uma relação formal com a Gulbenkian.155 Nessas condições, a instituição asseguraria as despesas de funcionamento da cooperativa e atribuía anualmente um orçamento destinado à produção (Cunha, 2005: 69-70). A solução da cooperativa parecia, então, a mais indicada para ambas as partes. Uma cooperativa asseguraria simultaneamente o compromisso e a autonomia essenciais aos interesses de ambos os parceiros. O surto das cooperativas culturais foi um fenómeno que marcou a última década do Estado Novo, constituindo “um recurso hábil por parte de algumas correntes políticas oposicionistas para contornarem as dificuldades jurídicas que o regime levantava ao livre exercício do direito de associação“ (Reis, 1996: 211). Como ironiza Bénard da Costa, “as posições das duas partes parecem estar trocadas: quem podia querer dependências e colonizados (a potência) batia-se pela autodeterminação; quem devia querer esta, oferecia-se como vassalo.“ Mas, no fundo, 155 Segundo Fonseca e Costa, a proposta de criação da cooperativa fora já avançada na reunião do Porto por Gérard Castello Lopes, António-Pedro Vasconcelos e por si próprio, assim como a ideia de dividir a cooperativa por unidades de produção (Cunha, 2005: 71). Henrique Alves Costa confirma esta paternidade, ao afirmar que foi Fonseca e Costa quem “lançou a ideia da criação do Centro Português de Cinema, de que viria a ser fundador“ (Cinema Novo, IX-X-1978). 407 este paradoxo explica-se facilmente: a nova geração queria aproveitar-se da protecção e do prestígio da instituição para forçar o regime a aceitar os filmes produzidos sobre a alçada da Gulbenkian; por outro lado, para salvaguardar o prestígio e a integridade da instituição, Azeredo Perdigão não queria assumir a responsabilidade de ter “aquela gente toda lá a trabalhar“ como “empregados por conta doutrem“ (Costa, 1985: 34-35). O segundo ponto delicado nas negociações foi a questão financeira. Assegurada a verba necessária para manter a cooperativa em funcionamento, a nova geração batia-se agora pela conquista de uma fatia de cerca de 10 mil contos anuais para a produção.156 Findas as negociações, em Novembro de 1968, o Conselho de Administração da Gulbenkian, por proposta do próprio presidente, deliberou finalmente auxiliar financeiramente a cooperativa dos novos cineastas por um período experimental de três anos e criar um serviço de Cinema no seio da Gulbenkian. Esse serviço iniciaria actividade alguns meses depois, representando um sério passo da instituição na consolidação de uma estrutura sólida e permanente que, conforme se esperava, proporcionasse uma importante base de apoio ao novo cinema (Cunha, 2005: 72). Para dirigir este novo serviço foi chamado João Bénard da Costa, figura que mantinha uma relação estável e duradoura com a instituição. Bolseiro (1960-63) e Membro do Centro de Investigação Pedagógica da Gulbenkian (1964-66), este jovem cinéfilo contava no currículo com as experiências de dirigente associativo (Cineclube Católico e Juventude Universitária Católica) e de redactor da revista de pensamento e acção O Tempo e o Modo, dispondo portanto de considerável influência nos territórios do catolicismo progressista. A escolha deste cinéfilo para dirigir a intervenção da Gulbenkian no cinema português devia-se sobretudo ao prestígio que Bénard da Costa conquistara no seio da nova geração de cinéfilos e no círculo cultural lisboeta. Figura tutelar do novo serviço, Bénard da Costa haveria de conduzir a intervenção da instituição durante duas décadas, só se afastando, em 1991, para conduzir os destinos da Cinemateca Portuguesa, a principal instituição ligada ao cinema em Portugal. (Ibidem: 72-73). Em carta dirigida ao “Centro Português de Cinema SCARL (em formação)“, datada de 5 de Dezembro de 1968, Azeredo Perdigão informava que o Conselho de 156 Segundo as contas apresentadas no Ofício, esses 10 mil contos seriam suficientes para produzir dois filmes a cores (cerca de 2.500 contos cada) e dois filmes a preto-e-branco (cerca de 750 contos cada) e ainda uma verba considerável para promoção de filmes em Portugal e no estrangeiro, criação de uma cinemateca, investimento em equipamento, entre outros. A esta proposta Gulbenkian contrapunha um orçamento anual de 3.200 contos, que serviam “apertadinhos“ para quatro filmes a preto-e-branco (Costa, 1985: 35). 408 Administração da Gulbenkian rejeita a criação de um Centro Gulbenkian de Cinema mas “aceita a hipótese de auxiliar financeiramente a criação e a manutenção“ de uma sociedade cooperativa “exterior à Fundação, que, desde já declina toda e qualquer responsabilidade pela sua vida e actividades.“ (Boletim Interno Circular do Cineclube do Porto, XII-1968: 5). Assim, da recusa de um Centro Gulbenkian de Cinema haveria de nascer o Centro Português de Cinema (CPC), designação considerada apropriada para a desejada cooperativa. A exclusão da referência à Gulbenkian agradava sobretudo à instituição, afastando-a legalmente de qualquer responsabilidade criativa e política sobre o grupo de rebeldes do CPC. Por outro lado, a escolha da palavra Centro parece representar um desejo de centralização ou concentração de esforços em prol de uma batalha que se queria comum. Curiosamente, António de Macedo recorda que a escolha da designação resultou de mais uma noite de discussão entre os realizadores (Cunha, 2005: 73-74). Inevitavelmente, o processo de formalização da cooperativa transformar-se-ia numa longa novela da qual convém aqui recuperar o enredo. De uma forma muito oportuna, em Junho de 1968, o governo fazia aprovar uma lei que obrigava todas as cooperativas sem fins lucrativos a terem, antes da escritura notarial de constituição, os seus estatutos homologados pelo respectivo Ministério. Este dispositivo legal permitiria então ao regime arrastar burocraticamente a formalização da cooperativa por mais de um ano (Ibidem: 74). Em Abril de 1969, os fundadores do CPC entregavam na SEIT os respectivos estatutos157 para a homologação, sendo então recebidos com pompa e circunstância pelo próprio Moreira Baptista e por Caetano Carvalho, responsável directo pelo gabinete da Cultura Popular e Espectáculos. Contudo, o regime “tinha as maiores reservas, para o que muito deveria contar a opinião da PIDE. Tudo aquilo lhes cheirava a esturro“ (Lopes, 1985: 64). A primeira versão dos estatutos da cooperativa foi rejeitada pelo Ministério do Interior. “Corrigida“ pela Gulbenkian e adaptada aos pressupostos legais exigidos para 157 António de Macedo e Fonseca e Costa atribuem a redacção dos estatutos da cooperativa a Ernesto de Oliveira, figura fundamental nos primeiros passos da cooperativa, de que aliás foi o primeiro presidente (presidente da comissão organizadora), e que tem sido esquecida ou desvalorizada no estudo deste período. Apesar de ter realizado apenas uma curta-metragem, este advogado de formação participou na semana organizada pelo Cineclube do Porto e foi um dos signatários e principais responsáveis pela elaboração d'O Ofício. Durante as negociações entre a cooperativa e a Gulbenkian, a sua influência revelou-se sobretudo nas reuniões entre os futuros parceiros. Por outro lado, Fernando Lopes reclama que os estatutos da cooperativa eram, “na sua forma prática e jurídica“, uma “invenção do Dr. Azeredo Perdigão“. (Cunha, 2005: 75) 409 associações culturais, os novos estatutos do CPC resultaram de uma espécie de compromisso entre as duas partes em estabelecer regras que não prejudicassem os objectivos da cooperativa e o apoio da instituição (Cunha, 2005: 75-76). A formação do CPC coincidiu com um período de assumida “crispação anticooperativa“ por parte do regime. As relações entre o regime vigente e as cooperativas culturais decorreriam então “numa atmosfera de suspeição“, culminando dois anos depois na publicação do decreto-lei 520/71, a materialização de um processo de contenção do movimento cooperativo (Namorado, 1996: 212-215). Curiosamente, a desconfiança acerca da credibilidade da cooperativa também reunia adeptos junto de figuras distintas no contexto do cinema português. Se era conhecida a desconfiança por parte de elementos do velho cinema, foi com alguma surpresa que deparei com um depoimento de Edgar Gonsalves Preto onde, em Dezembro de 1969, este ironizava a propósito dos objectivos da cooperativa: “Receio que uma cooperativa de cineastas acabe por ter como sede a ‘Grantina’, o ‘Vává’ ou o ‘Gambrinus’“ (Plateia, 4-I-1974: 23). Por outro lado, uma notícia divulgada pela revista Celulóide afirmava que Jorge Brum do Canto, Manuel Guimarães, Francisco Saalfeld e Quirino Simões se preparavam para formar uma cooperativa de profissionais de cinema, fazendo crer que também estas figuras não estariam muito seguras das vantagens da cooperativa financiada pelo CPC (Celulóide, III-1969: 11-12). Em Dezembro de 1970, os estatutos do CPC eram finalmente homologados pelo Ministério do Interior. Um ano e oito meses depois, o CPC era reconhecido legalmente através do Diário do Governo (15 de Junho de 1971) e adquiria personalidade jurídica. O CPC, enquanto “verdadeira cooperativa de autores“, nascia, segundo João Mário Grilo (2006: 22) do “divórcio estabelecido e substanciado entre produtores e realizadores“. O “divórcio“ vinha já sendo preparado pelos realizadores desde a elaboração do documento Ofício do Cinema em Portugal (1968): na proposta do Centro Gulbenkian de Cinema, os signatários defendiam que a “ação do Centro no ciclo da produção, a verificar-se, deverá confinar-se a um auxílio material, abstendo-se de tudo o que possa representar limitação ao caminho livremente escolhido pelos autores-realizadores“. Do primeiro regulamento interno do CPC tem bastante importância o capítulo dedicado ao serviço de produção, revelador da orgânica interna da cooperativa. Dentro do “espírito associativo que rege o CPC“, este capítulo prevê “o agrupamento dos sócios efetivos em grupos de produção, que serão constituídos por um mínimo de três elementos“. A estes 410 grupos caberia discutir e votar livremente os projetos apresentados pelos seus membros e submete-los ao Conselho de Produção (Regulamento n.º1 do CPC s.d., 3-6). Conforme determinavam os estatutos publicados em Diário do Governo, o objectivo social da cooperativa consistia em “desenvolver e prestigiar o cinema português, especialmente através da produção de filmes de livre criação artística.“ Para além da produção de conteúdos, os membros da cooperativa comprometiam-se a promover a formação de quadros profissionais, a difusão de filmes artísticos, a divulgação de filmes portugueses no estrangeiro, e a formação cinéfila do público (Estatutos do CPC, 1971: 12). Os corpos sociais da cooperativa eram composto por uma mesa da assembleiageral, a direcção e o conselho fiscal. Ao primeiro órgão competia a aprovação dos relatórios e contas, a expulsão de sócios e alteração dos estatutos e dos regulamentos do CPC. À direcção competia zelar pelos interesses sociais da cooperativa, criar delegações e representantes, deliberação sobre direitos, deveres e penalizações dos sócios, criar regulamentos internos e elaborar os relatórios e contas anuais. O conselho fiscal exercia uma acção fiscalizadora sobre a escrituração do CPC e dar o parecer sobre o relatório e contas (Ibidem: 11-14). Em relação aos sócios da cooperativa, os estatutos estabeleciam quatro categorias hierarquizadas: os sócios fundadores seriam os que outorgassem a escritura e os primeiros a subscrever o capital social; os sócios efectivos seriam os realizadores admitidos como usufrutuários dos benefícios sociais; os sócios colaboradores seriam parceiros singulares ou colectivos que, sem direito de voto, colaboravam com a cooperativa; finalmente, os sócios honorários seriam aqueles que, “em virtude de excepcionais serviços ou quaisquer outros benefícios prestados ao Centro, se tornem credores de tal distinção“ (Ibidem: 4-5). Tal como ficou estabelecido nos estatutos, os signatários da escritura da constituição da cooperativa ficariam com o estatuto de sócios fundadores e a admissão de novos sócios ficaria dependente de uma proposta assinada por dois sócios fundadores e pela ratificação da direcção da cooperativa. Procurando assegurar a integridade da cooperativa como “órgão do cinema novo“, através deles se procuravam condicionar ou “evitar ter sócios como o António Lopes Ribeiro ou o Perdigão Queiroga“, inimigos da primeira hora desta nova geração (Costa, 1985: 34; Lopes, 1985: 63). Assim, faziam parte dos sócios fundadores todos os membros do novo cinema, com três excepções muito particulares. A primeira delas era António da Cunha Telles, que se 411 escusara mesmo a participar na reunião do Porto e se manteve sempre à distância durante as negociações em torno da formação do CPC. Sentindo-se traído pelos antigos “cúmplices“, depois do caso Sete Balas para Selma e do sucesso de Cerco, Cunha Telles preferiu manter-se afastado dos antigos aliados. João César Monteiro representava a segunda excepção, pois, como recorda Fernando Lopes, considerava os fundadores do CPC “pouco radicais“ e mantinha uma difícil relação pessoal com António de Macedo, “que sempre detestou“. Por estes tempos, Monteiro alimentava polémicas e inimizades que lhe valeram a justa designação de “enfant terrible da crítica mais provocatória e por isso julgado por muitos demasiado ‘extremista’“. Finalmente, a terceira excepção foi António Campos, um amador autodidacta que passara ao lado de qualquer movimento mas aproximava-se da batalha da nova geração por um cinema de qualidade (Costa, 1991: 132). De uma forma oportuna, os estatutos remetiam diversos aspectos da orgânica interna do CPC para os futuros regulamentos internos. Do primeiro regulamento tem bastante importância o capítulo dedicado ao serviço de produção, revelador da orgânica interna da cooperativa. Dentro do “espírito associativo que rege o CPC“, este capítulo prevê “o agrupamento dos sócios efectivos em grupos de produção, que serão constituídos por uma mínimo de três elementos“. A estes grupos caberia discutir e votar livremente os projectos apresentados pelos seus membros e submete-los ao Conselho de Produção (Regulamento n.º1 do CPC, s.d.: 3-6). Este órgão consultivo representava os grupos de produção perante a Direcção. Ao Conselho de Produção, constituído por um representante de cada grupo de produção, competia: “apreciar e coordenar o plano geral e anual de produção“, “pronunciar-se sobre a viabilidade dos projectos de filmes“, “acompanhar e controlar regularmente a boa execução dos planos e despesas de produção“, “pronunciar-se sobre as vantagens de aquisição de material“ e “pronunciar-se sobre a solução de divergências surgidas entre elementos de cada grupo de produção“ (Ibidem: 3-5). Regressando à aprovação dos estatutos, o realizador de Belarmino não se cansa de insistir que a “batalha“ pelo reconhecimento institucional da cooperativa só foi possível devido ao empenho pessoal do presidente da Gulbenkian. Por mais que uma vez, o cineasta sustenta a tese de que Azeredo Perdigão “deve ter ido às mais altas instâncias“ e deve ter apostado “o seu prestígio de jurista e o peso da Fundação Gulbenkian“ para ver aprovados os estatutos pelo Ministério do Interior. A justificação deste interesse reparte-se, ainda segundo Fernando Lopes, por três argumentos: “o Centro reunia todos 412 os cineastas e técnicos que podiam dar alguma coisa ao cinema português“; “porque no Centro estava Manoel de Oliveira“; “porque o João Bénard da Costa foi junto do Dr. Azeredo Perdigão apóstolo do Centro“ (Lopes, 1985: 63-64). A posição do próprio Bénard da Costa acerca do seu envolvimento é também bastante ambígua. Por um lado, este autor nega qualquer envolvimento nas negociações entre a cooperativa e a instituição, lembrando que “em tudo isto não fui tido nem achado, pela simples razão de que ainda não entrara para a Gulbenkian, o que só aconteceu cerca de um ano depois dessa reunião e quando já estavam aprovadas as linhas mestras do acordo“ (Costa, 1985: 34). Contudo, noutra publicação, o actual director da Cinemateca é peremptório ao afirmar que, enquanto director do novo serviço da Gulbenkian, “fui e sou personagem e actor dele [novo cinema português]“, “determinei a política da Fundação Calouste Gulbenkian para o cinema português durante cerca de vinte e dois anos. (…) Não posso ficar longe donde estive e estou perto, não posso pôr-me de fora donde estive e estou dentro“ (Idem, 1996: 81-82). Percebendo a táctica “reaccionária“ do poder, no início de 1970, a comissão organizadora da cooperativa pedira à Gulbenkian que transfigurasse o subsídio atribuído em princípio ao CPC, ainda oficialmente inexistente, num subsídio atribuído pessoalmente a quatro dos sócios da cooperativa para possibilitar arrancar com a produção. Em Setembro desse ano, depois de algumas negociações e obstáculos burocráticos, a Gulbenkian desbloqueava o dinheiro prometido e permitia o arranque das primeiras produções do CPC, assinando os primeiros quatro contratos com Manuel de Oliveira, Fonseca e Costa, Alfredo Tropa e António-Pedro Vasconcelos (Idem, 1985: 3538). A escolha destes quatro projectos do primeiro plano de produção resultou do seio da própria cooperativa. O problema interno da divisão do dinheiro resolveu-se mais facilmente do que se esperava. Os membros da cooperativa decidiram subdividir-se em pequenos grupos de produção ligados por “tendências naturais“ ou afinidades estéticas. Para além de pretender uma maior rentabilização dos meios humanos disponíveis, a ideia de constituição de grupos pretendia facilitar a decisão da escolha dos filmes a produzir. Democraticamente, cada grupo decidia qual dos seus membros seria contemplado e, assim rotativamente, chegaria a vez a todos (Lopes, 1985: 64). As relações de cumplicidade dos membros resultaram rapidamente na constituição de dois núcleos visivelmente mais fortes. Um primeiro grupo era formado António de Macedo, José Fonseca e Costa, Manuel Ruas e Faria de Almeida. Um segundo grupo 413 incluía Fernando Lopes, Fernando Matos Silva e Alfredo Tropa. Outro núcleo forte, pela forte cumplicidade e uniformidade estética, era constituído pelos “kimonistas“ Alberto Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro, figuras capitais na designada segunda geração do novo cinema e da nova crítica. O sistema de funcionamento democrático e rotativo tinha estabelecido que cada grupo de produção tinha autonomia financeira, “tanto em relação à Gulbenkian, como à direcção do próprio Centro.“ Cada grupo receberia a sua fatia do orçamento da produção para uma longa-metragem, escolhido democraticamente dentro de cada grupo. Por outro lado, para rentabilizar os recursos, o CPC negociou vantajosos contratos com os estúdios da Tóbis e os laboratórios da Ulyssea para os primeiros quatro filmes (Ibidem: 66). Contudo, o primeiro plano de produção consagrou um conjunto de particularidades que se afastavam um pouco do princípio democrático de um filme por grupo. Em primeiro lugar, o caso Oliveira tinha sido resolvido já no Porto, em Dezembro de 1967: nessa altura, os presentes haviam assumido o compromisso de fazer regressar o “pai“ e “mestre“ ao cinema de ficção. Em segundo lugar, o caso Fonseca e Costa também foi consensual: por diversos motivos políticos, o realizador esperava há quase uma década rodar a sua primeira longa-metragem. Os restantes dois filmes foram distribuídos pelos dois principais núcleos: no grupo dos “kimonistas“ a decisão recaiu sobre António-Pedro Vasconcelos, enquanto Alfredo Tropa foi o escolhido do outro grupo. A decisão do primeiro e do segundo grupos é, talvez, um dos melhores exemplos do espírito solidário dos primeiros tempos do CPC: Fernando Lopes e António de Macedo ficaram excluídos porque já tinham algumas longas-metragens, prevalecendo o princípio rotativo na produção (Ibidem: 65-66). Fora do financiamento contratado com o CPC, a Gulbenkian reforçava a sua aposta no novo cinema. À margem da cooperativa, a Gulbenkian prosseguia a sua política de subsídios e incentivo à arte cinematográfica: João César Monteiro recebia um subsídio para prosseguir Quem espera por sapatos de defunto morre descalço, um projecto antigo do mais polémico dos novos cineastas; António Campos recebeu outro subsídio para rodar Vilarinho das Furnas, um documentário na linha do “cinema directo“ de Jean Rouch; e Paulo Rocha obteve a encomenda para filmar Pousada das Chagas, um filme sobre o museu de Óbidos. De uma assentada, a Gulbenkian financiava, directa ou indirectamente, quatro longas e três curta-metragens, iniciando uma pequena “revolução“ no cinema 414 português. O ano de 1970 ficaria conhecido como o “ano zero“ dos “anos Gulbenkian“, expressão popularizada então e consagrada na obra posterior de António Roma Torres. Depois do chamado “ano zero do cinema português“ (1955), que marcara o início de contestação aberta do novo cinema, e depois da significativa experiência das Produções Cunha Telles, o cinema português procurara um novo ponto de ruptura com o passado. Corroborando este ponto de vista, em Junho de 1971, o responsável pelo serviço de cinema da Gulbenkian lembrava que o “milagre“ da renovação do cinema português cabia “em três palavras: Fundação Calouste de Gulbenkian.“ E justificava esta ideia: “Do encontro dessa pobre realidade chamada ‘cinema nacional’ com essa outra – encontro há muitos anos desejado e há muitos anos adiado – nasceu em grande parte este ‘milagre’“ (Celulóide, VII-1971: 3-4). Curiosamente, contra esta designação que se vinha a popularizar desde o início das rodagens, um pouco por toda a imprensa, António de Macedo apresentava publicamente uma reclamação: “Em primeiro lugar, os filmes, sendo embora financiados pela Fundação Gulbenkian, são, moralmente, do Centro Português de Cinema. Portanto, passaremos a chamar-lhes, com mais propriedade, os ‘filmes do CPC’, e não os ‘filmes da Gulbenkian’ –, até porque nalguns casos o subsídio da Gulbenkian não cobriu integralmente o custo total de produção“ (Plateia, 29-VI-1971: 4). Este esclarecimento vinha ao encontro do protocolo estabelecido entre a Gulbenkian e o CPC, sobretudo no que respeita à autonomia criativa e administrativa da cooperativa. Como já referi, em Dezembro de 1970, os estatutos do CPC eram homologados pelo Ministério do Interior e a cooperativa podia finalmente regularizar a sua situação com a Gulbenkian. No entanto, o CPC já era uma realidade e funcionava, na prática, desde a aprovação interna dos respectivos estatutos. Para formalizar a ligação, em 13 de Setembro de 1971, os dois parceiros assinavam uma espécie de modus vivendi que determinava escrupulosamente as relações institucionais entre os novos parceiros. Ficava estabelecido que a Gulbenkian não assumiria qualquer responsabilidade na gerência ou manutenção administrativa do CPC, reservando-se apenas um papel meramente fiscalizador sobre os destinos dados aos seus subsídios. Esta fiscalização seria feita habitualmente no final de cada plano de produção, ficando dependente da aprovação do seu relatório e contas o subsídio referente ao ano seguinte, mas também podia acontecer “a todo o tempo“, sempre que a Gulbenkian o entendesse. 415 Ficava também estabelecido, por um lado, que a Gulbenkian poderia promover outro tipo de iniciativa ou intervenção fora do protocolo com o CPC e, por outro que, a cooperativa poderia procurar apoios ou financiamentos a entidades estranhas a instituição, sem prejuízo da quebra do protocolo assumido. Consagrava-se, mais uma vez, o carácter autónomo e a não-exclusividade da relação entre as duas entidades. Finalmente, a Gulbenkian reservava o direito de receber uma cópia de todos os filmes realizados com apoio parcial ou total de subsídios da instituição e, de igual modo, poder utilizar essas obras nas suas iniciativas de carácter cultural ou artístico sem qualquer interferência do CPC. No último artigo do referido documento, a Gulbenkian reservava o direito de “suspender ou cessar a todo o momento a atribuição ou efectivação do seu auxílio, sempre que se verifique que o ‘Centro Português de Cinema – SCARL’ se afastou dos fins que presidiram à sua constituição, ou houve notória quebra de ritmo na respectiva actividade“ (Cinema Novo Português, 1985: 105-106). Reafirmando uma das principais imposições da Gulbenkian, o protocolo determinava que o CPC seria “uma sociedade cooperativa aberta, sem discriminações de qualquer espécie, a todos os cineastas interessados na prossecução dos seus fins“. Esta política de coesão do grupo obrigava, por exemplo, “António de Macedo a ser ‘cooperante’ com quem lhe chamara em público e por escrito, ‘incompetente’ e ‘pobre Diabo’ (César Monteiro)“ (Monteiro, 2000: 322). No entanto, algumas vozes críticas questionam a intervenção da Gulbenkian. Vicente Jorge Silva, então um dos jovens críticos mais activos, apontava: “o problema moral que inevitavelmente se põe é o de que uma grande parte dos novos cineastas se vê excluída arbitrariamente“. O mesmo crítico acusa ainda a recém-criada cooperativa de “servir os interesses de grupos formados a partir de um espírito que nada tem de cooperativismo mas se destina apenas a garantir a preservação desses interesses“. Aos “grupos formados“ que adormeceram “à sombra de certos louros efémeros conquistados“, Vicente Jorge Silva lembra que “a conquista dos direitos não abstrai a consciência dos deveres como suporte da sua legitimidade“ (Comércio do Funchal, 21IX-1969: 5). O acto histórico da assinatura do modus vivendi ficaria completo com a exibição privada do primeiro filme produzido pelo CPC, Recado de José Fonseca e Costa. No Grande Auditório da Gulbenkian, nos dois dias seguintes, eram exibidos em sessões privadas os restantes filmes financiados directa e indirectamente pela Gulbenkian, excepto o filme de António-Pedro Vasconcelos que acumulava alguns problemas na 416 rodagem. No entanto, a data escolhida para a primeira estreia foi 25 de Fevereiro de 1972. Esta sessão contou com a presença do próprio Presidente da República Américo Thomaz, teve lugar no Grande Auditório da Gulbenkian e foi preenchida por Pousada das Chagas e O Passado e o Presente. Esta sessão histórica permitiria, através de uma manifestação pública, a consagração de um projecto comum em prol do novo cinema. Aparentemente, esta sessão constituiu um “complexo jogo táctico entre a Fundação e o Centro Português de Cinema“. Esta iniciativa permitiu que a Gulbenkian e o CPC exigissem ao regime o reconhecimento expresso da “falência estatal da produção cinematográfica por intermédio do Fundo do Cinema Nacional“, bem como a perda da “tutela da produção“, através da imposição de um “modelo de produção liberto de todos os condicionalismos“. Por outro lado, o CPC impunha uma nova ideia de cinema, “visão do cinema como facto cultural“, e afirmava-se como “o único agente efectivo da produção cinematográfica em Portugal“ (Cinema Novo Português, 1985: 102). Para marcar o acontecimento, a Gulbenkian elaborou uma pequena brochura com um texto de apresentação assinado por Azeredo Perdigão. Tentando justificar o atraso da intervenção da instituição no apoio efectivo ao novo cinema, o responsável máximo da Gulbenkian começa por traçar um breve esboço sobre a relação com o cinema ao longo dos primeiros anos de existência da instituição. Reconhecendo a “impossibilidade de resolver todos os problemas que se levantam ao desenvolvimento do cinema em Portugal“, Azeredo Perdigão define o apoio ao CPC como uma intervenção “modesta, prudente e experimental“, assumindo que a selecção dos beneficiários é da “responsabilidade artística, moral e financeira da Instituição.“ A solução de constituição de uma cooperativa “formada por gente do cinema e livremente dirigida pelos seus pares“ enquadra o apoio ao CPC na orientação estatutária da instituição. Demonstrando uma postura ambígua de expectativa e de esperança acerca do projecto patrocinado pela sua instituição, Azeredo Perdigão acabava o seu texto com as seguintes interrogações: “E, agora? Agora, vamos ver os mencionados filmes. E, depois? Depois… veremos“ (Ibidem: 102-103). A anteceder a sessão, coube a Fernando Lopes fazer um pequeno discurso enquanto presidente da cooperativa. Apresentando o CPC como uma tentativa de dotar o cinema português de “dimensão económica“ e de “posição cultural“, o realizador integra o projecto da cooperativa no “movimento que, por volta dos anos 60, apoiado por alguns jovens críticos e elementos cine-clubistas, tentou romper com o estado das coisas“. O 417 “esforço conjugado“ dos membros da cooperativa inaugura uma era cinematográfica que pretende corresponder a uma velha aspiração: propor, “senão um cinema novo, pelo menos uma alternativa“ (Ibidem: 4). Mais uma vez, agora com O Passado e o Presente, o novo cinema “deu azo a grande expectativa, e maior polémica.“ Não ficando indiferente, Oliveira continua a dividir opiniões: “A crítica mais tradicional ficou perplexa ou condenou em bloco. Mas a nova crítica cerrou fileiras“ (Monteiro, 1995: 677-678). Porém, como confessa Fernando Lopes, a recepção crítica do filme foi também influenciada pela defesa de interesses subterrâneos: “Talvez, no CPC, alguns colegas meus não gostassem do filme, particularmente o Macedo que, diga-se, nunca terá gostado muito do Oliveira. […] Como o filme desempenhava um papel importante no lançamento do Centro, o António de Macedo foi impecável, nunca se pronunciando publicamente contra o filme. A mesma coisa se passou com o Artur Ramos“ (Lopes, 1985: 65). José Fonseca e Costa e António de Macedo corroboram desta observação. Pela condição de ser a primeira obra da cooperativa e de ser assinada por Manuel de Oliveira, a defesa estratégica desta obra representava provavelmente a afirmação estética do programa de intervenção do CPC e a sobrevivência do próprio novo cinema. Quanto aos restantes filmes do CPC, as opiniões divergiram significativamente, inclusive dentro da própria cooperativa. Se Pedro Só passou “despercebido“, a recepção crítica de O Recado permitiu um reacender de velhas “questões pessoais“. As duras críticas dirigidas ao filme por alguns colegas, sobretudo dos “kimonistas“, reintroduziram as posições da divisão interna que já se revelara na Semana do Porto. Perdido por Cem…, o único com atraso considerável na produção e estreado já no prazo do segundo plano de produção, também dividiu a família do CPC. A fraca recepção do público a estes filmes fazia falir a pretensão de alguns membros do CPC em criar fundos próprios e assim assegurar a subsistência quando acabasse o período experimental pago pela Gulbenkian. Os comentadores mais pessimistas criticavam a dependência dos subsídios que caracterizava o novo cinema português e vaticinavam a falência do projecto traçado desde a reunião do Porto em Dezembro de 1967. Os sectores mais críticos ao novo cinema felicitavam-se com o fracasso das propostas dos “privilegiados da Gulbenkian“ (Costa, 1985: 40-41). Pelo contrário, a recepção crítica estrangeira foi animadora. Depois da presença importante de Fonseca e Costa e do seu Recado em San Remo, Jean Gili dedicou a IX edição do Festival de Cinema de Nice ao Jeune Cinema Portugais. Em Março de 1972, 418 uma selecção de filmes que incluía as primeiras produções de Cunha Telles e do CPC, filmes de João César Monteiro, António Campos, Cunha Telles e Rogério Ceitil, e uma retrospectiva apreciável de Manuel de Oliveira (Plateia, 2-V-1972: 22-24; Idem, 23-V1972: 30-31). Mais do que uma mostra, esta iniciativa deu uma visibilidade mediática ao novo cinema no mercado internacional que o cinema português nunca tinha conquistado. Com o segundo plano de produção, privilegiando a estratégia da rotatividade, chegava a vez de Seixas Santos (Brandos Costumes) e Fernando Matos Silva (O Mal Amado) se estrearem na longa-metragem. O recém-chegado Cunha Telles (Meus Amigos), António de Macedo (A Promessa) e Paulo Rocha (A Ilha dos Amores) completavam o lote dos filmes previstos. Tentando agradar as duas principais tendências programáticas da cooperativa, os filmes de Seixas Santos e Paulo Rocha “iam para as expectativas dos que mais se batiam por um cinema moderno; para Macedo e Cunha Telles as expectativas dos que esperavam maiores êxitos de bilheteira“ (Costa, 1985: 4142). De todos os projectos previstos, só A Promessa cumpriria o prazo de estreia. Prevista a conclusão para os inícios de 1973, Meus Amigos atrasou-se um ano, O Mal Amado só estreou dias depois da Revolução de Abril, devido à proibição da Censura, e Brandos Costumes esperou até 1975. Quanto à Ilha dos Amores, o subsídio foi reencaminhado para dois projectos de média metragem: Jaime, de António Reis e A Sagrada Família, de João César Monteiro. Exceptuando o filme de António de Macedo, todos os projectos registaram problemas significativos de produção. Os filmes de Fernando Matos Silva e Seixas Santos eram duas apostas politicamente arriscadas: o primeiro falava obliquamente da guerra colonial e incluía cenas eventualmente chocantes, enquanto o segundo ensaiava a queda do salazarismo. Para Bénard da Costa, estes realizadores “terão pensado que a primavera marcelista podia ir tão longe que os abarcasse“ (Ibidem: 42). Mais uma vez, a recepção crítica foi diversificada. A Promessa teve uma excelente recepção crítica no estrangeiro – primeiro filme português presente na selecção oficial do Festival de Cannes – mas convenceu poucos em Portugal. Significativo foi também a proibição de O Mal Amado pela Censura. Depois de alguma contenção no primeiro ano, a tentar convencer os responsáveis políticos da credibilidade do projecto CPC, a estratégia para o segundo ano de produção passava pelo inevitável “embate“ com o poder e pelo 419 risco total. Assim, este perigo de intervenção da Censura era um risco de certo modo esperado (Lopes, 1985: 68). O terceiro e último plano de produção foi anunciado antes do 25 de Abril. Para além de Manuel de Oliveira (Benilde ou a virgem-mãe), o CPC previa as primeiras longas de Rogério Ceitil (Cartas na Mesa), Luís Galvão Teles (A Confederação), Faria de Almeida (Bonecos de Luz) e João Matos Silva (Antes a Morte…). O projecto de Paulo Rocha (A Ilha dos Amores) voltava a ser contemplado com subsídio. Mais uma vez, este plano trouxe vários atrasos de produção. Os filmes de Ceitil e Oliveira estrearam entre o início e o final de 1975, enquanto Galvão Teles concluiu o seu filme fora do CPC (em 1978) e o de João Matos Silva nem chegou a estrear comercialmente, só ficando concluído em 1981. Quanto ao projecto de Faria de Almeida, foi substituído por Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro. O desnorte parecia já indicativo dos capítulos que se seguiriam. Em Fevereiro de 1974, a direcção do CPC mudava de timoneiro. Confessandose cansado, Fernando Lopes era substituído por Paulo Rocha. Eleito pelos sócios da cooperativa, o novo presidente, de acordo com a revista Cinéfilo, “vai certamente imprimir orientação diferente ao CPC“. A acompanhar o novo presidente estavam António Reis (vice-presidente), Fernando Matos Silva, António-Pedro Vasconcelos e Ernesto de Oliveira (Cinéfilo, 2-II-1974: 3). No entender de João Bénard da Costa, o grupo fundador do CPC formava “um grupo heteróclito, de tendências diversas, mas com um núcleo sólido (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo, Fonseca e Costa, Seixas Santos, António Pedro Vasconcelos) com apetência e capacidade de poder“ (Costa, 1991: 131). Contudo, com o passar dos anos “tornava-se evidente que o corpo comum dos homens do ‘cinema novo’ era uma aparência que só vigorava por razões tácticas.“ (Idem, 1985: 38) Apesar de tudo, em menos de seis anos, o CPC duplicava os seus membros: aderiam à cooperativa dezoito novos realizadores, entre os quais velhos resistentes e novas promessas entretanto surgidas.158 Cunha Telles, que só integrou o CPC no segundo plano de produção, confessa que talvez se tenha integrado mal na cooperativa, mas não conheceu o espírito de solidariedade e cumplicidade que caracterizou o primeiro plano de produção (Telles, 1985: 56). Tal como o anterior, também João César Monteiro alertou publicamente para 158 António da Cunha Telles, João César Monteiro, António Campos, António Reis, Luís Galvão Teles, João Matos Silva, Rogério Ceitil, Sá Caetano, Margarida Cordeiro, António Faria, Eduardo Geada, Lauro António, Jaime Silva, Luís Couto, Edgar Gonsalves Preto, António Damião, Noémia Delgado e Luís Filipe Rocha. 420 a falta de solidariedade ou do funcionamento democrático habitualmente atribuído ao CPC. Devido aos estatutos da cooperativa, a imposição da categoria de sócio-fundador discriminou negativamente a entrada dos novos elementos, nomeadamente na integração nas unidades de produção existentes e, sobretudo, na aprovação de projectos de produção. Monteiro também dá conta da “política de compromisso da Direcção“ e das “contradições internas e externas em que o CPC se tem batido“ sobretudo em relação aos imperativos financeiros. O realizador acusa o Conselho de Produção de arbitrariedade anti-estatutária na escolha dos projectos e a Direcção da cooperativa de recorrer à calúnia e à “violência (ameaças de expulsão, votos de censura, represálias futuras aliás presentes, presentes e duras)“ para silenciar vozes incómodas (Monteiro, 1974: 77-80). Um pouco mais agressivo, Monteiro afirma que a cooperativa é “dominada por duas ou três ratazanas que fomentam a discórdia entre os sócios e estabelecem, como modus vivendi, relações de força, fundadas no oportunismo, na hipocrisia, na dependência mais servil, etc.“ (Ibidem: 91). Esta situação de desadequação progressiva dos estatutos terá sido a principal razão para, em Janeiro de 1973, um grupo de sócios ter constituído uma comissão “com o objectivo de alterar os Regulamentos e Estatutos do CPC“. Na sequência desta comissão, surgiu “uma carta assinada por um grupo de sócios que contestam, ainda que dentro de uma táctica meramente reformista, o funcionamento e a razão de ser de um seu organismo.“ Sempre incendiário, João César Monteiro concluiu: “Não é grande coisa, não vai resolver nada, […] mas é bom que tenha sido escrita, é bom pôr o nome em cartas limpinhas, – cartas na mesa da Direcção“ (Ibidem: 82-83). São vários os testemunhos de alguns membros em relação à administração discriminatória da cooperativa, nomeadamente um grupo onde se incluíam António de Macedo, Fonseca e Costa, Luís Galvão Teles, Henrique Espírito Santo, João Franco, Amílcar Lyra. Em Dezembro de 1973, estes membros do CPC reúnem-se na tentativa de criar uma nova cooperativa, a futura Cinequanon, cujos estatutos foram ultimados até ao mês seguinte. Contudo, a Revolução de Abril impediu a formalização da cooperativa no tempo previsto, só vindo a concretizar-se logo nos meses seguintes à Revolução (António de Macedo apud Cunha, 2005: 92). Estes exemplos parecem demonstrativos dos problemas que marcaram a vida da cooperativa desde a sua constituição até à desintegração definitiva. Desde os problemas institucionais e burocráticos que marcaram a elaboração e aprovação dos estatutos, o relacionamento interno dos seus membros – e reafirmo a necessidade de desenvolver a 421 petite histoire em torno destas relações – e a adesão de novos membros, a cooperativa reflectiu um pouco a diversidade estética do novo cinema e a dificuldade em conciliar interesses e objectivos distintos e até antagónicos. Oportunamente, o início de actividade do IPC iria funcionar como alternativa para membros da cooperativa menos satisfeitos com a orientação programática e com a falta de solidariedade de alguns colegas na recepção de certos filmes produzidos sob o selo CPC. Findo o período experimental, o CPC haveria de subsistir quase exclusivamente à custa de subsídios individuais atribuídos a membros da cooperativa ou em colaboração com outras produtoras. 3.6.2. ACOBAC O 25 de Abril veio fragmentar definitivamente a unidade que restava ao CPC, assistindo-se ao surgimento de cooperativas semelhantes: Cinequipa; o caso da já citada Cinequanon; a Cinequipa; o Grupo Zero159, numa forte relação de parceria com o Teatro da Cornucópia; a Cooperativa Paz dos Reis, no Porto; a Virver; entre outras. O esvaziamento do CPC, acompanhando o que sucederia durante o PREC, transformou-o, “primeiro, num refúgio para alguns de nós – os que não aceitávamos o ‘diktat’ do IPC, tomado então pelo PC e pela 5.ª Divisão – e, depois do 25 de Novembro, numa utópica tentativa de socializar o cinema português“ (Lopes, 1985: 70). Com o 25 de Abril e durante o PREC, a situação alterou-se substancialmente: “Entretanto, a figura do produtor privado praticamente desapareceu, agora que o capital pertence ao Estado, substituído pela figura do 'director de produção' dos novos núcleos de produção: as 'unidades de produção', instrumentos do processo de nacionalização atrás referido, e as cooperativas, desde o Centro Português de Cinema, subsidiado pela Gulbenkian, às novas sociedades Cinequanon e Cinequipa, para não citar mais. Apesar de tudo, a Tobis mantém-se como grande unidade produtora, participando de muitos filmes realizados, e surge também, agora patrocinando o que chama de 'produção externa', a Radiotelevisão Portuguesa. Agora, o autor-realizador é a figura dinamizadora da produção, liberto da tutela do 'produtor', mas realmente colocado sob a tutela do IPC ou da RTP, que lhe fornecem os fundos. Proliferam, assim, os 'realizadores', numa verdadeira atomização do cargo, dirigindo os mais diversos filmes, conhecidos pela designação genérica de 'filmes de intervenção'. Mas, apesar desta aparência de liberdade, a realidade 159 Solveig Nordlund, Maria Viegas, Acácio de Almeida. Ricardo Costa, Paola, Alberto Seixas santos, Serras Gago, Teresa Caldas, Guida Gil, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. 422 é outra: por um lado, deixa de haver subsídio para os representantes do velho cinema ou para cineastas ideologicamente opostos ao novo regime (com excepção de Arthur Duarte, Jorge Brum do Canto ou Teixeira da Fonseca); por outro, os projectos passam a depender da linha ideológica de cada Governo (a decisão final das comparticipações do IPC pertence ao ministro da tutela) e das decisões de júris também superiormente designados. No entanto, para todos aqueles que têm conseguido o subsídio estatal houve sempre a maior liberdade, e deixou de existir censura prévia, salvo no primeiro plano de produção de 1975, em que alguns argumentos sofreram imposições ideológicas.“ (Pina, 1986: 182-183) Em reunião plenária que decorreu nas Caldas da Rainha, em Junho de 1975, os representantes das cooperativas resolveram projectar a criacção de uma União de Cooperativas de Produção de filmes como forma mais eficaz de combater as posições e “arbitrariedades“ cometidas pelo IPC, pela Direcção Geral da Cultura Popular e Espectáculos e pelo próprio Ministério da Comunicação Social (Cineclube, 5, VIII-1975: 21). O ponto de concórdia entre as diversas cooperativas era apenas as Unidades de Produção, um inimigo comum, e a necessidade de luta contra essas novas entidades instituídas por Pinto Leite no IPC, “por elas permitirem o controlo do Estado e partidário (por parte do PCP) da produção cinematográfica“ (Dionísio, 1994: 273). Por isso e, fundamentalmente, porque as Unidade de Produção punham em risco a sustentabilidade e a própria sobrevivência das cooperativas. Em Julho de 1976, a ACOBAC coloca-se “definitivamente contra o IPC“, exigindo a extinção das Unidades de Produção. Como sublinha José Filipe Costa (2014: 53), as cooperativas juntam-se numa “frente comum de oposição às políticas de cinema propostas por Vasco Pinto Leite“, isto apesar de as diferentes cooperativas estarem “associadas a um mosaico de diversos interesses e projetos“: “reconhece na Cinequanon uma postura política alinhada com a extrema-esquerda, enquanto associa a Cinequipa ao PS e o Centro Português e Cinema a diferentes áreas ideológicas“. Em 1977, alguns anos depois de terminado o acordo de financiamento entre a FCG e o CPC, Bénard da Costa terá aconselhado o Conselho de Administração da FCG a financiar “projectos que eram relativamente sui generis“, que “não se destinavam ao circuito comercial e que pudessem genericamente enquadrar-se no espírito do referido Museu de Imagem e Som.“ (Ibidem) Fernando Lopes confirma esta intervenção decisiva de Bénard da Costa a favor de “uma ajuda sistemática a esse projecto do Museu da 423 Imagem e do Som.“ (Cinema Novo Português, 1985: 67). No início de 1976, o CPC convidou o cineasta Jean Rouch para visionar alguns filmes portugueses e contactar de perto com realizadores portugueses. Sobre esse encontro, o cineasta francês endereçaria uma carta ao CPC onde elogiava as obras particulares de António Reis e de António Campos, dois “autores tão secretos e complicados“ a quem Rouch apelida de “monstros sagrados“ (Jean Rouch apud Madeira, 2000: 119). Do acordo firmado entre a FCG e a Associação de Cooperativas e Organismo de Base da Actividade Cinematográfica (ACOBAC) – da qual faziam parte o CPC, a Cinequanon, a Cinequipa e o Grupo Zero –, resultaria uma série de apoios financeiros à produção, directa ou indirectamente enquadrados no projecto do Museu da Imagem e do Som, a diversas curtas, médias e longas-metragens, na sua grande maioria do género documental. O Museu da Imagem e do Som foi um projecto informal do CPC que pretendia criar condições para “a produção de uma série de filmes que dessem conta do Portugal desconhecido que está à espera de nós, de tradições e costumes em vias de desaparecer, mas também de filmes biográficos sobre alguns dos nossos grandes vivos“ (Costa, 2007: 44). Mais do que um projecto concreto, o Museu da Imagem e do Som foi sobretudo uma ideia de cinema, um plano de intenções que marcou diversos realizadores portugueses durante esses anos e que teve obras mais ou menos conseguidas. Este singular “momento antropológico“ mostrou uma audácia e uma versatilidade criativa que constituiu uma etapa importante na construção da identidade do cinema português e do Portugal recém-democrático160 (Cunha, 2009: 85). Eduardo Prado Coelho (1983: 70) integrou o projecto Museu da Imagem e do Som no momento em que “um sector muito significativo dos trabalhadores de cinema decidiu intervir na recolha de toda uma memória cultural do nosso povo prestes a ser varrida 160 Nós por cá todos bem (1976, Fernando Lopes, prod. CPC), filme que mistura actores profissionais e amadores, documentário e ficção, na aldeia natal do realizador (Várzea, Beira Litoral); Ma femme chamada Bicho (1976, José Álvaro de Morais, prod. CPC), documentário sobre Maria Helena Vieira da Silva; Máscaras (1976, dNoémia Delgado, prod. CPC), documentário sobre as festas populares arcaicas no nordeste transmontano; Terra de Abril (1977, Philippe Constantini, prod. INA/França), documentário sobre as tradições da aldeia de Vilar de Perdizes; Os bonecos de Santo Aleixo (1977, João e Jorge Loureiro, prod. Cooperativa Paz dos Reis), documentário sobre os títeres tradicionais alentejanos ambientado na aldeia homónima; Gente do Norte ou a história de Vila Rica (1977, Leonel Brito, prod. Cinequanon), documentário sobre a comunidade transmontana de Torre de Moncorvo; Maladena (1977, Manuel Costa e Silva, prod. CPC), ambientado no Alentejo; O construtor de anjos (1978, Luís Noronha da Costa, prod. IPC), experiências plásticas em registo gothic ambientado em Sintra; Veredas (1978, João César Monteiro, prod. IPC), filme inspirado em contos tradicionais portugueses compilados por Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira; Goa e Mombasa (1980, António Escudeiro, prod. CPC), dois documentários sobre a influência portuguesa no Oriente; Música Moçambique (1981, José Fonseca e Costa, prod. Filmform), registo de um festival de música tradicional moçambicana. 424 pelos moldes uniformizantes da cultura de massas“. No entanto, para Prado Coelho, a “própria designação envolvia um paradoxo“. O complexo “movimento antropológico“ desenvolvia-se no ambíguo território que demarca o documental e o ficcional: “este ‘retrata’ uma realidade que já não existe, que nunca existiu, impossível de existir, mas retrata-a com a mais implacável das fidelidades. Fidelidade a quê? Diríamos que a uma visão do mundo, no sentido mais visionário da fórmula, ou, se não tivermos medo da palavra, a uma metafísica (Ana será a revelação plena disso)“ (Ibidem: 70-72). As alterações provocadas pelo 25 de Abril no cinema não foram apenas políticas e ideológicas. Também do ponto de vista sócio-profissional e produtivo, o panorama cinematográfico português conheceu diversas transformações neste período e nos anos imediatos que se seguiram. Um dos fenómenos mais curiosos então verificados foi a proliferação de cooperativas de produção cinematográfica. Ainda nas vésperas e no imediato pós-25 de Abril, o exemplo cooperativo do CPC daria origem à criação de diversas cooperativas de produção – Cinequanon, Cinequipa, Grupo Zero, entre outras – que tiveram uma duração efémera graças a pontuais subsídios públicos e à produção de pequenas e médias metragens. No final dessa década, uma a uma, as cooperativas foram fechando actividade ou reconvertendo as suas estruturas cooperativas a uma produção de mercado. No entanto, durante a segunda metade da década de 70, o cinema português viveu um singular período, mantendo uma actividade cinematográfica activa sem produtores no sentido clássico do termo e buscando formas alternativas de criação e produção. Em 1978 o fenómeno ganha particular alento e são criadas novas cooperativas cinematográficas: as antigas Produções Francisco de Castro transformavam-se na cooperativa Copercine; Cooperativa Eranova, que foi criada em Janeiro de 1978 “a partir da necessidade de distribuir o filme Torre Bela, de Thomas Harlan“ (Dionísio, 1994: 309); FilmForm (Costa, 2007: 45); ProleFilme; Forum, que contava com Artur Ramos entre os seus membros, produziria vários documentários de “cariz político e de temática industrial“, a série para televisão Retalhos da Vida de um Médico (1978-79, Artur Duarte) e A Noite e a Madrugada (1985, Artur Ramos) (Ramos, 1989: 321-322). Parece-me claro que o modo de produção cooperativo do CPC e de outras cooperativas similares só funcionou enquanto o grupo de cooperantes era relativamente reduzido. Com a entrada de novos membros, a cooperativa tornou-se “ingovernável“ dado o orçamento disponível e os diversos projetos individuais em perspetiva. 425 Em Outubro de 74, João Matos Silva (Cinéfilo, 16, 17-I-1974: 31) sublinhava os objetivos da sua cooperativa: o desmantelamento do sistema de distribuição e exibição, tal como até aí tinha vigorado e o seu reenquadramento. Esta intervenção recuperava uma questão complexa: se, por um lado, a lei 7/71 permitiu “resolver“ – temporariamente, ver-se-ia mais tarde – a questão da produção, garantindo um financiamento público regular, por outro, não operou nenhuma transformação idêntica nos sectores da distribuição e da exibição. O CPC já tinha percebido que a chave para a sobrevivência da produção cinematográfica dependia da sua circulação. Por causa do suposto “divórcio“ com o público português e do seu estatuto de independência em relação ao mercado, essa cooperativa optou por um modelo de circulação que privilegiou a internacionalização do cinema português, investindo na realização de ciclos e mostras e na presença de filmes portugueses em importantes certames cinematográficos internacionais. O conturbado processo produtivo do filme Amor de Perdição (1976-78) de Manoel de Oliveira marca simbolicamente a falência do modo de produção cooperativo e lançou um novo paradigma que vingaria na década de 1980: marca o fim da “produção militante do ‘cinema de Abril’“ e projeta a internacionalização do cinema português iniciada anos depois por António-Pedro Vasconcelos e Paulo Branco na VO Filmes, “produtora de filmes de autor, um pouco no espírito dos produtores franceses de arte e ensaio.“ (Grilo, 2006: 27). Com o fim do CPC, o modelo de produção através de cooperativa estava esgotado e surgiam outras modos de produção que o iriam substituir na década seguinte, nomeadamente a co-produção com parceiros estrangeiros. 3.7. Co-produção Em Abril de 1964, a revista Celulóide (IV-1964: 6) noticiava a criação de uma nova co-produtora portuguesa, a AVA, “que poderá exercer significativa influência no fomento da indústria cinematográfica portuguesa“. Atentos ao “que acontece em Espanha“ e “ainda à promoção do Turismo Nacional“, “um grupo de individualidades de destaque em vários campos de actividade“161 constituiu a empresa cinematográfica 161 “Após a escritura de constituição, reuniu-se a assembleia geral da nova Empresa para eleição dos seus corpos gerentes e de entre os sócios foram escolhidos: Para o Conselho de Administração: Dr. José Neves Raposo de Magalhães, director da Fundação Gulbenkian e vice-governador do Crédito Predial; Dr. Américo Saraga Leal, vice-presidente da Junta de Acção Social, 426 direccionada para seleccionar e estudar propostas de filmes rodados parcial ou integralmente em território português por produtores estrangeiros, “tendo em vista a promoção mais eficiente e digna do turismo português e a garantia de êxito económico do filme“. No mesmo mês, noutra publicação (Rádio e Televisão, 25-IV-1964: 25), era o produtor Felipe de Solms que defendia publicamente uma aproximação de política de co-produção com países estrangeiros, em particular com Espanha, desde que isso servisse “para dar a conhecer técnicos ou artistas ou realizadores portugueses no estrangeiro, mas não para dar novos mercados aos filmes de fora“. Em Agosto do mesmo ano, a mesma Rádio e Televisão (29-VIII-1964: 3) anunciava a vinda a Portugal do realizador sueco Bertil Olsson com o objectivo de firmar “um possível acordo de co-produção entre os dois países“. O objectivo do realizador nórdico era reunir as condições para rodar em terra algarvias o filme As Coroas de Palmas Pretas, uma longa-metragem a realizar por Lars Magnus Lindgren. No mesmo mês, estreava na Suécia uma longa-metragem intitulada Att Alska (Amar) que fora filmada em Portugal e que tivera Manuel Costa e Silva como assistente de realização (Idem, 22-VIII-1964: 3). Em Junho, encontrava-se em rodagem em Lisboa o segundo filme que Pierre Kast rodava em Portugal no espaço de poucos meses. Depois de Vacances Portugaises (coprodução de Clara d'Ovar, Cunha Telles e Peter Oser) e da curta PXO, Kast filma agora novamente em território português para rodar uma co-produção franco-portuguesa Intriga Internacional (Le grain de sable), novamente com Cunha Telles e com Manuel Costa e Silva na fotografia (Idem, 13-VI-1964: 4). Subitamente, no início da década de 60, a co-produção surgia aos olhos de muitos produtores portugueses como um lucrativo negócio e uma hipótese com muitas potencialidade. Apesar disso, o modo de produção em parceria com empresas cinematográficas estrangeiras não era propriamente inédito no cinema português. Só para recuar até à década anterior, começo pelas tentativas com parceiros espanhóis, onde algumas das figuras mais profícuas do cinema português tentaram novos projectos sem resultados significativos: Arthur Duarte realizou e produziu do Conselho Fiscal da Tobis; o actor António Vilar; José Manuel Castelo Lopes, administrador da Empresa Distribuidora Filmes Castelo Lopes e do Cinema Condes e Dr. António Braz Teixeira. Para o Conselho Fiscal: Dr. Ruy Leitão, administrador da STAR; Dr. Eduardo Freitas da Costa, administrador da RTP; e Dr. Ruy da Gama. Para a Assembleia Geral: Prof. Mário de Albuquerque e Joaquim Monteiro Grilo, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, respectivamente presidente e vice-presidente; Dr. Fernando Teixeira, chefe da Redacção do 'Diário Popular', 1.º secretário; e eng. José de Andrade, 2.º secretário.“ 427 Parabéns, Senhor Vicente/Nubes de Verano (1954); Perdigão Queiroga produziu Sextafeira 13/Martes y Trece, de Pedro Lazaga (1962); e Henrique Campos realizou a versão portuguesa de A Canção da Saudade/Los Gatos Negros (1964). No final da Segunda Guerra Mundial, Aníbal Contreiras havia tentado várias parceria com produtoras espanholas, de onde resultariam três longas-metragens: Rainha Santa (1947), Senhora de Fátima (1951) e Lavadeiras de Portugal (1957). Em Setembro de 1957 viaja para o Brasil para tentar a sua sorte. Apesar de viajar com a missão de contratualizar a exibição comercial no Brasil do filme Lavadeiras de Portugal, uma co-produção franco-espanhola que havia produzido, Contreiras estava falido e acabaria por se radicar o Brasil e por se dedicar à organização de espectáculos. Para além de exibir pontualmente em terras brasileiras os filmes luso-espanhóis por si produzidos, não deixaria de tentar um último projecto cinematográfico: exibir pelo Brasil o filme Assim é Portugal, em 16mm a cores, enquanto ia rodando um documentário semelhante intitulado Assim é o Brasil. O projecto não vingaria, nem a carreia da Contreiras no cinema brasileiro, tendo acabado por regressar mais tarde a Portugal (Pina, 1987:15). Pelo contrário, Armando de Miranda tinha emigrado para o Brasil oito anos antes, em 1949, e por lá conseguira continuar a sua carreira de realizador, contando mais quatro longas-metragens, duas delas em regime de co-produção com Portugal: O Cantor e a Bailarina (1960, prod. Luso Brasileira Filmes e Produtores Associados) e A Montanha dos Sete Ecos (1963, prod. Octan Filmes e Polígono Filmes). Se o primeiro filme ainda teve estreia em Portugal, o segundo ficou-se apenas pela exibição comercial em terras brasileiras. Armando de Miranda ainda foi exibindo os seus filmes anteriores (Capas Negras, 1947; Serra Brava, 1948) em várias salas brasileiras, mas as iniciativas pontuais e a falta de interesse dos distribuidores não permitiram criar um espaço para a eventual circulação de cinema português. Quem também se radicaria no Brasil, entre 1961 e 1965 seria Arthur Duarte, onde realizaria uma longa produzida em parceria com duas produtoras brasileiras (Marsouso Filmes e Carioca Filmes): Em legítima defesa/Encontro com a morte (1965). Apesar das pretensões de fazer o filme estrear em Portugal, e apesar de o realizador ter assegurado a distribuição do mesmo em território nacional, a censura proibiria integramente o filme por considerá-lo “moralmente reprovável“ (Matos-Cruz, 1999: 129). Neste período, com parceiros brasileiros, o único caso de sucesso aconteceria com Francisco de Castro, que seria produtor associado do filme de Anselmo Duarte O Pagador 428 de Promessas, que venceria o grande prémio em Cannes em 1962. No entanto, este caso é muito particular e tem alguns pormenores que o enquadram apenas como uma parceria de “fachada“, visto que o produtor português apenas se terá associado à distribuição do filme. Se nos anos 50 as tentativas de parcerias de co-produção internacional tinham sido direccionadas principalmente para o Brasil e para Espanha, sobretudo por razões afectivas e históricas, na década de 1960 as tentativas de internacionalização do cinema português voltava-se para o centro da Europa, particularmente para França, muito por influência da nova geração cinéfila que elegera Paris como a nova capital do cinema. O caso das co-produções de António da Cunha Telles com diversos parceiros franceses, já citados no capítulo dedicado à sua empresa produtora, e de outras iniciativas pontuais, são sintomáticas dessa mudança de estratégia que se virava agora para um espaço onde as afinidades estéticas seriam mais evidentes. Ainda assim, apesar dos propósitos “culturais“ e “artísticos“, estas parcerias com o centro da Europa também se moviam por objectivas pretensões comerciais e económicas, procurando integrar um circuito internacional de exibição alternativo de prestígio que surgia cada vez mais como uma alternativa ao mercado de exibição interno. A lei de protecção do cinema nacional de 1971 definia como uma das competências do recém-criado Instituto Português de Cinema (IPC) a promoção de “acordos cinematográficos internacionais, nomeadamente de co-produção“ e estudar “os termos de produção de filmes em regime de co-participação“. O diploma equiparava as co-produções aos filmes nacionais “para efeitos de assistência técnica, atribuição de prémios e fixação de contingentes de distribuição e exibição“, enquanto as coparticipações apenas seriam consideradas para “efeitos de atribuição de prémios e fixação de contingentes“. No entanto, para atribuição de assistência financeira, o IPC exigia pelo menos 20 % de capital português, versão falada em português, intervenção de técnicos e actores portugueses em proporção e utilização de locais de filmagem portuguesas (Diário das Sessões, 2.º suplemento ao n.º 138, 16-XI-1971, pp. 2792-(4952)). Apesar da legislação em vigor, nas duas décadas seguintes não se fizeram acordos significativos, mas apenas algumas experiências isoladas de co-produção na linha das tentadas anteriormente. O caso mais visível foi o de Eusébio, a Pantera Negra/Eusébio, la Pantera Negra, realizado por Juan de Orduña e estreado em Lisboa a 11 de Abril de 1974, 429 uma longa-metragem de qualidade medíocre que procurava tirar partido comercial da vida e carreira de uma das figuras mais mediáticas da sociedade portuguesa de então. Em Janeiro de 1978, José Fonseca e Costa inicia a co-produção de Kilas, o mau da fita, com actores reconhecidos pelos portugueses das telenovelas brasileiras (Armando Bogus, Natália do Vale e Lima Duarte), que “pode bem ser a pedrada no charco na nossa estagnação“ (Isto é cinema, 1, 27-I-1978: 16). A co-produção entre o CPC e a com os brasileiros da Penta Filme do Rio de Janeiro teria, “à partida assegurado o mercado brasileiro, facto quase inédito na nossa produção, pelo menos a mais recente“. (Ibidem, 4, 17-II-1978: 6) No entanto, na segunda metade dos anos 70 foram assinados vários protocolos de cooperação cinematográfica: Roménia, Jugoslávia, URSS, Senegal, Bulgária e Checoslováquia em 1976; Líbia em 1977; Venezuela em 1979. Mas o mais importante seria o foi assinado em 1981 com a França (Decreto n.º 79/81, de 19 de Maio), no mesmo ano do Brasil (Decreto n.º 48/81, de 21 de Abril), mas este bem mais burocrático e sem resultados práticos nos anos seguintes. Os países de expressão portuguesa só assinariam os seus protocolos de cooperação a partir do final dessa década: Cabo Verde (Decreto 33/89, de 10 de Agosto); Moçambique (Decreto n.º 52/90, de 11 de Dezembro); Angola (Decreto n.º 12/92, de 20 de Fevereiro); e São Tomé e Príncipe (Decreto n.º 17/94, de 17 de Junho). 3.7.1. Departamento de Co-produção de Cinema da RTP No meio cinematográfico, como de resto se verificou noutros países, a chegada da televisão foi vista com alguma preocupação por parte de alguns produtores, distribuidores e exibidores, que chegavam à imprensa e ao debate público. Para além dos que defendiam os “perigos“ dessa nova “ameaça“, muitos outros defendiam uma coexistência e até uma colaboração entre os dois meios de comunicação que os beneficiaria a longo prazo: “(...) Cinema e Televisão são formas diferentes, são artes diversas. A própria Televisão é uma maneira, é um modo moderno de apresentar Cinema ao domicílio. A Tv em nada prejudica o Cinema, sob o ponto de vista artístico. Quanto muito, pode afectar um campo determinado do comércio e da indústria cinematográfica, o da exibição. E nesse aspecto, não resta dúvidas, que a Tv o conseguiu parcialmente, apenas. 430 Aliás, é a Televisão uma nova fonte de receitas para o Cinema. Em Portugal, a RTP apresenta todos os anos cerca de 50 filmes de fundo, além de centenas de reportagens filmadas, documentários e 'séries' . A Televisão francesa apresenta muito mais, No Luxemburgo, na Bélgica, no Mónaco, na Espanha, como na América, a Televisão exibe centenas e centenas de filmes. Não está, pois, o Cinema em perigo. (...) A Tv precisa do Cinema ou tem mesmo de produzir Cinema pelos seus próprios meios. Jean Renoir, o grande Renoir, realizou para a Televisão francesa um filme que corre agora nos cinema em Portugal. Rosselini, na mesma ocasião, em que rodava o seu filme sobre a Índia, filmava aspectos préviamente elaborados para a Televisão. As tentativas de tele-filmes de enredo em Portugal não foram, em geral, satisfatórias. Ainda não se tentou, que saibamos, a produção de séries filmadas entre nós, com assuntos novos, feitos por técnicos nossos.“ (Celulóide, 61, I-1965: 23) Como referi no capítulo anterior, se a televisão portuguesa rapidamente deixou de ser uma fonte de receitas para o cinema português no que respeita a direitos de emissão, porque passou a emitir maioritariamente filmes de produção estrangeira, a “esperança“ de uma “coexistência“ reciprocamente vantajoso passava pela produção. E é certo que inicialmente, sem quadros próprios, a RTP recorreu a muitos colaboradores externos, entre eles vários cineastas amadores, para garantir “reportagens“ para a sua programação. No entanto, com o passar dos anos, e com a chegada dos bolseiros do Fundo do Cinema Nacional (Fernando Lopes, Alfredo Tropa, Teresa Olga, entre outros) que foram receber formação no estrangeiro e com o recrutamento progressivo de quadros próprios, a RTP foi ficando menos dependente da colaboração externa. A determinada altura, a aposta da televisão pública passou também pela produção de “telecinema“, designação então usada para definir produções cinematográficas feitas para suporte televisivo. A produção própria de conteúdos apresentava-se então como uma forma eficaz de reduzir os elevados custos da programação cinematográfica, inflacionados pelo aumento exponencial de horas de emissão. Simultaneamente, a aposta na produção de telecinema favorecia a rentabilização dos recursos humanos e técnicos e permitia um aumento de produções próprias que engrossavam a carteira de vendas ou trocas internacionais em mercados televisivos especializados. A especificidade do pequeno ecrã tornava a concretização de telefilmes um processo produtivo bastante diferente de uma produção cinematográfica. Desde a tecnologia, ao tamanho da equipa e tempo de execução, todo o processo produtivo é 431 mais ágil e simplificado, tornando o formato rentável e prático para as exigências da televisão pública. O cinema, feito para televisão ou para as salas comerciais, realizado por profissionais ou amadores, em 35 ou 16mm, é sempre cinema e, como tal, exige sempre a mesma linguagem servida pela mesma técnica. (…) Claro que as limitações do ‘ecrãn’ de TV nos levam a alterar ou a elaborar especialmente a planificação dum filme que lhes é destinado, mas isso é circunstância de somenos importância na tarefa complexa que é a realização cinematográfica. (Plateia, 24-XII-1962: 13). “- No campo cinematográfico, a TV actua como divulgadora, pois não só consegue levar o filme até onde ele talvez nunca chegasse a ser exibido, como ainda permite que ao mesmo tempo, seja apreciado por um maior número de pessoas. (…) - Quais as diferenças fundamentais entre um filme realizado para a TV e outro para exploração comercial? - Obrigatoriamente, a técnica empregada não é igual. E vejamos porquê… Dados as reduzidas dimensões dum écran de TV, há que valorizar, na realização os “grandes planos“, sem prejudicar o valor do tema, pois as panorâmicas extensas tornam-se pouco perceptíveis No Cinema, o recurso duma projecção, ampliada enormemente, já poderá livrar o realizador dessa preocupação, levando-o a apresentar as imagens doutra maneira“. (Adriano Nazareth apud Rádio e Televisão, 26-III-1960: 7/18) Apesar da generalidade dos realizadores dos quadros da RTP garantirem que o telecinema produzido na televisão pública não seria deficitário em qualidade cinematográfica, não se pode ignorar que técnica e esteticamente o processo produtivo de cinema para televisão é substancialmente diferente. Por exemplo: o facto de o telecinema ser produzido exclusivamente em película de 16mm condiciona necessariamente aspectos técnicos como o enquadramento do plano e a mobilidade da câmara; o facto de o ecrã de exibição do filme ser um televisor em vez da tela de cinema obriga o realizador a optar por planos mais aproximados e a abdicar os grandes planos; o ritmo de trabalho mais apressado, e uma equipa de trabalho mais reduzida, não permitem aos filmes para televisão um número excessivo de takes para um mesmo plano. Em 1960, Luís de Pina, em editorial da Filme (XI-1960: 3), confiava que a experiência do telecinema poderia contribuir para a necessária e urgente renovação do cinema português: “Existe na Rádio Televisão Portuguesa um núcleo de realizadores capazes de darem boas provas se forem chamados pelo cinema nacional.“ Entre os realizadores de telecinema mais experientes da RTP merecem particular atenção Baptista Rosa, Artur Ramos, Adriano Nazareth, Fernando Frazão, Augusto 432 Cabrita e José Elyseu. São da autoria destes realizadores os primeiros telefilmes da televisão portuguesa, filmes que vão do documentário à ficção e que foram apresentados na televisão pública como um importante projecto de renovação do cinema português, com intenções que fizeram aumentar as expectativas. Os resultados irregulares e desequilibrados dos diversos filmes fomentaram diferentes apreciações críticas. Desses veteranos da televisão apenas Artur Ramos tentaria a realização de longas-metragens em 35mm e com estreia cinematográfica (Pássaros de Asas Cortadas, 1963) porque foi afastado da RTP por razões políticas. Ironicamente, os outros dois realizadores da televisão pública que filmaram em 35mm e estrearam longas-metragens em sala foram dois jovens sem experiência específica em telecinema: Fernando Lopes (Belarmino, 1964 e Uma Abelha na Chuva, 1971) e Alfredo Tropa (Pedro Só, 1972). Por estes anos, a maior eventual ameaça do telecinema em relação ao futuro do cinema português era outra bem mais prática: o aumento significativo da programação de produção própria da RTP tornou insuficientes as infra-estruturas que a televisão pública dispunha, condição que obrigou os seus responsáveis a ampliar, de forma célere, as instalações dos serviços de produção. A solução passou, em 1963, pelo arrendamento imediato de um dos estúdios da Tóbis Portuguesa. As condições de produção e de localização dos estúdios da Tóbis tornavam-nos apetecíveis para suprimir as recentes necessidades de produção da televisão pública, fazendo avançar as negociações tendo em vista a aquisição dos estúdios pela RTP. A intenção esbarrou então nas “pressões exercidas por homens e instituições ligados ao cinema português“, que previam que “tal transacção iria privar o cinema nacional do seu maior estúdio“ e “do seu mais amplo laboratório“, precisamente numa época que “urge desenvolver o cinema português“ (Teves, 2007: 30). No decorrer dos anos 60, o projecto Televisão Educativa (mais conhecido como “Telescola“), criado no âmbito dos trabalhos do Instituto dos Meios Audio-Visuais de Ensino, foi uma importante experiência de sensibilização que contou com a colaboração de diversos cineastas, como Manuel Costa e Silva, Luís de Pina, Faria de Almeida, António-Pedro Vasconcelos e Abel Escoto. Ainda que as actividades deste instituto se centrassem essencialmente na produção e divulgação de filmes técnicos, particularmente agrícolas e industriais, foi uma experiência marcante para os realizadores que nele colaboraram. Como lembra Luís de Pina (1986: 178), nas vésperas do 25 de Abril de 1974, “boa parte do cinema português, embora no formato de 16 milímetros, passa pelas câmaras de 433 cinema da Televisão“. Privilegiando maioritariamente o género documental, a produção de cinema da RTP também promoveu a formação de quadros técnicos muito experientes nas áreas de imagem e som. Gradualmente, a televisão e o “telecinema“ foram entrando no “território“ do cinema: “(...) Por outro lado, a produção patrocinada pela RTP vem invadir o domínio preferencial do cinema – o 35 milímetros – e ocupálo com rodagem rápida, em pequenos grupos, munidos de câmaras de 16 milímetros e muitos microfones, já que o depoimento, nestes dias do processo revolucionário em curso, se sobrepunha à invenção visual, à possível originalidade fílmica. O fundo, de facto, sobrepõe-se à forma.“ (Pina, 1986: 188) “Trata-se de uma produção muito diversificada, que vai desde o documentário segundo os módulos habituais de televisão (como a série Cantigamente ou o filme Adeus, até ao Meu Regresso, 1974, de António Pedro Vasconcelos) até à fita de ficção (como O Funeral do Patrão, 1975, de Eduardo Geada, e, mais tarde, Santo Antero, de Dórdio Guimarães, 1978, ou 'produções externas', com séries desde Contos Fantásticos, de Noémia Delgado, 1979, ou Histórias de Mulheres, 1984, de Lauro António, passando por Retalhos da Vida de Um Médico, de Artur Ramos, 1980).“ (Ibidem: 192) Anda assim, no pós-25 de Abril, as encomendas da RTP seriam determinantes para assegurar a sobrevivências de algumas cooperativas, como aconteceu com a Cinequanon e a Cinequipa entre 1975-77. Nesse período, a Cinequipa produziu para a RTP as séries intituladas Sem Coragem não se faz a História e Ver e Pensar e cerca de 20 filmes, onde se contavam, por exemplo, Contra as Multinacionais (Colectivo), Cavalgada Segundo São João, o Baptista (João Matos Silva) e Atadeira de Peniche (José Nascimento). Já a Cinequanon produziu cerca de 80 filmes, entre os quais: O problema do Aborto (Luís Filipe Costa), Liberdade para José Diogo (Luís Galvão Teles), Budapeste (José Fonseca e Costa) e Fátima Story (Antónuo de Macedo), entre muitos outros (Isto é espectáculo, 6, V-1977, 36-37). Nesse mesmo período, a RTP também produziu directamente, com os seus próprios meios, quatro filmes de longa-metragem de realizadores externos: Que farei eu com esta Espada? (1975, João César Monteiro), Direito à Greve (1975, Eduardo Geada), O Funeral do Patrão (1975, Eduardo Geada) e Adeus, até ao meu Regresso (1974, António-Pedro Vasconcelos). Através do Instituto de Tecnologia Educativa, a RTP também produziria mais quatro médias-metragens: O Piano (1974, Sinde Filipe), A Cama (1974, Sinde Filipe), O Leproso (1975, Sinde Filipe) e Bonecos de Estremoz (1976, Lauro António) (Ibidem). 434 A partir de 1979, com a criação do departamento de co-produções internacionais, a RTP seria determinante no apoio financeiro à produção de jovens cineastas e outros consagrados. O seu primeiro responsável foi Fernando Lopes que tornou a RTP num importante co-produtor de cinema português, associando-se a diversos projectos162 ou efectuando encomendas163. 3.7.2. Paulo Branco Com 21 anos, Paulo Branco sai de Portugal e ruma para Londres (1971-73), radicando-se pouco depois em Paris. Na capital francesa, começa por organizar, em Julho de 1974, uma mostra de cinema português e, nos cinco anos seguintes, consolida a sua posição e prestígio no meio cinematográfico como programador e exibidor em sucessivas salas parisienses — Olympic (1974), Artistique Voltaire (1976) e Action Repúblique (1976) —, antes de criar, em 1978, a sua própria distribuidora, a HorsChamp (Ramos, 1989: 61). Seria Paulo Branco o principal responsável pelo lançamento internacional de Amor de Perdição e Trás-os-Montes, precisamente no seu cinema Action République, de que era proprietário Frédéric Mitterand, e que seriam dois dos momentos mais mediáticos para o cinema português em toda a década de 70. Em Abril de 1978, depois de uma estreia discreta em Portugal dois anos antes, Paulo Branco promovia a estreia parisiense de 162 Serenidade (1982), de Rosa Coutinho Cabral; Conversa Acabada (1982), de João Botelho; Mon Cas (1986), de Manoel de Oliveira; Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil; Balada da Praia dos Cães (1987), de José Fonseca e Costa; O Desejado (1987), de Paulo Rocha; O Querido Lilás (1987), de Artur Semedo; Os emissários de Khalom (1988), de António de Macedo; Os Canibais (1988), de Manoel de Oliveira; Matar Saudades (1988), de Fernando Lopes; Agosto (1988), de Jorge Silva Melo; O Sangue (1989), de Pedro Costa; Recordações da Casa Amarela (1989), de João César Monteiro; Rosa de Areia (1989), de António Reis; O Processo do Rei (1990), de João Mário Grilo; Non ou a Vã Glória de Mandar (1990), de Manoel de Oliveira; Solo de Violino (1990), de Monique Rutler; A Maldição de Marialva (1991), de António de Macedo; A Idade Maior (1991), de Teresa Villaverde; A Divina Comédia (1991), de Manoel de Oliveira; Ao Fim da Noite (1991), de Joaquim Leitão; Os Olhos Azuis de Yonta (1992), de Flora Gomes; O Dia do Desespero (1992), de Manoel de Oliveira; Amor e Dedinhos de Pé (1992), de Luís Filipe Rocha; Vertigem (1992), de Leandro Ferreira; Chá Forte com Limão (1993), de António de Macedo; Encontros Imperfeitos (1993), de José Marecos Duarte; Zéfiro (1993), de José Álvaro Morais; A Tremonha de Cristal (1993), de António Campos; O Fio do Horizonte (1993), de Fernando Lopes; Longe Daqui (1993), de João Mário Grilo; A Caixa (1994), de Manoel de Oliveira. 163 A série de telefilmes Fados: Voltar (1988), de Joaquim Leitão; Longe (1988), de Cristina Hauser; Mar à Vista (1989), de José Nascimento; Flores Amargas (1989), de Margarida Gil; Meia-Noite (1989), de Victor Gonçalves; Jaz Morto e Arrefece (1989), de Luís Filipe Costa; O Regresso (1989), de Faria de Almeida; Pau Preto (1989), de Oliveira e Costa. A série para cinema Os Quatro Elementos: No Dia dos meus Anos (1992), de João Botelho; Das Tripas Coração – O Fogo (1992), de Joaquim Pinto; O Último Mergulho – A Água (1992), de João César Monteiro; O Fim do Mundo – A Terra (1993), de João Mário Grilo. 435 Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro, conseguindo mobilizar o meio cinéfilo e artístico parisiense e a atenção da comunicação social: Joris Ivens, Jean Rouch, Jacques Siclier e Serge Daney foram alguns dos presentes e a revista Cahiers du Cinéma e o diário Le Monde deram um destaque invulgar ao cinema português (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978: 3). Cerca de um ano depois, em Junho de 1979, e depois de ter sido humilhado na imprensa portuguesa, a versão de Manoel de Oliveira de Amor de Perdição estreia em Paris pela mão de Paulo Branco. à semelhança do filme de Reis e Cordeiro, a recepção crítica rende-lhe elogios: Serge Daney e Evelyne Bachelier na Cahiers du Cinéma, François Ramasse na Positif, Raphael Bassan na Écran e Jean-Claude Bonnet na Cinemátographe (Cruchinho, 2001: 16-18). Foi talvez por isso que Cunha Telles, na qualidade de dirigente do IPC (1979), percebe que “o cinema em Portugal não poderia andar para a frente sem a figura do produtor“ e convida Paulo Branco para se tornar produtor (Paulo Branco apud Mozos, 2014: 22). Branco volta para Portugal, traz consigo Claude Nedjar, um experiente e mítico produtor francês, e lança-se na produção. Nesse mesmo ano de 1979, em sociedade com António-Pedro Vasconcelos, funda a V.O. Filmes, que nos três primeiros anos de existência põe em marcha um plano de produção contínua: Oxalá (1981, António-Pedro Vasconcelos), O Território (1981, Raul Ruiz), Conversa Acabada (1981, João Botelho), Silvestre (1981, João César Monteiro), Francisca (1981, Manoel de Oliveira), Fim de Estação (1982, Jaime Silva), A Estrangeira (1982, João Mário Grilo) e O Estado das Coisas (1982, Wim Wenders). “O Festival de Cinema da Figueira da Foz de 1980, coincidente com a política optimista do Instituto Português de Cinema, que decidira apoiar, entre outras coisas, o dinamismo do jovem produtor Paulo Branco e da sua V. O. Filmes, com fortes contactos em Paris, revelou quatro filmes que, em diversa medida, iriam não só reconciliar o público, de há muito afastado, com o cinema português como também apontar verdadeiros caminhos de renovação cinematográfica, cada um a seu modo, tentando todos eles uma qualidade técnica que garantisse o prestígio da sua autoria.“ (Pina, 1986: 193) Em grande parte dependente dos dinheiros do IPC, a estratégia da V.O Filmes também passou pela aposta na co-produção: “Por influência de Paulo Branco e da sua V. O. Filmes, trabalhando com um entusiasmo e uma tenacidade que devem ser destacados, mas cuja atribulada vida financeira conduziria a processo judicial, são rodados entre nós O Território (1981), de Raul Ruiz (que voltaria para novas produções), Aspern (1982), de Eduardo de Gregorio, A Cidade Branca (1983), de Alain Tanner, O Estado das Coisas 436 (1983), de Wim Wenders, sem esquecer as co-produções com a França, já referidas, realizadas por Manoel de Oliveira.“ (Ibidem: 213) Para além desses nomes, Branco seria ainda produtor associado de um filme de Margueritte Duras (Aurelia Steiner (Vancouver), 1980) e a outro de Jean-Claude Biette (Loin de Manhattan, 1982), o que mostra bem as suas relações com o meio cinematográfico francês e europeu da época. Depois da falência da V.O. Filmes, Vasconcelos fundaria com o seu irmão José Luís Vasconcelos a Opus Filme e decidiria apostar por um cinema mais popular e comercial (O Lugar do Morto, 1984), mas Paulo Branco apostaria em definitivo no segmento do cinema de arte europeu. O facto de ser um dos produtores mais activos da década, e de estar envolvido em diversas co-produções ou produções executivas com financiamentos internacionais, sobretudo através da sua distribuidora Hors-Champ e das produtoras francesa Films du Passage (1983-1988) e portuguesa Filmargem (1986-1990). Mas o maior mérito de Paulo Branco seria a criação, consolidação e projecção internacional da marca “Manoel de Oliveira“. Depois de ser determinante na reabilitação de Amor de Perdição, o produtor decide avançar com o próximo projecto de Oliveira, mas opera uma aparentemente insignificante alteração na sua promoção que alteraria radicalmente o rumo da carreira do então cineasta de 72 anos: “A obra de Oliveira, uma obra com mais de meio século [este texto foi escrito em 1995], decidiu-se na passagem do u para o o. Esta pequena alteração semântica traduz, para além duma afirmação de vontade artística, um desejo de indústria, quase sempre afastado do cinema feito em Portugal. Para o melhor como para o pior, Oliveira é, ou pode ser considerado, o melhor e o único cineasta português. Capaz de atravessar as grandes transições estéticas, políticas e culturais deste século, ele prepara-se para entrar no próximo com a vontade de cinema de um grande clássico; Ou de um simples moderno.“ (Cruchinho, 1995: 62) No entanto, em 1982-83, um novo golpe diplomático de Paulo Branco viraria definitivamente as cartas na mesa. Garantindo importantes apoios estrangeiros (França e Itália), Branco produz os documentários Nice – A propos de Jean Vigo (1983) e Lisboa Cultural (1984), obras que reforçavam o prestígio internacional do realizador. Cultivado por Paulo Branco, desde 1979, a estratégia de promoção em torno da figura e da obra de Oliveira daria os seus frutos em 1983, quando o ministro da cultura francês Jack Lang aceitou a proposta de Branco/Oliveira para adaptar ao cinema o clássico Le Soulier de Satin, de Paul Claudel, numa mega-produção com quase sete horas de duração e um 437 orçamento total de 250 mil contos (quando o custo médio de uma produção era de 40 mil). Este mega-projecto de produção europeia reuniu financiamento francês, alemão, suíço e português (IPC e Ministério da Cultura) valeria ainda a Oliveira o Leão de Ouro recebido no Festival de Veneza em 1985 — pelo filme em particular e pela carreira de Oliveira em geral —, o que constituía até então o mais importante troféu internacional ganho por um cineasta português. No fundo, Paulo Branco não fizera mais do que seguir a sugestão do crítico João César Monteiro num célebre texto a propósito da recepção de O Passado e o Presente em Portugal: “Que dizer, agora, de um país que ignorou (e vai continuar a ignorar, senhores) com a maior das inocências, diga-se, um dos maiores cineastas da história do cinema? (…) O problema, de resto, é só este: o país tem (inexplicavelmente) um cineasta demasiado grande para o tamanho que tem. Portanto, das duas uma: ou alargam o território ou encurtam o cineasta. Como nos tempos que correm é difícil alargar um território, sugiro que se apequene o cineasta cortando-o às fatias e servindo-o frio ao público no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian“ (Diário de Lisboa, 10III-1972: 25). Num tom assumidamente sarcástico e corrosivo, João César Monteiro acabou por pôs o dedo na ferida. Até aí, perante as duas possibilidades, a estratégia das autoridades culturais e políticas portuguesas durante décadas terá sido a de “apequenar“ o cineasta, não lhe permitindo o avanço da sua carreira cinematográfica. Felizmente, alguns anos após a publicação deste texto, a estratégia de Paulo Branco – ao aperceber-se de que a carreira de Oliveira só podia desenvolver-se com apoios externos e com o público internacional – foi precisamente a sugerida por Monteiro: “alargar o território“, não o território físico, como é natural, mas o território cinematográfico de Oliveira. Graças ao produtor Paulo Branco, o cinema de Oliveira deixou de ser apenas português e passou a ser eminentemente internacional, desde o seu financiamento até ao seu reconhecimento. A ligação entre Oliveira e Branco, para além de libertar o realizador das preocupações com os aspectos da produção, garantia-lhe também o aumento dos meios de produção ao seu dispor e assegurava-lhe “as condições de autonomia da criação artística“, alimentando e projectando uma “imagem de qualidade“ que estaria “na base da lendo do renascimento de um cineasta sexagenário, nessa altura, de nome Manoel de Oliveira, com o“ (Cruchinho, 1995: 61). 438 E o reconhecimento em Veneza, um dos três mais importantes festivais de cinema do mundo, era o culminar de uma estratégia de internacionalização da figura e da obra de Oliveira promovida por Paulo Branco e para o próprio produtor, que teria sete filmes em exibição nessa edição do festival. A sua estratégia de internacionalização seria um exemplo para outras campanhas semelhantes nos anos seguintes, de outros produtores e do próprio Paulo Branco: “(...) A via das co-produções alargou-se e, depois do caso de Le Soulier de Satin, outros filmes beneficiariam de avultados investimentos europeus (...). Nalguns casos (...), o dinheiro de 'fora' foi muito mais do que o dinheiro de 'dentro', o que dá certa razão a um argumento normalmente oposto a quantos continuam a falar de 'filmes feitos com os dinheiros do contribuinte'. Não só não é 'dinheiro do contribuinte' (era dinheiro da distribuição e, depois, dos lucros televisivos com a publicidade), como frequentemente entrou mais dinheiro no Pais do que saiu dele, pois que todas essas obra (à excepção de Mon Cas) foram rodadas em Portugal, exclusiva ou basicamente. (Costa, 1998: 71-72) A estratégia estava definida em duas direcções: por um lado, o cinema português afirmava-se internacionalmente como o “pólo português“, “uma das últimas 'escolas' de cinema do mundo“ (Grilo, 2006: 27) e garantido estreias e prémios nos principais e mais reconhecidos festivais de cinema internacional; por outro lado, Portugal começava a atrair investimento estrangeiro através da co-produção ou produções executivas de projectos de cineastas de renome internacional, investimentos que também trouxeram muita experiência a técnicos e actores portugueses. 439 4. Algumas reflexões finais Esta reflexão final procura sintetizar de forma clara quais foram as grandes transformações que ocorreram no cinema português entre 1949 e 1980 e responder com clareza a uma questão central: o que foi o Novo cinema português? A resposta, como se viu, será sempre múltipla e muitas vezes contraditória, mas foi objetivo do meu trabalho olhar de novo para este período do cinema feito em Portugal. 4.1. O que foi o Novo cinema português? Ao longo do presente trabalho procurei definir o Novo cinema português como uma espécie de zeitgeist que atravessou três décadas da história do cinema português, período durante o qual conheceu várias propostas formais e informais de renovação estética e técnica com protagonistas, objectivos e métodos muito diferentes e variados. Nesse período, é possível identificar propostas de renovação para o cinema português com corpus fílmicos, textuais e autorais distintos que coexistiram no espaço e no tempo. Mais do que um cânone fechado, que exclui filmes, textos e pessoas, como foi sendo gradualmente definido por uma crítica dominante ao abrigo da expressão “cinema novo“, entendo que o Novo cinema português é um momento marcado pela heterogeneidade de propostas, com critérios inclusivos e não-discricionários, que se distingue mais pelos modos de produção do que propriamente pelos filmes ou por discursos estéticos. Ao contrário das leituras que a produção historiográfica sobre o cinema português estabeleceu nas décadas de 70 e 80, e que nas últimas duas décadas tem sido alvo de difícil mas sustentada revisão, o período de renovação dos anos 60 (o designado “cinema novo“) não pode ser entendido isoladamente, como algo estranho ao que existia até então no meio cinematográfico e cinéfilo ou algo que surge de geração espontânea. Filmes como Os Verdes Anos, Belarmino, Mudar de Vida ou Uma abelha na chuva, só para citar alguns dos exemplos mais canónicos, não foram possíveis apenas por influência das novas vagas europeias, mas fruto de um processo de renovação das estruturas cinematográficas e da cultura fílmica que se iniciaram nos anos 50, logo após a falência do projecto cultural de António Ferro. Do mesmo modo, rejeito as interpretações ainda dominantes que sustentam as rupturas abruptas e as delimitações rígidas e inflexíveis, que por exemplo excluem filmes como Dom Roberto, Pássaros de Asas Cortadas, Domingo à Tarde e O Trigo e o Joio 440 ou os seus respectivos realizadores (Ernesto de Sousa, Artur Ramos, António de Macedo e Manuel Guimarães) de um corpus canonizado por um grupo de críticos com critérios pouco objectivos, e que conduzem a uma leitura simplista e fragmentada desse período do cinema português, prejudicando gravemente a compreensão de várias transformações estruturais que se foram processando entre 1949 e 1980. Essas mesmas interpretações também retiram desse corpus autoral outras figuras contemporâneas, como António de Macedo ou Faria de Almeida, por terem concepções estéticas distintas das dominantes, independentemente do contributo que deram para uma renovação efectiva do cinema português nesse período. A ampliação considerável do corpus convencional de análise e reflexão sobre o Novo cinema português, que na produção historiográfica mais convencional permanece muito amarrada aos filmes de longa-metragem, é fundamental para a compreensão deste período em toda a sua complexidade. Por isso, decidi estender a minha análise e reflexão a um corpus fílmico mais abrangente (incluindo, por exemplo, a produção de curtas-metragens, de filmes turísticos e industriais e de cinema de amadores), a um corpus textual pouco valorizado (que passou por uma pesquisa por arquivos e espólios privados e por publicações consideradas menores) e a uma série de indicadores e dados sócio-económicos dispersos sobre produção, circulação e recepção de cinema frequentemente ignorados no estudo do período. O alargamento das fontes e documentos que operei na minha investigação permitiu-me adicionar elementos até agora negligenciados e desvalorizados na interpretação dos contextos e dos processos que ocorreram no cinema português, remetendo para a materialidade destes contextos e processos cinematográficos, e não apenas para aspectos estéticos e estilísticos. E são esses novos dados e elementos que permitem compreender como se operaram e processaram as mudanças de paradigma e as transformações estruturais no cinema português. Em suma, que influenciaram e determinaram a forma de ver, fazer e entender o cinema em Portugal. As balizas cronológicas que defendo para este período de renovação de três décadas são datas simbólicas que assinalam, respectivamente, o fim e o início de políticas públicas para o cinema português. São datas que marcaram as suas épocas. A falência do projecto cultural de António Ferro — um cinema nacional para um público luso-falante — criou um “vazio“ político e cultural que, apesar de várias medidas importantes e determinantes para o cinema português, não definia claramente o que se pretendia para o cinema português. Esse “vazio“ só seria preenchido, simbolicamente, 441 com a autonomização da Cinemateca Portuguesa que, a partir da década de 80, em conjunto com outras entidades (IPC/ICA, Escola Superior de Cinema, RTP), consolidariam uma ideia de cinema português que se estabeleceu e se consagrou internacionalmente: um cinema de arte164 para uma comunidade crítica e cinéfila internacional. Ou seja, entre 1949 e 1980, apesar de várias medidas importantes — atribuição de bolsas de estudo, de subsídios à produção e circulação, alterações legislativas (como a criação do IPC), criação da Escola Superior de Cinema, entre outras —, o poder político não soube, ou não quis, definir ou assumir uma política cultural coerente e sustentada para o cinema português, parecendo conduzir a sua intervenção mais por reacção do que propriamente por acção. Nesse período, na prática, o Estado parece ter abdicado efectivamente da hegemonia que havia sido construída nas décadas anteriores por António Ferro e pela sua Política do Espírito no meio cinematográfico português. Ainda que mantendo uma vigilância, o Estado permitiu o surgimento e fortalecimento de várias tentativas de renovação do cinema português que pretendiam agir fora de um qualquer projecto público hegemonizante, unitário e da esfera de influência do Estado, ainda que aceitasse o seu eventual financiamento. A partir dos anos 50, este “vazio“ terá permitido que várias “contra-narrativas“ que se opunham abertamente à narrativa oficial do Estado Novo fossem ganhando espaço e mediatismo, contribuindo para o debate acerca da intervenção do Estado no sector cinematográfico, tanto a nível legislativo como institucional. E são essas “contranarrativas“, com ideias de cinema e projectos de intervenção distintos (ainda que muitos fossem transversais), com dimensões, intensidades ou durações variáveis mas que foram consolidando uma ideia de oposição cultural e artística que seria crucial para uma nova narrativa dominante que se constituiria na ressaca da Revolução dos Cravos, já pela década 80 adentro. Apesar de uma matriz de resistência e oposição cultural, mais visível em determinados momentos, como nos anos 50 e 70, o Novo cinema português não pode ser 164 O uso da categoria “cinema de arte“ inspira-se na expressão “art cinema“ tal como usada por András Kovács (2007: 21-22): “(...) When we speak of 'art films' as opposed to 'commercial entertainment films,“ we are referring not to aesthetic qualities but to certain genres, styles, narrative procedures, distribution networks, production companies, film festivals, film journals, critics, groups of audiences—in short, an institutionalized film practice. Their respective products are no better or worse than those of others and are not 'artistic' or 'entertaining' by nature. That is why the label 'art film' is often a source of confusion when it is opposed to the commercial industry. Art films are 'artistic' by ambition but not necessarily by quality, just as commercial entertainment films can very often be commercial failures and not entertaining at all.“ 442 considerado um fenómeno político e ideológico, muito menos se comparado aos casos brasileiro ou francês. A perseguição e repressão ao meio cinematográfico português desse período, movido pelo SNI ou pela PIDE, incidia mais sobre as actividades políticas de realizadores, dirigentes cineclubistas ou cinéfilos do que propriamente sobre os filmes, salvo raras excepções como Vidas sem Rumo, Catembe, Nojo aos Cães ou O MalAmado. Naturalmente, o Novo cinema português também foi tão assumidamente político quanto o regime ditatorial o permitiu, como sucederia por exemplo durante a efémera primavera marcelista. Aceito a tese de João Bénard da Costa (1991: 126) de que o Novo cinema português recusara o “velho cinema“ por “motivações políticas claras“, mas que seria incapaz de construir uma narrativa política alternativa, apesar de esteticamente inovadora. Também concordo com Paulo Filipe Monteiro (2000: 338) quando afirma que o Novo cinema português “não era de molde a despertar fervores ideológicos e a esquerda tradicional desconfiou tanto delas como a direita“. 4.1.1. Internacionalização A alteração mais visível e radical no cinema português ao longo das décadas de 1950-70 foi o gradual processo de internacionalização que revolucionou um paradigma estético que vigorou durante as décadas de 1930-40, contrariando um projecto de construção de um estilo cinematográfico nacionalista, e que sobrevive até à actualidade. Feito de forma gradual, o processo de internacionalização acabou por afectar todo o meio cinematográfico português. A internacionalização mais visível terá sido a das dezenas de cinéfilos aspirantes a realizador e a outros cargos técnicos que desde final da década de 50 rumaram a vários países europeus para receber formação académica e técnico ou para realizar estágios profissionais. Mas não se pode deixar de incluir neste movimento de internacionalização os nomes de Artur Ramos e Ernesto de Sousa, que rumaram a Paris quase com uma década de antecedência em relação a Paulo Rocha e António da Cunha Telles. Para além dessa formação, a permanência em sociedades sem censura cinematográfica permitiu a esses formandos contactar com filmes, clássicos e contemporâneos, que não chegavam a ser autorizados em Portugal ou que aqui eram retalhados pela acção da censura. Mas a formação cinéfila incluiu também as leituras de 443 publicações de referência (Bazin, Aristarco, Sadoul) que chegavam da Europa e que acompanhavam os debates que iam revolucionando o meio cinematográfico internacional e iam mobilizando também os cinéfilos portugueses. Em Portugal seguiu-se também um processo de gradual internacionalização dos modos de produção. Primeiro na circulação. Ainda que fosse maioritariamente em certames especializados (turístico, religioso, amador, entre outros), a participação de filmes portugueses em circuitos internacionais de exibição de filmes foi importante para romper com as limitações do mercado interno e para ajudar os filmes portugueses a definir estratégias visando essa internacionalização. Já na década de 70, para além de intensificar a presença nos festivais de mais prestígio e reconhecimento, a estratégia de várias entidades públicas e privadas portuguesas passou por promover a organização de mostras, retrospectivas e eventos de divulgação que beneficiavam de maior visibilidade internacional. Na produção, os primeiros projectos de co-produção tentados neste período de renovação, talvez ainda na ressaca no projecto lusófono de Ferro e que vinham ainda da década anterior, dividiam-se entre o Brasil e Espanha. As parcerias com produtores europeus intensificam-se a partir da década de 60 e, em pouco tempo, tornar-se-iam vitais para sustentabilidade do sector, quer ao nível das produções executivas como da própria co-produção. Por outro lado, a produção de cinema português também conheceu uma mudança significativa por causa da necessidade de continuar a integrar esse circuito internacional, por razões económicas e estéticas. Ironicamente, se a aproximação da produção aos “padrões europeus“, que por esses anos eram irreconciliáveis com o mais popular “padrão norte-americano“, contribuiu para o reconhecimento crítico internacional, em contrapartida, acelerou o progressivo afastamento do cinema português do público do seu próprio país. Em última análise, a própria internacionalização do mercado de distribuição interno, onde Cunha Telles e Paulo Branco teriam uma importância determinante desde a década de 70, contribuiu para romper a hegemonia do “padrão norte-americano“ e trazer para Portugal o cinema de arte e de autor internacional que por cá praticamente não estreava. Em suma, não se pode desligar o cinema português do circuito internacional de cinema, um circuito que é próprio da condição transnacional da indústria cinematográfica, cuja vitalidade se mostrou na Europa no período do pósGuerra. 444 4.1.2. Estatização No pós-25 de Abril, através dum grupo de pessoas que, como Paulo Filipe Monteiro (2000: 306) sublinha, soube “controlar todos ou quase todos os lugares da instituição ‘cinema’”, o Estado reocupou, indirectamente, a sua capacidade de definir o objecto cinema português. Sublinho o advérbio ‘indirectamente’ porque, ao contrário do centralismo de António Ferro, no período democrático o poder político e cultural disseminou-se por várias entidades, sendo a intervenção do Estado exercida de forma mais indirecta e envolvendo diversos interlocutores. A esse propósito, Paulo Filipe Monteiro (Ibidem) destaca a importância do controlo dos poderes de “produzir“, “ensinar“ e “criticar“ na institucionalização de uma forma de fazer cinema em Portugal, ao que eu acrescentaria o poder de “fazer circular” (como assinalei em vários dos capítulos anteriores). Articulados, por controlo directo ou por influência indirecta, estes quatro poderes contribuíram para definir uma ideia de cinema português que informalmente se foi constituindo como uma efectiva política cultural do Estado português. Pela primeira vez na história do cinema português, uma geração de cineastas conseguiu controlar ou exercer influência desses lugares, usando-os para operar uma mudança estrutural na forma de produzir, ensinar e reconhecer o cinema português. Ao ocupar os principais lugares da instituição “cinema” em Portugal, a geração dos anos 60 garantiu uma influência inédita na história do cinema português. Se as gerações de António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Brum do Canto, Arthur Duarte, primeiro, e de Constantino Esteves, Perdigão Queiroga, Augusto Fraga e Henrique Campos, num segundo momento, conseguiram “mandar”, ainda que transitoriamente, em parte da instituição “cinema”, a geração de Fernando Lopes, Seixas Santos, Paulo Rocha ou Cunha Telles conseguiu “mandar” no cinema português de forma mais abrangente e permanente, exercendo uma influência visível na definição da política cinematográfica do Estado português desde a década de 70. A primeira escola de cinema foi criada em 1972, resultado da reforma do Conservatório Nacional, e Alberto Seixas Santos pensou-a à semelhança da London School of Film Technique, que conhecera como estudante, e do Institute des Hautes Études Cinematigrafiques, frequentado por muitos dos seus colegas cineastas. Durante as décadas em que foi a única escola de cinema em Portugal, a Escola Superior de Cinema foi uma instituição fundamental para consagrar e promover uma ideia de cinema 445 que marcou gerações de cineastas e técnicos cinematográficos. Ao longo de décadas, os mais internacionalmente premiados e reconhecidos realizadores do cinema português passaram pela Escola Superior de Cinema — João Botelho, Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Miguel Gomes ou João Salaviza —, tendo recebido uma formação técnica e estética que reflete muito dos valores do Novo cinema português, nomeadamente a intransigência estética, o acentuado carácter autoral e uma filiação nos princípios do cinema de arte moderno. Nos anos 60, a crítica de cinema em Portugal conheceu uma transformação significativa, abandonando o registo jornalístico e adoptando uma argumentação e retórica moderna e eminentemente cinematográfica. Se antes de se dedicarem à realização, estes jovens cinéfilos já dominavam a crítica de cinema, escrevendo na imprensa diária (Diário de Lisboa), em publicações de teor cultural (Gazeta Musical, O Tempo e o Modo, Seara Nova) e na especializada (Plano, Cinéfilo), rapidamente perceberam que, na impossibilidade de conquistar o público nacional, a sua sobrevivência passaria por se afirmarem junto da crítica nacional e internacional. No pós-25 de Abril de 1974, a crítica de cinema perdeu a influência que tivera nas décadas de 50 e 60 e, gradualmente, o poder de “criticar”, no sentido de validar esteticamente ou certificar criticamente a produção cinematográfica, foi-se transferindo para a Cinemateca Portuguesa que, dotada de autonomia financeira e administrativa depois de 1980, deixou de ser um depósito de filmes e um mero organizador de irregulares ciclos de cinema, passando a organizar importantes retrospectivas de cinema português, a coordenar catálogos dedicados a realizadores e atores, a estimular o estudo dos principais momentos históricos e movimentos estéticos e a história da própria instituição, transformando-se no principal núcleo de produção editorial sobre cinema português. João Bénard da Costa, subdiretor entre 1980-91 e diretor entre 1991-2009, tornou-se o autêntico “Senhor Cinemateca” e elemento decisivo na construção da identidade dessa instituição. Ao longo dessas décadas, as linhas de orientação da programação e da atividade editorial da Cinemateca refletiram as fortes ideias matrizes que marcam a personalidade do seu diretor. Do mesmo modo, a valorização pessoal de um certo cinema de autor feita por Bénard da Costa, veiculada desde meados dos anos 60, principalmente nas páginas d’O Tempo e o Modo, tornou-se gradualmente, nas suas linhas gerais, na visão oficial da instituição sobre o cinema português dos últimos quarenta anos. 446 A par da Cinemateca, num segmento mais popular e alargado, a RTP também desempenhou um papel fundamental na divulgação, por acção ou omissão, através das suas grelhas de programação. Por outro lado, o Departamento de co-produções internacionais foi determinante no apoio financeiro à produção de jovens cineastas e outros consagrados entre 1979-93, tornando a RTP num importante co-produtor de cinema português, associando-se a diversos projetos ou efetuando diversas encomendas. Ao longo das últimas quatro décadas, o IPC tornou-se no principal produtor de cinema em Portugal, decidindo, através dos seus concursos, “quem poderia” e o “que poderia” filmar. Pensado para recuperar a influência estatal na produção perdida desde a criação do CPC, o IPC tem garantido desde a sua criação o “controlo político” do apoio público ao cinema, visto que lhe cabe a nomeação dos júris e a criação de mecanismos alternativos de apoio direto (apoio complementar, FICA, etc.). Nos anos 80, quando foi necessário optar, no seio do IPC, por uma política cinematográfica que privilegiaria os “filmes para Bragança” ou os “filmes para Paris”, o Estado português optou definitivamente por um cinema de “vitalidade cultural” que trazia a Portugal a tão valorizada “projeção internacional“, ou seja, pelo caminho da internacionalização que tinha sido iniciado em meados dos anos 60. Ainda recentemente, Cunha Telles (apud Mozos, 2014: 61) reconhecia que “os apoios do IPC deviam ter permitido que o cinema português se enraizasse mais no país e, muitas vezes, aconteceu exatamente o contrário”. É o IPC, e não os cineastas, argumentistas e/ou produtores, que Cunha Telles responsabiliza pelo caminho que o cinema português tomou, naturalmente enquanto representante mais visível da intervenção do Estado. Hoje, através de várias entidades, o Estado criou ou reforçou mecanismos que lhe permitem controlar a instituição “cinema” em Portugal. Ainda que seja de forma indirecta, indicando directores-gerais e/ou equipas directivas, a dependência do cinema português do poder político é efectiva e esse modelo de intervenção é o resultado de posicionamentos e estratégias que remontam ao início dos anos 70 e à elaboração e discussão de Lei 7/71 e que se intensificaram durante o PREC. Parte importante, senão mesmo quase toda, da produção portuguesa da última década foi financiada pelo Instituto de Cinema e Audiovisual. É preciso reconhecer e sublinhar que foi a geração dos anos 60 que criou as condições que ainda hoje existem para a produção de cinema em Portugal. Foi um núcleo duro dessa geração que controlou a “instituição cinema” na sua integridade e 447 optou deliberada e estrategicamente por “estatizar” o cinema português, colocando-o sob protecção do Estado para que fosse reconhecido como um “bem cultural e artístico” e assim afastá-lo definitivamente das leis do mercado e de eventuais pretensões comerciais.165 4.1.3. Canonização A generalidade das interpretações da história e estética do cinema português tem tentado construir, ao longo das décadas, uma visão unitária, consanguínea, hereditária e romântica do próprio objeto cinema português. Em última análise, esta visão pretende apenas considerar um conjunto de obras que encaixam na ideia de cinema português — ideia esta que se tem instituído e que, fatalmente, ignora ou deprecia um corpus fílmico significativo também rodado em Portugal, concretizado por técnicos portugueses e falados em língua portuguesa. Conceitos estabelecidos, e institucionalizados, como “cinema novo“ e “escola portuguesa“, dão uma visão muito redutora e uniformizada do cinema português — que interessa hoje reavaliar e reconfigurar, à luz de novas investigações desenvolvidas de forma consistente nos últimos anos. No entanto, é evidente e inegável que, tal como acontece noutras cinematografias, existem realizadores no cinema português que influenciam ou inspiram colegas etariamente mais jovens da mesma nacionalidade. Aconteceu isso entre os realizadores que, nos anos 30 e 40, fizeram as adaptações histórico-literárias, as comédias à portuguesa e o cinema de propaganda do Estado Novo e a “geração dos assistentes“ que lhes sucederam ao longo dos anos 50 e 60. O mesmo não aconteceu entre essa “geração dos assistentes” e a que lhe sucedeu, a geração do Novo cinema português. Foi esta a única, em toda a história do cinema português, que conseguiu estender a sua influência a mais que uma das gerações posteriores. 165 "Artigo 3.º Princípios e objetivos 1 — No âmbito das matérias reguladas pela presente lei, o Estado deve orientar-se pelos seguintes princípios: a) Apoio à criação, produção, distribuição, exibição, difusão e promoção de obras cinematográficas e audiovisuais enquanto instrumentos de expressão da diversidade cultural, afirmação da identidade nacional, promoção da língua e valorização da imagem de Portugal no mundo, em especial no que respeita ao aprofundamento das relações com os países de língua oficial portuguesa; b) Proteção e promoção da arte cinematográfica e, em particular, dos novos talentos e das primeiras obras;" (Lei 55/2012, de 6 de Setembro. Estabelece os princípios de ação do Estado no quadro do fomento, desenvolvimento e proteção da arte do cinema e das atividades cinematográficas e audiovisuais). 448 Não foi, portanto, por mero acaso que, em Fevereiro de 2012, Miguel Gomes e João Salaviza, nos seus discursos de aceitação dos importantes prémios conquistados na Berlinale, tivessem reconhecido e agradecido a importância do contributo de autores como Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa, Fernando Lopes ou Paulo Rocha porque, “nos últimos 50 anos, eles conseguiram fazer um cinema independente do poder político e do poder económico” (Miguel Gomes apud Expresso, 18-II-2012). Do mesmo modo, as diversas declarações de vários jovens cineastas portugueses por ocasião dos recentes falecimentos de Fernando Lopes e Paulo Rocha (2012) reforçam essa ideia de continuidade e de filiação entre autores na história do cinema português. Talvez resida aqui uma “diferença” portuguesa. Muito provavelmente é esta hegemonia a principal razão por Portugal ter uma das cinematografias nacionais mais internacionalmente reconhecidas pela crítica e pela comunidade cinéfila. O facto de gerações sucessivas terem visto com regularidade cinema na RTP2, terem frequentado as sessões da Cinemateca, terem aprendido cinema na mesma escola ou terem vencido os mesmos concursos de apoio à produção, terá certamente contribuído para promover uma natural e gradual canonização na forma de ver, pensar e fazer cinema. Se “o hábito faz o monge”, como diz a cultura popular, o cinema português conheceu hábitos que, desde os anos 60, ajudaram ao estabelecimento de genealogias, filiações e afinidades entre autores e obras como em poucas cinematografias se podem encontrar. É óbvio que existem muitas excepções a esta regra, mas não pode ser ignorado que os cineastas portugueses que maior reconhecimento crítico internacional alcançam são, precisamente, aqueles que se incluem nas genealogias, filiações e afinidades que remetem ao Novo cinema português. Numa apresentação oral nunca publicada, intitulada “Ne change rien: do novo cinema português ao cinema português contemporâneo“, Paulo Jorge Granja discute a “permanência“ de muitas das suas “características estéticas“ dos anos 60 no cinema português contemporâneo, relacionando essa permanência “com os modos de financiamento, a crítica e cultura cinematográfica internacional e os circuitos de promoção e exibição, nomeadamente os festivais internacionais de cinema.” José Manuel Costa (apud Mozos, 2014: 8) lembra que foi a geração “forte e culta” de cinéfilos dos anos 60, “bem sintonizada com as transformações do cinema europeu e mundial”, que “acabou por determinar os traços mais identitários do cinema português quando, e na medida em que, este 'ganhou uma identidade'”. Ao instituir-se na história do cinema português das últimas décadas, essa “identidade” tem beneficiado e 449 promovido o estabelecimento de genealogias, filiações e afinidades desde a década de 60 até à actualidade, que assenta em complexos processos de reconhecimento de um património estético e ético comum. Quando em 1999, durante uma retrospectiva sobre o cinema português realizada em Turim (Amori di perdizione, Stori di cinema portoghese 1970-1999), Raquel Freire acusou o cinema português de se ter canonizado em torno de uma ideia de cinema homogénea e não permitir que se sigam “caminhos diferentes”. Fernando Lopes reagiu de forma exaltada e emotiva: “Não sabes de onde partiste, mas tens ansiedade em chegar.... Não aceito que me cuspam na sopa (...). Nós fizemos a nossa luta, agora vocês façam a vossa” (Diário de Notícias, 27-XI-1999: 48). Ambos tinham razão: Freire porque existem muitos caminhos no cinema português e Lopes porque foi por esse caminho (uma ideia de cinema português) que ele e outros seus contemporâneos lutaram. Se essa ideia ficou datada ou ultrapassada, caberia às gerações seguintes lutar por uma outra ideia de cinema. Por um lado, enquanto cinematografia de um país de pequena dimensão numérica, o cinema português precisa de uma grande narrativa que sustente e consolide a sua afirmação e, sobretudo, o seu reconhecimento. Essa grande narrativa precisa de ser canonizada para ser hegemónica, para se impor enquanto paradigma estético dominante (“cinema novo”, “escola portuguesa”), e necessita de produzir e alimentar uma marca identitária forte que possa gerir da melhor forma as dinâmicas ou “movimentos cíclicos de afirmação ou de apagamento de certas cinematografias nacionais” (Lemière, 2001: 734). Por outro lado, como Michel Foucault (1979: 180) sublinha, a lei é uma verdade “construída” de acordo com as necessidades do poder, e que este precisa de produzir discursos de verdade e de uma delimitação formal para estabelecer relações múltiplas de poder para que não se desmorone, assim como da produção, acumulação, circulação e funcionamento de um discurso sólido e convincente. É precisamente isso o que tem acontecido no cinema português das últimas quatro décadas: a produção de um discurso e uma prática convincente, formal e rigorosamente delimitado, que tem estabelecido relações de poder (político, económico e estético) que o canoniza e vai assegurando a sua hegemonia. 450 4.2. Oxalá Há muitos anos atrás, quando me iniciei no estudo do cinema português, numa das suas aulas, Fausto Cruchinho sublinhou a importância dos “cineastas sem filmes”, ou seja, as pessoas que sem terem realizado um único filme foram muito mais importantes para a história do cinema do que muitos realizadores que fizeram dezenas ou centenas de filmes. O exemplo prático que deu na altura foi o de António Ferro, um homem com uma ideia definida de cinema que procurou pôr em prática e que criou condições para influenciar uma geração de cineastas e várias gerações de espectadores. Fui-me apercebendo, ao longo dos anos, da existência de muitos mais “cineastas sem filmes” no cinema português, agentes (actores ou figurantes) que foram influenciando a forma de se ver, entender e fazer cinema em Portugal. Penso ter ficado claro ao longo deste trabalho de investigação a urgente necessidade de refazer a história do cinema português neste período, procurando olhar o objecto atendendo a diversos factores contextuais até aqui pouco ou nada considerados. Interessa voltar às fontes, reconstruir o corpus documental e fílmico, rever e reler depoimentos e testemunhos, questionar criticamente a produção historiográfica e proto-historiográfica produzida sobre este período e fazer um trabalho de base arqueológico, evitando releituras anacrónicas ou comprometidas do passado. Foi esse o esforço que fiz ao longo de sete anos de investigação, onde recorri às fontes disponíveis, onde procurei “inventar” novas fontes que introduzem outros dados e outras variáveis, onde reli criticamente o conhecimento produzido e onde e procurei debater essas questões nos inúmeros congressos, simpósios e seminários onde pude apresentar resultados parcelares, provisórios ou em progresso. Apesar de fechado este projecto de doutoramento, este contributo para o estudo do cinema português continua a ser parcelar, provisória e em progresso. Não se trata, nem nunca o pretendeu ser, de um trabalho definitivo. Sempre tive a consciência de que esta foi e será uma investigação em aberto. Oxalá fique aqui um documento útil para ajudar outros investigadores, que se interessem pelas questões aqui abordadas, e que estes possam questionar e olhar criticamente para esse objecto tão complexo que é o cinema português. 451 Anexos 452 A. Legislação de Cinema em Portugal até 1980. Lei 1748, de 16 de Fevereiro de 1925 Proíbe a exibição de filmes contra a moral; obriga a dar dois espectáculos mensais gratuitos Decreto 10573, de 26 de Fevereiro de 1925 Sobre a construção de edifícios destinados a espectáculos públicos Decreto 11091, de 28 de Setembro de 1925 Sobre a construção de edifícios destinados a espectáculos públicos Decreto 11459, de 20 de Fevereiro de 1926 Regulamenta a lei sobre filmes contrários à moral Decreto 11462, de 22 de Fevereiro de 1926 Montagem de instalações eléctricas em salas de espectáculo Decreto 13546, de 6 de Maio de 1927 Disposições sobre espectáculos (Regulamento de Teatros e de outras salas de espectáculos) Decreto 14096, de 13 de Agosto de 1927 Licenciamento sanitário das casas de espectáculos Decreto-Lei 14396, de 10 de Outubro de 1927 Imposto único Portaria 5049, de 8 de Outubro de 1927 Licenciamento sanitário das casas de espectáculos Decreto 15013, de 10 de Fevereiro de 1928 Estabelece as condições de despacho do material cénico e de trabalho artístico que trouxerem as companhias e artistas que vierem exercer o seu mister no continente e ilhas Portaria 6065, de 11 de Abril de 1929 Licenciamento sanitário das casas de espectáculos Decreto 17046, de 29 de Junho de 1929 Criação da Inspecção-Geral de Espectáculos Portaria 6052, de 29 de Novembro de 1929 Determina que as Câmaras Municipais não aprovem qualquer projecto de construção de casas de espectáculos sem que os requerentes apresentem certidão da IGE Decreto 18415, de 3 de Junho de 1930 Proíbe, até 31 de Dezembro de 1933, que as empresas comerciais ou industriais que exerçam actividade no continente, admitam ao serviço empregados que não sejam portugueses. 453 II Série, de 17 de Junho de 1930 Aviso de patente de introdução de filmes sonoros e falados Decreto 19735, de 12 de Maio de 1931 Permite o emprego de energia eléctrica de alta tensão nas casas de espectáculos Decreto 20859, de 4 de Fevereiro de 1932 Cria a Comissão de Cinema Educativo. Nova publicação em 6 de Junho de 1932 Decreto 21705, de 6 de Outubro de 1932 Regulamenta a execução do artigo 31.º do Decreto 20859 que cria no Ministério a Comissão do Cinema Educativo com o fim de promover e fomentar nas escolas portuguesas o uso do cinema como meio de ensino Decreto 21496, de 6 de Dezembro de 1932 Determina que, para efeitos de classificação dos concorrentes à realização das películas didácticas e culturais a que se refere o art. 6.º do Decreto 20859, sejam as planificações substituídas pela elaboração dos argumentos que em face dos respectivos termos dos concursos abertos, os seus candidatos devem organizar. Portaria 7480, de 9 de Dezembro de 1932 Determina que para a admissão de artistas ou empregados nas casas de espectáculos se observem as disposições do Decreto 18415 e demais legislação sobre o desemprego Decreto 22047, de 29 de Dezembro de 1932 Instalações eléctricas Decreto-Lei 22966, de 14 de Agosto de 1933 Isenta a Tobis de pagamento de contribuições Decreto-Lei 23054, de 25 de Setembro de 1933 Cria o Secretariado de Propaganda Nacional Portaria 7694, de 13 de Outubro de 1933 Electricistas e operadores de cinema Decreto-Lei 23606, de 27 de Fevereiro de 1934 Adita o art. 97.º das instruções preliminares das pautas (importação temporária) como o n.º 8, referente a material de filmagem e fitas virgens Decreto 23840, de 12 de Maio de 1934 Elimina a Tabela II anexa ao regulamento das indústrias insalubres, incómodas, perigosas ou tóxicas a rubrica “fitas cinematográficas” (depósito de) e inclui na Tabela I anexa ao referido regulamento várias rubricas semelhantes à eliminada Decreto 25259, de 17 de Abril de 1935 Isenção de Direitos de importação para a indústria produtora de filmes Decreto 25743, de 14 de Agosto de 1935 454 Regulamenta as indústrias relativas a filmes Decreto 26869, de 8 de Agosto de 1935 Regulamento da segurança das instalações eléctricas de casas e recintos de espectáculos Rectificado em 16 de Agosto de 1936 Decreto-Lei 26922, de 24 de Agosto de 1936 Simplifica o processo de licenciamento das instalações eléctricas em casas e recintos de espectáculos Decreto-Lei 27033, de 25 de Setembro de 1936 Introduz um novo artigo na pauta de importação relativa a fitas cinematográficas. Altera a redacção de vários artigos de pauta de importação relativa a fitas cinematográficas Portaria 8642, de 2 de Março de 1937 Regulamenta o disposto no n.º 8 do art. 31.º do Decreto-Lei 27207, no que respeita à propaganda cinematográfica que compete à Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas Lei 1974, de 16 de Fevereiro de 1939 Assistência de menores a espectáculos públicos Lei 1994, de 13 de Abril de 1943 Lei de nacionalização de capitais Decreto-Lei 32748, de 15 de Abril de 1943 Cria a Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculo Portaria 10374, de 22 de Abril de 1943 Indivíduos considerados como profissionais de espectáculos. Incorpora na Caixa de Previdência as instituições existentes à data para auxílio aos profissionais Decreto 33479, de 31 de Dezembro de 1943 Regula a cobrança das receitas e fixa as despesas do Estado para o ano de 1944 (agravamento do imposto de espectáculos públicos) Decreto-Lei 33883, de 23 de Agosto de 1944 Prorroga até Junho de 1945 o disposto no art. 1.º do Decreto-Lei 22966. isenção de contribuição predial e industrial e dos direitos de importação de maquinismos, aparelhos e materiais para a Companhia Portuguesa de Filmes Decreto 34133, de 24 de Novembro de 1944 Transforma o SPN em SNI (Informação, Cultura Popular e Turismo) Decreto-Lei 34134, de 24 de Novembro de 1944 Regulamenta o SNI Lei 2005, de 14 de Março de 1945 Decreto-Lei 34590, de 11 de Maio de 1945 Determina que a construção, reconstrução, modificação e adaptação das casas e recintos de espectáculos e diversões de qualquer natureza só possa efectuar-se após aprovação 455 dos respectivos projectos pelo Conselho Técnico da Inpecção-Geral dos Espectáculos mediante requerimento dos interessados. Insere disposições relativas ao seu funcionamento. Constitui o Conselho Técnico e a Comissão de Censura Decreto 35165, de 23 de Novembro de 1945 Insere disposições relativas aos Serviços de Inspecção dos Espectáculos Substitui as taxas constantes da tabela a que se refere o art. 9.º do Decreto-Lei 34590. Rectificado em 13 de Dezembro de 1945 Decreto-Lei 35427, de 31 de Dezembro de 1945 Decreto-Lei 36058, de 24 de Dezembro de 1946 Decreto-Lei 36062, de 27 de Dezembro de 1946 Licença de exibição Lei 2027, de 18 de Fevereiro de 1948 Cria o Fundo do Cinema Nacional Decreto-Lei 37369, de 11 de Abril de 1949 Estabelece as normas de administração do Fundo do Cinema Nacional Decreto 37370, de 11 de Abril de 1949 Regulamenta o Fundo de Cinema Nacional Decreto 37639, de 9 de Dezembro de 1949 Permite a utilização do Fundo de Cinema Nacional pela Caixa Geral de Depósitos na realização de empréstimos da lei 2027 Decreto-Lei 38964, de 27 de Outubro de 1952 Censura e dobragem Decreto-Lei 39660, de 20 de Maio de 1954 Decreto-Lei 39926, de 24 de Novembro de 1954 Decreto-Lei 40752, de 16 de Abril de 1956 Cria a Federação Portuguesa de Cineclubes Decreto-Lei 40715, de 2 de Agosto de 1956 Decreto-Lei 41062, de 10 de Abril de 1957 Decreto-Lei 42660, de 20 de Novembro de 1959 Cria a Comissão de condicionamento dos recintos de cinema Decreto-Lei 46091, de 22 de Dezembro de 1964 Decreto-Lei 48619, de 10 de Outubro de 1968 Transforma o SNI em SEIT 456 Decreto-Lei 48686, de 15 de Novembro de 1968 Lei 7/71, de 7 de Dezembro de 1971 Estabelece as bases relativas ao fomento das actividades cinematográficas nacionais, criando para a sua execução o IPC Decreto-Lei 184/73, de 25 de Abril de 1973 Regula o funcionamento do Instituto Português de Cinema e adopta outras providências atinentes à execução dos princípios gerais definidos nas Leis n.º 7/71 e 8/71, relativas à protecção do cinema nacional e à actividade teatral, respectivamente Decreto 286/73, de 3 de Junho de 1973 Regula a actividade cinematográfica Decreto-Lei 281/74, de 25 de Junho de 1974 Autoriza a junta de Salvação Nacional a nomear comissão ad-hoc, de carácter transitório para controlo da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema Decreto 296/74, de 29 de Junho de 1974 Determina providências destinadas a permitir às empresas exibidoras de filmes dispor dos meios financeiros indispensáveis à sua manutenção e desenvolvimento. Decreto 257/75, de 25 de Maio de 1975 Define as normas a que deve obedecer a assistência financeira a conceder pelo Instituto Português de Cinema. Decreto 685/75, de 10 de Dezembro de 1975 Determina que o IPC seja transitoriamente gerido por uma Comissão Administrativa Decreto 224/76, de 30 de Março de 1977 Prorroga o prazo previsto no art. 33.º, n.º 1 e 2, do Decreto 286/73 de 5 de Junho. Decreto 254/76, de 7 de Abril de 1976 Estabelece medidas relativas à publicação e comercialização de objectos e meios de comunicação social de conteúdo pornográfico. Portaria 467/76, de 31 de Julho de 1976 Aprova o Regulamento da Comissão de Classificação dos Espectáculos. Decreto 653/76, de 31 de Julho de 1976 Nova redação ao art. 4.º do decreto-Lei 254/76. Decreto 654/76, de 31 de Julho de 1976 Fixa a taxa de distribuição e a taxa incidente sobre o preço dos bilhetes para os filmes classificados como pornográficos. Portaria 637/76, de 25 de Outubro de 1976 Determina normas em relação aos preços dos bilhetes. 457 Portaria 874, de 31 de Dezembro de 1976 Fixa as percentagens do adicional sobre os espectáculos cinematográficos a atribuir ao Fundo de Socorro Social, à Caixa de Previdência dos Profissionais de Cinema e às Câmaras Municipais. Portaria 207/77, de 14 de Abril de 1977 Torna extensivo ao pessoal do IPC o regime previsto no decreto-Lei 923. Despacho Normativo 207/77, de 28 de Outubro de 1977 Estabelece os critérios a utilizar na classificação dos espectáculos cinematográficos. Despacho Normativo 105/78, de 11 de Maio de 1978 De delegação do Primeiro-Ministro no Ministro da Educação e Cultura da competência que por lei lhe é atribuída relativamente ao Instituto Português de Cinema. Despacho Normativo 146/79, de 3 de Setembro de 1979 Transfere para o Instituto Português de Cinema a titularidade e gestão das participações do sector público na Tóbis Portuguesa, S. A. R. L.. Decreto 533/79, de 31 de Dezembro de 1979 Estabelece disposições relativas à coordenação e fomento das actividades teatrais e cinematográficas. Decreto 59/80, de 3 de Abril de 1980 Reestrutura a Secretaria de Estado da Cultural. Decreto 60/80, de 8 de Abril de 1980 Autoriza o Instituto Português de Cinema a promover as obras de restauro e ampliação do seu imóvel. Decreto 178/80, de 3 de Junho de 1980 Revoga o Decreto-Lei n.º 257/75, de 26 de Maio (Instituto Português de Cinema). Decreto Regulamentar 28/80, de 21 de Julho de 1980 Autoriza o Instituto Português de Cinema a subsidiar a construção, reparação, modernização e reequipamento de salas de cinema. Decreto Regulamentar 33/80, de 1 de Agosto de 1980 Aprova a lei orgânica da Cinemateca Portuguesa. Decreto Regulamentar 328/80, de 27 de Agosto de 1980 Autoriza que a assistência financeira do Instituto Português de Cinema à produção de filmes possa atingir montante igual ao do custo total dos filmes. 458 B. Lista de filmes mais vistos no Teatro Jordão, em Guimarães, entre 1938 e 1955. (fonte: dados compilados a partir do espólio Teatro Jordão, Sociedade Martins Sarmento, Guimarães) Data 1939.01.18-19 1940.01.28-29 1940.10.20-21 1940.11.03-04 1940.12.25-26 1941.03.16-17 1942.12.13-14 1943.03.21-22 1943.05.16-17-18 1943.10.24-25 1943.11.14-15-16 1943.12.18-19-20-21 1944.01.02 1944.01.09 1944.03.05 1944.10.29 1944.11.25-26-27 1944.12.10 1945.03.20-21 1945.04.27-28-29 1945.10.28-29 1945.12.25 1945.12.26 1945.12.30 1946.04.07-08 1946.11.17 1946.12.08-09 1946.12.15-16-17 1946.12.29 1947.01-12-13-14 1947.03.16 1947.03.19-20 1947.03.22-23 1947.04.20-21 1947.10.14-16 1947.10.19-20-21 Título Branca de Neve e os 7 Anões (Snow White and the 7 Dwarfs) A Varanda dos Rouxinóis João Ratão O Feitiço do Império Pão Nosso Porto de Abrigo Ala-Arriba Aniki-Bóbó O Costa do Castelo Ave de Arribação Fátima, Terra de Fé Amor de Perdição A Coroa de Ferro (La Corona di Ferro) Sangue, Suor e Lágrimas (In Wich We Serve) O Gavião dos Mares (The Sea Hawk) As Pupilas do Senhor Reitor A Menina da Rádio Doze Luas de Mel A Mulher dos Meus Sonhos (Die Frau meiner Träume) A Vizinha do Lado Inês de Castro Casablanca Um Raio de Luz (Edge of Darkness) A Mulher Serpente (Cobra Woman) José do Telhado O Terror dos Sete Mares (The Spanish Main) A Canção de Bernardette (The Song of Bernardette) Um Homem do Ribatejo A Gaivota Negra (Frenchman’s Creek) Camões Os Sinos de Santa Maria (The Bells of St. Mary's) O Abade de Faria (Le Comte de Monte Cristo: L'abbé Faria ) A Vingança de Monte Cristo (Le Comte de Monte Cristo) A Mantilha de Beatriz Guimarães, Alma duma Cidade Rainha Santa 459 Espectadores 1.951 (2 sessões) 2.417 (3 sessões) 2.763 (3 sessões) 2.060 (3 sessões) 2.379 (3 sessões) 1.917 (3 sessões) 2.313 (3 sessões) 2.245 (3 sessões) 4.000 (5 sessões) 2.573 (3 sessões) 4.559 (5 sessões) 5.233 (6 sessões) 2.106 (2 sessões) 2.052 (2 sessões) 2.106 (2 sessões) 2.132 (2 sessões) 3.030 (4 sessões) 2.006 (2 sessões) 2.694 (3 sessões) 2.902 (4 sessões) 3.973 (3 sessões) 2.104 (2 sessões) 2.067 (2 sessões) 2.132 (2 sessões) 2.028 (3 sessões) 2.061 (2 sessões) 3.390 (4 sessões) 3.931 (4 sessões) 2.105 (2 sessões) 4.183 (4 sessões) 2.100 (2 sessões) 2.693 (3 sessões) 2.964 (3 sessões) 2.449 (3 sessões) 4.694 (5 sessões) 4.194 (4 sessões) 1947.11.09-10 1947.11.23-24-25 1947.12.01-02 1947.12.14-15-16 1948.02.22-23-24 1948.03.07-08-09 1948.10.24-25 1948.11.21 1949.03.13 1949.04.17-18 1949.10.10-11 1949.12.18-19-20 1950.01.22-23-24 1950.03.19 1950.04.16-17 1950.04.30/05.01 1950.12.03-04-05 1951.03.18-19 1952.01.01-02-03 1952.03.16-17-18 1952.08.31 1953.04.06 1953.05.24-25 1954.01.24-25 1955.01.06 1955.01.30 1955.02.27 1955.04.10-11-12 1955.12.07-08 Bola ao Centro 2.691 (3 sessões) Três Espelhos 3.455 (4 sessões) O filho do Robin dos Bosques 2.683 (3 sessões) (The Bandit of Sherwood Forest) Capas Negras 4.164 (4 sessões) O Leão da Estrela 2.612 (4 sessões) Fado – História de uma Cantadeira 2.503 (4 sessões) Serra Brava 2.044 (3 sessões) Califórnia 2.029 (2 sessões) As Aventuras de D. Juan 2.102 (2 sessões) (Adventures of Don Juan) Não Há Rapazes Maus! 2.449 (4 sessões) Deus Lhe Pague (Dios Se Lo Pague) 2.319 (3 sessões) Sol e Toiros 3.837 (4 sessões) Ribatejo 3.158 (4 sessões) O Sinal de Zorro (The Mark of Zorro) 2.100 (2 sessões) Joana D’Arc 3.344 (4 sessões) Cantiga da Rua 3.025 (3 sessões) Frei Luís de Sousa 3.071 (4 sessões) O Grande Elias 3.503 (4 sessões) Senhora de Fátima 5.396 (6 sessões) Madragôa 3.054 (3 sessões) Amor de Perdição 2.075 (2 sessões) Anna 2.413 (3 sessões) O Milagre de Fátima 3.414 (4 sessões) (The Miracle of Our Lady of Fatima) Salomé (Salome) 2.129 (3 sessões) Os Filhos não se Vendem 2.281 (3 sessões) (I Figli non si Vendono) Madalena (Maddalena) 2.336 (3 sessões) Filhos de Ninguém (I Figli di Nessuno) 2.522 (3 sessões) Os Cavaleiros da Távola Redonda 2.381 (5 sessões) (Knights of the Round Table) Marcelino Pão e Vinho (Marcelino pan y 3.662 (4 sessões) vino) 460 C. Lista integral de longas-metragens de produção ou co-produção portuguesa emitidas na RTP entre 7 de Março de 1957 e 25 de Abril de 1974. 1957 (desde 7 de Março, inicio das emissões regulares) - Fado, História de uma Cantadeira, de Perdigão Queiroga (1948), exibido a 13-III-1957; - Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 20-III-1957; - A Canção da Terra, de Jorge Brum do Canto (1938), exibido a 26-III-1957; - A Severa, de Leitão de Barros (1931), exibido a 2-IV-1957; - A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 9-IV-1957; - Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 23-IV-1957; - Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro (1934), exibido a 30-IV-1957; - Rainha Santa, de Henrique Campos (1949), co-produção luso-espanhola, exibido a 27XI-1957; - Ladrão, Precisa-se, de Brum do Canto (1946), exibido a 11-XII-1957; - Cantiga da Rua, de Henrique de Campos (1950), exibido a 18-XII-1957; - Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 26-XII-1957; 1958 - O Homem do Ribatejo, de Henrique Campos (1946), exibido a 2-I-1958; - Rosa do Adro, de Chianca de Garcia (1938), exibido a 8-I-1958; - O hóspede do Quarto 13, de Arthur Duarte (1947), co-produção luso-espanhola, exibido a 15-I-1958; - Os Vizinhos do Rés-do-chão, de Alejandro Perla (1947), exibido a 22-I-1958; - O Diabo são Elas, de Ladislao Vajda (1945), co-produção luso-espanhola, exibido a 29I-1958; - Não há Rapazes Maus, de Eduardo Maroto (1948), exibido a 5-II-1958; - Cantiga da Rua, de Henrique Campos (1950), exibido a 12-II-1958 (Em reposição); - A Canção da Terra, de Brum do Canto (1938), exibido a 5-III-1958 (Em reposição); - Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 19-III-1958 (Em reposição); - Ribatejo, de Henrique Campos (1949), exibido a 26-III-de 1958; - Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 2-IV-1958 (Em reposição); - Um Homem às Direitas, de Brum do Canto (1945), exibido a 16-IV-1958; - A Morgadinha dos Canaviais, de Caetano Bonucci (1949), exibido a 23-IV-1958; - As Pupilas do Senhor Reitor, de Leitão de Barros (1935), exibido a 30-IV-1958; - Fátima, Terra de Fé, de Brum do Canto (1943), exibido a 14-V-1958; - Eram Duzentos Irmãos, de Armando Vieira Pinto (1952), exibido a 2-VII-1958; - O hóspede do Quarto 13, de Arthur Duarte (1947), co-produção luso-espanhola, exibido a 27-VIII-1958 (Em reposição); - Ala-Arriba, de Leitão de Barros (1942), exibido a 17-IX-1958; - Duas Causas, de Henrique Campos (1953), exibido a 8-X-1958; - A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 31-XII-1958 (Em reposição); 1959 461 - Ribatejo, de Henrique Campos (1949), exibido a 7-I-1959 (Em reposição); - Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 18-II-1959 (Em reposição); - As Pupilas do Senhor Reitor, de Leitão de Barros (1935), exibido a 25-II-1959 (Em reposição); - O Grande Elias, de Arthur Duarte (1950), exibido a 11-III-1959; - Fátima, Terra de Fé, de Brum do Canto (1943), exibido a 18-III-1959 (Em reposição); - Ala-Arriba, de Leitão de Barros (1942), exibido a 25-III-1959 (Em reposição); - Um Homem às Direitas, de Brum do Canto (1945), exibido a 1-IV-1959 (Em reposição); - O Leão da Estrela, de Arthur Duarte (1947), exibido a 8-IV-1959; - A Morgadinha dos Canaviais, de Caetano Bonucci (1949), exibido a 22-IV-1959 (Em reposição); - Ladrão, Precisa-se, de Brum do Canto (1946), exibido a 29-IV-1959 (Em reposição); - Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 13-V-1959 (Em reposição); - A Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro (1937), exibido a 27-V-1959; 1960 - Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 25-XII-1960; 1961 - Maria Papoila, de Leitão de Barros (1937), exibido a 17-I-1961; - O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 7-III-1961; - Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 21-III-1961; - Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 2-V-1961(Em reposição); - Sol e Toiros, de José Buchs (1949), exibido a 16-V-1961; - João Ratão, de Brum do Canto (1940), exibido a 18-VI-1961; - Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 8-VIII-1961 (Em reposição); - O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 15-VIII-1961 (Em reposição); - Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 12-IX-1961 (Em reposição); - A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 31-X-1961 (Em reposição); - A Canção da Terra, de Brum do Canto (1938), exibido a 14-XI-1961 (Em reposição); - Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro (1934), exibido a 21-XI-1961 (Em reposição); 1962 - Um Marido Solteiro, de Fernando Garcia (1952), exibido a 16-I-1962; - Inês de Castro, de Leitão de Barros (1944), exibido a 10-IV-1962; - O Homem do Ribatejo, de Henrique de Campos (1946), exibido a 10-VII-1962 (Em reposição); - Saltimbancos, de Manuel Guimarães (1951), exibido a 7-VIII-1962; - Duas Causas, de Henrique de Campos (1953), exibido a 28-VIII-1962 (Em reposição); - O Diabo são Elas…, de Ladislao Vajda (1945), co-produção luso-espanhola, exibido a 2X-1962 (Em reposição); 1963 462 - A Rosa do Adro, de Chianca de Garcia (1938), exibido a 26-III-1963 (Em reposição); - Bola ao Centro, de João Moreira (1947), exibido a 30-VII-1963; - O Cerro dos Enforcados, de Fernando Garcia (1954), exibido a 3-IX-1963; - Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 24-IX-1963 (Em reposição); - O Noivo das Caldas, de Arthur Duarte (1956), exibido a 19-XI-1963; 1964 - As Pupilas do Senhor Reitor (1935), exibido a 5-I-1964 (Em reposição); - Ribatejo (1949), exibido a 1-III-1964 (Em reposição); - Inês de Castro, de Leitão de Barros (1944), exibido a 25-III-1964 (Em reposição); - Ala-Arriba, de Leitão de Barros (1942), exibido a 6-V-1964 (Em reposição); - Fátima, Terra de Fé (1943), exibido a 10-V-1964 (Em reposição); - Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 9-VI-1964 (Em reposição); - A Mantilha de Beatriz, de Eduardo Maroto (1946), co-produção luso-espanhoa, exibido a 19-VIII-1964; - Planície Heróica, de Perdigão Queiroga (1953), exibido a 9-IX-1964; - Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 7-X-1964 (Em reposição); 1965 - Maria Papoila, de Leitão de Barros (1938), exibido a 2-II-1965 (Em reposição); - O Tarzan do 5.º Esquerdo, de Augusto Fraga (1958), exibido a 20-VII-1965; - Dois dias no Paraíso, de Arthur Duarte (1958), exibido a 17-VIII-1965; 1966 - A Canção da Terra, de Brum do Canto (1938), exibido a 13-III-1966 (Em reposição); - A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 10-IV-1966 (Em reposição); - Fátima, Terra de Fé, de Jorge Brum do Canto (1943), exibido a 18-XII-1966 (Em reposição); 1967 - Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 31-XII-1967 (Em reposição); 1968 Durante este ano não foi emitida qualquer longa-metragem de produção ou co-produção portuguesa. 1969 - O Noivo das Caldas, de Arthur Duarte (1956), exibido a 2-I-1969 (Em reposição); - Duas Causas, de Henrique de Campos (1953), exibido a 21-IV-1969 (Em reposição); - Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 25-X-1969 (Em reposição); 1970 463 Durante este ano não foi emitida qualquer longa-metragem de produção ou co-produção portuguesa. 1971 - Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 1-I-1971 (Em reposição); - As Pupilas do Senhor Reitor (1935), exibido a 7-III-1971 (Em reposição); - Ribatejo, de Henrique Campos (1949), exibido a 20-IV-1971 (Em reposição); - O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 2-V-1971 (Em reposição); - O Grande Elias, de Arthur Duarte (1950), exibido a 10-VIII-1971 e a 13-VIII-1971 (Em reposição); A primeira destas emissões teve alguns problemas técnicos, o que levou à retransmissão do filme três dias depois; - O Noivo das Caldas, de Arthur Duarte (1956), exibido a 17-VIII-1971 (Em reposição); - Dois dias no Paraíso, de Arthur Duarte (1958), exibido a 24-VIII-1971 (Em reposição); - As Ilhas Encantadas, de Carlos Vilardebó (1965), exibido a 5-X-1971. 1972 - Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 1-I-1972 (Em reposição); - Camões, de Leitão de Barros (1946), exibido a 13-VI-1972; - O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 12-IX-1972 (Em reposição); - Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 19-IX-1972 (Em reposição); - A Vizinha do Lado, de António Lopes Ribeiro (1945), exibido a 26-IX-1972; - Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 3-X-1972 (Em reposição); - Belarmino, de Fernando Lopes (1964), exibido a 10-X-1972; - A Mantilha de Beatriz, de Eduardo Maroto (1946), co-produção luso-espanhoa, exibido a 2-XII-1972 (Em reposição); - Perdeu-se um Marido, de Henrique de Campos (1957), exibido a 9-XII-1972; - José do Telhado, de Armando de Miranda (1945), exibido a 16-XII-1972; 1973 - 29 Irmãos, de Augusto Fraga (1965), exibido a 10-VI-1973; - Sol e Toiros, de José Buchs (1949), exibido a 26-VIII-1973 (Em reposição); - A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 28-VIII-1973 (Em reposição); - Maria Papoila, de Leitão de Barros (1938), exibido a 4-IX-1973 (Em reposição); - A Menina da Rádio, de Arthur Duarte (1944), exibido a 11-IX-1973; - A Vizinha do Lado, de António Lopes Ribeiro (1945), exibido a 18-IX-1973 (Em reposição); - 29 Irmãos, de Augusto Fraga (1965), exibido a 23-XII-1973 (Em reposição); - O Grande Elias, de Arthur Duarte (1950), exibido a 31-XII-1973 (Em reposição); 1974 (até 25 de Abril) - Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 1-I-1974 (Em reposição); 464 D. Apoios do IPC à produção entre 1974-1980. (fonte: dados fornecidos pelo ICA) APOIO FINANCEIRO À PRODUÇÃO DE CURTAS METRAGENS (1974/1980) ANO APOIO TIPO FILME PRODUTOR REALIZADOR 1974 1974 1974 CM CM CM Vamos ao Nimas O Piano A Lenda do Mar Tenebroso Lauro António Sinde Filipe Tope Filme Lauro António Sinde Filipe Ricardo Neto APOIO FINANCEIRO (em contos) 179 189 300 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 CM CM CM CM CM CM CM Unidade de Prod. Nº1 Unidade de Prod. Nº1 Upra Upra Upra Cinegra Jorge Cabral Colectivo Colectivo Luís Gaspar Luís Gaspar Luís Gaspar Almeida Lopes Jorge Cabral 256 6.059 150 309 603 190 1.104 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM CM 1º de Maio de 1975 Jornal Cinematográfico Operação Boa Colheita Deolinda da Seara Vermelha O Rendeiro Pinturas Murais Visita Pres. General Costa Gomes A Revolução das Flores Franco Assassino Não Quero Ser Palhaço O Caldo de Pedra Os Dez Anõezinhos Aquedutos Portugueses A Revolução Está na Ordem do Dia Angola, Ano Zero Nem Pássaro Nem Peixe A Verdadeira Amizade Atletismo Júlio de Matos….Hospital? Areia Lodo e Mar Acção - Intervenção Cavalgada Segundo S.João ...Pela Razão Que Têm! A Cama Prefácio a Vergílio Ferreira O Encoberto O Relógio Para Onde Vai O Homem? Almada, Um Nome de Guerra Nós, no País Mário Jorge Estúdios Pit Tope Filme Tope Filme Telecine Grupo Zero Unidade de Prod. Nº0 Grupo Zero Bourdain Macedo Perdigão Queiroga J.C. Marques Cinequanon Cinequanon Cinequipa Cinequipa Sinde Filipe Lauro António Telecine Telecine Telecine Francisco Castro Unidade Produção Mário Jorge Fernando Correia Artur Correia Ricardo Neto Carlos Marques Eduardo Geada Vitor Henriques Solveig Nordlund Silva Brandão Perdigão Queiroga José Carlos Marques Amilcar Lyra Colectivo João Matos Silva Colectivo Sinde Filipe Lauro António Fernando Lopes Jaime Silva Sousa Martins Ernesto de Sousa Luís Filipe Rocha 631 240 250 250 306 554 1.443 248 346 239 189 752 100 36 336 366 100 131 306 303 615 671 1976 1976 1976 CM CM CM O Setubalense Rossio A Igreja Profanada Cinequanon Cinequanon Sinde Filipe 40 517 1.271 1976 1976 1976 1976 1976 CM CM CM CM CM Cultura Fora de Portas Ex-Votos Portugueses O Zé Povinho na Revolução O Jardim dos Esquecidos 24 Imagens por Segundo Upra António Campos Lauro António António Mateus Telecine Amilcar Lyra Colectivo Sinde Filipe José Andrade Santos António Campos Lauro António Mário Cabrita Gil Faria D' Almeida 465 426 400 440 125 310 1976 1976 1976 1976 1976 1976 CM CM CM CM CM CM Aquedutos Portugueses Prelúdio e Fuga O Grande Porto Feira de S.Mateus Dois Anos de Revolução Beth Telecine Fotograma Coopercine J.António Conde Francisco Saalfeld Mário Neves José Carlos Marques Jorge Cabral Perdigão Queiroga J. António Conde Francisco Saalfeld Mário Neves Artur Correia/ Ricardo Neto Fernando Correia 322 735 362 1.160 78 206 1976 1976 CM CM As Duas Comadres O Gigante do Lago Tope Filme Pit 1977 CM O Construtor de Anjos Noronha da Costa 1.394 Tope Filme Mário Neves Unifilme CPC Noronha da Costa José Ribeiro Mendes Vicente Jorge Silva J.Botelho/ J.Alves Silva António Drago Pedro Bandeira Freire Sérgio Ferreira Sinde Filipe Fernando Correia Artur Correia/ Ricardo Neto Mário Neves Luís Couto Colectivo 1977 1977 CM CM À Primeira Vista Bicicleta José Ribeiro Mendes Vicente Jorge Silva 1977 1977 CM CM Alexandre e Rosa O Peixinho Vermelho J.Botelho/ J.Alves Silva António Drago 1977 1977 1977 1977 CM CM CM CM Os Lobos O Prisioneiro A Pastora O Cientista Mau Oscar Cruz Sérgio Ferreira Sinde Filipe Estúdios Pit 1977 1977 1977 1977 CM CM CM CM O Grão de Milho O Médico e a Duquesa Carta de Aniversário Visita Pres.de Eanes a Madrid 1978 1978 CM CM IPC Prole Filmes Colectivo João Abel Aboim 460 631 CM CM CM CM CM CM Visita Pres. Eanes Brasil/Venez. Ciganos Tirem-me esta Gente Daqui mas não a Escondam Uma História de Letras Maranos - Teixeira Pascoaes Alexandre Herculano Cinquentenário Presença Dai de Comer a Quem Tem Fome 1978 1978 1978 1978 1978 1978 Marcílio Krieger Cinematógrafo Manuel Guimarães Cinequipa Fotograma Cinematógrafo Jaime Fernandes José de Carvalho Dórdio Guimarães João Matos Silva Jorge Cabral Eduardo Lopes 538 492 676 1.394 690 512 1979 1979 CM CM Jack Conimbriga António Manuel Silva Manuel Pereira 1979 1979 CM CM Arábia Jorge Martins 1980 1980 1980 CM CM CM Monólogos Femininos Goa Mombasa, o Forte de Jesus 250 260 900 900 1.308 1.030 964 900 250 418 462 378 204 209 Rosa Coutinho Cabral Mário S. Barroso António Manuel Silva Manuel Pereira Rosa Coutinho Cabral Mário S. Barroso 2.793 2.154 Século XXI António Escudeiro António Escudeiro Manuel Carvalheiro António Escudeiro António Escudeiro 183 250 80 466 2.173 51 APOIO FINANCEIRO À PRODUÇÃO DE LONGAS METRAGENS (1974/1980) ANO TIPO FILME APOIO APOIO FINANCEIRO (em contos) PRODUTOR REALIZADOR A Ilha dos Amores Argozelo Suma Filmes Cinequipa As Armas e o Povo Tobis Portuguesa As Ruínas do Interior Aves Migratórias Benilde ou a Virgem Mãe Cântico Final Cartas na Mesa Continuar a Viver Máscaras O Princípio da Sabedoria Os Demónios de Alcácer Quibir Sofia e a Educação Sexual Tobis Portuguesa Hélder Mendes Tobis Portuguesa Manuel Guimarães C.P.C. Animatógrafo C.P.C. Cinequanon Paulo Rocha 71.333,09 € Fernando Matos Silva 2.089,96 € António da Cunha Telles / 2.793,27 € José de Sá Caeano José de Sá Caetano 9.128,00 € Hélder Mendes 2.493,99 € Manoel de Oliveira 10.579,50 € Manuel Guimarães 7.776,26 € Rogério Ceitil 3.202,28 € António da Cunha Telles 13.522,41 € Noémia Delgado 2.114,90 € António de Macedo 7.900,96 € José Fonseca e Costa José Fonseca e Costa Artur Semedo Trás-os-Montes C.P.C. Eduardo Geada 4.489,18 € Margarida Cordeiro / António 10.744,11 € Reis 1974 1974 LM LM 1974 1974 1974 1974 1974 1974 1974 1974 1974 LM LM LM LM LM LM LM LM LM 1974 1974 LM LM 1974 LM 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 1975 LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM LM Amor de Perdição A Confederação Antes do Adeus Recompensa O Rei das Berlengas Deus, Pátria, Autoridade Lerpar Gente da Praia da Vieira Terra Pão, Terra Luta A Lei da Terra Gestos e Fragmentos Actos dos Feitos da Guiné Veredas A Santa Aliança Contra as Multinacionais O Meu Nome É... Antes a Sorte Que Tal Morte Barronhos Nós por Cá Todos Bem Liberdade para José Diogo As Horas de Maria O Diabo Desceu à Vila IPC Cinequanon CPC Arthur Duarte IPC Rui Simões Unifilme António Campos Cinequipa Grupo Zero Grupo Zero Cinequipa João César Monteiro Eduardo Geada Cinequipa Cinequipa Cinequipa Prole Filme CPC Cinequanon Cinequanon Teixeira Fonseca Manoel de Oliveira Luís Galvão Teles Rogério Ceitil Arhur Duarte Artur Semedo Rui Simões Luís Couto António Campos José Nascimento Alberto Seixas Santos Alberto Seixas Santos Fernando Matos Silva João César Monteiro Eduardo Geada Vários Fernando Matos Silva João Matos Silva Luís Filípe Rocha Fernando Lopes Luís Galvão Teles António de Macedo Teixeira Fonseca 84.965,23 € 9.118,03 € 10.040,80 € 26.032,26 € 36.586,83 € 5.342,13 € 14.804,32 € 1.296,87 € 2.474,04 € 4.344,53 € 19.258,59 € 1.072,42 € 20.041,70 € 27.119,64 € 279,33 € 10.110,63 € 8.813,76 € 2.553,85 € 11.018,45 € 2.808,23 € 4.738,58 € 21.114,11 € 1976 1976 LM LM A Ronda dos Meninos Maus A Fuga IPC Prole Filme Gonsalves Preto Luís Filípe Rocha 5.237,38 € 5.561,60 € 467 11.003,48 € 1976 1976 1976 1976 1976 1976 1976 LM LM LM LM LM LM LM 1977 1977 1977 1977 LM LM LM LM 1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977 LM LM LM LM LM LM LM LM 1978 1978 1978 LM LM LM 1978 LM 1978 1978 1978 Madrugada O Outro Teatro Colónia e Vilões Bom Povo Português Guerra do Miradum Oxalá Sertório Francisco Silva Cinequanon Cinequanon Rui Simões Cinequipa V.O.Filmes António Faria Luís Couto António de Macedo Leonel de Brito Rui Simões Fernando Matos Silva A. Pedro Vasconcelos António Faria O Príncipe com Orelhas de Burro Cinequanon António de Macedo Manhã Submersa Lauro António Lauro António Kilas, O Mau da Fita Filmform José Fonseca e Costa Cerromaior Prole Filme Luís Filípe Rocha António Reis/ Ana M.Cordeiro António Reis / M.Cordeiro Histórias Selvagens António Campos António Campos A Vida é Bela...!? Luís Galvão Teles Luís Galvão Teles Um S Marginal Filmform José de Sá Caetano O Crime de Simão Bolandas Bourdain Macedo Jorge Brum do Canto O Bobo Animatógrafo José Álvaro Morais O Paraíso Perdido Animatógrafo Alberto Seixas Santos Vidas Animatógrafo António da Cunha Telles 6.733,77 € 4.239,78 € 4.738,58 € 42.008,76 € 64.798,83 € 47.854,67 € 2.992,79 € 33.195,00 € 29.329,32 € 47.939,47 € 46.049,02 € 61.247,39 € 6.554,20 € 73.283,39 € 39.240,43 € 54.797,94 € 167.895,38 € 88.845,88 € 123.816,60 € 33.120,18 € 32.287,19 € 8.569,35 € Grupo Zero António V. d'Almeida Filmform Solveig Nordlund António V. d'Almeida Monique Rutler Diafilme Ricardo Costa LM LM LM Dina e Django A Culpa Velhos são os Trapos Verde por Fora Vermelho por Dentro Passagem ou a Meio Caminho Crónica dos Bons Malandros Mulheres Grupo Zero Fernando Lopes Manuela Serra Jorge Silva Melo Fernando Lopes Manuela Serra 1979 1979 1979 1979 1979 1979 1979 LM LM LM LM LM LM LM Francisca Silvestre Rita Conversa Acabada Moura Encantada Uma Rapariga no Verão África 80 V.O.Filmes V.O.Filmes José Ribeiro Mendes V.O.Filmes Manuel Costa e Silva Trópico Filmes Barata Feio Manoel de Oliveira João César Monteiro José Ribeiro Mendes João Botelho Manuel Costa e Silva Vítor Gonçalves Barata Feio 103.929,53 € 62.489,40 € 47.794,81 € 42.337,97 € 13.966,34 € 17.178,60 € 3.391,83 € 1980 1980 LM LM Sinais de Vida O Território Prole Filme V.O.Filmes Luís Filípe Rocha Raoul Ruiz 34.541,75 € 14.963,94 € 468 18.829,62 € 10.330,10 € 61.332,18 € 17.692,36 € E. Cronologia da Tobis Portuguesa (1930-2007). (fontes: http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2007/12/06/tobis-portuguesa-75anos-cronologia-1930-1948/; http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2007/12/06/tobis-portuguesa-75-anoscronologia-1949-1980/; e http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2007/12/06/tobis-portuguesa-75-anoscronologia-1981-2007/). 1930 – (Agosto) – O Inspector dos Espectáculos convoca profissionais do Cinema e jornalistas para elegerem os seus representantes para formarem uma comissão encarregada de estudar as condições da criação de uma indústria cinematográfica em Portugal. (25/10) – Reunião na sede da Inspecção dos Espectáculos da comissão encarregada de estudar as condições da criação de uma indústria cinematográfica em Portugal (composta pelo Dr. Ricardo Jorge e Arquitecto Raul Lino, representantes respectivamente do São Luís e da empresa do Tivoli, do sector da exibição; Dr. João Botto de Carvalho, como sócio-gerente da Sociedade Geral de Filmes, e J. Castello Lopes, que representavam os distribuidores; José Leitão de Barros director da produção da Sociedade Universal de Superfilmes e Aníbal Contreiras, sócio do laboratório Lisboa Filme, em delegação dos produtores; e os jornalistas Eduardo Chianca de Garcia e António Lopes Ribeiro, como representantes da imprensa cinematográfica). (05/04) – Estreia de Sombras Brancas nos Mares do Sul de W. S. Van Dyke, no Cinema Royal, o primeiro all talkie exibido em Portugal. 1931 – (18/06) – A Severa, de Leitão de Barros, o primeiro fonofilme português, estreia no São Luiz. (Outubro) – A comissão encarregada de estudar as condições da criação de uma indústria cinematográfica em Portugal apresenta o relatório (em que se sugeria entre outras coisas, a construção de um estúdio para a realização de filmes portugueses com artistas portugueses). 1932 – (Maio) – Conclusão das negociações com a Tobis Klangfilm. (03/06) – Constituição da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm (com um capital inicial de 1.000.000$00, inteiramente subscrito, dividido em 20.000 acções de 50$00 cada uma), com sede na Av. da Liberdade, n.º 141, 1.º andar. (Julho) – Aquisição da Quinta das Conchas, no Lumiar – com todas as dependências e edificações e todo o material eléctrico e cinematográfico nela existente – local onde se edificará o Estúdio. (25/11) – São publicados na imprensa (O Notícias Ilustrado) os ante-projectos da primeira série de construções da Tobis da autoria do arquitecto Cottinelli Telmo e do técnico francês A. Richard. (19/12) – O construtor Diamantino Tojal inicia os trabalhos de construção do Estúdio da Tobis. 1933 – (16/01) – A Tobis Portuguesa celebra um contrato com as suas congéneres alemã – Klangfilm – e holandesa – Internationale Tobis Maatschappij – de aluguer de uma aparelhagem para a tomada de som e de vistas. (15/03) – Aumento de capital da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros TobisKlangfilm de 1:000.000$ para 2:000.000$. (Março) – Chegada da aparelhagem de tomada de som a Portugal. (17/06) – Início das filmagens de A Canção de Lisboa. 469 (01/08) – A Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm altera a sua designação para Tobis Portuguesa e alguns artigos dos seus Estatutos, entre as quais a concessão de plenos poderes aos Conselhos de Administração e Fiscal. (14/08) – O Decreto-lei n.º 22 966 isenta a Tobis Portuguesa S.A.R.L., durante cinco anos, do pagamento de contribuições predial e industrial, e de direitos de importação de maquinismos, aparelhos e materiais necessários ao exercício da sua indústria. (07/11) – Estreia de A Canção de Lisboa, primeira longa-metragem produzida pela Tobis, «o primeiro filme português feito por portugueses», como anunciava o cartaz, no São Luiz. 1934 – (17/05) – O Decreto n.º 23 866 regula a forma como a Tobis Portuguesa pode beneficiar da isenção de direitos de importação concedida pelo art. 1.º do Decreto n.º 22 966, de 14 de Agosto de 1933. (13/07) – Criação do Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema, com o despacho do Sub-Secretário de Estado, das Corporações e Previdência, que enquadrava os profissionais de cinema de todo o País. (17/08) – Inauguração do Estúdio da Tobis, na Quinta das Conchas, ao Lumiar. (25/08) – Contrato entre a Lisboa Filme e a Tobis através do qual, a Lisboa Filme fica encarregue de todos os trabalhos de laboratório e operações correlativas necessárias para os filmes produzidos pela Tobis. 1935 – (01/04) – Estreia de As Pupilas do Sr. Reitor, de Leitão de Barros, segunda longametragem produzida pela Tobis, no Tivoli. (17/04) – O Decreto n.º 25 259 isenta a indústria produtora de filmes dos direitos de importação. (28/12) – O Cinéfilo anuncia o primeiro filme dobrado em português, O Grande Nicolau, um filme francês distribuído pela Filmes Império e dobrado nos estúdios da Tobis Portuguesa. Na dobragem participam os actores Vasco Santana, Filomena Lima, Hortense Luz, Rafael Marques, Alberto Ghira, Armando Machado e Ribeirinho. 1936 – Contrato com o SPN, de aluguer do Estúdio, para as filmagens de A Revolução de Maio. (Dezembro) – Cedência gratuita de bobines dos filmes A Canção de Lisboa e As Pupilas do Sr. Reitor e dos camiões de energia, de tomada de som e projectores, à Sociedade Universal de Super Filmes para a récita de gala de apresentação do filme Bocage, rodado no Estúdio da Tobis. 1937 – (Março) – Rodagem do filme Maria Papoila, de Leitão de Barros, no Estúdio da Tobis. (Junho) – Inauguração do novo laboratório da Lisboa Filme, na Quinta dos Ulmeiros propriedade contígua à Quinta das Conchas no Lumiar. (27/12) – O Decreto 28.323 prorroga a isenção do pagamento de contribuições e direitos alfandegários, pelo prazo de 5 anos (até 3 Junho de 1942). 1938 – (08/02) – A Tobis Portuguesa celebra com o governo um contrato para a produção de filmes em África no âmbito da Missão Cinegráfica às Colónias. A Missão criada, em Julho de 1937, por iniciativa do Ministro das Colónias tinha como objectivo a realização de documentários que divulgassem a vida local e o esforço colonizador desenvolvido pelos portugueses. Enquadrada pela Agência Geral das Colónias, a Missão decorreu entre Fevereiro e Outubro de 1938 tratando-se da mais detalhada e exaustiva digressão de uma equipa de cinema nacional fora do território continental. (14/02) – O Decreto n.º 28466 isenta do condicionamento das indústrias os laboratórios e depósitos de fitas cinematográficas. (14/03) – Aprovação de novo contrato entre a Tobis Portuguesa e a Klangfilm de Berlim, em que a Tobis adquiriu uma nova unidade de tomada de som transportável mais 470 moderna, a Eurocord B. Esta aquisição permitiu que a Companhia continuasse a rodagem de filmes no seu estúdio – Aldeia da Roupa Branca – evitando a sua paragem ou sonorização no estrangeiro já que o anterior equipamento estava a ser utilizado na Missão Cinegráfica às Colónias. (27/04) – Alteração dos Estatutos da Tobis Portuguesa: alteração no corpo social; o Presidente do Conselho de Administração passa a ser mais interventor nomeadamente presidindo ao Conselho de Produção; surge a figura do Administrador-Delegado (de acordo com deliberação tomada em reunião da respectiva Assembleia Geral, de 12 de Abril). 1939 – (01/02) – A Lisboa Filme, L.dª comunica ao SPN que transferiu o escritório, o estúdio e o laboratório para a sua nova sede na Quinta dos Ulmeiros, no Lumiar. (19/04) – Assinatura do contrato para a produção do filme João Ratão. (13/05) – Assinatura do contrato para a produção do filme Varanda dos Rouxinóis. (Maio) – Aquisição de um equipamento de Back Projection em Paris, utilizado no filmeJoão Ratão. (Junho) – A aparelhagem da Tobis, Eurocord B, é alugada pela SPAC para a 2.ª Viagem Presidencial às Colónias de África e Territórios Britânicos da África do Sul. (Setembro) – São concluídos os trabalhos de construção do restaurante, da cozinha e da cantina do estúdio da Tobis. (19/12) – Estreia de Varanda dos Rouxinóis, de Leitão de Barros, no Tivoli, com a presença do Sub-Secretário de Estado das Obras Públicas e Comunicações, do Governador Civil de Lisboa, do Presidente do Município, o Dr. Duarte de Figueiredo, em representação do Ministro da Educação Nacional, e outros. O filme apresenta a actriz revelação Madalena Sotto. 1940 – (29/04) – Estreia de João Ratão, no São Luiz, de Jorge Brum do Canto, apresentado com o filme cultural Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul de Fernando Fragoso e Raul Faria da Fonseca, produzido também pela Tobis. (Novembro) – O realizador francês Jean Renoir visita os estúdios da Tobis e o laboratório da Lisboa Filme, durante a sua passagem por Lisboa. 1941 – (Janeiro) – Assinatura do contrato para a produção do filme Lobos da Serra com a Sonoro Filme, Ld.ª. (28/08) – Conclusão das fimagens de O Pai Tirano, filme realizado e produzido por António Lopes Ribeiro nos Estúdios da Tobis. As filmagens começaram em Julho, logo após a conclusão de Lobos da Serra, produção da Tobis Portuguesa dirigida por Brum do Canto com a qual partilhou boa parte da equipa técnica. O filme foi montado nos laboratórios da Lisboa Filme por Vieira de Sousa e estreou no Eden a 19 de Setembro, 75 dias após o início da filmagem, caso único no cinema português da época. (29/09) – Início das filmagens de O Pátio das Cantigas, nos Estúdios da Tobis, produzido por António Lopes Ribeiro e realizado por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), com a actuação, entre outros, de Vasco Santana, António Silva e do próprio Ribeirinho. O filme contou praticamente com a mesma equipa técnica que O Pai Tirano. 1942 – (23/01) – Estreia no Éden do filme O Pátio das Cantigas, realizado por Francisco Ribeiro. Na sua equipa técnica destacam-se o operador de câmara César de Sá, o operador de som Sousa Santos (técnico da Tobis Portuguesa) e o responsável pela montagem, Vieira de Sousa. (23/02) – Estreia no Tivoli de Lobos da Serra, produção da Tobis Portuguesa dirigida por Jorge Brum do Canto, cuja filmagem e montagem durou mais de um ano. Como complemento foi projectado um documentário da Tobis Portuguesa sobre o fabrico de ferro e cimento nas fábricas de Alhandra – Cimento e Ferro. 471 (02/09) – Apresentação ao público, durante a Exposição Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza, da produção da Tobis Portuguesa, dirigida por Leitão de Barros e filmada na Póvoa do Varzim, Ala-Arriba. Em Veneza foram também exibidos os documentários portugueses Visão Moderna, de Adolfo Coelho e A Exposição do Mundo Português, de António Lopes Ribeiro. Ala-Arriba seria premiado pelo Júri com a Taça Bienn (15/09) – Estreia de Ala-Arriba, no São Luiz. 1943 – (Fevereiro) – Contrato com António Lopes Ribeiro, de aluguer do Estúdio, para a produção do filme Amor de Perdição. (15/03) – Estreia, no São Luiz, O Costa do Castelo, de Arthur Duarte, produzido pela Tobis. (16/04) – Alteração da designação social da Tobis Portuguesa S. A. R. L. para Companhia Portuguesa de Filmes S. A. R. L – até 1947 – para evitar paralelismos com a congénere alemã Tobis Klangfilm. Primeira Exposição Internacional de Arte e Indústria Cinematográfica no Casino Estoril. 1944 – (Janeiro) – Assinatura do contrato para a produção do filme A Menina da Rádio. (07/02) – Início das filmagens de A Menina da Rádio, produção da Tobis Portuguesa dirigida por Arthur Duarte. (03/07) – Estreia de A Menina da Rádio, no São Luiz. (Julho) – Assinatura do contrato para a produção do filme A Vizinha do Lado. (23/08) – O Decreto-Lei n.º 33 883 prorroga até 3 de Junho de 1945 a vigência do disposto no art. 1.º, do Decreto-Lei n.º 22 966, que isenta a Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros (Tobis), durante 5 anos, do pagamento das contribuições predial e industrial, e bem assim dos direitos de importação de maquinismos, aparelhos e materiais, necessários ao estabelecimento e exercício da sua indústria. (15/09) – Inauguração do Estúdio da Lisboa Filme, junto ao Estúdio da Tobis, onde já funcionava o laboratório. 1945 – (Abril) – Contrato com a Cineditora, Ld.ª de aluguer do estúdio e prestação de serviços para produção do filme Ladrão Precisa-se. (07/05) – Estreia, no Teatro da Trindade, o filme de António Lopes Ribeiro, A Vizinha do Lado, baseado na peça de teatro homónima escrita por André Brun, adaptada ao cinema por Lopes Ribeiro e Vieira de Sousa (também responsável pela montagem). Entre os protagonistas do filme contam-se António Vilar, Madalena Sotto, Carmen Dolores, Lucília Simões, António Silva, Francisco Ribeiro e Nascimento Fernandes. Recebeu o Grande Prémio do S.N.I. em 1945 e o Prémio do S.N.I. à melhor actriz, Madalena Sotto. 1946 – (Maio) – Contrato de aluguer do Estúdio com a firma Artistas Unidos, Ld.ª para produção de trabalhos do filme Os Vizinhos do Rés-do-Chão. (28/10) – A Companhia celebra um contrato com César de Sá, operador de Câmara e técnico de Fotografia, para montagem do Laboratório. (27/12) – O Decreto-lei n.º 36 062 insere disposições de protecção ao cinema português e cria o Fundo Cinematográfico Nacional cuja administração é entregue ao S. N. I. 1947 – (Fevereiro) – Contrato de aluguer do estúdio para a produção do filme Bola ao Centro. (12/05) – Alteração dos Estatutos da Companhia Portuguesa de Filmes S. A. R. L., no seguimento da deliberação da Assembleia Geral de 24 e 27 de Março (trata-se essencialmente de uma mudança da disposição social da sociedade que retoma a designação de Tobis Portuguesa S. A. R. L.). (01/07) – Início das filmagens da nova produção da Tobis, O Leão da Estrela, de Arthur Duarte, com António Silva, Milú, Erico Braga, Curado Ribeiro, Laura Alves, Artur Agostinho, Maria Olguim. 472 (25/11) – Estreia de O Leão da Estrela, no São Luiz. 1948 – (18/02) – É promulgada a Lei n.º 2 027 que cria o Fundo do Cinema Nacional, substituindo o Fundo do Comissariado do Desemprego na concessão de subsídios, e que contém disposições de protecção ao cinema português. (Abril) – Contrato com Produções Atlântico, Ld.ª de prestação de trabalhos de estúdio e de laboratório para o filme Vendaval Maravilhoso. 1952 – (Março) – Contrato de prestação de serviços de estúdio e laboratório com Manuel Guimarães para a produção do filme Nazaré. (27/10) – Publicação do Decreto-Lei n.º 38 964 que regula a assistência de menores a espectáculos públicos; cria a nova constituição da Comissão de Censura dos Espectáculos e a Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores com a definição das suas atribuições. 1953 – (Agosto) – O Conselho de Administração aceita o pedido de abertura de crédito de Felipe de Solms para produção de um filme, em co-produção com Ricardo Malheiro e em sociedade com Vasco Santana, intitulado O Costa de África com garantia de 25% das receitas do filme para a Tobis. (16/11) – O Secretário Nacional incumbe o Prof. Dr. Luís Pinto Coelho, de elaborar um relatório que examina o problema da produção cinematográfica nacional e mais concretamente a situação económica da Tobis. No relatório, sugestões do Prof. Dr. Luís Pinto Coelho indicam a hipótese de uma concentração da Tobis e da Lisboa Filme. (Dezembro) – Conclusão das filmagens de O Costa de África, de João Mendes, nos estúdios da Tobis. 1954 – (17/03) – Num Despacho do Ministro da Presidência, Prof. Dr. João Pinto da Costa Leite, são solicitadas as diligências necessárias para que se concretizem as sugestões do Prof. Dr. Luís Pinto Coelho. (04/05) – Alteração do art.º 4.º dos Estatutos da Tobis Portuguesa S. A. R. L. que outorga ao Conselho de Administração o aumento de capital por uma ou mais vezes até 10.000$00 e determina as condições de emissão das novas acções. (30/05) – Um novo Despacho determina as condições de concentração da Tobis e da Lisboa Filme em que a Tobis adquiria o activo e o passivo da actividade de produtora da Lisboa Filme ficando esta apenas como accionista da Tobis. (11/08) – Contrato com Heliodoro de Sena Pires, depositário da aparelhagem de som da Cinelândia, para que esta seja instalada no Estúdio 2 da Tobis. (24/11) – O Decreto-lei n.º 39 926 autoriza a aplicação de verbas do Fundo do Cinema Nacional, através do Fundo do Fomento Nacional, no capital de empresas produtoras de filmes que se constituam ou reorganizem de acordo com os planos aprovados pelo Governo para aperfeiçoamento da indústria cinematográfica nacional. Trata-se da Tobis Portuguesa e da Lisboa Filme. 1955 – (18/01) – Contrato com a firma Thümer, de Düsseldorf, para instalação de um laboratório de revelação e cópia de filmes a cor com aparelhagem da marca Arri da casa Arnold & Richter. (07/04) – Alteração dos Estatutos da Tobis Portuguesa S. A. R. L. e aumento do capital social de 2.000.000$00 para 7.000.000$00 (5.000.000$00 por meio de emissão de mais cem mil acções subscritas da seguinte forma: 3.500.000$00 do Fundo do Cinema Nacional e 1.500.000$00 da Lisboa Filme) – criação das classes A (anteriores 40 mil) e B (novas 100 mil) das acções. (Julho) – Visita do Director Geral e do Director Técnico da Cinecitta, Engenheiro Dellani e Prof. Combi, respectivamente, às instalações da Tobis e da Lisboa Filme, a convite da Administração para elaborarem um relatório sobre o equipamento dos estúdios. 473 (22/07) – Incêndio no depósito de filmes da Lisboa Filme, na R. da Alegria, com destruição de cópias de filmes da Tobis que não estavam cobertos pelo seguro. (18/11) – Com o Despacho do Ministro da Presidência, Prof. Dr. João Pinto da Costa Leite o processo de concentração entre a Tobis Portuguesa S. A. R. L. e a Lisboa Filme completa-se. (15/12) – Constituição da RTP, SARL, por iniciativa do Governo, com um Capital Social de 60.000.000$00 repartido entre o Estado, Emissoras de Radiodifusão Privadas e particulares. 1956 – (Junho) – Contrato com a Lisboa-Filme para a prestação de serviços, em condições de pagamento especiais, na produção dos filmes O Noivo das Caldas, Dois Dias no Paraíso e Perdeu-se Um Marido. (02/08) – O Decreto n.º 40 715 regula a exibição de filmes portugueses de grande metragem em estreia ou em cumprimento do disposto no art. 17.º, da Lei n.º 2 027, de 18 de Fevereiro de 1948. (04/09) – Início das emissões experimentais da RTP, na Feira Popular. (03/10) – Aprovada proposta, apresentada ao Conselho de Administração, de criação de um Centro de Estudos e Preparação de Produções (C.E.P.P.) com o objectivo de incentivar a produção nacional sem comparticipação estrangeira com filmes de bom nível técnico e artístico e de promover actividades de formação. (03/12) – Novo período de emissões experimentais da RTP, com exibição de documentários cedidos pela Tobis sem pagamento de direitos. 1957 – (Março) – É feita uma avaliação dos imóveis pertencentes à Tobis na tentativa de encontrar uma solução de saneamento financeiro através de um plano de urbanização dos terrenos ocupados pelas instalações e transferência dos estúdios e laboratórios para os arredores de Lisboa. (07/03) – Início das emissões contínuas da RTP. (04/07) – Decreto-Lei n.º 41171 condiciona a importação de filmes ao regime de permuta, designando as circunstâncias em que a importação de filmes de longametragem pode ficar condicionada à permuta com filmes portugueses de igual valor. (28/08) – Nomeação de António Lopes Ribeiro para exercer as funções de Director Geral de Produção da Tobis (até Agosto de 1958). 1958 – (19/03) – Registo de propriedade Literária, Científica e Artística, pelo SNI, do jornal de actualidades Imagens de Portugal. (Abril) – Aprovado o pedido de subsídio ao Fundo do Cinema Nacional apresentado pelos Serviços de Produção da Tobis para o filme de curta-metragem A Caça, de Manoel de Oliveira. (15/04) – Início do contrato firmado entre a Doperfilme e o SNI para a produção dasImagens de Portugal. (Novembro) – Deslocação do técnico alemão Ziemam ao Laboratório da Tobis para dar formação aos empregados da Divisão de Cor. (26/12) – O Decreto-Lei n.º 42 502 transfere para o Fundo do Cinema Nacional os títulos correspondentes à participação das disponibilidades do referido Fundo no capital das empresas produtoras de filmes, assim como o exercício dos respectivos direitos sociais, até à presente data atribuídos ao Fundo de Fomento Nacional. 1959 – (Fevereiro) – Aprovada pelo Conselho de Administração da Tobis a aquisição de uma mesa de montagem italiana com quatro pratos da marca Prevost, à firma Roiz Ld.ª para reapetrechamento da Divisão de Montagem. (Março) – Pedido de intervenção da Inspecção dos Espectáculos por distribuição abusiva pela Lisboa Filmes dos filmes da Tobis. 474 (Julho) – Trabalhos de produção do documentário sobre as festas do Colete Encarnado, produzido pela Tobis. (28/07) – Um ofício da 3.ª Circunscrição Industrial determina que se construam depósitos para filmes que obedeçam às condições de segurança necessárias. 1960 – (Maio) – Início da produção do filme de curta-metragem O Velho da Horta, subsidiado pelo Fundo do Cinema Nacional com a quantia de 300 contos, realizado pelo Arqt.º Herlander Peyroteo. (30/05) – Aprovado o envio ao SNI da relação de negativos de filmes antigos depositados na Tobis, oferecendo-se à Cinemateca os filmes com valor histórico. (03/10) – Aceite pedido da Lisboa Filme para devolução dos seus filmes depositados na Tobis. 1961 – (13/03) – A RTP transmite o filme O Costa do Castelo contra o pagamento à Tobis de uma taxa de 50$00 por minuto. (20/05) – A Tobis Portuguesa e o SNI celebram um contrato de adjudicação para a produção do jornal de actualidades Imagens de Portugal com realização da equipa de António da Cunha Telles. (14/07) – Demissão de António da Cunha Telles da realização das Imagens de Portugal,substituído pelo realizador João Mendes. (Dezembro) – Início das filmagens de O Elixir do Diabo (Forbiden Fruit), co-produzido com Charles W. Hall (não chegou a ser exibido devido aos cortes exigidos pela Censura). 1962 – (Outubro) – Contrato entre a Tobis e a Walt Disney Productions, Ltd de prestação de serviços para o filme Hector, the Stowaway Pup. (Outubro) – Negociações com a RTP sobre a possibilidade de a RTP adquirir o activo imobilizado da Tobis (nunca se concretizou). (29/10) – O realizador João Mendes é substituído por Armando Silva Brandão na produção do quinzenário Imagens de Portugal. 1963 – (Fevereiro) – Tobis celebra um acordo com a RTP para cedência de filmes antigos arquivados nos cofres da Tobis, após catalogação dos mesmos. (Junho) – Equipa técnica das Imagens de Portugal da Tobis substituída por equipa de Perdigão Queiroga, mantendo-se nos genéricos como produção da Tobis subsidiada pelo SNI. (07/08) – Um ofício do SNI comunica concessão de um subsídio e de um empréstimo para a produção do filme O Crime de Aldeia Velha: empréstimo de 250 contos e subsídio de 250 contos condicionado à aprovação final do filme (co-produzido com António Cunha Telles). 1964 – (09/05) – Prorrogação por mais um ano da produção pela Tobis das Imagens de Portugal. (Junho) – Início das filmagens de O Trigo e o Joio, uma co-produção Artistas e Técnicos Associados, Manuel Guimarães, Tobis Portuguesa, António da Cunha Telles. (13/07) – O Conselho de Administração da Tobis organiza um almoço com os meios de comunicação, clientes e todos os produtores para dar conhecimento da nova orientação da Empresa, apresentar os novos equipamentos e outros aspectos técnicos ultimamente alterados. (20/11) – Estreia de O Crime de Aldeia Velha, de Manuel Guimarães, no Éden. A Tobis apresenta uma nova produção, após um longo período sem produzir longas-metragens, baseada na obra homónima de Bernardo Santareno, inspirada num caso verídico. 1965 – (14/05) – O contrato da produção do jornal de actualidades Imagens de Portugalentre a Tobis Portuguesa e o SNI é prorrogado por mais um ano, após aprovação pelo Conselho do Cinema. 475 (09/11) – Estreia de O Trigo e o Joio, de Manuel Guimarães, no Monumental, com Barreto Poeira, Ema Paul, Eunice Muñoz, Igrejas Caeiro, Mário Pereira, Maria Olguim como intérpretes. Prémio do S. N. I. à Melhor Fotografia, Aquilino Mendes. (Novembro) – Aquisição, pela Câmara Municipal de Lisboa, da Quinta dos Lilases e da Quinta das Conchas. 1966 – (Janeiro) – Ofício da Inspecção do Trabalho exige pagamento voluntário de indemnizações e de contribuições devidas pela empresa aos empregados – Tobis está integrada no Grupo I do mapa anexo ao Despacho de Regulamentação de Trabalho para os Empregados de Escritório. (Junho) – Colaboração da Tobis com a firma alemã Melodie Filme na prestação de serviços para o filme Tender Sharks. (30/11) – Contrato com o Engenheiro Mota Carvalho para elaboração de um estudo económico sobre os efeitos da urbanização dos terrenos da Tobis. 1967 – (26/04) – A distribuição do jornal Imagens De Portugal passa a ser feita pela Lusomundo Ld.ª em substituição da Internacional Filmes, Ld.ª. (Junho) – Formalizado contrato com a RTP para aluguer do Estúdio 2. (Junho) – Aprovada, pelo Conselho de Cinema, concessão de subsídio de 350 contos e de empréstimo de 250 contos para a produção do filme A Caçada do Malhadeiro, realizado por Quirino Simões. (03/10) – O presidente do Conselho de Administração da Tobis, João Serras Pereira, é convidado a participar, como representante dos estúdios, na comissão nomeada para revisão e actualização da Lei n.º 2 027 e diplomas complementares. 1968 – (08/03) – Estreia de A Cruz de Ferro, de Jorge Brum do Canto, no Cinema Roma, a partir de uma ideia original de Armando Vieira Pinto. Grande Prémio do S. N. I. em 1967. Prémios do S. N. I. ao Melhor Argumento Adaptado, Jorge Brum do Canto e Fernando Fragoso; à Melhor Fotografia, João Moreira; à Melhor Actriz e ao Melhor Actor, Cremilda Gil e Octávio de Matos. Prémio João Ortigão Ramos. Prémios Plateia ao Melhor Filme e ao Melhor Actor, Octávio de Matos. (Setembro) – Cessação do contrato de aluguer do Estúdio 2 com a RTP. (25/11) – A Tobis concede autorização para que sejam exibidas sequências dos filmes: As Pupilas do Sr. Reitor, João Ratão, Lobos da Serra, Menina da Rádio, Costa do Castelo, Leão da Estrela, O Grande Elias, Três Espelhos e A Canção de Lisboa no programa dedicado ao actor António Silva, Estrada do Êxito, da RTP. 1969 – (31/01) – Estreia de A Caçada do Malhadeiro, de Quirino Simões, nos Cinemas Odeon e Europa, adaptação da obra original com o mesmo título da autoria do Conde de Ficalho. Prémio João Ortigão Ramos. (22/04) – Num despacho do Presidente da Câmara de Lisboa é aprovado o Plano Base da Urbanização dos terrenos da Tobis. (Julho) – É aprovada pelo Conselho de Administração a proposta da Nacional Filmes de utilização de película Agfa-Gevaert, em paralelo com a Eastmancolor, nos trabalhos do Laboratório da Tobis. (25/11) – Ofício da SEIT comunica a cessação do quinzenário cinematográfico Imagens de Portugal, produzido pela Tobis, no final do ano. 1970 – (06/01) – Nomeação de uma comissão com o presidente do Conselho de Administração da Tobis, o Inspector Superior da Secretaria de Estado, representantes da União de Grémios e do Sindicatos, presidida pelo Director Geral Cultura Popular e Espectáculos, para se pronunciar sobre o plano estabelecido para as novas instalações da Tobis. (18/02) – Início das demolições na Tobis – demolição dos edifícios da Administração, garagem, casa do Barão e do guarda; e demolição do Estúdio 2. 476 (Junho) – Aprovação dos Estatutos do Centro Português de Cinema, cooperativa fundada pelos cineastas, em 1969, resultante da sua tomada de consciência que tem expressão noOfício do Cinema em Portugal, documento elaborado na sequência da Semana do Novo Cinema Português, organizada pelo Cineclube do Porto, em Dezembro de 1967, dirigido à Fundação Calouste Gulbenkian. 1971 – (Fevereiro) – Aprovação e assinatura do contrato com o empreiteiro para construção dos arruamentos dos lotes de terrenos da Tobis a urbanizar. (07/12) – A Lei n.º 7/71 promulga as bases relativas à protecção do cinema nacional, criando o Instituto Português de Cinema ao qual cabia incentivar e disciplinar as actividades cinematográficas, promover o cinema português internacionalmente, estimular o desenvolvimento do cinema de amadores, atribuir prémios e conceder assistência financeira. Dos meios financeiros que o constituem, destaca-se uma nova fonte de receita, uma percentagem adicional de 15% sobre o preço dos bilhetes. 1972 – (Maio) – O Conselho de Administração da Tobis celebra acordo de colaboração em quatro filmes do Centro Português de Cinema – A Promessa, Brandos Costumes, O Mal Amado e Meus Amigos. (01/08) – A Tobis concede autorização para que sejam exibidas sequências dos filmes: As Pupilas do Sr. Reitor, Aldeia da Roupa Branca e Maria Papoila no programa Cinemateca da RTP. (20/12) – Aquisição de um terreno em Queluz, na área contigua à mata do Palácio de Queluz, para construção do novo Estúdio da Tobis e instalações complementares numa área de 40 000 m2 (a construção não se concretizou). 1973 – (Maio) – Apresentação do filme A Promessa, produzido pela Tobis, no Festival de Cannes, escolhido para a Selecção Oficial do Festival. (05/06) – O Decreto n.º 286/73 aprova o regulamento da Lei 7/71 e do Instituto Português de Cinema. 1974 – (21/01) – Estreia de A Promessa, de António de Macedo, no Cinema Condes, adaptação da obra original de Bernardo Santareno. (11/03) – Estreia de Meus Amigos, de António da Cunha Telles, no Cinema Estúdio, produção conjunta da Tobis e do Centro Português de Cinema. (04/04) – O Conselho de Administração da Tobis aprova a produção do filme O Principio da Sabedoria, de António de Macedo. (29/04) – Um grupo de pessoas ligadas ao cinema, à música e ao teatro ocupam as instalações da Direcção dos Serviços de Espectáculos e do IPC. (Maio/Junho) – Os trabalhadores da Tobis Portuguesa entram em greve manifestando o seu apoio aos trabalhadores do laboratório Ulyssea Filmes que iniciaram uma greve, dia 23 de Maio, após o proprietário do laboratório, Eng.º José Gil, ter recusado as reivindicações apresentadas. 1975 – (06/01) – Estreia de Cartas na Mesa, de Rogério Ceitil, nos Cinemas Condes e Satélite, produzido em colaboração com o Centro Português de Cinema. (18/09) – Estreia de Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, no Cinema Londres, produção Tobis Portuguesa e Centro Português de Cinema, que cruza imagens de actualidades recolhidas em arquivo e ficção. (21/11) – Estreia de Benilde ou A Virgem Mãe, de Manoel de Oliveira, no Cinema Apolo 70, adaptação da obra original de José Régio, co-produzido com o Centro Português de Cinema, com Maria Amélia Aranda-Matta, Jorge Rolla, Varela Silva, Glória de Matos, Maria Barroso, nos principais papéis. 1976 – (Maio) – Apresentação Internacional de Os Demónios de Alcácer-Kibir, de José Fonseca e Costa, no Festival de Cannes – Quinzena dos Realizadores. 477 (11/06) – Estreia de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, no Cinema Satélite, produção conjunta da Tobis, Centro Português de Cinema e RTP. Prémio Especial do Júri, Prémio da Crítica em Toulon 1976. (Novembro) – O IPC garante à Tobis a concessão de um empréstimo de 7.000 contos para a construção do novo laboratório. 1977 – (09/04) – Estreia de Os Demónios de Alcácer-Kibir, de José Fonseca e Costa, no Cinema Quarteto, com António Beringela, Ana Zanatti, Sérgio Godinho, Luís Barradas, João Guedes, Zita Duarte, Artur Semedo. (13/07) – De acordo com o art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 285/77, o Instituto das Participações do Estado adquire a titularidade das acções que o Instituto Português de Cinema detinha no capital da Tobis. (21/10) – Estreia de As Ruínas no Interior, de José de Sá Caetano, no Cinema Satélite. Prémio à Primeira Obra em Hyères 1977. (09/12) – Estreia de O Princípio da Sabedoria – Ou O Rico, O Camelo e o Reino, de António de Macedo, nos Cinemas Avenida (Castelo Branco) e Acil (Braga). 1978 – O técnico inglês, Paul Reed, efectua uma peritagem aos laboratórios da Tobis concluindo-se o elevado grau de caducidade da quase totalidade do seu equipamento e a necessidade de dotá-lo de meios técnicos, devidamente adequados tecnologicamente. (04/05) – Decorre no Centro Nacional de Cultura um debate sobre o cinema português com a presença do Secretário de Estado da Cultura, António Reis, e de representantes do IPC, do Sindicato, da RTP, do Grupo de Cineastas Associados, da Associação dos Distribuidores e Exibidores, da Cooperativa Cinequanon e da Tobis Portuguesa, destacando-se as afirmações de António Reis sobre o apoio privilegiado que até aí foi concedido à produção em detrimento da criação de infra-estruturas técnicas. 1979 – (06/04) – Um Despacho do Secretário de Estado da Cultura define uma programação financeira que, a médio prazo, permita fortalecer a substância patrimonial da Tobis e assegure a existência de uma indústria, capaz de responder, em termos de ordem técnica, não só às exigências no mercado interno, como sobretudo, concorrer em condições de preço e de qualidade no mercado internacional. (25/11) – Estreia de Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira, no Cinema Quarteto. Adaptação da obra original de Camilo Castelo Branco numa produção conjunta de Instituto Português de Cinema, Centro Português de Cinema, RTP, Cinequipa e Tobis Portuguesa. 1980 – (Setembro) – Atribuição do Prémio Tobis, pela primeira vez, no Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, ao Director de Fotografia do filme português com melhor imagem (tendo o respectivo prémio como suporte a prestação de serviços). 1981 – (12 Junho) – Alteração dos Estatutos da Tobis; aumento do capital social para 30.000.000$00; alteração dos órgãos sociais e introdução de novo artigo dando prioridade ao tratamento de filmes de produção apoiada pelo IPC. (12 Junho) – Constituição da Tobis – Produção de Filmes, Lda e da Tobis – Exibição e Distribuição de Filmes, Lda. 1982 – (Junho) – Comemoração dos 50 anos da Tobis com um jantar de homenagem aos 3 trabalhadores mais antigos (Fernanda Santos, Mário Santos e Francisco Tomaz), convites a funcionários reformados e a entidades externas e emissão de uma medalha de prata comemorativa. (17/09) – O Decreto-Lei n.º 391/82 aprova a orgânica do Instituto Português de Cinema. 1983 – (11/02) – Estreia de Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa, nos Cinemas Cinebloco e Éden, com as interpretações de Victoria Abril, Mário Viegas, Lia Gama, Armando Cortez, Henrique Viana, José Gomes, Isabel de Castro, João Perry, Rogério Paulo, Inês de Almeida-de Medeiros. Grande Prémio do IPC em 1983. Prémios 478 Nova Gente: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actriz (Lia Gama), Melhor Actor (Mário Viegas), em 1983. Gran Giallo Cattolica ao Argumento – Mystfest Cattolica em 1983. Prémios Especial do Júri e à Interpretação Feminina (Victoria Abril) em La Coruña, 1983. (Julho) – Tobis e RTP assinam contrato para distribuição de 23 filmes da Tobis pela RTP para circuitos de televisão e de vídeo nos mercados nacional e internacional. (23/10) – Estreia de Fim de Estação, de Jaime Silva, no Cinema Quarteto, co-produção de V. O. Filmes, Tobis Portuguesa e António Vaz da Silva. 1984 – (14/01) – O Decreto-Lei n.º 22/84 altera algumas disposições da Lei n.º 7/71, de 7 de Dezembro, em matéria de assistência financeira do Instituto Português de Cinema à produção cinematográfica. (14/04) – A Portaria n.º 241/84 cria vários prémios a atribuir anualmente pelo Instituto Português de Cinema. (19/10) – Estreia de Crónica dos Bons Malandros, de Fernando Lopes, em co-produção com a Tobis, nos Cinemas Condes, Las Vegas, Quarteto, Quinteto, com Duarte Nuno, João Perry, Lia Gama, Maria do Céu Guerra, Nicolau Breyner, Paulo de Carvalho, Pedro Bandeira Freire, Zita Duarte, António Assunção, Virgílio Castelo, Mário Zambujal nos principais papéis. 1985 – (19/07) – Publicação do Decreto-Lei n.º 489/85 que altera a redacção das bases XXIX e XXXI da Lei n.º 7/71, de 7 de Dezembro relativamente ao auxílio a prestar à instalação de recintos de cinema ou a adaptação a esse fim de outros edifícios. 1986 – (10/10) – A Tobis cede à LEGALVIDEO – Produção e Comercialização de Videogramas, Ld.ª (incorporada na Lusomundo, em Julho de 1989), os direitos de transcrição para videocassetes e exploração comercial dos seus filmes. (27/05) – No âmbito da publicação do Decreto-Lei n.º 118 – B/86, é efectuada uma reavaliação do activo imobilizado da Tobis, optando-se pela recuperação e remodelação das instalações existentes. 1987 – (15/01) – O Despacho Normativo n.º 14/87 aprova o Regulamento da Assistência Financeira à Produção Cinematográfica. (Julho) – Início da actividade da associação realizada entre a Tobis e a Cinemate para exploração dos serviços de estúdio e material de iluminação. (11/09) – Alteração dos Estatutos da Tobis; aumento do capital social para 170.000.000$00 (90.000 contos incorporação de reservas; 50.000 contos integração no capital de créditos detido pelo IPC); alteração da designação para Tobis Portuguesa, S A; e do valor nominal das acções, acabam as classes A e B; reformulação do Pacto Social: objecto «prestação de serviços no âmbito da actividade audiovisual, particularmente no da cinematografia, e a exploração comercial dos direitos relativos a filmes produzidos pela sociedade». 1988 – (06/02) – Publicação do Decreto-Lei n.º 39/88 que estabelece normas relativas à classificação de videogramas e revoga o Decreto-Lei n.º 306/85, de 29 de Julho. (18/07) – Constituição da Lisboa Filmes ACE, entre a Tobis e a Cinemate, para prestação de serviços, nomeadamente aluguer de estúdios e material de iluminação, a produções de cinema e de televisão nacionais e estrangeiras (dissolvida em 16 de Março de 1994). 1989 – (Outubro) – Participação do Presidente do Conselho de Administração da Tobis, Manuel Pedroso Lima, nas Assisses Européennes de l’Audiovisuel. 1990 – (05/05) – O Decreto-Lei n.º 143/90 procede à abolição do adicional sobre o preço dos bilhetes de espectáculos fixando em 4% o valor da taxa de exibição prevista no n.º 1 do art. 59.º do Decreto-Lei n.º 184/73, de 25 de Abril. (10707) – A Portaria n.º 531/90 fixa o valor – 7.500$00 – da taxa devida pela classificação de cada videograma. 479 1991 – (25/10) – Criação da Tobis SGPS, designada posteriormente Tobis Som, – cujo objectivo passava pela construção de um estúdio de som para cinema – para onde foram transferidas 27.608 acções da Tobis (16,3% do capital social da Tobis). (20/12) – Criação de uma sociedade por quotas, Tobis II, Filmes de Animação, Ld.ª, projecto Tobistoon para o cinema de animação (capital social de 3.000 contos – 51% da Tobis SGPS). 1993 – (10/05) – Tobis celebra um contrato com a Lusomundo para edição e exploração de filmes do seu arquivo em videocassetes. (Junho) – Atribuição do Prémio Cottinelli Telmo, patrocinado pela Tobis, na 1.ª edição doFestival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde para a Melhor CurtaMetragem de Ficção de imagem real (tendo o respectivo prémio como suporte a prestação de serviços). (07/10) – O Decreto-Lei n.º 350/93 estabelece normas relativas à actividade cinematográfica e à produção audiovisual. 1994 – (01/02) – O Decreto-Lei n.º 25/94 cria o Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual – IPACA – terminando a coexistência do IPC e do SNA (Secretariado Nacional para o Audiovisual). (Julho) – Tobis retoma posse das instalações da Lisboa Filmes ACE que cessou a sua actividade em 30 Junho. 1995 – (Julho) – Tobis celebra com a RTP um contrato de exclusividade de exibição televisiva, para 23 filmes, por um período de dois anos para a RTP1 e TV2, e de 3 anos para a RTP Internacional. 1996 – (Março) – O relatório de um técnico da Kodak Pathé elogia a qualidade dos processos do laboratório da Tobis. (29/07) – A Portaria n.º 314/96 aprova o Regulamento de Apoio Financeiro Directo à Produção Cinematográfica, determinando que a intervenção do Estado na produção consiste na «unificação dos apoios numa única modalidade de subsídio a fundo perdido, com a consequente eliminação do subsídio reembolsável». 1997 – (Julho) – Publicação do Relatório da Comissão Inter-Ministerial para o Audiovisual que avalia a convergência tecnológica crescente e sugere o alargamento do IPACA aos sectores da televisão e do multimédia favorecendo o desenvolvimento da indústria de conteúdos. (10/11) – É aprovada em Assembleia Geral Extraordinária a alteração do objecto social da Tobis alargando-o à “reprodução de suportes gravados”, passando a ter uma classificação de actividade económica industrial. 1998 – (22 Maio) – Nova alteração dos Estatutos da Tobis modifica o objecto: «a indústria de reprodução de suportes gravados, bem como a prestação de serviços no âmbito da actividade audiovisual, particularmente da cinematografia, e a exploração comercial dos direitos relativos a filmes e audiovisuais produzidos pela sociedade ou por ela detidos». (21/12) – O Decreto-Lei n.º 408/98 aprova a orgânica do ICAM – Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia – que substitui o IPACA na sequência de um conjunto de medidas tomadas pelo Governo para integrar na mesma política o cinema, o audiovisual e multimédia. 1999 – (15/01) – Publicação do Decreto-Lei n.º15/99 que aprova a intervenção do Estado nas actividades cinematográfica, audiovisual e multimédia, nos aspectos relacionados com as atribuições do Ministério da Cultura. (Outubro) – É concedida à Tobis a Certificação de Qualidade, através do Certificado 99/CEP.1014, do Sistema Português de Qualidade. 480 (Novembro) – Atribuição, pela primeira vez, do Prémio Tobis para o vencedor da categoriaJovem Cineasta Português na 23.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho – CINANIMA (tendo o respectivo prémio como suporte a prestação de serviços). 2000 – (15/05) – Contrato entre a Tobis e a Madragoa Filmes (Grupo Paulo Branco), por um período de 12 anos, para recuperação e exploração do acervo fílmico da Empresa. (22/05) – Publicação da Portaria n.º 281/2000 que cria na dependência do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) uma Comissão Técnica para avaliação de projectos de apoio financeiro à produção cinematográfica. 2001 – (Julho) – Realiza-se durante o Festival de Cinema de Galway, na Irlanda, uma sessão de apresentação da Tobis ao mercado irlandês. (20/09) – O Conselho de Administração da Tobis aprova a aquisição e instalação do equipamento de telerecording, tecnologia laser Arrilaser, que permite a transcrição de vídeo para película. (07/11) – Constituição da Concept Films, Centro de Pós-Produção, Lda (integrada na Tobis em 2004), resultante da parceria iniciada entre a Tobis e a P&B Ldª, em 1 de Abril de 2000, tendo como «objectivo a actividade de edição de imagem não linear, gravação e tratamento de áudio, nos domínios da formação, aluguer de equipamentos e prestação de serviços conexos». (Novembro) – Na sequência do acordo comercial estabelecido com António da Cunha Telles, o Animatógrafo II, enquanto produtor executivo do filme francês Scénes Intimesalugou o estúdio da Tobis para a sua rodagem, bem como contratou os serviços de laboratório para todos os trabalhos até à pós-produção. 2002 – (Junho) – Atribuição do Prémio Tobis, na 1.ª edição do Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa – DocLisboa – ao Melhor Documentário Nacional (tendo o respectivo prémio como suporte a prestação de serviços). (10/09) – Contrato de concessão de incentivos no âmbito da candidatura da Tobis, em 31 Janeiro 2001, ao Programa Operacional de Economia Sistema de Incentivos à Modernização Empresarial (SIME). 2003 – (17/07) – Aprovada nova imagem da Tobis com actualização do logótipo. (Outubro) – Aprovação pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Cultura e pelo Presidente do ICAM do documento que define a estratégia da Tobis para os próximos anos. 2004 – (23/01) – Tobis vence o concurso lançado pela RTP para recuperação do seu Arquivo, celebrando um contrato de 3 anos de transferência de conteúdos de suporte filme para suporte vídeo-digital – Telecinema DSX, único em Portugal, com o complemento do corrector de cor Da Vinci 2 K. (Abril) – Aprovada proposta do novo Conselho de Administração da Tobis, de aposta numa recentragem estratégica investindo em novos equipamentos, adoptando novos métodos de trabalho para melhorar e diversificar os serviços prestados e alargar os segmentos de mercado – criação de 3 áreas operacionais internas: a TOBIS FILMLAB; a TOBIS DIGITAL; e a TOBIS ARQUIVOS. (18/08) – Publicação da Lei 42/2004, Lei de Arte Cinematográfica e do Audiovisual, que regula a intervenção e protecção do Estado no cinema e no audiovisual. (24/09 – 02/10) – Atribuição do Prémio Tobis, na 1.ª edição do Festival Internacional de Cinema Independente – IndieLisboa – para o Melhor Filme Português. A Tobis assegura os trabalhos de pós-produção do primeiro filme de longa-metragem rodado, integralmente, em alta definição (HD) – A Costa dos Murmúrios, de Margarida Cardoso. 481 2005 – (02/12) – A Tobis celebra com o Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, um protocolo para estruturação de um projecto de investigação coordenado pelos Professores Doutores António Reis e Maria Fernanda Rollo. O projecto desenvolvido por uma equipa de investigadores do Instituto tem como objectivo a elaboração de uma história geral da Tobis inserida no contexto político, social e económico em que foi criada e se desenvolveu, a partir da recolha documental em arquivos e bibliotecas, da compilação, catalogação e análise da informação recolhida, e da classificação e incorporação dos resultados da investigação em bases de dados. 2006 – (01/04) – Início do mandato do novo Conselho de Administração da Tobis composto por Luís Chaby Vaz, Presidente, e pelos vogais Fátima Vinagre e Afonso Rato. (Abril) – Criação de um gabinete de apoio ao projecto do Centro de Indústrias Criativas de Lisboa – reinstalação da Tobis em edifícios construídos de raiz capazes de responder às necessidades das suas actividades – liderado pela Dr.ª Lucília Preto. (Setembro) – Acordo com Angola marca a internacionalização das actividades da Tobis no âmbito da transcrição e restauro de arquivos. (15/11) – Publicação do Decreto-Lei n.º 227/2006 que regulamenta as medidas relativas ao fomento, ao desenvolvimento e à protecção das artes e actividades cinematográficas e audiovisuais, previstas na Lei n.º 42/2004, de 18 de Agosto, e cria o fundo destinado ao fomento e desenvolvimento do cinema e do audiovisual. 2007 – (03/06) – A Tobis completará 75 anos de actividade … 482 Fontes e Bibliografia Fontes Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Arquivo Oliveira Salazar Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo PIDE/DGS Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo PIDE/DGS - Registo Geral de Presos Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo Direcção dos Serviços de Censura (DSC) Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo Direcção Geral dos Serviços de Espectáculos (DGE) Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo IGAC Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo IGAC, 2.º incorporação Arquivo Nacional das Imagens em Movimento Centro de Documentação da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema Cineclube de Guimarães Cineclube do Porto Instituto de Cinema e Audiovisual Sociedade Martins Sarmento - Fundo Teatro Jordão Publicações em série Boletim Cooperativista, Lisboa. Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, Lisboa. Boletim Interno Circular do Cineclube do Porto, Porto. Cahiers du Cinéma, Paris. Celulóide, Rio Maior. Cineclube, Porto. Cinéfilo, Lisboa. Cinema de Amadores, Lisboa. Cinema Novo, Porto. Comércio do Funchal, Funchal. O Diabo, Lisboa. Diário Carioca, Rio de Janeiro. Diário da Manhã, Lisboa. Diário da República, Lisboa. Diário das Sessões, Lisboa. Diário de Lisboa, Lisboa. Diário de Notícias, Lisboa. Diário Popular, Lisboa. Doc-Online, Covilhã. Enquadramento, Lisboa. Expresso, Lisboa. Filme, Lisboa. Gazeta Musical, Lisboa. 483 Imagem, Lisboa. Isto é cinema, Lisboa. Isto é espectáculo, Lisboa. JL, Lisboa. Jornal de Letras e Artes, Lisboa. Jornal de Notícias, Porto. M Revista de Cinema, Porto. Norte Desportivo, Porto. Plateia, Plateia. Público, Lisboa. Rádio e Televisão, Lisboa. República, Lisboa. Seara Nova, Lisboa. O Tempo e o Modo, Lisboa. TV Magazine, Lisboa. Vida Mundial, Lisboa. Visor, Rio Maior. Bibliografia Afonso, G. (1981). 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