Paulo Manuel Ferreira da Cunha
O NOVO CINEMA PORTUGUÊS.
POLÍTICAS PÚBLICAS E MODOS DE PRODUÇÃO (1949-1980)
Tese de doutoramento em Estudos Contemporâneos,
orientada por António Pedro Couto da Rocha Pita
e apresentada ao Instituto de Investigação Interdisciplinar
da Universidade de Coimbra
Apoio financeiro no âmbito do QREN - POPH - Tipologia 4.1 - Formação Avançada,
comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCTES
(Bolsa de Investigação SFRH / BD / 37436 / 2007)
Setembro 2014
Agradecimentos
Um percurso destes não seria possível sem o apoio de muitas pessoas.
Ao meu orientador, António Pedro Pita, pela forma como me acolheu no seu grupo de
trabalho e como me acompanhou ao longo deste moroso projecto de investigação, devo um
sincero agradecimento, mas também pela amizade e generosidade com que acompanha o meu
trabalho desde a licenciatura.
Ao querido amigo Daniel Ribas, por toda a ajuda manifestada sobre as mais variadas
formas, de que nunca conseguirei encontrar uma medida justa. A sua presença está em cada
página deste volume e esteve em todos os dias da sua escrita.
Ao Paulo Jorge Granja, ao Tiago Baptista e à Ana Isabel Soares, agradeço a presença amiga
neste longo percurso que, também com o Daniel Ribas, resultaria nessa incrível aventura
chamada AIM - Associação de Investigadores da Imagem em Movimento.
Aos amigos Jorge Luiz Cruz, Leandro Mendonça e Michelle Sales agradeço toda a ajuda e
amizade que me deram durante estes anos de diálogos atlânticos. Também no Brasil, agradeço o
ânimo dos amigos Carolin Overhoff Ferreira, Fátima Bueno, Mauro Rovai, Rodrigo Guéron,
Afrânio Mendes Catani, Nay Araújo, Danielle Ellery, Márcia Motta e Guiomar Ramos.
Obrigado aos amigos que partilharam muitos debates ao longos destes anos, em várias
latitudes: Maria do Carmo Piçarra, Sofia Sampaio, José Filipe Costa, Susana Viegas, Sérgio Dias
Branco, Manuela Penafria, Iván Villarmea, Mirian Tavares, Sílvia Vieira, Leonor Areal, Malte
Hagener, Alice Samara, Ana Catarina Pereira e Wiliam Pianco.
Agradeço às muitas instituições que tornaram possível e facilitaram a minha pesquisa:
CEIS20 (Dra. Isabel Luciano, Marlene Taveira e Ângela Lopes); Torre do Tombo (Paulo
Tremoceiro); Centro de Documentação da Cinemateca Portuguesa e Arquivo Nacional das
Imagens em Movimento (Sara Moreira e Luís Gameiro); Instituto de Cinema e Audiovisual (Hugo
Lourenço, Paulo Gonçalves e Paula Louro); Sociedade Martins Sarmento; Biblioteca Nacional;
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; Biblioteca Municipal Pública do Porto; Cineclube
de Guimarães; Arquivo Municipal Alfredo Pimenta; Instituto Nacional de Estatística; Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro; Cinemateca Brasileira; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Aos camaradas cinéfilos do Cineclube de Guimarães, devo toda a amizade, paciência e
motivação com que partilharam tantas lutas comigo: Carlos Mesquita, Alexandra Xavier, Rui
Silva, Adriana Miranda Ribeiro, Helena Leite, Nuno Rocha Vieira, Miguel Oliveira, José Jordão,
Benjamim Sampaio, Sara Oliveira, Iris Leite, Sílvia Martins, Luísa Alvão e Sílvia Gomes.
Aos amigos de sempre, agradeço o apoio e amizade: Filipe Rodrigues, Pedro Vieira, Pedro
Costa, Sónia Teixeira, Sandra Madureira, Rui Abreu, Luís Silva, Martine Cunha, Sérgio Cunha,
Alexandra Marques, Marisa Vieira, Angélique Freitas, Carla Guimarães, Cláudia Silva, Agostinho
Novais, César Ribeiro e Miguel Nuno.
Obrigado aos meus pais e ao meu irmão Rui, por tudo.
2
Resumo
É objectivo da presente tese trabalhar organizadamente com uma série de dados
relacionados com a prática e o estudo do cinema para tentar compreender, na sua
complexidade, aquilo que entendo como o Novo cinema português, um momento de renovação
na história do cinema português que entendi balizar entre 1949 e 1980: um período delimitado
entre o abandono de António Ferro da direcção do Secretariado Nacional de Informação,
Turismo e Cultura Popular (1949) e a remodelação da Cinemateca Portuguesa no contexto da
reorganização institucional do pós-25 de Abril (1980), então dotada de autonomia
administrativa e financeira e equiparada a Direcção-Geral, no seio da Secretaria de Estado da
Cultura.
Em concreto, pretende-se: caracterizar este período do cinema português atendendo à
contraposição entre “velho cinema“ e “novo cinema“; estudar a evolução do cinema português
tendo em atenção o processo de internacionalização da cultura portuguesa, avaliando o seu
impacto na prática artística e cultural e o seu processo de circulação e apropriação; compreender
a relação entre o poder político e a prática cultural e artística; e avaliar a importância da
expressão artística como manifestação social.
Ao longo do presente texto, investigarei as linhas gerais das políticas públicas para o
cinema em Portugal e os modos de produção do cinema português entre 1949-1980, procurando
identificar, caracterizar e analisar as tentativas de renovação promovidas no cinema português
ao longo desse período, nomeadamente: o fim do projecto cultural e artístico de António Ferro e
os vazio institucional dos anos que se seguiram; a afirmação dos movimentos neo-realista e
cineclubista; as transformações estruturais promovidas por César Moreira Baptista; o surgimento
do cinema moderno; a radicalização das propostas e a opção por um modelo cooperativo; as
fracturas e as cisões de Abril; e a afirmação definitiva de uma estratégia de internacionalização
da produção e da circulação do cinema português.
Como uma hipótese de trabalho para compreender esse período na sua complexidade,
optei por desenvolver o conceito de “modo de produção“, um conceito que pretende contribuir
para uma revisão e uma viragem historiográfica que passa pela valorização de factores extrafílmicos que influenciam de forma determinante a produção e circulação de cinema,
contrariando uma visão estereotipada dominante que desconhece, desconfia ou ignora as
importantes fontes históricas que não têm sido utilizadas na compreensão do objecto em estudo
nesta tese, e alargar a análise para além dos habituais materiais fílmico e textual (crítico e
teórico).
Considero fundamental sublinhar, entre outros aspectos, a importância da distribuição,
exibição e recepção dos filmes para compreender a evolução do sistema produtivo no cinema
português no período aqui em estudo, assim como a transformação da ideia de cinema, crítica e
cinefilia que tanto contribuiria para a renovação do cinema português. Desvalorizar ou ignorar
3
estas questões no estudo do cinema português é particularmente grave porque elas estão
significativamente relacionadas com a prática fílmica, e estiveram sempre presentes no processo
de afirmação e reconhecimento do Novo cinema português.
É, em linhas muito gerais, este o tipo de abordagem que proponho para estudar o cinema
no período balizado entre 1949 e 1980. Acredito que seja necessária uma abordagem mais ampla
do objecto para o compreender em toda a sua complexidade. À tradicional análise estilista mais
habitual nos escritos sobre o cinema português, pretendo acrescentar a análise de outros
aspectos: nível da organização empresarial, condições de penetração no mercado exibidor e
distribuidor nacional e internacional, produção e regulamentação de legislação, investimento
estatal e a evolução tecnológica.
Palavras-chave: Novo cinema português; políticas públicas; modos de produção; cinema de arte;
Abstrat
The goal of this thesis is to work, on an organised manner, with a series of data related to
the practice and study of cinema, in order to understand what I define as New Portuguese
Cinema, in all its complexity. It is a renovation moment in the history of the Portuguese cinema,
which I decided to limit between 1949 and 1980: a period ranging from the abandonment of the
Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura Popular (1949) by António Ferro to the
remodelling of the Cinemateca Portuguesa, which had administrative and financial
independency and was considered to be a Directorate-General within the Secretariat of State for
Culture, due to the institutional reorganization that took place after 25th April 1974 (1980).
In practice, I wish to: characterize this period of the Portuguese cinema, taking into
consideration the conflict between “old cinema” and “new cinema”; study the evolution of the
Portuguese cinema while taking into account the internationalization process of the Portuguese
culture and evaluating its impact in the artistic and cultural practice and its process of
circulation and appropriation; understand the relationship between political power and cultural
and artistic practice; and evaluate the importance of the artistic expression as a social
manifestation.
Throughout this text, I will analyse the broad lines of public politics for cinema in
Portugal and the Portuguese cinema’s ways of production between 1949-1980, aiming to
identify, characterize and scrutinize the renewal attempts over this period, namely: the end of
António Ferro’s cultural and artistic project and the institutional void of the following years; the
affirmation of the neo-realistic and film society movements; the structural transformations of
César Moreira Baptista; the birth of modern cinema; the radicalisation of proposals and the
adoption of a cooperative model; the divisions and partitions that occurred after 25th April 1974;
4
and the definitive confirmation of the internationalization strategy in the production and
spread of the Portuguese cinema.
As a working hypothesis to understand this period in all its complexity, I decided to
develop the “way of production” concept, which intends to contribute to a historical turn and
revision by valuing the extra film factors that firmly influence the production and spread of
cinema. This contradicts the dominant stereotyped vision that does not know, distrusts or
ignores the important historical sources that were not used to understand the object of this
thesis. The concept also aims at extending the analysis beyond the usual filmic and textual
materials (criticism and theoretical).
I think that it is essential to stress the importance of distribution, exhibition and
reception of movies, among other things, to understand the evolution of the production system
in Portuguese cinema during the period in analysis, as well as the transformation of the idea of
cinema, criticism and love of the cinema that would contribute so much to the its renewal. It is
particularly serious to underestimate or ignore these questions in the study of the Portuguese
cinema because they are significantly related with the film practice and they have always been
present in the process of affirmation and recognition of the New Portuguese cinema.
On a very general level, this is the approach that I propose to study cinema in the 19491980 period. I believe that it is necessary a broader analysis of the object to understand it in all
its complexity. To the traditional analysis that is more usual in the written records on the
Portuguese cinema, I intend to add the study of other aspects: the level of business
organisation, the conditions to enter in national and international markets that exhibit and
distribute cinema, the production and regulation of legislation, the governmental investment
and the technological evolution.
Keywords: New Portuguese cinema; public policies; production mode; art cinema;
5
Índice
Introdução..................................................................................................... 9
1. O estado da arte......................................................................................... 17
1.1. Histórias da história do cinema português.................................................... 17
1.2. Para uma arqueologia do Novo cinema português........................................... 21
1.3. Para uma releitura do Novo cinema português............................................... 32
1.4. Memória, crítica e historiografia.................................................................. 52
2. As políticas públicas para o cinema em Portugal (1949-1980)........................ 61
2.1. A falência do projecto cultural de António Ferro............................................. 61
2.1.1. 1955: ano zero de quê?..................................................................... 71
2.1.2. Circulação, distribuição e recepção..................................................... 81
2.2. César Moreira Baptista............................................................................... 98
2.2.1. “O Estado não pode ser produtor de filmes“......................................... 101
2.2.2. A televisão pública......................................................................... 110
2.2.3. As bolsas de estudo........................................................................ 126
2.2.4. Os festivais internacionais de cinema................................................. 134
2.2.5. Censura: entre contradições e excepções............................................ 142
2.3. A Lei 7/71............................................................................................. 146
2.3.1. O Instituto Português de Cinema....................................................... 150
2.3.2. A Escola Superior de Cinema............................................................. 161
2.4. Durante e depois de Abril: refundar todo o cinema português......................... 164
2.4.1. A inversão da marcha da História e do Cinema..................................... 171
2.4.2. O estado das coisas......................................................................... 191
2.4.3. Fechar Abril.................................................................................. 205
3. Modos de produção no cinema português (1949-1980)................................ 212
3.1. Neo-realismo......................................................................................... 212
3.1.1. O caso Manuel Guimarães................................................................. 221
3.1.2. Crítica cinematográfica: os profetas da desgraça.................................. 241
3.2. Cineclubismo......................................................................................... 261
3.2.1. Federação Portuguesa de Cine-Clubes................................................ 269
3.2.2. De Dom Roberto à Semana de Estudos do Novo Cinema Português ........... 280
3.2.3. O cineclubismo entre as lutas de Abril................................................ 290
3.3. Cinema de amadores................................................................................ 297
3.3.1. Os casos António Campos e António Reis............................................ 309
3.3.2. Federação Portuguesa de Cinema de Amadores.................................... 320
6
3.4. Cinema moderno..................................................................................... 333
3.4.1. Manoel de Oliveira.......................................................................... 335
3.4.2. Curtas-metragens........................................................................... 352
3.4.3. Produções António da Cunha Telles................................................... 361
3.4.4. Radicalismo e experimentalismo....................................................... 376
3.5. Uma terceira via?.................................................................................... 386
3.5.1. Manuel Queiroz, Francisco de Castro e Felipe de Solms.......................... 389
3.5.2. Artur Semedo................................................................................ 398
3.6. Cooperativas.......................................................................................... 401
3.6.1. Centro Português de Cinema............................................................. 403
3.6.2. ACOBAC........................................................................................ 422
3.7. Co-produção.......................................................................................... 426
3.7.1. Departamento de Co-produção de Cinema da RTP................................. 430
3.7.2. Paulo Branco................................................................................. 435
4. Algumas reflexões finais.......................................................................... 440
4.1. O que foi o Novo cinema português?.......................................................... 440
4.1.1. Internacionalização........................................................................ 443
4.1.2. Estatização................................................................................... 445
4.1.3. Canonização.................................................................................. 448
4.2. Oxalá.................................................................................................... 451
Anexos....................................................................................................... 452
Fontes e bibliografia................................................................................... 483
7
Não sei se a história que lhes quero contar é inteiramente
verdadeira. Parte dela eu só conheço por ouvir falar.
Depois de muitos anos, várias coisas permanecem
obscuras, e muitas perguntas continuam sem resposta.
Mas acho que devo contar os estranhos acontecimentos
que ocorreram na nossa aldeia. Quem sabe, eles possam
esclarecer algumas coisas que ocorreram neste país.
Das weiβe Band - Eine deutsche Kindergeschichte
(O Lenço Branco, 2009), de Michael Haneke.
8
Introdução
É objectivo desta presente tese trabalhar organizadamente com uma série de
dados relacionados com a prática e o estudo do cinema para tentar compreender, na sua
complexidade, aquilo que entendo como o Novo cinema português, um momento de
renovação na história do cinema português que entendi balizar entre 1949 e 1980: o
abandono de António Ferro da direcção do Secretariado Nacional de Informação,
Turismo e Cultura Popular (1949) e a remodelação da Cinemateca Portuguesa no
contexto da reorganização institucional do pós-25 de Abril (1980), então dotada de
autonomia administrativa e financeira e equiparada a Direcção-Geral, no seio da
Secretaria de Estado da Cultura).
Em concreto, pretende-se: caracterizar este período do cinema português
atendendo à contraposição entre “velho cinema“ e “novo cinema“; estudar a evolução
do cinema português tendo em atenção o processo de internacionalização da cultura
portuguesa, avaliando o seu impacto na prática artística e cultural e o seu processo de
circulação e apropriação; compreender a relação entre o poder político e a prática
cultural e artística; e avaliar a importância da expressão artística como manifestação
social.
Este projecto de trabalho surgiu naturalmente após a conclusão da minha
dissertação de mestrado intitulada “Os filhos bastardos“. Afirmação e reconhecimento do
Novo cinema português 1967-74 (2005), orientada por Rui Bebiano e desenvolvida no
âmbito do curso de mestrado em História das Ideologias e Utopias Contemporâneas na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Desse trabalho sobre o processo de
discussão e elaboração da legislação cinematográfica de 1971, que vigorou em Portugal,
grosso modo, desde o período marcelista até à actualidade, procurei compreender, na
totalidade, a surpreendente afirmação de Paulo Filipe Monteiro (2000: 306):
“Dizemos apenas que, ao contrário do movimento cineclubista,
que o Estado Novo, mesmo na sua fase marcelista, não hesitou em
extinguir, o chamado ‘novo cinema’ pôde, ainda antes do 25 de Abril,
controlar todos ou quase todos os lugares da instituição ‘cinema’,
tendo assim nas mãos o poder de produzir, ensinar e criticar, apesar do
seu alinhamento político à esquerda“.
A principal conclusão desse trabalho resultou a percepção de que a nova legislação
culminou um longo e complexo processo que reflectia uma mudança de paradigma na
produção e recepção de cinema em Portugal. A criação do Instituto Português de Cinema
e da Escola Superior de Cinema, ambos em 1973, promoveram transformações
9
estruturais no cinema português que ainda são visíveis na actualidade, pautando o
modelo de intervenção política cultural pública no cinema nas últimas quatro décadas.
Fiquei convencido, desde então, que essa mudança de paradigma só foi possível
devido ao claro desinvestimento estatal no fenómeno cinematográfico verificado após
da citada saída de António Ferro da direcção do SNI. Na minha opinião, foi o fim do
projecto cultural e artístico desse dirigente, que vigorara durante a segunda metade da
década de 1930 e a primeira da seguinte, que criou um vazio político e que permitiu a
afirmação de vários projectos culturais e artísticos alternativos, na sua maioria
desfasados com as coordenadas ideológicas do Estado Novo.
Era também minha convicção que, por motivos distintos, esse vazio institucional
vigorou durante três décadas, até inícios da década de 80. Passado o fulgor
revolucionário, a política cinematográfica do Estado português foi-se definindo a partir
de dois momentos simbólicos: a chegada de João Bénard da Costa à Cinemateca
Portuguesa e a declaração de Lucas Pires da infeliz e célebre expressão fortemente
estigmatizada que reduzia a produção cinematográfica aos “filmes para Bragança“ ou
dos “filmes para Paris“.1 Procurando condicionar objectivamente o poder político e as
orientações da política cultural e artística dos responsáveis governativos, as principais
figuras das “facções em confronto“ apresentavam os seus argumentos. Alguns sucessos e
meios-sucessos nas bilheteiras, na primeira metade da década, entusiasmam os que
ainda acreditavam na reconciliação com o público e com a viabilização de uma indústria
rentável de cinema em Portugal (Cunha, 2013b: 216).
Apesar da aparente “indecisão“ governamental em relação à “guerra“ entre os
defensores de Bragança e de Paris, o poder político tratou de “estabilizar“ os seus
principais “braços“ no meio cinematográfico: após o falecimento de Manuel Félix
Ribeiro, a direcção do organismo foi entregue a Luís de Pina (1982-91), secundado por
João Bénard da Costa (director-adjunto entre 1980-1991); após nove comissões
administrativas, a direcção do então IPC foi entregue a Luís Salgado de Matos, que
cumpriu funções entre 1983 e 1990; depois de ser director do Canal 2 da televisão
pública portuguesa (RTP) entre 1978 e 1979, Fernando Lopes criou e dirigiu o
departamento de co-produções internacionais da RTP entre 1979 e 1993 e que foi
determinante no apoio financeiro à produção; finalmente, a Escola Superior de Cinema
1
A depreciativa designação “filmes para Bragança“ referia-se às obras com uma preocupação mais
comercial e popular, destinadas a agradar ao grande público nacional, enquanto os “filmes para Paris“
seriam as obras com preocupações estéticas e artísticas mais elaboradas, usando-se a capital francesa
como referência cultural e artística de um património cinematográfico supranacional.
10
também viu definida a sua situação administrativa, mantendo um grupo de professores
consolidado sob a direcção de José Bogalheiro (1986-95).
Em suma, nessa primeira metade da década de 1980, apesar da relativa
instabilidade governativa2, o poder político tratou de lançar as bases para uma política
pública de cinema que beneficiaria a vontade de internacionalização defendido pela
facção dos “filmes para Paris“. Parece-me evidente que esta ideia de internacionalização
foi a natural conclusão de um longo processo iniciado nos anos 60, promovido por uma
geração de cineastas formados em instituições de ensino ou formação profissional
estrangeiras, e que operou uma significativa mudança de paradigma no cinema
português. Ao contrário do paradigma de um cinema nacional para um público lusofalante tentado por António Ferro (1933-49), nos anos 60 e 70, esta geração lançou
bases para uma internacionalização que se consolidaria de forma inequívoca e se
institucionalizaria ao longo dos anos 80 (Cunha, 2013b: 237).
Augusto M. Seabra afirma que, a par duma “inegável pujança criativa“, os anos 80,
marcados por “uma constante sobreposição entre os objectos do discurso, os filmes e as
políticas de produção“, “tendeu à afirmação obsessionalmente reiterada de uma
'diferença portuguesa'“ (Seabra, 2000: 15). Em suma, para além da mudança de política
pública para o cinema, pode-se considerar que os anos 80 foram essencialmente um
momento de transformação dos modos de produção em vigor no cinema português.
Na sua tese de doutoramento, Leandro Mendonça levantou, pertinentemente, a
questão do conceito de “modo de produção“ como uma hipótese de trabalho para
compreender um período similar no caso do cinema brasileiro dos anos 50 e 60: “[modo
de produção] era um conceito que, a princípio, só poderia ser aplicado nos estudos
sistêmicos de largo alcance, sobre toda uma sociedade.“ (Mendonça, 2007: 9). No
trabalho desenvolvido, este investigador e professor brasileiro assumiu “a continuidade
com uma tradição dos estudos sobre audiovisual que vem se consolidando nas últimas
décadas e busca agregar novas temáticas e novas abordagens e, especialmente, os
aspectos econômicos como focos centrais para a construção teórica.“ (Ibidem: 10-11).
Em suma, Mendonça propôs “juntar em uma análise a legislação, a organização
empresarial, a recepção, a distribuição, o modo de filmar, o financiamento, entre outras
questões, em sua relação com resultado estético“ (Ibidem: 11). Mas a sua abordagem
2
V Governo Constitucional (1979-80; iniciativa presidencial), VI Governo Constitucional (1980-81;
coligação PSD+CDS+PPM), VII Governo Constitucional (1981; coligação PSD+CDS+PPM), VIII Governo
Constitucional (1981-83; coligação PSD+CDS+PPM), IX Governo Constitucional (1983-85; acordo
parlamentar PS+PSD).
11
também “significou a afirmação da existência de modos de produção diferentes,
convivendo no mesmo momento histórico e ocupando nichos distintos no espaço de
sobrevivência.“ (Ibidem). O objectivo final da proposta de Mendonça era então trabalhar
o conceito de modo de produção das ciências sociais, desde o marxismo clássico, e
torná-lo operacional para demonstrar a sua utilidade historiográfica, “que se construiu
na maior parte do tempo como uma história da arte, para proximidade do objecto e criar
fortes ligações com o estatuto da práxis e do real.“ (Ibidem: 11).
Naturalmente, também me interessam as reflexões que Francesco Casetti sublinha
em Teorias do cinema (1994: 319-334): as histórias tradicionais do cinema, ao centrar a
sua atenção no filme e ignorando os factores tecnológicos, económicos e sociais,
limitavam gravemente a compreensão da complexidade do cinema. Robert Stam, na sua
Introdução à teoria do cinema, também alertara que história do cinema não era apenas a
história dos filmes e dos cineastas, mas também, por exemplo, a história dos vários
significados que os públicos têm atribuído aos filmes (Stam, 2006: 255-260).
Em linhas gerais, estas novas abordagens são resultado de uma viragem
historiográfica que se iniciou simbolicamente em Brighton, em 1978: nesse ano, a
Fédération Internationale des archives du Film (FIAF) organizou o seu segundo
simpósio histórico que contou com a presença de diversos investigadores e arquivistas
para partilhar e debater as suas mais recentes pesquisas. Esse importante simpósio
permitiu reavaliar as histórias do cinema produzidas anteriormente, evidenciando a
necessidade de se valorizar, para além dos próprios filmes, o contexto cultural,
económico e social onde eles surgiam (Costa, 2005: 91).
Por outro lado, como sublinha Tiago Baptista (2003: 8-9), a “reviravolta
historiográfica“ verificada após esse simpósio de Brighton também passava pela
reavaliação da história até então “canonizada“ pela visão estilística dos historiadores da
arte. A extensão do corpus a obras até então consideradas menores também contribuiu
para a reavaliação de ideias autorais e questionar interpretações historiográficas
anteriores.
Mas foi David Bordwell quem introduziu a questão dos “modos de produção“ nos
estudos de cinema, já relacionando os filmes com a normatividade técnica do sistema
produtivo, mas ainda não considerando aspectos como a distribuição e a exibição nem
elementos ligados à economia.
Dialogando com outros trabalhos recentes, pretendo questionar a prática
historiográfica em torno do cinema que desconhece, desconfia ou ignora de importantes
12
fontes históricas que não têm sido utilizadas na compreensão do objecto em estudo
nesta tese, e alargar a análise para além dos habituais materiais fílmico e textual (crítico
e teórico).
Trata-se de partir da proposta historiográfica que David Bordwell, Janet Staiger e
Kristin Thompson (1985) estabeleceram para estudar o estilo cinematográfico e,
seguindo a análise de Richard Allen (1985: 86-87), tentar ampliar o estudo às formas
técnicas e económicas que influenciam e condicionam esse estilo: “Alargar este campo
significa que se deve olhar com precisão para formas de inserção no mercado exibidor e
distribuidor nas suas características de mercado hegemonizado pelo cinema estrangeiro
e tentar descobrir se existiram estratégias de ascensão e sobrevivência para casa uma
das formas de expressão, produção e inserção no mercado que concorriam em uma
mesma época.“ (Mendonça, 2007: 24).
Tal como Leandro Mendonça entendeu para o caso do cinema brasileiro, também
eu considero fundamental sublinhar a importância da distribuição, exibição e recepção
dos filmes para compreender a evolução do cinema português no período aqui em
estudo. Desvalorizar ou ignorar estas questões no estudo do cinema português é
particularmente grave porque elas estão significativamente relacionadas com a prática
fílmica, e estiveram sempre presentes no processo de afirmação e reconhecimento do
Novo cinema português.
Em 2003, Emeterio Diez Puertas denunciava o mesmo em relação à história do
cinema no país vizinho e questionava-se sobre a metodologia mais adequada3,
lembrando a origem etimológica da própria palavra cinema:
“(…) designava algo mais que o filme. O conceito era uma
abreviação de cinematógrafo, um dos inventos para a rodagem, edição
e projecção de filmes. Só mais tarde, quando se pretende dar aos
filmes um estatuto artístico, aparece o conceito de cinema como
abreviatura de cinematografia, que passa a designar a arte da
representação do movimento pela fotografia. É naquele momento que
os filmes se estudam com os três ramos tradicionais dedicados aos
objectos estéticos: a teoria da arte/teoria cinematográfica, a crítica da
3
“Quizás algunos entiendan que com este plateamiento no puede escribirse una historia del cinema digna
del tal nombre, pero les aseguro que la idea de una historia del cine total tampoco se encuentra plasmada
en ninguna de las publicaciones hasta hoy editadas, pues, en realidade, las obras generales sobre el
cinema español solo se ocupan de un aspecto muy limitado: la historia de las películas. (…)“ / (…) Pero,
sobre todo, los historiadores difieren en su distinta concepción de lo que debe ser la Historia del Cine.
Esto incluye desde el método de trabajo (la critica especulativa o la textual, la documentación superficial
o rigurosa, la cuantificación o no de los hechos…) hasta el próprio tema de estúdio: la Historia del Cinema
es la historia de las películas?, de las estrelas?, de los autores?, de los signos que dan sentido a
laspelículas?, de la tecnologia que las materializa?, de los hombres que producen, usan y piensan las
películas? (…)“(Diez Puertas 2003: 10-12).
13
arte/crítica cinematográfica e a história da arte/história do cinema.“
(Diez Puertas, 2003: 12).
Fazendo uso de novos núcleos documentais – arquivos oficiais e privados,
filmotecas, imprensa diária, boletins de associações profissionais e políticas, entrevistas
e textos escritos na primeira pessoa (diários, biografias, livros de memórias, etc.) – e de
metodologias provenientes de distintas origens (escola do Anais, historiografia
marxista, Social History britânica e norte-americana), Diez Puertas propõe uma História
Social do Cinema:
“No nosso caso, abordamos a história social desde um ponto de
vista materialista e dialéctico. Isto, em absoluto, não significa cair no
paradigma marxista nem em qualquer outro. (…) Para nós, o modelo
teórico é uma fonte de sugestões, de críticas, de novas aproximações e
hipóteses, um meio de nos relaciona com a tradição através da
aplicação de uma série de conceitos que consideramos património
comum da historiografia.“ (Ibidem: 17).
Finalmente, Diez Puertas estrutura o seu livro em torno de três análises – estrutura
económica do cinema, usos sociais do cinema e linguagem do cinema – que
correspondem a três aspectos complementares: as relações económicas, sociais e
estéticas (Ibidem: 19).
É, em linhas muito gerais, este o tipo de abordagem que proponho para estudar o
cinema no período balizado entre 1949 e 1980. Acredito que seja necessária uma
abordagem mais ampla do objecto para o compreender em toda a sua complexidade. À
tradicional análise estilista mais habitual nos escritos sobre o cinema português,
pretendo acrescentar a análise de outros aspectos: nível da organização empresarial,
condições de penetração no mercado exibidor e distribuidor nacional e internacional,
produção e regulamentação de legislação, investimento estatal e a evolução
tecnológica.
A abordagem é, portanto, parcial, olhando as obras como pequenos objectos
independentes e impedem uma visão mais geral e integrada. Como alerta Leandro
Mendonça (2007: 21-22), esta abordagem condiciona o trabalho historiográfico:
“demonstra uma opção de organização das fontes e, mais ainda, o tipo de pergunta que
se fez a elas.“
Um bom exemplo é o caso do célebre suposto “ano zero“ do cinema português. Na
história do cinema português, o ano de 1955 é considerado por muitos autores como um
“ano zero“ uma vez que durante o mesmo não estreou nas salas portuguesas nenhum
14
filme de longa-metragem de produção nacional. Mas mesmo considerando apenas os
filmes, esses autores também desvalorizam os 99 filmes de produção portuguesa com
metragem inferior a 1.000 metros de película ou com menos de 60 minutos de duração,
segundo dados recolhidos por José de Matos-Cruz (1989: 112-114). Esses 99 filmes não
são considerados como significativos para quem defende a teoria do “ano zero“ porque,
para a generalidade dos autores, a produção cinematográfica parece limitar-se aos
filmes de longa-metragem ou, como na época eram mais populares, os filmes de fundo.
Em termos de metragem, esses 99 filmes de curta-metragem equivalem,
aproximadamente, a cerca de 30 mil metros, ou seja, a cerca de 10 longas-metragens.
Tal como ficou demonstrado no simpósio de Brighton em 1978 para outro período
e corpus, é por demais evidente que estes dados quantitativos permitem olhar para o
objecto de uma forma radicalmente distinta daquela que tem sido repetidamente feita. O
objectivo de ampliar o núcleo de fontes documentais não implica ignorar ou desvalorizar
as fontes existentes e já analisadas, mas procurar novas relações, fazer novas questões e
tentar novas reflexões. O tipo de escrita sobre cinema que predominou durante décadas
no cinema português foi a abordagem “estilística“, que se aproxima do quadro
metodológico da história da arte e que reconhece essencialmente as obras fílmicas e que
as considera sobretudo através da sua organização temática ou conteúdo formal.
Dado a diversidade do objecto de estudo, decidi recorrer a contributos, recursos e
metodologias diversificadas, mais próximas e usuais a outras áreas disciplinares —
desde a sociologia, semiótica, antropologia, estudos visuais, estudos culturais e estudos
literários, entre outros — que me dão novas possibilidade de leitura e interpretação. Em
última análise, com este trabalho, espero contribuir para, além de compreender diversos
aspectos da história do cinema português, também “trazer um acréscimo de nitidez ao
conhecimento da história cultural do País“, “aclarando alguns dos seus aspectos
ideológicos e artísticos.“ (Pita, 2000: 42)
O presente volume encontra-se estruturado em quatro momentos:
No primeiro capítulo onde procuro fazer um ponto de situação sobre os estudos
desenvolvidos sobre a temática em análise, um necessário ponto de partida para uma
revisão que espero que possa contribuir para fundamentar a minha abordagem e as
minhas opções metodológicas e científicas, e ajudar a clarificar dados contraditórios,
pondo em diálogo e/ou em confronto a produção de conhecimento proveniente de
diferentes cronologias, geografias e áreas disciplinares.
15
No segundo, dedicado às políticas públicas para o cinema português ente 1949 e
1980, procurar caracterizar, analisar e compreender a intervenção do Estado e do poder
político na evolução do cinema português, através de uma visão alargada que tenta
trabalhar organizadamente e compreender a grande narrativa que foi sendo construída
acerca do cinema português no período em estudo.
No terceiro, procurarei expor, com o maior número de documentos e de
pormenores possível, analisar e reflectir sobre a evolução nos modos de produção no
cinema português entre 1949 e 1980. Depois de analisar, no capítulo anterior, a política
pública que definia a principal narrativa para o cinema Portugal nesse período, é agora
importante analisar as várias contra-narrativas que, ao longo do mesmo período,
procuraram questionar, contrariar, explorar ou transformar o cinema português como
foi sendo definido pelo poder político.
E, finalmente, o quarto é o momento de tecer algumas considerações finais, sobre
o objecto de estudo e sobre o contributo da minha investigação para o seu
conhecimento. A reflexão final procura sintetizar de forma clara quais foram as grandes
transformações que ocorreram no cinema português entre 1949 e 1980 e responder com
clareza a uma questão central: o que foi o Novo cinema português?
16
1. O estado da arte
Parece-me essencial começar esta reflexão por fazer um ponto da situação sobre os
estudos desenvolvidos sobre a temática em análise. Fazer o estado da arte é uma etapa
fundamental para sistematizar de forma crítica e analítica a produção e circulação de
conhecimento em relação ao objecto que me proponho estudar. É o ponto de partida
para uma revisão que espero que possa contribuir para fundamentar a minha abordagem
e as minhas opções metodológicas e científicas, e ajudar a clarificar dados
contraditórios, pondo em diálogo e/ou em confronto a produção de conhecimento
proveniente de diferentes cronologias, geografias e áreas disciplinares.
Decidi dividir este primeiro capítulo em quatro momentos: primeiro, procuro
caracterizar em termos muito gerais a história da história do cinema português para,
num segundo momento, me debruçar especificamente sobre a arqueologia do Novo
cinema português, nas suas diferentes aplicações; depois procurarei analisar a revisão
historiográfica e crítica produzida a propósito do período em estudo nesta tese e,
finalmente, pretendo fazer uma reflexão, em jeito de balanço, sobre as relações entre
cinema, memória, crítica e historiografia.
1.1. Histórias da história do cinema português
A primeira etapa será, obrigatoriamente, uma abordagem sintética através da
história da história do cinema português, procurando conhecer de que forma a evolução
do cinema português condicionou ou promoveu a interpretação do período em análise
nesta tese e, em concreto, um exercício arqueológico que pretende esclarecer a origem
do termo Novo cinema português e a forma como foi (re)definido ao longo das décadas
seguintes.
A história da história do cinema português é uma temática que me fascina
particularmente desde que, em 1999, comecei a estudar e a investigar sobre cinema
português. As lições e alertas de Fausto Cruchinho, António Pedro Pita e Luís Reis
Torgal, ainda nos tempos da minha licenciatura, despertaram a minha curiosidade para
acompanhar e estudar esta questão ao longo da última década e meia. E esta temática da
história da história do cinema português desenvolveu-se sobretudo nesse período.
Luís Reis Torgal foi o primeiro historiador a mostrar-se atento a estas questões, em
dois textos fundamentais (Torgal 1998: 200-202; 2000: 14-15), alertando para a
17
necessidade de desconstruir as diversas representações da história do cinema português
produzidas até então. Depois dos estudos precursores de Marc Ferro sobre as relações
complexas entre história e cinema (Ferro 1977; 1984; 1997), o cinema começou a ser
encarado como um importante objecto de estudo sujeito à metodologia crítica própria
do conhecimento histórico. Na viragem para os anos 90, esta consciencialização
permitiu a elaboração das primeiras dissertações realizadas em Portugal no campo
metodológico da história, quer sobre cinema estrangeiro como sobre o próprio cinema
nacional, e para o desenvolvimento de projectos curriculares em diversas instituições de
ensino superior. Destes centros têm surgido um leque diversificado, mas
cientificamente reconhecido, de estudos sobre a temática da história do cinema
português que têm contribuído de forma positiva para a exploração de novas questões
pertinentes e para a reavaliação de velhos assuntos. A este núcleo de autores deve-se
uma abordagem metodológica rigorosa que trata o objecto cinematográfico como parte
integrante da história da cultura, recusando o carácter secundário e menosprezado com
que foi tratado no passado pela “velha história“. Paralelamente a este esforço de
legitimação científica do objecto cinematográfico, assiste-se a uma natural valorização
da história do cinema português junto de importantes obras colectivas de carácter geral
(Cunha 2005: 13-14).
A primeira fase da escrita sobre a história do cinema português, que balizei entre o
primeiro texto conhecido dedicado à história do cinema português (Panorama histórico
do Cinema Português, de Manuel Félix Ribeiro, 1946) e a primeira obra inteiramente
dedicada à história do cinema nacional (Aventura do Cinema Português, de Luís de Pina,
1977), é marcada por um importante conjunto de figuras (Jorge Pelayo, António Horta e
Costa, Henrique Alves Costa, Fernando Duarte, Chitónio Montalverde, Manuel Moutinho
Múrias, Alice Gamito) que se destacaram sobretudo na inventariação e reunião de
materiais dispersos e cuja validade e pertinência viriam a ser demonstrados
posteriormente. Os textos identificados nestes anos filiam-se igualmente num tipo de
narrativa exclusivamente expositiva e pessoalizada. De modo geral, os primeiros
escritores de história do cinema português dão um maior realce a apreciações críticas
com forte pendor pessoal do que propriamente ao estudo metodológico e científico que
se exigia. Desta fase ficaram preciosos vestígios arqueológicos que documentam
exemplarmente o tipo de visão promovida por um grupo de autores sobre o percurso do
cinema português. Maioritariamente apoiados em registos de tipo memorialista, estes
autores construíram um imaginário cinéfilo português onde privilegiam a instauração
18
de um período dourado ancorado na “comédia à portuguesa“ e nos “filmes históricos“
enquadrados na visão oficial do regime (Ibidem: 15). Os escritos sobre cinema de
jornalistas cinematográficos revelavam, na generalidade, conteúdos mediáticos como a
divulgação de informações sem grande cuidado analítico. Infelizmente, este tipo de
escritos denunciava pouco interesse pelo desenvolvimento de uma historiografia,
apesar de divulgar figuras e formas históricas do cinema mundial.
O segundo período na produção historiográfica do cinema português desenvolvese em pouco mais de uma década (1977-94), onde predomina a produção historiográfica
de Luís de Pina, João Bénard da Costa e de outros contributos esparsos mas
significativos (António Roma Torres, Eduardo Geada, Lauro António, Germano Cleto,
Henrique Alves Costa, Eduardo Prado Coelho, Salvato Teles Menezes, António Videira
Santos). Nesta altura, transita-se de um registo geralmente memorialista com algumas
pretensões historicizantes para a consciência da necessidade de bases científicas e
metodológicas interdisciplinares. Apesar da importância da continuidade de
inventariação de informação, tarefa oportunamente iniciada e muito bem desenvolvido
pela Cinemateca Portuguesa (José Matos-Cruz, António J. Ferreira, José Navarro de
Andrade, Manuel S. Fonseca, Manuel Cintra Ferreira e José Manuel Costa), alguns
interessados alertam para a urgência de se iniciar um tratamento crítico dos dados
disponíveis e a disponibilizar (Ibidem: 15-16).
O último período da produção historiográfica (1995-2013) ficou marcado pelo
crescente interesse despertado no domínio próprio do conhecimento histórico na sua
articulação com outros saberes. A valorização científica do cinema português como
objecto de estudo permitiu desenvolver uma prática historiográfica que tinha sido
iniciada por autores relacionados com o meio cinematográfico. Por outro lado, a década
de 90 assiste a um retorno de uma forte actividade editorial de publicações periódicas
dedicadas ao cinema, o que possibilitou a popularização de assuntos menos mediáticos,
como os que se relacionam com a própria história do cinema português (Ibidem: 16).
Só muito recentemente é que a designada “gente do cinema“ perdeu o monopólio
da escrita sobre o cinema português, permitindo o desenvolvimento de uma produção
historiográfica independente que parte sobretudo de centro de investigação agregados
a instituições de ensino superior. Estes novos autores, com preocupações
metodológicas, procuram desenvolver um trabalho sem compromissos aparentes com o
objecto de estudo. O facto de provirem de áreas exteriores à cinematográfica parece
19
dotá-los de uma certa independência em relação às relações de afectividade e
cumplicidade que vigoram entre a “família cinéfila“ (Ibidem: 41).
É ainda evidente que a história do cinema português, apesar de inúmeros
contributos recentes de diversas áreas disciplinares e interdisciplinares4, continua em
fase de franca revisão metodológica. Desde os inícios dos anos 90, o objecto de estudo
cinema português “começa a adquirir estatuto universitário, dando lugar a teses
académicas focadas por diversos ângulos de análise e diferentes metodologias“,
despertando a atenção de diversos domínios disciplinares (Torgal 2000: 13-14). Mas nos
últimos anos, o trabalho desenvolvido em diversas instituições de ensino e investigação
superior
Em 2007, a publicação de uma nova obra coordenada por uma investigadora
estrangeira então radicada em Portugal, Carolin Overhoff Ferreira, reunia um conjunto
de investigadores — alguns também presentes na publicação coordenada por Luís Reis
Torgal — a trabalhar em Portugal e no estrangeiro sobre temáticas relacionadas com o
cinema português. O cinema português através dos seus filmes (2007) junta vários textos
inéditos ou resultantes de capítulos de teses académicas, reflectindo uma renovação
historiográfica em torno do cinema português. São abordagens distintas, porque
desenvolvidas por investigadores provenientes de diversas áreas disciplinares que
abordam o cinema português e a sua história de formas metodologicamente
heterogéneas, mas contribuem globalmente para um novo olhar inclusivo sobre o
objecto de estudo.
Por terem sido êxitos editoriais, estas duas obras marcam um ponto de viragem na
produção historiográfica que se desenvolvia nas universidades por esses anos e que
começavam a garantir maior visibilidade no mercado editorial nacional graças, do meu
ponto de vista, a um interesse crescente por essa renovação autoral. Atentos a este
sucesso, nos últimos anos, o mercado editorial tem mostrado um crescente interesse
pela publicação integral ou revista de diversas teses académicas que antes ficavam
fechadas nas instituições universitárias e que agora circulam e contribuem para o
debate público sobre o cinema português e a sua história. Este interesse das editoras
4
Entre os trabalhos mais recentes destaco, por me terem sido particularmente úteis nesta investigação, as
teses de doutoramento de Michelle Sales (Em busca de um Novo Cinema Português), Catarina Alves Costa
(Camponeses do Cinema: a Representação da Cultura Popular no Cinema Português entre 1960 e 1970),
Manuel Penafria (O Documentarismo do Cinema, Uma Reflexão sobre o Filme Documentário), Leonor Areal
(Um País Imaginado. Ficções do real no cinema português), Paulo Miguel Martins (O Cinema Portugal: Os
Documentários Industriais de 1933 a 1985), Maria do Carmo Piçarra (Azuis ultramarinos: propaganda
colonial nas actualidades filmadas no estado novo e censura a três filmes de autor); e a tese de mestrado de
Paulo Jorge Granja (As origens do Movimento dos Cine-clubes em Portugal: 1924-1955)
20
comerciais favorece também a crescente curiosidade dos meios de comunicação social
que recorrem, insistentemente, a trabalho académicos para tentarem contextualizar
questões actuais do panorama cinematográfico.
1.2. Para uma arqueologia do Novo cinema português
Feita uma panorâmica sobre a produção historiográfica sobre o cinema português,
é o momento de analisar, especificamente, o surgimento e a consolidação da expressão
Novo cinema português ou de outras expressões similares produzidas sobre o mesmo
período ou corpus fílmico ou autoral.
O trabalho desenvolvido directamente nas fontes é fundamental para identificar e
localizar o momento em que se constroem a “unidade“ e a “singularidade“ de um corpus
e a forma como ele é legitimado. A tentação de “fazer história“ momentaneamente é
forte e atractiva para a generalidade da crítica cinematográfica, mas a história
retrospectiva só se fará posteriormente e terá de estar atenta a esses fenómenos de
construção espontânea e instantânea que, em alguns casos, se instituem fortemente.
Para se estudar critica e retrospectivamente a história do cinema português que
chegou à actualidade é fundamental identificar e localizar os vários momentos-chave
em que se pretendeu “fazer história“ espontânea e momentaneamente e em que se
procurou sistematizar unidades e singularidades em torno de filmes e de autores.
Em 1961, o Jornal de Letras e Artes (20-XII-1961: 5) publicava uma entrevista com
François Truffaut onde o jovem cineasta francês explicava, no seu entender, o
surgimento e a popularização da expressão nouvelle vague:
Eu acredito que a nouvelle vague foi uma realidade antecipada.
Foi uma invenção de jornalistas que acabou por se tornar algo
efectivo. Em todo caso, se não tivesse criado esse slogan jornalístico
no momento em que se realizava o festival de Cannes, tenho certeza de
que essa designação ou alguma outra semelhante teria sido criada pela
força das circunstâncias, no instante em que se tomasse consciência
do número dos “primeiros filmes“.
(…)
Inicialmente a nouvelle vague designava uma pesquisa oficial
realizada na França por não sei que serviço de estatística, sobre a
juventude francesa em geral. A nouvelle vague eram os futuros
engenheiros, médicos e advogados.
(…)
21
Depois, diante dos acasos do festival uma mostra de filmes de
jovens cineastas – não somente da França, mas também dos países
estrangeiros –, os jornalistas que cobriam a área de cinema serviramse dessa expressão para designar um certo grupo de novos cineastas,
que não vinham necessariamente da crítica, uma vez que tanto Alain
Resnais quanto Marcel Camus estavam incluídos nesse rol, e assim se
forjou esse slogan. Mas, na minha opinião, ele não correspondia à
realidade, na medida em que, no estrangeiro, acreditou-se, por
exemplo, que havia uma associação de jovens cineastas franceses que
se reunia regularmente e tinha um plano, uma mesma estética,
quando na verdade não era nada disso e o que de facto havia era um
ajuntamento fictício, apenas aparente.
(…)
Vejo apenas um ponto em comum entre os jovens cineastas:
todos eles se preocupavam com o sucesso de bilheteira, enquanto os
antigos realizadores preferiam retratar a época. Não há nenhum
paradoxo no que digo, pois, com excepção dessa característica, há
basicamente apenas diferenças entre nós. Claro, nós conhecemo-nos,
gostamos dos mesmos filmes, gostamos de trocar ideias, mas, quando
se julga na tela o resultado de nossas realizações, constata-se
imediatamente que os filmes de Chabrol não têm nada a ver com os de
Louis Malle, que por sua vez não parecem nada com os meus. Os filmes
dos jovens cineastas parecem bastante com quem os faz, pois são
realizados em total liberdade. E realmente a liberdade é o único ponto
que temos em comum. Há muito que os realizadores franceses tinham
perdido o hábito de escolher o assunto a ser filmado, isto é, uma
concepção de filme que trouxesse dentro de si, algo que sentissem
visceralmente, que existisse em suas cabeças. Ao tornarem-se vedetas,
os cineastas franceses passaram a ser muito solicitados. Então,
passaram a escolher em função das propostas que recebiam.
Em França, a expressão Nouvelle vague foi usada pela primeira vez, a 3 de Outubro
de 1957, na revista L'Express, no artigo “Raport sur la jeunesse“ assinado pela jornalista
Françoise Giroud. Um anos meio depois, em Junho de 1958, a mesma Giroud publicaria
o livro La Nouvelle Vague: Portrait de la jeunesse, que popularizaria a expressão nouvelle
vague. Apesar de não se referir directamente ao cinema, Giroud usava a expressão para
caracterizar uma vontade de mudança cada vez mais visível na sociedade francesa.
Quem primeiro a aplicou ao cinema foi o crítico Pierre Billard, em Fevereiro de 1958. No
Verão de 1959, durante o Festival de Cannes, o termo começou a ser usado com
insistência pela imprensa local a propósito da estreia de dois filmes realizados por dois
jovens franceses — Les Cousins de Claude Chabrol e Les Quatre Cents Coups, de François
Truffaut — e prontamente difundido pela imprensa internacional presente no certame
(Baecque & Toubiana 2000: 135).
Em Portugal, acredito que aconteceu algo muito semelhante. Já em 1977, Eduardo
Geada alertava para esta hipótese:
22
“Em Portugal, como em todo o lado, a designação de «cinema
novo» começou por ser uma fórmula jornalística, cujo principal
objectivo era promover o chamado cinema de autor, contra a
dominação económica e ideológica do cinema industrial controlado
por Hollywood, de onde, aliás, tinham surgido os expoentes máximos
da política de autores, defendida, na época, pelos Cahiers du Cinéma.
No início dos anos sessenta, ao cinema de autor, produzido sobretudo
na Europa, passou a chamar-se cinema novo, na esteira da nova vaga
francesa; novo porque tinha a particularidade de ser jovem, tanto no
que diz respeito à idade dos realizadores como no que se refere a uma
maneira diferente, outra, possivelmente nova, de pensar e fazer o
cinema“ (Geada 1977: 92).
No entanto, para mim, mais do que uma construção historiográfica ou jornalística,
o chamado Novo cinema português foi sobretudo uma construção crítica. Os seus limites
cronológicos, as fronteiras estéticas, os seus protagonistas e o seu corpus fílmico e
textual desse momento do cinema português foram sendo definidos pela imprensa
cinematográfica, uma vez que o lento e tardio desenvolvimento da historiografia
cinematográfica portuguesa permitiu, durante décadas, que a imprensa assumisse um
papel de análise e sistematização do objecto cinematográfico muito além da sua função
primordial.
No estudo deste complexo período, Paulo Filipe Monteiro (1995: 655) acha
fundamental descortinar as principais características do Novo cinema português:
conhecer o momento em que este adquiriu “visibilidade enquanto conjunto“ e perceber
as “divergências e polémicas que ainda hoje subsistem sobre a designação e a datação
do novo movimento“.
Para evitar quaisquer contaminações ou deturpações promovidas ou consagradas
por essa construção crítica, proponho identificar os momentos de maior visibilidade e
inventariar as expressões e definições e a que corpus fílmico e autoral surgia associadas.
Nos últimos anos, tem-se problematizado acerca das leituras feitas sobre esse período do
Novo cinema português à luz de novos pressupostos históricos e estéticos. Entre outras
questões, alguns autores têm sugerido novas interpretações para diversos factos,
aclarando dúvidas antigas e equacionando novos paradoxos.
Desde inícios da década de 50, um pouco por toda a escrita de cinema, desde a
crítica à crónica, mas sobretudo na imprensa especializada, generalizava-se em Portugal
a convicção na necessidade de emergir uma nova maneira de ver e fazer cinema. Perante
o quadro de crise do panorama cinematográfico nacional, conhecendo os exemplos de
renovação de diversas cinematografias estrangeiras e, sobretudo, pela alteração de
23
mentalidade na sociedade portuguesa, popularizou-se uma certa ideia de inovação, de
renovação e de ruptura com o estado vigente das coisas neste domínio.
A reivindicação de um novo cinema tornou-se considerável desde a contestação
bastante
precoce
à
legislação
proteccionista
de
19485,
desenvolvendo-se
posteriormente sobretudo na recepção crítica aos filmes produzidos por uma estrutura
viciada e criativamente estagnada. Iniciado em publicações conotadas com a oposição,
este discurso renovador alastrou-se gradualmente à generalidade das publicações
dedicadas ao cinema. Consolidado essencialmente na escrita, este programa de
intenções procurava uma materialização na produção fílmica de então, tendo assumido
rapidamente uma relação com as experiências de cinema pretensamente neo-realista
protagonizadas por Manuel de Guimarães e outros autores.
Frustradas as expectativas depositadas nestas experiências, a crítica mais
exigente e descomprometida continuava insatisfeita. As publicações que mostravam
maior inconformidade, tanto em noticiá-la como em promovê-la, eram: Imagem (2.ª
série, 1954-61), dirigida por Ernesto de Sousa e conotada com o movimento
cineclubista; a Filme (1959-64), dirigida por Luís de Pina e que, apesar do subsídio do
Fundo do Cinema Nacional, adoptou uma progressiva visão crítica em relação ao cinema
produzido; o Diário de Lisboa, onde Lauro António era o responsável pela crítica
cinematográfica (a partir de 1965) e dava voz a um conjunto de colaboradores que
incluía os principais elementos da “nova crítica“ e os elementos mais exigentes da
“velha crítica“.
Em Março de 1955, com alguma surpresa, Leitão de Barros começava por apelar à
“moralização“ da nossa cinematografia, apelo corroborado por vários críticos da época
(Diário de Notícias, 1-III-1955: 5). Nesse mesmo ano, Manuel de Azevedo publicava, no
Norte Desportivo, um importante alerta: “Não se divisa ainda, mas pressente-se que virá.
Não se sabe quando, nem como, mas adivinha-se“ (Norte Desportivo, 22-V-1955: 6).
Ao percorrer os textos da época verifica-se uma rica e diversificada utilização de
adjectivos que procuravam caracterizar o cinema que se pretendia erguer. Por estes
anos, houve também quem falasse de “um cinema independente“ e clamava-se por
“sangue novo“ (Filme, XI-1960: 17-20), houve quem apelasse aos “novos e renovadores
5
A denominada “lei de protecção ao cinema nacional“ pretendia iniciar uma reforma estrutural na
produção de cinema português, apresentando o Fundo de Cinema Nacional e o Conselho de Cinema como
principais instrumentos reguladores da actividade cinematográfica em Portugal. No entanto, devido a
pressões de vários interesses corporativos, a legislação nunca foi regulamentada na íntegra, impedindo a
concretização de alguns aspectos fundamentais como a questão do contingente (obrigação de exibição de
filmes nacionais em proporção aos filmes estrangeiros exibidos).
24
cineastas do futuro“ (Gazeta Musical, III-1961: 216), houve quem defendesse um
“cinema puro“ e um “cinema moderno“ (Imagem, IX-1958: 384-387) ou quem
reivindicasse “um cinema de qualidade, incorruptível, exigente e franco“, a “libertação“
do cinema português da “impureza“ e “imbecilidade“ daqueles que promovem um
“negócio sujo“ (Gazeta Musical, III-1961: 217). Apesar das distintas designações, o que
permanece comum é um desejo de mudança, de urgente renovação estética da
cinematografia portuguesa. Contra um cinema “velho“ e “decadente“, exigia-se um
cinema “honesto e simples“ (Eurico Costa cit. in Cruchinho 2001: 220).
Curiosamente, a expressão “nova vaga“ começava a surgir com alguma frequência
na imprensa. O primeiro uso de tal expressão, segundo o que consegui apurar, parece
dever-se a Luís de Pina que, num artigo dedicado ao filme As Pedras e o Tempo, integra
Fernando Lopes na “tímida nouvelle vague portuguesa, que, mais tarde ou mais cedo,
acabará por fazer sentir a sua influência renovadora“ (Filme, X-1960: 43).
De uma forma recorrente, a revista Celulóide foi a publicação que mais generalizou
a designação de “nova vaga“ para identificar um grupo de realizadores que se estrearam
em vários géneros cinematográficos, desde o cinema de fundo à curta-metragem. Em
Janeiro de 1964, em número dedicado ao cinema português, a Celulóide apresenta uma
oportuna compilação de dados que incluem uma cronologia básica, uma relação
cronológica entre realizadores do velho e do novo cinema, e entrevistas com as duas
figuras do momento: o produtor Cunha Telles e o realizador Paulo Rocha.
O maior interesse deste número recai sobre uma introdução histórica ao “Cinema
novo Português“. Apesar de situar o nascimento do cinema novo português em 1945,
data da fundação do Cineclube do Porto, só cerca de duas décadas depois, com Os Verdes
Anos é que se assiste à “desejada vitória de uma nova geração“. Distinguindo os filmes
de Manuel Guimarães (O Desterrado, 1949; Saltimbancos, 1951), Manuel de Oliveira (O
Pão, 1958; Acto da Primavera, 1963), Ernesto de Sousa (Dom Roberto, 1962) e Artur
Ramos (Pássaros de Asas Cortadas, 1962) como etapas preparatórias da “nossa nova
vaga“ que chegou com Os Verdes Anos. O mesmo artigo cola inequivocamente a “nova
vaga portuguesa“ à nouvelle vague, sobretudo pela influência teórica da crítica e prática
do movimento cineclubista na formação dos dois movimentos (Celulóide, I-1964: 1-2).
Em Setembro do mesmo ano, respondendo à excelente receptividade do número anterior
(Idem, IV-1964: 4), a Celulóide dedica um novo número ao cinema português, agora
integrando um breve “dicionário da nova vaga portuguesa“, artigos sobre Os Verdes Anos
e Belarmino, e um artigo sobre os conceitos de produção no novo cinema. Destaque na
25
revista merece também a recepção do novo cinema na crítica estrangeira, noticiando a
participação de realizadores em iniciativas e alguns artigos dedicados ao novo cinema
português, como o de Pierre Kast publicado na revista Cahiers du Cinéma, uma lettre de
Lisbonne onde o realizador se refere aos novos valores do cinema português como a
“nova vaga portuguesa“ (Ibidem: 3).
A frequente colagem do novo cinema à nouvelle vague promovida por esta
publicação parece-me corresponder à reprodução de uma vontade do seu editor em
afastar estes filmes das experiências neo-realistas da década anterior. Afecto a uma
esfera de influência mais próxima do Estado Novo, que lhe mereceu aliás uma acesa
polémica com Manuel de Azevedo a propósito da criação da Federação Nacional de
Cineclubes, Fernando Duarte destaca “as modernas tendências do cinema português“
como um movimento de renovação substancialmente diferente dos preconizados na
década anterior. Afastando-se de um cinema que visa “deliberadamente a mensagem ou
a crítica social“ (cinema neo-realista), o “filme-esperança“ de Paulo Rocha filia-se numa
ideia distinta de cinema (fazer filmes “como um pintor pinta um quadro“), revelando
uma “pureza“ e uma “sinceridade“ descomprometidas próprias de “gente nova“
(Celulóide, I-1964: 2).
Contrapondo-se ideologicamente a Baptista Bastos na exigência de um cinema na
mais “genuína ortodoxia neo-realista“, expressa numa série de textos do autor sobre os
caminhos futuros do cinema português (Imagem, IX-1958: 393-394), o dirigente
cineclubista de Rio Maior serviu-se das revistas Visor e Celulóide para vincular uma ideia
de cinema afastada de possíveis influências do “realismo socialista“ veiculado pelos
“intelectuais da miséria“.6
Outra designação com alguma repercussão neste período foi a de “jovem cinema“.
A sua mais significativa aplicação deve-se a Paulo Rocha que, numa entrevista à revista
Cahiers du Cinéma, caracterizou como “jovem cinema“ o movimento de renovação que
atravessava o cinema português (Celulóide, XII-1966: 3). Em França, também foi esta a
expressão escolhida para a mostra de cinema português decorrida em Nice (Jeune
Cinema Portugais, 1972). Contudo, a utilização mais significativa da expressão deu-se
no próprio Ofício do cinema em Portugal, depoimento colectivo dos próprios
realizadores.
6
Expressão usada por José Manuel da Costa a propósito da avaliação do filme Nazaré (1953), de Manuel
Guimarães (Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1980: 167).
26
Entre Junho e Dezembro de 1956, Nuno Portas assegurou uma coluna no Diário de
Lisboa que contou pouco mais de uma dezena de artigos. Sob o título “Para um novo
cinema novo“, o crítico consagrou a designação “cinema novo“ enquanto expressão
representativa da “luta de uma geração – a geração que ‘quer’ um cinema novo“ (Diário
de Lisboa, 10-VII-1956: 7). A utilização da expressão “cinema novo“ ainda não
representava o plano de intenções concretas dedicado a uma certa renovação estética do
cinema português que se iria revelar alguns anos depois. No entanto, Nuno Portas
alertava que o “ressurgimento“ do cinema português só seria possível se o esforço “fosse
gerado e alimentado […] numa corrente cultural mais vasta, se exprimisse as
preocupações de toda uma geração em face da realidade que a cerca“ (Idem, 24-VII1956: 7).
Contudo, a expressão que mais se generalizou no discurso regenerador foi “novo
cinema“. Em Novembro de 1960 e Fevereiro seguinte, a revista Filme dedicou dois
dossiers aos actores e técnicos do “novo cinema português“, onde inclui os jovens
Fernando Lopes, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Manuel de Oliveira e Manuel Costa e
Silva. Na introdução a este dossier, afirma-se que “o futuro do cinema português está
pois nas mãos das personalidades que reunimos nesta página“ e exigia-se “lugar aos
novos!“ (Filme, XI-1960: 17-20; Idem, II-1961: 42). Dois anos depois, um novo artigo
dedicado ao “novo cinema“ incluía agora, para além dos anteriores, Artur Ramos, Pedro
Martins e Ernesto de Sousa (Idem, IX-1963: 11). Significativa é também a programação
de filmes integrada na “semana do novo cinema português“, iniciativa do Cineclube do
Porto. Para além dos novos – apresentação das obras produzidos por Cunha Telles – foi
exibida uma retrospectiva do cinema português que incluía Leitão de Barros, Manuel de
Oliveira e Brum do Canto. Numa iniciativa dedicado ao “novo cinema“, as obras de
Ernesto de Sousa e de Artur Ramos também tiveram espaço para discussão,
acompanhando os colóquios dedicados aos “novos“ Paulo Rocha, Fernando Lopes,
António de Macedo, e ao veterano Manuel de Oliveira (Celulóide, VIII-1967: 15).
Estas diversas aplicações do termo “novo cinema“ fazem entender que esta
designação se refere à produção fílmica surgida no início da década de 60,
caracterizando um conjunto de obras que, independentemente das formas e conteúdos
propostos, concorriam para o objectivo comum de regenerar o cinema português. De
uma forma aparentemente simples, como observa Lauro António, a generalização da
designação “novo cinema“ deve-se sobretudo ao sentido antagónico com que esta
27
expressão se distingue da designação “velho cinema“ (apud Semana do Novo Cinema
Português: programa, 1968: 9).
Apesar de tudo, a designação mais expressiva e abrangente, no meu entender, foi
utilizada por Alves Costa: “não se pode falar (como agora está na moda) de uma ‘nova
vaga’, mas sim de um ‘outro cinema’ que virá finalmente contrabalançar essa série de
filmes tradicionalmente medíocres“ (Ibidem: 8). No “outro cinema“ cabem todo o tipo
de oposições ao “velho cinema“, e se algumas designações anteriores poderiam
promover exclusões7, esta parece aquela que permite englobar a diversidade de
elementos que promoveram a oposição estética a um modelo de cinema julgado
unanimemente falido. Infelizmente, esta designação não conheceu uma repercussão
significativa.
Todavia, apesar de ser reclamada desde a década de 50, a “revolução fílmica“ só
terá acontecido a partir de 1963, materializado sobretudo nas obras Os Verdes Anos
(Paulo Rocha, 1963), Belarmino (Fernando Lopes, 1964) e Domingo à Tarde (António de
Macedo, 1965), primeiras obras de fundo de jovens realizadores que, ao contrário de
experiências anteriores, conseguiram romper com a produção portuguesa dominante de
então. Já preconizada por filmes documentais e de curta-metragem, foi apenas com
estas obras que o “novo cinema“ chegou ao público e à generalidade da crítica.
No entanto, o outro pólo de acção do “novo cinema“ – a escrita – tinha já
consagrado o “novo cinema“ como plano de intenções, ainda que precário e pouco
definido, que identificava um grupo heteróclito de nomes. Definitivamente, o conceito
“novo cinema“ estabelece dois níveis distintos, mas complementares, de acção: a escrita
e a realização.
Estes exemplos, que integram as Produções Cunha Telles, constituem o núcleo de
produção do designado “cinema novo“. A utilização do termo “cinema novo“ irá
representar uma propositada demarcação de propostas anteriores, nomeadamente Dom
Roberto e Pássaros de Asas Cortados, ainda enquadradas na expressão “novo cinema“,
mas definitivamente excluídas do “cinema novo“. A grande responsabilidade pela
generalização da expressão “cinema novo“ deve-se essencialmente a João Bénard da
Costa e a Luís de Pina. A estes dois cinéfilos e estudiosos do nosso cinema deve-se
também o início do estudo do período em causa, dedicando-lhe particular destaque em
vários textos publicados em revistas e edições da Cinemateca Portuguesa.
7
As expressões “jovem cinema“, “nova vaga“ ou “novo cinema“, ao querer atribuir uma conotação etária
ao termo “novo“ poderiam excluir deste movimento alguns cineastas cronologicamente mais velhos como
Manuel de Oliveira ou Ernesto de Sousa.
28
Apesar do surto considerável na produção historiográfica relativa ao cinema
português desenvolvido pela Cinemateca Portuguesa, a primeira iniciativa pública de
exibição e debate do novo cinema teve lugar na Figueira da Foz, num dos festivais de
cinema mais importantes no país. Sob coordenação do activo José Vieira Marques e de
Germano Cleto, o Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz dedicou, em 1981,
um colóquio subordinado ao tema “Manuel de Oliveira e vinte anos do novo cinema
português“. Em apoio a esse colóquio, foi editado um significativo documento
dactilografado intitulado Novo Cinema Português 1961-1981 (1981) onde se
transcreviam entrevistas inéditas feitas a António da Cunha Telles, António de Macedo e
Fernando Matos Silva. Ao invés de procurar sistematizar uma visão sobre os
acontecimentos, esta espécie de catálogo preocupa-se mais em registar os relatos e as
opiniões de alguns dos protagonistas mais activos no período em causa.
No entanto, esta publicação teve uma circulação muito limitada, sem edição
comercial, e sem a primeira publicação dedicada exclusivamente à temática do novo
cinema a surgir ao mercado editorial chega apenas em 1985, da responsabilidade da
Cinemateca Portuguesa, destinada a acompanhar a primeira retrospectiva integral dos
filmes que integram esse momento.
Foi a partir dessa publicação que se generalizou e consagrou definitivamente o
termo “cinema novo“, que passou a representar a visão “oficial“ que se estabeleceu a
partir da retrospectiva organizada pela Cinemateca em 1985.
Para além do significado desta publicação, ficou também a iniciativa inédita de
exibir os filmes cerca de duas décadas depois e reunir os protagonistas desse período
histórico no cinema português. Cinema Novo Português 1960-74 é pois um oportuno
catálogo que integra dois estudos – «Quando o Cinema era Novo», de Luís de Pina, e
«Cinema Novo Português: Revolta ou Revolução?», de João Bénard da Costa – que se
complementam. Assinados por dois dos principais responsáveis pela valorização deste
período, esses textos integram a reunião de importantes documentos considerados
fundamentais para se iniciar uma tentativa de compreensão do cinema novo: entrevistas
com o produtor Cunha Telles e com o presidente do Centro Português de Cinema (CPC),
Fernando Lopes; inquérito aos cineastas referenciados com este movimento; antologia
de textos, que integra o Ofício do cinema em Portugal e o modus vivendi entre a Fundação
Gulbenkian e o CPC; a transcrição de uma mesa-redonda com os principais participantes
na retrospectiva; finalmente, um breve dicionário de autores da autoria de José de
Matos-Cruz e Jorge Leitão Ramos.
29
Com cerca de uma década de distância, a instituição encarregada de preservar o
património cinematográfico e promover o estudo do cinema português achou oportuno
dedicar atenção a um dos momentos fundamentais da nossa cinematografia. Através
desta publicação, Luís de Pina e Bénard da Costa divulgaram as suas visões desse
período e, de forma consistente, impuseram essas visões como matéria de facto.
Felizmente, o posterior desenvolvimento de vários estudos sobre este período
possibilitou uma problematização de alguns dados e a construção de outras visões.
Qual era então o discurso vinculado na publicação em causa? Luís de Pina
considera que as figuras do cinema novo integram “uma geração de resistência, uma
geração de esquerda ou, pelo menos, inconformada“. Enterrados os mitos do velho
cinema e do próprio Estado Novo, estes cinéfilos apresentam como característica comum
a crença na impossibilidade de “um cinema de prestígio formal e vazio de conteúdos“,
apostando num “cinema de reticência e de dúvida“, que expresse a sensibilidade
colectiva da sociedade portuguesa (Pina, 1977: 70). Comungando da mesma visão, João
Bénard da Costa reforça a ideia que, independentemente de filiações ideológicas
diversas, esta geração se encontra unida pelas mesmas convicções estéticas,
nomeadamente a defesa do cinema de autor e na reclamação “dum novo cinema para
Portugal e dum novo Portugal para o cinema“ (Costa, 1985: 15).
Em última análise, a geração do “cinema novo“ constituiria uma segunda “ínclita
geração“ no cinema português. Depois do pretenso marasmo e da decadência dos anos
50, a geração de 60, ainda que sob pretextos distintos, tentou recupera o fulgor
característico da geração de Leitão de Barros, Lopes Ribeiro, Chianca de Garcia e Brum
de Canto. De acordo com esta ideia, atribui-se a esta geração a responsabilidade pela
“regeneração“ ou “ressurgimento“ de um cinema em crise.
A designação de “segundo cinema novo português“, adoptada por Bénard da
Costa, pressupõe então a existência de uma “segunda revolução“ no panorama
cinematográfico português, um corte radical com o presente através de um regresso a
uma “idade do ouro“ que, para o autor, se encontra no passado. Nesta visão cíclica e
romântica da história do cinema português há ainda necessidade de mitificar um herói,
uma espécie de líder que guiará o colectivo ao triunfo final.8 Para o grupo principal do
8
Alberto Seixas Santos, nas páginas d’O Tempo e o Modo (X-1964: 134-135), alertava para o perigo de
as “bocas mais jovens“ exaltarem Oliveira como mito de uma geração. Por estes anos, são relevantes as
diversas homenagens à obra deste cineasta, desde cerimónias públicas a páginas dedicadas nas principais
publicações especializadas em cinema.
30
“novo cinema“, o percurso de Manuel de Oliveira tornava-o no líder ideal para patrocinar
uma eventual “revolução estética“.
Para Bénard da Costa, esta aparente união de esforços da juventude cinéfila
desenvolve-se em dois momentos fundamentais: o primeiro com António da Cunha
Telles a desempenhar o papel aglutinador enquanto, no segundo, a Fundação
Gulbenkian e o CPC repartem as respectivas responsabilidades. O segundo momento,
pela singularidade das condições de produção e pela evolução do próprio “cinema
novo“, possui características estéticas diferenciadas dos filmes produzidos por Cunha
Telles.
Por outro lado, parece definitiva a exclusão deste movimento das obras
consideradas precursoras como Dom Roberto e Pássaro de Asas Cortadas, por serem
considerados filmes herdeiros de pressupostos ideológicos e estéticos radicados no
passado e na tradição ortodoxa neo-realista. Ao contrário da geração de 50, para os
jovens realizadores do “cinema novo“ os cineclubes são apenas um ponto de passagem e
perderam uma influência na formação teórica e ideológica que desempenharam junto de
outros cinéfilos. Para estes autores, o factor “novo“ destes filmes apenas se vislumbra no
plano das intenções.
Tal como Fernando Duarte, mas por razões distintas, Bénard da Costa tem sido o
autor que mais tem insistido na afirmação da ruptura entre as tentativas de renovação
de Ernesto de Sousa e Artur Ramos com os filmes que compõem o “cinema novo“. O autor
afirma mesmo que o “cinema novo“ é concretizado “por gente que só tangencialmente
confluía com o movimento crítico da década anterior e dele era praticamente
desconhecida“ (Ibidem: 26). Obviamente, esta ideia é contrariada pelos percursos
pessoais de diversas figuras do novo cinema que passaram pelos cineclubes.9
Em 1973, na II Semana Internacional de Cinema da Figueira da Foz, numa mesaredonda dedicada aos “Temas do Novo Cinema Português“, também Alberto Seixas
Santos defendia já a ideia de balizar o “cinema novo“ a partir da obra de Paulo Rocha,
excluindo do movimento as obras de Ernesto de Sousa e de Artur Ramos (Plateia, 6-X1973: 51-52).
Não tenho quaisquer dúvidas que a exclusão desses filmes precursores do núcleo
do “cinema novo“ pretende afastar essa revolução da influência da “ortodoxia neorealista“, aproximando-o definitivamente ao discurso antagónico dos “formalistas“ e do
9
Alberto Seixas Santos, Alfredo Tropa, Cunha Telles, António Faria, António de Macedo, Faria de
Almeida, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Rogério Ceitil, António Escudeiro e Henrique Espírito Santo, entre
outros.
31
“cinema idealista“ defendido pelo grupo d’O Tempo e o Modo. Como resume o autor, a
“revolução não constitui numa mudança de nomes, mas numa mudança de natureza“, e
essa mudança de natureza permitiu a afirmação de “filmes que só ao próprio autor
responsabilizam, ou seja, filmes independentes“ (Costa 1985: 44). Atento, Manuel S.
Fonseca alerta que “são as posições de O Tempo e o Modo que definem uma linha estética
divisória no ‘Novo Cinema’“, sobretudo com a defesa das obras de Paulo Rocha e
Fernando Lopes e com a desvalorização e esquecimento de António de Macedo (Lopes,
1985: 61). Membro essencial na orientação da revista de pensamento e acção, Bénard da
Costa terá perpetuado uma visão discriminatória e subjectiva promovida pelo grupo de
intelectuais d’O Tempo e o Modo em relação à afirmação do novo cinema.
1.3. Para uma releitura do Novo cinema português
A terceira etapa é importante porque pretende avaliar um momento de viragem na
produção e difusão de conhecimento sobre o Novo cinema português. Nas últimas duas
décadas, sensivelmente a partir de 1995, tem-se problematizado o Novo cinema
português à luz de novos pressupostos históricos e estéticos. Entre outras questões,
alguns autores têm multiplicado novas interpretações para diversos factos, aclarando
dúvidas antigas e equacionando novos paradoxos.
Na sua tese de doutoramento, ao trabalhar com o mesmo período cronológico que
proponho para a minha tese, Leonor Areal (2008: 108-109) havia já deixado pertinentes
e importantes alertas metodológicos:
“(…) Abordar um vasto número de filmes – como este que aqui
me proponho abranger e que conta com cerca de 150 filmes num
período que extravasa as três décadas centrais de 1950 a 1980 (indo
por vezes investigar algumas raízes, ramos caídos e frutos
extemporâneos) – colocou-me desde início diversas dificuldades,
começando pela necessidade de ver e anotar utilmente todos esses
filmes, passando pela capacidade de guardar na memória as miríades
de imagens, sentidos e histórias diferentes, e desembocando na
grande questão metodológica: como tratar tanta informação
cinematográfica, como encontrar um fio de leitura coerente ou
condutor e, principalmente, como conciliar escalas de análise tão
diferentes – da microanálise da obra à macroanálise de movimentos,
tendências, linguagens, estilísticas, ideologias, representações, etc.
O problema seguinte foi depois: como tratar essa matéria já da
(minha) memória, e proveniente da outra matéria fílmica (imagem,
som, movimento, personagens) e narrativa (verbal, ideológica e
contextual); mais difícil é ainda: como dar conta desse tempo tornado
percepção, ou sensação ou metatempo, para conseguir reconstituir o
32
outro tempo original da diegese. Personagens, acções, sensibilidades,
ideias – tudo isto como um pedaço de vida complexa se congrega
numa obra cinematográfica e tudo se multiplica a um grau
exponencial de complexidade quando comparamos filmes, autores e
épocas.
(…)
Para esta hipótese, a teoria cinematográfica – dispersa por
várias tendências – não tinha uma resposta prévia. Nem eram as
teorias cinematográficas capazes de me responder às perguntas
metodológicas atrás feitas; nem sequer a bibliografia existente acerca
do cinema português, já que deriva de posturas críticas e intenções
diversas da minha. Assim, a resposta a estas questões só pude
encontrá-la, aos poucos, depois de conhecer os filmes. A metodologia
aplicada não deriva de uma definição anterior, pelo contrário, resulta
dessas dúvidas e dessa hipótese confrontadas com o seu objecto. A
componente de teoria (atrás) elaborada nasceu por isso do confronto
da investigadora com o seu objecto e das necessidades de reflexão
entretanto surgidas. (…)“
Tal como Leonor Areal relata, também eu tive consciência das dificuldades que a
minha proposta comportava, em particular face a uma produção bibliográfica dominante
sobre o objecto que derivavam de “posturas críticas e intenções“ distintas da que
proponho. Já em 2005, ao concluir a minha dissertação de mestrado, apercebera-me da
urgente necessidade de rever este período da história do cinema português, um período
que, ironicamente, apesar de ser dos mais estudados da história do cinema português, é
também aquele onde subsiste um maior número de contradições, mitos instituídos e
considerações extremamente subjectivas que dificultam a sua compreensão em toda a
sua complexidade.
Noutra passagem da sua tese de doutoramento, Leonor Areal (2008: 392) ressalta
ainda a necessidade de rever e corrigir, histórica e criticamente, o que se entende por
Novo cinema português:
Geralmente as transições estéticas e culturais são graduais e
encontram em certos momentos, em certas obras ou acontecimentos,
sinais de renovação mais notória que se erigem depois em marcos de
uma evolução desenhada por clivagens. Porém, a clivagem entendida
como sinal da mudança é frequentemente diagnosticada a posteriori,
quando a possibilidade ou a necessidade de fazer história se impõe, ou
até revista e corrigida, como acontecerá com o Novo Cinema
Português;
Uma das figuras mais críticas às interpretações que defendia a existência de um
movimento denominado “cinema novo“, como preconizado oficialmente pela
Cinemateca Portuguesa, foi o cineasta José Fonseca e Costa. Personalidade fundamental
na resistência cultural e política ao regime, este realizador começou o seu percurso pelo
33
cineclubismo, foi preso político e fez parte do grupo fundador do CPC. Numa carta
tornada pública acerca da retrospectiva organizada pela Cinemateca em 1985, Fonseca e
Costa rejeita qualquer filiação no movimento do “cinema novo“, não reconhecendo
sequer quaisquer “premissas estéticas“ ou “conotações políticas ou culturais“ que
possam considerar esse conjunto de filmes e autores como um movimento (Cinema Novo
Português, 1985: 72).
Já em 1973, o mesmo Fonseca e Costa afirmava: “Não tenho nada a ver com o
‘cinema novo’, estética e ideologicamente; pelo menos, nada tenho em comum com os
que aceitam esse rótulo“ (Plateia, 4-I-1974: 26). Mais recentemente, o cineasta
reiterou, em entrevista, a sua convicção de que não existe qualquer tipo de unidade
estética entre as propostas que incluem a designação “cinema novo“. O realizador
salienta ainda que esta tentativa de criar artificialmente uma unidade que nunca existiu
foi promovida por um grupo que pretende afirmar um conceito de cinema português
através da imposição de uma espécie de “ditadura estética“. Na sua opinião, esta
obsessão em refazer a história provocou omissões e deturpações de factos relevantes à
compreensão do período do novo cinema que, hoje, correm o risco de não serem
conhecidos ou ratificados (José Fonseca e Costa cit. in Cunha 2005). Opinião idêntica
tem António Faria, que na referida publicação de 1985 revela não conhecer um
“fundamento que ligasse um conjunto de filmes“. Para este realizador, a “designação
‘cinema novo’ pode ser um conceito de marketing ou obra do mero acaso“ (Cinema Novo
Português, 1985: 73).
Outra figura bastante crítica das visões preconizadas por Bénard da Costa tem sido
António de Macedo, outro protagonista que esteve nos momentos altos e baixos do
movimento de renovação. Posto de parte do grupo fundador do CPC, junto com Cunha
Telles, Macedo teve um percurso consideravelmente oposto ao do resto do núcleo no
pós-25 de Abril. As suas divergências com a facção do “cinema novo“ relativamente à
questão do público e de subsídios públicos afastaram gradualmente o realizador da
produção e da influência de outrora. Protagonista do período do “novo cinema“, Macedo
adverte que os escritos do “cine-historiador“ Bénard da Costa “muita dor de cabeça hãode provocar aos investigadores do futuro, pelas tendenciosas omissões e outras graves
distorcidelas que contêm, fruto de uma redutora e monodireccional entronização da tal
turris ebúrnea“ (Matos-Cruz 1999: 38).
Se, como adverte Fernando Lopes, Macedo “foi sempre um personagem estranho,
bizarro, marginal“ (Lopes, 1985: 59) em relação aos principais núcleos criativos da
34
geração de 60 que se reuniam nas célebres tertúlias dos cafés das Avenidas Novas, não
tenho muita dificuldade em entender esta posição do realizador. Independentemente
das suas razões, Macedo denota uma coerência no discurso em reacção ao movimento: já
em Outubro de 1967, o realizador não poupava ataques ao “pseudo-cinema Novo“,
negando categoricamente a existência de qualquer “movimento sócio-cultural“ no
cinema português (Plateia, 24-X-1967: 22).
A visão deste autor sobre o período em estudo encontra-se indirectamente
expressa em Novo Cinema, Cinema Novo (1960–1974)10. A grande divergência desta
proposta em relação à versão consagrada pela publicação de 1985 reside na clara
desmitificação da importância do grupo do “cinema novo“. Através de um interessante
conjunto de monólogos — a ausência de diálogo parece só por si um facto considerável
— dos protagonistas, assiste-se à desvalorização da suposta unidade estética que
marcou o grupo do “cinema novo“. Embora possa aceitar o “cinema novo“ enquanto
designação de um período marcado pela afirmação de uma produção independente,
Macedo inclui-se no grupo de figuras que rejeitam qualquer unidade estética ou ética
para este período.
Curiosamente, já em 1968, na resposta a um inquérito publicado no Jornal de
Letras, o próprio Cunha Telles alertava para os perigos decorrentes para o cinema
português de uma tentativa de “mitificar o aparecimento de uns tantos cineastas“. No
mesmo inquérito, o produtor alerta também para o facto de uma parte significativa
daquilo que se convencionou chamar de “novo cinema“ andar “tão afastado dos seus
fins primeiros…“ (Jornal de Letras e Artes, VI-1968: 26). No mesmo contexto, o produtor
afirmaria: “A ambição dos jovens cineastas, inventando uma etiqueta chamada CINEMA
NOVO, muleta para as suas limitações, será a sua perdição“ (Monteiro 1974: 21).
Também Seixas Santos, apesar de pertencer ao grupo que é acusado de impor
artificialmente a unidade ao cinema novo, manifestou publicamente o seu desagrado
por se atribuir ao novo cinema uma homogeneidade estética inexistente: “Nunca houve
uniformidade de métodos de produção, nem identidade estética entre os diversos
realizadores do cinema português activos nos anos 60. Só preocupações de modernidade
ligam Belarmino e Domingo à Tarde“ (Cinema Novo Português, 1985: 77).
Mais recentemente, o mesmo realizador reiterou que a unidade do novo cinema se
estruturou a partir de um inimigo comum, da ideia comum de rejeição total do velho
10
Episódio da série História do Cinema Português, produzida para a RTP pela Acetato entre
1997-1998.
35
cinema, de uma clara intenção de ruptura. Apesar das diferentes ideias de cinema, o
novo cinema defendia o cinema de autor. O rótulo generalizado pode ser um ‘slogan’
artificial, mas pretende definir essencialmente a oposição ao velho cinema (Alberto
Seixas Santos cit. in Cunha 2005).
O momento de maior visibilidade das divergências que marcaram as principais
rupturas na geração de 60 deu-se aquando da retrospectiva do “cinema novo
português“, promovida pela Cinemateca em Abril de 1985. Augusto M. Seabra e Pedro
Borges – nas páginas do Expresso e do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias,
respectivamente – foram os principais responsáveis pela agitação do debate público em
torno deste ciclo.
Pedro Borges começa por realçar a “aura de ‘heroísmo’ e ‘autoridade moral’ de que
grande parte da geração que então começou a fazer cinema“, questionando-se de
seguida sobre “a própria eventualidade de ter existido entre nós, como em muitos
outros países depois dos anos 60, um ‘cinema novo’ enquanto movimento ou tendência
que tivesse agrupado filmes e realizadores“. Ao contrário do que se verificou noutros
países, pode-se constatar que a proclamada ruptura com o velho cinema nunca produziu
um cinema com “formulação teórica e prática próprias“ e, em contrapartida, hoje são
bastante visíveis a “ingenuidade“, “contradições e indefinições“ das obras então
apresentadas (JL, 16/22-IV-1985: 4-5).
Entretanto, algumas semanas antes deste ciclo, Augusto M. Seabra havia
protagonizado um embate frontal com Bénard da Costa a propósito da programação da
Cinemateca. Entre outras considerações, o crítico acusava o responsável da Cinemateca
de “dirigista“, “falsário“ ou “carpideiro de um cinema irremediavelmente passado“. No
que respeita especificamente ao ciclo, o crítico do Expresso ironizava acerca das
“excessivas justificações [da Cinemateca] para dar a ver filmes“. No mesmo texto, o
autor não deixa de reparar que apesar deste ciclo não se chamar Homenagem a… “não
deixa de se inscrever numa estratégia geracional de resposta a algo mais do que
‘dificuldades para uma produção’“ (Expresso, 5-VI-1985: 2). As acusações de Augusto M.
Seabra parecem posicionar-se na mesma direcção de anteriores reparos por parte de
outros autores, nomeadamente em relação a um certo paternalismo ou a uma espécie de
tutela estética em relação ao suposto movimento do “cinema novo“.
António Cabrita, também jornalista do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias,
aproveitou a oportunidade oferecida no colóquio que encerrou o ciclo para questionar
as “relações subterrâneas“ existentes entre a geração do “cinema novo“. Usando
36
palavras de Paulo Rocha, o jornalista considera que as relações de “carácter obscuro,
elitista, de vocação dirigista“ produzem um cúmplice discurso “messiânico“ que visa
controlar os jogos de poder do cinema português de então (Cinema Novo Português,
1985: 147-148).
No entanto, a questão da “revolução“ introduzida pela geração de 60 também não
é unânime no seio da própria geração. O factor mais relevante das divergências sobre o
novo cinema vividas no seio da própria geração ganha visibilidade na participação dos
realizadores na retrospectiva em causa: dos vinte e três realizadores com obras exibidas
apenas seis compareceram ao debate.
São particularmente significativas as faltas dos “dissidentes crónicos“ Fonseca e
Costa e António de Macedo, mas também de nomes como João César Monteiro e
Fernando Matos Silva, membros do núcleo duro de geração de 60. Este aparente
desinteresse parece-me demonstrar uma clara desaprovação pelo teor mítico e
messiânico da homenagem promovida pela Cinemateca.
Em 1993, a Cinemateca promove um ciclo dedicado ao “cinema novo“. Intitulada
Cinema Novo Português: Trinta Anos Depois, este ciclo pretende celebrar o trigésimo
aniversário da estreia de Os Verdes Anos. Para além do filme de Paulo Rocha, Belarmino e
Dom Roberto foram os outros títulos escolhidos para integrar este pequeno ciclo.
Simultaneamente, o ciclo servia também para o lançamento público de uma colecção de
videocassetes da responsabilidade da Filmes Lusomundo dedicada ao tema “novo
cinema português“ (Expresso, 8-V-1993: 15).
O interesse desta colecção reside na surpreendente flexibilidade com que são
incluídos alguns títulos: para além dos filmes produzidos por Cunha Telles e pelo CPC, a
colecção rompe as barreiras cronológicas convencionadas e inclui nos títulos editados
obras de Artur Semedo (O Barão de Altamira, 1985; Querido Lilás, 1987), João Botelho
(Tempos Difíceis, 1988), José Fonseca e Costa (A Mulher do Próximo, 1988), Ana Luísa
Guimarães (A Nuvem, 1991), Luís Filipe Rocha (Amor e Dedinhos de Pé, 1991) ou Jorge
Marecos Duarte (Encontros Imperfeitos, 1993). Questionável, no mínimo, é a inclusão
nesta colecção do filme Raça (1961), obra de Augusto Fraga, membro da designada
“geração dos assistentes“ e uma das principais referências do velho cinema dos anos 50
e 60. Desconheço qual o critério de selecção utilizado para a reunião destes títulos sob o
rótulo de “novo cinema português“, mas dificilmente se encontra alguma justificação
minimamente aceitável para este aproveitamento abusivo da designação.
37
Mais recentemente, João César Monteiro (2005) e António de Macedo (2012)
também seriam alvo de retrospectivas organizadas pela Cinemateca Portuguesa, com a
publicação dos respectivos catálogos. No caso de Monteiro, o catálogo editado por João
Nicolau dedica uma parte muito substancial aos escritos sobre cinema do autor
dispersos por diversas publicações periódicas (Imagem, Jornal de Letras e Artes, O Tempo
e o Modo, Diário de Lisboa e Cinéfilo), reconhecendo a importância de analisar essa fase
de escrita para se entender a complexidade da sua obra cinematográfica. O cinema de
António de Macedo, coordenado por Manuel Mozos, também reúne alguns textos
fundamentais da autoria do cineasta homónimo, nomeadamente da fase inicial da sua
carreira cinematográfica.
Fora da Cinemateca, mas com o seu apoio, também se realizou outra retrospectiva
sobre um autor do Novo cinema português. Em 2006, por iniciativa do ABC Cine-Clube
de Lisboa, Alberto Seixas Santos foi alvo de uma homenagem pública, por ocasião do seu
70.º aniversário de vida, e de uma retrospectiva com os seus filmes e outros filmes
referenciais para a sua formação cinéfila e cinematográfica que decorreu no extinto
cinema Quarteto.
Atento a todas as polémicas e divergências, Paulo Filipe Monteiro dedicou
particular atenção ao estudo deste período. Este investigador começa por alertar que, na
história do cinema português, “estamos a lidar com conceitos particularmente pouco
estáveis e pouco inocentes“ (Monteiro 1995: 631). No estudo deste período, torna-se
fundamental descortinar as principais características do novo cinema: conhecer o
momento em que este adquiriu “visibilidade enquanto conjunto“ e perceber as
“divergências e polémicas que ainda hoje subsistem sobre a designação e a datação do
novo movimento“ (Ibidem: 655).
Para este autor, a confusão entre novo cinema e cinema novo serve para
caracterizar duas tendências opostas no movimento renovador: “a que prefere um
cinema novo em que, como no brasileiro, a possibilidade de afirmação de um cinema
nacional está intimamente ligada a um conteúdo político, e outra em que o ‘novo
cinema’ é mais parente da ‘nova vaga’ francesa, a da francesa política dos autores, em
que a liberdade de criação não aceita liberdades determinadas, excepto a de impor o
cinema como arte“ (Ibidem). Como conclusão, Paulo Filipe Monteiro aponta que a
expressão “cinema novo“ tenha “já talvez triunfado independentemente da discussão
conceptual que existia na origem“ (Ibidem: 656). Nos últimos textos, este autor tem
38
insistido num regresso à expressão mais geral de “novo cinema“, tentando repor a
totalidade do movimento renovador, independentemente das questões conceptuais.
Lauro António é outro autor que também tem promovido um regresso à
designação “novo cinema“. Numa publicação a propósito da comemoração dos 40 anos
da crise académica de 1962, o novo cinema é abordado no contexto de mudança e
ruptura social protagonizada pelas culturas juvenis da geração de 60. A recuperação da
designação “novo cinema“ coincide necessariamente com a restituição de Dom Roberto e
Pássaros de Asas Cortadas como fronteira desse momento (António 2002b: 8-9).
Outra das ideias fundamentais desenvolvida por Paulo Filipe Monteiro neste
domínio tem sido a designada “tomada do poder“ pelo cinema novo. Os paradoxos “de
um regime que põem no poder elementos que não lhe são afectos“ e de “elementos que,
embora não afectos ao regime, pelas suas mãos acedem ao poder“ são novas variantes de
uma temática que podem condicionar as velhas explicações e originar novas
interpretações (Monteiro 2000: 329). Os trabalhos de Paulo Filipe Monteiro inserem-se
num conjunto significativo de projecto de investigação universitária que promove uma
oportuna reavaliação e reinterpretação da história do cinema português recente.
Mas esta questão relativa às relações entre o Estado Novo e a nova geração cinéfila
havia já sido avançada por Jorge Leitão Ramos: “Quando chegou a Revolução já nada
havia a resolver nessa disputa“. Como anos mais tarde Monteiro viria a comprovar e a
desenvolver, o Estado Novo reconheceu que “o cinema português era o cinema Novo,
apesar de não afecto ao regime“ (Ramos 1989: 12).
A confirmação desta ideia permitiu olhar com outro olhar para as relações entre a
geração do cinema novo e o poder político de então. A generalidade dos autores que
estudaram o período do novo cinema tendem a aceitar a ideia da “tomada do poder“
conforme esta foi “relatada“ pelos supostos vencedores. De resto, a versão saída da
retrospectiva organizada pela Cinemateca foi fundamental para consolidar a tese
segundo a qual a geração de 60 constituiu uma “pequena máfia cinéfila“11 que, através
do que António-Pedro Vasconcelos designou por “terrorismo“ crítico (Cinema Novo
Português, 1985: 80), conseguiu ocupar as posições estratégicas no cinema português.
Contudo, em 1977, na primeira história do cinema português publicada, Luís de
Pina analisava a situação pelo ângulo contrário. O poder não terá sido conquistado pelos
jovens cinéfilos mas, pelo contrário, entregue a estes pelo próprio regime: “Alguns
11
“Era o princípio de uma pequena máfia cinéfila a sonhar com revoluções lisboetas.“ Expressão utilizada
por Paulo Rocha (Andrade, 1996: 23).
39
comentadores falam de hipocrisia do governo, em reconhecer a esquerda, em tentar
salvar as aparências, mas o que se passou foi muito simples: os membros do Conselho
sentiam já que outro cinema não era possível“. Mais adiante, o autor prossegue: “o
próprio Estado reconhece a força da nova geração e o tipo de cinema que pretende, pelo
menos o mais sério culturalmente numa actividade em que os sub-produtos atingem o
aviltamento total“ (Pina 1977: 83-84; 119). Todavia, esta é uma reflexão que retomarei
mais tarde.
Em 2001, um dos estudos mais esclarecidos sobre esta temática pertence a Fausto
Cruchinho, investigador que tem dedicado especial interesse ao estudo do novo cinema
português. Num artigo onde procura “determinar a filiação estética do Cinema Novo“, o
autor alerta para o facto de o cinema novo “ter triunfado pela mão de laicos“,
valorizando uma ruptura já referida entre os dois primeiros actos do cinema novo e as
matrizes teórica neo-realista e a prática cineclubista.
A provocação de Fausto Cruchinho revela-se na exposição de uma aproximação
entre o cinema novo de Os Verdes Anos e Belarmino com os filmes que, uma década
antes, António Ferro designava por “filmes do quotidiano“. Apesar de parecer uma
heresia aos olhos dos “mais genuínos ortodoxos“, esta provocação assenta em
pressupostos puramente estéticos. De resto, apesar da sua relação ideológica com a
herança neo-realista, os filmes do cinema novo assemelham-se mais às “histórias
contadas naturalmente, como se escreve bem ou se pinta bem, sem a preocupação dos
grandes momentos, mas feitos pelo contrário, com os nadas de todos os dias, com os
pequenos dramas sem espectaculosidade“ do que a Dom Roberto, único “fruto
bacteriologicamente puro“ do cineclubismo (Cruchinho 2001: 237).
Curiosamente, na primeira obra dedicada à história do cinema português, Luís de
Pina falava já de uma semelhança intencional dos profetas do novo cinema e dos
objectivos da política cinematográfica de António Ferro: “A ‘política do espírito’ de
António Ferro tentou levá-lo [cinema português] para outros rumos, mas eram também
rumos de convenção, de predomínio formal, de estilização expressiva que o conduziam
para longe do verdadeiro espectáculo popular que ele deverá ser sempre“ (Pina 1977:
118).
Eduardo Paz Barroso é outro autor que se tem dedicado ao estudo da prática
crítica em torno do cinema português nos anos 60 e 70 tendo mesmo sido esse o objecto
da sua tese de doutoramento (Barroso 2002). Percorrendo os diversos núcleos da crítica
cinematográfica (imprensa, cineclubes), o autor analisa a argumentação e os diversos
40
discursos utilizados na afirmação do cinema de autor em Portugal. De uma forma
original, Paz Barroso reflecte acerca das relações entre a crítica e as doutrinas e
ideologias, fazendo um importante levantamento das principais influências ideológicas
da prática crítica em Portugal (existencialismo, catolicismo, formalismo, realismo,
marxismo, estruturalismo e psicanálise).
Estes trabalhos de Fausto Cruchinho, Paulo Filipe Monteiro e Eduardo Paz Barroso
integram um importante surto de estudos que, sobretudo desde os inícios dos anos 90,
vão dedicando à temática do cinema português uma observação mais rigorosa.
Gradualmente, o objecto de estudo cinema português “começa a adquirir estatuto
universitário, dando lugar a teses académicas focadas por diversos ângulos de análise e
diferentes metodologias“, despertando a atenção de diversos domínios disciplinares. O
natural interesse por parte dos historiadores em explorar um filão da história da cultura
como o cinema permitiu o surgimento de trabalho de reconhecido valor científico. Esta
tardia mas intensa consciencialização permitiu a elaboração das primeiras dissertações
no campo metodológico da história (Torgal 2000: 13-14).
Importa sublinhar que esta temática do “novo cinema“ tem merecido um destaque
muito significativo na maioria das obras publicadas no estrangeiro dedicadas ao cinema
português12. Como esclarece José de Matos-Cruz, a temática do “cinema novo português
começou a ser estudado em paralelo com outros ‘cinemas novos’ (o do Brasil, do Canadá,
da Alemanha, da Suíça)“, tendo particular destaque as co-produções de Cunha Telles e
as diversas participações de actores franceses e brasileiros em filmes portugueses
(Matos-Cruz cit. in Costa 1985: 30).
Numa obra de referência dedicada à história mundial do cinema, assinada por
Georges Sadoul, as únicas referências ao cinema português do período 1958-1974
resume-se a duas breves frases: “Em Portugal as condições de criação são ainda mais
difíceis. Depois de 1960 podemos assinalar Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, Belarmino,
de Fernando Lopes, e Dom Roberto, de Ernesto de Sousa, melancólica evocação da Lisboa
pobre por meio de observação de um animador de fantoches“ (Sadoul 1983: 578). Em
outra obra de referência, escrita por Gaston Haustrate, destaca-se a influência do neorealismo em Dom Roberto, da nouvelle vague na obra de Paulo Rocha e do free cinema em
Fernando Lopes, assim como a importância do regresso de Manoel de Oliveira e de obras
12
Por exemplo: Portogallo: “Cinema Novo“ e oltre… (1988), Lo Stato delle cose: il nuovo cinema portighese
(1995) e Amori di perdizioni: stori di cinema portoghese 1970-1999 (1999), coordenado por Roberto
Turigliatto.
41
do circuit parallèle ao cinema oficial como O Cerco, Nojo aos Cães e O Recado (Haustrate
1997: 186-187).
De resto, a visão oficial da Cinemateca em relação ao cinema novo tem permitido a
divulgação das principais obras e dos seus autores através de importantes retrospectivas
em iniciativas significativas como festivais de cinema e cinematecas estrangeiras. A
versão oficial tem imposto, aos olhos externos, que o cinema português praticamente
não existia antes do “cinema novo“ e aproveita o prestígio internacional de figuras como
Manoel de Oliveira e João César Monteiro para os colar ao rótulo paternal do “cinema
novo“.
Em 2006, uma colectânea de textos de João Mário Grilo reunidas sob o título de O
Cinema da Não-Ilusão. Histórias para o Cinema Português, incluía uma primeira parte
intitulada “Pequena História do Cinema Português“ que recupera e actualiza um texto
publicado originalmente em 1992. Em cerca de 25 páginas, de uma forma muito sucinta
e breve, fazendo justiça ao título dessa secção, Grilo divide a história do cinema
português em quatro capítulos: “Começos“ (1896-1930), “Um cinema de actores“ (19301950), “Um cinema de autores“ (1960-1990) e “Um cinema de produtores“ (1990-).
Desde logo, atendendo a critérios quantitativos, as décadas de 1960-90 são,
inequivocamente as mais valorizadas pelo autor: os dois primeiros momentos ocupam
apenas três páginas cada e o último seis, enquanto esse período denominado Um cinema
de autores ocupa 13 páginas do total do texto.
A visão do autor sobre o período em análise nesta tese é consentânea com a visão
consagrada no catálogo/publicação da Cinemateca que acompanhou a retrospectiva de
1985. À parte as telegráficas referências ao “ano zero do cinema português“, os anos 50
praticamente não existem nessa história do cinema português, destacando-se apenas,
no final da década, os apoios públicos concedidos pelo SNI a Manoel de Oliveira e o
início da concessão de bolsas de estudos pelo mesmo organismo. Essa década de
“cinema moribundo“ (Grilo 2006: 18) é tão menosprezada que até fica fora da própria
divisão cronológica presente nos títulos dos textos.
No ano seguinte surgiria no mercado a obra O cinema português através dos seus
filmes (2007) que contrariava esta visão qualitativa da história do cinema português.
Esta publicação propunha uma reavaliação do corpus fílmico habitual das histórias do
cinema português anteriores, como declara a coordenadora Carolin Overhoff Ferreira
(2007: 9):
42
“Parece-me extremamente importante valorizar todo o tipo de
filmes, para poder entender melhor uma época, e não unicamente
aqueles que sobressaem por serem esteticamente mais bem
conseguidos (...). De facto, o livro tentou incluir tanto o filme de autor
(Brandos Costumes, Le Soulier de satin, Trás-os-Montes) como o filme
comercial (O Leão da Estrela, Os Três da Vida Airada, O Lugar do Morto,
Tentação). Apesar disso, vários autores discutem a constante
redefinição da relação entre o filme popular e o filme artístico, relação
esta que se tornou conflituosa a partir de meados dos anos 70.“
A própria estrutura do livro respeita um equilíbrio cronológico dos filmes
analisados: dos anos 50 (“estagnação e neo-realismo“) são quatro (Frei Luís de Sousa, de
António Lopes Ribeiro; Os Três da Vida Airada, de Perdigão Queiroga; Nazaré, de Manuel
Guimarães; Chaimite, de Jorge Brum do Canto); dos anos 60 (“um novo cinema“) são
dois (Os Verdes Anos, de Paulo Rocha; Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes); e dos
anos 70 (“após o 25 de Abril“) são cinco (Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos;
Que farei eu com esta espada?, de João César Monteiro; Continuar a Viver - Os Índios da
Meia Praia, de António da Cunha Telles; Trás-os-Montes, de António Reis; Amor de
Perdição, de Manoel de Oliveira).
O equilíbrio é também uma preocupação de Leonor Areal na sua detalhada obra
Cinema Português: Um País Imaginado (2011). Versão da sua tese de doutoramento
datada de 2008, esta publicação aborda de forma detalhada e diacrónica o cinema
português das décadas de 1950, 60 e 70, procurando tratar de forma idêntica “o cinema
conformista, o neo-realismo, o novo cinema e o cinema livre“, ainda que resuma o seu
corpus às longas-metragens de ficção. A sua metodologia foca-se nos filmes, “uma
perspectiva analítica de cada filme“, cruzando abordagens espácio-cartográfica,
sociográfica e etnográfica. Da análise individual dos filmes, Leonor Areal destaca dois
grande núcleos temático-formais:
"Dois movimentos artísticos se salientam neste período: o neorealismo com seu único representante Manuel Guimarães; e o novo
cinema dos anos 60, composto de uma diversidade de autores e
apresentando uma linha de evolução estética consistente, apesar das
diferenças autorais. Estes dois movimentos de resistência estéticoideológica tentavam a custo existir numa sociedade totalitária vivendo
sob o regime do Estado Novo e sujeita aos condicionalismos severos da
censura oficial." (Areal, 2008: iv)
Leonor Areal tem sido, sem dúvida, a autora que mais tem trabalhado na revisão
crítica da obra de Manuel Guimarães e do seu cinema neo-realista, sobre o contexto de
resistência que envolveu a primeira fase da sua carreira, nomeadamente as três
43
primeiras longas-metragens, realizadas nos anos 50: Saltimbancos (1951), Nazaré
(1952) e Vidas sem Rumo (1956). Sobre a década seguinte, Areal também tem defendido
o retorno à expressão Novo cinema em vez de Cinema novo e tem tratado com particular
interesse a acuidade os mecanismo de censura ao cinema durante essa fase do Estado
Novo.
No mesmo sentido de reavaliação da história do cinema português, seriam
publicadas uma tese de mestrado e três teses de doutoramento de duas investigadoras
estrangeiras que em muito contribuíram para uma releitura necessária da década de
1950.
Começo pela dissertação de mestrado de Paulo Granja, defendida em 2006: As
origens do movimento dos cineclubes em Portugal 1924-55 é um trabalho obrigatório para
se compreender a génese e o crescimento do movimento cineclubista português no
segundo quartel do séc. XX. De uma forma clara, Paulo Granja traça o cenário da
evolução das associações cinematográficas portuguesas desde o cinema mudo até à
repressão do movimento cineclubista promovida pelo Estado Novo nos anos 50.
Para além da escolha do tema pouco tratado, Paulo Granja tem também o mérito de
identificar e recuperar diversas fontes dispersas por arquivos de alguns desses
cineclubes, particularmente os de Faro, Porto, Viseu, Coimbra, mas também em arquivos
generalistas como o da Fundação Mário Soares ou do próprio Arquivo Nacional da Torre
do Tombo.
Referindo-se particularmente aos anos 50, Granja demonstra que, apesar de todos
os entraves e vigilância política, os cineclubes foram um importante foco de
dinamização cultural e artística e contribuíram decisivamente para transformações
estruturais na forma de se entender o fenómeno cinematográfico em Portugal.
Defendida em 2002, mas apenas publicada em 2006, a tese de doutoramento de
Christel Henry, A Cidade das Flores - Para uma recepção cultural em Portugal do cinema
neo-realista Italiano como metáfora possível de uma ausência, inclui um extensíssimo
estudo sobre as publicações periódicas portuguesas de temática cinematográfica
durante os anos 50, nomeadamente a Imagem (1.ª e 2.ª séries), a Filme, a Visor e a sua
sucessora Celulóide, e também sobre a crítica de cinema produzida e publicada em
alguns dos principais cineclubes portugueses desse período, nomeadamente o Clube
Português de Cinematografia/Cine-Clube do Porto, o Centro Cultural de Cinema
(Lisboa), o Cine-Clube de Faro, o Cine-Clube Imagem (Lisboa), o Cine-Clube do Barreiro,
44
o Cineclube de Espinho, o Cine-Clube Universitário de Lisboa, o Cine-Clube de Rio Maior
e o ABC Cine-Clube (Lisboa).
O tema central da sua investigação, a recepção do cinema neo-realista italiano em
Portugal, serviu de mote para uma reavaliação da década de 1950 e do debate em torno
do neo-realismo cinematográfico português. De forma abundantemente documentada,
Christel Henry demonstra que esse debate animou os núcleos de discussão cinéfila e
cinematográfica durante vários anos, contribuindo claramente para a oposição cultural
ao Estado Novo, considerada como um projecto de política cultural ortodoxa e
unidimensional, e à discussão de novas hipóteses e projectos para o presente e futuro do
próprio cinema português.
Deste estudo resulta, fundamentalmente, uma reavaliação dos anos 1950,
contrariando uma ideia estabelecida de que esse período tinha sido uma fase decadente,
uma espécie de “idade das trevas“ de que o célebre “ano zero do cinema português“ é o
ponto mais baixo. De acordo com a análise de Christel Henry, os acalorados debates e a
vitalidade dos movimentos neo-realista e cineclubista contribuíram decisiva e
inequivocamente para a renovação do panorama cinematográfico em Portugal.
Fruto da sua tese de doutoramento, Michelle Sales publicaria, em 2011, o livro Em
busca de um Novo cinema português, um contributo fundamental de mais alguém que
está fora (geograficamente) mas que estuda detalhadamente o período em análise:
Contaminado por um olhar estrangeiro, o trabalho tem como
ponto estruturante a tentativa de historicizar aquilo que se
convencionou chamar de cinema novo português (ou novo cinema
português) tateando entre os limites da história, a análise dos filmes e
das principais influências e o questionamento do estabelecimento de
certos cânones. Um pouco à maneira de Glauber Rocha que, com o
Revisão crítica do cinema brasileiro, inventa tradições e antecedentes
para o moderno cinema brasileiro – contemporâneo ao cinema novo
português – a justificativa capital que nos move é a defesa de uma
postura inquietante e desestruturadora que menos prevê conclusões
do que sinalizações para futuros desdobramentos. (Sales 2011: 3).
Entre várias questões, Michelle Sales aborda a relação paternal de Manoel de
Oliveira com a geração do Novo cinema português (Ibidem: 105-111), a influência do
neo-realismo literário nessa renovação estética (Ibidem: 113-140) e a produção e
recepção do filme Dom Roberto de Ernesto de Sousa (Ibidem: 140-52). São todas
questões pertinentes que questionam uma série de convenções da história do Novo
cinema português que tem condicionado o reconhecimento das obras de Manuel
45
Guimarães e Ernesto de Sousa, só para dar dois exemplos, na renovação estética que
alterou o cinema português nesse período.
Em suma, Michelle Sales (2011: 6) defende:
O novo cinema, como se afirma aqui, nasce da efervescência da
vida cultural portuguesa ao longo dos anos 1950, contrariando o
ponto de vista consensual, que percebe a mencionada década como os
anos negros do cinema português. A experiência do cineclubismo, a
enorme difusão e veiculação das revistas especializadas, bem como a
atuação de Manuel Guimarães, Alves Redol e Leão Penedo são o ponto
de partida para o debate em torno das feições de um novo cinema que
se dá, sobretudo, ao longo dos anos 1950 e dos anos 1960.
Recentemente, em Cinema Português: Um Guia Essencial (SESI-SP Editora, 2013),
uma obra colectiva que coordenei em parceria com Michelle Sales e que contou com a
colaboração de diversos investigadores portugueses e brasileiros, surgiram várias
hipóteses de periodização para uma síntese da história do cinema português. A opção de
dividir o objecto por décadas pretender, sobretudo, rejeitar algumas unidades impostas
a determinados períodos históricos em publicações anteriores que reduzem a leitura de
fenómenos complexos a um filme ou a um autor.
Refiro-me agora apenas aos capítulos referentes às décadas de 1950, 1960 e 1970
por corresponderem aos limites cronológicas desta tese. Em “1950-59: Anos de cinefilia
e formação“, Michelle Sales (2013: 152-172) reitera a importância dos movimentos
cineclubista e neo-realista e o caso Manuel Guimarães nas transformações estruturais,
geralmente desvalorizadas, que seriam fundamentais para a renovação estética das
décadas seguintes. Michelle Sales também destaca a importância de um corpus fílmico
pouco valorizado, o cinema amador e todo o circuito de produção e distribuição
alternativo que conseguiria notória visibilidade nacional e internacional desde finais
dos anos 1950 através de diversos festivais de cinema de amadores, estrategicamente
apoiado pela UNICA - Union Internationale du Cinéma Non Professionel, que, já em
1954, havia organizado o seu congresso anual em Lisboa.
No capítulo seguinte, “1960-69: Quando o cinema português foi moderno“ (Cunha
2013a: 173-191), da minha responsabilidade, procurei deixar claro que, apesar de ser
dos períodos mais estudados da história do cinema português, a década de 60 também é
aquela onde subsiste um maior número de contradições, mitos instituídos e
considerações extremamente subjectivas que dificultam a compreensão desse período
em toda a sua complexidade. Mais do que redefinição do corpus fílmico e textual, a
principal conclusão deste texto passa pelo processo de internacionalização do cinema
46
português que operou uma mudança de paradigma com o cinema das décadas
anteriores:
(...) ao propor uma ruptura com os projectos anteriores de um
cinema nacional para um público português (ou luso-falante, no caso
das colónias ultramarinas e da colónia de portugueses e lusodescendentes no Brasil) e uma aproximação estética ao cinema
moderno das novas vagas europeias e ao seu crescente circuito de
divulgação que passava pelos festivais de cinema e pela exibição em
contextos culturais. (Ibidem: 188)
Finalmente, no capítulo “1970-79: O cinema na transição democrática“, Jorge
Cruz (2013: 192-214) centra a sua análise e reflexão no modo de produção cooperativo,
analisando as principais transformações vividas na sociedade portuguesa desse período.
Em jeito de conclusão, Jorge Cruz afirma que o conturbado processo produtivo do filme
Amor de Perdição (1976-78) de Manoel de Oliveira marcou simbolicamente a falência do
modo de produção cooperativo, o fim da “produção militante do 'cinema de Abril“', e
lançou um novo paradigma que vingaria na década de 1980, o da internacionalização do
cinema português (Ibidem: 214).
No estudo da década de 1970, O cinema ao poder! (2002) é uma obra obrigatória.
Da autoria do investigador e cineasta José Filipe Costa, este trabalho foi um importante
contributo para conhecer um período do cinema português muito complexo, conturbado
e marcado por jogos de poder subterrâneos e invisíveis. Muito do que é hoje o cinema
português resulta de políticas de cinema que foram definidas nesses anos. Mais do que
os próprios filmes foi, portanto, necessário conhecer os grupos, as instituições, as
experiências e os projetos que existiram nesse período crucial da democratização da
sociedade portuguesa e que influências exerceram sobre o cinema português atual.
O trabalho de José Filipe Costa analisa, documentada e exaustivamente, o período
dito revolucionário balizado entre 25 de Abril de 1974 e Junho de 1976, acompanhando
todas os conflitos e cisões sindicais, a discussão para a revisão da legislação
cinematográfica, a criação de grupos de trabalho como via de transição para a
socialização do cinema e a constituição das Unidades de Produção. Para além de
diversos documentos inéditos ou pouco divulgados, coligidos em acervos pessoais ou
em publicações periódicas, o autor também inclui a transcrição de cinco entrevistas
(Manuel Neves, Alberto Seixas Santos, Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos e
Vasco Pinto Leite) que acrescentam muita informação ao conhecimento desse período.
Neste importante estudo, o autor demonstra a necessidade de valorizar novas
fontes e recuperar e disponibilizar documentos esquecidos, perdidos, ignorados ou
47
inacessíveis, para permitir leituras posteriores. Ainda assim, José Filipe Costa alerta para
o facto de não ter conseguido localizar muita documentação por dificuldades de acesso
a espólios de institutos públicos por esses ainda não estarem tratados
arquivisticamente. Esta informação sugere que muita documentação importante
continua por consultar e por analisar.
No seu ensaio ilustrado publicado em 2008, A invenção do cinema português, Tiago
Baptista dá continuidade às suas reflexões sobre a historiografia sobre cinema
português13, concluindo que uma das principais transformações da década de 1970 foi a
“desnacionalização“ do cinema português:
Era este, aliás, o principal argumento apresentado para
reivindicar o financiamento e a protecção estatal de uma pequena
cinematografia nacional de qualidade que nunca seria capaz de
competir com o cinema de entretenimento estrangeiro no mercado
livre. Esta posição acabou por ser assumida pelo próprio Estado em
1971 com a aprovação de uma nova lei de cinema e a criação do
Instituto Português de Cinema (IPC). Já foi por diversas vezes notada a
inversão presente naquela designação relativamente ao nome do
organismo criado pela lei de 1948 (o Fundo do Cinema Nacional): a
antiga formulação, que sublinhava a defesa de um cinema nacional,
dava lugar a um organismo português de cinema. O que esta inversão
assinala é uma aparente 'desnacionalização' do cinema. Ou, mais
exactamente, um descomprometimento ou uma desresponsabilização
do Estado em relação ao cinema por ele financiado. Formalmente, o
cinema apoiado pelo IPC já não tinha de ser português (como era
condição sob a vigência do Fundo do Cinema Nacional), mas sim
produzido em Portugal. O sistema de financiamento foi por isso
alterado para taxar de forma mais severa o cinema estrangeiro
distribuído no país: enquanto a lei de 1948 cobrava taxas fixas
segundo a categoria dos filmes estreados, a lei de 1971 passaria a
cobrar um imposto percentual sobre todos os bilhetes emitidos. Esta
alteração permitiu um aumento considerável das verbas disponíveis
para financiar filmes portugueses, aumento esse feito à custa dos
lucros do cinema estrangeiro. Deste modo, o Estado reconhecia que o
cinema nacional era (ou devia ser) não apenas uma forma de arte, mas
também uma parte integrante do património cultural português, que
precisava de ser protegida da hegemonia do cinema internacional.
(Baptista 2008: 85-86)
Em suma, os textos supra citados de Jorge Cruz, José Filipe Costa e Tiago Baptista
parecem suficientemente esclarecedores que as transformações mais significativas que
13
«Cinema e Nação: os primeiros trinta anos de “filmes tipicamente portugueses“», in Actas do Colóquio
“Transformações Estruturais do Campo Cultural Português, 1900-1950″ (Coimbra: CEIS20/FLUC, 2008),
347-364; «Franceses tipicamente portugueses. Roger Lion, Maurice Mariaud e Georges Pallu: da norma ao
modo de produção do cinema mudo em Portugal», in Tiago Baptista e Nuno Sena (org.), Lion, Mariaud,
Pallu: franceses tipicamente portugueses (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2003), 37-96.
48
se operaram neste período não foram propriamente visíveis nos filmes, mas sobretudo
nos seus modos de produção e de circulação.
Especificamente sobre o corpus fílmico, publicaram-se também duas importantes
obras, resultantes também de teses de doutoramento, recuperam filmes pouco
conhecido, ignorados ou desvalorizados nas súmulas históricas mais lidas. A primeira,
em termos cronológicos, foi O Paradigma do Documentário: António Campos, Cineasta
(2009), de Manuela Penafria, que centra a atenção no cineasta amador que se destacou
no documentário etnográfico. Figura marginal, mas igualmente incontornável, Campos
é um exemplo de um nome surgido fora dos meios e espaços convencionais mas que
ocupou um lugar fundamental na renovação estética do cinema português. Se o
documentário já é relativamente ignorado pelo cânone ficcional, o cinema amador e o
filme etnográfico são nichos ainda mais marginais e frequentemente desvalorizados.
Manuela Penafria analisa a sua obra e considera qua a filmografia de António Campos
(...) abre a perspectiva de uma praxis cinematográfica onde o
documentário não é apenas uma opção do realizador, mas um modo de
estar no panorama da criação de imagens em movimento e essa sua
filmografia poderá servir de inspiração a novos realizadores e
contribuir para discutir a especificidade da cinematografia
portuguesa.
E Manuela Penafria define dois objectivos principais para o seu estudo:
(...) contribuir para aprofundar o conhecimento do nosso
património cinematográfico e contribuir para recuperar a memória de
um realizador ressaltando que o conhecimento da sua filmografia se
encontra aberta a mais interpretações que aquelas a que António
Campos tem sido sujeito. (Ibidem)
O segundo estudo é O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a
1985 (2011), publicação que tem por base o projecto de doutoramento de Paulo Miguel
Martins, reúne, pela primeira vez, vários dados significativos sobre filmes industriais
produzidos em Portugal entre 1933 e 1985. Recorrendo a fundos documentais inéditos
ou pouco conhecidos, nomeadamente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e no
Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, e a uma série de testemunhos orais de
realizadores e técnicos, Paulo Miguel Martins sublinha a importância dessa produção
cinematográfica considerada “menor“ como documentos históricos valiosos capazes de
oferecer leituras alternativas à história do documentário português, valorizando
variáveis técnicas, económicas e sociais que são fundamentais para analisar esse
complexo fenómeno cinematográfico.
49
O principal mérito deste trabalho é contrariar a tendência, predominante nos
estudos de cinema, de desvalorizar tudo o que não entre no convencional cânone de
filmes de longa-metragem de ficção e ignorar uma produção cinematográfica que até é
quantitativamente superior. Entre outros méritos, Paulo Miguel Martins consegue, com
sucesso, corrigir algumas afirmações generalizantes que permitem re-equacionar
pressupostos errados entretanto estabelecidos sobre os modos de produção no cinema
português:
Em segundo lugar, o documentarismo industrial, tal como o
cultural ou turístico, permitiu a muitos cineastas começarem a
trabalhar e a iniciar as suas carreiras em objectos áudio-visuais mais
curtos e de mais simples execução, possibilitando a 'experimentação'
e a prática da arte visual e sonora de um modo regular, imediato e
concreto, que se veio a reflectir depois no maior domínio técnico,
artístico e da estrutura narrativa nas longas-metragens. Foi como que
uma escola de iniciação e um abrir de portas para o exercício
cinematográfico [...]. (Martins 2011: 180)
No entanto, como nota Sofia Sampaio (2012: 203-204), o trabalho desenvolvido
por Paulo Miguel Martins acaba por ser traído por pressupostos que ele próprio
denunciara:
“Não há dúvida que o critério decisivo [de selecção do corpus
fílmico] foi um critério artístico, e não histórico: todos os filmes foram
escolhidos por serem 'documentários indicados pelos próprios
cineastas e críticos do cinema como os mais representativos de
diferentes décadas e de diferentes realizadores' (p. 185). Daí a
exclusão do trabalho de Maria Luísa Bívar, a realizadora que mais
documentários industriais produziu, mas que Martins não considera
um caso paradigmático (p. 149). Daí, também, outros enfoques
analíticos: o papel que os documentários industriais desempenharam
como terreno de experimentação para os cineastas do 'novo cinema'; a
importância atribuída (sobretudo na primeira parte) às salas de
cinema convencionais, em detrimento de outros públicos e circuitos
de exibição (ex. Casas do Povo, cineclubes, escolas, sanatórios,
igrejas, as próprias empresas, que Martins, de resto, refere, mas não
desenvolve - pp. 89-90, 126, 206). e a sobrevalorização de dois dos
muitos usos a que o filme industrial se prestava, nomeadamente, o
prestígio e a construção de uma memória colectiva, cujas ramificações
e implicações sociais não são suficientemente explorada.“
Ainda segundo Sofia Sampaio, apesar de valorizar as relações sociais, materiais e
simbólicos, formais e informais, Martins “acaba por abraçar uma visão estetizante do
filme industrial, que radica na noção (tendencialmente a-histórica) do cinema como
arte“, contrariando a tendência teórica mais recente dos estudos sobre esses filmes e
50
convergindo para “perspectivas autorais que tendem a valorizar o documento industrial
pelo seu contributo, sobretudo ao nível formal, para o cânone ficcional“ (Ibidem: 204).
Finalmente, recuo um pouco no tempo, até 2005, para recuperar uma ideia que
avancei na minha dissertação de mestrado, quando usei a expressão Novo cinema
português enquanto sinónimo de “um período de vigência (1955-74) de um plano de
intenções homogéneas em prol da renovação estética e ética do cinema português“.
Nesse mesmo texto, rejeitei usar o termo “no sentido de definir um movimento estético
unitário“, optando entendê-la essencialmente como “conceptualização de uma unidade
formada em oposição a uma ideia de cinema vigente na cinematografia portuguesa
particularmente desde a década de 1950“ (Cunha 2005: 18).
Condicionado pelo curto período de tempo disponível para a investigação da
dissertação de mestrado, fechei o período de análise a dois marcos que considerava
significativos e fracturantes na história do cinema português: o suposto “ano zero“ do
cinema português e a Revolução de Abril. No entanto, logo percebi que esses anos
tinham sido, no que diz respeito à história do cinema português, menos significativos e
menos fracturantes do que inicialmente supunha. Se 1949, com a saída de António Ferro
da direcção do SNI, foi muito mais fracturante do que 1955, em termos cinematográficos
a revolução que mais marcou o cinema português na década de 70 foi a da aprovação da
Lei 7/71 que, entre outras coisas, criou o Instituto Português de Cinema e redefiniu a
política pública de cinema. Por outro lado, o modo de produção cooperativo que vingou
na viragem da década de 60 para 70, sobreviveria à Revolução e seria dominante até
final da década. Parece-me, portanto, que nenhuma dessa barreiras cronológicas
iniciais (1955 e 1974) serviriam de referência para estudos futuros mais abrangentes e
de maior fôlego.
Basicamente, propunha então que, em vez de se definir um corpus de filmes ou de
autores, com todas as condicionantes de subjectividade que isso comporta, se estudasse
o Novo cinema português como um recorte cronológico marcado por algumas
características dominantes, nomeadamente a oposição a uma ideia de cinema vigente
durante as décadas 30 e 40. Esta minha leitura defendia uma heterogeneidade estética,
formal e temática para as várias propostas avançadas entre as décadas de 50, 60 e 70, e
contraria as hipóteses de leitura de que alguns desses filmes ou desses autores
pudessem constituiriam grupos ou movimentos hegemónicos.
Continuo ainda convencido que será essa a melhor aplicação da expressão Novo
cinema português: uma espécie de zeitgeist que atravessou três décadas do cinema
51
português que conheceu várias propostas formais e informais de renovação estética e
técnica do cinema português com protagonistas, objectivos e métodos diferentes. Nesse
período, é possível identificar propostas de renovação com corpus fílmicos e autorais
distintas que coexistiram no espaço e no tempo. Mais do que um cânone fechado como
foi definido gradualmente pela crítica ao abrigo da expressão “cinema novo“, entendo
que o Novo cinema português é um momento marcado pela heterogeneidade de
propostas, com critérios inclusivos e não-discricionários, que se distingue pelos modos
de produção do que por filmes ou por leituras subjectivos de carácter estético.
Já ficou implícito e documentado, mas não é demasiado ressaltar que para a
recente releitura a que a história do cinema português tem sido sujeita, e muito
particularmente durante o período de vigência do Estado Novo, tem sido decisiva a
disponibilização de inúmeras fontes, até há poucos anos inexistentes ou inacessíveis,
no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e no Arquivo Nacional das Imagens em
Movimento.
1.4. Memória, crítica e historiografia
Para fechar este primeiro capítulo é o momento de reflectir criticamente sobre as
relações entre cinema, memória, crítica e historiografia e que influências terão exercido
na forma como se interpreta hoje a história do cinema português e, em particular, o
Novo cinema português.
Quase nove anos depois de ter feito o estado da arte para o capítulo introdutório
da minha dissertação de mestrado (Cunha 2005), volto a recuperar uma frase que então
de serviu de mote para esse exercício de revisão:
Usa-se a expressão ‘história mal contada’ quando, depois de
ouvirmos uma, nos fica a sensação de que muito ficou por dizer e que
entre a narração e a verdade vai a légua da póvoa. Presume-se que o
contador sabe o que não diz ou diz o que não sabe. (Costa 1998: 47)
Esta citação de Bénard da Costa é o melhor ponto de partida para a reflexão
possível neste momento. Se o autor presume duas conclusões possíveis para as
“histórias mal contadas“ – “o contador sabe o que não diz ou diz o que não sabe“ –
acrescento aqui uma terceira: o contador diz o que lhe convém e como lhe convém. Ao
longo dos vários estudos realizados em torno do cinema português tornou-se claro que
52
os autores das diversas súmulas históricas, movidos por interesses pessoais ou
corporativos, construíram e divulgaram visões diametralmente opostas sobre um mesmo
objecto de estudo. Por outro lado, só muito recentemente é que a designada “gente do
cinema“
14
perdeu o monopólio da escrita sobre o cinema português, permitindo o
desenvolvimento de uma produção historiográfica independente que parte sobretudo de
centro de investigação agregados a instituições de ensino superior. Estes novos autores,
com
preocupações
metodológicas,
procuram
desenvolver
um
trabalho
sem
compromissos aparentes com o objecto de estudo. O facto de provirem de áreas
exteriores à cinematográfica parece dotá-los de uma certa independência em relação às
relações de afectividade e cumplicidade que vigoram entre a “família cinéfila“.
Apesar de lembrar que “o passado não é o mesmo para todos“, o historiador
francês Marc Ferro alerta para as diversas tentativas em uniformizar o passado através de
vários aparelhos de reprodução, procurando que uma memória colectiva se imponha
como “verdade histórica“. Esta instrumentalização da memória e da história parece
orientar-se pela máxima recordada por Marc Ferro – “Controlar o passado ajuda a
dominar o presente, a legitimar ascendentes e contestações“ – e permite que a história
assuma uma dupla função de terapêutica e militância (Ferro [s.d.]: 15-17).
Tal como acontece com as outras áreas disciplinares, a História, devido à
constante redefinição metodológica, tem permitido reequacionar problemas antigos e,
por vezes, revolucionar o conhecimento de certas temáticas. O que tenho verificado no
caso específico da história do cinema português é a recente revelação da diversidade de
representação e interpretação de factos, à luz de novos dados e da reavaliação das fontes
disponíveis. Devido à relativa proximidade cronológica com o período em estudo, os
historiadores que se dedicam ao trajecto do cinema português na segunda metade do
séc. XX beneficiam do privilégio de poderem contactar directamente com algumas fontes
significativas. No entanto, este contacto directo com as fontes orais ainda disponíveis
merece, para além de cuidados metodológicos, a consciente percepção dos perigos de
trabalhar com um objecto assente na subjectividade e na selectividade.
14
Até 1990, como penso ter ficado claro nas páginas anteriores, os principais autores que escreviam sobre
a história do cinema português eram pessoas ligadas à actividade cinematográfica: Manuel Félix Ribeiro
era funcionário do Secretariado Nacional de Informação e foi o primeiro director da Cinemateca
Portuguesa; Luís de Pina, que lhe sucedeu na direcção desse organismo público, desempenhou diversas
funções públicas como administrativo; João Bénard da Costa, apesar da formação superior em HistóricoFilosóficas, destacou-se sobretudo como curador e programador de cinema, primeiro na Fundação
Calouste Gulbenkian e depois na Cinemateca Portuguesa.
53
Por um lado, a petite histoire do cinema português ainda está por fazer. Parece-nos
que a importância dos encontros informais e relações subterrâneas entre os diversos
protagonistas e figurantes do Novo cinema é mais importante do que parece à primeira
vista. O jogo de cumplicidades e de influências que alguns denunciaram por diversas
vezes – recordo o debate final da retrospectiva organizada pela Cinemateca Portuguesa
em 1985 – parece ter desempenhado um papel dinâmico na construção da história e
parece também fundamental na construção da visão histórica sobre alguns períodos do
cinema português.
Um exemplo esclarecedor sobre a ajuda que a petite histoire pode prestar à “grande
história“ foi o relatado por António de Macedo acerca do processo de obtenção da
autorização excepcional de exibição do seu filme Nojo aos Cães no Festival de Bérgamo,
apesar da inflexível proibição de exibição do filme nas salas nacionais:
A situação era delicada, se os broncos das comissões de censura
vissem o filme, que, do ponto de vista deles, devia ter peçonha até aos
olhos, não haveria autorização. O Francisco de Castro [produtor] então
lembrou-se de uma maroteira: como o despacho final dependia da
autoridade do dr. Caetano de Carvalho, então director-geral, por sinal
muito amigo dele, convidou-o a assistir a uma projecção privada no
estúdio das ‘Produções Francisco de Castro’, na Rua Damasceno
Monteiro, com a presença do realizador, mal a cópia acabasse de sair
do laboratório. O director-geral anuiu.
O Castro organizou um bufete cheio de aperitivos e de garrafas
de bom whisky, o dr. Caetano de Carvalho apresentou-se com o chefe
da repartição, que era o saudoso dr. Félix Ribeiro, e passámos todos
uma tarde agradabilíssima, a ver o filme, bobina a bobina, à medida
que as bobinas chegavam do laboratório, conversando muito e
bebendo mais. À saída, dizia-me o director-geral com um brilho de
felicidade nos olhos:
- Senhor Arquitecto (era comigo), para a próxima faça um filme
mais optimista, este é muito deprimente. Amanhã sem falta terá a
autorização para ir a Bérgamo. (Macedo 2007: 29)
Esta transcrição não pretende, de forma alguma, atenuar ou aligeirar a castradora
influência da censura na actividade cinematográfica portuguesa, mas apenas a
importância da complexa rede de relações subterrâneas de cumplicidade no desenlace
de algumas decisões contraditórias relativas às práticas discriminatórias positivas e
negativas no período do designado Novo cinema português.
A par da petite histoire, o papel da memória afigura-se essencial à produção
historiográfica em torno do Novo cinema português. Como refere Fernando Catroga,
autor de referência no estudo da memória, esta assume um carácter subjectivo e
selectivo na construção do passado, privilegiando o “cariz totalizador e teleológico da
54
recordação“ onde a história e a ficção se misturam e os factos se miscigenam com
conotações estéticas e éticas (Catroga 2001: 20-21).
Regressando ao texto de Bénard da Costa, na história do cinema português é
perfeitamente visível que “os paladares mudem com os tempos e mudem com as
vontades“, e esta permeabilidade a pressupostos ideológicos parecem suficientes para
justificar o facto de não existir uma história consensual do cinema português, mas antes
uma diversidade de “histórias do cinema português, mal contadas e mal vistas“ (Costa
1998: 47). Fernando Catroga acentua que é natural “que cada presente construa a sua
própria história, não só em função da onticidade do que ocorreu, mas também das
necessidades e lutas do presente.“ Mais, é a memória “quem dá futuros ao passado“,
desempenhando uma importante função social através das “liturgias próprias centradas
em reavivamentos“ e dos “ritos que o reproduzem e transmitem“ (Catroga 2001: 22-23).
Atendendo a estas palavras, pode-se considerar que a Cinemateca tem tido um
papel crucial na promoção e divulgação de ritos e liturgias que tentam impor uma certa
visão do cinema português das décadas de 1960-70, nomeadamente as retrospectivas de
1985 e 1993, a publicação de obras de pretensão historicizante ou a mediatização de
obras publicadas pelo seu responsável máximo.
Em última análise, o comprometimento estético ou ético da generalidade dos
autores das diversas súmulas da história do cinema português prejudicou o
desenvolvimento de uma historiografia mais isenta e objectiva em torno da temática. No
período do Novo cinema, entendo que a Cinemateca Portuguesa desempenhou um papel
fundamental na legitimação de uma visão polémica do passado, nomeadamente através
da celebração de liturgias – retrospectiva e publicação – que permitiram, como é a sua
função, “criar coerência e perpetuar o sentimento de pertença e de continuidade“.
Acentuando a “acção recriadora“ da memória, Fernando Catroga reforça um dos
argumentos mais repetidos pelos vários críticos à “verdade oficial“ promovida pela
Cinemateca e pelo seu director: “Recordar é, não só seleccionar e esquecer, mas também
uma operação de resgate“ (Ibidem: 29-31).
Fernando Catroga conclui que não se pode ignorar que “a historiografia também
funciona como fonte produtora (e legitimadora) de memórias e tradições, chegando
mesmo a fornecer credibilidade cientificista a novos mitos de (re)fundação de grupos e
da própria nação (reinvenção e sacralização das origens e de momentos de grandeza
simbolizados em ‘heróis’ individuais e colectivos)“ (Ibidem: 50).
55
Paulo Filipe Monteiro corrobora esta considerações sobre a “invenção da tradição“
a propósito do caso concreto da investigação em torno do Novo cinema português:
É nessa década que começa a fazer-se um trabalho de afirmação
do Novo Cinema português: uma invenção da tradição que,
inevitavelmente, significa a exclusão das tradições que a nova geração
considera não corresponderem à essência do cinema (moderno)
português» (Monteiro 2004: 33).
A propósito da invenção das tradições, Eric Hobsbawn (1997: 9) distingue
claramente entre “tradição genuína“ — a que surge de forma espontânea e se perde no
tempo — e “tradição inventada“ — que é instituída, de forma insistente e muito rápida,
através da repetição simbólica e ritualizada e que obedece a um conjunto de regras
reguladas e formalmente institucionalizadas.
Sobre estas considerações de Fernando Catroga, Paulo Filipe Monteiro e Eric
Hobsbawn, deixo aqui apenas alguns exemplos desta prática memorialista pouco
rigorosa que tem sido recorrente nos escritos sobre a história do cinema português e que
tem feito perpetuar leituras e interpretações pouco claras ou mesmo incorrectas.
Em primeiro lugar, o caso da crítica diária no Diário de Lisboa. Segundo João
Bénard da Costa, Lauro António começou a fazer crítica diária de cinema no Diário de
Lisboa em 1965, inaugurando uma prática que mais tarde seria reproduzida por outros
títulos generalistas:
1965 é ano dum acontecimento de bastantes consequências: o
Diário de Lisboa confia a Lauro António (outro nome recentemente
chegada à crítica) a recensão das estreias cinematográficas. Até aí,
esta (a chamada 'crítica de cinema', diariamente inserida nos jornais)
limitava-se a cumprir, mais ou menos directamente, fins publicitários.
Todos os filmes eram, ao exibir-se em Portugal, excelentes e iguais em
alto interesse. Permitiam-se variações de adjectivos, mas jamais
execuções, sumárias ou elaboradas. O Diário de Lisboa cortou com esta
tradição quase cinquentenária e Lauro António começou a escrever
dos seus gostos e desgostos. Caiu-lhe o Carmo e a Trindade e os
distribuidores chegaram a ameaçar o jornal com o corte de
publicidade. Conseguiram correr com João César Monteiro, que com
ele alternava de modo particularmente mais virulento, e só não
conseguiram correr com o Lauro António porque, com abaixoassinados e tudo, toda a gente se bateu por ele. Outros jornais
passaram a seguir o exemplo e, no fim da década, a 'velha crítica'
estava sepulta. (Costa 1985: 29)
Uma versão mais resumida é reproduzida noutra publicação do autor:
Até 65, as críticas dos diários eram meras recensões
publicitárias. A distribuição cinematográfica reagiu muito mal à
inovação (chegou a ameaçar com a retirada de publicidade) e a prática
só se generalizou no início dos anos 70. (Costa 1991: 124).
56
No entanto, a versão do próprio Lauro António, confirmada pelas publicações do
próprio Diário de Lisboa, é substancialmente diferente:
Em fins de 1967, eu [Lauro António] e o Eduardo Prado Coelho
fomos convidados pelo Ruella Ramos a escrever diariamente no
prestigiado ‘Diário de Lisboa’, então possivelmente o melhor jornal
português, uma espécie de ‘Le Monde’ à escala portuguesa. [...]
Começámos a escrever e, no início de 1968, estalou uma bronca
monstruosa, que fez de nós dois ‘heróis nacionais’ de um dia para o
outro. (António, 2008a: 79)
A “bronca“ a que Lauro António se refere teve como principal protagonista uma
associação de exibidores de cinema de Lisboa designada Cineasso – Cinemas Associados,
Lda. Dirigida pelo Eng. José Gil, a Cineasso agregava os maiores espaços de exibição da
capital: Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden e S. Luiz.
Considerando-se ameaçado nos seus interesses, numa época em que o número de
espectadores cinematográficos baixava consideravelmente, a Cineasso decidiu intervir
de forma rápida e eficaz. No dia 23 de Fevereiro, enviou uma carta ao director do jornal:
Confirmamos o nosso telefonema de hoje no sentido de ser
anulada a publicidade sob a rubrica ‘Cartaz dos Cinemas’,
relativamente aos nossos cinemas ‘Alvalade’, ‘Eden’, ‘Estúdio’,
‘Europa’, ‘Império’, ‘Monumental’ e ‘São Luiz’.
Tivemos ocasião de manifestar a VV. Ex.as o nosso
desapontamento e discordância pela orientação dada recentemente a
certas notícias de estreias publicadas no jornal de VV. Ex.as, porque
consideramos que não é aceitável que nas mesmas se desacreditem os
espectáculos.
A chamada liberdade de imprensa nada tem que ser invocada ao
considerarem as relações entre entidades de interesses ligados, como
é o caso da imprensa que carece da publicidade e da indústria que não
pode viver sem ela.
A crítica cinematográfica exercida com independência absoluta
e sujeita a controvérsias de outros técnicos, está lógica e naturalmente
reservada à imprensa da especialidade.
Na diária, a confusão só pode gerar este lamentável atropelo de
entidades que sempre prezaram muito o ‘Diário de Lisboa’ e nele
tiveram um dos melhores defensores dos legítimos anseios da
indústria dos espectáculos.
A decisão que nos vimos forçados a tomar será complementada
com a supressão de toda e qualquer publicidade das empresas nossas
associadas. (Diário de Lisboa, 28-II1968: 1)
A Cineasso ameaçou e cumpriu. No dia 28 de Fevereiro, a publicidade dos seus
cinemas associados desapareceu das páginas do jornal. Entre as semanas que durou o
boicote, apenas encontrei nas páginas do Diário de Lisboa publicidade de espaços
exibidores que não integravam a Cineasso: Avis, São Jorge, Roma, Mundial, Europa,
57
Condes, Politeama, Estúdio 444. Em resposta, o Diário de Lisboa mediatizou a questão
nas suas páginas e, entre o dia 29 de Fevereiro e 2 de Março, publicou diversas
mensagens de apoio à sua atitude e de repúdio à intimidação da Cineasso, entre as quais
uma assinada por diversos intelectuais ligados à imprensa e à crítica. A Cineasso
acabaria por ceder e tudo voltaria, gradualmente, ao normal. A publicidade mais
rentável, os cartazes ilustrados, só mais tarde voltariam a ter a regularidade que se
verificava antes do boicote (Cunha 2008).
O primeiro equívoco de Bénard da Costa prende-se com a datação deste episódio:
de acordo com o depoimento de Lauro António (2008a) e da pesquisa feita directamente
no próprio Diário de Lisboa, esta polémica ocorreu no início de 1968 e não em 1965. Este
pequeno desvio de 3 anos poderia não ser significativo, mas neste caso concreto é,
nomeadamente por ter ocorrido poucas semanas após a realização, no Porto, da Semana
de Estudos do Novo Cinema Português. Para além de errar na cronologia, a versão de
Bénard da Costa também induz em erro ao dizer que os exibidores ameaçaram com o
boicote quando, na realidade, materializaram mesmo o boicote e só cederam por causa
da campanha mediática promovida pelo Diário de Lisboa. Em relação ao afastamento de
João César Monteiro, e após uma minuciosa pesquisa nos seis meses anteriores à
polémica, constatei que o jovem crítico não escrevia no Diário de Lisboa à época da
polémica com os exibidores. E de acordo com a publicação da Cinemateca Portuguesa
dedicada ao cineasta, João César Monteiro só colaboraria com o diurno lisboeta a partir
de 1970, primeiro na secção dedicada à crítica e mais tarde no suplemento literário.
Agora o segundo caso. Em Março de 1964, num dos primeiros sinais de
reconhecimento internacional, Pierre Kast assinava na Cahiers du Cinéma um texto
intitulado Lettre de Lisbonne (Março de 1964: 41-42), em que anunciava a “nouvelle
vague portugaise“ promovida por cinco portugueses “unis comme les doigts de la main“
(unidos como os dedos de uma mão). Citando o texto original, Bénard da Costa (1985:
30) identifica os “dedos“ referindo explicitamente os seus sobrenomes: “Rocha, Lopes,
Fonseca e Costa, Cunha Telles e Oliveira“.
No entanto, no texto original, os cinco “dedos“ identificados por Pierre Kast foram
Paulo Rocha, Fernando Lopes, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães e António da
Cunha Telles. O nome de Oliveira é referido como uma referência para todos os outros,
como um “ainé“ (“amo“), um “artisan type complet“ (artista completo) que “fait tout
chez lui, à Porto, tout seul“ (faz tudo em casa, no Porto, sozinho).
58
Pode parecer um pormenor, mas esta exclusão de Manuel Guimarães dessa “mão“
que estaria a promover a “nouvelle vague portugaise“ servia sobretudo as teses que
queriam demarcar o novo cinema dos anos 60 das experiências precursoras como Dom
Roberto, Pássaros de Asas Cortadas ou os filmes “neo-realistas“ de Manuel Guimarães.
Para além disso, a inclusão do nome de Manuel Guimarães (em 1964 contava 49 anos de
idade) punha em causa o carácter geracional da “revolução cinemanovista“ e a sua
suposta autonomia em relação ao movimento neo-realista.
Finalmente, um terceiro caso. O filme Catembe, realizado em 1965 por Faria de
Almeida, em Lisboa e em Moçambique, é célebre por ter sido o filme português mais
“esquartejado“ pela censura do Estado Novo. Devido ao silêncio do seu realizador, que
durante décadas não se pronunciou sobre esse traumático processo, muito se escreveu e
especulou sobre a produção, a rodagem e a montagem do filme. Uma das ideias que se
instalou sobre a produção do filme é que o facto de a sua exibição ter sido proibida
agravou a precariedade financeira das Produções Cunha Telles e contribuiu para o fecho
dessa jovem casa produtora:
Mudar de Vida, filme também de mudança de Paulo Rocha, entre
o legado europeu de Verdes Anos e os rumos futuros da sua obra (com
coisas belíssimas, mas afectado por um 'corte epistemológico') foi o
canto do cisne, no mesmo ano em que a censura proibia pela primeira
vez (e do bolso de Cunha Telles saiu esse dinheiro) um fruto do cinema
novo: Catembe de Faria de Almeida. (Costa 1985: 31)
Mais uma vez, depois de trabalhos científicos que procuraram as fontes, percebese que a leitura é incorrecta e mais subjectiva do que se pretendia. De acordo com as
pesquisas de Maria do Carmo Piçarra, o projecto Catembe beneficiou de um apoio total
de 350 contos provenientes do SNI (200 contos de subsídio a fundo perdido e mais um
empréstimo de 150 contos) e o próprio Faria de Almeida também desempenhou funções
de produtor, tentando obter financiamento local para a rodagem do filme e dirigindo a
produção durante a maior parte da rodagem (os primeiros quinze dias de um máximo de
três semanas), porque Cunha Telles permanecera em Lisboa. Por outro lado, como a
equipa de rodagem era reduzida e Faria de Almeida ainda se socorreu de apoios
familiares, o investimento de Cunha Telles não terá sido significativo. Finalmente, o
próprio Faria de Almeida esclarece que reembolsou Cunha Telles para que o produtor
madeirense “deixasse de ter qualquer direito sobre o filme“ (Piçarra 2012: 252-264).
Ainda a propósito das Produções Cunha Telles, convém relembrar que existem
outros relatos contraditórios em relação ao financiamento de outros filmes,
59
nomeadamente Os Verdes Anos e Mudar de Vida, ambos de Paulo Rocha, que pretendi
aclarar numa comunicação que apresentei durante os trabalhos de investigação para
esta tese (Cunha 2011).
Estes exemplos parecem mostrar que é necessário e urgente rever as fontes no
estudo da história do cinema português, questionando ideias-feitas ou mitos instituídos
pela crítica ou por escritos sobre cinema produzidos por autores “comprometidos“ com o
próprio objecto de estudo. Interessa voltar às fontes, reconstruir o corpus documental e
fílmico, rever e reler depoimentos e testemunhos, em suma, fazer um trabalho
arqueológico de base, evitando releituras anacrónicas ou comprometidas do passado e
procurar olhar o objecto de uma forma inédita, atendendo a diversos factores
contextuais até aqui pouco ou nada considerados.
60
2. As políticas públicas para o cinema em Portugal (1949-1980)
Neste capítulo, dedicado às políticas públicas para o cinema português ente 1949
e 1980, procurarei caracterizar, analisar e compreender a intervenção do Estado e do
poder político na evolução do cinema português, através de uma visão alargada que
tentará compreender a grande narrativa que foi sendo construída acerca do cinema
português no período em estudo.
Tentarei definir as principais características desse período do cinema português
atendendo às contraposições e tenções entre “velho cinema“ e “novo cinema“, as
transformações estruturais e a afirmação de vontades políticas, ideológicas e estéticas
para o cinema português.
2.1. A falência do projecto cultural de António Ferro
Simbolicamente, o princípio do fim do consulado de António Ferro à frente do
SPN/SNI terá sido assinalado pela mudança de designação do organismo público. Em
1944, pelo decreto n.º 33.545, de 23 de Fevereiro, o termo “Propaganda“ caía da
designação oficial do organismo guardião da política cultural do regime para dar lugar
ao termo “Informação“. Mais do que uma mera alteração simultaneamente lexical e
semântica, esta mudança marca uma significativa alteração de estratégia e dos
objectivos na execução da política cultural do regime. A evidente conotação do termo
Propaganda com os regimes fascistas precipitava uma considerável redefinição na acção
do organismo, estendida agora à supervisão dos serviços de censura e de todas as formas
de comunicação social.15
A redefinição das funções de António Ferro anunciava a falência do seu projecto
cultural. O forte investimento ideológico no sector cultural não produzira resultados
práticos significativos para a tão desejada “regeneração“ da cultura portuguesa. O caso
específico do cinema é bem demonstrativo das ambições e dos limites com que se
deparou a Política do Espírito. A perda de influência e a fragmentação do núcleo de
15
Entre as novas competências do Secretariado Nacional de Informação conta-se a tutela da Emissora
Nacional e da Direcção-Geral de Espectáculos. O organismo reforçava assim o estatuto de maior
instrumento ao serviço do controlo cultural do Estado Novo.
61
cineastas próximos ao poder é também significativa do estado de crise que afectava a
política cinematográfica do regime.16
A partir de 1946, António Ferro inicia um conjunto de comunicações públicas que
se pautam sobretudo por um tom auto-crítico em relação ao panorama cultural
português. Três discursos fundamentais marcaram a resignação de António Ferro
perante o assumido fracasso do seu projecto cultural: “Grandeza e Miséria do Cinema
Português“ (12-VIII-1946), “O Estado e o Cinema“ (30-XII-1947) e “O Cinema e o Teatro“
(21-XI-1949).
No primeiro, António Ferro lançava severas críticas ao panorama cinematográfico
nacional, reconhecendo que os problemas do cinema português eram conjunturais —
manifesta falta de qualificação dos diversos profissionais envolvidos na indústria
cinematográfica, desde os produtores e argumentistas, aos actores e técnicos17 — e
estruturais — na má interpretação e má aplicação do fenómeno cinematográfico no
panorama cultural português —, mas ambos poderiam ser ultrapassados com uma forte
intervenção estatal na cultura portuguesa.
No segundo, o mais célebre, António Ferro proferiu, provavelmente, o mais
desconcertante e demolidor dos seus discursos. Ao longo de uma espécie de “via sacra“,
em que percorre todos os géneros cinematográficos produzidos em Portugal durante a
sua regência na tutela da propaganda e informação, Ferro denuncia ferozmente a falta
de vitalidade criativa e capacidade profícua do sector cinematográfico nacional.
Repartindo acusações, o próprio dirigente não se iliba das suas responsabilidades
enquanto “timoneiro“ do fracassado projecto de regeneração da cultura cinematográfica
portuguesa.
O discurso abre com algumas referências concretas à positiva intervenção
proteccionista do Estado nos assuntos cinematográficos, lamentando que, apesar do
importante investimento estatal, o sector cinematográfico não tenha correspondido às
expectativas: não obstante dispor de dois “caminhos“ distintos para o desenvolvimento
do cinema nacional – a arte ou a indústria – os produtores não souberam aproveitar as
oportunidades oferecidas.
16
António Lopes Ribeiro abandonava as longas-metragens com O Primo Basílio (1959) e Leitão de Barros
com Vendaval Maravilhoso (1949), enquanto Brum do Canto iniciava um exílio voluntário do cinema após
a rodagem de Chaimite (1953) e Chianca de Garcia partira já em 1938 para o Brasil.
17
Segundo António Ferro, os problemas do cinema português são: “o mal de retórica“, “falta de ritmo“,
“falta de cuidado“, “cemitério de vedetas“ e “os argumentos“. Cf. Ferro 1950: 48-52.
62
Através da revisitação de toda a produção fílmica dos anos em que dirigiu o
SPN/SNI, Ferro traça um diagnóstico arrasador do seu projecto de renovação da
cinematografia nacional. Para além de ignorar os seus alertas para garantir uma “certa
elevação“ do gosto e dos métodos de exploração comercial, os produtores são ainda
acusados de optarem por “servir, obedientemente, pela lei do menor esforço, o chamado
gosto popular“. Na sua opinião, o cinema abstraiu-se de qualquer missão civilizadora,
servindo sobretudo de veículo de reprodução aos decadentes valores vigentes, e
escusando-se de contribuir com o esforço colectivo de regeneração da Nação exigido
pelo Estado Novo e por António Ferro em particular.
A Política do Espírito, que tanto havia prometido, fracassara nos seus intentos. No
entanto, Ferro continuava a acreditar que o mau gosto geral do público era “educável“,
desde que houvesse vontade e empenhamento das pessoas responsáveis pela criação e
divulgação artística, nomeadamente produtores e realizadores. A então recémpublicada Lei 2.027, como se verá adiante, era apontada no discurso como instrumento
indispensável ao futuro desenvolvimento do cinema
Finalmente, no último dos três discursos, António Ferro recupera as críticas
anteriores e, fundamentalmente, reitera o apelo à mobilização de esforços na missão
última de dar um novo rumo ao cinema nacional. Neste derradeiro discurso enquanto
director do SNI, Ferro ensaia uma nova crítica, agora de ordem financeira e operativa.
Em “erros de administração“, António Ferro reconhece que a indústria cinematográfica
portuguesa necessita de novos administradores, de uma nova estrutura, mais sólida a
nível operacional e financeiro. Além de retirar alguma responsabilidade operativa ao
Estado, libertando-o para funções reguladoras e proteccionistas, a profissionalização
progressiva dos homens do cinema poderia evitar a “natural tendência para o
esbanjamento“ que se verifica na produção fílmica. Por um lado, uma gestão mais
responsável poderia resolver outros problemas de carácter material, como a aquisição de
novos e melhores equipamentos e o investimento no sector da exibição. Por outro lado,
entendia-se que novas estratégias de produção seriam benéficas para o
desenvolvimento de um mercado mais diversificado, apostando, para além das grandes
produções, também em produções médias (“filmes francamente baratos“), de modo a
potencializar os recursos e a revitalizar o sector (Ibidem: 87-88).
Na opinião de Ferro, o cinema português não estava, de todo, condenado ao
insucesso. Dotado de razoáveis recursos materiais e humanos, passíveis de uma
valorização, o cinema nacional necessitava sobretudo de “uma orientação, um caminho
63
a seguir e, ainda o mais difícil, a obediência, sem excessos de individualismo, a essa
orientação“ (Ibidem: 88). Esta frase parece encerrar, afinal, a maior das críticas de
Ferro: denuncia a inoperacionalidade manifestada por alguns sectores do regime;
denuncia a ociosidade e falta de iniciativa dos agentes privados da indústria
cinematográfica; e, finalmente, denuncia também os inimigos da primeira hora, aqueles
que nunca permitiram o êxito da Política do Espírito ao intoxicarem a opinião pública
com um discurso “reaccionário“.
Distribuídos temporalmente por três anos e meio, estes discursos contêm uma
importante unidade na reflexão dos problemas essenciais à renovação da cultura
portuguesa. Da sua leitura ressalta uma significativa insatisfação pelo estado geral da
cinematografia nacional, materializada através de um conjunto de acusações concretas
que enunciam os vários problemas que impediriam, no entender de Ferro, o
desenvolvimento qualitativo do cinema português. Apesar de acreditar na possibilidade
de renovação do cinema português, Ferro não parece crente de que a viabilidade dessa
renovação possa passar pelo seu projecto cultural.
As razões que afastaram António Ferro do SPN/SNI permanecem pouco claras e
foram interpretadas de várias maneiras. As principais versões apontam para a
insatisfação de Salazar ou do próprio Ferro, “que pedira a demissão por se sentir incapaz
de fazer mais do que já tinha feito“ (Castro 1987: 96-97)18. Acredito que a demissão de
Ferro esteja directamente relacionada com o fracasso do seu projecto de política cultural
e de educação do povo, a célebre Política do Espírito. Sabendo que os conceitos de
política e de propaganda sofreram uma clara alteração provocada pela falência dos
regimes fascista e nazi, e que Salazar pretendeu acompanhar essa transformação19, não
é de estranhar a vontade do ditador de se afastar definitivamente desse projecto cultural
da Política do Espírito. Para agravar, a frágil concretização do projecto — perante tão
altas expectativas — parece não ter favorecido a sua continuidade.
Por seu lado, Ferro parece ter compreendido as mudanças políticas e ideológicas
do contexto internacional e, sobretudo, as dificuldades que se avizinhavam; por isso,
terá aceitado a redefinição das suas competências e a resignação ao seu projecto
cultural. O “acto de contrição“ presente nos três discursos referidos parece ser um
18
Segundo a esposa de António Ferro, o abandono deste do SPN/SNI deve-se a precoces problemas de
saúde, relacionados com o excesso de trabalho a que esteve sujeito enquanto político.
19
Foi precisamente em 1944 que o Secretariado de Propaganda Nacional foi rebaptizado como
Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo. Mais do que uma reorientação
ideológica, não se pode deixar de notar na substituição do termo Propaganda pelo termo Informação.
64
reconhecimento público de resignação política protagonizado por um dirigente
desiludido e desacreditado pela sua principal base de apoio.
Para António Rodrigues, António Ferro não encarava a sua demissão como uma
derrota pessoal, mas apenas lamentava “o não saber que fazer com as censuradas ilusões
de modernidade mantidas desde a juventude“. Ainda para o mesmo autor, o fracasso da
Política do Espírito deve-se a razões de ordem estrutural da sociedade e da cultura
portuguesas, nomeadamente a “mentalidade conservadora e obstrucionista“ expressa
pelo Estado Novo e pelo próprio Oliveira Salazar (Rodrigues 1987: XXIV).
Reconheço uma certa insatisfação de Ferro perante uma visão materialista de
Salazar da política cultural. Apesar de admirar o sentido de Estado do ditador, António
Ferro não terá aceitado que Salazar tenha desistido do seu programa de regeneração
cultural e artística. Ultrapassado o período de forte investimento ideológico do Estado
Novo e agravada a oposição interna e externa ao regime, a justificação de um projecto
cultural como o de Ferro perdera a actualidade e falira politicamente.
No entanto, mesmo antes de se afastar, António Ferro conseguia fizer aprovar a
primeira lei geral de cinema em Portugal20, a Lei 2.027, de 18 de Fevereiro de 1948. A
publicação desse extenso diploma era o culminar de um longo processo que admitia o
fracasso da estratégia de António Ferro.
A primeira versão da “lei de protecção ao cinema nacional“ foi publicada a 24 de
Dezembro de 1946, sob a forma de decreto n.º 36.058, beneficiando claramente o sector
da produção e “trincava forte nos distribuidores e exibidores.“ Mas, segundo João
Bénard da Costa (1998: 54), apenas três dias depois, a 27 de Dezembro, “depois de os
americanos ameaçarem com boicote“, “Salazar em pessoa mudou o decreto“ e, no início
de 1947, “recambiou-o para a Assembleia Nacional para os deputados da nação o
discutirem.“ Reforçando a ideia generalizada da importância da legislação para o futuro
do cinema português, “o ano foi escaldante, com cada um a mexer os cordelinhos que
podia.“ Depois de os deputados rejeitarem a “versão soft emendada pelo Chefe“, o
processo regressou à Câmara Corporativa para novo parecer e, finalmente, a 18 de
Fevereiro de 1948, a Lei 2.027 era publicada e seria regulamentada em 1949 (Ibidem).
20
Até 1948 havia sido aprovada legislação diversa sobre a produção e exibição cinematográfica — a
famosa “lei dos cem metros“ (decreto n.º 13.564, de 6 de Maio de 1927), uma comissão de estudo do
cinema educativo (decreto n.º 20.859, de 4 de Fevereiro de 1932) ou a regulamentação da frequência dos
espectadores menores (Lei n.º 1.974, de 16 de Fevereiro de 1939), para dar alguns exemplos — mas
tratou-se de diplomas isolados produzidos sem concertação, como aconteceria com a Lei 2.027. Para
conhecer a legislação cinematográfica produzida em Portugal até 1980, ver Anexos, A.
65
Do ponto de vista meramente teórico, a polémica legislação parecia beneficiar
sobretudo o sector da produção, nomeadamente com a criação do Fundo do cinema
nacional (FCN):
“Artigo 1.º A fim de proteger, coordenar e estimular a produção
do cinema nacional, e tendo em atenção a sua função social e
educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural, é criado o
Fundo do cinema nacional.“
Na prática, de todas as finalidades do FCN, sobressaia a “concessão às entidades
produtoras de filmes portugueses de subsídios destinados a cobrir parte do custo desses
filmes“ (Art. 7.º, 1.º). Para além de eventuais dotações extraordinárias por parte do
Estado, a principal forma de financiamento do FCN seriam as receitas resultantes das
taxas de licença de exibição, que incidia, acima de tudo, sobre os filmes estrangeiros21.
O que também desagradou aos sectores da distribuição e da exibição foi a criação
de um “contingente de filmes portugueses“:
“Artigo 17.º Todos os cinemas são obrigados a exibir filmes
portugueses de grande metragem, na proporção mínima de uma
semana de cinema nacional por cada cinco semanas de cinema
estrangeiro, independentemente do número de espectáculos
semanais.“
Como filme português, de acordo com o artigo 11.º, considerava-se os filmes que
cumprissem três condições: “ser falado em língua portuguesa“, ser produzido em
estúdios e laboratórios portugueses e “ser representativo do espírito português, quer
traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo,
quer se inspire nos grande temas da vida e da cultura universais.“
Inequivocamente, a terceira das condições considerada na nova legislação para
definir — e, consequentemente, financiar — o filme português ia ao encontro dos
“caminhos seguros“, sugeridos pelo próprio Ferro no discurso “O Estado e o Cinema“
acima referido, para a afirmação do cinema português: os filmes históricos, os
documentários e os “filmes de natureza poética“ (Ferro 1950: 64-65).
Segundo Ferro, fora dos apoios deveriam ficar também outros filmes tidos como
responsáveis pela crise criativa do cinema português: “filmes regionais ou folclóricos“,
os “filmes extraídos de romances ou de peças teatrais“, os filmes policiais e,
21
Filmes de fundo (com mais de 1.800 metros): categoria A (filme principal em sessões de estreia):
10.000$00, categoria B (filmes destinados a programas duplos): 5.000$00; Filmes de complemento:
categoria C (farsas e atrações musicais): 500$00; categoria D (desenhos animados): 400$00; categoria E
(documentários e congéneres): 200$00; categoria F (actualidades): 100$00.
66
principalmente, os filmes cómicos. Baseados em fórmulas simples e repetitivas, e
explorando os “chavões“, estes géneros fílmicos representam “o que há de mais inferior
na nossa mentalidade“. Os filmes regionais e folclóricos, com o “bailaricos“ e cantigas
“nitidamente metidos a martelo“, reproduzem visões estilizadas e depreciativas do
regionalismo e folclore portugueses. Os filmes extraídos de romances ou de peças
teatrais, com enormes potencialidades, não correspondem às qualidades da nossa
literatura. Dos filmes policiais, apenas se registam “fracas e infelizes tentativas“.
Finalmente, os filmes cómicos, esse “cancro do cinema nacional“, registam um enorme
êxito comercial, impossibilitando um desenvolvimento equilibrado dos outros géneros
e, principalmente dos técnicos e artistas portugueses (Ibidem: 63-67).
No entanto, apesar da criação do FCN e do contingente para filmes portugueses, a
nova legislação não iria produzir efeitos práticos por falta de regulamentação. Um bom
exemplo desta inércia é o caso da Cinemateca Nacional: criada formalmente pela lei
2.027 (Art. 7.º, 6.º), os depósitos de filmes só seriam construídos em 1954 e a abertura
da biblioteca e o início das actividades de programação só aconteceriam em 1958.
Um pouco por toda a imprensa diária e periódica mais distante do regime, a lei
2.027 foi recebida com certo receio e desilusão. Como resume Luís de Pina, depois do
“aceso debate na Assembleia Nacional, de viva polémica nos jornais, e do protesto
isolado, mas contundente, de Roberto Nobre“, a lei de protecção ao cinema nacional era
finalmente publicada. Contudo, “o diploma não só ignorava ou desacautelava a situação
efectiva da economia do cinema português, como também só viria a ser regulamentado
muito depois em aspectos fundamentais da sua aplicação“. As críticas mais frequentes
diziam respeito à precária situação do circuito de exibição e das salas de cinema, à
hegemonia na exibição do filme estrangeiro, e à “política de compadrio“ que vigorava na
atribuição de subsídios à produção, “obrigando os filmes a seguirem a regra do jogo
cultural e político“ do regime (Pina 1977: 54-56).
Roberto Nobre, experiente crítico de cinema da Seara Nova e da Vértice, publicaria
um texto, prontamente proibido pela Censura, no qual fazia uma violenta análise da
nova lei: “O SNI quer pôr os cineastas directamente ao serviço da sua política,
prendendo-os pela barriga, 'sugerindo' o que lhe apetecer, e sem despender um
centavo, pois é ao Cinema que se vai buscar o 'fundo' — e será o público em última
análise que pagará esse novo aspecto da sua política.“ (Nobre, 1946: 27-28).
Luís de Pina (1977: 134-135) considera que a legislação de 1948, como muitas que
a precederam, denuncia a hesitação do legislador “entre o encorajamento e a limitação“,
67
tendo sido também prejudicada porque a sua regulamentação foi sucessivamente adiada
(só definida em 1956). Também Bénard da Costa (1998: 54) atribui ao legislador pouca
determinação e convicção na produção e aplicação da lei:
“Só em 1948, a 18 de Fevereiro, houve lei. Foi regulamentada
em 1949, ano efectivo da passagem da teoria à prática. Criou-se o
'Fundo do Cinema Nacional', mas quem quisesse beneficiar dele não
podia andar metido em brejeirices ou nas comédias a que Ferro
chamava cancros. E aos exibidores e distribuidores exigia-se o mesmo
que sempre se exigira. Que ajudassem como queriam e como
pudessem.“
Os anos seguintes comprovaram as piores expectativas. Quando se procurava uma
renovação da cinematografia portuguesa, bem expressa nos últimos discursos de
António Ferro enquanto director do SNI, a legislação vigente demonstrava na prática
que era ineficaz e desadequada às necessidades da tão ambicionada renovação.
A espera da “lei de protecção ao cinema nacional“ – devido à deriva ideológica e
perda de significado político do SNI, agravada pela criação da televisão pública –
deixara o mercado cinematográfico entregue à exploração dos interesses de exibidores e
distribuidores dependentes da importação de cinema estrangeiro.
Os dois principais defeitos da nova legislação revelavam-se ao nível da letra da lei
e da regulamentação de algumas disposições fundamentais. A fragilidade do
vocabulário utilizado permitiu deturpações e interpretações subjectivas usadas por
interesses privados e afectando o sector da produção. A nível da distribuição e exibição,
o cinema português viu-se prejudicado sobretudo com o atraso da entrada em vigor de
importantes disposições legais. Só a título de exemplo, convém sublinhar que os
importantes artigos 17.º, 18.º, 19.º e 21.º da Lei 2.027, referentes à exibição de filmes
portugueses de longa-metragem em regime de estreia22, só seriam regulamentados pelo
Decreto n.º 40.715, de 2 de Agosto de 1956.
Para além da falta de regulamentação, o afastamento de António Ferro também
terá sido determinante na falta de resultados práticos. Após a demissão de António
Ferro, o sector cultural do Estado Novo conhece um período de clara descaracterização
ideológica. Ultrapassado o período de forte investimento ideológico do Estado Novo23 e
22
Esta legislação específica fixava as condições de distribuição dos filmes portugueses, impondo a
exploração “à percentagem“ para as exibições de estreia, e obrigava os exibidores a mantê-los em cartaz
enquanto mantivessem as receitas da semana anterior acima dos 60% da receita máxima realizável. Mais
importante, este novo decreto regulamentava a quota de exibição de filmes portugueses nos cinemas de
estreia de Lisboa e do Porto.
23
“Mas o tempo correu, os pioneiros envelheceram, António Ferro saiu para a diplomacia, o organismo
cresceu, absorveu novas tarefas, admitiu muito pessoal que já não tinha o fogo, o entusiasmo, a
68
agravada a oposição interna e externa ao regime, a justificação de um projecto cultural
como o de Ferro perdera a actualidade e falira politicamente. Ao mentor da Política do
Espírito sucedem António Eça de Queirós (1949-51), José Manuel Pereira da Costa
(1951-56) e Eduardo Brazão (1956-58), cujos apagados consulados ficariam marcados
pela falência técnica do cinema português.
Apesar do prestígio de António Eça de Queirós, sobretudo por ser filho do escritor
Eça de Queirós, o seu consulado enquanto director interino foi breve: de 7 de Novembro
de 1949 a 27 de Fevereiro de 1951. Proveniente dos meios da extrema-direita fascistas e
integralista, António Eça de Queirós acompanhou Ferro como um dos quadros iniciais do
SPN, estando ligado à criação da Acção Escolar Vanguarda (1934), a primeira
organização juvenil fascista que precedeu a Mocidade Portuguesa. A sua proximidade
com Ferro levou-o a ser nomeado sub-director do SPN a partir de 1943 e a assumir um
papel de destaque na gestão dos serviços de imprensa do regime (Eliade, 1988: 95). Em
1951, deixou a direcção do SNI para assumir a Presidência da Direcção da Emissora
Nacional de Difusão, onde permaneceria até 1959.
José Manuel Pereira da Costa foi o director que lhe sucedeu no SNI: um antigo
jornalista que chegou a presidir ao Sindicato Nacional de Jornalistas, tornou-se num
funcionário de carreira sem grandes linhas programáticas, limitando-se “a gerir a
situação encontrada, concentrando as suas energias na melhoria da eficiência do
sistema censório“ (Fontes, b: em linha). É no seu consulado, entre 1 de Março de 1951 e
5 de Fevereiro de 1956, que surgem diversas iniciativas: a criação da Comissão de Exame
da Literatura e Espectáculos para Menores (Decreto-Lei n.º 38.964, de 27 de Outubro de
1952), “satisfazendo uma exigência há muito reclamada por sectores católicos“
(Ibidem), e regulação sobre a assistência de menores a espectáculos públicos; a criação
da Federação Portuguesa dos Cineclubes (Decreto-Lei 40.572, de 16 de Abril de 1956),
que apertava o cerco ao movimento cineclubista; completada no ano seguinte com o
Dec. 41.062, que restringia a circulação de filmes em formato reduzido (16 mm e 8 mm);
a integração no SNI das Casas de Portugal, que passaram a ser utilizadas como suas
secções no estrangeiro.
O sucessor de Pereira da Costa foi Eduardo Brazão, filho do reconhecido actor
homónimo, que chefiou o SNI entre 6 de Fevereiro de 1956 e 31 de Janeiro de 1958.
Brazão chegou à direcção do SNI pela influência de Marcelo Caetano, que meses antes
imaginação (e até a fidelidade ideológica...) das primeiras horas e apenas procurava ganhar a vida.“
(Caetano, 1977: 460). Este balanço feito pelo então Ministro da Presidência e futuro Presidente do
Conselho é bem demonstrativo da deriva do SNI resultante do afastamento de António Ferro.
69
assumira o Ministério da Presidência (Julho de 1955). Quando aceitou a tutela de
Ministro da Presidência, uma das competências que Marcelo Caetano herdou passava
pelo controlo do SNI, que se encontrava “caído no marasmo“ e cujos contratos com os
seus quadros “davam a impressão de se estar a lidar com amadores“ (Caetano, 1977:
460). A missão de Brazão consistia em “organizar a casa, tarefa difícil devido aos muitos
chefes vitalícios que era impossível desalojar, e imprimir-lhes novo dinamismo“
(Ibidem). Em linhas gerais, o SNI adoptava duas directivas principais: “as de promoção,
apoio, colaboração à imprensa“; e “as de polícia dos delitos de imprensa que pertencia a
uma Direcção dos Serviços de Censura“. Nas palavras do próprio, o “Secretariado deveria
ser o alimentador, o acelerador; a censura o freio, o travão...“ (Ibidem: 469).
O período subsequente ao abandono de António Ferro ficou marcado por uma
visível desorientação ideológica e estética na intervenção cultural do Estado, em
particular no sector cinematográfico. O claro desinvestimento que marcou os consulados
dos sucessores do intelectual fundador do SPN/SNI denota também uma certa crise
ideológica e orgânica do Estado Novo que, durante as décadas de 40 e 50, acumulou
crises políticas e sociais que fragilizaram o regime. Ao contrário dos projectos
“concretos“ de António Ferro – Cinema Ambulante, Teatro do Povo, Bibliotecas
Itinerantes, Bailado Verde Gaio e produção directa de outras diversas iniciativas –, os
seus sucessores procuraram assegurar a gestão de projectos anteriores e revelaram
sobretudo a falta da orientação ideológica que marcara os anos de Ferro.
Os dados financeiros do Fundo do Cinema Nacional referentes à década seguinte
ao abandono de António Ferro são expressivos — sobretudo na coluna das despesas —
da perda de importância do cinema no contexto da política pública para a cultura. Esse
instrumento de fomento da indústria cinematográfica, a principal novidade da lei 2.207
e a grande esperança para o sector da produção, não registou os resultados antecipados
pelos mais optimistas, que esperavam um fundo de incentivo e de apoio à produção que
dinamizasse e aumentasse exponencialmente a produção de cinema português.
Tabela n.º 1
Relatórios financeiros do Fundo do Cinema Nacional
(fonte: dados compilados a partir de ANTT/SNI, caixas 605, 670, 718, 851, 4612 e 4998)
Ano
1949
1950
1951
1952
Orçamentado
7.000.000$00
2.500.000$00
3.100.000$00
3.000.000$00
Despesas
4.558.700$00
4.559.961$10
2.668.094$70
2.073.394$50
70
Receitas
6.705.430$00
2.496.990$00
3.006.402$20
3.459.843$70
Saldo
2.146.730$00
-2.062.971$90
338.308$50
1.386.449$20
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
Total
3.500.000$00
3.500.000$00
3.500.000$00
4.200.000$00
4.200.000$00
4.200.000$00
?
?
?
2.566.644$70
2.030.588$70
4.981.177$50
3.794.957$80
4.631.245$30
4.121.668$20
5.090.641$00
4.750.573$40
45.817.646$90
2.967.540$20
4.137.972$50
3.436.166$60
3.582.866$30
3.886.915$90
5.112.629$90
4.661.866$70
3.818.840$70
47.273.464$70
400.896$50
2.107.384$80
1.545.011$10
-212.091$50
-744.330$60
990.961$70
-428.775$00
-931.733$30
1.445.817$80
Nos números referentes às despesas, é notório que, após os dois anos iniciais, os
gastos do Fundo desceram abruptamente em cerca de 50%, só recuperando os valores
iniciais a partir de 1955. Neste período de 12 anos (1949-1960), o que se verifica é que,
apesar da quebra das receitas, o funcionamento do Fundo de Cinema Nacional foi
garantido pelas receitas do próprio mercado cinematográfico.
Para um fundo de que se esperava que revitalizasse a produção de cinema
português, o FCN apenas serviu para angariar dinheiro vindo do próprio mercado,
através das licenças e taxas de exibição sobretudo, para continuar a produzir e a
financiar filmes de propaganda: Cantinas Escolares (1950, Fernando Garcia), O Jubileu de
Salazar (1953, António Lopes Ribeiro), A Casa do Gaiato (1954, Silva Brandão), 30 Anos
com Salazar (1957, António Lopes Ribeiro), Portugal no Oriente (1958, António Lopes
Ribeiro) e Rapsódia Portuguesa (1959, João Mendes), entre muitos outros, são
expressivos exemplos dessa política.
2.1.1. 1955: ano zero de quê?
O suposto “apagamento“ político do SNI verificado ao longo da década de 1950,
para além do insucesso do legado de António Ferro, terá significado também uma “idade
das trevas“ para o cinema português, simbolicamente materializado, em 1955, com o
célebre “ano zero do cinema português“. Na história do cinema português, o ano de
1955 é considerado por muitos autores como um “ano zero“ para o cinema português
uma vez que durante o mesmo não estreou nas salas portuguesas nenhum filme de
longa-metragem de produção nacional. Apesar de se concluir com isto que terá havido
uma estagnação da produção cinematográfica, não podemos ignorar que, de acordo com
o Prontuário do Cinema Português de José de Matos-Cruz (1989: 112-114), nesse ano
71
estrearam nas salas 99 filmes de produção portuguesa com metragem inferior a 1.800
metros de película ou com menos de 60 minutos de duração.
Esses 99 filmes não são considerados como significativos para quem defende a
teoria do “ano zero“ porque, para a generalidade dos autores, a produção
cinematográfica parece limitar-se aos filmes de longa-metragem ou, como na época era
mais populares chamar-lhes, filmes de fundo. Em termos de metragem, esses 99 filmes
de curta-metragem equivalem, aproximadamente, a cerca de 30 mil metros, ou seja, a
cerca de 10 longas-metragens.
A historiografia clássica produzida sobre o fenómeno cinematográfico constrói
uma interpretação da realidade que parte de uma visão selectiva da produção elaborada
em torno de paradigmas que condicionam a priori os próprios limites do objecto
cinematográfico. Por isso, exceptuando alguns casos excepcionais – o clássico Douro,
faina fluvial (1931) de Manoel de Oliveira ou o recentemente premiado Arena (2009) de
João Salaviza, a produção de filmes de curta-metragem é frequentemente menorizada
ou secundarizada nos estudos historiográficos e estéticos elaborados em torno do
objecto cinema português. O mesmo se passa com géneros cinematográficos
considerados “menores“ para a generalidade dos autores com abordagens mais
estilísticas, como o filme documentário.
Infelizmente, esta sucessiva desvalorização destes objectos de estudo tem
influenciado significativamente a constituição de um corpus bibliográfico e de um
corpus fílmico deficitário, que condiciona o estudo do cinema em Portugal. A
valorização de um grande número de filmes permite expandir e alargar interpretações do
passado em função de novos dados e indicadores agora aceites como fontes
historiográficas.
A desvalorização da curta-metragem talvez fosse adequada à produção
cinematográfica das décadas de 1930 e 40, quando a produção desses filmes era
efectivamente minoritária. No entanto, segundo dados disponibilizados pelo Instituto
Nacional de Estatística (INE), entre 1945 e 1954 houve uma evolução na produção
cinematográfica portuguesa no sentido do aumento de filmes de pequena-metragem,
então balizados até aos 1.800 metros de película.
Tabela n.º 2
Filmes portugueses produzidos entre 1945 e 1954,
em metros de película utilizada
(fonte: dados compilados a partir do Anuário Estatístico 1954: 132)
72
Ano
Total de
película
em metros
1945
1946
1947
1948
1949
1950
1951
1952
1953
1954
20.700
34.692
36.508
20.802
37.468
32.216
31.500
39.138
37.467
26.664
Filmes de
grandemetragem
(mais de
1.800m)
13.865
24.480
26.131
10.224
20.536
9.300
13.838
22.115
11.500
8.690
Filmes de
pequenametragem
(menos de
1.800m)
6.835
10.212
10.777
10.578
16.932
22.662
17.662
17.023
25.967
16.974
% de filmes
de pequenametragem
33%
29%
30%
51%
45%
70%
56%
43%
69%
64%
Depois de uma posição marcadamente minoritária verificada no triénio 19451946-1947, a rondar apenas os 30 por cento, a produção de curtas-metragens conseguiu
equilibrar as contas em relação à produção de longas-metragens e, a partir de 1950,
passou mesmo a ser maioritária, com a excepção verificada em 1952. A partir de 1953,
beneficiando sobretudo de uma quebra acentuada na produção das longas, a curtametragem torna-se o género mais produzido em Portugal.
No período imediatamente seguinte, agora a partir dos dados compilados no
Prontuário do Cinema Português de José Matos-Cruz (1989: 112-118), faço notar que a
importância dos filmes de curtas-metragens no panorama da produção cinematográfica
portuguesa foi, entre 1955 e 1960, esmagadora, fundamental e inegável para a
sobrevivência do sector.
Tabela n.º 3
Filmes portugueses estreados entre 1955 e 1960
(fonte: dados compilados a partir do Prontuário do Cinema Português)
Ano
Total
1955
1956
1957
1958
1959
1960
99
134
110
163
163
148
Longas-metragens
0
4
4
6
4
3
Curtas-metragens
Metros
0
19,530
7,937
15,426
10,413
8,754
99
130
106
157
159
145
73
Metros
28,023 (1)
36,997 (2)
34,079 (3)
37,869 (4)
39,372 (5)
38,807 (6)
% de Curtas em
relação à
produção total
100%
65%
81%
71%
79%
82%
Notas: Apesar de estarem identificados como curtas-metragens, não foi possível determinar com
exactidão a metragem de (1) 17 filmes; (2) 13 filmes; (3) 9 filmes; (4) 39 filmes; (5) 18 filmes; (6) 19
filmes.
Na segunda metade da década de 50, e não obstante os dados relativos à
metragem das curtas ser impreciso por defeito, o domínio deste género outrora
minoritário no sector da produção é impressionante. Mesmo por defeito, as curtasmetragens representam cerca de 80% do total da produção cinematográfica portuguesa
entre 1955-60. Apesar do crescimento, o domínio da produção de curtas beneficiou
também de uma diminuição da produção de longas-metragens: por exemplo, em 1959 e
1960, a produção de longas foi inferior ao registo de 1945 enquanto, por seu lado, as
curtas-metragens apresentam um aumento de mais de 500 por cento.
Parece evidente que os anos 50 foram um período de mudança de paradigma na
produção cinematográfica portuguesa. A falência do projecto cultural de António Ferro
implicou também o desmoronar de um núcleo de realizadores que monopolizara a
produção fílmica de longa-metragem ficcional. Desses filmes, produzidos e estreados
entre 1933-44, cerca de 75 por cento do total são de: António Lopes Ribeiro (5), José
Leitão de Barros (5), Jorge Brum do Canto (5), Chianca de Garcia (3) e Arthur Duarte
(3). Após a saída de Ferro, estes realizadores foram abandonando a realização ao longo
dos anos seguintes e deixando lugar à designada “geração dos assistentes“24, que se
limitaram, na generalidade, a reproduzir os métodos de trabalho anteriores e lutar pela
sobrevivência numa lógica de comodismo e mínimo risco, sem grandes preocupações
estéticas ou artísticas.
A reduzida dimensão e precariedade financeira do mercado português e o
monopólio consolidado no sector da produção de longas-metragens, por um lado, e a
necessidade de produzir filmes de curta-metragem de produção portuguesa para
integrar os programas cinematográficos como exigia a legislação em vigor, por outro,
24
A “geração dos assistentes“ é uma designação pejorativa para a geração de realizadores que dominaram
a produção cinematográfica nos anos 50. Esta designação justifica-se porque a maioria desses
realizadores começaram a sua carreira como assistentes dos realizadores das duas décadas anteriores e a
sua formação foi feita exclusivamente à base da experiência adquirida na produção. Assinalem-se:
Fernando Garcia (estreou-se em Heróis do Mar, em 1949, depois de ter sido assistente de Jorge Brum do
Canto, Francisco Ribeiro e Manoel de Oliveira), Constantino Esteves (estreou-se na realização em 1953,
com O Comissário de Polícia, mas antes foi assistente de António Lopes Ribeiro e Jorge Brum do Canto),
Augusto Fraga (estreou-se na realização com Sangue Toureiro, em 1958, mas antes foi assistente de
realização em quatro filmes de Arthur Duarte) e Perdigão Queiroga (estreou-se em 1947, com Fado,
História de uma cantadeira, mas antes foi assistente de câmara de Francisco Ribeiro, Jorge Brum do Canto
e Manoel de Oliveira). Curiosamente, Manuel Guimarães, que foi assistente de Manoel de Oliveira, Jorge
Brum do Canto, Arthur Duarte, Armando de Miranda e António Lopes Ribeiro, nunca surge creditado como
integrante desta “geração dos assistentes“.
74
foram determinantes para a expansão do sector de produção ao nível da curtametragem. O aumento quantitativo promoveu também uma diversificação da produção.
Mas outra questão fundamental, independentemente desta circunstância da
desvalorização do género da curta-metragem, é a ideia generalizada, entre a história do
cinema português canónica, de uma suposta “idade das trevas“ que o cinema português
teria vivido durante a década de 50 e de que o suposto “ano zero“ de 1955 seria o
momento simbólico mais marcante. O quadro seguinte conta o número de filmes
estreados nas salas portuguesas e o número de entidades produtoras que os produziram.
Tabela n.º 4
Produção de cinema em Portugal entre 1940-1959
(fonte: dados compilados a partir do Prontuário do Cinema Português)
Ano
Total de filmes
estreados
1940
1941
1942
1943
1944
1945
1946
1947
1948
1949
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
56
69
35
31
29
41
57
71
59
98
98
78
92
110
108
99
142
115
165
176
Curtas-metragens
(até 1.800
metros)
50
66
32
25
24
35
48
63
54
90
96
74
84
105
103
99
138
114
159
173
Longasmetragens
(1)
6
3
3
6
5
6
9
8
5
8
2
4
8
5
5
0
4
1
6
3
Entidades
produtores (2)
14
12
11
12
12
18
21
23
18
22
25
23
26
23
27
17
31
25
37
44
Notas: (1) Nesta categoria não estão contabilizadas longas-metragens de produção estrangeira
com rodagem parcial ou integral em Portugal; ao contrário de outras contagens similares a esta, nesta
contagem incluem-se as obras de ficção e de documentário; (2) Nesta categoria não estão contabilizadas
as entidades produtoras em actividade em Portugal, mas apenas aquelas que estrearam filmes nesse ano
civil.
De uma análise isolada das diferentes colunas, é possível determinar várias
tendências interessantes e pouco condizentes com a história canónica do cinema
75
português. Em relação às curtas-metragens e ao total de filmes, o ano 1955 está muito
longe de ser um “ano zero“ do cinema português: mantém a média aproximada dos anos
imediatamente anteriores e supera significativamente a média dos anos 40. Em relação
às longas-metragens, o contexto já é diferente, registando-se uma quebra na tendência
dos anos imediatamente anteriores: tem de se recuar até 1944 para se identificar um ano
com menos entidades produtoras em actividade. Nas longas-metragens, apesar de 1950
e 1957 não serem assim tão díspares, o ano em questão destaca-se mesmo nestas balizas
temporais como o único sem qualquer estreia. Ainda assim, convém não confundir, ao
contrário do que acontece com a generalidade dos autores que mais insistem nesta tese
do “ano zero“, produção com estreia, ou seja, apesar de não ter estreado nenhuma
longa-metragem durante 1955, tal não significa que não houvesse alguma em processo
de produção ou pós-produção. Meramente a título de exemplo, é importante recordar
que nesse ano Manuel Guimarães remontava o seu filme Vidas sem Rumo, que havia sido
esquartejado pela censura, e Artur Semedo também passou o ano na pós-produção de O
Dinheiro dos Pobres, que havia sido rodado em Setembro de 1954 e só estrearia em
Junho de 1956, também atrasado, em parte, pelos cortes da censura.
É minha opinião que o endurecimento da repressão da censura ao cinema,
acentuado na década de 1950, correspondeu a uma mudança de estratégia no seio da
política pública em Portugal; entre 1933 e 1949, durante o período em que António
Ferro dirigiu a política cultural e artística do Estado Novo, no momento da sua
institucionalização e de assumido maior investimento ideológico, a censura ao cinema
português fazia sentir-se sobretudo na fase da pré-produção. A monopolização dos
meios de produção não permitia a concretização de projecto cinematográfico fora da
alçada ou da vigilância oficial. De facto, não conheço neste período qualquer proibição
integral de um filme e são poucos os exemplos de cortes de cenas por parte da censura.
Entre os filmes produzidos entre 1933-1949, são publicamente conhecidos cortes em
apenas dois filmes: Maria Papoila (1937), de Leitão de Barros, de que foram cortadas
algumas cenas (Matos-Cruz, 1999: 55); e Aldeia da Roupa Branca (1938), de Chianca de
Garcia, que teve um “pequeno corte“ por algo considerado “imoral“ (Ibidem: 56).
Estes dois títulos foram assinados por duas das figuras cinéfilas mais marcantes
das décadas iniciais do Estado Novo. Apesar de desconhecer concretamente quais as
cenas ou planos cortados, acredito que se trataria de cortes pouco ou nada significativos
na construção fílmica das obras. De resto, estes dois filmes constroem-se em torno de
um confronto entre a valorizada imagem da mulher rural e a depreciada imagem da
76
mulher urbana, que se reforça essencialmente nos elementos visuais. Ambos os filmes
apresentam algumas sequências filmadas em espaços considerados de alguma reserva
moral, nomeadamente em casas de diversão como os cabarets, onde as mulheres fumam
e bebem de forma social e moralmente reprováveis. Não estranharia, portanto, que os
planos censurados integrassem algumas dessas sequências mais sensíveis para a moral
dominante da época.
Nesse período inicial de acção de António Ferro e do seu SPN, o regime conseguiu
rodear-se de um importante conjunto de realizadores, que asseguraram uma produção
de conteúdos geralmente condizentes com os princípios da Política do Espírito.
Encabeçado por António Lopes Ribeiro e integrando figuras como Leitão de Barros,
Brum do Canto, Chianca de Garcia e Arthur Duarte, este grupo monopolizou a produção
fílmica de longa-metragem ficcional. A estratégia de António Ferro passou pelo apoio a
iniciativas que se enquadrassem no espírito da sua política cultural. Desta forma, os
meios e os recursos humanos da recém-criada e pequena “indústria“ cinematográfica
portuguesa envolviam-se nestes projectos e não estariam disponíveis para noutros
projectos.
Porém, se nos 17 anos de consulado de Ferro só se conhecem cortes de censura em
dois filmes, nos anos imediatamente seguintes estes intensificaram-se: Saltimbancos
(1951), de Manuel Guimarães, e A Garça e a Serpente (1952), de Arthur Duarte tiveram
alguns cortes (Ibidem: 97); Nazaré (1952), de Manuel Guimarães, teve muitos cortes da
censura (Ibidem: 99); Vidas sem Rumo (1956), de Manuel Guimarães, viu a primeira
versão do filme ser cortada em 45%, segundo o realizador, por critérios comerciais e de
censura (Ibidem: 107).
A repressão far-se-ia sentir ainda de outro modo, mais violento. Após uma década
de existência, o movimento cineclubista conheceria um fulgor sem precedentes:
surgiram dezenas de cineclubes em diversos pontos do país e os primeiros cineclubes
nas antigas colónias ultramarinas. Depois de uma primeira vaga de repressão, que
levaria à prisão de vários dirigentes cineclubistas na ressaca das eleições de 1947 e da
ligação destes a movimentos da oposição (sobretudo ao Partido Comunista Português e
ao Movimento de Unidade Democrática), em 1956, o SNI, em estreita colaboração com a
Comissão Consultiva dos Cineclubes, iniciou o processo de criação da Federação
Portuguesa dos Cineclubes. Hierarquicamente dependente do SNI, a sua criação era uma
clara tentativa de vigiar e condicionar as actividades políticas dos cineclubes, isto
apesar de o SNI prometer respeitar a autonomia, livre-iniciativa e liberdade cultural da
77
Federação e dos seus membros. Mas este será um caso de estudo que desenvolverei mais
detalhadamente no próximo capítulo.
Estes dados parecem reveladores de uma nova estratégia de acção política, que
passou a privilegiar mais a repressão do que a prevenção, como suspeito que teria
acontecido durante o período em que António Ferro dirigiu a política cultural do regime.
Para além da acção da censura, que na década de 50 se intensificou e atrasou ou,
eventualmente, impediu a produção de novos filmes, o Estado encontrou uma forma
mais proactiva de condicionar a produção de cinema português durante estes anos. A
encomenda de filmes e a concessão de subsídios e empréstimos, possível agora através
de um mecanismo — o já citado Fundo do Cinema Nacional — que permitia ao Estado
financiar a produção sem investir dinheiro do orçamento de Estado, foram outras
políticas públicas de apoio à produção que contribuíram para um crescimento
significativo do número de produções ao longo destas duas décadas.
Tabela n.º 5
Apoios públicos à produção de cinema em Portugal, 1940-1959.
(fonte: dados compilados a partir do Prontuário do Cinema Português)
Ano
Total de
filmes
produzidos
1940
1941
1942
1943
1944
1945
1946
1947
1948
1949
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
1957
56
69
35
31
29
41
57
71
59
98
98
78
92
110
108
99
142
115
Total de filmes
produzidos
com apoio
directo ou
indirecto do
Estado
24
47
17
12
15
11
26
31
21
35
44
32
50
66
60
66
87
77
Filmes com
apoio
directo
do Estado
Filmes com
apoio
indirecto do
Estado
Outros
(Produção
estrangeira ou
produtor
desconhecido)
12
37
10
5
4
3
13
12
10
21
15
14
22
17
11
16
28
17
12
10
7
7
11
8
13
19
11
14
29
18
28
49
49
50
59
60
25
14
7
9
6
8
8
7
6
11
9
15
8
17
15
15
23
14
78
165
176
1958
1959
127
117
55
42
72
75
3
20
De acordo com o quadro, verifica-se que, a partir de 1952, o apoio público à
produção é sempre superior a 50 por cento dos filmes estreados em sala em cada ano. Os
dados compilados neste quadro mostram também que nos anos 50 do século XX se
consolidou uma tendência clara para privilegiar os apoios públicos indirectos, em
detrimento dos directos.
Tomando como exemplo o “ano zero“ 1955, dos 99 filmes seriados no Prontuário
do Cinema Português (Matos-Cruz, 1989: 112-114), foi possível identificar 16 filmes
produzidos directamente por organismos públicos (Serviços Cartográficos do Exército
com 10; Câmara Municipal de Lisboa com 3; e Câmara Municipal da Figueira da Foz,
Laboratório Nacional de Engenharia Civil e SNI todos com um cada). Com apoio indirecto
do Estado, como o jornal de actualidades Imagens de Portugal (produção da SPAC
subsidiada pelo SNI) ou a série sobre a Viagem Presidencial a África (produção de Ricardo
Malheiro subsidiada pelo SNI), contam-se cerca de 50 filmes. Excluindo os 15 de
produção estrangeira, de um total de 84 filmes produzidos em Portugal durante o ano de
1955, o Estado financiou, directa ou indirectamente, cerca de 80% da produção
cinematográfica desse ano.
Outra conclusão que resulta depois da compilação dos dados é que, nessa década
de 50, há uma crescente diversificação das entidades públicas que apostam na
produção. Para além dos Serviços Cartográficos do Exército, do SPN/SNI e da Agência
Geral das Colónias/Ultramar, que tem uma actividade regular ao longo do período em
análise, as restantes entidades e organismos públicos só se assumem como entidades
produtoras mais activas e regulares já na década de 1950.
Eis uma relação dos mais prolíficos: os Serviços Cartográficos do Exército
(produziram, entre 1940 e 1959, 130 filmes); a SPN/SNI (produziu, entre 1940 e 1959,
62 filmes); as Câmaras Municipais (entre 1949 e 1957, a de Lisboa produziu 37 filmes); a
Agência Geral das Colónias/do Ultramar (entre 1940 e 1958, foram produzidos 27
filmes); a Junta de Investigação do Ultramar (produziu, em 1958-59, 22 filmes); a
Direcção Geral dos Serviços Agrícolas (entre 1940 e 1957, foram produzidos 22 filmes); a
Campanha Nacional de Educação de Adultos (entre 1952 e 1956 foram produzidos 15
filmes).
79
Neste período, ainda que com números mais modestos e irregulares, identificamse outras entidades e organismos públicos entre os produtores de cinema: Direcção
Geral do Ensino Primário, Direcção Geral da Saúde, Direcção Geral da Assistência, Junta
de Acção Social, Junta de Energia Nuclear, Junta Nacional da Cortiça, Junta Central da
Casa de Pescadores, Junta de Colonização Interna, Junta das Missões Coloniais, Força
Aérea, Secretaria de Estado da Aeronáutica, Governo Geral do Estado da Índia, Governo
Geral de Angola, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Ministérios (Interior, Justiça
e Obras Públicas), Polícia de Viação e Trânsito, entre outros.
Desde 1948, a publicação da “lei de protecção ao cinema nacional“ — que elegia a
“função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural“ como
fundamental na renovação do cinema português — comprometia alguns organismos
oficiais a “utilizar o cinema como meio informativo e cultural de exposição e divulgação,
por meio de filmes de actualidades, documentários e congéneres“, assim como a
concessão de “subsídios destinados a auxiliar os estudos e investigações que visassem
ao aperfeiçoamento técnico e artístico da cinematografia nacional“ (Ferro, 1950: 113131). Tal como aconteceu com a célebre “lei dos cem metros“ (1927), a nova legislação
parece ter contribuído para um ligeiro surto na produção de filmes de curta-metragem,
mais uma vez graças ao investimento de organismos públicos, nomeadamente na
Campanha Nacional de Educação de Adultos (1953), importante iniciativa que permitiu
a produção e exibição de dezenas de filmes educativos, entre os quais alguns de
divulgação científica.
Por outro lado, aproveitando as finalidades do Fundo do Cinema Nacional, o
próprio Estado, através do Conselho de Cinema, começa a alterar a sua estratégia de
intervenção e passa a privilegiar progressivamente a produção de filmes de curtametragem, permitindo o desenvolvimento de géneros cinematográficos.
Para além da produção directa, contam-se ainda centenas de encomendas de
filmes ou subsídios concedidos a produtores privados, como são os casos de Felipe de
Solms, Ricardo Malheiro, António Lopes Ribeiro (SPAC, que produziu os jornais de
actualidades Jornal Português e Imagens de Portugal), Perdição Queiroga (cuja
produtora Doperfilme assumiu a responsabilidade pelo jornal de actualidades Imagens
de Portugal a partir de 1958) e os “ultramarinos“ António de Sousa/João Silva
(produtores de Actualidades de Angola) e Melo Pereira (produtor de Actualidades de
Moçambique).
80
No sentido oposto, a discriminação positiva também reflecte uma mudança
significativa na política cultural do regime. Julgo que a falência da política
cinematográfica de Ferro se tornou evidente quando, logo em 1948, o prémio de melhor
filme ficou por atribuir. Na década seguinte, entre 1950 e 1959, num total possível de 10
prémios para o melhor filme, foram atribuídos apenas quatro prémios (aos filmes Frei
Luís de Sousa, 1950; Chaimite, 1953; Rapsódia Portuguesa, 1958; A Luz Vem do Alto,
1959).Torna-se evidente que, progressivamente, o regime deixou de se identificar com a
produção cinematográfica nacional.
Apesar das expectativas motivadas pela publicação de legislação diversa, que
prometia o contrário, o apoio financeiro estatal à produção de longas-metragens nesta
década foi muito discreto: Frei Luís de Sousa (1950), de António Lopes Ribeiro, foi o
primeiro apoio do recém-criado Fundo de Cinema Nacional (Matos-Cruz, 1999: 93); e
Rapsódia Portuguesa (1958), de João Mendes, a partir de uma ideia original do
entretanto falecido António Ferro, recebeu o patrocínio do SNI (Ibidem: 109).
2.1.2. Circulação, distribuição e recepção
Apesar de pouco valorizadas ou mesmo ignoradas em estudos sobre o cinema
português, as questões sobre a circulação, distribuição e recepção de filmes são centrais
para se entender na sua complexidade o fenómeno cinematográfico, desde a sua
importância nas políticas culturais públicas, a sua instrumentalização ideológica ou a
sua influência na (in)viabilidade de uma (proto) indústria cinematográfica em Portugal,
entre outros aspectos. Constituindo fortes lóbis políticos, os sectores da distribuição e
da exibição pressionavam as entidades públicas para fazer valer os seus interesses. Por
exemplo, como explica João Bénard da Costa (1998: 55), durante o complexo processo
de elaboração da Lei 2.207, o sector da distribuição, através da pressão dos grandes
estúdios norte-americanos, conseguiu que o próprio “Salazar em pessoa“ mudasse o
diploma inicial, que penalizava fortemente os sectores da distribuição e da exibição em
favor do sector da produção:
“No fundo — do tal Fundo [do Cinema Nacional] — o que
contava era se os tais 80 por cento das receitas de exploração (...)
eram para 'manter o cinema nacional' como queria [o cineasta Leitão
de] Barros ou para construir mais salas que dessem vazão ao cinema de
Hollywood.
81
Em anos de 'guerra fria' (quente começo dela) e do Plano
Marshall (de que Salazar não se desinteressou tanto como se diz),
contida a vaga de fundo que, no fim da guerra, parecera ameaçar os
regimes de Salazar e de Franco, o Estado Maduro (que na prática
sucedera ao Estado Novo, desde a remodelação ministerial de 44) não
tinha quaisquer razões para querer aborrecer os americanos, em breve
nossos aliados na NATO.“
Os dados oficiais publicados pelo INE fazem um diagnóstico do circuito de
distribuição e exibição.
Tabela n.º 6
Dados sobre Casas de Espectáculos, Salas de Cinema,
Sessões e Espectadores em Portugal entre 1946 e 1960
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1946-60)
Ano
1946
1947
1948
1949
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
Casas de
espectáculos
433
471
475
483
507
483
478
494
487
488
488
493
485
483
476
Salas de
Cinema
361
403
412
431
448
427
425
443
436
435
437
436
477
437
Lotação
Sessões
203.990
229.274
232.428
242.128
256.376
254.293
253.176
260.986
265.692
261.940
267.256
270.037
265.297
259.326
54.840
59.887
62.229
62.116
64.871
64.388
70.021
71.332
72.335
74.965
76.213
78.941
80.077
79.606
Espectadores
(milhões)
17.737
20.870
20.668
19.908
20.567
20.942
22.977
22.100
22.906
25.850
27.030
26.456
26.603
26.527
Com ligeiras variações, o número de casas de espectáculos licenciadas manteve-se
estável ao longo do período em análise, crescendo apenas 10% no intervalo de uma
década e meia. De facto, como demonstra Tiago Baptista para o caso de Lisboa (Baptista,
2007: 51), o aumento significativo das casas de espectáculos foi um fenómeno que se
intensificou sobretudo na década de 1930.
Mas os restantes indicadores são inequívocos quanto ao crescimento significativo
do mercado cinematográfico: entre 1946 e 1960, o número de salas de cinema cresceu
cerca de 20%, a sua lotação aumentou cerca de 30%, o número de sessões de cinema
82
aumentou e o número total de espectadores (bilhetes vendidos) aumentou em cerca de
45%.
Naturalmente, a subida do número de sessões foi determinante para que,
proporcionalmente, aumentasse o número de espectadores. Se em Lisboa e no Porto isso
se traduziu num acréscimo das sessões diárias, nomeadamente do número de sessões
nas matinés, nas cidades de média e pequena dimensão espalhadas pelo país foi
determinante o aumento das sessões semanais, como comprova o estudo do caso da
cidade de Guimarães (Cunha, no prelo), sensivelmente no mesmo período. O objectivo
desta análise foi comparar dois contextos de distribuição e exibição diferentes: o de
Lisboa e o do Porto, onde a oferta e a concorrência existiam, e o das médias e pequenas
cidades, que representaria, à época, na sua totalidade, cerca de metade do mercado
cinematográfico português.
Em Guimarães, num concelho com cerca de 80 mil habitantes, entre 1938 e 1956
funcionou apenas uma casa de espectáculos — o Teatro Jordão, com lotação para cerca
de mil espectadores — que monopolizava a oferta cultural na cidade e arredores.25 Com
os dados seriais, primeiros mensais e depois semestrais, foi possível compilar um
quadro, no qual se expressam os totais anuais de sessões, bilhetes vendidos e média de
espectadores por sessão.
Tabela n.º 7
Dados sobre Sessões e Espectadores de Cinema
no Teatro Jordão (Guimarães) entre 1939 e 1956
(fonte: dados compilados a partir do espólio Teatro Jordão,
Sociedade Martins Sarmento, Guimarães)
Ano
1939
1940
1941
1942
1943
1944
1945
1946
1947
1948
N.º sessões de
cinema
152
150
154
145
191
195
210
181
224
218
N.º bilhetes
vendidos
66.168
76.140
76.574
83.493
125.269
121.487
123.819
96.128
110.498
114.427
25
Média de espectadores
por sessão
435
508
497
576
656
623
590
531
493
525
Graças ao trabalho de preservação e salvaguarda da Sociedade Martins Sarmento, toda a documentação
do Teatro Jordão, produzida pela própria empresa exploradora a pedido do Instituto Nacional de
Estatística, com dados sobre número de sessões de cinema e bilhetes vendidos, está preservada.
83
1949
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
192
222
232
254
263
251
229
288
131.785
135.561
140.131
147.619
121.175
86.811
120.423
107.923
686
611
604
581
461
346
526
375
O aumento das sessões de cinema no Teatro Jordão é notório a partir de 1943. Se
entre 1939 e 1942 o número de sessões é estável, com uma média de três sessões por
semana, a partir de 1943 verifica-se um aumento significativo, que atinge picos nos
anos de 1945, 1947 e 1948, ultrapassando uma média de 4 sessões semanais. Em relação
ao número de bilhetes vendidos, o aumento é ainda mais significativo e expressivo. Em
apenas cinco anos, o Teatro Jordão conseguiu duplicar o número de espectadores:
66.168 em 1939 para 125.269 em 1943. O triénio 1943-44-45 é fulgurante também na
média de espectadores por sessão, ultrapassando ou rondando os 600 bilhetes vendidos.
Pode, portanto, concluir-se que a primeira metade da década de 1950 foi
financeiramente proveitosa para os agentes cinematográficos. De uma média de
três/quatro sessões semanais na década anterior, os anos 50 tiveram médias de
quatro/cinco sessões semanais. (Apesar do aumento das sessões, o número de
espectadores apresenta uma evolução em decréscimo depois de 1952.)
Considerem-se, isolados, os anos de 1946 e 1956: aqueles que melhor permitem
uma comparação das análises nacional e local. Se nacionalmente o número de sessões
aumentou 40% nesse período, em Guimarães aumentou 60%, confirmando um aumento
exponencial da oferta; quanto ao número de espectadores, se a nível nacional se assistiu
a um acréscimo de 50% (de quase 18 para 27 milhões de espectadores ao ano), em
Guimarães esse aumento foi apenas de 10% (de 96 para cerca de 108 mil). No meu
entender, este crescimento residual está sobretudo relacionado com a limitação da sala
e com a falta de concorrência verificada em Guimarães durante o período (no que diferia
de Lisboa, onde abriram as salas de cinema do São Jorge, a 23 de Fevereiro de 1950, do
Monumental, a 9 de Outubro de 1951, do Império, a 24 de Maio de 1952, do Alvalade, a
22 de Dezembro de 1953, do Avis, no ano de 1956 e do Cinema Roma, a 15 de Março de
1957, e onde surgia uma série de inovações tecnológicas que atraíam o público: a
chegada do formato Cinemascope, no Tivoli, a 15 de Março de 1953; o primeiro 3D, no
84
Cinema Império, em Outubro do mesmo ano; e o 70mm, no Monumental, a 18 de
Dezembro de 1956).
Sem estes fenómenos — salas disponíveis para aumentar o número de sessões —
nas cidades de média e pequena dimensão, e com a ocupação da sala no seu limite, o
número anual de espectadores teve necessariamente de estagnar, no período em causa.
Esta particularidade parece-me também justificar um fenómeno curioso e estranho que
se verificava com frequência nas cidades de média e pequena dimensão: a popularidade
dos filmes portugueses, medida em função do número de espectadores, era idêntica ou
até superior à dos filmes estrangeiros. A escassez de cópias da generalidade dos filmes
estrangeiros, que não satisfazia a procura dos exibidores nacionais, obrigava a que
circulassem rapidamente e em poucas sessões fora das grandes cidades, ao contrário do
que acontecia em Lisboa ou no Porto, onde os filmes ficavam em sala semanas a fio.
Entre os títulos que tiveram direito a sessões extraordinárias em dias consecutivos
contam-se alguns dos filmes mais populares da época26. Não deixa de ser surpreendente
que, dos 65 êxitos de bilheteira, 37 desses filmes sejam de produção nacional. Mesmo
com a condicionante das sessões extraordinárias, os filmes portugueses eram dos mais
queridos dos espectadores vimaranenses. Mas, ao contrário da década de 1940, altura
em que a maioria dos êxitos era de produção portuguesa, os filmes nacionais perderam
popularidade, tendência que parece confirmar a tese de que os anos 50 marcaram o
início de uma fase de afastamento do público português em relação ao cinema seu
conterrâneo. Se é notório que os filmes portugueses foram perdendo sessões ou dias de
exibição, destaquem-se os números muito modestos em sessões vimaranenses de filmes
como Uma Vida Para Dois (691 espectadores para duas sessões realizadas a 10 de Julho
de 1949), Amanhã como hoje (apenas 113 espectadores na sessão de 26 de Julho de
1951), Sonhar é Fácil (951 espectadores em duas sessões realizadas a 23 e 24 de
Setembro de 1951), Chaimite (1.273 espectadores em três sessões realizadas a 4 e 5 de
Outubro de 1953) ou O Cerro dos Enforcados (apenas 909 espectadores em duas sessões
realizadas a 20 de Junho de 1954).
Apesar de tudo, não se pode ignorar que, mais do que uma eventual perda de
popularidade, nesse período houve uma diminuição significativa da oferta de longasmetragens de produção portuguesa e um significativo aumento da importação de filmes
estrangeiros. O quadro seguinte mostra o acréscimo de filmes de longa-metragem em
26
Para consultar a lista completa destes filmes, ver Anexos, B.
85
circulação no mercado de distribuição português entre 1949 e 1957 e contabiliza o
número de filmes exibidos pelas distribuidoras a operar em Portugal nesse período.
Tabela n.º 8
Número de Filmes estreados em Portugal e respectivos Distribuidores (1949-57)
(fonte: dados compilados a partir de Estreias em Portugal 1918-1958: 127-174)
Total
Sonoro Filme
Fox Filmes
MGM
Doperfilme
Paramount
RKO
SIF
Castello Lopes
Talma Filmes
Columbia Filmes
Mundial Filmes
Filmes Albuquerque
Filmitalus
Exclusivos Triunfo
Filmes Alcântara
Vitória Filme
Produções Aníbal Contreiras
Imperial Filmes
Distribuidores Reunidos
Filmes Lusomundo
Jarofilme
Lisboa Filme
Minerva Filmes
Internacional Filmes
Momento Filmes
Europa Filmes
Atlante Films
Excelsa Filmes
Lusa Artis Films
Aliança Filme
Filmes Progresso
Ultra Filmes
CCP
Cinal
Filmes Luís Machado
Invicta Filme
Águia Filmes
Astória Filmes
358
245
224
198
194
193
182
173
142
141
116
108
88
85
73
67
66
58
57
47
34
32
27
25
13
5
3
3
3
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957
20
19
19
21
27
20
18
27
10
42
25
22
18
16
23
15
22
7
46
26
26
23
15
36
16
15
13
9
19
8
8
8
3
9
8
6
45
34
29
26
25
27
31
14
27
2
10
10
10
10
7
12
7
2
7
46
25
35
19
27
22
22
23
15
13
12
12
17
12
6
12
5
5
8
6
45
29
33
16
25
18
16
19
9
26
21
17
15
17
12
8
9
5
9
7
8
14
9
9
3
5
3
4
10
16
2
4
13
2
9
1
7
3
7
6
6
11
4
3
5
4
3
2
2
1
34
27
16
19
27
13
22
17
17
31
10
14
12
10
9
4
12
7
7
11
3
5
38
32
23
22
19
14
17
21
22
37
16
6
16
4
17
5
12
6
11
15
1
8
11
9
6
5
15
3
12
16
2
8
4
2
17
3
3
1
2
3
3
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
86
42
28
21
34
13
20
25
15
22
32
20
Distribuidor não identificado 101
Total
Distribuidores
em actividade (1)
9
15
5
11
8
11
11
20
11
2291 263 286 315 354 358 373 342 389 393
24
24
21
21
23
24
24
25
24
Notas: (1) Naturalmente, este número peca por defeito, visto que, em alguns anos, os
distribuidores não identificados podem aumentar significativamente.
Entre as distribuidoras nacionais, destaque para a Sonoro Filme, que ocupa o 1.º
lugar na lista e detinha 16% da quota de mercado, mas também para a Doperfilme, a SIF
— Sociedade Importadora de Filmes (que assegurava em Portugal a distribuição de
filmes do catálogo da Warner Bros.) e a histórica casa Castello Lopes, que detinham cada
uma cerca de 8% de quota do mercado. Com a Talma Filmes (6%), a Mundial Filmes (5%)
e a Filmes Albuquerque (5%), este conjunto de sete principais empresas nacionais
controlavam cerca de 55% do mercado interno.
A década de 1940 já havia assistido ao fecho de distribuidoras pioneiras — como
Raul Lopes Freire ou Hamilcar da Costa — e de outras igualmente históricas — como a
Aliança Filmes (fundada na Porto em 1933), a SPAC, que distribuía filmes europeus e
americanos de pequenas produtoras e as suas próprias produções (Feitiço do Império,
1940; O Pai Tirano, 1941; O Pátio das Cantigas, 1942; Camões, 1946), ou a Filmes Lumiar.
No período entre 1949 e 1957, verificou-se também o fim de actividade de outras casas
distribuidoras: Filmes Luís Machado, que fizera a distribuição de sucessos nacionais
como Aldeia da Roupa Branca (1938); Minerva Filmes, que funcionou até 1954; CCP —
Companhia Cinematográfica de Portugal, fundada em 1913, que só distribuiu um filme
neste período.
Em contraciclo, regista-se a criação, em 1953, da distribuidora Filmes Lusomundo,
que teria um desempenho modesto neste período mas que consolidaria a sua posição
nas décadas seguintes. Como se pode ver no quadro, empresas criadas na década de
1940, como a Doperfilme (fundada em 1947, e que assegurava a representação em
Portugal da Universal), a Exclusivo Filmes (fundada em 1944), a Talma Filmes e a Filmes
Alcântara também consolidaram a sua posição neste período. Outras empresas históricas
nacionais mantinham posições importantes no mercado interno: a líder Sonoro Filmes,
criada em 1934; a Castello Lopes, empresa pioneira criada em 1917.
Logo no seu segundo ano de existência, a Sonoro Filme, por aposta pessoal de
Fernando Santos, um dos seus sócios fundadores, lançou-se também na produção,
associando-se ao filme O Trevo de Quatro Folhas (1936, Chianca de Garcia), repetindo um
87
fórmula que afinal havia sido usada poucos anos antes por Leitão de Barros com a
produção d'A Severa (1931):
“(...) só devem produzir-se filmes que tenham, à partida,
distribuição garantida. Em resumo: interessar o distribuidor na
produção do cinema.
Boa parte da crise do cinema português actual [1988] — mais de
30 filmes por estrear desde 1975 — nasce da incompreensão deste
princípio básico, em que assentaram cinematografias mais sólidas,
posto em prática pelos chamados 'comerciantes' do cinema nacional
que conseguiram os maiores êxitos de mercado do seu tempo.
(...)
Seja como for, a Sonoro Filme decide investir na produção
quando Chianca de Garcia e o Dr. Ricardo Jorge, animadores da
sociedade 'Espectáculos de Arte', pedem a Fernando Santos o
financiamento do filme O Trevo de Quatro Folhas. Conforme este nos
confidenciou, foi então constituída a 'Sonarte' (tirada de Sonoro e
Arte) para investir 600 contos no projecto, pois, segundo Chianca,
metade da produção já estaria completa (...). Infelizmente, as coisas
não se passaram assim: pouco ou nada tinha sido rodado e o filme
acabou por custar 6000 contos.
Mas este desaire não abalou a capacidade de investimento na
produção nacional. 'Nesta época', explica-nos Fernando Santos, 'o
distribuidor português tinha muito interesse em ter um filme nacional
na sua lista, feita no princípio de cada época, pois negociava melhor
com o exibidor a colocação dos restantes filmes dessa lista'.
A Sonoro Filme, de facto, continua a participar na distribuição
dos filmes portugueses financiando-os como garantia da sua efectiva
expansão. Geralmente, o investimento feito — 200 contos — procurava
assegurar o período de estreia do filme, as 8 ou 9 semanas habituais
em Lisboa e no Porto, já que na Província, naturalmente, demorava
mais.“ (Sonoro Filme, 1988: 21)
Os investimentos da Sonoro Filme mantiveram-se ao longo da década de 30 e na
seguinte27, mas diminuíram nos anos 5028, inclusive na própria distribuição do cinema
português: “Poucos anos depois, surge uma nova geração de cineastas e uma nova forma
de fazer cinema em Portugal. (...) morria uma forma de financiar o cinema português
que dera bons frutos num quarto de século.“ (Ibidem: 22). O período áureo da Sonoro
vai de 1940 a 1955, quando garante o exclusivo dos catálogos da norte-americana
United Artists e da britânica Eagle-Lion e quando “ocupa“ quase em exclusividade o
importante Cinema São Jorge (Ibidem: 24). Nesse período, a Sonoro Filme chega a
dispor de um circuito de exploração de mais de 40 salas de cinema em todo o país,
27
Maria Papoila (1937, Leitão de Barros), Revolução de Maio (1937, António Lopes Ribeiro), A Varanda dos
Rouxinóis (1939, Leitão de Barros), João Ratão (1940, Brum do Canto), Lobos da Serra (1942, Brum do
Canto), Ala Arriba! (1942, Leitão de Barros), O Costa do Castelo (1943, Arthur Duarte), A Menina da Rádio
(1944, Arthur Duarte), O Leão da Estrela (1948, Arthur Duarte) e A Morgadinha dos Canaviais (1949,
Caetano Bonucci).
28
Um Marido Solteiro (1952, Fernando Garcia), Chaimite (1953, Brum do Canto) e Rapsódia Portuguesa
(1958, João Mendes).
88
nomeadamente os lisboetas São Jorge e Avis e os portuenses São João e Águia de Ouro
(Ibidem: 29). Em 1956, após a abertura da filial da Rank em Portugal, e a consequente
perda do exclusivo do catálogo da United Artists, Fernando Santos decide vender a
Sonoro Filme à recém-criada Filmes Lusomundo, que atravessava por dificuldades e
assim ganharia uma posição dominante no mercado (Ibidem).
Importa sublinhar que, no sentido inverso, algumas produtoras nacionais
acumulavam também interesses no sector da distribuição: a Doperfilme, de Perdigão
Queiroga, com uma posição privilegiada no mercado (4.º mais activo no acumulado do
período retratado no quadro), as Produções Aníbal Contreiras, a Filmes Albuquerque e a
Lisboa Filme. Mas a vida não corria de feição às produtoras: se a Doperfilme vingou neste
período, graças ao negócio da distribuição e aos subsídios do SNI para a produção das
actualidades Imagens de Portugal, as restantes produtoras/distribuidoras não tiveram a
mesma sorte: três anos depois da morte do seu líder Francisco Quintela (num acidente
de automóvel em 1951), a Lisboa Filme seria fundida com a Tobis; Aníbal Contreiras
rumaria ao Brasil em 1957 e por lá permaneceria por quase uma década; a Filmes
Albuquerque também encerraria actividade em 1958.
Quanto às delegações dos grandes estúdios norte-americanos, continuavam a
controlar quotas significativas do mercado de distribuição interna: a Fox Filmes (a mais
antiga, criada em 1937, que ocupa o 2.º lugar neste período), a MGM (o 3.º mais activo),
a Paramount (em 5.º na lista), a RKO (fundada em 1937, 6.º na lista) e a Columbia,
criada apenas em 1952, mas que rapidamente atingiu uma quota significativa do
mercado. Em conjunto, estas três empresas distribuidoras somam cerca de 45% do
mercado entre 1949-1957. Entre as restantes estrangeiras, merecem destaque duas
novas distribuidoras que entraram no mercado português nos anos 50: em 1950, a
Filmitalus, especializada na distribuição de filmes italianos; em 1954, a Jarofilme,
especializada em produções provenientes da Grã-Bretanha.
No entanto, esta base de dados compilada por Luís de Pina (1993) contabiliza
apenas as longas-metragens. Para uma relação em que se vejam contabilizados todos os
filmes distribuídos em Portugal, será necessário recorrer aos dados publicados pelo INE,
que estão disponíveis apenas para um período mais reduzido.
Tabela n.º 9
Filmes exibidos nas salas portuguesas 1949 e 1954
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1950-54, INE)
89
Ano
Filmes
Metragem
Filmes
Metragem
Filmes
Metragem
Filmes
Metragem
Outros
Metragem
Itália
Filmes
Inglaterra
Metragem
França
Filmes
EUA
Metragem
Espanha
Filmes
Portugal
1949
1950
1951
1952
1953
1954
55
59
53
47
75
60
35.856
30.899
34.471
30.143
37.467
26.569
63
38
134
75
90
87
35.612
22.688
57.417
59.826
46.132
76.628
598
675
821
768
548
496
581.788
689.315
838.354
797.724
617.900
606.176
81
81
34
73
93
96
94.240
68.459
24.414
33.452
83.235
131.275
73
117
99
42
68
36
68.468
91.389
116.258
50.741
78.513
66.983
19
41
31
38
90
114
42.805
74.474
62.367
92.407
166.616
226.256
14
14
20
11
50
49
38.995
38.995
47.241
26.277
107.070
93.869
Mais do que o número de filmes, que mistura curtas e longas-metragens, opto por
observar os valores referentes às metragens. Se a exibição de filmes produzidos em
Portugal foi a única a diminuir (cerca de 25%), se a dos filmes oriundos dos Estados
Unidos e do Reino Unido se manteve idêntico (depois de uma oscilação na ordem dos
60%, no caso do Reino Unido), outros países viram aumentar a sua quota de mercado: a
Itália, com um surpreendente aumento de 400%, a Espanha com um acréscimo de cerca
de 120%, a França com um crescimento de cerca de 40%; a quota de filmes de outras
origens estrangeiras também cresceu cerca de 150%.
Assim, em 1954, o mercado cinematográfico de exibição encontrava-se dividido
de uma forma ligeiramente diferente da que predominava em 1949, no que diz respeito
à quota de mercado da origem dos filmes exibidos nas salas portuguesas: destaque-se a
perda de mercado dos filmes de origem norte-americana e o aumento proporcional dos
filmes de origem italiana.
Gráficos n.º 1 e 2
Percentagem de filmes estreados em Portugal pelo país de origem (1949 e 1954)
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1950-54, INE)
90
Ainda que tal não possa ser demonstrado quantitativamente, acredito que a
consolidação e a massificação do fenómeno cineclubista, que ressurgiu após a
perseguição e repressão no período pós-eleições 1947, possam ter sido determinantes
no aumento da importação de filmes italianos. A entrada no mercado nacional da
Filmitalus, distribuidora criada em 1950 e que gradualmente consolida a sua posição no
mercado interno (entre 1950 e 1957 importa 88 filmes de produção ou co-produção
italiana), especializada na distribuição de filmes de origem italiana, teve um peso
determinante no aumento da quota de mercado para as produções vindas de Itália.
Por outro lado, convém não ignorar nem desvalorizar que o período em análise
corresponde ao auge de popularidade do comediante italiano Totó (Antonio de Curtis) e,
a par, ao auge da internacionalização do movimento cinematográfico neo-realista
italiano.29
Meramente a título de exemplo, e sem pretender generalizar esta aparente ligação
entre os cineclubes e um cinema italiano de cariz mais social e político, recupero aqui o
relato de Paulo Jorge Granja (2006: 120) do episódio da suspensão, em 1953, da revista
Imagem, e consequentemente do seu Clube Imagem, publicação que reproduzia as
orientações estéticas predominantes entre os cineclubes: “a PIDE interromperia uma
sessão no cinema Capitólio, que tudo leva a crer ter sido organizada pelo CI ou por
29
A este propósito, consultar Henry, 2006.
91
elementos próximos deste Clube, acabando por prender Vasco Granja, um dos seus
principais dirigentes. Aparentemente, a sessão, em que se projectava o filme Il Cammino
della speranza (O Caminho da Esperança, 1950), de Pietro Germi, destinava-se a recolher
fundos para presos políticos, numa iniciativa indirectamente ligada ao PCP“.
Paralelamente à formação do movimento cineclubista nos anos 50, surgiram
algumas revistas cinematográficas portuguesas que, embora ideologicamente díspares,
revelavam um interesse comum pela forma como o cinema italiano representava os
problemas sociais do tempo (Henry, 2006: 304). A revista Imagem (a 1ª série, com
direcção de Baptista Rosa, foi publicada entre 1950 e 1953) foi a que mais atenção
dedicou ao cinema italiano e, particularmente, à defesa do neo-realismo italiano. Na sua
2ª série (1954-61), já sob a direcção de Ernesto de Sousa, o interesse intensifica-se,
particularmente sobre as obras de Vittorio de Sica que estreiam por esses anos em
Portugal: Ladrões de bicicletas (de 1948, que estreia em Portugal no final de 1950) e
Humberto D (de 1952, que estreia nacional no início de 1953). Também por esses anos,
autores relacionados com o movimento cineclubista publicariam volumes sobre o
cinema italiano: Vitoriano Rosa escreveria O Moderno Cinema Italiano (1953, ed. de
autor) e Manuel de Azevedo o livro O Cinema Italiano do Após Guerra e o Neorealismo
(1957, ed. Contraponto).
Embora já existissem 15 cineclubes activos em meados de 1955, Paulo Jorge
Granja (2006: 149-150) afirma que, “ao contrário do que se poderia esperar, nada indica
que existisse qualquer tipo de acção concertada entre os cineclubes antes dessa data.“ A
existência anterior de relações pessoais e informais entre alguns dirigentes de
diferentes cineclubes é confirmada pela troca de textos para as palestras ou boletins e
pela convergência entre algumas posições estratégicas relativamente ao poder político.
No entanto, estou em crer que a organização do Primeiro Encontro Nacional de
Cineclubes, realizado em Coimbra em 1955, tenha sido um momento de viragem, tendo
fomentado e potenciado relações formais e regulares.
Ora, como tem sido demonstrado por estudos recentes, as salas de cinema de
Lisboa continuavam a ocupar um espaço de exibição crucial no mercado interno. Numa
análise de quatro processos localizados no Arquivo Nacional Torre do Tombo, referentes
à distribuição e à exibição de quatro filmes portugueses produzidos entre 1959 e 1965 —
O Primo Basílio (1959), de António Lopes Ribeiro, O Crime de Aldeia Velha (1964), de
Manuel Guimarães, Canção da Saudade (1964), de Henrique Campos, e As Ilhas
Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó — procurei informações sobre o mercado de
92
distribuição cinematográfica em Portugal para o período balizado entre 1959 e 1965
para, em última análise, questionar a influência do sector da distribuição na produção e
na própria recepção pública do cinema português.
Foi possível localizar estes processos porque os filmes em causa beneficiaram de
subsídios públicos sob a forma de empréstimos e, no processo de prestação de contas, os
produtores dos filmes eram contratualmente obrigados a submeter relatórios mensais
sobre as receitas dos filmes, para se poder processar o reembolso do empréstimo público.
É possível que existam mais processos semelhantes referentes a outros filmes que
beneficiaram de subsídios similares, mas a falta de tratamento arquivístico de várias
fontes não me permitiu, até ao momento, localizá-los – nem comprovar a sua existência.
O Primo Basílio (1959), de António Lopes Ribeiro, estreou em Lisboa, nos cinemas
São Luiz, Politeama e Alvalade, no dia 1 de Dezembro de 1959. O Relatório do Fundo do
Cinema Nacional cobre o período entre Dezembro de 1959 e Maio de 1968 e apresenta
como total de receitas o valor de 908.747$0730. Da análise dos dados, resultou a
seguinte divisão percentual:
Tabela n.º 10
Percentagem das receitas do filme O Primo Basílio
(fonte: compilado a partir de ANTT, fundo SNI, caixa 222)
1.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
Total 1.º ano
59,55%
10,42%
9,69%
3,12%
82,78%
O Crime de Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães, estreou em Lisboa, no
cinema Éden, no dia 20 de Novembro de 1964. O respectivo Relatório do Fundo do
Cinema Nacional, que cobre o período entre Dezembro de 1964 e Outubro de 1968,
apresenta apenas a parte das receitas referentes apenas ao Produtor31: 328.298$05. Da
análise dos dados, resultou a seguinte divisão percentual:
30
As receitas apuradas dizem respeito ao que o exibidor pagava, posteriormente dividido entre o produtor
e o distribuidor. O montante de cada sessão variava conforme a proximidade da estreia e a localização da
sala. Nos grandes centros verifica-se que, no geral, o produtor e o distribuidor recebiam uma percentagem
das receitas de bilheteira. Na maioria dos casos, o aluguer da cópia era feito por um valor fixo,
independentemente das eventuais receitas de bilheteira, que, com o passar do tempo, poderia atingir
valores pouco significativos (como 100$00 ou 300$00 por sessão).
31
O subsídio foi contratualizado com as Produções António da Cunha Telles, que por sua vez fez um
contrato de distribuição com a Lusomundo. Alegando que não tinha qualquer compromisso contratual
com o Estado português, a Lusomundo recusou-se a enviar os relatórios mensais de receitas e aceitou
apenas enviar os dados referentes à percentagem do Produtor, que variava, conforme as semanas e a
localização geográfica das salas, entre os 25% e os 10%.
93
Tabela n.º 11
Percentagem das receitas do filme O Crime de Aldeia Velha
(fonte: compilado a partir de ANTT, fundo SNI, caixa 225)
1.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
Total 1.º ano
48,20%
8,97%
25,77%
3,73%
86,67%
Canção da Saudade (1964), de Henrique Campos, estreia em Lisboa, no cinema
Éden, a 18 de Setembro de 1964. O Relatório do Fundo do Cinema Nacional cobre o
período entre Setembro de 1964 e Março de 1968, apresentando um total de receitas de
696.513$50. Da análise dos dados, resultou a seguinte divisão percentual:
Tabela n.º 12
Percentagem das receitas do filme Canção da Saudade
(fonte: compilado a partir de ANTT, fundo SNI, caixa 223)
1.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
Total 1.º ano
68,29%
15,68%
5,76%
2,64%
92,37%
O detalhe dos dados permitiu ainda concluir que o valor das exibições na cidade
de Lisboa correspondeu a 276.942$60 (39,76%)32 e no Porto, em 3 semanas de estreia, a
76.274$80 (10,95%).
Excepcional foi o caso do filme As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó.
Estreou em Lisboa, no cinema Tivoli, a 15 de Março de 1965 e, segundo o Relatório do
Fundo do Cinema Nacional, que cobriu o período entre Março de 1965 e Novembro de
1965, somou como total de receitas de bilheteira uns modestos 58.983$70,
correspondendo 57.715$60 (97,85%) às salas de Lisboa e 1.268$10 (2,15%) às salas do
Porto.
A partir desta análise, é minha convicção que a influência das salas, com a sua
lotação e investimento publicitário próprio, e das semanas de estreia, nomeadamente na
cidade de Lisboa, é determinante para o sucesso comercial e consequente retorno
financeiro do filme, porque representa uma percentagem elevada e a publicidade gerada
pode favorecer os resultados das estreias nas cidades de pequena e média dimensão e a
própria longevidade comercial do filme. A este propósito, os signatários d'O Ofício do
32
Quatro semanas de estreia no cinema Éden: 236.068$80 (33,89%); e duas semanas de reposição, nos
cinemas Lys e Cinearte: 40.873$80 (5,87%).
94
Cinema em Portugal (1968: 14-15) argumentariam que “as bilheteiras dos cinemas de
Lisboa arrecadam cerca de 60% do total das receitas obtidas no país“, justificando essa
cifra com as “condições sócio-económicas“ que se então vivia em Portugal:
“(...) São sobejamente conhecidos (e é notória a sua influência
no consumo de cinema) o baixo nível de vida da população
portuguesa, o seu consequente baixo poder de compra, o ainda
elevado grau de analfabetismo — ou, se se preferir, o baixo grau de
actualização cultural — bem como o acentuado despovoamento rural
(...).“
Em contrapartida, a longevidade e a extensão do circuito de exibição nos espaços
rurais, para além de implicar uma maior rentabilidade do investimento na produção,
parece ser também um instrumento fundamental para assegurar a fidelização do público
a médio e longo prazo.
Em conclusão, apesar da abertura e da falência de várias empresas distribuidoras,
o que se verifica ao longo do período em análise é que o número de distribuidores se
mantém razoavelmente estável, oscilando entre as 21 e as 25 empresas em actividade,
mostrando ser um sector consolidado e bem definido. Como foi referido na nota da
tabela n.º 6, este número peca por defeito, uma vez que não foi possível identificar os
distribuidores de um número residual de filmes em cada ano.
Fundado em 1947, a União de Grémios dos Espectáculos era uma organização
corporativa que reunia os diversos empresários ligados aos vários sectores
cinematográficos dentro da lógica corporativa do Estado Novo, nomeadamente o Grémio
Nacional das Empresas de Cinema, o Grémio Nacional das Empresas Teatrais e Similares e
o Grémio Nacional das Empresas de Diversões Públicas. O Grémio era uma estrutura
primária da pirâmide corporativa salazarista, uma espécie de sindicato das entidades
patronais, que assegurava a representação destes na Câmara Corporativa. O seu primeiro
presidente da direcção foi António Lopes Ribeiro, que permaneceu no cargo entre 194751, então ainda uma figura muito considerada e próxima do circulo do poder.
Curiosamente, durante décadas, Lopes Ribeiro assumiu a direcção dos dois principais
organismos sindicais da actividade cinematográfica33, assumindo um visível conflito de
interesses que resultam da defesa de interesses antagónicos quer de profissionais de
cinema como de empresas de cinema.
33
António Lopes Ribeiro pertenceu à direcção do SNPC nos primeiros anos de existência (1933-1944).
Depois de uma passagem pela direcção da União de Grémios dos Espectáculos (1947-51), organismo de
que foi o primeiro presidente da direcção, o “cineasta oficial“ do regime assumia a direcção do SNPC por
um período de doze anos (1958-69).
95
À semelhança do que ocorreu durante o período inicial do Estado Novo em vários
sectores da sociedade portuguesa, a actividade cinematográfica foi também alvo de uma
estratégia legislativa que procurava impor ao sector uma estrutura corporativa.
Aproveitando uma situação favorável na organização laboral do sector — Luís de Pina
(1977: 134-135) frisa que “quanto à organização interna do cinema pouco ou nada
existia [antes da institucionalização do Estado Novo], nem associações patronais nem
sindicatos“ —, o regime tentou impor a sua organização corporativa do trabalho através
de organismos que ajudou a criar, todos devidamente enquadrados no espírito
corporativo preconizado então.
Neste período, a actividade cinematográfica já era controlada pelo Sindicato
Nacional dos Profissionais de Cinema (fundado em 1934, foi dirigido pelo realizador
Fernando Garcia entre 1946-58 e pelo realizador e produtor António Lopes Ribeiro entre
1958-69), que agrupava indiscriminadamente trabalhadores das áreas da Produção, da
Distribuição e da Exibição, e pelo Grémio Nacional das Empresas de Cinema. A criação da
União de Grémios vinha aumentar o poder reivindicativo dos empresários ligados às
actividades de cinema e a sua representação legal junto do Estado, nomeadamente na
Corporação dos Espectáculos (criada em 1956), que assim passava a nomear os seus
representantes. Até então, os representantes do sector na Câmara Corporativa eram
nomeados pelo Governo a partir de personalidades inscritas nos Sindicatos, Grémios e
Federações Nacionais. Esta estratégia favorecia simultaneamente o patronato, que assim
julgava adquirir maior visibilidade e influência, e o regime, que podia exercer um
melhor controlo sobre um organismo do que sobre três.
Como observa Manuel Lisboa (1999: 125), os Grémios não se limitavam a defender
os interesses patronais, mas aos agrupar empresas passavam também a defender uma
posição dupla, por vezes conflituante:
“eram organismos profissionais quando se entendiam ou
desentendiam com os sindicatos de assalariados (...) acerca de
problemas de trabalho e arredores; e eram organismos económicos
quando orientavam e disciplinavam a produção, 'representando as
empresas da sua categoria e defendendo, portanto, os interesses de
todos os elementos que nelas participavam, desde os trabalhadores
aos capitalistas'.“
Esta função reguladora permitia-lhes, por exemplo, de acordo com o Decreto nº
42661 de 20 de Novembro de 1959, serem consultados em processos de requerimento
para a instalação ou reabertura de cinemas e cine-teatros, nomeadamente as empresas
proprietárias e exploradoras de cinemas e cine-teatros já existentes na localidade.
96
Segundo o mesmo diploma, o Grémio Nacional das Empresas de Cinema teria também
dois assentos (em cinco) — um para representantes da distribuição e outro da exibição
— na Comissão de Condicionamento dos Recintos de Cinema.
A partir de 1953, esta estrutura corporativa inicia a publicação do Boletim da
União de Grémios de Espectáculos, um periódico mensal onde tornariam públicas e
defenderiam as suas principais aspirações e interesses, fundado por B. Júdice da Costa e
dirigido posteriormente por Campos Figueira de Gouveia, Vasco Morgado e Manuel
Telles.
De resto, a contestação à lei de “protecção ao cinema nacional“ de António Ferro
foi um dos temas em focos nos editoriais desse Boletim. Sentindo-se prejudicados pela
crescente hegemonia do cinema estrangeiro na exibição, os principais representantes
dos diversos sectores da actividade cinematográfica começam a reivindicar a revisão da
lei. Em Março de 1955, a União de Grémios dos Espectáculos apresentou uma extensa
exposição ao Ministério da Presidência onde abordava questões como o estatuto dos
espectáculos, os direitos de autor e a revisão da lei 2.027. Lembrando as reivindicações
apresentadas anteriormente pelo Grémio, pretendendo alertar o governo para algumas
questões que “o legislador não previu“, este organismo acrescenta alguns pontos à
argumentação que defende a revisão da lei em aspectos relacionados com a produção,
distribuição e exibição cinematográficas.
Denunciando vários interesses específicos, convencidos “de que a revogação total
de tão discutido diploma se torna difícil“, a exposição propõe alterações a vários artigos.
As reivindicações apresentadas referem-se: à alteração de certas taxas de exibição (art.
5.º); à concessão de subsídios, créditos ou prémios aos produtores (art. 7.º e 8.º); à
legalização da dobragem (art. 13.º); ao fomento das co-produções (art. 14.º); à
autorização de importação de filmes culturais, educativos e artísticos falados em língua
estrangeira (art. 15.º); e a regulamentação da exploração de filmes em 16 mm (art.
26.º). O organismo não se escusou a encerrar a exposição com a exigência da isenção do
pagamento do imposto único e adicional e da taxa para a Segurança Social das empresas
que exibissem filmes portugueses (Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, III1955: 1-12).
97
2.2. César Moreira Baptista
Em 1956, Marcello Caetano, então Ministro da Presidência, reconhecia que a
situação de crise no cinema português era preocupante, mas tentava ilibar o Estado das
pretensas responsabilidades: “Muita gente se vira para o Estado, mas o Estado pode
procurar melhorar as condições da produção nacional (e está a tentar fazê-lo), mas não
pode tentar transformar-se em argumentista e realizador. Apareçam os homens de
talento, surjam as iniciativas – e o estado fará, certamente, por cumprir para com eles o
seu dever de apoio e estímulo“ (Pina, 1986: 134-135). Esta afirmação do principal
responsável político de então pelo cinema reforça a ideia da inexistência de uma
estratégia política destinada a ultrapassar a crise do cinema português.
Reconhecendo alguma razão nas várias críticas à nova lei, o regime procura reagir
através dos parcos instrumentos legais de que dispõe. Aproveitando as finalidades do
Fundo do Cinema Nacional, o Conselho de Cinema procura remediar o mal cometido pela
legislação que o criara e esboça uma alteração da sua estratégia de intervenção. Apesar
de grande parte do seu orçamento se encaminhar para o apoio à produção, geralmente
de um género de filmes populares e comerciais, o Conselho de Cinema decide privilegiar
progressivamente a produção de filmes de curta-metragem, permitindo o
desenvolvimento de géneros cinematográficos
César Moreira Baptista foi nomeado Director do SNI no dia 1 de Fevereiro de 1958.
Advogado de formação, Moreira Baptista desempenhou diversos cargos políticos e
públicos durante o Estado Novo: foi chefe de repartição da Direcção Geral dos
Combustíveis, vice-presidente da Comissão Reguladora do Comércio de Carvões, director
da FNAT, presidente da Caixa de Previdência dos Organismos Económicos, presidente da
Comissão Concelhia de Cascais da União Nacional, vogal da Comissão Distrital de Lisboa
da União Nacional durante 8 anos, vogal da Comissão Executiva da União Nacional
(1957), Presidente da Câmara Municipal de Sintra (1953-1957) e vogal do Conselho
Nacional de Turismo (1957). Suspendeu o seu mandato parlamentar de deputado à
Assembleia Nacional, para o qual tinha sido eleito no ano anterior, para assumir a
direcção do SNI.
Seguindo as directivas de Marcelo Caetano, de quem era amigo pessoal e aliado
político, Moreira Baptista “procedeu a uma remodelação interna, reforçando os serviços
de informação e do turismo, justificada como uma 'adaptação' às novas
'necessidades'“, pretendendo “essencialmente salvaguardar a imagem do regime (Melo,
1999: 169). Ainda que tenha dado continuando ao modelo de coação dos seus
98
antecessores à frente do SNI, Moreira Baptista “também pretendia intervir pela
persuasão: o prémio, o subsídio, a consagração eram considerados instrumentos mais
eficazes para influenciar a expressão cultural“, promovendo “a revitalização dos
prémios, destacando o cerimonial do reconhecimento simbólico e diversificando as
categorias e os potenciais premiados“ (Ibidem). Enquanto titular desse cargo, Moreira
Baptista teve responsabilidade pelo silenciamento do movimento cineclubista e de luta
contra outras formas de oposição cinéfila, mas também por um esforço de promoção de
tímidas soluções para a crise do cinema português (curso de cinema do EUCE, bolsas de
estudo). Os seus mandatos à frente da propaganda do regime foi de tal forma
reconhecida que seria promovido a Secretário de Estado em 1968 e a Ministro do Interior
em 1973.
Se Bénard da Costa (1998: 57) acredita que “Marcello sempre fora muito céptico
quanto às políticas de Ferro“, Carlos Fontes (a: em linha) sublinha essa mudança de
paradigma na política cultural promovida por Moreira Baptista:
“A difusão de uma cultura de massas no país, a partir dos anos
sessenta, gerou elevadas expectativas de acesso ao consumo entre
largas faixas da população urbana, deixando muito pouco espaço ao
regime, para continuar a sustentar os valores tradicionais que haviam
constituído o núcleo central das políticas culturais, entre os anos
trinta e meados dos anos cinquenta.
(...)
Ao longo deste período, Moreira Baptista manteve uma enorme
coerência na orientação que imprimiu a este organismo.
Entre 1958 e 1973, Moreira Baptista procurou de forma
sistemática transformar o SNI/SEIT num órgão essencialmente virado
para o turismo de massas, a produção e controlo da
informação veiculada pela comunicação social e a inspecção de certas
actividades culturais. Era neste plano que se situavam os principais
problemas de sobrevivência do regime. Estas alterações reflectiam
também a própria evolução interna deste organismo. Há muito que
deixara de ser identificado com uma instituição promotora de
actividades culturais, para ser sobretudo um órgão conotado com
a censura da imprensa e dos espectáculos.
Moreira Baptista de forma persistente, foi secundarizando todas
as estruturas de apoio à cultura criadas por António Ferro,
transferindo parte delas para a FNAT e o Ministério da Educação. A
Cultura Popular, núcleo central da Política do Espírito foi
transformada num instrumento de animação turística. Um dos seus
símbolos, o Museu de Arte Popular foi praticamente abandonado. As
célebres intervenções do SNI, na produção ou apoio a exposições de
artes plásticas, no país ou no estrangeiro, passaram a obedecer à
mesma lógica de apoio ao turismo, ou simplesmente, confinaram-se a
assinalar visitas ou comemorações oficiais. As exposições nos salões
de exposição no Palácio Foz e na Galeria de Arte Moderna em Belém,
pouco ultrapassaram esta perspectiva pragmática. Os “prémios“ quase
99
passavam despercebidos da comunicação social, tão pouco prestígio
possuíam.“
Em suma, a orientação de Ferro para promover a “alta cultura“ seria abandonada
ou desvalorizada para se investir numa estratégia mais virada para o “gosto popular“ ou
para a “cultura de massas“. Mas a mudança mais significativa seria a tentativa de criar
“um corpo de especialistas em comunicação de massas e turismo, promovendo para o
efeito estudos e lançando uma publicação regular neste domínio“ (Ibidem).
De facto, com Moreira Baptista, a estratégia política para a cultura alterou-se
profundamente. O primeiro e mais expressivo indicador é mesmo o montante anual
disponibilizado ao SNI através do Orçamento Geral do Estado.
Tabela n.º 13
Orçamento do SNI no Orçamento Geral do Estado 1958-68
(fonte: dados compilados a partir do Orçamento Geral do Estado, 1958-68)
Ano
Total
Despesa com
pessoal
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
64.677.591$80
72.090.884$00
80.782.074$40
88.060.264$00
93.624.266$50
102.286.418$30
128.264.870$50
142.655.159$70
166.085.108$20
198.327.940$50
224.428.606$00
?
12.287.264$00
14.363.583$00
?
?
15.153.115$50
15.077.786$00
15.141.866$00
16.424.591$00
16.417.386$00
16.923.386$00
Despesa com
material
?
1.254.000$00
1.180.000$00
?
?
980.000$00
1.025.000$00
1.070.000$00
1.070.000$00
1.130.000$00
1.130.000$00
Pagamento de
serviços e
diversos encargos
?
58.549.620$00
65.238.491$40
?
?
86.153.302$80
112.162.084$50
126.443.293$70
148.590.517$20
180.780.554$50
206.375.220$00
No espaço de uma década, o orçamento do SNI quase quadruplicou, e o
investimento não foi feito ao nível da despesa corrente (pessoal e material, que só
aumentou cerca de 25%), mas na despesa extraordinária, no pagamento de serviços e
diversos encargos externo como a produção de filmes ou a concessão de subsídios a
revistas e eventos ou as bolsas de formação.
100
2.2.1. “O Estado não pode ser produtor de filmes“
Apesar da natural discordância de inúmeras figuras do sector da produção34, em
entrevista ao Diário de Notícias de New Bedford, Moreira Baptista declarava que o Estado
não podia ser produtor de filmes nem proprietário de estúdios (apud Costa 1985: 22).
Esta declaração podia parecer inequívoca, mas não expressava claramente a estratégia
de Moreira Baptista para a intervenção do SNI com o cinema português: o novo
responsável pela política cultural pretendia que o SNI controlasse de perto a produção e
circulação do cinema português mas de uma forma menos visível do que sucedera
durante o tempo de António Ferro. Insistindo, portanto, numa política desenvolvida
após a saída de António Ferro, que privilegiava o apoio indirecto à produção em
detrimento do apoio directo, Moreira Baptista pretendia instaurar um sistema de
atribuição de subsídios que passasse sobretudo pelo Conselho de Cinema, um órgão
especializado chefiado pelo próprio dirigente do SNI e composto por dois representantes
da Junta Nacional de Educação, o dirigente da Inspecção Geral dos Espectáculos, um
delegado da União de Grémios dos Espectáculos e outro do Sindicato Nacional de
Profissionais de Cinema.
Fausto Cruchinho, num estudo inédito sobre o funcionamento do Conselho de
Cinema, demonstrou de que forma o Estado português, através dos subsídios do SNI e
depois da SEIT, apoiou a produção cinematográfica entre 1962-71. Criado pela Lei
2.207, o Conselho de Cinema dava pareceres sobre a aplicação do dinheiro do Fundo do
Cinema Nacional.
Analisando exaustivamente um corpus documental de 82 actas desse órgão,
datadas entre Janeiro de 1962 e Dezembro de 1971, Cruchinho conclui, “praticamente
todas as iniciativas de fundo do primeiro Conselho são da responsabilidade do seu
presidente“ [César Moreira Baptista]. Uma das actas chamou a atenção de Cruchinho, a
de 22 de Março de 1963, onde o director do SNI configurava uma estratégia para alterar
as regras de atribuição de subsídios, “financiando a posteriori os filmes propostos,
cabendo ao Conselho decidir se deve financiar e premiar o produto acabado“
(Cruchinho, 2000: 341).
Segundo a dita acta, a estratégia proposta seria a seguinte:
“(...) O Sr. Dr. César Moreira Baptista diz parecer-lhe que o
regime, que aliás por disposição expressa da lei se tem seguido — o de
seleccionar e subsidiar a priori os projectos de produção de filmes de
34
Por exemplo, na revista Imagem, Eurico da Costa discordava do titular da Cultura, reclamando: “o
Estado pode e deve ser produtor“.
101
fundo que habitualmente lhe são presentes — apresenta os
inconvenientes que sempre podem resultar de tal orientação ou seja,
no caso do filme que não conseguiu alcançar uma qualidade
satisfatória, o Conselho pode achar-se ligado, em certa medida, ao
inêxito do filme.
(...)
De facto, seguindo os métodos que até aqui têm servido de base
de apreciação e de resolução, podemos estar, involuntariamente, a
facilitar o aparecimento de filmes que, por uma razão ou outra, não
resultam. É o caso de Ribeira da Saudade, do Milionário, e, mesmo, de
O Auto da Primavera.“
Ainda que a razão formal fosse salvaguardar uma eventual não identificação do
SNI com os filmes por si financiados, parece-me claramente que esta nova orientação
estratégia visava sobretudo a desvinculação inequívoca do Estado dos interesses
corporativos dos produtores. Por um lado, Moreira Baptista reduziu as encomendas
directas e a produção própria do SNI, ao mesmo tempo que, formalmente, empurrava a
decisão sobre os apoios para um órgão formalmente independente do poder político do
próprio SNI.
Talvez por manifesta pressão do sector da produção, o modelo de financiamento
não seria alterado, mantendo-se a avaliação dos projectos a priori. Com demasiadas
produtoras dependentes dos financiamentos públicos para sobreviver, a mudança
preconizada por Moreira Baptista em reunião do Conselho de Cinema poderia mesmo
significar a estagnação ou mesmo a falência do sector de produção cinematográfica em
Portugal. Ainda assim, os apoios directos e as encomendas foram reduzindo a sua
proporção no total dos apoios públicos, como de resto vinha acontecendo nos
consulados posteriores a António Ferro.
No entanto, em sentido oposto ao SNI, outros organismos públicos, como a
Agência Geral do Ultramar, os Serviços Cartográficos do Exército ou a Junta de Acção
Social35, continuavam a apostar sobretudo na produção própria de filmes, talvez numa
estratégia de maior controlo da informação.
Assim, a produção conheceu um surto significativo entre 1961 e 1974, com
especial destaque para os filmes de curta-metragem.
Tabela n.º 14
35
O caso da Junta de Acção Social, de que tomei conhecimento recentemente através de um projecto de
investigação desenvolvido por Frédric Vidal é surpreendente: se entre 1949 e 1959 produziram apenas 1
filme, entre 1960 e 1965 o organismo público produziu 86 filmes de variadas temáticas. A lista desses
filmes pode ser consultada em WWW:<http://www.imdb.com/company/co0004618/?ref_=fn_al_co_1>.
102
Estreias de filmes portugueses entre 1961 e 1974
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE)
Total
Ano
1961
1963
1965
1967
1969
1970
1971
1972
1973
1974
Longas-metragens
(superior a
1800m)
Curtas-metragens
(inferior a 1800m)
Metros
Filmes
Metros
Filmes
Metros
37,167
49,207
48,465
71,991
72,826
79,464
68,115
86,171
64,970
77,845
1
6
6
6
4
5
2
8
2
8
2,100
14,587
15,061
16,391
10,674
14,257
4,807
22,361
5,570
26,050
108
121
109
186
205
221
216
219
203
182
35,067
34,620
33,404
55,600
62,152
65,207
63,308
63,810
59,400
51,795
% de curtas em
relação aos Metros
94%
70%
69%
77%
85%
82%
93%
74%
91%
67%
De acordo com o quadro anterior, segundo dados do INE, a estreia de filmes de
curta-metragem atingiu um máximo entre 1969 e 1972, ultrapassando mesmo os 60 mil
metros de película, o que corresponde a cerca de 20 longas-metragens. Este registo é
ainda mais impressionante se porque poucos anos antes, entre 1961 e 1965, o número
de estreia era sensivelmente metade desse valor.
A produção dos filmes de curta-metragem, com equipas de filmagem e tempos de
rodagem reduzidos, com orçamentos substancialmente reduzidos, com preocupações
comerciais (ao nível da distribuição e exibição) reduzidas e com uma liberdade criativa
apreciável tornaram este género de filmes – turístico, industrial, publicitário,
institucional – um terreno privilegiado de aprendizagem, de treino e de experimentação
na prática fílmica dos jovens cinéfilos aspirantes a realizadores. A dificuldade em filmar
obras de fundo, vetadas pelos constrangimentos da censura e pela monopolização do
Fundo pelos cineastas próximos do regime, remeteram os jovens realizadores para os
géneros cinematográficos de certa forma marginalizados. Sofrendo influências das
principais escolas europeias36, o género documentário possibilitava uma interessante
vertente criativa, explorando sobretudo filmes marginalizados pelo mercado
cinematográfico.
36
Como analisarei mais adiante, esta geração de realizadores portugueses foi, na sua maioria, beneficiária
de importantes bolsas de estudo do Governo português ou da Fundação Calouste de Gulbenkian,
recendendo formação nos principais centros de formação cinematográfica da Europa, como Londres, Paris
e Roma.
103
Não foi, portanto, por mero acaso que a maioria dos cineastas da geração do Novo
cinema português começou as suas carreiras cinematográficas (excluindo eventuais
filmes escolares ou em regime amador) por filmes de curta-metragem. Muitas das
experimentações feitas nestes filmes de curta-metragem foram depois tentadas nas
primeiras longas-metragens destes realizadores. No entanto, pela fraca visibilidade dos
filmes de curta-metragem, a renovação ética, estética e técnica promovida por uma nova
geração só foi sendo reconhecida publicamente nas longas-metragens que eles foram
apresentando.
A lei de “protecção ao cinema“ de 1948, para fins tributários, estipulava quatro
categorias de filmes de curta-metragem: farsas e atracções musicais; desenhos
animados; documentários e congéneres; e actualidades. A partir de 1961, os relatórios
estatísticos do INE definem cinco categorias para classificar os filmes de pequenametragem:
a) Filmes recreativos, designação atribuída a obras de ficção ou “romanceadas“
também conhecidas como “fitas cómicas“ ou “farsas“. Esta nova categoria passa
a incluir também os filmes de animação.
b) Filmes documentários, designação abrangente que inclui os filmes turísticos,
industriais, técnicos ou científicos. O principal objectivo destes filmes, e por isso
eram maioritariamente financiados pelo organismo oficial da propaganda, era
fomentar o sector turístico e industrial português, sendo exibidos em circuitos
específicos no estrangeiro e também para promoção propagandística de Portugal
junto das colónias de portugueses espalhados pelo mundo, particularmente nas
Casas de Portugal em Nova Iorque, Rio de Janeiro, Paris, Londres e Madrid.
c) Filmes culturais, ou filmes sobre temáticas relacionadas com as artes e letras.
Esta categoria incluía também os filmes educativos ou formativos,
nomeadamente os filmes destinados à Telescola, à semelhança do que tinha
acontecido na década anterior com a Campanha Nacional de Educação de
Adultos.
d) Filmes de actualidades, também conhecidos como jornais de actualidades, eram
filmes de teor noticioso com uma componente fortemente propagandística.
e) Filmes de publicidade, categoria criada para diferenciar o forte crescimento
deste género fílmico, motivado pela forte expansão da actividade publicitária em
Portugal.
104
Naturalmente, a produção destes filmes de curta-metragem estavam directamente
com as condições de exibição existentes no cinema português para este tipo de filmes. O
quadro seguinte, adaptado dos anuários estatísticos do INE, regista o número de vezes
que os filmes eram exibidos nas sessões comercias em Portugal continental e ilhas.
Tabela n.º 15
Exibição de filmes de curta-metragem, por género, entre 1961 e 1980
Ano
1961
1962
1963
1965
1967
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE)
Recreativos Documentários
Culturais
Actualidades
Publicidade
1.028
4.978
2.042
8.897
25.948
1.379
3.857
1.968
10.540
27.130
1.040
4.861
1.937
11.179
27.952
1.206
5.706
1.708
8.982
25.161
1.620
6.967
2.666
16.068
26.106
1.997
7.904
3.691
16.827
18.827
2.281
9.287
3.361
17.771
18.248
2.610
10.489
3.369
18.814
13.767
3.979
11.246
3.210
18.326
16.625
2.720
12.160
4.188
18.231
19.074
2.676
11.853
3.421
20.377
27.601
2.267
9.435
2.168
14.957
24.534
2.647
8.989
2.228
10.176
34.280
2.780
7.016
2.088
8.361
30.197
1.726
7.029
1.918
8.732
24.614
2.368
5.867
1.192
6.136
22.686
2.188
6.815
1.197
5.423
23.234
De acordo com estes dados, é evidente o predomínio dos filmes publicitários e de
actualidades no mercado exibidor português. Por serem de menor direcção e de
interesse político (actualidades) e comercial (publicitários), os filmes destas categorias
eram presença obrigatória em todos os programas cinematográficos deste período.
Muitas vezes, uma mesma sessão de cinema poderia incluir diversos filmes publicitários,
daí o número desnivelado de exibições deste género de filmes. Os jornais de
actualidades também eram habituais em todos os programas cinematográficos.
Das categorias minoritárias, os documentários eram os mais exibidos,
ultrapassando mesmo, entre 1971 e 1974, a barreira das 10 mil exibições. Estes valores
do início da década de 70 representavam mesmo um crescimento de 100 por cento em
relação a período idêntico da década anterior.
105
O estatuto artístico da produção de curtas-metragens foi-se alterando ao longo do
período aqui em estudo. De um género menor e, por vezes, desclassificado, a curtametragem foi conquistando um progressivo capital de confiança por parte da crítica e
das autoridades políticas. Foi através das curtas-metragens que algumas das figuras de
destaque no Novo cinema português obtiveram reconhecimento público e oficial por
parte das autoridades culturais em relação às suas propostas.
Para além deste reconhecimento oficial, as sucessivas distinções internacionais –
entre selecções, menções ou prémios – obtidas por curtas-metragens portuguesas em
diversos festivais de cinema internacionais devolviam ao SNI um capital político e
cultural que as produções de longa-metragem nunca tinham conquistado
internacionalmente. Ainda que se trata-se, na generalidade, de festivais especializados
em géneros pouco mediáticos – filme industrial, filme publicitário, filme religioso – este
reconhecimento internacional era importante para o reconhecimento do cinema
português e da própria produção cultural e artística feita em Portugal.
Se a União de Grémios dos Espectáculos mostrava preocupação com o
incumprimento da lei, nomeadamente no artigo que previa a obrigatoriedade de
exibição de filmes portugueses (uma semana de filmes portugueses por cada cinco
semanas de filmes estrangeiros), o mesmo parecia não se passar com os responsáveis
governativos. A 17 de Dezembro de 1959, através de um despacho do Ministério da
Presidência, a União de Grémios dos Espectáculos era informada que:
“(...) os filmes nacionais, até então produzidos e os que foram
sendo concluídos nos anos subsequentes, deixaram de ser
beneficiados não só da quota obrigatória como, também, das outras
normas de protecção relativas a preços de aluguer, percentagens,
mínimos de passagens, etc, etc. As produções portuguesas passam a
entrar no jogo da oferta e da procura, em perfeita concorrência com os
filmes estrangeiros, na sua totalidade de categoria manifestamente
superior.“ (apud Cruchinho, 2000: 343).
Esta medida, de entregar o cinema português ao “jogo da oferta e da procura“, tão
desejada e reclamada pelo sector da distribuição, constituiu um rude golpe nos
interesses dos produtores. Ainda que a medida não fosse formalizada publicamente,
apenas pelo referido despacho ministerial dirigido aos interessados, foi algo que
desresponsabilizava os sectores da distribuição e da exibição do incumprimento da lei
em vigor. Esta questão haveria de voltar à discussão no seio do Conselho de Cinema em
Janeiro de 1964, quando o próprio Moreira Baptista propôs ao representante da União
106
de Grémios dos Espectáculos “uma conciliação entre as partes até à saída de nova
legislação“ (Ibidem).
Neste período, os dados estatísticos referentes à exibição são positivos.
Ano
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
Tabela n.º 16
Dados sobre Casas de Espectáculos, Salas de Cinema, Sessões, Espectadores
e Receitas em Portugal entre 1961 e 1969
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1961-69, INE)
Receita
Espectadores
Casas de
Salas de
Lotação
Sessões
(milhões de
(milhões)
espectáculos
Cinema
escudos)
471
435
260.278
80.964
26.110
195.590
500
546
265.216
82.417
25.552
193.436
492
450
263.062
82.528
26.702
193.502
490
441
258.367
82.657
24.487
196.880
497
449
264.256
83.242
25.660
217.611
489
439
261.265
85.408
28.341
230.141
531
482
273.965
96.184
27.671
267.279
544
492
276.700
97.042
26.618
268.876
532
484
275.215
100.139
26.413
281.473
Entre 1961 e 1969, todos os indicadores apresentam um saldo positivo: as salas de
cinema aumentam cerca de 10%, o número de sessões cresce cerca de 25%; apesar da
estabilização do número de espectadores, a receita cresce significativamente na ordem
dos 45%.
A análise comparativa entre as casas de espectáculos licenciadas e as salas de
cinema não deixa quaisquer dúvidas que o cinema era o espectáculo mais popular e com
maior oferta junto da população: em 1961, 92% das casas de espectáculos são salas de
cinema; em 1969, o número cifra-se nos 91%. De resto, seria precisamente esta uma das
argumentações usadas, em 1968, pelos signatários d'O Ofício do Cinema em Portugal
(1968: 13), no ponto “Cinema: Cultura com 93% de alcance“, para exigir maior
investimento público:
“Certos factos nunca serão realçados em demasia. Na verdade,
toda a gente sabe que desde há anos o cinema nacional vive sem
qualquer estrutura, ao sabor das tentativas isoladas que de quando em
quando vão surgindo e que sistematicamente soçobram por falta de
apoios de tosa a ordem. Por outro lado, embora ninguém duvide que o
cinema é a forma de expressão artística, ou espectáculo, se quisermos,
mais acessível à grande massa de espectadores, muita gente ignora
que entre nós ele absorve nada menos que cerca de 93% dos
frequentadores de todos os espectáculos, incluindo mesmo os que,
como os tauromáquicos, atraem verdadeiras multidões.“
107
Apesar de perder público para a televisão, por ser um entretenimento mais “fácil“ e
mais “barato“ (Ibidem: 16), o cinema continuava a ser um espectáculo público mais
concorrido que o teatro (4%), o bailado (0,12%) ou a ópera (0,1%), excluindo-se o
espectáculo futebolístico (Ibidem: 10-11). Mas, ainda para os signatários d'O Ofício, a
saída do impasse passava, entre outras medidas, por “abrir mais salas“ e “diminuir a
desproporção numérica entre os filmes portugueses e os estrangeiros“ (Ibidem: 19).
À semelhança de outros mercados, o circuito português de exibição comercial
estava dominado pela presença dos filmes de produção norte-americana.
Tabela n.º 17
Filmes exibidos nas salas portuguesas 1963 e 1969
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE)
Metragem
Filmes
Metragem
Filmes
Metragem
Outros
Filmes
Metragem
Itália
355
60.400
24
68.886
87
89.836
357
594.060
135
186.782
81
145.424
54
163.300
65
52.666
329
54.187
38
105.498
85
84.405
348
600.749
126
143.023
112
154.335
45
127.201
67
45.574
264
46.644
12
31.495
74
59.388
398
753.527
123
171.598
70
98.879
56
158.345
81
65.374
289
53.244
83
83.361
48
54.708
337
643.169
187
183.233
46
85.749
105
251.201
37
41.597
326
70.844
28
57.559
23
31.996
379
650.526
167
164.162
68
154.922
93
187.982
55
107.416
321
67.590
84
50.297
79
48.070
427
799.221
137
145.716
98
116.859
114
298.574
105
51.555
378
77.585
61
40.263
69
41.574
406
717.699
166
125.502
75
96.341
88
230.274
70
59.697
Filmes
Metragem
Inglaterra
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
Filmes
Metragem
França
Ano
Filmes
Metragem
EUA
Filmes
Espanha
Metragem
Alemanha
Filmes
Portugal
Gráficos n.º 3 e 4
Percentagem de filmes estreados em Portugal pelo país de origem (1963 e 1969)
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1960-69, INE)
108
1963
Itália
12%
Outros Portugal
4%
4% RFA
5%
Inglater
ra
11%
1969
Espanha
6%
Itália
16%
Outros
4%
Inglater
ra
7%
Portugal
6%
RFA
3%
Espanha
3%
França
9%
França
14%
EUA
52%
EUA
44%
No período em análise, os EUA recuperou alguma quota de mercado e fechou a
década com 52% do total de filmes de longa-metragem distribuídos no circuito nacional.
Os filmes de produção italiana continuavam a garantir um posição privilegiada,
passando mesmo a ser o segundo país com mais filmes importados, ultrapassando
cinematografias históricas como a da França e Inglaterra.
De acordo com a argumentação dos signatários d'O Ofício, o elevado número de
importação de filmes também se devia, em grande medida, ao “elevadíssimo“ número de
distribuidores em actividade em Portugal (22 em 1968): o “cancro da distribuição“
agrava a situação do cinema português porque não há restrições à importação
(exceptuando os “países do bloco socialista“), o contributo para o Fundo do Cinema
Nacional é residual (deveria ser proporcional aos lucros) e porque, ao anular a quota
para os filmes portugueses, “os distribuidores só aceitam a distribuição de filmes
portugueses em condições perfeitamente ruinosas para os produtores“ (O Ofício do
Cinema em Portugal, 1968: 22).
Ainda neste contexto de exibição, no final da década de 50, coincidindo com o
início do mandato de Moreira Baptista, há a assinalar, no dia 29 de Setembro de 1958, a
inauguração oficial da Cinemateca Nacional, apresentando a I Retrospectiva do Cinema
Português, com dez filmes mudos (1911-30). Como já foi referido antes, apesar de criada
legalmente pela Lei 2.027 de 1948, a Cinemateca demoraria uma década exacta a iniciar
efectivamente as suas funções. Mas os primeiros anos foram de programação esporádica:
109
II Retrospectiva do Cinema Português (3 sessões) em Julho de 1959; Retrospectiva do
Cinema Alemão 1927-1934 (5 sessões) em Maio de 1960; III Retrospectiva do Cinema
Português (8 sessões) em Junho de 1960; I Retrospectiva do Cinema Sonoro Português
(6 sessões) em Outubro de 1960; II Retrospectiva do Cinema Sonoro Português (6
sessões) em Novembro e Dezembro de 1960; III Restropectiva do Cinema Sonoro
Português (6 sessões) em Janeiro de 1961. Em suma, nos primeiros 4 anos de actividade
efectiva, a Cinemateca organizou apenas 7 ciclos de cinema que totalizaram 44 sessões
de cinema.
Apesar de pouco significativa, estas primeiras sessões retrospectivas do cinema
português, que recuperavam importantes obras do cinema mudo (dos pioneiros Os
Crimes de Diogo Alves (1911) de João Tavares a alguns dos maiores êxitos da Invicta
Filme, passando pelos primeiros filmes de Leitão de Barros e de Reinaldo Ferreira) ou do
cinema sonoro (Ala-Arriba (1942) de Leitão de Barros ou Aniki-Bóbó (1942) de Manoel
de Oliveira), foram importantes para se preservar e divulgar a própria memória cinéfila
do cinema português. Apesar da Cinemateca estar sedeada em Lisboa, muitos destes
ciclos de cinema puderam percorrer várias cidades portuguesas graças ao trabalho de
alguns cineclubes.
2.2.2. A televisão pública
Fora do cinema, neste período regista-se um acontecimento que iria influenciar
decisivamente o rumo do cinema português nas décadas seguintes. Em 1957, depois das
primeiras sessões experimentais no ano anterior, começam as emissões regulares de
televisão, o novo meio comunicação onde o regime apostaria forte como veiculo
privilegiado de ocupação dos tempos livres da população. Marcello Caetano, então
Ministro da Presidência, foi indubitavelmente o principal responsável pelo processo de
criação e estratégia dinâmica do novo serviço público. Tendo contactado com a nova e
aliciante forma de comunicação, Caetano impulsionou definitivamente o arranque
daquele serviço que se viria a transformar no melhor instrumento de propaganda ao
serviço do regime.
Mal se iniciaram as emissões regulares da RTP, logo a presença de Caetano se
tornou frequente no écran, encarnando — na falta de Salazar — a personificação do
regime:
110
“Fui o primeiro membro do Governo a utilizar a TV para expor ao
País, em Junho de 1957, problemas de interesse geral. (...) Não
imaginava que, anos antes, como chefe do Governo, ele me seria de
tanta utilidade para o estabelecimento de uma corrente de
comunicação entre mim e o povo português. Mas sabia, desde o início,
que era o instrumento ideal para um Governo se tornar popular... se o
merecesse“ (Caetano, 1977: 472).
O precoce processo de instauração do serviço público de televisão em Portugal —
antecedeu, por exemplo, a introdução da televisão pública em Espanha, Irlanda e
Bélgica — só terá sido possível porque Marcelo Caetano estava sensibilizado e
familiarizado com as novas formas do poder se relacionar com a Opinião Pública. Mesmo
antes da criação da RTP, num discurso de 16 de Janeiro de 1956, Marcello Caetano
afirmava veementemente: “A televisão é um instrumento de acção, benéfico ou
maléfico, consoante o critério que presidir à sua utilização. O Governo espera que os
dirigentes do novo serviço público saibam fazer desse instrumento um meio de elevação
moral e cultural do povo português“ (Cádima, 1993: 30-31).
O controlo da televisão por Marcelo Caetano começou a delinear-se desde o
primeiro momento. Desde a condução dos primeiros estudos, a constituição da
sociedade anónima, até à ocupação dos postos fundamentais ao controlo administrativo
e programático do novo serviço público. Marcello Caetano marcou uma clara posição no
seio do próprio regime, recrutando os elementos da sua confiança pessoal e
institucional na União Nacional e na Mocidade Portuguesa, organizações que conhecia
muito bem.
Segundo
uma
detalhada
investigação
de
Francisco
Rui
Cádima,
a
institucionalização do modelo burocrático de informação como novo discurso de
propaganda é feita gradual mas solidamente. O alinhamento dos serviços noticiosos
demonstrava um rigoroso respeito pela hierarquia política, dando prioridade às agendas
ministeriais e das principais figuras do regime. O controlo político da informação
televisiva respeitou as “grandes estratégias censurantes e persecutórias do regime e o
seu desígnio político global“, dedicando-se à “omissão das opiniões discordantes das do
regime e das suas estratégias, ou tão somente pela sua exclusão da ‘esfera pública’
enquanto campo autónomo, enquanto esfera de singularidades“ (Ibidem: 334-340)37.
37
Num segundo momento, nas direcções de Manuel Múrias e Ramiro Valadão, a introdução dos
comentários e editoriais radicaliza a função ideológica da televisão. A vulgarização da opinião nos
noticiários é uma das principais medidas para a uniformização e controlo absoluto da informação.
111
Apesar de pouco valorizada por Salazar, a televisão pública foi, nomeadamente
através dos serviços noticiosos, o melhor veículo popular de transmissão do ideário do
regime. Pela sua efectiva influência e pela sua eficaz instrumentalização, a RTP
constitui-se gradualmente num dos principais responsáveis pela manutenção do regime
político e social em vigor. Curiosamente, a estratégia de instrumentalização política da
televisão era ainda mais ambiciosa, prevendo a extensão deste importante serviço
público ao espaço ultramarino.
Os números referentes ao pagamento da taxa aplicava aos aparelhos de televisão
são esclarecedores da rápida expansão da recepção da televisão.
Tabela n.º 18
Números de televisores sujeitos a taxa em Portugal (1957-69)
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE).
Ano
1957
1958
1959
1960
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
Aparelhos
2.519
17.569
31.266
46.372
89.642
151.464
180.095
213.775
271.025
305.878
347.188
O alcance da televisão foi crescendo vertiginosamente ao longo da primeira
década. Para além do número de aparelho vendidos, é importante recordar que muitos
deles funcionavam em espaços de convívio público, como cafés ou sociedades
recreativas, e isso aumentava ainda mais a sua potencial audiência. Mesmo que
inicialmente fosse um fenómeno eminentemente urbano, a televisão foi chegando mais
gradualmente aos espaços rurais do país e, só na década de 70, aos arquipélagos da
Madeira e dos Açores (Teves, 2007c: 1). Por outro lado, a própria RTP foi aumentando a
oferta, primeiro com o alargamento do horário de emissão38 e posteriormente com a
38
Iniciou as sessões apenas em horário nocturno (21h30 às 23h) à semana, com um suplemento ao final
da tarde (18h às 19h) aos Domingos; a partir de 1959 passou a emitir das 20h30 às 23h30 (semana) e um
complemento das 17h30 às 18h30 aos Domingos; a partir de 1964, o horário é alargado para as 15h30 às
18h30 e 18h45 às 24h aos dias de semana e das 12h15 às 13h30 e das 15h às 24h aos Domingos.
112
oferta de mais canais: o segundo canal a partir de 25 de Setembro de 1968, a RTP
Madeira a partir de 6 de Agosto de 1972 e a RTP Açores a partir de 10 de Agosto de 1975.
Nos primeiros anos de emissões, o cinema ocupou um lugar de destaque na grelha
de programação da RTP, particularmente o cinema de ficção. No entanto, com o passar
dos anos, o cinema de género documentário foi ganhando protagonismo e ocupando
mais espaço na grelha de programação. Na tabela seguinte, estão registadas as horas de
emissão de programas de e sobre cinema e o total de horas de emissão da televisão
pública.
Tabela n.º 19
Horas de emissão de programas de e sobre cinema (1964-74)
(fonte: Anuários da RTP)
Ano
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
Total de horas de
emissão da RTP
2309
2359
2930
2996
3127
3166
2547
3820
3923
5105
5231
Total de horas da programação
de cinema
180 (7,80%)
144 (6,10%)
168 (5,73%)
147 (4,91%)
?
221 (6,98%)
262 (10,29)
262 (6,86%)
274 (6,98)
652 (12,77%)
548 (10,48%)
A programação de cinema na televisão pública começou por ser assegurada pela
secção de Cinema e Noticiários, que integrava os serviços de produção da televisão
pública. A direcção desta secção estava entregue a Manuel Figueira, jornalista com
fortes relações pessoais a diversas figuras do universo cinematográfico, nomeadamente
Artur Ramos, João Baptista Rosa e o jovem Fernando Lopes. Domingos Mascarenhas, um
crítico de cinema afecto ao regime vigente a quem se atribuiu a expressão “a TV é o
cinema dos pobres“ (Teves, 2007a: 6), desempenhou o cargo de chefe dos Serviços de
Produção e Programas nos primeiros anos da televisão pública. Um desencontro com
Manuel Figueira (seu subordinado hierárquico) terá estado na origem da saída de
Mascarenhas dos quadros da RTP, em Março de 1959 (Ibidem). Em Dezembro de 1963,
seria o próprio Manuel Figueira quem acabaria por deixar a RTP para se dedicar ao
jornalismo impresso (Idem, 2007b: 7).
113
Até à saída de Domingos de Mascarenhas da televisão pública, a programação era
definida por este e por Artur Ramos. Ironicamente, esta programação era então definida
em diálogo entre um integralista afecto ao regime, já então de tendência marcelista, e
um jovem realizador com ligações à oposição cultural ao regime. Artur Ramos acabaria
por ser exonerado da RTP em 1961, “por informação da PIDE“ (Idem, 2007b: 6). O
realizador acabaria por voltar à televisão pública em 1969.
Entre os colaboradores mais influentes desta secção destaca-se o nome de Baptista
Rosa, responsável pelas equipas de filmagem e de edição da produção própria da RTP.
Para além destas funções, Baptista Rosa era também um “gerador de ideias“ e
“idealizador de situações“ (Idem, 2007a: 8). Nos primeiros anos, Baptista Rosa tinha
pouca disponibilidade pelas frequentes solicitações para longas missões no estrangeiro,
nomeadamente no acompanhamento de viagens oficiais de estadistas portugueses. No
entanto, com a formação de novos recursos humanos, Baptista Rosa ficou mais
disponível para projectos mais pessoais. A rubrica Cinema 57 – o título da rubrica era
composto pela palavra Cinema seguida do número do ano em que era produzido,
denunciando precisamente uma vontade de acompanhar a actualidade cinematográfica
– foi o primeiro programa sobre cinema exibido na televisão pública, logo no terceiro dia
de emissões regulares. Produzido e apresentado por Baptista Rosa e Fernando Frazão, o
programa de actualidades cinematográficas só haveria de se tornar regular a partir de
1962. Entre 1966-67 contaria também com a colaboração recorrente do realizador
Oliveira Pinto. Apesar de um ritmo bastante irregular, o programa continuou em antena
até 1974.
Em Janeiro de 1960, a RTP emitiu o primeiro programa de uma série dedicada ao
cinema que haveria de ganhar o estatuto de programa de culto para as primeiras
gerações de telespectadores portugueses. Apresentado por António Lopes Ribeiro (o
cineasta oficial da Política do Espírito de António Ferro) e com acompanhamento
musical do maestro António Melo, o Museu do Cinema era anunciado aos telespectadores
como um programa de retrospectiva do cinema mundial. O Museu de António Lopes
Ribeiro fazia jus ao nome ao pretender dar a conhecer as obras mais significativas da
arte cinematográfica. O formato do programa era muito simples: António Lopes Ribeiro
apresentava e comentava a exibição de algumas obras seleccionadas como as mais
representativas da história do cinema e o maestro António Melo acompanhava ao piano
a projecção dos filmes mudos. Emitido durante década em meia, com cerca de 400
programas transmitidos – embora com alguns interregnos significativos de vários meses
114
e episódios em reposição – o Museu do Cinema foi sobretudo um importante divulgador
da cultura cinéfila e da arte cinematográfica. Foi através deste programa que milhares
de cinéfilos portugueses tiveram um primeiro, ou mesmo único, contacto com obras de
referência fundamentais da história do cinema mundial.39
Para além de algumas emissões avulsas ou excepcionalmente integradas em
rubricas dedicadas a filmes de longa-metragem, a RTP teve duas rubricas especializadas
na emissão de curtas-metragens onde foram emitidos filmes de origem portuguesa:
Cinema sem Estrelas e Cinemateca.
Em Novembro de 1967, a RTP inaugurou, na sua programação, uma nova rubrica
de temática cinematográfica. Produzida e apresentada por Baptista Rosa, Cinema sem
Estrelas apresentava-se aos telespectadores como um exigente espaço de divulgação de
um cinema alternativo contemporâneo, destinado a um público específico e interessado:
“O que aconteceu ontem na Televisão portuguesa pode ter um
grande significado. Pode ter sido a semente de ‘qualquer coisa’.
Chamemos a essa qualquer coisa, por exemplo, o ‘cineclube de nós
todos’, a antologia de cinema que a Televisão podia oferecer a todo o
País. Sim, porque não me venham dizer que as pessoas inteligentes
que ainda existem por essas vilas, por essas aldeias estejam
condenadas, por toda a eternidade, a assistir às Maravilhas do
Desmiolamento Universal, transmitidas nas ‘Noites de Cinema’… Não.
Isso não é justo. Devia ser proibido por lei“ (Mário Castrim apud Diário
de Lisboa, 7-VIII-1968: 6).
O formato deste programa era muito semelhante ao popular e já citado Museu do
Cinema de António Lopes Ribeiro. Baptista Rosa seleccionava, apresentava e comentava
os filmes emitidos mas, por se tratar de cinema mais actual, por vezes, a rubrica poderia
apresentar entrevistas e reportagens com os realizadores ou protagonistas.
Pelas curtas seleccionadas, Cinema sem Estrelas aparenta ser um espaço dedicado
ao filme documentário e particularmente ao novo cinema de origem europeia. Os filmes
seleccionados eram sobretudo obras premiadas num circuito cinematográfico muito
específico – o circuito dos festivais de cinema de prestígio internacional – referenciadas
como os mais representativos das renovadas cinematografias europeias.40
39
Speed Kings (1915), de Bobby Burns e Walter Stull (emitido a 29.05.1960); O Fantasma da Ópera (1925),
de Rupert Julian e Lon Chaney (17.07.1960); His Trust (1911), de David Griffith (24.07.1960); The Great
Train Robbery (1903), de Edwin S. Porter (31.07.1960); A Temporary Truce (1912), de David Griffith
(21.08.1960).
40
Panta Rhei (1951), de Bert Haanstra (06.08.1968); Naissance du cinéma (1950), de Roger Leenhardt
(09.12.1968); Het huis (1961), de Louis Van Gasteren (15.03.1969); Wild Highlands (1961), de Ian
Ferguson (01.10.1969); Hoppity Pop (1946), Begone Dull Care (1949) e A Phantasy (1952), todos de
Norman McLaren (05.12.1969); Le cinéma du diable (1967), de Marcel L'Herbier (11.03.1970).
115
Em Outubro de 1972, a emissão principal da RTP estreou Cinemateca, novo
programa cinematográfico dedicado ao cinema português. Concebido à semelhança do
Museu de Lopes Ribeiro, este programa conduzido por António Ruano apresentava-se
essencialmente como um espaço de divulgação daquilo que o programa designava por
“primitivo“ cinema português.
“Veremos, portanto, o que vai ser a ‘Cinemateca’ que não
queremos avaliar na primeira emissão. Pois ainda acredito que as
‘promessas’ falhem e a realidade do cinema as possa ultrapassar.
Porque António Ruano não se garantiu de bagagem que suporta
uma exposição correcta nem de qualidades de expressão que prendam
o espectador ao material apresentado.
(…)
Ora: ‘Cinemateca’ deu os primeiros passos. E isto de gatinhar é
sempre incómodo. Veremos lá mais para diante. Com desejos ardentes
de que a ‘Cinemateca’ e o ‘Museu do Cinema’ não venham a colidir.
Estará o trânsito bem arrumado no Lumiar?“ (Mário Castrim apud
Diário de Lisboa, 21-X-1972: 6).
De acordo com o Anuário RTP de 1972, as primeiras 9 emissões de Cinemateca
foram dedicadas maioritariamente ao cinema português, sendo emitidos excertos dos
filmes mudos Os Crimes de Diogo Alves (1909-11), Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) ou
Mulheres da Beira (1923). Para além dos excertos, o apresentador fazia também
comentários sobre temas da história do cinema português, como “Imitação portuguesa
de Charlie Chaplin“, “A acção da Lusitânia Filmes“ ou “A actividade da Invicta Filmes em
Portugal“.
Mas, tal como Mário Castrim vaticinara, após a emissão do primeiro programa de
Cinemateca, o reportório nacional parece ter-se esgotado e a produção terá recorrido a
alguns filmes estrangeiros. Entre Março e Junho de 1973, a Cinemateca apresentava
filmes dedicados a temas como “Actores americanos“, “Cinema cómico americano dos
anos 20“ e “Ciclo Méliès“. Infelizmente, a imprensa da época não divulgava os filmes
exibidos nesta rubrica e os Anuários RTP não foram publicados em 1973-74, pelo que não
consegui estabelecer com completo rigor o corpus fílmico desta Cinemateca.
Gradualmente, a emissão de filmes de curta-metragem produzidas para cinema foi
sendo substituída, na grelha da RTP, por produção interna da televisão pública. Dois dos
exemplos mais significativos dessas curtas televisivas foram assinados por Augusto
Cabrita, um activo da televisão pública: Viana e o seu termo (s.d.), emitido a 28-VIII1969; e Na corrente (s.d.), emitido a 31-XII-1969 e 15-II-1970.
A RTP emitiu também três séries de filmes de pequena metragem produzidos por
instituições públicas: a série Isto é Lisboa (produção da Câmara Municipal de Lisboa,
116
composta por dezenas de programas com duração entre os cinco e dez minutos emitidos
entre 1959 e 1967); vários filmes produzidos pela Junta de Acção Social, emitidos entre
1959 e 1965, de frequência semanal, subordinados a temas como a prevenção de
acidentes de trabalho e doenças profissionais, previdência social, ocupação dos tempos
livres dos trabalhadores, entre outros; e vários filmes produzidos pela Agência Geral do
Ultramar, emitidos em 1969, de frequência irregular, subordinados a aspectos turísticos
e culturais das províncias ultramarinas.
No que diz respeito à emissão de longas-metragens, as portuguesas ou de coprodução portuguesa foram as primeiras a ser escolhidas pelos programadores da RTP.
Os filmes portugueses foram emitidos logo nos dois primeiros meses de emissões,
preenchendo os serões das terças ou quartas-feiras. A emissão dos filmes era dividida
em duas partes, sendo intercalada pelo principal serviço noticioso da grelha de
programação. Depois de oito semanas consecutivas de emissão de longas-metragens, a
RTP esteve longos oito meses sem emitir qualquer longa-metragem. Neste regresso, a
emissão de longas abandonou o formato anterior, passando a ser emitido num único
bloco e em horário posterior à emissão do serviço noticiário da noite.
Em Fevereiro de 1958, depois de emitir 17 longas-metragens de produção ou coprodução portuguesa e apenas uma longa de origem estrangeira (El pórtico de la gloria,
1953, prod. Suévia Filmes), a RTP começou a emitir as primeiras longas em regime de
reposição, um expediente que haveria de se vulgarizar e ser recorrente na programação
de longas-metragens dos anos seguintes.
Poucos meses depois, um crítico da TV Magazine lançava um alerta sobre a
selecção dos filmes portugueses exibidos na televisão pública:
“A nossa televisão, no louvável intuito de esclarecer o público
sobre o que foi, e continua a ser, o cinema português, vem lançando a
avalanche terrível das nossas principais peças arqueológicas fílmicas.
Com uma breve pausa – que foi preenchida por um Colombo
lírico e espanhol – têm desfilado ante os nossos olhos, arregalados e
compadecidos, todos os monstros sagrados do nosso cinema. (…)
- Que fins procura atingir a RTP, lançando dentro das nossas
casas a fisionomia mazomba e grotesca de nosso cinema?
Várias hipóteses se apresentam. Enumeremos: Pretende a RTP
abalar a paz das nossas consciências? Deseja ela agitar ante os nossos
olhos estarrecidos o lúgubre fantasma da ‘apagada e vil tristeza’ do
nosso cinema? Quer ela levantar na nossa alma a onda do remorso?
Pretende instaurar o terror, uma vez por semana, em nossas casas? Um
desejo, simplesmente, divertirmo-nos? A esta última pergunta
podemos, desde já, responder. Não. Pela nossa parte, este fúnebre
tropel de cinzas não nos diverte absolutamente nada. Todos nós
sabemos que estas diversas realizações cinematográficas – ‘Ribatejo’,
‘Pupilas…’, ‘Morgadinha’, etc. – foram tentativas honestas e bem
117
intencionadas. Mas infelizmente, isso, por si só, não chega.“ (J. Mota
apud TV Magazine, 15-V-1958: 1).
De facto, os filmes de fundo portugueses emitidos durante os primeiros anos da
RTP privilegiavam sobretudo realizadores consagrados ou de cariz mais popular. Tanto
uns como outros, eram essencialmente títulos produzidos nas décadas de 1930-40, ou
seja, filmes com 20 ou mais anos de antiguidade. A partir de 1961, as longas-metragens
começaram a ser exibidas na rubrica 7.ª Arte (emitida entre Julho de 1961 e Janeiro de
1968). Neste programa era emitida uma longa-metragem – a título de excepção foram
exibidas algumas curtas – seleccionada e apresentada pelo realizador Fernando Garcia41,
geral e maioritariamente de origem estrangeira.
Em Abril de 1962, Fernando Garcia anunciou num dos programas que, a pedido de
um grande número de telespectadores, a rubrica 7.ª Arte iria iniciar um ciclo
exclusivamente dedicado ao cinema português. Em resposta a esta suposta “preferência
dos telespectadores“, o crítico Dinis de Abreu punha o dedo na ferida: “Ora os filmes
portugueses são tão poucos, tão fracos e tão vistos…“ (Rádio e Televisão, 14-IV-1962:
9).
O modelo de emissão de longas-metragens, com apresentação e comentário
prévio, foi gradualmente substituído a partir de finais de 1966. Surgiram então novos
espaços de emissão – Noite de Cinema e Tarde de Cinema, que perdurariam até 1974 –,
não passando de meros separadores na grelha de programação utilizados para anunciar
a emissão de filmes de “grande metragem“. Ao contrário do que sucedeu durante a
rubrica 7.ª Arte, em que a selecção dos filmes emitidos era assumida pelo seu
apresentador, a selecção da Noite de Cinema e da Tarde de Cinema voltou a ser anónima
aos olhos do telespectador.
Nos últimos anos do período em estudo, a emissão das longas-metragens foi
passando gradualmente para horários mais tardios, e um número significativo de filmes
transitou para a segunda banda emissora. Esta perda de protagonismo deveu-se
essencialmente ao aumento exponencial do tempo de emissão diário e à diversificação
dos programas emitidos na grelha da televisão pública, nomeadamente o surgimento do
41
Estreando-se na realização de longas-metragens em 1949, com Heróis do Mar, o apresentador era um
dos membros da depreciada “geração dos assistentes“, designação usada por diversos autores para
classificar o grupo de realizadores que começaram a sua carreira como assistentes dos realizadores que
constituíram o núcleo duro do projecto cinematográfico de António Ferro e porque a sua formação foi
feita exclusivamente à base da experiência adquirida na produção. Antes de apresentar esta rubrica,
Fernando Garcia fez parte de um núcleo de autores/críticos/jornalistas que, de uma forma comprometida,
divulgavam e promoviam o cinema português que mais tarde seria baptizado pela crítica mais jovem como
o “velho“ cinema português, em oposição ao Novo cinema português promovido pela geração de 1960-70.
118
popular Zip-Zip (1969), o pprimeiro talk show da televisão portuguesa que
q alcançou um
tremendo sucesso. Aindaa assim, já na década de 70, na tentativaa de melhorar a
programação, aumentar o in
interesse dos espectadores e fidelizar mais público,
pú
a Noite de
Cinema passou a organizar
ar com alguma frequência ciclos temáticos organizados
o
pelo
crítico Luís de Pina.
O gráfico seguinte apresenta
ap
a distribuição anual das longas-met
etragens por país
de origem. Nesta distribui
uição usamos quatro categorias: produção portuguesa,
p
coprodução portuguesa, prod
odução estrangeira e título não-discriminadoo. Por “produção
portuguesa“ entendem-se ttodas as longas cujo produtor é português ou
u onde
o
existe uma
condição de co-produçãoo e um dos co-produtores é de origem portuguesa.
p
Por
“produção estrangeira“ ent
ntendem-se todas as longas em que os produt
utores envolvidos
não são de origem portugguesa. Por títulos não-discriminados entend
ndem-se todas as
longas cujo título não foi revelado
re
na programação publicada na imprens
nsa consultada42.
Gráfico n.º 5
Origem
m das longas-metragens exibidas na RTP
(fonte: dados compilados a partir
p
da imprensa generalista e Prontuário do Cin
inema Português)
160
140
120
100
80
60
40
20
0
Produção Portugue
uesa
Produção Estrangeira
42
Títulos não-discri
criminados
Para consultar a lista integrall d
de longas-metragens de produção ou co-produção port
rtuguesa emitidas na
RTP entre 1957 e 1974, ver Anexo
xos, C.
119
A primeira conclusão que ressalta da análise destes dados parece óbvia: o cinema
português começou por merecer o maior destaque por parte da televisão portuguesa
mas, gradualmente, as produções cinematográficas de origem estrangeira foram
ganhando terreno até que passaram a ser esmagadoramente hegemónicas.
Se, no primeiro ano de emissões, o cinema português preencheu 91,7% das
longas-metragens emitidas na televisão pública, essa importância foi decrescendo
significativamente. Nos quatro anos seguintes, as longas-metragens de origem
portuguesa ou de co-produção portuguesa ainda surgiam numa percentagem visível –
valores entre os 30 e os 45%. No entanto, a partir de 1962, os valores passaram a ser
residuais. Os anos de 1968 e 1970 podem ser considerados dois “ano zero“ do cinema
português na televisão pública, pois em nenhum deles se encontra qualquer título de
produção ou co-produção portuguesa entre as longas-metragens emitidas pela RTP.
Ao longo do período em análise, a percentagem de todas as produções ou coproduções portuguesas cifra-se nos 8,5% de todas as longas-metragens emitidas pela
televisão pública. Curiosamente, praticamente metade (56 em 114) das longasmetragens de produção nacional foram exibidas nos cinco primeiros anos do período em
estudo (1957-1961). O período de maior escassez verificou-se entre 1965 e 1970, onde
em seis anos apenas foram emitidas dez longas nacionais.
O gráfico seguinte diz respeito apenas às longas-metragens de produção ou coprodução portuguesa. Neste estudo, a designação de “emissão de estreia“ refere-se à
primeira emissão de um filme em televisão, enquanto a designação “emissão em
reposição“ é aqui utilizada para designar todas as emissões de um filme registadas após
a primeira emissão.
Gráfico n.º 6
Comparativo entre longas-metragens portuguesas
emitidas em estreia ou em reposição
(fonte: dados compilados a partir da imprensa generalista e Prontuário do Cinema Português)
120
14
12
10
8
6
4
2
0
Longas-metrag
agens portuguesas ou em co-produção emitidas em estre
treia
Longas-metrag
agens portuguesas ou em co-produção emitidas em repo
osição
Praticamente metade
de do total das emissões de longas-metragen
ens em estreia na
RTP (25 num total de 522 títulos) verificou-se nos dois primeiros anos
an da televisão
pública. Surpreendente é também o facto de a televisão pública não
n ter estreado
qualquer longa-metragem portuguesa durante mais de cinco anos de emissão, entre
1966 e 1970.
Esta tendência de esq
squecimento para com o cinema português,, quer
q
em estreias
como em reposições, vinh
ha-se tornado visível logo desde 1959. O que
q os números
revelam é que a RTP parece
pa
ter esgotado um reportório privileg
egiado de filmes
portugueses nos primeiross meses de emissões regulares. Logo no segun
undo ano, apesar
de estrearem catorze lon
ngas, a televisão pública começou a emit
itir as primeiras
reposições, e logo em núm
úmero considerável (mais de 40%). Esgotado
do o “reportório“
inicial, ao invés de program
ramar outros filmes inéditos, a RTP optou por
or repor títulos já
emitidos, numa intenção que
qu seria aceitável caso tivesse sido acompanh
nhada pela estreia
regular de títulos inéditos.
Nas 62 longas emitid
idas em reposição entre 7 de Março de 19577 e 24 de Abril de
1974, os números també
bém mostram uma desigualdade significa
icativa. Entre os
“campeões“ das reposiçõess encontram-se os seguintes títulos:
- A Canção de Lisboa,, 5 emissões (1957, 1958, 1961, 1966, 1973);
121
- Chaimite, 5 emissões (1957, 1958, 1961, 1964, 1969);
- O Pátio das Cantigas, 5 emissões (1961, 1961, 1972, 1972, 1974);
- Aniki Bóbo, 4 emissões (1960, 1963, 1967, 1970);
- A Canção da Terra, 4 emissões (1957, 1958, 1961, 1966);
- Fátima, Terra de Fé, 4 emissões (1958, 1959, 1964, 1966);
- Frei Luís de Sousa, 4 emissões (1957, 1958, 1959, 1964);
- O Grande Elias, 4 emissões (1959, 1971, 1971, 1973);
- O Pai Tirano, 4 emissões (1961, 1961, 1971, 1972);
- As Pupilas do Senhor Reitor, 4 emissões (1958, 1959, 1964, 1971);
- Ribatejo, 4 emissões (1958, 1959, 1964, 1971);
- Sonhar é Fácil, 4 emissões (1957, 1959, 1961, 1971);
- Ala-Arriba, 3 emissões (1958, 1959, 1964);
- Duas Causas, 3 emissões (1958, 1962, 1969);
- Maria Papoila, 3 emissões (1961, 1965, 1973);
- O Noivo das Caldas, 3 emissões (1963, 1969, 1971);
Assim, nos primeiros dezassete anos da sua programação, a RTP estreou apenas 52
longas-metragens de produção ou co-produção portuguesa. A tabela seguinte apresenta
a distribuição dos filmes emitidos na RTP pelos seus anos originais de produção e
compara esses dados com o número de filmes estreados em sala no mesmo período.
Tabela n.º 20
Longas-metragens portuguesas exibidas na RTP (1957-74)
(fonte: dados compilados a partir da imprensa generalista
e Prontuário do Cinema Português)
Ano de
Produção
1930-34
1935-39
1940-44
1945-49
1950-54
1955-59
1960-64
1965-69
1970-74
Total
Total de longas
nacionais
emitidas
8
14
24
30
27
7
1
3
0
114
Longas nacionais
emitidas
em estreia
3
6
8
18
10
5
1
2
0
52
122
Total de longas
nacionais estreadas
em sala
4
10
15
39
24
12
25
23
18
170
Num primeiro momento, a atenção recai na década de 1960. Das 52 longas
exibidas pela RTP, apenas três foram produções estreadas em salas de cinema nos anos
60 (29 Irmãos de Augusto Fraga, Belarmino de Fernando Lopes e As Ilhas Encantadas de
Carlos Vilardebó). Numa década em que 48 longas estrearam nas salas portuguesas,
apenas três mereceram honras de transmissão na RTP: a primeira longa de um dos
realizadores da casa e simultaneamente do Novo cinema português – Fernando Lopes;
um filme de um dos mais populares realizadores do então designado “velho cinema“, o
mais comercial de então – Augusto Fraga; e a primeira longa de um jovem lusodescendente produzido pelo jovem produtor António da Cunha Telles – Carlos Vilardebó,
com Amália Rodrigues como protagonista.
A segunda observação prende-se com os números do período 1945-49, cujas 18
longas emitidas em estreia representam cerca de 35% do total de filmes portugueses
emitidos em estreia na RTP no período aqui em estudo. Se adicionarmos às 18 longas
produzidas entre 1945-49 as dez longas produzidas entre 1950-54, então ficamos com
um total de vinte e oito longas, ou seja, cerca de 55% de todas as longas emitidas em
estreia. É certo que o período 1945-49 é igualmente o período da história do cinema
português aqui em análise que estreou mais longas em sala (39), mas o mesmo não se
passa com o período 1950-54, cujos filmes de estreias em sala (24) são semelhantes aos
de 1960-64 (25) e 1965-69 (23).
No período em estudo, num total de 170 longas de produção ou co-produção
portuguesas estreadas nas salas comerciais portuguesas entre 1930 e 1974, a RTP
apenas emitiu 52 desses filmes, ou seja, cerca de 30%. Se aceitarmos que as razões de
exploração cinematográfica poderiam impossibilitar a exibição dos filmes mais recentes
e excluirmos das longas “transmissíveis“ os filmes estreados entre 1970 e 1974, então
pode considerar-se que a RTP emitiu cerca de 34% dos 152 filmes “transmissíveis“.
Infelizmente, apesar de diversas tentativas, não foi possível apurar a origem das cópias
dos filmes emitidas na RTP neste período. Ignoro, portanto, se a disponibilidade das
cópias “transmissíveis“ possa ter influenciado de forma irremediável a selecção dos
filmes por parte dos programadores. Mas não ignoro nem desvalorizo o facto do
apuramento posterior destes dados poder distorcer significativamente as conclusões
sobre os rácios de difusão em sala/televisão.
123
A tabela seguinte apresenta a distribuição do corpus dos filmes pelos seus
respectivos realizadores, comparando em simultâneo os filmes que estrearam em sala
com os filmes emitidos na RTP em regime de estreia e de reposição:
Tabela n.º 21
Realizadores das longas-metragens portuguesas exibidas na RTP (1957-74)
(fonte: dados compilados a partir da imprensa generalista
e Prontuário do Cinema Português)
Jorge Brum do Canto
José Leitão de Barros
Henrique Campos
Arthur Duarte
António Lopes Ribeiro
Perdigão Queiroga
Francisco Ribeiro
José Cottineli Telmo
Manoel de Oliveira
Augusto Fraga
Eduardo Maroto
Fernando Garcia
José Buchs
Caetano Bonucci
E. Chianca de Garcia
Ladislao Vajda
Alejandro Perla
Armando Vieira Pinto
Armando Miranda
Carlos Vilardebó
Fernando Lopes
João Moreira
Manuel Guimarães
Total
Total de
longas
emitidas
Emitidas
em
estreia
Emitidas
em
reposição
18
14
13
13
13
6
5
5
4
3
3
2
2
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1
114
6
6
6
6
5
3
1
1
1
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
52
12
8
7
7
8
3
4
4
3
1
1
0
1
1
1
1
0
0
0
0
0
0
0
62
Longas
estreadas
em sala até
1974
10
15
18
14
8
7
1
1
3
9
2
4
1
1
6
4
2
1
10
1
2
1
7
Pela distribuição da tabela, ordenada quantitativamente de forma decrescente
pelo número total de filmes emitidos na televisão pública, constata-se que há um grupo
de realizadores privilegiado em relação à quantidade de filmes emitidos. Entre os
privilegiados, encontram-se quatro dos nomes fundamentais do núcleo de realizadores
que monopolizou a produção cinematográfica durante as décadas de 1930 e 1940: Jorge
124
Brum do Canto viu emitidas seis das dez longas realizadas até 1974; Arthur Duarte viu
emitidas seis das suas 14 longas; Leitão de Barros viu emitidas seis das suas 15 longas;
António Lopes Ribeiro viu emitidas cinco longas em oito estreadas em sala. Destes
quatro realizadores do núcleo duro de António Ferro foram emitidas 23 longas em
estreia, ou seja, 44% do total de filmes emitidos em estreia pela RTP. Se ponderarmos os
números dos filmes emitidos em regime de reposição pela RTP, o favorecimento destes
quatro realizadores é ainda mais expressivo: 58 filmes num total de 114, ou seja, 50,9%
das longas-metragens portuguesas emitidas pela RTP entre 1957-74.
Para além destes nomes, destaque também para Henrique Campos, um dos
realizadores mais profícuos da designada “geração dos assistentes“, que monopolizou a
produção na década de 1950, de quem a RTP emitiu seis longas num total de 18.
Francisco Ribeiro (o popular actor Ribeirinho) e Cottineli Telmo também merecem
destaque porque apenas assinaram um filme de longa-metragem cada um, tendo os
mesmos encabeçado a lista de filmes portugueses mais vistos na televisão pública no
período em estudo, com cinco emissões cada um. O destaque negativo vai,
naturalmente, para Chianca de Garcia, Armando Miranda e Manuel Guimarães. Em
relação ao primeiro, também uma das figuras de destaque dos anos 30, a par de Brum do
Canto ou Leitão de Barros, apenas foi emitida na RTP uma longa-metragem entre seis
possíveis, ficando por emitir um dos títulos ainda hoje mais populares da história do
cinema português como Aldeia da Roupa Branca (1939). Armando de Miranda, outro dos
mais profícuos nomes da “geração dos assistentes“, também só viu emitida uma longa
num total de dez. O polémico, e diversas vezes censurado, Manuel Guimarães também só
viu emitida uma longa entre sete títulos disponíveis. No entanto, no caso do mais neorealista dos realizadores portugueses, constantemente “perseguido“ pela acção da
censura e conotado com forças políticas de oposição ao regime, a maior estranheza é
mesmo a escolha do único filme emitido: enquanto o reportório do realizador incluía
uma comédia musical politicamente inócua como A Costureirinha da Sé, a RTP emitiu o
drama de inspiração neo-realista Saltimbancos.
Dos realizadores completamente “ignorados“ pela RTP – de quem não foi emitido
sequer um único título de longa-metragem – encontram-se nomes como: Constantino
Esteves, outro dos profícuos realizadores da “geração dos assistentes“, com nove longas
estreadas em sala até 1974; António de Macedo, o mais produtivo da geração de jovens
cineastas das décadas de 1960 e 1970, com quatro longas estreadas neste período; e
125
Pedro Martins, realizador de comédias com alguma popularidade e dos quadros da RTP
que estreou três longas entre 1964 e 1973.
De entre os realizadores que procuravam, por estes anos, a renovação estética e
ética do cinema português, a RTP emitiu filmes de: Manoel de Oliveira – O Pintor e a
Cidade (1956); do polémico Manuel Guimarães – O Desterrado, premiado como melhor
documentário pelo SNI em 1949, e Saltimbancos (1951); do jovem António de Macedo –
Crónica do Esforço Perdido (1967), prémio para melhor documentário do SNI em 1967; e
do outro jovem Fernando Lopes – As Pedras e o Tempo (1961), Belarmino (1964) e
Cruzeiro do Sul (1967). Da década de 1960, ficaram por emitir na televisão vários títulos
premiados pelo SNI: Retalhos da vida de um médico (1962), de Jorge Brum do Canto; As
Palavras e os Fios (1962), de Fernando Lopes; A Cruz de Ferro (1967), de Jorge Brum do
Canto; O Cerco (1969), de António Cunha Telles.
De resto, à excepção de Belarmino, o mesmo aconteceu com todas as longasmetragens de referência do Novo cinema português. Veja-se, por exemplo, o caso dos
filmes produzidos por António da Cunha Telles: entre 1962 e 1969, o jovem produtor foi
responsável pela concretização de dez filmes que integravam o esforço de renovação da
década de 60, mas apenas dois foram emitidos na RTP. Se a este corpus incluirmos mais
três filmes considerados como tentativas de renovação (casos de Dom Roberto, Pássaros
de Asas Cortadas, Acto da Primavera, só para falar de filmes de longa-metragem dos anos
60), então a percentagem de filmes do renovado cinema português produzidos na
década de 60 emitidos na RTP cifra-se nos 15,4%.
Em suma, neste período, a influência da RTP sobre o cinema português foi
ambígua: por um lado, ajudou a formar jovens técnicos e deu espaço a programas de
entretenimento ou cultura cinéfila, mas também divulgou e ajudou a popularizar um
cânone cinematográfico muito afastado do cinema português que era exibido nas salas
na época, contribuindo para um afastamento gradual do público português em relação
ao seu próprio cinema.
2.2.3. As bolsas de estudo
A partir da chegada de Moreira Baptista, o Conselho de Cinema começa a atribuir
algumas verbas destinadas à abertura de concursos públicos para a concessão de bolsas
de estudo destinadas à investigação que visassem o aperfeiçoamento técnico e artístico,
126
à formação de jovens portugueses em reputados estabelecimentos de ensino
estrangeiros (realização, montagem, operador de imagem, caracterização, técnico de
laboratório, decoração), e subsídios para iniciativas de fomento à formação de quadros
técnicos (Curso de Cinema do Estúdio Universitário da Mocidade Portuguesa).
Em Novembro de 1961, a criação do I Curso de Cinema no Estúdio Universitário de
Cinema Experimental da Mocidade Portuguesa assumia a pretensão de colmatar uma
lacuna fundamental ao mercado cinematográfico: “é imprescindível uma escola que
forneça uma preparação sistemática e organizada a um nível que poderemos chamar
precisamente universitário“ (Filme, XII-1961: 34). Presidida pelo realizador Fernando
Garcia, mas entregue à responsabilidade directiva de António da Cunha Telles, esta
primeira escola técnica de cinema pretendia formar novos quadros técnicos para renovar
os recursos humanos do sector cinematográfico português.43
Sobre este curso, Cunha Telles afirmaria que esta iniciativa pretendia “formar
rapidamente uma camada de técnicos, e aproveitar uma certa predisposição do Fundo
do Cinema Nacional para a concessão de bolsas aos alunos com as melhores
classificações.“ Reforçando a qualidade deste curso, Cunha Telles lembra que existia um
acordo com o IDHEC para permitir aos formandos deste curso a entrada directa para o
segundo ano dos cursos de especialização dessa instituição francesa. Para confirmar as
expectativas, uma parte significativa destes primeiros formandos desenvolveram
profissionalmente as suas carreiras nas Produções Cunha Telles e no CPC, confirmando
posteriormente a qualidade da formação ministrada (Telles, 1985: 51). Por outro lado,
alguns alunos deste curso também puderam estagiar com alguns nomes de referência do
velho cinema, procurando sobretudo uma integração destes novos técnicos na indústria
cinematográfica portuguesa (Jornal de Letras e Artes, 18-VI-1962: 5).
Em 1969, no seu estilo polémico habitual, o crítico de cinema e aspirante a
cineasta João César Monteiro afirmava nas páginas do Tempo e o Modo:
“Faço parte da primeira geração de cineastas cultos existentes
em Portugal. Por cineastas cultos, entendo pessoas que repetidamente
fizeram pelos anos 60 o trajecto que vai do extinto cinema Gaio à
43
Ao longo do primeiro ano, duas centenas de alunos iriam receber sobretudo uma formação técnica que
os preparava para trabalhar na indústria cinematográfica. O segundo ano estava reservado apenas a
quarenta alunos e aprofundava os conhecimentos teóricos e técnicos iniciados no primeiro ano. Entre o
corpo docente dos dois primeiros anos, verifica-se um hegemonia de figuras ligados ao novo cinema:
Fernando Lopes, Eduardo Prado Coelho, Alberto Seixas Santos, António da Cunha Telles, Paulo Rocha,
João Bénard da Costa, Rui Mário Gonçalves, Mário Barradas, Constança Capdevilla e Alberto Ferreira.
Depois desta primeira experiência, a iniciativa teria continuidade em 1968, com a segunda edição
coordenada por Luís Machado e, em 1972, com a terceira edição (Celulóide, IX-1973: 13-14; Plateia, 21XI-1972: 12).
127
Cinemateca da rua d’Ulm ou ao National Film Theatre. Pessoas que
conseguiram farejar praticamente todo o cinema que se tem feito e,
melhor ou pior, foram tirando do que viram as conclusões que melhor
se lhes impunham.“ (O Tempo e o Modo, 69-70, III/IV-1969: 407).
Numa entrevista ao Le Monde, por ocasião da Semaine du Jeune Cinema Portugais
em Nice (1972), o cineasta Alberto Seixas Santos subscreve a ideia de Monteiro e afirma
peremptoriamente: “Viemos para o cinema com uma bagagem intelectual diferente da
dos nossos predecessores, com uma verdadeira cultura cinematográfica…“ (Seixas
Santos apud Plateia, 582, 26-III-1972: 3).
Paulo Rocha, outro cineasta da década de 1960, considera também a experiência
europeia como estruturante da cultura cinéfila desta geração, sobretudo a influência
das correntes de renovação das principais cinematografias europeias, onde aprenderam
a entender o cinema como uma experiência artística e estética (Monteiro, 2000: 312).
Na década de 1960, a afirmação do designado novo cinema português
pressupunha uma ruptura radical com todo o passado cinematográfico português,
poupando apenas alguns nomes à mediocridade dominante. As duas principais
excepções eram Manoel de Oliveira e Manuel Guimarães, dois exemplos de uma ética
singular e de um percurso marginal. Esteticamente, as referências desta geração eram
quase exclusivamente estrangeiras.
Assumindo uma ruptura com todo o passado, a nova geração pretende apoiar a sua
afirmação na negação dos métodos e técnicas cinematográficas característicos do
cinema português de então, criticando ainda a forte dependência do velho cinema de
áreas do entretenimento com poucas afinidades com a estética cinematográfica,
nomeadamente o teatro de revista ou o designado nacional-cançonetismo.
Em rigor, esta geração que se pretendia afirmar como a “primeira geração de
cineastas cultos portugueses“ deveria ter-se afirmado como “a primeira geração de
cineastas portugueses formados no estrangeiro“. Apesar de alguns dos seus
antecessores terem feito visitas de estudo a vários estúdios e laboratórios europeus,
casos de António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros ou Manoel de Oliveira, a geração do
novo cinema foi a primeira geração do cinema português a receber formação intensiva
em centros de formação especializados. Mas convém sublinhar que, para esta geração, o
facto de terem tido uma formação no estrangeiro, em cursos especializados, dotava-os,
pela primeira vez na história do cinema português, de uma “verdadeira“ e “inédita“
cultura cinematográfica.
128
Para o desenvolvimento desta suposta “inédita cultura cinéfila portuguesa“
concorreram dois factores decisivos. O primeiro foi o contacto com os principais textos
cinematográficos produzidos em toda a Europa, através da leitura de revistas de
referência como as francesas Cahiers du Cinema e Positif ou as italianas Bianco & Nero e
Cinema Nuovo. Na transição para a década de 60, este novo tipo de literatura vinda do
estrangeiro veio quebrar uma relativa uniformidade crítica no panorama português,
originando algumas querelas estéticas que iriam dominar as décadas seguintes. A
leitura das revistas de cinema estrangeiras passou a ser o principal foco de dinamização
das principais tertúlias cinéfilas lisboetas. Mais do que um mero exercício individual de
leitura, estas publicações europeias fomentaram a formação de grupos constituídos por
cinéfilos com maiores ou menores afinidades e cumplicidades estéticas e éticas.
As tertúlias lisboetas mais célebres desses anos 60 eram conhecidas pelos nomes
dos estabelecimentos onde tinham lugar – Martinho da Arcada, Brasileira do Chiado,
Nicola, Café Gelo, Monte Carlo – e eram frequentadas por intelectuais, escritores,
pintores, actores e encenadores de diversas afinidades ideológicas. Entre as tertúlias
cinéfilas mais reconhecidas, destacavam-se sobretudo duas: a do “Vá-Vá“, um café da
Avenida dos EUA que reunia sobretudo cinéfilos e universitários, e a do “Riba Douro“,
um café da Avenida da Liberdade frequentado por pessoas da televisão e do Parque
Mayer. A estas tertúlias ficariam ligados dois filmes fundamentais no início da década de
60: “Belarmino, escrito e dirigido por dois homens do ‘Riba Douro’, Baptista-Bastos e
Fernando Lopes, e Os verdes anos, de Paulo Rocha, cuja derradeira e dramática cena se
desenrola precisamente no ‘Vá-Vá’“ (Cinema Novo Português, 1985: 10). Ao longo dos
tempos, diversos partidários destas tendências alimentaram acesas polémicas estéticas e
éticas. No fundo, estes cinéfilos reproduziam em Portugal os mais intensos debates
sobre cinema que se desenrolavam em diversas cinematografias europeias.
O segundo factor decisivo seriam os já citados cursos de formação e estágios no
estrangeiro de vários aspirantes promovidos pelo Fundo Nacional de Cinema e,
posteriormente, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Reconhecendo a inviabilidade da
designada “geração dos assistentes“ em garantir a renovação do cinema português, o
Estado – através do recém-criado Fundo Nacional do Cinema – começou por promover
medidas que visavam fomentar a renovação na indústria nacional de cinema: abertura
de concursos públicos para a concessão de bolsas de estudo destinadas à investigação
que visem o aperfeiçoamento técnico e artístico, à formação de jovens portugueses em
129
reputados estabelecimentos de ensino estrangeiros (realização, montagem, operador de
imagem, caracterização, técnico de laboratório, decoração).
Assim, entre 1958-68, o Fundo do Cinema Nacional atribuiu um total de 18 bolsas,
assim distribuídas:
Paris (6 bolsas): João Moreira de Carvalho (1958, Imagem); Manuel Costa e
Silva (1959, Institute Des Hautes Études Cinematographiques); António da
Cunha Telles (1959, IDHEC); Alfredo Tropa (1961, IDHEC); Teresa Olga
Monteiro Lopes (1963, IDHEC); Lídia Ferreira de Sá Gouveia (1964, IDHEC,
Decoração);
Londres (5 bolsas): Fernando Lopes (1959, London School of Film Technique);
Marques Lopes (1959, LSFT); Faria de Almeida (1961, LSFT); Eduardo Ferros
(1961, LSFT); Fernando Matos Silva (1964, LSFT);
Madrid (4 bolsas): José Joaquim Pereira (1958, Imagem); Martins dos Santos
(1959); Adriano Cardoso Nazareth (1963, Imagem); Fernanda Pires dos
Santos (1963, Montagem);
Outros (3 bolsas): Manuel António Fernandes (1958, Caracterização); Maria
da Glória Murteira Peres (1958, Laboratório); José Henrique da Conceição
(1958, Laboratório);
Respondendo a diversos apelos de vozes críticas em favor de uma intervenção da
instituição no cinema, a partir de 1961, a Fundação Gulbenkian seguiu a mesma
estratégia que tinha seguido em relação a outras áreas culturais e artísticas. Para além
de financiar iniciativas pontuais (festivais de cinema, cineclubes, cinema amador), a
instituição apostou essencialmente na concessão de bolsas de formação a diversos
jovens aspirantes a realizadores. Entre 1961-74, a Fundação Gulbenkian atribuiu um
total de 19 bolsas, assim distribuídas:
Londres (10 bolsas): Eduardo Guedes (1961-63, LSFT); António Campos
(1961, LSFT); Abel Santos (1961, LSFT); António Escudeiro (1962-63, LSFT);
Alberto Seixas Santos (1963, LSFT); João César Monteiro (1963, LSFT); José
de Sá Caetano (1963, LSFT); João Matos Silva (1968, LSFT); Jorge Silva Melo
(1969-70, LSFT); António Jorge Marques (?, SFS);
Paris (4 bolsas): António-Pedro Vasconcelos (1961-63, Filmologia na
Sorbonne, orientação de Georges Sadoul); António da Cunha Telles (1970);
Noémia Delgado (1973?, IDHEC); Solveig Nordlund (1973-74, IDHEC);
130
Outros (5 bolsas): Manuel Guimarães (1963); Teixeira da Fonseca (1964, RAI,
Itália); Manuel Costa e Silva (1966, EUA); Elso Roque (1967); António da
Cunha Telles (1969, EUA);
Os resultados destas formações foram evidentes.44 A maioria destes nomes
participou no processo de renovação do cinema português que caracterizou as décadas
de 60-70 estão inscritos entre os bolseiros destas duas instituições.
Mas, para além dos cursos de formação e estágios no estrangeiro, diversos jovens
cinéfilos rumavam a Londres e Paris para se documentarem ou recrearem. Entre as
paragens obrigatórias desses jovens cinéfilos encontravam-se as principais Cinematecas,
salas de cinemas emblemáticas (National Film Theatre em Londres ou Cinema Gaio em
Paris) e prestigiados espaços culturais.
António-Pedro Vasconcelos relembra:
“(...) quando comecei a perceber que o cinema ia ser a minha
vida, a primeira coisa que quis foi ver os filmes do passado que haviam
inspirado os cineastas que eu admirava. Não havia vídeo, em Portugal
a televisão estava a começar, havia a censura, e a Cinemateca
raramente fazia retrospectivas. Restava ir para Paris, onde, graças ao
génio visionário de Henri Langlois, que tinha ‘inventado’ a
Cinemateca, era possível ver todos os filmes do mundo.“ (Vasconcelos,
2008: em linha).
Fernando Lopes (apud Cinema Novo Português, 1985: 73) refere também que, em
Londres, para além da escola de cinema era frequentador assíduo do “National Film
Theatre onde, finalmente, pude ver todos os clássicos que sonhava“. Alberto Seixas
Santos (apud Ibidem: 145) lembra que, durante a sua estada em Paris, ele e AntónioPedro Vasconcelos eram espectadores assíduos das “três sessões da Cinemateca
Francesa“.
Num inquérito promovido pela Cinemateca Portuguesa em 1985 (Ibidem: 71-81),
a propósito da primeira retrospectiva do novo cinema português, uma das principais
questões dizia respeito às influências de cinematografias estrangeiras: Considera que os
seus filmes (tanto ao nível da produção, como ao nível estético) se filiam, ou foram
44
Para além destes bolseiros do Fundo do Cinema e da Gulbenkian, outros cineastas e aspirantes
receberam diversas formações no estrangeiro. Nas minhas pesquisas, consegui identificar, pelo menos, 8
casos: Artur Ramos (1951, IDHEC, bolsa paga pelo governo francês);, Paulo Rocha (1959-61, IDHEC,
expensas próprias); José Fonseca e Costa (1961, Itália, estágio com Antonioni, expensas próprias); Luís
Couto (1960?, Madrid); Luís Galvão Teles (1968-70, Paris); Eduardo Elyseu (19??, LSFT); Frederico Ferrão
Katzeinstein (19??, LSFT); Manuel Orvalho Teixeira (19??, LSFT).
131
influenciados, em movimentos internacionais? Dos dez inquiridos, sete45 responderam
afirmativamente: todos sentiam que a sua produção cinematográfica da época sofreu
influências do que leram ou viram. Apesar da heterogeneidade de proveniências cultural
e sócio-económica dos diversos bolseiros — acesso à cultura, os hábitos de leitura e
outros aspectos conjunturais —, a estadia no estrangeiro influiu significativamente a
forma de esta geração de cineastas revelados nas décadas de 60-70 a entender e de
conceber o cinema.
Em 1964, o sociólogo português Adérito Sedas Nunes não tinha dúvidas em
concluir que a “modernização“ cultural e sociológica que a sociedade portuguesa então
vivia se devia em grande medida à crescente abertura às influências exteriores,
sobretudo europeia: “acesso à visão, e mesmo à vivência imaginária, de outras
sociedades, outras condições de vida, outras formas de pensar e agir“ (Nunes, 2000:
50).
A passagem de vários indivíduos por sociedades europeias permitiu que os
“horizontes mentais“ e o “campo social de referência dos seus comportamentos, ideias,
aspirações e decisões“ se abrissem a “uma nova dimensão“ e assumissem “novos
elementos e perspectivas“ (Ibidem: 51). Para além da circulação de bens e mercadorias,
que não são apenas comerciais, mas “também contactos humanos e sociais“, há ainda a
registar a efectiva movimentação de pessoas pelas fronteiras da metrópole: “Ora, os
passageiros entrados, que foram, em 1947, cerca de 131 mil, atingiram, em 1962, 970
mil (acréscimo de 639%); e os passageiros saídos, que não excederam 149 mil naquele
ano, subiram a mais de um milhão (1014,4 milhares) em 1962 (acréscimo de 581%).
Digamos que, em 15 anos, o movimento sextuplicou, grosso modo.“ (Ibidem: 48)
A par destas passagens de indivíduos pela fronteira que são contabilizáveis,
Adérito Sedas Nunes chama a atenção para “outros fenómenos relevantes“ de que não
existe informação estatística utilizável: “Assim é com a difusão do conhecimento de
idiomas estrangeiros, mormente sensível em camadas jovens da classe média (…); assim
é também com a multiplicação e o provável alongamento das permanências de
portugueses noutros países na qualidade de estudantes, bolseiros, técnicos, homens e
negócios, participantes em organismos e reuniões internacionais ou até simples
turistas“ (Ibidem: 50). Entre estes últimos encontravam-se diversos praticantes do
turismo cultural e artístico ou, mais concretamente, do “turismo cinéfilo“. Desde
45
Faria de Almeida, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Ernesto de Sousa, António da
Cunha Telles e Luís Galvão Teles.
132
meados dos anos 50, diversos jovens cinéfilos portugueses rumavam a Londres e Paris
para se documentarem ou recrearem. Devido ao apertado clima de censura prévia vivido
no Portugal de então, muitos dos filmes referenciais da história do cinema mundial
estreavam no nosso país com alguns cortes dos censores ou nem sequer tinham
autorização para estrear em território português, como no caso dos cineastas soviéticos.
Por outro lado, os interesses económicos dos distribuidores e exibidores portugueses
eram também pouco sensíveis aos apelos dos espectadores com hábitos de consumo
minoritários, não tentando sequer importar para Portugal filmes que não dessem
garantias mínimas de retorno financeiro, o que deixava de parte diversos filmes que não
circulavam nos circuitos comerciais internacionais.
O sociólogo remata com a seguinte conclusão: “ocorre como que uma progressiva
diluição ou evanescência das fronteiras enquanto limites sociais e culturais“ e cada vez
mais os indivíduos “tendem a agir, pensar, sentir e desejar, não já em função apenas de
estímulos, imagens, oportunidades, solicitações e concepções internos à sociedade
onde nasceram e onde estão, mas também em função de estímulos, imagens,
oportunidades, solicitações e concepções recebidos do exterior da sociedade, ou nesse
exterior apercebidos, através do contínuo fluxo de informação“ (Ibidem).
Numa reflexão ensaística sobre juventude, rebeldia e resistência nos anos 60 em
Portugal, Rui Bebiano lembra que a generalidade dos jovens dessa época “olhavam e
liam“ a sociedade à qual pertenciam “como se não fizessem parte dela, desenvolvendo
uma forma de alteridade cultural – capaz de conter ideias, aspirações, costumes,
atitudes, modos de ser, de parecer e de existir, pelos quais se distinguiam das gerações
mais velhas – que se confrontava com a cultura dominante, rejeitando-a e, quando
confrontada com a impossibilidade de a contrariar, procurando escapar-lhe.“ (Bebiano,
2003: 98)
No caso particular dos jovens cinéfilos, a importação de “estímulos, imagens,
oportunidades, solicitações e concepções“ foi fundamental na materialização de uma
oposição fílmica que, em termos escritos, vinha já sendo divulgada desde a década de
1950. O contacto com cinematografias estrangeiras, desde as obras clássicas aos
movimentos de ruptura, forneceu aos cinéfilos mais inconformados com o cinema
português uma base de comparação onde estes reviam as suas objecções culturais e
estéticas.
133
2.2.4. Os festivais internacionais de cinema
Parece evidente que a atribuição de bolsas em instituições de formação técnica e
superior no estrangeiro era já um sintoma de um processo de internacionalização que
parecia ser prioritário para o novo SNI de Moreira Baptista. Neste contexto, a
participação de filmes portugueses em festivais internacionais de cinema, sobretudo na
Europa e na América Latina, também vai ser uma aposta muito importante por parte dos
dirigentes políticos.
De acordo com os dados que consultei nos processos de participação em festivais
de cinema gerados pelo próprio SNI/SEIT, depositadas no fundo do Secretariado
Nacional de Informação preservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não tenho
dúvidas em afirmar que a partir de 1958 é notória uma nova estratégia de promoção
internacional tentada pelo SNI com apoio claro de vários produtores, promovendo uma
mudança de paradigma no cinema português que, em última análise, significou uma
ruptura com os projectos anteriores de um cinema nacional para um público português
(ou luso falante) e uma aproximação estética ao cinema moderno das novas vagas
europeias.
Até 1958, com a chegada de César Moreira Baptista à direcção do SNI, não havia
qualquer estratégia de circulação de filmes pelos festivais de cinema europeus. No
fundo, a presença de filmes portugueses dependia muito do dinamismo dos seus
produtores ou distribuidores, que apostavam sobretudo na presença em festivais para
rentabilizar comercialmente o filme e tentar vendê-lo para mercados estrangeiros. Uma
das excepções aconteceu a propósito da participação de Portugal no Festival
Internacional de Cinema de São Paulo em 1954. Dada a importância histórica desse
evento, o SNI organizou a presença portuguesa e a delegação que viajaria, optando pela
escolha da longa-metragem O Cerro dos Enforcados (1954), de Fernando Garcia,
sobretudo por adaptar um conto de Eça de Queiroz. Outra das excepções aconteceu no
Festival de Cannes de 1959, quando Portugal apostou fortemente na apresentação de
Rapsódia Portuguesa, uma realização de João Mendes e escrita por Fernanda de Castro a
partir de uma ideia de António Ferro. A presença deste filme em Cannes foi
acompanhada por uma significativa operação de marketing que incluía oferta de brindes
(barretes de campinos, chinelos e vinho do porto), figuração folclórica, publicidade nos
jornais locais e a preparação de uma importante delegação com a presença de Amália
Rodrigues e António Vilar.
134
Em Julho e Outubro de 1961, o SNI enviou a diversos festivais de cinema
internacionais uma nota oficiosa que esclarecia os organizadores que, ao abrigo do
Decreto-lei 31.134 (de 24 de Novembro de 1944), qualquer participação de filmes
portugueses em eventos cinematográficos internacionais terá de ser mediada pelo SNI.
De acordo com o diploma, no seu artigo 19.ª, “a exportação de filmes portugueses para o
estrangeiro“ dependia “de autorização do Secretariado, do seu parecer favorável ou da
aprovação prévia dos argumentos e elencos técnicos e artísticos“ (…).
Por alguma razão que não consegui ainda apurar, o SNI sentiu necessidade de,
quase 20 anos após a publicação desse diploma, lembrar aos organizadores dos eventos
cinematográficos internacionais que queria tutelar a exportação do cinema português,
quer fosse de carácter permanente (vendas de cópias para o circuito comercial) como
temporária (empréstimo de cópias para o circuito não-comercial).
A minha análise centra-se no conteúdo de 15 caixas com 261 processos
relacionados com organizadores de festivais de cinema internacionais depositadas no
fundo do Secretariado Nacional de Informação preservado no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo.46
Cronologicamente, os processos dizem respeito ao espaço temporal 1955-1968,
assim distribuídos:
Gráfico n.º 7
Participação de filmes portugueses em festivais de cinema internacionais
(fonte: dados compilados a partir de ANTT, fundo SNI, caixas 11, 28, 73, 138, 543, 1019,
1360, 1487, 1554, 1606, 1692, 1806, 2092, 2112, 2127)
46
Nessas caixas fazem ainda parte 13 processos relativos a pedidos de apoio a festivais portugueses, assim
distribuídos: Guimarães – 3 (Festival Nacional de Cinema de Amadores, 1966-67-68); Lisboa – 3 (Festival
de Cinema de Lisboa, 1966; Concurso Nacional de Cinema de Amadores, 1967; Festival Internacional de
Arte Cinematográfica de Lisboa, 1968); Angola – 2 (Luanda e Lobito); Barreiro – 1 (Concurso
Internacional de Cinema Amador, 1968); Coimbra – 1 (Festival Internacional de Filme Amador, 1968);
Leiria – 1 (Semana do Filme Religioso de Amador, 1968); Porto – 1 (Festival Internacional de Filmes de
Amadores, 1967); Taveiro – 1 (Festival Ibérico de Cinema Amador, 1968).
Até à data da elaboração do presente texto foram esses os processos localizados, mas acredito que, nos
próximos anos, com o processo de tratamento arquivístico em curso, seja possível localizar novos
processos referentes ao período posterior a 1968.
135
40
35
30
25
20
15
10
5
0
1955 1956 1957 1958
58 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968
Geograficamente, oss processos dividem-se pelos seguintes paíse
íses: 61 processos
referentes a festivais em IItália (Bérgamo, Génova, Trento, Veneza, Florença,
Fl
Cortina
D’Ampezzo, Salerno, Milão
ão, Trieste, Tirrena, Roma, Novara e Pádua)
a), 41 em França
(Cannes, Paris, Tours, Roll
olle, Marselha, Asniéres e Carcassone), 38 em Espanha (San
Sebastian, Valladolid, Bilb
ilbau, Barcelona, Santander, Benidorm, Coru
runha, Saragoça,
Múrcia, Le Felguera, Cala
la D’Or) e 21 na antiga República Federall Alemã (Berlim,
Manheim e Salzgitter), para
ra além de vários outros países em vários contin
tinentes.47
Tematicamente, oss processos dividem-se da seguinte forma
ma: 11 festivais
generalistas; 48 especializa
zados em cinema de amadores; 26 em filmes turísticos;
t
13 em
curtas-metragens; 12 em cinema
cin
religioso; 11 em género documentário;
o; entre outros.48
Para além destes pro
rocessos de participação oficial, tenho vind
ndo a inventariar
outras participações feitas
as à margem do SNI/SEIT, por iniciativa dos
os produtores ou
realizadores. Cito apenas aalguns exemplos: a participação de O Pinto
tor e a Cidade de
Manoel de Oliveira em Cork
rk (Irlanda); a participação de Os Verdes Anos
os de Paulo Rocha
em Locarno (Suíça) ou Accapulco (México); a participação de Belarmin
ino de Fernando
47
Canadá – 12 (Vancouver); Au
ustrália – 11 (Sidney e Melbourne); Bélgica – 10 (Bru
ruxelas, Antuérpia e
Ostende); EUA – 9 (San Francisco
co e Los Altos Hills); Escócia – 8 (Edimburgo); Irlanda – 8 (Cork); Japão – 6
(Tóquio); Áustria – 5 (Viena); México
M
– 5 (Cidade do México e San Angel); Suíça – 4 (Genebra e Nyon);
África do Sul – 3 (Durban e Ble
leomfontein); Andorra – 3; Colômbia – 3 (Cartagena);
); Brasil – 2 (Rio de
Janeiro); Inglaterra – 2 (Londres
es e Oxford); Suécia – 2 (Estocolmo); Uruguai – 2 (Mont
ntevideu); Argentina
– 1 (Mar del Plata); Chile – 1 (San
antiago); Paquistão – 1.
48
9 de filme artístico; 9 de filme
me desportivo; 6 de cinema etnográfico; 4 de filme industrial;
in
3 de filme
científico; e dança, agrícola e ind
ndependente cada com 1.
136
Lopes em Pesaro (Itália); a participação de Mudar de Vida de Paulo Rocha em São Paulo
(Brasil); a participação de Nojo aos Cães de António de Macedo em Bérgamo (Itália);
Na década de 60, realizavam-se na Europa quatro importantes festivais
classificados, pela FIAPF (Federação Internacional das Associações de Produtores de
Filmes), como categoria A: Veneza, Cannes, Berlim e San Sebastian. Em torno desses
quatro festivais funcionavam dezenas de outros de média e pequena dimensão que,
geralmente, se especializavam num tema, género ou formato específico. Desses, os mais
mediáticos seriam Bérgamo, Pesaro, Firenzi, Tours, Manheim, Oberhausen, Locarno,
Bruxelas e Cork.
Ainda paralelo a este segundo núcleo, identificam-se outros festivais em áreas
geográficas ou ideológicas distintas: Karlovy Vary e Moscovo no mundo socialista;
Acapulco e Mar del Plata na América Latina; Calcutá e Nova Dheli na Ásia; Nova Iorque,
Montreal e Los Angeles na América do Norte.
Veneza era o festival mais antigo, criado em 1932, ligado à Bienal de Arte de
Veneza. Durante o regime fascista de Mussolini foi usado como instrumento de
propaganda e chegou a premiar um filme de Leitão de Barros: Ala-Arriba (1942). Depois
da Segunda Guerra Mundial, perdeu protagonismo devido a diversas polémicas
relacionadas com a figura de Luigi Chiarini, seu director artístico até 1968. Entre 1959 e
1965, Portugal apresentou 11 filmes: Imagens de Portugal; Actualidades de Angola;
Actualidades de Moçambique, Fabricação de Carruagens, Janela Aberta, Lisboa vista pelas
suas crianças (1959); As Pedras e o Tempo (1961); Acto da Primavera (1962); Verão
Coincidente, Dom Roberto (1962); Domingo à tarde (1965); em 1960 e 1964, o SNI
informou a organização que não estaria em condições para enviar representante oficial.
Tratando-se de uma participação oficial feita por convite, os participantes portugueses
eram escolhidos pelo próprio SNI e não por um comité de selecção do próprio festival,
como aconteceria décadas mais tarde.
O festival de Cannes foi criado em 1938, com apoio oficial do governo francês com
fins de promoção turística da região Côte d’Azur. Este festival tornou-se o mais
importante com a afirmação internacional da nouvelle vague. Também viveu tempos
conturbados sobretudo durante o Maio de 1968 mas soube renovar-se criando secções
paralelas como a Quinzena dos Realizadores ou o Mercado do Filme. Entre 1858-62,
Portugal apresentou três filmes: Sintra (1958), Rapsódia Portuguesa (1959) e As Pedras e
o Tempo (1961). Em 1960 e 1962 não participaram. Entre 1960-68, Portugal participou,
também em Cannes, nos Rencontres Internationales du film pour la jeunesse em quatro
137
edições: Açores (1960), Aniki-Bóbó (1961), Sintra (1962) e Pedro, o pequeno burguês
(1965).
O festival de Berlim, criado em 1951 com fins políticos, não exibia filmes do bloco
soviético. O seu director Alfred Bauer apostou em jovens realizadores e na privatização
do festival, o que lhe trouxe enorme prestígio no final dos anos 60. Entre 1958-65,
Portugal apresentou oficialmente 9 filmes: Pescadores de Amangau (1958); Amadeo
Souza-Cardoso (1960); Paixão de Cristo na Pintura Antiga Portuguesa (1961); Barqueiros
do Douro (1962); Retalhos da Vida de um Médico, Faianças Portuguesas (1963); Nicotiana
(1964); Domingo à Tarde, Sobre a Terra e Sobre o Mar (1965). Em 1959, Portugal
apresentou o filme Rapsódia Portuguesa mas o filme foi rejeitado porque já tinha sido
exibido em Cannes. Em 1964, os responsáveis do SNI ainda ponderaram apresentar Os
Verdes Anos, “por representar uma nova tendência no nosso panorama cinematográfico“,
mas acabou por desistir da ideia.
O festival de San Sebastian, criado em 1953, perderia a classificação de categoria A
entre 1958-66. Voltou a ser reconhecido pela FIAPF sob direcção de Miguel de Echarri.
Entre 1958 e 1964, Portugal apresentou representantes oficiais quatro filmes: Flores,
Mundo de Beleza (1958); A Luz vem do Alto (1959); Raça (1961) e Aço Português (1962).
Em 1964, a organização não seleccionou Os Verdes Anos. Em 1963-64, o SNI pensou em
enviar Retalhos da Vida de um Médico e Acto da Primavera mas não chegou a concluir o
processo.
No início da década de 1970, goradas todas as expectativas de triunfar
comercialmente no mercado interno, o circuito cinematográfico internacional surgiu
como uma forma de viabilização económica e de legitimação artística para o Novo
cinema português. Entusiasmados com o reconhecimento internacional de Manoel de
Oliveira e com a boa recepção crítica que diversos novos cinemas receberam nos mais
importantes festivais de cinema internacionais (cinema novo brasileiro, nova vaga
polaca, jovem cinema jugoslavo, entre outros), o Novo cinema português optou
definitivamente pelo caminho de internacionalização, que passava pela radicalização
das propostas, e promoveu uma mudança de paradigma cultural e estético no cinema
português. O cinema português abandonava definitivamente o velho projecto cultural
de António Ferro, abdicando da sua vocação nacional e reclamando uma familiaridade
com as renovadoras e jovens cinematografias europeias e mundiais.
Não foi portanto estranho que, reconhecendo a importância da recepção crítica
internacional, uma das preocupações do Centro Português de Cinema (CPC), e
138
posteriormente do Instituto Português de Cinema (IPC), passasse pela aposta na
internacionalização de um certo cinema português, organizando mostras e sessões de
divulgação de autores portugueses de referência. Mais do que as presenças nos
principais festivais internacionais – que dependiam sempre da “boa vontade“ dos júris
de selecção, raramente recompensavam os custos das representações e poucas menções
ou prémios conquistavam –, o CPC decidiu apostar na promoção e divulgação em
iniciativas não-competitivas e massificada das suas produções, nomeadamente mostras
e ciclos.
A primeira experiência mais significativa foi a organização, em Nice, c om a
colaboração do festival cinematográfico local, da Semaine du Jeune Cinema Portugais em
Março de 1972: uma selecção de filmes que incluía produções recentes do CPC, filmes
das Produções António da Cunha Telles, filmes de João César Monteiro, António Campos,
Cunha Telles e Rogério Ceitil (que ainda não pertenciam à cooperativa), e uma
retrospectiva apreciável de Manoel de Oliveira. Mais do que uma simples mostra, esta
iniciativa deu uma visibilidade mediática ao Novo cinema no mercado internacional que
o cinema português nunca tinha tido até então, justificando o elevado investimento por
parte do CPC na sua organização.
O sucesso foi tal, do ponto de vista da repercussão crítica e da cobertura
mediática, que o CPC voltaria a apostar neste tipo de iniciativas (Barcelona em 1973,
Cinemateca Francesa em Paris em 1974) e o próprio IPC, que assumiria maior destaque
após 1974-75, também privilegiou este modelo realizando mostras em Liége (Março de
1977), Poitiers (Abril de 1977), Madrid (Abril de 1977), Londres (Outubro de 1977),
Manheim (Outubro de 1977), Amesterdão (Novembro de 1977), Leipzig (Dezembro de
1977) e Orense (Março de 1978).
Os dados relevam claramente que, entre outros vários aspectos, a entrada de
Moreira Baptista para a direcção do SNI representou uma mudança de política para o
cinema português, que potenciou ou permitiu outras acções que se revelariam
significativas para uma alteração conjuntural, e depois estrutural, do próprio cinema
português. Em termos de representação portuguesa no estrangeiro, os resultados não se
fizeram esperar: aumento significativo das presenças de filmes portugueses em festivais
internacionais; maior atenção na selecção de festivais a participar, privilegiando os que
tinham maior cobertura mediática; e uma alteração gradual e significativa do tipo de
139
filme selecionáveis para exportação, das encomendas públicas ou dos filmes turísticos
convencionais49 para propostas de jovens realizadores com intuitos renovadores50.
Os dados revelam ainda que o SNI mantinha relações privilegiadas com certos
produtores, nomeadamente António da Cunha Telles, Felipe de Solms ou Francisco de
Castro, como está documentado em diversa correspondência preservada nos processos
consultados. A título de mero exemplo, posso deixar aqui alguns casos concretos: em
1962, o SNI foi convidado para participar no Festival de Melbourne (Austrália) e
contactou os produtores António da Cunha Telles e Felipe de Solms com a proposta de
custear apenas 50 por cento de cópias com legendas em inglês de Os Verdes Anos e
Retalhos da Vida de um Médico; em 1964, após a não-selecção de Os Verdes Anos para San
Sebastian, o produtor António da Cunha Telles conseguiu negociar com o SNI e a
organização do certame o envio de Belarmino mas, à última hora, acabou por desistir por
falta de condições financeiras; em 1965, depois de assegurar a presença de Domingo à
tarde em Veneza, o produtor António da Cunha Telles tentou convencer, sem sucesso, o
SNI e a organização do certame a aceitar também As Ilhas Encantadas; no mesmo ano, o
mesmo produtor tenta, outra vez sem sucesso, levar As Ilhas Encantadas e Belarmino a
Berlim. Em 1968, o SNI contactou António da Cunha Telles para propor o envio de As
Ilhas Encantadas ao Certamen International de Cortometrages en Color de Barcelona,
mas o produtor convenceu o organismo público a apresentar Os Caminhos do Sol.
Finalmente, também parece claro que esta nova estratégia de Moreira Baptista
parecia apostar significativamente no reforço do prestígio internacional do próprio SNI.
Entre campanhas publicitárias, subsídios para financiar ou comparticipar viagens de
actores e técnicos a festivais ou apoio para a legendagem de filmes expressamente
realizadas para festivais, é notório um esforço de investimento financeiro e político para
melhorar a representação de filmes portugueses em certames internacionais. Em alguns
casos, em nome dessa representação de qualidade, o SNI entrava mesmo em certas
contradições, como a autorização excepcional de participação de filmes proibidos em
Portugal (Nojo aos cães de António de Macedo) ou de filmes produzidos fora da “esfera
de influência“ do SNI e do próprio Estado Novo ou mesmo declaradamente contra a sua
política cultural (D. Roberto de Ernesto de Sousa).
49
Janela Aberta (1958) de Silva Brandão; Henrique o Navegador (1960) de João Mendes; Azulejos de
Portugal (1958) de Baptista Rosa; Lisboa vista pelas suas crianças (1958) de António Lopes Ribeiro; Paixão
de Cristo nos Primitivos Portugueses (1961) de Baptista Rosa; Rapsódia Portuguesa (1959) de João Mendes.
50
As Pedras e o Tempo (1961) de Fernando Lopes; Verão Coincidente (1962) de António de Macedo; Os
Caminhos do Sol (1966) de Carlos Vilardebó; Os Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha; Domingo à Tarde
(1965) de António de Macedo.
140
O claro investimento da primeira década de César Moreira Baptista à frente do SNI
conheceria uma inversão na viragem para a década de 70, precisamente no período que
ficaria conhecido como a primavera marcelista.
Tabela n.º 22
Orçamento da SEIT no Orçamento Geral do Estado 1969-74
(fonte: compilado a partir do Orçamento Geral do Estado)
Ano
Total
Despesa com
pessoal
1969
1970
1971
1972
1973
1974
242.855.594$70
296.600.998$40
173.826.954$00
175.913.374$00
181.949.123$00
196.003.652$00
20.585.786$00
28.270.010$00
?
?
?
?
Despesa com
material
1.850.000$00
2.200.000$00
?
?
?
?
Pagamento de
serviços e
diversos encargos
220.419.808$70
266.130.988$40
?
?
?
?
Ao contrário do que se havia registado na década anterior (1958-68), em que o
orçamento do SNI quase quadruplicou (ver Tabela 13), o orçamento da SEIT caiu cerca
de 20% entre 1969 e 1974, registando-me mesmo um corte mais abrupto de cerca de
40% entre 1970 e 1971.
Fausto Cruchinho (2000: 340-341) havia já alertado que com a “promoção“ do SNI
a SEIT — o cinema deixou de ser competência e responsabilidade directa de César
Moreira Baptista e passou para as “mãos“ de Caetano de Carvalho, Director-Geral da
Cultura Popular e Espectáculos — notando uma “diminuição do valor estratégico do
lugar“, situação que seria ainda agravada por uma aparente “diluição ou burocratização
do posto“, que na prática prejudicaria a política de investimento verificada nos anos
anteriores.
A título de exemplo, Cruchicho aponta que a transição de Moreira Baptista para
Caetano de Carvalho foi tão complexa que o Conselho de Cinema não realizou nenhuma
reunião entre 26 de Julho de 1968 e 9 de Abril de 1969, ou seja, quase um ano de
inactividade no principal órgão que decidia sobre a atribuição de apoios públicos à
produção (Ibidem: 345). Por outro lado, ao comparar as despesas com pessoal em 1968
(16.923,386$00), o último ano de actividade do SNI, com a mesma rubrica em 1970
(28.270,010$00), o último ano em que a despesa foi discriminada no Orçamento Geral
de Estado, verifica-se um aumento de 65% em apenas dois anos, quando nos dez anos
anteriores tinha sido apenas de 25%.
141
2.2.5. Censura: entre contradições e excepções
Neste período de transição marcelista, a Censura também iria intensificar a sua
acção no cinema português. Também aqui, a acção do governo iria relevar-se
contraditória: se, por um lado, se assistiu a um “abrandamento“ da censura em relação
ao cinema estrangeiro, particularmente nas cenas de nudez, o comportamento em
relação ao cinema português foi de intolerância.
Ao contrário do que reproduz a generalidade da opinião publicada, a década de
1960 encerra profundas contradições no que diz respeito às relações entre o regime
político e a geração do novo cinema português. As contradições deste período ao nível
das relações entre poder político e o novo cinema começam ao analisarmos
comparativamente as listas dos filmes censurados e dos filmes subsidiados com
dinheiros públicos. Ironicamente, nessa lista comparativa encontramos dois filmes que
são exemplos flagrantes do desacerto da nova estratégia cultural do regime: Catembe
(1965), de Faria de Almeida, e Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo51, foram
subsidiados pelo Fundo de Cinema Nacional e conheceram a dureza da censura. No caso
do filme Catembe, o filme foi sujeito a 103 cortes. Tinha uma metragem original de
2400m e ficou reduzido a 1200m, apenas 48 minutos. Os cortes terão sido sugeridos pela
Agência Geral do Ultramar. Todo o material cortado foi destruído. O filme acabou por
não ser exibido (Candeias, 2003).
Mas o cinema português da década de 60 conheceu ainda outros casos de cortes:
Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos, teve 17 cortes impostos pela
comissão de censura52; Os Verdes Anos (1962), de Paulo Rocha, também teria três frases
51
“O primeiro choque foi com o 'Domingo à Tarde'. O filme ficou concluído no Verão de 1965 e já tinha
estreia no Império para Outubro. Foi submetido à censura obrigatória e depois de muito tempo por lá
andar foi 'aprovado' com quatro cortes. Dois abrangiam a sequência do 'filme dentro do filme', onde o
'emissário das trevas' destrói um crucifixo, outro era a sequência da discoteca onde duas raparigas
dançam uma com a outra, acariciando-se; e finalmente o quarto era uma parte do diálogo entre o 'diabo' e
o padre, já quase no final.“ (António de Macedo apud Arte 7, 5, X-1992)
52
“Agora o que é importante, no que respeita à censura, é que esta intervém para limar todas as arestas,
todas as imagens, até imagens simples, como a de um olhar para o relógio, a deixar perceber que o ricaço
pensava estar já a perder muito tempo com o funeral da filha do chaffeur, ou a imagem de um olhar
panorâmico para o copo de whisky, quando a filha percebe a estratégia do pai. Quer dizer: enquanto eu,
através desses grandes planos e dessas panorâmicas, procurava transmitir essas diferenças de classe, de
estatuto social, ou seja, procurava denunciar essas diferenças, a censura agia exactamente ao contrário,
cortando todos os diálogos, todas as imagens, mesmo as que não tinham diálogos, que pudessem
salientar o domínio de uma classe sobre outra. (...)
142
(“Então, há material novo desde a última vez que aqui estive?“; “Ó Raulinho, se vier
gado jeitoso enxota ali para a mesa do canto“; “Portugal é um país pequeno, mas tem
grandes mulheres“) e uma cena cortada (a cena em que o protagonista e um estrangeiro
conversam com duas prostitutas na rua) (ANTT, SNI, IGAC, caixa 225).
No filme A Caça (1963), de Manoel de Oliveira, a situação foi mais particular: o fim
escolhido pelo realizador (a morte de uma personagem) foi considerado pessimista pela
censura, que exigiu ao realizador – até porque o filme foi feito com fundos públicos –
um final feliz; perante a impossibilidade de ver aprovado o filme como o havia
concebido, Oliveira resolveu acrescentar cerca de 1 minuto ao filme, precisamente o
prolongamento da cena final da morte, de forma que a personagem que deveria morrer
fosse salva pelos seus companheiros.
Mas a transição para a década de 1970 ficaria marcada sobretudo por um número
inédito e significativo de proibições integrais por parte da censura cinematográfica:
Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), de João César Monteiro, teve
cortes da censura que inviabilizaram a sua distribuição comercial; Nojo aos Cães (1970),
de António de Macedo foi proibido por ser considerado “perigoso e contrário aos
interesses nacionais“ (Macedo, 2007: 28); Nem Amantes, Nem Amigos (1970), de
Orlando Vitorino, só seria exibido pela primeira vez em Portugal em 1983, na Cinemateca
Portuguesa (Matos-Cruz, 1999: 143); Grande, grande era a cidade (1971), de Rogério
Ceitil e Lauro António, seria interdito após ante-estreia no Festival de Santarém
(Ibidem: 145); Índia (1972), de António Faria, teve proibição integral (Ibidem: 159);
Deixem-me ao menos subir às palmeiras (1972), de Lopes Barbosa, o primeiro filme feito
no Ultramar por ultramarinos, também foi proibido na íntegra (Ibidem: 149); O MalAmado (1974), de Fernando Matos Silva, foi proibido na íntegra e o negativo foi
confiscado (Ibidem: 154); Sofia e a Educação Sexual (1974), de Eduardo Geada, foi
proibido na íntegra (Ibidem: 155).53
Digamos que nós sublinhámos mais aqueles aspectos a diferenciação de classes. E a verdade é que a peça
no teatro não foi censurada, mas o filme levou dezassete cortes, cortes verdadeiros, cortes cirúrgicos
exactamente nos planos ou nas cenas em que eu pretendia sublinhar a diferença de classes e o domínio de
uma classe sobre a outra, o que evidenciava que a censura aos filmes era feita por gente que sabia de facto
o que era cinema.“ (Artur Ramos apud Azededo, 1999)
53
Sobre este último, convém recuperar aqui o depoimento do realizador sobre o processo do filme com a
censura: “Devíamos estar em fins de Março quando fui chamado ao edifício da censura, mesmo ao lado do
Instituto Português de Cinema. Fui recebido, salvo erro, por Caetano de Carvalho, que me explicou as
razões que, finalmente, tinham levado à reprovação filme. Que analisara a situação e que não era possível
fazer cortes porque estes deixariam o filme sem sentido. Que as obras de arte não se deviam mutilar, pelo
que era preferível pura e simplesmente proibi-las. Que, quando os distribuidores preferiam exibir os filmes
com cortes, enganando assim os espectadores, o problema era deles e não da censura, que se limitava a
cumprir uma missão patriótica.“ (Eduardo Geada apud Arte 7, 5, X-1992).
143
O caso de Nojo aos Cães também é particular: apesar da proibição integral em
território nacional, o filme recebeu, como já referi, uma autorização excepcional por
parte do SNI para participar no festival de cinema de Bérgamo (Macedo, 2007: 29).
Destes oito títulos proibidos integralmente, não deixa de ser significativo que
metade fazem referências directas ou indirectas à política colonial do regime: tanto
Índia como Deixem-me... questionavam a ideia portuguesa de colonização exemplar,
enquanto O Mal-Amado e Grande, Grande era a Cidade (1971) exploravam dois fait-divers
relacionados com traumas resultantes da experiência colonial.
No que diz respeito à atribuição de prémios ou subsídios, estes anos também
registam algumas contradições significativas. Nos prémios de cinema do SNI, entre 1944
e 1973, em 30 edições do prémio, houve 14 edições em que não se atribuiu prémios à
categoria de Melhor Filme e apenas 3 em que não foi atribuído o prémio para a melhor
curta, com a particularidade que foi em edições em que não foram atribuídos prémios a
nenhuma categoria. No entanto, em 1969 o prémio foi atribuído ex-aequo a duas curtas
e, no ano seguinte, para além da curta premiada, foram distinguidas com uma menção
honrosa a outras duas curtas. Assim, em 30 edições dos prémios, foram distinguidos,
entre prémios e menções honrosas, um total de 30 curtas-metragens mas apenas 16
longas-metragens. Este indicador, parece-me inequívoco, abona exemplarmente acerca
da diversidade e qualidade da produção cinematográfica no género da curta-metragem.
Se os prémios atribuídos aos actores eram sobretudo distinções pessoais e
uninominais, parece-me que as distinções atribuídas aos filmes de longa e curtametragem são sinais políticos que pretendem premiar, mais do que os filmes ou os seus
promotores, tendências cinematográficas. Assim, entendo que os prémios atribuídos
sucessivamente a Fernando Lopes (1962), Manuel Faria de Almeida (1965, 1966, 1969,
1970) e António de Macedo (1967, 1969, 1971) na categoria Prémio Paz dos Reis
premiaram não apenas os realizadores mas uma tendência de renovação do cinema
português em geral e na curta-metragem documental em particular.
Ainda assim, no que diz respeito às longas-metragens, pelo maior mediatismo
intrínseco do prémio, o SNI demorou mais tempo a reconhecer o contributo dos jovens
cineastas para a renovação do cinema português. Apenas por duas ocasiões foram
contemplados filmes do Novo cinema: O Cerco, de António Cunha Telles em 1969, Uma
Abelha na Chuva, de Fernando Lopes em 1971.
Para além deste reconhecimento oficial, as sucessivas distinções internacionais –
entre selecções, menções ou prémios – obtidas por curtas-metragens portuguesas em
144
diversos festivais de cinema internacionais devolviam ao SNI um capital político e
cultural que as produções de longa-metragem nunca tinham conquistado
internacionalmente. Ainda que se trata-se, na generalidade, de festivais especializados
em géneros pouco mediáticos – filme industrial, filme publicitário, filme religioso – este
reconhecimento internacional era importante para o reconhecimento do cinema
português e da própria produção cultural e artística feita em Portugal.
Sobre os subsídios, o estudo de Fausto Cruchinho (2000: 339-354) sobre o
funcionamento do Conselho de Cinema é revelador da política de subsídios adoptada
entre 1962 e 1971:
“Ao contrário do que diz a opinião generalizada, não são os
'maus' filmes e os 'maus' realizadores os únicos beneficiados pelo
Fundo. Se exceptuarmos o período de Caetano de Carvalho (19691971) — em que os filmes aprovados contemplam os 'velhos'
realizadores (Henrique Campos e Constantino Esteves) a par com os
'novos' (Cunha Telles e António de Macedo) —, são sobretudo os
realizadores do 'cinema novo' os mais contemplados.“ (Ibidem: 344)
Se Verdes Anos, Rio do Ouro (projecto irrealizado de Paulo Rocha) e Belarmino não
receberam qualquer apoio oficial, a partir de Domingo à Tarde quase todos os projectos
apresentados pelo produtor/realizador Cunha Telles receberam apoio do Fundo:
Catembe (1964) e A Feira (1970), de Faria de Almeida; Domingo à Tarde (1965) e Sete
Balas para Selma (1967), de António de Macedo; As Ilhas Encantadas (1963) e A
Caminho do Sol (1964), de Carlos Villardebó; O Cerco (1969) e Meus Amigos (1971), do
próprio Cunha Telles. Para além dos filmes das produções de Cunha Telles, também
outros nomes relevantes da geração do novo cinema receberam apoios financeiros à
produção: Paulo Rocha com As Tentações de Santo Antão (projecto que não seria
concretizado); António de Macedo com Almada Negreiros Vivo Hoje (1969); Fernando
Lopes com Uma Abelha na Chuva (1971); Manuel Costa e Silva com Vermelho, Amarelo e
Verde (1966); e Faria de Almeida com Portugal Desconhecido (1969).
Para interpretar estes dados contraditórios, proponho uma hipótese que passa
pela valorização de um aspecto fundamental geralmente desvalorizado pelos autores das
principais obras sobre a história do cinema português: a complexa teia de relações
pessoais e institucionais entre elementos do novo cinema e figuras de destaque do
aparelho estatal e de várias instituições privadas parece fornecer inúmeras pistas para
explicar várias questões aparentemente paradoxais e inexplicáveis. A importância dos
encontros informais e relações subterrâneas entre os diversos protagonistas e figurantes
do novo cinema sugere jogos de cumplicidades e de influências e valoriza a petite
145
histoire do cinema português como factor especulativo essencial para a compreensão de
todo este período do novo cinema português. As listas de subsídios à produção, bolsas
de estudo e prémios, atribuídos por instituições oficiais e privadas, o desempenho de
diversas funções públicas, a participação em iniciativas privadas, a cumplicidade
profissional, entre outros, são factores que revelam a importância que algumas relações
pessoais e institucionais poderão ter interferido no processo de afirmação e
reconhecimento do novo cinema.
Parece evidente também que a ideia de uma censura cinematográfica
irrepreensível e implacável está longe de ser a mais apropriada no caso do cinema
português da década de 60 e da primeira metade da seguinte. Se na década de 50 a
discriminação negativa ao cinema português foi mais coerente e eficaz – veja-se o
exemplar caso de Manuel Guimarães –, o mesmo não sucedeu com o designado novo
cinema português. Coerência e eficácia não são, definitivamente, as características que
melhor assentam à acção da censura cinematográfica durante o período de afirmação e
reconhecimento do novo cinema português.
2.3. A Lei 7/71
Ainda que durante a década de 1960 não tivesse sido publicada legislação para o
sector cinematográfico, exceptuando a reorganização do SNI em SEIT, o debate político
centrou-se muito na legislação para o sector e na necessidade da sua revisão.
Respondendo a diversos apelos, o governo reconhecia a desadequação da Lei
2.027 e propunha-se a revogá-la parcial ou totalmente. Assim, a 20 de Novembro de
1959, por portaria publicada no Diário do Governo, a Presidência do Conselho nomeou
uma “comissão destinada a estudar as medidas legislativas convenientes para
actualização e reforma dos diplomas de protecção ao cinema“. Segundo a referida
portaria, a iniciativa de constituição desta comissão resultou de uma exposição da
União de Grémios dos Espectáculos ao Governo relativo às “dificuldades que se verificam
no cumprimento das disposições legais relativas à protecção do cinema nacional“, mas
também das conclusões apresentadas por uma “comissão encarregada de estudar a
influência da televisão sobre a exploração teatral e cinematográfica“. Nessa mesma
portaria, o Ministro da Presidência determinava a composição da comissão revisora da
146
legislação.54 As pressões corporativas exigiam, assim, uma reconfiguração da lei que
regia a indústria cinematográfica.
Desta primeira comissão, os únicos dados que conheço referem-se à realização da
primeira sessão, a 12 de Abril de 1960, onde ficaram estabelecidas as normas para a
elaboração dos trabalhos e a sua calendarização, tendo lugar durante dois dias por
semana a partir do dia 2 de Maio seguinte (Boletim da União de Grémios dos
Espectáculos, IV-1960: 4). Dois anos depois desta reunião inaugural, um editorial do
jornal O Século reitera a necessidade da revisão mas adverte: “Não é de esperar, todavia,
que da comissão tenha saído o esboço daquela desejável ‘política cinematográfica’“
(Idem, IV-1962: 6).
Assumindo um interesse público pela questão cinematográfica, o deputado Pinto
de Menezes leva “o problema da Lei sobre o cinema nacional“ à Assembleia Nacional.
Para além de expor as deficiências do regime tributário das actividades do espectáculo,
este deputado exigiu uma “profunda e urgente reforma“ da Lei 2.027 (Diário das
Sessões, 12-XII-1966: 824-826).
No seguimento deste interesse, em 18 de Março de 1967, o deputado Filomeno
Cartaxo apresentou um requerimento à Assembleia Nacional onde, “com vista à possível
elaboração de um estudo“, solicitava ao SNI dados sobre “o número e montante dos
subsídios e empréstimos concedidos pelo Fundo do Cinema Nacional“ para a “feitura de
filmes de longa e curta metragem, com indicação dos títulos e nomes dos produtores e
realizador“, “bolsas de estudo, com indicação do nome dos bolseiros e escolas e
especialidade frequentadas“ e “dados estatísticos referentes ao movimento da
Biblioteca e Cinemateca Nacionais“ (Idem, 18-III-1967: 1538-1539).
Em Junho seguinte, agora por iniciativa do Subsecretário de Estado da Presidência
do Conselho, foi constituída uma segunda comissão para proceder a estudos “com vista
à revisão e actualização dos diplomas que criaram o Fundo do Cinema Nacional“.55
54
A comissão era presidida pelo auditor jurídico da Presidência do Conselho (Rui da Fonseca Garcia
Pestana) e constituída por representantes do SNI (Júdice da Costa), Inspecção-Geral dos Espectáculos
(José Fernandes Lebre), União de Grémios de Espectáculos, Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema
e por “duas figuras idóneas“ de prestígio reconhecido, no caso Domingos Mascarenhas e Luís de Pina
(Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, XI-1959: 4).
55
A comissão era presidida pelo Secretário Nacional da Informação e contava ainda com a participação do
Inspector-Geral dos Espectáculos, Presidente da Corporação dos Espectáculos, Chefe da repartição da
Cultura Popular, representante da Agência Geral do Ultramar (Ruy Heitor), representante do IMAVE (Luís
de Pina), representante do Grémio Nacional das Empresas de Cinema (Jorge Galveias Rodrigues) e
representante do SNPC (António Lopes Ribeiro). Para além destes representantes de organismos, foram
nomeados para a comissão vários representantes dos diversos sectores da actividade cinematográfica:
Francisco de Castro (produtor), Edmundo Ferreira de Almeida (distribuidor), José Manuel Castello Lopes
(exibidor), José Gil (representante dos Laboratórios), José Nuno Serras Pereira (representante dos
147
Em 15 de Janeiro de 1969, na tomada de posse de Moreira Baptista como
responsável pelo SEIT, na presença de um conjunto significativo de representantes da
actividade cinematográfica, o novo Secretário avançava que as duas prioridades da sua
acção seriam a apresentação de dois projectos de lei para o Teatro e o Cinema.
Insatisfeito com o método de estudo seguido pelas comissões, Moreira Baptista garante
que o projecto da nova legislação terá a “sua apreciação crítica pelos organismos
interessados, nomeadamente os da organização corporativa“ (Boletim da União de
Grémios dos Espectáculos, I/II-1969: 6-9).
Menos de uma semana depois, o recém-nomeado Director-Geral da Cultura Popular
e Espectáculos visitou a Corporação e a União de Grémios dos Espectáculos para
reafirmar as palavras de Moreira Baptista em relação ao projecto da nova lei. Prometendo
um “diálogo franco e aberto“ com os “interesses privados“, Caetano Carvalho solicita a
colaboração dos diversos organismos corporativos ligados ao cinema para proceder às
tão reclamadas reformas na legislação que regulamentava o sector (Idem: 10-12).
Em meados de 1969, quando se esperava que os trabalhos da segunda comissão
tomassem o mesmo destino da anterior (Plateia, 14-I-1969: 3) é tornado público que a
segunda comissão revisora da lei apresenta como conclusão um esboço do novo projecto
de lei de cinema. Pode-se afirmar que a revisão da lei foi uma medida reivindicada pelos
diversos sectores do panorama cinematográfica, desde a oposição à política cultural aos
representantes dos diversos organismos corporativos.
Anunciada a elaboração de um novo projecto, logo começou o lóbi de influências
movido pelos diversos interessados que procuravam convencer os responsáveis pela
elaboração do projecto da nova lei a ceder aos diversos e distintos argumentos.
Em Novembro de 1969, o Diário de Lisboa organizou um importante debate que
contou com a participação de realizadores, distribuidores, exibidores, produtores e
cineclubistas. Moderado pelo respeitado Manuel de Azevedo, a mesa redonda Cinema
Português – realidades e aspirações procurava debater sobre “os limites, as dificuldades e
aspirações do incipiente cinema português“, procurando reunir os defensores dos
principais interesses corporativos. Os realizadores Jorge Brum do Canto, também
presidente do SNPC, e Fernando Lopes, o exibidor e distribuidor Gérard Castello Lopes, o
“produtor-milagre“ António da Cunha Telles e o cineclubista Manuel Neves foram os
Estúdios), Jorge Brum do Canto (cineasta) e Manuel Múrias (crítico) (Boletim da União, VIII/IX-1967:
19).
148
escolhidos para a exposição dos diferentes argumentos. Também presenciou o debate,
apenas como observador, o jovem crítico e realizador João César Monteiro.
Nesse debate, Jorge Brum do Canto, presidente do SNPC, radicaliza um discurso
muitas vezes repetido pelo sector da produção: “Primeiro, nunca houve cinema em
Portugal. Houve, volta e meia, alguns filmes.“ Vaticinando a crise do cinema português
como crónica de países com um mercado interno pequeno, o realizador aponta duas
medidas urgentes: “recriação de um espírito de apreço“ pelo cinema português e
“provocar a construção de cinemas“. Considerando que a lei vigente foi
contraproducente nas suas intenções, Brum do Canto alerta para a necessidade de
repensar problemas fundamentais como a Censura ou a classificação dos espectáculos,
assim como fomentar o cinema infantil para criar hábitos no público mais jovem (Diário
de Lisboa, 7-XI-1969: 7).
Rejeitando a actualidade de “um esquema tipicamente capitalista da produção e
do consumo“, defendido por nesse debate pelo distribuidor Gérard Castello Lopes, o
jovem Fernando Lopes acredita que a nova legislação cinematográfica deve tentar
corresponder as exigências “da hora europeia dos anos 70“. Contudo, mais importante
que a lei, o cinema português deve procurar uma mudança de mentalidade: “a livre
circulação das ideias é condição vital para que a lei de protecção ao cinema não acabe,
como a anterior, a fomentar, sobretudo, coisas espúrias que nada tinham a ver com o
cinema e connosco“ (Idem: 8).
Para o produtor Cunha Telles, ainda ressentido pelo fracasso comercial da sua
experiência, o problema do cinema português continua a ser o público: “Porque pode
haver uma melhor legislação, pode haver inúmeras salas, pode haver tudo, mas se o
público continuar a não ir ver os filmes, não haverá sequer a justificação para um cinema
português“. Cunha Telles também aponta a solução: “o esclarecimento do público com
boas retrospectivas do cinema português de qualidade, através do País, comentadas e
apresentadas por diversos realizadores; com a Imprensa; com os cineclubes“ (Idem, 14XI-1969: 3).
Manuel de Azevedo aproveitou a intervenção de Cunha Telles para centrar o
debate em torno da formação do público, “do acesso à cultura da grande massa, a qual
não tem acompanhado a evolução cultural das ‘elites’ e, portanto, cada vez mais está
afastada da exigência estética das minorias intelectuais“. O dirigente cineclubista
Manuel Neves lembrou as dificuldades encontradas pela acção cineclubista na década
anterior para propor uma solução mais popular e destinada às massas. A formação de
149
hábitos cinéfilos na população portuguesa deveria ser uma das principais preocupações
da nova legislação, nomeadamente na regulamentação da “exploração efectiva de 16
milímetros“, um suporte mais adequado às condições sócio-económicas da sociedade
portuguesa. Enquadrado na mentalidade cineclubista, Manuel Neves reservou às
cooperativas culturais e a associações recreativas um papel fundamental no contacto e
formação do público. Para encerrar o debate, Manuel de Azevedo lembrou que o cinema,
enquanto veículo privilegiado de divulgação, tem responsabilidades de “trazer algo de
útil ao homem como a uma comunidade“: o cinema português deve ser “capaz de conter
em si elementos de desenvolvimento cultural, de fazer interessar as pessoas por diversos
problemas; por difundir ciência; de divulgar problemas pedagógicos, cívicos, etc.“
(Idem: 4).
Apesar da iniciativa pretender divulgar a opinião dos diversos sectores da
actividade cinematográfica, os interlocutores convidados não eram representativos dos
respectivos sectores. Na realidade, os realizadores, produtores e exibidor presentes no
debate eram figuras com alguma relação directa ou indirecta com o Novo cinema. A
ausência de realizadores ou produtores do velho cinema retirava ao debate qualquer
pretensão de representação dos interesses corporativos.
Em 22 de Janeiro de 1970, o governo apresenta à Assembleia Nacional a proposta
de lei n.º 6/X, designada de “protecção do cinema nacional“. Conforme determinava o
processo legislativo, a proposta foi encaminhada para a Câmara Corporativa para
obtenção do respectivo parecer necessário.
2.3.1. O Instituto Português de Cinema
A proposta, apresentada aos deputados ao longo de dez pontos, dizia-se inspirada
pelas conclusões da comissão de revisão nomeada em 1967 e pelas diversas solicitações
enviadas ao governo por diversos organismos com interesses no sector. Nessa proposta,
o IPC era apresentado à Assembleia como uma super-estrutura com “acção orientadora,
de coordenação e fiscalizadora de toda a actividade cinematográfica nacional“. Para
além de regular a actividade industrial, o novo organismo incluía nas suas competências
a realização de festivais e a promoção de publicações e organizações especializadas.
Apesar de ser gerido por uma comissão administrativa cujos membros, à excepção do
director, serão designados por inerência, a diversidade e representatividade que
150
compõe a comissão procurava assegurar “a justeza e equilíbrio da acção do Instituto
relativamente aos interesses que lhe estão confiados“ (Diário das Sessões, 22-I-1970:
232 (11)).
Uma das principais conclusões da comissão recaiu sobre a fragilidade financeira
do Fundo do Cinema Nacional. Procurando dotar o novo organismo de mais recursos, o
projecto previa uma reforma das taxas fiscais: a taxa de distribuição substituía a licença
de exibição existente, que deixaria de ser uma quantia fixa e passaria a variar conforme
o período de exibição e uma taxa fixa para curtas-metragens que isentava as de
produção nacional e os filmes de actualidades. Outra fonte importante de financiamento
passava a ser a publicidade efectuada no cinema e na televisão, através de uma taxa fixa
paga pelos anunciantes. Finalmente, previa-se também uma receita significativa
proveniente do imposto adicional cobrado ao espectador através do preço do bilhete.
A intervenção financeira do IPC na produção não introduzia qualquer inovação em
relação à anterior intervenção do Fundo. Para assegurar a assistência financeira seriam
disponibilizados empréstimos, subsídios ou garantias de crédito. Outra forma de ajuda
era a canalização de capitais estrangeiros através de acordos de co-produção ou coparticipação de empresas portuguesas.
A inovação que se pretendia para os diversos sectores de apoio à produção,
nomeadamente estúdios e laboratórios de som e imagem, através do “apetrechamento“
destas estruturas, procurava satisfazer as necessidades da actividade nacional e permitir
a rentabilização do investimento. Outra medida há muito reclamada, sobretudo pelo
sector da distribuição e da exibição, era a autorização da dobragem de filmes
estrangeiros, “desde que não afecte a qualidade do filme“.56
Inactivo por insuficiência da produção nacional, o sistema de contingente, que
obrigava à exibição de um determinado número de filmes portugueses em função dos
filmes estrangeiros, voltava a ser consagrado como peça fundamental para a protecção
do cinema nacional. Para o desenvolvimento do mercado interno era também necessário
investir num alargamento significativo de salas de exibição, sobretudo nos espaços
rurais. O novo projecto de lei previa ainda a concessão de assistência financeira e
assistência técnica gratuita para remodelação, adaptação e construção de novos
recintos.
56
Para os opositores à dobragem, esta técnica representa uma das maiores deturpações e violações ao
filme enquanto obra artística e cultural. Para os defensores da dobragem, esta seria aplicada sobretudo ao
cinema comercial, favorecendo assim a expansão do espectáculo cinematográfico junto das populações
menos instruídas.
151
No mesmo dia em que o projecto de lei era enviado para a Câmara Corporativa, a
Direcção do Grémio Nacional de Empresas de Cinema convocou uma reunião
extraordinária cuja ordem de trabalho era a definição de uma estratégia de intervenção
na discussão do projecto de lei. Considerando que as posições dos seus membros
(Laboratórios, Produção, Importação e Distribuição, e Exibição) não receberam a devida
atenção por parte da comissão que elaborou o projecto de lei, o Grémio deliberou o
estabelecimento de:
“(...) um grupo de trabalho que urgentemente elabore um
comentário à proposta de lei para ser enviado à Corporação dos
Espectáculos e eventualmente ser utilizado como subsídio pelo seu
Presidente nos trabalhos de apreciação e elaboração do parecer da
Câmara Corporativa, caso o entenda de alguma utilidade e
pertinência“ (Boletim da União, I/II-1970: 38).
Dois meses depois, a comissão constituída apresentava o respectivo comentário
em nova reunião extraordinária da Direcção do Grémio. Alegando a urgência exigida, a
comissão advertiu que “a referida apreciação não tem condições para ser publicada, mas
tão-só para ser utilizada não oficialmente“ pelos representantes da Corporação dos
Espectáculos na Câmara Corporativa. A terminar a reunião, a comissão agradeceu
expressamente a Jorge Brum do Canto, relator do parecer da Câmara Corporativa, por
“durante as oito longas sessões de trabalho“ da comissão ter atendido às explicações e
argumentos expostos pelos representantes das empresas de cinema (Idem, III-1970:
24). Como pedira a comissão, este parecer não oficial não chegou a ser publicado, pelo
que, apesar de se conhecer algumas medidas exigidas pelo organismo, não se conhece
em concreto o seu conteúdo.
Em 25 de Abril de 1970, três meses depois de remetida à Câmara Corporativa, este
órgão emitia o seu parecer sobre a proposta de lei.57 O parecer apresentado dividia-se em
três partes: uma apreciação na generalidade, uma apreciação na especialidade e a
apresentação das conclusões finais.
O primeiro reparo feito pelo parecer incidia sobre a pouca atenção dada ao cinema
enquanto “actividade de criação cultural e artística“. Valorizando o aumento da
57
A secção encarregada de emitir o parecer foi a secção especializada nos Espectáculos, constituída por
Manuel Joaquim Telles, Vasco Morgado, José Maria Caldeira Castel-Branco Mesquita e Carmo, José Firmino
Henriques, Leão António d’Almeida e Jorge Brum do Canto, à qual foram agregados procuradores
considerados como elementos úteis à discussão: Adérito de Oliveira Sedas Nunes, André Delaunay
Gonçalves Pereira, António Duarte, António Jorge Martins da Motta Veiga, António Manuel Pinto Barbosa,
Armando Manuel de Almeida Marques Guedes, Augusto de Castro, Bento de Mendonça Cabral Parreira do
Amaral, Francisco de Paula Leite Pinto, João Manoel Nogueira Jordão Cortez Pinto, Joaquim Belford
Correia da Silva (Paço d’Arcos), José Alfredo Soares Manso Preto e José Fernando Nunes Barata.
152
produção fílmica, o projecto parecia preocupar-se sobretudo com “uma produção talvez
quantitativamente mais vultosa, mas de escasso ou nulo significado no plano da cultura
e da arte.“ Para permitir o desenvolvimento qualitativo do cinema português, o parecer
considerava determinante:
“(...) o desenvolvimento, a par dos circuitos essencialmente
comerciais, de um circuito paralelo de cinema de arte e ensaio,
protegido por um estatuto próprio que defina condições
especificamente destinadas a fomentar e proteger a produção,
importação, distribuição e exibição de filmes dessa natureza“ (Diário
das Sessões, 25-IV-1970: 902 (5)).
Outra preocupação manifestada no parecer era o aparente esquecimento da
formação de quadros técnicos. A Câmara Corporativa “recomenda vivamente“ que uma
das competências do futuro IPC fosse a “formação de realizadores, técnicos e actores,
quer no fomento de curtas e médias metragens de elevado teor artístico e de filmes em
formatos reduzidos, cuja importância para a descoberta e afirmação de novos valores se
reconhecer hoje ser decisiva“ (Idem: 902 (5-6)).
Quanto aos aspectos financeiros da proposta, a principal atenção recaía sobre o
financiamento do IPC. Seguindo o sistema de auto-financiamento do Fundo de Cinema
Nacional, o novo organismo iria “ao cinema buscar dinheiro para o cinema, o que,
sendo, embora, fazer das fraquezas força, se afigura perfeitamente razoável e certo.“ Na
impossibilidade de ser directamente financiado pelo Orçamento Geral do Estado, o IPC
impunha uma redefinição fiscal do sector cinematográfico, intenção que recolhia o
apoio da Câmara mas que o projecto não se mostrava capaz de tornar operacional de uma
forma desejada e eficaz. As principais críticas sobre o modelo de financiamento proposto
recaiam sobre a “injustiça“ destas receitas provenientes da actividade cinematográfica
também contemplarem o Fundo de Teatro. Comparativamente, o parecer considerava
que a situação do cinema era quantitativamente inferior à do teatro, pelo que o dinheiro
gerado pela actividade cinematográfica deveria ser aplicado exclusivamente no
desenvolvimento material e humano do cinema português. As verbas atribuídas ao
Fundo de Teatro deveriam ser encaminhadas para um reforço financeiro do IPC (Idem:
902 (6-7)).
Em relação à orgânica do IPC, a Câmara Corporativa sustentava que este
organismo, pela sua importância no desenvolvimento da actividade cinematográfica,
deveria ter uma maior representatividade do sector corporativo nos seus órgãos de
gestão (comissão administrativa) e consulta (Conselho de Cinema). Devido à
153
importância da estrutura, a Câmara entendia que o IPC devia ter personalidade jurídica e
que não deveria estar subordinado à Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos,
gozando de autonomia administrativa e financeira. Procurando estabelecer uma relação
mais próxima dos interesses privados, para além de diminuir a dependência orgânica da
SEIT, o IPC deveria incluir na sua direcção uma representação significativa da
organização corporativa, proporcionando um maior equilíbrio de interesses. Ao invés
desta expansão de acção, deveria ser limitada a interferência do IPC na representação do
cinema português a nível internacional, devendo caber esse papel à organização
corporativa, nomeadamente à União de Grémios dos Espectáculos. A atribuição ao IPC
da representação internacional do cinema português poderia provocar um conflito de
interesses com a organização corporativa (Idem: 902 (7-9)).
Quanto ao Conselho de Cinema, a Câmara recomendava que, contrariamente ao
seu estatuto “vazio de funções“, o órgão consultivo do IPC “deverá, obrigatoriamente,
pronunciar-se sobre todas as questões de interesses para as actividades
cinematográficas, devendo mesmo ter competência deliberativa nas matérias de
assistência financeira e de prémios.“ À semelhança do que reclamava para o IPC,
também o Conselho de Cinema devia ter, através da Corporação dos Espectáculos, mais
representantes da organização corporativa. Para valorizar a componente artística e
cultural do cinema português, a Câmara propunha a inclusão no Conselho de Cinema de
representantes da Academia Nacional de Belas-Artes e de associações culturais com
interesse e acção na promoção da cultura cinematográfica (Idem: 902 (9-10)).
Apesar das críticas e alguns reparos significativos, a proposta de lei recebeu o
parecer positivo da Câmara Corporativa com uma sugestão de alteração à designação do
projecto. O parecer reforçava a ideia de se alterar “lei de protecção do cinema nacional“
para “fomento e protecção do cinema nacional“, sublinhando a intenção de que a nova
legislação procurararia, além de proteger o cinema nacional, fomentar o
desenvolvimento industrial da actividade cinematográfica em Portugal (Idem).
Em relação ao segundo título do projecto de lei, “Do fomento da indústria
cinematográfica“, as reservas eram múltiplas e mais inflexíveis. As críticas começavam
logo pelas definições das categoria de “produtor“ e “filme português“ consagradas na
letra da lei, achando a Câmara Corporativa que eram ambíguas e permissivas à má
qualidade e à má fé de alguns agentes do cinema. Procurando aumentar a produção
fílmica e a ascensão de novos realizadores, o órgão consultivo também sugeria ao
154
Governo a inclusão na lei de apoios significativos à produção de média metragens
(Idem: 902 (11-12)).
A secção dedicada à “assistência financeira“, ou seja, às regras de concessão de
apoios financeiros, era, obviamente, alvo de uma análise mais extensa e detalhada.
Procurando resolver um dos maiores problemas estruturais do cinema português, “falta
de capacidade financeira de produtores ocasionais“, a Câmara sugeria que o Estado
exigisse que as empresas cinematográficas fossem “económica e financeiramente sãs.“
Esta secção alertava ainda para a exigência de explicitação do requisito de qualidade
contemplado pelo texto da lei para os futuros beneficiários de apoios financeiros
públicos. Para este parecer, as “garantias suficientes de qualidade“ eram o
“cumprimento de todas as obrigações até à conclusão do filme, segundo o orçamento
aprovado“ e a garantia de “estar assegurado o concurso dos meios humanos e materiais
indispensáveis“ (Idem: 902 (12-13)). Com estas alterações, parece óbvio que a Câmara
Corporativa pretendia dificultar a constituição de novas empresas e dificultar-lhes o
acesso aos subsídios públicos, caminhando progressivamente para uma monopolização
do sector. Como medida complementar para o desenvolvimento da produção fílmica, o
parecer alertava para a “necessidade de proteger a curta e média metragem“ (Idem: 902
(13)).
No que respeita à distribuição, a Câmara considera que “as vinte e quatro empresas
distribuidoras existentes chegam, com folgada margem, para abastecer de filmes o
mercado exibidor português.“ Como medida restritiva, o parecer sugeria que o IPC
levantasse “restrições ao aparecimento de novas empresas nesse sector da actividade“
(Idem: 902 (15-17)). Estas regras beneficiavam claramente os estabelecimentos
técnicos portugueses existentes, permitindo, mais uma vez, uma perigosa
monopolização do mercado.
Em suma, reafirmando uma velha exigência consagrada na anterior lei mas nunca
aplicada, a Câmara reafirmava o desejo de fiscalização sobre o respeito pelo contingente
estabelecido para o sector distribuidor. A fim de defender os interesses dos exibidores, o
parecer apelava ao apoio financeiro estatal para a construção de novas salas de exibição,
nomeadamente a criação de uma nova classe destinada à exibição de “cinema de arte e
ensaio“, projectando assim um novo estilo de salas com características mais específicas.
Para promover o desenvolvimento em regiões do país sem salas comerciais, o parecer
sugeria um programa especial que garantisse a exclusividade de exibição às empresas
155
que estivessem dispostas a investir na construção de novos espaços, procurando o
equilíbrio do mercado (Idem: 902 (17-18)).
Apesar de globalmente positivo, o parecer da Câmara Corporativa não se poupava
nas criticas a alguns aspectos que considerava insuficientes no texto do projecto
proposto. As considerações feitas a propósito da composição e competência do IPC e do
Conselho de Cinema demonstram sobretudo um interesse em acentuar a representação
corporativa e, consequentemente, diminuir a influência e interferência de organismos
estatais na condução do cinema português. Estas considerações iam naturalmente ao
encontro dos interesses corporativos de alguns organismos envolvidos na actividade
cinematográfica com participação activa na Câmara. Em última análise, a proposta de
alteração da designação do projecto de lei – acrescentando o termo “fomento“ – parecia
ser bem representativa das prioridades deste parecer.
Depois de passar pela Câmara Corporativa, o projecto de lei chegava à Assembleia
Nacional para discussão. Iniciada a 7 de Janeiro de 1971, quase um ano após a sua
apresentação no órgão legislativo, a discussão do projecto de lei estaria na ordem do dia
durante quase um mês. Aprovada na generalidade, o projecto de lei começou a ser
discutido na especialidade no dia 26 de Janeiro, onde foram propostas e aceites
alterações que reforçaram a dependência administrativa e financeira do IPC em relação à
dinâmica burocrática do SEIT e à pesada máquina estatal, rejeitando assim a
personalidade jurídica tão reivindicada para o futuro IPC.58
Cerca de dez meses depois, a referida comissão apresenta a versão definitiva do
diploma para aprovação da Assembleia Nacional. No dia 19 de Novembro de 1971, o
texto foi apresentado e aprovado pelos deputados sem qualquer reclamação
apresentada, sendo publicada em Diário da República no dia 7 de Dezembro seguinte.
O debate na especialidade seria dominado quase exclusivamente pelo deputado
Veiga de Macedo e pelas propostas de alteração promovidas pela Comissão de Educação
Nacional, Cultura Popular e Interesses Espirituais e Morais. O parecer emitido pela
Câmara Corporativa, tal como se previa, não foi significativo para o debate, e apenas foi
atendido em matérias que não comprometiam os interesses do poder político. Quanto à
prestação dos deputados da “ala liberal“ no debate na especialidade, posso afirmar que
foi um pouco discreta e efectivamente pouco consequente (Cunha, 2005: 146).
Seguido com algum interesse pela imprensa, o debate da nova lei recebeu um
interesse diferenciado por parte dos diversos órgãos de comunicação social: o oficial
58
Mais informações sobre os debates na generalidade e especialidade desta lei em Cunha, 2005: 132-148.
156
Diário de Notícias, na sua habitual página dedicada às actividades da Assembleia
Nacional, noticia as diversas intervenções com um tom meramente descritivo e relator,
transcrevendo apenas trechos das diversas intervenções, denotando um tom monótono
e despersonalizado que era significativo do tipo de apreciação feita por um jornal
conotado com o cumprimento de formalidades; por outro lado, o Diário de Lisboa, apesar
da sua rubrica Fim de Tarde em S. Bento (assinado pelo histórico dirigente cineclubiusta
e jornalista Manuel de Azevedo) relatar as actividades diárias da Assembleia Nacional,
preferiu dar um destaque significativo às intervenções dos deputados da “ala liberal“,
assumindo uma inequívoca postura selectiva e crítica ao tratamento do debate em torno
do projecto de lei, dando também destaque às iniciativas dos interesses corporativos
durante o debate demonstra a intenção de promover o pluralismo de ideias na discussão
pública do diploma (Ibidem: 146-147).
Quanto às reacções corporativas, pode-se constatar uma diversidade de
comentários e posições oficiais. Um curioso editorial do órgão informativo da União de
Grémio dos Espectáculos deixava um alerta que resume exemplarmente a expectativa
geral em relação à nova legislação: “Não esqueçamos, porém, que as leis, como as
árvores, só darão bons frutos, se lhes forem prestados diligentes cuidados de
assistência, e, entre eles, as duas operações de oportunidade ciclar, o corte e o excerto,
e, para já, a maior prudência nos regulamentos“ (Boletim da União, XI/XII- 1971: 1).
Seixas Santos (apud Cunha, 2005: 147) considera positivo o facto de a lei
aprovada ter tentado retirar todas as referências corporativas ao texto, assim como a
imposição das “quotas“ e do “imposto adicional“ apresentarem boas perspectivas de
aumentar consideravelmente a produção. Cunha Telles atribui à lei uma importância
fundamental não só no aumento da produção, através do IPC, mas sobretudo pela
criação de “condições para a sua exibição, consagrando a quota de écran“ (Cinema Novo
Português, 1985: 57).
Apesar de aprovada em Janeiro de 1971, e de publicada em Dezembro seguinte, a
regulamentação da lei revelar-se-ia um processo moroso e penoso para aqueles que lhe
reservavam enorme expectativa. Pareciam concretizar-se todos os alertas feitos durante
a discussão na Assembleia Nacional a propósito de uma suposta obscuridade na
regulamentação da lei.
A nova legislação entregava à responsabilidade do IPC o estabelecimento anual da
percentagem de filmes estrangeiros a distribuir em função da produção de filmes
portugueses, assim como a divisão do contingente pelas empresas distribuidoras. Para a
157
exibição, também ficava estabelecido um regime de “quotas“. À semelhança do
“contingente“ de distribuição, a nova lei previa um “contingente“ de exibição, a
designada “quota de ecran“, cuja aplicação e regulamentação dependerá também do
estabelecido pelo IPC (Idem, 29-I-1971: 1521). À semelhança do “contingente“ da
distribuição, esta “quota“ também procurava beneficiar directamente a produção.
Procurando consensos, a comissão nomeada pela SEIT59 para estudar e preparar a
regulamentação decidiu pedir a colaboração dos vários parceiros da actividade
cinematográfica. Mais uma vez, estes parceiros tentaram exercer as influências possíveis
na defesa dos seus interesses. A criação do previsto novo imposto “adicional“
continuava a ser o ponto de discórdia entre produtores, que iriam ser os principais
beneficiados, e os sectores da distribuição e da exibição, que tudo fizeram para atrasar a
regulamentação da nova lei.
Na sessão do dia 14 de Março de 1973, o deputado Magalhães Mota levava à
Assembleia Nacional o seu protesto em relação ao atraso da regulamentação da lei do
cinema. Em resposta, a SEIT justifica a demora dos diplomas com a complexidade e
conflito de interesses revelados pelos diversos sectores. Por outro lado, devido à
orgânica burocrática do aparelho estatal, as propostas dos regulamentos percorreram
“outros departamentos governamentais que tiveram de apreciar aqueles textos“ e
apenas foram entregues ao grupo de trabalho em Outubro de 1972. Finalmente, em
Janeiro e Fevereiro seguintes, a OCDE convocou “peritos“ portugueses a Paris para
apreciar a nova lei de cinema portuguesa “em face dos compromissos assumidos pelo
nosso país perante aquela organização.“ Aprovados e revistos os textos em definitivo,
em Fevereiro, os regulamentos foram enviados ao Governo (Idem, III/IV- 1973: 6-8).
Em Abril e Junho seguintes, foram publicados dois decretos-lei que
regulamentavam o funcionamento do IPC e adoptam outras providências atinentes à
execução dos princípios gerais definidos na Lei 7/71. Em Julho seguinte, a lei entrava
finalmente em vigor. Quase dois anos após a publicação da lei, no final de Outubro de
1973, o IPC conhecia finalmente o seu secretário-geral. Carlos Assis de Brito, “um
administrador com larga experiência nos meandros da comercialização de filmes“
(Plateia, 10-XI-1973: 7), que “tomará sobre os seus ombros uma tarefa ciclópica:
59
A comissão de regulamentação foi composta por representantes da SEIT (Caetano de Carvalho) e dos
diversos organismos corporativos: José Maria Alves, Manuel Félix Ribeiro (Cinemateca), Pinto Caldeira,
Manuel Pires, Alberto Pelotte, Paulo Rosa, Brum do Canto (SNPC), Vasco Morgado, Lopes Ribeiro
(produtor), Virgílio Macieira e Faria de Almeida (realizador). Para ajudar aos trabalhos, foram ouvidas
opiniões específicas ligadas aos sectores da actividade cinematográfica: Manuel Telles, Allen Valle,
Galveias Roque (produção) e José Gil (laboratórios).
158
marcou-se passo durante tantos anos, ficaram tantos problemas por resolver,
agravaram-se tantas situações, que o esforço a despender requer a sagacidade de um
David e a força de um Golias“ (Idem, 7-IV-1973: 7).
Assis de Brito, para além de ser sobrinho de António Lopes Ribeiro, desenvolveu a
sua actividade cinematográfica no sector da distribuição, sobretudo na empresa
Cineasso. Apesar da nomeação de uma figura relacionada com o sector da distribuição
poder significar uma cedência aos interesses das empresas cinematográficas, o novo
director-geral do IPC daria todas as garantias de isenção e de gestão equilibrada do
organismo.
Inspirado e influenciado por organismos estrangeiros bem sucedidos – Instituto
Nacional de Cinema brasileiro (Diário das Sessões, 7-I-1971: 1265), britânico ou sueco
(Celulóide, X-1968: 1) –, o novo organismo parecia fadado a recuperar a influência
estatal na produção perdida desde a criação do CPC. Para Bénard da Costa, o “Estado
(mesmo que o não confessasse) lera atentamente“ O Ofício do Cinema em Portugal. Do
mesmo modo, parecia evidente um certo receio do Estado a propósito da “intromissão“
da Fundação Gulbenkian no apoio à nova geração do cinema português (Costa, 1991:
130).
O Conselho de Cinema, outro órgão do IPC, também sofreu profundas alterações
em relação à constituição e dinâmica anterior. Duplicando o número de membros, o
órgão teria como presidente o responsável máximo pela SEIT e como vice-presidente o
director-geral da Cultura Popular e Espectáculos, sendo composto por uma ampla
representação dos diversos interesses da actividade cinematográfica.60 O diploma previa
ainda a participação de um representante do Ministério do Ultramar, quando se
tomarem decisões a aplicar nas províncias ultramarinas, e ainda “quaisquer
individualidade cuja participação seja de interesse para os assuntos a tratar“, sem
direito a voto e por convite expresso do responsável máximo do SEIT.
Em Março de 1974, era apresentado o primeiro plano de produção do IPC que, de
uma forma inédita, privilegia abertamente um núcleo de cineastas do novo cinema. De
um total inédito de vinte e três projectos apresentados, o Conselho de Cinema decidiuse por beneficiar projectos de fundadores e membros do CPC, um estreante e Manuel
60
Integravam ainda o Conselho de Cinema o presidente da Corporação dos Espectáculos, quatro
representantes da mesma corporação indicados pela secção de cinema, representante da Junta de
Educação Nacional, representante do IMAVE, secretário-geral do IPC, director do Serviços de
Espectáculos, chefe da Repartição do Teatro, Cinema e Etnografia, director dos Serviços do Trabalho da
Direcção-geral do Trabalho e Corporações, um representante do Cinema de Amadores e um crítico da
especialidade nomeados pela SEIT.
159
Guimarães, uma figura do velho cinema que procurara por várias vezes a renovação.61 Na
curta-metragem, de quarenta e um projectos concorrentes foram contemplados cinco
projectos de jovens promessas.62
O orçamento para o primeiro plano de produção despertou muita expectativa no
meio cinematográfico nacional. Cerca de um ano antes da sua aprovação, aquando da
publicação da regulamentação da lei 7/71, vários cinéfilos, entre eles Vitoriano Rosa,
exultavam com os “meios financeiros jamais imaginados entre nós“ e lembravam que
“poucos países do mundo podem orgulhar-se de vir a dispor, por intermédio dos cofres
do Estado, de somas tão astronómicas“ (Plateia, 5-V-1973: 7).
Procurando refrear os ânimos, Caetano de Carvalho alertava para os riscos de
previsões sem conhecimento de dados estatísticos credíveis e para o facto do orçamento
do IPC não beneficiar exclusivamente a produção, mas também o Fundo de Socorro
Social, Caixa de Previdência e Câmaras Municipais (Idem, 26-V-1973: 1).
A confirmação de um elevado montante permitiu beneficiar um total de oito
longas-metragens, ou seja, um plano do IPC igualava os dois primeiros planos do CPC.
Como alerta Bénard da Costa, o cinema português passou “a contar com 10 vezes mais
dinheiro do que em 68 tinha (3800 contos foi a verba do Fundo nesse ano, e foi um
recorde)“ (Costa, 1985: 35). A nova reforma tributária dotou o IPC de um orçamento que
permitia promover uma política que privilegiasse a produção e a formação de um corpus
para o cinema português, tal como havia proposto o CPC.
Propositadamente ou não, o IPC lograra “sangrar“ um dos principais “inimigos“ à
política cinematográfica oficial, permitindo “a continuação da política da Gulbenkian
com outros meios“ (Idem, 1991: 13). Por outro lado, o IPC e o Conselho de Cinema
faziam valer “claramente uma vontade de saneamento“ do cinema português, excluindo
sobretudo os “tradicionais realizadores do cinema comercial, homens que de há 30 anos
para cá têm feito uma triste carreira na cedência moral e na mediocridade profissional“
(Ibidem). Procurando reagir à suposta estratégia de “esvaziamento“ do CPC promovida
pelo IPC, que ia “aliciando“ os cooperantes com as “promessas“ de financiamento,
alguns membros do CPC propõem uma redefinição para a cooperativa: “poderá vir a
concentrar a sua acção num programa de carácter mais experimental“ (Cinéfilo, 16-III61
Os contemplados do primeiro plano foram: Manuel Guimarães (Cântico Final), Artur Ramos (Matai-vos
uns aos Outros), Manuel de Oliveira (Benilde ou a virgem-mãe), António de Macedo (O Princípio da
Sabedoria), Fonseca e Costa (Mefistófeles e Maria Antónia), Paulo Rocha (A Ilha dos Amores), Cunha Telles
(Continuar a Viver) e Sá Caetano (Os Corpos Celestes).
62
Lauro António (Vamos ao Nimas), Ricardo Ruas Neto (A Lenda do Mar Tenebroso), António Escudeiro (Os
Últimos Aventureiros), Sinde Filipe (O Piano) e Hélder Mendes (As Aves Migratórias).
160
1974: 22). Outro factor revelador da influência do novo cinema no novo Conselho de
Cinema é a adopção do projecto Museu da Imagem e do Som, reclamado n'O Ofício do
Cinema em Portugal e iniciado pelo CPC, como analisarei no capítulo seguinte.
Luís de Pina lembra que “alguns comentadores falam em hipocrisia do governo,
em reconhecer a esquerda, em tentar salvar as aparências“. Mas, na sua opinião, o
sucedido tem uma explicação óbvia:
“os membros do Conselho sentiam já que outro cinema não era
possível, que o peso das novas soluções apontadas de há alguns anos
pelos novos cineastas, fosse qual fosse a sua orientação, tinha de levar
finalmente à reformulação do tipo de cinema que interessava fazer
entre nós“ (Pina, 1977: 84).
Influência capital neste plano teve, provavelmente, Pedro Pinto, sucessor de
Moreira Baptista na direcção da SEIT. Empossado em Novembro de 1973, o novo
Secretário de Estado pertence a uma geração política influenciada pela renovação
marcelista. Segundo testemunhos, o novo dirigente “tinha ar de ser uma pessoa polida e
com quem se podia negociar“ (Lopes, 1985: 69). Vindo de Paris, o novo responsável pelo
cinema mantinha relações de amizade com Artur Ramos e, por intermédio deste, travou
conhecimento com diversas figuras do novo cinema e da oposição cultural à política
anterior (Macedo apud Cunha, 2005: 154). De uma forma explícita, Luís de Pina atribui a
Pedro Pinto a responsabilidade do Conselho de Cinema ter resolvido “abrir um pouco os
critérios de julgamento dos projectos, quer no plano legal quer no plano político“ (Pina,
1986: 170). Aparentemente, os sectores mais ortodoxos do regime, que desconfiavam da
nova geração, não terão aceitado bem a relativa abertura preconizada por Pedro Pinto.
Alguma imprensa da época fazia eco da suposta substituição do titular da SEIT, dando
certa a eventual nomeação de Caetano de Carvalho como o próximo secretário de estado
(Plateia, 23-III-1974: 7), o que provavelmente não se concretizaria por causa do golpe
militar de 25 de Abril de 1974.
2.3.2. A Escola Superior de Cinema
Paralelamente à discussão da nova lei de cinema, decorreria também o processo de
reforma do Conservatório Nacional que passava, entre outras coisas, pela inclusão do
ensino de cinema.
161
Em Janeiro de 1967, Inocêncio Galvão Teles, então ministro da Educação Nacional,
designou António Lopes Ribeiro, na qualidade de vogal da Junta Nacional de Educação,
para relator de um projecto intitulado Sugestões para uma revisão dos estudos do
Conservatório Nacional, apresentado por Ivo Cruz, então director da instituição. Na
primeira sessão dedicada à elaboração do referido projecto, Lopes Ribeiro apresentou
uma proposta que colheu a unanimidade dos presentes: “sugeri que seria útil uma visita
prévia às principais escolas europeias de música, de dança e de artes dramáticas“. Desta
viagem, realizada pelo próprio Lopes Ribeiro e por Ivo Cruz, resultaria o “1.º Relatório
referente à Reestruturação dos estudos do Conservatório Nacional“, apresentado em 22
de Julho de 1967 (Ribeiro, 1972: 7-9).
No decurso de trinta e dois dias, estes observadores visitaram trinta e três
estabelecimentos de ensino em oito países da Europa, mas apenas em três existia o
ensino de cursos de arte cinematográfica. Na generalidade dos países, o estudo do
cinema é ministrado por institutos especializados, como o IDHEC ou a London School of
Film Technique (Ibidem: 58-59).
Apresentadas as observações recolhidas pela “missão de estudo no estrangeiro“,
Lopes Ribeiro ficou incumbido de elaborar um segundo relatório, agora destinado a
tecer conclusões tendo em vista a reforma do Conservatório Nacional. Apresentado a 6
de Outubro seguinte, este relatório incluía um ponto dedicado à questão do ensino do
cinema no Conservatório Nacional. “Razões por que se não propõe a criação de uma
escola oficial de cinema“ é a entrada no índice do relatório que introduz a reflexão de
Lopes Ribeiro sobre a questão. Apoiando-se na “experiência adquirida“, o antigo
cineasta “oficial“ do regime revela a sua “convicção de que, no caso português, o
progresso da cinematografia não depende basilarmente da criação de uma escola
nacional formadora de cineastas.“ Entre os argumentos contam-se: “o condicionalismo
asfixiante do mercado interno“, “as deficiências gritantes da infra-estrutura industrial“,
a dificuldade em “recrutar para essa escola de cinema pessoal docente habilitado“ e “a
aprendizagem dos ofícios cinematográficos ainda se faz fundamentalmente de forma
empírica e artesanal“. Posto isto, Lopes Ribeiro propõe a continuidade da política
cinematográfica do regime: “o sistema adoptado até aqui pelo Fundo do Cinema
Nacional, enviando bolseiros às escolas de cinema, estúdios e laboratórios estrangeiros,
parece-nos largamente suficiente e tem provado ser bastante eficaz“ (Ibidem: 94-96).
Em Dezembro de 1969, José Hermano Saraiva, à data Ministro da Educação
Nacional, incumbiu Lopes Ribeiro de redigir um anteprojecto de lei baseado nas
162
conclusões do segundo relatório. O projecto de lei elaborado por José Hermano Saraiva
respeitava as conclusões de Lopes Ribeiro e não previa a inclusão do cinema na reforma
do Conservatório Nacional. Quando este projecto de lei deveria ser apresentado à
Assembleia Nacional e à Câmara Corporativa, José Veiga Simão é nomeado Ministro da
Educação Nacional e o anteprojecto de lei é então reavaliado. Lopes Ribeiro foi então
consultado pelo novo responsável ministerial a propósito dos relatórios por si
elaborados e pelo anteprojecto de lei existente (Ibidem: 10-11).
Em 30 de Setembro de 1971, Veiga Simão anuncia a reforma do Conservatório
Nacional, nomeando para o efeito uma comissão orientadora da reforma presidida “pela
distinta musicóloga D. Madalena de Azeredo Perdigão“ (Boletim da União de Grémios dos
Espectáculos, IX-X- 1971: 1). Para consultor da reforma na área cinematográfica, a
esposa do presidente da Gulbenkian nomeou pouco depois Alberto Seixas Santos, uma
figura do novo cinema que Bénard da Costa classifica como a “eminência parda“ de todo
o movimento, “tendo tido nos bastidores um papel fundamental“ (Costa, 1985: 41). Em
Maio seguinte, a Comissão orientadora propôs ao Ministério a constituição de um
subgrupo de trabalho dedicado exclusivamente ao cinema.63
Alberto Seixas Santos começou por rejeitar categoricamente os pareceres de
António Lopes Ribeiro em relação à não viabilidade da criação de uma escola superior de
cinema na reforma do Conservatório. Conhecedor exímio da London School of Film
Technique, que frequentou como bolseiro, e do IDHEC, que conhecia através de amigos,
Seixas Santos traçou um plano curricular tributários dos estabelecimentos que eram
uma referência europeia no ensino cinematográfico.
A 19 de Novembro do ano seguinte, através da televisão pública, Veiga Simão
anunciava finalmente a criação de novas instituições de ensino superior, entre as quais
se incluía o Ensino Superior de Cinema.64 O corpo docente convidado procurava
responder a questões práticas como o aproveitamento de disciplinas já existentes no
Conservatório (Eduardo Prado Coelho e Rui Mário Gonçalves), a valorização de figuras
63
Uma vez aprovado, esse grupo de trabalho integraria figuras do novo cinema como Cunha Telles, Paulo
Rocha, Fernando Lopes e outras figuras de reconhecido valor como José Vieira Marques e Bénard da Costa.
Segundo Seixas Santos, o critério de seleccionar estas figuras foi sobretudo a experiência adquirida em
matéria cinematográfica, quer em instituições estrangeiras como em actividades nacionais ligadas ao
cinema (Vida Mundial, 20- IV-1973: 18-19).
64
A estrutura do curso dividia-se por quatro anos – um de formação geral e três de especialização – e
conferia aos seus finalistas o grau académico de bacharelato. Ao contrário de todas as experiências
anteriores, este curso era ministrado em regime de horário completo, este curso exigindo uma dedicação
total aos seus alunos. Este facto serviu de pretexto para algumas vozes reclamarem bolsas de estudo para
os frequentadores do curso. Os dezanove candidatos admitidos no primeiro ano respondiam aos prérequisitos exigidos para frequência do curso: diploma do 7.º ano de ensino liceal ou equivalente e idade
inferior a 35 anos (Plateia, 27-I-1973: 13).
163
com passado e experiência na actividade cinematográfica (Paulo Rocha, Fernando Lopes
e Cunha Telles) e a tentativa de chamar para a área cinematográfica figuras com
conhecimentos interdisciplinares, como eram os casos de Luís Filipe Pires, Mário
Barradas e Alberto Ferreira (Vida Mundial, 20-IV-1973: 18-19).
Por iniciativa do Ministério da Educação Nacional, com a colaboração da Fundação
Gulbenkian, o novo poder político fazia uma nova demonstração de confiança à nova
geração. Para a recém-criada Escola Piloto de Cinema do Conservatório Nacional,
integrada numa reforma geral no ensino artístico português, é nomeado director Alberto
Seixas Santos, que se faz acompanhar pelos principais nomes do “núcleo duro“ do CPC.
Não restam dúvidas, no meu ponto de vista, que este curso é “filho“ exclusivo do triunfo
da geração do novo cinema. O melhor exemplo desta paternidade, na minha opinião, é a
própria selecção dos docentes da instituição.
Para o seu director, as principais consequências da nova escola superior seriam,
entre outras, a “afirmação consciente duma profissão e duma classe“, a “formação de
quadros jovens, competentes e altamente especializados, com uma nova consciência da
sua função social“ e a “actualização através de seminários de reciclagem de profissionais
já em exercício“. De uma forma geral, a Escola de Cinema pretendia conciliar a “longa
prática empírica“ e “uma boa formação prático-teórica“, preparando os seus futuros
formandos para o desenvolvimento de uma cultura cinematográfica e para mercado de
trabalho (Ibidem: 23).
Para Luís de Pina, a criação da Escola de Cinema é, sobretudo, um sintoma de um
interesse manifestado acentuadamente pelo poder político em relação ao cinema
português e às reivindicações de renovação preconizadas pelo novo cinema (Pina, 1977:
80). No entender de Paulo Filipe Monteiro, o aspecto mais significativo da criação desta
instituição reside nas figuras escolhidas para a estruturar e dirigir: a chamada de Seixas
Santos significa o reconhecimento oficial do contributo de uma “facção“ de elementos
do novo cinema com menor intervenção política oposicionista e, consequentemente,
com maior intervenção oposicionista estética (Monteiro, 2000: 326-329).
2.4. Durante e depois de Abril: refundar todo o cinema português
“A 29 de abril de 1974, cineastas e figuras ligadas às artes
desceram a rua São Pedro de Alcântara em Lisboa para ocupar o
Instituto Português de Cinema (IPC), no seguimento do golpe militar
164
do dia anterior. A marcha dava corpo a uma ambição recente: a
refundação de todo o cinema português, do seu enquadramento legal
às estruturas de produção, distribuição e exibição até à conceção do
seu papel político e social num Portugal novo. No contexto
revolucionário emergente, o cinema português deveria atuar como
motor transformador do país, libertando-se ao mesmo tempo da
hegemonia do cinema norte-americano que tinha asfixiado a sua
produção e exibição.“ (Costa, 2014: 10)
Num curto parágrafo, José Filipe Costa conseguiu resumir de forma esclarecedora
o que aconteceu nos meses imediatamente seguintes ao 25 de Abril de 1974: “a
refundação de todo o cinema português, do seu enquadramento legal às estruturas de
produção, distribuição e exibição até à conceção do seu papel político e social num
Portugal novo.“
Os cineastas trataram, desde cedo, de liderar esse momento e movimento
revolucionário, na expectativa de aproveitar uma “oportunidade histórica para retirar o
poder da distribuição e exibição em fazer circular e reproduzir o hegemónico cinema
norte-americano pelo país, com a sua força de assimilação política e cultural“, aquele
que foi o momento “em que mais nítida foi a linha divisória entre o setor de produção e o
setor da distribuição e exibição na história do cinema português.“ (Ibidem: 11) Entre as
medidas mais radicais, os cineastas chegaram mesmo a discutir a possibilidade de
“abolição total da sua entrada [filmes norte-americanos] no mercado português“ ou a
“socialização de toda a atividade cinematográfica“. (Ibidem)
Nesse momento histórico, parafraseando António-Pedro Vasconcelos, os cineastas
queriam “tomar conta do cinema“, com tudo o que isso significava, ou seja, não
controlar apenas a produção de cinema português, mas também todo o outro cinema
que viesse a entrar e a ser exibido no país (Ibidem: 28).
Para tutelar toda a actividade cinematográfia, os cineastas pensavam num
organismo centralizador, o Instituto Português da Actividade Cinematográfica (IPAC),
que concretizaria na prática a socialização dos meios de produção, distribuição e
exibição. Esta nova estrutura pretendia “alargar o cinema às classes populares“, dandolhes “cinema português, falado em português“, para “promovê-las cultural e
politicamente através do filme, sob pena de se perder um dos mais poderosos meios de
expressão e comunicação de massas“ (Ibidem: 36):
“Ao diagnóstico histórico subjazia uma visão prospetiva, cujo
horizonte fundamental era a socialização conjunta dos meios de
produção, distribuição e exibição. O IPAC seria a face operativa de
todo este projeto, entidade a gerir pelos “trabalhadores do filme, seja
qual for a sua especialização.“ Apesar da vontade de um verdadeiro
165
relançamento de todo o setor cinematográfico, o IPAC deveria nascer à
sombra daquilo que a Lei 7/71 institucionalizava como
responsabilidade do Estado em relação ao cinema. O seu sistema de
financiamento era o que vigorava no momento e as suas instalações
funcionariam no edifício do IPC.“ (Ibidem: 37-38)
Naturalmente, desde cedo se adivinhava uma eventual cisão no interior do
Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema (SNPC), nomeadamente devido à
incompatibilidade de interesses entre os sectores da produção (técnicos e realizadores)
e da distribuição e exibição (arrumadores, empregados de bilheteira e projecionistas).
No fundo, este era já um conflito que se vivia no interior do SNPC desde a sua criação no
contexto corporativo do Estado Novo, numa lógica de representação unitária e
concentracionária dos trabalhadores.
Em menos de um mês, em inferioridade numérica em relação aos trabalhadores
dos sectores da distribuição e exibição, a maioria dos trabalhadores do sector da
produção deixava o histórico SPC para criar o novo no Sindicato dos Trabalhadores do
Filme, mais tarde denominado Sindicato dos Trabalhadores da Produção do Cinema e
Televisão (STPCT).65 O principal motivo de discórdia era o ambicioso projecto dos
cineastas e técnicos de refundar o cinema português “a partir da base“, o que implicava
reorganização dos circuitos de exibição até então “largamente dependentes do
imperialismo americano“, algo que preocupava e assustava os trabalhadores da
distribuição e exibição:
“Assim e para sermos claros, aos interesses (legítimos, de resto)
dos trabalhadores da exibição e da distribuição - largamente
dependentes do imperialismo americano e das manobras das firmas
que monopolizam o comércio do cinema em Portugal - opõem-se os
interesses dos trabalhadores do filme, isto é: daqueles poucos (ainda)
que em Portugal querem que o cinema - desde a produção à exibição seja português, anti-imperialista e com uma função social e política
que lhe tem sido, sistematicamente, negada.“ (Cinéfilo, 25-V-1974).
A alternativa ao modelo que vigorou no mercado cinematográfico português nas
décadas anteriores seria então construir um modelo de produção e circulação de cinema
com um cunho mais nacional, mais de acordo com a realidade social e a identidade
cultural do país ou, noutras palavras mais usadas na época, “fazer do cinema em
Portugal um instrumento dinâmico popular de cultura e consciencialização política“.
(Costa, 2014: 22)
65
Para mais informações sobre as linhas programáticas destes sindicatos e dos partidos políticos que os
sustentavam, aconselha-se a leitura atenta de Costa, 2014: 40-45.
166
Mas são os militares, através do Movimento das Forças Armadas (MFA), quem
anuncia a abolição da censura e a necessidade de elaborar uma nova lei do Cinema, um
novo quadro legal que deveriam “ser propostos pelos próprios profissionais“:
“Na complexa situação política entre 1974 e 1979, a
preponderância dos militares na sociedade portuguesa surge como
uma referência incontornável. Com ou contra eles, apoiando uma ou
outra das suas facções, se posicionavam as diversas forças políticas.
Ora, a facção preponderante no MFA, a partir de Setembro de 1974,
assume como objectivo político a criação de uma sociedade socialista,
de inspiração marxista. Nesta, a cultura popular, numa visão
essencialmente basista, é encarada não apenas a expressão da
identidade nacional, mas sobretudo como um factor de mobilização do
povo para os novos desígnios que lhe eram traçados. A animação
cultural, sob a forma de “campanhas“ procura não apenas promover a
alfabetização, mas também o esclarecimento político e a dinamização
da cultura popular como instrumento de mobilização.“ (Fontes, c: em
linha)
Mas, em pouco tempo, o consenso que ligava as figuras que marcharam no dia 26
de Abril foi “estilhaçado“ durante o Período Revolucionário em Curso (PREC): “Os
cineastas dividiram-se quanto ao modelo institucional a adotar, que tipo de estruturas
de produção criar e que agentes deveriam implementar estas mudanças“ (Costa, 2014:
10-11).
As primeiras medidas da política de cinema de Vasco Pinto Leite66, nomeado
Director-Geral da Cultura Popular e dos Espectáculos em Agosto de 1974, iam também no
sentido de uma gestão de consensos entre os vários “grupos representativos“ da
actividade, criando para esse feito a Comissão Consultiva para as Actividades
Cinematográficas (CCAC)67, que funcionaria no Ministério da Comunicação Social até 23
66
Vasco Pinto Leite (1953-) foi um engenheiro civil português que se notabilizou nos anos 60 enquanto
cineasta amador. Após o 25 de Abril de 1974, foi Director Geral da Cultura e Espectáculos e Presidente da
Comissão Administrativa do Instituto Português de Cinema, por inerência do cargo, durante o II Governo
provisório. Durante os V e VI Governos provisórios desempenhou as funções de Director do Gabinete de
Programação Cultural e Delegado da Secretaria de Estado da Cultura na Comissão que elaborou o Projecto
de Acordo Cultural com os novos países de língua oficial portuguesa.
67
Esta entidade era composta por 36 elementos, 8 funcionários públicos e 24 representantes de várias
organizações. Os próprios partidos políticos (PCP, PS e PPD) tinham lugar na CCAC, que contava com a
participação das seguintes entidades (por ordem alfabética): Associação Portuguesa de Estúdios
Laboratórios Distribuidores e Exibidores de Filmes; Associação Portuguesa de Produtores de Filmes (em
formação); Centro Português de Cinema; Comissão de Classificação Etária de Espetáculos
Cinematográficos; Direção de Serviços de Espetáculos; Escola Piloto de cinema do Conservatório Nacional;
Federação Portuguesa de Cinema de Amadores; Comissão Portuguesa da Federação Portuguesa de
Cineclubes; Festivais de Cinema e Animação Cultural; Instituto Português de Cinema; Instituto de
tecnologia Educativa (Ministério de Educação e Cultura); Ministério do Trabalho (Direção-Geral de
Trabalho); Partido Comunista Português; Partido Socialista; Partido Popular Democrático; Radiotelevisão
Portuguesa; Secção de Cinema da Associação Portuguesa de Críticos (em formação); Sindicato Nacional
dos Profissionais de Cinema e Sindicato dos Trabalhadores da Produção de Cinema e Televisão (em
formação) (Costa, 2014: 57-58).
167
de Janeiro de 1975, com a missão de contribuir para a definição das políticas do Estado
para o cinema.
Face às pressões dos realizadores, e receando que Vasco Pinto Leite privilegiasse
as reivindicações dos sectores ligados à produção, as empresas de distribuição e
exibição movimentaram-se no sentido de reforçar a sua posição através da pressão de
organismos internacionais:
“Em 1975 registaram-se diversas visitas do Secretário-Geral da
Federação Internacional das Associações de Produtores de Filmes,
Alphonse Brisson, a Portugal. A Federação ameaçava boicotar a
entrada de filmes estrangeiros em Portugal caso a nova lei
penalizadora do modo de funcionamento da distribuição e exibição
fosse aprovada. Na última visita a Portugal, Brisson fez-se mesmo
acompanhar pelos representantes americano, inglês, francês e
italiano. As potências de produção cinematográfica juntavam-se assim
ao braço de ferro que se fazia entre os setores no país.“ (Ibidem: 65).
Neste contexto, as cooperativas cinematográficas juntaram-se na Associação de
Cooperativas e Organismos de Base da Atividade Cinematográfica (ACOBAC), formando
“uma frente comum de oposição às políticas de cinema propostas por Vasco Pinto Leite“
(Ibidem: 53). As cooperativas pretendiam que a nova legislação incluísse “uma cláusula
que contemplasse a canalização de uma percentagem das receitas dos filmes
diretamente para as cooperativas“, solicitação não atendida por Vasco Pinto Leite,
alegando “que a capitalização das cooperativas não se integrava nos princípios
socialistas da nova constituição“ (Ibidem: 66). Recusando a referência ao capitalismo,
os realizadores exigiam essa medida como garantia de “autonomia e independência
ideológica das cooperativas relativamente ao Estado“ (Ibidem: 67).
Em Fevereiro de 1975, o CCAC acabaria por ser extinto por Pinto Leite e substituído
pelo Grupo de Trabalho (GT), uma entidade mais ágil composta apenas por
representantes da Comissão Dinamizadora Central da 5ª Divisão do MFA, do IPC, dos
cineclubes, e dos sindicatos STPCT e SPC (não comparecendo às primeiras reuniões, o
SPC acabaria por ser substituído pelo INATEL na composição do GT) (Ibidem: 69-70).
A acção GT seria decisivamente influenciada pela tentativa de golpe reaccionário
comandado por António de Spínola a 11 de Março de 1975, acelerando a “via para o
socialismo“ sobre a orientação de Jorge Correia Jesuíno, Ministro da Comunicação Social
em três governos provisórios consecutivos (24 de Fevereiro a 19 de Setembro de 1975):
“Com o 11 de março de 1975 parece, finalmente, ter sido
ultrapassado o espírito de colaboração de classes que travou por
completo a ação do cinema justamente no momento em que ele melhor
poderia ter servido a luta das classes trabalhadoras pela sua
168
emancipação. Esperam os profissionais de cinema poder, a partir do 11
de março, tomar em suas mãos o destino do cinema nacional
(deixarem de ser meros “consultivos“ para passarem a ser mais
“deliberativos“) e superar as inúmeras divergências individuais e
políticas que, até então, não tinham permitido uma plataforma de
entendimento onde, na pluralidade ideológica inevitável, se pudesse
conceber a aplicação de princípios de unidade tendentes à formação
de uma frente cultural interveniente e eficaz.“ (Ibidem: 76)
Mas, um ano após o 25 de Abril, ainda nenhum plano de produção tinha sido
aprovado pelo IPC, e o imposto adicional criado pela Lei 7/71 (15% das verbas
provenientes dos bilhetes de cinema) estava a ser direccionado para as campanhas de
Dinamização Cultural do MFA, medida que desagradou aos representantes dos
realizadores e que motivou o STPCT a abandonar o GT. Dois meses mais tarde, “vendo
diminuir a sua capacidade de intervenção“, o STPCT tentou regressar ao GT, mas sem
sucesso (Ibidem: 78-80).
Seria então o novo GT a definir o Plano de Produção de 1975 (tornado público a 3
de Junho de 1975) e, sobretudo, o designado Plano Intercalar:
“O Plano Intercalar do Grupo de Trabalho previa um conjunto de
tarefas e atividades a cumprir tão abrangentes que lhe delega, por
inerência, um conjunto de competências de grande alcance na
redefinição de todas as estruturas, atribuindo-lhe uma posição
estratégica na negociação com as instituições, organismos e
associações de cinema. E, sobretudo, permitia-lhe a gestão do
processo de fundação de uma Distribuidora Pública e de um Circuito
Popular de Exibição.
No plano de coordenação e administração da produção, cabia ao
Grupo de Trabalho a negociação de tabelas de serviços com
laboratórios e estúdios, tabelas salariais, quadros técnicos do IPC, o
apoio aos estabelecimentos técnicos, na qual se incluía a
nacionalização da Tobis, o seu reequipamento e plano financeiro.
As outras tarefas do Grupo de Trabalho eram: a constituição de
um parque material de filmagem e de um parque humano, as
chamadas Unidades de Produção, com “reconversão das produtoras
existentes“; o estabelecimento de uma política de produção de filmes,
o que englobava o lançamento de princípios orientadores e ainda a
integração da produção no projeto de Dinamização Cultural; e o
funcionamento de um Jornal de Atualidades.
No capítulo da distribuição, previa-se a criação de uma
Distribuidora Pública. O Grupo ficaria encarregue da sua gestão
administrativa e financeira, coordenando esforços com o IPC, e de
estudar opções para uma eventual nacionalização da distribuição. Era
igualmente incumbido de sondar a existência de espaços e
equipamento técnicos para a implementação de um Circuito Popular
de Exibição e a utilização do circuito privado para distribuição dos
filmes da Distribuidora Pública. Começava-se mesmo a constituir um
parque de material, onde entrava uma quantidade de projetores de 16
mm de modo a fazer passar pelas sociedades recreativas um circuito
alternativo de distribuição e exibição.“ (Ibidem: 80-81).
169
Naturalmente, o grupo de cineastas ligado ao STPCT e às cooperativas não se revia
nas novas orientações políticas para o cinema e contestaria publicamente o plano de
produção do IPC para 1975, considerando-o “ideologicamente inconsequente,
divisionista e desenquadrado do processo revolucionário“68 (Ibidem: 88):
“O Plano de Produção de 1975 não selecionava apenas os filmes
a produzir no futuro, mas prefigurava também os pilares fundamentais
de um sistema administrativo e económico, a erigir a médio e longo
prazo. Mencionavam-se de novo diretrizes a serem traduzidas na lei de
cinema, tal como a formação de uma distribuidora pública e de um
circuito popular de exibição que, como já foi referido, integravam os
Princípios Genéricos e o Plano Intercalar do Grupo de Trabalho. Peças
importantes de um projeto estrutural e abrangente, à luz do qual
deviam ser lidas as próprias escolhas dos filmes.“ (Ibidem: 85).
Em reunião plenária que decorreu nas Caldas da Rainha, em Junho de 1975, os
representantes das cooperativas resolveram, em retaliação às “arbitrariedades“
cometidas pelo IPC, pela Direcção Geral da Cultura Popular e Espectáculos e pelo próprio
Ministério da Comunicação Social, retirar imediatamente os seus filmes de festivais e
outros certames nacionais e internacionais (Cineclube, 5, VIII-1975: 20).
Em pleno Gonçalvismo69, e na ressaca do 11 de Março, o Governo optou por um
programa político de cinema em Portugal que previa “o controle estatal dos três ramos
da atividade, o pleno emprego dos trabalhadores de cinema e a produção de um novo
conjunto filmes a sintonizar com o processo revolucionário em curso“ (Ibidem: 99).
Assim, em linhas gerais, existam dois grupos distintos com dois projectos
alternativos para a reorganização do cinema português: “De um lado, estavam os
elementos das Unidades de Produção criadas nesse ano no IPC e, do outro lado, aqueles
que pertenciam às cooperativas de produção cinematográfica.“ (Costa, 2014: 11)
O Núcleo das Unidades de Produção do IPC funcionou de Agosto de 1975 a Junho
de 1976, chegando a agrupar cerca de centena e meia de trabalhadores, entre técnicos,
administrativos e realizadores, caracterizou-se por uma tentativa de “estatização da
produção“, tendendo para “a crescente concentração de toda a atividade num mesmo
organismo que contemplava a propriedade estatal dos filmes, uma hierarquia centrada
68
José Filipe Costa (2014: 91-98) acompanha o interessante debate público, na RTP e no jornal Expresso,
entre vários agentes políticos e figuras da cultura acerca do tipo de cinema levar ao país em revolução
(capítulo 3.4. Cinema popular versus cinema de elites).
69
Vasco Gonçalves foi primeiro-ministro de 9 de Julho de 1974 a 19 de Setembro de 1975. Próximos do
PCP, os governos de Vasco Gonçalves seriam responsáveis pela reforma agrária, pelas nacionalizações de
várias empresas privadas (banca, seguros, transportes públicos, entre outros) e pela instituição do
subsídio de desemprego e do salário mínimo para os funcionários públicos.
170
sobre o Estado“ (Ibidem: 117). Do outro lado, as cooperativas insistiam na “socialização
e organização basista da produção, mas com independência das cooperativas
relativamente ao poder estatal.“ (Ibidem: 118)
A nomeação de Almeida Santos como Ministro da Comunicação Social, em
Setembro de 1975, alteraria novamente o xadrez político:
“A remodelação governamental decorrida na passagem do V
para o VI Governo Provisório, nesse mesmo mês e, depois, o 25 de
novembro, eram acontecimentos com força contrária às políticas de
Vasco Pinto Leite, dando alento ao posicionamento das cooperativas
no campo político. Para estas, a desagregação das Unidades de
Produção no IPC era prioritária.
Os novos governantes que passaram então a tutelar o cinema
tiveram um papel significativo na reconfiguração desse campo.
Almeida Santos, que vinha do PS, foi nomeado a 19 de setembro de
1975 para o lugar de Ministro da Comunicação Social, substituindo
Correia Jesuíno. Mais tarde, em janeiro de 1976, David MourãoFerreira entrou para o lugar de Secretário de Estado da Cultura.
Eduardo Prado Coelho foi escolhido para Diretor Geral da Ação Cultural
ainda na vigência de Correia Jesuíno. Vasco Pinto Leite foi
reconduzido, no seguimento da remodelação governamental, para o
cargo de Diretor da Programação Cultural. O resultado destas
movimentações no tabuleiro político foi o desmantelamento das
Unidades de Produção.“ (Ibidem)
Os acontecimentos políticos do 25 de Novembro de 1975, com a vitória da facção
militar de direita, afastaram definitivamente o cinema da “via para a transição para o
socialismo“, ditando praticamente a desintegração das Unidades de Produção (Ibidem:
129). No mesmo sentido, sanadas as divergências sindicais, o SPC voltava a ter um papel
determinante na representação do sector junto do poder político, registando-se um
natural “afrouxamento“ nos discursos e nas reivindicações mais radicais sobre a
socialização dos sectores da distribuição e exibição: “Ao invés, em 1976, a entrada de
filmes do estrangeiro no mercado português era agora muito desejada, por ser geradora
de receitas a canalizar para a produção cinematográfica nacional.“ (Ibidem)
2.4.1. A inversão da marcha da História e do Cinema
Os últimos 4 meses de 1975, “durante os quais a Cultura não teve Secretário de
Estado“ (Dionísio, 1994: 242), foram agitados e reveladores da inversão da “marcha da
História“ e da mudança de rumo que a sociedade portuguesa iria testemunhar nos anos
seguintes. Em Outubro desse ano, na discussão na Assembleia da República dos artigos
171
da Constituição refentes à Educação e Cultura percebe-se que não é apenas um modelo
de política cultural que está em questão, mas “são projectos de sociedade que estão em
jogo“ (Ibidem: 244)70.
A viragem ditada pelo 25 de Novembro de 1975, que se iniciara em Setembro com
as primeiras medidas do VI e último Governo provisório (19 de Setembro de 1975 a 23 de
Julho de 1976), faz-se “à margem da Constituição“ e de “uma profunda alteração de
nomes, de cargos, de lugares, de popularidades“:
“Uma parte das 'pessoas da cultura' muda, durante estes meses,
de emprego, de vida e de funções. É bem evidente que a
personalidade, os gostos, as relações amizade/ camaradagem dos
responsáveis pela política cultural terão cada vez mais influência nos
acontecimentos e nas deslocação dos pontos de fricção dos
intelectuais e artistas com o Poder.
A mudança de rosto das instituições não vai tão cedo parar.
Trata-se ainda de 'reparar injustiças' e 'recuperar valores'. Mas agora
contra um duplo inimigo, contra dois 'arbítrios' — o do regime
anteriores ao 25 de Abril e o do 'sectarismo' dos governos anteriores a
Setembro de 75.
O grau de intervenção polícia da Cultura, sobretudo em certos
sectores, diminui. (...)
(...)
É nas artes colectivas, que simultaneamente precisam de
dinheiro para existir e onde a palavra entra, que os conflitos
continuam, ou se instalam. O cinema e o teatro serão os protagonistas
de lutas que ainda hoje não tiveram fim, centradas na atribuição de
subsídios por parte do Estado, mas que ultrapassam em muito a
questão económica.
Por razões a que não são também alheias as filiações partidárias
dos intervenientes, o cinema acabará por conhecer uma solução
provisória para os seus problemas, enquanto será a vez de o teatro
iniciar uma oposição frontal ao Poder.“ (Ibidem: 244-246)
“Internamente, a SEC [Secretaria de Estado da Cultura] vivia,
como todo o país, numa enorme indefinição institucional, sobretudo
devido à presença no seio de grupos políticos muito radicalizados,
com fortes apoios externos. O mais pequeno acontecimento era logo
motivo de manifestações pró ou contra numa comunicação social
igualmente partidarizada. Procurando reforçar os mecanismos de
controlo, em Setembro de 1976, passa para a dependência do Conselho
de Ministros. Entretanto vai assumindo novas atribuições, assim como
novos meios, facto que aumenta a turbulência interna. Com a extinção
da Junta Nacional de Educação em Fevereiro de 1977 são-lhe
transferidas algumas das suas secções. Uma reforma importante ocorre
em Agosto deste ano, quando é finalmente publicada da sua lei
70
“O PS, o PPD e o CDS tinham recusado um ponto de redacção proposta pelo PCP que dizia: 'Sem prejuízo
da liberdade cultural, filosófica, estética, política, ideológica e religiosa, o Estado apoiará as necessárias
transformações culturais da sociedade portuguesa, no sentido da construção de uma sociedade
socialista'.“ (Dionísio, 1994: 245)
172
orgânica. As indecisões persistem quanto à sua integração na
estrutura governativa. ...)“ (Fontes, c: em linha)
A gestão do IPC neste período é um excelente exemplo dessa instabilidade. Depois
de um ano e meio sem qualquer nomeação para os cargos dirigentes, nos 7 anos
seguintes o IPC haveria de ser gerido por 9 Comissões Administrativas, até que a 23 de
Setembro de 1982 seria nomeada a sua primeira Direcção71 (Matos-Cruz, 2002: 15-17).
A segunda metade de 1975 foi particularmente “esquizofrénica“ na gestão do IPC
porque este organismo acolhia no mesmo edifício os representantes das Unidades de
Produção e das cooperativas, facções antagónicas com projectos distintos e
irreconciliáveis (Costa, 2014: 125). A situação de confronto agrava-se quando, em Julho
de 1975, o SPC denuncia a “delapidação“ do património do IPC, que está a ser gerido
pelos “trabalhadores da produção“ (Henriques Espírito Santo, Luís Gaspar e José
Fonseca e Costa), e ameaça ocupá-lo (Dionísio, 1994: 247). As negociações lideradas por
Eduardo Prado Coelho, então Director-geral de Acção Cultural responsável pelo sector
cinematográfico, agudizaram a situação com a instauração de um inquérito à gestão do
IPC (Ibidem). Ainda em 1975, o Governo avançava com o projecto de “descentralização“
das estruturas de cinema: “em fins de Outubro, criou centros regionais de cinema,
centros de produção de cinema amador, e nomeou, no princípio de Novembro, a
Comissão Instaladora da Cinemateca no Norte“ (Ibidem: 249).
Para Eduarda Dionísio (1994: 268-270), no início de 1976 torna-se mais evidente
que o VI Governo provisório “deixava de ter uma política clara para a cultura“:
“A sua política cultural começa por ser uma política silenciosa. A
demarcação das acções do V Governo e do PCP faz-se sobretudo a nível
de despachos e de gabinete. Trata-se de substituir pessoas em cargos,
de dar cargos a pessoas de uma outra família política. Por outro lado,
trata-se de não dar continuidade a realizações em curso (quando elas
são conotadas com o PCP ou a esquerda derrotada em 25 de Novembro
e não envolvem nomes de prestígio — caso da Cooperativa do Circo) e
de retomar as iniciativas de prestígio anteriormente inviabilizadas
(caso da Exposição de Paris, que se transformara em Exposição de
Roma).“
Só em meados de Abril é que a situação é, de certa forma, esclarecida pela
publicação de um documento oficial da SEC onde se anunciam alguns princípios
71
A 1.ª Comissão foi nomeada a 26 de Setembro de 1975; a 2ª Comissão a 25 de Agosto de 1976; a 3.º
Comissão a 27 de Julho de 1977; a 4.ª Comissão a 27 de Julho de 1978; a 5.ª Comissão a 16 de Fevereiro de
1979; a 6.ª Comissão a 13 de Fevereiro de 1980; a 7.ª Comissão a 13 de Agosto de 1980; a 8.ª Comissão a 23
de Julho de 1981; e a 9.ª e última Comissão a 8 de Fevereiro de 1982; a 1.º Direcção seria nomeada a 23 de
Setembro de 1982; a 2.ª Direcção seria nomeada a 23 de Setembro de 1983 e vigoraria até 6 de Março de
1987. A composição de cada Comissão e Direcção está disponível em Matos-Cruz, 2002: 21.
173
orientadores: descentralizar e reestruturar, ainda que a sua acção permanecesse uma
“manta de retalhos“ onde as “relações públicas“ entre pessoas da cultura e dirigentes
políticos se sobrepunham “à existência de um programa“ (Ibidem: 270-271). Ainda
assim, segundo Eduarda Dionísio (Ibidem), o cinema era a excepção ao estilo cultural
“passadista“, “sisudo“ e “populista“ que marcava a acção governativa da SEC, que
“ensaiou uma alternativa aos circuitos dominantes“.
Mas, se ao nível da exibição a política de intervenção estava definida, no que diz
respeito à produção e ao IPC a situação era bem mais complexa:
“(...) O confronto SEC/IPC tinha sido reactivado em Março, com
um despacho que separava do IPC o Núcleo de Produção, a que se
seguiu, em Maio, um despacho que o suspendia durante oito dias para
'arrumar a casa' e que não foi 'acatado'. Novo despacho instaura uma
sindicância ao Núcleo de Produção. Em Junho, o confronto tinha
subido de tom: um comunicado da SEC, que faz a história do processo,
ameaça de despedimento 160 trabalhadores do Núcleo de Produção,
acusados de 'inadequação profissional' para as funções que exerciam,
de usufruírem de 'pagamentos irregulares' e de contraimento de
avultadas dívidas. Aí se relembram as ilegalidades cometidas durante
o mandato anterior (que incluía a violação de várias leis e decretos
anteriores ao 25 de Abril que não tinham sido revogados) e a prática
de 'censura' então exercida na definição de critérios para atribuição
de subsídios (os argumentos estarem 'inseridos' no PREC e os
currículos dos seus realizadores). (...)“ (Ibidem: 273)
Mais uma vez, na opinião de Eduarda Dionísio (Ibidem) trata-se sobretudo de um
julgamento político — “em nome da moral, das leis vigentes, mesmo que anteriores ao
25 de Abril e, ao mesmo tempo, em nome da democracia“ — que visava penalizar “as
veleidades totalitárias“ do Gonçalvismo.
O I Governo Constitucional toma posse a 16 de Julho de 1976: a SEC transita da
Comunicação Social para a Presidência do Conselho de Ministros, mas a permanência de
David Mourão-Ferreira na Secretaria de Estado da Cultura, e que por lá permaneceria
mais tempo72, é o melhor indicador de que a política cultural será de continuidade e de
“arrumar a casa“:
“Começa-se agora um lento apagar de memórias recentes (cuja
aceleração só se dará mais tarde), sem todavia abdicar de práticas
(colectivas, críticas, frontais, ideológicas) que se foram entretanto
instalando, sem direitos de autor. A 'democratização da cultura' (e
mesmo a 'cultura popular' do primeiro tempo da inversão da marcha)
passou para segundo plano nesta viragem. A questão das 'classes
72
David Mourão-Ferreira (1927-1996) foi Secretário de Estado da Cultura do VI Governo provisório (19 de
Setembro de 1975 a 23 de Julho de 1976), do I Governo constitucional (23 de Julho de 1976 a 30 de
Janeiro de 1978) e do IV Governo constitucional (22 de novembro de 1978 a 1 de agosto de 1979).
174
sociais' começa a perder actualidade, de forma mais visível.“ (Ibidem:
282)
Entre Maio de 1974 e Agosto de 1975, segundo Eduarda Dionísio (Ibidem: 416), o
poder político manteve, “no essencial, a estrutura herdada do antigo regime“, com uma
política cultural dividida entre duas instituições complementares com tutelas distintas:
a Secretaria de Estado dos Assuntos Culturais e Investigação Científica (renomeada de
Secretaria de Estados da Cultura e Educação Permanente a partir de Dezembro de 1974)
dependente do Ministério da Educação e Cultura; e a Direcção-Geral da Cultura Popular e
dos Espectáculos dependente do Ministério da Comunicação Social.
Entre Setembro de 1975 e 1977, com a criação da Secretaria de Estado da Cultura
(SEC), as políticas para o cinema deixam de ser responsabilidade do Ministério da
Comunicação Social e passam a balançar “entre a dependência do Primeiro-Ministro (I e
IV Governos) e o Ministério da Educação (II e III Governos)“ (Ibidem: 417).
Ainda
que
oficialmente
recusasse
quaisquer
“propósitos
didácticos,
centralizadores ou dirigistas“, a nova SEC pretendia, simultaneamente, “prosseguir a
acção encetada para pôr fim a situações aberrantes ante-25 de Abril e que os governos
provisórios não conseguiram solucionar“ e estabelecer um novo quadro legislativo para
o sector cultural, “renega[ndo] praticamente tudo o que foi feito depois do 25 de Abril“,
procurando ainda o “'desfazer' explícito do processo 'revolucionário'“ (Ibidem: 284).
Com a situação no IPC em vias de ser normalizada, a atenção da SEC vira-se
também para a distribuição e exibição. No centro do debate público estavam na altura a
discussão de diplomas específicos para proteger o “filme de qualidade“73 (que ficariam
isentos de taxas), para sobretaxar os filmes pornográficos74 (taxas diferenciadas para o
hardcore e para o softcore) e para definir uma nova solução para a classificação etárias
dos espectáculos.
O mercado da distribuição e exibição conheceu uma natural expansão durante o
PREC:
73
Como seria expectável, a atribuição da classificação “filme de qualidade“ teria episódios polémicos com
alguns casos de filmes portugueses, nomeadamente a recusa de atribuição aos filmes Veredas (1978, de
João César Monteiro) e Ana (1982, de António Reis e Margarida Cordeiro), ou a atribuição ao filme O Rei
das Berlengas (1978, de Artur Semedo).
74
A questão da exibição de filmes eróticos e pornográficos foi uma das questões particularmente sensíveis
no contexto da extinção da censura no pós-25 de Abril. Sobre esta temática específica, consultar: Cunha,
Paulo. 2013. “A censura depois da censura: o caso dos filmes eróticos e pornográficos (1974-76)“. In
Censura nunca mais! A Censura ao Teatro e ao Cinema no Estado Novo, ed. Ana Cabrera, 177 - 204. ISBN:
978-989-622-543-8. Lisboa: Alétheia Editores; e Cunha, Paulo; Ramos, Maria C. P. 2013. “Censura, Nunca
Mais? Estudos de caso durante o PREC“. In Media & Jornalismo, 23: 75 - 94. Centro de Investigação Media
e Jornalismo, Lisboa.
175
Tabela n.º 23
Dados sobre Salas de Cinema, Lotação, Sessões e Espectadores no
circuito comercial (1970-1980)
(fonte: dados compilados a partir de Dionísio, 1994: 484-486)
Ano
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
Salas de
Cinema
485
474
461
452
459
482
475
474
448
435
423
Lotação
(milhões)
273
267
261
260
261
268
263
260
249
241
237
Sessões
(milhares)
101
101
107
112
121
136
149
155
153
164
171
Espectadores
(milhões)
27.9
27.1
28
28.9
35.6
41.5
42.8
39.1
34
32.6
30.7
O fim da censura e a oportunidade de ver filmes até aí proibidos terá sido
fundamental para o aumento das salas de cinema, do número de sessões e do número
total de espectadores. O período do PREC significou mesmo uma tendência que se
verificou ao longo da década e que contrariava o crescimento da década anterior (Ver
Tabela n.º 6). Nos primeiros anos da década houve uma redução residual (cerca de 5%)
mas consecutiva do total de salas de cinema75, que de resto retomaria a tendência a
partir de 1977, com uma quebra já na ordem dos 10% nos últimos anos.
A situação do mercado nacional de distribuição e exibição sofrera algumas
alterações significativas no início da década de 70:
“Os distribuidores vão-se associando em grandes grupos
(Lusomundo, Doperfilme, Mundial Filmes, Castello Lopes) e procuram
adquirir o maior número possível de salas, em Lisboa, Porto e
província. Investem também fortemente no ultramar (Sulcine e
Mundáfrica), sobretudo a partir de Luanda, onde é fundada a Angola
Filmes, enquanto as distribuidoras americanas fecham ou se associam,
restando apenas a Rank Filmes (United Artists) e a Columbia Warner. O
parque exibidor continua dominado pelo filme americano (made in
Hollywood ou produzido fora da Califórnia), criando dificuldades ao
filme português e ao cinema de outras origens, bem como às salas
independentes. Também neste domínio António da Cunha Telles se
mostra inovador, fundando uma produtora-distribuidora, a
Animatógrafo, com um programa nitidamente cultural, responsável
pela importação de algumas obras-primas estrangeiras, de Eisenstein a
Renoir, passando por Jean Vigo.“ (Pina, 1986: 176)
75
Só em Lisboa, encerraram por estes anos os cinemas Oriente, Texas (ambos em 1970), Municipal, Éden
Cinema Alcântara (amos em 1971), Salão Portugal, Chiado Terrasse e Salão Lisboa (todos em 1972) e o
Palatino (1974).
176
Mas, gostava de observar os números referentes aos espectadores de forma mais
minuciosa:
Gráfico n.º 8
Espectadores, em milhões, nas salas de cinema (1970-80)
(fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 486)
60
50
41,5
40
30
42,8
39,1
35,6
27,9
1970
27,1
28
28,9
1971
1972
1973
34
32,6
30,7
20
10
0
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
Tal como se verificou no número de salas, a década divide-se em dois momentos:
crescimento do número de espectadores até 1976 e quebra sucessiva até 1980, ainda
que mantivesse registo superiores à primeira metade da década.
Na primeira fase, o aumento do número de espectadores estará, naturalmente,
relacionado com a abertura de novas salas de cinema em Lisboa76 e em várias localidades
de pequena e média dimensão, a popularidade dos “filmes pornográficos-soft (que, no
entanto, perderam o apelo do 'recente e finalmente autorizado')“, o crescimento do
circuito de cinema militante e da actividade cultural de organismos públicos (Biblioteca
Nacional, Cinemateca Portuguesa, Direcção Geral de Acção Cultural, por exemplo)
(Dionísio, 1994: 250-251).
76
Berna (21-X-1970), Apolo 70 (V-1971), Londres (30-I-1972), Castil (1973), Pathé (1973), Nimas
(1974), Caleidoscópio (1-IX-1974), Cinebolso (1975), Quarteto (21-XI-1975).
177
Eduarda Dionísio (Ibidem: 257) nota ainda que em 1976, apesar de menos filmes
terem estreado, ainda se registou um crescimento no número de espectadores, registo
que terá beneficiado da programação nesse Verão de diversos filmes de “grande
afluência“ em reposição (E Tudo o Vento Levou; Quo Vadis), da popularidade dos filmes
eróticos (Emmanuelle, a Antivirgem; Pato com Laranjas; Kamasutra) e da abundância de
filmes de autor (Bergman, Godard, Tarkovsky, Buñuel, Fellini).77 Em 1979, no jornal
Expresso, Rui Cádima (apud Ibidem: 311) resume o panorama cinematográfico desse ano
e a estratégia dos distribuidores para reconquistar o público: entre estreias e reposições,
foram exibidos 454 filmes no mercado interno, 63 eram “porno“, 34 “westernspaghetti“, 10 “catástrofe“, 32 “kung fu“, 44 “melodramas“.
Luís de Pina (1986: 181-182) também alerta para as particularidades desse
período:
“Os filmes pornográficos, depois do escândalo inicial, acabaram
por se concentrar em dois ou três cinemas de Lisboa e do Porto
(embora façam boa carreira na província, por vezes os únicos filmes
com público...). Mas a chegada de Garganta Funda e outras obras do
género, em 1976, provocou grande afluência de público e esse ano foi
talvez o que registou maior número de espectadores na história da
nossa exibição. Vieram também muitos filmes políticos e militantes (o
Cinema Universal, em Lisboa, especializou-se, durante algum tempo,
nesse modelo) e várias películas que se encontravam proibidas (desde
O Couraçado Potemkine até Laranja Mecânica), mas em breve tudo
regressava às tendências habituais do público, que descobria nos
melodramas indianos uma nova atracção.
Quem esperava que a liberdade conquistada para os filmes
nacionais e estrangeiros fosse o mais ampla possível enganou-se, pois
ela depende dos compromissos da distribuição, mais dominada do que
nunca, no último decénio, pelas majors americanas. De resto, os
sectores da distribuição e da exibição continuaram a ser privados,
diante de uma produção praticamente nacionalizada, para a qual foi
tentado, nos primeiros anos da Revolução, um 'circuito paralelo' ou
cultural, fora dos circuitos comerciais (que recusaram a
nacionalização) e correspondente à intenção socializante do Governo.
E a exibição dos filmes depende fundamentalmente dos interesses
(económicos) do distribuidor e do exibidor, motivo pelo qual se
registaram atrasos em estreias de filmes portugueses e, em última
análise, se negou a exibição de várias obras, que ficaram na prateleira
ou viram a luz do dia em especialíssimas condições de estreia.
Julgamos, no entanto, que o filme português continua a recolher as
preferências do público, desde que tenha uma qualidade possível,
muitas vezes inexistente em filmes que eram puros pretextos políticos
ou acusavam uma insipiência confrangedora.“
77
Em Março de 1977, a revista Isto é espectáculo publicava uma lista de cerca de 30 filmes que circulavam
no mercado nacional em “cópias novas“. No seu primeiro número, de 27-I-1978, a revista Isto é cinema
enumera cerca de 40 filmes clássicos de várias nacionalidades que estavam em reposição em diversas salas
de cinema portuguesas.
178
No entanto, no caso da distribuição e exibição é necessário atender aos contextos
opostos que se verificavam em Lisboa e no resto do país. Se na capital do país a oferta
diversificou, também fruto da concorrência comercial e da existência de diversos
circuitos alternativos como a Cinemateca, a Casa da Imprensa ou a Gulbenkian, no resto
do país a situação não era tão positiva: muita da oferta cinematográfica não chegava a
estrear fora de Lisboa78 e, numa parte significativa das vezes, por serem o “fim da
cadeia“, as películas chegavam em péssimas condições de projecção79.
Em 1968, segundo dados oficiais do INE, Portugal era o país europeu com o menos
índice de espectadores:
“(...) em 1968, cada português foi 3 vezes ao cinema, enquanto
cada francês ou cada belga foi 4 vezes, cada norte-americano 7 vezes,
cada romeno 10 vezes, cada italiano ou cada espanhol 11 vezes, cada
soviético 20 vezes (...)“ (Cineclube, 14/15, X-1977: 4)
A mesma fonte relata que o “grosso“ da assistência está concentrado em Lisboa e
Porto, onde se concentram 87 cinemas de classe A (cinemas de estreia com mais de 500
lugares) e B (estúdios e cine-teatros), enquanto as 228 salas de classe C e D concentramse na “província“ e nas Ilhas adjacentes. O índice da ida ao cinema (medido em número
de vezes ao ano por cada cidadão) dos vários distritos era o seguinte:
Tabela n.º 24
Índice de ida ao cinema por habitante/ano
(fonte: Cineclube, 14/15, X-1977: 4)
Aveiro
Beja
Braga
Bragança
Castelo Branco
Coimbra
Évora
Faro
Guarda
Leiria
Lisboa
Portalegre
Porto
Santarém
2,0
1,3
0,9
0,2
0,1
1,8
2,6
6,2
0,7
2,1
7,4
0,5
3,3
1,9
78
Entre 1974 e 1980, a revista Cineclube, editada pelo Cineclube do Porto e, portanto, sediada nessa
cidade, publica extensas listas de filmes exibidos, em circuito comercial e alternativos, em Lisboa que não
chegam à cidade do Porto.
79
A este propósito ver, por exemplo, algumas reclamações em: Diário de Lisboa, 18-IV-1980; Cineclube,
21/22, IV-1979; e Cineclube, 26/27, XII-1980.
179
Setúbal
Viana do Castelo
Vila Real
Viseu
4,7
1,1
0,6
0,6
Exceptuando Faro, cuja taxa é inflacionada por causa do fenómeno turístico, os
distritos com maior índice de ida ao cinema são distritos mais industrializados e onde se
concentra maior poder de compra e concentração de população e onde se regista uma
“maior resistência ao obscurantismo“ (Ibidem). Por outro lado, a crescente
monopolização do mercado da distribuição também favorecia as assimetrias regionais:
“(...) os grupos Lusomundo (principais cinemas de Lisboa e do
Porto, e 80 cinemas na província) e Castello Lopes, directamente
ligados ao capital financeiro, servidos pelos produtos das 'major
companies' americanas, e o grupo Doper-Mundial, ligado ao capital
africano e que mantém o seu mercado nas ex-colónias portuguesas. Há
ainda duas outras distribuidoras (Rank e Columbia-Warner) que são
filiais portuguesas das casas-mães estrangeiras (...)“ (Ibidem: 5)
A indefinição vivida no pós-25 de Abri, perante avanços e recuos do poder
político, deixou o sector da distribuição livre para salvaguardar da maneira que melhor
entendeu cenários considerados indesejáveis, como a nacionalização, optando pela
exportação de divisas, medida que penalizava todo o meio cinematográfico,
particularmente a produção:
“(...) Tal facto permitiu que as empresas sobrefacturassem a
importação de filmes (a revista Variety de 1975 anuncia que a firma
Castello Lopes comprou o filme Papillon por 100 000 dólares,
considerando este preço um recorde absoluto, que tinha o duplo
interesse da exportação massiva de divisas e descapitalização da
empresa, no caso de se levantar a hipótese da sua nacionalização).
Calcula-se que, em 1974, saíram do país 74 299 contos em
divisas, correspondendo ao total de compras a fixo e à percentagem,
deduzindo as amortizações (?). Em 1973, saiu sensivelmente a mesma
quantia, correspondendo à importação de 340 filmes.
Em 1975, importaram-se 443 filmes, o que pode ser considerado
uma aberração num país com 306 postos de exibição (a título de
comparação, a Espanha importa 400 filmes para 7 000 cinemas).
(Ibidem)
Thomas Elsaesser (1989: 15) descreve um cenário semelhante na Alemanha
durante os anos 70, nomeadamente a influência dos distribuidores na produção e a
hegemonia das filiais das empresas norte-americanas:
“(...) Consequently, distributors became the real force in the
industry and gained the uooer hand over both production and
exhibition. Yet it was the American Major companies who controlled
180
the German market both directly and indirectly. While some cinema
chains, in the aftermath of the botched UFI decartelisation plans, had
been quietly taken over by a handful of German entrepreneurs,
distribuition was heavely dominated by Hollywood firms and its
subsidiaries. (...) By the early 1970s, not a single commercial
distribuitor had survived in West Germany that was not Americancontrolled and, here too, Hollywood effectively ran the show without
seeming to do so. (...)“
Durante esta década, o mercado de distribuição conheceu algumas transformações
significativas.
Tabela n.º 25
Filmes exibidos nas salas portuguesas (1970-1980)
(fonte: compilado a partir dos Anuários Estatísticos 1970-80)
Ano
Metragem
Filmes
Metragem
Metragem
Filmes
Metragem
Filmes
Filmes
Metragem
Outros
Filmes
Itália
Metragem
Inglaterra
Filmes
França
Metragem
EUA
Filmes
Espanha
Metragem
Alemanha
Filmes
Portugal
1979
1980
43
55
17.440
40.860
79
43
78.350
34.610
9
0
4.370
0
199
137
417.730
368.230
125
116
198.710
184.355
99
71
278.325
174.900
97
66
217.150
185. 550
154
121
340.740
229.595
Só dispondo dos dados referentes a 1979 e 1980, decidi comparar o ano de 1980
com o último ano (1969) em que consegui apurar dados similares para proceder a uma
análise comparativa da situação.
Gráficos n.º 9 e 10
Percentagem de filmes estreados em Portugal pelo país de origem (1969 e 1980)
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos 1969-80, INE)
181
1980
1969
Itália
16%
Outros
4%
Inglater
ra
7%
Portugal
6%
RFA
3%
Portugal
3%
RFA
3%
Outros
19%
Espanha
3%
Espanha
0%
EUA
30%
Itália
15%
França
9%
EUA
52%
Inglaterr
a
15%
França
15%
A particularidade de maior destaque é mesmo o aumento exponencial de filmes de
outras nacionalidades que não as mais tradicionais no nosso mercado. Se em 1969,
esses filmes representavam apenas 6% da quota de mercado, em 1980 essa quota
chegava aos 19%.
Em Maio de 1978, a revista Isto é cinema (17, 19-V-1978: 37) alertava para o
crescente interesse das empresas distribuidoras no cinema indiano80 e, naturalmente,
dos cinemas de países socialistas do leste europeu que eram malditos ou proibidos antes
de 1974:
“Para além de serem exibidos integralmente, passou-se a ver de
tudo um pouco, desde o libelo revolucionário da América Latina
(Glauber Rocha, Littin, Sanjines, etc.) até às raras obras da China ou
da Albânia; do forte contingente europeu ocidental às quase até então
ignoradas cinematografias do Leste (com as suas revelações e as suas
desilusões); da tradicional produção norte americana (que durante
ano e meio chegou a ensaiar um arremedo de boicote, congelando a
exportação de obras para Portugal, sob o argumento da
desregularização de contas) à mais arrojada produção de jovens
80
Para além das cinematográficas historicamente maioritárias no mercado português (EUA, Alemanha,
França, Inglaterra e Itália), em 1977 estrearam nas salas portuguesas 22 filmes indianos (5% de um total
de 436), 18 filmes de Hong-Kong, 7 da Suécia, 7 do Canadá, 5 da Dinamarca, Jugoslávia, Checoslováquia,
Japão e Brasil, 3 da União Soviética, Hungria, México e Portugal, entre muitos outros. Cf. Isto é cinema,
10, 31-III-198: 33). Por outro lado, em contexto de cinema não-comercial, sucedem-se mostras e semanas
de divulgação de cinema de países como Cuba (Cinemateca), Argélia (Cinemateca), Polónia (Gulbenkian),
Bulgária (Apolo 70) e União Soviética (Berna), só para dar alguns exemplos que decorreram entre
Fevereiro e Março de 1978, em Lisboa.
182
cine
nematografias que um pouco por todo o lado pproliferam. (Lauro
Antó
tónio in Isto é cinema, 11, 7-IV-1978: 3)“
Se o cinema europeu
u conquistou muita quota de mercado na prim
rimeira metade da
década, sobretudo pelo au
aumento de filmes de autor e de filmes eróti
ticos (na maioria
dinamarqueses e suecos) no
n circuito comercial, os filmes de produçãoo norte-americana
n
conheceram uma tendência
ia oposta.
Gráfico n.º 11
Estreiass de
d filmes no circuito comercial (1970-80)
(fo
(fonte:
adaptado de Dionísio, 1994: 486)
600
500
443
400
317
310
332
346
425
445
445
460
475
361
300
200
142
104
105
05
100
93
99
1973
1974
76
89
1975
1976
112
122
139
174
0
1970
1971
19722
total
1977
1978
1979
1980
EUA
O cinema de origem norte-americana,
n
depois de atingir um mínim
nimo histórico em
1975 (apenas 76 filmes de longa-metragem estreados nas salas port
rtuguesas, 17%),
começa uma recuperação consecutiva
c
que culminaria com os 174 film
mes estreados em
1980 (45%, a melhor quota
ta desde 1970) (Dionísio, 1994: 486).
Entre Abril de 19744 e Abril de 1978, Henrique Leonor Pina (Cin
Cineclube, 18/19,
Outubro de 1978) contabil
ilizou 51 entidades distribuidoras em activida
idade no mercado
português.
Tabela n.º 26
Distribuição de filmes noo mercado português entre Abril de 1974 e A
Abril de 1978
(font
nte: Cineclube, 18/19, Outubro de 1978)
183
Distribuidora
Castello Lopes
Columbia-Warner
Lusomundo
Doperfilme
Mundial Filmes
Sonoro Filme
SIF
Talma
Rank
Distribuidores Reunidos
Exclusivos Triunfo
Filmes Ocidente
Astória Filmes
Filmitalus
Animatógrafo
Sofilmes
Rivus
Internacional
Imperial Filmes
Sacil
Outros pequenos distribuidores
Associações e Embaixadas
Filmes
310
182
177
140
111
102
85
84
80
79
78
68
64
60
55
54
53
51
50
40
120
56
Percentagem
14,9%
8,8%
8,5%
6,7%
49,2%
5,3%
4,9%
4,0%
4,0%
3,8%
3,8%
3,7%
3,2%
3,0%
43,4%
2,9%
2,6%
2,6%
2,5%
2,4%
2,4%
1,9%
5,8%
1,6%
As delegações dos grandes estúdios norte-americanos estavam agora reduzidas
apenas a duas (Columbia na 2.ª e Rank na 9.ª posição), mas o cinema norte-americano
continuava a ser distribuído pelas principais distribuidoras do mercado, nomeadamente
a Castello Lopes, a Lusomundo e a Sonoro Filme, assegurando quase 25% dos filmes
distribuídos ao longo deste período de quatro anos. Os cinemas de origem italiana
(20,7%), francesa (17,7%) e inglesa (15,2%) também detinham importantes posições na
importação de filmes.
Apesar das promessas de apoio à produção, os distribuidores e exibidores
continuavam a ser os maiores beneficiados com a actividade cinematográfica:
“(...) o filme é comprado ao produtor estrangeiro, ao qual o
distribuidor português paga os 'royalties' (em função do número de
cópias a exibir) e a(s) cópia(s) do filme. Em seguida, vêm as despesas
de importação propriamente ditas (taxas, licenças), as despesas de
exibição (legendagem, revisão, expedição). Das receitas brutas de
bilheteira são retirados à cabeça 15%, dos quais a maior parte vai para
o Instituto Português de Cinema, que a reinveste na Actividade
(assistência à produção, exibição privada, cinemateca, etc.), e 7,5%
que constituem o fundo empresarial, que devia servir para o
incremento do parque de exibição mas que fica na posse dos
exibidores. O resto vai para o exibidor (de 50 a 70%), para o
distribuidor (de 30 a 50%) e o restante (de 15 a 30%) para o produtor,
no caso da compra ser feita à percentagem. Quando se trata de filiais
184
de firmas estrangeiras, a distribuidora retira um mínimo (abaixo dos
30 %), para poder enviar um máximo de divisas para a sociedade-mãe
no estrangeiro.
(...)
Além disso, põe-se para os monopólios, uma questão de
rentabilidade imediata: para rentabilizar um filme importado, são
precisos 30 000 espectadores; para um filme português, são precisos
10 vezes mais. (...)“ (Cineclube, 14/15, X-1977: 5)
Mas, num “pais [que] docilmente se abandona à colonização dos sonhos
importados“ (António-Pedro Vasconcelos apud Isto é o cinema, 12, 14-IV-1978: 6), a
situação era particular e preocupantemente difícil para os filmes portugueses: dos 30
filmes produzidos em 1976, entre Agosto e Dezembro não estrearia nenhum das salas
nacionais. Neste capítulo particular, o ano até já conhecera dois “acontecimentos“:
“A exibição de Deus, Pátria e Autoridade, de Rui Simões, no
Universal [“terá tido perto de 40 mil espectadores“], antes das
eleições, e de Trás-os-Montes, de António Reis [e Margarida Cordeiro],
no Satélite [11 mil espectadores], depois das eleições são dois
acontecimentos culturais. Um, mais pelo tipo de consumo que dele é
feito, o outro, mais pelo produto em si, relacionam-se de algum modo
com uma cultura popular emergente. (...)“ (Dionísio, 1994: 274-275)
Em Abril de 1978, o jornalista Mário Damas Nunes (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978:
12) escrevia que “a pouco e pouco o cinema português parece começar a furar o cerco a
que até aqui parecia estar condenado“, acusando que a “sentença foi há muito tempo
passada por distribuidores e exibidores pouco interessados em perder dinheiro com uma
programação que lhes deixasse as casas vazias.“ Depois de acusar os distribuidores e
exibidores, o jornalista esclarece que não serão esses os maiores culpados:
“(...) O que não podemos esperar (utopicamente) é que sejam
esses homens de negócios a furar o cerco a que o próprio cinema
português (?) os habituou. (...)
(...) Por outro lado o IPC deve mostrar-se verdadeiramente ao
serviço da divulgação interna do cinema que produziu ou subsidiou e
que nós pagámos. Pouco importa que os festivais internacionais vejam
aquilo que a nossa gente pagou e não chegou a ver. É cá que teremos
de criar público interessado e não exibir o cinema em salas de arte e
ensaio onde a intelectual sociedade vá passear os olhos olhando para
nós com o olhar exótico ou enternecido por uma 'cinematografiazinha
curiosa'.“
Noutra publicação, um comentador havia feito, quase um ano antes, um alerta
esclarecedor sobre o estado das coisas:
“(...) Quando há filmes portugueses já prontos para estrear, não
se estreiam porque ninguém quer perder dinheiro, e o tempo da
Canção de Lisboa ou de Capas Negras já lá vai.
185
Sem qualquer disposição legal que apoie o cinema português e o
cinema de qualidade parece-nos difícil sair deste beco onde todos
barafustam, com razão e sem ela.“ (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9)
Por estes meses, o Governo ainda propõe que o Teatro São Luiz passasse a ser uma
sala de cinema exclusivamente dedicada a filmes portugueses, com programação a cargo
do Centro Português de Cinema (CPC), mas a medida não é bem aceite e acaba por não se
concretizar (Dionísio, 1994: 250-251). O mesmo Governo, em 1976, numa tentativa de
“proteger“ e promover a circulação de cinema português, havia alterado as regras de
importação de filmes: a taxação da importação de filmes estrangeiros atingiu 60% de
imposto, o que motivou uma greve alfandegária dos distribuidores e exibidores; mas,
como as licenças de exibição, que rondavam os 15 mil contos, faziam muita falta ao
orçamento do IPC, o Governo acabaria por ceder perante a pressão dos distribuidores e
exibidores (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9). Entre 1977 e 1978, o IPC tentou negociar
com a Associação Portuguesa das Empresas Cinematográficas (APEC) um mecanismo de
protecção para o cinema português, sem obter sucesso (Isto é cinema, 17, 19-V-1978: 5).
Nas salas, os resultados de bilheteira não eram muito animadores. De resto, entre
finais de 1974 e inícios de 1975, como recupera José Filipe Costa (2014: 32-35), o
(in)sucesso do cinema português nas bilheteiras das salas de cinema tinha sido o centro
de uma política entre os trabalhadores do Cinema Londres, em Lisboa, e o seu
programador, António-Pedro Vasconcelos.
O programador começou por acusar os trabalhadores do cinema de não quererem
filmes portugueses nas salas porque isso implicaria menos espectadores e,
consequentemente, menos gorjetas, um complemento significativo aos seus salários.
Um dos principais argumentos dos funcionários foram as estatísticas respeitantes às
últimas sessões dedicadas ao cinema português naquela sala de cinema:
10-nov-1972 – Os Verdes Anos – 112 espectadores – 25,3% da lotação
da sala;
24-fev-1973 – O Passado e o Presente – 152 espectadores – 34,4%;
8-mar-1974 – O Passado e o Presente – 196 espectadores – 44,4%;
9-mar-1974 – Acto da Primavera – 173 espectadores – 39,2%;
17-mai-1874 – Mudar de vida – 113 espectadores – 25,4%;
13-jul-1974 – Perdido por cem – 126 espectadores – 28,5%;
19-jul-1974 – O Cerco – 43 espectadores – 9,7%;
Como observa José Filipe Costa, os trabalhadores não usaram estes dados para
comparar com outros filmes estrangeiros, nomeadamente de produção norte-americana,
mas sobretudo para questionar se esses filmes portugueses, e os que estavam então em
186
produção, seriam os mais indicados para vingar no mercado comercial nacional. Em jeito
de provocação, os trabalhadores do Londres ainda deixavam uma estatística curiosa: o
próprio programador “também não é grande apaixonado [de cinema português], pois em
260 sessões da meia-noite apenas selecionou 7 filmes portugueses, o que representa
3%.“ (Ibidem: 34). Vasconcelos argumentava com a “sempiterna discussão em torno da
formação de públicos e de hábitos de receção dos espetadores portugueses“,
ressalvando que, para que o cinema português “adquirisse espaço de visibilidade,
haveria que aproximar mais fortemente a cadeia da produção do sistema de exibição“
(Ibidem: 34-35).
Independentemente de serem os filmes mais adequados para concorrer com os
filmes estrangeiros que eram distribuídos nas salas portuguesas, e já se viu que a
diversidade era dominante, interessa saber quais filmes tiveram estreia comercial e
quais os seus totais de números de espectadores.
Tabela n.º 27
Número de Espectadores dos Filmes Portugueses no circuito comercial (1975-80)
(fonte: dados oficiais fornecidos pelo ICA81)
Estreia
Início
Produção
Título
Realizador
Produtor
Distribuidor
Espectadores
1975
*
Brandos Costumes
A. Seixas Santos
CPC
Castello Lopes
7.731
1975
1974
Cartas na Mesa
Rogério Ceitil
CPC
*
1975
1974
Benilde ou a Virgem Mãe
Manuel de Oliveira
Tobis
*
1976
1974
Cântico Final
Manuel Guimarães
M. Guimarães
Castello Lopes
Filmes
Lusomundo
IPC
1976
1975
Deus, Pátria , Autoridade
Rui Simões
Rui Simões
IPC/Rui Simões
22.188
1976
*
O Funeral do Patrão
RTP
Animatógrafo
505
1976
1974
Trás-os-Montes
CPC
V O Filmes
10.335
1976
1975
Prole Filme
IPC
*
1977
1974
Barronhos
Os Demónios de Alcácer
Quibir
Eduardo Geada
António Reis e
Margarida Cordeiro
Luís Filipe Costa
José Fonseca e Costa
Tobis
Animatógrafo
10.978
1977
1974
O Princípio da Sabedoria
António de Macedo
Cinequanon
1977
1974
As Ruinas no Interior
José de Sá Caetano
1978
1975
A Confederação
Luís Galvão teles
1978
1975
Nós Por Cá Todos Bem
Fernando Lopes
1978
1975
O Rei das Berlengas
1978
1975
Veredas
1979
1975
Amor de Perdição
Manoel de Oliveira
IPC
1979
1975
As Horas de Maria
António de Macedo
Cinequanon
*
Tobis
Astória
Filmes/Cinequipa
Animatógrafo
4.562
Cinequanon
Exclusivos Triunfo
19.029
CPC
Animatógrafo
15.077
Artur Semedo
IPC
Filmes Ocidente
30.370
João César Monteiro
J. C. Monteiro
V O Filmes
V O Filmes/Ver
Filmes
Cinequanon
7.825
81
772
4.058
23.969
Apesar de classificados como oficiais, estes dados não eram registados directamente pelo IPC (actual
ICA), mas comunicados pelos produtores ou distribuidores dos filmes. Quer para efeitos de evasão fiscal
como por questões de marketing, estes números poderão não corresponder à realidade, mas são os dados
que existem e foram validados à época pelo IPC.
187
1979
1975
Recompensa
Arthur Duarte
Arthur Duarte
1980
1979
Bárbara
Alfredo Tropa
RTP
1980
1975
O Diabo Desceu à Vila
Teixeira da Fonseca
1980
1977
Lauro António
1980
1977
Manhã Submersa
O Princípe com Orelhas de
Burro
Teixeira da
Fonseca
Lauro António
António de Macedo
Cinequanon
1980
1975
A Santa Aliança
Eduardo Geada
1980
1978
Verde Por Fora, Vermelho
Por Dentro
Ricardo Costa
Sofilmes
Filmes
Lusomundo
8.305
35.576
Imperial Filmes
3.673
44.036
Eduardo
Geada
Sonoro Filme
Filmes
Lusomundo
Distribuidores
Reunidos
Diafilme
Doperfilme
5.127
2.837
7.130
Notas: *Não existem dados
De notar que o filme Nós por cá todos bem registou mais de 4 mil espectadores na
semana de estreia, no cinema Quarteto, o que foi considerado um êxito à época. A este
propósito Pedro Bandeira Freire, programador daquele cinema lisboeta, declararia:
“Curiosamente, Nós por cá todos bem tem estado, desde a
estreia, melhor que os outros filmes em exibição no Quarteto. Para
mim, e de um ponto de vista comercial, trata-se de um filme com um
público específico, esgotado o qual em duas ou três semanas, a
bilheteira caía redonda. Foi o que aconteceu com outro filmes
português, Os Demónios de Alcácer Kibir ou, por exemplo, com O Vale
das Abelhas, filme checoslovaco. Mas talvez seja esta a ocasião para ver
alargado o público de cinema de qualidade. Pelos menos, a reacção do
público desta primeira semana assim o deixa prever. Felizmente.“ (Isto
é cinema, 10, 31-III-1978: 24)
No mesmo ano, O Rei das Berlengas de Artur Semedo haveria de dobrar o número
de espectadores do filme de Fernando Lopes. Os outros êxitos seriam: A Confederação,
uma sátira de ficção científica político-social em tons muito apropriados à ressaca do
Verão Quente de 1975; As Horas de Maria, um filme polémico hostilizado pelos sectores
católicos mais conservadores; e Bárbara e Manhã Submersa, dois filmes com um estilo
narrativo muito clássico.
No início da produção de Kilas, o mau da fita, que viria a ser um sucesso de
bilheteira em 1981 ao ultrapassar a mítica barreira dos 100 mil espectadores (121.269
espectadores), José Fonseca e Costa lembrava precisamente que “o filme português não
pode nem deve ficar à margem do cinema estrangeiro que invade as nossas salas de
exibição“ (Idem, 4, 17-II-1978: 6). Na ocasião, Fonseca e Costa alertava também para a
necessidade do cinema português procurar mercados estrangeiros para exportação,
nomeadamente os de língua portuguesa e o mercado ibérico (Ibidem).
O problema capital era mesmo a reduzida dimensão do mercado interno — “o
cinema português vai sobrevivendo, timidamente, fazendo das tripas coração“ (Idem, 2,
188
3-II-1978: 18) — e o péssimo desempenho dos filmes portugueses nesse próprio
mercado:
Tabela n.º 28
Comparativo de número de Espectadores de filmes portugueses
e total do circuito comercial (1975-80)
(fonte: compilado a partir de dados do ICA e Dionísio, 1994: 486)
Ano
1975
1976
1977
1978
1979
1980
Filmes Portugueses
7.731 (0,02%)
33.028 (0,08%)
16.312 (0,04%)
72.301 (0,21%)
36.332 (0,11%)
98.379 (0,32%)
Total
41.500.000
42.800.000
39.100.000
34.000.000
32.600.000
30.700.000
Neste período, em comparação com o total de espectadores registados em cada
ano, o acumulado de espectadores dos filmes portugueses cresceu dos 0,02% de 1975
para os cerca de 0,32% de 1980. São, como é evidente, números insustentáveis em
qualquer lógica financeira de mercado e que inviabilizava qualquer sobrevivência do
cinema português sem apoio público.
Mas, por estes anos, para o cinema português é igualmente fundamental a
circulação por um circuito cultural paralelo ao circuito comercial. Muitos filmes
portugueses percorrem o país em sessões organizadas por organismos públicos ou por
entidade privadas de teor associativo, como os cineclubes ou associações de estudantes.
Para agravar a situação, a partir de 1975, o número de curtas-metragens estreadas
nas salas portuguesas também conhece uma inflexão na evolução que vinha
protagonizando desde os anos 40 e diminui drasticamente.
Tabela n.º 29
Estreias de filmes portugueses entre 1975 e 1980
(fonte: dados compilados a partir dos Anuários Estatísticos, INE)
Ano
1975
1976
1977
1978*
1979*
1980*
Total
Metros
42.915
25.635
25.480
27.076
20.540
35.110
Longas-metragens
(superior a 1800m)
Filmes
Metros
4
11.950
3
8.490
2
6.150
4
11.690
3
9.900
7
21.050
189
Filmes
102
50
70
46
36
46
Curtas-metragens
(inferior a 1800m)
Metros
% de curtas
30.965
72%
17.145
67%
19.330
76%
15.386
57%
10.640
52%
14.060
40%
* A partir de 1978, o INE passou a classificar como filmes de curta-metragem filmes com menos de
1,600 metros de película.
O decréscimo de estreias de curtas-metragens entra numa tendência consolidada
desde 1975. Em cinco anos apenas, tanto em número de filmes como em película
utilizada, a estreia de filmes de curta-metragem foi reduzida em mais de 50 por cento,
voltando aos valores mais baixos desde 1949 (16,932 metros de película). Ainda assim,
em 1978 e 1979, apesar da acentuada quebra na estreia, os filmes de curta-metragem
ainda constituíam a maioria dos filmes de produção portuguesa estreados em salas
portuguesas. Em 1980, as curtas perderiam a maioria porque nesse ano registou-se um
número extraordinário de estreias de filmes de longa-metragem, a mais alta desde 1974.
Naturalmente, os motivos de ordem financeira também influenciaram esta quebra
na produção. Em Outubro de 1978, Henrique Espírito Santo elabora um documento onde
demonstra que, no imediato pós-25 de Abril, os custos associados à compra e revelação
de película aumentaram exponencialmente:
Tabela n.º 30
Preços de película e utilização de esquipamentos para produção de cinema
(fonte: Cineclube, 18/19, X-1978: 33)
1974
1975/76
1977/78
Película - negativo 35mm cor (metro)
16$50
21$50
39$70
Película - negativo 16mm cor (metro)
9$00
13$40
22$90
6$30
8$00
8$50
5$80
7$50
8$00
Estúdio de Som - misturas (hora)
800$00
1000$00
1500$00
Estúdio de Filmagem (dia)
1000$00
-
2500$00
Sala de Montagem (semana)
2000$00
3500$00
4300$00
Laboratório - revelação 35mm cor
(metro)
Laboratório - revelação 16mm cor
(metro)
Ainda de acordo com Henrique Espírito Santo (Cineclube, 18/19, X-1978: 33), se
em 1974 uma longa-metragem de 110 minutos rodada em 35mm custaria algo em torno
190
dos 3000/3500 contos, em 1978 o valor necessário para uma longa da mesma dimensão
em película de 16mm aumentou para cerca de 5000/6000 contos.82
Outra das razões pelo aumento exponencial na produção de curtas-metragens
desde os anos 50 e durante a década seguinte foi o número considerável de filmes
produzidos por encomenda ou nos serviços internos de várias entidades públicas, algo
que se alterou significativamente com a queda do Estado Novo:
“De resto, os serviços de cinema oficiais ou desapareceram, ou
deixaram de produzir, ou mudaram a sua política de produção, como
foi o caso do Instituto de Tecnologia Educativa, da Junta de Acção
Social ou dos Serviços Cartográficos do Exército. Grande parte dos
filmes do sector é agora rodada em 16 milímetros, sem hipótese de
distribuição comercial, sem esquecer que os horários das salas não
permitem agora a exibição normal de complementos. O documentário
tornou-se, assim, a grande vítima.“ (Pina, 1986: )
Com uma opção que passava pela centralização dos serviços de produção de
cinema no IPC, deixou de fazer sentido que entidades públicas ou dependentes do
Estado tivessem serviços cinematográficos ou que recorressem a empresas privadas,
política que desagradava de forma particular às cooperativas de cinema que lutavam
pela sobrevivência e pelo direito de aceder a financiamento público.
2.4.2. O estado das coisas
Em Junho de 1977, o IPC enviou a toda a imprensa um relatório relativo aos anos
1974-76 com a discriminação de todo as despesas e receitas, nomeadamente as receitas
provenientes do imposto adicional e as despesas com os planos de produção.
Ano
1974
1975
Tabela n.º 31
Relatório e contas do IPC (1974-76)
(fonte: Isto é espectáculo, 8, VII-VIII-1977: 17)
“Total do adicional
“Verbas gastas na Produção“
arrecadado pelo IPC“
59.557079$20
12.426574$80 (subsídios)
25.520620$00 (participação financeira)
73.670145$40
2.378767$00 (empréstimos)
82
Este cálculo é feito contabilizando os seguintes materiais e serviços: 25 mil metros de negativo, 15 mil
metros de positivo, cerca de 30 mil metros de magnético, 3 mil metros de negativo de som e 3 mil de
positivo de som para cópia síncrona; tem pode rodagem de 8 a 12 semanas com uma equipa de 20/25
técnicos; 8 a 12 semanas em sala de montagem.
191
1976
76.799190$70
Total
210.026415$30
50.455185$50 (participação financeira)
77500$00 (empréstimo)
90.858647$30
Ao prever receitas específicas para outras rubricas que não a produção, o
orçamento para 1977 pretendia:
“(...) ser um primeiro passo no sentido da correcção de uma
situação perfeitamente desequilibrada, na qual se gastaram mais de
50% do orçamento [dos anos anteriores] na produção, sem
investimento nas infra-estruturas, nomeadamente laboratórios,
estúdios, salas de exibição, circuito de distribuição complementar e
Cinemateca.“ (Isto é espectáculo, 8, VII-VIII-1977: 17)
E eram várias as rúbricas contempladas: Infra-estruturas (laboratórios e estúdios):
9 mil contos; Melhoramento de sala de exibição: 16 mil contos; Circuito complementar
(aquisição de salas, melhoramentos e tiragem de cópias): 16 mil contos; Aquisição de
cópias, festivais nacionais e Cinemateca: 6,5 mil contos. Um investimento total de 47,5
mil contos que, por esses anos, representava aproximadamente 70% do orçamento anual
do IPC.
O IPC tornava-se, gradualmente, a peça fundamental para todo o sector
cinematográfico, deixando de ser apenas visto como um “fundo“ de apoio à produção e
assumindo, ou reclamando, um papel regulador nos ramos da distribuição e exibição.
Ainda assim, apesar das expectativas, a tomada de acção era algo mais complexo:
“Mas o ano que terminou deixou, em aberto quase tudo,
inclusive o que pretendeu arrumar à pressa. Legalmente não se pode
falar sequer de vazio, mas de caos. As coisas funcionam por inércia, os
cinemas abrem as portas, o público paga os bilhetes, o exibidor e o
distribuidor arrecadam as massas, pagam os filmes, as rendas, os
vencimentos, algumas contribuições (como já vimos), arrecadam o
resto. Os filmes portugueses são produzidos pelo Instituto Português
de Cinema que para o efeito organizou, cheio de boa vontade, uma
distribuição de verbas pelos mais necessitados (os que não estavam a
trabalhar) a que chamou de 'plano de emergência'.“ (...)
(...)
Se o marasmo caracterizou o panorama a nível de centros de
decisão, já o mesmo não se poderá dizer da actividade que se
desenvolveu um pouco por todo o lado, com a finalidade de mostrar
filmes inéditos no nosso país, quer seja em festivais, ciclos,
retrospectivas, etc.“ (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9).
Apesar de tudo, segundo o mesmo autor, o ano de 1976 trouxe uma acalmia,
sobretudo se comparado com o ano antecedente, “que, sem dar para adormecer,
permitiu pelo menos respirar“ (Ibidem). Mas o ano de 1977 voltava a focar-se na
192
resolução possível do impasse vivido no seio do IPC. Cada vez mais longe dos debates de
Abril, o poder político parecia querer normalizar a situação da atribuição de apoios à
produção: em Março é constituída um grupo de trabalho para começar a elaborar uma
proposta de nova lei de cinema, com representantes dos vários sectores (Seixas Santos
pelo IPC, José Manuel Castello Lopes pela distribuição, Rogério de Freitas e João
Lourenço pela Direcção Geral dos Espectáculos e um representante por designar pelo
SPC); em Abril, são anunciados os resultados do concurso de apoio à produção para 1977
(atribuídos por uma comissão composta por Rogério de Freitas, Duarte Barroso e
Eduardo Prado Coelho); em Maio, o IPC investe 500 contos na presença portuguesa no
festival de Cannes e em Julho marca presença no festival de Moscovo (Dionísio: 1994:
290-293).
Desbloqueada a situação dos planos de produção, os problema agora eram outros:
o plano de produção para 1977 contemplava apenas 14 longas-metragens, 3 filmes de
animação e 7 curtas-metragens dos 219 pedidos recebidos pelo IPC (75 longasmetragens, 20 filmes animação e 124 curtas-metragens); a conclusão das produções dos
anos anteriores eram adiadas consecutivamente, acumulando-se dezenas de projectos
em produção sem data de estreia definida; na distribuição e exibição, depois da greve de
1976, problemas alfandegários voltavam a prejudicar gravemente a actividade de
algumas empresas do sector83.
Do plano de produção para 1977 é necessário realçar uma importante novidade: “o
facto de, pela primeira vez, e com o objectivo de abrir a profissão a novos valores o
Instituto subsidiar a produção de 2 filmes para iniciados.“ (Celulóide, VII-1977: 5)84
No concurso de apoio referente a 1978, o IPC recebe 79 propostas de longas, 18 de
médias, 34 de curtas e 14 filmes de animação. Para esse ano, o orçamento para o apoio à
produção seria de 35 mil contos e o total dos orçamentos dos projectos a concurso ronda
os 500 mil contos. Entretanto, a própria Fundação Calouste Gulbenkian recebia também
cerca de 20 pedidos de apoio à produção (Isto é o cinema, 2, 3-II-1978: 17). Mesmo
depois de concluído o contrato celebrado com o CPC, a Fundação Gulbenkian continuou,
83
“(...) os filmes amontoaram-se na alfândega sem que se possam 'levantar', o que tem prejudicado
visivelmente os distribuidores e exibidores portugueses, nalguns casos de forma dramática (veja-se o caso
Universal-Animatógrafo, e leiam-se as inquietas declarações do seu administrador, o realizador António
da Cunha Telles).“ (Isto é espectáculo, 4, III-1977: 9).
84
Os “iniciados“ contemplados com subsídios para a produção de uma curta foram: Noronha da Costa,
António Drago, João Botelho, José Ribeiro Mendes, Pedro Bandeira Freire, Sérgio Ferreira e Vicente Jorge
Silva.
193
ainda que de forma mais pontual, a participar financeiramente na produção de vários
filmes, nomeadamente integrados do projecto Museu da Imagem e do Som.
A emissão na RTP da versão de Amor de Perdição realizada por Manoel de Oliveira
em Novembro e Dezembro de 1978 (o filme foi emitido em 6 sessões semanais, aos
domingos à noite) motivou um interessante debate público acerca do cinema português
que Fausto Cruchinho (2001) analisou e que é esclarecedor da relação entre o cinema
português, o poder político e a sociedade portuguesa de então.
Na época, um dos argumentos mais usados para “atacar“ o filme, como resume
Fausto Cruchinho, era o suposto despesismo que a produção cinematográfica implicava
para o erário público (segundo a imprensa da época, o filme teria custado entre 12 mil e
24 mil contos, o maior orçamento jamais visto para uma produção portuguesa)85:
“(...) Se Manuel de Oliveira tivesse filmado 'O Amor de Perdição'
em 8mm pago pelo seu bolso, dando à obra a interpretação que lhe
apetecesse, e projectando-a em casa para quem a quisesse ver, tudo
estaria certo. Mas, quando se vem a terreiro mostrar como foi gasto o
dinheiro do POVO, é justo que o POVO saia contemplado com alguns
juros do capital coercivamente empatado...
Como? Pois bem: criando uma obra que seja elo de ligação entre
Camilo e o POVO, isto é, uma obra que ajude o POVO a mastigar o
acepipe, de maneira a poder tomar-lhe o gosto e a habituar-se a um
paladar que obviamente não tinha.“ (Mário Clemente apud Cruchinho,
2001: 8).
Também se questionou, entre outras coisas, a participação financeira da RTP na
produção de cinema. Nesta questão particular, interessa recuperar um texto de AntónioPedro Vasconcelos publicado no Expresso (apud Cruchinho: 2001: 9):
“Se pensarmos que a RTP paga normalmente por qualquer
episódio da mesma duração, aviado à pressa por um dos vários
realizadores de serviço que recentemente se acolhem ao 95 da
Alameda das Linhas de Torres (sede da RTP) uma soma que anda à
volta de novecentos contos, poder-se-á acusá-la de tudo menos de
perdulária administração. (...) Mais: parte substancial da verba
investida traduziu-se em serviços da Tobis, que participou com os
Estúdios, normalmente parados, e com o laboratório, a troco de cobrar
as primeiras receitas e de um volume de trabalho noutros filmes,
razoavelmente compensador. (...)“
Mas, entre 1975-77, a RTP já tinha demonstrado ser determinante para a
sobrevivência de várias produtoras de cinema, nomeadamente as cooperativas
Cinequipa e Cinequanon e a Planigrafe, que nesse período produziram dezenas de curtas
85
Manoel de Oliveira “defendeu-se“ e ao seu filme ressaltando que a produção contava com centenas de
actores e figurantes, que o filme teria uma duração final de 4 horas e 50 minutos e que “o filme é caro por
o país ser pobre“, o que é diferente“ (Manoel de Oliveira apud Cruchinho, 2001: 6).
194
e médias metragens para a televisão pública portuguesa (Isto é espectáculo, 6, V-1977:
36-37).
Em 1979, Victor Cunha Rego, responsável pela RTP, aceita uma sugestão de
Fernando Lopes e cria o Departamento de Co-produção de Cinema da RTP, entregandolhe a sua direcção: visando já a Europa, “foi delineada a ideia de fazer um serviço
público de apoio ao cinema português, de modo a que a RTP passasse a ser um elemento
importante na produção cinematográfica“; “o dr. Brás Teixeira [vice-presidente da RTP]
considerava, então, que a RTP estava em condições de poder ser uma espécie de
segundo IPC - ou mais - com capacidade para decidir sobre todos os filmes que se iam
fazer“ (Ibidem: 88-90).86
À semelhança do que acontecera durante a década de 60, a venda de aparelhos de
televisão continuou a crescer durante a década, com particular incidência entre 197577.
Gráfico n.º 12
Número de aparelhos de Televisão registados, em milhares (1970-80)
(fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 484)
1600
1,381
1400
1,137
1200
1,149
1978
1979
914
1000
800
600
400
1,174
472
542
608
674
722
387
200
0
1970
1971
1972
1973
1974
1975
86
1976
1977
1980
Entre 1979 e 1993, o departamento de co-produções internacionais seria determinante no apoio
financeiro à produção de jovens cineastas e outros consagrados. Nesse período, a RTP tornou-se num
importante co-produtor de cinema português, associando-se a dezenas de projectos ou fazendo diversas
encomendas, como abordarei no capítulo seguinte.
195
Os anos de 1976 e 1977 revelam, segundo Eduarda Dionísio (1994: 254-256),
“transferências de consumos culturais“ significativas, apesar da autora considerar que
os números das estatísticas oficiais pecam por defeito87:
“Em 77, começa a ser notória a preferência pelo espectáculo que
se vê em casa (televisão) em relação aos que exigem saídas de casa e
gastos (cinema, teatro).
São estes os dois anos em que o número de aparelhos de
televisão (registados) sobem mais: fazem-se as últimas aquisições de
televisões pós-25 de Abril. Em relação a 72, o número de televisores
mais que duplicou. Entre 77 e 79 parece estabilizar, à espera da
televisão a cores, que Tomás Rosa [Ministro do Trabalho] começa a
anunciar em 77...
(...)
Apesar dos numerosos saneamentos e substituições, a televisão
não modifica fundamentalmente o figurino. Mas é em 1977 que se dá o
grande acontecimento televisivo que é a transmissão da telenovela
brasileira Gabriela (prevista, aliás, desde 1975) e que virá a ter efeitos
perversos mais ou menos previsíveis.
Só em 1977 a televisão passará a ser uma concorrente do
cinema, cuja frequência ainda aumenta em 1976 (quase 43 milhões de
idas ao cinema). É no ano seguinte que se inicia o movimento
contrário que a Europa já há uns anos registava a não mais será
possível suster. (...)“
Apesar da transferência de consumos culturais e recreativos dos espectadores de
cinema para a televisão, a programação de cinema continua a ter uma presença
importante na grelha da RTP durante a década de 70, com uma emissão média diária
estável, e por enquanto ainda superior à telenovela.
Gráfico n.º 13
Número de horas de cinema e telenovela nos dois canais da RTP (1970-80)
(fonte: adaptado de Dionísio, 1994: 484)
87
Eduarda Dionísio (1994: 479) alerta para alguns factos: “as estatísticas não são neutras“; “as
comparações são muitas vezes impossíveis“ porque “as rubricas mudam de ano para ano“; “aparecem
números que dirão pouco“; “basta pensar nos espectáculos feitos em salas não 'licenciadas', e ao ar livre,
(...) nas televisões que não eram registadas, para não poder levar à letra os números que aqui se
transcrevem que, no entanto, darão uma 'ordem de grandeza'.“
196
4
3,5
3
3
2,4
2,5
2
2,4
2,5
2,3
2,3
2,4
0,4
0,5
1979
1980
1,9
1,5
1
0,5
0,7
0,3
0,2
0,4
0
0
1975
1976
0
1973
1974
cinema
1977
1978
telenovela
Como é natural, os cânones estéticos e cinéfilos também se alteram no pós-25 de
Abril: por exemplo, o mítico programa de cinema mudo Museu do Cinema de António
Lopes Ribeiro desaparece da grelha (regressaria em 1982) e, em sua substituição, surge
o programa Cineclube 2, apresentado por António-Pedro Vasconcelos, onde era
transmitido cinema clássico, particularmente de produção europeia; Vasco Granja surge
na programação com programas de cinema de animação (Animação e Cinema de
Animação, sendo que este duraria 16 anos), e que seria importantíssimo na divulgação
do cinema de animação dos países do leste europeu; no segundo canal, na rúbrica
Cinemateca, são repostos alguns clássicos mudos portugueses, como Maria do Mar ou
Lisboa, Crónica Anedótica, e ciclos temáticos sobre cineastas, como o dedicado a Leitão
de Barros apresentado por Lauro António.
Muitas destas alterações seriam da responsabilidade da nova equipa de
programação do segundo canal da televisão pública dirigida por Fernando Lopes,
nomeado, em 1978, por João Soares Louro, então presidente da RTP, com o objectivo de,
nas palavras do próprio Fernando Lopes (apud Andrade, 1996: 88), “criar essa
autonomia no espírito, no corpo, na imagem e no rosto, de modo que se pudesse até
competir com o primeiro canal“. Neste segundo canal da televisão pública seriam
exibidos então diversos trabalhos estrangeiros que dificilmente o seriam na RTP1.
Apesar de ser acabar por ser de curta duração — em 1979, com a mudança de governo,
Fernando Lopes seria afastado da direcção da RTP2 —, esta experiência de programação
197
alternativa ficaria na memória de muitos espectadores como marcante e muitas das suas
inovações permaneceriam na grelha com as direcções de programação seguintes.
Por outro lado, depois de uns anos marcada e declaradamente mais militantes e
ideológica, o principal canal da televisão optava por uma programação mais recreativa e
sem grandes propósitos formativos.
Mas, no debate público acerca da transmissão televisiva da versão oliveiriana de
Amor de Perdição, independentemente do autor ou do filme em causa, a questão de
fundo parece-me que seria ainda a intervenção do Estado no apoio à produção de
cinema. Como questão política que era, o debate sobre essa questão foi recorrente ao
longo do ano.
A 4 de Maio, um longo debate (6 horas) no Centro Nacional de Cultura reuniu o
Secretário de Estado da Cultura (António Ribeiro Reis) e várias figuras da área do
cinema: Fernando Lopes (RTP), Seixas Santos (IPC), Nunes de Carvalho (Sindicato), José
Manuel Castello Lopes (representante dos distribuidores), António de Macedo, Cunha
Telles (Tóbis) e António-Pedro Vasconcelos (representante dos Cineastas Associados88).
Considerado por Francisco Belard na revista Isto é cinema (16, 19-V-1978: 4) como “a
noite mais longa do cinema português“, o debate concluiu-se com o Secretário de
Estado da Cultura a declarar que a “indústria cinematográfica, no campo da produção,
terá de continuar a viver à custa do Estado“.
Um editorial da revista Isto é cinema (15, 5-V-1978: 1) fazia um resumo
esclarecedor do ponto de situação do cinema português:
“Uma das medidas a curto prazo do já longínquo e porventura
ignorado Programa do Movimento das Forças Armadas era, na sua
alínea d), a promulgação de uma nova lei de Imprensa, Rádio,
Televisão, Teatro e Cinema. Previsão acertadíssima, os quatro anos da
Revolução de Abril não conseguiram concretizá-la: nestes 48 meses, o
cinema português conquistou a liberdade de expressão mas parece
não ter conquistado mais nada, exceptuando o trabalho parcelar de
alguns e as novas formas de expressão onde preparam as imagens
portuguesas do futuro.
Continuava a faltar, até há poucos dias, a unidade de
pensamento e acção entre o Estado e os cineastas, perdida em tricas,
partidarizações, compadrios, mediocridades, falcatruas, dispersões e
mentiras. O grande movimento solidário, que, apoiado em disposições
normativas, realistas e globais, começasse a tentar construir por
baixo, com a participação de todos, o edifício — porventura modesto
mas sólido e funcional — do cinema português, nunca se concretizou.“
88
“(...) grupo recentemente constituído de que fazem parte, entre outros, Manuel de Oliveira, António
Reis e Paulo Rocha (...)“ (Isto é cinema, 16, 19-V-1978: 4).
198
Politicamente, o ano de 1978 ficaria marcado por alguma instabilidade
governativa: nesse ano civil houve 4 Governos em exercício89 e igual número de
Secretários de Estado da Cultura (David Mourão-Ferreira, António Ribeiro Reis, Teresa
Santa Clara Gomes e novamente Mourão-Ferreira):
“Não se sabe onde começa e acaba a acção de cada um. (...) O
tempo que medeia entre a 'crise' do anterior e a tomada de posse do
seguinte é um tempo indefinido, de expectativa e de desculpa,
durante o qual vai saindo (nalguns casos abundante) legislação. Cada
governo receberá heranças, nuns casos bem-vindas (do II para o III) e
noutros indesejadas (do III para o IV).“ (Dionísio, 1994: 307)
Entre outras medidas, no final de 1977, a SEC reformulou o sistema tributário ao
suspender o imposto adicional, histórica exigência dos sectores da distribuição e
exibição, e compensando o IPC com verbas provenientes do Orçamento Geral do Estado.
Ainda assim, a 2 de Maio de 1978, com 5 meses de atraso, o Diário da República
publicava as normas para os concursos de apoio à produção e orçava o IPC com 70 mil
contos. Nesse e nos anos seguintes, o atraso da abertura dos concursos e da
consequente publicação de resultados era constante. Ainda assim, mesmo com atraso,
os planos de produção para esses anos foram sendo publicados.
Tabela n.º 32
Planos de produção do IPC (1978-80)
(fonte: dados compilados a partir de informações do ICA90)
1978
1979
1980
8
4
3
Curtas-metragens
5.393.000$00
7.171.000$00
513.000$00
7
7
2
Longas-metragens
36.519.801$12
58.358.000$65
9.924.999$74
Do plano de produção de 1978 para o de 1979, apesar do número de projectos de
curta-metragem cair para metade e do número de longas se manter, verifica-se um
aumento considerável dos fundos atribuídos pelo IPC.
Ainda em Outubro de 1978, António-Pedro Vasconcelos, em artigo de opinião nas
páginas do Expresso, sublinhava que o cinema continuava a ser “regido por uma lei do
fascismo“ [Lei 7/71], que o IPC havia sido transformado em “produtor-patrão“, que a
televisão “tem dado filmes a fazer a amigos“, em suma, que o “cinema continua nas
89
O I Governo constitucional até 30 de Janeiro de 1978, o II Governo até 29 de Agosto de 1978, o III
Governo até 22 de Novembro de 1978 e o IV Governo daí em diante.
90
Para consultar a totalidade dos dados relativos aos valores detalhados dos filmes apoiados por estes
planos de produção, ver Anexos, D.
199
mãos do Estado“ e que se assiste à “lenta agonia“ e a “um enterro de primeira“ do
cinema português (Dionísio, 1994: 313). Uns meses antes, em Abril, o mesmo
Vasconcelos estava entre os signatários91 que acusavam o IPC de ser “uma cópia
envergonhada dos esquemas do Leste“ (Isto é cinema, 15, 5-V-1978: 14).
Nessa mesma carta pública ao SEC, os cineastas signatários, receando o futuro,
“apontam linhas de rumo para a definição de uma política de cinema em Portugal“:
“Qualquer cálculo que se faça sobre a viabilidade económica do
cinema português, a curto prazo, responderá pela negativa. Como o
teatro, a música ou a ópera, mas com responsabilidades e
potencialidades bem maiores, o filme português terá que continuar,
ainda durante bastante tempo, a viver, total ou parcialmente, de
apoios do Estado.
Convém, no entanto, dizer com clareza que o conflito tão
acariciado entre filmes ditos 'comerciais' e filmes ditos 'artísticos' é
um falso dilema, apenas invocado por quem não está interessado na
existência autónoma de um cinema nacional, mas sim em transformálo em produtos conformistas de gosto duvidoso que não merecem nem
precisam do apoio do Estado. (...)
(...)
O Estado deverá, por isso, providenciar para criar condições de
gradual emancipação do cinema, mantendo-se como árbitro e garante
do que os seus apoios não vão contribuir para filmes que desvirtuem os
objectivos que norteiam a acção da SEC nem lhes adulterem a
autenticidade da expressão.“
(Isto é cinema, 15, 5-V-1978: 14)
Em 1979, sem plano divulgado até Novembro, o IPC torna público um “plano de
produção de emergência“ para desbloquear a situação de 3 longas-metragens e 4 a 6
curtas. O júri nomeado92 deverá seleccionar filmes “previamente escolhidos para serem
subsidiados em 1979“ nos seguintes critérios: “um projecto com objectivos
eminentemente culturais e estéticos, uma primeira obra e um projecto que procure
conciliar a qualidade final com a mais ampla aceitação por parte do público“ (Celulóide,
285-286, XII-1979: 13).
E assim, em poucas palavras, o poder político incluía nos critérios de selecção de
projectos a beneficiar de apoio público à produção a questão da “reconciliação do
cinema português com o seu público“ e recentrava todo o debate sobre a intervenção do
Estado na produção de cinema. Em termos de opinião pública e publicada, seria nestes
anos que se iniciou um debate aguerrido, que continuaria anos 80 adentro, entre duas
91
António-Pedro Vasconcelos, António Reis, Margarida Cordeiro, João Botelho, Jorge Alves da Silva,
Paulo Rocha e Manoel de Oliveira.
92
Composto por João Bénard da Costa, Henrique Alves Costa, Henrique Espírito Santo, Eduardo Prado
Coelho e Rui Mário Gonçalves.
200
formas antagónicas e irreconciliáveis de ver e fazer cinema: de um lado os defensores de
um cinema português que voltasse a ser de “fácil percepção“ e “eminentemente
comercial“, um cinema “não-chato“, que tomasse em conta a dimensão espectáculo do
cinema e a fidelização do grande público; do outro lado, os defensores da persistência
num “cinema de autor“, marcado por uma “intransigente radicalidade“ e “exigência
estética“, sem abdicar de um quadro de referências estéticas e cinéfilas pouco familiar à
generalidade dos espectadores (Cunha, 2013b: 216).
Procurando condicionar objectivamente o poder político e as orientações da
política cultural e artística dos responsáveis governativos, as principais figuras das
“facções em confronto“ apresentavam os seus argumentos. Alguns sucessos e meiossucessos nas bilheteiras na primeira metade da década93 entusiasmariam os que ainda
acreditavam na reconciliação com o público e a viabilização de uma indústria rentável
de cinema em Portugal. Por outro lado, as recepções críticas internacionais positivas e
as presenças em certames de prestígio de diversos filmes94 colocariam o nome de
diversos realizadores portugueses nos circuitos cinematográficos internacionais e
davam projeção à política cinematográfica portuguesa além-fronteiras. No entanto, à
excepção de Francisca (76.132 espectadores), nenhuma das outras obras conseguiria
resultados de bilheteria significativos no mercado interno português95 (Ibidem: 216217).
A par da questão da “reconciliação“ do cinema português com o seu público surgia
também a questão do modo de produção industrial, onde o caso da Tobis ocupava uma
posição extremamente sensível e central. Sem recuar em demasia no tempo nem me
perder na extensa cronologia da Tobis96, parece-me essencial fazer uma breve
panorâmica do percurso atribulado da empresa desde 1957, simultaneamente o ano em
que a RTP iniciou as suas emissões e em que é feita uma avaliação dos imóveis
93
Manhã submersa (1980, Lauro António) somou 44.036 espectadores; Kilas, o mau da fita (1981. José
Fonseca e Costa) at ingiu 121.269 espec tadores; Oxalá (1981, António-Pedro Vasconcelos) registou
89.484 espectadores; A vida é bela?! (1982, Luís Gaivão Teles) somou 140.074 espect adores; Sem sombra
de pecado (1983, José Fonseca e Costa) 92.080 espectadores; Os abismos da meia-noite (1984, António de
Macedo) 100.408 espec tadores; e Crónica dos bons malandros (1984, Fernando Lopes) totalizou 67.760
espectadores
94
Francisca (1981, Manoel de Oliveira) esteve presente em Berlim, Silvestre (1981, João César Monteiro)
em Veneza, Conversa acabada (1981, João Botelho) em Cannes, A ilha dos amores (1982, Paulo Rocha) em
Cannes, Ana (1982, António Reis e Margarida Cordeiro) p resente em Berlim e vencedor em Vallad olid,
Gestos e fragmentos (1982, Alberto Seixas Santos) est eve presente em Berlim.
95
Silvestre somou 9.950 espectadores; Conversa acabada apenas chegou aos 14.302 espectadores; A ilha
dos amores só estrearia comercialmente em 1991 (!!), totalizando 4.800 espectadores; Ana só estreou em
1985, totalizando 3.233 espectadores; e Gestos e fragmentos nunca estreou comercialmente.
96
Para consultar a cronologia exaustiva e ofical da Tobis, ver Anexos, E.
201
pertencentes à Tobis na tentativa de encontrar uma solução de saneamento financeiro
através de um plano de urbanização dos terrenos ocupados pelas instalações e
transferência dos estúdios e laboratórios para os arredores de Lisboa. Nesse mesmo ano,
em Outubro, iniciam-se negociações entre as duas entidades para saber da possibilidade
de a RTP adquirir o activo imobilizado da Tobis, que nunca se concretizaria. No entanto,
em Junho de 1967, a RTP alugaria à Tobis o Estúdio 2 por um período de um ano.
Em 1965, a Câmara Municipal de Lisboa adquire a Quinta dos Lilases e a Quinta das
Conchas e, um ano mais tarde, encomenda ao Engenheiro Mota Carvalho a elaboração de
um estudo económico sobre os efeitos da urbanização dos terrenos da Tobis. Em Abril de
1969, um despacho do Presidente da Câmara de Lisboa aprovava o Plano Base da
Urbanização dos terrenos da Tobis. Em Janeiro seguinte, é nomeada uma comissão,
composta pelo presidente do Conselho de Administração da Tobis, o Inspector Superior
da Secretaria de Estado e representantes da União de Grémios e do Sindicatos, presidida
pelo Director Geral Cultura Popular e Espectáculos, para se pronunciar sobre o plano
estabelecido para as novas instalações da Tobis. Em cerca de um mês, a 18 de Fevereiro
de 1970, iniciavam-se as demolições no complexo da Tobis: demolição dos edifícios da
Administração, garagem, casa do Barão e do guarda, e demolição do Estúdio 2.
Em Fevereiro de 1971 é assinado um contrato com um empreiteiro para construção
dos arruamentos dos lotes de terrenos da Tobis a urbanizar e, precisamente um ano
depois, é adquirido de um terreno em Queluz, na área contigua à mata do Palácio de
Queluz, para construção do novo Estúdio da Tobis e instalações complementares numa
área de 40 000 m2, que não se chegaria a concretizar.
No pós-25 de Abril, merece ainda registo a garantia de empréstimo que o IPC
concedeu à Tobis de um empréstimo no valor de 7.000 contos, em Novembro de 1976,
para a construção do novo laboratório. Mas em Julho do ano seguinte, o mesmo IPC
deixava de ser accionista da Tobis, passando a titularidade das suas acções nessa
empresa para o Instituto das Participações do Estado (art.º 2.º do Decreto-Lei n.º
285/77).
Passados alguns anos, a situação da empresa e do seu complexo continuava num
impasse. Em 1977, prevendo a demolição dos estúdios da Tobis, a SEC avançava com a
hipótese de um acordo entre o IPC e a RTP para o cinema pudesse potenciar a utilização,
sem prejuízo ou restrições, do novo complexo de estúdios de imagem, estúdios de som e
outros serviços técnicos que a RTP planeava para breve, propondo em troca o uso dos
laboratórios da Tobis pela RTP nas mesmas condições (Isto é espectáculo, 8, VII-VIII202
1978: 19). A tutela considerava que o complexo técnico da Tobis estava obsoleto e
desadequado às necessidades do cinema de então e não queria investir mais dinheiro na
sua manutenção, optando por uma solução mais radical que previa apenas os
laboratórios.
António de Macedo (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978: 8) queixava-se da “ignorância
dos técnicos“ da Tobis a propósito de uma máquina que ampliava película de 16 para
35mm. Coincidência ou não, nesse mesmo ano, o técnico inglês Paul Reed efectuava
uma peritagem aos laboratórios da Tobis, concluindo o elevado grau de caducidade da
quase totalidade do seu equipamento e a necessidade de dotá-lo de meios técnicos
adequados. Em Maio desse ano, no debate sobre o cinema português que decorreu no
Centro Nacional de Cultura, o Secretário de Estado da Cultura, António Ribeiro Reis,
reconhecia que a acção do Estado nos anos anteriores tinha sido mais vocacionada para
a produção em detrimento da criação de infra-estruturas técnicas.
Fernando Belard (Isto é cinema, 14, 28-IV-1978: 7-8) reportava a preocupação de
muitos ligados ao sector do cinema:
“(...) precisamente os estúdios — os da Tobis, que não tivemos
outros, nem os teremos em meados de Maio, data fatídica há muito
aprazada para a conversão em escombros desses edifícios meio
arruinados, que ao longo de quarenta e cinco anos foram a casa
encantada e desencantada em que se fez o cinema entre nós.
(...)
E acontece que o complexo da Tobis, laboratórios e estúdios,
deficientes e caducos, são entretanto os únicos. A sua condenação à
morte próxima é um golpe gravíssimo na balbuciante indústria do
filme em Portugal, de que eles são museu possível e de cuja memória
guardem dele. (...) Não poderá ser imolado sem uma alternativa
imediatamente operacional, por meros critérios de merceeiro —como
dizia há pouco tempo Paulo Rocha, que nos seus estúdios filma
actualmente —, mesmo que para tanto exista cobertura legal.
É altura do poder político que também queira ser vontade
cultural tomar as atitudes que se esperam com lucidez. Para já, suster
o processo de demolição que nesta altura seria, pelo menos, insensata,
preparando alternativas para a instalação adequada de uma fábrica
nova para o cinema que é preciso e possível.“
Entretanto, nesse mesmo mês, enquanto se falava do eventual “funeral“ da Tobis,
o Governo chama Cunha Telles para integrar a Comissão Administrativa da Tobis. Um
mês após a nomeação, Cunha Telles, em entrevista à revista Isto é cinema (13, 21-IV1978: 6-8), reconhecia que o futuro da Tobis dependia essencialmente do poder
político, nomeadamente o autárquico:
“(...) Isso, evidentemente, não depende de nós; depende do
poder político. Se a Câmara Municipal de Lisboa, hoje presidida por
203
Aquilino Ribeiro Machado — homem muito ligado aos assuntos
culturais — nos puder dar o seu apoio e nos encontrar outro terreno
em troca, mesmo na periferia (e até com menor valor por metro
quadrado), faremos tudo por criar um complexo industrial que possa
dar resposta satisfatória ao cinema português, e ao cinema
internacional que possa vir a ser feito. (...)“
Apontando para a internacionalização da prestação de serviços da Tobis — “esse
mercado inclui grande parte da África e da América Latina, que carecem de laboratórios
de cinema a cores“ —, Cunha Telles estimava que o novo complexo poderia implicar um
investimento na ordem dos 50 a 70 mil contos, sendo um investimento necessário para
“uma viragem de tipo industrial“ para o cinema português (Ibidem).
Finalmente, em Junho de 1979, um despacho do Secretário de Estado da Cultura
definia para a Tobis uma programação financeira que, a médio prazo, permitisse
fortalecer a substância patrimonial da empresa e assegurar a existência de uma
indústria, capaz de responder, em termos de ordem técnica, não só às exigências no
mercado interno, como sobretudo, concorrer em condições de preço e de qualidade no
mercado internacional.
Mas, ao contrário do que significou para a Tobis, 1979 volta a ser um ano agitado
no IPC. Em Fevereiro é nomeada a 5.ª Comissão Administrativa, que é composta, entre
outros, por Henrique Espírito Santo e António da Cunha Telles, o multifacetado
produtor-realizador-distribuidor que estará no IPC durante um ano (16 de Fevereiro de
1979 a 13 de Fevereiro de 1980), no qual, “com a ajuda do Secretário de Estado da
Cultura David Mourão-Ferreira, desbloqueou 37 das 40 produções que encontrara
paradas“ e, sobretudo, terá sido determinante numa mudança significativa a política de
apoio à produção, “reforçando o papel do produtor (que passou a ser responsabilizável
pela conclusão de cada filme subsidiado)“ (Lameira, 2014).
A responsabilização foi uma mudança significativa de acção na relação do IPC com
os beneficiários dos subsídios públicos, porque pretendia ser uma medida
simultaneamente moralizadora e dissuasora de más práticas que ocorriam nesse
instituto público desde 1974 e que há muito o poder político pretendia implementar:
“(...) Quanto a esse aspecto, aquele membro do Governo
[Secretário de Estado da Cultura, António Ribeiro Reis] deixou
pendente a possibilidade de responsabilização — maxime em tribunal
— de cineastas que cometeram ou consentiram irregularidades ou não
cumpriram os contratos com o IPC. (...)“ (Isto é cinema, 17, 19-V1978: 6)
204
“A tentativa de ocupação dos lugares-chave do poder, cuja
função era definir e implementar uma nova política de cinema,
motivaria um constante reequilíbro de forças. O palco principal destas
movimentações era o IPC. Quem dominasse este palco possuía o poder
de controlar a produção de imagens. Além do Instituto que detinha as
condições financeiras necessárias à produção cinematográfica, a RTP
surgia também como palco de extrema apetência: era uma estrutura
mais organizada e que chegava a audiências mais vastas e recônditas
que o cinema.“ (Costa, 2014: 108)
Na segunda metade dos anos 70, como penso ter já ficado claro, o IPC tornou-se
claramente no instrumento privilegiado para a instauração da política pública que o
poder político foi definindo para o cinema.
2.4.3. Fechar Abril
Num texto de balanço do ano e da década, João Bénard da Costa (apud Dionísio,
1994: 304) nota que “os programas dos partidos não divergem em relação ao que
propõem para a cultura“. Eduarda Dionísio concorda:
“A ideia de 'consenso nacional' vai substituindo a de 'unidade',
o que parece acontecer com mais facilidade e mais rapidamente na
Cultura. (...) Os conflitos na Cultura abrandam e, quando existem,
começam a usar-se as armas legais e institucionais. (...)“ (Ibidem)
E, a mesma autora, conclui:
“Estes dois anos [1978-79] são a verdadeira despedida do que
ainda restava do 25 de Abril nas práticas e nos desejos, nas
coincidências e, simultaneamente, é o tempo em que se vão cumprir
(ainda), com alguns atraso, projectos (quase) fora de tempo agora,
ligados à liquidação (que nunca se chegou a completar) de um
passado indesejado.“ (Ibidem: 308)
Na minha opinião, muito do que seria o futuro do cinema português nas décadas
seguintes teria como protagonistas duas instituições públicas até então pouco
valorizadas no contexto das políticas públicas: a Cinemateca e a Escola Superior de
Cinema.
A Cinemateca Portuguesa é convertida em instituto público com personalidade
jurídica e autonomia administrativa e financeira. As instalações do Palácio Foz, dada a
elevada taxa de ocupação de várias outras entidades (Direcção Geral de Acção Cultural,
por exemplo), eram já manifestamente insuficientes para a Cinemateca, ao que acrescia
205
os cuidados necessários com os depósitos de filmes que nesse edifício eram precários
(Isto é cinema, 3, 10-II-1978: 23). Em Abril, o Estado adquiria o actual edifício sede da
Cinemateca, sito na Rua Barata Salgueiro, que sofreria obras de remodelação e para
onde se mudaria em Janeiro de 1981.
O orçamento do IPC para 1977 já previa a mudança de instalações da Cinemateca
para um novo espaço onde pudesse albergar três salas de exibição, uma biblioteca e um
museu do cinema. O mesmo documento previa ainda a abertura de duas salas de
exibição e uma biblioteca da Cinemateca no Porto e a abertura, nos anos seguintes, de
salas em “outros pontos do País“ (Isto é espectáculo, 8, VII-VIII-1977: 17).
Curiosamente, já em Fevereiro de 1975, uma moção apresentada pelo ABC Cineclube e
pelo Cineclube Imagem ao responsável político pela tutela do cinema propunha a
criação de “delegações da cinemateca em diversos pontos do país, de funcionamento
autónomo quanto possível“ (Cineclube, 2, II-1975: 27).
A autonomia da Cinemateca Portuguesa revelar-se-ia nas décadas seguintes um
dos momentos mais marcantes para o cinema português. A Cinemateca Portuguesa
deixou de ser um depósito de filmes e um mero organizador de irregulares ciclos de
cinema. Instalada em novas instalações, a Cinemateca passou a organizar importantes
retrospetivas de cinema português, a coordenar catálogos dedicados a realizadores e
atores97, a promover monografias sobre figuras precursoras98, a estimular o estudo dos
principais momentos históricos e movimentos estéticos99 e a história da própria
instituição100, transformando-se no principal núcleo de produção editorial sobre cinema
português (Cunha, 2003: 14-15).
João Bénard da Costa, vindo da Fundação Calouste Gulbenkian onde dirigia desde
1969 o seu serviço de cinema e onde deixara uma obra de reconhecido mérito enquanto
97
Manoel de Oliveira (1981), Arthur Duarte (1982), Dina Teresa, a Severa (1982), José Leitão de Barros
(1982), Raul de Caldevilla e o seu tempo (1982), António Lopes Ribeiro (1983), Chianca de Garcia (1983),
Ernesto de Albuquerque (1983), João Tavares e o primitivo cinema português (1983), Jorge Brum do Canto
(1984), António Silva (1985), António Vilar (1985), Homenagem a Nascimento Fernandes (1986), Laura
Alves (1986), Elvira Velez (1992), Erico Braga (1993), Aurélio da Paz dos Reis (1996), Beatriz Costa (1996),
Fernando Lopes por Cá (1996), Paulo Rocha e o Rio do Ouro (1996).
98
Alberto Armando Pereira (1984), Baptista Rosa (1984), Homenagem ao Dr. Manuel Félix Ribeiro (1985),
Fernando Carneiro Mendes (1986), 70 Anos de Filmes Castello Lopes (1986), Aníbal Contreiras (1987), Artur
Costa de Macedo (1987), Aquilino Mendes (1989), Gentil Marques (1989), Homenagem a João Moreira
(1991), Jasmin no Cinema Português, uma homenagem (1996), A Dupla Vida de Isabel Ruth (1999).
99
Encontro com o Cinema Português (1983), 25 de Abril – Imagens (1984), Cinema Novo Português 1960-74
(1985), A Fotografia Animada em Portugal 1894-1895-1896-1897 (1986), Da Lanterna Mágica ao
Cinematográfico (1986), Paz dos Reis ou Pinto Moreira? (1986), Lisboa Filme – Um Sonho Vencido (1987),
Sonoro Filmes (1988), A comédia popular portuguesa de António Silva a Herman José (1988), Cardo as
Charlot em Portugal (1989), Amor de Perdição – Georges Pallu, 1921 (1995).
100
Panorama do Cinema Português (1980), Encontro (Inaugural) com o Cinema Português (1982),
Cinemateca – 25 Anos (1983).
206
programador, foi um dos principais responsáveis por uma crescente influência da
Cinemateca juntos dos decisores do poder político com tutela sobre o sector cultural.
Subdirector entre 1980-91 e director da instituição entre 1991-2009, Bénard da Costa
tornou-se o autêntico “Senhor Cinemateca“ e elemento decisivo na construção da
identidade dessa instituição. Ao longo das décadas seguintes, as linhas de orientação
da programação e da atividade editorial da Cinemateca reflectiram as fortes ideias
matrizes que marcam a personalidade do seu director. Do mesmo modo, a valorização
pessoal de um certo cinema de autor, veiculada desde meados dos anos 60,
principalmente nas páginas d’O Tempo e o Modo, tornou-se gradualmente, nas suas
linhas gerais e na visão oficial da instituição sobre o cinema português dos últimos
quarenta anos (Ibidem: 18).
Em 1980, com a nomeação de João Bénard da Costa por Vasco Pulido Valente como
subdirector da Cinemateca, tinha início uma autêntica “revolução cinéfila silenciosa“
que transformaria o cinema português nas décadas seguintes:
“Foi, assim, possível criar e estimular um público essencialmente cinéfilo, na sua esmagadora maioria formado por jovens,
que faz hoje em Portugal, da Avenida de Berna à Rua Barata Salgueiro,
o percurso que fazia em Paris, da Rue d'Ulm ao Palácio Chaillot, a
geração do novo cinema português nos anos 50 e 60, para ver os filmes
preparados na prestigiosa Cinemateca Francesa por Henri Langlois,
cuja amizade por Félix Ribeiro e Bénard da Costa permitiu dar às
respectivas instituições o dinamismo requerido. Para acompanharem
estas retrospectivas, estiveram em Portugal cineastas de todo o
mundo, como Joris Ivens, Michelangelo Antonioni, Georges Franju,
Jacques Demy, Luis Berlanga, François Truffaut, Jacques Rivette,
Hansjurgen Syberberg, Budd Boetticher, Istvan Gaal, Judit Elek, Juan
Luis Buñuel, Helga Sanders-Brahms, Marcel Ophuls, Victor Erice e a
ensaísta Lotte F. Eisner, que veio falar de Fritz Lang.“ (Pina, 1986:
209)
Outra instituição pública participou activamente dessa “revolução cinéfila
silenciosa“: depois de alguma instabilidade e várias dificuldades vividas durante os anos
do PREC101, a Escola Superior de Cinema retomou a sua actividade e o ano lectivo 197576 foi uma espécie de recomeço do projecto pedagógico do curso criado no período
marcelista. Na opinião de José Bogalheiro (1988: 46), responsável pelo curso de Cinema
entre 1986 e 1995, os anos da viragem da década de 1970 para 1980 constituíram uma
“época cinzenta“ na história da escola:
101
O primeiro ano lectivo (1973-74) da Escola Superior de Cinema, integrada no Conservatório Nacional,
seria interrompido pelo 25 de Abril e pelo PREC que lhe seguiu.
207
“ (...) são os conflitos entre os gestores nomeados pelo
ministério e os professores, é a falta de recursos e de condições para
poder funcionar, é a existência de um corpo estudantil algo flutuante resultante da falta de professores, percursos curriculares
ziguezagueantes, desinteresse e abandono da Escola por parte os
alunos. Eu suponho, como dizia há pouco, que isto não é desligável da
situação concreta que se vivia na 'comunidade cinematográfica fora
da Escola. Quer dizer, nesta altura era provavelmente um reflexo
daquilo que se passava lá fora, embora a Escola, de algum modo,
sempre tenha tido com a profissão uma 'relação perturbada'.“
No entanto, esta foi a mais importante instituição superior de ensino de cinema
nos últimos 40 anos. Pelo quadro de professores passaram algumas das figuras mais
importantes do Novo cinema português, nomeadamente Alberto Seixas Santos, Paulo
Rocha, Fernando Lopes, António da Cunha Telles e António Reis. Alberto Seixas Santos,
que leccionou ininterruptamente entre 1980-2002, foi provavelmente a figura mais
marcante na instituição ao longo da sua existência. António Reis foi um dos professores
que mais marcou a escola, lecionando diversas disciplinas entre 1977-91, considerado
pelo realizador Joaquim Leitão, seu aluno na Escola, como “o professor que mais marcou
toda esta geração. Ele passou as coisas muito em termos de paixão, e isso é uma coisa
que me tocava e com a qual aprendi algo que não sabia que podia ser assim“. Daniel
Ribas (2014: 136) considera mesmo que a sua influência é “tão preponderante que
acaba por ser uma segunda figura paternal, tal como Oliveira fora nos anos 60“.
Ao longo de décadas, os mais internacionalmente premiados e reconhecidos
realizadores102 do cinema português passaram pela Escola Superior de Cinema, tendo
recebido uma formação técnica e estética que reflecte muito dos valores e crenças da
geração do Novo cinema português, nomeadamente a intransigência estética, o
acentuado carácter autoral e uma filiação de princípios no cinema artístico moderno.
Mais do que uma filiação na história do próprio cinema português, sobretudo através
dos professores, a ESC inicia também os seus alunos numa filiação no cinema moderno,
promovendo um corpus fílmico claramente definido e canonizado.
É precisamente a primeira turma de cineastas saída da Escola na viragem para os
anos 80 que pretende também ganhar o seu espaço no cinema português e tentar
influenciar o poder político. João Botelho, por exemplo, estará em muitas das “batalhas“
102
Meramente a título de exemplo, posso citar os nomes de João Botelho, Pedro Costa, João Pedro
Rodrigues, Miguel Gomes ou João Salaviza.
208
travadas no início dos anos 80 sobre o rumo do cinema português e, sobretudo, sobre a
intervenção estatal no apoio à produção103.
Penso que o papel da Cinemateca Portuguesa e da Escola de Cinema, que tem sido
geralmente desvalorizados ou mesmo ignorados, foi determinante em várias
transformações “silenciosas“ ou menos “visíveis“ que alteraram significativamente a
forma de se fazer cinema em Portugal. Acredito que a influência destas instituições na
formação e consolidação de uma cultura cinéfila e cinematográfica sobre várias gerações
de cinéfilos e aspirantes a cineastas foi fundamental e quantitativamente incalculável.
A 31 de Dezembro de 1979, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 533 esclarecida
definitivamente que “apoio estatal não significa intervenção do Estado“ e que, para
além da fiscalização “da boa aplicação dos dinheiros públicos e das escolhas dos
elementos orientadores das entidades públicas competentes“, o Estado iria assegurar
aos agentes do sector “a mais ampla liberdade criativa“ e a necessária autonomia
financeira.
O art. 2.º do mesmo Decreto-Lei n.º 533 determinava que a “assistência financeira
à produção de filmes pelo Instituto Português de Cinema“ passasse a ser orientada pela
Lei 7/71. Não deixa de ser irónico e surpreendente que depois de tanta discussão e de
tantas mudança, ultrapassado os sensíveis períodos revolucionário (1974-75) e pósrevolucionário (1976-77), as políticas públicas para o cinema regressassem ao antes do
25 de Abril, estabilizando os princípios orientadores gerais definidos pela Lei 7/71, a
legislação marcelista que uns apelidavam de progressista e outros de fascista. Sobre essa
legislação, João Mário Grilo (2006: 24) afirmaria que ela “introduz algumas soluções
financeiras extremamente progressistas“.
A 3 de Junho de 1980, a legislação que determinava o estabelecimento de um
“plano intercalar de produção que possibilitasse a realização de filmes de utilidade
social imediata e de concretização rápida“ (Decreto-Lei n.º 257 de 26 de Maio de 1975)
era revogado por se considerar que estava em curso a preparação de uma nova lei do
cinema e a reestruturação do IPC.
Como sublinha José Filipe Costa (2014: 130), apesar de todas as movimentações,
estratégias, propostas, projectos e afins, “nenhum novo regime jurídico substituiria o de
1971, que perduraria pelos anos 80 e 90.“ Apesar de todas os conflitos e cisões vividos
durante o PREC, o momento histórico para refundar o cinema português passara sem que
algumas das questões mais estruturais fossem reformadas:
103
Sobre esta questão, consultar Cunha, 2013b: 222-226.
209
“Mas o braço estatal acabou por não tocar naquilo que era o
essencial do modelo económico em que se moviam as distribuidoras e
exibidoras privadas, mesmo que ao longo do tempo tenha, de vários
modos, apoiado a distribuição de filmes cujo perfil não se encaixava
na lógica da máxima rentabilização lucrativa.
Por outras palavras, a complexa questão da difusão do cinema
português, num mercado de livre concorrência, continuaria a
assombrar a discussão sobre a atividade. A grande questão da
distribuição e exibição levantada com a Revolução continuaria
pendente, ressoando na atualidade. Em certa medida, a “viagem“
encetada naquela manhã de 29 de abril de 1974 pelas gentes da
produção que iam ocupar o IPC, acabou por se prolongar no tempo,
sem fim à vista. “ (Ibidem)
A restruturação mais significativa da SEC, que vigoraria até 1992, seria definida
pelo governo de coligação Aliança Democrática (AD) (Decreto Lei n.º 59/80, de 3 de
Abril), que a devolveria para a esfera da Presidência do Conselho de Ministros, e que
teve em Vasco Pulido Valente, enquanto Secretário de Estado Adjunto de Francisco Sá
Carneiro, o principal mentor (Ibidem). Ainda que num Conselho de Ministros de
Setembro de 1975 se tenha falado de um ante-projecto de Ministério da Cultura, e de
novo a seguir às presidenciais de 1976, só em 1981, durante um governo da AD, é que a
Cultura seria elevada à categoria de Ministério (Ibidem: 417-418):
“Com a chegada ao poder, em 1980, da Aliança Democrática,
liderada por forças de direita, abre-se uma ruptura com o poder dos
militares e o modelo de sociedade consagrado na Constituição de
1976. O que se traduziu numa profunda inflexão na política cultural
que vinha sendo seguida.
A SEC é reformada em Abril de 1980, mais tarde falar-se-á de uma
verdadeira refundação. Consagrou-se uma nova dependência
institucional - o Conselho de Ministros, de modo a acentuar o seu
carácter político. A reforma então decretada foi a mais longa de todas,
mantendo-se praticamente sem grandes alterações até 1989.
Numa clara substituição dos discursos políticos anteriores, a
tónica é agora colocada na defesa do património cultural, em especial o
de natureza edificada, assim como no acesso do povo à cultura
erudita, omitindo-se a questão de lhe facultar meios para desenvolver
a sua própria cultura.
Embora muito fragilizados, rapidamente os novos dirigentes da
SEC procuram pôr fim a todas as estruturas que haviam sido criadas para
apoiar e difundir a cultura popular, ou conotadas com acções de
mobilização das populações em defesa da Revolução. Entre as primeiras
medidas adoptadas figurava a drástica redução dos apoios aos
centros culturais regionais, às associações locais, mas também, se
inicia o processo de desactivação das instalações na zona de Belém,
símbolos por excelência da anterior política cultural.“ (Fontes, c: em
linha)
210
No plano mais geral da política cultural, segundo Eduarda Dionísio (1994: 332), o
final da década assistiu “ao regresso de alguns temas culturais dos primeiros meses da
democracia“, nomeadamente a “democratização da cultura“ e a “'fruição' dos 'bens
culturais'“, e a um progressivo “fazer de pazes“ entre os “agentes culturais“ e o poder
político.
211
3. Modos de produção no cinema português (1949-1980)
No presente capítulo, procurarei expor, com o maior número de documentos e de
pormenores possível, analisar e reflectir sobre a evolução nos modos de produção no
cinema português entre 1949 e 1980. Depois de analisar, no capítulo anterior, a política
pública que definia a principal narrativa para o cinema Portugal nas balizas cronológicas
definidas, é agora importante analisar as várias contra-narrativa que, ao longo do
mesmo período, procuraram questionar, contrariar, explorar ou transformar o cinema
português como foi sendo definido pelo poder político.
Ao longo das páginas que se seguem, farei um esforço para tentar documentar
exaustivamente os vários momentos onde foram mais ou menos visíveis, mais ou menos
conseguidas, muitas as tentativas de renovação do cinema português. O conceito de
modo de produção é central neste capítulo, procurando compreender a evolução do
cinema português nesse período em toda a sua complexidade, convocando diversos
aspectos para uma análise global que reconheça a importância dos aspectos estéticos e
estilísticos, mas também a influência de vários aspectos extra-fílmicos mas
fundamentais para a sua concretização, como a organização industrial e empresarial, a
circulação e recepção, as fontes e as formas de financiamento, entre outros. O conceito
de modo de produção parece-me o instrumento indicado para aplicar num estudo de
largo alcance como aqui proponho, que procura relacionar o cinema português com a a
economia, a política e a realidade social vivida em Portugal aos longo de três décadas da
segunda metade do séc. XX.
3.1. Neo-realismo
Eufemismo inventado para ocultar a expressão “realismo socialista“, tão adversa
ao Estado Novo, o neo-realismo foi um movimento artístico e ideológico que exerceu
uma importante contestação ao regime a partir de revistas culturais que abordavam
problemas de cariz ideológico e estético, e com origens em contexto internacional.104
Por causa das grandes linhas de orientação programática do movimento – a afirmação de
um novo humanismo, “constituído em função de uma forte preocupação com as
104
As principais publicações de inspiração progressista e filiadas em movimentos de pendor democrático
foram: a Seara Nova (fundada em 1921, Lisboa), a Vértice (fundada em 1942, Coimbra), O Diabo (1934-40,
Lisboa) e o Sol Nascente (1937-40, Porto).
212
condições sociais de existência humana“ (Reis, 1999: 598) – os neo-realistas mereceram
a designação, por parte do poder vigente, de “os intelectuais da miséria“105.
Questão complexa, como ressalva Michelle Sales, o neo-realismo português não é
um conceito ou movimento consensual:
“Por outro lado, o próprio conceito de neo-realismo em
Portugal, admitido pelos escritores da época um termo falho e
insuficiente para caracterizar o movimento, implica, segundo António
Pedro Pita, a constatação de um problema, pois 'o neo-realismo
constitui uma problemática, isto é, um questionamento sistemático
nos domínios da arte, da filosofia, da ciência e da política'.
O neo-realismo, ainda de acordo com António Pedro Pita, traz
na sua gênese uma questão, sobretudo ética e estética.
Superficialmente criticado por ser uma literatura de comunicação
imediata com um grande público e, por isso, desatenta à forma e à
experimentação, o neo-realismo, contrapondo-se aos movimentos
modernistas que o antecederam, contrapondo-se, sobretudo à posição
política da Geração da Revista Presença, representada pelo poeta José
Régio, foi facilmente apontado como um movimento de geração no
qual o conteúdo se sobrepunha à importância da forma.
(...)
A idéia de que a linguagem neo-realista como matéria
significante, ou seja como uma linguagem cujo fim é a própria
linguagem, não se realizou, de acordo com o pensamento de Carlos
Reis, é corroborada pela idéia de que a literatura neo-realista estava
imbuída de uma funcionalidade histórica que prejudicaria o debate
estético. Dito de outra maneira, ao neo-realismo foi atribuído o mito
de que o compromisso em representar a história a fim de conscientizar
os homens e transformar a sociedade limitaria o campo do exercício
formal e experimental. Porém, o que veio a se confirmar, seguindo o
pensamento de António Pedro Pita, ao apontar para a
heterogeneidade formal do grupo neo-realista português, é
exatamente o contrário: há por parte de alguns artistas, como Carlos
de Oliveira e Mário Dionísio, uma constante busca de aperfeiçoamento
da linguagem, representando o desejo de buscar a melhor forma de
representação do real, ou a forma que é melhor capaz de representar a
realidade.“ (Sales, 2010: 171-172)
Michelle Sales (Ibidem: 173-174) discorda da perspectiva defendida por Carlos
Reis e Christel Henry de que “a estética neo-realista em Portugal não conseguiu superar
a dicotomia forma/conteúdo“, acreditando em relacionamentos estéticos e políticos
entre o neo-realismo e o cinema moderno que despontaria nos anos 60. Mais do que
uma escola estética ou de uma posição política, Sales (Ibidem: 171) defende que o neorealismo pressupõe “um movimento de criação e produção artístico-cultural“ que
também envolveu o cinema português.
105
Expressão usada por José Manuel Pereira da Costa a propósito da avaliação do filme Nazaré (1953), de
Manuel Guimarães (Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1980: 167).
213
Também na forma cinematográfica, o neo-realismo foi uma questão polémica no
contexto português como internacional. Mark Shiel (2006: 1) lembra que poucos
momentos na história do cinema foram e são tão discutidos como o neo-realismo
italiano, sobretudo porque promoveu uma série de transformações no cinema clássico e
na sua transição para o cinema moderno. Este autor prefere não limitar cronológica e
geograficamente o neo-realismo mas antes entendê-lo como uma manifestação histórica
e cultural mais profunda e abrangente que, graças a uma série de inovações, alterou a
percepção do que se entendia por realismo e pela sua representação:
“(...) a preference for location filming, the use of
nonprofessional actors, the avoidance of ornamental mise-en-scène, a
preference for natural light, a freely-moving documentary style of
photography, a non-interventionist approach to film directing, and an
avoidance of complex editing and other post-production processes
likely to focus attention on the contrivance of the film image.“
(Ibidem: 2)
A este propósito, André Bazin (1991: 247-248, 267-268) destaca a importância do
movimento neo-realista para um novo olhar sobre o mundo, acentuando as
características atrás abordadas e uma adesão a um mistério do real. Christel Henry
(2006: 35) reconhece que o neo-realismo é um termo que se define com alguma
dificuldade, uma vez que ele se inscreve profundamente na história da cultura italiana
mas vai ser influenciado também pelo cinema russo dos anos 20, pelo novo romance
americano de Hemingway, Faulkner ou John dos Passos e pelo realismo poético francês
dos anos 30. Naturalmente, o neo-realismo conheceu uma evolução e fases distintas: “os
mestres“ que mais reconhecimento alcançaram (Roberto Rosselini, Vittorio De Sica,
Luchino Visconti e Giuseppe De Santis); outros cineastas mais moderados que se
aproximaram pontualmente ao movimento (Aldo Vergano, Pietro Germi, Alberto
Lattuada, Luigi Zampa e Carlo Lizzani); o “neo-realismo cor-de-rosa“ que procurou
aligeirar o drama com a comédia (Castellani, Luciano Emmer, Luigi Comencini, Mário
Monicelli, Ettore Giannini); e os “filhos do neo-realismo“, ou seja, realizadores mais
jovens que acusam nas suas obras mais modernistas várias influências do movimento
(Michelangelo Antonioni e Federico Fellini) (Ibidem: 44-83).
Leitão Ramos (2007: 523) é um dos autores que afirma que “o neo-realismo nunca
existiu, deveras, no cinema português“, apesar de a sua influência enquanto movimento
ter sido “muito vasta, multímoda e frutífera“. A aproximação de vários escritores neorealista à produção cinematográfica e o “ar do tempo que, historicamente, ia acenando
promessas de mudança“ (Ibidem: 246) terão sido os responsáveis por esse equívoco.
214
Também Roberto Nobre (1964: 158-184) considera que, neste particular, existem vários
“equívocos neo-realistas“:
“Quando, nestes últimos vinte anos [1940-1960], o cinema
português, prevendo adesão de simpatias no público e facilidades de
embaratecimento nas execução, tentou a estética neo-realista
segundo o modelo verista italiano não obteve êxito. A verdade é que
os filmes feitos não estiveram à altura de o merecer.
Isto não quer significar, no entanto, que o caminho não fosse
oportuno ou estivesse errado, mas apenas que foi desacertada a
interpretação do modo de se caminhar nele, mesmo quanto à noção da
sua base, isto é, quanto à interpretação do próprio conceito neorealista. Como já disse, houve entre nós várias antecipações nesse
aspecto, muito significativas e encorajantes. Os Lobos (e mesmo
Mulheres da Beira), Maria do Mar, Canção da Terra, Ala Arriba, grande
parte do Aniki-Bóbó, etc., pareciam predispor-nos para uma escola em
que não era necessária uma apurada aparelhagem de estúdio, nem
custosa encenação. Refiro-me, evidentemente, aos aspectos estéticos
da escola, e não, por enquanto, às implicações humanas e sociais que
muitos buscam nela, o que leva, prosélitos e antagonistas, a amá-la ou
a detestá-la por motivos alheios à arte, ao seu poder de expressão
estética, ética e intelectual. (...)“
A questão já era colocada em 1941, nas páginas da Seara Nova, quando o mesmo
Roberto Nobre alertava:
“(...) alguns, entre os quais me encontro, temo-nos batido pela
efectivação dum cinema, popular sim, mas humanizado, coerente,
observado, único capaz de ser compreendido por nós e por
estrangeiros, pois é o único caminho para que os nossos filmes tenham
carácter, verdade, profundidade. (...) Filmes arrancados à vida do
nosso povo, às suas alegrias, labutas e sofrimentos, sim. Mas sem fazer
marionetas à moda do Minho, e antes a dar-lhe humanidade e
verdade. Assim surgirá obra simples e grande, que pode mostrar-se em
toda a parte sem pedir desculpa. E não é só nos temas de província. Na
cidade também há bons temas no género.“ (Seara Nova, 10-V-1941)
Nobre, declarado defensor de um cinema com sentido humano e popular,
denunciava o cinema “popularucho“ e de “pseudo-folclore“, imposto durante a década
de 30, e reclamava um regresso à maneira como se retratou o povo em filmes como
Nazaré e Maria do Mar, ambos de Leitão de Barros, que mostravam “a sua humildade
dramática, e, nisso, os seus entusiasmos, desconfianças, raivas, egoísmos, ternuras e
heroísmos“ (Ibidem).
Vários foram os filmes que, por diversas razões, foram anunciados ou classificados
como neo-realistas: Pão Nosso (1940, Armando de Miranda), Aniki-Bóbó (1942, Manoel
de Oliveira), Serra Brava (1948, Armando de Miranda), Sonhar é Fácil (1951, Perdigão
Queiroga) ou Madragoa (1951, Perdigão Queiroga).
215
Com dois filmes nesta lista, Armando de Miranda é um caso interessante. Depois
de assinar alguns documentários, Miranda procurou, no primeiro filme, dar uma imagem
realista do Alentejo, pretendendo mostrar “o Alentejo tal como ele é, e não fabricado nos
estúdios!“. Apesar das intenções iniciais, o filme não haveria de convencer a crítica, que
acusava precisamente o filme de ter um “olhar turístico“:
“O argumento de Pão Nosso...é inconsistente. Só uma ideia
turística do Alentejo permitiria aquela confusão, entre os problemas
de um trabalhador irreal e de um lavrador irreal, a servirem de motivo
para a constante alteração dos vários planos das figuras principais e
das tomadas de vistas na charneca imensa. (...) Concluímos que nos
tínhamos enganado. O filme arrojadamente revolucionário envolverase numa atmosfera de misticismo ingénuo (...). Não é este o filme dos
camponeses do Alentejo, é uma fantasia sobre a vida do Alentejo e dos
camponeses (...), numa intenção socialista cristã (...); a Avé Maria
final também está muito deslocada. A população do Alentejo é a
menos religiosa do país. É impossível observar no Alentejo, em
qualquer parte do Alentejo, o quadro que Armando de Miranda
inventou“. (O Diabo, 3-VIII-1940)
O segundo filme, também rodado fora de estúdio, no caso na serra do Soajo, foi
lançado no Brasil como um filme de “inspiração neo-realista, pois a sequência foge a
tudo que já foi feito pelo cinema português, (...) à maneira dos mais fortes filmes do
cinema italiano“ (Diário Carioca, 12-VIII-1953: 7), mas a mensagem final de
reconciliação social e de redenção religiosa e mística não se coadunam com a mensagem
neo-realista.
Por contar com o argumento co-assinado por Leão Penedo e por abordar alguns
problemas sociais, Sonhar é Fácil também foi visto como uma tentativa de cinema neorealista, mas a matriz da comédia à portuguesa presente ao longo do filme, o happy-end
onde o espírito corporativo derrota a luta de classes demarcam inequivocamente este
filme dos pressupostos programáticos do neo-realismo. No seguimento, e praticamente
com a mesma equipa, Perdigão Queiroga realizaria Madragoa, um drama ambientado em
Lisboa com um enredo amoroso marcado por diferenças sociais, mas o final feliz
reconciliador semelhante ao anterior continuava a ser pouco neo-realista.
Naturalmente, o caso de Aniki-Bóbó também é particular porque o filme só foi
considerado neo-realista mais de uma década após a sua estreia. Num texto onde
aprofunda arqueologicamente a questão, Tiago Baptista (2007) esclarece:
“(...) À dificuldade de enquadrar este filme no cinema do seu
tempo, juntou-se mais tarde a dificuldade de o contextualizar na obra
subsequente de Manoel de Oliveira. Torna-se por isso difícil falar da
primeira longa-metragem de ficção de Oliveira sem falar da sua
recepção, processo não isento de algumas categorizações
216
problemáticas como foi, acima de todas, a que o relacionou
retrospectivamente, já na década de cinquenta, com o cinema neorealista italiano dos anos quarenta.
Pouco amado aquando da estreia em Dezembro 1942, AnikiBóbó foi reabilitado na década de cinquenta, em grande medida na
sequência da estreia e relativo bom acolhimento dos dois filmes
seguintes de Oliveira, O Pintor e a Cidade (1956) e O Pão (1959). AnikiBóbó passou então em sessões de cine-clubes, foi seleccionado para
festivais no estrangeiro (São Paulo; Cannes, 1961) e recebeu as
primeiras referências nos Cahiers du Cinéma (em 1952, por José
Augusto França; em 1957, por André Bazin). Foi no curto texto de
Bazin que surgiu, aliás, a primeira referência directa ao neo-realismo
italiano. Recém regressado de uma visita a Portugal onde privara
longa e intimamente com Oliveira e pudera ver Douro, Faina Fluvial
(1931) e O Pintor e a Cidade (1956) — mas não Aniki-Bóbó (!) —, Bazin
escreveu uma curta nota sobre o realizador português apresentando-o
como 'l’auteur de Aniki-Bóbó qui, dès 1944 [sic] et sous l’influence
directe du cinéma italien, s’accordait au grand mouvemente néorealiste.' Não tendo visto o filme, Bazin talvez se apoiasse na Histoire
du cinéma mondial de Georges Sadoul, publicada em Paris em 1949,
onde se estabelecia idêncitca relação (embora menos directa) entre o
filme de Oliveira e o cinema neo-realista italiano.
Salvo raras excepções, a crítica portuguesa resistiu a esta
'filiação precursora' do filme no neo-realismo italiano e as
reavaliações dos anos cinquenta foram no sentido de integrar AnikiBóbó numa certa tendência histórica do cinema português descrita
como 'lirismo documental' (Luis de Pina), 'verismo' (Roberto Nobre e
João Bénard da Costa), ou 'realismo poético' (Luís Neves Real e o
próprio Oliveira (...).
As semelhanças esgotam-se no campo formal porque é
impossível deixar de notar a ausência de um discurso social ou político
em Aniki-Bóbó.“
Por ser parcialmente rodado fora do estúdio e por ser interpretado
maioritariamente por crianças não-actores, o filme encaixaria no “modelo“ neo-realista.
Mas Michelle Sales (2010: 190) sublinha que o neo-realismo italiano também não foi tão
homogêneo assim, citando o pensamento revisionista de Peter Bondanella:
“Além de concluir que o neo-realismo não se bastou como um
movimento cinematográfico que se consagrou pelo uso de não-atores,
locações autênticas e roteiro mínimo, o pensador americano aponta
para o fato de estas características, tão facilmente apontadas como
adjetivos do cinema pós-guerra italiano, começaram a ser
implementadas ainda durante o período fascista e, muitas vezes, para
filmes em benefício do regime de Mussolini, já que, com a criação, em
1935, do Centro Sperimentale de Cinematografia, muito dos cineastas
consagradas pelo neo-realismo italiano tiveram ali sua formação,
como é o caso do próprio Rossellini – que realizou para o regime
fascista a trilogia La nave biaca (1941), Un pilota ritorna (1942) e
L´uomo dalla croce (1943) nos quais o estilo realista que o consagraria
já está posto“.
217
Em suma, segundo Bondanella (2006: 34) e Sales (Ibidem: 191), mais do que as
questões estéticas, o que unificou um corpo de filme sob a designação comum de neorealismo “foi a crítica social, inicialmente de fundo marxista“. Christel Henry (2006: 24)
reforça esta ideia, ressalvando que:
“(...) o neo-realismo foi para os intelectuais portugueses de
esquerda mais do que um acontecimento cinematográfico sem igual
na história do cinema, um ponto de partida para um discurso
periférico que mais tinha a ver com a ideologia e a política na sua
acepção mais vasta, mais do que com a própria arte cinematográfica“.
No entanto, a mesma autora (Ibidem: 312) acredita que “o movimento neorealista revelou-se totalmente ultrapassado na alvorada do ‘Cinema Novo'“,
nomeadamente do ponto de vista estético. Por seu lado, Michelle Sales (2010: 173-174)
sustenta que existe uma “relação do neo-realismo com o novo cinema do ponto de vista
político, mas sobretudo do ponto de vista estético“.
Sobre esta polémica, talvez seja interessante observar o que aconteceu fora de
Portugal. András Bálint Kovács (2007: 276-277) reforça a ideia de que o neo-realismo é
mais do que um estilo cinematográfico, pautando sobretudo por uma atitude ética e por
uma aproximação ao realismo como forma de filmar. O autor húngaro sublinha que
foram estas características que perpetuaram e mantiveram o neo-realismo actual mesmo
após as mudanças estéticas visíveis a partir do final da década de 1950 e o surgimento
do cinema moderno. Ao cinema moderno, o neo-realismo deixaria como herança o
realismo livre (free realism):
“(...) Italian neorealism was the most obvious model for this
kind of 'free realism', which is why neorealism became the most
widespread immediate reference for modern cinema relative to which
most filmmakers defined themselves, taking positions at various
distances from it at the beginning of the 1960s.
As a general rule we can assert that the deeper a film was
influenced by modernism, even in the realist trend, the farther it
strayed not only from classical style but from neorealism also.
However, that does not mean that all the new filmmakers of the
modernist mainstream were necessarily close to neorealism, and vice
versa, that a kind of neorealist revival occurred in national cinemas
where modernism appeared most forcefully.“
Se em Itália a influência do neo-realismo no início do cinema moderno foi mais
clara e consensual, em França, por exemplo, e apesar da excelente recepção crítica de
André Bazin e do seu grupo de discípulos críticos, os jovens realizadores do cinema
moderno relacionavam-se com o neo-realismo de uma forma extremamente ambígua:
218
“(...) They talked about neorealism a lot in their writings and
conversations, they even compared their own films especially to
Rossellini, but the way they utilized the elements of their realist style
only vaguely suggested neorealism, or even could be seen as a parody
of it. Neorealism interested them as moviegoers rather then as
filmmakers.“ (Ibidem: 278)
Também Fernando Mascarello (2006), no compêndio que organizou sobre a
história do cinema mundial, não hesita em colocar o neo-realismo italiano no capítulo
dedicado ao cinema moderno. Nesse capítulo, da autoria de Mariarosario Fabris (Ibidem:
217), a autora procura resumir a influência do neo-realismo no cinema contemporâneo:
“Adotando as palavras de Micciché, definiríamos o neo-realismo
como uma 'ética da estética' (...) que não teve tempo de se
transformar numa 'estética', pois, por não ter conseguido constituir
plenamente sua poética nem ampliar seus conteúdos, capitulou ante
os acontecimentos político-sociais que se desenrolaram na Itália do
pós-guerra. Ao sucumbir, entretanto, o neo-realismo não deixou de
alimentar o cinema italiano e mundial com seu impulso moral, sua
vocação transgressora, seu engajamento, representando, segundo
Hennebelle, 'um prelúdio à insurreição anti-hollywoodiana' (...) que
caracterizará as novas cinematografias dos anos 1960. (...)“
Finalmente, Mark Shiel (2006: 124) enumera vários casos de cinemas, entre eles
modernos, de várias partes do mundo onde é reconhecida a influência do neo-realismo:
“By this time, however, the long-lasting and widespread
influence of neorealism was in evidence as national cinemas around
the world incorporated many of its artistic innovations, examining
modernisation, urbanization and their political and philosophical
ramifications in various contexts. Only a few years after Rome, Open
City, one could see signs of a neorealist influence in the anti-formulaic
tendencies and low-budget aesthetics of some American film noirs as
They Live by Night (Nicholas Ray, 1948) and The Naked City (Jules
Dassin, 1948). Elsewhere, neorealism fed into movements for social
and political reform as in its influence upon Andrzej Wajda's A
Generation (1955), Satyajit Ray's Pather Panchali (1955), Youssef
Chachine's Cairo Station (1958), Nagisa Oshima's Cruel Story of Youth
(1956), Glauber Rocha's Barravento (1958) and Tómas Gutierrez Alea's
Memories of Underdevelopment (1968). In documentary film, the
Zavattinian model of unmediated interaction of camera and
environment was emuled in the cinéma vérité of Jean Rouch's La
pyramide humaine (1960) and the 'direc cinema' of Robert Drew's
Primary (1960). It's social concern was echoed on portraits of
working-class inner-city youth in Britain such as Karel Reicz's We Are
The Lamberth Boys (1959) and John Schlesinger's A Kind of Loving
(1962). In France, the nouvelle vague internalised many neorealist
lessons in their engagmente with an everyday Paris, filmed always on
location with natural light and highly mobile cameras, and often with
an improvisational approach to scripting and shooting. In Italy, the
neorealist influence continued in the work of Francesco Rosi and
Ermanno Olmi, in Gillo Pontecorvo's Battle of Algiers (1966) and,
219
perhaps most of all, in Pier Paolo Pasolini who built upon his first
screenwriting credit on Fellini's The Nights of Cabiria with Accattone
(1961), The Gospel According to Matthew (1964) and Theorem (1968).
Many of these filmmakers took for granted neorealism's emphasis on
the creative freedom of the director and took inspiration from its belief
in cinema as a medium of particular political and poetic potential. Not
surprisingly, this was especially evident in the work of filmmakers
attracted by neorealism's particular ability to explore relationships of
power, engagement and disaffection on the modern city — from film
noir, wich spoke in a dystopian way to processes of urbanisation and
modernisation in US society even more intense than some of post-war
Italy, to the diverse injustices of the postcolonial city in Chachine,
Alea and Pontecorvo.“
No caso português, Paulo Filipe Monteiro (2004: 31-33) sublinha que, para o seu
reconhecimento europeu, foi fundamental “uma invenção da tradição que,
inevitavelmente, significa a exclusão das tradições que a nova geração considera não
corresponderem à essência do cinema (moderno) português“, assim como a filiação em
Manoel de Oliveira e a “rejeição de quaisquer laivos de neo-realismo ou de cinema
politicamente militante“, como os casos dos filmes de Manuel Guimarães e Ernesto de
Sousa. Leonor Areal (2008: 393) lembra que a “própria definição de um marco inicial,
um ponto de viragem a partir do qual se aplica uma categoria estética ou de movimento“
será “taxativa e não corresponde a uma descrição das obras ou das realidades do
cinema, que de facto evolui de outro modo“.
Em suma, apesar de se reconhecer o passado cineclubista de vários dos
realizadores da geração de 60 (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo,
Alberto Seixas Santos, Fonseca e Costa, entre outros) — alguns dos quais foram
inclusive dirigentes cineclubistas — e de serem reconhecíveis várias influências técnicas
e estéticas do neo-realismo nos filmes produzidos por estes realizadores nos anos 60,
uma certa crítica mais formalista, como tentarei demonstrar mais adiante, insistiu no
afastamento do cinema moderno português dos sectores mais à esquerda da oposição
cultural, nomeadamente o neo-realismo e o cineclubismo.
O caso Manuel Guimarães é, no contexto português, exemplar desse debate sobre a
existência ou não de um cinema neo-realista português e sobre a eventual influência
deste ideário, literário e cinematográfico, sobre a geração de cineastas que surgiriam na
transição e no decorrer dos anos 60. Para além disso, mesmo durante os anos 60, o
debate sobre a presença ou ausência da estética neo-realista no cinema português
esteve presente na recepção crítica a vários filmes: Os Verdes Anos, Belarmino, Mudar de
220
Vida e Uma abelha na chuva, entre outros. Estes dois exemplos — Manuel Guimarães e
recepção crítica do Novo cinema português — serão agora analisados em pormenor.
Para concluir esta análise, recupero uma afirmação de Christel Henry (2006: 444):
“Resumindo, em Portugal, o neo-realismo foi um percurso
crítico e não uma concretização em termos fílmicos. Um percurso sem
dúvida obrigatório para a formação intelectual de esquerda, no seu
sentido mais abrangente, nesses difíceis anos 50.“
Apesar de alguns autores discutirem a existência ou não de uma cinema neorealista produzido em Portugal, o que é inequívoco é que a influência do cinema e dos
escritos neo-realistas numa geração de intelectuais portugueses foi uma realidade e isso
contribuiu de forma determinante para que o neo-realismo se afirmasse em Portugal
como um importante projecto de oposição cultural ao regime instalado, também no que
diz respeito ao fenómeno cinematográfico.
3.1.1. O caso Manuel Guimarães
Apesar dos filmes neo-realistas constituírem uma minoria no cinema produzido
nas décadas de 1940-1950, o plano de intenções desses filmes afirmava-se como a
alternativa mais concreta e consistente para o futuro do cinema português. Manuel
Guimarães é um dos casos mais singulares desse período. De esperança a desilusão na
tentativa de renovação do cinema português, a sua obra – em particular as suas três
primeiras longa-metragens – dividiu a crítica do seu tempo de uma forma pouco
habitual.
O primeiro contacto directo com o cinema ocorreu em 1942, quando Guimarães foi
assistente de realização de Manoel de Oliveira na rodagem de Aniki-Bóbó. Prosseguiu
uma carreira de assistente de realização com outros realizadores influentes no cinema
português: de António Lopes Ribeiro em Amor de Perdição (1943) e Frei Luís de Sousa
(1950); de Jorge Brum do Canto em Ladrão, Precisa-se (1946); de Arthur Duarte em O
Leão da Estrela (1947) e O Grande Elias (1950); e de Armando de Miranda em A Volta do
José do Telhado (1948).
Manifestamente fora da estratégia de uniformização cultural de António Ferro,
uma plêiade de intelectuais e artistas de diferentes orientações ideológicas tentou por
diversas ocasiões propor alternativas aos programas oficiais. A emancipação
221
cinematográfica de Manuel Guimarães coincidiu com esse período de reivindicação de
um novo cinema, que se desenvolveu sobretudo na recepção crítica aos filmes
produzidos por uma estrutura viciada e criativamente estagnada:
“Os filmes nacionais não acompanham a vida real, os
acontecimentos do país, melhor, acompanharam-nos segundo uma
determinada óptica de propaganda ou de acatitamento formal. (…) O
verdadeiro Portugal não se vê, escondido atrás de documentários
técnicos exaltantes das respectivas actividades, de jornais de
actualidades inaugurativos e propagandísticos, de filmes turísticos
acatitados e para ver as vistas, escondido ainda em fitas de fundo onde
se vão aproveitar os restos da comédia, os novos ídolos desportivos ou
canoros, o sangue e os toiros, o fado e o folclore.“ (Pina, 1977: 100101).
A defesa e valorização de um cinema diferente, longe do artificialismo e populismo
dominantes, e a recusa de um cinema conformista e de puro entretenimento — a
comédia revisteira e a “fita de barbas“ (adaptações literárias e históricas) —, apontavam
para um regresso à vida real e ao quotidiano. Esta exigência de um cinema de denúncia
e reflexão social contrariava os cânones oficiais que preferiam e promoviam um cinema
socialmente amorfo e politicamente inócuo.
A concepção do cinema enquanto arte eminentemente social, atenta às
transformações da sociedade, desenvolveu-se no contexto do debate acerca da
responsabilidade social das artes desenvolvida pelos intelectuais neo-realistas. O neorealismo, como já referi, foi um movimento artístico e ideológico que exerceu uma
importante contestação ao regime a partir de revistas culturais que versavam problemas
de cariz ideológico e estético.
Ao longo da década de 50, o cinema português conheceu algumas adaptações de
romances neo-realistas ou a colaboração de autores neo-realistas, dos quais, as obras de
Manuel Guimarães são as mais significativas. Em traços gerais, tanto Saltimbancos
(1951) como Nazaré, as duas primeiras longas-metragens de Manuel Guimarães,
respeitavam as grandes linhas de força do discurso programático do neo-realismo:
“Uma grande atenção ao mundo social e económico, bem como
às distorções que o sistema capitalista nele agudiza; a configuração de
um novo humanismo, justamente constituído em função de uma forte
preocupação com as condições sociais da existência humana; a
valorização dos componentes de conteúdo da obra literária, em
detrimento de preocupações de ordem formal; o privilégio da narrativa
como veículo preferencial de representação das contradições que
preocupam o Neo-Realismo“ (Reis, 1999: 598).
222
Rodado entre Junho e Julho de 1951, Saltimbancos estrearia em Janeiro de 1952,
tendo sido antecedido por algum entusiasmo nos meios cinematográfico e cultural
lisboeta, nomeadamente devido à esperança depositada no jovem realizador Manuel
Guimarães e à colaboração directa no filme do autor neo-realista Leão Penedo. Antes da
estreia, a revista Imagem publicou dois artigos de apresentação do filme: o primeiro,
ainda durante a rodagem, introduz o tema do filme e o elenco, com destaque para
realizador e argumentista; e segundo artigo reproduz uma conversa com a protagonista
Helga Liné.
Aquando da estreia, o filme Saltimbancos começou a ser publicitado na imprensa
portuguesa por um conjunto de quadros que pretendiam valorizar o filme pela sua
singularidade e originalidade no contexto cinematográfico português.
“Um filme edificado com o esforço e sacrifício de todos os seus
artistas e técnicos!“
“Um caminho novo para o cinema português
Um filme que fala á alma do povo mas não especula com o
sentimento popular.“
“Um filme sério, honesto, diferente!“
“O primeiro filme português de categoria internacional.
Uma história humana escrita por Leão Penedo.
Um filme trágico e risonho como a própria Vida.“
“Apesar da tragédia há lugar para o amor.
Uma paixão nasceu e triunfou quando tudo parecia perdido.“
“Uma farsa? Um drama? Uma comédia? Um filme diferente!
Um filme que abre novos horizontes ao cinema nacional.“
“Um filme trágico e risonho como a própria vida! A
vagabundagem forçada dum punhado de gente que diverte os outros
sem cuidar de si.
Um filme feito com a verdade das horas amargas.“
A ideia orientadora desta campanha publicitária seria demarcar Saltimbancos de
toda a produção nacional recente: “MANUEL GUIMARÃES rubricou-a sem qualquer
intuito comercial, fazendo um trabalho absolutamente diferente de todos os restantes
filmes portugueses“. Outra ideia presente no texto publicitário que acompanhava a
promoção do filme parece ser a aproximação ao neo-realismo italiano:
“SALTIMBANCOS, distribuição da LISBOA FILME, é uma
fita portuguesa que marca um caminho totalmente diverso às
películas nacionais, com uma realização mais profunda e
humana, orientação que consagrados cineastas com ‘cátedra’
223
estão actualmente dando aos seus trabalhos, na nítida evolução
que a 7.ª arte está sofrendo.“
As críticas publicadas na imprensa diária parecem nortear-se essencialmente por
premissas ideológicas. Manuel Moutinho, em crítica publicada no Diário da Manhã (27I-1952: 4), acusa o filme de pretender agradar a uma “reduzida elite, falsa elite, que
detesta o cinema-espectáculo, esquecendo-se de que ele é, principalmente,
espectáculo“. Para este crítico, a adaptação cinematográfica resultou muito retórica e
perdeu o realismo e autenticidade da obra literária que o inspirou, apesar de considerar
a obra de Leão Penedo um “livrinho de insignificante literatura“.
Perante as críticas de teor ideológico, a revista Imagem, dirigida por Baptista
Rosa, dedicou um número especial a Saltimbancos. Na prática, este era um significativo
manifesto de “defesa coral“ do filme e do seu realizador que contava com a colaboração
de destacados intelectuais e nomes da cultura portuguesa de então, como Fernando
Namora, Alves Redol, Piteira Santos, Roberto Nobre, Luiz Francisco Rebello ou José
Cardoso Pires, apesar de se rever nos textos que o entusiasmo estético não seria muito
convicto (Ramos, 2007: 248).
O segundo filme de Guimarães, Nazaré, seria rodado logo entre Maio e Junho de
1952, enquanto o primeiro filme ainda estava em cartaz, e estrearia ainda nesse ano, a
12 de Dezembro. Alguma imprensa, particularmente a popular revista Plateia, seguiu
com alguma atenção os desenvolvimentos relacionados com o filme, nomeadamente a
escolha dos intérpretes e a rodagem na vila piscatória mais cinematográfica de Portugal.
Pela leitura atenta da publicidade feita na imprensa, depressa se constata que esta
segunda longa-metragem de Manuel Guimarães apostava mais na imagem e reputação
dos seus intérpretes do que na originalidade da trama ou na reputação do seu
realizador:
“Virgílio Teixeira. Num papel diferente de todos os que tem
desempenhado na sua carreira de artista cinematográfico, Virgílio vai
mostrar uma faceta inédita do seu temperamento.“
“Quem viu Saltimbancos vai poder sentir que, para além de uma
beleza expressiva de mulher, há uma actriz de cinema em plena
ascensão, tal a maneira como Helga se integrou no ambiente nazareno
que a envolvia.“
“Artur Semedo. O papel de Arrais do filme Nazaré não podia
encontrar um intérprete tão à altura de seu talhe psicológico. Pela
dureza que esconde um fundo humano, pelo heroísmo com que
defronta o mar, o público vai achar-se perante um autêntico pescador
224
da Nazaré, apreciando até onde é possível obter-se a fusão do artista
com o personagem que faz viver.“
Tal como no filme anterior, a recepção crítica a Nazaré variou conforme o
posicionamento ideológicos dos seus autores: enquanto os defensores salientavam as
“boas intenções“ do realizador e da obra e todas as contrariedades como atenuantes
(Diário Popular, 14-XII-1952: 2-4; Diário de Lisboa, 13-XII-1952: 5), os detractores
desconfiavam mais uma vez dos objectivos políticos da colaboração dos “profetas da
desgraça“ em filmes portugueses (Diário da Manhã, 14-XII-1952: 4).
Depois de Saltimbancos, Guimarães insistia novamente num registo fílmico que
denota claras influências de estéticas renovadoras vindas da Europa, nomeadamente do
neo-realismo italiano. Na época, vários autores apontavam o trajecto da recente
cinematografia italiana como exemplo a seguir, nomeadamente pelas similaridades que
supostamente aproximavam o cinema português do italiano anterior à guerra: as
mesmas dificuldades conjunturais e o semelhante percurso político e cultural na década
de 30 faziam prever que também no cinema nacional fosse possível uma revolução
idêntica à italiana.
Adaptada a partir de um romance de Alves Redol, a história de Nazaré não
apresentava contornos muito complexos ou originais. Apesar do conteúdo não ser
inédito, a abordagem proposta por Guimarães era claramente diferente das ensaiadas
por Leitão de Barros. Ao contrário do que sucedia em Maria do Mar ou Ala-Arriba, onde
predomina a exposição dos usos e costumes locais sob uma perspectiva folclórica
contemplativa, Nazaré dava maior destaque aos aspectos sociais segundo uma óptica
neo-realista. O filme está repleto de figuras e de situações que revelam as condutas
sócio-culturais e ético-morais do pescador nazareno, nomeadamente a valorização do
conflito de classes e a desigualdade social.
A valorização do conflito de classes e da posse da propriedade estão presentes na
relação entre o arrais Manel Manata e Ti Augusto Mar Ruim (Luís de Campos), um rico
armador da região temido por todos pelo seu autoritarismo, mas desrespeitado pelos
pescadores porque “nunca foi ao mar“. Este “burguês“ local é um homem sem escrúpulos
que explora os pescadores da sua comunidade e que tenta aproveitar-se de Maria da
Nazaré num momento de maior fragilidade desta. A oposição entre a precariedade das
condições de vida e de trabalho dos pescadores e respectivas famílias e a ostentação
gratuita dos privilegiados reforça as clivagens sociais e a desigualdade entre as classes.
225
A consciência de classe e da condição de pescador está presente entre os homens
que integram o grupo liderado pelo arrais Manel. O espírito colectivo, a entreajuda e a
solidariedade de grupo está sempre presente nas diversas sequências da labuta marítima
ou dos hábitos sociais da comunidade.
Às estereotipadas personagens principais, o filme acrescentava ainda as
personagens-tipo mais características do folclore nazareno: as mães e noivas fieis e leais
muito sofredoras com os sustos e as mortes no mar; os jovens rapazes que tentam
afirmar-se socialmente como adultos através da pesca; os sempre respeitados idosos,
como o Ti Manel Peixe Mau (José Victor), que, com todas as suas histórias, são os
melhores conselheiros no que respeita ao amor e à morte.
Apesar de recusar o habitual folclore, e para um filme de ruptura como se
anunciava e como era esperado, Nazaré denota diversas semelhanças com o tipo de filme
populista e ruralista tão profícuo nas décadas de 30 e 40. Nitidamente influenciado
pelas referências estéticas de Maria do Mar, o realizador recorreu às esgotadas
sequências da faina diária de pesca, dos choros colectivos das mulheres na praia, dos
bailaricos e cantigas na praia e das esforçadas tentativas de filmar os pescadores no mar.
Invariavelmente, Nazaré relançou e acalorou o debate acerca das possibilidades
de existência dum cinema neo-realista produzido em Portugal. Um dos críticos de
referência das décadas de 40 e 50, Roberto Nobre (1964: 160-164), incluía esta obra
entre os “equívocos neo-realistas“ que nasceram da precipitação de alguns entusiastas e
da necessidade de renovação da cinematografia nacional. Vitima dos “lugar-comum das
ideias, das estéticas“, o neo-realismo cinematográfico viu-se frequentemente reduzido
ao rótulo simplicista de “arte despenteada“ (Ibidem). Rejeitando este rótulo, Nobre
(Ibidem) lembra que “só muito aparentemente as obras-primas do cinema neo-realista
italiano são simples, ocasionais e despreocupadas.“
O próprio cartaz promocional do filme é uma ilustração com traços nitidamente
neo-realistas. Ilustrativo e simbólico, o cartaz mostra duas mãos ensanguentadas
agarradas a um remo sobre um fundo dominado por uma onda selvagem. As mãos
sofredoras parecem agarrar o remo até ao limite das forças humanas, numa luta desigual
contra a natureza, uma luta constante pela sobrevivência e pela dignidade social. O
sentido colectivo da classe e da luta está expresso simbolicamente nestas mãos
despegadas de um qualquer corpo concreto, as mãos e os dedos como entidades plurais
e abstractas, que não individualizam.
226
Noutro sentido, mais político-ideológico, o cartaz também pode ser lido como
uma valorização da resistência cultural e ideológica do movimento neo-realista ao
regime vigente, ou seja, a luta desigual da oposição neo-realista contra um regime de
censura e opressão ditatorial institucionalizado. Em 1953, num ofício enviado
directamente pelo próprio director do SNI ao próprio Presidente do Conselho, José
Manuel Pereira da Costa resumia a Oliveira Salazar, em breves palavras, a posição do
regime acerca dos filmes adaptados de romances neo-realistas:
“Nem por divertimento nem por obrigação pude ainda ver o
filme ‘Nazaré’. A realização é inteiramente de iniciativa particular e
tem raízes naquele grupo de ‘intelectuais da miséria’ ao qual nunca
são estranhas intenções políticas e sociais em arte e em literatura“
(Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1980: 167).
De uma forma esperada, o regime, e a censura em particular, ainda não estavam
preparados para revelar a dura realidade da vida do pescador, preferindo uma visão mais
corporativista e romântica da sua realidade. Tal como acontecera com Saltimbancos,
também este Nazaré foi desfigurado pela acção da censura prévia, em particular uma
passagem que o próprio realizador muitas vezes relembrou: um pescador desesperado
vê-se obrigado a penhorar o próprio casaco que o agasalha para se poder alimentar e à
sua família. Ao que parece, Henrique Tenreiro, presidente da Direcção da Junta Central
das Casas dos Pescadores e reconhecido ‘patrão das pescas’, ficou muito
susceptibilizado com esta sequência do filme que punha em causa a imagem pública do
pescador propagandeada e difundida pelo Estado Novo, o eterno trabalhador remediado
que vive na alegria da pobreza (Cleto, 1979: 24).106
Tal como Saltimbancos, a recepção crítica a Nazaré variou conforme o
posicionamento ideológico dos seus autores. Os argumentos publicados assumiram uma
dualidade opinativa inconciliável: os defensores salientavam as “boas intenções“ do
realizador e da obra e todas as contrariedades como atenuantes; os detractores
desconfiavam dos objectivos políticos da colaboração dos “profetas da desgraças“ em
filmes portugueses. Dos primeiros, os argumentos mais frequentes apelavam à
“sinceridade“, “honestidade“, “autenticidade“ e “seriedade“ da obra e dos seus autores,
Manuel Guimarães e Alves Redol.
Os nomes mais próximos dos círculos neo-realistas e das reivindicações
renovadoras para o cinema português ressalvavam o carácter alternativo da obra em
106
Leonor Areal, na sua tese de doutoramento (2008: 340-342), faz uma análise pormenorizada ao guião e
ao relatório de censura ao filme.
227
relação à produção dominante e a tentativa de consolidar um cinema neo-realista.
Contudo, a imprensa mais conservadora e afecta ao regime, nomeadamente o Diário da
Manhã (14-XII-1952: 5), não dava tréguas ao avanço neo-realista. Apesar de reconhecer
as características alternativas do autor e do próprio filme, o crítico Manuel Moutinho
não se deixou convencer pelas “boas intenções“ anunciadas e denunciava os objectivos
ideológicos que norteavam e estavam presentes na obra.
Tal como a crítica cinematográfica de então, também a produção historiográfica
em torno do cinema português se dividiu em relação a Guimarães e à sua obra. As
súmulas históricas do cinema português mais divulgadas — da responsabilidade de
autores como João Bénard da Costa ou Luís de Pina — fazem referências breves e pouco
abonatórias à obra de Manuel Guimarães, não hesitando em aproximá-lo dos “meios de
esquerda“ e dos “intelectuais de esquerda“, desvalorizando a originalidade da sua
cinematografia (Costa, 1991: 108). Outros autores, menos divulgados, como Henrique
Alves Costa (1978: 104), lembram Manuel Guimarães como “um homem simples,
modesto, sincero, honesto, que não ignorava nem escondia as suas limitações, que
aguentava com estoicismo os seus desaires, na esperança sempre adiada de um dia
poder dar a medida total das suas capacidades“. No mesmo sentido, Roberto Nobre
(1964: 172-176) sublinha que Guimarães foi o realizador que mais tentou “atingir o neorealismo“, uma figura cheia de intenções que, devido a diversas dificuldades, nunca
logrou superar as expectativas criadas. Jorge Leitão Ramos (1989: 191-192) ressalva
que Manuel Guimarães foi “o único que emergiu“ da sua geração e, “não podendo
receber franco aplauso merece, pelo menos, simpatia“.
A sua terceira longa-metragem, Vidas sem Rumo, foi um momento de viragem na
carreira de Manuel Guimarães. Enquanto projecto, Vidas sem Rumo existia pelo menos
desde 1948, antes mesmo de Saltimbancos e Nazaré. No entanto, a sua rodagem só
começaria em 1952, com um segundo argumento feito em colaboração com Alves Redol.
Vidas sem Rumo haveria de sofrer inúmeros cortes da censura e o realizador só o deu por
concluído em 1956, depois de ter filmado uma segunda vez um número significativo de
cenas e de ter substituído uma actriz, para conseguir que o filme resultante tivesse
ainda inteireza. Ainda assim, o filme só seria aprovado com cortes da censura. Leonor
Areal faz uma interessante análise do filme:
“Essa história que se esconde em três linhas de uma menção
jornalística é uma história de gente pobre e sem esperança,
personagens que não correspondem em nada aos clichés do retrato de
cidade activa e trabalhadora que as banais imagens iniciais nos deram.
228
Vidas Sem Rumo intenta um retrato aprofundado de uma população
urbana até então quase ausente do cinema – pela escolha das
personagens mais marginais de entre os marginais: vadios, pedintes,
estivadores, aleijados, velhos, negros, contrabandistas, prostitutas,
varinas, etc.
(...)
A trama desenvolve-se com simplicidade e tudo acontece em
sequência temporal, no espaço de dois dias e duas noites, em que
seguimos a acção atrás dos passos relatados pelo narrador. O
espectador terá entrada nas casas dos personagens, ouvindo-lhes as
conversas, as queixas, as zangas, os beijos – tudo o que o narrador não
viu mas imaginou (...). A narrativa desenvolve-se como um mistério
policial cujas lacunas o espectador vai desvendando uma por uma.
(...)
Na escolha destas personagens marginais, revela-se um partipris, um interesse declarado pelo mundo dos miseráveis, os
“injustiçados“ da vida, poderia dizer-se com a ressalva de que neste
olhar não há qualquer visão justiceira nem sequer uma acusação
implícita à injustiça social. O filme — através do olhar compassivo do
narrador, alter-ego do olhar do realizador — constata, observa,
compreende, mas não tira conclusões. O narrador putativo, e com ele o
espectador, é levado a identificar-se com os sofrimentos das
personagens e com a inevitabilidade da sua condição existencial.“
(Areal, 2008: 344)
Estreado em Setembro de 1956, a publicidade ao filme assentava precisamente nas
suas próprias dificuldades de produção, ainda que não o declarasse explicitamente por
causa da vigilância da censura:
“Uma jornada inédita nos anais do cinema nacional.
(...)
Um filme Português. Diferente! Realista! Estranho! Humano!
Poético!
(...)
Uma história nova sobre muitos dramas ignorados das vielas…
(...)
Um filme feito com corajosa sinceridade! (...)“ (Diário de Lisboa,
12-IX-1956: 4)
“A mais discutida produção do cinema nacional. Uma história
realizada com corajosa sinceridade“ (Idem, 19-IX-1956: 5)
“Um êxito que representa um violento grito de protesto do
público contra todos os derrotistas“ (Idem, 26-IX-1956: 5)
Manuel Moutinho, em crítica publicada no Diário da Manhã (14-VI-1956: 4),
parece justificar os cortes da censura denunciando as pretensões ideológicas do
realizador que tentou “fazer mais um ensaio português de cinema político“. Alves Redol
229
também é visado: “a sua pseudo-sequência, os seus diálogos são literária e
dramaticamente muito inferiores.“ Tecnicamente, as dificuldades financeiras e
materiais parecem justificar a mediocridade com que o crítico avalia o filme. Por seu
lado, o crítico “F.“, do diário República (13-9-1956: 4), considera que Vidas sem Rumo
representa “um admirável esforço de integração da cinematografia portuguesa em novos
moldes, que não tenham os touros, os fados, os chamados ambiente típicos e turísticos –
que, afinal, não o são.“
Estas duas posições são exemplarmente demonstrativas da forma como a crítica
cinematográfica da época dividiu a sua apreciação da obra de Manuel Guimarães em
função das suas referências ideológicas. Invariavelmente, a recepção crítica mais
próxima dos valores estadonovistas, nomeadamente os círculos católicos e
conservadores, não pouparam as primeiras três obras do realizador, denunciando
sobretudo as suas pretensas intenções neo-realistas. Já a crítica mais oposicionista à
política cultural do regime cerrou fileiras na defesa e no apoio ao jovem cineasta, apesar
de reconhecer debilidades técnicas e artísticas nas obras em questão.
“Sem qualquer dúvida, pode-se considerar que a censura a esses
filmes de Manuel Guimarães foi movida por razões puramente
ideológicas. A declarada influência da literatura neorrealista neles foi
vista pelo regime como uma ameaça à sua organização e ordem
política. O tratamento da crítica mais conservadora e os próprios
relatórios de visionamento dos filmes pelos censores não deixam
margem para dúvidas, tratou-se claramente de uma censura
ideológica.“ (Sales, 2013: 167)
Na época, o jovem realizador ainda entusiasmou a generalidade da crítica que, de
forma mais ou menos declarada, valorizou as tentativas de ruptura com o velho cinema.
Apesar da defesa feita por nomes ligados ao neo-realismo e à resistência cultural ao
regime, os mesmos que já se haviam embandeirado antes para defender Saltimbancos, as
esperanças depositadas em Guimarães foram-se esvanecendo, perdendo-se o
entusiasmo inicial à volta deste jovem promissor.
O próprio cineasta, devido às enormes dificuldades financeiras e às fortes
mutilações impostas pela censura oficial, acabou por “ceder“ ao mercado. E o momento
de “cedência“ ou de “viragem“ na sua carreira aconteceria com o filme A Costureirinha da
Sé:
“Senti-me perdido, desorientado, vencido, desmoralizado. Sofri
uma enorme depressão, uma terrível angústia (...) Ninguém sonha
hoje os sacrifícios e o heroísmo que eram necessários para se fazer um
filme independente e sem apoios financeiros...“ (Guimarães apud
Alves Costa, 1978: 106)
230
“'A Costureirinha da Sé' foi, a seguir, o resultado duma
depressão moral e do cansaço total. Engolido pela engrenagem, tinha
de sobreviver com a responsabilidade às costas de centenas de contos
de prejuízos com os filmes anteriores. Ninguém queria nada comigo.
Era uma espécie de realizador maldito cá na terra. Este último filme —
feito com o intuito de me salvar... — foi outro fracasso e fiquei mais
empenhado do que antes. Não tinha mais qualquer oportunidade.
Tornei-me novamente assistente de outros realizadores e voltei às
artes gráficas até surgir a possibilidade de 'O Crime de Aldeia Velha' e
depois a de 'O Trigo e o Joio'.“ (Guimarães apud Duarte, 1975: 29).
De resto, as circunstâncias que o levaram a, em 1957, ter voltado a trabalhar nas
artes gráficas e na ilustração e de, em 1959, ter exercido funções de assistente de
realização de António Lopes Ribeiro em O Primo Basílio, indiciam que a sua situação
financeira não seria confortável.
Comédia musical baseada numa popular opereta de Arnaldo Leite e Heitor Campos
Monteiro, que fizera muito sucesso comercial uns anos antes, A Costureirinha da Sé
assumia o tom de uma crónica bairrista do Porto, “através de uma aguarela viva de
costumes populares, em que se sublinha a faina ribeirinha e o formigueiro humano da
laboriosa cidade“, que contava a história de uma frágil e ingénua costureira chamada
Aurora, uma jovem das origens humildes do bairro da Sé, que trabalhava num atelier de
costura e estava apaixonada por Armando, motorista de táxi, mas por quem teria de
disputar uma “batalha amorosa“ com uma vizinha.
Estreado a 11 de Fevereiro de 1959, primeiro no Porto e só duas semanas depois
em Lisboa, este seria o maior sucesso comercial de Manuel Guimarães, talvez também
porque era protagonizado pela cançonetista Maria de Fátima Bravo, então no auge da
sua popularidade. Ironicamente, como observa Leonor Areal, com este filme o cineasta
voltaria a ser alvo de “censura“, mas distinta da anterior: “a censura geral (a outra
censura, a do juízo dos críticos) que não estava preparada para esse desvio ideológico e
que doravante tomaria Manuel Guimarães como um proscrito da história do cinema.“
(Areal, 2008: 332)
Apesar da presença de Manuel de Azevedo como assistente de realização, os
colaboradores habituais de Guimarães não participaram neste filmes. Novidades eram as
colaborações de Perdigão Queiroga na direcção de fotografia e de Jaime Mendes na
direcção musical, figuras com vasta experiência no cinema português de cariz mais
comercial.
231
Em suma, para a crítica, o filme parecia ditar o fim de linha para a carreira
cinematográfica de Guimarães:
“Considerado pela generalidade dos críticos como a nódoa da
carreira de Manuel Guimarães, foi este o filme que lhe destruiu a
reputação, penalizando-o com a desvalorização da sua obra por todo.
Os motivos para este descrédito tão forte residem na opção pelo género
da comédia e na “transigência“ com o cançonetismo, que era (já desde
António Ferro) considerado a pecha da cinematografia nacional,
virada para o êxito comercial fácil e subsidiária do teatro de revista. À
época, o discurso crítico execrava o “popularucho“ do nosso cinema e
Guimarães cometeu o pecado de executar esta pirueta inesperada,
contrariando todas as expectativas depositadas nele, como autor
“sério, honesto e sincero“.“ (Ibidem: 346)
Apesar de tudo, Leonor Areal (Ibidem: 346-347) reavalia o filme e aponta algumas
características que não seriam tão “inéditas“ ou “incaracterísticas“ ao percurso estético
e ético do realizador portuense:
“(...) Visto a distância de 50 anos e sem os preconceitos
moralistas daquela época, a Costureirinha apresenta características
originais e é portador de uma ironia perspicaz sobre a sua actualidade
e sem complexos ideológicos, faceta desconhecida do temperamento
de Manuel Guimarães.
Este é aliás um dos filmes de Manuel Guimarães mais atento à
transformação da realidade social contemporânea. Ao debruçar-se
sobre a pequena-burguesia em ascensão, Manuel Guimarães presta
atenção a uma mutação que precisamente tem, como novo paradigma,
a cultura de televisão, nesse ano introduzida em Portugal, com os seus
concursos e publicidade. A vontade de ascensão social aparece nas
preocupações das várias personagens e tem aqui o barbeiro como
representante da cultura erudita e o acordeonista como a figura
simbólica do poeta sonhador e sentimental. Aliás, é curioso observar o
reaparecimento dos saltimbancos do primeiro filme, aqui já
urbanizados, na família que tem uma barraca de tiro na feira.“
(Ibidem: 346-347)
Leonor Areal (2008: 347) considera mesmo que “apesar da sua alegria televisiva e
fantasiosa“, A Costureirinha da Sé é um filme “bastante realista e pouco idealista“ e,
“mais do que pertencer ao género do nacional-cançonetismo, este é um filme sobre o
nacional-cançonetismo“, que recusa propositadamente o melodrama e que é pontuado
recorrentemente por uma “ironia essencial“ (Ibidem: 348-349).
Também por este período, Manuel Guimarães começa a realizar algumas curtasmetragens documentais: As Corridas Internacionais do Porto (1956, prod. Lisboa Filme),
XXX Volta a Portugal em Bicicleta (1957), Vinhos Bi-Seculares (1961), Porto, Capital do
Trabalho (1961) e Barcelos (1961). Pelos género de filmes, não é estranho que Manuel
Guimarães os tenha realizado e, em parte, produzido, provavelmente por razões de
232
ordem financeira, ou seja, para recuperar algum dinheiro investidos nos filmes
anteriores ou para preparar projectos futuros.
Em 1959, inspirado em acontecimentos verídicos ocorridos duas décadas e meia
antes na aldeia de Soalhães, em Marco de Canavezes, Bernardo Santareno escrevia uma
peça de teatro intitulada O Crime de Aldeia Velha: “uma mulher foi queimada viva por,
supostamente, estar possuída pelo diabo, tendo os seus executantes em seguida rezado
para que a vítima ressuscitasse“ (Palinhos, 2013: 437).
Apesar de alguns autores apontarem Cunha Telles como o autor do projecto, e de
ter escolhido Guimarães para o realizar, o próprio produtor disse à imprensa da época
que o projecto era do realizador e esse foi precisamente um dos motivos de interesse
para ele se associar enquanto produtor:
“(…) Acontece que, de momento, surgiu a oportunidade de
produzir ‘Crime de Aldeia Velha’, e como de forma alguma quero estar
parado, e o assunto me interessou, não hesitei.
(…)
De há muito tempo que Manuel Guimarães trabalha neste filme.
A preparação feita com cuidado, tempo, reflexão e competência é
excelente realidade em Manuel Guimarães. Interessei-me pelo filme
confiante nas qualidades de Guimarães e, também, perante a leitura
do guião pronto a filmar.“
(António da Cunha Telles apud Rádio e Televisão, II-1963)
Leonor Areal (2008: 332) observa que esta colaboração entre Cunha Telles e
Guimarães “indica algum apreço da geração do novo cinema pela obra do veterano“. De
facto, apesar de ter desiludo muitos dos seus defensores da sua fase mais “neo-realista“,
esta colaboração com Cunha Telles, o “produtor do Cinema novo“, é um indicador
suficientemente esclarecedor de algum reconhecimento por parte da nova geração de
cinéfilos que passaria à realização na década de 1960. A par de Manuel de Oliveira,
Manuel Guimarães é uma das excepções que a nova geração reconhecia do cinema
português do passado e do presente, sobre tudo como exemplos “de uma ética singular e
de um percurso marginal“ (Cunha, 2013: 175).107
No filme destaca-se ainda a rodagem em cenários reais e a fotografia do francês
Luc Mirot, responsável pela mesma função em Os Verdes Anos, uma das “marcas“ das
Produções António da Cunha Telles. Por outro lado, faltam ao filme de Guimarães outras
características atribuídas ao “modo de produção“ de Cunha Telles: construção abstracta
107
Por outro lado, como documentarei mais adiante, de acordo com os arquivos do SNI, António da Cunha
Telles também apresentou a concurso para apoio à produção onde propunha produzir projectos com
realizadores esteticamente tão diferentes como José Fonseca e Costa, Manoel de Oliveira, Herlânder
Peyroteo ou Fernando Garcia.
233
da realidade, subjectividade no olhar do realizador e um uso narrativo do som na
montagem e na mise-en-scéne.
Como alerta Luís de Pina (1986: 161), a narrativa do filme conservava a estrutura
da peça teatral de Bernardo Santareno e não dava “muita liberdade ao realizador“, mas a
marca de Guimarães era visível nomeadamente no “ambiente“ do filme: “a pobreza, o
isolamento, a superstição, a atraso, enfim“.
Apesar da colaboração com o “produtor-milagre“ do cinema português, a produção
do filme não deixo de ter alguns contratempos. Em Abril de 1964, Rui Gomes queixavase à revista Rádio e Televisão (4-IV-1964: 14) que a produção do filme “portou-se“ de
“forma nada simpática“, porque havia contratado um período de rodagem de dois meses
e ela já contava cinco meses e ainda não estava concluída.
No entanto, no ano seguinte, Cunha Telles voltaria a associar-se como co-produtor
de um filme de Manuel Guimarães, agora baseado num romance de Fernando Namora. O
Trigo e o Joio (1965) seria, na opinião de Leonor Areal (2008: 351), “o último filme da
linha estética neo-realista que caracteriza a obra de Manuel de Guimarães“, onde os
protagonistas voltam a ser “os marginais da sociedade“, num filme “sobre o modo de
organização social do trabalho rural, particularmente descrevendo as migrações
sazonais de trabalhadores do norte para fazer as searas“. Ainda assim, mesmo
“inserindo-se claramente numa linha estética neo-realista, não é um filme de confronto
com os poderes, ou com a ideologia estado-novista“ (Ibidem: 353).
Como resume Leonor Areal (Ibidem) o filme recupera “uma ideologia de
resistência sócio-política (latente e quase omissa)“ que já estava presente em
Saltimbancos, Nazaré e Vidas sem Rumo, ainda que aqui surja menos pessimista e mais
luminosa do que nessas obras anteriores. Em suma, as marcas do cinema mais
inconformista de Guimarães continuam presentes:
“(...) a latência de uma contra-moral contida nesse retrato
sobretudo quando aponta o orgulho do maltês em pagar as suas
dívidas, assumindo a culpa e rejeitando a ajuda do lavrador como
quem rejeita um paternalismo subjacente e afirma a independência a
todo o custo.“ (Ibidem: 352)
Talvez por esta presença, o filme seria alvo de cortes da censura que considerou
mesmo “necessário tomar providências para que o filme não saia do país“ (Ibidem: 354358). O processo documenta ainda o recurso da distribuidora Espectáculos Rivus na
tentativa de negociação dos cortes com a censura para permitir a estreia de uma versão
do filme, ainda considerando que “muitos desses cortes [mutilam] (...) gravemente a
234
narrativa, o seu significado humano e poético, a sua coerência psicológica, e ainda os
valores plásticos“ (ANTT-SNI-IGAC-2inc-proc.18059-A: 42).
Depois do recurso, a comissão de censura reconsideraria e eliminava cinco dos dez
cortes iniciais, mantendo os restantes cinco:
“Os motivos dos cortes são relativamente óbvios; o primeiro
omitindo as cenas eróticas; os restantes - mesquinhos até - cortando
ou pequenas frases consideradas com segundo sentido subversivo, ou
as cenas em que o lavrador mostra agressividade e se esboça um
conflito que poderia ser lido alegoricamente como conflito de classes.
Estes cortes correspondem exactamente às cenas que nos mostrariam
alguma conflitualidade, gerando um contraste com a bondade dos
personagens, e dando-nos destes uma imagem não tão idealista como
deixei atrás apontado.“ (Areal, 2008: 355)
Perante isto, o próprio Manuel Guimarães decidiu apresentar uma nova versão
montada do filme, que seria a que estrearia nas salas, onde assume “algumas correcções
puramente de ordem técnica e narrativa“. Leonor Areal (Ibidem: 356) desconfia dessa
justificação e arrisca que “os cortes feitos demonstram uma intencionalidade diferente,
escondendo provavelmente uma coacção pessoal e a possibilidade concedida de ser o
próprio autor a reformular o filme“. Curiosamente, o filme seria elogiado, na recepção
crítica pela imprensa de então, por uma aproximação ao modo de filmar da nova
geração, “nomeadamente pelo uso de elipses“, mas Leonor Areal (Ibidem: 332) alerta
que muitas das elipses não seriam mais do que precisamente as consequências directas
dos vários cortes da censura a que o filme foi sujeito.
A seguir a O Trigo e o Joio, Manuel Guimarães solicitou uma bolsa à Fundação
Calouste Gulbenkian para receber formação em Itália. Em 1965, durante a sua viagem ao
país do neo-realismo, Guimarães conheceu e viu em acção os realizadores Marco Ferreri,
Mário Monicelli, Pietro Germi, Vittoria De Sica e Federico Fellini, enquanto este filmava e
montava Julieta dos Espinhos (Duarte, 1975: 10-11).
Nos anos seguintes, Manuel Guimarães voltaria à realização de inúmeros
documentários: O Porto, Escola de Artistas (1967, prod. SNI), Ensino das Belas Artes
(1967, prod. SNI), Artes Gráficas (1967, prod. SNI), Tapetes de Viana do Castelo (1967,
prod. Ricardo Malheiro/Cultura Filmes), O Ritmo na Vida (1968, prod. Ricardo Malheiro),
Tráfego e Estiva (1968, prod. Ricardo Malheiro), Expressos Lisboa - Madrid (1969),
António Duarte (1969, prod. Ricardo Malheiro/Cultura Filmes), Fernando Namora (1969,
prod. Ricardo Malheiro), Resende (1970, prod. Ricardo Malheiro), Carta a Mestre Dórdio
Gomes (1971, prod. Manuel Guimarães) e Areia Mar - Mar Areia (1973).
235
Exceptuando poucos destes títulos, a generalidade apresenta um tipo de
abordagem mais cultural e artística, alguns produzidos por Ricardo Malheiro, produtor
eclético que por esses anos havia também proporcionado trabalhos de realizador a João
César Monteiro (Sophia de Mello Breyner Andresen, 1969), Alberto Seixas Santos (A Arte e
o Ofício de Ourives, 1968) e António-Pedro Vasconcelos (Tapeçaria, uma tradição que
revive, 1968; 27 Minutos com Fernando Lopes-Graça, 1971) em documentários de registo
semelhante.
Mas o mais surpreendente desta lista foram as encomendas do SNI. Após ter sido
um realizador maldito nos anos 50, um dos principais “inimigos“ da política cultural do
Estado Novo e uma vítima da censura, Manuel Guimarães era finalmente subsidiado com
fundos públicos. Talvez estes apoios estivessem relacionados com a aproximação de
Manuel Guimarães ao produtor Cunha Telles e consequente reconhecimento da sua
importância pela nova geração cinéfila, mas essa é apenas uma hipótese que eu não
posso afirmar ou documentar categoricamente.
Na década seguinte, Guimarães voltaria à comédia com Lotação Esgotada (1972).
Ao contrário do tom aligeirado de A Costureirinha da Sé, esta comédia era uma sátira ao
poder patriarcal e às hierarquias do poder local. Baseada numa história original de Artur
Semedo, o filme conta a história da rivalidade entre o Presidente e o Vice-Presidente da
Câmara de um pequeno município que se materializa em torno da luta pela construção
de um novo cemitério porque o anterior tinha esgotado a lotação (Matos-Cruz, 1999:
150).
Luís Miguel Oliveira (1997) aproxima o filme da comédia de humor negro,
considerando mesmo, entre outros aspectos, ser “bastante interessante – e arrojada,
num filme pré-25 de Abril – a caracterização do Padre, sempre na órbita de um ou outro
dos rivais conforme os benefícios prometidos, numa contundente sátira à
promiscuidade das relações entre a Igreja e o poder político“.
Falecido prematuramente em Janeiro 1975, quando contava apenas 59 anos,
Manuel Guimarães deixaria inacabado o filme Cântico Final, que seria finalizado pelo seu
filho Dórdio Guimarães. Num filme “filosófico, ou melhor, existencial“ (Areal, 2008:
360),é contada a história de Mário (Ruy de Carvalho) e do seu regresso à aldeia serrana
natal onde pretende passar os últimos dias de vida, já que se encontra doente de um
cancro em estado terminal. Para Areal (Ibidem: 358), este filme representa “um triplo
testamento de geração: o testamento do protagonista, o do realizador e o do escritor
cuja obra adapta, Vergílio Ferreira“.
236
A pré-produção do filme remonta a 1973, quando o filme seria um dos
contemplados no primeiro plano de produção do IPC. Contrariando todas as
expectativas, Manuel Guimarães recebeu um apoio financeiro do instituto público para
rodar aquela que seria a sua última longa-metragem (embora já em consonância com o
apoio às suas curtas-metragens). Por outro lado, a pós-produção foi assegurada pelo
próprio filho e seu assistente de realização neste e noutros filmes.
Alves Costa, num texto intitulado “O cinema português de luto“ (Cineclube, 2, II975: 14-16), lembrava que a carreira de Guimarães poderia ter sido bem distinta não
fosse a acção castradora da censura, mas elogiou o espírito de sacrifício e de
persistência do cineasta que, apesar de marginalizado, fez com que deixasse uma obra
de resistência singular na história do cinema português.
Apesar de depreciativamente etiquetado como “pretensamente neo-realista“, este
cineasta foi o mais coerente e persistente defensor de um neo-realismo para o cinema
português. Por isso, neste contexto, pode afirmar-se que Manuel Guimarães foi o mais
interessante cineasta português da cinematograficamente medíocre década de 1950.
A este propósito, Leonor Areal (2008: 330) defende:
“(...) Guimarães é todo o cinema neo-realista português —
movimento composto de um só cultor — apesar de alguma
historiografia lhe negar esse lugar, ora negando a existência de neorealismo em Portugal, ora englobando nessa categoria filmes de outros
realizadores que descaracterizam esse neo-realismo que se diz que não
houve... (...)
Em Portugal, o espírito neo-realista está sobretudo ligado a uma
geração que se define por referentes literários e ideológicos comuns,
tanto como por afinidades e amizades. E embora muitas obras do neorealismo literário tenham sido transpostas para o cinema — em
adaptações várias que continuarão pelas décadas seguintes, marcando
uma visão política da sociedade portuguesa e diversas reconstituições
históricas — não podemos apelidá-las de cinema neo-realista, quando
em certos casos (Jorge Brum do Canto ou Perdigão Queiroga, por
exemplo) o tratamento narrativo acaba por revelar um ponto de vista
ideologicamente conformista.“
Para a investigadora, o cinema de Manuel Guimarães é mesmo um caso singular no
contexto português:
“A obra de Guimarães afirma-se perante dificuldades concretas
– a penúria financeira e os cortes da censura - num contexto onde está
fora de possibilidade a expressão autêntica de uma visão antagonista
da sociedade. Porém, enquanto acto de resistência ideológica, está
sempre cautelosamente omissa dos seus filmes qualquer relação com a
oposição política (clandestina) ao regime ditatorial. E como a
combatividade não podia ser mostrada, logo, não podia existir, onde
237
não é possível combater, resta a resistência – que é o que temos: um
neo-realismo de resistência.
O neo-realismo de Manuel Guimarães procura combater essa
limitação escolhendo temas de marginalidade social: os saltimbancos,
os pescadores, os estivadores e contrabandistas de Lisboa, os malteses
e serrazinos do Alentejo. E há outra característica que o distingue de
todo os cineastas dos anos 50: o desfecho trágico a que sucumbem os
seus protagonistas, exprimindo essencialmente a desesperança e uma
ausência de saídas. Além desse fatalismo tout-court, que faz rematar as
histórias por mortes inevitáveis, outra forma de exprimir a
inexprimível revolta é a demissão de qualquer moralismo, sem o que a
vida nos aparece pintada como constatação de facto.
Por acréscimo específico e cultural, étnico quase, emerge ainda
uma tristeza conformada, silenciosa e silenciada – por vezes
melodramática, nos momentos em que irrompe sob a forma de um
grito ou de um soluço histérico. É esse o seu sentimentalismo próprio
(e muito português).“ (Ibidem: 330-331)
O próprio Manuel Guimarães, num excerto de uma entrevista de 1963, recuperada
por Leonor Areal (Ibidem: 366), diria a propósito da primeira fase da sua carreira
cinematográfica:
“Considero-os como exercícios. Nada mais. A curta metragem 'O
Desterrado' foi o princípio. Actualmente, não se pode ver, com os seus
arrebatamentos expressionistas e a sua sinceridade romântica. É
ridículo. 'Saltimbancos', de Leão Penedo, que foi o meu primeiro filme
de fundo, enferma de muita coisa semelhante. Foi sempre um filme
inacabado, feito em condições únicas em Portugal, sem capital, sem
ajudas, e só com os sacrifícios de todos os colaboradores. O filme
reflecte tudo isso e resulta como obra de amador – incipiente. Não
interessa. 'Nazaré' pretendeu ser um filme realista com todas as suas
implicações. Um filme de mar é um filme caro e difícil, para o qual não
estávamos preparados, nem material nem tecnicamente. Apesar de
sequências que não repudio. Sofreu amputações das quais se ressentiu
consideravelmente. Quanto a 'Vidas sem Rumo' era uma história
minha, e talvez por isso o considere, entre todos os meus filmes, o
melhor“.
Em 1972, certamente recuperada alguma auto-estima, o mesmo Guimarães
mostrava-se “mais consciente do papel histórico dos seus filmes“:
“Os quatro primeiros filmes que realizei, considero-os um
pequeno marco na história do cinema português. Embora não
conseguidos totalmente, mesmo assim, foram um caminho que
apontei para um verdadeiro e autêntico cinema nacional. Eu estava só,
lutando ferozmente contra uma engrenagem que do cinema apenas se
queria servir, sem olhar a meios nem a sequências. Os que podiam
estar a meu lado, ou melhor, eu ao lado deles, tinham cruzado os
braços, desistido, sem forças uns, descrentes outros. Os novos de hoje,
felizmente, não sabem nem sonham os sacrifícios, melhor, o heroísmo
que era necessário possuir nesse tempo para se fazer um filme com
independência, sem qualquer apoio financeiro. (...) Quero com tudo
isto dizer que os meus filmes eram bons? Evidentemente que não. Mal
238
acabados, mal estruturados, esteticamente indefinidos, tiveram o
mérito de ser uma atitude de dignidade artística“. (Guimarães apud
Areal, Ibidem)
Em suma, Leonor Areal defende que, apesar da “consistência, determinação e
originalidade“ que ocupa na história do cinema português, a obra de Manuel Guimarães
“foi, ao longo de cinco décadas, sendo sucessivamente diminuída pela crítica histórica“
(Ibidem: 332). Ao contrário de Luís de Pina (1986: 125-126), que recusa que a obra de
Guimarães seja neo-realista, Areal sustenta precisamente que o contrário:
“No panorama de convencionalismo e moralismo do cinema da
década de 50, os filme de Manuel Guimarães destacam-se pelo
afrontamento de situações humanas próximas da maior miséria
material e pela equação de dilemas humanos que evidenciam uma
miséria humana, sua vertente moral. Perspectiva que é construída
através do desenvolvimento psicológico das personagens – e por meio
de um retrato pintado com ambiguidades. O contrário da dualidade
entre bons e maus comportamentos que caracteriza o maniqueísmo
dos filmes dos seus colegas conformistas. Há em Manuel Guimarães um
programa político, sim, mas um programa humanístico. E um
programa estético que passa por uma abordagem psicologista e que
prudentemente nunca acusa o poder, as autoridades, o sistema
político – apenas mostra a realidade difícil e a impossibilidade de uma
solução na vida dos que estão no fundo da escala social.“ (Ibidem)
Por outro lado, autores como Leitão Ramos (2007: 52) reconhecem à obra de
Manuel Guimarães, particularmente a trilogia dos anos 50, apenas “uma vontade de
mudança, um solitário gesto no pântano (...), como testemunho de algo que era justo,
como tentativa“, distanciando-a daquilo que ocorreria na década de 1960.
Ao contrário do que a história do cinema português convencionou, acredito,
Michelle Sales (2010: 188), que estas experiências fílmicas dos anos 50, nomeadamente
o caso Manuel Guimarães, foram determinantes para o que sucederia na década seguinte
em termos de produção cinematográfica. Não acredito que tenham sido apenas e só
meros ou meras “vontades“, “gestos“ ou “testemunhos“, mas como uma pré-história que
contribuiria decisivamente para a “revolução“ estética que aconteceria na década
seguinte.
Leonor Areal (2008: 334-335) sublinha que Manuel Guimarães tentou, em
Saltimbancos, um modo de produção alternativo ao que sucedia em Portugal naquele
tempo:
“Será interessante assinalar que este filme foi feito sem
financiamento, ou seja, foi produzido por uma reunião de esforços do
colectivo de actores e técnicos que deram o seu trabalho
gratuitamente para tornarem possível a realização de um projecto de
239
filme que pretendia renovar e reagir contra o cinema comercial e
medíocre. Que um filme tenha resultado de um tal empenho colectivo
reflecte-se cristalinamente no conteúdo narrativo do filme e na voz off
do trapezista declarando-se capaz de todos os sacrifícios por amor à
arte e para manter vivo o circo; tal como Manuel Guimarães e seus
colaboradores o fizeram para manter vivo o cinema, com o entusiasmo
de quem acredita poder fazer renascer esperanças e sonhos. (...) Tudo
isto sem dar o desconto das dificuldades por que passaram os artistas e
técnicos — os dias em que não havia que comer ou não havia película
para filmar e foi preciso o realizador vender a mobília ou Maria Olguim
empenhar jóias para comprar metragem de película. E diz o narrador
em desabafo: 'por que é tão difícil viver, quando só temos o nosso
trabalho para dar?' — frase que pode ser extrapolada para a actividade
artística ou qualquer outra profissão mal remunerada, e onde está
contida uma alusão crítica e política, discreta, como tinha que ser para
o filme passar na censura.“
E a imprensa da época sublinhava precisamente essa particularidade:
“Os produtores negam-se a capitalizar o novo filme, porque a
história não tem pés nem cabeça... Mas Manuel Guimarães não desiste
e junta à sua volta um núcleo de técnicos e artistas que se agrupam em
sociedade, oferecendo o seu trabalho voluntarioso. Alguns desistem
de participar noutros filmes onde a remuneração seria certa. São casos
únicos que bem revelam o desinteresse material em troca duma
película feita em moldes diferentes.
(...)
É o próprio realizador que espera todas as manhãs a abertura do
estabelecimento e corre com mais uma bobina até aos estúdios. Ele
próprio vende todo o mobiliário de sua casa; Maria Olguim separa-se
das jóias, e alguém mais hipoteca o automóvel. Mas o filme não faltará
na máquina, todos os dias, alimentando o sonho em que todos
acreditam. Os almoços nos estúdios são reduzidos, meia dose para
cada um e, quantas vezes, uma sanduíche a crédito na taberna mais
próxima. Ninguém levanta o mais pequeno protesto mesmo quando se
trabalham horas seguidas com o estômago vazio...“ (Imagem, nº 13, I1952, apud Ibidem).
Manuel Guimarães voltaria a “este esquema de cooperação“ para produzir os seus
dois filmes seguintes, Nazaré e Vidas sem Rumo, filmes que antecedem outros exemplos
conhecido de produção independente, como a cooperativa de artistas de Cais do Sodré
(1946) e a Cooperativa do Espectador de Dom Roberto (1962) (Areal, 2008: 334).
Por outro lado, as co-produções também foram uma fórmula tentada por
Guimarães: O Crime de Aldeia Velha com Cunha Telles e a Tobis; O Trigo e o Joio teve como
co-produtores novamente Cunha Telles e a Tobis, mais uma entidade designada “Artistas
e Técnicos Associados“ (Matos-Cruz, 1999: 130), para além do próprio realizador;
Lotação Esgotada foi uma co-produção com a Ulisseia Filmes.
240
Em suma, Manuel Guimarães tentou algumas formas de produção que diferiam um
pouco dos métodos mais convencionais, procurando soluções para contornar as
dificuldade de financiamento crónicas do cinema português e agravadas no caso de um
cineasta sem apoios públicos. O seu contributo para a renovação do cinema português
neste período e nas décadas seguintes seria fundamental, mais como referência ética do
que propriamente estética. Mas apesar das reservas da nova geração cinéfila, que talvez
o visse como um realizador de um cinema datado, o seu lugar na história do Novo
cinema português permanecerá como um símbolo de resistência e forte oposição a uma
política cultural e como representante de um modo de produção neo-realista que deixou
uma marca em várias gerações.
3.1.2. Crítica cinematográfica: os profetas da desgraça
Um núcleo importante, com forte articulação aos movimentos neo-realismo e
cineclubista, era constituído pela crítica cultural e cinematográfica. Durante a década
de 50, em plena crise da cinematografia portuguesa, diversas publicações especializadas
em cinema desempenharam um importante papel na denúncia da crise e na tentativa de
propor uma renovação credível. Num período em que se exigia renovação, o sector da
crítica mais exigente conheceu, de uma forma espontânea e consistente, o surgimento
da uma nova crítica, constituída por jovens valores emergentes de tertúlias artísticas e
dos meios universitários. Mas antes de me abordar essa renovação, será interessante
perceber como se desenvolveu a crítica de cinema em Portugal desde os primeiros textos
sobre cinema, ainda na década de 20.
Em Outubro de 1927, o Diário de Lisboa tornou-se o primeiro jornal diário
português a incluir uma página dedicada exclusivamente a assuntos cinematográficos.
Tratava-se da página inicialmente intitulada Arte Cinematográfica/O claro-escuro
animado, da responsabilidade de António Lopes Ribeiro que assinava os textos sob o
célebre pseudónimo de Retardador. Posteriormente, a página seria rebaptizada de A
Semana Cinematográfica:
“Não queremos deixar passar em claro o facto de ter sido o
‘Diário de Lisboa’ o primeiro grande jornal que inseriu uma página
semanal exclusivamente dedicada a assuntos cinematográficos,
incluindo não só a resenha e apreciação critica de todos os filmes
projectados nas telas da capital, mas também artigos orientadores e de
interesse geral.“ (Diário de Lisboa, 20-X-1928: 3)
241
Entre 1927 e 1930, António Lopes Ribeiro assegurou uma colaboração contínua
com este periódico. Nesse período, para além das suas crónicas e críticas, o Retardador
publicou também outro géneros de textos, entre os quais o diário da sua viagem cinéfila
à Europa de Leste (Polónia e URSS). Finda a colaboração de Lopes Ribeiro, a informação
cinematográfica permaneceu no Diário de Lisboa, mas então em textos diários sem
assinatura a que apenas assinalavam as estreias nas salas, integrando a rúbrica Teatros e
Cinemas, ou a divulgar curiosidades das estrelas, na rúbrica Atrás do Reposteiro.
Lopes Ribeiro saiu desse diário generalista para integrar a redacção de uma revista
especializada em cinema, naquele que seria o primeiro surto significativo de
publicações periódicas especificamente cinematográficas que se verificou na transição
da década de 1920 para a seguinte: Cinéfilo (Lisboa, 1928-39); Imagem: Tribuna Livre de
Cinema (Lisboa, 1928); Imagem (Lisboa, 1930-35); Kino (Lisboa, 1930-31);
Animatógrafo (Lisboa, 1.ª série 1933); Cine-Jornal (Lisboa, 1935-40); Animatógrafo
(Lisboa, 2.ª e 3.ª séries, 1940-42). Este núcleo de publicações surge na transição para o
cinema sonoro e na época das primeiras tentativas de constituição de uma estrutura
industrial de produção contínua. O objecto cinematográfico era tratado nessas revistas
essencialmente como entretenimento ou espectáculo.
Dos responsáveis e colaboradores destas publicações sairia o grupo de cineastas
que dominaram a produção na década de 1930-40: António Lopes Ribeiro (director da
Animatógrafo e Kino e colaborador da Imagem: Tribuna Livre de Cinema e Imagem),
Jorge Brum do Canto (colaborador da Cinéfilo, Imagem: Tribuna Livre de Cinema e
Imagem), Chianca de Garcia (director da Imagem, colaborador da Imagem: Tribuna Livre
de Cinema), Leitão de Barros (colaborador da Imagem) e Cottinelli Telmo (colaborador
da Imagem e Kino).
Para além dos cineastas, escreveram também nestas publicações aqueles que se
tornariam os mais produtivos críticos de cinema das décadas de 1930-50: Domingos de
Mascarenhas (redactor da Animatógrafo, colaborador da Cinéfilo, Imagem e Kino),
Fernando Fragoso (director da Imagem, colaborador da Cinéfilo e Animatógrafo),
Augusto Fraga (director da Cinéfilo e colaborador da Animatógrafo) e Fernando Garcia
(colaborador da Animatógrafo).
Além de críticos, estas últimas figuras também se tornaram parte activa na
indústria cinematográfica: Domingos Mascarenhas tornou-se produtor em O Cerro dos
Enforcados, 1954; Fernando Fragoso assinou diversos argumentos, diálogos e
242
sequências em diversos filmes108; Augusto Fraga foi realizador109, assistente de
realização e produção, argumentista, montador, produtor e actor; Fernando Garcia foi
realizador110, assistente de realização e produção, argumentista, montador e actor.
Estes nomes e os anteriores constituem portanto o primeiro núcleo de
críticos/jornalistas cinematográficos profissionais em Portugal, tendo publicado na
imprensa diária mais afecta ao regime (Diário da Manhã e Diário de Notícias) e nos
microfones da Emissora Nacional, que por esses anos começara também a dar espaço aos
assuntos cinematográficos em programas específicos na sua grelha de programação111,
onde faziam sobretudo a divulgação e a promoção de um certo cinema português e de
um cânone cinematográfico clássico.
É também a este núcleo de autores que se deve os primeiros escritos com
pretensões historiográficas em torno do cinema português. A obra colectiva A
Maravilhosa História da Arte das Imagens, iniciativa coordenada por Fernando Fragoso e
Raúl Faria da Fonseca, editada em fascículos entre 1949 e 1956, constituiu um esforço
conjunto de diversos autores em divulgar alguns dados sobre a nossa cinematografia.
Idealizada por jornalistas, esta obra, no que respeita ao cinema português, revela pouca
exigência na análise e problematização dos dados avançados.
A actividade crítica de Roberto Nobre é uma das mais interessantes do panorama
cinematográfico nacional deste período. Escritas ao longo de quatro décadas e
espalhada por diversas publicações, destacam-se os textos de crítica de Nobre
publicados em algumas publicações situadas na oposição ao Estado Novo: o semanário
de crítica literária e artística O Diabo (1937-40), com críticas relativas sobretudo a filmes
portugueses e estrangeiros; a revista mensal de divulgação social e científica, arte e
literatura, Pensamento (1939), órgão do Instituto de Cultura Socialista, onde divulgou
um texto teórico; a Vértice, onde escreve valiosas considerações sobre diversos assuntos
108
João Ratão, 1940; O Costa do Castelo, 1943, A Menina da Rádio, 1944; O Leão da Estrela, 1947; O Grande
Elias, 1950; A Garça e a Serpente, 1952; O Noivo das Caldas, 1956; Perdeu-se um Marido, 1957; Dois Dias no
Paraíso, 1958; A Luz vem do Alto, 1959; Raça, 1961; Um Dia na Vida, 1962; A Cruz de Ferro, 1968; Traição
Inverosímil, 1971.
109
O Sangue Toureiro, 1958; O Tarzan do 5.º Esquerdo, 1958; O Passarinho da Ribeira, 1960; Raça, 1961; Um
Dia na Vida, 1962; Uma Hora de Amor, 1964; Vinte e Nove Irmãos, 1965; A Voz do Sangue, 1966; Traição
Inverosímil, 1971.
110
Heróis do Mar, 1949; Um Marido Solteiro, 1952; O Cerro dos Enforcados, 1954; Agora é que são Elas,
1954.
111
A Rádio foi também um veículo de divulgação cinéfilo e tinha espaços próprios para a crítica de cinema:
na Emissora Nacional, no final dos anos 50 e inícios dos anos 60, mantinha em antenas os programas
Rádio-Cinema, que contava com a colaboração de Félix Ribeiro e Fernando Garcia, e Espectáculo, com
Goulart Nogueira e Jorge Pelayo; a Rádio Renascença também emitiu programas de crítica católica, como
o Zoom, o CCC=CCC: Cineclube Católico igual a Cinema com Critério e o Panorâmica.
243
relacionados com os aspectos culturais do cinema (1945-64); a Seara Nova, onde
escreveu uma centena de importantes textos ao longo de uma década (1940-52) que
ajudam a caracterizar o panorama cinéfilo português de então; o jornal Batalha, onde
iniciou o seu percurso tecendo comentários sobre problemas mais mediáticos; no Diário
Popular e no O Primeiro de Janeiro contribuiria pontualmente com as páginas
especializadas em assuntos cinematográficos.
A figura de Roberto Nobre está envolvida nos momentos e nas questões mais
importantes do cinema português. Na oposição cultural e ideológica ao Estado Novo, o
crítico não poupas as denúncias de falência do “cinema oficial“ produzido nas décadas
de 30 e 40. Do mesmo modo, tornou-se definitivamente mediático pela sua corajosa
oposição à famosa lei de protecção do cinema nacional de António Ferro através do
opúsculo O Fundo (1948), prontamente apreendido pela PIDE.
Em oposição à concepção crítica de Roberto Nobre, mas também na oposição ao
regime e ao modelo cultural dominante, Manuel de Azevedo recusava a ideia do cinema
como “arte pura cem por cento, amante do individualismo e do subjectivismo“. Estas
diferentes concepções do cinema são o fruto da distância que separa os dois autores,
“uma distância teórica e artística e, em certa medida, política.“ (Pita, 2000: 57-59)
O histórico dirigente cineclubista Manuel de Azevedo era um dos nomes mais
destacados e reconhecidos de uma crítica minoritária e marginalizada no panorama
cinematográfico português de então. Em oposição ao núcleo da crítica dita “oficial“,
começou a despontar em diversas publicações de carácter cultural e artístico uma crítica
que ficou conotada com a oposição política e cultural ao regime: Seara Nova (Lisboa,
1921-); Presença (Coimbra, 1927-40); O Diabo (Lisboa, 1934-40); Sol Nascente (Porto,
1937-40); Sol (Lisboa, 1942-49); Vértice (Coimbra, 1942-); Pensamento (Lisboa,1931).
Ao contrário da crítica dominante, a crítica de cinema publicada nestes títulos
tinha pouco alcance mediático e pouca influência junto dos espectadores de cinema. No
entanto, estas publicações tinham o mérito de reunir, entre os colaboradores, muitos
intelectuais, artistas e ensaístas que escreveram os mais interessantes textos sobre
cinema deste período: José Régio (colaborador da Presença e Movimento), Adolfo Casais
Monteiro (Presença e Movimento), José Gomes Ferreira (Presença e Seara Nova) e
Roberto Nobre (O Diabo, Seara Nova, Vértice e Pensamento).
Para António Pedro Pita (Ibidem: 59), Manuel de Azevedo foi mesmo “o mais
destacado ideólogo do enraizamento social do cinema e da noção de que o cinema é ‘a
expressão viva da própria vida’“, ideia fundamental do “neo-realismo“ e que difundiu
244
um “programa de perspectivação marxista de vários aspectos da sociedade portuguesa“.
Ao contrário do ideário anarco-sindicalista de Roberto Nobre, o grupo de Manuel de
Azevedo defendia que “não é a consciência que determina o ser social, mas,
inversamente, o ser social que determina a consciência“ e que o cinema, enquanto
linguagem privilegiada da vida social, assumia uma importância capital no debate
teórico acerca das relações entre o Homem e a Arte (Ibidem). A percepção do cinema
enquanto “arte eminentemente social“ e a sua afirmação como obra artística
pressupunham uma redefinição do papel do artista e do público, insistindo no princípio
marxista de que “a cultura é uma expressão da realidade social“ (Ibidem: 59-60).
A partir de 1945, o Diário de Lisboa passou a publicar uma nova página temática
dedicada ao cinema, teatro e rádio: a Êxito. A página começou por ser coordenada por
Augusto Fraga, um dos críticos do núcleo dominante da escrita cinematográfica
portuguesa, mas a partir de 1961 Manuel de Azevedo assumiu a coordenação da página
Êxito e, também abrangendo a televisão, passou a ser mais crítica e mais exigente em
relação ao próprio cinema português.
As décadas de 1950-60 passam a ser de confronto aberto entre concepções críticas
antagónicas e inconciliáveis. Se durante a política cultural de António Ferro a
monopolização dos meios de produção não permitia diversificar a oferta
cinematográfica, a estreia de filmes produzidos fora dos círculos afectos ao regime
provocou uma reacção violenta. O primeiro caso mais visível foi o de Manuel Guimarães:
a recepção critica aos seus três primeiros filmes – Saltimbancos (1951), Nazaré (1952) e
Vidas sem Rumo (1956) –, como já referi no subcapítulo anterior, são exemplares para
conhecermos e compreendermos a geografia e as motivações da crítica cinematográfica
deste período.
Dos críticos em actividade na década de 1950 e na transição para a seguinte,
Christel Henry (2006:
134-229) identificaria três tendências globais mais
representativas e respectivos autores mais destacados: os de tendência marxista
(Baptista-Bastos), os críticos moderados de Esquerda (Manuel de Azevedo, Vitoriano
Rosa, Armindo Blanco e José-Augusto França) e os críticos partidários do regime
salazarista (Domingos Mascarenhas).
Devido a diferentes filiações ideológicas das suas direcções e colaboradores, esta
“nova crítica“ constituiu vários núcleos de acção, por vezes antagónicos, que se
apoiavam em importantes publicações. Entre as revistas mais críticas da política cultural
do governo encontra-se a Imagem (1950-1961) que, a partir de 1952, ultrapassado um
245
discurso inicial de certa moderação, ataca e classifica o sector cinematográfico nacional
como uma “cidadela de analfabetos e comerciantes“. Em 1954, face ao “insucesso que
tem rodeado as últimas produções nacionais apresentadas“, esta revista sentenciava a
morte do cinema velho com uma ideia de esperança, exigindo uma “urgente e adequada
solução“ e apregoando que “este fim trágico pode gerar um princípio risonho“ (Imagem,
VI-1954: 175). Este período ficaria também marcado por uma inédita agitação editorial
por parte dos sectores mais activos da oposição cultural ao regime (Pina, 1977: 171201).112
Sobre o panorama crítico da década de 50, Christel Henry (2006: 233) sublinha ser
“interessante constatar que o clima de guerra-fria que reinava então se repercutia
igualmente nestas revistas, embora as desavenças fossem muito mais atenuadas e
disfarçadas do que nos livros ou compilações de críticas“ publicados em Portugal no
mesmo período:
“(...) De facto, as críticas que vão aparecer nas revistas
especializadas nunca vão atingira a raiva anti-comunista de Domingos
Mascarenhas patente nos textos incluídos tardiamente no segundo
volume de Fitas e franjas, nem o dogmatismo marxista ortodoxo de
Baptista-Bastos de que estão imbuídos O cinema na polémica do tempo
e O filme e o realismo.“ (Ibidem)
A revista Imagem foi a revista que “defendeu o neo-realismo com mais vigor“,
destacando-se os “escritos pertinentes e inovadores de José Ernesto de Sousa na
segunda série da revista (Ibidem). Para além da revista Imagem, “sem dúvida a mais
importante a todos os níveis (cultural, divulgação cinematográfica, repercussão no
movimento cineclubista, etc.)“, Henry (Ibidem) destaca também as revista Visor e
Celulóide, ambas dirigidas por Fernando Duarte, e a Filme, “revista de uma certa
envergadura, mas limitada pela vontade de ficar neutra a qualquer preço“, dirigida por
Luís de Pina.
Catarina Alves Costa (2012: 81) também sublinha a importância destas
publicações para entender o cinema exibido em Portugal e a própria produção de filmes
portugueses:
“(...) Estes suportes permitem perceber, de modo mais
detalhado, a forma como era recebido, criticado e apropriado o cinema
que era visto quer nos circuitos mais comerciais, quer nos mais
112
São particularmente significativas as publicações de Luís Neves Real (Cartas Abertas aos Senhores
Deputados da Nação, 1955), Manuel de Azevedo (Perspectiva do Cinema Português, 1951, À Margem do
Cinema Nacional, 1956) e Baptista Bastos (O Cinema na Polémica do Tempo, 1959), assim como traduções
de obras de Sergei Eisenstein (Reflexões de um Cineasta, 1961), Vsevolod Pudovkine (Argumento e
planificação, 1961) e Georges Sadoul (História do Cinema Mundial e As maravilhas do cinema, 1959).
246
alternativos. Por outro lado, detectam-se divisões entre uma esquerda
marxista e uma humanista, presentes na 2ª série da revista Imagem,
mas também entre revistas como a Celulóide ou a Visor, que se
integram numa política de direita, sem incorporar, mais uma vez, as
teorias da cultura do espírito de António Ferro.“
Henry (Ibidem: 304) alerta para o particular confronto entre a crítica de esquerda
(“entre uma esquerda moderada e uma ideologia marxista“) da revista Imagem e a
crítica católica das revistas dirigidas por Fernando Duarte, Visor e Celulóide. Geralmente
menos referida, a crítica católica também ocupou um papel importante no panorama
crítico português, em particular no processo de renovação da crítica e do próprio cinema
português.
Criado em 1951, o Boletim Cinematográfico era editado pelo Secretariado do
Cinema e da Rádio da Acção Católica Portuguesa de regularidade semanal que publicava
uma crítica de teor mais moral sobre os filmes em exibição nas salas portuguesas. A
própria criação do Secretariado do Cinema e da Rádio, que remontava a 1938, foi muito
influenciada pela carta encíclica Vigilanti Cura de Leão XI (1936) que elogiava as Legião
da Decência norte-americana e alertava para o poder de influência do cinema e para “a
necessidade de vigiar os filmes“ produzidos e os que estão nas salas em exibição, através
da publicação de boletins regulares onde os católicos pudessem colher informação
acerca da classificação moral dos filmes.
No entanto, mesmo antes dessa encíclica, na Rádio Renascença, o Monsenhor
Manuel Lopes da Cruz havia já definido uma grelha de classificação moral dos filmes em
exibição nas salas portuguesas: “Aprováveis“, “Toleráveis (para adultos da vida e com
sólida formação cristã)“ e “Condenáveis“. Antes do Boletim Cinematográfico, a crítica de
cinema católica era publicada no diário Novidades, que atribuía as classificações morais
dos filmes nos mesmos moldes da Rádio Renascença.
Em meados dos anos 50, começa a surgir um movimento católico que entende o
cinema de uma forma distinta: os católicos progressistas. Por suposta aproximação aos
comunistas, o Papa Pio XII excomungou esse movimento católico francês,
cujo
membros eram conotados com as teses do personalismo cristão e do socialismo
humanista, correntes que preconizam uma concepção libertária e progressiva da
História e do Homem.
Em Portugal, apesar de rejeitarem expressamente o rótulo, um significativo grupo
de figuras católicas – onde se incluíam João Bénard da Costa, António Alçada Baptista,
Pedro Tamen, Nuno Portas, Adérito Sedas Nunes, entre outros – foram catalogados por
247
certos sectores da sociedade portuguesa como “católicos progressistas“. Crítico ao
regime, este grupo de “católicos progressistas“ defendia sobretudo os valores do
pluralismo, universalismo e contemporaneidade. Os momentos de maior visibilidade da
oposição católica ao regime ocorreram aquando do apoio à candidatura presidencial de
Humberto Delgado (1958), no envolvimento na chamada “revolta da Sé“ (1961) e na
condenação da política colonial, em particular após o famoso caso da “vigília na Capela
do Rato“ (1973).
Em Portugal, na área do cinema, o primeiro espaço de acção deste novo
pensamento cristão seria o Centro Cultural de Cinema, um cineclube de inspiração cristã
criado em 1955 pela revista Encontro, editada pela Juventude Universitária Católica
(JUC). Presidido por Pedro Tamen até 1959, por esse cineclube passariam outros
estudantes universitários católicos como Nuno Portas, Nuno Bragança, Helena Vaz da
Silva, João Bénard da Costa, Duarte Nuno Simões e João Vaz da Silva, entre outros. A
partir de 1959, Francisco Sarsfield Cabral seria o novo Presidente da Direcção e por esse
cineclube passariam outros universitários católicos como Paulo Rocha, Manuel Lucena
ou Magalhães Mota.
Do sucesso desse universitário Centro Cultural de Cinema nasceria o Cineclube
Católico, criado por decisão do Secretariado de Cinema e Rádio. Sedeado em Lisboa, este
novo cineclube procurou conquistar o seu espaço numa cidade que já contava com os
três cineclubes bem populares e influentes: ABC Cineclube, Cineclube Imagem e
Cineclube Universitário de Lisboa. O seu posicionamento conservador, a sua relação
hierárquica com a Igreja Católica e o clima da perseguição e repressão vivido no seio dos
cineclubes por esses anos dificultou a integração do Cineclube Católico no movimento
cineclubista português. No Porto, em 1962, também surgiria um cineclube de inspiração
cristã, o Cineclube da Boavista, com a mesma missão do congénere lisboeta. Por esses
anos, o padre José Vieira Marques criaria o Centro de Estudos Cinematográficos, que
publicaria a página Pelo Mundo do Cinema no jornal Novidades e que estaria na origem
da criação do Festival de Cinema da Figueira da Foz.
Mas, no campo da crítica, o meio mais influente e significativo para o que aqui me
ocupa foi a revista O Tempo e o Modo. Revista de pensamento e acção, o grupo inicial d'
O Tempo e o Modo era influenciado pela doutrina do Concílio Vaticano II, realizado em
Outubro de 1962, perfilhava a filosofia de Mounier e reconhecia influências directas das
revistas Esprit e Concilium.
248
A primeira série, de Janeiro de 1963 a Maio de 1970, foi dirigida por António
Alçada Baptista, tendo João Bénard da Costa como chefe de redacção e Pedro Tamen
como editor literário.113 Sobre esta publicação, Daniel Pires (1999: 558) resumiria:
“O Tempo e o Modo trilhou um percurso pleno de vicissitudes no
seu longo historial. A sua 1.ª fase, teve como pedra-de-toque o
diálogo, a confluência de forças de diversos quadrantes, o auscultar de
sensibilidades diferentes. Na fundação da revista convergiram três
gerações: os católicos progressistas, seus principais dinamizadores,
que estiveram no 1.º Congresso da JUC e que tinham integrado o jornal
universitário Encontro, fundado em Janeiro de 1956; um grupo
republicano e laico que viria a ser o embrião do futuro Partido
Socialista, nas pessoas de Mário Soares e de Salgado Zenha; um sector
estudantil que energicamente lutou pela autonomia da Academia,
pela renovação e democratização da Universidade, pelo Associativismo
como direito inalienável, e que vivenciou directamente a crise
universitária de 1962, membros do MAR — Movimento de Acção
Revolucionária —, caso de Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Nuno
Bragança e de Vasco Pulido Valente.“
Este grupo de críticos seria muito influenciado pela revista francesa Cahiers du
Cinéma. Eduardo Paz Barroso (2002: 228) sublinha mesmo que esta influência, que se
fez sentir mais nos sectores progressistas do pensamento católico, ajudou a consolidar a
noção de autoria e “a deixar de lado uma suspeição que pairava sobre o cinema
americano“:
“A situação intelectual típica dessa transição para os anos 60,
passava pela '(...) defesa apaixonada de Welles e dos novos cineastas
americanos revelados na década, sobretudo Aldrich, Brooks, Anthony
Mann e, principalmente, o muito amado Nick Ray. Defendidos desde
56 nos dois cineclubes universitários de Lisboa (entre polémicas
furiosas, em que os termos de 'formalista' e ' idealista' tinham forte
conotação pejorativa) para esses cineastas se reclamavam também o
estatuto de autor, aparecendo os seus filmes, nas páginas de Êxito,
(onde Eurico da Costa e Nuno Portas já tinham substituído Fraga,
como Ernesto de Sousa substituíra Baptista Rosa na Imagem) como
sinal da contradição que opunha os críticos, na primeira adaptação a
Portugal das famosas 'estrelinhas' dos Cahiers (...)'. Face a uma
confrontação de mentalidades e à apresentação de novos mecanismos
de apreciação cinematográfica, como a classificação decorrente da
atribuição qualitativa de uma pontuação aos filmes, acaba por ser toda
uma ruptura epistemológica que está em curso.“
113
Ao longo desta série, foram publicados textos de diversos autores de referência nacional e
internacional: Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Vasco Pulido Valente, Jorge Sampaio, Manuel de
Lucena, Mário Soares, M. S. Lourenço, Bento do Carmo, João César Monteiro, Luís Miguel Cintra, AntónioPedro Vasconcelos, Mário Murteira, Francisco Sarsfield Cabral, Adérito Nunes, Sottomayor Cardia, Salgado
Zenha, Salgado Matos, José-Augusto França, Mário Dionísio, André Gorz, Georges Burdeau, Jean-Paul
Sartre, Edgar Morin, D. Helder da Câmara, Mamadou Dia.
249
Robert Stam (2006: 154-155) sublinha que a transição dos anos 60 para os anos 70
ficaria “marcada por uma proliferação de periódicos de cinema marxistas ou de inflexão
esquerdista“, e dá vários exemplos: Positif, Cinéthique, Cinémaction e (os recémconvertidos à esquerda) Cahiers du Cinéma na França; Screen e Framework na Inglaterra;
Cine-Tracts e, mais tarde, Cine-Action no Canadá; Jump Cut e Cineaste nos Estados
Unidos; Ombre Rossi e Filmcritica na Itália, Hablemos de Cine no Peru; e Cine Cubano em
Cuba.
Em Portugal, talvez tenha sido o renovado Diário de Lisboa a ocupar esse espaço de
influência, pelo menos no que diz respeito à crítica cinematográfica. De seguida, analiso
um dos momentos fundamentais na afirmação da crítica de cinema em Portugal: o início
da crítica diária no jornal Diário de Lisboa, em 1968, que revolucionou a história da
crítica na imprensa portuguesa e alterou radicalmente o panorama da crítica de cinema
em Portugal.
“Em fins de 1967, eu [Lauro António] e o Eduardo Prado Coelho
fomos convidados pelo Ruella Ramos a escrever diariamente no
prestigiado ‘Diário de Lisboa’, então possivelmente o melhor jornal
português, uma espécie de ‘Le Monde’ à escala portuguesa. Ruella
Ramos era o director, mas o homem que comandava as finanças era
Lopes do Souto, que nos contratou por vinte e cinco tostões a crónica,
mais direito a bilhetes à borla para as salas de cinema onde os filmes
estreavam. Começámos a escrever e, no início de 1968, estalou uma
bronca monstruosa, que fez de nós dois ‘heróis nacionais’ de um dia
para o outro.“ (António, 2008: 79)
A “bronca“ a que Lauro António se refere teve como principal protagonista uma
associação de exibidores de cinema de Lisboa, a Cineasso (Cinemas Associados, Lda).
Dirigida pelo Eng. José Gil, a Cineasso agregava os maiores espaços de exibição da
capital: Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden e S. Luiz.
Considerando-se ameaçado nos seus interesses, numa época em que o número de
espectadores cinematográficos baixava consideravelmente, a Cineasso decidiu intervir
de forma considerada rápida e eficaz. No dia 23 de Fevereiro, enviou uma carta ao
director do jornal que foi publicada com destaque de primeira página no dia 28
seguinte:
“Confirmamos o nosso telefonema de hoje no sentido de ser
anulada a publicidade sob a rubrica ‘Cartaz dos Cinemas’,
relativamente aos nossos cinemas ‘Alvalade’, ‘Eden’, ‘Estúdio’,
‘Europa’, ‘Império’, ‘Monumental’ e ‘São Luiz’.
Tivemos ocasião de manifestar a VV. Ex.as o nosso
desapontamento e discordância pela orientação dada recentemente a
certas notícias de estreias publicadas no jornal de VV. Ex.as, porque
250
consideramos que não é aceitável que nas mesmas se desacreditem os
espectáculos.
A chamada liberdade de imprensa nada tem que ser invocada ao
considerarem as relações entre entidades de interesses ligados, como
é o caso da imprensa que carece da publicidade e da indústria que não
pode viver sem ela.
A crítica cinematográfica exercida com independência absoluta
e sujeita a controvérsias de outros técnicos, está lógica e naturalmente
reservada à imprensa da especialidade.
Na diária, a confusão só pode gerar este lamentável atropelo de
entidades que sempre prezaram muito o ‘Diário de Lisboa’ e nele
tiveram um dos melhores defensores dos legítimos anseios da
indústria dos espectáculos.
A decisão que nos vimos forçados a tomar será complementada
com a supressão de toda e qualquer publicidade das empresas nossas
associadas.“ (Diário de Lisboa, 28-II-1968: 1).
O teor do texto acima transcrito faz-me acreditar que esta carta foi apenas o
culminar de um processo de pressão feito ao jornal por parte da Cineasso e que duraria
há já algum tempo, nomeadamente através de conversas telefónicas e mesmo
presenciais.
A Cineasso ameaçou e cumpriu. Nesse mesmo dia, a publicidade dos seus
associados desapareceu das páginas do jornal. Nas restantes semanas que durou o
boicote, apenas encontrei nas páginas do Diário de Lisboa publicidade de espaços
exibidores que não integravam a Cineasso: Avis, São Jorge, Roma, Mundial, Europa,
Condes, Politeama, Estúdio 444.
Até 1967, quando Lauro António e Eduardo Prado Coelho iniciaram a sua
colaboração no Diário de Lisboa, a generalidade da critica cinematográfica publicada na
imprensa diária era uma forma de publicidade indirecta patrocinada pelos distribuidores
e exibidores, como relata Lauro António (2008: 79):
“Não havia crítica diária nos jornais diários. Existia uma
resenha efectuada normalmente por um velho jornalista que
percorria as salas com filmes em estreia, pedia o programa com o
resumo do argumento, via quinze minutos, e desandava para outra
sala ou regressava à redacção para escrevinhar algumas linhas
assinadas por iniciais que normalmente não correspondiam a
nada.“
De facto, a generalidade dos textos publicados na imprensa portuguesa de então
sob a forma de crítica cinematográfica nem sequer eram assinados pelo jornalista
responsável. Por vezes, não eram sequer assinados mas, geralmente, os textos eram
assinados com iniciais ou sob um pseudónimo recorrente na época: a palavra Visor
seguido de número ou inicial. Na pesquisa efectuada no Diário de Lisboa durante os
251
meses de Setembro e Dezembro de 1967, os textos eram assinados sempre com esse tipo
de código: Visor 60, Visor 96, Visor 35, Visor 087, Visor 33, Visor 888, Visor A, Visor 13.
Muitas vezes, o uso de alguns desses códigos denunciava uma intenção irónica ou
sarcástica do próprio autor: por exemplo, numa altura em que os filmes de espionagem
de James Bond 007 eram os principais sucessos de bilheteira nas salas portuguesas, um
dos textos aparece assinado por Visor 006,5 (zero, zero, seis e meio).
Em relação aos textos propriamente ditos, alguns eram muito semelhantes ou
mesmo iguais aos publicados noutros jornais. Para esta coincidência só me ocorre uma
explicação: os textos publicados eram geralmente “inspirados“ ou mesmo simples e
puras transcrições dos textos fornecidos nos press releases dos distribuidores, exibidores
ou das agências de publicidade.
Dos jornais diários de maior tiragem nacional, o Diário de Lisboa era o que exibia
mais publicidade cinematográfica directa. Essa publicidade directa era feita
exclusivamente sob forma de cartaz ilustrado com destaque para os principais
protagonistas e, por vezes, para o realizador. Os cartazes publicitários eram de grande
dimensão, ocupando por vezes mais de metade da página de formato A3 do jornal. Com
o passar do dia de estreia, o cartaz ia perdendo dimensão e acabava por dar lugar à
estreia seguinte. Nos dias da véspera de estreia e da estreia, os diferentes cartazes
publicitários chegavam mesmo a ocupar três das páginas de destaque do jornal,
geralmente a partir da página 4.
Os outros jornais com publicidade directa aos espectáculos cinematográficos
eram, sobretudo, os de maior tiragem na capital: os oficiosos Diário de Notícias e Diário
da Manhã. No entanto, nestas publicações, o espaço dedicado aos cartazes não era tão
visível como no Diário de Lisboa. Outros jornais de menor tiragem – República ou Diário
Popular – e a generalidade das revistas culturais, não apresentavam este tipo de
publicidade.
Com a publicação da carta da Cineasso na primeira página, o Diário de Lisboa
apresentava também uma declaração de intenções intitulada “Um ataque rechaçado.
Sete cinemas coligados pretenderam reduzir ao silêncio a crítica do Diário de Lisboa“:
“Não se trata, porém, apenas de uma deplorável e afrontosa
manobra de intimidação, empreendida por um grupo de interesses que
não sabe, nem quer saber, de mais nada que não sejam os seus
interesses e, por isso, julga que todos têem pela mesma cartilha.
(...)
Pôs-se, desse modo, em prática um processo de dignificação
geral: respeito pelo público, respeito pelo trabalho, respeito pela
crítica, respeito pela opinião.
252
Só o gerente do ‘consórcio’ de interesses é que levanta a luva:
não quer crítica, quer só reclamos; não quer esclarecimento, quer só
confusão. Exactamente como os fabricantes de chouriço com carne
abatidos sem fiscalização sanitária, ou como os fabricantes de ‘whisky’
de Sacavém.
(...)
Como se vê pela sua leitura, não vem o documento acima
transcrito com a pretensão, ao menos, de impugnar especificamente
esta ou aquela opinião expressa sobre este ou aquele filme, não
contradiz nem menciona algum juízo que tenha sido formulado, não
vem alegar parcialidade nem incompetência. Vem apenas insurgir-se
contra o princípio do livre exercício da crítica. Nem mais nem menos.
Esquece, porém, que é precisamente pelos princípios que nos
batemos e de que não sabemos, nem saberemos, abdicar, seja perante
que potências for, em relação aqueles que escolhemos como
orientadores da nossa acção.“ (Diário de Lisboa, 28-II-1968: 1).
Com o apoio incondicional do Conselho de Administração e da Direcção do jornal,
a redação assumiu a defesa dos seus colaboradores e não cedeu à intimidação desses
jovens críticos que tanto incomodavam os interesses dos exibidores.
Lauro António (1942-) era um jovem cinéfilo – tinha então 25 anos – com passado
activo no movimento cineclubista (membro do Cineclube Universitário de Lisboa e
dirigente do ABC Cineclube). Tinha-se iniciado na crítica em 1963 (com 19 anos!), na
página temática Bastidores do jornal A República, sob coordenação de Baptista-Bastos,
onde escrevia “à borla“. Depois passou pela revista Rádio e Televisão, onde recebeu “guia
de marcha“ por defender um filme italiano e ser acusado por um leitor de ser
“comunista“, e finalmente pela revista Plateia, onde “escrevia sobre realizadores e
entrevistava personalidades“. (António, 2008a: 79-80)
Eduardo Prado Coelho (1944-2007) tinha então 23 anos e não tinha um passado
público na crítica cinematográfica. Filho de um prestigiado professor catedrático da
Universidade de Lisboa, Prado Coelho colaborava no suplemento Diário de Lisboa Juvenil
como escritor e critico literário desde os 15 anos.
Entre o dia 29 de Fevereiro e 2 de Março, o Diário de Lisboa publicou diversas
mensagens de apoio à sua atitude e de repúdio à intimidação da Cineasso, entre as quais
uma assinada por diversos intelectuais ligados à imprensa e à crítica:
“Porque, embora a execução dessa ameaça se tenha verificado
apenas em relação ao nosso jornal, o certo é que ela fica no ar pondo
em risco o direito de opinião e a independência de todos os jornais.
(...)
Certo, as opiniões dos críticos são, por sua vez, discutíveis.
Nada é definitivo. Mas é precisamente no confronto das opiniões que
se forma ‘a opinião’ dominante.
253
A crítica, quando esclarecida e isenta, não ataca, nem adula.
Serve o público. E na medida em que o serve, dignifica o próprio
espectáculo.
(...)
António de Oliveira Pinto, Fernando Assis Pacheco, Joaquim
Benite, José Carlos de Vasconcelos, Luís de Oliveira Nunes, Manuel de
Azevedo, Manuel Beça, Mário Castrim e Pedro Alvim.“ (Diário de
Lisboa, 29-II-1968: 28)
“A Direcção do Sindicato Nacional dos Jornalistas felicita
calorosamente V. Pela independência manifestada pelo ‘Diário de
Lisboa’ perante a inadmissível e inqualificável tentativa de coartar o
direito de crítica. A importante atitude do ‘Diário de Lisboa’ concorre
para dignificar os seus mais directos servidores, os jornalistas, que
este sindicato representa.
Direcção do Sindicato Nacional de Jornalistas.“ (Idem, 1-III1968: 2)
“Assombrado e indignado pela insólita e deplorável tentativa de
coacção do ‘trust’ de cinemas de Lisboa ‘Cineasso’, manifesto minha
total solidariedade aos críticos do ‘Diário de Lisboa’ e manifesto a
minha maior satisfação pela denúncia da infeliz manobra e pela digna
atitude assumida pelo vosso jornal.
Henrique Alves Costa.“ (Idem, 2-III-1968: 12)
“Ao termos conhecimento da atitude prepotente de um
dirigente da ‘Cineasso’ em relação ao vosso jornal e á independência
dos críticos que nele colaboram, vimos afirmar-vos o nosso apoio e o
propósito de o divulgarmos junto dos nosso dois mil associados.
Direcção do Cine-Clube do Porto.“ (Ibidem)
“Esperemos que para bem da clara informação do público, este
caso seja o arranque para um saneamento geral, o qual, estou certo
disso, só beneficiará as partes interessantes. Uma, a Imprensa, na
medida em que nobilitará um dos seus sectores: outra, a exibição e a
distribuição cinematográfica, na medida em que o cinema é muito
grande para precisar de favores. ...E quem ganhará será o público, que
tem o inalienável direito de ser seriamente informado.
Manuel Gama, crítico da Emissora Nacional.“ (Ibidem)
“O cinema que gostaríamos de fazer nada tem a ver com a
‘indústria do espectáculo’ tal como a concebe a ‘Cineasso’. Só será vivo
e actuante como desejaríamos no dia em que a actividade crítica for
independente.
A atitude agora assumida pelo ‘Diário de Lisboa’, ao denunciar
publicamente um tipo de pressões de há muito entre nós praticado e
em grande parte responsável pela indigência a que chegou a nossa
crítica cinematográfica, pode ser o primeiro passo no sentido de um
amplo esclarecimento público acerca do conjunto de circunstâncias
que condiciona e afecta, asfixiando-o, o cinema em Portugal.
Também o cinema português é vitima de coligações de
interesses, que nos reduzem ao silêncio ou á prática de actividades
cinematográficas menores.
(...)
254
A solidariedade que os signatários pretendem, pública e
imediatamente manifestar-lhe (não fora esta última circunstância e
com certeza outros cineastas gostariam de fazê-lo) implica, do mesmo
passo, uma sugestão: a de que o ‘Diário de Lisboa’ abra as suas colunas
a um vasto debate de todos os problemas que minam desde a base o
cinema português.
Entretanto, não queremos também deixar de testemunhar-lhe o
nosso aplauso por ter finalmente desvendado o mistério da analfabeta
e abstrusa ‘unanimidade crítica’ de que a imprensa diária portuguesa
parecia exemplo vivo. Estamos incondicionalmente do seu lado: deste
modo é que o ‘Diário de Lisboa’ pode vir a ser ‘um dos melhores
defensores dos legítimos anseios da indústria do espectáculo’. Assim
os outros jornais portugueses se disponham a seguir-lhe o exemplo:
talvez, deste modo, se possa ainda evitar que o cinema – até como
indústria do espectáculo – seja destruído pelo aço...
(...)
Acácio de Almeida, Alfredo Tropa, António Escudeiro, António
Macedo, António-Pedro de Vasconcelos, Artur Ramos, Ernesto de
Oliveira, Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, Gonçalves Preto,
Henrique Espírito Santo, João Matos Silva, José Fonseca Costa, Manuel
Costa e Silva, M. Faria de Almeida, Manuel Ruas, Paulo Rocha e Seixas
Santos.“ (Ibidem)
À excepção de Gonçalves Preto e Henrique Espírito Santo, esta última carta foi
assinada por 16 dos 20 elementos da nova geração cinéfila que por esses dias ultimavam
o documento O Oficio do Cinema em Portugal, que seria entregue à Fundação Calouste
Gulbenkian a 30 de Abril desse ano e que daria origem à cooperativa de produção Centro
Português de Cinema.
No dia 14 de Março, após duas semanas de boicote, o Diário de Lisboa publica uma
nova carta da Cineasso:
“Agora, que supomos terminada a campanha a que deu lugar,
consideramos necessário trazer igualmente ao conhecimento público
o esclarecimento do que foi julgado atentório da liberdade de criticar.
O processo da crítica – a crítica da Crítica e a qualificação dos
que a exercem – não nos compete. Nunca esteve nem está em causa a
liberdade da Crítica, nem o relevo ou a modéstia do destaque que se
lhe confere no jornal de V. Ex.as.
Não pusemos em causa essa liberdade, agora ou em qualquer
ocasião. Pretendemos, sim, que ao público não seja dada uma ideia
depreciativa do valor do espectáculo, através de comentários à
margem do assunto criticado. É no desejo de evitar controvérsias, que
nada vinham acrescentar ao que verbalmente dissemos, que nos
dispensamos de exemplificar.
Esgotados os repetidos argumentos, só nos restava fazer sentir o
nosso desagrado cortando as relações comerciais com V. Ex.as.
(...)
Julgamos útil, no entanto, acrescentar o seguinte: não houve
qualquer coligação contra o ‘Diário de Lisboa’.
(...)
255
Julgando ter dado o indispensável esclarecimento que a
publicação da nossa carta e subsequente campanha aconselhavam,
damos por nós o caso como encerrado.“ (Idem, 14-III-1968:10)
A Cineasso acabaria por ceder e tudo voltaria, gradualmente, ao normal. No
entanto, a publicidade mais rentável, os cartazes ilustrados, só mais tarde voltariam a
ter a regularidade que se verificava antes do boicote.
A sucessão de acontecimentos decorridos entre Dezembro de 1967 e Março de
1968 mudou efectivamente a maneira de fazer crítica na imprensa generalista
portuguesa. No entanto, a novidade das críticas de Lauro António e Eduardo Prado
Coelho publicadas a partir do último mês de 1967 não estava na independência e
isenção das apreciações, mas na projecção mediática que essa crítica independente e
isenta conquistou pela primeira vez na história da imprensa generalista portuguesa. Até
então, a crítica independente e isenta era publicada em algumas publicações periódicas
de cariz cultural com pouca difusão junto do grande público de cinema, apesar de
circularem eficazmente em círculos intelectuais e culturais mais circunscritos.
Este episódio acabou por ser favorável aos críticos do Diário de Lisboa por duas
razões fundamentais: porque a direcção do jornal soube inflamar a situação em seu favor
e porque a mobilização dos diversos sectores da actividade cinematográfica –
realizadores da nova geração dos anos 60, jornalistas, críticos, dirigentes cineclubistas,
técnicos cinematográficos, entre outros – conseguiu sensibilizar o grande público de
cinema de então. Seria interessante – se fosse possível – analisar as receitas de
bilheteira das sete salas da Cineasso antes, durante e depois da polémica para
compreender se o público teve efeito directo no desenlace em favor do Diário de Lisboa.
Na opinião de Lauro António, o mediatizado braço de ferro entre a associação de
exibidores Cineasso e o Diário de Lisboa acabou por ser favorável ao periódico
essencialmente porque o prestígio do jornal era então enorme ao nível da crítica
publicada:
“(...) numa época em que este jornal era a cartilha da crítica e
da opinião em Portugal, entre finais da década de 60 e meados dos
anos 70. Na televisão dominava Mário Castrim, no cinema tínhamos
aparecido eu [Lauro António] e o Eduardo Prado Coelho, na música, a
voz era a do Mário Vieira de Carvalho, no bailado, escrevia Manuela de
Azevedo, e havia ainda gente muito interessante nas artes plásticas,
na literatura, até na tauromaquia a crítica era afamada. Havia
suplementos culturais e sentia-se que o papel da crítica tinha uma
influência decisiva.“ (António, 2008b).
256
Segundo o mesmo Lauro António, esses anos foram o período de maior
reconhecimento público da crítica de cinema em Portugal:
“A importância da crítica era mais do que evidente. Uma boa
crítica a um filme podia desencadear uma carreira de várias semanas.
Num dia estreou-se ‘O Soldado Azul’, no Berna, quase sem público,
dois dias depois saía uma crítica minha [Lauro António] no ‘DL’,
elogiosa, e mostrando como, através de um western, se podia abordar
a guerra do Vietname, e nessa mesma noite a esta sala esgotava (com
imensos ‘DL’ debaixo do braço, confidenciou-me depois um dos
porteiros) e mantinha o filme em estreia longas semanas. Um
distribuidor, tempos depois, informava-me que ‘O Pequeno Grande
Homem’ de Arthur Penn, tinha sido totalmente proibido pela censura,
apenas porque ‘depois o Lauro António escrever por aí que o filme se
refere à guerra do Vietname e é um problema’. O filme haveria de ser
libertado com cortes, depois do recurso da distribuidora Rivus, ligada
ao cinema Monumental. Um filme admirável de Altman, ‘Nashville’,
passou uma rápida semana no Berna. Quando a minha crítica saiu o
filme já estava a sair do cartaz. Mas foi reposto no Nimas, com um
excerto da crítica no anúncio, e fez quase três meses de excelentes
lotações. A crítica tinha um poder que hoje em dia não tem.“ (António,
2008a: 80)
O prestígio crescente da crítica independente e isenta do Diário de Lisboa haveria
de fazer estender, gradualmente, o novo modo de fazer crítica de cinema em Portugal à
generalidade da imprensa diária portuguesa durante a década seguinte.
No entanto, já antes, em meados dos anos 50 e nos inícios dos anos 60, as páginas
do Diário de Lisboa haviam acolhido duas rubricas de crítica cinematográfica e cinéfila
muito particulares: entre Julho e Novembro de 1956, o crítico e dirigente cineclubista
universitário Nuno Portas assinou uma rubrica intitulado “Para um Cinema Novo“, onde
seriam apresentados os “seus pontos de vista sobre os nossos problemas culturais
cinematográficos (Diário de Lisboa, 10-VII-1956: 7); entre 6 de Março e 29 de Agosto de
1961, todas as Terças-feiras, Alberto Seixas Santos e António-Pedro Vasconcelos
escreviam a rubrica “Campo-contra-campo“, um texto desenvolvido em forma de diálogo
entre os dois jovens cinéfilos que integrava a página Êxito. Apesar de efémera, esta
experiência é “um bom exemplo de toda a confrontação de ideias e de tomadas de
posição estética“ que marcou o panorama crítico deste período, considerados como “um
sinal relevante de mudança, e como tal com invulgar capacidade de agitarem
concepções ligadas à tradição da Esquerda, procurando acertar os passos da Nouvelle
Vague“ (Barroso, 2002: 229).
Bénard da Costa (1985: 22) lembra que, por esses anos, o debate focava-se na
polémica entre os defensores de um “cinema moral e as lições combinadas do neo257
realismo italiano e do realismo poético“ e o “cinema moderno, na sendo do que a França
propunha“. As querelas ideológicas desse final de década de 50 e início da década de 60
quebrou a “relativa uniformidade crítica que, em torno das escola e autores já citados,
reunira, com pequenas diferenças ou clivagens, a crítica da resistência“ (Ibidem).
A leitura das revistas de cinema estrangeiras passou a ser o principal foco de
dinamização das principais tertúlias cinéfilas lisboetas. Mais do que um mero exercício
individual de leitura, estas publicações europeias fomentaram a formação de grupos
constituídos por cinéfilos com maiores ou menores afinidades e cumplicidades estéticas
e éticas. As tertúlias lisboetas mais célebres desses anos 60 eram conhecidas pelos
nomes dos estabelecimentos onde tinham lugar – Martinho da Arcada, Brasileira do
Chiado, Nicola, Café Gelo, Monte Carlo – e eram frequentadas por intelectuais,
escritores, pintores, actores e encenadores de diversas afinidades ideológicas.
Entre as tertúlias cinéfilas mais reconhecidas, destacavam-se sobretudo duas: a do
“Vá-Vá“, um café da Avenida dos EUA que reunia sobretudo cinéfilos e universitários; e a
do “Riba Douro“, um café da Avenida da Liberdade frequentado por pessoas da televisão
e do Parque Mayer. A estas tertúlias ficariam ligados dois filmes fundamentais no início
da década de 60: “Belarmino, escrito e dirigido por dois homens do ‘Riba Douro’,
Baptista-Bastos e Fernando Lopes, e Os verdes anos, de Paulo Rocha, cuja derradeira e
dramática cena se desenrola precisamente no ‘Vá-Vá’“ (Pina, 1985: 10).
As tertúlias do “Vá-Vá“ e do “Riba Douro“ representavam, grosso modo, as duas
principais tendências estéticas e éticas dominantes no seio dos jovens cinéfilos da
década de 60: os “formalistas“ e os “realistas“. A tertúlia do “Vá-Vá“ era dominada pelo
designado grupo “dos Cahiers du Cinema“, composto por cinéfilos que “proclamavam um
cinema afim da nouvelle vague francesa e que se reclamavam das teorias dos Cahiers du
Cinema e da visão auteurista do cinema“ (Monteiro, 2000: 330). Os elementos deste
grupo eram designados de “formalistas“ pela valorização da pesquisa formal e do
experimentalismo cinematográfico tendo como objecto o próprio tratamento da matéria
cinematográfica. Estes “formalistas“ faziam a apologia de um cinema visual, que
desenvolvesse esteticamente uma linguagem cinematográfica exigente e autónoma.
Dentro deste grupo havia um núcleo muito particular formado por Alberto Seixas
Santos, António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro que se auto-denominavam de
“kimonistas“, em referência à peça de vestuário kimono e como uma referência à obra do
japonês Kenji Mizoguchi.
258
Em oposição a estes “formalistas“, existia um grupo mais influenciado pela crítica
e teoria cinematográfica italiana que defendia um cinema realista de conteúdo social.
Influenciado pelo neo-realismo cinematográfico italiano e pelo neo-realismo literário
português, estes cinéfilos faziam da actividade cineclubista e das publicações de cariz
cultural e artístico os seus principais meios de afirmação: “defesa no neo-realismo
italiano, do realismo mexicano, do realismo poético francês, da sobriedade do cinema
britânico, na impossibilidade de defender (e de ver) o ‘cinema dos cinemas’: o soviético“
(Costa, 1985: 20).
Ao longo dos tempos, diversos partidários destas tendências alimentaram acesas
polémicas estéticas e éticas. No fundo, estes cinéfilos reproduziam em Portugal os mais
intensos debates sobre cinema que se desenrolavam em diversas cinematografias
europeias. Para o lado dos “formalistas“, o autor de referência era André Bazin (191858) e os seus jovens discípulos, enquanto para o lado dos “realistas“, os autores de
referência eram Guido Aristarco (1918-96), Giorgi Lukács (1885-1971) ou Antonio
Gramsci (1891-1937).
Em 1973, o renascimento da histórica revista Cinéfilo, propriedade do jornal O
Século, seria outro momento marcante na história da imprensa cinematográfica
portuguesa. Depois de ter interrompido a sua publicação em 1939, a Cinéfilo voltaria a
ser publicada em Outubro de 1973, com a promessa de “defesa intransigente do cinema
e dos espectáculos portugueses, quer no plano cultural quer no plano económico“
(Pelayo, 2001: 170).
Dirigida por Fernando Lopes, com António-Pedro Vasconcelos como chefe de
redacção e João César Monteiro como redactor principal114, a revista Cinéfilo marcou o
debate cinematográfico e cultural dos últimos anos do Marcelismo. Fernando Lopes
(Andrade, 1996: 86) defende mesmo que a revista fez “algumas rupturas no interior da
esquerda“ e que preparou “sem saber muitas das discussões que vieram logo a seguir ao
25 de Abril“.
A atitude irreverente e provocadora da revista, que lhe valeu problemas com a
censura, convivia com um lado mais sério de promoção de uma cultura cinematográfica
moderna, nomeadamente o número especial dedicado a Roberto Rosselini aquando do
ciclo de cinema que a Fundação Gulbenkian lhe dedicou em Novembro de 1973.
114
Entre os colaboradores contavam-se os nomes de Fernando Cabral Martins, Eduardo Prado Coelho,
Vasco Pulido Valente, Alberto Seixas Santos, Roby Amorim, Eduardo Geada, Henrique Alves Costa,
Eduardo Guerra carneiro, Adelino Tavares da Silva, entre outros.
259
Na transição para os anos 70, como resume Paz Barroso (2002: 252) “estava já
generalizada a designação de autor, utilizada para diferenciar um filme que surgisse
com preocupações culturais e sociais.“ No entanto, esta questão não estava sempre “a
salvo de reticências que desembocam em dúvidas e diferendos ideológicos“,
nomeadamente na recepção dos filmes de António de Macedo (Sete balas para Selma e A
Promessa)115 e de Fonseca e Costa (O Recado)116. No entanto, a recepção crítica ao filme
O Passado e o Presente foi uma demonstração do consenso que o cinema de autor colhia
em confronto com o cinema comercial: “A crítica mais tradicional ficou perplexa ou
condenou em bloco. Mas a nova crítica cerrou fileiras“ (Monteiro, 1995: 677-678).
Porém, como confessa Fernando Lopes (1985: 65), a recepção crítica do filme foi
também influenciada pela defesa de interesses subterrâneos:
“Talvez, no CPC, alguns colegas meus não gostassem do filme,
particularmente o Macedo que, diga-se, nunca terá gostado muito do
Oliveira. […] Como o filme desempenhava um papel importante no
lançamento do Centro, o António de Macedo foi impecável, nunca se
pronunciando publicamente contra o filme. A mesma coisa se passou
com o Artur Ramos“.
Pela condição de ser a primeira obra da cooperativa e de ser assinada por Manoel
de Oliveira, a defesa estratégica desta obra representava provavelmente a afirmação
estética do programa de intervenção do CPC e a sobrevivência do próprio cinema
moderno.
Mesmo sem interferir activamente na produção de filmes, a importância da crítica
de cinema para o estabelecimento e consolidação de uma cultura fílmica e cinéfila foi
determinante para a renovação do cinema português. Desde o espaço que abriu para
novos cinéfilos e futuros cineastas, a crítica cinematográfica foi, no Portugal das
décadas de 1950-60, um espaço de debate e reflexão sobre diversas concepções de
cinema e sobre vários projectos de intervenção.
115
Sete balas para Selma terá sido, muito provavelmente, o filme português mais atacado pela crítica
cinematográfica durante a década de 60. João César Monteiro protagonizou as palavras mais ferozes, ao
acusar o produtor e o realizador de traição à “batalha comum por um Cinema Novo“: este filme “só pode
ser encarado como empresa reaccionária, carregada de balas que se desfecham traiçoeiramente nas costas
dos promotores de uma revolução cinematográfica em Portugal“ (O Tempo e o Modo, I-1969: 125).
Nas páginas da revista Cinéfilo, António-Pedro Vasconcelos é um dos mais inconformados, atacando
violentamente Macedo a propósito do filme A Promessa (Cinéfilo, 9-II-1974: 25).
116
Em clara alusão ao passado ideológico de Fonseca e Costa, João César Monteiro referiu-se à primeira
obra deste autor como o “cacilheiro Potenkin“, demonstrando publicamente todo “o pó“ que tinha em
relação ao autor e “particularmente àquele filme“ (Fernando Lopes apud Andrade, 1996: 84).
260
3.2. Cineclubismo
Em entrevista, o realizador Alberto Seixas Santos declararia: “(...) creio que não
houve cinema neo-realista em Portugal, o nosso neo-realismo foi o movimento
cineclubista“ (apud Henry, 2006: 21). A partir desta declaração, Catarina Alves Costa
(2012: 80-81) conclui:
“Trata-se aqui da diferença entre aquilo que os realizadores de
cinema faziam, o que o público da elite cultural consumia e o modo
como recebia o cinema vindo do estrangeiro, guiado, em grande parte,
pela crítica e pela intelligentzia da época. O espírito do neo-realismo,
não tendo podido concretizar-se na película, por razões políticas e
históricas, exceptuando alguns casos (...), passou pelo espírito
construtivo, batalhador, e formador de consciências operado pelo
cineclubismo, tão forte em Portugal. (...)
Se a concretização do neo-realismo se deu em Portugal
fortemente na literatura, quando passamos para o domínio do cinema,
e exceptuando experiências pontuais como a de Ernesto de Sousa ou
Manuel de Guimarães, este movimento apareceu associado e centrado
nos guiões, nos conteúdos, na crítica escrita; não tanto na realização.
(...)“
A emergente “rapaziada dos cineclubes“ era o outro importante núcleo de acção
na oposição cultural à política do Estado Novo, a quem Leitão de Barros atribuía um
papel “activo e pujante“ na renovação estética do cinema português (Diário de Notícias,
1-III-1955: 5). Esta “rapaziada dos cineclubes“ integrava, desde a publicação da
legislação de 1948, o grupo de “profetas da desgraça“ que avaliavam negativamente o
papel intervencionista do Estado na cultura portuguesa e que anunciavam o seu
iminente colapso. A “rapaziada dos cineclubes“ pertencia a uma geração cinéfila
bastante diferente das anteriores, uma geração com um forte entusiasmo cinéfilo e
político, assim como um significativo desejo de renovação e inovação.
O movimento dos cineclubes é um objecto de estudo particularmente complexo na
história do cinema português. As múltiplas contradições e omissões na(s) história(s)
desse movimento e a falta de investigações históricas sobre a génese e crescimento
deste fenómeno têm dificultado o seu estudo de uma forma mais integrada. Como alerta
Paulo Jorge Granja, a historiografia sobre os cineclubes e o movimento cineclubista em
Portugal “– até há bem pouco tempo, quase sempre escrita na primeira pessoa –,
costuma eludir ou só muito superficialmente abordar vários factos cujo conhecimento
nos parece indispensável a uma melhor compreensão da [sua] história“ (Granja, 2006:
6).
261
Muito mais do que um simples movimento cinéfilo, o movimento cineclubista
desempenhou, durante o Portugal estadonovista, um importante papel de resistência
cultural e mesmo de oposição política à ditadura vigente, e a sua evolução ajuda a
compreender com maior alcance as mutações sócio-culturais e politico-ideológicas de
Portugal no pós-Segunda Guerra Mundial. Os dados aqui reproduzidos procuram apenas
caracterizar sumariamente o movimento e enquadrá-lo nas problemáticas culturais e
artísticas transversais que marcaram esse período.
Como defende Paulo Jorge Granja (2007: 363), o movimento cineclubista
alimentou em Portugal, entre 1924 e 1967, “duas ambições aparentemente
irreconciliáveis“:
“(...) por um lado, defender o cinema como uma arte universal,
por outro, afirmar a legitimidade do cinema de acordo com critérios
estéticos tendencialmente exclusivistas, ou seja, por outras palavras,
como procuraram defender a cinefilia ora como prática cultural de
massas, ora como prática cultural de elites.
(...)
Inicia-se, assim, um divórcio, que haveria de persistir até aos
nossos dias, ente uma cinefilia popular, pouco preocupada com o
estatuto estético ou cultural do cinema, e uma cinefilia erudita ou
intelectual, que se apropriaria do cinema para fazer dele uma arte. E os
cineclubes ver-se-iam eles próprios, salvo raras excepções, divididos
entre a necessidade de atrair o maior número de sócios para legitimar
o cinema como arte universal e a vontade de ver o cinema erigido ao
estatuto de arte superior, isto é, de arte de elite.“
Ao longo desse período, a função ou a pretensão do movimento cineclubista seria
a de constituir e formar “comunidades interpretativas de cinéfilos que seriam formadas a
partir da exibição e discussão de filmes considerados “dignos de apreciação estética“ e
passiveis de “competências culturais específicas de interpretação do cinema como arte“
(Ibidem: 634-365). A questão
À semelhança do que aconteceu no resto da Europa, também em Portugal as
primeiras associações cinematográficas de espectadores surgiram ainda durante o
cinema mudo, com a criação no Porto e em Lisboa, em 1924, de duas instituições
homónimas: Associação dos Amigos do Cinema. De acordo com as pesquisas de Paulo
Jorge Granja, os antecedentes embrionários do movimento cineclubista conheceriam
novos episódios no início dos anos 30, com a identificação de alguns projectos
planeados e/ou concretizados tais como: Cine-Clube de Portugal (Lisboa, 1931), CineClube de Portugal (Faro, 1931), Cineclube Movimento (Porto, 1933), Cine Clube
Português (Coimbra, 1933), Sociedade Portuguesa de Cinematografia (Lisboa, 1933); ou
262
os clubes de cinema de amadores como a Secção de Cinematografia do Grémio Português
de Cinematografia (1932), a Associação dos Amadores Cinematográficos de Portugal
(1932) ou o Grupo Único dos Amadores de Cinema de Portugal (1934) (Ibidem: 8-11; 1630). Christel Henry (2002: 243-244) ainda identifica o Clube Animatógrafo (Lisboa,
1940) e o Círculo de Cinema (Lisboa, 1943).
No entanto, o movimento cineclubista só se considera iniciado em Portugal com a
fundação do Belcine – Clube de Cinema da Parede, em 1943, e sobretudo com a
constituição, em Abril de 1945, do Clube Português de Cinematografia (CPC/CCP), no
Porto. Esta nova geração de cinéfilos denota um forte entusiasmo cinéfilo e político e
prova que afinal o público português não era tão mau como muitos pretendiam afirmar.
Apesar de ter sido fundados mais tarde, o Cineclube do Porto assumiu maior
protagonismo porque o Belcine era sobretudo um clube de cinema de amadores, ainda
que funcionasse nos moldes de um cineclube convencional, e porque se tornou mais
activo a nível editorial, publicando diversas obras de reconhecido interesse e valor
cinematográfico.117
Este movimento agregava sobretudo estudantes universitários, “gente de cultura e
animação, de um modo geral gente para quem o cinema é algo mais que um projecto
cinéfilo“. Reconhecendo a capacidade do cinema de análise e reflexão política, social e
cultural, “intransigentes e entusiastas, os cineclubistas são combatidos, mas a sua
actividade influencia outras actividades e outros núcleos, interessando movimentos
ideológicos diferentes pela mesma preocupação transformadora“ (Pina, 1977: 62).
O ano de 1946 seria particularmente activo no que diz respeito ao cineclubismo,
registando-se o surgimento de três novos cineclubes: Círculo de Cinema de Lisboa,
(CCL), Círculo de Cultura Cinematográfica – Cine-Clube Universitário de Coimbra (CCC),
Clube de Amadores da Arte Cinematográfica (Lisboa). No ano seguinte surgiriam mais
dois: Lusocine Clube (Lisboa, da fusão do Clube de Amadores da Arte Cinematográfica
com a União de Cineastas Amadores) e Cine-Clube Olhanense.
O desenvolvimento de um sólido espírito associativo aliado a algumas condições
técnicas e materiais favoráveis, a meta da criação de uma possível Federação Portuguesa
de Cine-Clubes, e a consolidação do fenómeno cineclubista internacionalmente
(constituição de uma Federação Internacional, em Cannes, 30 de Novembro de 1947)
117
As Modernas Tendências do Cinema Europeu (obra colectiva, 1949); Charles Chaplin (obra colectiva,
1949); O Cinema e a Criança (obra colectiva, 1954), Perspectiva do Cinema Português (Manuel de Azevedo,
1951); Iniciação à Técnica e Estética Cinematográfica (F. Gonçalves Lavrador, 1955); História da Imprensa
Cinematográfica (Henrique Alves Costa, 1954). Em defesa do cinema (Luís Neves Real, 1955).
263
são factores determinantes para encarar os novos desafios com outras perspectivas mais
optimistas. A realização do Primeiro Congresso Internacional dos Cineclubes teve como
representante português o cineclubista portuense Manuel de Azevedo, que foi
convidado pela Federação Francesa de Cineclubes em representação dos quatro
cineclubes portugueses então em actividade: Clube Português de Cinematografia
(Porto), Belcine (Parede), Circulo de Cinema (Lisboa) e Círculo de Cultura
Cinematográfica (Coimbra) (Cineclube, 3, IV-1975: 14).
No entanto, as iniciativas cineclubistas começaram a deparar-se com vários
obstáculos, nomeadamente com problemas burocráticos relacionados com licenças de
exibição para películas antigas e, mais grave, com a vigilância da polícia política.
Um dos exemplos dados por Roberto Nobre, a propósito da proibição de exibição
de Berlim, Sinfonia duma Capital, de Walter Ruthman, é bastante elucidativo. Apesar de
deter direitos de exibição para sessões culturais sem fins lucrativos, os cine-clubes não
podem ter acesso às películas mais antigas, como as produções da Invicta Filmes ou os
filmes mudos Nazaré, Praia de Pescadores e Maria do Mar, ambos de Leitão de Barros,
devido a uma exigência financeira da Inspecção Geral dos Espectáculos, prejudicando
assim «uma das maiores razões de ser dos cine-clubes, um dos motivos fundamentais
para que foram criados em todo o mundo.“
“(...) E assim a cultura do cinema, mesmo do cinema nacional,
está impedida, em virtude de não estar ressalvada a intenção cultural
sem fim lucrativo». A feliz solução encontrou-se numa pequena sala
de projecções da Embaixada Britânica, «onde podem ser exibidos, sem
restrições, os Clássicos do Cinema, pois é considerado terreno
estrangeiro“. (Seara Nova, 1070, 31-I-1948)
Desde cedo que a PIDE seguia atentamente as actividades de alguns dos mais
activos animadores dos cineclubes, nomeadamente por actividades políticas ligadas a
movimentos da oposição ao regime, como Partido Comunista Português (PCP), o
Movimento de Unidade Democrática (MUD) ou o Movimento de Unidade Democrática
Juvenil (MUDJ). No Porto, para além de Manuel de Azevedo, que como vimos já tinha
sido várias vezes detido por suspeita de pertencer ao PCP, José Borrego seria um dos
primeiros dirigentes cineclubistas a despertar a atenção das autoridades devido ao seu
activismo político, por ser um dos responsáveis da célula do MUD na Escola de Belas
Artes do Porto, e acabaria preso a 13 de Abril de 1947. Em Coimbra, Rui Grácio, um dos
principais dirigentes do CCC e membro da Comissão Central do MUDJ, seria também
detido a 17 de Abril de 1947. As detenções de José Borrego e Rui Grácio integravam-se
264
numa vaga repressiva mais vasta, que o regime, recomposto depois da remodelação
governamental de Fevereiro, levaria a cabo, entre Março e Maio de 1947 contra o MUDJ
(Granja, 2006: 99-101). Em Lisboa, também o Círculo de Cinema, um importante
cineclube que contava com cerca de 3 mil associados, teria uma “existência curta e uma
morte violenta“, com a prisão de vários dirigentes, entre os quais José Ernesto de Sousa,
e com o encerramento da actividade por acção da PIDE por ainda não ter estatutos
homologados (Cineclube, 3, IV-1945: 15)
Já antes das detenções de Grácio e Borrego, vários outros cine-clubistas seriam
referenciados pela PIDE pelo simples facto de participarem em iniciativas ou assinarem
petições do MUDJ e do MUD — como aconteceria, por exemplo, com Costa Campos e
Nataniel Costa, do CCL, e Manuel de Azevedo e Virgílio Pereira, do CPC/CCP. Mas a acção
policial que “maior impacto teria no movimento dos cineclubes, até porque visaria
directamente o cineclube que à data mais sócios teria [aproximadamente 2 mil sócios],
ocorreria a 31 de Janeiro de 1948, com o assalto à sede do CCL e à detenção de vários dos
seus dirigentes e sócios [António Ferreira Pinto de Carvalho, João António da Silva, José
Ernesto de Sousa, Manuel Isidro Pousal Domingues, Carlos Vieira, Humberto Pereira e
Hélder David Meneses].“ (Granja, 2006: 101-102).
Embora a PIDE não conseguisse provar cabalmente qualquer “actividade
subversiva“ no CCL, nem provar que o CCL se tinha desviado do “objectivo de cultura e
divulgação cinematográfica“ com que tinha sido criado ou estabelecer qualquer ligação
com o PCP, esta acção repressiva integrava-se numa acção mais vasta, que haveria de
culminar na ilegalização do MUD em Março desse mesmo ano. No caso do CCL, o assalto à
sua sede parece, também, relacionar-se com a suspeita de que os seus membros estariam
a duplicar circulares clandestinas para a campanha do candidato oposicionista Norton
de Matos ao cargo de Presidente da República (Ibidem: 102).
Mas haveria também consequências para o movimento cineclubista:
“(...) em pouco tempo a repressão do Estado acabaria por
abater-se sobre os cine-clubes, extinguindo dois deles e acabando por
colocar indirectamente em causa a existência dos restantes.
A extinção e repressão dos cine-clubes far-se-ia, no entanto, a
coberto da censura, pouco ou nada transpirando para opinião pública.
(…)
Com o movimento dos cine-clubes destroçado, apenas o CPCCCP continuaria em actividade, escudado na sua inscrição na FPCE
[Federação Portuguesa das Colectividades de Educação e Recreio do
Distrito do Porto] e, depois de Julho de 1948, no reconhecimento dos
seus Estatutos pelo Governo Civil daquela cidade“ (Ibidem: 105-106).
265
Em 1948, Manuel de Azevedo publicaria um livro intitulado O Movimento dos
Cineclubes onde fazia uma panorâmica do movimento internacional cineclubista e um
relatório na sua participação, enquanto delegado representante de quatro cineclubes
portugueses, no I Congresso da Federação Internacional dos Cineclubes (Pelayo, 2001:
86). Simultaneamente, a publicação deste livro poderia ser também encarada como uma
“prova de vida“ do movimento cineclubista português, procurando através do mercado
editorial um mediatismo para o movimento.
Depois da repressão de 1948, só muito lentamente o movimento dos cineclubes
voltaria a dar sinais de vitalidade. O CPC/CCP continuava a ser o único em actividade
oficial, mas em 1949 nascia, aparentemente das cinzas do extinto CCC/CCUC, o Clube de
Cinema de Coimbra (CCC). Nesse ano e no seguinte, Paulo Jorge Granja também
sinalizou algumas notícias de que também em Olhão, Mirandela, Castelo Branco, Faro e
Lisboa se tentariam criar novos cineclubes. Em Lisboa, por exemplo, existem referências
concretas a três tentativas: “a de um Cine-Clube Popular, dirigido pelo jornalista e
realizador Gentil Marques, e patrocinado pelo Diário Popular; a de um Cine-Clube de
Lisboa, aparentemente ligado à organização dos Festivais do Cinema Europeu no Ateneu
Comercial de Lisboa de 1948 e 1949, e, finalmente, a de um Centro Cultural
Cinematográfico, ligado a um programa da Rádio Renascença intitulado ‘A Arte das
Imagens’.“ (Granja, 2006: 107-108).
O movimento começa a reconstruir-se a partir de 1950: ABC Cine-Clube de Lisboa,
fundado por Carlos Carvalho a 1 de Novembro de 1950, apresentaria a sua primeira
sessão apenas a 14 de Abril de 1951; também em Lisboa, o Cine-Clube Imagem é criado a
20 de Junho de 1951, por iniciativa da revista com o mesmo nome; em Março de 1952
aparecia o Cine-Clube Universitário de Lisboa, aparentemente por iniciativa de um
grupo de estudantes do ensino superior; o Cine-Clube de Rio Maior, o primeiro cineclube
a surgir fora de uma das três principais cidades, inicia a sua actividade a 24 de Julho de
1952 e, pouco depois, funda a revista Visor; em Coimbra, em finais de 1952, depois da
prolongada inactividade do CCC, surge o Círculo de Cultura Cinematográfica/Cine-Clube
Universitário de Coimbra, promovido por um grupo de estudantes universitários ligados
à Mocidade Portuguesa (Ibidem: 109-113).
Em 1952, o Cineclube do Porto é novamente vítima da perseguição política do
regime, agora na figura do Governador Civil do Porto: a associação foi ameaçada de
encerramento por eventuais irregularidades relacionadas com a homologação do seus
estatutos, que estavam em vigor desde 1948. Mesmo esclarecida a situação, nos meses
266
seguintes seriam proibidas, sem justificação, três palestras que habitualmente
acompanhavam as sessões. Na imprensa, por acção da censura prévia, nenhum deste
episódios seria tornado público (Cineclube, 3, IV-1975: 16).
Infelizmente, o ano de 1953 ficaria marcado pela suspensão da revista Imagem, e
do seu Cine-Clube Imagem, uma publicação que reproduzia as orientações estéticas
predominantes entre os cineclubes:
“(...) a PIDE interromperia uma sessão no cinema Capitólio, que
tudo leva a crer ter sido organizada pelo CI ou por elementos próximos
deste Clube, acabando por prender Vasco Granja, um dos seus
principais dirigentes. Aparentemente, a sessão, em que se projectava o
filme Il Cammino della speranza (O Caminho da Esperança, 1950), de
Pietro Germi, destinava-se a recolher fundos para presos políticos,
numa iniciativa indirectamente ligada ao PCP“ (Ibidem: 120).
Em Lisboa, também o Universitário de Lisboa suspenderia as suas actividades, em
finais de 1953 e, no Porto, um dos dois únicos cineclubes legalizados, também sofria a
sua primeira tentativa de silenciamento por parte das autoridades, tendo visto proibidas
três das palestras que habitualmente organizara (Ibidem: 121-122).
Em 1954, contrariando o policiamento ideológico da polícia política do Estado
Novo, o movimento ganha um novo alento, com o reatamento das actividades no CineClube Imagem e no Universitário de Lisboa, e com o surgimento do Cineclube de
Estremoz e do Cine-Clube Universitário do Porto (Ibidem: 123-124).
Na noite de 19 de Dezembro de 1954, a pretexto de uma retrospectiva do cinema
português, o Cineclube do Porto exibiu o filme Aniki-Bóbó e homenageou Manoel de
Oliveira. No ano seguinte, o Cineclube de Estremoz fazia uma homenagem semelhante e,
em 1957, publicaria uma obra com textos de vários autores intitulada Manuel de Oliveira.
A reacção do público cinéfilo, e do cineclubista em particular, foi bastante positiva, ao
mesmo tempo que a crítica começava a questionar os critérios de atribuição de subsídios
públicos do SNI. Mesmo antes do prémio internacional conquistado por O Pintor e a
Cidade em Cork (1957) e da excelente recepção em Paris e Veneza no mesmo ano, o
reconhecimento público de Manoel de Oliveira tinha começado com as homenagens dos
cineclubes. De resto, este reconhecimento da família cineclubista também terá
contribuído para que o cineasta portuense retomasse a sua actividade cinematográfica,
que se encontrava suspensa desde Aniki-Bóbó (1942).
Em 1956, Nuno Portas assinou um artigo no Diário de Lisboa (2-X-1956: 10) onde
pretendia esclarecer alguns aspectos em relação ao público do fenómeno
267
cinematográfico. Afirmando que “não há um público, mas públicos“, o crítico apresenta
quatro categorias distintas:
“a) um subpúblico do pequeno aglomerado da nossa Província
que consome o filme porque os bonecos falam português (…);
b) um público primário para quem o cinema é o divertimento
que faz esquecer o dia-a-dia e ao qual exige que não faça pensar, que
lhe dê a passagem para uma ilusória fuga à existência (…);
c) um público primário exigente, que influenciado pela
Imprensa e por outros factores, pede já ao filme ‘qualidade técnica’, e
‘problemas’, ‘realismo’, mas ao qual falta uma base cultural que lhe
permita separar o trigo do joio (…);
d) um público exigente que integra o cinema na cultura,
responde por esse país fora ao esforço do cineclubismo e tende a
contagiar novas camadas“ (Ibidem).
Gradualmente, esta ideia de que as sessões cineclubistas oferecem mais ao
fenómeno cinematográfico do que a mera projecção do filme, contribuindo para uma
cultura cinematográfico que não está disponível nas salas comerciais, instala-se a
consolida-se ao logo desta década:
“Para um cineclube que nasceu com a missão de 'esclarecer a
todo custo' o público afeito às sessões comerciais – sessões que, do
ponto de vista material, não se diferenciavam das cineclubistas, já que
eram 'as mesmas salas de espetáculo, com os mesmos meios de
projecção e o mesmo material fílmico' – o critério de partilha não
poderia radicar no filme em si, concentrando-se no direcionamento
dado à sessão.“ (Zanoni, no prelo)
No entanto, para alguns detractores, o sucesso público do movimento cineclubista
devia-se apenas ou sobretudo às vantajosas condições financeiras oferecidas aos
cineclubistas:
“(...) até que prova em contrário seja feita, estamos em crer que
o grande público dos Cine-Clubes não constitui aquela selecção de
cultores da Arte cinematográfica que e pretende criar ou reunir (...).
Se o grande número dos actuais sócios das suas colectividades se
contenta em ver filmes em boas condições económicas, isso não
significa êxito. (...) isso quererá dizer que a missão [dos cineclubes]
não está a ser cumprida.“ (Cinema de Amadores, IV-1962: 2117)
António Tiago Acabado, histórico e dinâmico dirigente cineclubista alentejano,
estimava que o movimento cineclubista havia estagnado entre 1950 e 1958 e que 80%
dos cineclubistas sê-lo-iam apenas por motivos económicos, o que representava um
evidente fracasso da divulgação da cultura cinematográfica pelas massas (Granja, 2007:
377).
268
Após uma década de existência, o movimento cineclubista conheceria um fulgor
sem precedentes, sendo criados dezenas de cineclubes em diversos pontos do país e os
primeiros cineclubes nas antigas colónias ultramarinas.118 No entanto, embora já
existissem 15 cineclubes activos em meados de 1955, Paulo Jorge Granja (2006: 149150) defende que, “ao contrário do que se poderia esperar, nada indica que existisse
qualquer tipo de acção concertada entre os cineclubes antes dessa data.“ A existência de
relações pessoas e informais entre alguns dirigentes de diferentes cineclubes é
confirmada pela troca de textos para as palestras ou boletins e pela convergência entre
algumas posições estratégicas relativamente ao poder político.
O Primeiro Encontro Nacional de Cineclubes, realizado em Coimbra, parece ter sido
um momento de viragem, tendo fomentado e potenciado relações formais e regulares. O
desejado encontro concretizou-se em Coimbra, a 15 de Agosto de 1955, reunindo um
total de 11 dos 15 cineclubes em actividade119 que representam uma massa associativa
de cerca de 10 mil pessoas, mostrando a todos que o movimento atingiu a fase adulta,
“capaz de progredir em proporções nunca sonhadas pelos precursores“. Os resultados
práticos desta reunião, para além da troca de ideias, foram a formação de duas
comissões: a Comissão Representativa, responsável por “solicitar às entidades oficiais
auxílios e facilidades“; e a Comissão Consultiva, responsável pela constituição de novos
cineclubes e pela cooperação entre os cineclubes existentes por todo o país.
3.2.1. Federação Portuguesa de Cine-Clubes
O choque directo entre o movimento dos cineclubes e o poder político do Estado
Novo começou em 1955, com a realização do primeiro Encontro Nacional de Cineclubes
em Coimbra. Nesse encontro, onde se fizeram representar quinze cineclubes, o
118
1955: Cineclubes de Castelo Branco, de Oliveira de Azeméis, de Aveiro, de Vila Real de Santo António,
de Viana do Castelo, de Santarém, de Viseu, Clube de Cinema de Braga, Secção de Cinema do Círculo
Cultural Escalabitano, Secção de Cinema do Conselho Cultural da Assembleia de Vale de Cambra, Cultura,
Desporto e Turismo.
1956: Setúbal, Faro, Figueira de Foz, Tortosendo, Espinho, Olhanense, Torres Vedras, Centro Cultural de
Cinema (Lisboa), Leiria; Beira (Moçambique), Huambo (Angola) e Benguela (Angola).
1957: Beja; Lobito (Angola), Moçâmedes (Angola) e Lourenço Marques (Moçambique).
1958: Guimarães, Santiago do Cacém, Régua, Católico (Lisboa); Luanda (Angola) e Quelimane
(Moçambique).
1959: Bombarral, Moura, Universitário de Cinema (Porto, 2.ª tentativa), Funchal; Huila (Angola).
119
Estiveram presentes os cineclubes Imagem, do Porto, Universitário do Porto (em formação), Coimbra,
Castelo Branco, Santarém, Rio Maior, Estremoz e Vila Real de Santo António, e faltaram apenas Aveiro,
Oliveira de Azeméis, ABC e Universitário de Lisboa (Cineclube, 4, VI-1975: 5).
269
movimento alertou para a necessidade de legislação que regulasse o “estatuto do
cinema não-comercial“ e exigiu a criação de uma Federação Nacional dos Cineclubes.
Após a realização do Primeiro Encontro de Cineclubes, Manuel de Azevedo
(CPC/CCP) envolveu-se numa acesa polémica discussão pública com Fernando Duarte
(CCRM), a propósito da publicação de um texto, na revista Visor, que propunha a criação
de uma Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC) onde estivesse representado o
Ministério da Educação Nacional. Em claro desacordo, Manuel de Azevedo defendia um
modelo estatutário que visasse claramente uma autonomia política e ideológica dos
cineclubes face ao poder centralizador do Estado Novo. Para Azevedo, uma hipotética
FPCC teria de ser, “por definição, constituída pelos cine-clubes“, e incompatível com a
tutela de quaisquer Ministério ou instituição pública. Em Fevereiro de 1956, depois
desta acesa polémica, Manuel de Azevedo vinha alertar para as possíveis represálias
oficiais em relação aos cineclubes que se opunham à proposta do CCRM: os estatutos de
15 cineclubes estavam suspensos no Ministério da Educação Nacional, à espera de uma
aprovação oficial.
Um mês depois, o Secretariado Nacional de Informação, em colaboração com a
Comissão Consultiva dos Cineclubes, iniciou o processo de criação da FPCC, prometendo
respeitar a autonomia, livre-iniciativa e liberdade cultural da Federação e dos seus
membros. Manuel de Azevedo foi a primeira voz crítica pública: será que a criação da
FPCC “vem inteiramente ao encontro das necessidades dos cine-clubes?“ Contrariando
algumas expectativas optimistas, Azevedo começava por alertar para o processo de
formação dos estatutos da FPCC, entregue a uma Comissão própria “constituída na sua
maioria por indivíduos alheios ao cine-clubismo“ (Ibidem: 34-35).
No fundo, neste debate argumentava-se contra e a favor da regulamentação da
actividade cineclubista em Portugal: Fernando Duarte (CCRM) apelava à necessidade de
“disciplinar“ o movimento, nomeadamente através da FPCC e da “ajuda“ da autoridade
pública; Manuel de Azevedo (CPC/CCP) defendia a total autonomia dos cineclubes,
recusando qualquer espécie de regulamentação pública. Invariavelmente, a posição de
Duarte e do CCRM seria irreparavelmente desacreditada perante o movimento dos
cineclubes, prevalecendo a unidade da maior parte dos cineclubes em volta da posição
de Azevedo e do CPC/CCP, contra a proposta de uma Federação que viesse limitar a
autonomia dos cineclubes (Granja, 2006: 167-168).
A primeira referência que encontrei à criação de uma Federação de Cineclubes
data de Fevereiro de 1947, quando Guilherme Ramos Pereira, um cineasta amador do
270
Porto reclamava a criação de uma estrutura federativa nacional como “instituição apta a
coordenar e auxiliar solidamente os cine-clubes“ (Cinema de Amadores, II/III-1947: 79). Não era, portanto, a criação de uma estrutura federativa que preocupava o
movimento cineclubista, mas sobretudo que propósitos serviria.
As exigências dos cineclubes sempre foram recebidas com desconfiança pelo
Estado, que tratou de tomar as devidas precauções. O regime começou por criar a já
anunciada FPCC, dependente do Ministério da Educação Nacional (decreto-lei 40.572,
de 16 de Abril de 1956), e suspende os estatutos de alguns cineclubes que se mostraram
mais críticos à Federação e à intervenção do regime (Azevedo, 1956: 121-127).
Os primeiros artigos do decreto-lei 40.572 não deixam quaisquer dúvidas dos reais
objectivos da FPCC:
“Art. 3.º São atribuições da Federação:
1.º Informar e submeter à aprovação do Secretariado Nacional
da Informação, Cultura Popular e Turismo os estatutos dos novos
cineclubes;
2.º Facultar aos clubes federados informações e apresentar-lhes
sugestões tendentes a facilitar a organização das suas sessões;
Art. 5.º À comissão organizadora compete:
(…)
3. Preparar um projecto de estatutos a submeter à aprovação da
Presidência do Conselho.
(…)
Art. 8.º A criação de novos cineclubes fica dependente da
aprovação dos respectivos estatutos pelo Secretariado Nacional da
Informação, precedendo parecer da Federação.
Art. 9.º Pertencerá ao Secretariado Nacional da Informação a
inspecção e fiscalização da actividade dos cineclubes.“
De acordo com o texto legislativo, o Estado Novo criava esta estrutura como
reconhecimento do crescimento da actividade cineclubista e como movimento com
actividades relevantes na educação e cultura. Mas, na prática, esta FPCC era uma clara
tentativa de vigiar e condicionar as actividades políticas dos cineclubes e era também
uma resposta preventiva a uma ideia que tinha surgido no ano anterior no Primeiro
Encontro de Cineclubes.
Para integrar a Comissão organizadora da FPCC o SNI nomearia dois representantes
de cineclubes para dar a aparência de uma gestão democrática120:
120
Presidida pelo próprio Moreira Baptista, que delega a sua representação em Júdice da Costa, a
Comissão Organizadora era constituída por Domingos Mascarenhas (director da revista Estúdio, crítico de
cinema na Emissora Nacional e conselheiro da Tobis), Fernando Garcia (presidente do SNPC e membro do
Conselho de Cinema), António de Meneses (presidente da direcção do ABC e funcionário do SNI) e Alves
Castela (representante do Cineclube de Santarém, que havia sido fundado em Dezembro de 1955)
(Cineclube, 21/22, IV-1979: 4).
271
“(...) E esses dois cineclubistas vão buscá-los ao ABC Cineclube
de Lisboa cujo presidente da direcção era uma pessoa baça,
conformista e assustada e ao Cineclube de Santarém que se julgava
inofensivo e na órbita do 'Cine-clube de Rio Maior' que dirigia
Fernando Duarte.
(...)
Por trás de tudo isto já pairava a sombra do sinistro chefe da 3.ª
Repartição do SNI, Dr. Judice da Costa, futuro coveiro de muitos
cineclubes aos quais votava uma embirração pidesca e obstinada,
como depois de verá.“ (Cineclube, 5, VIII-1975: 4-5)
A reacção dos cineclubes far-se-ia sentir no II Encontro Nacional, que se realizou
na Figueira da Foz, em Agosto de 1956, que reuniu cerca de uma centena de dirigentes e
delegados de 21 cineclubes121. Nessa reunião, os elementos do ABC e do Imagem
decidiram abandonar a Comissão organizadora da FPCC. Mais tarde, o SNI nomearia
como representantes dos cineclubes elementos do Católico de Lisboa e Fernando Duarte,
presidente do Cineclube de Rio Maior (Ibidem: 5).
Um Novembro do ano seguinte, em Lisboa, reuniu o III Encontro Nacional, com
um recorde de cineclubes participantes. Entre outras discussões, surgiu a ideia de criar
os teleclubes, “associações de tele-espectadores (...) que se juntariam para apreciar e
discutir os programas de TV“, ideia prontamente afastada pelo poder político. (Idem,
6/7, X-XII: 44-45)
Para a realização do IV Encontro, que teria lugar em Santarém, e para evitar
problemas desnecessários, o movimento cineclubista decidiu convidar representantes
do SNI e da FPCC para assistir aos trabalhos, uma vez que nesse Encontro iriam ser
discutidos os futuros estatutos da FPCC. O SNI fez-se representar pelo próprio Moreira
Baptista, que discursou de forma tão elogiosa em relação aos cineclubes que o último
parágrafo acabaria por ser “cortado pela censura à imprensa...“ (Idem, 6/7, X-XII: 45)
Entretanto, começavam a surgir os primeiros problemas relacionados com os
estatutos-tipo impostos pelo SNI através da FPCC:
“(...) E o Dr. Jucide da Costa igualmente cumpriu a sua ameaça
preparando o célebre 'estatuto-tipo dos cineclubes' que
subrepticiamente começou a tentar impor a partir do que ele
considerava os cineclubes mais vulneráveis. E o mais vulnerável era o
cineclube de Setúbal, recém-constituído e que ainda não tinha
estatutos aprovados. E foi ocasionalmente (num encontro de um
dirigente setubalense com um dirigente dum cineclube de Lisboa) que
se soube da marosca. (...)“(Ibidem)
121
ABC, Centro Cultural de Cinema, Beira (Moçambique), Aveiro, Castelo Branco, Espinho, Estremoz, Faro,
Figueira da Foz, Imagem, Olhanense, Oliveira de Azeméis, Porto, Santarém, Setúbal, Universitário de
Lisboa, Viana do Castelo, Braga e Coimbra. Não se fez representar o Cineclube de Rio Maior (Cineclube,
6/7, X/XII-1975: 44).
272
Fundado em 1958, o Cineclube de Guimarães passaria pelas mesmas dificuldades
na aprovação dos seus estatutos. Em 1960, o SNI não homologou três nomes de sócios
eleitos pela Assembleia geral do Cineclube de Guimarães, dando indicações para que
fossem substituídos. Apesar dos protestos e votos de repúdio da associação, os três
nomes censurados foram substituídos. No ano seguinte, a censura política prosseguiu
com a rejeição de mais dois associados eleitos democraticamente. No dia 25 de Março de
1960, a PIDE emitia um ofício interno, posteriormente dirigido ao SNI, onde se lia que
Santos Simões “não tem idoneidade política para o desempenho da função proposta“
(ANTT-PIDE-SC-CI(2)-8566-7536: folha 288). Entretanto, outro relatório da delegação
do Porto da PIDE, datado de 29 de Setembro de 1961, referia-se a Santos Simões como
um “elemento declaradamente desafecto ao actual Regime“ e até transcrevia uma
opinião inconveniente do visado a propósito “dos acontecimentos de Angola“ [início da
guerra colonial no território a partir de Fevereiro de 1961]: “Está-se a colher o fruto
daquilo que se semeou. Sempre disse que o abandono a que aquilo foi votado daria o
resultado que se está vendo“ (Ibidem: folha 277).
A indignação levou a que as posições se radicalizassem ao ponto de, na
Assembleia eleitoral de 15 de Dezembro de 1961, os associados do Cineclube de
Guimarães tivessem eleito para os órgãos directivos três dos nomes censurados
anteriormente, numa acção que adquiriu contornos de provocação ao poder político
vigente. A reacção do SNI foi pronta: os nomes foram novamente reprovados e o chefe da
Delegação da Inspecção Geral dos Espectáculos do Porto visitou pessoalmente o
Cineclube de Guimarães para proceder a uma verificação dos livros de actas e dos
relatórios e contas.
Depois de novos votos de protesto contra a acção arbitrária do SNI, da indicação
de novos nomes para substituir os reprovados, de nova recusa dos órgãos
democraticamente eleitos, a situação acalmaria em Dezembro de 1963 com uma solução
criativa sui generis:
“(...) Dada a persistência da perseguição política manifestada
através das rejeições do SNI, que causavam não só perturbação nas
actividades do Cine-Clube mas também um natural desgaste na
imagem da Colectividade, foi decidido abrir uma segunda frente, isto
é, propor sócias para os Corpos Gerentes. Foi um aviso ao SNI e um tipo
de ameaça à sua acção desgastante, a fim de procurar estancar a
autêntica hemorragia de dirigentes. (...)“ (Simões, 1996: 32).
273
Importa realçar que, ao longo deste processo, apesar da perseguição política
movida por instâncias superiores do regime, nomeadamente a PIDE e o SNI, o poder
político local manteve os apoios regulares ao Cineclube de Guimarães, reconhecendo a
sua acção cultural e a própria identificação da cidade com este projectos.
Por todo o país, vários cineclubes indignaram-se e procuraram lutar contra a nova
legislação, mas a medida teve efeitos rápidos, dando início a um período de perseguição
política que levou a uma efectiva vigilância da PIDE sobre as actividades cineclubistas
(selecção de filmes, organização de palestras, entre outros), ao encerramento e extinção
de diversos cineclubes nos anos seguintes, à proibição do quinto Encontro Nacional de
Cineclubes previsto para Torres Vedras (1959), e que pretendia transformar os
cineclubes em “simples episódios do circuito comercial de arte e ensaio e sobretudo
punha debaixo de controlo o que antes era um movimento disperso e subversivo;
depois, já nos anos sessenta, virá o saque das instalações e dos documentos dos
cineclubes.“ (Monteiro, 2000: 308).
Em Fevereiro de 1960, num texto intitulado “Os cine-clubes das ilhas e do
ultramar“, a revista Celulóide (26, II-1960: 9) lembrava:
“(...) [não será] por acidente que existem no ultramar, no
continente africano, nove cine-clubes portugueses, o da Beira, de
Huambo, de Benguela, de Lourenço Marques, de Luanda, de
Moçamedes, do Lobito, de Quelimane e da Huíla, por ordem do seu
aparecimento.“
As actividades dos cineclubes angolanos e moçambicanos são destacados pela
revista porque “tem lugar de evidência no panorama cine-clubístico português e até
dentro de todas as actividades culturais do nosso País.“ Nesse mesmo texto, era revelada
uma carta de um dirigente do Cineclube de Benguela, em que J. Branco destaca um
objectivo fundamental para o seu cineclube:
“função divulgadora do cinema em todos os s/ aspectos, junto
de um público que embora muito vasto é bastante heterogéneo, tendo
por principal objectivo fomentar o interesse pelo cinema como
fenómeno artístico, despertar no associado um sentido crítico cada
vez mais apurado, transformar o frequentador do cinema num
espectador mentalmente activo.“
(...)
E limitámo-nos a só isto [sessões de cinema] por falta de
colaboradores. (…) E, sobretudo… falta de dinheiro… porque tudo
custa cada vez mais dinheiro.“ (Ibidem)
274
Contudo, uma das principais dificuldades dos cineclubistas angolanos e
moçambicanos, não referida no texto, era obviamente a vigilância e a perseguição
política por parte da PIDE e de outras entidades locais.
No final dos anos 50, figuras como Vítor Silva Tavares e Francisco Castro
Rodrigues, dois exemplos dos primeiros dirigentes cineclubistas angolanos, chegavam a
Angola (Benguela e Lobito, respectivamente) e, para além do passado cineclubista em
Lisboa, levavam também com eles diversos problemas com a polícia política do Estado
Novo, nomeadamente por ligações ao MUD e ao PCP (Cunha, 2013c: 48-49).
Do mesmo modo, não pode deixar de ser notada e considerada a presença de
activistas políticos relacionados com o movimento de libertação e das independências
africanas entre os quadros fundadores ou dirigentes de inúmeros cineclubes angolanos.
Esta relação parece-me suficiente para atribuir também aos cineclubes angolanos um
envolvimento na oposição cultural ou na resistência política ao regime estadonovista, à
clara semelhança do que aconteceu com o movimento cineclubista da então metrópole
(Ibidem: 60).
Não é, portanto, estranho que, com dirigentes relacionados com movimentos de
oposição política ao regime, quer com intervenções culturais ou eminentemente
políticas, a PIDE e outras autoridades locais exercessem uma atenta vigilância sobre as
suas movimentações e sobre os cineclubes que dirigiam ou dos quais eram meros
associados.
No caso de Moçambique, Guido Convents (2011: 213-216) que a existência dos
cineclubes foi importante e determinante para “o desenvolvimento duma contracultura“ em relação ao cinema hegemónico norte-americano, proporcionando aos
cinéfilos moçambicanos “outras imagens, estéticas e histórias que não correspondam a
uma só fórmula (os géneros) de Hollywood“.
Curiosamente, como desenvolverei mais adiante, o fenómeno cineclubista
moçambicano surge associado à prática de cinema de amadores: “(...) De facto, a
vontade de fazer filmes era também um dos estímulos para se organizarem em cineclubes“ (Convents, 2011: 317). Mas, ao contrário do que aconteceu em Angola, em que o
cineclubismo fomentou o desenvolvimento do cinema de amadores, em Moçambique
para que foi a necessidade de regular a prática do cinema de amadores que promoveu o
surgimento dos primeiros cineclubes locais. Por exemplo, o Cine-Clube da Beira,
fundado em 1956, que era o herdeiro de uma associação anterior fundada três anos
antes designada Grupo de Amadores de Cinema da Beira, definia como seu objectivo
275
criar uma secção de cinema de amadores (Ibidem: 220-221). Por seu lado, o Cine-Clube
de Lourenço Marques tinha um núcleo de produção e realização e ministrava um curso
elementar de cinema dirigido por Faria de Almeida (Ibidem: 232).
Os cineclubes moçambicanos, como os angolanos, também beneficiaram muito da
divulgação e promoção feita por meio radiofónico, uma vez que era comum que os
cineclubes tivessem os seus próprios programas de rádio para divulgação das suas
actividades: o Cine-Clube da Beira tinha um programa quinzenal na rádio Aero-Clube da
Beira e o Cine-Clube de Lourenço Marques tinha um programa de quinze minutos na
Rádio Clube de Moçambique (Ibidem: 225/230).
Do mesmo modo, tal como acontecia em Portugal continental, os cineclubes
ultramarinos editavam os seus boletins onde, citando textos de congéneres
portugueses, mostravam estar perfeitamente integrados no movimento cineclubista
português e, sobretudo, fortaleciam as relações inter-associativas e cinéfilas.
Para além de se envolverem activamente no movimento cineclubista português,
participando logo no III Encontro Nacional em Lisboa e em vários das reuniões anuais
seguintes, os cineclubes moçambicanos também mantiveram relações frequentes com os
congéneres dos países vizinhos. Foi por intermédio da Federation of Film Societies of
South and Central Africa que os cineclubes moçambicanos teriam acesso a filmes
proibidos em Portugal, como o caso de O Couraçado Potemkine (Serguei Eisenstein,
1925) ou A Mãe (Vsevolod Pudovkin, 1926) (Ibidem: 219). No entanto, Convents
sustenta que, ao contrário da generalidade dos cineclubes portugueses, os congéneres
moçambicanos foram mais influenciados pelo catolicismo e pela Igreja Católica do que
propriamente por outros movimentos, como o Partido Comunista. No início dos anos 50,
a própria Igreja Católica moçambicana dispunha de uma circuito de exibição próprio na
província que totalizava 6 salas de cinema sonoro que anualmente “registam quase
tanto público como os cinemas comerciais“, vendendo cerca de 192 mil bilhetes em
1952, assim como 10 máquinas de projecção Pathé Baby que permitia organizar cerca de
144 sessões anuais de cinema que reuniam cerca de 25.500 indígenas (Ibidem: 234).
Ainda assim, o mesmo autor sublinha, os cineclubes usavam os “pontos de vista
católicos para defender claramente posições que podem ser consideradas,
indirectamente, como uma crítica contra a ditadura e o colonialismo“ (Ibidem: 224).
O movimento dos cineclubes conheceu o auge de expansão e afirmação, grosso
modo, entre 1945 (fundação do Clube Português de Cinematografia, Porto) e 1959
(proibição do quinto Encontro Nacional de Cineclubes, Torres Vedras). Em cerca de
276
década e meia foram fundados cerca de quarenta cineclubes, distribuídos por todo o
país e por diversos meios sócio-económicos e culturais.
Para além de cerca de 60 processos individuais de cineclubes, então existentes em
Portugal e nas então colónias, existem ainda processos específicos no Arquivo Nacional
Torre do Tombo, no fundo Direcção Geral de Espectáculos, neste período, sobre
cineclubes que foram extintos entre a criação da Federação Portuguesa de cineclubes e
1966. Nessas duas pastas precisamente intituladas Cineclubes extintos por regiões,
contam os processos de extinção de 11 cineclubes: Régua, Santiago do Cacém, Setúbal,
Vila Real de Santo António, Castelo Branco, Braga, Funchal, Odemira, Oliveira de
Azeméis, Portalegre e Portimão (ANTT-SNI-IGAC, cx. 58-59).
Da análise destes 11 processos de extinção revelam algumas práticas e estratégias
recorrentes na relação entre o Estado Novo e os cineclubes. A primeira medida era saber
se os cineclubes em actividade tinham os seus estatutos formalmente aprovados em
Diário do Governo e pedir relações dos elementos que integravam os corpos dirigentes.
Logo após a criação da FPCC, o SNI tratou de contactar os cineclubes em actividade para
saber quais os que tinham os seus estatutos aprovados em Diário do Governo: Imagem,
CCC Lisboa, Católico Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Castelo Branco, Faro, Viana do
Castelo, Vizeu, Figueira da Foz, Olhanense, Oliveira de Azeméis e Vila Real de Santo
António. Os cineclubes que não tinham estatutos aprovados teriam de se submeter ao
novo regime legal e adoptar os estatutos-tipo impostos pela FPCC. Assim aconteceu em
1957 com os estatutos de CC Funchal, Espinho e Torres Vedras.
Os cineclubes com estatutos aprovados anteriores à criação da FPCC seriam alvo de
várias diligências no sentido de os “convencer“ a adoptar o novo estatuto-tipo. Em
vários casos, os processos da Torre do Tombo documentam diligências do SNI junto de
autoridades locais — Câmaras Municipais e Governos Civis — no sentido de interceder
junto da AG do CC para convencer os associados a aceitar os estatutos-tipo. “pois só
assim este Secretariado passará a auxiliar materialmente o Cineclube“ (Ibidem).
No caso desta aproximação “amigável“ não surtir resultados, o SNI avançava para
uma aproximação mais “hostil“. Essa estratégia assumiu várias modalidades, conforme
os casos:
a) Extinção por falta de estatutos-aprovados: CC Régua foi extinto em 1962 porque
se recusou sistematicamente a adoptar os estatutos-tipo da FPCC; Estatutos revogados
(20-jan-62) e os haveres do CCR foram entregues aos Bombeiros Voluntários; CC Setúbal
viu a sua autonomia ser transferida para uma comissão administrativa nomeada pelo
277
SNI, justificada pela recusa do CC Setúbal adoptar os estatutos-tipo, apesar da
intervenção do Governador Civil.
b) Extinção por falta de homologação aos dirigentes cineclubistas: CC Santiago do
Cacém suspendeu as suas actividades em agosto de 1961, devido a um vazio directivo
motivado pelas sucessivas não-homologações de dirigentes cineclubistas pelo SNI,
apesar das declarações de honra - “Declaro pela minha honra que estou integrado na
ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do
comunismo e de todas as ideias subversivas“ (CC Santiago do Cacém, 1961); CC Vila Real
de Santo António encerrou actividade em Maio de 1964 pela reprovação de 6 dirigentes
por parte do SNI; CC Oliveira de Azeméis suspendeu actividade pela própria AG informa o
SNI da suspensão das actividades por “ter esgotado todos os recursos possíveis e
imaginários para tentar obter um elenco directivo“.
c) Extinção por actividade irregular: CC Castelo Branco é extinto em 1962 por
proposta do SNI “com fundamento na paralisação da sua actividade desde 1957“, com
uma proposta para retirar os estatutos aprovados anterior à nova lei e que os bens
revertam para a FPCC; CC Braga foi extinto por solicitação do SNI ao GC de Braga, porque
o CCB deixou de exercer actividades desde 1957. A proposta é que seja retirada a
aprovação dos estatutos e que se mande liquidar a associação; CC Funchal foi extinto por
decisão da própria AG, que decidiu cessar actividade e que nomeou uma comissão
liquidatária. Motivações financeiras e permanente pressão do SNI, que enviava
sucessiva correspondência com questões burocráticas; CC Odemira foi extinto por falta
de actividade; CC Portalegre cessou actividade em 1966; CC Portimão cessou actividade
em 1964.
De
facto,
a
extinção
por
não-homologação
dos
corpos
dirigentes
democraticamente eleitos internamente ou pela irregularidade da actividade eram
estratégias de acção do próprio SNI ou de outras autoridades nacionais (Inspecção Geral
de Espectáculos) e locais (Câmaras Municipais e Governos Civis). O SNI, geralmente
através da FPCC, exigia uma série de formalidades burocráticas, como a verificação dos
relatórios e contas dos cineclubes ou a homologação dos corpos dirigentes eleitos, que
na prática forçavam uma diminuição ou paralisação das actividades cineclubistas. O
processo de homologação dos dirigentes era conduzido pelo SNI, mas envolvia diversas
dimensões: era ouvida a PIDE, mas também autoridades locais como as Câmaras
278
Municipais, os Governos Civis, a PSP, as delegações locais da Legião Portuguesa e da
União Nacional e, também, informantes.
Os relatórios evocavam diversas razões para o não sancionamento de nomes: por
serem “desafectos ao regime vigente“; por pertencer ao MUD (até existia um carimbo
para registar essa condição!) ou ao MUD Juvenil; por ter acompanhado o General
Delgado na campanha eleitoral de 1958 (CC VRSA, 1964); ou simplesmente por “não
oferecer garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado“.
A vigilância do SNI também se estendia às actividades intercineclubísticas,
nomeadamente a realização do Encontro Nacional de Cineclubes, organizado desde
1955. O SNI começou por vigiar estas reuniões, mas em 1959 acabou por proibir a
realização do V Encontro, que deveria ter lugar em Torres Vedras, com base numa
formalidade. O SNI alegou que uma reunião desse tipo seria uma competência legar da
FPCC. A FPCC ainda convidou o CCTV a integrar a comissão, mas assumindo a
organização como lhe competia legalmente, algo que foi rejeitado por diversos
cineclubes.
A imprensa também estava sob rigoroso controlo: eram pedidos com frequência
relatórios sobre textos escritos por dirigentes cineclubistas ou sobre assuntos
relacionados com a FPCC.
Por outro lado, o SNI também promovia formas de discriminação positiva,
geralmente através da FPCC, da Cinemateca ou das autoridades locais: depois de ver os
seus estatutos aprovados em 1965, o CC Odemira recebeu um subsídio mensal de 250 em
1965 e 300 em 1966 para a aquisição de um projector de 16mm; a FPCC enviava listas
com curtas metragens estrangeiras de interesse cultural em distribuição comercial e
listas de filmes disponíveis na Cinemateca para programação nos cineclubes, mas os
empréstimos só eram permitidos aos cineclubes federados na FPCC.
Com um esforço concertado dos seus diversos instrumentos de controlo social e
cultural, o Estado Novo lograra, em cerca de duas décadas, esgotar os dois principais
focos de oposição à sua política cultural. Apesar das tentativas de “assassinato“ – o
termo é utilizado por Paulo Filipe Monteiro (2000: 308) – do movimento cineclubista
pelo Estado Novo, aos anos 60 foram um período de uma resistência longa e discreta,
mas presente, de que o surgimento de novos cineclubes é o melhor exemplo: Barreiro,
Torres Novas e Portimão em 1960; Uíge (Angola) e Nampula (Moçambique) em 1962.
O recrudescimento da vigilância da Censura e da PIDE – influenciada sobretudo
pela candidatura presidencial de Humberto Delgado e outros acontecimentos políticos –
279
levou ainda à detenção temporária de Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, Vasco
Granja, Henrique Espírito Santo e José Manuel Castello Lopes (Pina, 1978: 44), assim
como as proibições da exibição livre de um filme de formato reduzido (produzido pelo
Cineclube do Porto em 1957).
No confronto ideológico vivido no final da década de 50, Paulo Jorge Granja
(2006: 196) considera que o “confronto até poderá ter sido desejado pelos cine-clubes
mais à esquerda como forma de radicalizar posições, confiantes de que a sua concepção
de cultura pareceria ser sempre muito mais moderna e, por isso, mais apelativa para as
classes médias instruídas que compunham o grosso dos seus sócios.“
Do lado do poder, Fausto Cruchinho (2001: 341) identifica duas figuras do
aparelho estatal como responsáveis pelo silenciamento do movimento cineclubista:
César Moreira Baptista, depois de ter desempenhado diversos cargos de
responsabilidade intermédia em vários órgãos corporativos, foi responsável máximo
pelo SNI/SEIT (1958-73), tendo promovido uma campanha pelo silenciamento do
movimento cineclubista e de luta contra outras formas de oposição cinéfila; Bernardo
Júdice da Costa é tido como a “eminência parda de Moreira Baptista na luta contra o
movimento cineclubista“ e como uma figura afecta aos interesses corporativos da
actividade cinematográfica, nomeadamente dos distribuidores.
3.2.2. De Dom Roberto à Semana de Estudos do Novo Cinema Português
Com um esforço concertado dos seus diversos instrumentos de controlo social e
cultural, o Estado Novo lograra, em cerca de duas décadas, esgotar os dois principais
focos de oposição à sua política cultural. Apesar de percursos distintos, os movimentos
cineclubista e neo-realista encontrar-se-iam numa derradeira tentativa de renovar o
cinema português. O ambicioso projecto e a concretização da obra Dom Roberto (1962),
de Ernesto de Sousa, foi o ponto de encontro e, simultaneamente, a falência dos dois
movimentos.
Alimentado no seio dos movimentos cineclubista e neo-realista, o filme era
aguardado com muita expectativa porque pretendia romper com a política
cinematográfica e com a filmografia obsoleta promovida nas décadas anteriores pelo
Estado Novo. Apoiado por um argumento do escritor neo-realista Leão Penedo (havia já
trabalhado com Manuel Guimarães em Saltimbancos, 1951), Ernesto de Sousa queria
280
fazer da história de um vagabundo sonhador e da sua misteriosa companheira um
momento de viragem no cinema português. O percurso do próprio realizador, um
exigente crítico de cinema e artista pluridisciplinar pioneiro das vanguardas desde os
anos 40, também aumentava o capital de confiança depositado no projecto.
O filme teve um longo processo de produção, inédito em Portugal: em Abril de
1959, a revista de cinema Imagem lançou a Cooperativa do Espectador, um novo modelo
de financiamento que previa a venda prévia de bilhetes de cinema aos futuros
espectadores; em início de 1961, reunidos os 600 contos necessários para a produção, o
filme começou a ser rodado à margem de qualquer apoio oficial do Estado Novo; em
meados de 1962, quando estreou, a promoção ao filme apresentava-o orgulhosamente
como um sinal de optimismo para o futuro novo cinema português. Leonor Areal (2008:
334) também refere, para além da subscrição pública, alguns leilões organizados pelos
cineclubes.
As expectativas elevadas fizeram com que a desilusão fosse proporcionalmente
maior. O filme começou por ser mal recebido precisamente nos núcleos que lhe tinham
garantido a existência: rotulado de “resquício neo-realista“, o filme não tinha
conseguido dar início a uma nova era cinematográfica em Portugal, mantendo muitas
das características, sobretudo técnicas, que afastavam os cinéfilos do cinema português
produzido no ideário vigente.
O objectivo inicial seria contrariar o arquétipo base das comédias ou dramas
musicais de então: histórias de portugueses da classe média urbana, economicamente
remediados, socialmente conformados e politicamente inócuos. A apologia de valores
como autoridade, família e trabalho enquadravam-se na ideologia vigente e eram
veiculados, directa ou indirectamente, pela produção cinematográfica permitida pelo
Secretariado Nacional de Informação.
Para promover a renovação, Ernesto de Sousa reuniu uma equipa técnica
maioritariamente jovem e inexperiente, mas “que em contrapartida foram equilibradas
por um grande entusiasmo“, e apostou em inovações técnicas:
“A esse respeito é interessante observar que todo o diálogo foi
gravado directamente — síncrono — o que raramente se faz em
Portugal e é considerado mais oneroso do que a dobragem. (...)
São necessários ensaios como no teatro. No cinema têm mais
importância as repetições feitas no momento das filmagens do que os
ensaios anteriores, embora estes, por vezes, também sejam
indispensáveis. Com efeito, no cinema há que obter uma
espontaneidade que não é possível ensaiar antes. O papel de realizador
é também o de criar um clima propício a essa espontaneidade. Esse
281
clima só se pode criar na própria altura das filmagens, na hora exacta e
nervosa de entrar em acção.“ (Ernesto de Sousa apud Boletim
Cooperativista, 106, VIII-1962: 12)
Mas se Dom Roberto queria contrariar a ideia-base da “alegria na pobreza“, e ainda
que tentasse fugir ao modelo narrativo dominante, o realizador não consegui
desembaraçar-se da tentação de estereotipar certas figuras e situações: a acção decorre
num pátio sem cantigas mas igual aos dos anos 30 e 40; o final feliz demasiado ingénuo
e conformista. Ernesto de Sousa também não conseguiu sequer livrar-se de alguns vícios
de produção e condicionalismos técnicos que afastavam o cinema português das novas
vagas europeias em forte ascensão nesse período.
Apesar do mérito de trazer para protagonistas duas personagens praticamente
invisíveis no cinema português de então – vagabundos, marginais, sem-abrigos –, o
filme centrava-se muita na vontade de passar uma mensagem social e com isso reabriu a
velha discussão estética sobre a primazia da forma ou do conteúdo. A crítica da época
reconhecia algumas qualidades do filme sobretudo na aproximação a temáticas neorealistas ou a uma certa ambiência poética, mas rejeitava qualquer semelhança com o
cinema moderno.
De facto, Dom Roberto não apresenta esses elementos narrativos e técnicos
próprios da ruptura do cinema moderno – subjectividade e abstracionismo nos temas e
nas personagens, narrativa e montagem não-linear ou descontinuada, reflexividade
sobre o lugar do cinema na sociedade, entre outros – mas também não é propriamente
um exemplo do velho cinema português das décadas anteriores. É claramente, e cada
vez mais reconhecidamente, um filme-fronteira, de transição para um novo modelo
estético que chegaria nos anos seguintes com jovens realizadores como Paulo Rocha,
Fernando Lopes, António de Macedo ou João César Monteiro e que ficaria conhecido
como o novo cinema português.
José Ernesto de Sousa era na altura redactor da revista Imagem e havia sido um
dos fundadores do efémero Círculo de Cinema, um dos primeiros cineclubes portugueses,
encerrado por ordem da PIDE (Henry, 2006: 246). Havia vivido em Paris entre 1949-52,
“onde frequentou cursos de cinema da Cinemateca, da Sorbonne e do Institut de Hautes
Études Cinematographiques, aulas de arte na Ecole du Louvre e fez o Cours d’Initiation
aux Arts Plastiques de Jean d’Yvoire“ (Ernesto de Sousa: em linha)
Apoiado apenas pelo entusiasmo cineclubista, Dom Roberto foi “o único fruto
bacteriologicamente puro da geração cineclubista, ou seja, o único que ficou à margem
282
de qualquer contacto com as esferas oficiais, quer directa quer indirectamente“ (Costa,
1991: 117). À semelhança da recepção dos filmes de Manuel Guimarães (Saltimbancos,
Nazaré, Vidas sem Rumo), com declaradas intenções neo-realistas, o esperado filme de
Ernesto de Sousa foi recebido com desilusão pelos movimentos que o perfilharam
ideologicamente. Rotulado de “resquício neo-realista“, Dom Roberto havia gorado as
promessas de romper com o passado e de iniciar um novo cinema.
Apesar do aparente insucesso, Michelle Sales (2011: 142-143) lembra que o filme
despertou “o máximo interesse na crítica das revistas especializadas e da imprensa
diária“ e venceu, em 1963, o Prémio dos Jovens Críticos do Festival de Cannes. No
fundo, hoje o filme é visto apenas como
“(...) algo que apenas agitou o caminho, preparou o terreno,
pois a crítica que vinha, ao longo da década de 1950, constantemente
debatendo sobre o modelo, a forma e a “reforma“ do cinema português
não aceitou o filme que, ao apontar para a precariedade da vida
portuguesa, retomando elementos da cultura popular e do melodrama
não alcançou as expectativas - que eram grandes“.
Parece óbvio que o fracasso comercial do filme Dom Roberto está relacionado com
o esmorecer do movimento nessa viragem de década. Se o projecto nasceu num
momento de euforia dos movimentos cineclubista e neo-realista, nesses três anos que se
passaram até à estreia o cenário mudou radicalmente: a revista Imagem desapareceria
em 1961, o surgimento de novos cineclubes abrandou e, consequentemente, o número
de associados diminuiu.
A falta de público cineclubista também ficaria associada ao fracasso comercial do
filme Belarmino (1964), de Fernando Lopes. Com uma história de produção totalmente
distintas, mas com um jovem realizador com passado cineclubista (foi associado do
Cine-Clube Imagem), o produtor António da Cunha Telles optou por um lançamento do
filme junto do circuito cineclubista (Jornal de Letras e Artes, IV-1970: 28-31). Tal como
sucedeu com Dom Roberto, também este filme parece ter padecido da falta de
entusiasmo que o movimento cineclubista vivia nesses anos de ressaca da perseguição
política.
Anos mais tarde, Luís de Pina atribuiria esta fragmentação do público cinéfilo,
visível desde a década de 1950, ao novo ambiente cultural vivido sobretudo desde as
experiências cineclubistas. O desenvolvimento destas experiências desde a década de
1950 marcou o ponto de cisão do público cinéfilo (Pina, 1977: 44).
283
A partir da experiência cineclubista, o público de cinema português diminuiu em
número mas tornou-se progressivamente mais exigente e mais selectivo com a oferta
cinematográfica. Para Adérito Sedas Nunes (2000: 33-34), a “modernização“ da
sociedade portuguesa a partir dos anos 1960 deveu-se a dois factores essenciais: “o grau
de urbanização das populações“ e “a densidade do escol cultural“. De facto, o espaço
social da nova geração cinéfila reflectia as transformações da sociedade portuguesa:
concentração urbana, juvenilização da intervenção política e cultural e expansão da
formação superior. O imaginário social dos novos cineastas, e consequentemente dos
seus filmes, deixa de ser o “pátio das cantigas“ e passam a ser as novas Avenidas de
Lisboa, espaço onde habitam e convivem nas diversas tertúlias. O público de cinema nas
décadas de 1960-70 passa a ser um público mais culto, com origem nos “cineclubes,
grupos universitários, burguesia culta“ (Pina, 1977: 72).
Em 1960, na rubrica Cinema do programa APA, no Rádio Clube Português, um
dirigente do Cine-Clube Imagem declarava que um cineclube para subsistir precisava de
número médio de 1200 associados, mas que 300 seria o número ideal para desempenhar
a sua missão divulgadora da cultura cinematográfica (Cinema de Amadores, II/III-1960:
1814). Se estes números até poderiam ser uma realidade nas grandes cidades, como
Lisboa, Porto, Luanda ou Lourenço Marques, dificilmente o seriam na generalidade dos
cineclubes portugueses da “província“.
Por outro lado, o confronto aberto entre cineclubes e poder político vivido no final
dos anos 50 resultaria um claro prejuízo para o movimento cineclubista. Durante a
década de 60 e inícios da seguinte, o movimento cineclubista sobreviveu mas perdeu
muita da influência social e cultural que conquistara nos anos 50. A proibição da
realização do V Encontro em 1959 representou o fim de um período áureo do
cineclubismo em Portugal, um momento histórico em que vários cineclubes portugueses
foram determinantes na formação de uma gerações de cinéfilos onde se incluíam
algumas figuras que nos anos seguintes seriam influentes no cinema português: Alberto
Seixas Santos, Alfredo Tropa, Cunha Telles, António Faria, António de Macedo, Faria de
Almeida, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Rogério Ceitil, António Escudeiro e Henrique
Espírito Santo, entre outros.
Em 1961, um ano de estagnação do movimento, surgiram alguns apelos à
intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian, que nesse mesmo ano havia concedido
um apoio financeiro ao Cineclube Universitário de Lisboa. Roberto Nobre, numa extensa
carta aberta dirigida ao presidente da Gulbenkian, apelava à intervenção da instituição
284
sobretudo na formação cinematográfica de novos valores e do próprio público,
sugerindo a criação de uma escola de cinema, uma cinemateca e uma espécie de
“supercineclube“ (Diário Popular, 27-VII-1961: 1/5). Fazendo eco a este apelo,
Henrique Alves Costa aplaude particularmente a valorização do movimento cineclubista
e apela ao apoio da Gulbenkian a este movimento progressivamente fragilizado e torna
pública uma diligência anterior promovida por esta instituição à Fundação Gulbenkian:
em 1959, o Cineclube do Porto havia dirigido à Gulbenkian uma “documentada
exposição“ que alertava para a necessidade de uma intervenção directa da Fundação no
cinema português (Ibidem, 10-VIII-1961: 1/5).
Em Janeiro de 1964, a revista Cinema de Amadores (I-1964: 2274-2275) atribuía a
“crise de orientação“ do movimento cineclubista à falta de “bons dirigentes “:
“A atracção de um numerosos público cinematográfico na
associação pelas simpáticas colectividades que foram surgindo pelo
país inteiro permitia imaginar uma orientação isenta de grandes
preocupações, limitada à escolha de filmes, e divulgação de opiniões
críticas seleccionadas de acordo com o gosto ou a simpatia dos
encarregados dessa função, ou da conveniência do ciclo em que
fossem incluídas.
Porém, como era de prever, semelhante sistema aparentemente
satisfatório, em meia dúzia de anos provou a sua insuficiência como
meio de bastar aos desejos e aos sonhos louváveis de alguns
apaixonados do Cinema que aspiravam ver no cineclubismo um modo
de glorificação da Sétima Arte. Por sua vez, o grande público dos cine
clubes, a grande maioria dos espectadores das sessões dessas
colectividades, quase simultaneamente começou a dar mostras de
cansaço e a deixar de comparecer às exibições dos filmes.
(...)
O cineclubismo entre nós não deve morrer, porque ele pode ser
um valioso esteio da cultura cinematográfica. A sua sobrevivência está
porém, sujeita à competência e à dedicação dos responsáveis pela sua
orientação.
Veríamos com prazer que no início da próxima temporada
cinematográfica um halo de renovação irradiasse das principais
sessões a realizar, como reflexo de uma nova orientação destinada a
dar ao movimento o sentido exacto das suas funções divulgadoras do
Cinema como expressão de Arte e veículo de Cultura.“
Apesar de documentar uma quebra no número de associados, o artigo citado,
certamente “visado pela censura“, não referia que uma das principais causas da quebra
abrupta do número de associados estava relacionado com a suspensão ou encerramento
de diversos cineclubes por todo o território, a perseguição de vários dirigentes e a forte
acção de pressão e limitação sobre as actividades regulares de diversos cineclubes por
iniciativa do SNI ou da própria PIDE.
285
Como resume Paulo Jorge Granja (2007: 380), “nunca se falou e se escreveu tanto
sobre cinema como entre 1945 e meados dos anos 60, período áureo do movimento dos
cineclubes“:
“Ainda que [António-Pedro] Vasconcelos o ignorasse de forma
ostensiva, com evidentes intuitos polémicos, seria precisamente a
'geração dos cineclubes' a conseguir ultrapassar 'a resistência dos
intelectuais em reconhecer o cinema como fenómeno da cultura',
tornado possível, a partir de finais dos anos 50, a afirmação inequívoca
do cinema como arte em Portugal. (...) Apesar de pouco numerosos,
foram eles a conseguir impor uma nova forma de ver o cinema, o que
permitiria à geração seguinte fazer um outro cinema. (...)
(...) paradoxalmente, o movimento dos cineclubes, que
procurara afirmar a universalidade do cinema, conseguiria legitimar o
cinema não através da divulgação da cultura cinematográfica de
massas, mas sim pela formação de pequenos núcleos oriundos das
elites intelectuais que acabariam por rebelar-se contra a cultura
cinematográfica da maioria dos cineclubes.“
Apesar de todas as contrariedades ditadas pela perseguição e repressão política,
são conhecidos episódios de resistência silenciosa durante os anos 60, como a exibição
em circuitos restritos de filmes proibidos. Rita Capucho (2014) relata um desses
episódios, ocorrido no Cineclube de Aveiro:
“Mas, em 1967, de acordo com Matos Barbosa, o filme foi
exibido em Portugal na sala de cinema do Vasco Branco. Fernando
Oliveira, amigo de Matos Barbosa que vivia em Paris, contou que tinha
uma cópia do “Couraçado de Potemkin“ em 8mm. O entusiasmo foi
grande, e o grupo montou um esquema para que pudessem assistir ao
filme. A pelicula seria enviada diretamente de Paris para Aveiro aos
bocados. O processo demorou algum tempo, mas finalmente a cópia
ficou completa e os frequentadores da sala de cinema da casa de Vasco
Branco puderam ver este filme proibido, este mundo… conseguiram
trazer o mundo a casa.“
Ainda que de forma simbólica, algumas figuras de destaque do movimentos
cineclubista – como Henriques Alves Costa, Manuel de Azevedo ou Henrique Espírito
Santo – teriam um papel importante no processo de afirmação e reconhecimento do
Novo Cinema português. A importância da Semana de Estudos sobre o Novo Cinema
Português, organizado pelo Cineclube do Porto em Dezembro de 1967, ou a intervenção
de algumas figuras nas discussão pública em torno do que seria a Lei 7/71, tida como
uma lei progressista e defensora dos interesses do cinema moderno português, são dois
bons exemplos da presença do movimento cineclubista na história do cinema português.
Segundo o testemunho de Fernando Lopes, na sequência das divergências que
precipitaram a falência das Produções Cunha Telles, a trupe do novo cinema necessitava
286
de uma oportunidade colectiva de discussão e reflexão catártica, mas “um psicodrama
desse tipo tinha de realizar-se fora de Lisboa.“ Surgiu então a ideia de contactar e
propor ao Cineclube do Porto a realização de um Encontro onde seriam exibidos filmes e
promovidos debates em torno do novo cinema português. Independente das “querelas
ideológicas“ que animavam a população cinéfila lisboeta, respeitado pelo seu passado
no protagonismo da luta pela causa cineclubista e dirigido por Henrique Alves Costa,
uma figura consensual no seio do novo cinema, o Cineclube do Porto reunia todas as
condições para empreender tal iniciativa (Lopes, 1985: 64).
Entretanto, o Cineclube do Porto solicitava à Fundação Calouste Gulbenkian um
subsídio para a iniciativa. A 14 de Novembro, o apoio da Gulbenkian avançava com uma
sugestão: dedicar uma das sessões de trabalho “à ponderação de como seria desejável,
do ponto de vista do cinema e dos artistas que a ele se consagram, que a Fundação
interviesse.“ Desta proposta, assinada por Carlos Wallenstein, responsável pelo Sector de
Teatro, surgiria a mesa-redonda intitulada “A Fundação Calouste Gulbenkian e o Cinema
Português – Futuras Perspectivas para o Novo Cinema Português“ (Cunha, 2005: 56).
Para estimular os trabalhos, o Cineclube do Porto decidiu convidar um variado
leque de personalidades que considerasse ter, directa ou indirectamente, uma
intervenção positiva na discussão do “estado cinéfilo da nação“. Entre os diversos
convidados, quer como participantes ou como observadores, encontramos realizadores,
aspirantes a realizadores, técnicos, distribuidores e exibidores, cineclubistas e críticos
de cinema. Significativos do alcance pretendido para este evento foram os convites
endereçados a algumas figuras de mérito cultural já à época reconhecido, mas com
ligação indirecta à actividade cinematográfica, como José Cardoso Pires, Alves Redol,
Carlos de Oliveira, Fernando Namora, José-Augusto França, José Tengarrinha, Fernando
Lopes Graça, José Vaz Pereira, Francisco Rebello, Manuel da Fonseca, Manuel Jorge
Veloso, Nuno de Bragança, Orlando de Carvalho, Jorge Peixinho e Urbano Tavares
Rodrigues. Para além do mérito cultural reconhecido, estas figuras tinham em comum
uma oposição mais ou menos activa contra a política cultural do regime. (Ibidem)
Alguns participantes e observadores reservavam altas expectativas reservadas para
o evento: Fonseca e Costa, numa carta dirigida à comissão organizadora do evento
(Semana do Novo Cinema Português: Correspondência Avulsa, 11-XI-1967), felicitava o
Cineclube do Porto por pretender organizar uma “coisa que não seja a criticazinha de
circunstância a que nos habituaram alguns dos mais proeminentes e vetustos exegetas
cinematográficos da nossa terra“, considerando que no “meio de tanta asneira é
287
consolador verificar que há quem esteja a ver as coisas com olhos de ver, analisando-as
dentro do seu contexto.“
Durante a primeira semana de Dezembro, com o apoio financeiro da Câmara
Municipal do Porto e da Fundação Gulbenkian, o novo cinema português era o tema em
estudo e reflexão num evento organizado por um cineclube. Da concorrida mesaredonda realizada na última noite do evento haveria de resultar um breve relatório
assinado por vários dos realizadores presentes dirigido à Fundação Gulbenkian, uma
primeira versão do célebre Ofício do Cinema em Portugal. Este documento formalizava o
principal debate ocorrido na semana: de que modo seria materializada a intervenção da
Gulbenkian no novo cinema (Cunha, 2005: 57-58).
Quando se esperava que a iniciativa organizada pelo Cineclube do Porto seria mais
“um muro de lamentações dos cineastas portugueses que vinham tentando descobrir
novos rumos para a nossa cinematografia“, o forte interesse manifestado pela
Gulbenkian transformou a Semana de estudos num momento decisivo no triunfo do
novo cinema (Celulóide, VIII-1971: 12). Inspirada numa iniciativa idêntica organizada
pelo Cineclube de Pontevedra em relação ao novo cinema espanhol, a Semana não podia
escapar à vigilância da Censura, que exigiu ler previamente os textos a apresentar nas
sessões de debate.
A iniciativa de organizar tão complexo evento devolveu alguma credibilidade e
demonstração de vitalidade ao Cineclube do Porto e ao movimento cineclubista em
geral.122 Desde 1959, com a proibição do V Encontro Nacional, o movimento entrara
numa visível fase de decadência orgânica e dinâmica. Como reconheceu o próprio
Cineclube do Porto, a Semana foi uma “realização adulta que deu ao Clube Português de
Cinematografia grande publicidade e uma demonstração da capacidade de realização
desta Associação“ (Relatório e Contas da Direcção, 1967: 11).
No entanto, acredito que não fora o interesse da Gulbenkian e a sugestão de
realização da mesa-redonda extraordinária, arrisco a especulação de que a Semana teria
sido um fracasso. A melhor confirmação desta suposição poderá ser o fracasso revelado
pela fraca participação de realizadores e críticos no Encontro de Realizadores, Técnicos e
122
Ainda assim, do ponto de vista financeiro, o evento só foi possível com o contributo extraordinário de
várias pessoas e entidades: O custo total do evento foi de 102.674$80, enquanto as receitas ascenderam
aos 108.850$00, excluindo as receitas de bilheteira. A Gulbenkian contribuiu com 50.000$00, a Câmara
Municipal do Porto com 20.000$00 e o leilão de obras artísticas oferecidas por Júlio Pomar, Júlio Resende,
José Rodrigues, Francisco Relógio, Augusto Gomes e Ângelo de Sousa rendeu 38.850$00. (Relatório e
Contas da Direcção, 1967: 10-11).
288
Críticos, a pretendida sequela da Semana promovida pelo Cineclube do Porto (Cunha,
2005: 61).
Em Dezembro de 1970, o Cineclube do Porto promovia o Encontro de Realizadores,
Técnicos e Críticos, uma sequela da Semana do Novo Cinema Português, desta feita para
debater a intervenção do novo cinema na formulação na nova lei de cinema. Apesar de
ausências significativas, compareceram ao encontro realizadores influentes como
Fonseca e Costa, António de Macedo e Cunha Telles. Tendo como contexto a discussão
da nova lei de cinema, esta iniciativa procurou repetir a fórmula da anterior, mas a
ausência significativa de vários realizadores e críticos convidados retirou algum
protagonismo e a influência pretendida. Apesar de todas as expectativas, as principais
propostas apresentadas foram apenas a criação de uma Associação de Realizadores de
Cinema e a constituição de uma Cooperativa de Distribuidores (Ibidem: 131).
Pouco antes, o Ofício do Cinema em Portugal (1968: 29) estimava que entre a
proibição do V Encontro (1959) e a data de entrega do documento, em cerca de uma
década, o movimento cineclubista perdera mais de 20 mil sócios e metade dos
cineclubes em actividade. Naturalmente, o relatório assinado pelos elementos da nova
geração “escondia“ ou não fazia referência à influência das “repressões mais musculadas
do regime“ nesse enfraquecimento do movimento, atribuindo a causa do declínio a
razões intrínseca ao próprio movimento cineclubista, que teria sido vítima do seu
próprio sucesso (Granja, 2007: 381-382).
Exceptuando os meses que antecederam e sucederam à realização da Semana de
Estudos no Novo Cinema Português, entre finais de 1967 e inícios de 1968, o movimento
cineclubista não conseguira, como acontecera antes, recuperar o fulgor e a vitalidade do
violento “ataque“ de que fora vítima por parte do aparelho repressor do Estado Novo. A
década de 60 assistiria a uma clara estagnação e lenta agonia do movimento que só
esboçaria reacção após a queda da ditadura, já em meados da década seguinte.
Para concluir, gostaria de recuperar uma reflexão de Catarina Alves Costa (2012:
80) sobre o movimento cineclubista português:
“Este movimento não foi, no entanto, uniforme no nosso país,
tendo existido cineclubes mais implantados num ambiente popular,
como o do Barreiro, e outros mais ligados às elites lisboeta, como o
Cineclube Imagem, ou portuense, caso do Cineclube do Porto. Havia,
também, os cineclubes alinhados com a política cultural do
salazarismo, como o de Rio Maior, que rejeitou o cinema italiano“.
289
Particularmente durante o Estado Novo, o movimento cineclubista em Portugal foi
um fenómeno mais complexo do que se pode depreender de uma primeira abordagem.
Consoante a sua localização geográfica e ou composição social, os cineclubes
portugueses, apesar da repressão política e social que os condicionou durante os anos
50, foram muito influentes na formação de sucessivas gerações de espectadores. As
suas programações e demais actividades — que na generalidade dos cineclubes
ultrapassava largamente a mera exibição de filmes — são indicadores a considerar para
compreender a dimensão social, política e cultural do fenómeno associativo cineclubista
em Portugal.
3.2.3. O cineclubismo entre as lutas de Abril
A realização, em Aveiro, logo nos dias 25 e 26 de Maio de 1974, do V Encontro
Nacional de Cineclubes foi importante para a discussão da função do cinema na
sociedade portuguesa no pós-25 de Abril e que papel poderia desempenhar o movimento
cineclubista nesse momento tão marcante da História de Portugal. Sol de Carvalho, para
além de representar o Cineclube Universitário de Lisboa, escreveu um relatório para a
revista Cinéfilo (34, I-VI-1974: 34-43) onde resumiu as posições defendidas pelos
diferentes cineclubes e deixou as suas impressões:
“Como seria de esperar, este encontro revestiu-se de surpresas
bastante importantes. De salientar, primeiro, o aparecimento público
de cineclubes uns mais conscientes, outros não se apercebendo ainda
da globalidade da problemática (e é de salientar a importância disto,
dado o isolamento a que esses cineclubes eram votados), e que
punham, todos eles, em causa a orientação fundamental que até aqui
presidiu ao cineclubismo. Para al[em de algumas provocações de
lamentável mau gosto (por exemplo, dizer que nem todos os
cineclubes poderiam ter a mesma estratégia, dado que a massa de uns
era operária e a de outros era estudantil, tentando atirar, assim, a
massa estudantil contra a operária), o encontro decorreu numa
passagem sucessiva a 'impasses' provenientes de duas concepções de
fundo radicalmente opostas. (...)
Uma dessas linhas, a linha reformista, representada por um
número muito restrito de cineclubes, encabeçada pelo ABC, pretendia
fundamentalmente formar uma federação a todo o custo, uma
federação constituída, discutida e aprovada, separada das massas
cineclubistas, e isto com a intenção de ter uma base material de
acordo entre os diversos cineclubes, base material essa que lhes
permitisse dividir entre os cineclubes essas possibilidades práticas que
o Estado depois do 25 de Abril, se encontra disposto a dar. (...)
290
A outra alternativa, radicalmente oposta, caracterizou-se
essencialmente por (...) uma tomada (tanto mais colectiva quanto
possível) de posição de massas que fosse verdadeiramente
progressista, defendendo uma cultura ao serviço do povo, na defesa de
uma prática cineclubista nesse sentido.
O encontro teve perfeitamente bem claras, e desde o início,
essas duas posições: logo na formação da mesa que foi formada,
segundo proposta aprovada do ABC, pelos cineclubes (aliás, dos seus
representantes) do Porto, ABC, Barreiro, Aveiro. (...)“ (Ibidem: 41-42)
Em suma, enquanto uns (ABC, Porto, Barreiro, Aveiro, Bento de Jesus Caraça,
Coimbra, Guimarães, Boavista e Torres Novas) pretendiam criar imediatamente uma
nova Federação que substituísse a anterior FPCC, outros (Universitário de Lisboa,
Santarém, Viseu, Torres Vedras, Católico e Imagem) pretendiam marcar um novo
Encontro Nacional que fosse alargado a todos os cineclubistas e não apenas aos seus
dirigentes, propondo que a questão fosse discutida em reunião de assembleia-geral de
associados a realizar internamente em cada um dos cineclubes. A tese aprovada seria
esta última, ficando o ABC encarregue de coordenar a comunicação entre os diversos
cineclubes.
Henrique Alves Costa, o veterano dirigente do Cineclube do Porto, em texto
publicado na revista Cineclube (12/13, X/XII-1976: 4), lamentava o impasse criado
nesse Encontro a oportunidade perdida, uma vez que, exceptuando o Cineclube que
dirigia, nenhum outro cineclube discutiu internamente os novos estatutos para a nova
FPCC, fazendo com que o assunto se arrastasse sem resultados práticos. Os cineclubes
continuavam sem um veículo de representação colectiva que pressionasse o poder
político, o que levou inclusive a “situações ambíguas com consequências funestas“ para
todo o movimento, enfraquecendo-o e dividindo-o, gerando inclusive momento de
tensão e conflito entre alguns cineclubes (Ibidem).
No contexto dos vários debates de Abril, o movimento cineclubista tentou fazer
valer a sua posição enquanto um circuito de exibição paralela ao comercial de forma a
contribuir para a descentralização e democratização cultural do país depois de décadas
de ditadura, nomeadamente com a criação de uma Cinemateca no Porto e noutras
localidades do país (Idem, 1, XII-1974: 19-21), mas as divisões no seio do próprio
movimento cineclubista fragilizavam uma tomada de posição mais forte e significativa
juntos dos agentes políticos.
Naturalmente, a futura lei de cinema estava no centro das atenção do movimento
cineclubista, reclamando ser voz activa na sua elaboração antes da discussão pública,
291
“como órgãos de cultura cinematográfica“, e defendendo medidas que protegessem e
fomentassem a exibição de cinema não-comercial, através de isenções fiscais ou apoios
públicos (Ibidem: 18). Por outro lado, o movimento cineclubista preferia uma estratégia
de “colectivização“ do cinema em vez da sua “estatização“ ou de qualquer forma de
“dirigismo cultural“ (Ibidem).
Os dois principais cineclubes lisboetas, o ABC e o Imagem, talvez pela proximidade
em relação ao centro de decisão do poder político e de algum prestígio histórico,
assumiram uma posição mais interventiva no debate acerca do cinema no pós-25 de
Abril. Outros cineclubes igualmente históricos e com um passado de resistência, como o
do Porto, mantiveram uma intervenção activa, mas aparentemente menos mediática no
plano político. O ABC, e particularmente o seu dirigente Manuel Neves, seria acusado de
se assumir ilegitimamente como representante dos cineclubes, condição que lhe
permitiria ser nomeado para a comissão de redacção da nova lei e para o Grupo de
Trabalho do IPC (Idem, 5, VIII-1975: 19).
É o próprio Manuel Neves quem esclarece o sucedido, em entrevista a José Filipe
Costa (2014: 134-137):
“Fui nomeado para a Comissão Consultiva das Atividades
Cinematográficas em representação dos cineclubes do Sul. O processo
foi complicado. Fui contestado por parte do cineclube Universitário.
Eu era conotado com determinada tendência política, eles estavam do
lado do MRPP e eu era conotado com o PCP. As pessoas sabiam que o
cineclube ABC, aliás como muitos outros cineclubes, eram
influenciados por pessoas ligadas ao PCP ou próximas do PCP.
(...) Só mais tarde o meu nome foi contestado, mas isso é
inseparável do processo das Unidades de Produção. Depois, de entre
os elementos da Comissão Consultiva, onde estavam representados
distribuidores, comissão etária, cineclubes, enfim, onde todas as
organizações e instâncias relacionadas com o cinema, do ponto de
vista económico, administrativo e cultural, fui eleito para um grupo de
trabalho que acompanharia as modificações necessárias no IPC e
aprovaria o plano de produção de 75.
(...)
Os problemas só se começaram a pôr no concreto quando se
começou a tentar construir o edifício que resultava das discussões da
Comissão e dos encontros que se foram organizando. Por exemplo, em
encontro com cineastas - um até foi num fim-de-semana no hotel das
Arribas, na Praia Grande - essas pessoas foram discutindo com alguns
membros do grupo de trabalho esse edifício das Unidades de
Produção.
Mas a dado momento criou-se uma situação de rutura com a
aprovação do plano de 75. Isto porque havia pressões várias sobre o
próprio ministro Correia Jesuíno e sobre o Diretor Geral dos
espetáculos, Vasco Pinto Leite, no sentido de excluir uns projetos em
detrimento de outros. Até publiquei um artigo no Século que revelava
a extensão do apoio pedido no conjunto dos projetos, que era
292
qualquer coisa como 800 mil contos. Era preciso excluir e o critério
que se seguiu tinha a ver com a situação que se vivia na época.
Tentou-se encontrar pontos de equilíbrio em termos de produção,
porque, entretanto, há um fenómeno de que as pessoas se esqueceram
que era a paralisia do cinema publicitário. Esta gente caiu toda no IPC
e havia que resolver a situação. Eram pessoas suscetíveis de serem
reconvertidas profissionalmente. (...)“
À semelhança do país, o Verão de 1975 também foi muito agitado no seio do
movimento cineclubista: o Cineclube do Porto marca o II Encontro do Cinema
Português, para se realizar entre 20-22 de Junho de 1975; no entanto, sem reunir
consensos, o encontro é adiado pela organização do Porto; por sugestão do crítico de
cinema Camacho Costa, que via urgência em debater vários assuntos, o encontro é
remarcado para as Caldas da Rainha, e realiza-se a 27, 28 e 29 de Junho, reunindo
diversas pessoas ligadas à produção, à crítica, à política e ao movimento cineclubista.
Nessa reunião, é aprovada uma moção para retirar a confiança associativa a Manuel
Neves do ABC enquanto representante dos cineclubes portugueses (Cineclube, 5, VIII1975: 12).
O encontro organizado pelo Cineclube do Porto, previsto para Junho, realizar-seia nos dias 5 e 6 de Julho, mas a adesão dos profissionais do sector foi muito reduzida.
Apenas marcaram presença seis cineclubes (o organizador, ABC, Universitário de Lisboa,
Imagem, Coimbra e Barreiro), dois críticos de cinema (Machado da Luz e Roma Torres),
alguns técnicos e figuras ligadas ao IPC e alguns cineclubistas. Apesar disso, foi
aprovada por unanimidade uma proposta de realização de um Congresso Nacional das
Actividades Cinematográficas como forma de ultrapassar os diferendos surgidos
recentemente no seio do movimento cineclubista e do sector cinematográfico em geral
(Ibidem: 31-32).
Semanas depois, o VI Encontro Nacional de Cineclubes teria lugar em Vila Franca
de Xira, a 19 e 20 de Julho. Em cima da mesa, entre outros assuntos mais genéricos,
estaria o caso de Manuel Neves e da representação do movimento cineclubista. Pouco
concorrido, apenas se fizeram representar os organizadores (Vilafranquense,
Universitário de Lisboa) e os cineclubes Católico de Lisboa, Viseu e Torres Vedras)
(Ibidem: 46-47), mas nesse encontro seria constituído um Secretariado Nacional
Provisório de Cineclubes, composto inicialmente pelo Vilafranquense, Católico e
Universitário de Lisboa mas aberto a todos os potenciais interessados, que se propunha
a “ligar os cineclubes enquanto organizações culturais de massas aos órgãos de vontade
popular“, “promover o contacto e colaboração a nível nacional e regional“ e
293
“incrementar o aparecimento de novos cineclubes por todo o país (...) e incentivar o
aparecimento de secções de cinema em todas as colectividades populares, clubes de
bairro, etc.“ (Idem, 6/7, X-XII-1975: 53-54)
A 30 de Maio de 1976, o Cineclube de Torres Vedras convocou o VIII Encontro
Nacional dos Cineclubes para os dias 23-25 de Julho, ao qual compareceram apenas
representantes de sete cineclubes (Faro, ABC, Barreiro, Figueira da Foz, Torres Vedras,
Universitário de Lisboa e Católico).
O biénio 1975-76 foi particularmente negativo para o movimento associativo, e
com consequência significativa para o futuro:
“(...) A partir de 1975, os cineclubes estão ainda mais dispersos
e enfraquecidos. Nenhum esforço persistente e empenhado foi feito
para reatar o Encontro de Aveiro com vista à criação (ou recuperação)
de uma Federação, coisa que exigia, também, diligências paralelas, a
nível governamental, no sentido de se revogar o Decreto-Lei do
anterior regime que criava a Federação Portuguesa dos Cineclubes, ou
se lhe introduzir as emendas necessárias e imprescindíveis.
Paradoxalmente, os cineclubes, em vez de procurarem unir-se, naquilo
que tinham de propósitos comuns, isolaram-se, silenciaram,
antagonizaram-se... e deixaram-se levar por influências partidárias.“
(Idem, 12/13, X/XII-1976: 5)
Como sublinha Marta Ribeiro (2012: VII), a criação do Cineclube do Norte, em
Abril de 1977, “representa a alteração nas dinâmicas culturais cineclubistas no período
pós 25 de Abril de 74“. A origem do Cineclube do Norte está relacionada com a forte
pressão exercida pelo PCP sobre o Cineclube do Porto e com o consequente afastamento
do histórico dirigente Alves Costa da direcção. Nascido de uma dissidência política no
seio do Cineclube do Porto, e visto que só seria formal e legalmente reconhecido em
Junho de 1978, teve um primeiro ano de actividade com várias limitações, mas
desempenhou uma importante acção de promoção da cultura cinematográfica e de
divulgação do cinema português (Ibidem: 49-51). Mais importante e determinantes
ainda seria a acção do Cineclube do Norte na criação da renovada Federação Portuguesa
de Cineclubes, sendo seu membro fundador e mantendo-se na direcção durante vários
anos (Ibidem: 53).
Este caso da criação do Cineclube do Norte e da cisão vivida no seio do mais
histórico cineclube português é um exemplo esclarecedor do tipo de vulnerabilidades e
instabilidades vividas no movimento cineclubista durante este período. Apesar das
divisões, o movimento ia crescendo com a criação de novos cineclubes: Bento de Jesus
Caraça e Racal (Sines) em 1974; Movimento (Lisboa) e Vila Franca de Xira em 1975;
294
Nascente (Espinho) em 1976; o de Leiria e o de Braga reaparecem em 1977 e são criados
o Cineclube do Norte (Porto) e o de Lamego; Cineclube da Ilha Terceira e Octopus (Póvoa
de Varzim) em 1978 (Conceição, 2002: 41-42).
Editorialmente, os cineclubes também intensificariam as suas actividades: o
Universitário de Lisboa começa a publicação do Cine-Arma (1976-82), fortemente
politizado e defensor de “um cinema patriótico, científico e de massas“; o Cineclube do
Porto inicia a publicação da revista Cineclube (1974-1985); o Católico de Lisboa lança a
revista Panorâmica (1975-1980); em Coimbra, o Centro de Estudos Cinematográficos da
Associação Académica de Coimbra publica a revista Zoom (1977).
O ano de 1977 seria de viragem para o movimento cineclubista. Reunidos no
Festival Internacional da Figueira da Foz, 14 cineclubes acertariam algumas agulhas sob
o patrocínio do Cineclube do Norte e agendam o IX Encontro Nacional para Espinho, que
se realizará em simultâneo com a primeira edição do Cinanima (26 e 27 de Novembro de
1977). Para além de “fechar um ciclo de indecisões em que o cineclubismo português se
viu envolvido“, desse Encontro sairia uma Comissão Técnica (formada por
representantes dos cineclubes do Norte, Nascente e Universitário de Lisboa) com a
missão de reunir apoios para a criação de uma Federação nacional (Cineclube, 21/22, IV1979: 6-7).
Em 1978, depois de mais reuniões de trabalho em Lisboa (21-22 de Janeiro) e
Coimbra (11-12 de Fevereiro), envolvendo diversos cineclubes na elaboração e
discussão dos estatutos da futura estrutura federativa, os estatutos da Federação
Portuguesa de Cineclubes seriam aprovados no Porto, nos dias 25 e 26 de Fevereiro. A 15
de Abril é reconhecida a existência legal e os primeiros órgãos foram eleitos no dia 17 de
Junho123 e empossados um mês mais tarde (Ibidem: 7).
A criação da Federação Portuguesa de Cineclubes, representando 27 organismos e
mais de 20 mil sócios (Dionísio, 1994: 309), foi um momento crucial para agrupar um
movimento cineclubista que mostrava ainda grande vitalidade: contavam-se então em
Portugal um total de 30 cineclubes (27 inscritos na FPCC), mais dois em formação
(Sintra e Barcelos) e vários outros com perspectivas de formação (Católico de Oeiras,
Católico de Paço de Arcos, Católico de Carcavelos e Católico do Estoril) (Cineclube,
21/22, IV-1979: 8). Em Dezembro de 1978, os cineclubes em actividade eram já 35,
razoavelmente distribuídos pelo território nacional (12 na zona norte, 11 na centro e sul
123
Assembleia geral: Presidente - Faro, Vice-Presidente - Torres Vedras, Secretário - Guimarães; Direcção Nascente, Porto, Imagem, Norte, Católico, Universitário de Lisboa e Santarém; Conselho Fiscal: Presidente
- CEC (Coimbra), Secretário - Vilafranquense, Relator - Ilha Terceira.
295
e 1 nas ilhas), mas com maior incidência nos espaços fortemente industrializados (29) e
no litoral do país (31) (Idem, 20, XII-1978: 3)
Luís de Pina achava que a situação do movimento cineclubista havia-se alterado
substancialmente no pós-25 de Abril:
“Mas a explosão cultural desordenada nascida de Abril teve
outras consequências. Paradoxalmente, o movimento cineclubista,
dispondo agora de uma Federação eleita em plena liberdade,
destruídos os condicionalismos censórios, perdeu quase toda a sua
influência cultural anterior, pois o público dispõe neste momento de
muitas outras alternativas de formação, desde os programas de cinema
da RTP às videocassetes, desde os ciclos retrospectivos da Cinemateca
Portuguesa, da Fundação Gulbenkian e de outras instituições aos
numerosos festivais e certames cinematográficos que se organizam um
pouco por todo o País, passando pelo próprio desgaste da velha
fórmula de acção cineclubista, que encontra dificuldades cada vez
maiores de programação em vários níveis.“ Pina, 1986: 206
De facto, as condições do mercado afastavam cada vez mais os cineclubes das
projecções em película de 35mm, empurrando o circuito de exibição cineclubista para
uma posição marginal e pouco atractiva para a adesão de novos associados. O momento
histórico era outro e o fim da censura e da repressão política e a consequente perda de
importância na oposição cultural ao regime ditatorial recolocaram o movimento
cineclubista num lugar de menor influência na sociedade portuguesa.
Durante os anos do PREC, uma das alternativas à disposição de vários cineclubes
portugueses seriam as cedências de cópia de filmes de diversas cinematográficas
estrangeiras, nomeadamente dos países do bloco socialista (Polónia, Bulgária, URSS,
RDA, Checoslováquia, entre outros), através das suas embaixadas em Lisboa, numa
programação marcada “por forte tendência ideológica“ (Simões, 1996: 67), que acabaria
por agravar ainda mais a perda gradual de público.
Nos anos seguintes, como resume Natália Casqueira (1997: 89-91), a crise agravarse-ia:
“A crise dos cineclubes, que acompanhou o próprio processo de
crise do cinema ao longo da década de 80, com a diminuição do
número de salas de exibição e do número de espectadores, acabou por
revelar a vivência de situações particulares, de contextos sócioculturais específicos e de limitações materiais e humanas muito
próprias dos cineclubes locais, mas que espelhavam, numa dimensão
mais ampla, a insularidade cultural de algumas franjas temáticas e
formais do cinema nos circuitos da criação/produção/difusão e nos
espaços de recepção/consumo culturais. (...)
A crise do cineclubismo aparece, assim, contextualizada no seio
da crise mais global do associativismo cultural que, aliada à perda da
centralidade cultural e do poder de mobilização do cinema no universo
296
das práticas culturais dos indivíduos/grupos e à banalização dos
modos de recepção do filme (vídeo e televisão), tornam a prática
cineclubística uma prática confrontada com modalidades e graus de
participação associativas decrescentes e/ou estagnadas. (...)
Perante a insuficiência dos meios e a relativa eficácia cultural
das estratégias cineclubísticas, pode pensar-se que os cineclubes
'deixaram de funcionar como memória do cinema para passarem a ser,
também eles, um lugar de amnésia ou tão só de gestão da memória de
um presente fugidio'. (...)“
Ao longo do período aqui em análise, o movimento cineclubista, apesar de todas
as contrariedade e repressões, exerceu uma influência incalculável na mudança de
paradigmas no cinema português. Ainda que não directamente produzisse cinema, com
a excepção de cinema de formato reduzido como tentarei demonstrar de seguida, o
movimento cineclubista foi, em Portugal, “uma certa forma de crítica“ (Barroso, 2002:
97-100) que se manifestava sobretudo na sua programação mas também nas suas
publicações. O cineclubismo contribui de forma significativa para alterar a forma de ver
e entender o cinema em Portugal durante as décadas de 50-70, como André Bazin (apud
Granja, 2008: 425) o reconheceu bem cedo, ao ponto de falar de uma "espantosa
revolução" que foi operada em vários países por esse movimento.
3.3. Cinema de amadores
Em 1955, durante o encontro de Angers (França), a UNICA definiu como cinema
amador ou não-profissional toda a “obra criada por indivíduos ou grupos de indivíduos
que não trabalham com fins lucrativos ou financeiros“. Quatro anos mais tarde, a
Comissão Coordenadora do Cinema de Amador acrescentava ainda que todo o filme “que
tenha sido objecto de uma retribuição directa ou indirecta, ou que ulteriormente aceite
transação comercial“ perderia a classificação de filme amador. Entre os filmes de
amadores podem identificar-se diversos tipos ou géneros: filmes de família, caseiros,
domésticos, experimentais, de viagem, de férias, entre muitos outros.
No entanto, o que me interessa e o que me ocupará aqui nas próximas páginas não
é tanto a simples produção de cinema feita por não-profissionais, mas sobretudo a
produção de cinema feito por cineastas amadores destinada à exibição pública, ainda
que enquadrada em um circuito alternativo de circulação. Interessa-me identificar e
297
documentar o processo de produção e circulação de filmes de cineastas amadores, assim
como a cultura cinematográfica e cinéfila associada aos seus praticantes e espectadores.
O crescimento do cinema de amadores ou cinema de formato reduzido, como era
mais popularmente designado à época, foi de tal forma impressionante durante a década
de 50 e 60 que mereceu uma atenção e estatuto especiais na elaboração da lei 7/71. Pela
limitação de recursos humanos e financeiros, os cineastas amadores trabalhavam
essencialmente com película de formato reduzido (8mm, 9,5mm, 16mm), em filmes de
curta-metragem e em registo documental.
O cinema de amadores foi um circuito de produção e exibição alternativo que se
expandiu incrivelmente desde meados dos anos 50. Organizados em associações locais,
e posteriormente na Federação Nacional de Cinema de Amadores (1968), inúmeros
cineastas amadores conseguiram notória visibilidade nacional e internacional desde
finais dos anos 50 através da criação de um circuito nacional e internacional de festivais
de cinema de amadores, estrategicamente apoiado pela UNICA que, já em 1954, havia
organizado o seu congresso anual em Lisboa e que regressaria a Portugal em 1972, ao
Estoril.
Ao longo das décadas, várias figuras e instituições em muito contribuíram para o
reconhecimento artístico e cultural do cinema de amadores: Vasco Branco, Vasco Pinto
Leite, Centro de Cinema Experimental do Cineclube do Porto, Clube Português de Cinema
de Amadores de Lisboa, entre outros.
Este grupo de cineastas também era também animado por uma das mais antigas
publicações cinematográficas portuguesas, a Cinema de Amadores, editada pela Pathé
Baby Portugal. Apesar de ser um projecto editorial com um propósito comercial bem
definido, a revista servia à época como um importante meio de comunicação entre
cineastas amadores de vários pontos do país, das antigas colónias ultramarinas e até de
outros países europeus. Hoje, essa publicação é ainda mais importante enquanto
repositório documental que cobre detalhadamente uma temática então pouco
valorizada e portanto algo marginalizada, revelando-se fundamental, como se verá nas
próximas páginas, para estabelecer uma cronologia e uma arqueologia deste fenómeno.
A criação, em Junho de 1938, pela Pathé Baby Portugal, de um importante
concurso nacional teria um impacto importante na expansão do cinema de formato
reduzido. O Concurso do Melhor Filmes de Amador de 9,5mm, apesar de acolhido com
certa reserva pelos cineastas amadores que não estavam “habituados a competições“, foi
um “verdadeiro sucesso“. A segunda edição seria organizada em 1940 e a terceira em
298
1943, esta que já passou a incluir os restantes formatos de amador, 8mm e 16mm.124
Nestas primeiras edições, entre os premiados surgem já nomes que se destacariam nas
décadas seguintes (Mateus Júnior) e que até passariam ao cinema profissional (Carlos
Tudela). (Cinema de Amadores, II-1946: 6).
As origens do cinema de amadores em Portugal remonta aos anos 30, mas só na
década de 1950 é que o fenómeno atingiria um maior mediatismo e uma alcance
nacional. O decréscimo de actividade verificado até meados da década de 40 estava
relacionado com a falta de “filme virgem“, por consequência da Segunda Guerra
Mundial. Em 1946, findo o conflito, o fornecimento de película 9,5mm foi restabelecido
e a produção recuperou após uma estagnação de cerca de 4 anos (Ibidem: 5).
Entretanto, no resto do país também se fez sentir as consequências da guerra, ao ponto
da Pathé Baby Portugal ter decidido suspender o concurso nacional para filmes de
amadores em alguns dos anos do conflito. Em Lisboa, o Clube Português de Cinema de
Amadores também se vira obrigado a suspender as suas actividades por falta de acesso à
película e por dificuldades sentidas na manutenção dos equipamentos durante o
período da Segunda Guerra Mundial (Idem, X-1946: 113).
Este lisboeta Clube Português de Cinema de Amadores foi o grande pioneiro deste
fenómeno em Portugal, tendo sido inclusive o primeiro representante português nos
eventos da UNICA. Secção da Sociedade de Propaganda de Portugal, também conhecida
como Touring Club de Portugal, uma entidade privada fundada em 1906 com intuitos de
promover a pratica turística, o Clube Português de Cinema de Amadores começou por
organizar as primeiras sessões públicas de exibição de filmes de amadores.
Mas, na transição para os anos 40, o Porto assistiu à formação de um importante
núcleo de produção e exibição de cinema de amadores:
“Foi sem dúvida interessante a actividade dos amadores de
cinema, no Norte, durante o sombrio ano de 1939, data em que as
iniciativas esporádicas começaram precisamente a dar lugar a
realizações sob alicerces sensivelmente definidos e duma apreciável
continuidade. Com o início das hostilidades, longe de afrouxar, as
realizações dos amadores de cinema multiplicaram-se: O 'Condor Cine
Clube', a 'Ada', a 'S.F.A.', a 'I.F.A.' e os irmãos Barros, de parceria
com Francisco Pais, movimentavam então a capital do Norte (...)“
(Idem, II-1946: 5)
A criação do Clube Português de Cinematografia/Cineclube do Porto também foi
muito importante para os cineastas amadores porque inscrevia nos seus objetivos a
124
A Pathé Baby Portugal organizaria ainda uma 4.ª edição em 1946 e uma 5.ª em 1948. Depois de um
longo interregno, a 6.ª edição seria organizada em 1957.
299
produção de filmes em 8mm, 9,5mm e 16mm e porque acolhei no seu seio vários
cineastas amadores vindos de outras estruturas precedentes, como António Lopes
Fernandes e Augusto Romariz da 'Ada' ou Manuel Ferraz da 'S.F.A.' (Ibidem: 11). Logo
em Março de 1946, o Cineclube do Porto anunciava um ambicioso programa de produção
com vários filmes: Sonhos de Férias (16mm) de Hipólito Duarte (presidente da direcção);
Fui ver a Primavera (9,5mm) de António Lopes Fernandes; Rapsódia Urbana (9,5mm) de
Augusto Romariz; uma película sobre a Casa do Gaiato e o Padre Américo de Manuel
Ferraz; Beira Mar de Valverde; e “uma película de bonecos animados“ de Jorge Tavares
(Idem, III-1946: 22-23) A partir de Abril desse mesmo ano, com a adesão ao grupo do
profissional Fernando Neves, o Cineclube do Porto passou a dispor também de uma
câmara de 35mm (Idem, IV-1946: 31).
O tempo era de expansão e optimismo para os cineastas amadores e para os
cineclubistas do Porto, mas Guilherme Ramos Pereira alertava que, para além da causa
comum — cinema —, os interesses e as necessidades de cineastas amadores e
cineclubistas eram distintos e seria necessário atender a alguns cuidados para que
pudesse haver uma coexistência pacífica (Ibidem: 30-31). Talvez a criação, anos mais
tarde, da secção de cinema experimental do Cineclube do Porto, especializada em
cinema de amadores, tenha sido uma solução para conciliar os diferentes interesses e
necessidades.
À semelhança do que aconteceu em torno do Cineclube do Porto, também o
cineclube Belcine foi uma estrutura importante para a consolidação e desenvolvimento
da prática de cinema de amadores na região da Parede e nas zonas envolventes. De
facto, a actividade de cinema de amadores era inclusive mais importante no seio da
associação do que a própria prática cineclubista, propondo-se ser “uma verdadeira
escola onde os interessados possam dispor de materiais para completar na prática os
conhecimentos que possam adquiri na teoria“ (Idem, V-1946: 45).No entanto, à
semelhança de alguns clubes de cinema de amadores que o antecederam, o Belcine
percebeu desde cedo que não poderia ser apenas um clube de cinema de amadores
porque necessitaria de uma massa associativa numerosa para sobreviver e para se
estabelecer (Ibidem: 46).
E aqui reside outra diferença fundamental entre os cineastas amadores e os
cineclubistas: apesar de um crescimento verificado no pós-Segunda Guerra Mundial, o
fenómeno de cinema de amadores nunca se constituiu uma movimento de massas como
o cineclubismo, nem sequer pode ser entendido como um movimento, apesar de haver
300
algum contacto e até coordenação de esforços entre cineastas amadores de vários
pontos do país. No entanto, parece-me ser um fenómeno que poderia mobilizar apenas
entre uma a duas centenas de entusiastas mas nunca os cerca de 20 mil associados que o
movimento cineclubista chegou a agregar, por varias razões, nomeadamente a falta de
condições financeiras indispensáveis para a aquisição de equipamento e de película e
também de conhecimentos técnicos específicos.125 Só nos anos 60, depois de uma
proliferação de festivais de cinema amador, é que se poderá começar a falar de um
movimento de cinema amador, mas ainda assim nunca comparável quantitativamente
ao que movimentou o cineclubismo.
Paulo Jorge Granja (2007: 368) documenta , já no início da década de 1930, de um
curioso debate acerca desta questão:
“Aparentemente, os cinéfilos, nada queriam com os
intelectuais, mas encorajados pela realização dos primeiros fonofilmes
portugueses, muitos tentariam criar clubes de cinema de amador,
pensando assim conseguir um passaporte para o estrelato do mundo
do cinema. Entre 1931, data em que se criara a Secção de
Cinematografia no Grémio Português de Fotografia, e 1933, ano em
que surgiria o Grupo Único dos Amadores de Cinema em Portugal,
vários grupos de cinéfilos propor-se-iam criar associações destinadas à
produção de filmes. Em 1934, Aguinaldo Machado, na Invicta-Cine,
resumia assim, depreciativamente, os seus objectivos: 'dar satisfação
à vaidade de meia dúzia de cinéfilos pretensiosos e inconsistentes'.
As poucas propostas de clubes apostados na exibição, surgidas
ate 1933, não teriam mais sorte do que as anteriores. Daí que, em
finais de 1933, o crítico João Santos propusesse na Invicta-Cine, a
organização de uma Sociedade Portuguesa de Cinematografia, que,
inspirada nas sociedades científicas, teria apenas 40 sócios: 'tantos
quantos os 'imortais' da Academia das Ciências.
A rejeição do modelo associativo reflectiria a apreciação
negativa do autor em relação à actuação dos cineclubes, mas também
não deixaria de relacionar-se com a rejeição da cinefilia dominante
entre o 'grande público' e os clubes de cinema, como o revelava num
artigo em que afirmava ser o 'cinéfilo português
'uma
figura
ridícula e absurda que só inspira comiseração e piedade,,,'“
Por outro lado, cineclubistas como Jorge Pelayo, dirigente do Belcine nos anos 40
e futuro funcionário do SNI, que nas páginas da revista Visor (4-XII-1956: 7) esclareciam
cabalmente que “um cine-clube não é um clube de cinema de amadores, mas de
amadores de cinema, agrupando assim os que admiram o cinema com o espectáculo
125
“Actualmente, pode-se computar cem algumas centenas, o número de praticantes do ciné-amadorismo
que, na nossa terra, manejam com apreciável desembaraço uma câmara de filmar. Fazemos este cálculo
baseados no que nos tem sido dado ver, e neste total incluímos apenas os autores de fotografia de
razoável nível técnico, aos quais se pode dar já com justiça o título de amadores de cinema.“ (Cinema de
Amadores, X/XI-1958: 1620)
301
construído por outrém“, sem pretensões de “fabricar“ o seu próprio cinema. Paulo Jorge
Granja (2007: 373) sublinha que a questão continuava a ser sensível e a “gerar
polémica“ entre os clubes de amadores e os cineclubes: os primeiros viam os segundos
enquanto “clubesitos“ de jovens cinéfilos “romanticamente apaixonados pelas
'vedetas'“.
Em 1954, um texto do ABC era particularmente provocador na descrição do que
esses cineclubistas achavam dos clubes de cineastas amadores: “Estes clubes de
amadores de cinema estão para o grande público como os conventos para o mundo
católico, Ali só entram os iniciados ou os que sentem vocação para prosélitos“ (apud
Ibidem: 376).
Entretanto, em Lisboa, em Janeiro de 1946 era criada a União de Cineastas
Amadores, uma associação dirigida pelo cineasta amador Jorge Rocha, que logo
começara a organizar sessões de filmes em 9,5mm para o público lisboeta interessado
(Cinema de Amadores: V-1946: 55). Em 1947, também em Lisboa, seria criado o Pathé
Clube Português, recuperando uma ideia que nascera antes da Segunda Guerra Mundial,
que se propunha “reunir todos os amadores de cinema trabalhando em qualquer
formato, bem como os amadores da fotografia“ (Idem, II/III-1947: 40).
Outro importante núcleo de produção de cinema de amadores em Lisboa era a
Ideal Filmes, uma produtora amadores de filmes em formato reduzida que existia já
desde Janeiro de 1944 e contava entre os seus elementos, entre outros, Sebastião
Peixoto e Alípio Alves Rodrigues (Idem, VIII-1946: 86-90), portanto em moldes
diferentes das restantes associações ou cineclubes existentes à época.
Sensivelmente por esta altura, em Lisboa, o Clube Português de Cinema de
Amadores, presidido pelo “Dr. António de Menezes“ e contando também como dirigente
com o “Engenheiro Frederico Oom“ e o “Arq. Mateus Júnior“ (Idem, X-1946: 113) era o
mais importante pólo dinamizador do território nacional. O uso dos títulos académicos
Doutor, Engenheiro ou Arquitecto pela publicação é um bom exemplo do estrato sócioeconómico predominante entre os cineastas amadores. No mês anterior, o editorial da
mesma publicação (Idem, IX-1946: 97) referia-se às pessoas que demonstravam
interesse pela prática mas não tinham condições financeiras para a mesma:
“(...) Se bem que a causa principal seja a falta de meios
materiais ou, para falar com mais clareza, assente no nível muito baixo
dos ordenados dos empregados de carreira, caixeiros e operários que
constituem as camadas onde pululam os 'simpatizantes' (...)“.
302
Por outro lado, esta ligação muito próxima entre cineastas amadores e
cineclubismo também poderia trazer problemas de outra natureza, nomeadamente
políticos. Invariavelmente, por mais distantes que pudessem estar de objectivos
ideológicos, sempre que a perseguição política e a repressão aumentava sobre o
movimento cineclubista, os núcleos de cinema de amadores também seriam vigiados e
incomodados.
No entanto, havia casos excepcionais que fugiam a esta regra, como a Secção de
Cinema da Câmara Municipal de Lisboa, que tinha como principal objectivo “constituir
uma cinemateca onde serão arquivados todas as mais importantes realizações da CML,
que assim terá o seu arquivo cinematográfico“ (Idem, VI/VII-1949: 287) Dirigida pelo
arquitecto Mateus Júnior e por José Espinho, esta secção organizou a sua primeira
sessão pública em Junho de 1949, três meses após a sua criação, onde foi exibido o
primeiro filme da secção, um filme sobre o bairro de Alvalade (Ibidem).126
Em apenas três anos de actividade, esta secção produziu 20 filmes e organizou
1.381 sessões pública às quais assistiram quase meio milhão de espectadores:
Tabela n.º 33
Sessões de cinema de amadores organizadas pela Câmara Municipal de
Lisboa entre 1949 e 1952
(fonte: compilado a partir de Cinema de Amadores, X/XI-1952: 729-731)
Sessões
Espectadores
Pavilhão dos Desportos
1950
1951
1952
Subtotal
150
165
114
429
45.080
49.600
34.200
128.880
Bairro Doutor Oliveira Salazar
(Alvito)
1951
1952
Subtotal
31
35
66
6.100
7.000
13.100
Quinta das Furnas e da Boa Vista
Furnas
Boa Vista
Subtotal
31
35
66
10.500
11.300
21.800
Feira Popular
126
Entre outros filmes previstos, contam-se reportagens sobre a visita do General De Gaulle a Lisboa, a
demolição do Arco de Santana e da Praça da Figueira, todos exclusivamente em formato reduzido.
303
1949
1950
1951
1952
Subtotal
160
284
262
114
820
48.000
102.523
95.400
73.200
319.123
Total
1.381
428.903
A partir de 1953, é o próprio SNI quem se associa na organização sessões pontuais
com filmes de amadores. A cedência da sala para a realização da sessão no Palácio Foz, a
27 de Março de 1953, numa iniciativa do Clube Português de Cinema de Amadores
(Idem, II/III-1953: 780-782), constituiu um momento simbólico no reconhecimento da
importância social e cultural desta prática cinematográfica, mas também um sinal de
que o SNI estava atento às actividades cada vez mais mediáticas.
Um anos e alguns meses antes, já Gonzalez de Castro, um cineasta amador ouvido
num inquérito sobre a sua actividade e as perspectivas futuras para o cinema de
amadores em Portugal, acreditava que seria fundamental que o reconhecimento público
do SNI a essa prática se fizesse sobre a forma da instituição de prémios oficiais (Idem,
XII-1951: 494) Em 1953, um editorial da revista Cinema de Amadores (VIII/IX-1953:
842-843) recuperava essa medida como um “estímulo necessário“ que o poder político
poderia prestar à prática cinematográfica amadora, assim como “facilidades para
importação temporária de filmes estrangeiros de amadores (sistema de permuta)“ e a
“cedência de sala de cinema do SNI para a realização de sessões de filmes de amadores“.
A partir de meados dos anos 50, o SNI passou a ter um membro no júri do maior
concurso de cinema de amadores nacional, o Concurso Nacional de Filmes de Amadores
organizado pelo Clube Português de Cinema de Amadores (Idem, VI/VII-1956: 1285).
Para aumentar ainda mais a preocupação da censura e da polícia política,
rapidamente
os
filmes
de
amadores
portugueses
começaram
a
circular
internacionalmente. Ainda antes dos grandes certames da especialidade, os primeiros
filmes portugueses a ser exibidos fora do país começaram a circular de uma forma
informal, sempre que algum cineasta amador mais endinheirado o pudesse fazer. Em
Abril de 1949, a revista Cinema de Amadores (IV/V-1949: 243-244) noticiava que o
cineasta amador Alberto Schmidt esteve em digressão pela Suíça e “não quis perder a
oportunidade de levar consigo alguns filmes de autores portugueses [do próprio
Schmidt, Celestino Teixeira, Luís Mateus, Álvaro Antunes e Carlos Tudela], que fez exibir
naquele país amigo, perante praticantes e entidades conhecedoras do assunto“.
304
Curiosamente, no número de Outubro da mesma publicação, um “leitor assíduo“
questionava-se: “Porque razão não mandámos Filmes Portugueses ao Concurso
Internacional de 1949?“ A pergunta assumia contornos de escândalo e indignação com a
resposta: apesar de Portugal ser membro da mais importante organização internacional
de cinema de amadores, “em virtude de não ser possível a deslocação de um amador
português a Cannes (?), foi a representação de Portugal entregue, a pedido de favor, ao
representante espanhol.“ (Idem, X/XI-1949: 324-325)
Coincidência ou não, em Agosto de 1950, a revista Cinema de Amadores noticiava
que Portugal iria estar representado no XII Concurso Internacional de Cinema de
Amadores organizado pela UNICA, que se realizaria no Luxemburgo:
“(...) a Direcção do Clube Português de Cinema de Amadores,
resolvera enviar ao Concurso Internacional do Luxemburgo, os filmes
portugueses 'Assim é a Vida', de Álvaro Antunes, e 'Mau Caminho', de
Carlos Tudela.
Soubemos depois que os referidos filmes seriam levados por mão
própria, e que o seu portador seria Álvaro Antunes.
(...)
— Digo-lhe sinceramente que o faço com prejuízo dos meus
afazeres particulares, mas a Direcção do Clube tinha resolvido, e muito
bem, apreciadas maduramente as vantagens que de aí adviriam para o
cinema de amadores português, enviar filmes nacionais e estar
presente na pessoa de um seu membro directivo não só no Concurso
Internacional como no Congresso também Internacional que será
levado a efeito na mesma data.
— De facto, em nossa opinião achamos que o Clube Português de
Cinema de Amadores, reconhecido pela União Internacional (UNICA)
como representante dos amadores cineastas, de Portugal, não deve
fugir à obrigação moral que tem de estar presente nas reuniões em que
comparticipem outros países também praticantes desta modalidade de
cinema. Não apenas para testemunhar o que ali se passa, mas
sobretudo para que a sua voz seja ouvida e a sua presença seja sentida
através de uma boa representação cinematográfica (...)“ (Idem,
VIII/IX-1950: 446-447).127
A UNICA (Union Internationale du Cinéma Non Professionnel) foi a mais
importante federação internacional de cineastas de amadores, mas existiam outras,
como a Intercontinental Cine-Amateus League (ICAL), sedeada em Milão, ou a Union
des Cineastes Amateus Huististes Mondiaux (UCAHM). Fundada em 1937, durante a
Feira Mundial de Paris (França), a UNICA começou a organizar os seus encontros anuais
a partir de 1931 (antes mesmo da sua instituição formal) em várias cidades europeias,
excepção feita entre 1940 e 1945, por causa da Segunda Guerra Mundial, em que a
127
Entre 11 países participantes, Portugal conquistou um 8.º lugar com Assim é a Vida e um 10.º com Mau
Caminho, assegurando um 7.º lugar na classificação geral final.
305
UNICA viveu em algum sobressalto e suspendeu temporariamente a organização do seu
encontro nesses anos.
A primeira participação portuguesa neste importante concurso acontecera em
Maio de 1935, aquando da realização do IV Concurso que teve lugar em Barcelona.
Portugal marcaria presença novamente na edição de 1936, em Berlim, na de 1939, em
Zurique (Suíça), na de 1948, em Estocolmo (Suécia) e na de 1949, que se realizou em
Capo dei Fiori (Itália). Até esse ano, Portugal participara em 5 dos 11 concursos
organizados pela UNICA, uma presença modesta que seria contrariada na década
seguinte (Idem, XII-1953/I-1954: 906-907).
Apostados numa lógica de internacionalização, muito ligada à expansão do sector
do turismo, em 1952 é organizado em Portugal o primeiro festival internacional do filme
amador, no caso no Estoril. Promovido pela Sociedade de Propaganda da Costa do Sol e
pelo Clube Português de Cinema de Amadores, esta primeira edição seria um fracasso
nos seus intentos porque só apresentaram filmes a concurso cineastas portugueses
(Idem, VIII/IX-1952: 708-709). Apesar disso, é de salientar mais este esforço no sentido
da internacionalização do cinema de amadores portugueses.
Dois anos depois, em 1954, Portugal acolhia os importantes XVI Concurso e XIII
Congresso Internacional da UNICA, numa organização local do Clube Português de
Cinema de Amadores que contaria com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros
e do SNI, “onde o Cinema de Amadores conta bons e valiosos amigos, prontos a facilitar
a sua tarefa“ (Idem, XII-1953/I-1954: 890-891). Evento mediático e de enorme
repercussão internacional, quer na imprensa da especialidade como na generalista, esta
organização foi determinante para a própria afirmação e reconhecimento do cinema de
amadores portugueses junto do poder político como dos próprios pares internacionais.
De tal modo, que nesse mesmo ano, Álvaro Antunes, cineasta amador e antigo dirigente
do Clube Português de Cinema de Amadores seria presidente da UNICA para o biénio
1953-54 (Idem, VI/VII-1954: 962).
Potenciado por estas actividades de caria internacional, gradualmente, o cinema
de amadores tornava-se um fenómenos com mais praticantes e mais presente na
sociedade, ao ponto de haver mesmo quem sugerisse a criação de secções de cinema
para amadores nas delegações provinciais da Mocidade Portuguesa, dotadas de estúdios
experimentais, para formar amadores interessados em tornar-se profissionais de cinema
(Idem, II/III-1955: 1093). No contexto de “crise“ aparentemente então que se vivia, do
ponto de vista do poder político, em que o cinema português era mesmo alvo de
306
intervenção na Assembleia Nacional, pelo deputado Elísio Pimenta, por continuar “a dar
lamentáveis provas de incapacidade técnica e artística“, o cinema de amadores começou
a ser cogitado em alguns sectores da sociedade como uma espaço de renovação que
poderia beneficiar o próprio cinema profissional (Ibidem).
Por outro lado, a recente legislação que impunha a classificação etária dos
espectáculos públicos, incluindo o cinema, afastava das salas de cinema a maioria das
crianças e adolescentes menores de 13 anos, pelo que o circuito de exibição do cinema
de amadores poderia suprir essa falha e especializar-se na exibição de cinema cultural e
educativo (Ibidem: 1094).
Mas o cinema amador também era dado como um potencial parceiro para o ensino
superior. Por exemplo, em vários hospitais era já possível proceder à filmagem, em
formato reduzido, de diversos procedimentos cirúrgicos que depois poderiam ser
utilizados em congressos médicos da especialidade ou mesmo em contexto de formação
universitário de novos médicos (Idem, XII-1953/I-1954: 897).
Neste sentido, à semelhança do que já fizera a Câmara Municipal de Lisboa, muitas
outras entidades públicas vinham promovendo a prática de produção de cinema em
formatos não-profissionais:
“Compreendendo o vasto alcance da sua serventia posterior,
diversas repartições do Estado Português, estabeleceram já serviços de
cinema, onde se tem produzido curiosos filmes culturais, a par de
valiosos documentários de actividades. Citemos, como exemplo, o
Ministério das Obras Públicas, que tem presentemente na sua
cinemateca variadíssimas películas documentando a construção de
pontes, estradas e barragens, o Ministério do Exército, com o registo
de diversos exercícios, exercícios e manobras, a Legião e a Mocidade
Portuguesa, com algumas das suas actividades (...).
(...) Permita-se-nos a sugestão de uma outra ideia, de dupla
vantagem: mais económica — e com possibilidades de satisfazer a
todas as 'Casas do Povo'. Seria a centralização do 'Cinema para
Trabalhadores', na sede da Junta Central. Esta, adquirindo meia dúzia
ou uma dezena de projectores, cedê-los-ia a cada 'Casa', com o
respectivo programa de exibição, constituído por filmes da sua
cinemateca, a qual, de princípio poderia estar limitada a um pequeno
número de produções próprias, obtendo outras por empréstimo ou
aluguer (...)“ (Idem, VIII/IX-1953: 845).
Outro exemplo apontado como de sucesso desta estratégia de promover um
circuito de produção e exibição de filmes educativos seria materializado pela Campanha
Nacional de Educação de Adultos, promovido no âmbito do Ministério da Educação
Nacional:
307
“Como se sabe, um interessante número de projectores de
cinema, estão distribuídos por todo o país num curioso programa de
utilização de filmes didácticos, no formato de 16mm, filmes estes que
em grande parte tem sido produzidos pelos respectivos serviços da
'Campanha'. Assim, uma das modalidades do Cinema que na nossa
revista tem encontrado o mais destacado interesse pela sua expansão,
como é o Cinema Educativo, esta a ser adoptada pelo Organismo
Nacional incumbido de velar pela instrução pública, e justamente
através de um dos seus mais importantes departamentos, que nesse
sector está a desenvolver um excelente trabalho de concepção e
coordenação de ideias novas que a posteridade assinalará como eficaz
e insuperável solução de um antigo e difícil problema nacional.“
(Idem, II/III-1956: 1244)
Nestes casos, o exemplo não seria propriamente a produção, uma vez que esta era
assegurada por profissionais, mas o modo de circulação destes filmes que poderiam
inspirar o cinema de amadores a explorar as suas potencialidades.
Para além da produção, o cinema de amadores também era um importante circuito
de exibição alternativo, nomeadamente caseiro. Entre filmes para aluguer ou venda, só
o catálogo da Pathé Baby Portugal disponibilizava mais de 30 mil títulos, divididos entre
as categorias “Mudos“ (vários filmes protagonizados por Charlot), “Sonoros“ (vários
títulos da Betty Boop), “Actualidades“, “Cómicos“ e “Desenhos Animados“ (vários
títulos do Mickey e Popeye), disponíveis na sede da empresa em Lisboa e na filial
portuense (Idem, II-1946: 12). A partir de 1946, os 5 melhores filmes dos concursos de
filmes de amadores promovidos pela Pathé Baby Portugal passaram a integrar o catálogo
da empresa (Idem, III-1946: 15).128
A 6 de Julho de 1946, a abertura de uma sala especializada em cinema de formato
reduzido, a Sala Pathé Baby, propriedade da Pathé Baby Portugal, foi outro momento
importante para credibilizar ainda mais o cinema de amadores, ainda mais com sessões
semanais de entrada livre, um veiculo fundamental de divulgação de filmes amadores de
produção nacional e particularmente da região Norte (Idem, VIII-1946: 93).
E claro, a partir de 1957, a RTP passou a ser a obsessão dos cineastas de amadores
na luta pelo seu reconhecimento. Domingos Mascarenhas, director da RTP, assegurava,
logo nos primeiros meses de emissões que a televisão pública teria “muito prazer em
programar filmes de amadores“, nomeando em concreto os casos de filmes dos cineastas
amadores Mateus Júnior e Adriano Nazareth e os contactos feitos com o Clube Português
128
Para além da Pathé Baby, a UNICA também dispunha de um catálogo que disponibilizava aos seus
associados. A UNICA recebia cópias de filmes que fossem premiados em concursos promovidos por
entidades nacionais que fossem membros desta organização internacional (Cinema de Amadores, X-1946:
114).
308
de Cinema de Amadores (Idem, VI/VII-1957: 1436). Entre os projectos futuros,
Mascarenhas divulgava também ser intenção da televisão pública estabelecer “uma rede
de correspondentes em todo o País, constituída por actuais amadores“ e também a
constituição de um arquivo fílmico para repetidas retransmissões de conteúdos que
muito poderia beneficiar a divulgação do cinema de amadores (Ibidem: 1440).
Ao longo destas primeiras décadas de actividade, mais do que um passatempo, a
pratica do cinema de amadores contribui de forma decisivo para o desenvolvimento de
uma cultura cinéfila que, a par de movimentos como o neo-realismo e o cineclubismo,
alteraram substancialmente a forma de ver cinema durante a década de 50. António de
Menezes, histórico cineasta amador, no discurso de abertura do I Festival Internacional
do Filme Amador do Estoril, citava os exemplos de Jean Vigo e Robert Flaherty (Idem,
VIII/IX-1952: 713) como modelos a seguir por cineastas amadores de Portugal. Ramos
Pereira, um cineasta amador do Porto, lembrava o caso de Douro, Faina Fluvial, um filme
que passou nas salas de cinema convencionais mas que havia sido feito por dois
cineastas amadores (Manuel de Oliveira e António Mendes) “num ambiente de puro
amadorismo“, mas servido por “uma grande cultura cinematográfica e um elevado
sentido artístico e social“ (Idem, X/XI-1952: 732-733)
Ainda que o cinema de amadores tivesse surgido numa lógica mais próxima do
turismo e da promoção e divulgação turísticas129, no decorrer dos anos 50 essa prática
cinematográfica começou a aproximar-se mais dos debates e torno do cinema educativo
e a ficar sob o olhar mais atento do próprio SNI. Apesar do proximidade do movimento
cineclubista, a vigilância e repressão ao cinema de amadores por parte das autoridade
públicas, nomeadamente o SNI e a PIDE, nunca se assemelharia ao que aconteceu com
alguns cineclubes portugueses neste período.
3.3.1. Os casos António Campos e António Reis
A criação, em 1958, da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto
significou uma mudança de rumo no fenómeno cinematográfico amador em Portugal.
129
“Um dos aspectos mais interessante do cinema de amadores português, é aquele que se verifica na
propaganda das paisagens, dos costumes e dos cantares da nossa terra. Os filmes que os nossos cineastas
têm enviado às competições estrangeiras, através do Clube Português de Cinema de Amadores, tem
despertado um inusitado interessa nos meios onde se exibem. (...)“ (Cinema de Amadores, XII-1958/I1959: 1660).
309
Nos meses e anos seguintes, outros cineclubes seguiriam este exemplo, criando as suas
próprias secções de cinema experimental: Centro de Cultura Cinematográfica de Beja,
Centro de Estudos Cinematográficos de Coimbra, Cine-Clube de Setúbal, Cine-Clube de
Rio Maior e Cine-Clube de Estremoz, só para citar alguns dos casos mais activos. No
entanto, apesar de fazer uso da designação de experimental, a produção da
generalidade destas secções era muito variada.
Se, como penso ter ficado demonstrado nas páginas anteriores, o cinema de
amadores de certa forma foi sendo institucionalizado e normalizado dentro de um
ideário e de uma estratégia em parte definida pelo SNI e por outras entidades públicas,
como a aposta em géneros como o cinema educativo e o filme científico, a criação destas
várias secção de cinema experimental valorizava mais os aspectos estéticos e
vanguardistas da própria prática cinematográfica amadora.
Logo no ano seguinte à sua criação, o Cine-Clube do Porto lançaria a produção do
filme Auto da Floripes, iniciativa que seria esclarecedora do tipo de cinema que animava
estes amadores em particular. Com produção completamente amadora, o filme dividia-se
em duas partes: uma primeira documental sobre a aldeia das Neves, no concelho de
Caminha (Minho, Norte de Portugal), comunidade onde era interpretada anualmente,
durante a romaria da Senhora das Neves, o Auto da Floripes; a segunda parte do filme
regista cinematograficamente, in loco, a representação popular do Auto. Como sublinha
Paulo Raposo (1998: 207), este filme insere-se na “vontade de incorporar um olhar
quase experimental sobre as soluções performativas populares como objecto artístico,
dando voz aos seus membros e participantes“.
Em carta a Alves Costa, Manoel de Oliveira elogia este filme, como sendo “honesto“
e “amador“ no bom sentido, é também “um documento precioso de um auto
antiquíssimo“, num caminho que indica o
“(...) futuro do nosso cinema, a base experimental de expressão
diversa e não académica nem convencional, pré-fabricada, unilateral
ou tendenciosa [...] Este é que é o nosso cinema. Não é o neo-realismo
italiano, ou a escola documentarista inglesa, ou a nova vaga francesa,
etc. Já recebemos deles toda a boa lição, mas também temos alguma
coisa de nosso a dizer. Qualquer coisa de particular que ninguém
senão nós poderá revelar“. (apud Costa, 2012: 112).
Apresentado em Lisboa em Janeiro de 1963, na sala da Shell Portuguesa, perante
um público maioritariamente composto por dirigentes cineclubistas, o filme bom muito
bem recebido. Entre outros elogios, e algumas críticas às limitações técnicas da
produção, a revista Cinema de Amadores (I-1963: 2180-2181) alertava que esta
310
produção poderia ser o “gérmen de um Cinema Nacional 'válido', por que tanto anseiam
os cine clubistas.“
Como nota Catarina Alves Costa (2012: 23), esta seria uma prática muito
desenvolvida por “uma certa elite intelectual que, na década de 70, procurava no
cinema uma forma de fazer etnografia local“, a maioria “que pouco ou nada se viu para
lá dos circuitos académicos e museológicos“. A mesma investigadora fala ainda de “um
movimento de incursão da esquerda na cultura popular, um movimento de intelectuais e
também de cineastas“ que, a partir dos anos 60, criaram um cinema de raiz documental
e que pretendia cultivar um imaginário ligado a uma ideia de povo com uma atitude
estética, intelectual e política próprias (Idem, 2009: 86).
Esta aproximação relativamente distinta da dominante na etnografia do Estado
Novo à cultura e à arte populares acontecera já antes com o trabalho científico de Jorge
Dias e a sua equipa a partir dos anos 40, e acontecia simultaneamente no meio artístico
a partir de autores como Ernesto de Sousa, que, depois de um conjunto de primeiras
aproximações ao tema publicadas na revista Seara Nova entre 1959 e 1961, “desenvolve
então uma acção importante de coleccionador, divulgador e teórico da arte popular
portuguesa“ (Leal, 2002: 272-273).
Para além da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto, este tipo de
produção cinematográfica iria ocupar dois cineastas amadores que se destacariam de
uma forma muito particular, António Campos e António Reis.
Nascido na cidade de Leiria, a 29 de Maio de 1922, devido a dificuldades
financeiras, António Campos abandonou a escola, prosseguindo os seus estudos de
forma autodidacta. Nesse expediente conseguiu concluir o curso geral dos liceus. Viveu
algumas temporadas em Nine (Famalicão), pequena aldeia do norte de Portugal onde
uma sua tia paterna era professora primária. Aos 22 anos regressou a Leiria, para junto
da família materna, onde “descobre no cinema o sentido que lhe orienta o resto da sua
vida.“ (Madeira, 2000: 17-18).
Primeiro com uma Pathé de 9,5mm e depois com uma Payard de 8mm, Campos
iniciou as suas primeiras experiências cinematográficas com pequenos filmes familiares
e alguns registos de peças teatrais ou festas populares. No meio cultural leiriense, onde
era evidente “uma forte consciência política de oposição ao regime salazarista“,
aproximou-se de tertúlias culturais, do grupo de teatro amador de Miguel Joaquim
Leitão e das actividades do Ateneu Comercial e do Cineclube de Leiria.
311
É já como funcionário da Escola Industrial e Comercial de Leiria, onde ingressara
em 1946, que António Campos iniciou a sua carreira cinematográfica como cineasta
amador, “nos sentidos artesanal e apaixonado da palavra“ (Ibidem).
O primeiro filme foi um pequeno ensaio experimental intitulado Rio Lis (1957,
8mm), logo seguido por Um Tesoiro (1958, 8mm, 14’), filme de ficção interpretado por
actores amadores e adaptado do conto homónimo de Loureiro Botas que foi premiado
nos certames amadores de Carcassone (1958) e Paris (1960). A terceira obra foi O Senhor
(1959, 8mm, 15’), um filme de ficção interpretado por actores amadores e adaptado do
conto homónimo de Miguel Torga, premiado novamente em Carcassone (1959) e no
Concurso Nacional do Clube Português de Cinema de Amadores na categoria de Enredo
(1960).
Em comum, estes primeiros filmes repartiam um mesmo modo de produção:
“Os filmes, como continuaria a acontecer com a maioria dos
seguintes, são feitos praticamente sem recurso nem rectaguarda. Os
meios financeiros disponíveis eram escassos, desde que tinha a
Payard, a maior parte do ordenado revertia para película e despesas de
laboratório. (…) O filme [Um Tesoiro] é feito em 3 meses de
preparação, estudos locais, luz, enquadramentos e personagens, em
Outubro de Dezembro de 1957, e um de filmagens, em Fevereiro
seguinte: cenários reais, intérpretes a desempenhar os seus próprios
papéis e a intrometerem (ou ele por elas) as suas vidas na história que
o filme conta, o que provavelmente justifica o comentário, anos mais
tarde do realizador sobre o filme como precursor do ‘etnocinema’ que
tentou prosseguir toda a vida.“ (…) A montagem [de O Senhor], mais
solitária e ainda mais ‘artesanal’ do que a rodagem, é feita em casa,
sem visionadora nem coladeira (a primeira coladeira é-lhe oferecida
mais tarde por uma pessoa amiga) com recurso a uma lupa para os
fotogramas, instrumentos improvisados e acetona para colar os
planos. À semelhança do que aconteceu com outros dos seus filmes, o
som, fabricado à parte, em gravação em fita magnética, é acertado com
a imagem em horas de trabalho infindável de sincronização aos
serões.“ (Ibidem: 20-21).
Apesar de algumas tentativas, Campos teve muitas dificuldades em exibir
publicamente os seus primeiros filmes. À excepção das sessões no Cineclube do Porto e
no marginal circuito do cinema amador, as poucas projecções de Um Tesoiro e O Senhor
foram privadas e discretas, certamente ditadas pela aproximação de António Campos a
alguns núcleos de oposição cultural à ditadura salazarista. No entanto, o
reconhecimento internacional, visível em algumas distinções conquistadas no
estrangeiro, e um crescente prestígio no circuito do cinema amador permitiram a
Campos alguma notoriedade pública local que terá levado a Comissão Municipal de
Turismo de Leira a adquirir uma cópia do seu primeiro ensaio cinematográfico (Rio Lis) e
312
a lançá-lo num projecto donde resultaria Leiria 1960 (1960, 8mm, 15’), o seu último
filme rodado em 8mm.
Antes desconhecido no meio do cinema de amadores nacional, António Campos
passou a ser considerado, “pela distinção recebida, e indubitavelmente justamente
atribuída“, “um prometedor porvir no meio amador do cinema“ (Cinema de Amadores,
VI/VII-1958: 1590).
Em 1960, durante uma estada no Algarve, Campos ficou fascinado pela faina de
uma pequena comunidade piscatória da ilha da Abóbora. Um ano mais tarde, Campos
regressou, “sem equipa e com uma câmara emprestada de 16mm, e filmou a última
campanha de atum do arraial desaparecido pouco depois.“ A Almadabra Atuneira (1961,
16mm, 26’) foi o primeiro filme de Campos de teor documental que o celebrizaria
posteriormente:
“dedicado ao cinema de cariz etnográfico e antropológico com
especial interesse, tentando espreitar através das frestas que ainda
subsistem a evolução social do seu país, mormente as de ordem
económica e psicológica“ (António Campos apud Madeira, 2000: 22).
Nesse mesmo ano em que Campos concluiu a rodagem do filme, a Fundação
Calouste Gulbenkian concedeu-lhe uma bolsa de estudo de três meses e inteira
autonomia em Londres. Na capital inglesa, o cineasta apresentou os seus filmes na
London School of Filme Technique e no Overseas and Television Center, que lhe garantiram
alguns elogios significativos. Em 1962, iniciou uma colaboração contratual com a
Gulbenkian, através do Serviço de Projectos e Obras, donde resultariam encomendas de
diversos filmes institucionais. Em Outubro de 1970, foi contratado para integrar o
quadro de efectivos da Gulbenkian, no serviço de Auditório e Som, na qualidade de
Técnico de Cinema, continuando a realizar filmes para a instituição. Em 1974, o seu
vínculo laboral com a Gulbenkian passou a ser afecto ao serviço de Belas Artes, agora
com a nova categoria de Realizador Cinematográfico, que perdurou até 1978 (Penafria,
2009: 10).
Paralelamente a estas obrigações institucionais e a outras encomendas, Campos
continuou a desenvolver alguns projectos pessoais, nomeadamente experiências
plásticas e pictóricas em Retratos das margens do rio Lis (1965, 16mm, 10’), Chagall –
Breve a Lua, Lua Cheia, Vai Aparecer (1966, 16 mm, 14’) e Colagens – Filme Inspirado no
Ciclo de Uma Gota de Água (1967, 16mm, 6’). Em 1965, Campos regressou aos filmes de
ficção com A Invenção do Amor (16mm, 29’), uma adaptação livre de um poema de
313
Daniel Filipe rodada em Leiria, Tomar e Lisboa, e mais uma vez “quase sem meios e
pouco aparato técnico“. A particularidade deste filme é que foi o “primeiro que Campos
filma em equipa“ (Madeira, 2000: 25), um filme “nascido das tertúlias havidas em Leiria
entre António Campos e um conjunto de amigos que colaboraram na feitura do filme
como actores, figurantes ou ajudantes em determinadas cenas“ (Penafria, 2009: 49).
Em 1968, um encontro com Paulo Rocha daria início à produção de Vilarinho das
Furnas (16mm, 77’), provavelmente a maior experiência cinematográfica de António
Campos. No final desse ano, Paulo Rocha convenceu Campos a deslocar-se a uma
pequena comunidade minhota cuja aldeia iria ser completamente submersa pela
albufeira de uma barragem em construção. O objectivo inicial seria recolher algumas
imagens para registo póstumo. Em Janeiro de 1969, depois de ler o livro Vilarinho das
Furnas – Aldeia Comunitária (1948) do antropólogo Jorge Dias, Campos chegou a
Vilarinho das Furnas e decidiu ficar para uma longa estadia de 18 meses, “instalando-se
numa roulotte e mais tarde na casa do guarda florestal que lhe é emprestada“. Com uma
equipa reduzida de colaboradores/amigos, e lutando contra a hostilidade inicial da
generalidade da comunidade, Campos registou cinematograficamente as “últimas
tarefas, a última procissão, a última apanha do milho“. Financeiramente, a produção foi
muito atribulada, valendo in extremis um apoio financeiro da Gulbenkian que permitiu
concluir o filme e saldar algumas dívidas mais urgentes. (António Campos apud Ibidem:
118-119, 160-161,170, 182, 190, 235). Apesar das dificuldades técnicas, o filme seria
nomeado para o Prémio da Crítica do Festival Internacional de Cinema de Cannes
(1972).
Ainda (financeiramente) mal refeito da temporada em Vilarinho de Furnas,
António Campos mergulhou num novo projecto, agora no nordeste transmontano. Em
Fevereiro de 1971, Jorge Dias informou Campos da existência de uma isolada
comunidade fronteiriça chamada Rio de Onor, no concelho de Bragança, que seria “a
aldeia mais curiosa para filmar“. O cineasta instalou-se então em Rio de Onor entre
Outubro de 1972 e Agosto de 1973, agora com o apoio financeiro da Gulbenkian e do
CPC, mas o processo de produção de Falamos de Rio de Onor (16mm, 63’) acumulou
estranhos contratempos (Madeira, 2000: 28-30). A colaboração do CPC foi ditada pela
inclusão deste filme no projecto do Museu da Imagem e do Som, de que falarei adiante,
e que pressupunha um “levantamento da realidade etnográfica do país“ mas, para o
cineasta, o interesse por esta comunidade transmontana era sobretudo a possibilidade
314
de comparação entre Rio de Onor e Vilarinho das Furnas (António Campos apud
Penafria, 2009: 224).
No pós-25 de Abril, António Campos obteve, através do Instituto Português de
Cinema, o primeiro subsídio oficial do estado português. O subsídio atribuído ao
projecto sobre uma comunidade piscatória deu origem a dois filmes: A Festa (1975,
16mm, 24’) e Gente da Praia Vieira (1975, 16mm, 73’). O primeiro filme foi rodado
durante a festa anual em honra de São Pedro promovida pelos pescadores da praia de
Vieira de Leiria, entre 9 e 10 de Agosto de 1975. Apesar de se destinar originalmente ao
projecto sobre os pescadores da praia de Vieira de Leiria, o material filmado durante esta
festividade justificou, pelas suas características singulares, uma existência autónoma.
Para Gente da Praia Vieira, António Campos recuperou excertos dos filmes Um Tesoiro e A
Invenção do Amor e faz cruzar as linhas temáticas desses filmes com a realidade sóciocultural da comunidade piscatória que dá título ao filme.
Aparentemente, como relata João Bénard da Costa (apud Madeira, 2000: 10-11),
Campos tinha desenvolvido de forma autodidáctica uma cinefília muito peculiar:
“Se eu queria ajuda dele para Ciclos da Gulbenkian, ele
mostrava-se manifestamente desinteressado, muito longe da minha
cinefilia, de Mizoguchi ou Ozu, de Bresson ou dos clássicos
americanos. Não era esse o cinema dele. Tivemos conversas e mais
conversas mas não levavam a lado nenhum. (…) E, quando, o ‘cinema
oficial’ deu por ele e lhe concedeu um subsídio para a sua primeira
ficção – Histórias Selvagens, 1978 – demitiu-se da Gulbenkian
‘tomando como definitivo um programa que eu disse não o ser’, como
me escreveu numa carta dessa altura. (…) Só que não era o cinema
dele. Duplamente não era o cinema dele. Nem o ‘documentário’ sobre a
exposição ou a efeméride, nem o cinema, clássico ou moderno, vindo
de outras culturas e de outros mundos. Nem o cinema antropológico,
nem o cinema etnográfico. António Campos esteve também à margem
de tudo isso. O que ele quis fixar – em imagens e sons – foram gentes e
sítios com quem se sentia solidário e com quem se podia sentir mais
solidário“.
Em 1997, numa das últimas entrevistas, António Campos (apud Penafria, 2009:
22) declarava-se:
“(...) desconfortável com um cinema onde predomine a figura
do produtor e fortemente avesso a uma organização que pudesse
afectar a sua liberdade“, procurando, sobretudo no documentário, um
registo fílmico que lhe possibilitasse “um outro cinema mais arrojado,
um ‘anticinema’ (…). O que interessa ao realizador é poder olhar pelo
visor da câmara, interessa-lhe uma outra forma de produção mais
pessoal e mais íntima no contacto com os intervenientes do filme e
com os espectadores“.
315
O outro amador que começaria a sua actividade neste período, mas cujo
reconhecimento seria mais tardio, foi António Reis. Nascido em Valadares, nos arredores
do Porto, a 27 de Agosto de 1927, passou a sua infância e adolescência entre
camponeses, pescadores e operários. As dificuldades financeiras da família levaram-no a
ingressar
precocemente
no
mercado
de
trabalho,
desempenhando
funções
administrativas num escritório de uma fábrica de porcelanas. A par da vida laboral, Reis
desenvolveu um activo autodidactismo nas áreas da pintura e da escultura. O seu autodidactismo era tal que, sem dinheiro para comprar livros, Reis pedia livros emprestados
aos amigos e copiava à mão “livros de 500, 1000 páginas…“ (Margarida Cordeiro apud
Moutinho, 1997: 9).
O seu interesse pelas formas de expressão artística levou-o a participar em diversas
tertúlias artísticas e culturais da cidade do Porto. O seu envolvimento em diversas
acções de cultura popular e associativa tornou-o uma figura relativamente reconhecida
na sociedade portuense. O Cineclube do Porto foi uma das associações a que Reis
dedicou particular atenção. Em 1959, Reis participou activamente na concretização de
Auto da Floripes (16mm, 60m), um projecto cinematográfico colectivo da Secção de
Cinema Experimental do Cineclube do Porto. A experiência vivida em Auto da Floripes
terá convencido Manoel de Oliveira a chamá-lo para desempenhar as funções de
assistente de realização em Acto da Primavera (1963), registo cinematográfico da
representação popular do Auto da Paixão por uma remota comunidade transmontana.
A estreia de Reis na realização cinematográfica aconteceu logo nos meses
seguintes. Em 1963, por encomenda da Câmara Municipal do Porto, assinou a curta
Painéis do Porto (35mm, 570mt) para o produtor César Guerra Leal. O filme, apesar de ser
“um documentário vivo sobre a capital do Norte“ (como então se denominavam os filmes
de cariz meramente turístico), revelava um sentido poético e humano bastante invulgar
para a produção cinematográfica da época, mas característico da escrita de Reis. No ano
seguinte, agora em parceria com o seu produtor, co-assinou Do Rio ao Céu (35mm,
33mt), outro documentário turístico. De 1966 conta-se mais um trabalho co-realizado
com Guerra Leal: Alto de Rabagão (35mm, 600mt), uma encomenda da empresa HidroEléctrica do Cávado para divulgação e promoção de projectos da empresa.
Entretanto, desde final da década de 1950, António Reis começou também a
publicar alguns trabalhos de poesia: Poemas Quotidianos (1957), Novos Poemas
Quotidianos (1960) e a colaborar por diversas publicações culturais e artísticas. Segundo
Jorge de Sena (apud Moutinho, 1997: 46), a poesia de Reis caracterizava-se por se
316
querer “muito singela, comedida, e discreta, registo de breves impressões e momentos
de descoberta poética das coisas comuns da vida“. Apesar de Margarida Cordeiro (apud
Ibidem: 9), “e pensando retrospectivamente“, achar que “nessa altura [Reis] era um
neo-realista“, Fernando Martinho (apud Ibidem: 49) prefere falar em realismo intimista,
porque a sua poesia “fixa-se essencialmente nos pequenos dramas e nas alegrias
discretas da vida conjugal“.
A paixão de Reis pela poesia popular levou-o a empreender diversas viagens pelo
Portugal mais remoto para conhecer a cultura popular e alguns dos seus agentes. Como
recorda Margarida Cordeiro (apud Ibidem: 12), eram frequentes as visitas de campo de
António Reis em busca da poesia popular:
“E o António – isto é a ‘pré-história’, no bom sentido – vinha na
sua motazinha lá do Porto e entrava na Marateca a ‘todo o gás’ e
depois ia dali para o Alentejo. E também foi para Trás-os-Montes.
Falava com as pessoas. Em vez de tomar nota das suas coisas, preferia
falar. Sempre foi o grande ‘defeito’ do António: ‘O momento é o que
importa’. Eu não sei bem se é defeito, se não é. Mas não coligiu nada.“
Dessas viagens de recolha, ficaram como documentos um registo jornalístico de
1957130 e uma publicação de 1969131.
Por volta de 1964, António Reis conheceu Margarida Cordeiro e, cinco anos mais
tarde, deixaram o Porto e fixaram-se em Lisboa. Esta mudança, motivada por
compromissos profissionais da esposa, permitiu uma maior aproximação de António
Reis à geração de cinéfilos que reclamavam e promoviam, por esses anos, o proclamado
“novo cinema português“ e que se preparavam para fundar o CPC. O primeiro contacto de
Reis com este núcleo ocorreu por volta de 1964, quando Paulo Rocha o convidou para
escrever os diálogos de Mudar de Vida (1966):
“Quando voltei de Locarno, em 63, trazia já a ideia do ‘Mudar de
Vida’. Pedi ajuda ao [Nuno] Bragança para os diálogos, mas ele não
sabia nada de pescadores, e mandou-me para o Cardoso Pires. (…) O
C.P. também sabia pouco de gente do mar, e mandou-me para a minha
terra, o Porto, falar com o António Reis. (…) Estava a preparar uma
tese de doutoramento numa universidade suíça sobre questões de
cultura popular. E era sobretudo um grande poeta, de poucas palavras,
que dizia o essencial através da experiência das coisas banais“ (Paulo
Rocha apud Neves, 2005).
130
“Ouvindo António Reis, o poeta do Porto que foi ao Alentejo“. In: Jornal de Notícias, Suplemento
literário, 4-VIII-1957.
131
“Trás-os-Montes: textos e fotos de António Reis“, ed. Boletim Casa Guérin.
317
Quando, em meados de 1969, Margarida Cordeiro contactou com algumas pinturas
de Jaime Fernandes, logo convenceu António Reis e fazer um filme sobre esse singular
artista plástico. Jaime (1974, 35mm, 35m) é uma média metragem de António Reis que,
a partir de uns desenhos e de uns escritos, tentar revelar a personalidade de Jaime
Fernandes (1900-1969), um anónimo doente psiquiátrico hospitalizado desde os 38
anos de idade. Depois de três décadas de internamento, Jaime Fernandes revelou-se,
nos últimos três anos da sua vida, um prodigioso artista plástico e poeta. O realizador
construiu o seu filme a partir dos desenhos e textos encontrados no asilo e através do
contacto com a viúva e alguns conhecidos do artista. Como sublinha José Manuel Costa
(Cinema Novo Português, 1985: 128-129),
“não se trata portanto de um documentário sobre uma vida já
então inexistente nem – muito menos – de uma ‘reconstituição’ dessa
vida. O que Reis fez foi filmar e trabalhar sobre os materiais e figuras
concretas que existiam no tempo da rodagem do filme e
exclusivamente sobre isso. A evocação biográfica e a outra (humana,
psicológica) surge por outros caminhos, ou seja, pelo próprio trabalho
(que nesse sentido é documentário e é ficção sobre esses materiais.“
O percurso cinematográfico de António Reis prosseguiria depois do 25 de Abril
com a trilogia sobre Trás-os-Montes, mas desse momento falarei mais adiante, no
subcapítulo dedicado às cooperativas.
Para além destes dois, muitos outros cineastas amadores haveriam de se destacar
nestas décadas. Vasco Branco, natural de Aveiro, onde foi um dos fundadores do
cineclube local (1955), foi talvez o caso mais mediático. Começou a ganhar algum
protagonismo na década de 1960, quando começou a conquistar diversos galardões
internacionais132 e os seus filmes começam a ser exibidos para um público universitário,
nomeadamente na Escola Superior de Belas Artes do Porto (1960), no Centro de Estudos
132
Primeiro Prémio nas Jornadas do Filme de 8 mm de Paris, o Filme de Ouro no Concurso Internacional do
Cinema de Amadores de Salzburgo, Menção Especial do Júri do Festival de Cannes, Prémio para o Melhor
Filme no 2º Festival Internacional do Filme Amador de Huy (Bélgica), o Fortim de Ouro no Festival
Internacional de Cinema de Amadores de Calla d’Or (Espanha), o primeiro no Festival Internacional de
Andorra, dois primeiros prémios no Festival Internacional de Viña del Mar (Chile), Ecrã de Prata no 4º
Festival Internacional de Nyon (Suíça). Primeiro Prémio no Festival Internacional de Calla d’Or, Grande
Prémio no Festival Ibérico de Barcelona, Medalha de Ouro no Festival Internacional de Amadores de La
Coruña, Primeiro Prémio nas Jornadas Internacionais do Filme de 8mm em Paris, Prémio para o melhor
filme de 8mm no 3º Festival Internacional de Cinema Amador de Touquet (França), Prémio para o Melhor
Tema Humano no 1º Festival de Cinema Amador em Newark (EUA). Troféu para o Melhor Filme de 8 mm no
Festival Internacional de La Montagne (França). Prémio do Melhor Enredo e Primeiro Prémio no Festival
de Cristchurch (Nova Zelandia), Primeiro Prémio de Ficção no Festival de Cnstchurch (Nova Zelândia).
Grande Prémio no “Scottish Film Festival“, Galardoado nos EUA em “Movies on a Schoestring“, entre
outros (UBI, em linha).
318
Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra (1960) e no Cineclube
Universitário de Lisboa (1961).
Em Moçambique, destacava-se também um jovem cineasta amador e dirigente
cineclubista de Lourenço Marques chamado Faria de Almeida. Nascido em 1934, na
capital Lourenço Marques, o jovem cineasta amador foi um dos fundadores do CineClube de Lourenço Marques e responsável pela secção de cinema de amadores criada no
seu seio. Começaria a realizar filmes em suporte 8mm até que, em 1961, com o filme O
Mar e os Poetas, Faria de Almeida seria distinguido com uma menção honrosa no Festival
de Toulon e selecção no prestigiado Concurso Internacional de Cinema de Amadores de
Cannes. No ano seguinte, seria contemplado com uma bolsa do Fundo de Cinema
Nacional e foi estudar cinema na London School of Film Technique, voltando a
Moçambique em 1964 para realizar a sua primeira longa-metragem já como realizador
profissional (Convents, 2011: 310-311).
Francisco Saalfeld é outro caso de destaque porque passou rapidamente ao cinema
profissional. Revelado nacionalmente pelo Concurso Nacional de 1962, seria distinguido
no ano seguinte e nomeado um dos representantes nacionais ao festival da UNICA. Com
apenas 5 anos de experiência como cineasta amador, tornou-se realizador e produtor
profissional, desenvolvendo uma profícua carreira até final da década de 1960,
nomeadamente no filme turístico e técnico. O seu primeiro filme profissional, Outono em
Lisboa (1966), seria produzido pela Internacional Filmes e teria o apoio financeiro do
Fundo do Cinema Nacional (Cinema de Amadores, XI-196: 2551).
O caso de Pedro Figueiras Mathias é outro cado particular e, no mínimo, curioso:
em 1965, o cineasta amador organizou um festival de cinema na sua sala se exibição
privativa onde exibia apenas os seus filmes e onde se auto-premiava. Repetido nos anos
seguintes, pelos menos até 1967, o Festival de Cinema destinava-se exclusivamente a
divulgar os seus próprios trabalhos:
“Iniciei as minhas actividades em 1964 com um filme de
carácter comercial cuja fotografia foi captada por António de Almeida,
funcionário da Pathé Baby, para ser exibido perante amigos meus
quando do meu 37.º aniversário natalício. (...)
(...) Serenei os ânimos e propus-me fazer com o meu tio o
primeiro filme a sério. (...)
Foi então que compreendi as minhas possibilidades neste
género de gastar dinheiro...“ (Idem, V-1966: 2502)
319
3.3.2. Federação Portuguesa de Cinema de Amadores
No final dos anos 50, os festivais de cinema de amadores tornam-se mais
frequentes: em 1958, o Clube Português de Cinema de Amadores organiza em Lisboa a
primeira edição de um evento que se tornaria muito concorrido ao longo dos anos; o
Cineclube do Lobito (Angola) organiza o I Concurso de Cinema de Amadores do Lobito, o
primeiro evento do género nas então colónias portuguesas133; em 1959, em Rio Maior, o
cineclube local organiza também a primeira edição Festival de Cinema Amador,
igualmente popular entre os cineastas amadores portugueses; também em 1959, o
Cineclube de Setúbal organiza a primeira edição do seu Concurso Nacional.
No entanto, o período de maior expansão do cinema de amadores seria entre 1964
e 1967, anos em que surgiram vários clubes espalhados pelo país e que culminaria com a
criação, em 1968, da Federação Portuguesa de Cinema de Amadores (FPCA), que
beneficiou do mediatismo para agregar ainda mais clubes espalhados pelo país e pelos
antigos territórios coloniais.
É neste período, após a realização dos primeiros concursos nacionais (Lobito,
Luanda e Benguela), que o cinema de amadores em Angola começa a ganhar algum
mediatismo. Tal como havia acontecido décadas antes em Portugal, também em Angola
o movimento cineclubista esteve, desde cedo, ligado ao desenvolvimento do cinema de
amadores e um seu importante promotor e divulgador. António J. Faria, do Huambo,
declararia na revista Filme (30, IX-1961: 2):
“Mas é o cinema de amadores que tem, sem dúvida alguma
procurado manter uma linha reta, sólida e ascendente. Os cineclubes
angolanos estão ligados a esse movimento, que se tem vindo a
manifestar há já bastante tempo.“
133
Em 1960, a terceira edição do evento passou a designar-se Concurso Nacional e a receber filmes de
Portugal continental (Idem, 30, VI-1960: 8), contando com o apoio do Departamento Cultural da Câmara
Municipal local e a Associação Comercial do Lobito e Catumbela e que premiou diversos realizadores
amadores locais. Uma década depois do primeiro concurso local, surgiria o Festival Internacional de
Cinema de Amadores do Lobito, cuja primeira edição aconteceu em 1968 — com o apoio da Union des
Cineastes Amateurs Huitistes Mondiaux (Idem, 121, I-1968: 14-15) — e as seguintes a cada dois anos
(1970, 1972, 1974). A organização seria da responsabilidade da Câmara Municipal do Lobito e da
Companhia de Caminhos de Ferro do Lobito (Museu Virtual RTP, em linha).
Em Outubro de 1959, o Cineclube de Luanda promoveu e organizou, com o apoio da Câmara Municipal
local, “um concurso nacional de cinema de amadores, nos formatos de 8, 9,5 e 16mm“ (Idem, 24, XII1959: 20). Em Agosto de 1960, à semelhança de outros congéneres, o Cineclube de Benguela organizou o
seu primeiro Concurso de Cinema de amadores (Idem, 33, IX-1960: 19). Na primeira edição, foram
premiados cineastas amadores do Lobito (Joaquim Ferraz da Silva com a ficção Ouro de Morte) e de
Benguela (José Joaquim Diogo Branco com o documentário I Rallye Automóvel de Benguela) (Celulóide,
36, XII-1960: 10).
320
E cita diversos exemplos de filmes rodados no Huambo e Luanda com apoio ou
“ligados aos ambientes cineclubes“ locais. Depois de vários pioneiros que agiam mais os
menos de forma isolada134, o surgimento de uma série de festivais de cinema de
amadores em várias cidades angolanas, de carácter local, regional ou mesmo
internacional, foi um fenómeno que acompanhou a geografia e a cronologia do
movimento cineclubista angolano, mantendo uma relação directa e próxima com os
próprios cineclubes ou os seus dirigentes e dinamizadores.
Em 1956, um texto da Cinema de Amadores (VIII/IX-1956: 1314-1315) garantia
que em Luanda, uma cidade com 25 mil “europeus“ residentes, existiam já cerca de 150
câmaras “aptas a funcionar“ e as casas que fornecem os equipamentos e a película, “que
se contam por pouco mais de uma dezena“, “não se queixam das vendas desses artigos“.
No entanto, Armando Tavares Santiago, ele próprio também cineasta amador,
lamentava-se que “os possuidores destas câmaras limitam-se a impressionar toda a
película com as gracinhas dos bebés, os passeios familiares e pouco mais.“ (Ibidem)
A criação, na Sociedade Cultural de Angola, de uma secção de cinema e de uma
sub-secção de cinema de amadores foi determinante para promover as potencialidades
do filme amador, desde a organização de sessões de divulgação até aos populares
concursos (Ibidem).
Em Janeiro de 1970, a criação da Secção de Cinema de Amadores da Casa das
Beiras do Lobito, federado desde logo na FPCA, permitiu “novas perspectivas (...) ao
progresso da modalidade em Angola“, nomeadamente a organização de festivais e do I
Encontro do Cinema de Amadores de Angola (1972), que contou com participantes de
sete cidades angolanas135. Nos meses de Setembro e Outubro de 1971, uma delegação da
FPCA visitou Angola e realizou sessões de divulgação e debates nas principais cidades
angolanas, iniciativa que contou com o patrocínio do Ministério do Ultramar e do Centro
de Informação e Turismo de Angola (CITA) (UNICA, 1972: 32). Em Dezembro de 1973,
uma nova delegação da FPCA rumava novamente a Angola e Moçambique, com o
patrocínio do Ministério do Ultramar, para coordenar diversas actividades de cinema de
amadores naqueles territórios (Cinema de Amadores, X/XII-1973: 3118).
134
Em Benguela, foi possível ainda identificar actividades cinematográficas desenvolvidas pelo cineasta
amador Mário Melo: está a realizar, segundo noticia o Diário Ilustrado, um filme vanguardista intitulado
‘Boizinhos’.“ (Celulóide, 20, VIII-1959: 18). Só a título de exemplo, convém registar também que foi
possível identificar outros cineastas amadores entre os premiados em vários concursos de cinema de
amadores realizados em território angolano: Amaro Trindade, João Fragoso e José Joaquim Diogo Branco
de Benguela (Idem, 33, IX-1960: 19; 36, XII-1960: 10).
135
Luanda, Malange, Nova Lisboa (Huambo), Sá da Bandeira (Huíla), Moçâmedes, Benguela e Lobito.
321
Em Moçambique, o processo foi semelhante. Os concursos de filmes de amadores
foram determinantes para o crescimento do fenómeno, nomeadamente a realização do I
Concurso Internacional de Lourenço Marques, uma organização do cineclube local onde
se destacavam cineastas amadores como Faria de Almeida, Jorge Pais e Cassiano Caldas.
Na cidade da Beira, onde pioneiros como Sérgio Guerra já fazia filmes amadores desde
1957, foi igualmente importante a acção da Secção de cinema de Amadores do Cineclube
da Beira, particularmente do cineasta Artur Costa, que mais tarde trabalharia na RTP. Em
1963, esses dois cineclubes coordenaram esforços e organizaram um primeiro curso de
iniciação à técnica e estética cinematográficas que muito incentivou a prática do cinema
de amadores. Em 1963 organizar-se-iam dois eventos nessas duas principais cidades
moçambicanas: o I Concurso Provincial de Lourenço Marques e o I Concurso Nacional da
Beira. A estes dois núcleos, justar-se-ia nos anos seguintes a Secção de Cinema da
Associação Académica de Moçambique, também com um trabalho meritório de
divulgação junto da população estudantil do ensino superior (Ibidem: 34).
Como já referi anteriormente, a prática cinematográfica amadora nasceu a par dos
cineclubes em Moçambique, “onde os sócios não querem só ver e discutir filmes mas
também aplicar a teoria na prática e realizar filmes“ (Convents: 2011: 317).
Um dos primeiros clubes de amadores surgiria antes mesmo de 1951, ano em que o
Núcleo d'Arte de Lourenço Marques organiza um concurso de cinema amador. Dois anos
depois, em Fevereiro de 1953, surge o Grupo de Amadores de Cinema da Beira, que daria
origem ao Cine-Clube da Beira (1956). A partir de 1960, o boletim Objectiva 60, órgão do
Cine-Clube de Lourenço Marques, dedica uma secção especial ao cinema de amadores,
onde se dava destaque à sua secção de cinema de amadores dirigida por Faria de
Almeida. Em meados dos anos 60, em Lourenço Marques já existiam “várias lojas
especializadas em material de cinema para amadores“. (Ibidem: 317-321).
Em 1964, a RTP exibe o filme O Anúncio, produzido na secção de cinema amador
do Cine-Clube da Beira por um colectivo dirigido por José Cardoso. É, naturalmente, um
momento de entusiasmo e de reconhecimento para os cineastas amadores
moçambicanos que, em meados dos anos 60, começam já a filmar regularmente em
película de 16mm. No mesmo ano, os amadores da Beira tentam lançar o ambicioso
projecto de produzir um Jornal Cinematográfico de Actualidades (Ibidem: 324-326).
Mas, este mediatismo traria alguns dissabores: com filmes amadores a denunciar e
condenar recorrentemente a guerra colonial e o colonialismo, “o interesse da polícia
322
política (a PIDE) pelas actividades e produções dos cine-clubes em Moçambique“
acentua-se (Ibidem: 328).
Nos anos 70, a par do aumento de actividade de cinema de amadores nas duas
principais cidades, registaram-se também algumas iniciativas dignas de nota em
pequenas cidades como Quilimane, Nampula e Vila Pery. À semelhança do que
aconteceu em Angola, também várias cidades de Moçambique receberam uma digressão
da FPCA (Ibidem).
Com um considerável aumento na participação de festivais e concursos de cinema
no então território metropolitano, um dos problemas que começaram a levantar-se aos
cineastas amadores era o cumprimentos de formalidade burocráticas aduaneiras e o
pagamento de elevadas taxas alfandegárias (cerca de 275 escudos por filme).
Naturalmente, o problema também se levantava em casos inversos, ou seja, no envio de
filmes de Portugal continental para competições organizadas em Angola e Moçambique,
embora penalizasse mais significativamente os cineastas “ultramarinos“. Em explicações
à revista Cinema de Amadores (X-1963: 2255-2257), o Director Geral das Alfândegas
esclarecia que os filmes não poderiam ser considerados produtos de origem nacional
porque a película virgem era estrangeira e “as operações de impressionar e revelar não
lhe conferem origem nacional“. No entanto, o mesmo responsável sugeria que os filmes
fossem remetidos ao abrigo do regime de importação temporária e assim poderiam
beneficiar de taxas menos elevadas.
Os anos 60 foram de democratização no acesso aos materiais, nomeadamente
“com a popularização dos filmes 8mm e Super 8, também pela Kodak, com preços que os
tornavam acessíveis à burguesia emergente e às classes médias urbanas“ (Cruz, 2013b:
69)
Em meados dos anos 60 regista-se um novo surto de competições nacionais e
internacionais de cinema de amadores: Concurso de Filmes de Amadores da Figueira da
Foz (1964); Festival Internacional de Filmes Amadores organizado pelo GCD da
Companhia Nacional de Navegação (1964); Semana Internacional do Filme Amador da
Figueira da Foz (1965), com o apoio da UCAHM; Bienal do Cinema Amador de Rio Maior
(1965); Concurso de Cinema Amador e Experimental do ABC Cineclube de Lisboa (1965);
Festival Internacional de Cinema de Amadores do Barreiro, organizado pelo Grupo
Desportivo da CUF (1966); Festival Internacional do Filme Amador de Coimbra (1966);
Festival Nacional de Cinema Amador de Guimarães (1966); Festival Internacional de
Cinema de Amadores do Estoril, organizado pelo Clube Português de Cinema de
323
Amadores (1966); Festival Internacional do Lobito (1968); Festival de Cinema de
Amadores de Luanda (1968), organizado pelo Centro de Informação e Turismo de
Angola; Concurso da Federação Portuguesa de Cinema de Amadores (1969). Entre estes,
surgiam também alguns certames mais especializados, como a Semana Internacional do
Filme Religioso de Amador (1967), a decorrer em Fátima, ou o Festival Internacional de
Filmes de Prevenção, organizado pelo Gabinete de Higiene e Seguranla do Trabalho da
Junta de Acção Social (1967).
Em 1965, uma iniciativa inédita promovida pelo Clube Português de Cinema de
Amadores iria trazer grande mediatismo à prática de cinema de amadores: uma selecção
dos “melhores“ filmes de amadores produzidos por vários cineastas amadores iria
percorrer várias cidades do país como forma de promoção do cinema de amadores. O
primeiro “circuito“ incluiu as cidades de Barcelos, Oliveira de Azeméis e Aveiro e as
sessões eram organizadas localmente por membros do Clube Português de Cinema de
Amadores, no caso, respectivamente, Carlos Basto, Manuel Matos Barbosa e Vasco
Branco (Cinema de Amadores, IV-1965: 2390).
Ironicamente, por estes anos, em simultâneo ao “ataque“ que desferiu ao
movimento cineclubista, o SNI ia atribuindo diversos subsídios pontuais a vários
cineclubes, nomeadamente apoios destinados à produção de filmes amadores ou à
realização de concursos para esse tipo de produções, que acabavam por servir os mesmo
fins de vigilância e tentativa de controlo:
“Alguns cine clubes, até favorecidos pela concessão de
subsídios do SNI, começaram já a dedicar particular atenção à feitura
de pequenos filmes, para o que criaram secções de cinema
experimental, com directrizes definidas naturalmente, com
orientadores adestrados e alunos-componentes dando provas de
vocação e desejo de aprender a de colaborar. (...)“ (Idem, IV/V-1960:
1853)
Em 1962, a revista Cinema de Amadores (VII-1962: 2124) congratulava-se que o
Cinema de Amadores em Portugal vivia o seu melhor momento materializado no recorde
de 21 inscrições de filmes no Concurso Nacional de Filmes de Amadores, organizado pelo
Clube Português de Cinema de Amadores e ainda o mais importante do género em
Portugal. Para além da consolidação de alguns já veteranos cineastas amadores, a
revista falava ainda do “aparecimento de novos nomes“ e do trabalho desenvolvido pelo
clube anfitrião num “insistente e persistente“ esforço de divulgação desta prática
cinematográfica em Portugal.
324
Meses mais tarde, a mesma publicação (Idem, I-1963: 2170-2171) regozijava-se
novamente com as actividades desenvolvidas pelos cineastas amadores portugueses:
organização de 6 grandes festivais de cinema em Portugal (dois em Lisboa, e um em
Évora, Sintra, Barreiro, Lourenço Marques) e participação e e premiações nos principais
festivais internacionais (Paris, Viena, Cannes e D'Huy).
Como observa Luís de Pina (1978: 149), a “subida do nível de vida“ na sociedade
portuguesa na década de 60 contribuiu para o “consequente aumento de
disponibilidades cinematográficas“. No entanto, considero que, ao contrário do que
acontecia com o movimento cineclubista, a relativa “apatia“ política dos cineastas
amadores e o alcance mais reduzido do circuito de produção e exibição dos filmes
amadores foram importantes para que o poder político não interviesse de forma tão
violenta junto da prática de cinema de amadores.
No entanto, o crescimento do fenómeno, tanto na metrópole como no Ultramar,
mantinham atentas as autoridades públicas, desde o SNI e a PIDE, mas também a
Mocidade Portuguesa, que pareciam empenhados em acompanhar a evolução desta
prática com particular atenção, tentando manter contacto e colaboração com alguns
núcleos e assim ir monitorando as suas actividades.
A notícia da organização, em meados de 1963, do primeiro Curso de Cinema do
Estúdio Universitário de Cinema Experimental, promovido pela Mocidade Portuguesa,
foi acolhida com particular entusiasmo no seio dos cineastas amadores portugueses,
considerando que este tipo de iniciativas “só pode trazer benefícios a Cinema Nacional e esperamos com ansiedade o ingresso no Cinema Amador de alguns alunos deste Curso“
(Idem, IV-1963: 2198-2199).
Cerca de um ano antes, a delegação de Portimão da Mocidade Portuguesa criava a
sua subsecção de cinema, composta por adolescentes com cerca de 15-16 anos que
estavam filiados nessa organização juvenil, com supervisão de um experiente cineasta
amador local, e que vinha participando em alguns concursos e festivais nacional da
especialidade (Idem: VII-1963: 2225).
Apesar do seu crescimento, a prática cinematográfica amadora continuava muito
limitada e o número de filmes que eram exibidos publicamente permanecia residual: por
estes anos, os concursos nacionais apresentavam pouco pais de duas dezenas de filmes
em competição e os nomes dos cineastas envolvidos não ultrapassavam a dezena e meia.
Em Janeiro de 1965, reunia-se me Coimbra o I Encontro do Cinema Amador
Português, iniciativa que nasceu meses antes o decorrer da Semana Internacional do
325
Filme Amador da Figueira da Foz e que pretendia “proceder a uma análise da posição
atingida pelo cinema amador em Portugal e das condições em que se tem processado a
sua evolução“ (Idem, I-1965: 2477).
Enquanto representante oficial de Portugal na UNICA, o Clube Português de
Cinema de Amadores teria um papel fundamental na preparação e coordenação da
constituição da Federação Portuguesa de Cinema de Amadores, contactando os
eventuais interessados. ao fim de três meses de trabalho, a proposta de estatutos era
aprovada internamente e entregues às autoridades competentes em Março de 1968.
Após a criação da FPCA, o Clube Português delegou na nova estrutura federativa a
representação portuguesa na UNICA (Idem, X/XII-1968: 2726).
Entre a missão da nova estrutura federativa estava a divulgação e promoção da
prática do cinema de amadores, o reconhecimento da acção dos seus praticantes e a
coordenação de esforços para o desenvolvimento e crescimento dessa prática em
Portugal:
“Os clubes mais esclarecidos e a FPCA têm a nítida noção do
papel que o cinema pode desempenhar, sobretudo se se considerarem
os aspectos da sua necessária e até inevitável democratização em
relação a camadas ate agora alheias a esta actuação.
(...)
Finalmente, deverá acentuar-se que a FPCA procura
intensamente fazer cair as barreiras que separam os vários elementos
ligados ao cinema — profissionais, amadores, críticos, organismos
oficiais e particulares e público (melhor dizendo, os diversos públicos
— com o obejctivo de fazer convergir esforços no sentido da promoção
dum Cinema Português.
Todos juntos, num intercâmbio frequente, poderão contribuir
para uma personalização e planificação do cinema português e assim
fornecer uma imagem real, viva e actual da sociedade portuguesa e do
espírito do seu povo“ (UNICA, 1972: 30)
Naturalmente, uma das razões de ser de uma estrutura federativa como esta
passava pela “banalização“ ou “vulgarização“ desta prática. A promoção do cinema
amador junto das escolas e de organismos culturais também era uma das preocupações
da FPCA:
“(...) Na sequência de vários pedidos de colaboração que vêm
sendo solicitados à FPCA, foram, recentemente, realizadas sessões de
divulgação, com projecção de filmes seguidas de debate , na
Associação do Pessoal do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e
no colégio Valsassina, em Lisboa.
(...)
Ainda neste colégio, vai, agora, ter lugar um ciclo de iniciação
de cinema, sendo abordados os aspectos teóricos e práticos da
concepção e das técnicas cinematográficas, da estética e da história do
326
cinema, a que se seguirá a realização de um filme de aplicação por uma
jovem equipa.
Os orientadores são alguns dos dirigentes e colaboradores da
FPCA.“ (Cinema de Amadores, I/III-1973: 3054)
O desenvolvimento de actividades formativas e culturais parecia ser uma das
vantagens da prática cinematográfica amadora, contribuindo para a valorização dessa
actividade. No entanto, após sensivelmente quatro anos de actividade da FPCA, Manuel
Matos Barbosa, um cineasta amador de Oliveira de Azeméis reconhecido no meio,
alertava para o facto do cinema de amadores ainda ser visto como um meio “bastante
fechado, sufocado em parte pelos seus regulamentos, com bastante receio de enfrentar
os problemas sociais“ (Idem, IV/VI-1973: 3076). Matos Barbosa transparecia um pouco
preocupado e desiludido, mas seria evidente que a vigilância e o controlo das
autoridades políticas sairia beneficiada e reforçada com a criação dessa estrutura
agregadora.
Em Outubro de 1970, decorre em Aveiro, organizado pela secção de Fotografia e
Cinema do Clube dos Galitos, o I Congresso Nacional de Cinema de Amadores, que seria
importante para consolidar a rede de relações estabelecida desde a criação da FPCA.
Dados inéditos e documentação de espólios particulares fornecidos por Rita Capucho
mostram uma dimensão considerável na organização deste evento, que pretendeu
reunir representantes da prática de cinema de amadores de vários pontos do país e das
então colónias ultramarinas.
Também por isso, passaram a ser mais frequente a colaboração da FPCA e o SNI,
como a realização de sessões de divulgação de filmes de amadores no Palácio Foz, assim
como com a própria Cinemateca Nacional, que anunciava, em Abril de 1973, a criação de
uma secção especializada em cinema de amadores portugueses que esperava integrar na
sua colecção filmes que fossem doados por cineastas amadores portugueses (Ibidem:
3086).
Em 1972, a FPCA contava com 15 clubes federados136, sendo que 3 estavam
sediados em territórios ultramarinos. Nota-se a ausência nesta federação de vários
cineclubes portugueses que mantinham em actividade as suas secções de cinema
136
Clube Galitos de Aveiro, Clube Micro-Cine (Lisboa), Cine Clube da Beira (Moçambique), Grupo Cultural
Desportivo da Companhia Nacional de Navegação (Lisboa), Convívio (Guimarães), Cineclube do Porto,
Clube Português de Cinema de Amadores (Lisboa), Casa das Beiras do Lobito (Angola), CAT Paula Dias
(Aveiro), Clube de Cineastas Amadores de Coimbra, Cine Clube de Torres Novas, Esperança Atlético Clube
Portimonense (Portimão), Círculo Cultural de Setúbal, Círculo de Arte e Recreio (Guimarães) e Grupo
Desportivo e Cultural da Lupral (Benguela, Angola).
327
experimental, pelo que o número de núcleos de produção em Portugal seria
substancialmente maior do que estes 15 clubes federados. Presumo, que a má
experiência dos cineclubes com a Federação Portuguesa de Cine-Clubes possa ter tido
algumas influência neste afastamento dos cineclubes de uma estrutura como a FPCA.
Assim, entre os federados, encontravam-se diversas entidades com largas
tradições na prática de cinema de amadores espalhados por vários pontos do território.
Para além dos mais antigos e reconhecidos, o Núcleo dos Cineastas Independentes,
fundado em 1952, era uma das principais entidades dinamizadores da prática de cinema
de amadores no início dos anos 70, assim como o lisboeta Clube Micro Cine, fundado em
1966, e o Clube de Cineastas Amadores de Coimbra. O envio de delegações da FPCA para
os territórios ultramarinos, nomeadamente Angola e Moçambique, com o apoio de
entidades oficiais, pretendia manter e reforçar essa representatividade da estrutura e
potenciar o seu crescimento e influência no terreno.
A reforma do Conservatório Nacional também poderia beneficiar os praticantes de
cinema amador, mas ao contrário do que seria a sua função, a acção do poder político
não tornara acessível o acesso aos meios de formação profissional de cinema:
“(...) existe um Conservatório de Cinema de acesso limitado.
(...) No Conservatório que cá existe, verifica-se a mesma coisa: só lá
entra quem tem dinheiro na carteira e uma ou duas casas para as
bandas de Cascais. É claro que destes cursos limitados só se parem
obras limitadas, cujos temas, de uma esterilidade total vão de
imbecilidade de uma educação sexual (com a Sofia lá do sítio) até à
estupidez dos filmes estúpidos, que para nada servem...“ (Cineclube,
8, II-1976: 19)
A publicação da Lei 7/71 mostrava que o cinema de formato reduzido era uma
preocupação constante para o poder político. No seu capítulo V, a nova legislação previa
que a produção, distribuição e exibição de filmes em suportes inferiores aos 35mm
também ficavam sujeitas às disposições gerais da lei e que haveria de ser criado um
regime de excepção, a estabelecer futuramente pelo IPC, para os “filmes de arte e
ensaio“. Ao IPC, de acordo com a alínea d) da Base II, competia também “estimular o
desenvolvimento do cinema de arte e ensaio e do cinema de amadores“.
Apesar da produção de filmes amadores, ao contrário dos filmes comerciais, não
necessitar de visto prévio do IPC, a legislação era omissa em relação à distribuição e à
exibição pública de filmes em formato reduzido. Apesar de não haver legislação
específica, em 1973, por exemplo, um filme do cineasta amador Vasco Branco era retido
pela Comissão de Censura, enquanto no ano anterior José Barbosa viu serem cortados
328
alguns planos do seu filme Geração 70 por acção da censura (Cinema de Amadores,
VII/IX-1974: 3169). Ofícios provenientes de espólios particulares disponibilizados por
Rita Capucho documentam o processo de censura ao filme O Ensaio (1973), de Vasco
Branco, mediado pela FPCA: o filme seria proibido de ser exibido em Portugal
metropolitano (continente e ilhas adjacentes) aparentemente pela sua mensagem
pacifista e humanista e por se ter inspirado em textos de Jean-Paul Sartre escrito a
propósito da Guerra da Argélia.
No final de 1973, as páginas do Diário de Lisboa acolhiam uma polémica acerca do
cinema de amadores que motivaria uma carta aberta de Henrique Alves Costa que traça,
em breve palavras, um retrato esclarecedor do contexto vivido pelo cinema de amadores
por esses anos:
“(...) Os meus reparos e a minha discordância face a processos
que caíram na autocontemplação e na rotina, são — sabem-no os que
conhecem a minha simpatia e o meu apreço pelo cinema amador — a
melhor e mais honrada contribuição que posso dar para o progresso do
vosso cinema que tantas vezes tenho defendido. (...)
O cinema amador português é, hoje em dia, uma realidade.
Muito importante ou não, o cinema amador português — libertado,
finalmente, do 'filmezinho-para-a-família-ver' — vai ganhando relevo
ao tornar-se, pouco a pouco, forma de expressão artística. (...)
Comecemos pelos festivais. A eles se deve a inicial saída a
público do cinema amador. A sua multiplicação pelo País não só
oferece, aos cineastas, a oportunidade de dar a conhecer as suas
obras, como também, ao público, a possibilidade de tomar contacto
com um cinema sobre o qual, muitas vezes está mal informado e que
considera no sentido pejorativo da palavra 'amador': sinónimo de mal
feito, incipiente, desajeitado. (...) Deste modo, penso que há que
repensar os festivais em termos diferentes, modificar os regulamentos,
organizar debates públicos ou mesa redondas circunscritas a cineastas
e críticos de cinema, e... reduzir drasticamente o número de prémios.
(...)
Os cineastas amadores tem na mão um trunfo admirável:
liberdade de criação e independência. Nenhuma imposição de ordem
comercial ou qualquer outra (e pior) espécie os coage. (...)
Se cada cineasta amador, na sua região (ou em regiões vizinhas
da sua), se aplicasse numa tal tarefa, se colectiva e seriamente os
amadores planificassem um trabalho desta natureza e envergadura (o
que implica um prévio estudo para cada filme e uma aplicação formal
que não consente improvisos e facilidades, pois cada obra deverá
apresentar-se cinematograficamente bem estruturada e bem acabada),
então o cinema amador português dava ao País uma inestimável e
valiosa contribuição. É neste caminho e — onde está quase tudo por
fazer — que eu gostaria de meter os amadores... e entusiasmá-los a
levar a cabo, a longo prazo, o que poderia ser o mais importante
empreendimento cinematográfico nacional.
(...)
329
Infelizmente, o cineasta amado, por via de regra, tende para o
melodrama ou para a contemplação da Natureza, para o já visto ou
para a tristeza. Inventa muito pouco
9e aqui eu ponho como excepção os filmes abstractos de Vasco
Branco), tem pouca imaginação, pouco sentido crítico e nem sequer
tem o sentido de reportagem. É ainda acanhado. Não tem chispa
(como dizia, no colóquio de Guimarães, um cineasta espanhol
referindo-se ao cinema amador ibérico). Não é atrevido. E muito
menos irreverente.
(...)
Sim, os cineastas portugueses vão lá fora e fazem boa figura, o
cinema amador português é tão bom ou melhro do que muito cinema
amador estrangeiro. É um facto. Mas o que isso prova? É um facto que
não significa grande coisa porque a bitola de valores é feita à medida
da insignificância (na sua média) do cinema amador estrangeiro...
Ora, não é a fraqueza dos outros que nos confere força. Quando muito
dá-nos uma ilusão de força... que não temos. É esta ilusão que é
necessário desfazer para se acabar com um mal-entendido e se andar
realmente para a frente. (...)
(...)
Separando, de vez, o cinema amador do 'cinema para a família'
(separação em que os próprios amadores estão agora empenhados),
resta aos amadores ganharem perfeita consciência do que podem fazer
(mesmo tendo em conta as suas limitações), utilizando, com maiores
ambições, a sua liberdade e independência (a sua imaginação e a sua
habilidade) na criação de um cinema não comercial (documentaristapoético-humorista-crítico) artisticamente válido, que, de algum
modo, contribua para o conhecimento da realidade portuguesa (...).“
(Idem, X/XII-1973: 3121-3123; IV/VI-1974: 3155-3158)
Entretanto, com a Revolução dos Cravos, tudo se altera:
“Efectivamente são os cineastas amadores aqueles que em
Portugal mais gritam que o cinema deve estar ao lado dos
trabalhadores na defesa dos seus interesses. E até com uma certa
razão, já que o cinema de amadores encerra neste momento, e mais
que qualquer outro, as condições mais objectivas e favoráveis para se
encontrar ao alcance da classe trabalhadora. (...) O cinema de
amadores é também aquele que mais se coaduna e compatibiliza com a
criação de centro regionais ou outros organismos que tenham por fim
o estímulo pela criação e gosto do cinema. Com esse objectivo, o
governo português concedeu um apoio financeiro (ainda o ano
passado) para a criação de centros de produção e dinamização do
cinema de amadores.
(...)
O cinema de amadores foi sempre obra de alguns pequenos
burgueses bem instalados na vida, com dinheiro para empatar na
compra de material cinematográfico necessário que, apesar de tudo,
não se encontra ao alcance da bolsa de qualquer um. Com a garantia
de vinda de subsídios a nível oficial, a realização de filmes me Super 8
poderá ser muito mais alargada e, essencialmente, pô-la à disposição
daqueles que menos possibilidades têm, levar e incrementar o cinema
às classes mais desfavorecidas neste sector que ainda são os
trabalhadores.
(...)
330
A cinematografia portuguesa (filmes de amadores ou não) não
pode aguentar o ritmo imposto pelas cinematografias capitalistas (os
nossos cineastas esperam este ou aquele subsídio de quem dependem
para dar largas à sua imaginação e criatividade). (...) “ (Cineclube, 8,
II-1976: 18-19)
Pouco tempo depois de Abril de 1974, a nomeação de Vasco Pinto Leite, um
reconhecido cineasta amador e então Presidente da Direcção da FPCA, como Director
Geral da Cultura Popular e Espectáculos foi recebida no meio do cinema de amadores
com especial “regozijo pela confiança que o Governo Provisório nele depositou“ (Cinema
de Amadores, VII/IX-1974: 3161).
Ainda em 1974, a partir do mês de Julho, a RTP passou a dedicar um programa
quinzenal ao cinema de amadores portugueses, produzido em colaboração com a FPCA,
onde seriam exibidos filmes e “discutidos vários aspectos do movimento“ com a
presença de várias figuras de destaque do cinema de amadores em Portugal (Idem,
VII/IX-1974: 3162). Prevendo uma permanência em antena, a FPCA envidou vários
esforços junto dos seus associados e de outras entidade produtoras de filmes amadores
não federadas no sentido de disponibilizar cópias do seus filmes “de modo a que o
programa constitua uma panorâmica tanto quanto possível completa do movimento no
nosso País“ (Idem, X/XII-1974: 3188).
A fortalecer este reconhecimento público, a FPCA seria também convocada para
dar o seu parecer e participar activamente na elaboração do novo projecto de lei do
cinema que contava com a participação de dezenas de entidades (Ibidem: 3168-3169).
Já poucos meses antes da Revolução, a nomeação de um representante para a
composição do Conselho do Cinema (composto por 13 elementos) era também um sinal
de reconhecimento pela importância deste sector cinematográfico no contexto
português.
Entretanto, a Federação Portuguesa de Cinema de Amadores é convertida na
Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais. Ainda se colocou em hipótese a junção
da FPCA com a FPCC para a criação de uma única estrutura mais fortalecida, mas essa
hipótese acabou rejeitado por manifesto conflito de interesses dos associados das duas
entidades.
A nova Federação pretendia assumir agora um papel importante na coordenação
de uma sector que, com o fim da ditadura e de qualquer tipo de entrave censório,
multiplicaria exponencialmente a sua actrividade:
331
“O cinema dito 'amador', agora designado por cinema 'de
formato reduzido', na linha de um maior comprometimento formal e
substancial, que vinha já dos anos 70, parece ter deixado
definitivamente a tradição de 'filme familiar', improvisado e
manifestamente medíocre. Congressos nacionais, festivais de cinema
(Guimarães e Algarve, por exemplo), encontros internacionais,
publicações especializadas, são parte de uma acção concertada,
partindo do trabalho da Federação Portuguesa de Cinema e
Audiovisuais, com relevo para alguns clubes do sector, como o Núcleo
dos Cineastas Independentes.“ (Pina, 1986: 206-207)
Em Junho de 1977, reunia em Évora o Encontro Nacional de Cinema NãoProfissional da Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais, numa iniciativa do
Micro-Cine, o Zoom e o Núcleo de Cineastas Independente, com o apoio do Centro
Cultural de Évora, numa competição marcada pelas distinções atribuídas ao Núcleo dos
Cineastas Independentes (Cineclube, 14-15, X-1977: 53).
Nesse mesmo ano, em Outubro, a oitava edição do Festival Internacional de
Cinema de Amadores de Guimarães reunia 56 filmes proveniente de 17 países137. Com
dois núcleos de produção em Guimarães (Convívio e Círculo de Arte e Recreio), um em
Braga (Associação Cultural de Fotografia e Cinema de Amador de Braga) e o histórico
Cine-Clube do Porto, a região Norte vai-se destacando gradualmente, e década de 1980
adentro, como um importante pólo na produção e circulação de cinema de amadores em
Portugal.
Ao longo das décadas de 50-70, apesar de não ter tido a dimensão numérico
atingida pelo movimento cineclubista, o circuito de produção e exibição do cinema de
amadores atingiu uma dimensão considerável no panorama cinematográfico nacional,
contribuindo positivamente para a revelação de inúmeros cineastas amadores e
inclusive para a passagem de alguns para o cinema profissional (António Campos,
António Reis, Faria de Almeida, entre outros). Por outro lado, o processo de
internacionalização do cinema de amadores português seria importante como uma
espécie de um ensaio para um processo mais vasto de internacionalização que iria
acontecer já no decorrer dos anos 60. Finalmente, o desenvolvimento de diversos clubes
de amadores e de secções de cinema experimental foi determinante para que milhares
de praticantes pudessem contactar, ainda que a vontade “normalizadora“ fosse notória,
com estéticas e técnicas cinematográficas diversas e diferentes das convencionais e
dominantes.
137
RFA (6), Áustria (2), Bélgica, Brasil (2), Bulgária (5), Espanha, Estado Unidos (7), Finlândia, Hungria
(4), Itália (2), Japão, Luxemburgo, Malta, Suíça, Suécia, Turquia e Portugal (19).
332
3.4. Cinema moderno
Na sua obra Screening Modernism. European Art Cinema, 1950-1980 (2007), András
Bálint Kovács propõe analisar exaustivamente, histórica e esteticamente, o cinema de
arte (art cinema) que foi produzido em vários países europeus desde meados da década
de 50 até meados dos anos 70 do século XX. Não se trata, portanto, de uma história geral
do cinema europeu desse período porque o autor defende que as obras fílmicas que
podem ser classificadas como art cinema constituem apenas uma excepção à produção
cinematográfica europeia do mesmo período.
Em última análise, Kovács procura compreender a formação do cinema moderno
através da emergência da noção de cinema de autor (cinema of auteurship, do termo
francês auteur), recusando absolutamente a ideia de que o cinema de arte moderno
possa constituir um estilo homogéneo. Para sustentar essa tese, Kovács propõe-se
analisar atentamente as formas modernas de cada autor através de possíveis variações
geográficas (regionais ou nacionais), culturais ou mesmo individuais, mas também
através do estudo da evolução dos diversos movimentos ou correntes nacionais ou
geracionais.
No primeiro momento, através de uma abordagem mais formalista e teórica,
Kovács tenta desenvolver uma noção de cinema de arte que seja definida por um
conjunto de características estilísticas e estéticas próprias e com contextos históricos e
filosóficos precisos. Partindo da análise de três conceitos-chave – moderno, modernista
e vanguarda –, o autor pretende demonstrar que o cinema de arte foi um fenómeno
fortemente influenciado pelos contextos artísticos de vanguarda que surgiram nas
décadas de 1920 e 1960. O cinema de arte foi uma consequência directa da transposição
ao cinema das teorias e princípios desses movimentos artísticos vanguardistas que,
lentamente, se foi institucionalizando enquanto uma produção cinematográfica
autónoma que se pretendia diferenciar quer do cinema de entretenimento de massas
como do cinema experimental de vanguarda.
No segunda parte do livro, Kóvacs procura descrever as diversas variações
estilísticas do cinema moderno europeu das décadas de 60 e 70, nomeadamente através
da caracterização dos seus processos narrativos, estilos visuais, conceitos estéticos e
referências culturais e artísticas. Esta caracterização exaustiva envolve a análise de 241
filmes produzidos e estreados entre 1958 (Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais e Les
333
400 coups, de François Truffaut) e 1978 (Les rendez-vous d’Anna, de Chantal Akerman)
em 14 países europeus – França, Itália, Polónia, Suécia, Grã-Bretanha, União Soviética,
Checoslováquia, Hungria, Alemanha Ocidental, Espanha, Jugoslávia, Suíça, Grécia,
Bélgica – e no México (dois filmes do espanhol Luís Buñuel). A definição deste corpus
fílmico pretende ser uma súmula representativa de todo o cinema moderno europeu do
período em estudo. Salta à vista a ausência do cinema feito em Portugal nesse período.
O seu ponto de partida será demonstrar que o modernismo não constitui um estilo
cinematográfico por si só. O cinema é considerado moderno por reflectir nos seus
processos criativos um conjunto de características – nomeadamente narrativas e visuais
– de diversas correntes de arte vanguardistas. A principal tese que Kovács apresenta
nessa obra é a sua convicção de que o cinema moderno europeu, mais do que o conjunto
de movimentos nacionais de renovação cinematográfica, foi uma realidade bastante
heterogénea e de forte pendor transnacional com importantes referências a outras
formas de expressão artísticas ou culturais da Europa do pós-Segunda Guerra Mundial.
No fim da análise do corpus fílmico, Kovács propõe três características temáticas
que são recorrentes no cinema moderno e que podem identificar um filme como sendo
moderno:
a) distanciamento do ser individual do meio social circundante;
b)
redefinição conceptual, subjectiva e mitológica do conceito de realidade (reality); c)
reforço da ideia de vazio existencial (nothingness) por detrás da realidade visível
(surface reality).
Para além destas características temáticas, o cinema de arte moderno analisado
por Kovács também apresenta três termos muito recorrentes:
a) Abstracção, porque o filme moderno pretende abstrair-se da forma tradicional
de representação artística do natural ou o real, impondo novos modelos de
representação abstractos;
b) Subjectividade, porque o filme moderno revela sobretudo uma inédita visão
artística (a new artistic way), a visão do autor, sobre a realidade;
c) Reflexão, porque o filme moderno é construído precisamente para ser encarado
pelo espectador enquanto um exercício de reflexão sobre a realidade.
334
3.4.1. Manoel de Oliveira
Na década de 1960, a afirmação da nova geração de cinéfilos modernos
pressupunha uma ruptura radical com todo o passado cinematográfico português.
Pontualmente, algumas figuras do passado eram poupadas à mediocridade, mas apenas
um cineasta foi resgatado e reivindicado como património cinéfilo por essa geração dos
anos 60.
Progressivamente, algumas figuras do passado foram-se aproximando do cinema
moderno: Manuel Guimarães, um dos nomes mais interessantes da medíocre década de
1950, teve como produtor em O Crime de Aldeia Velha (1964) o jovem António da Cunha
Telles; Jorge Brum do Canto, um dos realizadores vanguardistas dos anos 30 que se
“auto-exilou“ depois de Chaimite (1953), tentou uma aproximação à geração de 60 no
contexto da elaboração e discussão da legislação cinematográfica de 1971; Artur
Semedo, o actor “neo-realista“ dos filmes de Manuel Guimarães e galã do cinema
português na década de 60, também tentou uma aproximação a várias figuras da nova
geração (Cinema Novo Português, 1985: 146).
Apesar das diversas aproximações, apenas Manoel de Oliveira foi reclamado como
referência “paternal“ de um cinema português que não envergonhava a nova geração.
No entanto, a relação directa de Oliveira com esta geração limitou-se, de facto, à
participação na “Semana do Novo Cinema Português“ de 1967 e ao início do processo de
produção de O Passado e o Presente. A nível pessoal, Oliveira sempre se mostrou muito
reservado em relação a um envolvimento directo ou a um comprometimento mais sério
com a nova geração cinéfila. Desde o início da sua carreira cinematográfica, Manoel de
Oliveira optou por uma atitude de autonomia, independência e certa marginalidade no
relacionamento com o meio cinéfilo envolvente. Até O Passado e o Presente (1971),
Oliveira foi o produtor de todos os seus filmes e fazia questão de gerir de forma
autoritária os seus projectos desde a concepção à conclusão.
Para os defensores incondicionais de um cinema de autor, o exemplo do singular
percurso cinematográfico de Manoel de Oliveira desde Douro, Faina Fluvial (1931)
assumia o carácter de mito. Apesar de algumas divergências específicas na apreciação da
obra de Oliveira, a generalidade dos jovens realizadores que reivindicavam uma
renovação total no cinema português revia no cineasta as referências estética e ética
necessárias à afirmação de uma ideia de cinema enquanto linguagem artística.
Esteticamente, e sobretudo a partir de O Pintor e a Cidade (1956), a obra de Oliveira
afastou-o irremediavelmente de todo o cinema português produzido no seu tempo, mas
335
aproximou-o, antes por cumplicidade do que por influência, de certos autores de
referência na cinematografia europeia tidos como modernos. Eticamente, o facto de o
cineasta ter percorrido um caminho marginal e independente do ponto de vista
produtivo e criativo contribuiu para que os cinéfilos imbuídos de desejo de mudança e
renovação o valorizassem enquanto um modelo de autor descomprometido,
intransigente e impermeável às dificuldades.
Na noite de 19 de Dezembro de 1954, a pretexto de uma retrospectiva do cinema
português, o Cineclube do Porto exibiu o filme Aniki-Bóbó e homenageou Manoel de
Oliveira. Nesse momento, para a generalidade da sociedade portuguesa, Oliveira era um
industrial com 46 anos, antigo praticante de automobilismo e de ginástica, que tinha
também desenvolvido, em tempos, uma carreira de realizador de cinema entre 1931 e
1942. Dessa passagem pelo cinema resultaram cinco curtas-metragens, uma longametragem e vários outros projectos que não foram realizados. Até 1942, Oliveira
concebeu oito esboços de filmes que nunca conseguiria concretizar: A Bruma (1931),
Ritos de Água (1931), Luz (1931), Desemprego (1934), Gigantes do Douro (1934), A
Mulher que Passa (1938), Prostituição (1938) e Gente Miúda (1941).
Apesar de alguns elogios de certos sectores da crítica e de alguns meios
intelectuais e artísticos a Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bóbó, as suas duas principais obras
de referências, Oliveira era uma figura manifestamente desconhecida do grande público
nacional. Ainda assim, na cidade do Porto, o realizador era uma figura cara ao meio
cultural e artístico local. A cidade tinha sido o berço do cinema português – foi aí que
nasceu Aurélio da Paz dos Reis e que foram rodados os primeiros filmes realizados por
portugueses, em 1896. Paralelamente, constituía um espaço de cinefilia, apoiado pelo
maior e mais importante cineclube português de então, o célebre Clube Português de
Cinematografia, fundado em 1945 e dirigido por Henrique Alves Costa. Apesar de todas
estas condições especiais, o Porto era insignificante no contexto da produção
cinematográfica portuguesa de então. Por tudo isto, insistir em prosseguir uma carreira
cinematográfica aí era, por si só, um acto de marginalidade e de isolamento.
Sobre a pouca visibilidade de Manoel de Oliveira na sociedade portuguesa da
altura, Paulo Rocha (apud Melo, 1996: 44) recorda que, em finais dos anos 50, quando o
conheceu pessoalmente, Oliveira era uma figura à margem do precário panorama
cinematográfico português:
“Quando o conheci era aluno no IDHEC [Paris]. Ele estava a fazer
ao mesmo tempo O Pão, A Caça e O Acto da Primavera. Eu ia ver o
material à mesa de montagem que ele tinha no Porto. Aquilo não era
336
nada industrial ou limpinho, via-se que tinha filmado quase sempre
sem luzes, com luz natural, as panorâmicas tremiam e, às vezes, a
montagem dava saltos. Era o contrário do que eu podia ver em Paris.
Sentia-se o olhar de um homem só, o Manoel não era nada o realizador
que é hoje, não era conhecido na Europa, em Portugal havia dez
pessoas que gostavam dele. Achava que não teria futuro nenhum, que
não voltaria a filmar.“
Sobre a homenagem do Cineclube do Porto, o crítico Manuel Pina não tinha
dúvidas ao afirmar, na revista Imagem (1955: 455), que “Manuel de Oliveira continua a
ser a única figura válida do nosso cinema“ e em sentenciar que “o cinema nacional
precisa do sangue jovem de homens como Manuel de Oliveira“. João Bénard da Costa
(Cinema Novo Português, 1985: 20) lembra que é precisamente a segunda série da revista
Imagem, publicada a partir de Janeiro de 1954, que promove “a primeira tentativa
unificada de recuperar como mestre Manoel de Oliveira, único cineasta português que
poderia servir de exemplo“, estratégia bem expressa na publicação de “argumentos
esquecidos de Oliveira“ como o projecto não-concretizado Bruma.
Nesse mesmo ano, os filmes Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bóbó integravam a
representação portuguesa ao I Festival Internacional de Cinema de São Paulo, no Brasil.
e ainda em 1954, dando crédito à sua crescente curiosidade pela recente evolução dos
novos processos cinematográficos, Oliveira ruma à Alemanha para fazer um estágio
intensivo nas oficinas da AGFA, em Leverkusen, com o objectivo de estudar a cor
aplicada ao cinema. No regresso, passa por Munique para adquirir uma máquina de
filmar com as novas evoluções tecnológicas.
Em 1956, após um interregno da actividade cinematográfica que se iniciara em
1942, o nome de Manoel de Oliveira regressa às telas em O Pintor e a Cidade, uma obra de
curta-metragem que mudou radicalmente as referências cinematográficas de Oliveira.
Abandonando as experiências de montagem iniciadas com Douro, o realizador afasta-se
também do universo narrativo de Aniki-Bóbó. O próprio Oliveira (apud Costa, 1991: 110)
viria a confessar posteriormente que O Pintor e a Cidade foi um momento determinante
“na mudança da minha reflexão sobre cinema“:
“Porque essa noção de plano longo, extremamente longo,
propositadamente longo, não a fui buscar a outros filmes que
conhecia. Não se faziam planos assim, em parte nenhuma do mundo,
em nenhuma cinematografia. Em 1956, não se faziam ou eu não os
conhecia.“
Junto da crítica nacional, o filme suscitou “viva polémica“: “Alguns dizem-no uma
reportagem rápida e superficial. Outros, afirmam-no profundo e cheio de significado.“
337
(Nuno Portas apud Diário de Lisboa, 27-XI-1956: 7). O entusiasmo dos mais optimistas
prenunciou o sucesso internacional do filme, que granjeou diversos elogios em Paris e
Veneza e veio a conquistar um importante prémio no festival irlandês de Cork. Em
Portugal, o documentário também recebeu o prémio de melhor fotografia do SNI, uma
decisão significativa que antevia uma alteração na relação daquela instituição com o
cineasta.
A presença deste filme no festival de Veneza de 1957 marcou definitivamente a
carreira internacional de Manoel de Oliveira. No prestigiado certame italiano, o filme foi
visto e elogiado pelo crítico francês André Bazin, um dos fundadores e “pai referencial“
dos Cahiers du Cinéma. Apresentados por intermédio de Joaquim Novais Teixeira,
jornalista português radicado em Paris e colaborador de diversos jornais brasileiros,
Oliveira e Bazin tornam-se grandes amigos. Sobre esta aproximação, Jacques Lemière
(2001: 120) lembra:
“É André Bazin ‘que acaba de ver um filme de um
desconhecido’, quando Oliveira, uma manhã de 1957, em Veneza, a
conselho de um amigo, lhe mostra ‘O Pintor e a Cidade’, que recebera
um acolhimento caloroso no festival de documentários realizado
paralelamente à Mostra. Bazin só depois descobre ‘Douro, Faina
Fluvial’, já no Porto, onde esteve a convite de Manoel de Oliveira; fica
surpreendido pelas diferenças na montagem dos dois filmes e
consagra-lhe um artigo em Outubro de 1957, nos Cahiers du Cinéma
(Positif, a revista rival, dedica um artigo geral à sua obra, em Outubro
de 1957, depois de uma primeira menção no seu número 4 de 1953).“
Em Agosto de 1957, Manoel de Oliveira recebeu André Bazin na sua residência no
Douro para uma curta estadia de férias passadas entre o Porto, o Douro e o Minho. Para
além das viagens pelo Norte de Portugal, Bazin pôde visionar toda a obra de Oliveira e
escrever sobre ela no regresso a França. Esta estada cimentou definitivamente o
reconhecimento internacional do cineasta português, sobretudo entre os leitores
cinéfilos da revista francesa.
Ainda nesse ano, o Cineclube de Estremoz publicou uma obra com textos de vários
autores, intitulada Manuel de Oliveira. A reacção do público cinéfilo, e do cineclubista
em particular, foi bastante positiva, ao mesmo tempo que a crítica começava a
questionar os critérios de atribuição de subsídios do SNI. Uma redefinição da estratégia
de apoio público ao cinema, seguramente influenciada pelas recentes homenagens e
pelo sucesso internacional de O Pintor e Cidade, levou o SNI a atribuir, em 1958, dois
subsídios a Oliveira para realizar os surpreendentes Acto da Primavera e A Caça.
338
João Bénard da Costa (1985: 22) afirma com segurança esta relação entre as
homenagens e a redefinição da política de apoio do SNI:
“Louvores gerais, neste sector da crítica que gerava o novo
cinema, só a O Pintor e a Cidade. E a aclamação unânime em torno de
Oliveira, deu finalmente, resultados: a Federação Nacional de Moagem
lhe encomendou O Pão (59) como o Fundo o contemplou pela primeira
vez (em 58) para os filmes que cinco anos depois seriam A Caça e Acto
da Primavera.“
Em 1959, portanto, sob encomenda da Federação Nacional de Industriais da
Moagem, e a pretexto de fazer um documentário técnico, Oliveira realiza O Pão (1959),
um filme que explora o ritual das implicações sociais, religiosas e místicas do cultivo do
trigo: “o trabalho para seu sustento engrandece o homem“ e “o pão, símbolo
divino/humano de partilha“; o motor do filme assenta na relação entre o homem e a
máquina, na velha dicotomia entre o espiritual e o material (Matos-Cruz, 1996: 76).
Mas a história do cinema português é pródiga em contradições e na mesma época
em que lhe foram atribuídos os subsídios públicos, Oliveira foi preso pela PIDE, num
processo ainda hoje pouco conhecido. Esta detenção, assim como a de outros cinéfilos –
José Fonseca e Costa, Vasco Granja, Henrique Espírito Santo e José Manuel Castello
Lopes – parecia justificar-se na época por um recrudescimento da vigilância da Censura
e da política política (PIDE) na ressaca do “terramoto Delgado“138 e outros
acontecimentos políticos (Pina, 1978: 44).
Segundo os arquivos da PIDE (Registo Geral de Presos, livro 133, registo 26500), o
“industrial“ Manoel de Oliveira foi “capturado em 5-12-63, pela delegação do Porto, por
actividades contra a segurança do Estado“, e foi “restituído à liberdade em 11-12-63“.
No processo n.º 524-CI(1) do arquivo da PIDE/DGS regista-se que Oliveira já estava
referenciado junto da polícia política do regime desde Maio desse ano. O processo
individual n.º 21484 dos arquivos da PIDE/DGS aponta razões políticas para a detenção
do cineasta, nomeadamente a ligação a organizações clandestinas de oposição ao
regime.
O incumprimento do contrato em relação a estes dois filmes levaria o SNI a voltar a
impor restrições ao realizador em dois projectos que não se concretizaram: Saudosa
138
Em 1957, Humberto Delgado (1906-1965) apresenta-se como candidato às eleições para a Presidência
da República contra o candidato do Regime e apoioado pela maioria da oposição. Durante a campanha
eleitoral, Delgado entrou em choque directo com Salazar – atitude que lhe valeu o cognome de “General
sem medo“ - e a sua ditadura e mobilizou de forma espontânea a generalidade da população portuguesa.
As eleições não foram livres e Humberto Delgado acabou derrotado. O futuro do “General sem medo“
passou pelo exílio no Brasil. Acabou assassinado pela polícia política de Salazar em Badajoz, Espanha.
339
Rosa, apresentado aos concursos de 1962 e 1963, e Velha Casa – Monstruosidades
Vulgares, apresentado aos concursos de 1963 e 1964 (cf. Cruchinho, 2001: 345). Neste
período, por motivos diversos, Oliveira também deixou por realizar os projectos Retratos
de um Povo, Bairro de Xangai, Vilarinho da Furna ou De dois mil não passarás.
Concretizado em 1962, Acto da Primavera era uma representação popular do Auto
da Paixão de Cristo (a partir do texto quinhentista de Francisco Vaz de Guimarães),
rodado in loco numa pequena comunidade transmontana. Insistindo num
documentarismo experimental, Oliveira inicia um estilo de cinema designado por
“cinema da palavra“, “um cinema em que a palavra (o teatro) se tornava no próprio
cerne da sua existência“ (Costa, 1991 122). Com notórias influências de Luís Buñuel, A
Caça (1964), por outro lado, é uma metáfora criativa da violência humana e da natureza.
A recepção crítica destas obras mereceu uma “homenagem nacional“ promovida
pela revista Plateia (Setembro), almoço de homenagem em Lisboa (28 de Setembro),
retrospectiva no Cineclube de Beja (30 de Setembro) e no Cineclube do Porto (13 de
Outubro), um número especial da revista Filme (Dezembro) e a conquista do Prémio da
Casa da Imprensa. A Cinemateca Nacional aderiu às diversas iniciativas, cedendo por
empréstimo as cópias dos filmes de Oliveira que integravam o seu espólio. Até a
televisão pública portuguesa homenageou Oliveira, emitindo o filme Aniki-Bóbó (24 de
Setembro) e um programa especial com entrevista ao cineasta (28 de Setembro).
Da nota de intenções e justificação da homenagem promovida pela Filme (XII1963: 1), constam as seguintes passagens:
“Nada mais justo, nada mais imperioso do que a homenagem
agora prestada a um homem que, há 34 anos, vem mostrando que o
cinema português existe. […] Se olharmos a história do cinema
português, vemos uma figura atravessá-la luminosamente sem um
momento de transigência, sem um segundo de mau gosto, sem um
instante de desvio, sempre no rumo da qualidade, da perfeição
artística e humana, procurando, experimentando, tentando sempre.
[…] Por tudo isso o cinema português, fora de fronteiras, é apenas
Manuel de Oliveira, por isso o seu nome figura em todas as histórias de
cinema, por isso críticos e ensaístas se dedicam à sua obra, por isso os
festivais querem mostrar fitas suas. Os prémios, as manifestações de
apreço e, a exibição comercial do Acto da Primavera em Paris, bem
revelam a estima que nos cinemas adultos desperta a sua obra.“
Na nota de intenções Baptista Rosa, director da revista Plateia (IX-1963: 1) fazia o
apelo:
“Ora o caso de Manuel de Oliveira, porque é exemplo ímpar no
Cinema Português, merece e devia ser realçado, sobretudo numa
altura em que se vislumbram novos horizontes e se acredita na
340
possibilidade do filme feito em Portugal por gente nova. A esses, aos
que têm sobre si concentradas a esperança e a atenção dos que crêem
na possibilidade de um filme português digno, a esses se aponta o caso
– que é um exemplo – do cineasta portuense. […] Uma homenagem a
Manuel de Oliveira! Que ela fique como testemunho de admiração à
sua valiosíssima obra e seja promessa de que os novos – os do novo
cinema português – vejam também na integridade, na intransigência,
no aprumo moral do seu autor um exemplo a seguir!“
Internacionalmente, o filme também recolheu vários elogios depois de ter
estreado comercialmente na sala Studio du Val de Grâce de Paris. Para além da Medalha
de Ouro do Festival de Siena em 1964, o cineasta seria ainda homenageado, conforme
Lemière (2001: 120), na Suíça e em França:
“Mais tarde, os jovens herdeiros de Bazin retomarão a relação
(interrompida, pela morte daquele), entre Bazin e Oliveira.
Progressivamente, à medida que os filmes do realizador vão sendo
exibidos em retrospectivas e em festivais, serão eles a criar a noção de
obra de Oliveira em artigos nos Cahiers du Cinéma: Festival de Locarno,
em 1964, Cinemateca Francesa, em 1965. (…) Jacques Bontemps, em
1964, presta homenagem ‘à excepção portuguesa’ que, com ‘A Caça’ e
com ‘Verdes Anos’ de Paulo Rocha, salva o Festival de Locarno ‘das más
intenções’ do resto da selecção. Depois surgem as rigorosas ‘Notas
sobre a obra de M. de Oliveira’, nos Cahiers de Fevereiro de 1966, sob a
pena de Jean-Claude Biette (para ‘A Caça’ e ‘Acto da Primavera’
exibidos na retrospectiva da Cinemateca Francesa).“
De facto, a figura e a obra de Manoel de Oliveira conquistavam, desde meados dos
anos 50, um significativo reconhecimento cinéfilo internacional. A juntar aos prémios e
menções elogiosas a O Pintor e a Cidade (em Cork, São Francisco e Barcelona), O Pão (em
Cork e Bilbau) e Acto da Primavera, Oliveira veria também reconhecido
internacionalmente, quase duas décadas depois, o seu primeiro filme de longametragem: em 1961, Aniki-Bóbó recebeu uma Menção Honrosa no Festival da Juventude
de Cannes. No ano seguinte, Oliveira integrou o júri internacional do III Rassegna del
Cinema Latino-Americano de Sestri-Levante, em Itália, que contou com outras figuras
notáveis como Edgar Morin (França), Gideon Bachman (EUA), Giulio Cesare Castello
(Itália), Kashito Kawakita (Japão), R. N. Saksena (Índia), Luís Berlanga (Espanha), Joris
Ivens (Holanda), Renato May (Itália), Louis Marcorelles (França), Tino Ranieri (Itália) e
Manuel Villegas López (Espanha). Em Dezembro de 1965 e em Fevereiro do ano
seguinte, a revista Cahiers du Cinéma publicou dois artigos sobre a obra de Oliveira.
Internamente, o realizador era cada vez mais uma referência para a jovem geração.
Sobre este crescente estatuto, António-Pedro Vasconcelos (Cinema Novo Português,
1985: 143) recorda:
341
[H]ouve uma ruptura total entre nós e a geração precedente. O
único cineasta que ‘salvávamos’ era o Manoel de Oliveira,
praticamente sem filmar, desde Aniki-Bóbó e que retomara a sua
actividade subitamente no final dos anos 50. […] A ruptura era com o
passado. A nossa visão do velho cinema seria talvez demasiado severa
e demasiado ingrata, mas na verdade não tínhamos referências no
passado, tirando o Oliveira.
Alberto Seixas Santos (Ibidem: 145) também lembra que “o Paulo Rocha tinha um
pai expresso que era o Oliveira“. Apesar desta afirmação ser extensível à quase
totalidade dos seus colegas de geração, o próprio Paulo Rocha (apud Melo, 1996: 55)
confessa que “gostaria de ser considerado como herdeiro de Manuel de Oliveira“, mas
afasta essa ideia porque não terá conhecido “suficientemente cedo a sua obra
completa.“
No entanto, desde que se conheceram pessoalmente, Oliveira e Rocha mantiveram
uma relação de amizade próxima. Ainda enquanto estudante em Paris, Paulo Rocha
colaborou de forma activa com Oliveira na conclusão de Acto da Primavera. As imagens
de filmes de actualidades que compõem a sequência final do filme foram seleccionadas
por Paulo Rocha, que a pedido expresso do próprio Oliveira as procurou em alguns
arquivos fílmicos parisienses.
Sensivelmente na mesma altura, no final de 1961, Manoel de Oliveira e Paulo
Rocha apresentaram ao SNI um pedido de subsídio à produção para um projecto comum.
O projecto de longa-metragem, intitulado Saudosa Rosa, “uma quase comédia musical“
de aspirações etnográficas, rodado exclusivamente em cenários naturais, juntava o
produtor Manoel de Oliveira – que assinaria também a direcção de fotografia – ao
estreante e desconhecido realizador Paulo Rocha. A participação financeira do SNI seria
negada ao projecto porque Manoel de Oliveira se encontrava alegadamente em situação
de incumprimento face aos contratos anteriores dos filmes A Caça e Representação
Popular do Auto da Paixão (título de rodagem de Acto da Primavera). O projecto Saudosa
Rosa acabaria por ser abandonado devido à falta de apoio financeira à produção por
parte do SNI e ao envolvimento de Paulo Rocha com o produtor António da Cunha Telles
(ANTT-IGAC-1inc, caixa 689, processo 9).
O projecto Rio do Ouro (1964) que, a ser concretizado, seria a segunda longametragem de Paulo Rocha, constituía, nas palavras do próprio, “uma homenagem aos
lugares de Manoel de Oliveira (o rio Douro – a amizade).“ Esta cumplicidade com Paulo
Rocha não fazem dele um herdeiro natural, mas acusam uma enorme cumplicidade
342
pessoal e artística entre os dois portuenses, que fomentou também a aproximação de
Oliveira a outros membros da nova geração.
Fernando Lopes (1985: 60) lembra alguns momentos dessa proximidade estética
inicial:
“Foi à sua custa que Manoel de Oliveira fez A Caça, um filme que
nos impressionou muito e que alguns de nós consideramos ser o
melhor filme que ele fez até hoje, e que poderia ter sido um vei
possível para o cinema português. Lembro-me bem de ter visto o filme
numa sessão privada com o Fonseca e Costa, o Cardoso Pires e o Cunha
Telles, que tinha muito viva a ideia de que era preciso apanhar o
Oliveira para o núcleo de 3 ou 4 cineastas que poderiam aparecer
internacionalmente como a imagem do cinema português…“
Sobre a relação de Fonseca e Costa com Oliveira, convém realçar que foi o jovem
cinéfilo e realizador, que entretanto estagiara em Itália com Michelangelo Antonioni,
quem realizou o trailer promocional de Acto da Primavera.
Em 1966, o jovem produtor António da Cunha Telles tentou produzir um filme com
realização de Manoel de Oliveira. Apresentado ao SNI em Janeiro de 1966 para pedido de
um subsídio à produção, o projecto A Faca e o Rio era bastante ambicioso e pretendia
contar com a participação de Anna Karina como protagonista (ANTT-IGAC-1inc, caixa
693, processo 4). A escolha de um dos ícones da nouvelle vague e musa de Jean-Luc
Godard (com um cachet que representava um terço do orçamento total) e a previsão de
rodagem parcial do
filme no Brasil demonstram um enorme desejo de
internacionalização do cinema português, neste projecto tentado pelos produtor e
realizador portugueses mais prestigiados fora de portas. O projecto acabaria por ver
rejeitado o pedido de subsídio e não avançou.
Em Setembro de 1964, num debate promovido pela revista O Tempo e o Modo
(1964: 134-135) em torno dos filmes Os Verdes Anos e Belarmino – “os primeiros filmes
que uma geração ousa reivindicar“ –, Alberto Seixas Santos (Cinema Novo Português,
1985: 27) apresentava as primeiras reservas públicas à influência de Oliveira sobre a
jovem geração:
“Em meio século de cinema português contam-se pelos dedos –
contam-se ainda – os homens e as obras dignas de estima. Quatro
nomes, Leitão de Barros, Brum do Canto, Cotinelli Telmo e Manuel de
Oliveira. Três filmes, Maria do Mar, A Canção da Terra e A Canção de
Lisboa, e uma obra, a única coerente de todo o nosso infeliz cinema,
cartada corajosamente jogada e perdida. Perdida pelos erros do
cineasta, perdida também pelas limitações do cinema que quis servir.
Manuel de Oliveira, mestre exemplar de moralidade não o é
obrigatoriamente de cinema. E esta afirmação é um aviso que é bom
343
seja feito hoje, quando o mestre do norte começa a tomar, nas bocas
mais jovens, as cores exaltantes do mito.“
Mas a aproximação de Manoel de Oliveira aos jovens cineastas do Novo Cinema era
cada vez mais evidente e inevitável. Ainda em Março desse ano, Pierre Kast assinava na
Cahiers du Cinéma (III-1964: 41-42) um texto intitulado Lettre de Lisbonne, em que
anunciava a “nouvelle vague portugaise“ promovida por cinco portugueses “unis comme
les doigts de la main“ (unidos como os dedos de uma mão) – Paulo Rocha, Fernando
Lopes, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães e António da Cunha Telles – que “aiment
un ainé, Manuel de Oliveira“ (amavam um ancião, Manoel de Oliveira). O “idoso“
adorado por estes jovens é apresentado por Pierre Kast como um “artisan type complet“
(arteão de mão cheia) que “fait tout chez lui, à Porto, tout seul“ (faz tudo em casa, no
Porto, sozinho).
Em Setembro seguinte, em artigo sob a forma de “dicionário da nova vaga
portuguesa“, a revista Celulóide (IX-1964: 9) inclui o nome de Manoel de Oliveira entre
os jovens da “nova vaga“:
“Apaixonado do cinema, cineasta talentoso, o caso de Manuel
de Oliveira é único na história do cinema português. Ele foi sempre um
exemplo, um autor vanguardista, distinto dos seus colegas em idade,
em espírito e em significado, foi o primeiro realizador da nova vaga
portuguesa.“
Nesse mesmo mês, a “homenagem nacional“ promovida pela revista Plateia tinha
contado com a participação de várias figuras do novo cinema, como Nuno Bragança,
António Reis, Paulo Rocha e José Fonseca e Costa, entre outros.
Em 1966, Oliveira participou numa entrevista a Paulo Rocha e Fernando Lopes,
conduzida por Gérard Castello Lopes e António-Pedro Vasconcelos e publicada na revista
O Tempo e o Modo (40, VII-1966: 715-739; 51, VIII-1966: 849-872). A certa altura dessa
entrevista – que foi, na verdade, mais uma mesa-redonda –, Fernando Lopes afirmou, a
respeito da história do cinema português, que houve um “salto“, do “ponto de vista
cultural“, entre A Canção de Lisboa e Os Verdes Anos: “passaram-se trinta anos mais ou
menos, e no meio disso só houve o caso de Manuel de Oliveira que isoladamente
continuou a fazer obras“.
Poucos meses depois, Paulo Rocha voltaria a elogiar a singularidade de Manoel de
Oliveira numa entrevista dada à Cahiers du Cinéma (X-1966: 22) a propósito do seu filme
Mudar de Vida:
344
“Temos o caso de Manuel de Oliveira, que é um bom exemplo,
para tudo o resto. Tem presentemente cinquenta e seis anos, fez duas
longas-metragens. Começou a vida profissional aos dezanove anos,
comprando uma máquina e realizando Douro, Faina Fluvial, que
representa um dos mais belos inícios da história do cinema: fazer
aquilo há vinte anos, é Orson Welles sem a América. […] Se no
passado, a indústria e os responsáveis não admitiram que, para o
progresso do nosso cinema, Oliveira deveria ter dirigido um filme
todos os anos, não se vê porque irão agora mudar de atitude. Ele
poderia ter feito uma grande obra. Em lugar disso, nada mais temos do
que fragmentos e quase todos desconhecidos do público português.
Agora Oliveira começa a ser conhecido dos críticos europeus. Nada
impede, contudo, que novamente todos os anos lhe recusem subsídios
ou apoios, oficiais ou particulares. Mesmo a Fundação Gulbenkian. As
pessoas que assim agem tomam grandes responsabilidades: trata-se de
um crime contra a cultura.“
Em Dezembro de 1967, o Cineclube do Porto organizou uma semana de exibição e
debate designada “Semana do Novo Cinema Português“. Para estimular os trabalhos, a
direcção do Cineclube do Porto decidiu convidar um leque variado de personalidades
que consideraram ter, directa ou indirectamente, uma intervenção positiva na discussão
do “estado cinéfilo da nação“. Demonstrando que este encontro não se destinava apenas
a figuras cronologicamente mais novas, foram convidados vários elementos de gerações
mais velhas que, de certa forma, sempre preconizaram uma renovação e se
apresentavam como contributos válidos, como os cineastas Manoel de Oliveira e Manuel
Guimarães, ou os críticos Roberto Nobre e Manuel de Azevedo.
Os convites selectivos endereçados excepcionalmente a algumas figuras de outras
gerações, da crítica à realização, deixam supor que a geração do Novo Cinema Português
valorizava não só o passado destas figuras mas também os hipotéticos contributos que
pudessem dar no presente e no futuro para a afirmação e reconhecimento do esforço de
renovação estética que pretendiam. A presença de Oliveira entre os convidados
“seniores“ parece ser bastante representativa da sua importância junto da nova geração
de cineastas.
E Oliveira correspondeu às expectativas da organização. Não só compareceu como
foi parte activa no debate mais importante da iniciativa. O ponto alto do encontro estava
reservado para o penúltimo dia, quando se realizou uma mesa-redonda subordinada à
hipótese de uma provável intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian junto da nova
geração. A sessão foi a mais concorrida e contou com a presença de todas as figuras
fundamentais do então Novo Cinema. Desta agitada mesa-redonda haveria de resultar
um breve relatório assinado por vários dos realizadores presentes – incluindo Manoel de
345
Oliveira – dirigido à Gulbenkian, numa primeira versão do célebre Ofício do Cinema em
Portugal.
Apresentadas as duas principais propostas em debate, venceu a designada
“solução total“ defendida sobretudo por José Fonseca e Costa, António de Macedo e
Fernando Lopes, segundo a qual se preconizava “a ideia de um bloco de cineastas que
estabeleceriam entre si certas regras para dividir o dinheiro“ (Cinema Novo Português,
1985: 64). A proposta vencida, defendida por figuras como Manoel de Oliveira e Paulo
Rocha, designada por “ideia dos subsídios de qualidade“, previa a preservação de “uma
diáfana qualidade de artistas que pairam acima dos dinheiros e das discussões para os
arranjarem“ (ibid.:).
Uma das decisões mais significativas dessa mesa-redonda foi o compromisso
assumido entre todos, antes mesmo de se conhecer a viabilidade do apoio financeiro da
Fundação Calouste Gulbenkian, de “fazer regressar o Manoel de Oliveira ao cinema de
ficção“ (ibid.). No entanto, e contrariando esta versão dos acontecimentos, Paulo Rocha
(apud Ibidem: 76) afirmou que o “cinema novo decidiu apoiar o Manoel“ num “célebre
almoço na Casa do Alentejo [em Lisboa]“. Esta afirmação de Rocha supõe que o
compromisso de Manoel de Oliveira com os jovens do Novo Cinema foi tomado antes da
reunião que teve lugar no Porto. Aceitando esta versão adiantada por Paulo Rocha, a
defesa do regresso de Oliveira como “bandeira“ da nova geração reveste-se ainda de
maior relevância. O prestígio de Manoel de Oliveira e a sua importância na legitimação
da nova geração de realizadores são ainda mais reforçados.
Em finais de 1967, Oliveira acabava de fazer 59 anos e encontrava-se sem filmar
uma longa-metragem desde Acto da Primavera (1962). Depois de vários interregnos, o
cineasta fazia uma nova “travessia do deserto“ mas, desta vez, denotava já sinais
privados de desencorajamento e de desespero face à situação. Sobre esta desilusão de
Oliveira com o cinema português, Paulo Rocha (apud Queiroga, 1998) recorda:
“Eu ainda tenho uma carta, quando estou a acabar o Mudar de
Vida, do Manuel de Oliveira, em que ele me diz: ‘Dou-lhe os parabéns,
você ainda consegue filmar. Pois olhe, eu já acabei a minha obra, a
minha carreira. Nunca mais conseguirei filmar. Estou para aqui no
Porto e não se consegue fazer nada.’ É uma carta extremamente
pessimista, de 1966 ou 1967, em que ele, não sei, deveria ter 50 e tal
anos e achava que a carreira dele tinha acabado.“
Ainda a este propósito, António-Pedro Vasconcelos também sublinha o mesmo
sentimento (Ibidem):
346
“E nós dizíamos todos – o Manoel de Oliveira tinha 60 anos na
altura: ‘É preciso dar uma chance ao Oliveira’. Lembro-me que ele teve
o orçamento mais caro de todos, toda a gente contribuiu, toda a gente
estava disposta a sacrificar-se para que ele fosse um dos primeiros a
filmar a cores – poucos de nós filmamos a cores – e todos nós no
íntimo dizíamos: ‘Provavelmente é o último filme que o Manoel de
Oliveira vai fazer’.“
Para a generalidade dos elementos que assinaram o Ofício do Cinema em Portugal,
era fundamental reforçar o papel “aglutinador“ da figura de Manoel de Oliveira em
relação às heterogeneidades do Novo Cinema e permitir que este filmasse a sua “última“
obra. Esta possibilidade seria a moeda de troca para convencer Oliveira a “apadrinhar“ o
grupo na missiva junto da Gulbenkian. Segundo Fernando Lopes (Cinema Novo
Português, 1985: 64), o cineasta parece ter cumprido a sua parte do acordo:
“Julgo que ele [Azeredo Perdigão] se chegou a entusiasmar
tanto com o Centro […] porque no Centro estava o Manoel de Oliveira e
porque o Manoel lhe disse que, não sendo embora aquela a fórmula por
si pretendida, o que nós fizéssemos ele fazia connosco.“
Para António de Macedo (apud Cunha, 2005: 64-65), a Gulbenkian sempre rejeitou
ajudar financeiramente o Novo Cinema com os pretextos de os estatutos da instituição
só permitirem a intervenção com fins caritativos e artísticos, e de o cinema não ser visto
como objecto de expressão cultural ou artística, mas exclusivamente como indústria. De
acordo com o cineasta, com o tempo, vários factores permitiram alterar esta conjectura:
o arrojo estético das propostas das Produções Cunha Telles; a evolução da obra de
Manoel de Oliveira, sobretudo com Acto da Primavera e A Caça, e a sua “colagem“ à nova
geração; e a formação cultural de jovens realizadores no estrangeiro.
Fernando Lopes não se cansa de insistir que a “batalha“ pelo reconhecimento
institucional do Centro Português de Cinema (CPC) só foi possível devido ao empenho
pessoal do presidente da Gulbenkian. Por mais que uma vez, Lopes (1985: 63-64)
sustenta a tese de que Azeredo Perdigão “deve ter ido às mais altas instâncias“ e deve
ter apostado “o seu prestígio de jurista e o peso da Fundação Gulbenkian“ para ver
aprovados os estatutos pelo Ministério do Interior. A justificação deste interesse
reparte-se, ainda segundo Fernando Lopes (Ibidem), por três argumentos: “o Centro
reunia todos os cineastas e técnicos que podiam dar alguma coisa ao cinema
português“; “o João Bénard da Costa foi junto do Dr. Azeredo Perdigão apóstolo do
Centro“; e “no Centro estava Manoel de Oliveira“.
347
Em Setembro de 1970, depois de algumas negociações e ultrapassados obstáculos
burocráticos, a Fundação Calouste Gulbenkian desbloqueou finalmente o dinheiro
prometido, o que permitiu o arranque das primeiras produções do CPC e a assinatura dos
primeiros quatro contratos, com Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, Alfredo Tropa
e António-Pedro Vasconcelos (Cinema Novo Português, 1985: 35-38). A escolha destes
quatro projectos do primeiro plano de produção resultou do seio da própria cooperativa.
No caso de Oliveira, a decisão tinha sido tomada já no Porto, em Dezembro de 1967, ou
mesmo antes, como afirma Paulo Rocha. De qualquer forma, a decisão foi aprovada
publicamente pelos participantes na mesa-redonda, ao assumir o compromisso de fazer
regressar o veterano realizador ao cinema de ficção. Sobre esta decisão, Lopes (1985:
64) lembra que “não houve qualquer discussão“ e justifica a decisão de então:
O ponto comum [dos jovens cinéfilos] era, de facto, a defesa de
um cinema português com existência estética e social. Ao que se
juntava a questão da defesa táctica de Manoel de Oliveira. Esclareço
que, desde sempre o Oliveira provocou paixões e posições divididas.
Para o António-Pedro [Vasconcelos] as dúvidas eram muitas, mesmo
se mais tarde veio a ser capital na ajuda que prestou na produção do
Amor de Perdição e do Francisca, embora oportunisticamente fosse o
Paulo Branco a recolher os louros, o que muito me irrita. Também para
o Seixas Santos, obviamente, o Manoel de Oliveira estava longe de ser
o cineasta dos seus amores. O João César Monteiro, esse sim, é o
primeiro dos cineastas novos a defender o Manoel de Oliveira, talvez
por espírito de contradição… Havia, claro, o Paulo Rocha que se
queria um discípulo, mesmo um herdeiro… […] O Fonseca e Costa foi
não só um defensor, como teve uma ligação particular ao Oliveira. […]
Creio que o Fonseca gostava sinceramente do Oliveira e entendia que
um filme como A Caça podia ter sido todo um programa do cinema
português.
A rodagem de O Passado e o Presente teve um custo final de cerca de três mil
contos, uma produção significativa para a época, sobretudo por ter sido rodado em
película a cores. Apesar de representar uma percentagem gigantesca no orçamento total
do CPC, os membros da cooperativa não manifestaram – pelo menos publicamente –
qualquer tipo de discordância quanto à concretização do projecto. Em contrapartida, os
outros três projectos do primeiro plano de produção saíram “prejudicados“, por terem
tido de dividir entre si cerca de mil e quinhentos contos (sensibilizada pelas
dificuldades, a Gulbenkian havia actualizado o subsídio inicial de três mil e duzentos
para quatro mil e quinhentos contos). Para além de um custo substancialmente mais
barato – Perdido por cem… e Pedro Só custaram apenas cerca de novecentos contos cada
348
e foram filmados em película a preto-e-branco –, os restantes filmes registaram enormes
atrasos e diversas dificuldades de produção (Ibidem: 40).
A escolha do “último“ filme de Oliveira para a apresentação pública do projecto
CPC foi também bastante significativa. A sessão de gala no Auditório da Gulbenkian, a
25 de Fevereiro de 1972, à qual assistiria o próprio Presidente da República, permitiu,
através de uma manifestação pública, consagrar este projecto como o momento de
afirmação definitivo do Novo Cinema. No discurso de apresentação da sessão, da
responsabilidade do presidente da direcção do CPC, Fernando Lopes (Ibidem: 104)
começa por se referir a Oliveira como um cineasta “cuja obra tem merecido, a vários
títulos, a reflexão atenta e inquieta dos novos cineastas portugueses“ e comenta o
percurso da sua obra:
“Data de 1929, já lá vão 43 anos, o início das filmagens de
Douro, Faina Fluvial, acontecimento importante na cultura portuguesa
e, porque não dizê-lo, na história do cinema mundial. Entre esta obraprima e o filme que hoje vamos ver, a carreira de Manoel de Oliveira
retrata dramática mas exemplarmente, através dos seus longos e
frustrantes silêncios a que se viu constrangida, o que tem sido o ofício
do cinema em Portugal.“
Para terminar o seu discurso, Lopes reafirmava publicamente, sem deixar margens
para dúvidas, que o filme de Oliveira que o CPC produziu era a prova inequívoca que a
nova geração se orgulhava “de o ter na sua família“ (Ibidem).
Esta iniciativa permitiu que a Gulbenkian e o CPC exigissem ao regime o
reconhecimento expresso da “falência estatal da produção cinematográfica por
intermédio do Fundo do Cinema Nacional“, bem como a perda da “tutela da produção“,
através da imposição de um “modelo de produção liberto de todos os condicionalismos“.
Por outro lado, o CPC impunha uma nova ideia de cinema – “visão do cinema como facto
cultural“ – e afirmava-se como “o único agente efectivo da produção cinematográfica em
Portugal“ (Ibidem: 102).
Com O Passado e o Presente, mais uma vez, o cinema de Oliveira “deu azo a grande
expectativa, e maior polémica.“ Não ficando indiferente, Oliveira continuava a dividir
opiniões: “A crítica mais tradicional ficou perplexa ou condenou em bloco. Mas a nova
crítica cerrou fileiras“ (Monteiro, 1995: 677-678). João Bénard da Costa (1985: 39)
resume da seguinte forma a recepção do filme:
“Inclassificável continuava Oliveira com a obra que, de novo, o
tornava no mais polémico cineasta português. O Passado e o Presente
foi, de todos os filmes desse ‘lote’ [primeiro plano de produções do
349
CPC], o mais apaixonadamente defendido e o mais apaixonadamente
atacado.“
Mais recentemente, o mesmo Bénard da Costa (2001: 10) resumiu a recepção ao
filme em duas posições completamente antagónicas:
“Para os detractores – e muitas figuras conhecidas da cultura
portuguesa o foram – o sóbrio Oliveira dos filmes precedentes, que
soubera documentar tão bem o Porto ribeirinho ou representações
ancestrais transmontanas, perdia-se numa ficção pretensiosa que de
mau teatro passara a péssimo cinema. Para os defensores – que até aí
tinham visto em Oliveira mais um exemplo moral do que um expoente
da modernidade – ‘O Passado e o Presente’, subvertendo os códigos da
representação, assumindo a teatralidade como matéria especular e
virando as costas quer ao naturalismo quer ao realismo, era uma
proposta original na querela iconográfica do tempo, e o primeiro filme
moderno do seu autor.“
Sobre este aspecto, Fernando Lopes (1985: 65) confessa que a recepção crítica do
filme foi também influenciada pela defesa dos interesses subterrâneos da cooperativa e
de toda a família do Novo Cinema:
“Tanto que, depois da estreia na Gulbenkian, quando a fita
começa a receber maus tratos, nós saltámos todos em defesa do
Manoel e do Passado e o Presente. Porque em revistas como a ‘Seara
Nova’ e a ‘Vértice’, ou nos meios intelectuais, pessoas como o José
Gomes Ferreira e o Carlos de Oliveira levantaram sérias reservas… […]
Só que nós respeitávamos muito pessoas como o Carlos de Oliveira e o
José Gomes Ferreira. Ainda se fossem outros… o próprio Abelaira, já
mais próximo de nós, punha as maiores dúvidas. De maneira que nós
entrámos no chamado terrorismo… […] Por exemplo, o César
[Monteiro] escreveu provavelmente o melhor texto da sua vida. É a
famosa teoria de que o cineasta é grande demais para o país, donde a
necessidade de o cortar aos bocados… Talvez, no CPC, alguns colegas
meus não gostassem do filme, particularmente o Macedo que, diga-se,
nunca terá gostado muito do Oliveira. No que era coerente. Como o
filme desempenhava um papel importante no lançamento do Centro, o
António de Macedo foi impecável, nunca se pronunciando
publicamente contra o filme. A mesma coisa se passou com o Artur
Ramos. Nisso houve unidade, pelo menos durante o primeiro ano de
funcionamento.“
Pela condição de ser a primeira obra da cooperativa e de ser assinada por Manoel
de Oliveira, a defesa estratégica desta obra representava provavelmente a afirmação
estética do programa de intervenção do CPC e a sobrevivência do próprio Novo Cinema.
No que diz respeito ao relacionamento dos jovens cinéfilos da sua geração com
Oliveira, o sempre polémico João César Monteiro (Diário de Lisboa, 10-III-1972: 1)
chega à seguinte síntese:
350
“(...) sempre me quis parecer que as afinidades reivindicadas
por alguns novos cineastas eram, consciente ou inconscientemente,
uma forma de atenuar sobretudo a sua profunda solidão cultural,
inventando a obra de um antepassado ilustre, ainda que
exemplarmente frustrado por carências disto ou daquilo. E já que
andamos nesta vida só para arranjar sarilhos, também me parece que,
não raras vezes, se serviram do nome e do prestígio de Manoel de
Oliveira para fins pouco louváveis (...).“
Fernando Lopes, por sua vez, contrapõe, afirmando que também “o Oliveira se
aproveitou bem de todos nós, e ainda bem, porque isso lhe permitiu fazer algumas boas
fitas“.
Paulo Rocha (apud Queiroga, 1998) é mais contundente ao afirmar
peremptoriamente: “Somos nós quem impõe a marca ‘Manoel de Oliveira’.“ Seja como
for, efetivamente a geração de 1960 certamente reabilitou a carreira cinematográfica de
Oliveira. A defesa e reivindicação de Manoel de Oliveira e da sua obra parece ter
obedecido a uma estratégica táctica com o objectivo de atacar o velho cinema e de atrair
o financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian; não se pode, contudo, ignorar
alguns factos já relatados que ligam esteticamente alguns elementos do Novo Cinema a
Oliveira. No fundo, mais do que uma influência estética, o cinema de Oliveira serviu
sobretudo de referência ética aos jovens cinéfilos pelo seu singular e marginal percurso
cinematográfica no panorama nacional.
A recepção de O Passado e o Presente pela crítica reflecte, de forma evidente, uma
preocupação com o projecto estético do seu realizador no contexto do projeto de um
cinema novo português. O filme foi produzido na situação muito particular da afirmação
e do reconhecimento do Novo Cinema Português, de rejeição das convenções
cinematográficas tradicionais e de apologia de novas formas de pensar e de fazer cinema
– um cinema moderno e artístico sem quaisquer concessões. Trata-se de uma proposta
fílmica que se pretendia fracturante e de ruptura com fórmulas cinematográficas
situadas fora de um imaginário cinéfilo que se vinha afirmando em certos circuitos
cinematográficos internacionais e que tentava impor-se em Portugal. Entre defensores e
detractores, poucos terão ficado indiferentes a esta obra. João César Monteiro (Diário de
Lisboa, 10-III-1972: 2) denunciou essas reacções de forma tão irónica como
esclarecedora, no que constitui uma das suas mais famosas afirmações sobre o
realizador:
“O problema, de resto, é só este: o país tem (inexplicavelmente)
um cineasta demasiado grande para o tamanho que tem. Portanto, das
duas uma: ou alargam o território ou encurtam o cineasta. Como nos
tempos que correm é difícil alargar um território sugiro que se
apequene o cineasta cortando-o às fatias e servindo-o frio ao público
351
do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. Resta dizer que, como
todos os grandes e revolucionários filmes, também este tem o condão
de desmascarar os imbecis e de propor uma lição de modernidade
cinematográfica para quem a quiser e puder entender.“
O Passado e o Presente não foi na sua época uma obra unânime nem é actualmente
uma das suas obras mais reconhecidas, mas é seguramente uma obra fundamental na
construção do singular universo criativo e artístico de Manoel de Oliveira em forte
diálogo com as propostas do Novo Cinema Português. Nesta obra, feita em completa
liberdade criativa e produtiva, Oliveira deu continuidade ao caminho “moderno“
revelado com O Acto da Primavera e que tantos elogios e admirações provocou no seio da
nova geração de cinéfilos que reclamavam uma renovação estética e ética do cinema
português.
Durante a produção, O Passado e o Presente foi visto, por muitos, como o último
filme de Manoel de Oliveira, a derradeira oportunidade que um cineasta com 72 anos de
idade teria para rodar uma última obra numa cinematografia débil e precária, do ponto
de vista da produção, como a portuguesa. Ironicamente, o filme relançaria a carreira
cinematográfica de Manoel de Oliveira de tal forma que foi o primeiro de uma rotina
contínua de produção que perdura até à actualidade. Este filme cujo título parece
esquecer “o futuro“, acabou por ser determinante na afirmação internacional do cinema
português, muito por culpa dos jovens cinéfilos que o promoveram dentro e fora de
portas, fazendo dele uma espécie de “porta-bandeira“ da causa da geração do cinema
moderno em diversas mostras e festivais internacionais.
3.4.2. Curtas-metragens
Durante os anos 40 e 50, muita da produção cinematográfica de curta-metragem
não tinha como objectivo a distribuição nos circuitos comerciais, e como tal, não
chegava à maioria do público, destinando-se a nichos – formação tecnológica,
prevenção, investigação científica, entre outros – ou para a exibição televisiva. No final
da década de 50, a criação da televisão pública passou a ter uma intervenção
significativa no processo de produção e divulgação do panorama audiovisual português.
No decorrer dos anos 60, o projecto Televisão Educativa (mais conhecido como
“Telescola“), criado no âmbito dos trabalhos do Instituto dos Meios Audio-Visuais de
352
Ensino, foi uma importante experiência de sensibilização que contou com a colaboração
de diversos cineastas do Novo Cinema, como Manuel Costa e Silva, Luís de Pina, Faria de
Almeida, António-Pedro Vasconcelos e Abel Escoto. Ainda que as actividades deste
instituto se centrassem essencialmente na produção e divulgação de filmes técnicos,
particularmente agrícolas e industriais, foi uma experiência marcante para os
realizadores que nele colaboraram.
Na década de 60, o despontar de uma nova geração cinéfila trouxe consigo uma
evidente renovação do panorama cinematográfico nacional. As novas concepções
estéticas e políticas, aliadas à dificuldade crescente em realizar longas-metragens,
levam muitos jovens realizadores a apostar no cinema alternativo, geralmente de
carácter pedagógico ou cultural. Vários nomes da nova geração do cinema português –
formados no estrangeiro com bolsas de estudo do Fundo do Cinema Nacional –
encontravam no curta-metragem o único meio para exercitar e tentar ascender ao
cinema de fundo, revitalizando e dinamizando esse género. A par destas iniciativas de
instituições oficiais, identificam-se importantes acções de mecenato na produção de
filmes de iniciativa privada, relacionado com o desenvolvimento da publicidade,
permitia prestigiar as instituições promotoras.
Ao longo da década de 60 estrear-se-iam na realização de longas-metragens
diversos jovens cineastas desse núcleo fundador do cinema moderno. Desta nova
geração, exceptuando Paulo Rocha, todos iniciaram a sua actividade profissional pelas
curtas: Alfredo Tropa em Inundações, 1960; Fernando Lopes em As Pedras e o Tempo,
1961; António de Macedo em Verão coincidente, 1962; António da Cunha Telles em Os
Transportes, 1962; Manuel Faria de Almeida em Faça segundo a arte, 1965; José Fonseca
e Costa em Era o vento... e o mar – Sesimbra, 1966; António-Pedro Vasconcelos em
Tapeçaria, uma tradição que revive, 1967; Fernando Matos Silva em Por um fio, 1968;
João César Monteiro em Sophia de Mello Breyner Andresen, 1969; e Alberto Seixas Santos
em A arte e o ofício do ourives, 1968.
Destes autores que se destacariam nos filmes documentais sobressaem três,
atribuindo uma maior visibilidade ao género: Fernando Lopes, António de Macedo e
Manuel Faria de Almeida.
As pedras e o tempo (1961) e As palavras e os fios (1962) são as primeiras obras de
Fernando Lopes. De uma forma natural e reconhecida pelo próprio, são evidentes as
influências éticas, estéticas e técnicas da escola documental inglesa e do recente
movimento geracional do free cinema liderados por Tony Richardson, Karel Reisz e
353
Lindsay Anderson. A atenção às realidades sócio-culturais dos mais desfavorecidas e
desprotegidos e às actividades laborais mais humildes e duras eram características
muito marcantes do free cinema inglês, seguindo uma tradição inglesa de dar
visibilidade a um cinema social-realista que pode ser filiado na escola documental e nas
unidades de produção de John Grierson. No entanto, os jovens promotores e
divulgadores do free cinema apostaram também no reforço do carácter individual das
suas propostas, assumindo a subjectividade e abstracção do realizador como uma
importante marca autoral.
Financiado pelo SNI – Secretariado Nacional de Informação, As pedras e o tempo é
um documentário sobre a cidade de Évora de então, embora apresente uma abordagem
bastante singular ao tema. A nível da técnica cinematográfica, o filme distancia-se
igualmente do modelo da época para este género de obras: uso de planos picados e
contra-picados, uso de travellings, novo enquadramento e a montagem paralela. Este
filme prenuncia claramente uma mudança em relação ao filme documental-turístico
típico produzido por esses anos, como por exemplo uma banda sonora pouco
convencional baseada em ruídos (“Por outro lado, a música do Filipe Sousa e a
sonoplastia de Alexandre Gonçalves foram de tal modo novas que o misturador da Tóbis
disse que aquilo não era com“, Fernando Lopes apud Andrade, 1996: 70).
As palavras e os fios é um exemplar do que então se classificava como filme
industrial – um género fílmico que elegia como tema a divulgação ao grande público do
desenvolvimento industrial do país. Financiado por uma empresa privada, e por isso
rodado nas instalações da Fábrica Nacional de Condutores Eléctricos e dos Cabos
Armados e Telefónicos, As palavras e os fios apresenta importantes e interessantes
inovações e experimentações ao nível da banda sonora. A banda sonora deste segundo
filme é bem mais expressiva do que a apresentada no primeiro, como é amplamente
demonstrado logo no genérico de abertura. O filme inclui seis sequências com banda
musical jazzística, concebida por Manuel Jorge Veloso e interpretada pelo Quarteto do
Hot Club Português. De um total de 11m57’’ de filme, as sequências musicadas a jazz
preenchem 7m14’’, ou seja, mais de 60 por cento do tempo total. Para além de ser o
primeiro filme português a incluir música jazz na sua banda sonora, o filme tem ainda
mais duas sequências onde o som desempenha uma função narrativa importante: são
duas sequências conduzidas pelos sons industriais ou tecnológicos dos processos de
transformação na fábrica. Neste aspecto, o aproveitamento bruto e musical destes sons
354
industriais ou tecnológicos, também já tentado no filme anterior, tem alguma
importância estética pela transformação artística operada dos sons do quotidiano.
Depois da formação em Londres, Faria de Almeida regressa a Portugal e começa a
trabalhar na sua primeira obra de grande fôlego: Catembe, um híbrido
documental/ficcional sobre um bairro popular na outra margem da então Lourenço
Marques. Depois da traumática mutilação por parte da Censura ao filme, Faria de
Almeida dedica-se à produção de curtas-metragens documentais onde conquista
notoriedade. A embalagem de vidro (1966), Para um álbum de Lisboa (1966) e A feira
(1970) são apenas três das curtas documentais do realizador moçambicano que muito
contribuíram para a renovação estética e técnica do cinema português.
Em A feira, filme sem a tradicional narração verbal, que recorre antes ao uso
criativo do som ambiente e de um ritmo invulgar neste género de filmes (fox-trot), Faria
de Almeida constrói uma curta cheia de referências e citações cinéfilas aos tempos do
cinema mudo. Em A embalagem de vidro, o realizador volta a abdicar da habitual locução
narrativa monocórdica e imprime um ritmo visual e musical ao filme, fundindo o som de
jazz improvisado de Manuel Jorge Veloso com os sons industriais da fábrica de vidro
onde se ambienta parcialmente o filme. Reconhecemos aqui uma estética influenciada
pelo cinema de animação clássico, nomeadamente ao nível do trabalho com os efeitos de
cor. Em Para um álbum de Lisboa Almeida volta a recorrer aos aspectos visuais e
musicais, construindo uma narrativa dinâmica e criativa sobre a cidade de Lisboa em
primeiro plano e, tecendo algumas considerações sobre o passado e o presente do
cinema português, numa espécie de subtexto com referências cinéfilas do mudo em tom
bastante irónico e sarcástico.
Ao longo da década de 60, intercalando com a produção de longas-metragens,
António de Macedo foi investindo tempo em diversas curtas-metragens documentais,
das quais aqui destacarei três: Verão coincidente (1963), Crónica do esforço perdido
(1967) e Almada Negreiros Vivo Hoje (1969).
Encomenda da Sociedade Central de Cervejas, Verão coincidente está longe de ser
um convencional filme industrial - tão em voga na época. Adaptando um poema de
Maria Teresa Horta, Macedo constrói um filme poético com uma linguagem visual muito
marcada que alguns reconheceram logo na estreia: “é um filme de feição modernizante,
de montagem abrupta, gritante, de imagens insólitas que tocam a nossa sensibilidade
como os versos de um poema“ (Luís de Pina apud Cinema Novo Português, 1985: 122).
355
Patrocinado pela FNAT – Federação Nacional para Alegria no Trabalho, Crónica do
esforço perdido é um documentário de prevenção que faz a apologia da ginástica de
pausa como terapia ao stress laboral quotidiano. Mais uma vez, o filme foge ao
documentário convencional: “a utilização do desenho animado para explicar as
agressões físicas de um quotidiano violento; as viragens de cor, os paralíticos, as
interrupções em negro como forma de materializar essa violência; os exercícios de
ginástica de pausa filmados como quase ballet, com uma montagem curiosa e sobre
música de Carlos Paredes…“ (Ramos, 1989: 112).
Finalmente, Almada Negreiros Vivo Hoje é um documentário sobre José de Almada
Negreiros que combina uma entrevista ao artista conduzida por António Macedo, Natália
Correia e David Mourão-Ferreira, um inquérito de rua a estudantes e transeuntes
lisboetas, imagens de obras emblemáticas do artista modernista e uma preparação de
uma adaptação de um texto de Almada Negreiros (Deseja-Se Mulher) pelo próprio
realizador. Também se trata de um documentário pouco convencional, que recorre a
diversos métodos e referências cinéfilas, nomeadamente ao cinema-verdade de Jean
Rouch: o filme de Macedo pretende provocar reacções à obra e à personalidade de
Almada Negreiros. A postura do artista abordado (que se situa propositadamente entre o
estatuto do homem e da personalidade) e a exposição física do próprio Macedo são
características que acentuam o olhar subjectivo do realizador sobre o artista e a sua obra
(particularmente na adaptação do texto Deseja-Se Mulher).
Em suma, nestes três realizadores aqui destacados, mas também na generalidade
dos realizadores da nova geração, ressaltam algumas características comuns que
contribuíram decisivamente para a renovação do cinema português em geral e do
cinema documental em particular: afirmação de uma visão subjectiva e autoral sobre a
realidade; conjugação de referências cinéfilas clássicas com uma vontade de inovação
técnica e vanguarda estética; e valorização do factor humano como elemento central do
processo criativo.
Em 1977, Luís de Pina já havia sublinhado as grandes características da produção
desse período:
“Alguns dos documentaristas da última década [60] acusam
esse tom desenvolto, esse brilho formal do enquadramento e da cor,
essa plástica jovem da acção visual, esse acentuar de efeitos (a ‘zoom’,
a ‘tele-objectiva’, o ‘paralítico’) para destaque da fotogenia das
pessoas e do mundo“ (Pina, 1977: 14).
356
A produção de filmes de curta-metragem, com equipas de filmagem, tempos de
rodagem, orçamentos e preocupações comerciais (ao nível da distribuição e exibição)
reduzidas, com uma paralela liberdade criativa apreciável, tornaram este género de
filmes – turístico, industrial, publicitário, institucional – um terreno privilegiado de
aprendizagem, de treino e de experimentação na prática fílmica dos jovens cinéfilos
aspirantes a realizadores. A dificuldade em filmar obras de longa-metragem – vetadas
pelos constrangimentos da censura e pela monopolização do Fundo por parte dos
cineastas próximos do regime – remeteram os jovens realizadores para os géneros
cinematográficos de certa forma marginalizados. Sofrendo influências das principais
escolas europeias139, o género documentário possibilitava uma interessante vertente
criativa, explorando sobretudo filmes marginalizados pelo mercado cinematográfico.
Não foi, portanto, por acaso que a maioria dos cineastas da geração do Novo
Cinema português começou as suas carreiras cinematográficas (excluindo eventuais
filmes escolares ou em regime amador) por filmes de curta-metragem documentais.
Muitas das experimentações feitas nestes filmes foram depois aplicadas nas primeiras
longas-metragens destes realizadores. No entanto, pela fraca visibilidade do género
documental, a renovação ética, estética e técnica promovida por uma nova geração só
foi sendo reconhecida publicamente nas longas-metragens que eles foram
apresentando.
Depois do esforço de renovação da década anterior, assistiu-se na década de 70 a
um momento de forte experimentação de formas e de tendências que conheceu uma
maior expressão na produção de curtas-metragens documentais. Algumas propostas
criativas ou tecnológicas de maior risco foram experimentadas por diversos autores nas
curtas antes de as aplicarem nas longas: Fernando Lopes fez várias experiências de som
em As pedras e o tempo; António de Macedo em Crónica do esforço perdido (1966); João
César Monteiro, Paulo Rocha e António Reis experimentaram novas formas narrativas e
visuais em Sophia de Mello Breyner Andressen (1969), A pousada das chagas (1972) e
Jaime (1974), respectivamente. As duas primeiras já foram referidas anteriormente, e
quanto às restantes, são três das curtas-metragens mais importantes de todo o cinema
português.
Dos três realizadores, o mais experiente era Paulo Rocha. Autor de duas longasmetragens (Os Verdes Anos, 1963, e Mudar de Vida, 1967), o cineasta portuense fez uma
139
Convém recordar que esta geração de realizadores portugueses foi, na sua maioria, beneficiária de
importantes bolsas de estudo do Governo português ou da Fundação Calouste de Gulbenkian, recebendo
formação nos principais centros de formação cinematográfica da Europa, como Londres, Paris e Roma.
357
passagem pela curta-metragem no início da década de 70 com duas encomendas: Sever
do Vouga, uma experiência… (1971) e A pousada das chagas. O segundo foi uma
encomenda expressa da Fundação Calouste Gulbenkian para fazer um documentário
sobre a colecção de arte do Museu de Óbidos sem fins comerciais e, por isso mesmo,
construído sem qualquer constrangimento do mercado ou do público. Afastando-se
progressivamente dos registos anteriores, Rocha experimenta nesta curta um conceito
de representação e de mise-en-scéne que seria concretizado em A ilha dos amores
(1982). Como sublinha Manuel S. Fonseca, esta curta caracteriza-se por “um gosto
barroco da cor, do mesmo modo que se torna inequívoco o domínio da câmara e da
continuidade da mise-en-scéne, secundarizando uma montagem a que, em Mudar de
Vida, se atribuía importância, senão primordial, pelo menos igual àquela. Acresce ainda
uma obsessiva preocupação cénica, imitativa de resto da que as pinturas do Museu
evidenciam na composição de uma Paixão onde misticismo e sensualismo são, como o
claro-escuro, elementos indecomponíveis“ (Cinema Novo Português, 1985: 123).
Apesar de se estrear na realização apenas no final da década de 60, João César
Monteiro foi um dos elementos do núcleo fundador que promoveu a renovação no
cinema português. Enfant terrible da crítica cinematográfica, Monteiro era presença
assídua nas tertúlias culturais e cinéfilas que animavam a sociedade lisboeta desses
anos. O seu filme de estreia foi Sophia de Mello Breyner Andressen - uma produção de
Ricardo Malheiro para uma série de documentários sobre figuras das artes e letras
portuguesas intitulada Cultura Filmes, que incluiu também 27 minutos com Fernando
Lopes Graça (1969) de António-Pedro Vasconcelos e Fernando Namora (1969), de
Manuel Guimarães. Desde o genérico (dito pelo próprio realizador), o documentário
Sophia adopta uma atitude de experimentação que torna este filme único no cinema
português: em vez de tentar uma clássica monografia sobre a sua obra, Monteiro
acompanhou a poetisa numas férias em família no Algarve, filmando-a em interacção
com os filhos e com alguns dos seus textos.
António Reis foi uma das maiores revelações da década: Auto-didacta, poeta,
cineclubista, membro activo do movimento associativo portuense, cineasta amador,
colaborador de Manoel de Oliveira (Acto da Primavera) e Paulo Rocha (Mudar de Vida).
Quando, em meados de 1969, a sua esposa e psiquiatra Margarida Cordeiro contactou
com algumas pinturas de Jaime Fernandes expostas nas paredes do hospital psiquiátrico
Miguel Bombarda, logo o convenceu a fazer um filme sobre esse singular artista plástico.
Jaime é uma curta-metragem de António Reis que, a partir de uns desenhos e de uns
358
escritos, tenta revelar a personalidade de Jaime Fernandes (1900-1969), um anónimo
doente psiquiátrico hospitalizado desde os 38 anos de idade. Depois de três décadas de
internamento, Jaime Fernandes revelou-se, nos últimos três anos de vida, um
prodigioso artista plástico e poeta. O realizador construiu o seu filme a partir dos
desenhos e textos encontrados no asilo e através do contacto com a viúva e alguns
conhecidos do artista.
Como sublinha José Manuel Costa, “não se trata portanto de um documentário
sobre uma vida já então inexistente nem – muito menos – de uma ‘reconstituição’ dessa
vida. O que Reis fez foi filmar e trabalhar sobre os materiais e figuras concretas que
existiam no tempo da rodagem do filme e exclusivamente sobre isso. A evocação
biográfica e a outra (humana, psicológica) surge por outros caminhos, ou seja, pelo
próprio trabalho (que nesse sentido é documentário e é ficção sobre esses materiais“
(Cinema Novo Português, 1985: 128-129).
António Reis seria o principal teorizador do Museu da Imagem e do Som, um dos
projectos mais interessantes do Centro Português de Cinema (CPC) e do cinema
português que também passava pela produção de documentários e de curtas-metragens.
A concretização de Trás-os-Montes terá convencido definitivamente João Bénard da
Costa – então director do Serviço de Cinema da Fundação Calouste Gulbenkian (19691991) – a relançar-se:
“(...) numa pista antiga e sobre a qual muito falara com os
homens da cooperativa [CPC]. A produção de uma série de filmes que
dessem conta do Portugal desconhecido que está à espera de nós, de
tradições e costumes em vias de desaparecer, mas também de filmes
biográficos sobre alguns dos nossos grandes vivos“ (Costa, 2007: 44).
Os acontecimentos políticos e sociais de 1974 vieram alterar radicalmente o
panorama cinematográfico português. As novas orientações políticas e estéticas saídas
da revolução promovem uma redefinição temática do filme científico, preocupando-se
sobretudo com temas de carácter social e político, assuntos que durante o regime
anterior teriam sérias dificuldades em ser produzidos. No rescaldo da revolução, a
generalidade da produção fílmica optava pelo tratamento de temas polémicos e
marginalizados pela opinião pública. Mais uma vez, a politização da sociedade
estendeu-se ao cinema, originando um conjunto de obras muito interessantes de
carácter marcadamente ideológico.
Independentemente da sua visibilidade ou reconhecimento à época, é evidente
que este cinema de curta-metragem contribuiu para a afirmação e reconhecimento do
359
cinema moderno português. Num primeiro momento, sobretudo nos anos 60, foram as
curtas-metragens destes jovens cinéfilos que participaram em festivais de cinema
internacionais e que assim contribuíram decisivamente para a afirmação internacional
do cinema português.
Apesar de alguns autores reconhecerem a existência destas curtas documentais
nas filmografias e nos percursos formativos de diversos autores do cinema moderno140, a
generalidade não as consideram esteticamente relevantes e ignoram-nas nos seus
estudos. Filmes de prenúncio, de transição ou de ruptura, as curtas produzidas no
período aqui tratado – por comportarem menores riscos (de produção ou recepção) –
foram um espaço de exercício, experimentação, inovação e formação para uma nova
geração no cinema português.
A renovação conhecida nesse período em Portugal não foi estranha a influência de
diversas escolas e movimentos internacionais que por estes anos se destacavam
sobretudo no campo do documental: National Board of Canada (1948-64), o Free Cinema
britânico (1956-63), o documentarismo televisivo americano da NBC e CBS (1951-71), o
Direct Cinema e o Cinéma Verité (1960-70). Nestes casos, o documentário, sempre um
género desconsiderado e marginalizado pelos distribuidores e exibidores, foram um
terreno propício à renovação e experimentação da linguagem cinematográfica (Ellis &
McLane, 2005: 167-226).
A recente edição em suporte DVD de algumas obras dos anos 50, 60 e 70 –
particularmente sobre Manuel Guimarães, Fernando Lopes ou Alfredo Tropa – tem o
mérito de recuperar do esquecimento algumas curtas-metragens documentais dos
respectivos autores enquanto documentos fundamentais para conhecer e compreender
o seu percurso artístico. A programação recente da própria Cinemateca Portuguesa, em
rubricas como “Cinema Português: Primeiras Obras, Primeiras vezes“ ou “Abrir os
Cofres“, tem devolvido aos espectadores interessados alguns desses filmes mais
ignoradas.
Progressivamente, graças ao trabalho de preservação e de conservação
desenvolvido no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento da Cinemateca
Portuguesa, à medida que vão sendo visionados por jovens investigadores e cinéfilos
mais atentos, estes filmes vão sendo recuperados não só como objectos historiográficos
140
A retrospectiva programada em 1985 pela Cinemateca Portuguesa dedicada ao Novo cinema português
incluiu no ciclo a exibição de 24 longas e 31 curtas-metragens.
360
mas também, em muitos casos pela primeira vez, enquanto objectos estéticos e
artísticos que estão a alterar consideravelmente o estudo do cinema em Portugal.
3.4.3. Produções António da Cunha Telles
A historiografia convencional define, em termos de produção fílmica, o dinâmico
António da Cunha Telles no início do corte umbilical entre o novo e o velho cinema.
Grosso modo, os filmes que integram as Produções Cunha Telles constituem o núcleo de
produção do designado “cinema novo“.
Nessa fronteira, geralmente definida por dois filmes — o já citado Dom Roberto e
Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos — que ainda teriam sido produzidos
de uma forma “clássica“ ou “velha“, Cunha Telles “criou as bases de um outro tipo de
produção“ (Novo Cinema Português, 1981: 19). Paulo Filipe Monteiro destaca essa
ruptura:
“Percebe-se agora melhor por que razão tem parecido
importante deslocar a fronteira do novo cinema do padrão de Pássaros
de Asas Cortadas, e mesmo de Dom Roberto, filmes em que a história, o
guião, os diálogos e os actores têm a maior importância. A orientação
de Paulo Rocha define, de facto, melhor a doxa que dominará o novo
movimento: um cinema que trabalha os espaços, os décors, as cores, as
matérias, e pede para ser lido por esse lado, e não pelo da intriga e dos
actores“ (Monteiro, 2000: 330).
Para além das questões estéticas, o que também distingue o novo cinema em
relação ao velho cinema é que tenha encontrado “uma 'ideia de produção' que se lhe
soube adaptar“ (José Manuel Costa apud Mozos, 2014: 8). Cunha Telles
(Enquadramento, 1-VI-1971: 12) corrobora esta ideia:
“(...) Quando chego a Portugal, de regresso de Paris, está o
Ernesto de Sousa a fazer o Dom Roberto e, tempos depois, o Artur
Ramos começa Os Pássaros... Nós percebemos então uma coisa muito
importante: é que se queríamos fazer cinema tínhamos que arrancar
com estruturas totalmente diversas das do chamado 'cinema
português'. Não é só preciso um realizador ter uma ideia diferente. Se
as pessoas que trabalham com ele tiveram um certo número de vícios,
ele acaba por ser arrastado e por fazer filmes que, finalmente, não
correspondem ao que ele deseja.
(...) se reflectirmos um pouco sobre esse filme [Pássaros de Asas
Cortadas], veremos que ele foi feito por uma equipa que era quase
integralmente aquela que trabalhava nos filmes que se faziam então.
Automaticamente toda a equipa agira, enquadrava, filmava como
sempre.“
361
E em 1985, a propósito da mesma questão, acrescenta:
“(...) O que se chamou 'Cinema Novo Português' define-se pela
recusa global de tudo o que então se fazia em matéria de cinema
português. Penso que a fractura dos filmes que produzi, com os outros
dois — Dom Roberto e Pássaros de Asas Cortadas — que também
queriam romper com o passado, reside na ligação destes dois com
estruturas de produção e estruturas técnicas (...) que vinham do
cinema português anterior. Ao contrário, nos Verdes Anos, todos os
membros da equipa, desde o electricista ao realizador, estavam a fazer
o primeiro filme...“ (Telles, 1985: 49)
Chegado a Lisboa para estudar Medicina por volta de 1955, Cunha Telles trazia já
uma vasta experiência enquanto cineasta amador, sobre tudo em filme de 9,5 mm, e
envolve-se na animação do Centro Universitário de Cinema Experimental, ligado à rádio
da Universidade de Lisboa, e que funcionaria como uma espécie de clube de cineastas
amadores que trabalhavam já com filme de 16 mm. Essa experiência nesse suporte semiprofissional seria importante para que iniciasse uma colaboração regular como repórter
de imagem da recém-criada RTP (Mozos, 2014: 35-36).
Em 1961, depois de quatro anos radicado em Paris, onde se formou em realização e
produção (IDHEC, com bolsa do Fundo de Cinema Nacional), em filmologia (Institut de
Filmologie da Sorbonne) e em audiovisuais (Diploma Expert en Techniques Audiovisuelles do Centre Audiovisuel de L’Ecole Normale Supérieure de Saint-Cloud), António
da Cunha Telles regressa a Portugal.
Nesse mesmo ano, Cunha Telles é designado para dirigir o jornal de actualidade
Imagens de Portugal, orienta o Curso de Cinema Experimental no Estúdio Universitário
da Mocidade Portuguesa (onde Fernando Matos Silva, Alfredo Tropa, Acácio de Almeida,
Elso Roque e Teresa Olga, entre outros, receberiam a primeira formação técnica) e
assume funções de direcção nos serviços de cinema da Direcção-Geral do Ensino
Primário. É neste organismo público que realiza a sua primeira curta: Os Transportes
(1962).
Precisamente em 1962, António da Cunha Telles inicia uma carreira de produtor e
co-produtor que, até 1968, estaria sucessivamente associada a 17 filmes141. Como
141
Les vacances portugaises/Sorrisos do destino (1962, de Pierre Kast, co-prod. JAD Films, Clara D’Ovar);
P.X.O. (1962, Jacques Doniol-Valcroze e Pierre Kast, MM); Os verdes Anos (1963, de Paulo Rocha); Os
Caminhos do Sol (1963, de Carlos Vilardebó e Augusto Cabrita, CM); Le pas de trois (1964, de Alain Bornet,
co-prod. JAD Films); La peau douce/Angústia (1964, de François Truffaut, co-prod. Films de Carosse,
SEDIF); Le grain de sable (1964, de Pierre Kast, co-prod. George Glass, Franco-Londom Film, Eichberg,
Eurocontinental); Belarmino (1964, de Fernando Lopes); O Crime de Aldeia Velha (1964, de Manuel
362
sublinha António Roma Torres (apud Mozos, 2014: 26), as primeiras experiências de
Cunha Telles na área da produção “são relativamente convencionais e ligadas ao
investimento em filmes de ficção com aparente intenção de propaganda turística“. Mas é
dessa experiência que reforça o contacto com o meio francês da nouvelle vague,
nomeadamente com Pierre Kast e com Clara d'Ovar, e que co-produz um filme de
François Truffaut, parcialmente rodado em Lisboa.
Estes anos de arranque na produção também foram importante porque é nessas coproduções ou em produções mais convencionais que Cunha Telles começa a “criar um
esquema de produção contínua com uma equipa de técnicos disponíveis“,
maioritariamente formados no curso que organizara meses antes, pretendendo
consolidar “uma iniciativa estrutural e não propriamente um projecto estético ou
ideológico, como haviam sido o esquema de produção ligado aos cineclubes“ (Ibidem:
27).
O esquema de produção era, segundo o próprio Cunha Telles (1985: 51-52), muito
simplificado em relação à época:
“As estruturas de produção eram, na altura, mais simples do que
hoje. Para se fazer um filme de fundo era necessária uma meia-dúzia
de pessoas. Não havia som síncrono, filmava-se com uma velha Arri,
que parecia uma metralhadora quando começava a filmar e que se
levava debaixo do braço. Era uma estrutura ligeira, mas à medida que
as fitas se sucediam umas às outras, havia pessoas que adquiriam uma
enorme aprendizagem. (...)
Penso que outro dos elementos fundamentais, perdido hoje em
dia no cinema português, era a adequação entre o projecto do
realizador e a produção. Os orçamentos e o modo de controlar os
orçamentos não obedeciam a uma regra definitiva, antes se
estabeleciam em função de cada filme. (...)
O Fernando Lopes queria filmar quando o Belarmino estava de
boa disposição, portanto arranjou uma equipa pequena, dotada de
uma liberdade de movimentos, e a verdade é que a franqueza que há
no filme, bem como a qualidade das imagens, é o resultado de uma
equipa que não impõe esquemas à partida. Ou seja, em vez do dinheiro
ser gasto por uma equipa de 20 pessoas, sob tensão, imobilizadas
durante 6 semanas, é utilizado para uma rodagem com tempo quase
ilimitado, com uma equipa mínima. Evidentemente com o António de
Macedo, para o Domingo à Tarde, as concepções de filmagem são já
diferentes. Ele é uma pessoa sistemática, com necessidade de uma
equipa que pudesse dar a resposta certa, num tempo muito
determinado.
Guimarães, co-prod. Tóbis); O Trigo e o Joio (1965, de Manuel Guimarães, co-prod. Artistas e Técnicos
Associados, Manuel Guimarães, Tóbis); As Ilhas Encantadas (1965, de Carlos Vilardebó); Catembe (1965,
de Faria de Almeida, co-prod. Faria de Almeida); Domingo à Tarde (1966, de António de Macedo); Mudar
de Vida (1966, de Paulo Rocha); Sete Balas Para Selma (1967, de António de Macedo, produção terminada
pela Imperial Filmes); Alta Velocidade (1967, de António de Macedo, CM); Fado (1968, de António de
Macedo, CM).
363
Era esta a filosofia das Produções Cunha Telles, nada de
esquemas clássicos e pré-determinados, mas antes uma concepção
flexível, procurando entender cada filme que se ia fazer e quais os
meios adequados para esse filme. A partir dessas duas premissas
determina-se então uma maneira de agir.“
Reflectindo esses expedientes, os orçamentos também eram muito diversificados:
Belarmino custou cerca de 300 contos, Os Verdes Anos e Domingo à Tarde entre 700-800
contos142. A produtora ainda beneficiou da parceria com a Ulisseia Filmes de José Gil,
que concedeu crédito no laboratório e os equipamentos.
Das obras produzidas, duas foram recebidas com um entusiasmo e uma euforia
fora do comum por parte de alguns sectores da crítica. Os Verdes Anos e Belarmino,
entendidas como “sinais de ressurgimento“ do cinema português, foram consideradas
“as duas primeiras obras que uma geração ousa reivindicar“ (O Tempo e o Modo, X-1964:
134-135). Uma nova geração emancipara-se perante as maiores contrariedades e, apesar
de diferentes filiações estéticas, assumira uma vontade de ruptura com os parâmetros
estéticos e temáticos do velho cinema. A boa recepção por parte de uma certa crítica
nacional, e nomeadamente da crítica internacional, projecta estas obras para uma
repercussão inédita, marcando pontos em vários certames estrangeiros. No entanto, a
recepção do público não foi a esperada, contando-se sucessivos fracassos financeiros,
apesar do baixo custo de produção. Segundo Bénard da Costa (1991: 125), a razão para
o alheamento do público deveu-se ao “vanguardismo das propostas estéticas destes
filmes“, assim como ao recrudescimento da censura, que impedia a chegada a Portugal
das “novas vagas e novos cinemas“ que revolucionavam o cinema europeu.
As dificuldades financeiras obrigaram Cunha Telles a procurar alternativas
criativas e a promover uma nova estratégia de produção, onde se valorizava um forte
carácter populista e comercial. A experiência Sete Balas para Selma resultou num
rotundo fracasso comercial e promoveu a ruptura de Cunha Telles com a nova geração.
Como já foi referido antes, João César Monteiro acusou mesmo o produtor e o realizador
de traição à “batalha comum por um Cinema Novo“: este filme “só pode ser encarado
como empresa reaccionária, carregada de balas que se desfecham traiçoeiramente nas
142
Só para contextualizar: A Canção da Terra (1938, Brum do Canto) e Ala-Arriba! (1942, Leitão de Barros)
tinham custado cada 1200 contos; O Pai Tirano (1941, António Lopes Ribeiro) e Um Homem às Direitas
(1944, Brum do Canto) custaram 1500 contos cada; Amor de Perdição (1943, António Lopes Ribeiro) e
Ladrão Precisa-se! (1945, Brum do Canto) custaram 2000 contos; Fado, história de uma cantadeira (1948,
Perdigão Queiroga) custou 2300 contos); Camões (1946, Leitão de Barros) custou 4800 contos (Ofício do
Cinema em Portugal, 1968: 23-24). Já nos anos 60, Dom Roberto de Ernesto de Sousa tinha custado cerca
de 1000-1200 contos (Ernesto de Sousa apud Boletim Cooperativista, 106, VIII-1962: 8).
364
costas dos promotores de uma revolução cinematográfica em Portugal“ (O Tempo e o
Modo, I-1969: 125).
Por outro lado, perante a impossibilidade de prosseguirem a realização de filmes
de fundo, os realizadores da nova geração recorreram a géneros de cinema alternativos
para continuarem a exercitar e a desenvolver a sua actividade. Como observa Luís de
Pina, a nova geração desenvolveu-se técnica e artisticamente nos designados cinemas
especializados, designadamente no documentário e no filme publicitário. Este
“fenómeno curioso“, que permitiu “desenvolver um tipo de produção capaz de suportar
as crises nas melhores condições“, foi “uma verdadeira escola de realizadores“ (Pina,
1977: 138). Perante a morte do velho cinema, e apesar da falência de Cunha Telles, a
nova geração cinéfila mostrara capacidade de contrapor uma estética cinematográfica
própria ao cinema português de então.
Nos anos 60, António da Cunha Telles tentou um novo conceito e modelo de
produção. Em 1964, num curioso artigo de Fernando Duarte (Celulóide, IX-1964, 12), a
atividade de Cunha Telles era classificada como uma “produção cinematográfica em
série industrial de qualidade artística superior“. Os conceitos e modelos de produção
apresentados que serviriam de comparação com as Produções Cunha Telles foram a
“produção em série industrial“ de Manuel Queiroz e a “produção ocasional de filmes“
onde se integrava a maioria dos produtores portugueses, como Francisco de Castro,
Filipe de Solms e várias firmas distribuidoras.
A nova “filosofia de produção“ de Cunha Telles distanciava-se do conceito
tradicional de produção conhecido até então em Portugal. Rejeitando a concepção do
produtor como figura de “mulher-a-dias“ ou “capataz“, responsável financeiro pelo
filme, Cunha Telles seria um produtor que contraria a clássica tarefa de “administrar os
dinheiros e criar uma estrutura“, impondo uma espécie de “produtor-autor“ que o
cinema português desconhecia até então e que procura “intervir do ponto de vista da
conceção artística – cinematográfica – pôr o realizador em contacto com profissionais de
qualidade“ (Ibidem: 5-7).
Consciente de que o chamado “cinema de autor“ desvaloriza ou elimina a
influência do produtor tradicional, geralmente conduzida por motivos comerciais,
Cunha Telles reinventa a função do produtor através de uma forte ligação criativa e
estética com o realizador: “o produtor tem de ter um certo feeling, deve falar de cinema,
saber o que é que um realizador quer“ (Idem, 1985: 55-56).
365
Em função de uma nova ideia de produção, a estratégia das Produções Cunha
Telles desvalorizava as tradicionais planificações de tipo técnico e rigorosamente
calculadas em favor dos aspetos estéticos da produção em causa: “nada de esquemas
clássicos e pré-determinados, mas antes uma conceção flexível, procurando entender
cada filme que se ia fazer e quais os meios adequados para esse filme.“ A estratégia de
produção conduzia-se por aquilo que Cunha Telles define como uma “colagem da
produção à própria personalidade do realizador“ (Ibidem: 52).
A este carácter “auteurista“ do produtor Cunha Telles não serão estranhos dois
factos significativos: em primeiro lugar, o produtor tinha formação de realização
cinematográfica, curso que frequentara no IDHEC; em segundo lugar, o realizador
tornou-se produtor por acaso, ou seja, existia um acordo tácito entre o núcleo das
Produções Cunha Telles que previa a rotatividade nos cargos, tornando assim as
posições como esporádicas.
O carácter singular da “filosofia de produção“ de Cunha Telles também reflectia o
facto dos principais colaboradores (Fernando Matos Silva, Elso Roque, Acácio de
Almeida, Margaret Mangs, entre outros) se estrearem no cinema e supostamente
estarem isentos de todos os “vícios“ que “corrompiam“ a generalidade dos quadros
técnicos do cinema português. Simultaneamente, estes colaboradores foram
progredindo estética e tecnicamente com a mentalidade da jovem casa produtora.
Cunha Telles (1985: 49-50) insiste muito nessa particularidade como marca identitária
das suas produções:
“(...) não havia vícios. Não havia o enquadrar bem ou o
representar bem, segundo parâmetros já viciados e desgastados do
cinema anterior. (...) Portanto, quando se diz que o 'Cinema Novo'
nasce da recusa do cinema anterior, importa acrescentar que também
o cinema estabelecido nos recusou a nós. Foi essa recusa que juntou
uma série de pessoas que queriam fazer filmes, custasse o que
custasse, ainda para mais pessoas que estavam que estavam
convencidas que os filmes que fariam, iam alterar o viver da cidade e o
viver do país.“
Leonor Areal (2008: 418) também sublinha essa nova ideia produtiva: “Dentro da
diversidade que faz o vigor tão desigual de cada filme, o que une este cinema jovem é
uma ambição de fazer muito com poucos meios. A invenção surge também desse
constrangimento criativo: a busca de soluções simples e económicas.“
À semelhança do que acontecera anos antes com a 'nouvelle vague' francesa, que
reuniu o consenso da crítica de cinema e o agrado do público francês e internacional, a
366
geração que promoveu o designado novo cinema português tentou, numa primeira fase,
conquistar o grande público sem prescindir da qualidade estética das suas propostas.
A esperança de sucesso junto do público era tal que as Produções Cunha Telles se
apoiavam numa estrutura de produção contínua pré-determinada, ou seja, segundo
testemunho do próprio Cunha Telles (Cinema Novo Português, 1985: 51), os filmes foram
rodados sucessivamente sem aguardar pelas estreias dos anteriores: “quando se estreia
os Verdes Anos, já o Belarmino está filmado e quando este por sua vez estreia, já o
Domingo à Tarde está filmado“.
Como é possível confirmar em várias outras declarações e depoimentos de vários
membros do novo cinema, sobretudo os elementos das Produções Cunha Telles, a falta
de público foi uma desilusão e uma surpresa que contribuiu para a falência deste
primeiro período dos anos 60. Como confessa Fernando Lopes (Jornal de Letras e Artes.
274. III-1970: 25), parece “que todos nós contávamos um pouco excessivamente com a
existência de um público ‘esclarecido’, para utilizar um chavão da época, público que
teria sido formado pelos cineclubes, público universitário, e outro, que de facto não
apareceu para os nossos filmes“. Na mesma publicação, Paulo Rocha (Ibidem: 23)
lembra que o novo cinema tentou “seduzir“ o público, mas este “não fez o que havia a
fazer por parte dele, ou não o deixaram fazer, os distribuidores, as leis, o
condicionalismo geral não o deixou fazer“. Finalmente, Cunha Telles (Idem, 275. IV1970: 28-31.: 29) lembra que, apesar das diferenciadas campanhas de marketing
operadas nos seus diferentes filmes, o público “abandonou“ o compromisso assumido
pelo novo cinema:
“Em relação aos Verdes Anos tudo foi feito de acordo com o
realizador […]. Em relação ao Belarmino o lançamento foi feito pela
via dos cineclubes. […] Em relação ao Domingo à Tarde, o lançamento
foi feito cientificamente por uma agência de publicidade […] que
estudou a maneira de orientar o público“.
O fracasso comercial dos filmes das Produções António da Cunha Telles (19621967) marcou de forma irremediável o relacionamento da nova geração de cineastas dos
anos 60 com o(s) público(s) de cinema português. Recupero agora, cronologicamente,
os dados concretos recolhidos sobre a recepção dos filmes produzidos pelas Produções
António da Cunha Telles entre 1963-67:
- Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, estreou, em Novembro de 1963, em
simultâneo em duas salas de Lisboa – São Luís e Alvalade – permanecendo duas semanas
em cartaz, totalizando 67 sessões (40 no São Luís e 27 em Alvalade).
367
- Belarmino (1964), de Fernando Lopes, estreou no Avis, em Lisboa, em Novembro
de 1963, onde permaneceu cerca de três semanas, sendo exibido em 46 sessões.
- Crime de Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães, estreou no Éden, em Lisboa,
também em Novembro de 1963, onde permaneceu durante três semanas, totalizando 63
sessões. Na quarta semana passou para o Lys, também em Lisboa, onde foi exibido mais
8 vezes (total de 71 sessões).
- As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó, estreou em Março de 1965 no
Tivoli, em Lisboa. Permaneceu apenas a primeira semana em exibição, somando
somente 19 sessões.
- Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo, estreou no Império, em Lisboa,
em Abril de 1965, onde permaneceu apenas uma semana (15 sessões), passando depois
para o Estúdio onde esteve mais duas semanas e foi exibido em mais 31 sessões (46
sessões no total).
- O Trigo e o Joio (1965), de Manuel Guimarães, estreou em Novembro de 1965, no
Monumental, onde permaneceu duas semanas e registou um total de 30 sessões.
- Catembe (1965), de Faria de Almeida, viu proibida a sua exibição pela censura.
- Mudar de vida (1967), de Paulo Rocha, estreou na sala lisboeta Estúdio, em Abril
de 1967. Permaneceu nesta sala durante cinco semanas consecutivas, durante as quais
teve três sessões diárias. Totalizou 103 sessões, o melhor registo dos filmes das
Produções Cunha Telles.
- Sete balas para Selma (1967), de António de Macedo, estreou em Novembro de
1967, em duas salas lisboetas em simultâneo – Éden e Alvalade – onde permaneceu
durante apenas a primeira semana. Na segunda semana passou para a sala Odeon. No
total das três salas, totalizou três semanas em exibição e 53 sessões.
Quando a média de permanência em sala em estreia seria de oito a nove semanas,
o melhor que algum destes filmes conseguiu foi cinco semanas (Mudar da Vida), sendo
que foi exibido em estreia numa sala estúdio, com uma lotação significativamente mais
reduzida que as mais tradicionais salas de estreia. Exceptuando Catembe (que não
estreou) e As Ilhas Encantadas (apenas uma semana), os outros filmes de Cunha Telles
permaneceram entre duas e três semanas em sala, o que era manifestamente
insuficiente inclusive para financiar a publicidade aos próprios filmes (que então
rondaria entre 30 a 50 contos).
368
Perante a impossibilidade de prosseguirem a realização de filmes de fundo, os
realizadores da nova geração recorreram a géneros de cinema alternativos para
continuarem a exercitar e a desenvolver a sua actividade. Como observa Luís de Pina
(1986: 143), a nova geração desenvolveu-se técnica e artisticamente nos designados
cinemas especializados, particularmente no documentário institucional e no filme
publicitário. Este “fenómeno curioso“, que permitiu “desenvolver um tipo de produção
capaz de suportar as crises nas melhores condições“, foi “uma verdadeira escola de
realizadores“ (Idem, 1977: 138). Perante a morte do velho cinema, e apesar da falência
de Cunha Telles, a nova geração cinéfila continuava viva e mostrava capacidade de
sobrevivência e vontade de contrapor uma estética cinematográfica própria ao cinema
português de então.
O mito do “produtor-milagre“ nasceu com a ideia de que António da Cunha Telles
veio de Paris decidido a dedicar-se à produção. De facto, como o próprio confirma, a
opção pela produção não foi uma opção mas antes um recurso. Cunha Telles, quando
regressou de Paris, queria integrar-se no meio cinematográfico português:
“Éramos [Cunha Telles e Paulo Rocha] completamente
marginalizados por aquilo que se considerava a ‘indústria
cinematográfica’ da altura. Lembro-me de ter ido pedir a um realizador
[Perdigão Queiroga] um lugar de estagiário e de ele mo ter recusado.“
(apud Melo, 1996: 15).
Numa entrevista de 1971 a Lauro António, Cunha Telles lembra:
“Para começar não consigo arranjar trabalho como técnico.
Estou, portanto, num beco sem saída. Procuro arranjar trabalho como
assistente e as pessoas recusavam-me, pura e simplesmente. (…)
Acontece que sou recusado sistematicamente. Eu e todos os dessa
época. Globalmente. Devem ter pensado: ‘Alto lá! Mas como é que é
isto, estes senhores que vêm lá de fora? Como é que é?’ E fomos postos
de lado“ (Enquadramento, 1-VI-1971: 12).
Em 1985, ainda a propósito desta questão, Cunha Telles acrescentaria:
“Estou convencido que já se sabia o que nós queríamos. A
pessoa a quem eu fui pedir para ser estagiário sabia perfeitamente que
eu não queria fazer uma carreira de dez anos de 2.º assistente e
quando tivesse 70 anos vir a fazer o meu primeiro filme de fundo.
Sabiam que queríamos perceber como a profissão funcionava por cá
para passar imediatamente à filmagem. No fundo, passa-se em
Portugal o mesmo que em França e o inverso do que sucedeu em Itália.
(...)“ (Telles, 1985: 50)
Depois de ter tentado, em vão, integrar-se, Cunha Telles começou a trabalhar na
sua primeira obra como realizador, contando com a colaboração de Paulo Rocha como
369
argumentista. Só as contrariedade financeiras fizeram com que Cunha Telles desistisse
do seu próprio filme e produzisse o filme de Paulo Rocha:
“Entretanto, desbloquearam-me os meios para fazer Os Verdes
Anos. Foi o primeiro filme que produzi. Fez-se com muito pouco
dinheiro. Uma parte era dinheiro pessoal do Paulo Rocha, outra era
dinheiro meu. A Ulyssea participava com créditos de laboratório e
assim se arrancou.“
(António da Cunha Telles apud Melo, 1996: 15)
O filme de Paulo Rocha seria apenas o primeiro de um projecto muito mais vasto.
De acordo com os arquivos do SNI, António da Cunha Telles apresentou a concurso para
apoio à produção, entre 1962 e 1968, sete projectos de longa-metragem: Angola do
nosso coração, a realizar pelo próprio António da Cunha Telles (apresentado ao SNI em
1962); O anjo ancorado, a realizar por José Fonseca e Costa (1963); Gaivotas em terra, a
realizar por Herlânder Peyroteo (1963); Férias na Madeira, a realizar por Fernando Garcia
(1963); Rio de Ouro, a realizar por Paulo Rocha (1964); A faca e o rio, a realizar por
Manoel de Oliveira (1966); e Mais forte que tudo, a realizar pelo próprio António da
Cunha Telles (1968). Houve também projectos que foram iniciados e nunca terminados,
como o caso do filme de animação realizado por Mário Neves (1965). Em Março de 1964,
em entrevista à revista Filme, Cunha Telles falava ainda em outros projecto de filme que
não foram concretizados, entre eles Bonecos de Luz, a realizar por António Campos.
Em suma, para além dos filmes que concretizou, Cunha Telles foi propondo e
preparando muito mais projectos de produção. Estes projectos não concluídos ou por
realizar alargam ainda mais a dimensão do que formam e do que poderiam ter sido as
Produções António da Cunha Telles. Mas, por outro lado, destrói por completo qualquer
ideia de produtor-autor ou de unidade estética atribuída à sua obra enquanto produtor.
Se é um facto que essa cumplicidade aconteceu com Paulo Rocha e, até, com Fernando
Lopes, o mesmo não se poderá considerar em relação aos outros projectos por si
desenvolvidos.
As relações pessoais e afinidades estéticas com os realizadores seus colaboradores
foram muito distintas. Apesar de Cunha Telles insistir que “quis produzir filmes com as
pessoas que acreditava que eram capazes de fazer os melhores filmes e que tinham os
melhores projectos“ (apud Mozos, 2014: 27), parece mais razoável ler estes projectos
como uma aposta declarada numa lógica industrial de produção que rentabilizaria os
meios técnicos e humanos disponíveis aos produtor.
370
Olhando globalmente para produções portuguesas de Cunha Telles, a maioria
destas características dificilmente pode ser encontrada nos filmes que produziu com
Manuel Guimarães ou com António de Macedo, uma vez que a sua intervenção nos
processos criativos dos diversos filmes foi significativamente diferente. O próprio Cunha
Telles reconhece que algumas parcerias com certos realizadores prejudicaram a sua
“reputação“ e as suas relações com alguns dos seus colaboradores próximos: “(...) Eu, na
altura, fui muito criticado por todos os meus amigos por produzir — mais do que
produzir — 'perder tempo' com ele [Manuel Guimarães]“. Para o produtor, as parcerias
criativas e produtivas não existiram apenas com os seus amigos, mas com o valor que ia
reconhecendo aos realizadores:
“Ao invés do que se pensa, os filmes que eu produzi eram muito
determinados por aquilo que valiam as pessoas, e não por serem
'amigos de café'. O Fernando Lopes, porque vi As Pedras e o Tempo, e o
Macedo... Um dia estou no cinema Império e vejo uma curta-metragem
que ele tinha feito a partir de um poema da Maria Teresa Horta, Verão
Coincidente, que tinha sido financiado pelo Manuel Vinhas, e era
muito bem esgalhado. O Macedo tinha uma técnica muito apurada, e
fiquei de tal modo impressionado que fui falar com ele. Pareceu-me
que também era um realizador e a produzir.“
Nos três casos que cito de seguida, respectivamente referentes às produções de O
Crime de Aldeia Velha (Manuel Guimarães), Domingo à Tarde (António de Macedo) e
Catembe (Faria de Almeida), parece que fica claro que muitos dos seus projectos foram
mais fruto da ocasião e das circunstâncias do que propriamente uma estratégia
deliberada e previamente planeada:
“(…) Acontece que, de momento, surgiu a oportunidade de
produzir ‘Crime de Aldeia Velha’, e como de forma alguma quero estar
parado, e o assunto me interessou, não hesitei.
(…)
De há muito tempo que Manuel Guimarães trabalha neste filme.
A preparação feita com cuidado, tempo, reflexão e competência é
excelente realidade em Manuel Guimarães. Interessei-me pelo filme
confiante nas qualidades de Guimarães e, também, perante a leitura
do guião pronto a filmar.“
(Cunha Telles apud Rádio e Televisão, 23-II-1963: 11)
“(...)
Faria de Almeida: Mas aí também é importante o Cunha Telles,
que tinha ocupado um lugar de chefia na Mocidade Portuguesa – não
sei como lhe chamavam… Portanto era uma pessoa que inspirava uma
certa confiança ao regime. Então se era ele a propor um filme sobre
Lourenço Marques, por um realizador de Lourenço Marques e que
tinha sido bolseiro do Fundo, parecia tudo muito bem.
371
Maria do Carmo Piçarra: Entretanto o apoio é aprovado. Há o
telegrama do Cunha Telles para si em Paris, dando-lhe os parabéns.
Quando o recebe, vem para Portugal ou vai logo para Lourenço
Marques?
FA: Venho para Portugal.
MCP: E quando depois segue para Lourenço Marques, já vai com
um pouco de dinheiro avançado pelo Fundo...
FA: Eu vou sem dinheiro. O Cunha Telles é que comprava o filme,
pagava às pessoas e queria as viagens de graça, pagas por não sei
quem… Por não conseguir logo esse apoio é que demorou um certo
tempo – uns quinze dias – a equipa a ir reunir-se comigo.
MCP: Entretanto o Faria de Almeida está em Lourenço
Marques...
FA: A ver se consigo arranjar apoios. Há um hotel que dá
alojamento para o (Augusto) Cabrita e para o (Alfredo) Tropa. Era o
Avis. E eu fiquei em casa dos meus pais.
MCP: A rodagem do Catembe dura quanto tempo?
FA: Quinze dias, três semanas.
(...)“ (Doc-Online, 6, VIII-2009: 246-247)
“(...) Fui ter com o António da Cunha Telles – ainda não o
conhecia – nos idos dos anos 60 para ver se ele queria produzir A
Promessa, filme inspirado na peça de Bernardo Santareno e que era
uma telha minha desde 1957 (…). O Telles aceitou e comprou os
direitos ao Santareno por cinco contos! Os problemas começaram a
surgir porque entretanto as ousadias produtivas do Cunha Telles não
correram tão bem, economicamente, como ele desejava, e viu-se
forçado a fazer cortes orçamentais, e então gerou-se um nó cego
porque eu queria fazer A Promessa a cores e o Telles só tinha dinheiro –
e nem por isso… para preto-e-branco. Foi então que um dia encontrei
por acaso, na rua, o Fernando Namora que me perguntou se eu não
estaria interessado em cinematizar um romance dele, o Domingo à
Tarde, propondo-se inclusivamente arranjar dois financiadores que ele
conhecia. Apresentei-o ao Telles, o negócio concertou-se, e fui a
correr ler o romance que nessa data só conhecia de nome!“ (António
de Macedo apud FestFigueira, 1998: 172)
Tal como uma suposta unidade estética geralmente atribuída ao Novo Cinema
português em geral por certos autores, também neste caso não existe uma identidade
estética comum que se possa atribuir às Produções Cunha Telles. As características que
geralmente lhe atribuem são sobretudo as características mais marcantes d’Os Verdes
Anos e de Belarmino, as obras mais significativas que produziu: rodagem em exteriores,
câmara bastante móvel, construção abstracta da realidade, subjectividade no olhar do
realizador e um uso narrativo do som na montagem e na mise-en-scéne.
Ainda assim, Cunha Telles assume uma diferença para as suas produções dos anos
60 por serem diferentes da generalidade da produção portuguesa da época, que era
“feita através de processos muito clássicos e com equipas muito convencionais“ (apud
Mozos, 2014: 41)
372
A imprensa da época referia-se ao modo de produção de António da Cunha Telles
como algo de inédito em Portugal: equipa jovem e virtuosa, produção contínua, acordos
de co-produção com produtores estrangeiros e um papel bastante interveniente no
processo criativo do filme para além das tradicionais funções de produtor.
Na realidade, estas marcas fortes do modo de produção das Produções Cunha
Telles eram raras mas não inéditas no cinema português. Por exemplo, o sistema de
produção contínua era comum, na mesma época, a produtores como Manuel Queiroz,
Perdigão Queiroga, Felipe de Solms ou Francisco de Castro, que viviam exclusivamente
da produção cinematográfica, ainda que fosse sobretudo na produção de filmes
institucionais e turísticos. Quanto aos acordos de co-produção com países estrangeiros,
o cinema português conhecera, entre os anos 40 e 60, diversas experiências com
diversos parceiros espanhóis, por exemplo: Canção da Saudade/Los Gatos Negros (1964,
de Henrique Campos).
Mesmo ao nível da montagem financeira, a dinâmica das Produções Cunha Telles
era semelhante aos restantes produtores do cinema português:
“(...) E eles (a Vitória Filmes) davam avanços sobre as receitas
da exploração dos filmes na província, o que era importante... (...)
Porque o laboratório tinha um grande peso no custo de um filme. Hoje
não é quase nada, mas na época o que custava caro num filme era a
película e o laboratório; tendo essas duas coisas o filme estava feito.
Os cachés dos atores e os salários dos técnicos não contavam.“ (Cunha
Telles apud Mozos, 2014: 45)
O fim do projecto de produção de Cunha Telles terá começado com a produção de
As Ilhas Encantadas (1965, Carlos Vilardebó): apesar de financiamento externo, o filme
teve um orçamento elevado e os resultados de bilheteira em Portugal e França foram
desastrosos. A recepção crítica também foi bastante negativa: “(...) Na altura teve
críticas tremendas, então em Portugal foi completamente vaiado, a começar pelo
António-Pedro [Vasconcelos] que o 'apedrejou' de todas as maneiras possíveis e
imaginárias.“ (Cunha Telles apud Mozos, 2014: 46)
Cunha Telles sempre defendeu a via das co-produções para manter uma equilíbrio
financeiro da sua produtora e para manter uma actividade regular, mas muitos dos seus
amigos próximos discordavam dessa opção, preferindo que o dinheiro fosse investido
em mais produções de jovens realizadores portugueses.
A partir de finais de 1965, Cunha Telles começa a recorrer com mais frequência à
produção de publicidade e dum jornal de actualidades chamado Cine-Almanaque (196768), co-produzido com os laboratórios da Ulisseia, realizado por Fernando Lopes e
373
filmado por António Escudeiro, que gerava algum lucro que seria depois investido em
longas-metragens:
“(...) Começámos a sentir que os filmes de fundo não nos iam
dar dinheiro e tentamos montar uma estrutura rentável para fazer
filmes de publicidade, agregando a essa estrutura quase todos os
cineastas. Havia uma espécie de contrato de exclusividade que
garantia a cada realizador um pagamento mensal. Com os lucros
ganhos no fim de cada ano podia, então, investir-se em filmes de
fundo.
(...) Foi uma estrutura que não se aguentou muito tempo,
porque os quadros da empresa, e não realizadores, se separaram para
montar estruturas semelhantes um pouco por todo o lado.“ (Telles,
1985: 56)
Este esquema, de resto, seria replicado por outros realizadores e produtores na
mesma época, nomeadamente a Media Filmes de Fernando Lopes e Alfredo Tropa. Esta
ideia do “suplício de Tântalo“ pretendia equilibrar financeiramente uma estrutura
produtiva capaz de criar obras cinematográficas de qualidade (Lopes, 1985: 60).
Mas a falência, e a cisão definitiva com os seus colaboradores e amigos, tornou-se
efectiva com a produção de Sete balas para Selma (1967, António de Macedo), uma
tentativa de filme cómico e de espionagem à portuguesa que esperava conciliar arte e
público. As dificuldades financeiras obrigaram Cunha Telles a procurar alternativas
criativas e a promover uma nova estratégia de produção, onde se valorizava um forte
carácter populista e comercial. A experiência Sete balas para Selma resultou num
rotundo fracasso comercial e promoveu a ruptura de Cunha Telles com a nova geração. A
zanga foi sério e deixou traumas143, ao ponto de Cunha Telles ter optado por ficar fora do
esforço colectivo que levaria à criação do CPC:
“Ao que parece (...) houve lá pela casa (e das produções do dito)
grande discussão. Uns (e tinham sido os filhos) acusavam-no de
esbanjar dinheiro. com mais olhos que barriga; o produtor (e, entre 67
e 69, multiplicou as declarações nesse sentido) dizia que a fauna por
ele 'lançada' era de ingratos, que queria comer lagosta à custa dele e
preferia os lucros da publicidade (onde, é certo, todos relativamente
prosperavam) à tuberculose que tão bem ficava aos artistas.“ (Costa,
1985: 31)
Em 1969, já com uma nova produtora (CineNovo), Cunha Telles estreia a sua
primeira longa-metragem O Cerco, que venceria o Prémio Melhor Filme do SNI e seria o
maior êxito de bilheteira dos anos 60: “O Cerco, sozinho, fez mais receitas do que todos
143
Os dois primeiros filmes realizados por Cunha Telles — O Cerco (1969) e Meus Amigos (1974) — estão
repletos de referências directas e indirectas a esses anos de conflito e cisão.
374
os filmes portugueses que eu tinha produzido antes.“ (Cunha Telles apud Mozos, 2014:
47). No entanto, a sua produção tinha sido muito complicada: Cunha Telles estava
praticamente falido, mas conseguiu comprar 10 mil metros de película ao Paulo Rocha
que sobraram da rodagem de Mudar de Vida; e fez ainda um acordo muito vantajoso com
a Ulisseia Filmes, que assegurava as despesas de laboratório, equipamento e cópias do
filme; mesmo depois de concluído, nenhum distribuidor português quer comprar o
filme. Cunha Telles pede uma bolsa à Gulbenkian e parte para Paris com uma cópia do
filme legendada em francês. Aí mostra o filme a Louis Mascorelles, que o selecciona para
a exigente e prestigiada Semana da Crítica do Festival de Cannes desse ano. e que lhe dá
grande destaque no prestigiado diário Le Monde. A estreia em Paris é um sucesso e tem
imensa cobertura mediática, não só da imprensa cinematográfica mas também
generalista (Ibidem: 48). Em Portugal o êxito repete-se e o filme está três meses
consecutivos em exibição no cinema Estúdio no Cinema Império.
Ao contrário de outros produtores deste período, Cunha Telles inovou claramente
na questão da circulação dos seus filmes:
“(...) Lembro-me perfeitamente de ter andado com eles [os
filmes] às costas, às vezes mesmo com o desinteresse dos próprios
realizadores. Recordo-me do I Festival de Pesaro, onde é exibido o
Belarmino que eu levei dentro de uma mala daqui para Roma para
entregar ao director do Festival; Os Verdes Anos vai a diversos festivais
também; vai a Locarno, vai a Acapulco, enfim, há uma movimentação
dos filmes portugueses. (...)“ (Enquadramento, 1-VI-1971: 13)
Mesmo sem esperar grande retorno financeiro dos filmes, Cunha Telles percebeu
rapidamente que seria fundamental pô-los a circular, estabelecendo parcerias com
agentes internacionais de várias áreas (incluindo televisões). Por exemplo, no caso de
Os Verdes Anos, Cunha Telles (1985: 53) lembra que a sua percentagem nas receitas de
bilheteira das semanas de estreia foi apenas de 20 contos (o filme custara entre 700-800
contos) e que foi a venda do filme para uma estação televisiva do Canadá (rendeu 4.000
dólares) que ajudou a equilibrar o orçamento, mas sem o pagar na totalidade.
No início da década de 1970, Cunha Telles voltaria a ter também um importante
papel nos sectores da distribuição e da exibição, criando a distribuidora Animatógrafo e
assumindo a programação do cinema Universal. Primeiro ocupando as designadas salas
de arte e ensaio e depois o Universal. Cunha Telles torna-se possível o contacto do
público português com os filmes clássicos e com as mais revolucionárias, alternativas e
militantes obras que o cinema mundial produzia (Lauro António apud Mozos, 2014: 17).
375
O caso das Produções António da Cunha Telles é exemplar para demonstrar a
necessidade de refazer a história do cinema português neste período, procurando olhar
o objecto de uma forma inédita, atendendo a diversos factores contextuais até aqui
pouco ou nada considerados. É necessário e urgente rever as fontes no estudo da
história do cinema português, lê-las criticamente e questionar várias ideias-feitas ou
mitos instituídos pela crítica ou por escritos sobre cinema produzidos por autores
“comprometidos“ com o próprio objecto de estudo. Esse trabalho é fundamental para
analisar e compreender, em detalhe e na sua complexidade, os modos de produção do
cinema português nos anos 60, um período de profundas alterações técnicas e
tecnológicas no meio cinematográfico em que esses aspectos teriam uma grande
influência na forma de ver e fazer cinema.
3.4.4. Radicalismo e experimentalismo
Os três filmes que Jean-Luc Godard realizou em 1966 — Masculin féminin; Made in
USA; 2 ou 3 choses que je sais d'elle — anunciavam já o clima de radicalização política e
de agitação social que se vivia nas sociedade ocidentais por esses anos. Nos anos
seguintes, com filmes como La Chinoise (1967), Week End (1967) ou Le vent d'est
(1970), Godard protagonizaria uma viragem radical no cinema moderno, explorando
outras formas de representação e de realidade (Kovács, 2007: 349-350).
O clima de agitação social e política culminaria com uma série de acontecimentos
em 1968: crescimento do movimento estudantil nos Estados Unidos e em França, greves
e manifestações de operários na Polónia, reformas económicas na Hungria, reformas
políticas na Checoslováquia e consequente intervenção militar soviética, contestação à
Guerra do Vietname, entre outros. No cinema, o caso Langlois144 e o consequente
boicote no festival de Cannes de 1968 foram dois dos momentos mais simbólicos dessa
agitação.
Emergia então uma nova cultura de esquerda radical que valorizava a ideia de
auto-determinação e emancipação dos indivíduos das instituições tradicionais e a
propagação de um conjunto de ideias e atitudes influenciados pelas teorias marxistas e
144
Em 1968, o Ministro da Cultura francês André Malraux retirou todos os fundos públicos à instituição
numa tentativa de afastamento de Henri Langlois da direcção da Cinemateca Francesa, um dos seus
fundadores em 1936. A pressão ministerial mobilizou a Esquerda francesa e agregou nomes como
Truffaut, Godard, Rivette ou Roland Barthes.
376
psicanalíticas, assim como a rejeição da estrutura social e das relações de poder
tradicionais (Ibidem: 352-353). Robert Stam (2006: 152) ressalta que esta “Nova
Esquerda“ que derrubou o regime de Charles de Gaulle em França e que se distinguia da
“Velha Esquerda“ por ser “antiautoritária, socialista, igualitária e antiburocrática“ e por
incorporar novas teorias como a psicanálise, o feminismo e o anticolonialismo numa “
crítica abrangente de alienação social“.
Robert Stam (Ibidem) filia o pensamento cinematográfico desta “Nova Esquerda“
em debates teóricos anteriores (Eisenstein, Vertov, Pudovkin, Brecht, Benjamin,
Kracauer, Adorno, Horkheimer) e recuperando alguns: “o de Eisenstein e Vertov sobre o
experimentalismo no cinema, o de Brecht e Lukács sobre o realismo e o de Benjamin e
Adorno sobre o papel ideológico dos meios de massa“.
Surgem então, um pouco por todo o mundo, movimento de renovação
extremamente politizados e radicalizados: o Tercer Cine na Argentina, o Cinema Novo no
Brasil, a Nueva Ola no México, o Neues Deutches Kino na Alemanha, o Giovanne Cinema
em Itália, o New American Cinema nos Estados Unidos e o New Índian Cinema na Índia
(Ibidem: 154).
Para Michael O'Pray (2003: 69), foi este o momento em que as novas vagas se
reaproximaram-se das vanguardas depois de uma série de concessões iniciais —
conservadorismo formal e narrativo, uso de actores profissionais e estrelas de cinema,
orçamentos avultados, a institucionalização de um circuito de exibição — que
descaracterizaram esses movimentos na transição da crítica para a prática
cinematográfica.
Peter Wollen chamaria esta tendência de “contra-cinema“ (counter-cinema),
referindo-se concretamente a um conjunto de filme surgidos a partir da segunda metade
da década de 1960, que apresentavam em comum uma contestação ao cinema clássico
ou dominante (mainstream, simbolicamente representado pela indústria de Hollywood e
da Mosfilm145) e às suas formas e linguagens dominantes (Kuhn & Westwell, 2012: 9899).
Godard foi o cineasta mais radical e assumiu informalmente a liderança simbólica
desta viragem, mas muitos outros cineastas contribuiriam para a radicalização do
145
Estúdio de cinema russo, apontado por muitos autores como a mais antiga cidade cinemática da
Europa, remontando a 1920. Durante a União Soviética, a Mosfilm tornou-se um símbolo da produção
cinematográfica soviética, acolhendo diversos cineastas soviéticos (Eisenstein, Kuleshov, Pudovkin,
Tarkovsky, entre outros) e estrangeiros (Akira Kurosawa, Vittorio de Sica, entre outros). Após a
condenação da política estalinista, a Mosfilm passou a ser vista pela Esquerda mais radical como um
símbolo da industrialização e normalização da produção cinematográfica.
377
discurso e da prática cinematográfica desse “contra-cinema“ ou “anti-cinema“: JeanMarie Straub, Jean-Pierre Gorin (que formou, com Godard, o Grupo Dziga Vertov), Pier
Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Dusân Makavejev, Chris Marker (que liderava o
colectivo Medvedkine), Costa-Gravas, Marguerite Duras, Rainer Werner Fassbinder,
Fernando Solanas, Humberto Soiás e Sergio Giral.
No entanto, enquanto o surgimento do modernismo cinematográfico no final dos
anos 50 era sobretudo alimentado pela história da arte e do próprio cinema, esta
atmosfera política e social muito particular do final dos anos 60 teria um impacto
determinante no cinema moderno e na sua reconfiguração em modernismo político:
“(...) While the beginning of modernism was driven by
influences coming from within the art world and film history itself, the
main determining factor of the second phase of modernism was rather
the ideological and political environment. Basically no sectors of art
cinema remained intact from the influence of the 'new reality' around
it, although the different responses of these trends varied widely.
However, when I use the term 'political modernism' to describe this
period, it is not only to refer to the direct impact of politics on modern
cinema but also to designate a more self-conscious, ideologically
based filmmaking style that dominated this period as opposed to the
more emotional, subjective, or instinctive attitude of the first period.
All the trends of the period of political modernism derive from
the same basic experience of the mid-1960s: not only traditional forms
of representation became void but perceived reality also started to
change dramatically around cinema. Cinema of the 1950s was obsolete
but so was the reality of the 1950s. The common experience of the
mid-1960s as reflected in modern cinema was that a certain sense of
reality had disappeared. There was a strong sense of radical
transformation, which at the same time could not be formulated in
solid sociological and economic facts like at the time of neorealism.
The only support the filmmaker had was his own imagination or
ideology about what kind of reality was about to come into being. That
same recognition led Godard to say in 1965, 'Nothing has been made
yet. Everything remains to be done'.
There is more to this idea than the romantic egocentrism of the
modernism of the early sixties. There is the recognition that the
auteur is not only the master of a work of art but also the auteur of a
certain coherent vision of reality - an alternate universe of which the
work of art is the most authentic expression. The auteur is not only the
center of the film but also the focus of a reality envisioned in the film.
The auteur is not only making a film but he has to create a whole
universe of his own, whether constructed of factual or imaginary
elements. These universes are not meant to be 'real' in the sense of
empirical experience, they are rather meant to stand for the 'real'.
This idea was not independent from the vast trend of conceptual art
taking shape just about the same period, which is why we can give
another name to this period: conceptual modernism.“ (Ibidem: 355356).
378
Kovács (2007: 356) identifica ainda quatro importantes pontos que alterariam a
forma de entender o cinema moderno europeu e que estariam em diversos filmes
produzidos depois de 1967: o cinema teria de reconstruir o próprio conceito de
realidade; o cinema poderia ser usado como um ameio de acção política directa; a
narração cinematográfica passou a ser uma forma de transmitir um discurso autoral e
conceptual; e o artista deve criar o seu próprio universo ideológico e mitológico.
Em suma, Kovács divide este contra-cinema em duas fases, uma primeira de
radicalização das formas do cinema moderno (1967-71) e uma segunda de dissolução de
qualquer herança do paradigma moderno (1972-75):
“From a stylistic point of view, this period could be divided into
two parts. The first part dates from 1967 until around 1971, and the
second from 1972 until the end of the decade. The period of the late
sixties is predominantly characterized by various forms of modernist
radicalism, while the seventies by the slow dissolution of the
modernist paradigm. It was a return of the classical paradigm on the
one hand, and the slow transition of modernism into postmodernism
on the other. Until about 1975, we can still speak about the hegemony
of the modernist movement in European art cinema. That will no
longer be the case by the end of the decade, when pure modernist
forms become extremely rare. In the third period of late modern
cinema we can see the dominance of different forms of ornamental and
theatrical styles. The minimalist form is represented by Chantal
Ackerman and Marguerite Duras alone, but after 1975 the ornamental
and theatrical forms are also very scarce. Different forms of naturalism
disappeared almost completely, with Hungarian cinema as the
exception, but this continuation was for predominantly political
reasons.“ (Ibidem: 382)
Em mais que uma entrevista, ouvi o realizador António de Macedo usar a
expressão “filmes de desespero“ para classificar um conjunto de três filmes – o seu Nojo
aos cães, O cerco (António da Cunha Telles, 1969-70) e Uma abelha na chuva (Fernando
Lopes, 1968-70) – que foram produzidos sensivelmente na mesma época (entre 196872) e que atravessaram penosas condições de produção. Segundo Macedo, foram mesmo
concebidos com um mesmo espírito de revolta perante o panorama do cinema português
de então. Nas palavras do próprio Macedo (apud Queiroga, 1998), estes filmes foram
“feitos com ‘sangue, suor e lágrimas de quem os dirigiu e dos directos colaboradores’,
sacrifícios apenas mitigado pelo contributo de empresas a que os cineastas estavam
ligados.“
Decidi recuperar a expressão de “filmes do desespero“ para a aplicar a um outro
corpus fílmico. Por a considerar mais adequada, prefiro relacionar a expressão “filmes do
desespero“ a um conjunto de quatro filmes produzidos entre 1968 e 1973 que
379
assinalaram o momento de maior radicalidade e experimentação estética no percurso do
Novo cinema português: Uma abelha na chuva, Nojo aos cães, Pousada das chagas (Paulo
Rocha, 1971-72) e A sagrada família: fragmentos de um filme-esmola (João César
Monteiro, 1973).
Do corpus proposto por Macedo, decidi excluir O cerco para esta minha
classificação porque, apesar de ser um filme feito com “sangue, suor e lágrimas“, penso
que não opta abertamente pela radicalização estética enquanto estratégia criativa, mas
antes por mecanismos de rentabilização financeira – como a inclusão de product
placement, por exemplo – e na conquista do gosto do grande público. Do mesmo modo,
decidi incluir duas curtas-metragens, injustamente ignoradas, de dois dos cineastas
mais experimentais do Novo cinema português, precisamente porque são dois dos filmes
mais radicais e experimentais deste período.
Começo por Uma abelha na chuva, o primeiro em termos cronológicos:
“A ‘Abelha na chuva’ é o filme que eu fiz auto-financiado, com a
colaboração de amigos. Portanto, eu fiz o filme que quis fazer, na
minha cabeça e um pouco, digamos, frustrado com o não-êxito
comercial do ‘Belarmino’. Eventualmente, se o ‘Belarmino’ tivesse sido
um êxito comercial, eu não teria feito aquela ‘Abelha na chuva que fiz.
Então, se é para ser radical, vamos ser radicais até ao fim!“ (Fernando
Lopes apud Queiroga, 1998).
Depois de Belarmino, Fernando Lopes surpreendeu com uma obra muito distinta
da sua primeira longa. Como sustenta José Manuel Costa (Cinema Novo Português, 1985:
131), esta evolução foi muito natural no contexto das novas vagas europeias, seguindo
um caminho radicalizado na oposição à narrativa clássica americana e à interpretação
naturalista.
A produção de Uma abelha na chuva, a partir da obra homónima de Carlos de
Oliveira, começou em 1968, na ressaca da falência das Produções António da Cunha
Telles, e prolongar-se-ia até 1972. Das inúmeras dificuldades de produção, a falta de
dinheiro foi a mais significativa e ditou a adopção de uma estratégia experimental por
parte do seu realizador-produtor: a rodagem e montagem do filme foram sendo
intercaladas pela produção de pequenos filmes publicitários que asseguravam a
subsistência da empresa Média Films. O moroso processo de montagem favoreceu o
espírito de experimentação e o desejo de desafiar as convenções.
Fernando Lopes desmontou o enredo da obra de Carlos de Oliveira – eliminando
personagens e grande parte das contextualizações geográficas e sociológicas, e
reinventou a obra de uma forma surpreendente. As experimentações também se
380
verificam ao nível da banda sonora, apostando recorrentemente no desfasamento entre
a imagem e o som.
Com Uma abelha na chuva, Fernando Lopes (Jornal de Letras e Artes, 274, III1970: 25) pareceu assumir um risco justificado pelo “desespero“: “Apostámos
sinceramente em filmes muito pessoais, sem nos importarmos que viessem a atrair 8 ou
80 espectadores“.
O segundo filme que quero tratar é Nojo aos Cães:
“Eu próprio fiz o Nojo aos cães também nessa situação de
desespero, em que eu disse: ‘Vou fazer um filme da minha própria
revolta!’ Portanto, até contrariando, em certa maneira as minhas
próprias convicções de que o filme tem de ser, naturalmente a
expressão do seu autor, mas também tem que ser um cinema que o
público possa ver agradavelmente e possa ver sem problemas, que não
afaste o público.“ (António de Macedo apud Queiroga, 1998).
Nojo aos cães é uma obra totalmente independente de constrangimentos
económicos ou comerciais, tendo sido produzido sem qualquer subsídio oficial ou
mecenato na Fundação Calouste Gulbenkian. Tal como Uma abelha na chuva, este filme
foi um projecto pessoal do realizador que o concretizou entre outros trabalhos de
carácter mais técnicos, como os filmes institucionais e publicitários.
Por dificuldades financeiras, Macedo decide rodar o filme em película positiva –
que significava menores custos que a película negativa – o que dava ao filme um efeito
estético inovador. Como conta o realizador, estas experiências pictóricas começaram por
volta de 1962 e haviam sido já experimentadas em Domingo à tarde (Macedo, 2007: 5).
Para além dos materiais, o pendor experimentalista do filme também está presente
no “uso desarticulado de registos visuais e sonoros“ e a montagem cria um efeito de
“distanciação-precaridade“.
O filme foi considerado “perigoso e contrário aos interesses nacionais“ e a sua
exibição foi proibida pela censura até 1974. Apesar de proibido pela censura, Macedo
consegui uma autorização excepcional para participar no Festival de Bérgamo de 1970,
para o qual foi seleccionado.
O terceiro filme do desespero é Pousada das Chagas. Encomenda da Fundação
Calouste de Gulbenkian, trata-se um filme bastante representativo de uma transição de
paradigma estético verificado Novo cinema português na viragem para a década de
1970, onde sobressai de forma clara e definitiva a rejeição das influências formais e
estética do neo-realismo e da nouvelle vague.
381
Apesar da encomenda ser para realizar um filme promocional da colecção de arte
do museu de arte sacra de Óbidos, Rocha constrói um complexo processo de reflexão
sobre as fronteiras do documentário e da ficção que constituiria o início de um processo
de mudança na cinematografia do cineasta.
Confessando alguma desilusão e descrença no cinema clássico após a realização de
Mudar de Vida, Paulo Rocha iniciou as suas experiências formalmente mais radicais com
Sever do Vouga... Uma Experiência (1970), um projecto que contou com a colaboração de
Fernando Lopes e Manoel de Oliveira. Encomenda da Shell Portuguesa, o documentário
deveria retratar uma cooperativa agrícola local, mas Rocha interessa-se mais por uma
abordagem etnográfica e antropológica sobre o quotidiano, os gestos e as palavras dos
locais.
Mas A Pousada das Chagas foi uma experiência mais radical:
“Enchi os bolsos com bocados de papel — citações de Rimbaud,
Légende Dorée, Camões, Lao-Tse — e fui para Óbidos filmar
conjuntamente com Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, pessoas de
talento quase insolente. O que emergiu foi um ‘drama sacro’
modernista, uma colagem de vozes, textos, objectos, espaços,
pulsações. Corpos que ardem, que sofrem, que irradiam energia“.
A desilusão com o cinema narrativo clássico fez de A Pousadas das Chagas uma
complexa experiência em termos formais: Rocha optou por fundir (o termo que ele usou
foi “processo de colagem“) inúmeras referências artísticas e culturais que interessavam
ao cineasta e que ele também explorava em termos visuais e performativos. Uma das
particularidades do filme é a colaboração de Jorge Peixinho na banda sonora, também
contribuindo como elemento importante nas “colagens“ que o filme experimenta.
Depois da guitarra virtuosa de Carlos Paredes, Paulo Rocha assegurou a colaboração do
compositor vanguardista que, com o seu percurso experimental, também oferecia novas
formas sonoras para o seu cinema. O cineasta confessa mesmo que Stockhausen e as
suas “colagens“ foram umas das principais influências na concepção do projecto.
Este filme marcaria também o primeiro encontro entre Paulo Rocha e Luís Miguel
Cintra, um actor que se tornaria uma referência máxima do cinema de Manoel de
Oliveira, João César Monteiro e do próprio Paulo Rocha. Figura tutelar do grupo
independente Teatro da Cornucópia, que fundaria com Jorge Silva Melo em 1973, Luís
Miguel Cintra era, à data da rodagem d’A Pousada das Chagas, um jovem actor de teatro
com reduzida experiência cinematográfica (contava apenas com a presença apenas na
curta Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), realizada por João
382
César Monteiro). Apesar dos seus 22 anos de idade, Cintra acumulava já uma
interessante experiência em teatro, desde dos tempos dos grupos de teatro universitário
até à frequência da Bristol Old Vic Theatre School, uma prestigiada escola britânica de
formação teatral. Quanto a Jorge Silva Melo, o outro fundador da Cornucópia, participou
no filme como assistente de realização. E tal como Cintra, Silva Melo também manteria
uma prolífica colaboração com Paulo Rocha: foi seu actor em A Ilha dos Amores e coargumentista de O Desejado; convidou Rocha para ser figurante na sua primeira obra pra
cinema, Passagem ou a Meio Caminho (1980). Esta presença de pessoas ligadas à
Cornucópia parece-me marcar também uma aproximação do cinema de Rocha às formas
de representação teatral que seria mais visível a partir d’A Pousada das Chagas e nos
filmes “japoneses“.
De certa forma, apesar de algumas experiências formais tentadas nos filmes da sua
fase japonesa, Paulo Rocha retomaria as experiências mais radicais na sua
cinematografia com Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989). Complexo e falso
documentário sobre a obra do artista modernista Amadeo de Souza Cardoso (18871918), Rocha prossegue as suas experiência de fusão (ou de “colagem“) envolvendo
diversos registos artísticos, nomeadamente a pintura, a poesia e a performance.
Rocha explora os diversos materiais artísticos e pessoais (cartas, diários,
fotografias) de Amadeo — um pouco à semelhança do que António Reis fizera em Jaime
(1974) — mas cruza-os com momentos ficcionais (“documentários culturais faz-me
pavor, eu gosto é de actores...“), livremente inspirados em alguns desses materiais, num
trabalho interessante de reterritorialização da obra modernista de Amadeo de Souza
Cardoso, estabelecendo novas leituras e relações entre o homem, a obra e o meio.
Entre os experimentalismos da Pousada conta-se: um gosto barroco da cor, uma
excessiva preocupação cénica e uma interpretação demasiado teatral. Paulo Rocha
resumiria estas experiências a uma tentativa de promover uma estética do excesso que
segue os mecanismos da arte moderna e que denota uma clara influencia do cinema de
Glauber Rocha.
Paulo Rocha havia conhecido Glauber Rocha em Cannes (1964) e voltariam a
encontrar-se em Acapulco (1965) e Montreal (1967). Tal como conheceu Glauber, Paulo
Rocha conhecera dezenas de outros jovens cineastas de vários pontos do mundo, mas
com o baiano houve uma atração recíproca. Os constantes encontros aproximam-nos,
mas o encontro em Acapulco foi, decisivamente, o mais intenso:
383
“A vinda do Geraldo del Rey para fazer o papel de Adelino vinha
da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema
novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e
meia encontrávamo- nos, ora em Paris, ora em festivais. Eu estava em
Acapulco com os Verdes quando lá apareceu como produtor dos Fuzis.
Ficou no meu quarto, discutíamos a noite inteira.“
Paulo Rocha vira em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) uma semelhança com o
teatro japonês clássico, mas também o lado literário do filme e a sua intensidade visual
que se aproximava do Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira. Mas o jovem
cineasta português apreciava sobre tudo o lirismo anti-racional que impunha às suas
representações populares e do mundo rural de onde era originário. Paulo Rocha ficara
fascinado e identificava-se com muitas dessas ideias.
Em Acapulco passaram dez dias juntos e acabaram a partilhar o quarto, enquanto
Glauber estava a preparar Terra em Transe e partilhava todo o tipo de pensamento com
Paulo Rocha. Mudar de Vida iria ser influenciado por essas conversas, desde logo com a
escolha de Geraldo del Rey, o actor glauberiano que encarnava toda a violência e
visualidade do nordeste brasileiro, para protagonista da história de amores trágicos no
meio dos pescadores do Furadouro.
Para M. S. Fonseca (Cinema Novo Português, 1985: 123), uma das principais
características de Pousada das chagas é uma “cada vez mais expressa consciência da
forma e matéria cinematográfica (…) que implica um – também consciente e
premeditado – decréscimo da comunicação com grandes públicos“.
Finalmente, A sagrada família: fragmentos de um filme-esmola (1971-72) foi a
terceira obra de João César Monteiro – depois da encomenda Sophia (1968) e do
projecto pessoalíssimo Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970),
subsidiado parcialmente pela Fundação Calouste Gulbenkian.
A sagrada família é mais uma obra experimental que segue o caminho traçado em
Quem espera…, mas desta feita mais intimista e com uma atitude mais radical e
provocadora, mesmo ofensiva em relação aos próprios espectadores.
Sobre este filme, M. S. Fonseca (Ibidem: 134) afirmaria: “A sagrada família é talvez
o único filme português feito de raiva. A depuração formal é extrema e corresponde, de
resto, a igual depuração temática, se é que faz algum sentido estar separar uma e outra
num filme além dos limites como é este.“
O radicalismo do filme era tão consciente que João César Monteiro, apesar de ver
concluída a rodagem vários meses antes da revolução de 1974, decidiu preservar o filme
384
e não arriscou sequer submetê-lo ao visionamento do exame prévio. O filme acabaria por
ser exibido publicamente apenas depois do fim da ditadura, em 1975.
Já na sua experiência cinematográfica anterior – onde a censura pretendia impor
vários cortes a Quem espera… – o cineasta optara por recusar as “sugestões“ da censura,
ainda que isso significasse a não exibição do filme. Esta opção de Monteiro demonstra
exemplarmente que estes “filmes de desespero“ eram produzidos para uma espécie de
catarse do seu autor e não admitiam qualquer espécie de intervenção exterior – quer das
características do mercado cinematográfico quer da acção da própria censura.
Em suma, César Monteiro parece-me resumir exemplarmente o espírito dos
cineastas por detrás destes “filmes do desespero“:
“Só me interessa fazer filmes onde o grande centro seja o meu
umbigo – que não é notável –, sem público, fora do público, contra o
público, de preferência em casa e em sítios da casa, como a banheira, a
cama e a retrete. […] O público, para mim, não existe. […] Quando
tiver de fazer um filme para o público, acho que faço um filme
pornográfico e espectacular“ (João César Monteiro apud Cinema Novo,
17, III-VII-1981: 20).
Apesar de excessiva e radical, esta declaração de João César Monteiro expressa de
forma inequívoca e transparente uma importante fase do novo cinema português, uma
fase transitória entre as Produções António da Cunha Telles e a criação do Centro
Português de Cinema.
O principal motivo do fracasso comercial das Produções Cunha Telles terá sido o
não-convencimento de um grande público que, alegadamente, era detentor de uma
menor cultura cinéfila. No período do novo cinema, quem ditava o sucesso comercial de
um filme não era o público cinéfilo, mas o grande público composto maioritariamente
por espectadores da classe média urbana que, décadas antes, sentenciava o sucesso da
comédia à portuguesa. Faltou talvez um apelo ao espectador convencional,
depositando-se imensa expectativa nos espectadores tidos como mais “esclarecidos“
que, reflectindo as discussões internas do novo cinema, não correspondeu
massivamente ao apelo (Cunha, 2007: 357).
Apesar do sucesso pontual de algum filme específico, esta derrota sempre foi
assumida como o “calcanhar de Aquiles“ do novo cinema: “não tanto pela não entrada
de dinheiro (as receitas de bilheteira, num mercado reduzido como o português, nunca
mais voltarão a poder cobrir os custos de um filme, com valores crescentes a partir dos
anos setenta), mas pelo défice de legitimação, que se irá acentuando“ (Monteiro, 2000:
335).
385
Ironicamente, foi o fracasso comercial das primeiras propostas fílmicas que parece
ter convencido a generalidade dos cineastas que a sua existência teria de ser garantida à
margem das leis do mercado. Esta consciência de uma posição de marginalidade perante
o mercado cinematográfico potenciou uma prática fílmica mais voltada para o
radicalismo e o experimentalismo.
A partir de 1968, o moroso processo de formação da cooperativa de produção
Centro Português de Cinema permitiu a esta nova geração de cineastas “fazer filmes em
cuja concepção a conquista de um público não pesava, ou se quiserem não era um
elemento vital“. Como lembra Fernando Lopes (1985: 66), o que mais interessava à
geração do novo cinema “era a presença em Festivais e a reacção da crítica
internacional. Julgávamos que os filmes acabariam por se impor de fora para dentro“
(Ibidem).
Progressivamente, a nova geração de cineastas passou a ter outro público de
referência que não o português. As boas recepções internacionais de alguns filmes dos
anos 60 parece ter convencido a apostarem definitivamente na internacionalização dos
seus filmes. Ao contrário do grande público português, que estava condicionado por
décadas de censura cinematográfica e de isolamento cultural sentenciados pela ditadura
salazarista, os jovens cineastas português acreditavam que o público cinéfilo
internacional estaria preparado para receber e aceitar as novas propostas fílmicas,
viabilizando financeira e esteticamente o novo cinema português.
3.5. Uma terceira via?
Em Outubro de 1963, Luís de Pina assinava um editorial na revista Filme onde
alertava para um fenómeno recente e para uma confusão que parecia ocorrer no meio
cinematográfico português da época em tornos de ideias como moda e modernidade,
novidade:
“Abundam, nos domínios da arte cinematográfica, exigências
de modernidade e progresso. 'O cinema tem de reflectir o seu tempo
com as formas e os conceitos desse mesmo tempo' – afirma-se. E assim
é. Os problemas de cada época são diferentes, vão-se modificando de
acordo com a evolução natural do homem e da sociedade, dentro de
uma linha imutável de valores que lhe cumpre acatar e estimular para
sua melhoria espiritual. O homem de hoje nada tem que ver – excepto
no essencial – com o homem do séc. XIX e por isso também a arte de
hoje não pode ser igual à do século anterior. O retrato que nos dá
386
desse homem é diferente, quer no objecto em si quer na forma de o
apresentar.
Para o homem novo, consequentemente, arte nova. Para o
homem moderno, arte moderna. Mas esta modernidade terá de
significar progresso interior, humano, espiritual, adiantamento em
relação aos cânones estéticos e filosóficos anteriores. Tem de depurar,
aprofundando, a existência do homem, as suas inquietações e anseios.
Depuração e aprofundamento temporal e no espírito, caminho de
transcendência.
Nestas duas operações do espírito é importante saber
reconhecer a autenticidade do verdadeiro progresso. Pois já não é
progresso admitir como modernos, como actuais, conceitos e formas
artísticas semelhantes às do passado. Torna-se necessário pesar as
experiências, analisar as tentativas, julgar os resultados para
sabermos se estamos em face de uma autêntica modernidade, de um
autêntico progresso estético. Acontece, porém, nos tempos de hoje,
que todas essas aspirações à 'novidade' se sucedem, como afirmou há
pouco A. Lopes Ribeiro, 'em ritmo tão vertiginoso que não lhe deixa
tempo para a analisar convenientemente, passando-lhe as
desvantagens em face das vantagens, os defeitos em relação às
qualidades, quantas vezes apenas aparente'. É assim, muito daquilo
que nos é anunciado como modernidade, como progresso, não passa
de moda.
Ora a moda pode muitas vezes voltar ao passado, não diz
respeito às inquietações e aspirações fundamentais do homem-artista,
mas sim a um comando orientado do gosto capaz de ser copiado e
limitado, mas nunca susceptível de gerar conceitos e formas
verdadeiramente originais e válidas em relação ao que veio de trás,
correspondentes a exigências profundas da evolução do pensamento
humano. A moda reflecte o presente, a modernidade antecipa o
futuro. Por isso exige reflexão, estudo, julgamento sério, sensato e
reservado, para que se possam colher os seus fecundos frutos. A moda
faz a sua época e passa, a modernidade projecta-se sempre nos tempos
futuros, é elo e uma cadeia.
Eis porque não devemos ir atrás de modas culturais, tantas
vezes impingidas, tantas vezes mascaradas, tantas vezes falsas, mas
que o público aceita como tal 'porque é bom andar na moda'. Saber ser
moderno, sabendo recusar a moda, é manter-se na permanência dos
valores que fazem a verdadeira arte, ontem como hoje.“ (Filme, 55, X1963: 1)
No cerne do problema parecia estar uma série de produções que denotavam uma
aparente preocupação com a adopção de um estilo moderno, que rompesse com a
produção convencional no cinema português, mas que segundo Pina estariam longe de
uma “autêntica modernidade“ e mais próximos de uma qualquer moda efémera que
copia modelos do passado e os tenta reactualizar, reflectindo o presente mas mostrando
clara incapacidade de antecipar o futuro.
Apesar de ainda não ser a modernidade que chegara anos antes a outras
cinematografias e que começavam a ter eco em Portugal, é possível identificar um corpus
387
fílmico que surge no início da década de 60 que procura renovar o cinema português de
então “a partir de dentro“, ou seja, que parece aperceber-se que está a ficar obsoleto e
ultrapassado e que tenta alterar algumas fórmulas para garantir a sua própria
sobrevivência.
São alguns desses casos que procuraram uma terceira via no cinema português,
um tipo de cinema que pudesse ter “qualidade artística“ sem abdicar da sua natureza
comercial e de meio privilegiado de entretenimento, que pretendo analisar nas próximas
páginas, procurando identificar estratégias produtivas, criativas e comerciais e analisar
processos de afirmação de uma renovação estética. Como ressalvaria Leonor Areal
(2008: 385), tratam-se de filmes que “mesmo alinhado[s] com o poder financiador e
com a moral de estado, não estava[m] alheio[s] ao ar dos tempos, e propiciou outros
desvios (...)“.
Trata-se, naturalmente, de um corpus fílmico geralmente desconhecido, ignorado
ou menosprezado nas histórias mais convencionais do cinema português, mas que me
interessa abordar aqui precisamente como sintoma de uma vontade de renovação que
marcou indelevelmente esse período e que também parecer ter influenciado o próprio
cinema comercial.
“Mas o espírito do cinema novo português influenciou os
próprios realizadores comerciais, os próprios veteranos, tal como na
França os temas e os processos da 'nouvelle vague' se fizeram sentir
em cineastas como René Clement ou Marcel Carné.
Augusto Fraga, em 'Raça', e 'Um dia de vida' e Constantino
Esteves, em '9 rapazes e um cão', dão uma atmosfera diferente, mais
séria e mais actual ao seu cinema, numa linha de rumo que provém
directamente do cinema novo.
'9 rapazes e um cão' de Constantino Esteves, tem uma história
populista, prejudicada talvez pelo excessivo tom melodramático. Mas é
um filme que redime em parte o autor do comercial 'Miúdo da Bica' e
traz de novo para o cinema português, um grupo de intérpretes
infantis, absolutamente, na linha e na melhor tradição do 'AnikiBóbó', que o mesmo é dizer, do cinema novo português.“ (Celulóide,
IV-1964: 8)
Durante os anos 60, foram várias as figuras do “velho cinema“ que não ficaram
indiferentes aos ventos de mudança que sopravam da Europa e que contribuíram para
uma mudança radical da forma de ver e entender o cinema e a cinefilia. Três dos
produtores mais emblemáticos do “velho cinema“ e um caso mais irreverente tentaram
renovar a sua actividade, experimentando fórmulas diferentes que pretendo abordar de
seguida.
388
3.5.1. Manuel Queiroz, Francisco de Castro e Felipe de Solms
Manuel Queiroz começou a trabalhar em cinema na Lisboa Filme, em 1946, para
onde foi trabalhar como chefe de escritório e, mais tarde, como auxiliar da gerência
(Ramos, 1989: 321). No final dos anos 40 começa a produzir documentários, mas só na
década seguinte passaria a director de produção de longa-metragem, com O Noivo das
Caldas (1956, Arthur Duarte) e Perdeu-se um marido (1957, Henrique Campos). Sairia da
Lisboa Filme em 1957 para se estabelecer como produtor independente (Ibidem). A
experiência não seria duradoira, mas produziria três longas-metragens com o realizador
Augusto Fraga: Sangue Toureiro (1958), O Tarzan do 5.º Esquerdo (1958) e O Passarinho
da Ribeira (1959).
Em 1960-61 trabalha como gerente de distribuição na Filmes Castello Lopes
(Ibidem), mas mantém a sua actividade como director de produção em filmes como Raça
(1961, Augusto Fraga, com produção da Imperial Filmes), A Ribeira da Saudade (1961,
João Mendes, prod. Felipe de Solms) e O Milionário (1962, Perdigão Queiroga, com
produção de Felipe de Solms) (Ibidem).
Em 1962, Manuel Queiroz funda a Cinedex, que produziria 10 longas-metragens
em 3 anos: Um Dia de Vida (1962, de Augusto Fraga) Pássaros de Asas Cortadas (1962, de
Artur Ramos), O Miúdo da Bica (1963, de Constantino Esteves), 9 Rapazes e 1 cão (1963,
Constantino Esteves), Uma Hora de Amor (1964, Augusto Fraga), A Última Pega (1964,
Constantino Esteves), Um Cão e dois destinos (1964, Alain Bornet), Rapazes de Táxis
(1965, Constantino Esteves), 29 Irmãos (1965, Augusto Fraga) e A Voz do Sangue (1965,
Augusto Fraga).
Em 1965, em dificuldades financeiras que deixariam inacabado o filme Férias em
Portugal, Queiroz extinguiu a Cinedex e partiu para Angola. Regressaria a Portugal dez
anos depois, em 1975, para retomar a actividade como director de produção em A
Recompensa (1976, Artur Ramos). Em 1978 seria um dos fundadores da cooperativa
Forum, onde produziria vários documentários de “cariz político e de temática
industrial“, a série para televisão Retalhos da Vida de um Médico (1978-79, Artur Duarte)
e A Noite e a Madrugada (1985, Artur Ramos) (Ibidem: 321-322).
Segundo Leitão Ramos (1989: 322), Queiroz foi “um dos mais importantes
produtores de um cinema rasteiro, fotonovelesco e nacional-cançonetismo, cujo êxito
comercial era quase sempre certo nas salas do Odeon ou do Eden.“ A sua estratégia era
389
aproveitar a popularidade de figuras da rádio para protagonizar os seus filmes,
garantindo um aparente retorno financeiro como um tipo de “cinema degradado e
reaccionário“: Tony de Matos em Rapazes de Táxis, António Calvário em Uma Hora de
Amor e Rapazes de Táxis, Fernando Farinha em O Miúdo da Bica e A Última Pega, e Amália
Rodrigues e o toureiro Diamantino Viseu em Sangue Toureiro.
Naturalmente, o filme de género musical seria uma das principais apostas de
Queiroz. O primeiro seria O Miúdo da Bica, inspirado na biografia do próprio Fernando
Farinha, o protagonista do filme e vedeta do fado:
“As canções são evidentemente o prato forte deste filme e o seu
atractivo, para além do pitoresco do bairro da Bica e das vistas de
Lisboa diálogos, fortemente carregados de mensagens moralizadoras
conformista e atrasado uma série de clichés quase idiotas o
conformismo e o reaccionarismo expresso nos filmes situacionistas,
um conformismo estranhamente maior que o dos filmes dos anos 30 e
40, onde as questões de moralidade estão muito presentes, mas o
maniqueísmo é menor“ (Areal, 2008: 239).
No ano seguinte seria a vez de António Calvário protagonizar Uma Hora de Amor.
Repetindo a fórmula de “sucesso“ (comercial) do filme anterior, Queiroz contratou
Calvário no auge do seu mediatismo e sucesso: havia sido coroado Rei da Rádio e
vencido recentemente o Festival RTP da Canção, participando consequentemente no
Festival da Eurovisão em representação de Portugal. O par amoroso do filme era
composto com Madalena Iglésias, que aqui também se estreava no cinema e que também
conquistara grande sucesso na rádio e televisão. A narrativa do filme, muito simples e de
tom melodramático, centra-se na trajectória de um trabalhador fabril que é descoberto
por um empresário que o lança como cançonetista, que se envolverá num triângulo
amoroso com uma artista de rádio e tv e uma amiga que adoece gravemente.
No ano seguinte, Calvário voltaria a protagonizar outro filme do género. Apesar da
aparência, Rapazes de Táxis “não é propriamente policial, mas principalmente moralista
em relação à regulação das relações entre patrão e empregados“, construindo-se numa
esquema de filme musical. Curiosamente, apesar de um “irrealismo que tem um estatuto
de fantasia musical, não motivada diegeticamente“, o filme desenrola-se no universo da
pequena burguesia que é mostrado com algum realismo (Ibidem: 193).
Baseado numa opereta homónima e protagonizado por António Silva, O Passarinho
da Ribeira é uma comédia que gira em torno de peripécias relacionadas com esquemas
de contrabando e um caso de reconciliação familiar, sempre pontuado por momentos
musicais.
390
A comédia, ao estilo da revista do Parque Mayer, foi outro género popular entre as
produções de Manuel Queiroz. Protagonizado por Raul Solnado, popular actor de revista
à época, O Tarzan do 5.º Esquerdo aborda as peripécias de um casal recém-casado que se
envolve num esquema pouco ortodoxo para conseguirem sucesso nos negócios.
O western ribatejano, valorizando a “valentia dos homens ribatejanos e a sua
religiosidade total e, curiosamente, a submissão à autoridade“ (Ibidem: 200), também
foi tema de dois filmes produzidos por Queiroz: A Última Pega junta, numa narrativa
simples e linear, os três ingredientes principais destes género: “as vistas da lezíria (com
algumas cenas documentais, filmadas de grua), as cenas de tourada (também
documentais) e os fados (corporizados na figura de um autêntico cavaleiro e cantor)“
(Ibidem: 199); Sangue Toureiro, primeira longa-metragem a cores no cinema português,
o que significou um grande investimento do produtor, apresenta-se como “uma história
linear e muito simples entremeada de vários números de fado e de tourada“, com
personagens esquemáticas e “sem revelo psicológico nem grandes dilemas“ (Ibidem).
Queiroz tentou também, em vão, produzir filmes para um público infanto-juvenil,
nomeadamente com 9 Rapazes e 1 cão e Um Cão e dois destinos, filmes protagonizados
pelo cão Farrusco, que se tornaria num caso de popularidade na imprensa da época. O
filme assume, na figura de autoridade deste polícia zelador da paz e da boa educação,
um propósito didáctico e moralista que configura uma visão de sociedade ordeira,
controlada, modesta e pobrezinha. Filmado em Campolide, apresenta o bairro como uma
pequena aldeia onde todos se conhecem, uma espécie de sociedade modelo – modelo
para crianças, bem se vê – mas onde desponta a ameaça da nova geração irreverente.
Esta actualidade de referências dá-nos alguns sinais de época: os métodos modernos da
professora nova, o facto já elogiado de ela trabalhar e ser útil, mesmo sem ter
necessidade e em vez de namorar; o “snack-bar“, bar de balcão corrido, novidade à
época, e as más companhias que ameaçam os jovens, cujos pais – comerciantes
abastados – não conseguem por fraqueza controlar.
Finalmente, existe um outro núcleo de filmes produzidos por Queiroz que são
marcados por um tom assumidamente dramático e que retratam alguns dramas do
quotidiano, marcados por um tom de “boas intenções e intuitos moralizadores“ (Areal,
2008: 235): Raça é “um drama familiar que pretende falar de problemas sociais, em
particular do caso 'banal' das mães solteiras, dos filhos naturais e dos esforços para
apoiar socialmente os mais pobres no acesso à saúde“ (Ibidem); Pássaros de Asas
Cortados, adaptado obra homónima de Luiz Francisco Rebello, conta a história de Elsa,
391
filha de uma família da alta burguesia do final dos anos 50, que se debate com o
ambiente dissimulado e corrupto a que pertence; Um dia de Vida aborda um conflito
moral entre gerações através de história de um pai de família desempregado que é peça
de um triângulo amoroso protagonizado pelo seu filho e pela madrasta/actual esposa;
29 Irmãos, “o único filme contemporâneo da guerra 'no Ultramar' que não escamoteia a
existência dessa guerra que até nos jornais era negada“146 (Ibidem), fala do regresso de
um soldado da guerra e da rejeição da noiva, que entretanto decidira enveredar pela
vida religiosa; A Voz do Sangue, também rodado em Angola, reconstitui a saga duma
família entre os anos 1940 e 1961, culminando no dilema dum advogado tem de
defender em tribunal um homem que desconhecia ser o seu pai.
Como resume Leonor Areal (Ibidem: 187), estes dramas reproduzem um “atavismo
ideológico, apesar de tocar temas moralmente delicados na altura“, com uma “divisão
um tanto maniqueísta, típica do cinema moralista, entre personagens bons e maus,
comportamentos correctos e censuráveis, honestos e corruptos ou perdidos“. Em última
análise, a abordagem destes temas incómodos, do ponto de vista social e político, é
sempre feita de acordo com a ideologia oficial, procurando “explicar, resolver e
moralizar os conflitos sociais patentes“ (Ibidem: 239)
A carreira de produtor de Manuel Queiroz ficaria ainda marcada pela relação com
três realizadores: Augusto Fraga, Constantino Esteves e Artur Ramos.
Com um passado ligado à crítica cinematográfica dos anos 30 e 40 (Imagem,
Animatógrafo e Cinéfilo), Augusto Fraga começou por realizar pequenos filmes
destinados a ilustrar canções popularizadas na rádio, espécies de videoclips, passando
depois por Espanha onde, em alguns meses, filmaria algumas curtas metragens.
Regressado a Portugal, foi realizando alternadamente curtas, documentários e filmes de
fundo, “tornando-se cada vez mais perceptível uma colagem às ideias do regime, visível
também na sua produção cinematográfica“ (Murtinheira, a: em linha).
Constantino Esteves começou a sua carreira no exercício de funções de assistente
de realização em filmes de António Lopes Ribeiro (O Pai Tirano, 1941), Jorge Brum do
Canto (Fátima, Terra de Fé, 1943; Ladrão, Precisa-se!..., 1946) e Armando Vieira Pinto
(Eram Duzentos Irmãos, 1952), antes de se estrear na realização com O Comissário de
146
“(...) O alinhamento político de Augusto Fraga permitiu-lhe fazer o único filme que fala da guerra de
África no seu tempo – tema tabu na cinematografia portuguesa até 74. Mesmo se assume uma defesa da
guerra sob o ponto de vista do regime, recorrendo à fusão narrativa de imagens documentais de guerra
com planos ficcionados e exaltando o sacrifício dos soldados justificado em nome do patriotismo, este
filme faz-se voz de um sofrimento confessado e admite que muitos lá morreram – o que nem na imprensa
da época era admitido pela Censura“. (Areal, 2008: 238)
392
Polícia (1953). Depois de um interregno de uma década, voltaria à realização em 1963
para a sua fase mais produtiva, realizando 8 longas-metragem até 1974. O seu currículo
ficaria marcado pela defesa de um cinema comercial, nomeadamente pelos filmes
protagonizados por “cantores quase totalmente desprovidos de qualidades na área da
representação, aliada a enredos pouco inspirados“ (Ibidem). Sobre o sucesso comercial
dos seus filmes, Constantino Esteves lembra (Murtinheira, b: em linha) que foi o seu
filme O Miúdo da Bica que “havia salvo o produtor, Manuel Queiroz, da falência que o
desaire financeiro dum projecto mais intelectual (o filme Pássaro de Asas Cortadas, de
Artur Ramos) lhe ia provocando“.
O caso Artur Ramos é, portanto, mais particular na filmografia produzida por
Manuel Queiroz. Aluno no IDHEC com uma bolsa do governo francês, por onde depois
passariam outros jovens portugueses, Artur Ramos foi o primeiro realizador da RTP,
encenando e realizando a transmissão televisiva de dezenas de peças de teatro de vários
autores (Tchecov, Molière, Marivaux, Bernard Shaw, Oscar Wilde, O’Neill, Maeterlinck,
Dürrematt, Gil Vicente, António Ferreira, Alfredo Cortez, Sttau Monteiro, Mário de
Carvalho) e realizou as primeiras séries de televisão e dezenas de telefilmes. Antes de
entrar para a televisão pública portuguesa, contava apenas com a experiência na
assistência de realização em Os Amantes do Tejo (1955, Henri Verneuil).
Em 1962 realizaria Pássaros de Asas Cortadas, que Leonor Areal (2008: 412) lembra
ser um filme “a que a historiografia tem dado pouco relevo“, mas é um “marco de
consciência social, único na forma como critica a classe abastada e o seu exercício do
poder sobre as classes dependentes“. Apesar da realização e do argumento parecerem
“um tanto clássicos, ou para outros convencionais, ainda não mostrando a desejada
inovação das formas de narração, a crítica social que faz (mesmo com os cortes da
censura) é a mais contundente desse primeiro período de renovação“ (Ibidem).
Finalmente, uma nota para Alain Bornet, um realizador francês viera a Portugal
para realizar um filme co-produzido por Cunha Telles (Le pas de trois, 1964) e que
realizaria também o filme Um Cão e Dois destinos. Bornet seria o único realizador
estrangeiro com que Queiroz trabalharia durante a sua carreira de produtor.
Francisco de Castro começou a sua carreira cinematográfica como figurante em
vários filmes: O Pai Tirano (1941, António Lopes Ribeiro), O Pátio das Cantigas (1941,
Francisco Ribeiro), Amor de Perdição (1943, António Lopes Ribeiro), A Menina da Rádio
(1944, Arthur Duarte) e Ladrão, Precisa-se!... (1946, Jorge Brum do Canto). Trabalhou
depois como assistente artístico na FNAT, onde rodou alguns documentários. Foi
393
empresário teatral, produzindo algumas revistas entre 1958-59. Ainda nos anos 50,
trabalharia na Belarte, empresa publicitária (Ramos, 1989: 87).
Excepcionalmente, Castro também passaria pela realização, assinado quatro
documentários entre 1960-62: Primeiros Jogos Desportivos Luso-Brasileiros (1960), Jogos
Luso-Brasileiros (1960), O Homem e a Máquina (1961, prod. Junta de Acção Social) e Um
dia com os Trabalhadores (1962).
Nos anos 60 funda a Produções Francisco de Castro, com particular actividade na
produção de documentários turísticos e industriais. Entre 1968-75, Castro produziu o
jornal de actualidades quinzenal Actualidades Portuguesas, terminando no ano em que o
produtor se exilou no Brasil. Regressaria em 1978 para integrar a Coopercine, uma
cooperativa de cinema que sucedera às Produções Francisco de Castro (Ibidem).
Na longa-metragem, Castro seguiria um padrão comercial e apostaria sobretudo
em parcerias de co-produções. As Pupilas do Senhor Reitor (1960, Perdigão Queiroga, coprod. com Perdigão Queiroga), Nojo aos Cães (1970, António de Macedo, co-prod. com
António de Macedo) e A Promessa (1972, António de Macedo, co-prod. com António de
Macedo e Tobis) são três exemplos de co-produções feitas com parceiros portugueses,
mas seria mais frequentes as parcerias com empresas produtoras de Espanha — Canção
da Saudade/Los Gatos Negros (1964, Henrique Campos/ José Luis Monter, co-prod.
Cooperativa Cinematográfica Alcazaba), Os 5 avisos de Satanás (1969, José Luís Merino,
co-prod. Hispamer Films e Ibérica Filmes), Crime de Amor (1972, Rafael Moreno Alba, coprod. com Talia Films e Americo Coimbra) — e do Brasil, nomeadamente o filme
brasileiro de Anselmo Duarte O Pagador de Promessas, que venceria o grande prémio em
Cannes em 1962, co-produzido com a Cinedistri.
O caso d'A Canção da Saudade é particular: o filme teve duas versões finais, uma
para o mercado português falada em português e realizada por Henrique Campos e outra
falada em castelhano destinada ao mercado espanhol. com realização de José Luís
Monter. Tanto Campos como Monter pertenciam a uma segunda linha de realizadores
nos seus países. Neste filme, à semelhança de Manuel Queiroz e da Cinedex, Castro
também tentou a estratégia de contratar figuras populares para protagonizar o filme: o
músico yé-yé Vítor Gomes e a actriz de revista Florbela Queirós, mas também os
cançonetistas Tony de Matos, Simone de Oliveira e Madalena Iglésias, entre outros. O
filme inclui ainda excertos de vários filmes portugueses dos anos 30 e 40 — A Canção de
Lisboa (1933, Cottinelli Telmo), Bocage (1936, Leitão de Barros), A Aldeia da Roupa
Branca (1938, Chianca de Garcia) e O Pátio das Cantigas (1942, Francisco Ribeiro) —
394
como tentativa de recuperar uma cderta tradição muscial do cinema português dessas
décadas. Perante um argumento tão frágil, a presença de várias figuras do “nacional
cançonetismo“, muito populares na rádio, revista e televisão da época, o elenco reúne
também figuras de outras tendências musicais, como o yé-yé , o twist ou o rock.
A nota dominante destes filmes e da generalidade das suas produções, como
acontecia com Manuel Queiroz, era o tom conformista que apostava sobretudo em fazer
entretenimento com um sentido moralizante. Apesar de alusões à rebeldia juvenil ou à
liberdade sexual, a mensagem última do filme era sempre normalizadora e conciliadora.
A mesma mensagem surge em Pão, Amor e Totobola (1964, Henrique Campos), um filme
que “revela uma série de mutações socioeconómicas onde se salienta um conflito de
gerações, mas sobretudo o fascínio pelo consumo dos novos electrodomésticos e o
recém inaugurado jogo de sorte Totobola“ (Areal, 2008: 190), onde um conflito entre pai
e filha, a propósito de comportamentos considerados desviantes para a época (namorar
em lugares menos próprios, frequentar discotecas e dançar rock' and roll) é sanado pelo
recém-lançado jogo do totobola.
Curiosamente, em A Canção da Saudade ocorre um conflito de gerações que, a meu
ver, pode muito bem ser entendido como uma alusão ao conflito entre o velho e o novo
cinema: pais e filhos tem hábitos sociais distintos e ouvem músicas diferentes
características desses estilo de vida, mas o filme promove “uma glorificação de vários
géneros musicais, modernizando-se segundo os gostos mais juvenis, mas
principalmente reforçando o valor das músicas mais antigas“ (Areal, 2008: 243).
Produtor marcante nos anos 60 e 70, produzindo dezenas de filmes industriais e
publicitários, Castro ficaria também associado a alguns nomes da nova geração,
nomeadamente António de Macedo, José Fonseca e Costa147, Faria de Almeida148 e
Fernando Matos Silva149, mas também ao director de fotografia António Escudeiro e ao
montador João Carlos Gorjão (Ibidem: 88).
Com Macedo a relação foi próxima: produzir-lhe-ia várias curtas150 e duas das suas
longas-metragens em condições particulares. A intervenção de Castro em Nojo aos Cães
147
Era o vento... e o mar (1966), A metafísica do Chocolate (1967) e A cidade (1967).
V Centenário de Gil Vicente (1966) e Loures (1970-74).
149
Estoril - Costa do Sol (1972).
150
Nicotiana (1962), 1X2 (1963), Verão Coincidente (1963), Crónica do esforço perdido (1966), Afonso
Lopes Vieira (1966), Fernão Mendes Pinto (1966), A ginástica na prevenção dos acidentes (1967), A
Revelação (1967), Albufeira (1968), Almada Negreiros, Vivo, Hoje (1969), A história breve da madeira
aglomerada (1970), Totobola - Relatório e contas (1970), Do outro lado do rio (1971), 5 temas para
refinaria e quarteto (1971), Inauguração da doca Alfredo da Silva (1972, co-realizado com Victor Barbosa),
148
395
e A Promessa teria passado pelo empréstimo de material e pela influência do cineastas
junto do meio cinematográfico, de forma a conseguir melhores condições negociais, e
das autoridades públicas, para contornar eventuais problemas com a censura, como
aconteceria de facto com o filme Nojo aos Cães.
Em suma, tanto Queiroz como Castro são os maiores representantes de um tipo de
cinema tematicamente conformista e tecnicamente convencional. O relativo sucesso
comercial que alguns dos seus filmes conquistaram deveu-se sobretudo à popularidade
dos seus protagonistas, recrutados criteriosamente de entre os mais populares e
mediáticos nomes da rádio, da revista e da televisão.
Finalmente, o produtor Felipe de Solms também tentaria renovar o seu reportório
no decorrer dos anos 60. Contando com dezenas de curtas no seu currículo, a maioria
encomendas ou filmes subsidiados por dinheiros públicos, Solms produziria alguns
filmes fora do seu registo habitual.
O primeiro destaque vai para dois filmes realizados por Jorge Brum do Canto,
também ele uma figura do “velho cinema“ que ensaiava um regresso em moldes
distintos: Retalhos da Vida de um Médico (1963) e Fado Corrido (1964). Adaptado da
obra homónima do escritor neo-realista Fenando Namora, o primeiro filme depois de um
longo interregno pós-Chaimite de quase uma década, Retalhos da Vida de um Médico foi
um filme que não correspondeu às expectativas, sendo considerado por Leonor Areal
(2008: 387) como um “caso exemplar de como a adaptação pode transformar o conteúdo
da obra literária, afastando-se do neo-realismo original para se tornar convencional e
conservadora“, quer do ponto de vista estético como ideológico. O segundo filme,
também produzido por Solms, era uma adaptação de um conto de David Mourão-Ferreira
(“Agora: Fado Corrido“, publicado na obra Gaivotas em Terra) e tinha como protagonista
Amália Rodrigues. Apesar de dar uma visão mais ambígua da profissão de fadista, em
comparação com os filmes da época, o filme defrauda as expectativas de quem esperava
que pudesse pôr “em causa a ordem do real ou a ordem social estabelecida“ (Ibidem:
223). Ou seja, em suma, apesar de pequenas variações formais ou narrativas, como a
presença de música jazz na banda sonora ou de uma perseguição de carro filmada, estes
dois filmes de Brum do Canto produzidos por Felipe de Solms procuram uma
aproximação aos sectores mais renovadores do cinema português mas nunca
concretizam essa renovação ou a construção de uma alternativa significativa.
O Leite (1972), Marconi - Via Satélite (1973), A criança e a justiça (1973), Cenas de caça no Baixo Alentejo
(1973).
396
A comédia, no seu registo “de trocadilhos e peripécias caricatas, perseguições,
quedas e sustos, destinadas a provocar a risada infantil“ (Ibidem: 174), também seria
uma das apostas de Solms. Entregue ao realizador Pedro Martins, Aqui há Fantasmas
(1963) adaptava uma peça homónima de Henrique Santana que obtivera bastante
sucesso no Parque Mayer, onde de resto foi recrutar o próprio Henrique Santana e a
popular Irene Cruz, para além de António Silva e Ribeirinho, dois veteranos da comédia
à portuguesa. Apesar de procurar um tom de comédia mais moderno, a montagem de
Constantino Esteves, a fotografia de Abel Escoto e a produção executiva de Manuel
Queiroz comprometeram qualquer hipótese de renovação. Com o mesmo realizador,
Solms produziria Bonança e Companhia (1969), uma comédia que incorporava alguns
aspecto do western e procurava tirar proveito da popularidade que a série norteamericana Bonanza (1959-73) conquistava desde 1961 na televisão portuguesa. Para o
elenco, Martins e Solms voltavam a recrutar actores muito populares no Parque Mayer,
como Eugénio Salvador, Nicolau Breyner, Francisco Nicholson (que também era
responsável pelos diálogos), Mariema e Manuela Maria.
O filme de acção, pouco comum no cinema potuguês, foi outro dos géneros
tentados pelo produtor Felipe de Solms. Entregando novamente a realização a Pedro
Martins, com um elenco novamente recheado de nomes sonantes da revista do Parque
Mayer (Nicholson, Breyner, Glória de Matos, Armando Cortez) e uma banda sonora com
canções de Simone de Oliveira e Duo Ouro Negro, Operação Dinamite (1967) foi filmado
em Lisboa e seus arredores e em Luanda. A história do filme rodava em torno das
peripécias de um espião norte-americano de passagem por Lisboa e Luanda, para tentar
recuperar um importante dossier roubado no Pentágono. O outro filmes rodado neste
género chama-se Via Macau (1966), realizado pelo francês Jean Leduc, foi rodado em
regime de co-produção (com a francesa Les Films de l'Olivier) nesse território asiático
então sob administração portuguesa, em Hong-Kong, Lisboa e arredores. A acção do
filme envolvia espiões e contrabandistas de armas em trânsito por Lisboa e Macau e a
banda sonora do filme incluía três fados interpretados por Amália Rodrigues. Em
comum, estes dois filmes tentavam aproveitar a enorme popularidade dos filmes de
espionagem, nomeadamente o sucesso da série de filmes protagonizados pela
personagem James Bond.
Tal como aconteceu com Queiroz e Castro, apesar das boas intenções, a inclusão de
vedetas da televisão, rádio, teatro de revista e de história de acção muito em voga na
época não eram suficientes para renovar o cinema português, mas apenas para lhe dar
397
uma certa aparência internacional. Usando a terminologia de Luís de Pina usada nas
páginas anteriores, aquilo que era anunciado ao público como elementos “de
modernidade, como progresso“, não passava de mais uma “moda“.
3.5.2. Artur Semedo
Nos antípodas do discurso conformista e normalizador da “comédia à portuguesa“
politicamente correcta e corrigida pelos mecanismos de censura, estava um caso muito
particular do cinema português, Artur Semedo. Com uma formação de base de actor
teatral no Conservatório Nacional, Artur Semedo inicia a sua carreira cinematográfica
em dobragens e figurações. As primeiras interpretações enquanto protagonista – em
Saltimbancos (1951) e Nazaré (1952) – valem-lhe o título de “actor neo-realista do
cinema português“ (Visor, 1, IV-1953: 14), mas participa em vários filmes de géneros
variados, incluindo o épico Chaimite (1953, Brum do Canto), o vetusto O Cerro dos
Enforcados (1954, Fernando Garcia) ou o cómico Perdeu-se um Marido (1957, Henrique
Campos).
Em 1956, a par de uma fulgurante carreira de actor teatral, estreou-se na
realização com o drama O dinheiro dos pobres. Após sofrer um desgosto amoroso, Manuel
das Dores é ordenado padre e cria um orfanato, que é desvastado por um incêndio. Com
a ajuda de um professor, o padre Manuel consegue o dinheiro necessário para a
reconstrução, mas é roubado pelo próprio irmão. Sem o querer denunciar, o padre acaba
preso e julgado, sendo salvo na última hora pelo irmão criminoso que confessa o crime e
o iliba (Matos-Cruz, 1999: 104).
Leonor Areal (2008: 234-235) aponta algumas particularidades neste filme:
“Não era, apesar de tudo, vulgar num filme da época falar-se por
junto de tantos tabus: a vida amorosa de um padre, a prostituição ou a
violação a que quase assistimos, vendo a violência do homem e a
sugestão dada no plano do violador aproximando-se, num plano
subjectivo, assustadoramente sobre a câmara, sequência
elipticamente cortada por um plano negro. E se essa ousadia é
possível, será porque este padre representa, impolutamente, a
garantia de um comportamento moral, que se opõe e distingue das
imoralidades do mundo representadas pelo tratante seu irmão,
personagem completamente negativo, mas considerado como
'doente'.
O padre é a antítese desse mundo corrupto de gente perdida.
Porém, enquanto modelo de conduta, não é ele quem repreende os
comportamentos dos outros, esses outros que aparecem mais como
398
vítimas das circunstâncias do que maldosos em si: a mulher vítima da
violação; o violador vítima de uma abstracta 'doença' que o torna
despeitado e violento, algum trauma radicado numa infância aludida.
Há uma benevolência cristã que perdoa os comportamentos
reprováveis, mostrando-os no horror da sua maldade, como forma de
moralização preventiva.“
Vitima da acção da censura, o filme veria cortada uma cena final que o tornava
normalizador, glorificando a religião como elemento fundamental na regulação da
sociedade. Um pouco à semelhança do que acontecer com Vidas sem Rumo de Manuel
Guimarães sensivelmente na mesma altura, a censura transformara um filme com um
final ambíguo, complexo e problematizante numa história moralizante com final feliz,
normalizando um discurso tido como desviante e pouco digno.
“(...) Um final de tal forma angustioso, representado pelo
afastamento dramático entre a mãe e o filho, só pode ter por motivo a
condenação social do seu comportamento moralmente inaceitável. A
ostracização da mãe, que ninguém acusa, mas que se assume como
auto-punição, não podia senão ser demasiado incómoda“ (Ibidem).
Depois de uma passagem pela televisão portuguesa (1960-61), onde protagoniza o
galã da série cómica A Lena e o Carlos (1960) e participa noutras produções, e pelo Brasil
(1962-65), onde trabalha com o veterano português Armando de Miranda (A Montanha
dos Sete Ecos, 1963), com um dos pais do cinema baiano Roberto Pires (Tocaia no
Asfalto, 1962) e com o argentino Carlos Hugo Christensen (Viagem aos seios de Duília,
1964; Crónica da Cidade Amada, 1964).
Regressa a Portugal e aposta no teatro cómico e na revista à portuguesa,
mantendo a presença na televisão e a colaboração pontual como actor de cinema, no
filme missionário Uma Vontade Maior (1967, Carlos Tudela), na comédia A Maluquinha
de Arroios (1970, Henrique Campos) e, pela quarta vez, num filme de Manuel Guimarães
(Lotação Esgotada). Neste filme de Guimarães, Semedo seria também o responsável pelo
argumento original, pouco depois adaptado à televisão brasileira por Dias Gomes (O Bem
Amado, 1973).
Em 1973, volta à realização e produção, realizando Malteses, burgueses e às vezes,
um ensaio de um tipo de humor que pretendia recuperar um estilo revisteiro de
denúncia dissimulada que não conseguira, ainda, romper as amarras da censura
marcelista. Rodado em Angola, o filme aborda as peripécias de um empresário que se vê
obrigado a fugir de Portugal e decide radicar-se em Angola para aí prosseguir com os
seus esquemas fraudulentos. Mais uma vez, ainda que agora de forma mais sublime,
399
Semedo realiza um filme “que oferece inúmeros trocadilhos verbais de sentido político“,
que passaria pela censura “talvez pelo tom jocoso que lhe retira o conteúdo mais
evidentemente crítico, ou possivelmente por o filme ter estreado em Angola, onde a
censura era mais tolerante“ (Areal, 2008: 407).
Leonor Areal (Ibidem: 447) alude precisamente à dificuldade de arrumação deste
filme no contexto do cinema português da época:
“Pode surpreender que este filme seja colocado na secção do novo
cinema, mas dificilmente poderei encaixá-lo no capítulo referente ao cinema
convencional, porque este não é de facto um filme conformista. A forma de
sátira que assume dá-lhe um carácter de resistência, e cabe neste conjunto
porque traz efectivamente algo de novo ao cinema português, anunciando um
filão de novas sátiras que virão a surgir ao longo dos anos seguintes, já em
liberdade total.
Nada há neste filme que o aproxime esteticamente do novo cinema;
mas há uma irreverência afirmada e patente, que encontra o caminho possível
para se afirmar através da sátira, modo expressivo que sempre se deixa ler a
diferentes níveis e que muito claramente, aqui, tanto atinge pelo retrato
caricato os personagens poderosos do Portugal de então (os caciques, os
industriais, os oportunistas) como consegue introduzir uma série de piadas
verbais que fazem trocadilho com questões políticas sem chegar a pôr em
causa a instância política propriamente.“
No mesmo ano, Semedo protagonizaria Sofia e a Educação Sexual, a estreia do
crítico de cinema Eduardo Geada nas longas-metragens e outro filme que não escaparia
às malhas da censura: o filme seria proibido integralmente e só estrearia após o 25 de
Abril de 1974. Para além da sua participação como actor, Semedo seria também coprodutor deste filme que, segundo Leonor Areal (Ibidem: 457), “confronta a ideologia
oficial no campo, por definição, do interdito: a sexualidade feminina e o papel das
mulheres numa sociedade patriarcal, onde a noção de 'liberdade' tem um sentido
sexualmente restrito“, atrevendo-se “a falar de sexualidade de um ponto de vista
político“.
Durante o PREC, Semedo faria a produção executiva de Os Demónios de Alcácer
Kibir (1977, Fonseca e Costa) e protagonizaria O Funeral do Patrão (1978, Eduardo
Geada). Seria também logo em 1975 que começaria a trabalhar no que seria O Rei das
Berlengas ou a independência das ditas, a primeira comédia portuguesa feita sem
restrições da censura política. Definindo este filme como “político, apolítico e
apocalíptico“, Semedo “ataca“ violenta e impiedosamente as principais instituições do
regime salazarista: desmitifica o clero e os dogmas religiosos (como a castidade e o
“curso de santidade“ de Teresinha), caricaturiza as principais referências históricas
nacionais (desde D. Afonso Henriques ao Marquês de Pombal), ridiculariza a autoridade
400
civil e política, menoriza a importância da linhagem familiar e da subalternização
laboral na hierarquização das relações sociais.
A constante requisição dos seus serviços de actor (entre 1976 e 1985 integrou o
elenco de dez longas-metragens, um telefilme e três séries para televisão) só lhe
permitiu regressar à realização em 1985, com O Barão de Altamira. O princípio
orientador deste filme era semelhante ao anterior: usar a comédia para parodiar as
instituições mais conservadoras da sociedade portuguesa. No entanto, o momento
cronológico (mais de uma década após a queda da ditadura) e a ausência de Mário
Viegas não permitiram que se repetisse o êxito de O Rei das Berlengas. A estratégia era a
mesma, mas o país mudara, assim como a relação dos portugueses com o humor,
explorando temas mais relacionados com os costumes do que com uma crítica política.
O Rei das Berlengas ficaria como o exemplo máximo da comédia satírica de Artur
Semedo: humor do absurdo, da ironia, do sarcasmo, do non-sense, do burlesco, da
provocação e dos excessos como meios para conduzir uma atenta e corrosiva crítica
social, política, histórica e humana. Sobretudo nesta obra, Artur Semedo usou o humor
como um exercício de exorcismo sarcástico dos fantasmas do passado, denúncia dos
problemas do presente e antevisão das ameaças do futuro, com o perigo de uma guerra
civil ou da intervenção militar estrangeira.
Com características muito marcadas – alguns autores falam mesmo de um “cinema
de autor“ – Artur Semedo rompeu com o discurso conformista e normalizador da
“comédia à portuguesa“ e criou um discurso cómico com pretensões radicalmente
opostas, onde usava o humor como mecanismo de ridicularização e subversão da ordem
instituída. Assumindo uma militância ideológica – “sou definitivamente contra a arte
pela arte“, afirmaria o realizador em 1979 –, Semedo pretendia que as suas obras fossem
agressivamente catárticas e combatessem a pesada herança de décadas de ditadura.
Recuperando a tradição sarcástica do teatro vicentino – “riendo castigat mores“ –,
Semedo pretendia que os seus filmes fossem cívica e humanamente interventivos e que
contribuíssem para uma “desmistificação dos mitos“, necessária e urgente na sociedade
portuguesa recém-democratizada.
3.6. Cooperativas
401
Na história do cinema português, a formação de cooperativas de produção já havia
conhecido alguns episódios. O caso mais célebre era a Cooperativa do Espectador
(1960), sociedade constituída para rodar o filme Dom Roberto, mas a sociedade Artistas
Unidos, constituída para o filme Cais do Sodré (1946), de Alejandro Perla, é o primeiro
filme no cinema português produzido em regime de cooperativa. Estes dois exemplos de
produção em cooperativa, pelo seu carácter restrito e esporádico, não tiveram
continuidade nem grande influência no sector da produção. Há ainda a acrescentar a
estar os modelos proto-cooperantes de algumas das produções de Manuel Guimarães,
nomeadamente Nazaré (1952) e Vidas Sem Rumo (1956).
Em entrevista à publicação Boletim Cooperativista, em Agosto de 1962, Ernesto de
Sousa revelava que a sua Cooperativa do Espectador se inspirara em organizações
semelhantes existentes em França e no Japão “conseguidas e organizadas em moldes
diversos, mas todas com bons resultados no sentido de uma independência da produção
em face aos grandes interesses industriais e comerciais do cinema.“ Ainda assim, apesar
da subscrição pública, a produção do filme só seria possível com a participação, através
da cedência de serviços ou adiantamento de receitas, dos laboratórios Ulisseia Filmes e
do distribuidor Imperial Filmes e, sobretudo, “a cooperação dos diferentes
trabalhadores de filme, actores e técnicos“151. Em suma, subtraindo estas fontes de
financiamento, a comparticipação dos espectadores propriamente ditos, e que
emprestavam o nome à própria designação da cooperativa, pode ser calculado em cerca
de 20-25% do valor total necessário à produção do filme, o que o torna bem mais
residual e simbólico do que alguns investigadores o consideram.
Por outro lado, o projecto inicial de Ernesto de Sousa para a sua Cooperativa do
Espectador não seria financiar apenas o seu filme, mas criar uma estrutura de produção
mais duradoura que pudesse produzir filmes de forma contínua — preferencialmente
“aos filmes de curta metragem, favorecendo assim um meio onde os jovens possam mais
facilmente revelar-se“ — que dependeria das receitas de exploração da bilheteira. Como
o desempenho comercial do filme foi manifestamente inferior às expectativas, a
Cooperativa do Espectador ficou por essa produção.
No entanto, apesar do relativo insucesso desta iniciativa, se for entendido como
um projecto duradouro e não para apenas o filme Dom Roberto, o fenómeno
cooperativista continuava na ordem do dia no debate cinematográfico. De tal forma que,
151
“Todos aceitámos inverter a totalidade ou quase totalidade dos nossos honorários na comparticipação
do capital necessário para a produção. Mais de 60 por cento do custo de produção é a soma da nossa
comparticipação.“(Ernesto de Sousa apud Boletim Cooperativista, 106, VIII-1962: 8)
402
em Fevereiro de 1963, o Cineclube do Porto, através da sua Secção de Cinema
Pedagógico, decidiu organizar um ciclo de cinema e palestras sobre cooperativismo,
procurando demonstrar que “pedagogicamente o Cooperativismo é uma escola para a
concretização dos anseios do indivíduo como ser social“ e contribuir “para a valorização
e educação do espírito cooperativista“ (Boletim Cooperativista, 112, II-1963: 11).
O modelo não teria continuidade, mas anos mais tarde, perto do fim das Produções
Cunha Telles, a criação da empresa Media Filmes (Fernando Lopes, Fernando Matos
Silva, Alfredo Tropa, Alberto Seixas Santos e Manuel Costa e Silva) e da Unifilme
(produtora d'O Recado, de José Fonseca e Costa, 1972) ou a Cinenovo do próprio Cunha
Telles (para produzir O Cerco, 1969), com uma filosofia de produção contínua de
produção de filmes publicitários e turísticos, enquadra-se já num princípio de produção
pró-cooperativa (Cunha, 2005: 70), possibilitando um novo modelo de financiamento
que anunciava já um ímpeto cooperativo entre alguns realizadores, propondo uma
produção independente que assentava a sua sobrevivência financeira na realização de
encomendas ou filmes publicitários mas que tinham como objectivo produzir cinema de
longa-metragem para o circuito comercial.
Estas foram, seguramente, experiências de sucesso para muitos dos cooperantes
que estariam, poucos meses depois, na génese da mais bem sucedida cooperativa de
cinema da história do cinema português, o Centro Português de Cinema.
3.6.1. Centro Português de Cinema
Em vésperas da realização da Semana do Porto, a relação da Gulbenkian com o
novo cinema português conhecera já alguns episódios anteriores. A política de
atribuição de bolsas de estudo seguida pela Fundação para outras áreas artísticas
começou, desde 1961, a beneficiar vários aspirantes a realizador ou técnico
cinematográficos, que rumavam ao estrangeiro em busca de formação, como registei no
capítulo anterior. Significativos são também o apoio financeiro ao Festival Internacional
de Arte Cinematográfica de Lisboa (1964-65), ao Cineclube Universitário de Lisboa
(1961) e a certames de cinema amador, a atribuição de uma bolsa de estudo a Fernando
Duarte para estudar os cinemas de arte e ensaio no país vizinho (Plateia, 10-IX-1968:
16), e a encomenda do primeiro filme exclusivamente financiado pela Fundação (Idem,
18-VI-1968: 15). Nas palavras do próprio presidente Azeredo Perdigão, os primeiros
403
passos da Fundação neste sentido “foram naturalmente incertos e espaçados“,
reconhecendo que “pouco se fez no sector do teatro e menos ainda do cinema“ (Idem,
14-III-1972: 20).
Instituída em 1956, com finalidades caritativas, científicas e culturais, a Fundação
Gulbenkian começou por intervir no desenvolvimento de expressões artísticas como a
dança (Grupo Gulbenkian de Bailado) e, sobretudo, a música (Orquestra e Coro
Gulbenkian). Segundo o III relatório do Presidente, respeitante aos anos 1963-65, a
Gulbenkian gastou uma média anual de 5.900 contos com o Teatro, 14.230 contos com a
Música e apenas 200 contos com o Cinema (Ofício do Cinema em Portugal, 1968: 39).
Atentos a estas intervenções, alguns cinéfilos começaram, desde muito cedo, a reclamar
idêntica atenção para o cinema português.152
Roberto Nobre levou o apelo para a imprensa generalista, aproveitando as páginas
do Diário Popular onde colaborava regularmente. Numa extensa carta aberta dirigida ao
presidente da Gulbenkian, o reputado crítico apela à intervenção da instituição
sobretudo na formação cinematográfica de novos valores e do próprio público,
sugerindo a criação de uma escola de cinema, uma cinemateca e uma espécie de
“supercineclube“ (Diário Popular, 27-VII-1961: 1-5).
No mesmo jornal, o histórico dirigente cineclubista Henrique Alves Costa apela ao
apoio da Gulbenkian ao movimento cineclubista que então se encontrava
particularmente fragilizado. Neste mesmo artigo, torna pública uma diligência anterior
promovida por esta instituição à Fundação Gulbenkian: em 1959, o Cineclube do Porto
havia dirigido à Gulbenkian uma “documentada exposição“ que alertava para a
necessidade de uma intervenção directa da Fundação no cinema português (Diário
Popular, 10-VIII-1961: 1-5).
No final de Outubro do mesmo ano, foi a vez de Manuel de Azevedo aproveitar a
sua coluna no Diário de Lisboa para apelar à intervenção da Fundação Gulbenkian.
Curiosamente, no mesmo artigo, Azevedo recorda que este apelo tinha já sido lançado
por outras figuras do contexto cinematográfico, nomeadamente José-Augusto França e
Henrique Alves Costa (Diário de Lisboa, 31-X-1961: 11).
152
O primeiro, ao que apurei, terá sido o dirigente cineclubista Fernando Duarte que, num editorial de
Fevereiro de 1961 da revista Celulóide, questionava Azeredo Perdigão sobre a possibilidade de criação na
instituição de “uma secção onde se encare o Cinema, em todas as suas facetas, tirando dele todos os
ensinamentos essenciais, dando-lhe o lugar que lhe pertence afinal no âmbito das actividades culturais
da Fundação Gulbenkian“ (Celulóide, II-1961: 1).
404
Segundo Bénard da Costa, “a partir de 65, quando as coisas se puseram mais
feias“, várias figuras do novo cinema (Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo
e Cunha Telles) “começam abertamente a criticar a Fundação Gulbenkian por nada ter
feito pelo cinema em quase dez anos de existência.“ A estratégia de responsabilização
da Gulbenkian alastrava-se também a vários críticos e jornalistas com “recados mais os
menos explícitos à Fundação“ (Costa, 1985: 33). De um modo geral, a nova geração
considerava a intervenção da Gulbenkian, através da concessão de bolsas e subsídios,
insuficiente e parcelar para a resolução da crise: “O caso resolve-se não com subsídios,
que não passam de balões de oxigénio, mas com uma política realista em relação a todos
os problemas do cinema“ (Plateia, 30-VI-1970: 46).
Para António de Macedo, a Gulbenkian sempre rejeitou ajudar financeiramente a
nova geração com o pretexto que os estatutos da instituição só permitirem a intervenção
com fins caritativos e artísticos, e o cinema então não era visto como objecto de
expressão cultural ou artística, mas exclusivamente como indústria. Com o tempo,
vários factores permitiram alterar esta conjectura: o arrojo estético das propostas das
Produções Cunha Telles; a evolução da obra de Manuel de Oliveira, sobretudo Acto da
Primavera e A Caça, e a sua “colagem“ à nova geração; e a formação cultural de jovens
realizadores no estrangeiro. (Cunha, 2005: 64-65)
Respondendo aos diversos e insistentes apelos, em Outubro de 1966, o Conselho
de Administração da Fundação Gulbenkian assume a primeira posição pública em
relação a uma hipotética intervenção no cinema português. Clarificando pouco as suas
intenções, remetendo medidas mais objectivas para um estudo então ainda em curso, a
instituição apenas reforça a intenção de intervir exclusivamente “por um cinema de
índole estritamente cultural“ (Celulóide, X-1966: 1).
Por outro lado, como revelou Fernando Lopes, a Gulbenkian já tinha “sondado“
informalmente as intenções do grupo, sobretudo através de Victor Sá Machado, “grande
amigo de José Fonseca e Costa – são os dois de Angola“. Supostamente, nesta fase, a
Gulbenkian pretendia apoiar apenas financeiramente alguns projectos individuais
específicos de reconhecido valor artístico e cultural (Lopes, 1985: 63).
O ano de 1967 haveria de proporcionar novos encontros da Gulbenkian com a
trupe do novo cinema. Ao longo do ano, a alguns realizadores que promoveram
“diligências junto da Fundação Calouste Gulbenkian para considerar formas de apoio ao
cinema“, os responsáveis por aquela instituição refugiam-se em argumentos
estatutários para justificar a recusa de apoio a actividades industriais (Matos-Cruz,
405
2000: 67). Contudo, em Dezembro desse ano, a Gulbenkian parece querer assumir um
interesse oficial na área cinematográfica e faz-se representar – apenas como observador
– na sede do Cineclube do Porto pelo actor Carlos Wallenstein, responsável pelo sector
de Teatro. Tal como a própria Gulbenkian havia sugerido meses antes, os cinéfilos
presentes também debateram sobre a melhor forma de intervenção da instituição no
novo cinema.
Atento, Carlos Wallenstein estaria no Porto para se certificar da credibilidade e da
possibilidade em apoiar colectivamente os elementos do novo cinema. E, se o
representante da instituição tinha ido ao Porto para assistir a uma reunião com “vinte
representantes duma classe“, quando chegou encontrou “um grupo que, embora
estética e ideologicamente não homogéneo, representava com propriedade o que já se
chamava de ‘novo cinema’ português, representando igualmente uma geração – a
primeira do cinema nacional – culturalmente preparada e desejosa de cortar com o
recente passado, rotineiro e medíocre, da nossa cinematografia“ (Celulóide, VIII-1971:
13).
A 30 de Abril de 1968, o esperado Ofício do Cinema em Portugal era entregue à
Fundação. O documento agora apresentado, para além de respeitar o manifesto na
primeira versão saída da Semana organizada pelo Cineclube do Porto, formalizava o
início das negociações para a constituição do futuro CPC.153 Entre Dezembro de 1967 e
Março de 1968, os responsáveis pelo relatório reuniram-se por várias vezes para
prepararem um relatório credível ao ponto de convencer o presidente da Gulbenkian a
investir financeiramente no novo cinema.
O documento apresentava uma estrutura simples e objectiva. Iniciava com uma
exposição abrangente sobre o estado da cinematografia portuguesa, analisando o
cinema enquanto veículo cultural subvalorizado, mas também como potencial
actividade industrial.154 De um modo sintético, era também abordada a actuação dos
diversos organismos público com responsabilidades no sector (Fundo e Cinemateca) e as
153
O relatório foi entregue por uma delegação composta por Manuel de Oliveira, António de Macedo, Paulo
Rocha, António-Pedro Vasconcelos, Alfredo Tropa, Artur Ramos e Ernesto de Oliveira (Jornal de Letras e
Artes, 262: 20). Para conhecer as principais passagens do Ofício do Cinema em Portugal, ver Cunha, 2005.
154
As primeiras conclusões sobre a crise apontam para condições sócio-económicas (“fraco poder de
compra do consumidor, baixo nível cultural e despovoamento rural“), condições financeiras (“falta de
força financeira da produção, viciação da estrutura do binómio distribuição-exibição“), condições
culturais (“inexistência duma estratégia coerente e global na formação de espectadores“) e “afastamento
do público“. Mais uma vez, os signatários realçam a ineficácia das iniciativas públicas ou particulares
praticadas até então (Oficio do Cinema em Portugal, 1968: 33-34).
406
iniciativas particulares (Cineclubismo, Casa da Imprensa, CEC/AAC e Fundação
Gulbenkian) (Cunha, 2005: 67).
A atenção da segunda parte do documento recaia exclusivamente sobre a
Gulbenkian e as suas potencialidades em promover uma solução global para a crise.
Crentes de que a solução para a crise passava pela criação de condições necessárias à
produção contínua de conteúdos cinematográficos, os signatários defendiam que a
“consequência lógica“ de uma intervenção da Gulbenkian só se poderia traduzir na
“criação de um Serviço de Cinema dentro da própria Fundação, o qual poderia tomar a
designação de Centro Gulbenkian de Cinema.“ Lembrando a atenção já dispendida para
outras artes pela Gulbenkian, os cinéfilos reforçam o carácter específico e complexo da
produção fílmica, “desde os recursos financeiros que exige, aos colaboradores humanos,
forçosamente numerosos“ (Ibidem: 36-38).
Entregue ao próprio Azeredo Perdigão, a principal solicitação do programa
proposto pelos cinéfilos foi “liminarmente recusada“ pelo presidente da Fundação. Em
contrapartida ao proposto Centro Gulbenkian de Cinema pretendido, a Gulbenkian
sugeria a criação de um organismo autónomo, dotado de estatutos e personalidade
jurídica própria, uma espécie de sociedade cooperativa que pudesse manter uma relação
formal com a Gulbenkian.155 Nessas condições, a instituição asseguraria as despesas de
funcionamento da cooperativa e atribuía anualmente um orçamento destinado à
produção (Cunha, 2005: 69-70).
A solução da cooperativa parecia, então, a mais indicada para ambas as partes.
Uma cooperativa asseguraria simultaneamente o compromisso e a autonomia essenciais
aos interesses de ambos os parceiros. O surto das cooperativas culturais foi um
fenómeno que marcou a última década do Estado Novo, constituindo “um recurso hábil
por parte de algumas correntes políticas oposicionistas para contornarem as
dificuldades jurídicas que o regime levantava ao livre exercício do direito de associação“
(Reis, 1996: 211).
Como ironiza Bénard da Costa, “as posições das duas partes parecem estar
trocadas: quem podia querer dependências e colonizados (a potência) batia-se pela
autodeterminação; quem devia querer esta, oferecia-se como vassalo.“ Mas, no fundo,
155
Segundo Fonseca e Costa, a proposta de criação da cooperativa fora já avançada na reunião do Porto
por Gérard Castello Lopes, António-Pedro Vasconcelos e por si próprio, assim como a ideia de dividir a
cooperativa por unidades de produção (Cunha, 2005: 71). Henrique Alves Costa confirma esta
paternidade, ao afirmar que foi Fonseca e Costa quem “lançou a ideia da criação do Centro Português de
Cinema, de que viria a ser fundador“ (Cinema Novo, IX-X-1978).
407
este paradoxo explica-se facilmente: a nova geração queria aproveitar-se da protecção e
do prestígio da instituição para forçar o regime a aceitar os filmes produzidos sobre a
alçada da Gulbenkian; por outro lado, para salvaguardar o prestígio e a integridade da
instituição, Azeredo Perdigão não queria assumir a responsabilidade de ter “aquela
gente toda lá a trabalhar“ como “empregados por conta doutrem“ (Costa, 1985: 34-35).
O segundo ponto delicado nas negociações foi a questão financeira. Assegurada a
verba necessária para manter a cooperativa em funcionamento, a nova geração batia-se
agora pela conquista de uma fatia de cerca de 10 mil contos anuais para a produção.156
Findas as negociações, em Novembro de 1968, o Conselho de Administração da
Gulbenkian, por proposta do próprio presidente, deliberou finalmente auxiliar
financeiramente a cooperativa dos novos cineastas por um período experimental de três
anos e criar um serviço de Cinema no seio da Gulbenkian. Esse serviço iniciaria
actividade alguns meses depois, representando um sério passo da instituição na
consolidação de uma estrutura sólida e permanente que, conforme se esperava,
proporcionasse uma importante base de apoio ao novo cinema (Cunha, 2005: 72).
Para dirigir este novo serviço foi chamado João Bénard da Costa, figura que
mantinha uma relação estável e duradoura com a instituição. Bolseiro (1960-63) e
Membro do Centro de Investigação Pedagógica da Gulbenkian (1964-66), este jovem
cinéfilo contava no currículo com as experiências de dirigente associativo (Cineclube
Católico e Juventude Universitária Católica) e de redactor da revista de pensamento e
acção O Tempo e o Modo, dispondo portanto de considerável influência nos territórios do
catolicismo progressista. A escolha deste cinéfilo para dirigir a intervenção da
Gulbenkian no cinema português devia-se sobretudo ao prestígio que Bénard da Costa
conquistara no seio da nova geração de cinéfilos e no círculo cultural lisboeta. Figura
tutelar do novo serviço, Bénard da Costa haveria de conduzir a intervenção da
instituição durante duas décadas, só se afastando, em 1991, para conduzir os destinos
da Cinemateca Portuguesa, a principal instituição ligada ao cinema em Portugal.
(Ibidem: 72-73).
Em carta dirigida ao “Centro Português de Cinema SCARL (em formação)“, datada
de 5 de Dezembro de 1968, Azeredo Perdigão informava que o Conselho de
156
Segundo as contas apresentadas no Ofício, esses 10 mil contos seriam suficientes para produzir dois
filmes a cores (cerca de 2.500 contos cada) e dois filmes a preto-e-branco (cerca de 750 contos cada) e
ainda uma verba considerável para promoção de filmes em Portugal e no estrangeiro, criação de uma
cinemateca, investimento em equipamento, entre outros. A esta proposta Gulbenkian contrapunha um
orçamento anual de 3.200 contos, que serviam “apertadinhos“ para quatro filmes a preto-e-branco (Costa,
1985: 35).
408
Administração da Gulbenkian rejeita a criação de um Centro Gulbenkian de Cinema mas
“aceita a hipótese de auxiliar financeiramente a criação e a manutenção“ de uma
sociedade cooperativa “exterior à Fundação, que, desde já declina toda e qualquer
responsabilidade pela sua vida e actividades.“ (Boletim Interno Circular do Cineclube do
Porto, XII-1968: 5).
Assim, da recusa de um Centro Gulbenkian de Cinema haveria de nascer o Centro
Português de Cinema (CPC), designação considerada apropriada para a desejada
cooperativa. A exclusão da referência à Gulbenkian agradava sobretudo à instituição,
afastando-a legalmente de qualquer responsabilidade criativa e política sobre o grupo
de rebeldes do CPC. Por outro lado, a escolha da palavra Centro parece representar um
desejo de centralização ou concentração de esforços em prol de uma batalha que se
queria comum. Curiosamente, António de Macedo recorda que a escolha da designação
resultou de mais uma noite de discussão entre os realizadores (Cunha, 2005: 73-74).
Inevitavelmente, o processo de formalização da cooperativa transformar-se-ia
numa longa novela da qual convém aqui recuperar o enredo. De uma forma muito
oportuna, em Junho de 1968, o governo fazia aprovar uma lei que obrigava todas as
cooperativas sem fins lucrativos a terem, antes da escritura notarial de constituição, os
seus estatutos homologados pelo respectivo Ministério. Este dispositivo legal permitiria
então ao regime arrastar burocraticamente a formalização da cooperativa por mais de
um ano (Ibidem: 74).
Em Abril de 1969, os fundadores do CPC entregavam na SEIT os respectivos
estatutos157 para a homologação, sendo então recebidos com pompa e circunstância
pelo próprio Moreira Baptista e por Caetano Carvalho, responsável directo pelo gabinete
da Cultura Popular e Espectáculos. Contudo, o regime “tinha as maiores reservas, para o
que muito deveria contar a opinião da PIDE. Tudo aquilo lhes cheirava a esturro“ (Lopes,
1985: 64).
A primeira versão dos estatutos da cooperativa foi rejeitada pelo Ministério do
Interior. “Corrigida“ pela Gulbenkian e adaptada aos pressupostos legais exigidos para
157
António de Macedo e Fonseca e Costa atribuem a redacção dos estatutos da cooperativa a Ernesto de
Oliveira, figura fundamental nos primeiros passos da cooperativa, de que aliás foi o primeiro presidente
(presidente da comissão organizadora), e que tem sido esquecida ou desvalorizada no estudo deste
período. Apesar de ter realizado apenas uma curta-metragem, este advogado de formação participou na
semana organizada pelo Cineclube do Porto e foi um dos signatários e principais responsáveis pela
elaboração d'O Ofício. Durante as negociações entre a cooperativa e a Gulbenkian, a sua influência
revelou-se sobretudo nas reuniões entre os futuros parceiros. Por outro lado, Fernando Lopes reclama que
os estatutos da cooperativa eram, “na sua forma prática e jurídica“, uma “invenção do Dr. Azeredo
Perdigão“. (Cunha, 2005: 75)
409
associações culturais, os novos estatutos do CPC resultaram de uma espécie de
compromisso entre as duas partes em estabelecer regras que não prejudicassem os
objectivos da cooperativa e o apoio da instituição (Cunha, 2005: 75-76).
A formação do CPC coincidiu com um período de assumida “crispação
anticooperativa“ por parte do regime. As relações entre o regime vigente e as
cooperativas culturais decorreriam então “numa atmosfera de suspeição“, culminando
dois anos depois na publicação do decreto-lei 520/71, a materialização de um processo
de contenção do movimento cooperativo (Namorado, 1996: 212-215).
Curiosamente, a desconfiança acerca da credibilidade da cooperativa também
reunia adeptos junto de figuras distintas no contexto do cinema português. Se era
conhecida a desconfiança por parte de elementos do velho cinema, foi com alguma
surpresa que deparei com um depoimento de Edgar Gonsalves Preto onde, em Dezembro
de 1969, este ironizava a propósito dos objectivos da cooperativa: “Receio que uma
cooperativa de cineastas acabe por ter como sede a ‘Grantina’, o ‘Vává’ ou o ‘Gambrinus’“
(Plateia, 4-I-1974: 23). Por outro lado, uma notícia divulgada pela revista Celulóide
afirmava que Jorge Brum do Canto, Manuel Guimarães, Francisco Saalfeld e Quirino
Simões se preparavam para formar uma cooperativa de profissionais de cinema, fazendo
crer que também estas figuras não estariam muito seguras das vantagens da cooperativa
financiada pelo CPC (Celulóide, III-1969: 11-12).
Em Dezembro de 1970, os estatutos do CPC eram finalmente homologados pelo
Ministério do Interior. Um ano e oito meses depois, o CPC era reconhecido legalmente
através do Diário do Governo (15 de Junho de 1971) e adquiria personalidade jurídica. O
CPC, enquanto “verdadeira cooperativa de autores“, nascia, segundo João Mário Grilo
(2006: 22) do “divórcio estabelecido e substanciado entre produtores e realizadores“. O
“divórcio“ vinha já sendo preparado pelos realizadores desde a elaboração do
documento Ofício do Cinema em Portugal (1968): na proposta do Centro Gulbenkian de
Cinema, os signatários defendiam que a “ação do Centro no ciclo da produção, a
verificar-se, deverá confinar-se a um auxílio material, abstendo-se de tudo o que possa
representar limitação ao caminho livremente escolhido pelos autores-realizadores“. Do
primeiro regulamento interno do CPC tem bastante importância o capítulo dedicado ao
serviço de produção, revelador da orgânica interna da cooperativa. Dentro do “espírito
associativo que rege o CPC“, este capítulo prevê “o agrupamento dos sócios efetivos em
grupos de produção, que serão constituídos por um mínimo de três elementos“. A estes
410
grupos caberia discutir e votar livremente os projetos apresentados pelos seus membros
e submete-los ao Conselho de Produção (Regulamento n.º1 do CPC s.d., 3-6).
Conforme determinavam os estatutos publicados em Diário do Governo, o objectivo
social da cooperativa consistia em “desenvolver e prestigiar o cinema português,
especialmente através da produção de filmes de livre criação artística.“ Para além da
produção de conteúdos, os membros da cooperativa comprometiam-se a promover a
formação de quadros profissionais, a difusão de filmes artísticos, a divulgação de filmes
portugueses no estrangeiro, e a formação cinéfila do público (Estatutos do CPC, 1971: 12).
Os corpos sociais da cooperativa eram composto por uma mesa da assembleiageral, a direcção e o conselho fiscal. Ao primeiro órgão competia a aprovação dos
relatórios e contas, a expulsão de sócios e alteração dos estatutos e dos regulamentos do
CPC. À direcção competia zelar pelos interesses sociais da cooperativa, criar delegações
e representantes, deliberação sobre direitos, deveres e penalizações dos sócios, criar
regulamentos internos e elaborar os relatórios e contas anuais. O conselho fiscal exercia
uma acção fiscalizadora sobre a escrituração do CPC e dar o parecer sobre o relatório e
contas (Ibidem: 11-14).
Em relação aos sócios da cooperativa, os estatutos estabeleciam quatro categorias
hierarquizadas: os sócios fundadores seriam os que outorgassem a escritura e os
primeiros a subscrever o capital social; os sócios efectivos seriam os realizadores
admitidos como usufrutuários dos benefícios sociais; os sócios colaboradores seriam
parceiros singulares ou colectivos que, sem direito de voto, colaboravam com a
cooperativa; finalmente, os sócios honorários seriam aqueles que, “em virtude de
excepcionais serviços ou quaisquer outros benefícios prestados ao Centro, se tornem
credores de tal distinção“ (Ibidem: 4-5).
Tal como ficou estabelecido nos estatutos, os signatários da escritura da
constituição da cooperativa ficariam com o estatuto de sócios fundadores e a admissão
de novos sócios ficaria dependente de uma proposta assinada por dois sócios fundadores
e pela ratificação da direcção da cooperativa. Procurando assegurar a integridade da
cooperativa como “órgão do cinema novo“, através deles se procuravam condicionar ou
“evitar ter sócios como o António Lopes Ribeiro ou o Perdigão Queiroga“, inimigos da
primeira hora desta nova geração (Costa, 1985: 34; Lopes, 1985: 63).
Assim, faziam parte dos sócios fundadores todos os membros do novo cinema, com
três excepções muito particulares. A primeira delas era António da Cunha Telles, que se
411
escusara mesmo a participar na reunião do Porto e se manteve sempre à distância
durante as negociações em torno da formação do CPC. Sentindo-se traído pelos antigos
“cúmplices“, depois do caso Sete Balas para Selma e do sucesso de Cerco, Cunha Telles
preferiu manter-se afastado dos antigos aliados. João César Monteiro representava a
segunda excepção, pois, como recorda Fernando Lopes, considerava os fundadores do
CPC “pouco radicais“ e mantinha uma difícil relação pessoal com António de Macedo,
“que sempre detestou“. Por estes tempos, Monteiro alimentava polémicas e inimizades
que lhe valeram a justa designação de “enfant terrible da crítica mais provocatória e por
isso julgado por muitos demasiado ‘extremista’“. Finalmente, a terceira excepção foi
António Campos, um amador autodidacta que passara ao lado de qualquer movimento
mas aproximava-se da batalha da nova geração por um cinema de qualidade (Costa,
1991: 132).
De uma forma oportuna, os estatutos remetiam diversos aspectos da orgânica
interna do CPC para os futuros regulamentos internos. Do primeiro regulamento tem
bastante importância o capítulo dedicado ao serviço de produção, revelador da orgânica
interna da cooperativa. Dentro do “espírito associativo que rege o CPC“, este capítulo
prevê “o agrupamento dos sócios efectivos em grupos de produção, que serão
constituídos por uma mínimo de três elementos“. A estes grupos caberia discutir e votar
livremente os projectos apresentados pelos seus membros e submete-los ao Conselho de
Produção (Regulamento n.º1 do CPC, s.d.: 3-6).
Este órgão consultivo representava os grupos de produção perante a Direcção. Ao
Conselho de Produção, constituído por um representante de cada grupo de produção,
competia: “apreciar e coordenar o plano geral e anual de produção“, “pronunciar-se
sobre a viabilidade dos projectos de filmes“, “acompanhar e controlar regularmente a
boa execução dos planos e despesas de produção“, “pronunciar-se sobre as vantagens de
aquisição de material“ e “pronunciar-se sobre a solução de divergências surgidas entre
elementos de cada grupo de produção“ (Ibidem: 3-5).
Regressando à aprovação dos estatutos, o realizador de Belarmino não se cansa de
insistir que a “batalha“ pelo reconhecimento institucional da cooperativa só foi possível
devido ao empenho pessoal do presidente da Gulbenkian. Por mais que uma vez, o
cineasta sustenta a tese de que Azeredo Perdigão “deve ter ido às mais altas instâncias“
e deve ter apostado “o seu prestígio de jurista e o peso da Fundação Gulbenkian“ para
ver aprovados os estatutos pelo Ministério do Interior. A justificação deste interesse
reparte-se, ainda segundo Fernando Lopes, por três argumentos: “o Centro reunia todos
412
os cineastas e técnicos que podiam dar alguma coisa ao cinema português“; “porque no
Centro estava Manoel de Oliveira“; “porque o João Bénard da Costa foi junto do Dr.
Azeredo Perdigão apóstolo do Centro“ (Lopes, 1985: 63-64).
A posição do próprio Bénard da Costa acerca do seu envolvimento é também
bastante ambígua. Por um lado, este autor nega qualquer envolvimento nas negociações
entre a cooperativa e a instituição, lembrando que “em tudo isto não fui tido nem
achado, pela simples razão de que ainda não entrara para a Gulbenkian, o que só
aconteceu cerca de um ano depois dessa reunião e quando já estavam aprovadas as
linhas mestras do acordo“ (Costa, 1985: 34). Contudo, noutra publicação, o actual
director da Cinemateca é peremptório ao afirmar que, enquanto director do novo serviço
da Gulbenkian, “fui e sou personagem e actor dele [novo cinema português]“,
“determinei a política da Fundação Calouste Gulbenkian para o cinema português
durante cerca de vinte e dois anos. (…) Não posso ficar longe donde estive e estou
perto, não posso pôr-me de fora donde estive e estou dentro“ (Idem, 1996: 81-82).
Percebendo a táctica “reaccionária“ do poder, no início de 1970, a comissão
organizadora da cooperativa pedira à Gulbenkian que transfigurasse o subsídio
atribuído em princípio ao CPC, ainda oficialmente inexistente, num subsídio atribuído
pessoalmente a quatro dos sócios da cooperativa para possibilitar arrancar com a
produção. Em Setembro desse ano, depois de algumas negociações e obstáculos
burocráticos, a Gulbenkian desbloqueava o dinheiro prometido e permitia o arranque
das primeiras produções do CPC, assinando os primeiros quatro contratos com Manuel de
Oliveira, Fonseca e Costa, Alfredo Tropa e António-Pedro Vasconcelos (Idem, 1985: 3538).
A escolha destes quatro projectos do primeiro plano de produção resultou do seio
da própria cooperativa. O problema interno da divisão do dinheiro resolveu-se mais
facilmente do que se esperava. Os membros da cooperativa decidiram subdividir-se em
pequenos grupos de produção ligados por “tendências naturais“ ou afinidades estéticas.
Para além de pretender uma maior rentabilização dos meios humanos disponíveis, a
ideia de constituição de grupos pretendia facilitar a decisão da escolha dos filmes a
produzir. Democraticamente, cada grupo decidia qual dos seus membros seria
contemplado e, assim rotativamente, chegaria a vez a todos (Lopes, 1985: 64).
As relações de cumplicidade dos membros resultaram rapidamente na constituição
de dois núcleos visivelmente mais fortes. Um primeiro grupo era formado António de
Macedo, José Fonseca e Costa, Manuel Ruas e Faria de Almeida. Um segundo grupo
413
incluía Fernando Lopes, Fernando Matos Silva e Alfredo Tropa. Outro núcleo forte, pela
forte cumplicidade e uniformidade estética, era constituído pelos “kimonistas“ Alberto
Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro, figuras capitais na
designada segunda geração do novo cinema e da nova crítica.
O sistema de funcionamento democrático e rotativo tinha estabelecido que cada
grupo de produção tinha autonomia financeira, “tanto em relação à Gulbenkian, como à
direcção do próprio Centro.“ Cada grupo receberia a sua fatia do orçamento da produção
para uma longa-metragem, escolhido democraticamente dentro de cada grupo. Por
outro lado, para rentabilizar os recursos, o CPC negociou vantajosos contratos com os
estúdios da Tóbis e os laboratórios da Ulyssea para os primeiros quatro filmes (Ibidem:
66).
Contudo, o primeiro plano de produção consagrou um conjunto de
particularidades que se afastavam um pouco do princípio democrático de um filme por
grupo. Em primeiro lugar, o caso Oliveira tinha sido resolvido já no Porto, em Dezembro
de 1967: nessa altura, os presentes haviam assumido o compromisso de fazer regressar o
“pai“ e “mestre“ ao cinema de ficção. Em segundo lugar, o caso Fonseca e Costa também
foi consensual: por diversos motivos políticos, o realizador esperava há quase uma
década rodar a sua primeira longa-metragem.
Os restantes dois filmes foram distribuídos pelos dois principais núcleos: no grupo
dos “kimonistas“ a decisão recaiu sobre António-Pedro Vasconcelos, enquanto Alfredo
Tropa foi o escolhido do outro grupo. A decisão do primeiro e do segundo grupos é,
talvez, um dos melhores exemplos do espírito solidário dos primeiros tempos do CPC:
Fernando Lopes e António de Macedo ficaram excluídos porque já tinham algumas
longas-metragens, prevalecendo o princípio rotativo na produção (Ibidem: 65-66).
Fora do financiamento contratado com o CPC, a Gulbenkian reforçava a sua aposta
no novo cinema. À margem da cooperativa, a Gulbenkian prosseguia a sua política de
subsídios e incentivo à arte cinematográfica: João César Monteiro recebia um subsídio
para prosseguir Quem espera por sapatos de defunto morre descalço, um projecto antigo
do mais polémico dos novos cineastas; António Campos recebeu outro subsídio para
rodar Vilarinho das Furnas, um documentário na linha do “cinema directo“ de Jean
Rouch; e Paulo Rocha obteve a encomenda para filmar Pousada das Chagas, um filme
sobre o museu de Óbidos.
De uma assentada, a Gulbenkian financiava, directa ou indirectamente, quatro
longas e três curta-metragens, iniciando uma pequena “revolução“ no cinema
414
português. O ano de 1970 ficaria conhecido como o “ano zero“ dos “anos Gulbenkian“,
expressão popularizada então e consagrada na obra posterior de António Roma Torres.
Depois do chamado “ano zero do cinema português“ (1955), que marcara o início de
contestação aberta do novo cinema, e depois da significativa experiência das Produções
Cunha Telles, o cinema português procurara um novo ponto de ruptura com o passado.
Corroborando este ponto de vista, em Junho de 1971, o responsável pelo serviço de
cinema da Gulbenkian lembrava que o “milagre“ da renovação do cinema português
cabia “em três palavras: Fundação Calouste de Gulbenkian.“ E justificava esta ideia: “Do
encontro dessa pobre realidade chamada ‘cinema nacional’ com essa outra – encontro
há muitos anos desejado e há muitos anos adiado – nasceu em grande parte este
‘milagre’“ (Celulóide, VII-1971: 3-4).
Curiosamente, contra esta designação que se vinha a popularizar desde o início
das rodagens, um pouco por toda a imprensa, António de Macedo apresentava
publicamente uma reclamação: “Em primeiro lugar, os filmes, sendo embora financiados
pela Fundação Gulbenkian, são, moralmente, do Centro Português de Cinema. Portanto,
passaremos a chamar-lhes, com mais propriedade, os ‘filmes do CPC’, e não os ‘filmes da
Gulbenkian’ –, até porque nalguns casos o subsídio da Gulbenkian não cobriu
integralmente o custo total de produção“ (Plateia, 29-VI-1971: 4). Este esclarecimento
vinha ao encontro do protocolo estabelecido entre a Gulbenkian e o CPC, sobretudo no
que respeita à autonomia criativa e administrativa da cooperativa.
Como já referi, em Dezembro de 1970, os estatutos do CPC eram homologados pelo
Ministério do Interior e a cooperativa podia finalmente regularizar a sua situação com a
Gulbenkian. No entanto, o CPC já era uma realidade e funcionava, na prática, desde a
aprovação interna dos respectivos estatutos.
Para formalizar a ligação, em 13 de Setembro de 1971, os dois parceiros assinavam
uma espécie de modus vivendi que determinava escrupulosamente as relações
institucionais entre os novos parceiros. Ficava estabelecido que a Gulbenkian não
assumiria qualquer responsabilidade na gerência ou manutenção administrativa do CPC,
reservando-se apenas um papel meramente fiscalizador sobre os destinos dados aos seus
subsídios. Esta fiscalização seria feita habitualmente no final de cada plano de
produção, ficando dependente da aprovação do seu relatório e contas o subsídio
referente ao ano seguinte, mas também podia acontecer “a todo o tempo“, sempre que a
Gulbenkian o entendesse.
415
Ficava também estabelecido, por um lado, que a Gulbenkian poderia promover
outro tipo de iniciativa ou intervenção fora do protocolo com o CPC e, por outro que, a
cooperativa poderia procurar apoios ou financiamentos a entidades estranhas a
instituição, sem prejuízo da quebra do protocolo assumido. Consagrava-se, mais uma
vez, o carácter autónomo e a não-exclusividade da relação entre as duas entidades.
Finalmente, a Gulbenkian reservava o direito de receber uma cópia de todos os
filmes realizados com apoio parcial ou total de subsídios da instituição e, de igual modo,
poder utilizar essas obras nas suas iniciativas de carácter cultural ou artístico sem
qualquer interferência do CPC. No último artigo do referido documento, a Gulbenkian
reservava o direito de “suspender ou cessar a todo o momento a atribuição ou
efectivação do seu auxílio, sempre que se verifique que o ‘Centro Português de Cinema –
SCARL’ se afastou dos fins que presidiram à sua constituição, ou houve notória quebra
de ritmo na respectiva actividade“ (Cinema Novo Português, 1985: 105-106).
Reafirmando uma das principais imposições da Gulbenkian, o protocolo
determinava que o CPC seria “uma sociedade cooperativa aberta, sem discriminações de
qualquer espécie, a todos os cineastas interessados na prossecução dos seus fins“. Esta
política de coesão do grupo obrigava, por exemplo, “António de Macedo a ser
‘cooperante’ com quem lhe chamara em público e por escrito, ‘incompetente’ e ‘pobre
Diabo’ (César Monteiro)“ (Monteiro, 2000: 322).
No entanto, algumas vozes críticas questionam a intervenção da Gulbenkian.
Vicente Jorge Silva, então um dos jovens críticos mais activos, apontava: “o problema
moral que inevitavelmente se põe é o de que uma grande parte dos novos cineastas se vê
excluída arbitrariamente“. O mesmo crítico acusa ainda a recém-criada cooperativa de
“servir os interesses de grupos formados a partir de um espírito que nada tem de
cooperativismo mas se destina apenas a garantir a preservação desses interesses“. Aos
“grupos formados“ que adormeceram “à sombra de certos louros efémeros
conquistados“, Vicente Jorge Silva lembra que “a conquista dos direitos não abstrai a
consciência dos deveres como suporte da sua legitimidade“ (Comércio do Funchal, 21IX-1969: 5).
O acto histórico da assinatura do modus vivendi ficaria completo com a exibição
privada do primeiro filme produzido pelo CPC, Recado de José Fonseca e Costa. No
Grande Auditório da Gulbenkian, nos dois dias seguintes, eram exibidos em sessões
privadas os restantes filmes financiados directa e indirectamente pela Gulbenkian,
excepto o filme de António-Pedro Vasconcelos que acumulava alguns problemas na
416
rodagem. No entanto, a data escolhida para a primeira estreia foi 25 de Fevereiro de
1972. Esta sessão contou com a presença do próprio Presidente da República Américo
Thomaz, teve lugar no Grande Auditório da Gulbenkian e foi preenchida por Pousada das
Chagas e O Passado e o Presente.
Esta sessão histórica permitiria, através de uma manifestação pública, a
consagração de um projecto comum em prol do novo cinema. Aparentemente, esta
sessão constituiu um “complexo jogo táctico entre a Fundação e o Centro Português de
Cinema“. Esta iniciativa permitiu que a Gulbenkian e o CPC exigissem ao regime o
reconhecimento expresso da “falência estatal da produção cinematográfica por
intermédio do Fundo do Cinema Nacional“, bem como a perda da “tutela da produção“,
através da imposição de um “modelo de produção liberto de todos os condicionalismos“.
Por outro lado, o CPC impunha uma nova ideia de cinema, “visão do cinema como facto
cultural“, e afirmava-se como “o único agente efectivo da produção cinematográfica em
Portugal“ (Cinema Novo Português, 1985: 102).
Para marcar o acontecimento, a Gulbenkian elaborou uma pequena brochura com
um texto de apresentação assinado por Azeredo Perdigão. Tentando justificar o atraso
da intervenção da instituição no apoio efectivo ao novo cinema, o responsável máximo
da Gulbenkian começa por traçar um breve esboço sobre a relação com o cinema ao
longo dos primeiros anos de existência da instituição. Reconhecendo a “impossibilidade
de resolver todos os problemas que se levantam ao desenvolvimento do cinema em
Portugal“, Azeredo Perdigão define o apoio ao CPC como uma intervenção “modesta,
prudente e experimental“, assumindo que a selecção dos beneficiários é da
“responsabilidade artística, moral e financeira da Instituição.“ A solução de
constituição de uma cooperativa “formada por gente do cinema e livremente dirigida
pelos seus pares“ enquadra o apoio ao CPC na orientação estatutária da instituição.
Demonstrando uma postura ambígua de expectativa e de esperança acerca do projecto
patrocinado pela sua instituição, Azeredo Perdigão acabava o seu texto com as
seguintes interrogações: “E, agora? Agora, vamos ver os mencionados filmes. E, depois?
Depois… veremos“ (Ibidem: 102-103).
A anteceder a sessão, coube a Fernando Lopes fazer um pequeno discurso
enquanto presidente da cooperativa. Apresentando o CPC como uma tentativa de dotar o
cinema português de “dimensão económica“ e de “posição cultural“, o realizador integra
o projecto da cooperativa no “movimento que, por volta dos anos 60, apoiado por alguns
jovens críticos e elementos cine-clubistas, tentou romper com o estado das coisas“. O
417
“esforço conjugado“ dos membros da cooperativa inaugura uma era cinematográfica que
pretende corresponder a uma velha aspiração: propor, “senão um cinema novo, pelo
menos uma alternativa“ (Ibidem: 4).
Mais uma vez, agora com O Passado e o Presente, o novo cinema “deu azo a grande
expectativa, e maior polémica.“ Não ficando indiferente, Oliveira continua a dividir
opiniões: “A crítica mais tradicional ficou perplexa ou condenou em bloco. Mas a nova
crítica cerrou fileiras“ (Monteiro, 1995: 677-678). Porém, como confessa Fernando
Lopes, a recepção crítica do filme foi também influenciada pela defesa de interesses
subterrâneos: “Talvez, no CPC, alguns colegas meus não gostassem do filme,
particularmente o Macedo que, diga-se, nunca terá gostado muito do Oliveira. […]
Como o filme desempenhava um papel importante no lançamento do Centro, o António
de Macedo foi impecável, nunca se pronunciando publicamente contra o filme. A mesma
coisa se passou com o Artur Ramos“ (Lopes, 1985: 65). José Fonseca e Costa e António
de Macedo corroboram desta observação. Pela condição de ser a primeira obra da
cooperativa e de ser assinada por Manuel de Oliveira, a defesa estratégica desta obra
representava provavelmente a afirmação estética do programa de intervenção do CPC e a
sobrevivência do próprio novo cinema.
Quanto aos restantes filmes do CPC, as opiniões divergiram significativamente,
inclusive dentro da própria cooperativa. Se Pedro Só passou “despercebido“, a recepção
crítica de O Recado permitiu um reacender de velhas “questões pessoais“. As duras
críticas dirigidas ao filme por alguns colegas, sobretudo dos “kimonistas“,
reintroduziram as posições da divisão interna que já se revelara na Semana do Porto.
Perdido por Cem…, o único com atraso considerável na produção e estreado já no prazo
do segundo plano de produção, também dividiu a família do CPC.
A fraca recepção do público a estes filmes fazia falir a pretensão de alguns
membros do CPC em criar fundos próprios e assim assegurar a subsistência quando
acabasse o período experimental pago pela Gulbenkian. Os comentadores mais
pessimistas criticavam a dependência dos subsídios que caracterizava o novo cinema
português e vaticinavam a falência do projecto traçado desde a reunião do Porto em
Dezembro de 1967. Os sectores mais críticos ao novo cinema felicitavam-se com o
fracasso das propostas dos “privilegiados da Gulbenkian“ (Costa, 1985: 40-41).
Pelo contrário, a recepção crítica estrangeira foi animadora. Depois da presença
importante de Fonseca e Costa e do seu Recado em San Remo, Jean Gili dedicou a IX
edição do Festival de Cinema de Nice ao Jeune Cinema Portugais. Em Março de 1972,
418
uma selecção de filmes que incluía as primeiras produções de Cunha Telles e do CPC,
filmes de João César Monteiro, António Campos, Cunha Telles e Rogério Ceitil, e uma
retrospectiva apreciável de Manuel de Oliveira (Plateia, 2-V-1972: 22-24; Idem, 23-V1972: 30-31). Mais do que uma mostra, esta iniciativa deu uma visibilidade mediática ao
novo cinema no mercado internacional que o cinema português nunca tinha
conquistado.
Com o segundo plano de produção, privilegiando a estratégia da rotatividade,
chegava a vez de Seixas Santos (Brandos Costumes) e Fernando Matos Silva (O Mal
Amado) se estrearem na longa-metragem. O recém-chegado Cunha Telles (Meus
Amigos), António de Macedo (A Promessa) e Paulo Rocha (A Ilha dos Amores)
completavam o lote dos filmes previstos. Tentando agradar as duas principais tendências
programáticas da cooperativa, os filmes de Seixas Santos e Paulo Rocha “iam para as
expectativas dos que mais se batiam por um cinema moderno; para Macedo e Cunha
Telles as expectativas dos que esperavam maiores êxitos de bilheteira“ (Costa, 1985: 4142).
De todos os projectos previstos, só A Promessa cumpriria o prazo de estreia.
Prevista a conclusão para os inícios de 1973, Meus Amigos atrasou-se um ano, O Mal
Amado só estreou dias depois da Revolução de Abril, devido à proibição da Censura, e
Brandos Costumes esperou até 1975. Quanto à Ilha dos Amores, o subsídio foi
reencaminhado para dois projectos de média metragem: Jaime, de António Reis e A
Sagrada Família, de João César Monteiro.
Exceptuando o filme de António de Macedo, todos os projectos registaram
problemas significativos de produção. Os filmes de Fernando Matos Silva e Seixas Santos
eram duas apostas politicamente arriscadas: o primeiro falava obliquamente da guerra
colonial e incluía cenas eventualmente chocantes, enquanto o segundo ensaiava a
queda do salazarismo. Para Bénard da Costa, estes realizadores “terão pensado que a
primavera marcelista podia ir tão longe que os abarcasse“ (Ibidem: 42).
Mais uma vez, a recepção crítica foi diversificada. A Promessa teve uma excelente
recepção crítica no estrangeiro – primeiro filme português presente na selecção oficial
do Festival de Cannes – mas convenceu poucos em Portugal. Significativo foi também a
proibição de O Mal Amado pela Censura. Depois de alguma contenção no primeiro ano, a
tentar convencer os responsáveis políticos da credibilidade do projecto CPC, a estratégia
para o segundo ano de produção passava pelo inevitável “embate“ com o poder e pelo
419
risco total. Assim, este perigo de intervenção da Censura era um risco de certo modo
esperado (Lopes, 1985: 68).
O terceiro e último plano de produção foi anunciado antes do 25 de Abril. Para
além de Manuel de Oliveira (Benilde ou a virgem-mãe), o CPC previa as primeiras longas
de Rogério Ceitil (Cartas na Mesa), Luís Galvão Teles (A Confederação), Faria de Almeida
(Bonecos de Luz) e João Matos Silva (Antes a Morte…). O projecto de Paulo Rocha (A Ilha
dos Amores) voltava a ser contemplado com subsídio. Mais uma vez, este plano trouxe
vários atrasos de produção. Os filmes de Ceitil e Oliveira estrearam entre o início e o final
de 1975, enquanto Galvão Teles concluiu o seu filme fora do CPC (em 1978) e o de João
Matos Silva nem chegou a estrear comercialmente, só ficando concluído em 1981.
Quanto ao projecto de Faria de Almeida, foi substituído por Trás-os-Montes, de António
Reis e Margarida Cordeiro.
O desnorte parecia já indicativo dos capítulos que se seguiriam. Em Fevereiro de
1974, a direcção do CPC mudava de timoneiro. Confessandose cansado, Fernando Lopes
era substituído por Paulo Rocha. Eleito pelos sócios da cooperativa, o novo presidente,
de acordo com a revista Cinéfilo, “vai certamente imprimir orientação diferente ao CPC“.
A acompanhar o novo presidente estavam António Reis (vice-presidente), Fernando
Matos Silva, António-Pedro Vasconcelos e Ernesto de Oliveira (Cinéfilo, 2-II-1974: 3).
No entender de João Bénard da Costa, o grupo fundador do CPC formava “um
grupo heteróclito, de tendências diversas, mas com um núcleo sólido (Paulo Rocha,
Fernando Lopes, António de Macedo, Fonseca e Costa, Seixas Santos, António Pedro
Vasconcelos) com apetência e capacidade de poder“ (Costa, 1991: 131).
Contudo, com o passar dos anos “tornava-se evidente que o corpo comum dos
homens do ‘cinema novo’ era uma aparência que só vigorava por razões tácticas.“ (Idem,
1985: 38) Apesar de tudo, em menos de seis anos, o CPC duplicava os seus membros:
aderiam à cooperativa dezoito novos realizadores, entre os quais velhos resistentes e
novas promessas entretanto surgidas.158
Cunha Telles, que só integrou o CPC no segundo plano de produção, confessa que
talvez se tenha integrado mal na cooperativa, mas não conheceu o espírito de
solidariedade e cumplicidade que caracterizou o primeiro plano de produção (Telles,
1985: 56). Tal como o anterior, também João César Monteiro alertou publicamente para
158
António da Cunha Telles, João César Monteiro, António Campos, António Reis, Luís Galvão Teles, João
Matos Silva, Rogério Ceitil, Sá Caetano, Margarida Cordeiro, António Faria, Eduardo Geada, Lauro
António, Jaime Silva, Luís Couto, Edgar Gonsalves Preto, António Damião, Noémia Delgado e Luís Filipe
Rocha.
420
a falta de solidariedade ou do funcionamento democrático habitualmente atribuído ao
CPC. Devido aos estatutos da cooperativa, a imposição da categoria de sócio-fundador
discriminou negativamente a entrada dos novos elementos, nomeadamente na
integração nas unidades de produção existentes e, sobretudo, na aprovação de
projectos de produção. Monteiro também dá conta da “política de compromisso da
Direcção“ e das “contradições internas e externas em que o CPC se tem batido“
sobretudo em relação aos imperativos financeiros. O realizador acusa o Conselho de
Produção de arbitrariedade anti-estatutária na escolha dos projectos e a Direcção da
cooperativa de recorrer à calúnia e à “violência (ameaças de expulsão, votos de censura,
represálias futuras aliás presentes, presentes e duras)“ para silenciar vozes incómodas
(Monteiro, 1974: 77-80). Um pouco mais agressivo, Monteiro afirma que a cooperativa é
“dominada por duas ou três ratazanas que fomentam a discórdia entre os sócios e
estabelecem, como modus vivendi, relações de força, fundadas no oportunismo, na
hipocrisia, na dependência mais servil, etc.“ (Ibidem: 91).
Esta situação de desadequação progressiva dos estatutos terá sido a principal
razão para, em Janeiro de 1973, um grupo de sócios ter constituído uma comissão “com
o objectivo de alterar os Regulamentos e Estatutos do CPC“. Na sequência desta
comissão, surgiu “uma carta assinada por um grupo de sócios que contestam, ainda que
dentro de uma táctica meramente reformista, o funcionamento e a razão de ser de um
seu organismo.“ Sempre incendiário, João César Monteiro concluiu: “Não é grande
coisa, não vai resolver nada, […] mas é bom que tenha sido escrita, é bom pôr o nome
em cartas limpinhas, – cartas na mesa da Direcção“ (Ibidem: 82-83).
São vários os testemunhos de alguns membros em relação à administração
discriminatória da cooperativa, nomeadamente um grupo onde se incluíam António de
Macedo, Fonseca e Costa, Luís Galvão Teles, Henrique Espírito Santo, João Franco,
Amílcar Lyra. Em Dezembro de 1973, estes membros do CPC reúnem-se na tentativa de
criar uma nova cooperativa, a futura Cinequanon, cujos estatutos foram ultimados até
ao mês seguinte. Contudo, a Revolução de Abril impediu a formalização da cooperativa
no tempo previsto, só vindo a concretizar-se logo nos meses seguintes à Revolução
(António de Macedo apud Cunha, 2005: 92).
Estes exemplos parecem demonstrativos dos problemas que marcaram a vida da
cooperativa desde a sua constituição até à desintegração definitiva. Desde os problemas
institucionais e burocráticos que marcaram a elaboração e aprovação dos estatutos, o
relacionamento interno dos seus membros – e reafirmo a necessidade de desenvolver a
421
petite histoire em torno destas relações – e a adesão de novos membros, a cooperativa
reflectiu um pouco a diversidade estética do novo cinema e a dificuldade em conciliar
interesses e objectivos distintos e até antagónicos.
Oportunamente, o início de actividade do IPC iria funcionar como alternativa para
membros da cooperativa menos satisfeitos com a orientação programática e com a falta
de solidariedade de alguns colegas na recepção de certos filmes produzidos sob o selo
CPC. Findo o período experimental, o CPC haveria de subsistir quase exclusivamente à
custa de subsídios individuais atribuídos a membros da cooperativa ou em colaboração
com outras produtoras.
3.6.2. ACOBAC
O 25 de Abril veio fragmentar definitivamente a unidade que restava ao CPC,
assistindo-se ao surgimento de cooperativas semelhantes: Cinequipa; o caso da já citada
Cinequanon; a Cinequipa; o Grupo Zero159, numa forte relação de parceria com o Teatro
da Cornucópia; a Cooperativa Paz dos Reis, no Porto; a Virver; entre outras.
O esvaziamento do CPC, acompanhando o que sucederia durante o PREC,
transformou-o, “primeiro, num refúgio para alguns de nós – os que não aceitávamos o
‘diktat’ do IPC, tomado então pelo PC e pela 5.ª Divisão – e, depois do 25 de Novembro,
numa utópica tentativa de socializar o cinema português“ (Lopes, 1985: 70).
Com o 25 de Abril e durante o PREC, a situação alterou-se substancialmente:
“Entretanto, a figura do produtor privado praticamente
desapareceu, agora que o capital pertence ao Estado, substituído pela
figura do 'director de produção' dos novos núcleos de produção: as
'unidades de produção', instrumentos do processo de nacionalização
atrás referido, e as cooperativas, desde o Centro Português de Cinema,
subsidiado pela Gulbenkian, às novas sociedades Cinequanon e
Cinequipa, para não citar mais. Apesar de tudo, a Tobis mantém-se
como grande unidade produtora, participando de muitos filmes
realizados, e surge também, agora patrocinando o que chama de
'produção externa', a Radiotelevisão Portuguesa.
Agora, o autor-realizador é a figura dinamizadora da produção,
liberto da tutela do 'produtor', mas realmente colocado sob a tutela do
IPC ou da RTP, que lhe fornecem os fundos. Proliferam, assim, os
'realizadores', numa verdadeira atomização do cargo, dirigindo os
mais diversos filmes, conhecidos pela designação genérica de 'filmes
de intervenção'. Mas, apesar desta aparência de liberdade, a realidade
159
Solveig Nordlund, Maria Viegas, Acácio de Almeida. Ricardo Costa, Paola, Alberto Seixas santos, Serras
Gago, Teresa Caldas, Guida Gil, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo.
422
é outra: por um lado, deixa de haver subsídio para os representantes
do velho cinema ou para cineastas ideologicamente opostos ao novo
regime (com excepção de Arthur Duarte, Jorge Brum do Canto ou
Teixeira da Fonseca); por outro, os projectos passam a depender da
linha ideológica de cada Governo (a decisão final das
comparticipações do IPC pertence ao ministro da tutela) e das decisões
de júris também superiormente designados. No entanto, para todos
aqueles que têm conseguido o subsídio estatal houve sempre a maior
liberdade, e deixou de existir censura prévia, salvo no primeiro plano
de produção de 1975, em que alguns argumentos sofreram imposições
ideológicas.“ (Pina, 1986: 182-183)
Em reunião plenária que decorreu nas Caldas da Rainha, em Junho de 1975, os
representantes das cooperativas resolveram projectar a criacção de uma União de
Cooperativas de Produção de filmes como forma mais eficaz de combater as posições e
“arbitrariedades“ cometidas pelo IPC, pela Direcção Geral da Cultura Popular e
Espectáculos e pelo próprio Ministério da Comunicação Social (Cineclube, 5, VIII-1975:
21).
O ponto de concórdia entre as diversas cooperativas era apenas as Unidades de
Produção, um inimigo comum, e a necessidade de luta contra essas novas entidades
instituídas por Pinto Leite no IPC, “por elas permitirem o controlo do Estado e partidário
(por parte do PCP) da produção cinematográfica“ (Dionísio, 1994: 273). Por isso e,
fundamentalmente, porque as Unidade de Produção punham em risco a
sustentabilidade e a própria sobrevivência das cooperativas. Em Julho de 1976, a
ACOBAC coloca-se “definitivamente contra o IPC“, exigindo a extinção das Unidades de
Produção.
Como sublinha José Filipe Costa (2014: 53), as cooperativas juntam-se numa
“frente comum de oposição às políticas de cinema propostas por Vasco Pinto Leite“, isto
apesar de as diferentes cooperativas estarem “associadas a um mosaico de diversos
interesses e projetos“: “reconhece na Cinequanon uma postura política alinhada com a
extrema-esquerda, enquanto associa a Cinequipa ao PS e o Centro Português e Cinema a
diferentes áreas ideológicas“.
Em 1977, alguns anos depois de terminado o acordo de financiamento entre a FCG
e o CPC, Bénard da Costa terá aconselhado o Conselho de Administração da FCG a
financiar “projectos que eram relativamente sui generis“, que “não se destinavam ao
circuito comercial e que pudessem genericamente enquadrar-se no espírito do referido
Museu de Imagem e Som.“ (Ibidem) Fernando Lopes confirma esta intervenção decisiva
de Bénard da Costa a favor de “uma ajuda sistemática a esse projecto do Museu da
423
Imagem e do Som.“ (Cinema Novo Português, 1985: 67). No início de 1976, o CPC
convidou o cineasta Jean Rouch para visionar alguns filmes portugueses e contactar de
perto com realizadores portugueses. Sobre esse encontro, o cineasta francês endereçaria
uma carta ao CPC onde elogiava as obras particulares de António Reis e de António
Campos, dois “autores tão secretos e complicados“ a quem Rouch apelida de “monstros
sagrados“ (Jean Rouch apud Madeira, 2000: 119).
Do acordo firmado entre a FCG e a Associação de Cooperativas e Organismo de Base
da Actividade Cinematográfica (ACOBAC) – da qual faziam parte o CPC, a Cinequanon, a
Cinequipa e o Grupo Zero –, resultaria uma série de apoios financeiros à produção,
directa ou indirectamente enquadrados no projecto do Museu da Imagem e do Som, a
diversas curtas, médias e longas-metragens, na sua grande maioria do género
documental.
O Museu da Imagem e do Som foi um projecto informal do CPC que pretendia criar
condições para “a produção de uma série de filmes que dessem conta do Portugal
desconhecido que está à espera de nós, de tradições e costumes em vias de desaparecer,
mas também de filmes biográficos sobre alguns dos nossos grandes vivos“ (Costa, 2007:
44). Mais do que um projecto concreto, o Museu da Imagem e do Som foi sobretudo uma
ideia de cinema, um plano de intenções que marcou diversos realizadores portugueses
durante esses anos e que teve obras mais ou menos conseguidas. Este singular
“momento antropológico“ mostrou uma audácia e uma versatilidade criativa que
constituiu uma etapa importante na construção da identidade do cinema português e do
Portugal recém-democrático160 (Cunha, 2009: 85).
Eduardo Prado Coelho (1983: 70) integrou o projecto Museu da Imagem e do Som
no momento em que “um sector muito significativo dos trabalhadores de cinema decidiu
intervir na recolha de toda uma memória cultural do nosso povo prestes a ser varrida
160
Nós por cá todos bem (1976, Fernando Lopes, prod. CPC), filme que mistura actores profissionais e
amadores, documentário e ficção, na aldeia natal do realizador (Várzea, Beira Litoral); Ma femme
chamada Bicho (1976, José Álvaro de Morais, prod. CPC), documentário sobre Maria Helena Vieira da
Silva; Máscaras (1976, dNoémia Delgado, prod. CPC), documentário sobre as festas populares arcaicas no
nordeste transmontano; Terra de Abril (1977, Philippe Constantini, prod. INA/França), documentário
sobre as tradições da aldeia de Vilar de Perdizes; Os bonecos de Santo Aleixo (1977, João e Jorge Loureiro,
prod. Cooperativa Paz dos Reis), documentário sobre os títeres tradicionais alentejanos ambientado na
aldeia homónima; Gente do Norte ou a história de Vila Rica (1977, Leonel Brito, prod. Cinequanon),
documentário sobre a comunidade transmontana de Torre de Moncorvo; Maladena (1977, Manuel Costa e
Silva, prod. CPC), ambientado no Alentejo; O construtor de anjos (1978, Luís Noronha da Costa, prod. IPC),
experiências plásticas em registo gothic ambientado em Sintra; Veredas (1978, João César Monteiro, prod.
IPC), filme inspirado em contos tradicionais portugueses compilados por Carlos de Oliveira e José Gomes
Ferreira; Goa e Mombasa (1980, António Escudeiro, prod. CPC), dois documentários sobre a influência
portuguesa no Oriente; Música Moçambique (1981, José Fonseca e Costa, prod. Filmform), registo de um
festival de música tradicional moçambicana.
424
pelos moldes uniformizantes da cultura de massas“. No entanto, para Prado Coelho, a
“própria designação envolvia um paradoxo“. O complexo “movimento antropológico“
desenvolvia-se no ambíguo território que demarca o documental e o ficcional: “este
‘retrata’ uma realidade que já não existe, que nunca existiu, impossível de existir, mas
retrata-a com a mais implacável das fidelidades. Fidelidade a quê? Diríamos que a uma
visão do mundo, no sentido mais visionário da fórmula, ou, se não tivermos medo da
palavra, a uma metafísica (Ana será a revelação plena disso)“ (Ibidem: 70-72).
As alterações provocadas pelo 25 de Abril no cinema não foram apenas políticas e
ideológicas. Também do ponto de vista sócio-profissional e produtivo, o panorama
cinematográfico português conheceu diversas transformações neste período e nos anos
imediatos que se seguiram. Um dos fenómenos mais curiosos então verificados foi a
proliferação de cooperativas de produção cinematográfica. Ainda nas vésperas e no
imediato pós-25 de Abril, o exemplo cooperativo do CPC daria origem à criação de
diversas cooperativas de produção – Cinequanon, Cinequipa, Grupo Zero, entre outras –
que tiveram uma duração efémera graças a pontuais subsídios públicos e à produção de
pequenas e médias metragens. No final dessa década, uma a uma, as cooperativas foram
fechando actividade ou reconvertendo as suas estruturas cooperativas a uma produção
de mercado. No entanto, durante a segunda metade da década de 70, o cinema
português viveu um singular período, mantendo uma actividade cinematográfica activa
sem produtores no sentido clássico do termo e buscando formas alternativas de criação e
produção.
Em 1978 o fenómeno ganha particular alento e são criadas novas cooperativas
cinematográficas: as antigas Produções Francisco de Castro transformavam-se na
cooperativa Copercine; Cooperativa Eranova, que foi criada em Janeiro de 1978 “a partir
da necessidade de distribuir o filme Torre Bela, de Thomas Harlan“ (Dionísio, 1994:
309); FilmForm (Costa, 2007: 45); ProleFilme; Forum, que contava com Artur Ramos
entre os seus membros, produziria vários documentários de “cariz político e de temática
industrial“, a série para televisão Retalhos da Vida de um Médico (1978-79, Artur Duarte)
e A Noite e a Madrugada (1985, Artur Ramos) (Ramos, 1989: 321-322).
Parece-me claro que o modo de produção cooperativo do CPC e de outras
cooperativas similares só funcionou enquanto o grupo de cooperantes era relativamente
reduzido. Com a entrada de novos membros, a cooperativa tornou-se “ingovernável“
dado o orçamento disponível e os diversos projetos individuais em perspetiva.
425
Em Outubro de 74, João Matos Silva (Cinéfilo, 16, 17-I-1974: 31) sublinhava os
objetivos da sua cooperativa: o desmantelamento do sistema de distribuição e exibição,
tal como até aí tinha vigorado e o seu reenquadramento. Esta intervenção recuperava
uma questão complexa: se, por um lado, a lei 7/71 permitiu “resolver“ –
temporariamente, ver-se-ia mais tarde – a questão da produção, garantindo um
financiamento público regular, por outro, não operou nenhuma transformação idêntica
nos sectores da distribuição e da exibição.
O CPC já tinha percebido que a chave para a sobrevivência da produção
cinematográfica dependia da sua circulação. Por causa do suposto “divórcio“ com o
público português e do seu estatuto de independência em relação ao mercado, essa
cooperativa optou por um modelo de circulação que privilegiou a internacionalização do
cinema português, investindo na realização de ciclos e mostras e na presença de filmes
portugueses em importantes certames cinematográficos internacionais.
O conturbado processo produtivo do filme Amor de Perdição (1976-78) de Manoel
de Oliveira marca simbolicamente a falência do modo de produção cooperativo e lançou
um novo paradigma que vingaria na década de 1980: marca o fim da “produção militante
do ‘cinema de Abril’“ e projeta a internacionalização do cinema português iniciada anos
depois por António-Pedro Vasconcelos e Paulo Branco na VO Filmes, “produtora de
filmes de autor, um pouco no espírito dos produtores franceses de arte e ensaio.“ (Grilo,
2006: 27). Com o fim do CPC, o modelo de produção através de cooperativa estava
esgotado e surgiam outras modos de produção que o iriam substituir na década
seguinte, nomeadamente a co-produção com parceiros estrangeiros.
3.7. Co-produção
Em Abril de 1964, a revista Celulóide (IV-1964: 6) noticiava a criação de uma nova
co-produtora portuguesa, a AVA, “que poderá exercer significativa influência no
fomento da indústria cinematográfica portuguesa“. Atentos ao “que acontece em
Espanha“ e “ainda à promoção do Turismo Nacional“, “um grupo de individualidades de
destaque em vários campos de actividade“161 constituiu a empresa cinematográfica
161
“Após a escritura de constituição, reuniu-se a assembleia geral da nova Empresa para eleição dos seus
corpos gerentes e de entre os sócios foram escolhidos:
Para o Conselho de Administração: Dr. José Neves Raposo de Magalhães, director da Fundação Gulbenkian
e vice-governador do Crédito Predial; Dr. Américo Saraga Leal, vice-presidente da Junta de Acção Social,
426
direccionada para seleccionar e estudar propostas de filmes rodados parcial ou
integralmente em território português por produtores estrangeiros, “tendo em vista a
promoção mais eficiente e digna do turismo português e a garantia de êxito económico
do filme“.
No mesmo mês, noutra publicação (Rádio e Televisão, 25-IV-1964: 25), era o
produtor Felipe de Solms que defendia publicamente uma aproximação de política de
co-produção com países estrangeiros, em particular com Espanha, desde que isso
servisse “para dar a conhecer técnicos ou artistas ou realizadores portugueses no
estrangeiro, mas não para dar novos mercados aos filmes de fora“.
Em Agosto do mesmo ano, a mesma Rádio e Televisão (29-VIII-1964: 3) anunciava
a vinda a Portugal do realizador sueco Bertil Olsson com o objectivo de firmar “um
possível acordo de co-produção entre os dois países“. O objectivo do realizador nórdico
era reunir as condições para rodar em terra algarvias o filme As Coroas de Palmas Pretas,
uma longa-metragem a realizar por Lars Magnus Lindgren. No mesmo mês, estreava na
Suécia uma longa-metragem intitulada Att Alska (Amar) que fora filmada em Portugal e
que tivera Manuel Costa e Silva como assistente de realização (Idem, 22-VIII-1964: 3).
Em Junho, encontrava-se em rodagem em Lisboa o segundo filme que Pierre Kast
rodava em Portugal no espaço de poucos meses. Depois de Vacances Portugaises (coprodução de Clara d'Ovar, Cunha Telles e Peter Oser) e da curta PXO, Kast filma agora
novamente em território português para rodar uma co-produção franco-portuguesa
Intriga Internacional (Le grain de sable), novamente com Cunha Telles e com Manuel
Costa e Silva na fotografia (Idem, 13-VI-1964: 4).
Subitamente, no início da década de 60, a co-produção surgia aos olhos de muitos
produtores portugueses como um lucrativo negócio e uma hipótese com muitas
potencialidade. Apesar disso, o modo de produção em parceria com empresas
cinematográficas estrangeiras não era propriamente inédito no cinema português.
Só para recuar até à década anterior, começo pelas tentativas com parceiros
espanhóis, onde algumas das figuras mais profícuas do cinema português tentaram
novos projectos sem resultados significativos: Arthur Duarte realizou e produziu
do Conselho Fiscal da Tobis; o actor António Vilar; José Manuel Castelo Lopes, administrador da Empresa
Distribuidora Filmes Castelo Lopes e do Cinema Condes e Dr. António Braz Teixeira.
Para o Conselho Fiscal: Dr. Ruy Leitão, administrador da STAR; Dr. Eduardo Freitas da Costa,
administrador da RTP; e Dr. Ruy da Gama.
Para a Assembleia Geral: Prof. Mário de Albuquerque e Joaquim Monteiro Grilo, da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, respectivamente presidente e vice-presidente; Dr. Fernando Teixeira, chefe da
Redacção do 'Diário Popular', 1.º secretário; e eng. José de Andrade, 2.º secretário.“
427
Parabéns, Senhor Vicente/Nubes de Verano (1954); Perdigão Queiroga produziu Sextafeira 13/Martes y Trece, de Pedro Lazaga (1962); e Henrique Campos realizou a versão
portuguesa de A Canção da Saudade/Los Gatos Negros (1964). No final da Segunda
Guerra Mundial, Aníbal Contreiras havia tentado várias parceria com produtoras
espanholas, de onde resultariam três longas-metragens: Rainha Santa (1947), Senhora
de Fátima (1951) e Lavadeiras de Portugal (1957).
Em Setembro de 1957 viaja para o Brasil para tentar a sua sorte. Apesar de viajar
com a missão de contratualizar a exibição comercial no Brasil do filme Lavadeiras de
Portugal, uma co-produção franco-espanhola que havia produzido, Contreiras estava
falido e acabaria por se radicar o Brasil e por se dedicar à organização de espectáculos.
Para além de exibir pontualmente em terras brasileiras os filmes luso-espanhóis por si
produzidos, não deixaria de tentar um último projecto cinematográfico: exibir pelo
Brasil o filme Assim é Portugal, em 16mm a cores, enquanto ia rodando um
documentário semelhante intitulado Assim é o Brasil. O projecto não vingaria, nem a
carreia da Contreiras no cinema brasileiro, tendo acabado por regressar mais tarde a
Portugal (Pina, 1987:15).
Pelo contrário, Armando de Miranda tinha emigrado para o Brasil oito anos antes,
em 1949, e por lá conseguira continuar a sua carreira de realizador, contando mais
quatro longas-metragens, duas delas em regime de co-produção com Portugal: O Cantor
e a Bailarina (1960, prod. Luso Brasileira Filmes e Produtores Associados) e A Montanha
dos Sete Ecos (1963, prod. Octan Filmes e Polígono Filmes). Se o primeiro filme ainda
teve estreia em Portugal, o segundo ficou-se apenas pela exibição comercial em terras
brasileiras. Armando de Miranda ainda foi exibindo os seus filmes anteriores (Capas
Negras, 1947; Serra Brava, 1948) em várias salas brasileiras, mas as iniciativas pontuais
e a falta de interesse dos distribuidores não permitiram criar um espaço para a eventual
circulação de cinema português.
Quem também se radicaria no Brasil, entre 1961 e 1965 seria Arthur Duarte, onde
realizaria uma longa produzida em parceria com duas produtoras brasileiras (Marsouso
Filmes e Carioca Filmes): Em legítima defesa/Encontro com a morte (1965). Apesar das
pretensões de fazer o filme estrear em Portugal, e apesar de o realizador ter assegurado a
distribuição do mesmo em território nacional, a censura proibiria integramente o filme
por considerá-lo “moralmente reprovável“ (Matos-Cruz, 1999: 129).
Neste período, com parceiros brasileiros, o único caso de sucesso aconteceria com
Francisco de Castro, que seria produtor associado do filme de Anselmo Duarte O Pagador
428
de Promessas, que venceria o grande prémio em Cannes em 1962. No entanto, este caso
é muito particular e tem alguns pormenores que o enquadram apenas como uma
parceria de “fachada“, visto que o produtor português apenas se terá associado à
distribuição do filme.
Se nos anos 50 as tentativas de parcerias de co-produção internacional tinham
sido direccionadas principalmente para o Brasil e para Espanha, sobretudo por razões
afectivas e históricas, na década de 1960 as tentativas de internacionalização do cinema
português voltava-se para o centro da Europa, particularmente para França, muito por
influência da nova geração cinéfila que elegera Paris como a nova capital do cinema. O
caso das co-produções de António da Cunha Telles com diversos parceiros franceses, já
citados no capítulo dedicado à sua empresa produtora, e de outras iniciativas pontuais,
são sintomáticas dessa mudança de estratégia que se virava agora para um espaço onde
as afinidades estéticas seriam mais evidentes. Ainda assim, apesar dos propósitos
“culturais“ e “artísticos“, estas parcerias com o centro da Europa também se moviam por
objectivas pretensões comerciais e económicas, procurando integrar um circuito
internacional de exibição alternativo de prestígio que surgia cada vez mais como uma
alternativa ao mercado de exibição interno.
A lei de protecção do cinema nacional de 1971 definia como uma das
competências do recém-criado Instituto Português de Cinema (IPC) a promoção de
“acordos cinematográficos internacionais, nomeadamente de co-produção“ e estudar
“os termos de produção de filmes em regime de co-participação“. O diploma equiparava
as co-produções aos filmes nacionais “para efeitos de assistência técnica, atribuição de
prémios e fixação de contingentes de distribuição e exibição“, enquanto as coparticipações apenas seriam consideradas para “efeitos de atribuição de prémios e
fixação de contingentes“. No entanto, para atribuição de assistência financeira, o IPC
exigia pelo menos 20 % de capital português, versão falada em português, intervenção
de técnicos e actores portugueses em proporção e utilização de locais de filmagem
portuguesas (Diário das Sessões, 2.º suplemento ao n.º 138, 16-XI-1971, pp. 2792-(4952)).
Apesar da legislação em vigor, nas duas décadas seguintes não se fizeram acordos
significativos, mas apenas algumas experiências isoladas de co-produção na linha das
tentadas anteriormente. O caso mais visível foi o de Eusébio, a Pantera Negra/Eusébio, la
Pantera Negra, realizado por Juan de Orduña e estreado em Lisboa a 11 de Abril de 1974,
429
uma longa-metragem de qualidade medíocre que procurava tirar partido comercial da
vida e carreira de uma das figuras mais mediáticas da sociedade portuguesa de então.
Em Janeiro de 1978, José Fonseca e Costa inicia a co-produção de Kilas, o mau da
fita, com actores reconhecidos pelos portugueses das telenovelas brasileiras (Armando
Bogus, Natália do Vale e Lima Duarte), que “pode bem ser a pedrada no charco na nossa
estagnação“ (Isto é cinema, 1, 27-I-1978: 16). A co-produção entre o CPC e a com os
brasileiros da Penta Filme do Rio de Janeiro teria, “à partida assegurado o mercado
brasileiro, facto quase inédito na nossa produção, pelo menos a mais recente“. (Ibidem,
4, 17-II-1978: 6)
No entanto, na segunda metade dos anos 70 foram assinados vários protocolos de
cooperação cinematográfica: Roménia, Jugoslávia, URSS, Senegal, Bulgária e
Checoslováquia em 1976; Líbia em 1977; Venezuela em 1979. Mas o mais importante
seria o foi assinado em 1981 com a França (Decreto n.º 79/81, de 19 de Maio), no mesmo
ano do Brasil (Decreto n.º 48/81, de 21 de Abril), mas este bem mais burocrático e sem
resultados práticos nos anos seguintes. Os países de expressão portuguesa só assinariam
os seus protocolos de cooperação a partir do final dessa década: Cabo Verde (Decreto
33/89, de 10 de Agosto); Moçambique (Decreto n.º 52/90, de 11 de Dezembro); Angola
(Decreto n.º 12/92, de 20 de Fevereiro); e São Tomé e Príncipe (Decreto n.º 17/94, de 17
de Junho).
3.7.1. Departamento de Co-produção de Cinema da RTP
No meio cinematográfico, como de resto se verificou noutros países, a chegada da
televisão foi vista com alguma preocupação por parte de alguns produtores,
distribuidores e exibidores, que chegavam à imprensa e ao debate público. Para além
dos que defendiam os “perigos“ dessa nova “ameaça“, muitos outros defendiam uma
coexistência e até uma colaboração entre os dois meios de comunicação que os
beneficiaria a longo prazo:
“(...) Cinema e Televisão são formas diferentes, são artes
diversas. A própria Televisão é uma maneira, é um modo moderno de
apresentar Cinema ao domicílio. A Tv em nada prejudica o Cinema, sob
o ponto de vista artístico. Quanto muito, pode afectar um campo
determinado do comércio e da indústria cinematográfica, o da
exibição. E nesse aspecto, não resta dúvidas, que a Tv o conseguiu
parcialmente, apenas.
430
Aliás, é a Televisão uma nova fonte de receitas para o Cinema.
Em Portugal, a RTP apresenta todos os anos cerca de 50 filmes de
fundo, além de centenas de reportagens filmadas, documentários e
'séries' . A Televisão francesa apresenta muito mais, No Luxemburgo,
na Bélgica, no Mónaco, na Espanha, como na América, a Televisão
exibe centenas e centenas de filmes. Não está, pois, o Cinema em
perigo.
(...)
A Tv precisa do Cinema ou tem mesmo de produzir Cinema pelos
seus próprios meios. Jean Renoir, o grande Renoir, realizou para a
Televisão francesa um filme que corre agora nos cinema em Portugal.
Rosselini, na mesma ocasião, em que rodava o seu filme sobre a Índia,
filmava aspectos préviamente elaborados para a Televisão.
As tentativas de tele-filmes de enredo em Portugal não foram,
em geral, satisfatórias. Ainda não se tentou, que saibamos, a produção
de séries filmadas entre nós, com assuntos novos, feitos por técnicos
nossos.“ (Celulóide, 61, I-1965: 23)
Como referi no capítulo anterior, se a televisão portuguesa rapidamente deixou de
ser uma fonte de receitas para o cinema português no que respeita a direitos de emissão,
porque passou a emitir maioritariamente filmes de produção estrangeira, a “esperança“
de uma “coexistência“ reciprocamente vantajoso passava pela produção. E é certo que
inicialmente, sem quadros próprios, a RTP recorreu a muitos colaboradores externos,
entre eles vários cineastas amadores, para garantir “reportagens“ para a sua
programação. No entanto, com o passar dos anos, e com a chegada dos bolseiros do
Fundo do Cinema Nacional (Fernando Lopes, Alfredo Tropa, Teresa Olga, entre outros)
que foram receber formação no estrangeiro e com o recrutamento progressivo de
quadros próprios, a RTP foi ficando menos dependente da colaboração externa.
A determinada altura, a aposta da televisão pública passou também pela produção
de “telecinema“, designação então usada para definir produções cinematográficas feitas
para suporte televisivo. A produção própria de conteúdos apresentava-se então como
uma forma eficaz de reduzir os elevados custos da programação cinematográfica,
inflacionados pelo aumento exponencial de horas de emissão. Simultaneamente, a
aposta na produção de telecinema favorecia a rentabilização dos recursos humanos e
técnicos e permitia um aumento de produções próprias que engrossavam a carteira de
vendas ou trocas internacionais em mercados televisivos especializados.
A especificidade do pequeno ecrã tornava a concretização de telefilmes um
processo produtivo bastante diferente de uma produção cinematográfica. Desde a
tecnologia, ao tamanho da equipa e tempo de execução, todo o processo produtivo é
431
mais ágil e simplificado, tornando o formato rentável e prático para as exigências da
televisão pública.
O cinema, feito para televisão ou para as salas comerciais,
realizado por profissionais ou amadores, em 35 ou 16mm, é sempre
cinema e, como tal, exige sempre a mesma linguagem servida pela
mesma técnica.
(…)
Claro que as limitações do ‘ecrãn’ de TV nos levam a alterar ou a
elaborar especialmente a planificação dum filme que lhes é destinado,
mas isso é circunstância de somenos importância na tarefa complexa
que é a realização cinematográfica. (Plateia, 24-XII-1962: 13).
“- No campo cinematográfico, a TV actua como divulgadora, pois
não só consegue levar o filme até onde ele talvez nunca chegasse a ser
exibido, como ainda permite que ao mesmo tempo, seja apreciado por
um maior número de pessoas. (…)
- Quais as diferenças fundamentais entre um filme realizado
para a TV e outro para exploração comercial?
- Obrigatoriamente, a técnica empregada não é igual. E vejamos
porquê… Dados as reduzidas dimensões dum écran de TV, há que
valorizar, na realização os “grandes planos“, sem prejudicar o valor do
tema, pois as panorâmicas extensas tornam-se pouco perceptíveis No
Cinema, o recurso duma projecção, ampliada enormemente, já poderá
livrar o realizador dessa preocupação, levando-o a apresentar as
imagens doutra maneira“. (Adriano Nazareth apud Rádio e Televisão,
26-III-1960: 7/18)
Apesar da generalidade dos realizadores dos quadros da RTP garantirem que o
telecinema produzido na televisão pública não seria deficitário em qualidade
cinematográfica, não se pode ignorar que técnica e esteticamente o processo produtivo
de cinema para televisão é substancialmente diferente. Por exemplo: o facto de o
telecinema ser produzido exclusivamente em película de 16mm condiciona
necessariamente aspectos técnicos como o enquadramento do plano e a mobilidade da
câmara; o facto de o ecrã de exibição do filme ser um televisor em vez da tela de cinema
obriga o realizador a optar por planos mais aproximados e a abdicar os grandes planos; o
ritmo de trabalho mais apressado, e uma equipa de trabalho mais reduzida, não
permitem aos filmes para televisão um número excessivo de takes para um mesmo plano.
Em 1960, Luís de Pina, em editorial da Filme (XI-1960: 3), confiava que a
experiência do telecinema poderia contribuir para a necessária e urgente renovação do
cinema português: “Existe na Rádio Televisão Portuguesa um núcleo de realizadores
capazes de darem boas provas se forem chamados pelo cinema nacional.“
Entre os realizadores de telecinema mais experientes da RTP merecem particular
atenção Baptista Rosa, Artur Ramos, Adriano Nazareth, Fernando Frazão, Augusto
432
Cabrita e José Elyseu. São da autoria destes realizadores os primeiros telefilmes da
televisão portuguesa, filmes que vão do documentário à ficção e que foram apresentados
na televisão pública como um importante projecto de renovação do cinema português,
com intenções que fizeram aumentar as expectativas. Os resultados irregulares e
desequilibrados dos diversos filmes fomentaram diferentes apreciações críticas. Desses
veteranos da televisão apenas Artur Ramos tentaria a realização de longas-metragens
em 35mm e com estreia cinematográfica (Pássaros de Asas Cortadas, 1963) porque foi
afastado da RTP por razões políticas. Ironicamente, os outros dois realizadores da
televisão pública que filmaram em 35mm e estrearam longas-metragens em sala foram
dois jovens sem experiência específica em telecinema: Fernando Lopes (Belarmino, 1964
e Uma Abelha na Chuva, 1971) e Alfredo Tropa (Pedro Só, 1972).
Por estes anos, a maior eventual ameaça do telecinema em relação ao futuro do
cinema português era outra bem mais prática: o aumento significativo da programação
de produção própria da RTP tornou insuficientes as infra-estruturas que a televisão
pública dispunha, condição que obrigou os seus responsáveis a ampliar, de forma célere,
as instalações dos serviços de produção. A solução passou, em 1963, pelo arrendamento
imediato de um dos estúdios da Tóbis Portuguesa. As condições de produção e de
localização dos estúdios da Tóbis tornavam-nos apetecíveis para suprimir as recentes
necessidades de produção da televisão pública, fazendo avançar as negociações tendo
em vista a aquisição dos estúdios pela RTP. A intenção esbarrou então nas “pressões
exercidas por homens e instituições ligados ao cinema português“, que previam que “tal
transacção iria privar o cinema nacional do seu maior estúdio“ e “do seu mais amplo
laboratório“, precisamente numa época que “urge desenvolver o cinema português“
(Teves, 2007: 30).
No decorrer dos anos 60, o projecto Televisão Educativa (mais conhecido como
“Telescola“), criado no âmbito dos trabalhos do Instituto dos Meios Audio-Visuais de
Ensino, foi uma importante experiência de sensibilização que contou com a colaboração
de diversos cineastas, como Manuel Costa e Silva, Luís de Pina, Faria de Almeida,
António-Pedro Vasconcelos e Abel Escoto. Ainda que as actividades deste instituto se
centrassem essencialmente na produção
e
divulgação
de filmes
técnicos,
particularmente agrícolas e industriais, foi uma experiência marcante para os
realizadores que nele colaboraram.
Como lembra Luís de Pina (1986: 178), nas vésperas do 25 de Abril de 1974, “boa
parte do cinema português, embora no formato de 16 milímetros, passa pelas câmaras de
433
cinema da Televisão“. Privilegiando maioritariamente o género documental, a produção
de cinema da RTP também promoveu a formação de quadros técnicos muito experientes
nas áreas de imagem e som. Gradualmente, a televisão e o “telecinema“ foram entrando
no “território“ do cinema:
“(...) Por outro lado, a produção patrocinada pela RTP vem
invadir o domínio preferencial do cinema – o 35 milímetros – e ocupálo com rodagem rápida, em pequenos grupos, munidos de câmaras de
16 milímetros e muitos microfones, já que o depoimento, nestes dias
do processo revolucionário em curso, se sobrepunha à invenção visual,
à possível originalidade fílmica. O fundo, de facto, sobrepõe-se à
forma.“ (Pina, 1986: 188)
“Trata-se de uma produção muito diversificada, que vai desde o
documentário segundo os módulos habituais de televisão (como a
série Cantigamente ou o filme Adeus, até ao Meu Regresso, 1974, de
António Pedro Vasconcelos) até à fita de ficção (como O Funeral do
Patrão, 1975, de Eduardo Geada, e, mais tarde, Santo Antero, de
Dórdio Guimarães, 1978, ou 'produções externas', com séries desde
Contos Fantásticos, de Noémia Delgado, 1979, ou Histórias de
Mulheres, 1984, de Lauro António, passando por Retalhos da Vida de
Um Médico, de Artur Ramos, 1980).“ (Ibidem: 192)
Anda assim, no pós-25 de Abril, as encomendas da RTP seriam determinantes para
assegurar a sobrevivências de algumas cooperativas, como aconteceu com a Cinequanon
e a Cinequipa entre 1975-77. Nesse período, a Cinequipa produziu para a RTP as séries
intituladas Sem Coragem não se faz a História e Ver e Pensar e cerca de 20 filmes, onde se
contavam, por exemplo, Contra as Multinacionais (Colectivo), Cavalgada Segundo São
João, o Baptista (João Matos Silva) e Atadeira de Peniche (José Nascimento). Já a
Cinequanon produziu cerca de 80 filmes, entre os quais: O problema do Aborto (Luís
Filipe Costa), Liberdade para José Diogo (Luís Galvão Teles), Budapeste (José Fonseca e
Costa) e Fátima Story (Antónuo de Macedo), entre muitos outros (Isto é espectáculo, 6,
V-1977, 36-37).
Nesse mesmo período, a RTP também produziu directamente, com os seus próprios
meios, quatro filmes de longa-metragem de realizadores externos: Que farei eu com esta
Espada? (1975, João César Monteiro), Direito à Greve (1975, Eduardo Geada), O Funeral
do Patrão (1975, Eduardo Geada) e Adeus, até ao meu Regresso (1974, António-Pedro
Vasconcelos). Através do Instituto de Tecnologia Educativa, a RTP também produziria
mais quatro médias-metragens: O Piano (1974, Sinde Filipe), A Cama (1974, Sinde
Filipe), O Leproso (1975, Sinde Filipe) e Bonecos de Estremoz (1976, Lauro António)
(Ibidem).
434
A partir de 1979, com a criação do departamento de co-produções internacionais,
a RTP seria determinante no apoio financeiro à produção de jovens cineastas e outros
consagrados. O seu primeiro responsável foi Fernando Lopes que tornou a RTP num
importante co-produtor de cinema português, associando-se a diversos projectos162 ou
efectuando encomendas163.
3.7.2. Paulo Branco
Com 21 anos, Paulo Branco sai de Portugal e ruma para Londres (1971-73),
radicando-se pouco depois em Paris. Na capital francesa, começa por organizar, em
Julho de 1974, uma mostra de cinema português e, nos cinco anos seguintes, consolida
a sua posição e prestígio no meio cinematográfico como programador e exibidor em
sucessivas salas parisienses — Olympic (1974), Artistique Voltaire (1976) e Action
Repúblique (1976) —, antes de criar, em 1978, a sua própria distribuidora, a HorsChamp (Ramos, 1989: 61).
Seria Paulo Branco o principal responsável pelo lançamento internacional de Amor
de Perdição e Trás-os-Montes, precisamente no seu cinema Action République, de que era
proprietário Frédéric Mitterand, e que seriam dois dos momentos mais mediáticos para o
cinema português em toda a década de 70. Em Abril de 1978, depois de uma estreia
discreta em Portugal dois anos antes, Paulo Branco promovia a estreia parisiense de
162
Serenidade (1982), de Rosa Coutinho Cabral; Conversa Acabada (1982), de João Botelho; Mon Cas
(1986), de Manoel de Oliveira; Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil; Balada da Praia dos Cães
(1987), de José Fonseca e Costa; O Desejado (1987), de Paulo Rocha; O Querido Lilás (1987), de Artur
Semedo; Os emissários de Khalom (1988), de António de Macedo; Os Canibais (1988), de Manoel de
Oliveira; Matar Saudades (1988), de Fernando Lopes; Agosto (1988), de Jorge Silva Melo; O Sangue
(1989), de Pedro Costa; Recordações da Casa Amarela (1989), de João César Monteiro; Rosa de Areia
(1989), de António Reis; O Processo do Rei (1990), de João Mário Grilo; Non ou a Vã Glória de Mandar
(1990), de Manoel de Oliveira; Solo de Violino (1990), de Monique Rutler; A Maldição de Marialva (1991),
de António de Macedo; A Idade Maior (1991), de Teresa Villaverde; A Divina Comédia (1991), de Manoel de
Oliveira; Ao Fim da Noite (1991), de Joaquim Leitão; Os Olhos Azuis de Yonta (1992), de Flora Gomes; O Dia
do Desespero (1992), de Manoel de Oliveira; Amor e Dedinhos de Pé (1992), de Luís Filipe Rocha; Vertigem
(1992), de Leandro Ferreira; Chá Forte com Limão (1993), de António de Macedo; Encontros Imperfeitos
(1993), de José Marecos Duarte; Zéfiro (1993), de José Álvaro Morais; A Tremonha de Cristal (1993), de
António Campos; O Fio do Horizonte (1993), de Fernando Lopes; Longe Daqui (1993), de João Mário Grilo;
A Caixa (1994), de Manoel de Oliveira.
163
A série de telefilmes Fados: Voltar (1988), de Joaquim Leitão; Longe (1988), de Cristina Hauser; Mar à
Vista (1989), de José Nascimento; Flores Amargas (1989), de Margarida Gil; Meia-Noite (1989), de Victor
Gonçalves; Jaz Morto e Arrefece (1989), de Luís Filipe Costa; O Regresso (1989), de Faria de Almeida; Pau
Preto (1989), de Oliveira e Costa. A série para cinema Os Quatro Elementos: No Dia dos meus Anos (1992),
de João Botelho; Das Tripas Coração – O Fogo (1992), de Joaquim Pinto; O Último Mergulho – A Água
(1992), de João César Monteiro; O Fim do Mundo – A Terra (1993), de João Mário Grilo.
435
Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro, conseguindo mobilizar o meio
cinéfilo e artístico parisiense e a atenção da comunicação social: Joris Ivens, Jean
Rouch, Jacques Siclier e Serge Daney foram alguns dos presentes e a revista Cahiers du
Cinéma e o diário Le Monde deram um destaque invulgar ao cinema português (Isto é
cinema, 14, 28-IV-1978: 3). Cerca de um ano depois, em Junho de 1979, e depois de ter
sido humilhado na imprensa portuguesa, a versão de Manoel de Oliveira de Amor de
Perdição estreia em Paris pela mão de Paulo Branco. à semelhança do filme de Reis e
Cordeiro, a recepção crítica rende-lhe elogios: Serge Daney e Evelyne Bachelier na
Cahiers du Cinéma, François Ramasse na Positif, Raphael Bassan na Écran e Jean-Claude
Bonnet na Cinemátographe (Cruchinho, 2001: 16-18).
Foi talvez por isso que Cunha Telles, na qualidade de dirigente do IPC (1979),
percebe que “o cinema em Portugal não poderia andar para a frente sem a figura do
produtor“ e convida Paulo Branco para se tornar produtor (Paulo Branco apud Mozos,
2014: 22). Branco volta para Portugal, traz consigo Claude Nedjar, um experiente e
mítico produtor francês, e lança-se na produção.
Nesse mesmo ano de 1979, em sociedade com António-Pedro Vasconcelos, funda a
V.O. Filmes, que nos três primeiros anos de existência põe em marcha um plano de
produção contínua: Oxalá (1981, António-Pedro Vasconcelos), O Território (1981, Raul
Ruiz), Conversa Acabada (1981, João Botelho), Silvestre (1981, João César Monteiro),
Francisca (1981, Manoel de Oliveira), Fim de Estação (1982, Jaime Silva), A Estrangeira
(1982, João Mário Grilo) e O Estado das Coisas (1982, Wim Wenders).
“O Festival de Cinema da Figueira da Foz de 1980, coincidente
com a política optimista do Instituto Português de Cinema, que
decidira apoiar, entre outras coisas, o dinamismo do jovem produtor
Paulo Branco e da sua V. O. Filmes, com fortes contactos em Paris,
revelou quatro filmes que, em diversa medida, iriam não só reconciliar
o público, de há muito afastado, com o cinema português como
também apontar verdadeiros caminhos de renovação cinematográfica,
cada um a seu modo, tentando todos eles uma qualidade técnica que
garantisse o prestígio da sua autoria.“ (Pina, 1986: 193)
Em grande parte dependente dos dinheiros do IPC, a estratégia da V.O Filmes
também passou pela aposta na co-produção:
“Por influência de Paulo Branco e da sua V. O. Filmes,
trabalhando com um entusiasmo e uma tenacidade que devem ser
destacados, mas cuja atribulada vida financeira conduziria a processo
judicial, são rodados entre nós O Território (1981), de Raul Ruiz (que
voltaria para novas produções), Aspern (1982), de Eduardo de
Gregorio, A Cidade Branca (1983), de Alain Tanner, O Estado das Coisas
436
(1983), de Wim Wenders, sem esquecer as co-produções com a França,
já referidas, realizadas por Manoel de Oliveira.“ (Ibidem: 213)
Para além desses nomes, Branco seria ainda produtor associado de um filme de
Margueritte Duras (Aurelia Steiner (Vancouver), 1980) e a outro de Jean-Claude Biette
(Loin de Manhattan, 1982), o que mostra bem as suas relações com o meio
cinematográfico francês e europeu da época.
Depois da falência da V.O. Filmes, Vasconcelos fundaria com o seu irmão José Luís
Vasconcelos a Opus Filme e decidiria apostar por um cinema mais popular e comercial (O
Lugar do Morto, 1984), mas Paulo Branco apostaria em definitivo no segmento do
cinema de arte europeu. O facto de ser um dos produtores mais activos da década, e de
estar envolvido em diversas co-produções ou produções executivas com financiamentos
internacionais, sobretudo através da sua distribuidora Hors-Champ e das produtoras
francesa Films du Passage (1983-1988) e portuguesa Filmargem (1986-1990).
Mas o maior mérito de Paulo Branco seria a criação, consolidação e projecção
internacional da marca “Manoel de Oliveira“. Depois de ser determinante na reabilitação
de Amor de Perdição, o produtor decide avançar com o próximo projecto de Oliveira, mas
opera uma aparentemente insignificante alteração na sua promoção que alteraria
radicalmente o rumo da carreira do então cineasta de 72 anos:
“A obra de Oliveira, uma obra com mais de meio século [este
texto foi escrito em 1995], decidiu-se na passagem do u para o o. Esta
pequena alteração semântica traduz, para além duma afirmação de
vontade artística, um desejo de indústria, quase sempre afastado do
cinema feito em Portugal. Para o melhor como para o pior, Oliveira é,
ou pode ser considerado, o melhor e o único cineasta português. Capaz
de atravessar as grandes transições estéticas, políticas e culturais
deste século, ele prepara-se para entrar no próximo com a vontade de
cinema de um grande clássico; Ou de um simples moderno.“
(Cruchinho, 1995: 62)
No entanto, em 1982-83, um novo golpe diplomático de Paulo Branco viraria
definitivamente as cartas na mesa. Garantindo importantes apoios estrangeiros (França
e Itália), Branco produz os documentários Nice – A propos de Jean Vigo (1983) e Lisboa
Cultural (1984), obras que reforçavam o prestígio internacional do realizador. Cultivado
por Paulo Branco, desde 1979, a estratégia de promoção em torno da figura e da obra de
Oliveira daria os seus frutos em 1983, quando o ministro da cultura francês Jack Lang
aceitou a proposta de Branco/Oliveira para adaptar ao cinema o clássico Le Soulier de
Satin, de Paul Claudel, numa mega-produção com quase sete horas de duração e um
437
orçamento total de 250 mil contos (quando o custo médio de uma produção era de 40
mil). Este mega-projecto de produção europeia reuniu financiamento francês, alemão,
suíço e português (IPC e Ministério da Cultura) valeria ainda a Oliveira o Leão de Ouro
recebido no Festival de Veneza em 1985 — pelo filme em particular e pela carreira de
Oliveira em geral —, o que constituía até então o mais importante troféu internacional
ganho por um cineasta português.
No fundo, Paulo Branco não fizera mais do que seguir a sugestão do crítico João
César Monteiro num célebre texto a propósito da recepção de O Passado e o Presente em
Portugal:
“Que dizer, agora, de um país que ignorou (e vai continuar a
ignorar, senhores) com a maior das inocências, diga-se, um dos
maiores cineastas da história do cinema?
(…)
O problema, de resto, é só este: o país tem (inexplicavelmente)
um cineasta demasiado grande para o tamanho que tem. Portanto, das
duas uma: ou alargam o território ou encurtam o cineasta. Como nos
tempos que correm é difícil alargar um território, sugiro que se
apequene o cineasta cortando-o às fatias e servindo-o frio ao público
no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian“ (Diário de Lisboa, 10III-1972: 25).
Num tom assumidamente sarcástico e corrosivo, João César Monteiro acabou por
pôs o dedo na ferida. Até aí, perante as duas possibilidades, a estratégia das autoridades
culturais e políticas portuguesas durante décadas terá sido a de “apequenar“ o cineasta,
não lhe permitindo o avanço da sua carreira cinematográfica. Felizmente, alguns anos
após a publicação deste texto, a estratégia de Paulo Branco – ao aperceber-se de que a
carreira de Oliveira só podia desenvolver-se com apoios externos e com o público
internacional – foi precisamente a sugerida por Monteiro: “alargar o território“, não o
território físico, como é natural, mas o território cinematográfico de Oliveira. Graças ao
produtor Paulo Branco, o cinema de Oliveira deixou de ser apenas português e passou a
ser eminentemente internacional, desde o seu financiamento até ao seu
reconhecimento.
A ligação entre Oliveira e Branco, para além de libertar o realizador das
preocupações com os aspectos da produção, garantia-lhe também o aumento dos meios
de produção ao seu dispor e assegurava-lhe “as condições de autonomia da criação
artística“, alimentando e projectando uma “imagem de qualidade“ que estaria “na base
da lendo do renascimento de um cineasta sexagenário, nessa altura, de nome Manoel de
Oliveira, com o“ (Cruchinho, 1995: 61).
438
E o reconhecimento em Veneza, um dos três mais importantes festivais de cinema
do mundo, era o culminar de uma estratégia de internacionalização da figura e da obra
de Oliveira promovida por Paulo Branco e para o próprio produtor, que teria sete filmes
em exibição nessa edição do festival. A sua estratégia de internacionalização seria um
exemplo para outras campanhas semelhantes nos anos seguintes, de outros produtores
e do próprio Paulo Branco:
“(...) A via das co-produções alargou-se e, depois do caso de Le
Soulier de Satin, outros filmes beneficiariam de avultados
investimentos europeus (...). Nalguns casos (...), o dinheiro de 'fora'
foi muito mais do que o dinheiro de 'dentro', o que dá certa razão a
um argumento normalmente oposto a quantos continuam a falar de
'filmes feitos com os dinheiros do contribuinte'. Não só não é
'dinheiro do contribuinte' (era dinheiro da distribuição e, depois, dos
lucros televisivos com a publicidade), como frequentemente entrou
mais dinheiro no Pais do que saiu dele, pois que todas essas obra (à
excepção de Mon Cas) foram rodadas em Portugal, exclusiva ou
basicamente. (Costa, 1998: 71-72)
A estratégia estava definida em duas direcções: por um lado, o cinema português
afirmava-se internacionalmente como o “pólo português“, “uma das últimas 'escolas' de
cinema do mundo“ (Grilo, 2006: 27) e garantido estreias e prémios nos principais e mais
reconhecidos festivais de cinema internacional; por outro lado, Portugal começava a
atrair investimento estrangeiro através da co-produção ou produções executivas de
projectos de cineastas de renome internacional, investimentos que também trouxeram
muita experiência a técnicos e actores portugueses.
439
4. Algumas reflexões finais
Esta reflexão final procura sintetizar de forma clara quais foram as grandes
transformações que ocorreram no cinema português entre 1949 e 1980 e responder com
clareza a uma questão central: o que foi o Novo cinema português? A resposta, como se
viu, será sempre múltipla e muitas vezes contraditória, mas foi objetivo do meu trabalho
olhar de novo para este período do cinema feito em Portugal.
4.1. O que foi o Novo cinema português?
Ao longo do presente trabalho procurei definir o Novo cinema português como
uma espécie de zeitgeist que atravessou três décadas da história do cinema português,
período durante o qual conheceu várias propostas formais e informais de renovação
estética e técnica com protagonistas, objectivos e métodos muito diferentes e variados.
Nesse período, é possível identificar propostas de renovação para o cinema português
com corpus fílmicos, textuais e autorais distintos que coexistiram no espaço e no tempo.
Mais do que um cânone fechado, que exclui filmes, textos e pessoas, como foi sendo
gradualmente definido por uma crítica dominante ao abrigo da expressão “cinema
novo“, entendo que o Novo cinema português é um momento marcado pela
heterogeneidade de propostas, com critérios inclusivos e não-discricionários, que se
distingue mais pelos modos de produção do que propriamente pelos filmes ou por
discursos estéticos.
Ao contrário das leituras que a produção historiográfica sobre o cinema português
estabeleceu nas décadas de 70 e 80, e que nas últimas duas décadas tem sido alvo de
difícil mas sustentada revisão, o período de renovação dos anos 60 (o designado
“cinema novo“) não pode ser entendido isoladamente, como algo estranho ao que
existia até então no meio cinematográfico e cinéfilo ou algo que surge de geração
espontânea. Filmes como Os Verdes Anos, Belarmino, Mudar de Vida ou Uma abelha na
chuva, só para citar alguns dos exemplos mais canónicos, não foram possíveis apenas
por influência das novas vagas europeias, mas fruto de um processo de renovação das
estruturas cinematográficas e da cultura fílmica que se iniciaram nos anos 50, logo após
a falência do projecto cultural de António Ferro.
Do mesmo modo, rejeito as interpretações ainda dominantes que sustentam as
rupturas abruptas e as delimitações rígidas e inflexíveis, que por exemplo excluem
filmes como Dom Roberto, Pássaros de Asas Cortadas, Domingo à Tarde e O Trigo e o Joio
440
ou os seus respectivos realizadores (Ernesto de Sousa, Artur Ramos, António de Macedo
e Manuel Guimarães) de um corpus canonizado por um grupo de críticos com critérios
pouco objectivos, e que conduzem a uma leitura simplista e fragmentada desse período
do cinema português, prejudicando gravemente a compreensão de várias
transformações estruturais que se foram processando entre 1949 e 1980. Essas mesmas
interpretações também retiram desse corpus autoral outras figuras contemporâneas,
como António de Macedo ou Faria de Almeida, por terem concepções estéticas distintas
das dominantes, independentemente do contributo que deram para uma renovação
efectiva do cinema português nesse período.
A ampliação considerável do corpus convencional de análise e reflexão sobre o
Novo cinema português, que na produção historiográfica mais convencional permanece
muito amarrada aos filmes de longa-metragem, é fundamental para a compreensão
deste período em toda a sua complexidade. Por isso, decidi estender a minha análise e
reflexão a um corpus fílmico mais abrangente (incluindo, por exemplo, a produção de
curtas-metragens, de filmes turísticos e industriais e de cinema de amadores), a um
corpus textual pouco valorizado (que passou por uma pesquisa por arquivos e espólios
privados e por publicações consideradas menores) e a uma série de indicadores e dados
sócio-económicos dispersos sobre produção, circulação e recepção de cinema
frequentemente ignorados no estudo do período.
O alargamento das fontes e documentos que operei na minha investigação
permitiu-me adicionar elementos até agora negligenciados e desvalorizados na
interpretação dos contextos e dos processos que ocorreram no cinema português,
remetendo para a materialidade destes contextos e processos cinematográficos, e não
apenas para aspectos estéticos e estilísticos. E são esses novos dados e elementos que
permitem compreender como se operaram e processaram as mudanças de paradigma e as
transformações estruturais no cinema português. Em suma, que influenciaram e
determinaram a forma de ver, fazer e entender o cinema em Portugal.
As balizas cronológicas que defendo para este período de renovação de três
décadas são datas simbólicas que assinalam, respectivamente, o fim e o início de
políticas públicas para o cinema português. São datas que marcaram as suas épocas. A
falência do projecto cultural de António Ferro — um cinema nacional para um público
luso-falante — criou um “vazio“ político e cultural que, apesar de várias medidas
importantes e determinantes para o cinema português, não definia claramente o que se
pretendia para o cinema português. Esse “vazio“ só seria preenchido, simbolicamente,
441
com a autonomização da Cinemateca Portuguesa que, a partir da década de 80, em
conjunto com outras entidades (IPC/ICA, Escola Superior de Cinema, RTP),
consolidariam uma ideia de cinema português que se estabeleceu e se consagrou
internacionalmente: um cinema de arte164 para uma comunidade crítica e cinéfila
internacional.
Ou seja, entre 1949 e 1980, apesar de várias medidas importantes — atribuição de
bolsas de estudo, de subsídios à produção e circulação, alterações legislativas (como a
criação do IPC), criação da Escola Superior de Cinema, entre outras —, o poder político
não soube, ou não quis, definir ou assumir uma política cultural coerente e sustentada
para o cinema português, parecendo conduzir a sua intervenção mais por reacção do que
propriamente por acção. Nesse período, na prática, o Estado parece ter abdicado
efectivamente da hegemonia que havia sido construída nas décadas anteriores por
António Ferro e pela sua Política do Espírito no meio cinematográfico português. Ainda
que mantendo uma vigilância, o Estado permitiu o surgimento e fortalecimento de
várias tentativas de renovação do cinema português que pretendiam agir fora de um
qualquer projecto público hegemonizante, unitário e da esfera de influência do Estado,
ainda que aceitasse o seu eventual financiamento.
A partir dos anos 50, este “vazio“ terá permitido que várias “contra-narrativas“
que se opunham abertamente à narrativa oficial do Estado Novo fossem ganhando
espaço e mediatismo, contribuindo para o debate acerca da intervenção do Estado no
sector cinematográfico, tanto a nível legislativo como institucional. E são essas “contranarrativas“, com ideias de cinema e projectos de intervenção distintos (ainda que
muitos fossem transversais), com dimensões, intensidades ou durações variáveis mas
que foram consolidando uma ideia de oposição cultural e artística que seria crucial para
uma nova narrativa dominante que se constituiria na ressaca da Revolução dos Cravos,
já pela década 80 adentro.
Apesar de uma matriz de resistência e oposição cultural, mais visível em
determinados momentos, como nos anos 50 e 70, o Novo cinema português não pode ser
164
O uso da categoria “cinema de arte“ inspira-se na expressão “art cinema“ tal como usada por András
Kovács (2007: 21-22): “(...) When we speak of 'art films' as opposed to 'commercial entertainment films,“
we are referring not to aesthetic qualities but to certain genres, styles, narrative procedures, distribution
networks, production companies, film festivals, film journals, critics, groups of audiences—in short, an
institutionalized film practice. Their respective products are no better or worse than those of others and
are not 'artistic' or 'entertaining' by nature. That is why the label 'art film' is often a source of confusion
when it is opposed to the commercial industry. Art films are 'artistic' by ambition but not necessarily by
quality, just as commercial entertainment films can very often be commercial failures and not
entertaining at all.“
442
considerado um fenómeno político e ideológico, muito menos se comparado aos casos
brasileiro ou francês. A perseguição e repressão ao meio cinematográfico português
desse período, movido pelo SNI ou pela PIDE, incidia mais sobre as actividades políticas
de realizadores, dirigentes cineclubistas ou cinéfilos do que propriamente sobre os
filmes, salvo raras excepções como Vidas sem Rumo, Catembe, Nojo aos Cães ou O MalAmado. Naturalmente, o Novo cinema português também foi tão assumidamente político
quanto o regime ditatorial o permitiu, como sucederia por exemplo durante a efémera
primavera marcelista.
Aceito a tese de João Bénard da Costa (1991: 126) de que o Novo cinema
português recusara o “velho cinema“ por “motivações políticas claras“, mas que seria
incapaz de construir uma narrativa política alternativa, apesar de esteticamente
inovadora. Também concordo com Paulo Filipe Monteiro (2000: 338) quando afirma que
o Novo cinema português “não era de molde a despertar fervores ideológicos e a
esquerda tradicional desconfiou tanto delas como a direita“.
4.1.1. Internacionalização
A alteração mais visível e radical no cinema português ao longo das décadas de
1950-70 foi o gradual processo de internacionalização que revolucionou um paradigma
estético que vigorou durante as décadas de 1930-40, contrariando um projecto de
construção de um estilo cinematográfico nacionalista, e que sobrevive até à
actualidade.
Feito de forma gradual, o processo de internacionalização acabou por afectar todo
o meio cinematográfico português. A internacionalização mais visível terá sido a das
dezenas de cinéfilos aspirantes a realizador e a outros cargos técnicos que desde final da
década de 50 rumaram a vários países europeus para receber formação académica e
técnico ou para realizar estágios profissionais. Mas não se pode deixar de incluir neste
movimento de internacionalização os nomes de Artur Ramos e Ernesto de Sousa, que
rumaram a Paris quase com uma década de antecedência em relação a Paulo Rocha e
António da Cunha Telles. Para além dessa formação, a permanência em sociedades sem
censura cinematográfica permitiu a esses formandos contactar com filmes, clássicos e
contemporâneos, que não chegavam a ser autorizados em Portugal ou que aqui eram
retalhados pela acção da censura. Mas a formação cinéfila incluiu também as leituras de
443
publicações de referência (Bazin, Aristarco, Sadoul) que chegavam da Europa e que
acompanhavam os debates que iam revolucionando o meio cinematográfico
internacional e iam mobilizando também os cinéfilos portugueses.
Em Portugal seguiu-se também um processo de gradual internacionalização dos
modos de produção. Primeiro na circulação. Ainda que fosse maioritariamente em
certames especializados (turístico, religioso, amador, entre outros), a participação de
filmes portugueses em circuitos internacionais de exibição de filmes foi importante para
romper com as limitações do mercado interno e para ajudar os filmes portugueses a
definir estratégias visando essa internacionalização. Já na década de 70, para além de
intensificar a presença nos festivais de mais prestígio e reconhecimento, a estratégia de
várias entidades públicas e privadas portuguesas passou por promover a organização de
mostras, retrospectivas e eventos de divulgação que beneficiavam de maior visibilidade
internacional.
Na produção, os primeiros projectos de co-produção tentados neste período de
renovação, talvez ainda na ressaca no projecto lusófono de Ferro e que vinham ainda da
década anterior, dividiam-se entre o Brasil e Espanha. As parcerias com produtores
europeus intensificam-se a partir da década de 60 e, em pouco tempo, tornar-se-iam
vitais para sustentabilidade do sector, quer ao nível das produções executivas como da
própria co-produção. Por outro lado, a produção de cinema português também
conheceu uma mudança significativa por causa da necessidade de continuar a integrar
esse circuito internacional, por razões económicas e estéticas. Ironicamente, se a
aproximação da produção aos “padrões europeus“, que por esses anos eram
irreconciliáveis com o mais popular “padrão norte-americano“, contribuiu para
o
reconhecimento crítico internacional, em contrapartida, acelerou o progressivo
afastamento do cinema português do público do seu próprio país.
Em última análise, a própria internacionalização do mercado de distribuição
interno, onde Cunha Telles e Paulo Branco teriam uma importância determinante desde
a década de 70, contribuiu para romper a hegemonia do “padrão norte-americano“ e
trazer para Portugal o cinema de arte e de autor internacional que por cá praticamente
não estreava. Em suma, não se pode desligar o cinema português do circuito
internacional de cinema, um circuito que é próprio da condição transnacional da
indústria cinematográfica, cuja vitalidade se mostrou na Europa no período do pósGuerra.
444
4.1.2. Estatização
No pós-25 de Abril, através dum grupo de pessoas que, como Paulo Filipe Monteiro
(2000: 306) sublinha, soube “controlar todos ou quase todos os lugares da instituição
‘cinema’”, o Estado reocupou, indirectamente, a sua capacidade de definir o objecto
cinema português. Sublinho o advérbio ‘indirectamente’ porque, ao contrário do
centralismo de António Ferro, no período democrático o poder político e cultural
disseminou-se por várias entidades, sendo a intervenção do Estado exercida de forma
mais indirecta e envolvendo diversos interlocutores.
A esse propósito, Paulo Filipe Monteiro (Ibidem) destaca a importância do
controlo dos poderes de “produzir“, “ensinar“ e “criticar“ na institucionalização de uma
forma de fazer cinema em Portugal, ao que eu acrescentaria o poder de “fazer circular”
(como assinalei em vários dos capítulos anteriores). Articulados, por controlo directo ou
por influência indirecta, estes quatro poderes contribuíram para definir uma ideia de
cinema português que informalmente se foi constituindo como uma efectiva política
cultural do Estado português.
Pela primeira vez na história do cinema português, uma geração de cineastas
conseguiu controlar ou exercer influência desses lugares, usando-os para operar uma
mudança estrutural na forma de produzir, ensinar e reconhecer o cinema português. Ao
ocupar os principais lugares da instituição “cinema” em Portugal, a geração dos anos 60
garantiu uma influência inédita na história do cinema português. Se as gerações de
António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Brum do Canto, Arthur Duarte, primeiro, e de
Constantino Esteves, Perdigão Queiroga, Augusto Fraga e Henrique Campos, num
segundo momento, conseguiram “mandar”, ainda que transitoriamente, em parte da
instituição “cinema”, a geração de Fernando Lopes, Seixas Santos, Paulo Rocha ou
Cunha Telles conseguiu “mandar” no cinema português de forma mais abrangente e
permanente, exercendo uma influência visível na definição da política cinematográfica
do Estado português desde a década de 70.
A primeira escola de cinema foi criada em 1972, resultado da reforma do
Conservatório Nacional, e Alberto Seixas Santos pensou-a à semelhança da London
School of Film Technique, que conhecera como estudante, e do Institute des Hautes
Études Cinematigrafiques, frequentado por muitos dos seus colegas cineastas. Durante
as décadas em que foi a única escola de cinema em Portugal, a Escola Superior de
Cinema foi uma instituição fundamental para consagrar e promover uma ideia de cinema
445
que marcou gerações de cineastas e técnicos cinematográficos. Ao longo de décadas, os
mais internacionalmente premiados e reconhecidos realizadores do cinema português
passaram pela Escola Superior de Cinema — João Botelho, Pedro Costa, João Pedro
Rodrigues, Miguel Gomes ou João Salaviza —, tendo recebido uma formação técnica e
estética que reflete muito dos valores do Novo cinema português, nomeadamente a
intransigência estética, o acentuado carácter autoral e uma filiação nos princípios do
cinema de arte moderno.
Nos anos 60, a crítica de cinema em Portugal conheceu uma transformação
significativa, abandonando o registo jornalístico e adoptando uma argumentação e
retórica moderna e eminentemente cinematográfica. Se antes de se dedicarem à
realização, estes jovens cinéfilos já dominavam a crítica de cinema, escrevendo na
imprensa diária (Diário de Lisboa), em publicações de teor cultural (Gazeta Musical, O
Tempo e o Modo, Seara Nova) e na especializada (Plano, Cinéfilo), rapidamente
perceberam que, na impossibilidade de conquistar o público nacional, a sua
sobrevivência passaria por se afirmarem junto da crítica nacional e internacional. No
pós-25 de Abril de 1974, a crítica de cinema perdeu a influência que tivera nas décadas
de 50 e 60 e, gradualmente, o poder de “criticar”, no sentido de validar esteticamente
ou certificar criticamente a produção cinematográfica, foi-se transferindo para a
Cinemateca Portuguesa que, dotada de autonomia financeira e administrativa depois de
1980, deixou de ser um depósito de filmes e um mero organizador de irregulares ciclos
de cinema, passando a organizar importantes retrospectivas de cinema português, a
coordenar catálogos dedicados a realizadores e atores, a estimular o estudo dos
principais momentos históricos e movimentos estéticos e a história da própria
instituição, transformando-se no principal núcleo de produção editorial sobre cinema
português.
João Bénard da Costa, subdiretor entre 1980-91 e diretor entre 1991-2009,
tornou-se o autêntico “Senhor Cinemateca” e elemento decisivo na construção da
identidade dessa instituição. Ao longo dessas décadas, as linhas de orientação da
programação e da atividade editorial da Cinemateca refletiram as fortes ideias matrizes
que marcam a personalidade do seu diretor. Do mesmo modo, a valorização pessoal de
um certo cinema de autor feita por Bénard da Costa, veiculada desde meados dos anos
60, principalmente nas páginas d’O Tempo e o Modo, tornou-se gradualmente, nas suas
linhas gerais, na visão oficial da instituição sobre o cinema português dos últimos
quarenta anos.
446
A par da Cinemateca, num segmento mais popular e alargado, a RTP também
desempenhou um papel fundamental na divulgação, por acção ou omissão, através das
suas grelhas de programação. Por outro lado, o Departamento de co-produções
internacionais foi determinante no apoio financeiro à produção de jovens cineastas e
outros consagrados entre 1979-93, tornando a RTP num importante co-produtor de
cinema português, associando-se a diversos projetos ou efetuando diversas
encomendas.
Ao longo das últimas quatro décadas, o IPC tornou-se no principal produtor de
cinema em Portugal, decidindo, através dos seus concursos, “quem poderia” e o “que
poderia” filmar. Pensado para recuperar a influência estatal na produção perdida desde
a criação do CPC, o IPC tem garantido desde a sua criação o “controlo político” do apoio
público ao cinema, visto que lhe cabe a nomeação dos júris e a criação de mecanismos
alternativos de apoio direto (apoio complementar, FICA, etc.). Nos anos 80, quando foi
necessário optar, no seio do IPC, por uma política cinematográfica que privilegiaria os
“filmes para Bragança” ou os “filmes para Paris”, o Estado português optou
definitivamente por um cinema de “vitalidade cultural” que trazia a Portugal a tão
valorizada “projeção internacional“, ou seja, pelo caminho da internacionalização que
tinha sido iniciado em meados dos anos 60.
Ainda recentemente, Cunha Telles (apud Mozos, 2014: 61) reconhecia que “os
apoios do IPC deviam ter permitido que o cinema português se enraizasse mais no país e,
muitas vezes, aconteceu exatamente o contrário”. É o IPC, e não os cineastas,
argumentistas e/ou produtores, que Cunha Telles responsabiliza pelo caminho que o
cinema português tomou, naturalmente enquanto representante mais visível da
intervenção do Estado. Hoje, através de várias entidades, o Estado criou ou reforçou
mecanismos que lhe permitem controlar a instituição “cinema” em Portugal. Ainda que
seja de forma indirecta, indicando directores-gerais e/ou equipas directivas, a
dependência do cinema português do poder político é efectiva e esse modelo de
intervenção é o resultado de posicionamentos e estratégias que remontam ao início dos
anos 70 e à elaboração e discussão de Lei 7/71 e que se intensificaram durante o PREC.
Parte importante, senão mesmo quase toda, da produção portuguesa da última década
foi financiada pelo Instituto de Cinema e Audiovisual.
É preciso reconhecer e sublinhar que foi a geração dos anos 60 que criou as
condições que ainda hoje existem para a produção de cinema em Portugal. Foi um
núcleo duro dessa geração que controlou a “instituição cinema” na sua integridade e
447
optou deliberada e estrategicamente por “estatizar” o cinema português, colocando-o
sob protecção do Estado para que fosse reconhecido como um “bem cultural e artístico”
e assim afastá-lo definitivamente das leis do mercado e de eventuais pretensões
comerciais.165
4.1.3. Canonização
A generalidade das interpretações da história e estética do cinema português tem
tentado construir, ao longo das décadas, uma visão unitária, consanguínea, hereditária
e romântica do próprio objeto cinema português. Em última análise, esta visão pretende
apenas considerar um conjunto de obras que encaixam na ideia de cinema português —
ideia esta que se tem instituído e que, fatalmente, ignora ou deprecia um corpus fílmico
significativo também rodado em Portugal, concretizado por técnicos portugueses e
falados em língua portuguesa. Conceitos estabelecidos, e institucionalizados, como
“cinema novo“ e “escola portuguesa“, dão uma visão muito redutora e uniformizada do
cinema português — que interessa hoje reavaliar e reconfigurar, à luz de novas
investigações desenvolvidas de forma consistente nos últimos anos.
No entanto, é evidente e inegável que, tal como acontece noutras
cinematografias, existem realizadores no cinema português que influenciam ou
inspiram colegas etariamente mais jovens da mesma nacionalidade. Aconteceu isso
entre os realizadores que, nos anos 30 e 40, fizeram as adaptações histórico-literárias,
as comédias à portuguesa e o cinema de propaganda do Estado Novo e a “geração dos
assistentes“ que lhes sucederam ao longo dos anos 50 e 60. O mesmo não aconteceu
entre essa “geração dos assistentes” e a que lhe sucedeu, a geração do Novo cinema
português. Foi esta a única, em toda a história do cinema português, que conseguiu
estender a sua influência a mais que uma das gerações posteriores.
165
"Artigo 3.º Princípios e objetivos
1 — No âmbito das matérias reguladas pela presente lei, o Estado deve orientar-se pelos seguintes
princípios: a) Apoio à criação, produção, distribuição, exibição, difusão e promoção de obras
cinematográficas e audiovisuais enquanto instrumentos de expressão da diversidade cultural, afirmação
da identidade nacional, promoção da língua e valorização da imagem de Portugal no mundo, em especial
no que respeita ao aprofundamento das relações com os países de língua oficial portuguesa; b) Proteção e
promoção da arte cinematográfica e, em particular, dos novos talentos e das primeiras obras;" (Lei
55/2012, de 6 de Setembro. Estabelece os princípios de ação do Estado no quadro do fomento,
desenvolvimento e proteção da arte do cinema e das atividades cinematográficas e audiovisuais).
448
Não foi, portanto, por mero acaso que, em Fevereiro de 2012, Miguel Gomes e João
Salaviza, nos seus discursos de aceitação dos importantes prémios conquistados na
Berlinale, tivessem reconhecido e agradecido a importância do contributo de autores
como Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa, Fernando Lopes ou Paulo
Rocha porque, “nos últimos 50 anos, eles conseguiram fazer um cinema independente
do poder político e do poder económico” (Miguel Gomes apud Expresso, 18-II-2012). Do
mesmo modo, as diversas declarações de vários jovens cineastas portugueses por
ocasião dos recentes falecimentos de Fernando Lopes e Paulo Rocha (2012) reforçam
essa ideia de continuidade e de filiação entre autores na história do cinema português.
Talvez resida aqui uma “diferença” portuguesa. Muito provavelmente é esta
hegemonia a principal razão por Portugal ter uma das cinematografias nacionais mais
internacionalmente reconhecidas pela crítica e pela comunidade cinéfila. O facto de
gerações sucessivas terem visto com regularidade cinema na RTP2, terem frequentado as
sessões da Cinemateca, terem aprendido cinema na mesma escola ou terem vencido os
mesmos concursos de apoio à produção, terá certamente contribuído para promover
uma natural e gradual canonização na forma de ver, pensar e fazer cinema.
Se “o hábito faz o monge”, como diz a cultura popular, o cinema português
conheceu hábitos que, desde os anos 60, ajudaram ao estabelecimento de genealogias,
filiações e afinidades entre autores e obras como em poucas cinematografias se podem
encontrar. É óbvio que existem muitas excepções a esta regra, mas não pode ser
ignorado que os cineastas portugueses que maior reconhecimento crítico internacional
alcançam são, precisamente, aqueles que se incluem nas genealogias, filiações e
afinidades que remetem ao Novo cinema português.
Numa apresentação oral nunca publicada, intitulada “Ne change rien: do novo
cinema português ao cinema português contemporâneo“, Paulo Jorge Granja discute a
“permanência“ de muitas das suas “características estéticas“ dos anos 60 no cinema
português contemporâneo, relacionando essa permanência “com os modos de
financiamento, a crítica e cultura cinematográfica internacional e os circuitos de
promoção e exibição, nomeadamente os festivais internacionais de cinema.”
José Manuel Costa (apud Mozos, 2014: 8) lembra que foi a geração “forte e culta”
de cinéfilos dos anos 60, “bem sintonizada com as transformações do cinema europeu e
mundial”, que “acabou por determinar os traços mais identitários do cinema português
quando, e na medida em que, este 'ganhou uma identidade'”. Ao instituir-se na história
do cinema português das últimas décadas, essa “identidade” tem beneficiado e
449
promovido o estabelecimento de genealogias, filiações e afinidades desde a década de
60 até à actualidade, que assenta em complexos processos de reconhecimento de um
património estético e ético comum.
Quando em 1999, durante uma retrospectiva sobre o cinema português realizada
em Turim (Amori di perdizione, Stori di cinema portoghese 1970-1999), Raquel Freire
acusou o cinema português de se ter canonizado em torno de uma ideia de cinema
homogénea e não permitir que se sigam “caminhos diferentes”. Fernando Lopes reagiu
de forma exaltada e emotiva: “Não sabes de onde partiste, mas tens ansiedade em
chegar.... Não aceito que me cuspam na sopa (...). Nós fizemos a nossa luta, agora vocês
façam a vossa” (Diário de Notícias, 27-XI-1999: 48). Ambos tinham razão: Freire porque
existem muitos caminhos no cinema português e Lopes porque foi por esse caminho
(uma ideia de cinema português) que ele e outros seus contemporâneos lutaram. Se essa
ideia ficou datada ou ultrapassada, caberia às gerações seguintes lutar por uma outra
ideia de cinema.
Por um lado, enquanto cinematografia de um país de pequena dimensão
numérica, o cinema português precisa de uma grande narrativa que sustente e consolide
a sua afirmação e, sobretudo, o seu reconhecimento. Essa grande narrativa precisa de
ser canonizada para ser hegemónica, para se impor enquanto paradigma estético
dominante (“cinema novo”, “escola portuguesa”), e necessita de produzir e alimentar
uma marca identitária forte que possa gerir da melhor forma as dinâmicas ou
“movimentos cíclicos de afirmação ou de apagamento de certas cinematografias
nacionais” (Lemière, 2001: 734).
Por outro lado, como Michel Foucault (1979: 180) sublinha, a lei é uma verdade
“construída” de acordo com as necessidades do poder, e que este precisa de produzir
discursos de verdade e de uma delimitação formal para estabelecer relações múltiplas de
poder para que não se desmorone, assim como da produção, acumulação, circulação e
funcionamento de um discurso sólido e convincente. É precisamente isso o que tem
acontecido no cinema português das últimas quatro décadas: a produção de um discurso
e uma prática convincente, formal e rigorosamente delimitado, que tem estabelecido
relações de poder (político, económico e estético) que o canoniza e vai assegurando a
sua hegemonia.
450
4.2. Oxalá
Há muitos anos atrás, quando me iniciei no estudo do cinema português, numa
das suas aulas, Fausto Cruchinho sublinhou a importância dos “cineastas sem filmes”,
ou seja, as pessoas que sem terem realizado um único filme foram muito mais
importantes para a história do cinema do que muitos realizadores que fizeram dezenas
ou centenas de filmes. O exemplo prático que deu na altura foi o de António Ferro, um
homem com uma ideia definida de cinema que procurou pôr em prática e que criou
condições para influenciar uma geração de cineastas e várias gerações de espectadores.
Fui-me apercebendo, ao longo dos anos, da existência de muitos mais “cineastas sem
filmes” no cinema português, agentes (actores ou figurantes) que foram influenciando a
forma de se ver, entender e fazer cinema em Portugal.
Penso ter ficado claro ao longo deste trabalho de investigação a urgente
necessidade de refazer a história do cinema português neste período, procurando olhar
o objecto atendendo a diversos factores contextuais até aqui pouco ou nada
considerados. Interessa voltar às fontes, reconstruir o corpus documental e fílmico,
rever e reler depoimentos e testemunhos, questionar criticamente a produção
historiográfica e proto-historiográfica produzida sobre este período e fazer um trabalho
de base arqueológico, evitando releituras anacrónicas ou comprometidas do passado.
Foi esse o esforço que fiz ao longo de sete anos de investigação, onde recorri às
fontes disponíveis, onde procurei “inventar” novas fontes que introduzem outros dados
e outras variáveis, onde reli criticamente o conhecimento produzido e onde e procurei
debater essas questões nos inúmeros congressos, simpósios e seminários onde pude
apresentar resultados parcelares, provisórios ou em progresso.
Apesar de fechado este projecto de doutoramento, este contributo para o estudo
do cinema português continua a ser parcelar, provisória e em progresso. Não se trata,
nem nunca o pretendeu ser, de um trabalho definitivo. Sempre tive a consciência de que
esta foi e será uma investigação em aberto.
Oxalá fique aqui um documento útil para ajudar outros investigadores, que se
interessem pelas questões aqui abordadas, e que estes possam questionar e olhar
criticamente para esse objecto tão complexo que é o cinema português.
451
Anexos
452
A. Legislação de Cinema em Portugal até 1980.
Lei 1748, de 16 de Fevereiro de 1925
Proíbe a exibição de filmes contra a moral; obriga a dar dois espectáculos mensais
gratuitos
Decreto 10573, de 26 de Fevereiro de 1925
Sobre a construção de edifícios destinados a espectáculos públicos
Decreto 11091, de 28 de Setembro de 1925
Sobre a construção de edifícios destinados a espectáculos públicos
Decreto 11459, de 20 de Fevereiro de 1926
Regulamenta a lei sobre filmes contrários à moral
Decreto 11462, de 22 de Fevereiro de 1926
Montagem de instalações eléctricas em salas de espectáculo
Decreto 13546, de 6 de Maio de 1927
Disposições sobre espectáculos (Regulamento de Teatros e de outras salas de
espectáculos)
Decreto 14096, de 13 de Agosto de 1927
Licenciamento sanitário das casas de espectáculos
Decreto-Lei 14396, de 10 de Outubro de 1927
Imposto único
Portaria 5049, de 8 de Outubro de 1927
Licenciamento sanitário das casas de espectáculos
Decreto 15013, de 10 de Fevereiro de 1928
Estabelece as condições de despacho do material cénico e de trabalho artístico que
trouxerem as companhias e artistas que vierem exercer o seu mister no continente e
ilhas
Portaria 6065, de 11 de Abril de 1929
Licenciamento sanitário das casas de espectáculos
Decreto 17046, de 29 de Junho de 1929
Criação da Inspecção-Geral de Espectáculos
Portaria 6052, de 29 de Novembro de 1929
Determina que as Câmaras Municipais não aprovem qualquer projecto de construção de
casas de espectáculos sem que os requerentes apresentem certidão da IGE
Decreto 18415, de 3 de Junho de 1930
Proíbe, até 31 de Dezembro de 1933, que as empresas comerciais ou industriais que
exerçam actividade no continente, admitam ao serviço empregados que não sejam
portugueses.
453
II Série, de 17 de Junho de 1930
Aviso de patente de introdução de filmes sonoros e falados
Decreto 19735, de 12 de Maio de 1931
Permite o emprego de energia eléctrica de alta tensão nas casas de espectáculos
Decreto 20859, de 4 de Fevereiro de 1932
Cria a Comissão de Cinema Educativo.
Nova publicação em 6 de Junho de 1932
Decreto 21705, de 6 de Outubro de 1932
Regulamenta a execução do artigo 31.º do Decreto 20859 que cria no Ministério a
Comissão do Cinema Educativo com o fim de promover e fomentar nas escolas
portuguesas o uso do cinema como meio de ensino
Decreto 21496, de 6 de Dezembro de 1932
Determina que, para efeitos de classificação dos concorrentes à realização das películas
didácticas e culturais a que se refere o art. 6.º do Decreto 20859, sejam as planificações
substituídas pela elaboração dos argumentos que em face dos respectivos termos dos
concursos abertos, os seus candidatos devem organizar.
Portaria 7480, de 9 de Dezembro de 1932
Determina que para a admissão de artistas ou empregados nas casas de espectáculos se
observem as disposições do Decreto 18415 e demais legislação sobre o desemprego
Decreto 22047, de 29 de Dezembro de 1932
Instalações eléctricas
Decreto-Lei 22966, de 14 de Agosto de 1933
Isenta a Tobis de pagamento de contribuições
Decreto-Lei 23054, de 25 de Setembro de 1933
Cria o Secretariado de Propaganda Nacional
Portaria 7694, de 13 de Outubro de 1933
Electricistas e operadores de cinema
Decreto-Lei 23606, de 27 de Fevereiro de 1934
Adita o art. 97.º das instruções preliminares das pautas (importação temporária) como o
n.º 8, referente a material de filmagem e fitas virgens
Decreto 23840, de 12 de Maio de 1934
Elimina a Tabela II anexa ao regulamento das indústrias insalubres, incómodas,
perigosas ou tóxicas a rubrica “fitas cinematográficas” (depósito de) e inclui na Tabela I
anexa ao referido regulamento várias rubricas semelhantes à eliminada
Decreto 25259, de 17 de Abril de 1935
Isenção de Direitos de importação para a indústria produtora de filmes
Decreto 25743, de 14 de Agosto de 1935
454
Regulamenta as indústrias relativas a filmes
Decreto 26869, de 8 de Agosto de 1935
Regulamento da segurança das instalações eléctricas de casas e recintos de espectáculos
Rectificado em 16 de Agosto de 1936
Decreto-Lei 26922, de 24 de Agosto de 1936
Simplifica o processo de licenciamento das instalações eléctricas em casas e recintos de
espectáculos
Decreto-Lei 27033, de 25 de Setembro de 1936
Introduz um novo artigo na pauta de importação relativa a fitas cinematográficas. Altera
a redacção de vários artigos de pauta de importação relativa a fitas cinematográficas
Portaria 8642, de 2 de Março de 1937
Regulamenta o disposto no n.º 8 do art. 31.º do Decreto-Lei 27207, no que respeita à
propaganda cinematográfica que compete à Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas
Lei 1974, de 16 de Fevereiro de 1939
Assistência de menores a espectáculos públicos
Lei 1994, de 13 de Abril de 1943
Lei de nacionalização de capitais
Decreto-Lei 32748, de 15 de Abril de 1943
Cria a Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculo
Portaria 10374, de 22 de Abril de 1943
Indivíduos considerados como profissionais de espectáculos. Incorpora na Caixa de
Previdência as instituições existentes à data para auxílio aos profissionais
Decreto 33479, de 31 de Dezembro de 1943
Regula a cobrança das receitas e fixa as despesas do Estado para o ano de 1944
(agravamento do imposto de espectáculos públicos)
Decreto-Lei 33883, de 23 de Agosto de 1944
Prorroga até Junho de 1945 o disposto no art. 1.º do Decreto-Lei 22966. isenção de
contribuição predial e industrial e dos direitos de importação de maquinismos,
aparelhos e materiais para a Companhia Portuguesa de Filmes
Decreto 34133, de 24 de Novembro de 1944
Transforma o SPN em SNI (Informação, Cultura Popular e Turismo)
Decreto-Lei 34134, de 24 de Novembro de 1944
Regulamenta o SNI
Lei 2005, de 14 de Março de 1945
Decreto-Lei 34590, de 11 de Maio de 1945
Determina que a construção, reconstrução, modificação e adaptação das casas e recintos
de espectáculos e diversões de qualquer natureza só possa efectuar-se após aprovação
455
dos respectivos projectos pelo Conselho Técnico da Inpecção-Geral dos Espectáculos
mediante requerimento dos interessados.
Insere disposições relativas ao seu funcionamento. Constitui o Conselho Técnico e a
Comissão de Censura
Decreto 35165, de 23 de Novembro de 1945
Insere disposições relativas aos Serviços de Inspecção dos Espectáculos
Substitui as taxas constantes da tabela a que se refere o art. 9.º do Decreto-Lei 34590.
Rectificado em 13 de Dezembro de 1945
Decreto-Lei 35427, de 31 de Dezembro de 1945
Decreto-Lei 36058, de 24 de Dezembro de 1946
Decreto-Lei 36062, de 27 de Dezembro de 1946
Licença de exibição
Lei 2027, de 18 de Fevereiro de 1948
Cria o Fundo do Cinema Nacional
Decreto-Lei 37369, de 11 de Abril de 1949
Estabelece as normas de administração do Fundo do Cinema Nacional
Decreto 37370, de 11 de Abril de 1949
Regulamenta o Fundo de Cinema Nacional
Decreto 37639, de 9 de Dezembro de 1949
Permite a utilização do Fundo de Cinema Nacional pela Caixa Geral de Depósitos na
realização de empréstimos da lei 2027
Decreto-Lei 38964, de 27 de Outubro de 1952
Censura e dobragem
Decreto-Lei 39660, de 20 de Maio de 1954
Decreto-Lei 39926, de 24 de Novembro de 1954
Decreto-Lei 40752, de 16 de Abril de 1956
Cria a Federação Portuguesa de Cineclubes
Decreto-Lei 40715, de 2 de Agosto de 1956
Decreto-Lei 41062, de 10 de Abril de 1957
Decreto-Lei 42660, de 20 de Novembro de 1959
Cria a Comissão de condicionamento dos recintos de cinema
Decreto-Lei 46091, de 22 de Dezembro de 1964
Decreto-Lei 48619, de 10 de Outubro de 1968
Transforma o SNI em SEIT
456
Decreto-Lei 48686, de 15 de Novembro de 1968
Lei 7/71, de 7 de Dezembro de 1971
Estabelece as bases relativas ao fomento das actividades cinematográficas nacionais,
criando para a sua execução o IPC
Decreto-Lei 184/73, de 25 de Abril de 1973
Regula o funcionamento do Instituto Português de Cinema e adopta outras providências
atinentes à execução dos princípios gerais definidos nas Leis n.º 7/71 e 8/71, relativas à
protecção do cinema nacional e à actividade teatral, respectivamente
Decreto 286/73, de 3 de Junho de 1973
Regula a actividade cinematográfica
Decreto-Lei 281/74, de 25 de Junho de 1974
Autoriza a junta de Salvação Nacional a nomear comissão ad-hoc, de carácter transitório
para controlo da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema
Decreto 296/74, de 29 de Junho de 1974
Determina providências destinadas a permitir às empresas exibidoras de filmes dispor
dos meios financeiros indispensáveis à sua manutenção e desenvolvimento.
Decreto 257/75, de 25 de Maio de 1975
Define as normas a que deve obedecer a assistência financeira a conceder pelo Instituto
Português de Cinema.
Decreto 685/75, de 10 de Dezembro de 1975
Determina que o IPC seja transitoriamente gerido por uma Comissão Administrativa
Decreto 224/76, de 30 de Março de 1977
Prorroga o prazo previsto no art. 33.º, n.º 1 e 2, do Decreto 286/73 de 5 de Junho.
Decreto 254/76, de 7 de Abril de 1976
Estabelece medidas relativas à publicação e comercialização de objectos e meios de
comunicação social de conteúdo pornográfico.
Portaria 467/76, de 31 de Julho de 1976
Aprova o Regulamento da Comissão de Classificação dos Espectáculos.
Decreto 653/76, de 31 de Julho de 1976
Nova redação ao art. 4.º do decreto-Lei 254/76.
Decreto 654/76, de 31 de Julho de 1976
Fixa a taxa de distribuição e a taxa incidente sobre o preço dos bilhetes para os filmes
classificados como pornográficos.
Portaria 637/76, de 25 de Outubro de 1976
Determina normas em relação aos preços dos bilhetes.
457
Portaria 874, de 31 de Dezembro de 1976
Fixa as percentagens do adicional sobre os espectáculos cinematográficos a atribuir ao
Fundo de Socorro Social, à Caixa de Previdência dos Profissionais de Cinema e às
Câmaras Municipais.
Portaria 207/77, de 14 de Abril de 1977
Torna extensivo ao pessoal do IPC o regime previsto no decreto-Lei 923.
Despacho Normativo 207/77, de 28 de Outubro de 1977
Estabelece os critérios a utilizar na classificação dos espectáculos cinematográficos.
Despacho Normativo 105/78, de 11 de Maio de 1978
De delegação do Primeiro-Ministro no Ministro da Educação e Cultura da competência
que por lei lhe é atribuída relativamente ao Instituto Português de Cinema.
Despacho Normativo 146/79, de 3 de Setembro de 1979
Transfere para o Instituto Português de Cinema a titularidade e gestão das participações
do sector público na Tóbis Portuguesa, S. A. R. L..
Decreto 533/79, de 31 de Dezembro de 1979
Estabelece disposições relativas à coordenação e fomento das actividades teatrais e
cinematográficas.
Decreto 59/80, de 3 de Abril de 1980
Reestrutura a Secretaria de Estado da Cultural.
Decreto 60/80, de 8 de Abril de 1980
Autoriza o Instituto Português de Cinema a promover as obras de restauro e ampliação
do seu imóvel.
Decreto 178/80, de 3 de Junho de 1980
Revoga o Decreto-Lei n.º 257/75, de 26 de Maio (Instituto Português de Cinema).
Decreto Regulamentar 28/80, de 21 de Julho de 1980
Autoriza o Instituto Português de Cinema a subsidiar a construção, reparação,
modernização e reequipamento de salas de cinema.
Decreto Regulamentar 33/80, de 1 de Agosto de 1980
Aprova a lei orgânica da Cinemateca Portuguesa.
Decreto Regulamentar 328/80, de 27 de Agosto de 1980
Autoriza que a assistência financeira do Instituto Português de Cinema à produção de
filmes possa atingir montante igual ao do custo total dos filmes.
458
B. Lista de filmes mais vistos no Teatro Jordão, em Guimarães, entre 1938 e 1955.
(fonte: dados compilados a partir do espólio Teatro Jordão, Sociedade Martins
Sarmento, Guimarães)
Data
1939.01.18-19
1940.01.28-29
1940.10.20-21
1940.11.03-04
1940.12.25-26
1941.03.16-17
1942.12.13-14
1943.03.21-22
1943.05.16-17-18
1943.10.24-25
1943.11.14-15-16
1943.12.18-19-20-21
1944.01.02
1944.01.09
1944.03.05
1944.10.29
1944.11.25-26-27
1944.12.10
1945.03.20-21
1945.04.27-28-29
1945.10.28-29
1945.12.25
1945.12.26
1945.12.30
1946.04.07-08
1946.11.17
1946.12.08-09
1946.12.15-16-17
1946.12.29
1947.01-12-13-14
1947.03.16
1947.03.19-20
1947.03.22-23
1947.04.20-21
1947.10.14-16
1947.10.19-20-21
Título
Branca de Neve e os 7 Anões
(Snow White and the 7 Dwarfs)
A Varanda dos Rouxinóis
João Ratão
O Feitiço do Império
Pão Nosso
Porto de Abrigo
Ala-Arriba
Aniki-Bóbó
O Costa do Castelo
Ave de Arribação
Fátima, Terra de Fé
Amor de Perdição
A Coroa de Ferro (La Corona di Ferro)
Sangue, Suor e Lágrimas
(In Wich We Serve)
O Gavião dos Mares (The Sea Hawk)
As Pupilas do Senhor Reitor
A Menina da Rádio
Doze Luas de Mel
A Mulher dos Meus Sonhos
(Die Frau meiner Träume)
A Vizinha do Lado
Inês de Castro
Casablanca
Um Raio de Luz (Edge of Darkness)
A Mulher Serpente (Cobra Woman)
José do Telhado
O Terror dos Sete Mares (The Spanish
Main)
A Canção de Bernardette
(The Song of Bernardette)
Um Homem do Ribatejo
A Gaivota Negra (Frenchman’s Creek)
Camões
Os Sinos de Santa Maria
(The Bells of St. Mary's)
O Abade de Faria
(Le Comte de Monte Cristo: L'abbé Faria )
A Vingança de Monte Cristo
(Le Comte de Monte Cristo)
A Mantilha de Beatriz
Guimarães, Alma duma Cidade
Rainha Santa
459
Espectadores
1.951 (2 sessões)
2.417 (3 sessões)
2.763 (3 sessões)
2.060 (3 sessões)
2.379 (3 sessões)
1.917 (3 sessões)
2.313 (3 sessões)
2.245 (3 sessões)
4.000 (5 sessões)
2.573 (3 sessões)
4.559 (5 sessões)
5.233 (6 sessões)
2.106 (2 sessões)
2.052 (2 sessões)
2.106 (2 sessões)
2.132 (2 sessões)
3.030 (4 sessões)
2.006 (2 sessões)
2.694 (3 sessões)
2.902 (4 sessões)
3.973 (3 sessões)
2.104 (2 sessões)
2.067 (2 sessões)
2.132 (2 sessões)
2.028 (3 sessões)
2.061 (2 sessões)
3.390 (4 sessões)
3.931 (4 sessões)
2.105 (2 sessões)
4.183 (4 sessões)
2.100 (2 sessões)
2.693 (3 sessões)
2.964 (3 sessões)
2.449 (3 sessões)
4.694 (5 sessões)
4.194 (4 sessões)
1947.11.09-10
1947.11.23-24-25
1947.12.01-02
1947.12.14-15-16
1948.02.22-23-24
1948.03.07-08-09
1948.10.24-25
1948.11.21
1949.03.13
1949.04.17-18
1949.10.10-11
1949.12.18-19-20
1950.01.22-23-24
1950.03.19
1950.04.16-17
1950.04.30/05.01
1950.12.03-04-05
1951.03.18-19
1952.01.01-02-03
1952.03.16-17-18
1952.08.31
1953.04.06
1953.05.24-25
1954.01.24-25
1955.01.06
1955.01.30
1955.02.27
1955.04.10-11-12
1955.12.07-08
Bola ao Centro
2.691 (3 sessões)
Três Espelhos
3.455 (4 sessões)
O filho do Robin dos Bosques
2.683 (3 sessões)
(The Bandit of Sherwood Forest)
Capas Negras
4.164 (4 sessões)
O Leão da Estrela
2.612 (4 sessões)
Fado – História de uma Cantadeira
2.503 (4 sessões)
Serra Brava
2.044 (3 sessões)
Califórnia
2.029 (2 sessões)
As Aventuras de D. Juan
2.102 (2 sessões)
(Adventures of Don Juan)
Não Há Rapazes Maus!
2.449 (4 sessões)
Deus Lhe Pague (Dios Se Lo Pague)
2.319 (3 sessões)
Sol e Toiros
3.837 (4 sessões)
Ribatejo
3.158 (4 sessões)
O Sinal de Zorro (The Mark of Zorro)
2.100 (2 sessões)
Joana D’Arc
3.344 (4 sessões)
Cantiga da Rua
3.025 (3 sessões)
Frei Luís de Sousa
3.071 (4 sessões)
O Grande Elias
3.503 (4 sessões)
Senhora de Fátima
5.396 (6 sessões)
Madragôa
3.054 (3 sessões)
Amor de Perdição
2.075 (2 sessões)
Anna
2.413 (3 sessões)
O Milagre de Fátima
3.414 (4 sessões)
(The Miracle of Our Lady of Fatima)
Salomé (Salome)
2.129 (3 sessões)
Os Filhos não se Vendem
2.281 (3 sessões)
(I Figli non si Vendono)
Madalena (Maddalena)
2.336 (3 sessões)
Filhos de Ninguém (I Figli di Nessuno)
2.522 (3 sessões)
Os Cavaleiros da Távola Redonda
2.381 (5 sessões)
(Knights of the Round Table)
Marcelino Pão e Vinho (Marcelino pan y
3.662 (4 sessões)
vino)
460
C. Lista integral de longas-metragens de produção ou co-produção portuguesa
emitidas na RTP entre 7 de Março de 1957 e 25 de Abril de 1974.
1957 (desde 7 de Março, inicio das emissões regulares)
- Fado, História de uma Cantadeira, de Perdigão Queiroga (1948), exibido a 13-III-1957;
- Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 20-III-1957;
- A Canção da Terra, de Jorge Brum do Canto (1938), exibido a 26-III-1957;
- A Severa, de Leitão de Barros (1931), exibido a 2-IV-1957;
- A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 9-IV-1957;
- Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 23-IV-1957;
- Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro (1934), exibido a 30-IV-1957;
- Rainha Santa, de Henrique Campos (1949), co-produção luso-espanhola, exibido a 27XI-1957;
- Ladrão, Precisa-se, de Brum do Canto (1946), exibido a 11-XII-1957;
- Cantiga da Rua, de Henrique de Campos (1950), exibido a 18-XII-1957;
- Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 26-XII-1957;
1958
- O Homem do Ribatejo, de Henrique Campos (1946), exibido a 2-I-1958;
- Rosa do Adro, de Chianca de Garcia (1938), exibido a 8-I-1958;
- O hóspede do Quarto 13, de Arthur Duarte (1947), co-produção luso-espanhola,
exibido a 15-I-1958;
- Os Vizinhos do Rés-do-chão, de Alejandro Perla (1947), exibido a 22-I-1958;
- O Diabo são Elas, de Ladislao Vajda (1945), co-produção luso-espanhola, exibido a 29I-1958;
- Não há Rapazes Maus, de Eduardo Maroto (1948), exibido a 5-II-1958;
- Cantiga da Rua, de Henrique Campos (1950), exibido a 12-II-1958 (Em reposição);
- A Canção da Terra, de Brum do Canto (1938), exibido a 5-III-1958 (Em reposição);
- Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 19-III-1958 (Em reposição);
- Ribatejo, de Henrique Campos (1949), exibido a 26-III-de 1958;
- Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 2-IV-1958 (Em
reposição);
- Um Homem às Direitas, de Brum do Canto (1945), exibido a 16-IV-1958;
- A Morgadinha dos Canaviais, de Caetano Bonucci (1949), exibido a 23-IV-1958;
- As Pupilas do Senhor Reitor, de Leitão de Barros (1935), exibido a 30-IV-1958;
- Fátima, Terra de Fé, de Brum do Canto (1943), exibido a 14-V-1958;
- Eram Duzentos Irmãos, de Armando Vieira Pinto (1952), exibido a 2-VII-1958;
- O hóspede do Quarto 13, de Arthur Duarte (1947), co-produção luso-espanhola,
exibido a 27-VIII-1958 (Em reposição);
- Ala-Arriba, de Leitão de Barros (1942), exibido a 17-IX-1958;
- Duas Causas, de Henrique Campos (1953), exibido a 8-X-1958;
- A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 31-XII-1958 (Em reposição);
1959
461
- Ribatejo, de Henrique Campos (1949), exibido a 7-I-1959 (Em reposição);
- Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 18-II-1959 (Em
reposição);
- As Pupilas do Senhor Reitor, de Leitão de Barros (1935), exibido a 25-II-1959 (Em
reposição);
- O Grande Elias, de Arthur Duarte (1950), exibido a 11-III-1959;
- Fátima, Terra de Fé, de Brum do Canto (1943), exibido a 18-III-1959 (Em reposição);
- Ala-Arriba, de Leitão de Barros (1942), exibido a 25-III-1959 (Em reposição);
- Um Homem às Direitas, de Brum do Canto (1945), exibido a 1-IV-1959 (Em reposição);
- O Leão da Estrela, de Arthur Duarte (1947), exibido a 8-IV-1959;
- A Morgadinha dos Canaviais, de Caetano Bonucci (1949), exibido a 22-IV-1959 (Em
reposição);
- Ladrão, Precisa-se, de Brum do Canto (1946), exibido a 29-IV-1959 (Em reposição);
- Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 13-V-1959 (Em reposição);
- A Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro (1937), exibido a 27-V-1959;
1960
- Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 25-XII-1960;
1961
- Maria Papoila, de Leitão de Barros (1937), exibido a 17-I-1961;
- O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 7-III-1961;
- Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 21-III-1961;
- Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 2-V-1961(Em reposição);
- Sol e Toiros, de José Buchs (1949), exibido a 16-V-1961;
- João Ratão, de Brum do Canto (1940), exibido a 18-VI-1961;
- Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 8-VIII-1961 (Em reposição);
- O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 15-VIII-1961 (Em reposição);
- Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 12-IX-1961 (Em reposição);
- A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 31-X-1961 (Em reposição);
- A Canção da Terra, de Brum do Canto (1938), exibido a 14-XI-1961 (Em reposição);
- Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro (1934), exibido a 21-XI-1961 (Em reposição);
1962
- Um Marido Solteiro, de Fernando Garcia (1952), exibido a 16-I-1962;
- Inês de Castro, de Leitão de Barros (1944), exibido a 10-IV-1962;
- O Homem do Ribatejo, de Henrique de Campos (1946), exibido a 10-VII-1962 (Em
reposição);
- Saltimbancos, de Manuel Guimarães (1951), exibido a 7-VIII-1962;
- Duas Causas, de Henrique de Campos (1953), exibido a 28-VIII-1962 (Em reposição);
- O Diabo são Elas…, de Ladislao Vajda (1945), co-produção luso-espanhola, exibido a 2X-1962 (Em reposição);
1963
462
- A Rosa do Adro, de Chianca de Garcia (1938), exibido a 26-III-1963 (Em reposição);
- Bola ao Centro, de João Moreira (1947), exibido a 30-VII-1963;
- O Cerro dos Enforcados, de Fernando Garcia (1954), exibido a 3-IX-1963;
- Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 24-IX-1963 (Em reposição);
- O Noivo das Caldas, de Arthur Duarte (1956), exibido a 19-XI-1963;
1964
- As Pupilas do Senhor Reitor (1935), exibido a 5-I-1964 (Em reposição);
- Ribatejo (1949), exibido a 1-III-1964 (Em reposição);
- Inês de Castro, de Leitão de Barros (1944), exibido a 25-III-1964 (Em reposição);
- Ala-Arriba, de Leitão de Barros (1942), exibido a 6-V-1964 (Em reposição);
- Fátima, Terra de Fé (1943), exibido a 10-V-1964 (Em reposição);
- Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 9-VI-1964 (Em reposição);
- A Mantilha de Beatriz, de Eduardo Maroto (1946), co-produção luso-espanhoa, exibido
a 19-VIII-1964;
- Planície Heróica, de Perdigão Queiroga (1953), exibido a 9-IX-1964;
- Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro (1950), exibido a 7-X-1964 (Em
reposição);
1965
- Maria Papoila, de Leitão de Barros (1938), exibido a 2-II-1965 (Em reposição);
- O Tarzan do 5.º Esquerdo, de Augusto Fraga (1958), exibido a 20-VII-1965;
- Dois dias no Paraíso, de Arthur Duarte (1958), exibido a 17-VIII-1965;
1966
- A Canção da Terra, de Brum do Canto (1938), exibido a 13-III-1966 (Em reposição);
- A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 10-IV-1966 (Em reposição);
- Fátima, Terra de Fé, de Jorge Brum do Canto (1943), exibido a 18-XII-1966 (Em
reposição);
1967
- Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 31-XII-1967 (Em reposição);
1968
Durante este ano não foi emitida qualquer longa-metragem de produção ou co-produção
portuguesa.
1969
- O Noivo das Caldas, de Arthur Duarte (1956), exibido a 2-I-1969 (Em reposição);
- Duas Causas, de Henrique de Campos (1953), exibido a 21-IV-1969 (Em reposição);
- Chaimite, de Brum do Canto (1953), exibido a 25-X-1969 (Em reposição);
1970
463
Durante este ano não foi emitida qualquer longa-metragem de produção ou co-produção
portuguesa.
1971
- Sonhar é Fácil, de Perdigão Queiroga (1951), exibido a 1-I-1971 (Em reposição);
- As Pupilas do Senhor Reitor (1935), exibido a 7-III-1971 (Em reposição);
- Ribatejo, de Henrique Campos (1949), exibido a 20-IV-1971 (Em reposição);
- O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 2-V-1971 (Em reposição);
- O Grande Elias, de Arthur Duarte (1950), exibido a 10-VIII-1971 e a 13-VIII-1971 (Em
reposição); A primeira destas emissões teve alguns problemas técnicos, o que levou à
retransmissão do filme três dias depois;
- O Noivo das Caldas, de Arthur Duarte (1956), exibido a 17-VIII-1971 (Em reposição);
- Dois dias no Paraíso, de Arthur Duarte (1958), exibido a 24-VIII-1971 (Em reposição);
- As Ilhas Encantadas, de Carlos Vilardebó (1965), exibido a 5-X-1971.
1972
- Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 1-I-1972 (Em reposição);
- Camões, de Leitão de Barros (1946), exibido a 13-VI-1972;
- O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro (1941), exibido a 12-IX-1972 (Em reposição);
- Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 19-IX-1972 (Em reposição);
- A Vizinha do Lado, de António Lopes Ribeiro (1945), exibido a 26-IX-1972;
- Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942), exibido a 3-X-1972 (Em reposição);
- Belarmino, de Fernando Lopes (1964), exibido a 10-X-1972;
- A Mantilha de Beatriz, de Eduardo Maroto (1946), co-produção luso-espanhoa, exibido
a 2-XII-1972 (Em reposição);
- Perdeu-se um Marido, de Henrique de Campos (1957), exibido a 9-XII-1972;
- José do Telhado, de Armando de Miranda (1945), exibido a 16-XII-1972;
1973
- 29 Irmãos, de Augusto Fraga (1965), exibido a 10-VI-1973;
- Sol e Toiros, de José Buchs (1949), exibido a 26-VIII-1973 (Em reposição);
- A Canção de Lisboa, de Cottineli Telmo (1933), exibido a 28-VIII-1973 (Em reposição);
- Maria Papoila, de Leitão de Barros (1938), exibido a 4-IX-1973 (Em reposição);
- A Menina da Rádio, de Arthur Duarte (1944), exibido a 11-IX-1973;
- A Vizinha do Lado, de António Lopes Ribeiro (1945), exibido a 18-IX-1973 (Em
reposição);
- 29 Irmãos, de Augusto Fraga (1965), exibido a 23-XII-1973 (Em reposição);
- O Grande Elias, de Arthur Duarte (1950), exibido a 31-XII-1973 (Em reposição);
1974 (até 25 de Abril)
- Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro (1942), exibido a 1-I-1974 (Em reposição);
464
D. Apoios do IPC à produção entre 1974-1980.
(fonte: dados fornecidos pelo ICA)
APOIO FINANCEIRO À PRODUÇÃO DE CURTAS METRAGENS (1974/1980)
ANO
APOIO
TIPO FILME
PRODUTOR
REALIZADOR
1974
1974
1974
CM
CM
CM
Vamos ao Nimas
O Piano
A Lenda do Mar Tenebroso
Lauro António
Sinde Filipe
Tope Filme
Lauro António
Sinde Filipe
Ricardo Neto
APOIO
FINANCEIRO
(em contos)
179
189
300
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
Unidade de Prod. Nº1
Unidade de Prod. Nº1
Upra
Upra
Upra
Cinegra
Jorge Cabral
Colectivo
Colectivo
Luís Gaspar
Luís Gaspar
Luís Gaspar
Almeida Lopes
Jorge Cabral
256
6.059
150
309
603
190
1.104
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
CM
1º de Maio de 1975
Jornal Cinematográfico
Operação Boa Colheita
Deolinda da Seara Vermelha
O Rendeiro
Pinturas Murais
Visita Pres. General Costa Gomes
A Revolução das Flores Franco
Assassino
Não Quero Ser Palhaço
O Caldo de Pedra
Os Dez Anõezinhos
Aquedutos Portugueses
A Revolução Está na Ordem do Dia
Angola, Ano Zero
Nem Pássaro Nem Peixe
A Verdadeira Amizade
Atletismo
Júlio de Matos….Hospital?
Areia Lodo e Mar
Acção - Intervenção
Cavalgada Segundo S.João
...Pela Razão Que Têm!
A Cama
Prefácio a Vergílio Ferreira
O Encoberto
O Relógio
Para Onde Vai O Homem?
Almada, Um Nome de Guerra
Nós, no País
Mário Jorge
Estúdios Pit
Tope Filme
Tope Filme
Telecine
Grupo Zero
Unidade de Prod. Nº0
Grupo Zero
Bourdain Macedo
Perdigão Queiroga
J.C. Marques
Cinequanon
Cinequanon
Cinequipa
Cinequipa
Sinde Filipe
Lauro António
Telecine
Telecine
Telecine
Francisco Castro
Unidade Produção
Mário Jorge
Fernando Correia
Artur Correia
Ricardo Neto
Carlos Marques
Eduardo Geada
Vitor Henriques
Solveig Nordlund
Silva Brandão
Perdigão Queiroga
José Carlos Marques
Amilcar Lyra
Colectivo
João Matos Silva
Colectivo
Sinde Filipe
Lauro António
Fernando Lopes
Jaime Silva
Sousa Martins
Ernesto de Sousa
Luís Filipe Rocha
631
240
250
250
306
554
1.443
248
346
239
189
752
100
36
336
366
100
131
306
303
615
671
1976
1976
1976
CM
CM
CM
O Setubalense
Rossio
A Igreja Profanada
Cinequanon
Cinequanon
Sinde Filipe
40
517
1.271
1976
1976
1976
1976
1976
CM
CM
CM
CM
CM
Cultura Fora de Portas
Ex-Votos Portugueses
O Zé Povinho na Revolução
O Jardim dos Esquecidos
24 Imagens por Segundo
Upra
António Campos
Lauro António
António Mateus
Telecine
Amilcar Lyra
Colectivo
Sinde Filipe
José
Andrade
Santos
António Campos
Lauro António
Mário Cabrita Gil
Faria D' Almeida
465
426
400
440
125
310
1976
1976
1976
1976
1976
1976
CM
CM
CM
CM
CM
CM
Aquedutos Portugueses
Prelúdio e Fuga
O Grande Porto
Feira de S.Mateus
Dois Anos de Revolução
Beth
Telecine
Fotograma
Coopercine
J.António Conde
Francisco Saalfeld
Mário Neves
José Carlos Marques
Jorge Cabral
Perdigão Queiroga
J. António Conde
Francisco Saalfeld
Mário Neves
Artur
Correia/
Ricardo Neto
Fernando Correia
322
735
362
1.160
78
206
1976
1976
CM
CM
As Duas Comadres
O Gigante do Lago
Tope Filme
Pit
1977
CM
O Construtor de Anjos
Noronha da Costa
1.394
Tope Filme
Mário Neves
Unifilme
CPC
Noronha da Costa
José
Ribeiro
Mendes
Vicente Jorge Silva
J.Botelho/ J.Alves
Silva
António Drago
Pedro
Bandeira
Freire
Sérgio Ferreira
Sinde Filipe
Fernando Correia
Artur
Correia/
Ricardo Neto
Mário Neves
Luís Couto
Colectivo
1977
1977
CM
CM
À Primeira Vista
Bicicleta
José Ribeiro Mendes
Vicente Jorge Silva
1977
1977
CM
CM
Alexandre e Rosa
O Peixinho Vermelho
J.Botelho/ J.Alves Silva
António Drago
1977
1977
1977
1977
CM
CM
CM
CM
Os Lobos
O Prisioneiro
A Pastora
O Cientista Mau
Oscar Cruz
Sérgio Ferreira
Sinde Filipe
Estúdios Pit
1977
1977
1977
1977
CM
CM
CM
CM
O Grão de Milho
O Médico e a Duquesa
Carta de Aniversário
Visita Pres.de Eanes a Madrid
1978
1978
CM
CM
IPC
Prole Filmes
Colectivo
João Abel Aboim
460
631
CM
CM
CM
CM
CM
CM
Visita Pres. Eanes Brasil/Venez.
Ciganos
Tirem-me esta Gente Daqui mas não
a Escondam
Uma História de Letras
Maranos - Teixeira Pascoaes
Alexandre Herculano
Cinquentenário Presença
Dai de Comer a Quem Tem Fome
1978
1978
1978
1978
1978
1978
Marcílio Krieger
Cinematógrafo
Manuel Guimarães
Cinequipa
Fotograma
Cinematógrafo
Jaime Fernandes
José de Carvalho
Dórdio Guimarães
João Matos Silva
Jorge Cabral
Eduardo Lopes
538
492
676
1.394
690
512
1979
1979
CM
CM
Jack
Conimbriga
António Manuel Silva
Manuel Pereira
1979
1979
CM
CM
Arábia
Jorge Martins
1980
1980
1980
CM
CM
CM
Monólogos Femininos
Goa
Mombasa, o Forte de Jesus
250
260
900
900
1.308
1.030
964
900
250
418
462
378
204
209
Rosa Coutinho Cabral
Mário S. Barroso
António
Manuel
Silva
Manuel Pereira
Rosa
Coutinho
Cabral
Mário S. Barroso
2.793
2.154
Século XXI
António Escudeiro
António Escudeiro
Manuel Carvalheiro
António Escudeiro
António Escudeiro
183
250
80
466
2.173
51
APOIO FINANCEIRO À PRODUÇÃO DE LONGAS METRAGENS (1974/1980)
ANO
TIPO FILME
APOIO
APOIO FINANCEIRO
(em contos)
PRODUTOR
REALIZADOR
A Ilha dos Amores
Argozelo
Suma Filmes
Cinequipa
As Armas e o Povo
Tobis Portuguesa
As Ruínas do Interior
Aves Migratórias
Benilde ou a Virgem Mãe
Cântico Final
Cartas na Mesa
Continuar a Viver
Máscaras
O Princípio da Sabedoria
Os Demónios de Alcácer
Quibir
Sofia e a Educação Sexual
Tobis Portuguesa
Hélder Mendes
Tobis Portuguesa
Manuel Guimarães
C.P.C.
Animatógrafo
C.P.C.
Cinequanon
Paulo Rocha
71.333,09 €
Fernando Matos Silva
2.089,96 €
António da Cunha Telles /
2.793,27 €
José de Sá Caeano
José de Sá Caetano
9.128,00 €
Hélder Mendes
2.493,99 €
Manoel de Oliveira
10.579,50 €
Manuel Guimarães
7.776,26 €
Rogério Ceitil
3.202,28 €
António da Cunha Telles
13.522,41 €
Noémia Delgado
2.114,90 €
António de Macedo
7.900,96 €
José Fonseca e Costa
José Fonseca e Costa
Artur Semedo
Trás-os-Montes
C.P.C.
Eduardo Geada
4.489,18 €
Margarida Cordeiro / António
10.744,11 €
Reis
1974
1974
LM
LM
1974
1974
1974
1974
1974
1974
1974
1974
1974
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
1974
1974
LM
LM
1974
LM
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
1975
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
Amor de Perdição
A Confederação
Antes do Adeus
Recompensa
O Rei das Berlengas
Deus, Pátria, Autoridade
Lerpar
Gente da Praia da Vieira
Terra Pão, Terra Luta
A Lei da Terra
Gestos e Fragmentos
Actos dos Feitos da Guiné
Veredas
A Santa Aliança
Contra as Multinacionais
O Meu Nome É...
Antes a Sorte Que Tal Morte
Barronhos
Nós por Cá Todos Bem
Liberdade para José Diogo
As Horas de Maria
O Diabo Desceu à Vila
IPC
Cinequanon
CPC
Arthur Duarte
IPC
Rui Simões
Unifilme
António Campos
Cinequipa
Grupo Zero
Grupo Zero
Cinequipa
João César Monteiro
Eduardo Geada
Cinequipa
Cinequipa
Cinequipa
Prole Filme
CPC
Cinequanon
Cinequanon
Teixeira Fonseca
Manoel de Oliveira
Luís Galvão Teles
Rogério Ceitil
Arhur Duarte
Artur Semedo
Rui Simões
Luís Couto
António Campos
José Nascimento
Alberto Seixas Santos
Alberto Seixas Santos
Fernando Matos Silva
João César Monteiro
Eduardo Geada
Vários
Fernando Matos Silva
João Matos Silva
Luís Filípe Rocha
Fernando Lopes
Luís Galvão Teles
António de Macedo
Teixeira Fonseca
84.965,23 €
9.118,03 €
10.040,80 €
26.032,26 €
36.586,83 €
5.342,13 €
14.804,32 €
1.296,87 €
2.474,04 €
4.344,53 €
19.258,59 €
1.072,42 €
20.041,70 €
27.119,64 €
279,33 €
10.110,63 €
8.813,76 €
2.553,85 €
11.018,45 €
2.808,23 €
4.738,58 €
21.114,11 €
1976
1976
LM
LM
A Ronda dos Meninos Maus
A Fuga
IPC
Prole Filme
Gonsalves Preto
Luís Filípe Rocha
5.237,38 €
5.561,60 €
467
11.003,48 €
1976
1976
1976
1976
1976
1976
1976
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
1977
1977
1977
1977
LM
LM
LM
LM
1977
1977
1977
1977
1977
1977
1977
1977
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
1978
1978
1978
LM
LM
LM
1978
LM
1978
1978
1978
Madrugada
O Outro Teatro
Colónia e Vilões
Bom Povo Português
Guerra do Miradum
Oxalá
Sertório
Francisco Silva
Cinequanon
Cinequanon
Rui Simões
Cinequipa
V.O.Filmes
António Faria
Luís Couto
António de Macedo
Leonel de Brito
Rui Simões
Fernando Matos Silva
A. Pedro Vasconcelos
António Faria
O Príncipe com Orelhas de
Burro
Cinequanon
António de Macedo
Manhã Submersa
Lauro António
Lauro António
Kilas, O Mau da Fita
Filmform
José Fonseca e Costa
Cerromaior
Prole Filme
Luís Filípe Rocha
António
Reis/
Ana
M.Cordeiro
António Reis / M.Cordeiro
Histórias Selvagens
António Campos
António Campos
A Vida é Bela...!?
Luís Galvão Teles
Luís Galvão Teles
Um S Marginal
Filmform
José de Sá Caetano
O Crime de Simão Bolandas Bourdain Macedo
Jorge Brum do Canto
O Bobo
Animatógrafo
José Álvaro Morais
O Paraíso Perdido
Animatógrafo
Alberto Seixas Santos
Vidas
Animatógrafo
António da Cunha Telles
6.733,77 €
4.239,78 €
4.738,58 €
42.008,76 €
64.798,83 €
47.854,67 €
2.992,79 €
33.195,00 €
29.329,32 €
47.939,47 €
46.049,02 €
61.247,39 €
6.554,20 €
73.283,39 €
39.240,43 €
54.797,94 €
167.895,38 €
88.845,88 €
123.816,60 €
33.120,18 €
32.287,19 €
8.569,35 €
Grupo Zero
António V. d'Almeida
Filmform
Solveig Nordlund
António V. d'Almeida
Monique Rutler
Diafilme
Ricardo Costa
LM
LM
LM
Dina e Django
A Culpa
Velhos são os Trapos
Verde por Fora Vermelho por
Dentro
Passagem ou a Meio
Caminho
Crónica dos Bons Malandros
Mulheres
Grupo Zero
Fernando Lopes
Manuela Serra
Jorge Silva Melo
Fernando Lopes
Manuela Serra
1979
1979
1979
1979
1979
1979
1979
LM
LM
LM
LM
LM
LM
LM
Francisca
Silvestre
Rita
Conversa Acabada
Moura Encantada
Uma Rapariga no Verão
África 80
V.O.Filmes
V.O.Filmes
José Ribeiro Mendes
V.O.Filmes
Manuel Costa e Silva
Trópico Filmes
Barata Feio
Manoel de Oliveira
João César Monteiro
José Ribeiro Mendes
João Botelho
Manuel Costa e Silva
Vítor Gonçalves
Barata Feio
103.929,53 €
62.489,40 €
47.794,81 €
42.337,97 €
13.966,34 €
17.178,60 €
3.391,83 €
1980
1980
LM
LM
Sinais de Vida
O Território
Prole Filme
V.O.Filmes
Luís Filípe Rocha
Raoul Ruiz
34.541,75 €
14.963,94 €
468
18.829,62 €
10.330,10 €
61.332,18 €
17.692,36 €
E. Cronologia da Tobis Portuguesa (1930-2007).
(fontes: http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2007/12/06/tobis-portuguesa-75anos-cronologia-1930-1948/;
http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2007/12/06/tobis-portuguesa-75-anoscronologia-1949-1980/;
e
http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2007/12/06/tobis-portuguesa-75-anoscronologia-1981-2007/).
1930 – (Agosto) – O Inspector dos Espectáculos convoca profissionais do Cinema e
jornalistas para elegerem os seus representantes para formarem uma comissão
encarregada de estudar as condições da criação de uma indústria cinematográfica em
Portugal.
(25/10) – Reunião na sede da Inspecção dos Espectáculos da comissão encarregada de
estudar as condições da criação de uma indústria cinematográfica em Portugal
(composta pelo Dr. Ricardo Jorge e Arquitecto Raul Lino, representantes
respectivamente do São Luís e da empresa do Tivoli, do sector da exibição; Dr. João
Botto de Carvalho, como sócio-gerente da Sociedade Geral de Filmes, e J. Castello Lopes,
que representavam os distribuidores; José Leitão de Barros director da produção da
Sociedade Universal de Superfilmes e Aníbal Contreiras, sócio do laboratório Lisboa
Filme, em delegação dos produtores; e os jornalistas Eduardo Chianca de Garcia e
António Lopes Ribeiro, como representantes da imprensa cinematográfica).
(05/04) – Estreia de Sombras Brancas nos Mares do Sul de W. S. Van Dyke, no Cinema
Royal, o primeiro all talkie exibido em Portugal.
1931 – (18/06) – A Severa, de Leitão de Barros, o primeiro fonofilme português, estreia
no São Luiz.
(Outubro) – A comissão encarregada de estudar as condições da criação de uma
indústria cinematográfica em Portugal apresenta o relatório (em que se sugeria entre
outras coisas, a construção de um estúdio para a realização de filmes portugueses com
artistas portugueses).
1932 – (Maio) – Conclusão das negociações com a Tobis Klangfilm.
(03/06) – Constituição da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm
(com um capital inicial de 1.000.000$00, inteiramente subscrito, dividido em 20.000
acções de 50$00 cada uma), com sede na Av. da Liberdade, n.º 141, 1.º andar.
(Julho) – Aquisição da Quinta das Conchas, no Lumiar – com todas as dependências e
edificações e todo o material eléctrico e cinematográfico nela existente – local onde se
edificará o Estúdio.
(25/11) – São publicados na imprensa (O Notícias Ilustrado) os ante-projectos da
primeira série de construções da Tobis da autoria do arquitecto Cottinelli Telmo e do
técnico francês A. Richard.
(19/12) – O construtor Diamantino Tojal inicia os trabalhos de construção do Estúdio da
Tobis.
1933 – (16/01) – A Tobis Portuguesa celebra um contrato com as suas congéneres alemã
– Klangfilm – e holandesa – Internationale Tobis Maatschappij – de aluguer de uma
aparelhagem para a tomada de som e de vistas.
(15/03) – Aumento de capital da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros TobisKlangfilm de 1:000.000$ para 2:000.000$.
(Março) – Chegada da aparelhagem de tomada de som a Portugal.
(17/06) – Início das filmagens de A Canção de Lisboa.
469
(01/08) – A Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm altera a sua
designação para Tobis Portuguesa e alguns artigos dos seus Estatutos, entre as quais a
concessão de plenos poderes aos Conselhos de Administração e Fiscal.
(14/08) – O Decreto-lei n.º 22 966 isenta a Tobis Portuguesa S.A.R.L., durante cinco
anos, do pagamento de contribuições predial e industrial, e de direitos de importação de
maquinismos, aparelhos e materiais necessários ao exercício da sua indústria.
(07/11) – Estreia de A Canção de Lisboa, primeira longa-metragem produzida pela Tobis,
«o primeiro filme português feito por portugueses», como anunciava o cartaz, no São
Luiz.
1934 – (17/05) – O Decreto n.º 23 866 regula a forma como a Tobis Portuguesa pode
beneficiar da isenção de direitos de importação concedida pelo art. 1.º do Decreto n.º 22
966, de 14 de Agosto de 1933.
(13/07) – Criação do Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema, com o despacho
do Sub-Secretário de Estado, das Corporações e Previdência, que enquadrava os
profissionais de cinema de todo o País.
(17/08) – Inauguração do Estúdio da Tobis, na Quinta das Conchas, ao Lumiar.
(25/08) – Contrato entre a Lisboa Filme e a Tobis através do qual, a Lisboa Filme fica
encarregue de todos os trabalhos de laboratório e operações correlativas necessárias
para os filmes produzidos pela Tobis.
1935 – (01/04) – Estreia de As Pupilas do Sr. Reitor, de Leitão de Barros, segunda longametragem produzida pela Tobis, no Tivoli.
(17/04) – O Decreto n.º 25 259 isenta a indústria produtora de filmes dos direitos de
importação.
(28/12) – O Cinéfilo anuncia o primeiro filme dobrado em português, O Grande Nicolau,
um filme francês distribuído pela Filmes Império e dobrado nos estúdios da Tobis
Portuguesa. Na dobragem participam os actores Vasco Santana, Filomena Lima,
Hortense Luz, Rafael Marques, Alberto Ghira, Armando Machado e Ribeirinho.
1936 – Contrato com o SPN, de aluguer do Estúdio, para as filmagens de A Revolução de
Maio.
(Dezembro) – Cedência gratuita de bobines dos filmes A Canção de Lisboa e As Pupilas do
Sr. Reitor e dos camiões de energia, de tomada de som e projectores, à Sociedade
Universal de Super Filmes para a récita de gala de apresentação do filme Bocage, rodado
no Estúdio da Tobis.
1937 – (Março) – Rodagem do filme Maria Papoila, de Leitão de Barros, no Estúdio da
Tobis.
(Junho) – Inauguração do novo laboratório da Lisboa Filme, na Quinta dos Ulmeiros
propriedade contígua à Quinta das Conchas no Lumiar.
(27/12) – O Decreto 28.323 prorroga a isenção do pagamento de contribuições e direitos
alfandegários, pelo prazo de 5 anos (até 3 Junho de 1942).
1938 – (08/02) – A Tobis Portuguesa celebra com o governo um contrato para a
produção de filmes em África no âmbito da Missão Cinegráfica às Colónias. A Missão
criada, em Julho de 1937, por iniciativa do Ministro das Colónias tinha como objectivo a
realização de documentários que divulgassem a vida local e o esforço colonizador
desenvolvido pelos portugueses. Enquadrada pela Agência Geral das Colónias, a Missão
decorreu entre Fevereiro e Outubro de 1938 tratando-se da mais detalhada e exaustiva
digressão de uma equipa de cinema nacional fora do território continental.
(14/02) – O Decreto n.º 28466 isenta do condicionamento das indústrias os laboratórios
e depósitos de fitas cinematográficas.
(14/03) – Aprovação de novo contrato entre a Tobis Portuguesa e a Klangfilm de Berlim,
em que a Tobis adquiriu uma nova unidade de tomada de som transportável mais
470
moderna, a Eurocord B. Esta aquisição permitiu que a Companhia continuasse a
rodagem de filmes no seu estúdio – Aldeia da Roupa Branca – evitando a sua paragem ou
sonorização no estrangeiro já que o anterior equipamento estava a ser utilizado na
Missão Cinegráfica às Colónias.
(27/04) – Alteração dos Estatutos da Tobis Portuguesa: alteração no corpo social; o
Presidente do Conselho de Administração passa a ser mais interventor nomeadamente
presidindo ao Conselho de Produção; surge a figura do Administrador-Delegado (de
acordo com deliberação tomada em reunião da respectiva Assembleia Geral, de 12 de
Abril).
1939 – (01/02) – A Lisboa Filme, L.dª comunica ao SPN que transferiu o escritório, o
estúdio e o laboratório para a sua nova sede na Quinta dos Ulmeiros, no Lumiar.
(19/04) – Assinatura do contrato para a produção do filme João Ratão.
(13/05) – Assinatura do contrato para a produção do filme Varanda dos Rouxinóis.
(Maio) – Aquisição de um equipamento de Back Projection em Paris, utilizado no
filmeJoão Ratão.
(Junho) – A aparelhagem da Tobis, Eurocord B, é alugada pela SPAC para a 2.ª Viagem
Presidencial às Colónias de África e Territórios Britânicos da África do Sul.
(Setembro) – São concluídos os trabalhos de construção do restaurante, da cozinha e da
cantina do estúdio da Tobis.
(19/12) – Estreia de Varanda dos Rouxinóis, de Leitão de Barros, no Tivoli, com a
presença do Sub-Secretário de Estado das Obras Públicas e Comunicações, do
Governador Civil de Lisboa, do Presidente do Município, o Dr. Duarte de Figueiredo, em
representação do Ministro da Educação Nacional, e outros. O filme apresenta a actriz
revelação Madalena Sotto.
1940 – (29/04) – Estreia de João Ratão, no São Luiz, de Jorge Brum do Canto,
apresentado com o filme cultural Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul de Fernando
Fragoso e Raul Faria da Fonseca, produzido também pela Tobis.
(Novembro) – O realizador francês Jean Renoir visita os estúdios da Tobis e o laboratório
da Lisboa Filme, durante a sua passagem por Lisboa.
1941 – (Janeiro) – Assinatura do contrato para a produção do filme Lobos da Serra com
a Sonoro Filme, Ld.ª.
(28/08) – Conclusão das fimagens de O Pai Tirano, filme realizado e produzido por
António Lopes Ribeiro nos Estúdios da Tobis. As filmagens começaram em Julho, logo
após a conclusão de Lobos da Serra, produção da Tobis Portuguesa dirigida por Brum do
Canto com a qual partilhou boa parte da equipa técnica. O filme foi montado nos
laboratórios da Lisboa Filme por Vieira de Sousa e estreou no Eden a 19 de Setembro, 75
dias após o início da filmagem, caso único no cinema português da época.
(29/09) – Início das filmagens de O Pátio das Cantigas, nos Estúdios da Tobis, produzido
por António Lopes Ribeiro e realizado por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), com a
actuação, entre outros, de Vasco Santana, António Silva e do próprio Ribeirinho. O filme
contou praticamente com a mesma equipa técnica que O Pai Tirano.
1942 – (23/01) – Estreia no Éden do filme O Pátio das Cantigas, realizado por Francisco
Ribeiro. Na sua equipa técnica destacam-se o operador de câmara César de Sá, o
operador de som Sousa Santos (técnico da Tobis Portuguesa) e o responsável pela
montagem, Vieira de Sousa.
(23/02) – Estreia no Tivoli de Lobos da Serra, produção da Tobis Portuguesa dirigida por
Jorge Brum do Canto, cuja filmagem e montagem durou mais de um ano. Como
complemento foi projectado um documentário da Tobis Portuguesa sobre o fabrico de
ferro e cimento nas fábricas de Alhandra – Cimento e Ferro.
471
(02/09) – Apresentação ao público, durante a Exposição Internacional de Arte
Cinematográfica de Veneza, da produção da Tobis Portuguesa, dirigida por Leitão de
Barros e filmada na Póvoa do Varzim, Ala-Arriba. Em Veneza foram também exibidos os
documentários portugueses Visão Moderna, de Adolfo Coelho e A Exposição do Mundo
Português, de António Lopes Ribeiro.
Ala-Arriba seria premiado pelo Júri com a Taça Bienn
(15/09) – Estreia de Ala-Arriba, no São Luiz.
1943 – (Fevereiro) – Contrato com António Lopes Ribeiro, de aluguer do Estúdio, para a
produção do filme Amor de Perdição.
(15/03) – Estreia, no São Luiz, O Costa do Castelo, de Arthur Duarte, produzido pela
Tobis.
(16/04) – Alteração da designação social da Tobis Portuguesa S. A. R. L. para
Companhia Portuguesa de Filmes S. A. R. L – até 1947 – para evitar paralelismos com a
congénere alemã Tobis Klangfilm.
Primeira Exposição Internacional de Arte e Indústria Cinematográfica no Casino Estoril.
1944 – (Janeiro) – Assinatura do contrato para a produção do filme A Menina da Rádio.
(07/02) – Início das filmagens de A Menina da Rádio, produção da Tobis Portuguesa
dirigida por Arthur Duarte.
(03/07) – Estreia de A Menina da Rádio, no São Luiz.
(Julho) – Assinatura do contrato para a produção do filme A Vizinha do Lado.
(23/08) – O Decreto-Lei n.º 33 883 prorroga até 3 de Junho de 1945 a vigência do
disposto no art. 1.º, do Decreto-Lei n.º 22 966, que isenta a Companhia Portuguesa de
Filmes Sonoros (Tobis), durante 5 anos, do pagamento das contribuições predial e
industrial, e bem assim dos direitos de importação de maquinismos, aparelhos e
materiais, necessários ao estabelecimento e exercício da sua indústria.
(15/09) – Inauguração do Estúdio da Lisboa Filme, junto ao Estúdio da Tobis, onde já
funcionava o laboratório.
1945 – (Abril) – Contrato com a Cineditora, Ld.ª de aluguer do estúdio e prestação de
serviços para produção do filme Ladrão Precisa-se.
(07/05) – Estreia, no Teatro da Trindade, o filme de António Lopes Ribeiro, A Vizinha do
Lado, baseado na peça de teatro homónima escrita por André Brun, adaptada ao cinema
por Lopes Ribeiro e Vieira de Sousa (também responsável pela montagem). Entre os
protagonistas do filme contam-se António Vilar, Madalena Sotto, Carmen Dolores,
Lucília Simões, António Silva, Francisco Ribeiro e Nascimento Fernandes. Recebeu o
Grande Prémio do S.N.I. em 1945 e o Prémio do S.N.I. à melhor actriz, Madalena Sotto.
1946 – (Maio) – Contrato de aluguer do Estúdio com a firma Artistas Unidos, Ld.ª para
produção de trabalhos do filme Os Vizinhos do Rés-do-Chão.
(28/10) – A Companhia celebra um contrato com César de Sá, operador de Câmara e
técnico de Fotografia, para montagem do Laboratório.
(27/12) – O Decreto-lei n.º 36 062 insere disposições de protecção ao cinema português
e cria o Fundo Cinematográfico Nacional cuja administração é entregue ao S. N. I.
1947 – (Fevereiro) – Contrato de aluguer do estúdio para a produção do filme Bola ao
Centro.
(12/05) – Alteração dos Estatutos da Companhia Portuguesa de Filmes S. A. R. L., no
seguimento da deliberação da Assembleia Geral de 24 e 27 de Março (trata-se
essencialmente de uma mudança da disposição social da sociedade que retoma a
designação de Tobis Portuguesa S. A. R. L.).
(01/07) – Início das filmagens da nova produção da Tobis, O Leão da Estrela, de Arthur
Duarte, com António Silva, Milú, Erico Braga, Curado Ribeiro, Laura Alves, Artur
Agostinho, Maria Olguim.
472
(25/11) – Estreia de O Leão da Estrela, no São Luiz.
1948 – (18/02) – É promulgada a Lei n.º 2 027 que cria o Fundo do Cinema Nacional,
substituindo o Fundo do Comissariado do Desemprego na concessão de subsídios, e que
contém disposições de protecção ao cinema português.
(Abril) – Contrato com Produções Atlântico, Ld.ª de prestação de trabalhos de estúdio e
de laboratório para o filme Vendaval Maravilhoso.
1952 – (Março) – Contrato de prestação de serviços de estúdio e laboratório com Manuel
Guimarães para a produção do filme Nazaré.
(27/10) – Publicação do Decreto-Lei n.º 38 964 que regula a assistência de menores a
espectáculos públicos; cria a nova constituição da Comissão de Censura dos
Espectáculos e a Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores com a definição
das suas atribuições.
1953 – (Agosto) – O Conselho de Administração aceita o pedido de abertura de crédito
de Felipe de Solms para produção de um filme, em co-produção com Ricardo Malheiro e
em sociedade com Vasco Santana, intitulado O Costa de África com garantia de 25% das
receitas do filme para a Tobis.
(16/11) – O Secretário Nacional incumbe o Prof. Dr. Luís Pinto Coelho, de elaborar um
relatório que examina o problema da produção cinematográfica nacional e mais
concretamente a situação económica da Tobis. No relatório, sugestões do Prof. Dr. Luís
Pinto Coelho indicam a hipótese de uma concentração da Tobis e da Lisboa Filme.
(Dezembro) – Conclusão das filmagens de O Costa de África, de João Mendes, nos
estúdios da Tobis.
1954 – (17/03) – Num Despacho do Ministro da Presidência, Prof. Dr. João Pinto da
Costa Leite, são solicitadas as diligências necessárias para que se concretizem as
sugestões do Prof. Dr. Luís Pinto Coelho.
(04/05) – Alteração do art.º 4.º dos Estatutos da Tobis Portuguesa S. A. R. L. que
outorga ao Conselho de Administração o aumento de capital por uma ou mais vezes até
10.000$00 e determina as condições de emissão das novas acções.
(30/05) – Um novo Despacho determina as condições de concentração da Tobis e da
Lisboa Filme em que a Tobis adquiria o activo e o passivo da actividade de produtora da
Lisboa Filme ficando esta apenas como accionista da Tobis.
(11/08) – Contrato com Heliodoro de Sena Pires, depositário da aparelhagem de som da
Cinelândia, para que esta seja instalada no Estúdio 2 da Tobis.
(24/11) – O Decreto-lei n.º 39 926 autoriza a aplicação de verbas do Fundo do Cinema
Nacional, através do Fundo do Fomento Nacional, no capital de empresas produtoras de
filmes que se constituam ou reorganizem de acordo com os planos aprovados pelo
Governo para aperfeiçoamento da indústria cinematográfica nacional. Trata-se da Tobis
Portuguesa e da Lisboa Filme.
1955 – (18/01) – Contrato com a firma Thümer, de Düsseldorf, para instalação de um
laboratório de revelação e cópia de filmes a cor com aparelhagem da marca Arri da casa
Arnold & Richter.
(07/04) – Alteração dos Estatutos da Tobis Portuguesa S. A. R. L. e aumento do capital
social de 2.000.000$00 para 7.000.000$00 (5.000.000$00 por meio de emissão de mais
cem mil acções subscritas da seguinte forma: 3.500.000$00 do Fundo do Cinema
Nacional e 1.500.000$00 da Lisboa Filme) – criação das classes A (anteriores 40 mil) e B
(novas 100 mil) das acções.
(Julho) – Visita do Director Geral e do Director Técnico da Cinecitta, Engenheiro Dellani
e Prof. Combi, respectivamente, às instalações da Tobis e da Lisboa Filme, a convite da
Administração para elaborarem um relatório sobre o equipamento dos estúdios.
473
(22/07) – Incêndio no depósito de filmes da Lisboa Filme, na R. da Alegria, com
destruição de cópias de filmes da Tobis que não estavam cobertos pelo seguro.
(18/11) – Com o Despacho do Ministro da Presidência, Prof. Dr. João Pinto da Costa
Leite o processo de concentração entre a Tobis Portuguesa S. A. R. L. e a Lisboa Filme
completa-se.
(15/12) – Constituição da RTP, SARL, por iniciativa do Governo, com um Capital Social
de 60.000.000$00 repartido entre o Estado, Emissoras de Radiodifusão Privadas e
particulares.
1956 – (Junho) – Contrato com a Lisboa-Filme para a prestação de serviços, em
condições de pagamento especiais, na produção dos filmes O Noivo das Caldas, Dois Dias
no Paraíso e Perdeu-se Um Marido.
(02/08) – O Decreto n.º 40 715 regula a exibição de filmes portugueses de grande
metragem em estreia ou em cumprimento do disposto no art. 17.º, da Lei n.º 2 027, de
18 de Fevereiro de 1948.
(04/09) – Início das emissões experimentais da RTP, na Feira Popular.
(03/10) – Aprovada proposta, apresentada ao Conselho de Administração, de criação de
um Centro de Estudos e Preparação de Produções (C.E.P.P.) com o objectivo de
incentivar a produção nacional sem comparticipação estrangeira com filmes de bom
nível técnico e artístico e de promover actividades de formação.
(03/12) – Novo período de emissões experimentais da RTP, com exibição de
documentários cedidos pela Tobis sem pagamento de direitos.
1957 – (Março) – É feita uma avaliação dos imóveis pertencentes à Tobis na tentativa de
encontrar uma solução de saneamento financeiro através de um plano de urbanização
dos terrenos ocupados pelas instalações e transferência dos estúdios e laboratórios para
os arredores de Lisboa.
(07/03) – Início das emissões contínuas da RTP.
(04/07) – Decreto-Lei n.º 41171 condiciona a importação de filmes ao regime de
permuta, designando as circunstâncias em que a importação de filmes de longametragem pode ficar condicionada à permuta com filmes portugueses de igual valor.
(28/08) – Nomeação de António Lopes Ribeiro para exercer as funções de Director Geral
de Produção da Tobis (até Agosto de 1958).
1958 – (19/03) – Registo de propriedade Literária, Científica e Artística, pelo SNI, do
jornal de actualidades Imagens de Portugal.
(Abril) – Aprovado o pedido de subsídio ao Fundo do Cinema Nacional apresentado pelos
Serviços de Produção da Tobis para o filme de curta-metragem A Caça, de Manoel de
Oliveira.
(15/04) – Início do contrato firmado entre a Doperfilme e o SNI para a produção
dasImagens de Portugal.
(Novembro) – Deslocação do técnico alemão Ziemam ao Laboratório da Tobis para dar
formação aos empregados da Divisão de Cor.
(26/12) – O Decreto-Lei n.º 42 502 transfere para o Fundo do Cinema Nacional os títulos
correspondentes à participação das disponibilidades do referido Fundo no capital das
empresas produtoras de filmes, assim como o exercício dos respectivos direitos sociais,
até à presente data atribuídos ao Fundo de Fomento Nacional.
1959 – (Fevereiro) – Aprovada pelo Conselho de Administração da Tobis a aquisição de
uma mesa de montagem italiana com quatro pratos da marca Prevost, à firma Roiz Ld.ª
para reapetrechamento da Divisão de Montagem.
(Março) – Pedido de intervenção da Inspecção dos Espectáculos por distribuição abusiva
pela Lisboa Filmes dos filmes da Tobis.
474
(Julho) – Trabalhos de produção do documentário sobre as festas do Colete Encarnado,
produzido pela Tobis.
(28/07) – Um ofício da 3.ª Circunscrição Industrial determina que se construam
depósitos para filmes que obedeçam às condições de segurança necessárias.
1960 – (Maio) – Início da produção do filme de curta-metragem O Velho da Horta,
subsidiado pelo Fundo do Cinema Nacional com a quantia de 300 contos, realizado pelo
Arqt.º Herlander Peyroteo.
(30/05) – Aprovado o envio ao SNI da relação de negativos de filmes antigos
depositados na Tobis, oferecendo-se à Cinemateca os filmes com valor histórico.
(03/10) – Aceite pedido da Lisboa Filme para devolução dos seus filmes depositados na
Tobis.
1961 – (13/03) – A RTP transmite o filme O Costa do Castelo contra o pagamento à Tobis
de uma taxa de 50$00 por minuto.
(20/05) – A Tobis Portuguesa e o SNI celebram um contrato de adjudicação para a
produção do jornal de actualidades Imagens de Portugal com realização da equipa de
António da Cunha Telles.
(14/07) – Demissão de António da Cunha Telles da realização das Imagens de
Portugal,substituído pelo realizador João Mendes.
(Dezembro) – Início das filmagens de O Elixir do Diabo (Forbiden Fruit), co-produzido
com Charles W. Hall (não chegou a ser exibido devido aos cortes exigidos pela Censura).
1962 – (Outubro) – Contrato entre a Tobis e a Walt Disney Productions, Ltd de prestação
de serviços para o filme Hector, the Stowaway Pup.
(Outubro) – Negociações com a RTP sobre a possibilidade de a RTP adquirir o activo
imobilizado da Tobis (nunca se concretizou).
(29/10) – O realizador João Mendes é substituído por Armando Silva Brandão na
produção do quinzenário Imagens de Portugal.
1963 – (Fevereiro) – Tobis celebra um acordo com a RTP para cedência de filmes antigos
arquivados nos cofres da Tobis, após catalogação dos mesmos.
(Junho) – Equipa técnica das Imagens de Portugal da Tobis substituída por equipa de
Perdigão Queiroga, mantendo-se nos genéricos como produção da Tobis subsidiada pelo
SNI.
(07/08) – Um ofício do SNI comunica concessão de um subsídio e de um empréstimo
para a produção do filme O Crime de Aldeia Velha: empréstimo de 250 contos e subsídio
de 250 contos condicionado à aprovação final do filme (co-produzido com António
Cunha Telles).
1964 – (09/05) – Prorrogação por mais um ano da produção pela Tobis das Imagens de
Portugal.
(Junho) – Início das filmagens de O Trigo e o Joio, uma co-produção Artistas e Técnicos
Associados, Manuel Guimarães, Tobis Portuguesa, António da Cunha Telles.
(13/07) – O Conselho de Administração da Tobis organiza um almoço com os meios de
comunicação, clientes e todos os produtores para dar conhecimento da nova orientação
da Empresa, apresentar os novos equipamentos e outros aspectos técnicos ultimamente
alterados.
(20/11) – Estreia de O Crime de Aldeia Velha, de Manuel Guimarães, no Éden. A Tobis
apresenta uma nova produção, após um longo período sem produzir longas-metragens,
baseada na obra homónima de Bernardo Santareno, inspirada num caso verídico.
1965 – (14/05) – O contrato da produção do jornal de actualidades Imagens de
Portugalentre a Tobis Portuguesa e o SNI é prorrogado por mais um ano, após aprovação
pelo Conselho do Cinema.
475
(09/11) – Estreia de O Trigo e o Joio, de Manuel Guimarães, no Monumental, com Barreto
Poeira, Ema Paul, Eunice Muñoz, Igrejas Caeiro, Mário Pereira, Maria Olguim como
intérpretes. Prémio do S. N. I. à Melhor Fotografia, Aquilino Mendes.
(Novembro) – Aquisição, pela Câmara Municipal de Lisboa, da Quinta dos Lilases e da
Quinta das Conchas.
1966 – (Janeiro) – Ofício da Inspecção do Trabalho exige pagamento voluntário de
indemnizações e de contribuições devidas pela empresa aos empregados – Tobis está
integrada no Grupo I do mapa anexo ao Despacho de Regulamentação de Trabalho para
os Empregados de Escritório.
(Junho) – Colaboração da Tobis com a firma alemã Melodie Filme na prestação de
serviços para o filme Tender Sharks.
(30/11) – Contrato com o Engenheiro Mota Carvalho para elaboração de um estudo
económico sobre os efeitos da urbanização dos terrenos da Tobis.
1967 – (26/04) – A distribuição do jornal Imagens De Portugal passa a ser feita pela
Lusomundo Ld.ª em substituição da Internacional Filmes, Ld.ª.
(Junho) – Formalizado contrato com a RTP para aluguer do Estúdio 2.
(Junho) – Aprovada, pelo Conselho de Cinema, concessão de subsídio de 350 contos e
de empréstimo de 250 contos para a produção do filme A Caçada do Malhadeiro,
realizado por Quirino Simões.
(03/10) – O presidente do Conselho de Administração da Tobis, João Serras Pereira, é
convidado a participar, como representante dos estúdios, na comissão nomeada para
revisão e actualização da Lei n.º 2 027 e diplomas complementares.
1968 – (08/03) – Estreia de A Cruz de Ferro, de Jorge Brum do Canto, no Cinema Roma, a
partir de uma ideia original de Armando Vieira Pinto. Grande Prémio do S. N. I. em 1967.
Prémios do S. N. I. ao Melhor Argumento Adaptado, Jorge Brum do Canto e Fernando
Fragoso; à Melhor Fotografia, João Moreira; à Melhor Actriz e ao Melhor Actor, Cremilda
Gil e Octávio de Matos. Prémio João Ortigão Ramos. Prémios Plateia ao Melhor Filme e ao
Melhor Actor, Octávio de Matos.
(Setembro) – Cessação do contrato de aluguer do Estúdio 2 com a RTP.
(25/11) – A Tobis concede autorização para que sejam exibidas sequências dos
filmes: As Pupilas do Sr. Reitor, João Ratão, Lobos da Serra, Menina da Rádio, Costa do
Castelo, Leão da Estrela, O Grande Elias, Três Espelhos e A Canção de Lisboa no programa
dedicado ao actor António Silva, Estrada do Êxito, da RTP.
1969 – (31/01) – Estreia de A Caçada do Malhadeiro, de Quirino Simões, nos Cinemas
Odeon e Europa, adaptação da obra original com o mesmo título da autoria do Conde de
Ficalho. Prémio João Ortigão Ramos.
(22/04) – Num despacho do Presidente da Câmara de Lisboa é aprovado o Plano Base da
Urbanização dos terrenos da Tobis.
(Julho) – É aprovada pelo Conselho de Administração a proposta da Nacional Filmes de
utilização de película Agfa-Gevaert, em paralelo com a Eastmancolor, nos trabalhos do
Laboratório da Tobis.
(25/11) – Ofício da SEIT comunica a cessação do quinzenário cinematográfico Imagens
de Portugal, produzido pela Tobis, no final do ano.
1970 – (06/01) – Nomeação de uma comissão com o presidente do Conselho de
Administração da Tobis, o Inspector Superior da Secretaria de Estado, representantes da
União de Grémios e do Sindicatos, presidida pelo Director Geral Cultura Popular e
Espectáculos, para se pronunciar sobre o plano estabelecido para as novas instalações da
Tobis.
(18/02) – Início das demolições na Tobis – demolição dos edifícios da Administração,
garagem, casa do Barão e do guarda; e demolição do Estúdio 2.
476
(Junho) – Aprovação dos Estatutos do Centro Português de Cinema, cooperativa
fundada pelos cineastas, em 1969, resultante da sua tomada de consciência que tem
expressão noOfício do Cinema em Portugal, documento elaborado na sequência da
Semana do Novo Cinema Português, organizada pelo Cineclube do Porto, em Dezembro
de 1967, dirigido à Fundação Calouste Gulbenkian.
1971 – (Fevereiro) – Aprovação e assinatura do contrato com o empreiteiro para
construção dos arruamentos dos lotes de terrenos da Tobis a urbanizar.
(07/12) – A Lei n.º 7/71 promulga as bases relativas à protecção do cinema nacional,
criando o Instituto Português de Cinema ao qual cabia incentivar e disciplinar as
actividades cinematográficas, promover o cinema português internacionalmente,
estimular o desenvolvimento do cinema de amadores, atribuir prémios e conceder
assistência financeira. Dos meios financeiros que o constituem, destaca-se uma nova
fonte de receita, uma percentagem adicional de 15% sobre o preço dos bilhetes.
1972 – (Maio) – O Conselho de Administração da Tobis celebra acordo de colaboração
em quatro filmes do Centro Português de Cinema – A Promessa, Brandos Costumes, O Mal
Amado e Meus Amigos.
(01/08) – A Tobis concede autorização para que sejam exibidas sequências dos
filmes: As Pupilas do Sr. Reitor, Aldeia da Roupa Branca e Maria Papoila no
programa Cinemateca da RTP.
(20/12) – Aquisição de um terreno em Queluz, na área contigua à mata do Palácio de
Queluz, para construção do novo Estúdio da Tobis e instalações complementares numa
área de 40 000 m2 (a construção não se concretizou).
1973 – (Maio) – Apresentação do filme A Promessa, produzido pela Tobis, no Festival de
Cannes, escolhido para a Selecção Oficial do Festival.
(05/06) – O Decreto n.º 286/73 aprova o regulamento da Lei 7/71 e do Instituto
Português de Cinema.
1974 – (21/01) – Estreia de A Promessa, de António de Macedo, no Cinema Condes,
adaptação da obra original de Bernardo Santareno.
(11/03) – Estreia de Meus Amigos, de António da Cunha Telles, no Cinema Estúdio,
produção conjunta da Tobis e do Centro Português de Cinema.
(04/04) – O Conselho de Administração da Tobis aprova a produção do filme O Principio
da Sabedoria, de António de Macedo.
(29/04) – Um grupo de pessoas ligadas ao cinema, à música e ao teatro ocupam as
instalações da Direcção dos Serviços de Espectáculos e do IPC.
(Maio/Junho) – Os trabalhadores da Tobis Portuguesa entram em greve manifestando o
seu apoio aos trabalhadores do laboratório Ulyssea Filmes que iniciaram uma greve, dia
23 de Maio, após o proprietário do laboratório, Eng.º José Gil, ter recusado as
reivindicações apresentadas.
1975 – (06/01) – Estreia de Cartas na Mesa, de Rogério Ceitil, nos Cinemas Condes e
Satélite, produzido em colaboração com o Centro Português de Cinema.
(18/09) – Estreia de Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, no Cinema Londres,
produção Tobis Portuguesa e Centro Português de Cinema, que cruza imagens de
actualidades recolhidas em arquivo e ficção.
(21/11) – Estreia de Benilde ou A Virgem Mãe, de Manoel de Oliveira, no Cinema Apolo
70, adaptação da obra original de José Régio, co-produzido com o Centro Português de
Cinema, com Maria Amélia Aranda-Matta, Jorge Rolla, Varela Silva, Glória de Matos,
Maria Barroso, nos principais papéis.
1976 – (Maio) – Apresentação Internacional de Os Demónios de Alcácer-Kibir, de José
Fonseca e Costa, no Festival de Cannes – Quinzena dos Realizadores.
477
(11/06) – Estreia de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, no
Cinema Satélite, produção conjunta da Tobis, Centro Português de Cinema e RTP. Prémio
Especial do Júri, Prémio da Crítica em Toulon 1976.
(Novembro) – O IPC garante à Tobis a concessão de um empréstimo de 7.000 contos para
a construção do novo laboratório.
1977 – (09/04) – Estreia de Os Demónios de Alcácer-Kibir, de José Fonseca e Costa, no
Cinema Quarteto, com António Beringela, Ana Zanatti, Sérgio Godinho, Luís Barradas,
João Guedes, Zita Duarte, Artur Semedo.
(13/07) – De acordo com o art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 285/77, o Instituto das
Participações do Estado adquire a titularidade das acções que o Instituto Português de
Cinema detinha no capital da Tobis.
(21/10) – Estreia de As Ruínas no Interior, de José de Sá Caetano, no Cinema Satélite.
Prémio à Primeira Obra em Hyères 1977.
(09/12) – Estreia de O Princípio da Sabedoria – Ou O Rico, O Camelo e o Reino, de António
de Macedo, nos Cinemas Avenida (Castelo Branco) e Acil (Braga).
1978 – O técnico inglês, Paul Reed, efectua uma peritagem aos laboratórios da Tobis
concluindo-se o elevado grau de caducidade da quase totalidade do seu equipamento e
a necessidade de dotá-lo de meios técnicos, devidamente adequados tecnologicamente.
(04/05) – Decorre no Centro Nacional de Cultura um debate sobre o cinema português
com a presença do Secretário de Estado da Cultura, António Reis, e de representantes do
IPC, do Sindicato, da RTP, do Grupo de Cineastas Associados, da Associação dos
Distribuidores e Exibidores, da Cooperativa Cinequanon e da Tobis Portuguesa,
destacando-se as afirmações de António Reis sobre o apoio privilegiado que até aí foi
concedido à produção em detrimento da criação de infra-estruturas técnicas.
1979 – (06/04) – Um Despacho do Secretário de Estado da Cultura define uma
programação financeira que, a médio prazo, permita fortalecer a substância patrimonial
da Tobis e assegure a existência de uma indústria, capaz de responder, em termos de
ordem técnica, não só às exigências no mercado interno, como sobretudo, concorrer em
condições de preço e de qualidade no mercado internacional.
(25/11) – Estreia de Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira, no Cinema Quarteto.
Adaptação da obra original de Camilo Castelo Branco numa produção conjunta de
Instituto Português de Cinema, Centro Português de Cinema, RTP, Cinequipa e Tobis
Portuguesa.
1980 – (Setembro) – Atribuição do Prémio Tobis, pela primeira vez, no Festival
Internacional de Cinema da Figueira da Foz, ao Director de Fotografia do filme português
com melhor imagem (tendo o respectivo prémio como suporte a prestação de serviços).
1981 – (12 Junho) – Alteração dos Estatutos da Tobis; aumento do capital social para
30.000.000$00; alteração dos órgãos sociais e introdução de novo artigo dando
prioridade ao tratamento de filmes de produção apoiada pelo IPC.
(12 Junho) – Constituição da Tobis – Produção de Filmes, Lda e da Tobis – Exibição e
Distribuição de Filmes, Lda.
1982 – (Junho) – Comemoração dos 50 anos da Tobis com um jantar de homenagem aos
3 trabalhadores mais antigos (Fernanda Santos, Mário Santos e Francisco Tomaz),
convites a funcionários reformados e a entidades externas e emissão de uma medalha de
prata comemorativa.
(17/09) – O Decreto-Lei n.º 391/82 aprova a orgânica do Instituto Português de Cinema.
1983 – (11/02) – Estreia de Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa, nos
Cinemas Cinebloco e Éden, com as interpretações de Victoria Abril, Mário Viegas, Lia
Gama, Armando Cortez, Henrique Viana, José Gomes, Isabel de Castro, João Perry,
Rogério Paulo, Inês de Almeida-de Medeiros. Grande Prémio do IPC em 1983. Prémios
478
Nova Gente: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actriz (Lia Gama), Melhor Actor
(Mário Viegas), em 1983. Gran Giallo Cattolica ao Argumento – Mystfest Cattolica em
1983. Prémios Especial do Júri e à Interpretação Feminina (Victoria Abril) em La Coruña,
1983.
(Julho) – Tobis e RTP assinam contrato para distribuição de 23 filmes da Tobis pela RTP
para circuitos de televisão e de vídeo nos mercados nacional e internacional.
(23/10) – Estreia de Fim de Estação, de Jaime Silva, no Cinema Quarteto, co-produção
de V. O. Filmes, Tobis Portuguesa e António Vaz da Silva.
1984 – (14/01) – O Decreto-Lei n.º 22/84 altera algumas disposições da Lei n.º 7/71, de
7 de Dezembro, em matéria de assistência financeira do Instituto Português de Cinema à
produção cinematográfica.
(14/04) – A Portaria n.º 241/84 cria vários prémios a atribuir anualmente pelo Instituto
Português de Cinema.
(19/10) – Estreia de Crónica dos Bons Malandros, de Fernando Lopes, em co-produção
com a Tobis, nos Cinemas Condes, Las Vegas, Quarteto, Quinteto, com Duarte Nuno,
João Perry, Lia Gama, Maria do Céu Guerra, Nicolau Breyner, Paulo de Carvalho, Pedro
Bandeira Freire, Zita Duarte, António Assunção, Virgílio Castelo, Mário Zambujal nos
principais papéis.
1985 – (19/07) – Publicação do Decreto-Lei n.º 489/85 que altera a redacção das bases
XXIX e XXXI da Lei n.º 7/71, de 7 de Dezembro relativamente ao auxílio a prestar à
instalação de recintos de cinema ou a adaptação a esse fim de outros edifícios.
1986 – (10/10) – A Tobis cede à LEGALVIDEO – Produção e Comercialização de
Videogramas, Ld.ª (incorporada na Lusomundo, em Julho de 1989), os direitos de
transcrição para videocassetes e exploração comercial dos seus filmes.
(27/05) – No âmbito da publicação do Decreto-Lei n.º 118 – B/86, é efectuada uma
reavaliação do activo imobilizado da Tobis, optando-se pela recuperação e remodelação
das instalações existentes.
1987 – (15/01) – O Despacho Normativo n.º 14/87 aprova o Regulamento da Assistência
Financeira à Produção Cinematográfica.
(Julho) – Início da actividade da associação realizada entre a Tobis e a Cinemate para
exploração dos serviços de estúdio e material de iluminação.
(11/09) – Alteração dos Estatutos da Tobis; aumento do capital social para
170.000.000$00 (90.000 contos incorporação de reservas; 50.000 contos integração no
capital de créditos detido pelo IPC); alteração da designação para Tobis Portuguesa, S A;
e do valor nominal das acções, acabam as classes A e B; reformulação do Pacto Social:
objecto «prestação de serviços no âmbito da actividade audiovisual, particularmente no
da cinematografia, e a exploração comercial dos direitos relativos a filmes produzidos
pela sociedade».
1988 – (06/02) – Publicação do Decreto-Lei n.º 39/88 que estabelece normas relativas à
classificação de videogramas e revoga o Decreto-Lei n.º 306/85, de 29 de Julho.
(18/07) – Constituição da Lisboa Filmes ACE, entre a Tobis e a Cinemate, para prestação
de serviços, nomeadamente aluguer de estúdios e material de iluminação, a produções
de cinema e de televisão nacionais e estrangeiras (dissolvida em 16 de Março de 1994).
1989 – (Outubro) – Participação do Presidente do Conselho de Administração da Tobis,
Manuel Pedroso Lima, nas Assisses Européennes de l’Audiovisuel.
1990 – (05/05) – O Decreto-Lei n.º 143/90 procede à abolição do adicional sobre o
preço dos bilhetes de espectáculos fixando em 4% o valor da taxa de exibição prevista no
n.º 1 do art. 59.º do Decreto-Lei n.º 184/73, de 25 de Abril.
(10707) – A Portaria n.º 531/90 fixa o valor – 7.500$00 – da taxa devida pela
classificação de cada videograma.
479
1991 – (25/10) – Criação da Tobis SGPS, designada posteriormente Tobis Som, – cujo
objectivo passava pela construção de um estúdio de som para cinema – para onde foram
transferidas 27.608 acções da Tobis (16,3% do capital social da Tobis).
(20/12) – Criação de uma sociedade por quotas, Tobis II, Filmes de Animação, Ld.ª,
projecto Tobistoon para o cinema de animação (capital social de 3.000 contos – 51% da
Tobis SGPS).
1993 – (10/05) – Tobis celebra um contrato com a Lusomundo para edição e exploração
de filmes do seu arquivo em videocassetes.
(Junho) – Atribuição do Prémio Cottinelli Telmo, patrocinado pela Tobis, na 1.ª edição
doFestival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde para a Melhor CurtaMetragem de Ficção de imagem real (tendo o respectivo prémio como suporte a
prestação de serviços).
(07/10) – O Decreto-Lei n.º 350/93 estabelece normas relativas à actividade
cinematográfica e à produção audiovisual.
1994 – (01/02) – O Decreto-Lei n.º 25/94 cria o Instituto Português da Arte
Cinematográfica e Audiovisual – IPACA – terminando a coexistência do IPC e do SNA
(Secretariado Nacional para o Audiovisual).
(Julho) – Tobis retoma posse das instalações da Lisboa Filmes ACE que cessou a sua
actividade em 30 Junho.
1995 – (Julho) – Tobis celebra com a RTP um contrato de exclusividade de exibição
televisiva, para 23 filmes, por um período de dois anos para a RTP1 e TV2, e de 3 anos
para a RTP Internacional.
1996 – (Março) – O relatório de um técnico da Kodak Pathé elogia a qualidade dos
processos do laboratório da Tobis.
(29/07) – A Portaria n.º 314/96 aprova o Regulamento de Apoio Financeiro Directo à
Produção Cinematográfica, determinando que a intervenção do Estado na produção
consiste na «unificação dos apoios numa única modalidade de subsídio a fundo perdido,
com a consequente eliminação do subsídio reembolsável».
1997 – (Julho) – Publicação do Relatório da Comissão Inter-Ministerial para o
Audiovisual que avalia a convergência tecnológica crescente e sugere o alargamento do
IPACA aos sectores da televisão e do multimédia favorecendo o desenvolvimento da
indústria de conteúdos.
(10/11) – É aprovada em Assembleia Geral Extraordinária a alteração do objecto social
da Tobis alargando-o à “reprodução de suportes gravados”, passando a ter uma
classificação de actividade económica industrial.
1998 – (22 Maio) – Nova alteração dos Estatutos da Tobis modifica o objecto: «a
indústria de reprodução de suportes gravados, bem como a prestação de serviços no
âmbito da actividade audiovisual, particularmente da cinematografia, e a exploração
comercial dos direitos relativos a filmes e audiovisuais produzidos pela sociedade ou por
ela detidos».
(21/12) – O Decreto-Lei n.º 408/98 aprova a orgânica do ICAM – Instituto do Cinema,
Audiovisual e Multimédia – que substitui o IPACA na sequência de um conjunto de
medidas tomadas pelo Governo para integrar na mesma política o cinema, o audiovisual
e multimédia.
1999 – (15/01) – Publicação do Decreto-Lei n.º15/99 que aprova a intervenção do
Estado nas actividades cinematográfica, audiovisual e multimédia, nos aspectos
relacionados com as atribuições do Ministério da Cultura.
(Outubro) – É concedida à Tobis a Certificação de Qualidade, através do Certificado
99/CEP.1014, do Sistema Português de Qualidade.
480
(Novembro) – Atribuição, pela primeira vez, do Prémio Tobis para o vencedor da
categoriaJovem Cineasta Português na 23.ª edição do Festival Internacional de Cinema
de Animação de Espinho – CINANIMA (tendo o respectivo prémio como suporte a
prestação de serviços).
2000 – (15/05) – Contrato entre a Tobis e a Madragoa Filmes (Grupo Paulo Branco), por
um período de 12 anos, para recuperação e exploração do acervo fílmico da Empresa.
(22/05) – Publicação da Portaria n.º 281/2000 que cria na dependência do Instituto do
Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) uma Comissão Técnica para avaliação de
projectos de apoio financeiro à produção cinematográfica.
2001 – (Julho) – Realiza-se durante o Festival de Cinema de Galway, na Irlanda, uma
sessão de apresentação da Tobis ao mercado irlandês.
(20/09) – O Conselho de Administração da Tobis aprova a aquisição e instalação do
equipamento de telerecording, tecnologia laser Arrilaser, que permite a transcrição de
vídeo para película.
(07/11) – Constituição da Concept Films, Centro de Pós-Produção, Lda (integrada na
Tobis em 2004), resultante da parceria iniciada entre a Tobis e a P&B Ldª, em 1 de Abril
de 2000, tendo como «objectivo a actividade de edição de imagem não linear, gravação
e tratamento de áudio, nos domínios da formação, aluguer de equipamentos e prestação
de serviços conexos».
(Novembro) – Na sequência do acordo comercial estabelecido com António da Cunha
Telles, o Animatógrafo II, enquanto produtor executivo do filme francês Scénes
Intimesalugou o estúdio da Tobis para a sua rodagem, bem como contratou os serviços
de laboratório para todos os trabalhos até à pós-produção.
2002 – (Junho) – Atribuição do Prémio Tobis, na 1.ª edição do Festival Internacional de
Cinema Documental de Lisboa – DocLisboa – ao Melhor Documentário Nacional (tendo o
respectivo prémio como suporte a prestação de serviços).
(10/09) – Contrato de concessão de incentivos no âmbito da candidatura da Tobis, em
31 Janeiro 2001, ao Programa Operacional de Economia Sistema de Incentivos à
Modernização Empresarial (SIME).
2003 – (17/07) – Aprovada nova imagem da Tobis com actualização do logótipo.
(Outubro) – Aprovação pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Cultura e pelo
Presidente do ICAM do documento que define a estratégia da Tobis para os próximos
anos.
2004 – (23/01) – Tobis vence o concurso lançado pela RTP para recuperação do seu
Arquivo, celebrando um contrato de 3 anos de transferência de conteúdos de suporte
filme para suporte vídeo-digital – Telecinema DSX, único em Portugal, com o
complemento do corrector de cor Da Vinci 2 K.
(Abril) – Aprovada proposta do novo Conselho de Administração da Tobis, de aposta
numa recentragem estratégica investindo em novos equipamentos, adoptando novos
métodos de trabalho para melhorar e diversificar os serviços prestados e alargar os
segmentos de mercado – criação de 3 áreas operacionais internas: a TOBIS FILMLAB; a
TOBIS DIGITAL; e a TOBIS ARQUIVOS.
(18/08) – Publicação da Lei 42/2004, Lei de Arte Cinematográfica e do Audiovisual, que
regula a intervenção e protecção do Estado no cinema e no audiovisual.
(24/09 – 02/10) – Atribuição do Prémio Tobis, na 1.ª edição do Festival Internacional de
Cinema Independente – IndieLisboa – para o Melhor Filme Português.
A Tobis assegura os trabalhos de pós-produção do primeiro filme de longa-metragem
rodado, integralmente, em alta definição (HD) – A Costa dos Murmúrios, de Margarida
Cardoso.
481
2005 – (02/12) – A Tobis celebra com o Instituto de História Contemporânea da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, um
protocolo para estruturação de um projecto de investigação coordenado pelos
Professores Doutores António Reis e Maria Fernanda Rollo. O projecto desenvolvido por
uma equipa de investigadores do Instituto tem como objectivo a elaboração de uma
história geral da Tobis inserida no contexto político, social e económico em que foi
criada e se desenvolveu, a partir da recolha documental em arquivos e bibliotecas, da
compilação, catalogação e análise da informação recolhida, e da classificação e
incorporação dos resultados da investigação em bases de dados.
2006 – (01/04) – Início do mandato do novo Conselho de Administração da Tobis
composto por Luís Chaby Vaz, Presidente, e pelos vogais Fátima Vinagre e Afonso Rato.
(Abril) – Criação de um gabinete de apoio ao projecto do Centro de Indústrias Criativas
de Lisboa – reinstalação da Tobis em edifícios construídos de raiz capazes de responder
às necessidades das suas actividades – liderado pela Dr.ª Lucília Preto.
(Setembro) – Acordo com Angola marca a internacionalização das actividades da Tobis
no âmbito da transcrição e restauro de arquivos.
(15/11) – Publicação do Decreto-Lei n.º 227/2006 que regulamenta as medidas relativas
ao fomento, ao desenvolvimento e à protecção das artes e actividades cinematográficas
e audiovisuais, previstas na Lei n.º 42/2004, de 18 de Agosto, e cria o fundo destinado
ao fomento e desenvolvimento do cinema e do audiovisual.
2007 – (03/06) – A Tobis completará 75 anos de actividade …
482
Fontes e Bibliografia
Fontes
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Arquivo Oliveira Salazar
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo PIDE/DGS
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo PIDE/DGS - Registo Geral de Presos
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo Direcção dos Serviços de
Censura (DSC)
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo Direcção Geral dos Serviços
de Espectáculos (DGE)
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo IGAC
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Fundo SNI, subfundo IGAC, 2.º incorporação
Arquivo Nacional das Imagens em Movimento
Centro de Documentação da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
Cineclube de Guimarães
Cineclube do Porto
Instituto de Cinema e Audiovisual
Sociedade Martins Sarmento - Fundo Teatro Jordão
Publicações em série
Boletim Cooperativista, Lisboa.
Boletim da União de Grémios dos Espectáculos, Lisboa.
Boletim Interno Circular do Cineclube do Porto, Porto.
Cahiers du Cinéma, Paris.
Celulóide, Rio Maior.
Cineclube, Porto.
Cinéfilo, Lisboa.
Cinema de Amadores, Lisboa.
Cinema Novo, Porto.
Comércio do Funchal, Funchal.
O Diabo, Lisboa.
Diário Carioca, Rio de Janeiro.
Diário da Manhã, Lisboa.
Diário da República, Lisboa.
Diário das Sessões, Lisboa.
Diário de Lisboa, Lisboa.
Diário de Notícias, Lisboa.
Diário Popular, Lisboa.
Doc-Online, Covilhã.
Enquadramento, Lisboa.
Expresso, Lisboa.
Filme, Lisboa.
Gazeta Musical, Lisboa.
483
Imagem, Lisboa.
Isto é cinema, Lisboa.
Isto é espectáculo, Lisboa.
JL, Lisboa.
Jornal de Letras e Artes, Lisboa.
Jornal de Notícias, Porto.
M Revista de Cinema, Porto.
Norte Desportivo, Porto.
Plateia, Plateia.
Público, Lisboa.
Rádio e Televisão, Lisboa.
República, Lisboa.
Seara Nova, Lisboa.
O Tempo e o Modo, Lisboa.
TV Magazine, Lisboa.
Vida Mundial, Lisboa.
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Romão, Álvaro (2011). Chamo-me António da Cunha Telles. Produção da Hora Mágica.
Sales, Michelle (2009). Velhos Amigos. Produção do LCV - Laboratório de Cinema e Vídeo
e Amora.
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