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O mundo depois - Fim dos dias - Livro 2
O mundo depois - Fim dos dias - Livro 2
O mundo depois - Fim dos dias - Livro 2
E-book380 páginas6 horas

O mundo depois - Fim dos dias - Livro 2

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Sobre este e-book

Nesta sequência de A queda dos anjos, os sobreviventes do apocalipse começam a juntar o que restou do mundo moderno. Quando um grupo captura Paige, a irmã de Penryn, achando que ela é um monstro, a situação termina em massacre e Paige desaparece. Penryn procura pela irmã, e sua busca a leva ao coração do plano secreto dos anjos. Enquanto isso, Raffe está em busca de suas asas, porém se depara com um dilema: recuperar suas asas ou ajudar Penryn a sobreviver? Este livro ágil e emocionante vai fazer os leitores se envolverem cada vez mais com a história de Penryn e Raffe — e vai deixá-los implorando pelo volume final da série.
IdiomaPortuguês
EditoraVerus
Data de lançamento31 de mar. de 2017
ISBN9788576865902
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    Sem palavras para descrever as emoções depois desse livro. Maravilhoso, ansiosa para finalizar essa saga magnífica.
  • Nota: 5 de 5 estrelas
    5/5
    Que perfeição. A autora está de parabéns, sério, ela merece palmas. Não esperava esse final, a emoção que o livro transmite ao leitor é impecável. Penryn é uma protagonista maravilhosa, amo a relação que ela tem com o Raffe ♥️?

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O mundo depois - Fim dos dias - Livro 2 - Susan Ee

Agradecimentos

1

TODOS PENSAM QUE MORRI.

Estou deitada com a cabeça no colo da minha mãe, na carroceria descoberta de um grande caminhão. A luz da aurora esculpe linhas de sofrimento no rosto dela, e o rugido dos motores faz meu corpo inerte vibrar. Somos parte da caravana da resistência. Meia dúzia de veículos militares, vans e SUVs serpenteiam entre carros mortos, saindo de San Francisco. No horizonte atrás de nós, o ninho da águia, o lar dos anjos, ainda é todo brasas e chamas após ter sido atacado pela resistência.

Jornais cobrem as vitrines das lojas que ladeiam a rua: um corredor de lembranças do Grande Ataque. Não preciso ler os jornais para saber do que falam. Nos primeiros dias, quando a imprensa ainda fazia reportagens, todo mundo ficou vidrado nos noticiários.

PARIS EM CHAMAS, NOVA YORK INUNDADA, MOSCOU DESTRUÍDA

QUEM ATIROU EM GABRIEL, O MENSAGEIRO DE DEUS?

ANJOS ÁGEIS DEMAIS PARA OS MÍSSEIS

LÍDERES NACIONAIS DISPERSOS E PERDIDOS

O FIM DOS DIAS

Passamos por três pessoas carecas enroladas em lençóis cinzentos. Estão colando, com fita adesiva, os folhetos manchados e amassados de um dos cultos do apocalipse. Entre as gangues de rua, os cultos e a resistência, eu me pergunto quanto tempo vai demorar até que todo mundo faça parte de um grupo ou de outro. Acho que nem mesmo o fim do mundo consegue nos impedir de tentar pertencer a alguma coisa.

Os membros do culto param na calçada para nos ver passar no caminhão muito cheio.

Devemos parecer uma família minúscula: apenas uma mãe assustada, uma adolescente de cabelos escuros e uma menina de sete anos sentada na carroceria de um caminhão cheio de homens armados. Em qualquer outro momento, seríamos cordeiros na companhia de lobos. Agora, porém, temos o que as pessoas poderiam chamar de uma certa presença.

Alguns dos homens em nossa caravana vestem roupas camufladas e empunham rifles. Alguns manejam metralhadoras ainda apontadas para o céu. Outros acabaram de sair das ruas, com suas tatuagens de gangue caseiras feitas de queimaduras autoinfligidas que marcam o número de assassinatos.

Apesar disso, esses homens se afastam de nós para manter uma distância segura.

Minha mãe continua a mover o corpo para frente e para trás num movimento repetitivo, como tem feito pela última hora desde que deixamos o ninho da águia em meio à explosão, entoando sua própria versão de oração em línguas. Sua voz sobe e desce, como se travasse uma discussão feroz com Deus. Ou talvez com o diabo.

Uma lágrima pinga de seu queixo e pousa em minha testa, e eu sei que ela está de coração partido. Partido por mim, sua filha de dezessete anos, cuja função era cuidar da família.

Até onde ela sabe, sou apenas um corpo sem vida trazido pelo diabo. Provavelmente ela nunca vai conseguir se livrar da minha imagem inerte nos braços de Raffe, com suas asas de demônio iluminadas ao fundo pelas chamas.

Queria saber o que ela pensaria se alguém lhe contasse que Raffe era, na verdade, um anjo que foi enganado e ganhou asas de demônio. Será que seria mais estranho ficar sabendo que na realidade não estou morta, mas fui apenas paralisada em consequência da ferroada de um monstro meio anjo, meio escorpião? Ela provavelmente pensaria que essa pessoa é tão louca quanto ela.

Minha irmã mais nova está sentada aos meus pés e parece congelada. Seus olhos encaram sem ver e suas costas estão perfeitamente eretas, apesar do sacolejar do caminhão. É como se Paige tivesse se desligado do mundo.

Os homens durões no caminhão lançam olhares para ela como garotinhos espiando por cima dos cobertores. Paige parece uma boneca costurada e cheia de hematomas que saiu de um pesadelo. Odeio pensar sobre o que pode ter acontecido com ela para que ficasse assim. Uma parte de mim queria saber mais, porém outra está contente por não saber.

Respiro fundo. Cedo ou tarde, vou ter que me levantar. Não tenho escolha a não ser enfrentar o mundo. Meu degelo agora é completo. Duvido que poderia lutar ou algo assim, mas, até onde posso afirmar, acho que consigo me mexer.

Eu me sento.

Acho que, se eu realmente tivesse refletido sobre as coisas, estaria preparada para os gritos.

A líder nos berros é minha mãe. Seus músculos enrijecem em puro terror, e seus olhos se arregalam de forma impossível.

— Está tudo bem — digo. — Está tudo certo. — Minhas palavras saem arrastadas, mas sou grata por não parecer um zumbi falando.

Seria engraçado, não fosse por um pensamento sensato que surge em minha mente: agora vivemos em um mundo onde alguém como eu corre o risco de morrer por ser uma aberração.

Estendo as mãos na frente do corpo num gesto que pede calma. Digo algo para tentar acalmá-los, mas as palavras se perdem em meio aos gritos. Pelo jeito, o pânico em uma pequena área como a caçamba de um caminhão é contagioso.

Os outros refugiados se amontoam, pressionando-se contra a traseira do caminhão. Alguns parecem preparados para saltar do veículo em movimento.

Um soldado com espinhas sebosas mira o rifle para mim, agarrado a ele como se estivesse prestes a provocar sua primeira morte horripilante.

Subestimei totalmente o nível de medo primitivo que nos permeia. Eles perderam tudo: sua família, sua segurança, seu Deus.

E agora, um cadáver reanimado está se aproximando.

— Estou bem — repito devagar, com o máximo de clareza que consigo. Sustento o olhar do soldado, determinada a convencê-lo de que não tem nada sobrenatural acontecendo. — Estou viva.

Há um momento em que não tenho certeza se eles vão relaxar ou me jogar para fora do caminhão com a explosão de um disparo de arma de fogo. Ainda tenho a espada de Raffe amarrada às minhas costas, quase toda escondida debaixo da jaqueta. Isso me dá algum conforto, mesmo que obviamente não seja suficiente para conter os disparos.

— Fala sério. — Mantenho a voz o mais amigável possível, e meus movimentos bem lentos. — Eu só estava apagada. Só isso.

— Você estava morta — diz o soldado pálido, que não parece nem um dia mais velho que eu.

Alguém bate no teto do caminhão.

Todos nós pulamos, e eu tenho sorte pelo fato de o soldado não ter puxado o gatilho acidentalmente.

As janelas traseiras se abrem deslizando, e a cabeça de Dee desponta. Ele está carrancudo, embora seja difícil levá-lo a sério demais com o cabelo ruivo e as sardas de garotinho.

— Ei, afastem-se da garota morta. Ela é propriedade da resistência.

— Isso mesmo — diz Dum, seu irmão gêmeo, de dentro da cabine. — Precisamos dela para a autópsia e tudo mais. Vocês acham que garotas mortas por príncipes-demônios são coisa fácil de achar? — Para variar, não sei diferenciar os gêmeos, então escolho aleatoriamente Dee para um e Dum para o outro.

— Nada de matarem a garota morta — insiste Dee. — Estou falando com você, soldado. — Aponta para o sujeito com o rifle e olha feio para ele. Seria de pensar que ter a aparência semelhante a um par de Ronald McDonalds chapados e com apelidos como Tweedledee e Tweedledum fosse deixá-los sem autoridade. No entanto, de alguma forma, esses dois parecem ter um talento especial que os faz passar de brincalhões a mortíferos num piscar de olhos.

Pelo menos, espero que eles estejam brincando sobre a autópsia.

O caminhão para em um estacionamento. Isso tira a atenção de mim, e todos olhamos ao nosso redor.

O edifício em estilo de adobe à nossa frente é familiar. Não é a minha escola, mas uma instituição que já vi muitas vezes. É a escola de ensino médio de Palo Alto, carinhosamente conhecida como Colégio Paly.

Meia dúzia de caminhões e SUVs param no estacionamento. O soldado ainda fica de olho em mim, mas abaixa o rifle a um ângulo de quarenta e cinco graus.

Muita gente nos encara quando o restante da pequena caravana para no estacionamento. Todos eles me viram nos braços da criatura com asas de demônio, que na verdade era Raffe, e todos pensaram que eu estava morta. Eu me sinto constrangida, por isso me sento no banco, ao lado da minha irmã.

Um dos homens faz menção de tocar meu braço. Talvez queira ver se sou quente como os vivos ou fria como os mortos.

O rosto da minha irmã muda instantaneamente do olhar vazio para o de um animal rosnando ao avançar para cima do homem. Seus dentes de navalhas implantadas reluzem quando ela se mexe, o que enfatiza a ameaça.

Assim que o homem recua, ela volta à expressão vazia e à postura de boneca.

O homem nos fita: olha de uma para a outra em busca de pistas para perguntas que não posso responder. Todos no estacionamento viram o que acabou de acontecer e todos também nos encaram.

Bem-vindos ao show de horrores.

2

PAIGE E EU ESTAMOS ACOSTUMADAS a ter gente nos encarando. Eu sempre ignorava; já Paige, em sua cadeira de rodas, sempre sorria para o pessoal dos olhares indiscretos. Quase sempre sorriam de volta. É difícil resistir ao charme dela.

Era uma vez.

Nossa mãe começa a falar em línguas novamente. Agora entoa os sons e me olha como se estivesse rezando por mim. As guturais quase palavras que saem de sua garganta dominam os ruídos abafados da multidão. Sempre podemos contar com a minha mãe para acrescentar uma bela dose de bizarrice às coisas, até mesmo na luz enfumaçada do dia.

— Tudo bem, vamos sair — diz Obi, em uma voz forte. Ele passa tranquilamente de um metro e oitenta de altura, tem ombros largos e corpo musculoso, mas é sua presença de comando e sua confiança que o destacam como o líder da resistência. Todos o observam e o ouvem quando ele passa ao longo de vários caminhões e SUVs, parecendo um verdadeiro comandante militar em zona de guerra. — Esvaziem os caminhões e entrem no prédio. Fiquem longe do céu aberto o máximo possível.

Isso quebra o clima, e as pessoas começam a saltar dos veículos. As pessoas em nosso caminhão esbarram umas nas outras e se empurram, na correria de se afastar de nós.

— Motoristas — chama Obi. — Quando os caminhões estiverem vazios, espalhem nossos veículos e os estacionem a uma distância que permita fácil acesso. Escondam-nos entre o tráfego morto ou em algum lugar que não seja fácil avistar de cima. — Ele caminha pelo mar de refugiados e soldados, dando propósito e direção a pessoas que, não fosse assim, estariam perdidas. — Não quero nenhum sinal de que esta área esteja ocupada. Nada pode ser removido ou descartado num raio de um quilômetro e meio. — Obi faz uma pausa quando vê Dee e Dum lado a lado, olhando para nós.

— Cavalheiros — diz Obi. Dee e Dum saem do transe e olham para ele. — Por favor, mostrem aos novos recrutas aonde ir e o que fazer.

— Certo — diz Dee, com uma saudação de garotinho e um sorriso de garotinho.

— Novatos! — convoca Dum. — Quem aí não souber o que deve fazer, venha com a gente.

— Pode vir, pessoal — diz Dee.

Acho que somos nós. Eu me levanto meio rígida e automaticamente faço menção de pegar minha irmã, mas paro antes de tocá-la, como se uma parte minha acreditasse que ela é um animal perigoso.

— Vamos, Paige.

Não sei o que vou fazer se ela não se mexer. No entanto, ela se levanta e me segue. Não sei se algum dia vou me acostumar a vê-la andando com as próprias pernas.

Minha mãe nos segue também. Só que não para de cantar. Se posso dizer alguma coisa, é mais alto e mais fervoroso que antes.

Entramos todas no fluxo de recém-chegados que seguem os gêmeos.

Dum caminha de costas, falando conosco:

— Vamos voltar para o ensino médio, época em que nossos instintos de sobrevivência estão na melhor forma.

— Se você tiver vontade de pichar as paredes ou bater no seu velho professor de matemática — diz Dee —, faça onde os pássaros não podem ver.

Caminhamos ao largo do edifício principal de adobe. Da rua, a escola parece enganosamente pequena. Atrás do prédio principal, no entanto, há um campus inteiro de edifícios modernos, conectados por passagens cobertas.

— Se algum de vocês estiver ferido, sente-se nesta bela sala de aula. — Dee abre a porta mais próxima e espia lá dentro. É uma classe com um esqueleto em tamanho real pendurado em um suporte. — Os ossos vão fazer companhia enquanto vocês esperam pelo médico.

— E se algum de vocês for médico — diz Dum —, seus pacientes estão esperando.

— É só a gente? — pergunto. — Somos os únicos sobreviventes?

Dee olha para Dum.

— Garotas-zumbis têm permissão para falar?

— Se forem bonitinhas e estiverem dispostas a lutar na lama com outras garotas-zumbis.

— Caaara. Pode crer.

— Que imagem nojenta. — Lanço um olhar de soslaio para eles, mas no íntimo me sinto contente por não terem surtado com o fato de eu ter despertado dos mortos.

— Também não significa que a gente vá escolher as que estiverem apodrecendo, Penryn. Só as que forem como você: ainda frescas da morte.

— Mas só as que tiverem roupa rasgada e tal.

— E com fome de seeeeeios.

— Ele quer dizer de cérebros.

— É exatamente o que eu quero dizer.

— Você pode, por favor, responder à pergunta? — questiona um cara de óculos totalmente livres de rachaduras. Ele não parece estar com humor para brincadeiras.

— Certo — diz Dee, ficando todo sério. — Este é nosso ponto de encontro. Os outros virão nos encontrar aqui.

Continuamos caminhando sob o sol fraco, e o cara dos óculos acaba ficando no fim do grupo.

Dum se inclina para perto de Dee e sussurra alto o bastante para eu ouvir:

— Quanto você quer apostar que aquele cara vai ser o primeiro na fila a apostar na luta de garotas-zumbis?

Eles trocam risadinhas e balançam as sobrancelhas, olhando um para o outro.

Os ventos de outubro sopram através da minha blusa e não posso evitar olhar para o céu encoberto à procura de um anjo em particular com asas de morcego e um senso de humor antiquado. Limpo os pés na grama alta e me forço a desviar o olhar.

As janelas das classes são cheias de cartazes e anúncios sobre requerimentos para admissão na faculdade. Outra janela exibe prateleiras com arte dos alunos. Estatuetas de argila, madeira e papel machê de todas as cores e estilos cobrem cada centímetro do espaço nas prateleiras. Algumas são tão boas que me deixam triste por essas crianças não poderem mais fazer arte por um longo, longo tempo.

À medida que avançamos pela escola, os gêmeos têm o cuidado de ficar atrás da minha família. Vou deixando que avancem na minha frente, pensando que não seria uma má ideia ter Paige na frente, onde posso ficar de olho nela. Minha irmã caminha com passos rígidos, como se ainda não estivesse acostumada às pernas. Eu também não estou acostumada a vê-la desse jeito, e não posso deixar de ficar olhando para a sutura grosseira por todo o seu corpo, que a faz parecer uma boneca de vodu.

— Então aquela é a sua irmã? — pergunta Dee, baixinho.

— É.

— Por quem você arriscou sua vida?

— É.

Os gêmeos balançam a cabeça de forma automática e educada, do jeito que as pessoas fazem quando não querem dizer nada que ofenda.

— Por acaso sua família é melhor? — pergunto.

Dee e Dum se entreolham, ponderando.

— Não… — diz Dee.

— Não muito — responde Dum, ao mesmo tempo.

NOSSO NOVO LAR É A sala de história. As paredes são repletas de linhas do tempo e pôsteres da história da humanidade. Mesopotâmia, a Grande Pirâmide de Gizé, o Império Otomano, a dinastia Ming. E a peste negra.

Meu professor de história disse que a peste negra varreu de trinta a sessenta por cento da população da Europa. Ele nos pediu para imaginar como seria ter sessenta por cento do nosso mundo devastado. Eu não conseguia imaginar na época. Parecia muito surreal.

Num estranho contraste, dominando todos esses pôsteres de história antiga, está a imagem de um astronauta na Lua, com a Terra azul aparecendo atrás dele. Toda vez que vejo nossa bola azul e branca no espaço, acho que é o planeta mais lindo do universo.

Mas agora isso também parece surreal.

Lá fora, mais caminhões rugem no estacionamento. Ando até a janela, enquanto minha mãe começa a afastar as carteiras e cadeiras todas para um lado. Espio lá fora e encontro um dos gêmeos conduzindo os recém-chegados perdidos para dentro da escola, como o flautista mágico.

Atrás de mim, minha irmã diz:

— Fome.

Fico rígida e enfio todos os tipos de coisas feias no baú das minhas lembranças.

Vejo um reflexo de Paige na janela. Nessa imagem borrada do outro mundo, ela olha para minha mãe como qualquer outra criança que espera o jantar. Só que no vidro irregular, sua cabeça é distorcida, o que amplifica os pontos de sutura e aumenta os dentes de navalha.

Minha mãe se inclina, afaga os cabelos de seu bebê e começa a murmurar sua tenebrosa canção de desculpas.

3

EU ME ACOMODO EM UMA cama improvisada num canto. Com as costas apoiadas na parede, vejo toda a sala à luz do luar.

Minha irmã está deitada no catre encostado na parede oposta à minha. Paige parece minúscula em seu cobertor, abaixo de cartazes de figuras históricas grandiosas. Confúcio, Florence Nightingale, Gandhi, Helen Keller, o Dalai-Lama.

Será que ela se tornaria como um deles, se a gente não estivesse no Mundo Depois?

Minha mãe está sentada de pernas cruzadas ao lado da cama improvisada de Paige, murmurando sua melodia. Tentamos dar à minha irmã as duas coisas que eu consegui obter da bagunça desordenada da cantina, que, espera-se, terá se transformado em cozinha quando amanhecer. Mas ela não conseguiu segurar nem a sopa enlatada, nem a barrinha de proteína.

Mudo o apoio do corpo sobre o leito de lona, tentando encontrar uma posição onde o cabo da minha espada não me espete as costelas. Tê-la comigo é a melhor forma de impedir que alguém tente pegá-la e descubra que sou a única capaz de empunhá-la. A última coisa de que preciso é ter de explicar como acabei com uma espada angelical.

Dormir com uma arma não tem nada a ver com o fato de minha irmã estar no mesmo recinto. Nada mesmo.

E também não tem nada a ver com Raffe. Não significa que a espada é minha única recordação do tempo que passei com ele. Tenho uma porção de cortes e hematomas para me lembrar dos dias que passei com meu anjo inimigo.

O qual, provavelmente, nunca vou ver de novo.

Até agora, ninguém fez perguntas sobre ele. Acho que ultimamente isso é mais comum do que não ter nosso grupo dividido.

Afasto esse pensamento e fecho os olhos.

Minha irmã resmunga de novo, acima da cantoria da minha mãe.

— Durma, Paige — digo. Para minha surpresa, sua respiração relaxa, e ela se acomoda. Respiro fundo e fecho os olhos.

A melodia de minha mãe vai sumindo, até cair no esquecimento.

SONHO QUE ESTOU NA FLORESTA onde aconteceu o massacre. Estou nos arredores do antigo acampamento da resistência, onde os soldados morreram tentando se defender dos demônios inferiores.

Sangue pinga dos galhos e despencam sobre as folhas mortas como pingos de chuva. No meu sonho, nenhum dos corpos que deveriam estar aqui está de fato, tampouco os soldados aterrorizados reunidos, de costas uns para os outros, com os rifles apontando para cima.

É apenas uma clareira onde pinga sangue.

Paige está no centro.

Sua roupa é um vestido antiquado de estampa florida, como os que aquelas meninas penduradas na árvore vestiam. Seus cabelos estão empapados de sangue, assim como o vestido. Não sei dizer o que é pior de olhar: o sangue ou a sutura arroxeada que lhe cruza o rosto.

Paige ergue os braços para mim, esperando que eu a pegue no colo, mesmo que já tenha sete anos.

Tenho certeza de que minha irmã não foi parte do massacre; ainda assim, aqui está ela. Em algum lugar na floresta, minha mãe diz:

— Olhe nos olhos dela. São os mesmos de sempre.

Mas não consigo. Não consigo olhar para ela de jeito nenhum. Seus olhos não são os mesmos. Não podem ser.

Eu me viro e fujo dela.

Lágrimas escorrem pelo meu rosto, e eu grito floresta adentro, fugindo da garota atrás de mim.

— Paige! — Minha voz falha. — Estou indo. Aguenta firme. Vou estar aí logo, logo.

Mas o único sinal de minha irmã é o esmigalhar das folhas mortas, à medida que a nova Paige me persegue feito uma sombra pela floresta.

4

ACORDO COM MINHA MÃE RASPANDO alguma coisa no bolso do suéter. Ela o coloca no peitoril da janela, por onde entra a luz da manhã. É uma meleca marrom-amarelada com cascas de ovos esmigalhadas. Ela é muito cuidadosa, tentando passar cada gota nojenta no peitoril.

A respiração de Paige é uniforme; parece que ainda vai dormir pesado por algum tempo. Tento me livrar dos restos do sonho, mas alguns resquícios dele não me abandonam.

Alguém bate à porta.

Ela se abre, e o rosto sardento de um dos gêmeos espreita em nossa sala de aula. Não sei qual deles é, então penso nele como Dee-Dum. Seu nariz se enruga com desgosto quando sente o cheiro dos ovos podres.

— Obi quer ver você. Ele tem algumas perguntas.

— Maravilha — digo, sonolenta.

— Vamos. Vai ser divertido. — Ele me lança um sorriso alegre demais.

— E se eu não quiser ir?

— Eu gosto de você, menina — diz ele. — Você é rebelde. — Ele se inclina contra o batente da porta e balança a cabeça, em aprovação. — Mas, para ser sincero, ninguém tem obrigação de te dar comida, casa, proteção, de ser legal, de te tratar como ser humano…

— Tudo bem, eu entendo. — Eu me arrasto para fora da cama, feliz por ter dormido de short e camiseta. Minha espada cai no chão com uma pancada. Eu tinha esquecido que estava comigo debaixo do cobertor.

Shh! Você vai acordar a Paige — sussurra minha mãe.

Os olhos de Paige se abrem instantaneamente. Ela fica ali deitada como os mortos, fitando o teto.

— Legal sua espada — fala Dee-Dum, de modo casual demais.

Sinos de alarme disparam na minha cabeça.

— Quase tão legal quanto um bastão elétrico de gado. — Eu meio que espero minha mãe sacar o bastão para ele, mas o objeto continua pendurado inocentemente na estrutura da cama de lona.

Sou atingida por uma nova onda de culpa ao me dar conta do quanto estou contente por minha mãe ter o bastão, caso precise se defender… das pessoas.

Mais da metade do pessoal por aqui está carregando algum tipo de arma improvisada. A espada é uma das melhores, e fico feliz por não ter de explicar o motivo de estar carregando uma comigo. Só que algo nessa espada parece captar mais atenção do que eu gostaria. Eu a pego do chão e passo a correia ao redor do ombro, para desencorajar Dee-Dum de tentar brincar com ela.

— Ela tem nome? — pergunta ele.

— Quem?

— A espada — ele diz no mesmo tom que eu chamaria algo de óbvio.

— Ah, por favor. Você também, não. — Procuro alguma coisa entre o conjunto aleatório de peças de roupa que minha mãe juntou ontem à noite. Ela também voltou com um monte de garrafas vazias de refrigerante e outras sucatas de sabe-se lá onde, mas nessa pilha eu não mexo.

— Eu conhecia um cara que tinha uma katana.

— Uma o quê?

— Uma espada japonesa de samurai. Linda. — Ele põe a mão no coração, como se estivesse apaixonado. — Ele a chamava de Espada da Luz. Eu venderia minha mãe só para ter uma dessas.

Balanço a cabeça, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

— Posso dar um nome para a sua espada?

— Não. — Pego um jeans que pode servir e uma meia.

— Por que não?

— Ela já tem nome. — Continuo mexendo na pilha, à procura do par da meia.

— E qual é?

— Ursinho Pooky.

A expressão amigável de Dee-Dum de repente fica mais séria.

— Você está nomeando sua espada foda, de colecionador, feita para assustar e matar, especificamente projetada para colocar inimigos enormes de joelhos e ainda por cima ouvir o lamento das mulheres deles de… Ursinho Pooky?

— É. Gostou?

— Até de brincadeira isso é um crime contra a natureza. Você sabe disso, não sabe? Estou tentando desesperadamente não fazer um comentário antigarotas no momento, mas você está deixando isso muito difícil.

— É, você está certo. — Dou de ombros. — Você pode chamar de Totó ou

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