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Urupês
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E-book227 páginas4 horas

Urupês

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Sobre este e-book

Urupês é uma coletânea de contos e crônicas do escritor brasileiro Monteiro Lobato, considerada sua obra-prima e publicada originalmente em 1918. Inaugura na literatura brasileira um regionalismo crítico e mais realista do que o praticado anteriormente, durante o romantismo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de abr. de 2021
ISBN9788595463769

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    Urupês - Monteiro Lobato

    Urupês

    Urupês

    FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador

    Mário Sérgio Vasconcelos

    Diretor-Presidente

    Jézio Hernani Bomfim Gutierre

    Superintendente Administrativo e Financeiro

    William de Souza Agostinho

    Conselho Editorial Acadêmico

    Danilo Rothberg

    Luis Fernando Ayerbe

    Marcelo Takeshi Yamashita

    Maria Cristina Pereira Lima

    Milton Terumitsu Sogabe

    Newton La Scala Júnior

    Pedro Angelo Pagni

    Renata Junqueira de Souza

    Sandra Aparecida Ferreira

    Valéria dos Santos Guimarães

    Editores-Adjuntos

    Anderson Nobara

    Leandro Rodrigues

    A coleção CLÁSSICOS DA LITERATURA UNESP constitui uma porta de entrada para o cânon da literatura universal. Não se pretende disponibilizar edições críticas, mas simplesmente volumes que permitam a leitura prazerosa de clássicos. Nesse espírito, cada volume se abre com um breve texto de apresentação, cujo objetivo é apenas fornecer alguns elementos preliminares sobre o autor e sua obra. A seleção de títulos, por sua vez, é conscientemente multifacetada e não sistemática, permitindo, afinal, o livre passeio do leitor.

    Monteiro Lobato

    Urupês

    Editora Unesp Digital

    © 2020 EDITORA UNESP

    Direito de publicação reservados à:

    Fundação Editora da Unesp (FEU)

    Praça da Sé, 108

    01001-900 – São Paulo – SP

    Tel.: (00xx11) 3242-7171

    Fax.: (0xx11) 3242-7172

    www.editoraunesp.com.br

    atendimento.editora@unesp.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior – CRB-8/9949

    Editora Afiliada:

    Editora afiliada:

    Sumário

    ______________________

    Apresentação

    Urupês

    Os faroleiros

    O engraçado arrependido

    A colcha de retalhos

    A vingança da peroba

    Um suplício moderno

    Meu conto de Maupassant

    Pollice verso

    Bucólica

    O mata-pau

    Bocatorta

    O comprador de fazendas

    O estigma

    Velha praga

    Urupês

    Apresentação

    ______________________

    TENTAR DIMENSIONAR O LEGADO DA OBRA de José Bento Renato Monteiro Lobato no panorama cultural deste país a quem já está familiarizado com ela é tarefa desnecessária; difícil mesmo é fazê-lo a quem a desconhece. Intelectual no sentido mais amplo da palavra, ele foi escritor, tradutor, editor, empreendedor e um pensador dentre os mais influentes de seu tempo, que deixou marcas indeléveis na literatura brasileira: pai do gênero infantojuvenil, não por acaso comemoramos o Dia Nacional do Livro Infantil em 18 de abril, data de nascimento de Lobato. De seu vasto repertório criativo, saíram muitos personagens inesquecíveis que povoam o imaginário de gerações de leitores, notadamente aqueles de seu Sítio do Pica-Pau Amarelo: Emília, Narizinho, Dona Benta, Visconde de Sabugosa, Tia Nastácia. Mas associar o universo lobatiano meramente à literatura para os pequenos seria de um reducionismo impreciso – e injusto.

    Tendo crescido no campo com os pais, Olímpia Augusta e José Bento Marcondes Lobato, Monteiro foi alfabetizado pela mãe e por um professor particular. A paixão pelos livros mostrou-se precoce: aos 7 anos, ele já se esbaldava com a ampla biblioteca particular do avô. Também cedo começou a escrever: no jornalzinho do colégio, depois no periódico da faculdade de direito. Tendo aprendido francês e inglês ainda criança, pôde colaborar, no início da vida adulta, com o jornal O Estado de S. Paulo, para o qual traduzia artigos do britânico Weekly Times. Ao herdar, aos 29 anos, uma fazenda no interior de São Paulo a partir da morte do avô, Lobato retorna ao campo, já casado e com filhos, e esse episódio será determinante para a sua futura carreira literária, como veremos a seguir. A herança lhe permitiu arriscar-se num investimento, a aquisição da Revista do Brasil, veículo pelo qual publicaria o presente Urupês, que significou um marco na indústria editorial brasileira, já que, à época, costumava-se imprimir os livros no exterior. Essa experiência o levaria a fundar sua própria editora – Monteiro Lobato & Cia. –, semente daquela que viria a se transformar na futura Companhia Editora Nacional.

    ______________________

    Urupês, que alcançou em 2018 seu primeiro centenário preservando o prestígio, não fortuito, de ser a obra referencial da produção de Lobato, é um verdadeiro documento de época. Radiografa, ainda que literariamente, as marcas do Brasil de então: país essencialmente agrário, subdesenvolvido, cujas mazelas de sua população rural não pareciam estar no centro das preocupações do poder público. A concepção da obra se dá no contexto particular em que Lobato se insere: vivendo numa fazenda no Vale do Paraíba, ele tem de lidar com o choque de realidade dos problemas agrários locais, notadamente o rigor de um inverno seco e as queimadas que assolam as matas. Sua insatisfação a respeito se materializa numa carta que envia à redação de O Estado de S. Paulo, relatando o cenário crítico. Os editores, porém, não a veiculam na seção designada aos leitores: estarrecidos pela contundência e qualidade do relato – em que chama a Serra da Mantiqueira de um cinzeiro imenso, em meio ao fogo que amoita-se insidioso nas piúcas –, valorizam-no numa publicação em destaque.

    Tratava-se, no caso, de Velha praga, cuja retumbante repercussão acabou estimulando o autor a produzir uma série de outros textos do mesmo tipo, dentro do contexto das questões rurais que cercavam o agora fazendeiro. São textos que se caracterizam pela crítica ao Estado inoperante. Urupês, o conto que batiza a coletânea, veio nessa safra. A aura especial que sempre o envolveu é facilmente explicável pela metáfora com que, a partir do personagem Jeca Tatu, o escritor soube inverter certos paradigmas literários. Jeca é um anti-herói, um tipo grosseiro, bronco, sem nenhuma elegância, que dirá erudição, indiferente até mesmo a questões de asseio pessoal. Pior: assumidamente afeito à bebida, é preguiçoso e não tem ambições: não sonha em mudar de vida, porque sua alienação é tamanha que não tem sequer a consciência da precariedade de sua condição. Além da forma como pintou seu protagonista, Monteiro Lobato chocou seus pares pela iconoclastia na linguagem, fazendo uso de inventivos neologismos e um coloquialismo levado ao limite, voltados a uma caracterização literária da oralidade como até então não se fazia.

    Jeca Tatu tornou-se um personagem tão grande na literatura brasileira que, com o passar das décadas, entrou para os dicionários: substantivo sinônimo de caipira, de matuto interiorano. Ao lado do Macunaíma, de Mário de Andrade, talvez seja a representação mais singela e popular de uma suposta índole brasileira, quando se tenta explicar seus sentidos menos generosos: a indolência conveniente e a personificação do atraso socioeconômico.

    Monteiro Lobato C 1920

    MONTEIRO LOBATO

    (TAUBATÉ, 1882 – SÃO PAULO, 1948)

    MONTEIRO LOBATO, FOTO DE AUTOR DESCONHECIDO, C. 1920

    Monteiro Lobato

    ______________________

    Urupês

    Os faroleiros

    ¹

    ______________________

    – NAVIO?

    Dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascença, vá.

    Céu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.

    – Lá mudou de cor. É farol.

    E, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis.

    Eduardo interpelou-me de chofre sobre a ideia que eu deles fazia.

    A ideia de toda gente, ora essa!

    – Quer dizer, uma ideia falsa. Toda gente é um monstro com orelhas de asno e miolos de macaco, incapaz duma ideia sensata sobre o que quer que seja. Tens na cabeça, respeito a farol, uma ideia de rua, recebida do vulgo e nunca recunhada na matriz das impressões pessoais. Erro?

    – Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório de casaca, se me desse na telha discursar sobre o tema; mas não afianço que o farol descrito venha a parecer-se com algum…

    – Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal conferência, ouvida por um faroleiro, poria o homem de olho parvo, a dizer como o outro: Se percebo, sebo!.

    – Acredito. Mas perceberia melhor uma tua? – retorqui abespinhado.

    – É de crer. Já vivi uma inesquecível temporada no farol dos Albatrozes e falaria de cadeira.

    – Viveste em farol?!… – exclamei com espanto.

    – E lá fui comparsa numa tragédia noturna de arrepiar os cabelos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama…

    Estávamos ambos de bruços na amurada do Orion, em hora propícia ao esbagoar dum dramalhão inédito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o.

    – Vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que o povoem. É calamidade à Shakespeare ou à Ibsen?

    – Assina o meu drama um nome maior que o de Shakespeare…

    – ???

    – … a Vida, meu caro, a grande mestra dos Shakespeares maiores e menores.

    Eduardo começou do princípio.

    – O farol é um romance. Um romance iniciado na antiguidade com as fogueiras armadas nos promontórios para norteio das embarcações de remo e continuado séculos em fora até nossos possantes holofotes elétricos. Enquanto subsistir no mundo o homem, o romance Farol não conhecerá epílogo. Monótono como as calmarias, embrecham-se nele, a espaços, capítulos de tragédia e loucura – pungentes gravuras de Doré quebrando a monotonia de um diário de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita meteu-se no farol aos 23 anos. É raro isso.

    – Quem é Gerebita?

    – Sabê-lo-ás em tempo. É raro isso porque no geral só se metem nas torres homens maduros, quarentões batidos pela vida e descrentes das suas ilusões. Deixar a terra na quadra verdolenga dos 20 anos é apavorante. A terra!… Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao meio terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulício humano, a caridade, os campos, a mulher, as árvores… Conhecem os faroleiros melhor do que ninguém o valor dessas teias. Enlurados num bioco de pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos os instantes neles é saudade ou desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a música da terra – rumorejo de arvoredo, vozes amigas, barulho de rua, as mil e uma notas duma polifonia que nós sabemos que o é, e encantadora, unicamente quando a segregação prolongada nos ensina a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice lhes são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o marulho das ondas às chicotadas no enrocamento da torre; e para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes únicas, as velas que passam de largo, donairosas como garças, ou os transatlânticos penachados de fumo. Figura a vida de um homem arrancado à querência e assim posto, qual triste galé, dentro duma torre de pedra, grudada como craca a um ilhéu. Terá poesia de longe; de perto é alucinante.

    – Mas Gerebita…

    – Uma leitura de Kipling despertara-me a curiosidade de conhecer um farol por dentro.

    O perturbador do tráfego

    – Parabéns pela argúcia. Foi justamente a história do Dowse o ponto inicial do meu drama. Esse desejo incubou-se-me cá dentro à espera da ocasião para brotar.

    "Certo dia fui espairecer ao cais – e lá estava, de mãos às costas, a seguir o voo dos joões-grandes e a notar a gama dos verdes luzentes que a sombra dos barcos ondeia na água represada dos portos, quando uma lancha abicou, e vi descer um homem de feições duras e pele encorreada. Ao passar por um magote de catraeiros um deles chasqueou em tom insinuativo:

    "– Gerebita, como vai Maria Rita?

    "O desembarcadiço rosnou um palavrão de grosso calibre, e seguiu caminho, de sobrecenho carregado. Interessou-me aquele tipo.

    "– Quem é? – indaguei.

    "– Pois quem há de ser senão o faroleiro dos Albatrozes? Não vê a lancha?

    "De fato, a lancha era do farol. A velha ideia deu-me cotoveladas: é hora! Fui-lhe no encalço.

    "– Senhor Gerebita!…

    "O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por boca desconhecida. Emparelhei-me com ele e, enquanto andávamos, fui-lhe expondo os meus projetos.

    "– Não pode ser – respondeu –; o regulamento proíbe sapos² na torre. Só com ordem superior.

    "Ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa de ordens superiores. Meti a mão no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes, mas corrompeu-se mais depressa do que esperei. Guardou o dinheiro e disse:

    "– Procure Dunga, patrão da Gaivota Branca, terceiro armazém. Diga-lhe que já falou comigo. De quinta-feira em diante. E bico, veja lá!

    "Prometi-lho caladíssimo, e tornei ao cais à cata de Dunga. Que sim – foi a resposta do catraeiro, ilhéu palavroso, logo que expus o negócio –, já fizera isso certa vez a ‘outro maluco’ e sabia prender a língua para não atanazar a vida aos amigos. E como me informasse do faroleiro:

    "– É Gerebita, de apelido ganho no Purus, onde serviu como grumete. Ao depois se meteu na lanterna, por amor de amores, o alarve,³ como se faltassem elas por aí, e bem catitas. Mulheres! A mim é que não me empecem, não, as songuinhas. O demo que as tolha que eu…"

    "E foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com razões nem melhores nem piores que as de Schopenhauer.

    "No dia aprazado, antemanhã, a Gaivota largou de rumo ao farol. Saltei num rude atracadouro de difícil abordagem e encontrei o faroleiro ocupado em polir os metais da lanterna. Recebeu-me de boa sombra, largando o esfregão para fazer as honras da casa.

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