Luís Alberto de Abreu ESSE TREM...
Luís Alberto de Abreu ESSE TREM...
Luís Alberto de Abreu ESSE TREM...
CHAMADO
DESEJO
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(CANTA): Antes, bem antes do elenco chegar
E comear a ensaiar
Me ponho logo a arrumar
Pois tudo tem seu lugar
Eu me imagino em lugares
Bem longe, onde eu nunca pisei
E at me vejo nos braos
Do amor que eu nunca terei.
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Me sinto como se eu fosse
Mais um no palco a atuar
Mas sei que a coxia
Sempre ser meu lugar
(ENTRA LOPES)
LOPES Eu, no, Seu Coisinha! Quero morrer bem longe desse tabladi-
nho fuleiro!
COISINHA Como no, seu Lopes? Cada cadeira, cada velha cortina, cada
objeto... At o suor das paredes, at o ar, tudo aqui lembra os
velhos atores e as grandes atrizes.
COISINHA , a coisa vai mal, o pblico anda sumido. Mas a estria de ho-
je vai ser sucesso!
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COISINHA , uns mais outros menos. Sucesso, casa cheia, fila na bilhete-
ria, ingressos vendidos... O senhor por acaso no teria algum
pra me emprestar por conta do nosso sucesso de hoje noite?
LOPES Estou liso, seu Coisinha. E dona Abigail? O senhor poderia dar
uma mo...
COISINHA Ih, no tem por onde! J tentei facilitar Dona Abigail para o Mei-
reles, para o Praxedes, at pra mim eu tentei!
COISINHA Respeito, meu filho! Contra minha mais ntima vontade e minha
mais expressa inteno, respeito! De uns tempos pra c no
tenho feito outra coisa seno respeitar toda e qualquer mulher.
LOPES Onde meu corao foi amarrar minha gua, seu Coisinha! (SAI)
COISINHA Em pasto que no brota gua nem nasce capim, seu Lopes.
Vai por mim.
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MADEIRA timo.
MADEIRA Me diz uma coisa: Por que o senhor que j trabalhou pra me
juntar com Florisbela quer agora me juntar com Gracinha?
COISINHA Fui. Mas ela merece uma histria melhor do que a que tem com
o Sandoval.
MADEIRA Obrigado pela considerao, mas estou satisfeito com meu ca-
so com Florisbela.
COISINHA Pois eu, no! Seu caso se transformou num ramerro insosso.
Est faltando na sua vida o risco das grandes histrias! O risco
o alimento da paixo, seu Madeira! O que seria de Romeu e
Julieta sem o risco da tragdia? Um casamentinho trivial!
COISINHA Eu tambm acho, mas qual o interesse que tem o seu caso
com a Florisbela se o Meireles nunca descobrir?
MADEIRA Que que o senhor est querendo? Ver minha caveira no ne-
crotrio, seu Coisinha?
COISINHA S quero um pouco de ao, uma histria que possa ser lem-
brada, contada, talvez at escrita e representada!
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MADEIRA O senhor contra-regra no dramaturgo, seu Coisinha!
COISINHA Est bem, mas ser que o senhor no teria uns dez mil ris...
COISINHA Est bem, deixa estar! Vou falar com o Meireles ...
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FLORIS No vai dar! Ele me requisitou para ensaio de riso louco, riso
trgico, riso irnico, riso satnico e sardnico!
MADEIRA Deixa o Meireles para l. Voc est linda! Esse nmero ainda
vai fazer sucesso no Rio de Janeiro!
Se tantas concubinas
O meu sulto j satisfez
Desperte os seus instintos
Agora a minha vez
Vim do oriente mdio
Pra livra-lo desse tdio
Mulata brasileira
Fogosa e faceira
esse meu segredo
Eu s vou contar pro meu sulto
Fizeram-me de escrava
Na Amrica do Norte
Venderam-me aos persas
A peso de ouro num leilo
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Mas hoje, j liberta
Respiro outros ares
E nunca mais porei
O meu p em Valadares
FLORIS... No pode subir num tijolo que j pensa que tem dois metros!
PRAXEDES E o autor.
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MADEIRA Est bem, Praxedes, voc autor, ensaiador, ponto, mas no
msico! Fiz a cena baseada nos maiores sucessos do teatro
musicado do Rio de Janeiro! Tem alegria, veneno, descontra-
o... Um entreato extico com samba, maxixe, animao...
PRAXEDES Quero.
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que gente precisa de um espetculo que tenha pblico que pa-
gue ingresso! s isso! Nem amigo vem ver nossos espetcu-
los, nem parente. Nem minha me veio na ltima estria!
MEIRELES Ele nem percebeu. Precisava ver como ele chorava enquanto
eu recitava o pice do culto cvico dedicado a Tiradentes de J.
Mariano de Oliveira.
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FLORIS Era fome, desnaturado!
MADEIRA (EMBARAADO) ... Como toda atriz ela... Empresta seu ta-
lento, sua voz, seu corpo... a um personagem!
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LOPES (ENTRANDO) O que o senhor tem contra o circo e os mam-
bembes? Eu sempre fui ator de teatro mambembe com muito
orgulho.
FLORIS... Eu, pelo menos, estou aqui dando o duro, suando... e no en-
xugando cachaa em balco, enchendo a caveira em botecos...
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LOPES No interessa se musical, drama ou tragdia, tem de sair, ir
atrs do pblico! Isso o teatro deve ser.
Estamos a debater
Assunto muito importante
Mas meu interlocutor
No sabe ser elegante
Tentava eu esclarecer
Um msico equivocado
Que apenas quer copiar
O que j est empoeirado
Um show de variedades
Convite ao pleno prazer
Como se faz em outras capitais
o que o teatro deve ser!
PRAXEDES (IRRITADO) Est muito bom! Todo mundo j disse como a pe-
a deve ser! Agora eu digo como a pea vai ser: vai ser exata-
mente como a gente ensaiar! E a gente vai ensaiar a pea co-
mo eu concebi!
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FLORIS... Era s o que faltava! Ainda assustou o menino!
FLORIS Otelo!
MEIRELES Ento, pelo que presumo, voc est com amante, Madeira?
(MADEIRA PARALISA A EXPRESSO, FLORISBELA D
UM GRITO) Que foi?
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MEIRELES (OLHA-A PERPLEXO ENQUANTO MADEIRA DISFARA
CRUZANDO OS BRAOS) Que foi que eu fiz?
MADEIRA Pra com isso, seu Coisinha! Pensa que fcil? s vezes eu
penso que melhor ser corno. Ou no ter mais competncia
nas partes como o senhor. Ser amante sina triste, exige cui-
dados, esforo, estratgia, tirocnio, planos de ataque e rotas
de fuga! uma rdua vocao, seu Coisinha! E, no final de tu-
do, uma besta como o Meireles ainda me d um tiro na cara e a
opinio pblica vai arrastar meu nome na lama, me chamar de
safado e lhe dar razo!
GRACINHA Que ?
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GRACINHA Quem ?
GRACINHA Sandoval! Que que est fazendo com essa camisa horrorosa
que aquela sujeita te deu?
SANDOVAL Mas...
GRACINHA Mas, nada! Vai embora e no pense que, desta, vez vai com-
prar minha boa vontade com aqueles presentinhos michos...
SANDOVAL Muitos.
SANDOVAL Na loja, mas logo vai estar no seu dedo. Estou em entendimen-
tos com financistas para uma grande jogada. segredo. Se tu-
do der certo ao final do espetculo venho com a grande notcia.
SANDOVAL Produzo, Gracinha. Voc vai ser a estrela e vamos viajar para o
Rio, Buenos Aires... Um sucesso!
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GRACINHA Ah, Sandoval! Voc j sentiu uma platia de mil, mil e duzentas
pessoas, todas te aplaudindo?
SANDOVAL No.
SANDOVAL Se tudo der certo volto com boas notcias. ( SADA.) E avisa
o elenco pra ningum ficar espiando o pblico pela cortina. A-
tor, antes do espetculo quando v a platia vazia, xinga: Pro-
dutor fiadaputa, nem pra trazer pblico presta!. Quando olha
e v a platia cheia, xinga de novo: Produtor fiadaputa, vai
acabar rico nas minhas costas!
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GRACINHA (GRITA) Abigail! (ENTRA ABIGAIL ATRAPALHADA AINDA
SE VESTINDO) Me acompanhe no meu nmero.
ABIGAIL Mas eu tambm tenho de ensaiar minha cena! Que raiva! Abi-
gail, faz isso! Abigail, faz aquilo! Me d um nervoso e eu no
quero obedecer, mas obedeo e a me d um nervoso porque
eu obedeci, a erro tudo! Abigail, sua burra, voc errou tudo!
Ouvir isso, revolta. A, quero gritar desaforo, falar palavro,
plantar a mo na cara de quem me xingou. Mas voc grita, vo-
c xinga, voc faz, Abigail? Faz nada, voc no tem cora-
gem! Sou educada! Voc frouxa! A eu me revolto por ser
frouxa, fico nervosa, vermelha, tremo como agora que eu devia
ir l e dizer umas poucas e boas para a Gracinha, mas vou?
Vou nada, a...(GRITA A SI MESMA) Cala a boca, Abigail, que
eu, a prpria Abigail, j no estou te agentando mais! (TENTA
TOCAR A MSICA, MAS ERRA. TENTA NOVAMENTE, ER-
RA). Tem horas que eu quero morrer! E tem horas que eu que-
ro te matar, Abigail!
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(ENTRA LOPES)
ABIGAIL Se no sentisse tanto frio acho que iria para sua casa.
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LOPES A falncia me impediu de partir, a paixo me obrigou ficar. So
duas coisas completamente diferentes!
ABIGAIL Oh, seu Lopes, um artista como o senhor mereceria coisa me-
lhor.
ABIGAIL (PARA SI) No, Abigail, nem pense! Voc tem um noivo! (IR-
RITADA) Que nunca lhe falou essas coisas, sua tonta!
ABIGAIL O senhor tem lbia, seu Lopes, uma lngua afiada, vermelha,
dentro de dois lbios to...to... (PARA SI) Sossega o pito, A-
bigail! Quieta o facho!
ABIGAIL Ele quer me tirar dessa vida de teatro, cheia de riscos, impre-
vistos...
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LOPES (SENTE QUE PERDEU A PARADA). A a competio desle-
al. Desisto!
ABIGAIL Um dia.
ABIGAIL No sei! No quero falar sobre isso, no quero isso. Quer dizer,
quero... Outra hora! (PARA SI) Perdeu a oportunidade sua bur-
ra! Cala boca, que eu sei o que fao! No fao nada sem pen-
sar! Mas s pensa besteira, Abigail!
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Vontade escassa de voltar ao que fui antes
E assim eu sigo avante, bebo um gole e a dor passa.
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CENA 6 AS GMEAS
FOFINHA Vem!
FOFINHA Nunca mais! Nunca mais voc joga charme pra cima do Ara-
go!
FOFINHA No, essa desnaturada nem lembra que tem uma irm gmea!
PRAXEDES Basta! Daqui a pouco o pblico chega. Temos pouco tempo pa-
ra acertar o espetculo.
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PRAXEDES Vamos todos juntos! A gente vem de fracasso em fracasso.
Nossa nica chance mudar!
PRAXEDES Nem!
MEIRELES E se...
PRAXEDES No!
FOFINHA Dizem que l no tem mais ponto! Pro seu bem, melhor a
coisa ficar como est!
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PRAXEDES (A FOFINHA) E a senhora, dona Fofinha, a senhora quer sem-
pre aparecer tanto que estraga o nmero!
(ENTRA COISINHA).
FOFINHA mesmo. Como quer estrear bem se nem ensaiar ele ensaia?!
(GRITA) Ah!, estou de mal de voc!
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(DANA OS PASSOS DA COREOGRAFIA. LINDINHA SE EMBARAA EM
VRIAS TENTATIVAS DE ACOMPANH-LA. PARA E FAZ UMA POSTURA
HUMILDE).
FOFINHA (GRITA) Cruz! Cruz que eu devo carregar! Que dio! Lindinha,
a prxima vez...
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LINDINHA E vaca entra, l, em conservatrio de msica pra mugir? Vaca
tem de estudar canto? S aqui que vaca tem de mugir no tom!
(ENTRA PRAXEDES).
FOFINHA No se atreva!
COISINHA Liga, no! Toda estria de teatro sempre precisa de mais quin-
ze dias!
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ABIGAIL Seu Praxedes, vai passar a msica da Gracinha pra mim?
GRACINHA No seria!
MEIRELES A gente podia fazer uma votao. Quem acha que a msica
deve passar para Abigail?
MEIRELES O que a senhora pretende dizer com tal ilao que no consigo
apreender todo o sentido?
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NHA E D O PRIMEIRO SINAL. TODOS SE IMOBILIZAM E OLHAM NA DI-
REO DELE).
ABIGAIL No me erre a voz! (PARA SI) Era o que voc devia dizer a ela,
Abigail!
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FLORIS (ENTRA, PARA SI) Pelo andar do carro de boi vai dar merda
mesmo. E muita!
Mu-mu-mu-mu-um
Curral del Rey
Mu-mu-mu-mu-um
o meu rinco
Mu-mu-mu-mu-um
o luar
Mu-mu-mu-mu-um
Do meu serto
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Aguadeiros tem
Violeiros tem
Cachoeiras aqui tem tambm
Mu-mu-mu-mu-um...
Aguardente tem
Boa gente tem
Amizade aqui tem tambm
CAMPONS Num turtuvia, num turtuvia, maiada! Aqui num tem mais nada
pro bico docs! Isso aqui t tudo virando uma borresca!
CAMPONS E as rua, ento? Tudo retin, retin, tudo s direita, feito linha es-
ticadinha! Tudo coisa de genheiro!
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CAMPONS Progresso assim. Daqui a pouco eles pem tudo abaixo pra
faz de travis!
CAMPONS S v cunhec!
CAMPONESA Vai cunhec relho! Oc fica aqui e se contenta com esse seu
groto vio! (CORRE ATRS DO CAMPONS QUE FOGE)
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Avenida do Contorno
Quantas curvas tu ters
Nelas sempre nos perdemos
Mas sem ti ns no vivemos
E a queremos sempre mais
Avenida do contorno
Teus escravos vamos ser
Tendo em troca tuas curvas
Tuas regras, teus sinais
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MEIRELES O pblico est cansado. As grandes paixes tem de voltar ao
teatro!
MADEIRA (CORTANDO) Tinha certeza, uma plula! Voc foi cabea dura!
FLORIS... Tudo bem, vamos ficar calmos, mas o Praxedes, depois desse
vexame, podia descer de cima do tijolinho dele! Como que a
gente fica? Tenho um recm-nascido pra sustentar!
FOFINHA Sei l, gente! Remontar uma pea, sair em viagem com o espe-
tculo, no sei! A gente no pode ficar assim!
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LOPES Viajar no est fcil. Ultimamente no conheo uma s compa-
nhia que chegou melhor do que saiu.
PRAXEDES Nada, s estou cansado. Foram anos, dona Abigail, anos meti-
do naquela caixa dizendo texto, ensaiando, gastando a vida a
troco de dinheirinho minguado, pouco mais que nada. Isso
uma arte ingrata.
MEIRELES Tem de ter uma soluo! Faz anos que trabalhamos juntos!
PRAXEDES Para ser frio e franco, acho que vai! O Sandoval no vai querer
produzir outra pea. Que acha, Gracinha?
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PRAXEDES Repito a pergunta: algum sabe o que fazer?
FOFINHA Sei l, acho que acaba. E eu nem consegui fala, Lindinha! Que-
ro saber como vamos pagar o aluguel.
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CENA 9 A ILUSO E A AVENTURA
PRAXEDES Isso quer dizer que o senhor no vai produzir mais teatro.
(ABIGAIL RETORNA)
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SANDOVAL Exato! Vocs vo ser nossos Rodolfo Valentino, Pola Negri,
Mary Pickford... Filas de quinhentos, oitocentos, mil espectado-
res todos os dias! Que me dizem? Que me dizem?
SANDOVAL Isso, isso mesmo, Madeira! Voc pegou bem o esprito da coi-
sa! Faremos muitas fitas, Meireles! Comecemos por baixo, mas
se prepare, pois logo chegaremos a Hamlet! Madeira, o senhor
podia se encarregar da histria. O mundo gira e muda, meus
amigos, e ns devemos acompanhar as mudanas! (BEIJA AS
MOS DE GRACINHA) Adeus, minha diva, minha Marlene Di-
etrich. Estou pensando num papel de arromba pra voc. Have-
r grandes papis pra todo mundo! (PERCEBE PRAXEDES E
COISINHA) Bem, pra quase todo mundo! (A PRAXEDES) Infe-
lizmente o cinema no usa ponto...
LINDINHA Vamos?
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PRAXEDES Quando a gente no sabe o que dizer porque no h nada a
ser dito, seu Coisinha. Um dia as coisas acabam.
FOFINHA No cinema eu vou ter fala, tenho certeza! Vou ser uma atriz!
ABIGAIL No filme eu podia ter uma cena de beijo com o Lopes! Esfria,
Abigail, esfria! Esfria, nada, deixa pegar fogo, criatura!
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MEIRELES Eu bebo porque o tempo est passando... e eu sou um talento
dramtico mal aproveitado, perdido em meio a comediazinhas!
Se Deus quiser, no cinema vou falar alma do ser humano!
Isso merece um conhaque pra comemorar!
MADEIRA Finalmente vou fazer a histria que quero com as cenas que
quero, com as msicas que quero.
MADEIRA No, nesse filme a estrela ainda vai ter de ser a Gracinha, mas
logo, logo...
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SEGUNDA PARTE
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SANDOVAL (RETOMA O MICROFONE) Isso no deixa de ser verdade,
mas temos planos e prioridades. Hamlet, de fato, est em nos-
sos planos.
GRACINHA Foi uma experincia fascinante meu primeiro filme como pri-
meira atriz.
SANDOVAL Foi uma tima e fascinante experincia para todos. Queria avi-
sar ao pblico e tambm ao elenco que por motivos de fora
maior, muito prprios da produo cinematogrfica, fomos
compelidos a fazer algumas pequenas alteraes...
FLORIS Que que isso, Sandoval? Cad a cena musical em que canto
pra fazer o Otelinho dormir?
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GRACINHA Agora eu apareo. Cad eu? Quem essa que est fazendo
meu papel?
LOPES E no escuro!
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MADEIRA Parece realista. O diretor pediu realismo...
GRACINHA Uma coisa sou eu, Gracinha, e a mesma coisa sou eu, atriz! E
as duas esto com vontade de lhe meter a mo!
FOFINHA Ah!, meu Deus, outra vez! Depois que entrei para o teatro as
perguntas que mais tenho ouvido so e agora? O que a gente
faz?.
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SANDOVAL (AO PBLICO) Senhoras e senhores, enquanto providencia-
mos o reparo do nosso equipamento deixo aos nossos criativos
atores o encargo de vosso entretenimento. (AFASTA-SE)
LINDINHA (IRRITADA) Pois ento vou contar o que foi fazer o filme!
LINDINHA E quem disse que eu entendia? Me pedia pra fazer cara de na-
da! Chegar a essa altura da vida, entrar no cinema nacional,
pra isso!
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MADEIRA Seja neutro, seja neutro! Poxa, passei a vida tentando aprender
a ser expressivo!
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- PROPONHO QUE A MOVIMENTAO DE PRAXEDES E COISINHA V,
COM O TRANSCORRER DO ESPETCULO TORNANDO-SE CADA VEZ
MAIS FRENTICA, POIS CABE AOS DOIS PREPARAR RAPIDAMENTE
TODA AMBIENTAO CONFORME O RITMO DA NARRAO DOS ATO-
RES. O JOGO INFINITO: ATORES QUE ENTRAM EM CENA ERRADO,
COISINHA QUE TRAZ ELEMENTO CENOGRFICO DIFERENTE DO QUE
FOI PEDIDO, NARRAO QUE NO BATE COM O ROTEIRO, COISINHA
QUE ENTREGA ELEMENTO ERRADO, ETC. A IDIA QUE A MOVIMEN-
TAO DOS DOIS SE TORNE CADA VEZ MAIS INTENSA E CONFUSA
COMO, POR EXEMPLO, NO FINAL HAVER CONFUSO DE AMBIENTES
COMO A MESA DE BAR APARECER NA CASA DE MEIRELES E UMA
POSSVEL POLTRONA DE MEIRELES APARECER NO BAR OU NO MEIO
DA RUA, COISAS DESSE TIPO -
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LINDINHA Selma, querida! Sabe a Estelinha? Vai pedir desquite!
GRACINHA Por isso mesmo. Sou sua mulher, no sou uma marafona nem
marafaia, nem Maria Bagageira, nem Maria Catraia!
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de amor, dinheiro e tira multas no Detran. Lembro que Aristides
chegou aqui transtornado.
LINDINHA Eu no fui.
FOFINHA Muito menos eu! Mas o fato que correu na vizinhana o jura-
mento que Aristides fez:
LOPES Pra que ele foi dizer isso?! Conselho que eu dou aos homens e
rapazes aqui presentes: nunca faam afirmaes irretratveis
como esta. Aconselho a colocar sempre antes um talvez, um
se Deus quiser, se a sorte ajudar.
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vo de motejo e piada como o bairro profetizou: um sujeito assim
s pode acabar corno.
PRAXEDES Arrogncia...
MADEIRA No, voc que est cego! Marido no o ltimo a saber, de-
ve ser o primeiro a no querer saber! melhor acreditar sem-
pre no que a mulher diz! Acreditar sempre!
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MADEIRA Di no corao ver o amigo padecendo tal sofrimento moral.
Sabe por que o homem, ao contrrio dos animais, sofre a dor
moral que mais intensa que qualquer dor fsica? O homem
sofre por que tem conscincia, Aristides! Tanto quanto a cons-
cincia da morte traumatiza o ser humano, a conscincia da
traio conjugal faz o homem sofrer. (CONCLUI GRANDILO-
QUENTE) E j que o adultrio inevitvel, melhor que dele
no tenhamos conscincia! (MEIRELES COMEA A SOLU-
AR LONGA E PROFUNDAMENTE, COM BVIOS RESUL-
TADOS CMICOS. MADEIRA O ABRAA) Vou ajud-lo, meu
amigo. Sua mulher se tornar um doce.
FOFINHA E assim foi. Correram dias, semanas... A dona Alice casou a fi-
lha grvida de trs meses, o seu Alonso, da rua de baixo, deu
pra beber por causa da mulher, que no valia nada, peguei a
Salma batendo boca na feira por causa do marido da Geni.
Tudo contado passaram-se no mais que trs meses. O bairro
continuava em expectativa, esperando a notcia, para todos i-
nevitvel, do mau passo de Estelinha.
FOFINHA Nada.
ESTELINHA Tornou-se dcil, suave como seda da China, gentil como tafet
francs. (MEIRELES SE APROXIMA) Querido, como demorou!
Quer um refresco? Vou buscar seus chinelos. Antes, d-me um
beijo. (SURPRESO MEIRELES SE APROXIMA PARA BEIJ-
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LA NO ROSTO) Na boca! (LASCA UM BEIJO NA BOCA DE
MEIRELES)
MEIRELES Que mudana! Que surpresa feliz! De uns tempos pra c voc
tem mudado muito!
ESTELINHA Pr pior?
ESTELINHA (ABRAA-O) Entre em seu lar e descanse. Vou sair, mas re-
torno logo para seus braos.
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MEIRELES Pulha! Messalina! S a morte vai reparar a traio, a desleal-
dade e a desonra! (APONTA A ARMA ORA PARA MADEIRA,
ORA PARA GRACINHA).
MADEIRA Que isso, Aristides, ficou maluco? assim que paga a ajuda
que lhe dou?
MADEIRA Baixa essa arma, amigo ingrato! Meses atrs voc veio aqui
corrodo pelo cime e dizendo que sua mulher o maltratava. E
agora? Estelinha no est doce como mel? Graas aos meus
conselhos!
MADEIRA Ento atira, se voc viu! Voc perde um amigo sincero, perde
uma mulher enamorada, ganha cadeia e o resto da vida de re-
morsos. (PUXA ARISTIDES PELO BRAO PARA LONGE DE
ESTELINHA) Mas, se voc nada viu, o cime se esvai e seu
corao fica em paz. E, depois, se fosse verdade o que voc,
injustamente, est pensando de mim e de Estelinha, voc teria
no s uma mulher culpada querendo lhe compensar como
tambm uma mulher agradecida por voc ter-lhe permitido tal
aventura. De qualquer ngulo que voc analise a questo
melhor que voc nada tenha visto.
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MEIRELES Aristides foi-se pensativo. E uma coisa ele no podia negar:
no carregava mais o peso do medo de ser trado. E nos lti-
mos dias sua vida conjugal, de fato, havia mudado para me-
lhor.
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MEIRELES No o suficiente. Aristides volta ao bar e bebe. (SENTA-SE
SEM PERDER DE VISTA O ELENCO E COM GESTO PEDE
BEBIDA A COISINHA. ESTE SERVE BEBIDA A MEIRELES)
Bebe. (COISINHA SERVE DE NOVO ALHEIO AOS APELOS
E ACENOS AFLITOS DO ELENCO PARA QUE ELE NO D
MAIS BEBIDA A MEIRELES) Bebe. (COISINHA ENCHE O
COPO)
FLORIS (BAIXO) Voc parece que bebe, Praxedes! Quer ver a cena
pegar fogo? Estou improvisando tambm!
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MEIRELES (PARA O PBLICO) Batem palmas na porta da casa de Ma-
dame Zoroastra. Oduvaldo que chega para tambm saber
seu futuro.
MEIRELES Minha inteno um novo final. Um novo final para esta pea,
para o teatro e para a vida. Esse meu motivo! o motivo,
minha alma, o motivo...
LINDINHA Que foi que eu fiz? At uma improvisao tem de ter coerncia!
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GRACINHA Seu Meireles, no confunda fico e realidade.
MEIRELES No seria capaz de tocar num fio de seu cabelo, minha queri-
da. E depois, a idia me veio na hora. E se avisasse ningum
deixaria.
GRACINHA (SE LEVANTA TAMBM TRMULA) Que foi que houve, meu
Deus?
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MEIRELES E qual o motivo eu teria para atirar em voc? Voc meu ami-
go!
PRAXEDES (AO ELENCO) Amanh vamos fazer tim-tim por tim-tim o que
fizemos hoje.
MADEIRA Fazer tudo igual! Um dia desses, seu Coisinha, Meireles ainda
me d um tiro na cara , de verdade, com o aplauso e aprova-
o do pblico. Ser amante um pesado e perigoso encargo,
seu Coisinha!
(SAI)
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pender de t-lo feito, poderei reaviv-lo... Mas se apagar a tua
luz, a ti, Desdmona, - criao modelar da natureza! Que Pro-
meteu poder com seu fogo, reacend-la? Otelo, ato cinco,
cena dois. S uma atriz, s um ator para, de novo, dar-lhe vida.
O teatro revive com atores, um tablado, o pblico e uma paixo
entre eles. Eu amo os atores, atrizes e o pblico por esse po-
der. E quero morrer nesse palco, onde se d essa viva alquimi-
a. E peo mais, meu Deus! Que quando meu corpo descer
terra minha alma no suba aos cus. Fique aqui, perambulan-
do por essas cortinas, sentada numa dessas cadeiras, fazendo
estalar o tablado quando meu esprito andar sobre ele, at o fi-
nal dos tempos. Como Furtado Coelho, Procpio Ferreira, Ben-
jamin de Oliveira, Conchita de Moraes, Henriqueta Brieba, Ru-
bens Correa e tantos e tantos. E, no fim do fim, meu Deus, que
eu saia desse palco direto para o seu seio, se que estando
palco j no estarei nele, meu Deus. (COMEA A CANTAR A
MSICA INICIAL. APAGA A LTIMA LUZ E CONTINUA A
CANTAR NO ESCURO AT SUA VOZ DESAPARECER TE-
ATRO A DENTRO).
FIM
60