Oduvaldo Viana - Amor
Oduvaldo Viana - Amor
Oduvaldo Viana - Amor
AMOR
Oduvaldo Vianna
1933
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Drama em 3 atos
Oduvaldo Vianna. Amor - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro
Brasileiro / UFSJ – Março/2011
GETEB – Amor
Esta peça foi representada, pela primeira vez, no Teatro Boa Vista de São Paulo, a 7 de
setembro de 1933, pela Companhia Dulcina-Durães-Odilon, com a seguinte distribuição
pela ordem de entrada em cena:
Sombra..................................................................................Leonor Navarro
Belzebú.................................................................................. Alberto Dumont
Pedro......................................................................................Aristoteles Pena
Dr. Catão...................................................................... Manuel Durães
O Tempo.................................................................. A. Calandriello
Lainha.......................................................................................DULCINA
Maria...................................................................................Leonor Navarro
Madalena........................................................................... Wanda Marchetti
Artur................................................................................... Odilon
Chefe da Oficina................................................................A. Barone
Carmelita................................................................................Justina Laverone
Telefonista.................................................................................. Rute Mynssen
Jocelin............................................................................. Roque da Cunha
Dono do café................................................................. Silvio Silva
Farmacêutico................................................................... C. Fontes
Freguês............................................................................. A. Barone
Emp. da C. Lotérica.................................................... D. Rebouças
Detective...........................................................................Silvio Niraldo
Jeová.................................................................................. Durval Rebouças
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Brasileiro / UFSJ – Março/2011
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PRIMEIRO ATO
QUADRO I
(Ouvem-se dois tiros. A seguir, um grito de mulher. Outro tiro. Abre-se a cortina do
plateau n.1. A parte exterior do vitral de uma casa. Ribalta apagada. Luz interior, de
maneira a projetar sobre os vidros apenas as sombras das personagens. Vê-se uma
delas estirada sobre o divan, outra sentada e de bruços sobre uma mesa, e a terceira
uma mulher, abraçada ao cadáver do mais moço. Entra uma sombra)
SOMBRA (Deparando com o quadro) – Meu Deus! Que tragédia! Estão mortos!
Mortos! Telefone para a polícia. Grite por socorro! (Ajoelhando-se junto ao cadáver
da jovem) Pobre creatura! Era tão boazinha... (Chora desesperadamente)
(Cerra-se a cortina do plateau 1 e abre-se a do n. 3)
QUADRO II
(Um recanto do cemitério. Fundo negro. Tres catacumbas a D., E., e F., metade para a
cena, metade nas coxias. Um homem, de longas barbas brancas, elegantemente trajado,
tira do bolso, pachorrentamente, uns óculos de tartaruga, coloca-os para ler as
inscrições das lápides. E` Petrus de Betsaida, o apostolo que depois de encerrado na
prisão Mamertina foi cruscificado na colina Vaticana no mesmo dia em que
decapitaram São Paulo, e a quem Jesus disse: “Tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja”. Pedro, remoçado, assobiando despreocupadamente uma
canção em voga, curva-se um pouco para proceder á leitura. Nessa ocasião entra um
cavalheiro, rigorosamente vestido á última moda, leve como a fumaça do charuto que
fuma: é Belzebú, o lugar tenente do velho Satan. )
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QUADRO III
(Abre-se a cortina do plateau n. 5. Sentado, com sua foice, e suas longas barbas
brancas, o Tempo, tendo ao lado um grande calendário, arranca uma página, fazendo
aparecer a data que lê):
TEMPO (fala) – 3 de Março de 1933.
QUADRO IV
QUADRO V
(Uma sala de estar. A E., uma porta com uma cortina. A F., um vitral. A D., outra porta
com cortina, para o interior da casa. Tapete. Uma secretária, pequena, com telefone,
numa pequena mesa, ao lado. A EF., um rádio. Poltronas. Um abajur. Ação em São
Paulo. Ao correr a cortina, Lainha, um jornal na mão, caminha de um lado para o
outro, com ares de quem acaba de ter um grande desastre na vida. Seus olhos estão
vermelhos de chorar. Corre a porta da esquerda. Espia para fora, bate o pé, com
impaciência, recomeça o passeio. Para. Desdobra o jornal amarrotado entre as mãos.
Assoa-se longamente ).
LAINHA (lendo) – “Um livro encantador sob todos os aspectos. “Amor”, porém,
merece ser destacado de todas as coletâneas de versos. Eles fazem lembrar
Lamartine, pelo lirismo; Goethe, pelo traço de gênio; Geraldi, pelo aroma, ternura
freudiana. São doces e vibrantes a um tempo. Delicados e quentes.” “Quentes”.
(Soluça mais alto) “Suaves e ardentes”. (Outro soluço) “São garras ferinas entre
pétalas de rosas”. (Com esforço enorme para enxergar o que lê através das lágrimas)
“São versos de mulher. De mulher que sente.” (soluça longamente) “Em cada verso
há uma alma, mas também há uma criatura de carne. Através de “Amor” desenha-se
todo um retrato psicológico da poetisa. Deve ser uma criatura encantadora, essa
maravilhosa Maria do Céu...” (amarrota o jornal nas mãos crispadas) É horroroso!
(Atira-se numa poltrona e chora desesperadamente. Pequena pausa. Ouve-se uma
voz que denuncia cansaço).
MARIA (de dentro) – Dona Lainha? Dona Lainha?
LAINHA (Levanta-se, rápida, enxuga os olhos e encaminha-se, ofegante, para a porta)
– Maria, trouxe? Truxe?
MARIA (Entrando, a por os bofes pela boca, com ares triunfantes) – Graças a Deus,
dona Lainha. Estão aqui. (Apresenta-lhe um molho de chaves)
LAINHA – Que coisa horrorosa, criatura! Você está boa para ir buscar a morte pra
gente... Que horror! (Corre a secretária é uma pilha de nervos, começa a
experimentar as chaves, não encontrando, sequer, uma que sirva na fechadura.
Enquanto isso, a creadinha, visivelmente desapontada, justifica-se).
MARIA – Meu Deus do céu, dona Lainha! Mais depresa do que eu fui, só sendo
zepelim... O serralheiro também trabalhou um “pedaço”! Recebeu a encomenda
ontem à noite... São seis chaves. Não é brincadeira...
LAINHA – Andou tão depressa que fez uma porcaria. Mandou tudo misturado. Chaves
do arquivo, com as da gaveta! (Depois de experimentar a última chave) E nem uma
delas serve! (Arremessa-as ao chão, com força, e começa, nervosamente, a bater
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QUADRO VI
meu benzinho...
MADALENA (Rindo) – Sua mamãe está em casa?
LAINHA – Quem?
MADALENA – Sua mamãe, a vozinha infantil querendo fingir de homem não engana.
(Gesto de desencanto de Lainha) Estou falando, forçosamente com o filhinho muito
querido de Lainha, minha amiguinha de infância. Diga-lhe que é Madalena Torres de
Vasconcelos, que chegou no Rio, hoje, descobriu na lista o número de seu telefone e
lhe quer falar.
LAINHA (Num grito triunfante, do íntimo d´alma, como se revivesse) – Madalena?...
Maravilhoso! Sou eu, Lainha! (A Maria) Larga o telefone.
MARIA (Obedecendo) – Graças a Deus! (Vai continuar a arranjar as gavetas).
MADALENA – Você tem um garotinho adorável!
LAINHA – Não tenho filhos. Depois explico. Sou eu. Onde você está?
MADALENA – No Esplanada. Cheguei hoje. Mas que tem você? Aconteceu alguma
coisa?
LAINHA – Uma coisa horrorosa! Venha cá, depressa. Você caiu do céu, Madalena!
Caiu do céu! Preciso de uma amiga como você, minha querida. Vem?
MADALENA – É claro. (Olhando a lista) É rua...
LAINHA – Álvaro Ramos, 879. Você toma...
MADALENA – Tomo um táxi.
LAINHA – Maravilhoso! Fico à espera!
MADALENA – Até já, meu amor.
LAINHA – Até já, querida! (Madalena deixa o fone e a cortina do plateau 3 fecha-se
rapidamente).
LAINHA (Alegremente) – Maravilhoso! Uma amiguinha que chega do Rio. Há oito
anos que não nos vemos. Maravilhoso! Trauteia um tango e dança numa alegria
infantil).
MARIA (Alegre) – Gosto de ver a senhora alegre assim!...
LAINHA (Parando, repentinamente,de dançar e tomando ares ferozes) – Maria!
MARIA (Assustada) – Senhora!
LAINHA – Você não telefonou para a redação, Maria!
MARIA – O telefone estava...
LAINHA – Estava ocupado seu nariz! Pamonha! Coisa horrorosa! (Com pruridos de
histérica) Quantas horas são, Maria! Não seja mole! Responda! Leva duas horas!
MARIA (De dentro) – São duas e vinte!
LAINHA – Duas e vinte! Quinze minutos. Quanta coisa se pode fazer em quinze
minutos! (Corre ao telefone) Alô! Alô! (Bate desesperadamente no gancho) Alô!
Alô! (A Maria, que volta e vai continuar sua tarefa) Você, Maria... (No telefone,
novamente) 2-4268. Direito! Depressa! Levam duas horas para atender. (Espera
impaciente. Bate no gancho) Alô! Alô! (Como imitando a voz da telefonista) Está
chamando? Ao estou ouvindo o barulhinho! Há mais de três horas que pedi essa
ligação. Faça o favor. (Pausa. Ouve-se uma campainha de telefone, ao mesmo tempo
que corre a cortina do palateau n. 1).
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QUADRO VII
ARTUR – No primeiro.
LAINHA – De frente para o resto do bonde?
ARTUR – No primeiro, de frente para as costas do motorneiro.
LAINHA – Então no segundo...
ARTUR – (Com uma ponta de impaciência, que é traduzida por um grande desânimo,
maquinalmente) No segundo, Lainha...
LAINHA – No primeiro, de frente para você, ia alguém?
ARTUR – Ia.
LAINHA – Quem?
ARTUR – Um italiano velho, fumando um toscano horrível... (Chefe da oficina, metido
num macacão, enxugando as mãos molhadas, em tiras de papel de jornal, entra no
plateau 1, ao mesmo tempo que se ouve a voz de Carmelita cartomante no plateau
2).
CHEFE DA OFICINA – Dá licença?
CARMELITA (De dentro, ao mesmo tempo) – Dá licença? (Maria deixa o que está
fazendo e saia pela D. Abre para fazer Carmelita entrar).
ARTUR – Entre.
LAINHA – A quem você está mandando entrar?
ARTUR – Ao chefe da oficina que vem buscar originais, pois estou com o serviço
atrasado!
LAINHA – É? E o chefe da oficina tem voz de mulher? Ouvi perfeitamente uma mulher
dizer “Dá licença?” e você, muito meloso, responder, “Entre”.
ARTUR – Seja tudo pelo amor de Deus! (Ao chefe) Genaro, diga aí alguma coisa, faça o
favor! (Genaro ri).
CARMELITA (Entrando, acompanhada por Maria) – “Buenas tardes”?
ARTUR – O homem está convencido de que estou doido. Está rindo e não quer falar...
LAINHA – Mar você é cínico! Então ela não disse “buenas tardes”?
ARTUR – Que ela, Lainha?
LAINHA – Essa espanhola, Artur! Ouvi perfeitamente dizer: “Buenas tardes”.
CARMELITA – Buenas tardes.
LAINHA – Está dizendo outra vez: “Buenas tardes”. Negue agora!
ARTUR – Você está doida.
LAINHA – Oh! Artur... (Bate com o fone na mesa e vai falar a Maria) Este homem...
(Vê Carmelita, que lhe sorri, amavelmente).
CARMELITA – Buenas tardes... (Artur, com o fone ao ouvido, escreve com a mão
direita).
LAINHA (Tapando o fone com as mãos) – É você? Está aí há muito tempo? Foi você
que disse “buenas tardes”?
CARMELITA – Pela terceira vez.
LAINHA – E “com licença?”...
CARMELITA – Lá no corredor...
LAINHA – Ah! (No telefone) Até logo.
ARTUR – Buenas tardes. (Pequena pausa).
LAINHA – Não me beija? Está com medo de que entra alguma mulher e o surpreenda?
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QUADRO VIII
QUADRO IX
QUADRO X
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CATÃO – Pois não... (Artur senta-se e vai começar a escrever, quando Catão, depois
de enfiar a Mao em todos os bolsos, exclama) Esqueceram...
ARTUR – Doutor?
CATÃO – Esqueceram em casa de colocar os cigarros nos meus bolsos...
ARTUR – Tem um aqui. (Dá-lho).
CATÃO – Obrigado. (Procura) Quer ver que nem os fósforos puseram?
ARTUR – Tem aqui. (Dá-lhe uma caixa a recomeça a escrever. Catão acende o cigarro
e guarda a caixa. Depois coloca um pince-nez para reforçar os óculos já acavalados
no nariz e, por cima dos ombros de Jocelim, começa a ler o que o rapaz escreve).
CATÃO – Oh! Oh! “E as rodas passaram por cima dela”. Horrível, horrível!
JOCELIM – Foi um desastre horrível!
CATÃO – Não falo do desastre. Esse ela é com dois ll...
JOCELIM – Pela ortografia da Academia, não é!
CATÃO – Mas a ortografia acadêmica não tem base, menino. Não podemos desprezar a
língua manter: o latim, Ora...
JOCELIM (Muito depressa, com a velocidade com que está escrevendo) – Mas o jornal
adota a ortografia acadêmica, doutor.
CATÃO – Mas não devia adotar.
JOCELIM – Não devia, mas adota. (Rapidamente coloca a tira em que acaba de
escrever para um lado e recomeça outra lauda).
CATÃO – Espere, espere aí. (Apanha a tira).
JOCELIM – Que foi, doutor?
CATÃO – Aqui falta uma vírgula...
JOCELIM (No papel que Catão pousou na sua frente, põe a vírgula, vigorosa, num
traço enorme, que bem denuncia a sua contrariedade) – Pronto! (Joga a tira para o
lado, novamente, e dispõe-se a recomeçar o trabalho, quando o velho o interrompe
outra vez, pondo-lhe novamente a lauda diante dos olhos).
CATÃO – Espere aí, menino! Este pronome está mal colocado!
JOCELIM – Eu também estou, doutor, e não me queixo... (Tenta tirar a lauda).
CATÃO (Impedindo-o) – “E o motorneiro que viu-se obrigado a moderar a marcha do
carro”. O pronome relativo “que” atrai o reflexivo “se” que deve ser colocado antes
do verbo. O motorneiro que...
JOCELIM – “Se viu”... Obrigado... Obrigado, doutor. (Vai tirar a lauda).
CATÃO – Um momento! Em frente a uma leiteria, não, menino! O sufixo é aria. Você
diz cavalaria, infantaria, artilharia, sapataria, padaria, tem que dizer leitaria. Taria!
JOCELIM (Indignado) – Muito obrigado. Se o senhor não me ensinasse, eu nunca
“aprendaria”...
ARTUR – Pronto. Terminei.
JOCELIM – Vou acabar de escrever lá em baixo e levo o seu original para a oficina. Me
dá aqui.
CATÃO – Dê-me aqui, menino. Nunca se começa uma frase com variação pronominal.
JOCELIM – Por que?
CATÃO – Porque é regra.
JOCELIM – E por que é regra?
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QUADRO XI
(Lainha está na mesma posição. Maria, superior à mesa, presta também grande
atenção. Carmelita continua a ler as cartas).
CARMELITA – Um senhor de posição virá em seu axílio. Uma surpresa dentro de uma
carta. Desgosto. Pela porta da rua entrará uma... (Campainha)...
LAINHA (A Maria) – Vá ver quem é! (Maria sai D. A.) Continue.
CARMELITA – Pela porta da rua entrará uma mulher morena, que é muito sua amiga,
mas...
MADALENA (Entrando) – Pode-se entrar?
LAINHA (Correndo-lhe ao encontro e abraçando-a) – Madalena! (Ficam nos braços
uma da outra. Beijam-se. Maria corre para junto de Carmelita) Como vai?
MARIA – Guarde as cartas. (Ambas começam a recolher as cartas).
MADALENA – Estou muito mudada?
LAINHA – Está mais magra. Está cansada?
MADALENA – Estou viúva.
LAINHA – É?! Meus pêsames...
MADALENA – Já faz dois anos. Você está mais magra.
LAINHA (Com intenção) – Estou casada...
MADALENA – Parabéns...
LAINHA – Quem me dera ser viúva!...
MADALENA – Oh! Sempre a mesma, nervosa, exagerada, briguenta... Pois eu...
LAINHA – Quer casar-se outra vez...
MADALENA – Não encontro com quem...
LAINHA – Sim...
MADALENA – Agora estou exigente. Saberia escolher...
LAINHA – Há tantos...
MADALENA – Tantos que não queremos. Os que queremos não nos querem...
LAINHA (Sorrindo) – Paixão mal correspondida?
MADALENA – Não... Talvez despeito. Há um rapaz aqui em São Paulo diferente dos
outros...
LAINHA – Com uma estrela de ouro na testa?
MADALENA – Não... Sério.
LAINHA – Oh! Sério? Aqui em São Paulo? Acho quase impossível... Quem é esse
fenômeno?
MADALENA – Não sei. Não conheço. Sei que aqui não se pode andar pelas ruas sem
que todos os olhos masculinos nos devorem. Esse rapaz é o contrário: encontrei-o
três ou quatro vezes em exposições de pintura... Achei-o interessante. Fitei-o até com
certa audácia.
LAINHA – E ele?
MADALENA – Nem me viu...
LAINHA – E você, por isso, se apaixonou...
MADALENA Paixão, não digo; mas confesso que senti um despeitozinho, um não sei
que inexplicável... Acho que raiva. Vontade de subjugá-lo. De vingar-me.
LAINHA – Vaidosa...
CARMELITA – Bueno, hasta mañana.
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QUADRO XII
(Ouve-se o ruído de máquina de imprimir, que roda. Artur está na mesma posição,
desabado. Catão, rodeado de dicionários, grita ainda coisas sobre a impropriedade do
emprego de fracassar)
CATÃO (Logo que a cortina começa a correr, folheando ainda um dicionário) – De
maneira que não é correto dizer fracassar em português. Não tem o significado
“fracassare” italiano. Vimos que o visconde de Weldic diz que “fracassar” (língua no
céu da boca) em espanhol é “romper, hacer pedazos”. O inglês diz “grash, dinaster”,
que não é a mesma coisa. (Encontrando o que procura) Aqui está o nosso amigo
João de Deus: Fracasso, substantivo masculino, ruído de coisas que se quebram, de
prédios que se desmoronam. Desastre. Veja que coincide com a opinião abalizada de
Ainé de Pous: Fracas, grand bruit; fracture violente e bruyante. Vamos agora
consultar Candido de Figueiredo, seguier...
ARTUR – Não é preciso. Estou convencido. Nunca mais direi “fracasso”. Direi falência.
JOCELIM (Entrando, alegremente, com vários jornais na mão) – A primeira edição
está rodando. Tome. (Dá um jornal a Artur e outro a Catão) Doutor? (Indo vestir o
casaco) Vamos aproveitar a folguinha para tomar café?
ARTUR (Louco para se ver livre de Catão) – Vamos. Com licença. (Apanha o telefone
e disca).
JOCELIM – Os clichês da minha reportagem não saíram bem. Foi um fracasso! (Artur
treme no telefone).
CATÃO (Depois de um ligeiro tremor) – Menino, fracasso é galicismo, não se diz.
ARTUR – Deve-se dizer falência. A reportagem faliu. Foi uma falência.
JOCELIM – Isso é para os trouxas... (O telefone toca no tableau 2. Maria entra da E.
A.)
CATÃO – Faça o favor. Fracasso em francês, quer dizer...
MARIA – Alô!
CATÃO – Grand bruit...
ARTUR – Dá licença um momento? (Ao telefone) É a Maria?
MARIA – Sim, senhor.
LAINHA (Surgindo da D. A.) – Quem é?
MARIA – O doutor. (Ao telefone) Dona Lainha já vai falar.
LAINHA (Apanhando fone, a Madalena, que entra pela D. A.) – O hipócrita vem avisar
que vai tomar café. Sente. (Ao telefone) Alô, Lainha. (Maria sai a correr D. A.)
ARTUR – Vou tomar café.
LAINHA – Sim. Até loguinho. Você está em mangas de camisa?
ARTUR – Não. Até já. (Desliga) Vamos?
CATÃO – Ora, fracassar, portanto... (A cortina do plateau 1 fecha-se).
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QUADRO XIII
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QUADRO XIV
(Um pequenino café expresso. A D., um balcão com uma máquina, xícaras, açucareiros
e pratos com bolinhos. Um telefone que toca. Dois ou três fregueses que tomam café.
Dois numa pequena mesa a E. B., um no balcão)
LAINHA – Pode rir. E queira Deus que nunca aconteça a você o que está me sucedendo.
MADALENA – Mas afinal a história de Maria do Céu...
LAINHA – Sempre desconfiei que Artur era capaz de me trair, embora ele me jurasse a
maior fidelidade. Nas críticas do jornal, quando se tratava de mulheres, era apenas o
poeta, o artista, o escritor que falava, dizia-me ele. Queria a prova: escrevi, então, às
escondidas, um pequeno volume de versos, mandei imprimir com o pseudônimo de
Maria do Céu e lhe dediquei uma poesia chamada “Amor”, uma declaração em regra.
E tirei a prova – prova dolorosa! – Ele recebeu o livro e nada me disse. Escreveu uma
crítica como nunca o fez. Destacou a poesia “Amor”. Em suma, tenho certeza que ele
está apaixonado pela Maria do Céu, que ele me trai miseravelmente, Madalena!
MADALENA – Uma traição espiritual, apenas...
LAINHA – Espiritual, não. Se Maria do Céu lhe aparecesse em carne e osso, você ia ver
a espiritualidade... E isso dói, Madalena! Dói muito! Não imagina quanto sofro! Ele
entra por aquela porta e põe os olhos em mim, mas adivinho que ele desejaria ver
aqui, à sua espera, essa maldita Maria do Céu! Janta comigo, mas a sua vontade seria
jantar com Maria do Céu! E quando ele me beija, então? Coisa horrorosa! Tenho
vontade de esganá-lo! (Chorando copiosamente) Tenho certeza, Madalena, que ele
me beija pensando em Maria do Céu... pensando na outra... Um martírio!
MADALENA – Quer dizer que você conseguiu um meio de ter ciúmes, de você mesma.
LAINHA – De mim mesma, não. De Maria do Céu.
MADALENA – Mas criatura de Deus, Maria do Céu não é você mesma? Você não sabe
disso?
LAINHA – Sei. Mas ele não sabe. Ele pensa que é outra! (Um soluço comprido).
MADALENA – Francamente, achei isso tudo tão infantil... Somos quase da mesma
idade e penso de modo tão diverso... Quantos anos você tem?
MARIA (Entrando, antes de Lainha poder responder) – Quinhentos e três.
LAINHA – Um momento. (Como a subir os hipotéticos vinte degraus da redação,
contando baixinho. Madalena olha, intrigada).
MARIA (Amável) – Deixe, que eu subo a escada.
LAINHA – Você está cansada. Eu subo... Oito, nove... (Continua a contar em voz baixa.
Maria, maquinalmente, “sobe a escada também”. Madalena sorri, abanando a
cabeça. Enquanto isso, Jocelim diz qualquer coisa ao ouvido do dono do café, que
curva a cabeça em sinal de assentimento).
DONO DO CAFÉ (A Catão) – Então, doutor, a conferência de Londres foi um fracasso,
não?
CATÃO (Indignado) – Fracasso? Não se diz fracasso!
JOCELIM (Rindo) – A conferência de Londres foi uma falência!
CATÃO – Isso!
JOCELIM – Até logo. (Sai a correr. Abre-se a cortina do plateau n. 1).
QUADRO XV
(O mesmo recanto da redação. Artur, sentado à sua mesa de trabalho, acaba de discar
ao telefone, ao mesmo tempo que Lainha vai telefonar-lhe)
ARTUR – Alô!
LAINHA (Que está com o auscultador ao ouvido) – Alô! Quem fala?
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LAINHA (Triunfante, contente com a sua vitória) – Caiu. Afinal, caiu! Agora tenho a
certeza. Ele vai me trair! Amanhã á mesma hora, vamos telefonar-lhe. Até ao
encontro. Quero pegá-lo em sua casa, a seus pés!
MADALENA (Enquanto Artur, doutro lado, começa despreocupadamente, feliz, a
cantarolar uma caçoneta amorosa, parando a pena sobre o papel) – Mas, criatura de
Deus, você está cm ares triunfantes! Dir-se-ia que tem um grande prazer no próprio
sofrimento!
LAINHA – Ah! Você não imagina o prazer que a gente tem em ser enganada por um
bandido desses! Desmascarar o canalha! (Começa a rir, e a rir nervosamente,
enquanto Madalena e Maria a fitam admiradas, sem saber se esse riso é pranto,
pranto autêntico de histérica. Afinal socorrem-na, amparando-a. Do outro lado,
Artur canta. No café, Catão escreve).
CATÃO – Fracassar, tanto no latim, como no francês, no italiano e no espanhol...
significa...
SEGUNDO ATO
QUADRO XVI
1933
JUNHO
3
SEXTA-FEIRA
QUADRO XVII
(Um recanto da biblioteca da casa do conspícuo dr. Catão Carneiro da Cunha. Uma
secretaria. Estantes, móveis antigos. Na parede, ao fundo, entre inúmeros diplomas de
sociedades beneficentes, emoldurados, o seu retrato a óleo. Há uma única porta, à E. A.
Catão está escrevendo na secretaria, onde há vários livros abertos, que ele consulta
repetidas vezes. Tem os pés metidos numas chinelas velhas e um gorro de borda
dourada à cabeça. Veste fraque, como sempre. Pequena pausa. Ouve-se a voz de Artur,
do lado de fora, à esquerda).
ARTUR – Dá licença?
CATÃO (Sem levantar os olhos e a pena do papel) – Tenha a bondade de entrar. (A
porta abre-se; Artur entra. Tem o aspecto desolado de um vencido. Está pálido,
olheiras fundas, roupas mal cuidada, sapatos por engraxar, barba por fazer).
ARTUR – Com licença.
CATÃO (Sem levantar os olhos, escrevendo sempre) – Deixe-me acabar de escrever
este período. É o meu manifesto. Os amigos querem me fazer deputado à
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Constituinte. Serei uma voz da razão da câmara. Sente-se! (Artur procura uma
cadeira para sentar-se. Elas são poucas e estão cheias de livros abertos. Pequena
pausa. Artur passeia com ares impaciente) Não ande assim, menino; sente-se! (Artur
corre novamente os olhos pelas cadeiras e permanece em pé. Outra pausa. Catão
termina de escrever. Volta-se na cadeira) Por que não se assentou?
ARTUR – As cadeiras estão ocupadas.
CATÃO – Oh! Senhor!... (Menção de levantar-se).
ARTUR – Não se incomode. (Apanhando um livro de uma das cadeiras) Posso tirar?
CATÃO – É claro. (Artur vai colocá-lo em outra cadeira) Não feche. Não misture com
os outros! Está tudo marcadinho para a exposição das minhas ideias no manifesto que
estou escrevendo... (Artur, como todo o cuidado, torna a colocar o livro na cadeira
de onde o tirou) Sente-se.
ARTUR – Obrigado. Estou bem.
CATÃO – “O que é de gosto, regala a vida...”
ARTUR – Recebi seu recado.
CATÃO – Ah! Sim... O negócio está arranjado. Entrou-me um dinheirinho – juros da
apólice da Dívida Pública – e posso-lhe emprestar os vinte contos.
ARTUR – Oh, doutor, muito obrigado...
CATÃO – Não há de que! O amigo verdadeiro reconhece-se na adversidade. “Amicus
certus in re incerta cernitur”. Eu sou um amigo certo. Já o fui de seu pai; ainda o sou
de seu tio... Empresto-lhe os vinte contos. Para garantia, basta-me a sua palavra...
ARTUR – Obrigado, doutor...
CATÃO – ... e a hipoteca de sua casa.
ARTUR (Sorrindo com uma pontinha de ironia) – Minha casa vale cem contos...
CATÃO – E sua palavra vale mais ainda! É uma questão apenas, de formalidades.
(Artur faz menção de sentar-se) Não sente em cima de João de Deus.
ARTUR – Está bem, dr. E os juros?
CATÃO – Ah, isso entre amigos não se discute, menino.
ARTUR – Obrigado, doutor...
CATÃO – Você pagar-me-á, apenas, os juros estipulados pela lei: dez per cento.
ARTUR – Muito bem. Dez por cento.
CATÃO – Dez por cento, não, menino!
ARTUR – Muito bem. Dez por cento.
CATÃO – Dez por cento, não, menino!
ARTUR – O senhor disse.
CATÃO – Eu não seria capaz de dizer semelhante coisa!
ARTUR – Então ouvi mal, doutor. Quanto, então?
CATÃO – Dez per cento.
ARTUR – É isso. Dez por cento!
CATÃO – Não! Não é dez por cento!
ARTUR – Perdão, doutor...
CATÃO – Dez por cento... Per... Per... Dez por cento é asneira. Não se deve dizer
porcentagem. É errado. Deve-se dizer percentagem. Rui Barbosa e eu nunca
escrevemos porcentagem. Candido de Figueiredo manda dizer percentagem. Vamos
consultar os dicionários e acabar com a discussão? (Ameaça abrir livros).
ARTUR – Não é preciso, doutor. Basta-me a sua autoridade, que respeito
profundamente. Estou de acordo. Os juros da lei. Dez per cento...
CATÃO – Isso... Apenas dez per cento.
ARTUR – Obrigado, doutor.
CATÃO – E uma comissão de cinco contos por fora...
ARTUR – Comissão por fora?
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um escândalo...
CATÃO (Sorrindo, incrédulo) – Carta anônima... Mas quem a escreveu teria uma base...
ARTUR – Que base? Um caluniador, um bandido que se eu conseguisse descobrir... Em
três meses tem me feito coisas! Estou passando por um Lovelace. Os amigos casados
fogem de mim como se eu fora um “Lampeão”. Encontro-me com uma senhora na
rua ou no bonde, cumprimento, apenas, no dia seguinte o marido recebe uma carta
anônima! É fantástico!
CATÃO – E suspeita de alguém?
ARTUR – Alguém me acompanha, é claro. E alguém que não conheço, porque o
procuro. Ando pela rua assombrado, como um condenado fugido da polícia.
Desconfio de tudo e de todos. Não vejo ninguém. Só a minha sombra. Ás vezes
chego a pensar que tudo isso é obra da própria Lainha!
CATÃO – Oh! É pecado levantar falsos testemunhos.
ARTUR –Mas ela está em casa. A sua perseguição é pelo telefone... Não pode
acompanhar-me. Já pensei que fosse despeito de outra...
CATÃO – Está vendo? Depois, você diz que sua senhora não tem razão... Há outra.
ARTUR – Outra que não conheço. Uma poetisa, que me dedicou uma poesia. Maria do
Céu, a quem uma vez caí na asneira de dizer um galanteio pelo telefone. Depois
disso, persegue-me também, com telefonadas...
CATÃO – Sua senhora sabe disso?
ARTUR – Deus me livre! Já pensei que fosse, por despeito, a tal Maria do Céu, a quem
não conheço. Disse-lhe um galanteio, pelo telefone, confesso, mas depois me
arrependi. Ela insiste num encontro. A princípio fui amável; depois, categórico;
ultimamente, brutal... E a bandida insiste! Mas essa também não pode ser. Também
descobre todos os telefones dos lugares que frequento em suma, perdi o emprego,
não tenho amigos...
CATÃO – Amigos casados...
ARTUR – Nem solteiros. Os solteiros fogem de mim também, mo medo de
interrogatórios que sofrem quando vão a minha casa, ás vezes, a chamado de Lainha.
Ela os interrogada como Torquemada aos ímpios, no tempo da Inquisição.
CATÃO – Basta! Basta! Desgosta-me essa atitude. Você devia levantar as mãos para o
céu! É raro uma mulher assim...
ARTUR – Raríssimo...
CATÃO – Queria que sua senhora fosse igual a essas bonecas de hoje, fúteis e
desamorosas? O que ela faz é para o seu bem. Você é um homem feliz, menino.
ARTUR – Feliz? Não! Amor? Mas o senhor acha então que o amor é este inferno em
que vivo? Amar é o que me impede de progredir na vida? Que me faz fracassar?
CATÃO – Fracassa, não menino! Falir...
ARTUR – Como queira, doutor...
CATÃO – Como queira, não. Os franceses...
ARTUR – Sei, doutor. Foi engano meu.
CATÃO – Ah!
ARTUR – E tudo sem razão. Sou marido fiel como um cão de fila...
CATÃO – Isso dizem todos... Vamos até lá. Convecê-la-ei a assinar a hipoteca. Ela
cederá. Tudo o que faz é pelo grande amor que lhe tem “Omnia vincit amor, et nos
cedimus amori”. Vamos entrar. Enquanto calço as botas, explicar-lhe-ei porque se
diz percentagem e não porcentagem. Vamos levar uns dicionários. (Procura-os).
ARTUR (Levantando- se) – Sinto muito não poder ouvi-lo, doutor. Vou fazer a barba.
Voltarei para vir buscá-lo.
CATÃO – Está bem. Então, no caminho, conversaremos sobre o assunto. (Trava-lhe o
braço e vai levando-o) Nunca mais diga porcentagem, nem por cento. É percentagem
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e per cento. Rui Barbosa e eu nunca escrevemos porcentagem ou por cento. Candido
de Figueiredo aconselha que... (e a cortina se fecha, enquanto se abre a do plateau n.
2).
LAINHA (Ditando uma carta à criada, que está sentada à secretária) – Assim, vírgula,
meu caro senhor, vírgula, pode estar certo...
MARIA (Escrevendo) – Pode estar certo... (A Lainha) Certo é com s?
LAINHA – Com s é seu nariz! Que coisa horrorosa!
MARIA – É com c cedilhado?
LAINHA – Oh! Maria!
MARIA – Ah! Desculpe. Não sei onde estou com a cabeça. É com x. (Vai escrever).
LAINHA – Oh! Criatura! É com c, sem cedilha.
MARIA – Ah! (Terminando de escrever) cer... to...
LAINHA (Relendo o período para apanhar-lhe o fio) – Assim, meu caro senhor, pode
estar certo... (Continuando a ditar) que o negócio...
MARIA – ... de que... o... nego... (Perguntando, novamente) Negócio é com dois ss?
LAINHA – Que coisa horrorosa!
MARIA – Ah! Desculpe. Pergunto cada asneira! É com um s só! (Vai escrever).
LAINHA – É com c, Maria! Com c!
MARIA (Escrevendo) -... cio... que o negócio...
LAINHA – “Da edição do tal romance”... Edição com c cedilhado e romance com c sem
cedilha...
MARIA – do... tal... romance...
LAINHA – Não passa de um pretexto... Passa com dois SS; pretexto, pela fonética, com
x.
MARIA – Pretexto...
LAINHA – Para o dr. Artur freqüentar a sua casa e, vígula...
MARIA – E, vírgula...
LAINHA – Como é seu costume, vírgula.
MARIA – seu... costume, vírgula...
LAINHA – fazer declarações com um c só cedilhado...
MARIA – declarações com um c só cedilhado...
LAINHA – A sua esposa, dona Helena, com h e com um l só...
MARIA – ... Dona Helena, com h e com um l só...
LAINHA – Ponto. Quem o avisa, vírgula...
MARIA – ... avisa, vírgula...
LAINHA– ... conhece as intenções com um c só...
MARIA – ... intenções com um c só...
LAINHA – ... desse sátiro...
MARIA (Rápida) – Com ipsilóne.
LAINHA – Sem ipsilóne!
MARIA (Terminando de escrever) – Desse... sátiro..., sem ipsilóne.
LAINHA – Tome precaução, com um c só.
MARIA – ... tome... precaução... com um c só.
LAINHA – “Argus” com A grande.
MARIA – Argus com A grande. Ponto.
LAINHA – Muito bem. Um envelope, depressa! (Maria abre uma das gavetas da
secretária e procura um envelope, enquanto a nossa heroína relê a carta
rapidamente) Meu caro senhor, pode estar certo de que o negócio da edição do tal
romance não passa de um pretexto para o dr. Artur frequentar a sua casa, e, como é
seu costume, fazer declarações de amor a sua esposa, dona Helena. Quem o avisa,
conhece as intenções desse sátiro. Tome precaução. Argus. Estupendo, Maria!
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QUADRO XIX
dedo no disco, ouve-se a campainha da casa de Lainha a tocar, ao mesmo tempo que
se abre a cortina do plateau n. 4 .)
QUADRO XX
QUADRO XXI
QUADRO XXII
MADALENA – Então é melhor pegar um revólver e matá-lo de uma vez... Preso por ter
cão e preso por não ter...
LAINHA – E daí, quem sabe? Talvez não o mate nem me suicide. Talvez o despreze,
me desquite, me veja livre de um monstro, que me tortura desse modo...
MADALENA (Chegando-se para a amiga, a rir) – Você precisa consultar um
especialista...
LAINHA – Heim?
MADALENA – Especialista de moléstias nervosas...
LAINHA – Você, daqui a pouco, exclamará também, como ele: “Histérica” É isso que
quer dizer?
MADALENA (Sinceramente) – Mas, Lainha. Fui casada com um homem também
ciumento, não tanto como você, mas o bastante para me tornar infeliz durante a nossa
vida conjugal. Você não imagina como isso é horrível! Como um homem ou uma
mulher se diminui à vista do outro cônjuge e como torna em verdadeiro martírio os
dias que deviam ser de felicidade. Tenha confiança em seu marido. Distraia o
espírito. Seja boa companheira. Passeie. Viaje... (Lainha cai numa cadeira,
chorando) Que é isso? Temos manhas? (Acaricia-a) Sua boba...
LAINHA (Soluçando como uma criança) – Você não é minha amiga...
MADALENA (Rindo) – Coitada da nenezinha... (Séria) Deixe de ser criança, Lainha...
Não lhe dei provas de amizade? Já não a ajudei a representar essa farça, nem mesmo
por que? E acha, agora, que devo contribuir para que sua vida continue um inferno...
A sua e a dele?...
LAINHA (Levantando a cabeça e parando subitamente de chorar, quase
sentenciosamente) – Nossa vida não tem mais concerto, Madalena!
MADALENA – Por que?
LAINHA (Passeando de um lado para o outro) – Porque... porque não se tem. Já
alguém disse que o homem é a metade de uma laranja. A mulher é a outra. Só são
felizes os casais que formam uma laranja perfeita. Quando as duas metades são da
mesma laranja...
MADALENA – E seu marido não é a metade de sua laranja?...
LAINHA (Categórica) – Não. Não é. Acho mesmo que ele nem é laranja: é limão,
limão galego, azedo, muito azedo. Essa é a verdade. E é por isso que vivemos neste
inferno! (Filosofando) E talvez a razão esteja comigo e com ele, ao lado de ambos.
Talvez a metade da minha laranja, como a metade do limão que devia pertencer-lhe,
sofram, também, como nós...
MADALENA – Ah! Isso é outro caso. Se você, convencida de uma verdade, procura
um pretexto, apenas, para ser metade de uma laranja, que anseia por encontrar a outra
metade, dando liberdade à metade de um limão torturando, à procura, também, de seu
pedaço...
LAINHA – E se fosse assim? Se eu quisesse recuperar a felicidade que não encontrei no
casamento com Artur?
MADALENA – Nesse caso estaria às suas ordens. Acharia, apenas, que os meios
deviam ser outros. Franqueza. Nada de artifícios. Nesse ponto, sou radicalmente
moderna. (Começa a escurecer.)
LAINHA – Mas o ambiente em que vivemos não o é. Posso, então, contar com você?
MADALENA – Tudo que disse é sincero?
LAINHA – Pela luz que nos alumia!
MADALENA (Rindo) – Quem sabe... E que tenho a fazer então?
LAINHA – Você sabe melhor do que eu! Insinue-se, seduza-o...
MADALENA – E se ele resistir? (Sorrindo) Sou mulher, Lainha, tenho a minha
dosezinha de vaidade... Ele, ao menos, é bonito?
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MADALENA – Heim?
LAINHA – Até ele cair de uma vez. Então você... você... deixa tombar o copinho do
cock-tail no chão. Será o sinal para a minha entrada... E então...
ARTUR (Do lado de fora) – Pode entrar, doutor.
LAINHA (Baixando a voz) – Ele...
CATÃO (Fora) – Mas está convencido de que o certo é percentagem e não
porcentagem?
ARTUR (Ainda de dentro) – Dê-me seu guarda-chuva e seu chapéu.
CATÃO – Oh! Muito obrigado.
LAINHA – Beba outro.
MADALENA (Como querendo recusar) – Lainha!...
LAINHA – Só mais um. (Ela bebe. Lainha corre para o fundo. Espia. volta) Sente-se.
(Leva-a a sentar-se) Assim. (Endireita-lhe o vestido) Sorria. Isso! (Levanta-lhe um
pouco a saia).
MADALENA – Que é isso?
LAINHA – Ele é doido por pernas bonitas...
MADALENA – Lisonjeira...
ARTUR (de dentro) – Lainha?
LAINHA – Uh! Uh!
ARTUR – O doutor Catão está aqui.
LAINHA (Rápida, a Madalena) – Só quero ver a cara do miserável ao ser apresentado...
(Correndo ao fundo) Faça o favor de entrar.
ARTUR (De dentro) – Faça o favor.
CATÃO (Idem) – Não, senhor. Faça o favor.
ARTUR – Tenha paciência!
CATÃO – Oh! Pelo amor de Deus! (Enquanto isso, Madalena esvazia o segundo
coquetel).
LAINHA (Na porta da D. A.) – Assim, nenhum dos dois entra. Faça o favor, doutro
Catão.
CATÃO – Oh! Muito obrigado! (Entra) Então, como vai essa flor?
LAINHA – Bem. Entre. Boa tarde, Artur.
ARTUR (Entrando) – Boa tarde. (Madalena, ao ver Artur, tem um imperceptível “oh!”
de admiração).
LAINHA – Quero apresentar-lhe a uma amiga dês tempos do colégio, do Rio. Está aqui
há meses e só hoje conseguiu descobrir-me.
ARTUR (Amável) – Oh! Muito prazer.
LAINHA – Meu marido.
MADALENA (Estendendo-lhe a mão) – Muito prazer.
LAINHA – O dr. Catão da cunha, um velho amigo nosso, político, professor,
jornalista...
CATÃO (Numa curvatura do tempo do Império, a Madalena, que se levanta e
corresponde ao cumprimento) – Excelentíssima...
LAINHA (Completando a apresentação) – Madalena Torres de Vasconcelos...
MADALENA – Muito prazer.
LAINHA – Sente-se.
CATÃO – Minha demora é pouca. Vim, especialmente, para dizer-lhe duas palavras...
LAINHA – Pois não... Estava doida para receber sua visita. Precisava de alguém que
tivesse o senso da música como o senhor. Sabe que estou estudando Liszt? E quero a
sua opinião...
CATÃO – Com o maior prazer...
LAINHA – Então, vamos passar para a outra sala... Entre. (Aponta a D. A.)
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QUADRO XXIII
TEMPO – Um dia... (Vira uma página do calendário) Dois... três... quatro... cinco...
(Volta cinco páginas de uma só vez) 10... 20... 25... 28 de junho de 1933. (Fecha-se a
cortina do tableau 5; abre-se ao mesmo tempo a do n. 2).
QUADRO XXIV
(Cabina do “Cruzeiro do Sul”. Ao fundo, um leito. A E., uma janela. A E., uma janela.
A D., uma porta. Madalena, em pijama está recostada no leito, lendo uma revista.
Ouve-se um ligeiro ruído de trem em marcha e sente-se que a cabine balança,
levemente. Batem à porta).
QUADRO XXV
QUADRO XXVI
(Biblioteca da casa do Sr. Catão. Ele, com suas chinelas, seu fraque e seu gorro de
borla, à luz de uma pantalha verde, lê a um amigo, de mentalidade igual à sua. E
também barbado e de fraque, um trecho do seu manifesto político).
CATÃO (Como continuando a leitura de uma peça longa...) – ... assim, terão em mim,
na câmara, uma voz altaneira e vigorosa que se alevantará, sem desfalecimento, em
defesa da sociedade dos nossos ancestrais e contra os maus patriotas que pretendem
conspurcar a soberania da Pátria com ideias estrangeiras, em detrimento da honra do
nosso povo, da dignidade da nossa família, da felicidade da nossa gente.
O OUVINTE – Muito bem! (Catão, ao chegar ao fim da página, coloca-a sobre a
secretária; enquanto isso...)
MADALENA (Arremessando o cigarro ao chão, volta-se no leito e sufoca o seu
desespero na almofada, exclamando, em pranto) – Não é possível! Não é possível!
(Soluça).
CATÃO (Continuando) – Assim, serei intransigente na defesa da indissolubilidade do
casamento à vínculo, sentinela avançada das tradições da família brasileira. E, meus
senhores, enquanto tiver forças, a minha voz será, na câmara...
(Não se ouvirá o resto, porque o pano, num justo movimento de revolta, cairá
pseudomente, abafando o resto do discurso).
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TERCEIRO ATO
QUADRO XXVII
QUADRO XVIII
(Uma saleta de hotel modesto, no Rio, contigua ao quarto de dormir. Uma mesa, duas
cadeiras. Ao fundo, uma janela por onde entra um resto de sol carioca. Artur, que se
acha aí hospedado, junto à mesa, onde há um serviço completo de café. É de manhã.
Ele morde um pedaço de pão e, quando vai levar a xícara à boca, batem à porta. Ele
assusta-se).
VOZ DO CRIADO – Doutor, está aqui uma senho...
LAINHA – Não precisa anunciar. Já disse que sou a senhora dele. (Entra. Artur larga a
xícara na bandeja e levanta-se, pálido. Lainha passa a chave na porta, rapidamente
e derrama sobre o marido um olhar de Madalena arrependida. Há uma pequena
pausa. Afinal ela, dentro sempre de uma propensão ao exagero, exclama
melodramaticamente) Artur!... (E, ato contínuo, joga-se de joelhos, a seus pés,
abraça-se às suas pernas e chora copiosamente. Artur permanece imóvel. Ela soluça
até cansar. Depois fica abraçada às pernas de sua vítima por alguns instantes...
Afinal Artur procura, delicadamente, desvencilhar-se da carpideira. Ela então
recomeça a soluçar, apertando com força as pernas do marido. Por duas ou três
vezes mais, para de chorar e ele trata de libertar-se. Os soluços recomeçam e os seus
braços se apertam com mais força. Afinal)
ARTUR (fala) – Faça o favor, Lainha...
LAINHA – Perdoe-me, Artur! Perdoe-me!
ARTUR (Apoiando-se à mesa) – Você me derruba.
LAINHA – Então diga que me perdoa!
ARTUR – Mas, Lainha...
LAINHA - Diga que me perdoa!
ARTUR (Para ver-se livre) – Perdoo!
LAINHA – Não quero assim. Quero que me perdoes de verdade, de coração, do fundo
da alma. Quero que esse perdão saia espontaneamente de teus lábios como a primeira
vez que me disseste: “Amo-te”. (Chorando desesperadamente) Tu tens razão, Artur!
Fiz de tua vida um martírio! Reconheço toda a minha culpa e aqui estou, humilhada,
a teus pés. Tenho sido uma louca, porque te amo muito, muito! Mas daqui por diante
serei outra mulher! Perdoas-me?
ARTUR – Não posso, Lainha...
LAINHA (Largando as pernas do marido, assentando-se sobre as suas, num gesto de
completo desânimo) – Não gostas mais de mim?...
ARTUR (Conseguindo, enfim, sentar-se) – É que não é a primeira vez que me
reconheces a tua culpa...
LAINHA – Mas desta vez eu arrependida!
ARTUR – Das outras vezes também...
LAINHA – Mas prometo...
ARTUR (Interrompendo-a) – Das outras vezes também prometestes!
LAINHA – Mas juro!
ARTUR – Também já tens jurado tanto...
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LAINHA – Mas nunca com esta sinceridade, Artur!... (Pondo os dedos em cruz, com
inflexão de São Tomé) Juro por esta luz, por Deus que está no céu, por tudo que é
mais sagrado, como te farei o mais feliz dos homens, como nunca mais duvidarei de
ti, jamais terei um gesto de revolta! Serei a mais submissa de todas as mulheres!
Perdoa-me?
ARTUR (Emocionando-se quase vencido) – Não é possível, Lainha...
LAINHA (Levantando-se, rápida) – Ah! É assim? É assim? (Tira da carteira um
pequeno revólver, que leva ao ouvido).
ARTUR – Lainha!
LAINHA – Perdoa-me?
ARTUR (A contra gosto) – Perdoo-te.
LAINHA (Sempre com o revólver no ouvido) – Espontaneamente? Sem
constrangimento?
ARTUR – Espontaneamente... sem constrangimento...
LAINHA – Jura?
ARTUR – Juro...
LAINHA (Larga o revólver e a bolsa sobre uma cadeira, e, como se nada houvesse
acontecido, risonha e feliz, atira-se aos braços do marido, toma-lhe a cabeça entre
aos mãos e beija-lhe o cabelo, os olhos e por fim a boca , repetindo entre beijos) –
Meu Artur!... Meu Artur!... Meu Artur!... Por que você é tão mau para a sua
mulherzinha? Por que? Por que? (Cai numa cadeira e desata em pranto).
ARTUR (Comovido) – Vamos, Lainha... (Toma-lhe as mãos, que estão sobre o rosto)
Não chores!
LAINHA (Beijando-lhe as mãos) – Eu te amo tanto!... (Encosta o rosto em uma das
mãos do marido e soluça. Silêncio. De repente ela sorri e pergunta, cheia de
lágrimas)Artur?... Não será possível dar um jeitinho?
ARTUR – Que jeitinho?
LAINHA – Eu não posso viver sem você, Artur!... Não seria possível a sua volta para
São Paulo, para a nossa casinha, onde éramos tão felizes?
ARTUR – Felizes?
LAINHA (Levantando-se e enlaçando-o) Mas agora seremos. Juro! Terei a maior
confiança em você. Não o mandarei seguir uma única vez. Você entrará e sairá a hora
que quiser, trabalhará sossegado, escreverá críticas ou romances, terá a evidência
que merece. Nada de indagações ou inquirições quando chegar em casa. Nada de
saber onde você esteve, e que fez ou que não fez. Nem telefone terei em casa. E
seremos felizes como dois pombinhos. Começaremos a vida de novo. Faremos de
conta que nos casamos hoje... Quer... Quer?
ARTUR – Se isso tudo fosse verdade...
LAINHA (Animada) – É. Juro!
ARTUR – Não, Lainha. Quando não havia um só motivo que justificasse suas cenas,
você me martirizava tanto...
LAINHA – E agora há?
ARTUR – Não há, mas...
LAINHA – Pode dizer tudo que há. Diga!
ARTUR – Não há nada. vocÊ sabe tudo o que houve e me vê aqui sozinho, num quarto
de hotel...
LAINHA (Incrédula) – Mas não houve nada mesmo?
ARTUR – Vai começar?
LAINHA (Sorrindo) – Não. Perguntei apenas para dar uma prova de como estou
mudada. Se você quisesse contar-me alguma coisa, não o deixaria. Nada tenho com o
que passou. Casamo-nos hoje. Conhecemo-nos agora... (Encosta-lhe a cabeça no
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QUADRO XXIX
(Abre-se o tableau n. 4 e o relógio, cujo ponteiro está nas dez horas da manhã, é
passado, pelo Tempo, para as 15 horas. Ouvem-se as 3 badaladas. Terminadas essas,
no plateau n. 1 ouve-se uma súplica de Madalena, ainda com a cortina fechada)
MADALENA – Mas não compreendo o que você quer. Já lhe contei tudo, já lhe disse
tudo. Nada mais tenho a dizer... (Abre-se, então, a cortina do tableau n.1).
QUADRO XXX
(Um gabinete da casa de Madalena, no Rio. Duas poltronas, um abajur. Lainha está
sentada de fronte da amiga, encarando-a com raiva e batendo com o tacão do sapato
no assoalho)
namorados platônicos...
LAINHA – Em que confessa que o ama. (Madalena vai falar) Já sei: “uma
correspondência literária...” Está bem. Dê-me as cartas dele.
MADALENA – Mas, Lainha, não recebi...
LAINHA (Alterando a voz) – Dê-me as ou entrego estas cartas a seu pai, já!
MADALENA – Pelo amor de Deus! (Abre a gaveta de um móvel e entrega um maço de
cartas à... inimiga) Está aqui. E agora...?
LAINHA (Triunfante) – Agora... você nem queira saber o que vou fazer com estas
cartas...
MADALENA (Atônita) – Lainha!
LAINHA (As mãos crispadas, a boca espumando, o rosto congestionado) – Enfim,
tenho aqui as provas!
MADALENA – Mas você não disse que haviam feito as pazes, que embarcavam hoje
para São Paulo?
LAINHA – Disse. Fiz as pazes. Embarcamos hoje para São Paulo, mas não
humildemente como ele pretende. Não! Ele irá comigo, mas para ser como era, como
quero que seja, meu, submisso, humilde, dócil, inferior, vivendo exclusivamente para
mim, não pensando senão em mim! E se não quiser sujeitar-se, então tenho aqui as
provas para um processo ruidoso de adultério, dentro das leis do nosso código penal.
Escândalo. Jornais. As suas cartas e as dele... E agora só quero ver a cara do
miserável. Deixou-me no hotel para ir despedir-se do jornal e buscar as passagens.
Quando voltar, mostrar-lhe-ei as cartas, e...
MADALENA (Aterrorizada) – Mas, Lainha, você não disse que veio buscar-lo porque
não podia viver sem ele?
LAINHA – Vim. Julguei que ele não me queria mais e senti um desespero que não se
pode descrever. Mas ele gosta de mim, o miserável. Gosta mais de mim do que de
você. Tenho a certeza! E então... fiquei gostando muito menos dele. Renasci. Há de
voltar como eu quero e não como ele quer. Senão, que não volte... Tenho muito quem
me queira! Não sou como você e ele julgaram, um trapo que se despreza. Até um dia,
Madalena...
MADALENA – Lainha, não publique essas cartas, não se sirva delas para desmoralizar-
me. Será matar-me. Peço-lhe!
LAINHA (saindo) – Isso depende dele... Até um dia, “minha amiga”... E reze para que
eu não seja obrigada a tirar-lhe a máscara de santa, para bem da sociedade que você,
tão vilmente, enodoa! Até um dia! (Sai. Madalena cai chorando na poltrona.
Cortina).
QUADRO XXXI
JOCELIM – Desculpe.
LAINHA (De dentro, como uma fúria) – Maria, Maria? (Entra vê Jocelim e Catão
dirige-se a eles sem dar tempo de responderem) Ah! Bom dia, doutor. Foi bom
encontrá-lo, Jocelim. Vim da redação, onde fui procurá-lo. (Chama) Maria? Que
coisa horrorosa! (A Jocelim) Magnífico tudo o que publicou! Quer mais notas, não é?
Volte depois.
MARIA – Senhora?
LAINHA (Entregando-lhe o chapéu e a bolsa) – Guarde isso lá dentro. Não houve
novidade? Alguém me telefonou? Responda! Que Diabo! Coisa horrorosa! Vá
guardar tudo, depressa! Vá! Não me olhe com essa cara de palerma! (Maria sai, para
a E. A.) Volte depois e, conforme for, terá outros detalhes do processo.
CATÃO (Rápido) – Minúcias...
LAINHA (Continuando a falar como uma máquina) – Estou contente como um rato!
Parece que vencemos. Sim, conforme o senhor me disse (A Catão), o processo criava
mais o escândalo que outra coisa e pelo escândalo venceríamos. Li no “Estado de S.
Paulo”, na lista de passageiros. Ele vem aí. Já deve ter chegado. Vitória! (Atira-se,
enfim, numa poltrona, estica ambas as pernas, batendo palma).
JOCELIM – E o Artur?
LAINHA – O Artur? Veio. Volta. Venceu-o o medo do artigo 1, parágrafo 1º, capítulo
4º, título 8º do nosso código penal...
CATÃO (Num fôlego) – ... aprovado pelo decreto número 847, 11 de outubro de 1890.
JOCELIM (Completamente tonto) – Que “giringonça” desgraçada!...
LAINHA – Ah! Ele estava brincando comigo! Julgou que não seria capaz!
CATÃO (Repetindo o lugar comum) – “Para grandes males, grandes remédios!”
LAINHA (A Jocelim) – E agora, se tem que fazer, vá e volte daqui a pouquinho...
JOCELIM – Como amigo, o meu desejo é que haja acordo e paz. Como repórter a
minha torcida é contra...
LAINHA – Mau!
JOCELIM – É o dever profissional. No caso, as pazes, para mim, serão um fracasso
(Catão ruge. Jocelim, saindo, a correr) Vou-me embora, senão o doutor Catão me
come vivo. “Ciáo”.
LAINHA – Até já.
CATÃO – Ignorante!
LAINHA – e AGORA, DOUTOR?
CATÃO – Agora é aguardar os acontecimentos com o ânimo sereno.
LAINHA – Mas o senhor julga...
CATÃO – Falar-lhe-ei em nome da linha de conduta irreprochável que sempre mantive
em todos os atos da vida pública e particular. Far-lhe-ei sentir que se afastou do
caminho da dignidade e que o único meio de fazê-lo voltar à trilha abandonada era o
que eu, como seu amigo... (Campainha).
LAINHA (Num frenesi, tapando histericamente os ouvidos) – Ele!... (Pequena pausa).
MARIA (Entrando) – Tocaram. (Menção de ir abrir).
LAINHA (Receosa) – Espere!...
CATÃO – Vá abrir... (Maria sai).
LAINHA – E agora?...
CATÃO – Sente-se e espere calmamente... Ele pedir-lhe-á perdão. (Sentam-se ambos.
Esperam com ares de aparente indiferença. Artur surge à porta. Está transfigurado.
Sente-se que uma ideia fixa o conduz. Fisionomia dura. Mãos nos bolsos. Entra.
Para no fundo da sala e contempla com fria ferocidade os dois patifes. Maria,
medrosa, passa-lhe pela retaguarda, nas pontas dos pés e sai pela E. Catão, sem
saber o que espera, confia a barba, sorrindo. Prolonga-se o silêncio. O tartufo,
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então, resolve voltar-se, sempre sorrindo, certo de que vai deparar com sua vítima
cheio de humildade. Ao encarar Artur, tem uma transição brusca. Tem medo e pode
murmurar, apenas, com voz sumida) Artur... (Artur não responde. Fulmina-o com
um olhar. Catão continua esforçando-se para parecer calmo e impor a sua
autoridade) Finalmente, vejo-o de novo em sua casa, de onde nunca deveria ter
saído. Quero explicar, porque, como amigo, agi da forma que você conhece...
Primeiramente, peça perdão à sua esposa... (Lainha volta-se ligeira).
ARTUR (Com uma calma terrível, a que se mistura uma ironia glacial) – Meus
amigos...
CATÃO (Levantando-se) – Ah! Reconhece a nobreza do nosso gesto...
ARTUR – Meus amigos, reconheço todo o bem que me fizeram: ao senhor, a nobreza
do amigo que age em nome da lei e da moral; a você, a constância de um amor capaz
de tudo. Já pedi perdão. Agora chegou a vez de ambos o pedirem.
CATÃO – Pedir perdão?
LAINHA – A você?
ARTUR (Friamente) – A Deus...
CATÃO (Amedrontado) – Como?
LAINHA – Artur!
ARTUR – Vocês fizeram de mim um cadáver. Mataram, com um escândalo, uma pobre
mulher apegada aos preconceitos sociais. Agora é justo que morram. (Saca um
revólver)
LAINHA (Apavorada) – Doutor Catão. (Procura a proteção do tartufo).
CATÃO – Um momento. Peço licença para retirar-me. Não quero meter-me em briga de
marido e mulher...
ARTUR (Notando que eles procuram a porta) – Podem sair. Fechei a porta a chave.
(Lainha e Catão dão um grito e precipitam-se para a porta) Agora é tarde! (Vai-lhes
ao encalço, de revólver em punho. Maria surge, apavorada, as mãos postas, a
evocar os santos protetores).
MARIA – Minha Nossa Senhora! Meu Senhor Bom Jesus de Pirapora! (Ouve-se uma
exclamação de Catão).
CATÃO – Pelo amor de Deus! (Ouve-se um tiro. A cortina fecha-se, ao mesmo tempo
se abre a do plateau n. 1).
QUADRO XXXII
(O mesmo transparente luminoso com que se abre a peça. Vê-se uma sombra
cambaleante (contra a figura de Catão), que entra ferida, senta-se na cadeira junto a
uma secretária e cai, de borco, sobre a mesa. Outro tiro. Um grito de mulher, e Lainha,
ferida, vem cair sobre um divã. Artur surge à porta)
ARTUR – Miseráveis! (E desfecha um tiro no ouvido. Fecha-se a cortina do tableau 1,
ao mesmo tempo que se abre a do n. 3).
QUADRO XXXIII
(O cemitério. Catão, as pernas cruzadas, o charuto em meio, ladeado ainda por Pedro
e Belzebú, muito interessados na narrativa, continua a falar)
CATÃO – ... e depois disso, meus amigos, de toda essa tragédia, me trouxeram para
aqui e me jogaram neste buraco, de mãos amarradas e sem cigarros... Não sei quem foi
que disse que não basta saber viver; é preciso, também, saber morrer. Acho que eu
soube morrer. Morri como um apóstolo da moral e da lei. (Belzebú e Pedro, que
levaram a mão à boca para não rir, não podem mais conter-se. Catão admirado) Mas o
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QUADRO XXXIV
O TEMPO (Folheando o calendário com muita rapidez) – E os anos rolaram, uns após
outros... (Fecha-se a cortina do tableau 5 e abre-se a do n. 1).
QUADRO XXXV
(Um recanto do céu. Uma pequena mesa azul e duas banquetas da mesma cor. Ao
longe, um coro suavíssimo de anjos e sons sentidos de violinos. Jeová, vestido
simplesmente de brim, joga truco com Beozebú)
JEOVÁ – Truco, papudo! (Separa três grãos de milho).
BELZEBÚ (Juntando seis grãos aos três que Jeová apostou) – Tome seis, que três é
pouco!
JEOVÁ – Este diabo está mandando em falso. Nove, papudo! (Ouve-se lá dentro a voz
indignada de Pedro).
PEDRO – Não pode ser! Não é possível! Isso não pode continuar!
JEOVÁ – Que é isso Pedro?
PEDRO (Entrando, com grande óculo de alcance) – Estou desolado! O mundo continua
na mesma e os meus emissários me traíram! As Lainhas, os Catões e os covardes
multiplicaram-se...
JEOVÁ (Rindo) – Não te disse? Fizeste asneira, Pedro! Senta-te aí, manda o mundo às
favas...
PEDRO – Não. É preciso... O livre arbítrio é a causa de todos os males. Enquanto
houver livre arbítrio, não haverá liberdade...
JEOVÁ – Isso é um paradoxo, Pedro...
PEDRO – É que, enquanto houver liberdade de arbítrio, cada poderoso da terra se
arvorará num pequeno deus para oprimir seu semelhante... É necessário que haja
unicamente um poder, Senhor, e que todos se sujeitem a uma única lei: a da Verdade. E
qual o homem capaz de encarnar a Verdade?
JEOVÁ – Tenho-lhes ensinado. Dei ao homem o livro da Verdade, que é a natureza... É
profundo e belo. Orgulho-me dele...
PEDRO – Mas eles não leem, Senhor. É preciso obrigá-los...
JEOVÁ – Não, Pedro. Prefiro rasgar a obra de minha criação do que ser um verdugo
reacionário. Que cada um faça o que quiser...
PEDRO (Veemente) – Mas então rasguemos a obra da criação. Acabemos o mundo, para
que o mundo não comprometa a obra do Criador.
JEOVÁ – Não me toque nos animais, Pedro! Deixe os pássaros e as feras em paz!
PEDRO – Acabemos com o Home, Senhor! Ele é a maior vergonha da obra divina...
Até do Amor, Senhor, ele fez comércio e um meio de tortura aos que não tem dinheiro
para fugir. Até do Amor, apesar das asas que o céu deu ao Cupido. Acabemos com o
homem, Senhor!
JEOVÁ – Isso, sim. Já tenho pensado em tal... Mas vai dar trabalho, Pedro... Os homens
não merecem nem o trabalho de extingui-los. Afinal, pensando bem, eles só fazem mal a
sim próprios...
PEDRO – Mas há os que sofrem... A maioria...
JEOVÁ – Se é a maioria que sofre, é porque quer... Senta-te aí, Pedro. Entra no nosso
truco...
PEDRO – Não, Senhor. Não posso mais! Até o Amor, que é puramente divino, eles
codificaram! Posso, então, ordenar ao Dragão de sete cabeças, cuja cauda arrasta a terça
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QUADRO XXXVI
LAINHA (A Artur, jogando o que encontra no chão) – Ah! Miserável! (Tem o seu
clássico ataque. A cena estará cheia de “Lainhas” e “Arturs” (máscaras em
figurantes), os quais repetirão as palavras dos personagens).
QUADRO XXXVII
QUADRO XXXVIII
FIM
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QUADRO XXXIV
O TEMPO (Folheando o calendário com muita rapidez) – E os anos rolaram uns após
outros... (Fecha-se a cortina do tableau 5 e abre-se a do n. 1).
QUADRO XXXV
(Um recanto do céu. Uma pequena mesa azul e duas banquetas da mesma cor. Ao
longe, um coro suavíssimo de anjos e sons sentidos de violinos)
JEOVÁ (Está sentado, escrevendo a máquina. Termina uma lauda de papel, sorri e
chama) – Pedro! Pedro!
PEDRO (Entrando) – Aqui estou, Senhor.
JEOVÁ – Terminei, afinal, meu novo livro e muito me serviram as tuas sugestões.
PEDRO – Tudo novo?
JEOVÁ – Não. Vesti roupa nova nas minhas ideias velhas. Encontrei forma moderna
para tornar a dizer o que já dizia, sem conseguir que me entendessem... Esclareci
aquilo há tantos séculos apregôo em vão. Repara se não está claro: (Lendo)
A justiça deve ser gratuita. Paga, ela própria lutará desesperadamente para que o crime
não se acabe, como o peixe para não secarem as águas em que vive. O criminoso
deve depender do juiz e não o juiz do criminoso. Não está claro?
PEDRO – Claríssimo, Senhor!
JEOVÁ (Procurando outra lauda) – Para que o médico viva, é preciso doença.
PEDRO (Ri) – É boa!
JEOVÁ – “Havendo saúde, o médico morre de fome. Que o médico não ganhe pelas
consultas que dá, para ter interesse em curar a humanidade”. Que tal?
PEDRO – Formidável, Senhor!
JEOVÁ (Lendo) – Dou terra a todos para que todos nela e dela vivam. A moeda corrente
deve ser o trabalho de cada dia. Estás satisfeito?
PEDRO (Entusiasmado) – Maravilhoso, Senhor!
JEOVÁ – A razão estava contigo. Eu precisava reformar a minha literatura. E agora
sobe ao teu púlpito e manda que se espalhe pela terra a minha última proclamação
sobre o que mais te interessa.
PEDRO – O Amor?
JEOVÁ – O Amor... Que os teus Catões e as tuas Lainhas tomem conhecimento das
minhas disposições.
PEDRO – Será feita a sua vontade, Senhor. (Saindo) Mensageiros do Céu, a postos!
(Ouve-se uma trobeta).
(Abre-se o plateau 2. A mesma sala. Então em cena Lainha e Artur. Madalena entra
pelo fundo, quando Pedro começa a ler a proclamação de Jeová)
CATÃO – E assim, terão em mim, na câmara, uma voz altaneira e vigorosa, em defesa
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FIM
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