Esse Trem Chamado Desejo
Esse Trem Chamado Desejo
Esse Trem Chamado Desejo
CHAMADO
DESEJO
Eu me imagino em lugares
Bem longe, onde eu nunca pisei
E até me vejo nos braços
Do amor que eu nunca terei.
(ENTRA LOPES)
LOPES Eu, não, Seu Coisinha! Quero morrer bem longe desse tabladi-
nho fuleiro!
COISINHA Ah, seu Lopes! Faz tempo que o senhor está aí?
COISINHA Como não, seu Lopes? Cada cadeira, cada velha cortina, cada
objeto... Até o suor das paredes, até o ar, tudo aqui lembra os
velhos atores e as grandes atrizes.
COISINHA Esse lugar têm vida, seu Lopes. À noite, as vigas estalam, as
tábuas do palco rangem e mais de uma vez eu já vi naquele
canto o fantasma do diretor Furtado Coelho, acredita?
COISINHA É, uns mais outros menos. Sucesso, casa cheia, fila na bilhete-
ria, ingressos vendidos... O senhor por acaso não teria algum
pra me emprestar por conta do nosso sucesso de hoje à noite?
LOPES Estou liso, seu Coisinha. E dona Abigail? O senhor poderia dar
uma mão...
COISINHA Ih, não tem por onde! Já tentei facilitar Dona Abigail para o Mei-
reles, para o Praxedes, até pra mim eu tentei!
COISINHA Respeito, meu filho! Contra minha mais íntima vontade e minha
mais expressa intenção, respeito! De uns tempos pra cá não
tenho feito outra coisa senão respeitar toda e qualquer mulher.
LOPES Onde meu coração foi amarrar minha égua, seu Coisinha! (SAI)
COISINHA Em pasto que não brota água nem nasce capim, seu Lopes.
Vai por mim.
MADEIRA Ótimo.
MADEIRA Me diz uma coisa: Por que o senhor que já trabalhou pra me
juntar com Florisbela quer agora me juntar com Gracinha?
COISINHA Fui. Mas ela merece uma história melhor do que a que tem com
o Sandoval.
COISINHA Pois eu, não! Seu caso se transformou num ramerrão insosso.
Está faltando na sua vida o risco das grandes histórias! O risco
é o alimento da paixão, seu Madeira! O que seria de Romeu e
Julieta sem o risco da tragédia? Um casamentinho trivial!
COISINHA Eu também acho, mas qual é o interesse que tem o seu caso
com a Florisbela se o Meireles nunca descobrir?
MADEIRA Que é que o senhor está querendo? Ver minha caveira no ne-
crotério, seu Coisinha?
COISINHA Só quero um pouco de ação, uma história que possa ser lem-
brada, contada, talvez até escrita e representada!
COISINHA Está bem, mas será que o senhor não teria uns dez mil réis...
COISINHA Está bem, deixa estar! Vou falar com o Meireles ...
MADEIRA (RECONSIDERA) Não tenho dez, mas dois posso lhe adiantar
no momento.
FLORIS Não vai dar! Ele me requisitou para ensaio de riso louco, riso
trágico, riso irônico, riso satânico e sardônico!
MADEIRA Deixa o Meireles para lá. Você está linda! Esse número ainda
vai fazer sucesso no Rio de Janeiro!
FLORIS Ah, o meu sonho! Estrelar um musical no Rio de Janeiro! (MA-
DEIRA TENTA BEIJÁ-LA) Depois! Depois, quantos beijos qui-
ser, meu Sultão!
Se tantas concubinas
O meu sultão já satisfez
Desperte os seus instintos
Agora é a minha vez
Vim do oriente médio
Pra livra-lo desse tédio
Mulata brasileira
Fogosa e faceira
É esse meu segredo
Eu só vou contar pro meu sultão
Fizeram-me de escrava
Na América do Norte
Venderam-me aos persas
A peso de ouro num leilão
FLORIS... Não pode subir num tijolo que já pensa que tem dois metros!
PRAXEDES E o autor.
PRAXEDES Não me culpe por ser culto! E, depois, quem é que dá a infle-
xão, o tom, o ritmo do espetáculo?
MADEIRA Está bem, Praxedes, você é autor, ensaiador, ponto, mas não é
músico! Fiz a cena baseada nos maiores sucessos do teatro
musicado do Rio de Janeiro! Tem alegria, veneno, descontra-
ção... Um entreato exótico com samba, maxixe, animação...
PRAXEDES Quero.
MEIRELES Ele nem percebeu. Precisava ver como ele chorava enquanto
eu recitava o ápice do culto cívico dedicado a Tiradentes de J.
Mariano de Oliveira.
MADEIRA (EMBARAÇADO) É... Como toda atriz ela... Empresta seu ta-
lento, sua voz, seu corpo... a um personagem!
MADEIRA O senhor não tem nada pra fazer, seu Coisinha? (COM UM
GESTO IRRITADO ORDENA A COISINHA QUE SAIA. ESTE
PERMANECE).
Tentava eu esclarecer
Um músico equivocado
Que apenas quer copiar
O que já está empoeirado
Um show de variedades
Convite ao pleno prazer
Como se faz em outras capitais
É o que o teatro deve ser!
GRACINHA Vão fazer essa discussão em outro lugar que eu preciso ensai-
ar.
FLORIS Otelo!
MEIRELES Hamlet! Um bonito nome para nosso próximo pimpolho.
MEIRELES Então, pelo que presumo, você está com amante, Madeira?
(MADEIRA PARALISA A EXPRESSÃO, FLORISBELA DÁ UM
GRITO) Que foi?
FLORIS... (IRRITADA) Nada! Você não fez nada! (DÁ O BEBÊ A MEIRE-
LES) Vamos! Cuida dele enquanto me apronto!
MEIRELES (AO PASSAR POR MADEIRA) A delegada é fogo! Ainda mais
no período das regras. Feliz você que não tem esposa, só
amante.
MADEIRA Pára com isso, seu Coisinha! Pensa que é fácil? Às vezes eu
penso que é melhor ser corno. Ou não ter mais competência
nas partes como o senhor. Ser amante é sina triste, exige cui-
dados, esforço, estratégia, tirocínio, planos de ataque e rotas
de fuga! É uma árdua vocação, seu Coisinha! E, no final de
tudo, uma besta como o Meireles ainda me dá um tiro na cara e
a opinião pública vai arrastar meu nome na lama, me chamar
de safado e lhe dar razão!
GRACINHA Que é?
COISINHA Pode, claro. (FICA OLHANDO GRACINHA ATÉ QUE ELA FAZ
UM SINAL PARA QUE ELE SAIA.) Desculpe. (
GRACINHA Quem é?
GRACINHA Sandoval! Que é que está fazendo com essa camisa horrorosa
que aquela sujeita te deu?
SANDOVAL É que a sujeita é minha mulher. Ela quis que eu usasse...
SANDOVAL Mas...
GRACINHA Mas, nada! Vai embora e não pense que, desta, vez vai com-
prar minha boa vontade com aqueles presentinhos michos...
SANDOVAL Muitos.
SANDOVAL Na loja, mas logo vai estar no seu dedo. Estou em entendimen-
tos com financistas para uma grande jogada. É segredo. Se
tudo der certo ao final do espetáculo venho com a grande notí-
cia.
SANDOVAL Produzo, Gracinha. Você vai ser a estrela e vamos viajar para o
Rio, Buenos Aires... Um sucesso!
GRACINHA Ah, Sandoval! Você já sentiu uma platéia de mil, mil e duzentas
pessoas, todas te aplaudindo?
SANDOVAL Não.
SANDOVAL Se tudo der certo volto com boas notícias. (À SAÍDA.) E avisa
o elenco pra ninguém ficar espiando o público pela cortina.
Ator, antes do espetáculo quando vê a platéia vazia, xinga:
“Produtor “fiadaputa”, nem pra trazer público presta!”. Quando
olha e vê a platéia cheia, xinga de novo: “Produtor fiadaputa”,
vai acabar rico nas minhas costas!”
ABIGAIL Moderação é uma virtude e virtude não saiu de moda para al-
guns...
GRACINHA “Bota um decote melhorzinho no vestido, não tenha medo que
a feiúra não é nada”.
ABIGAIL Mas eu também tenho de ensaiar minha cena! Que raiva! Abi-
gail, faz isso! Abigail, faz aquilo! Me dá um nervoso e eu não
quero obedecer, mas obedeço e aí me dá um nervoso porque
eu obedeci, aí erro tudo! Abigail, sua burra, você errou tudo!
Ouvir isso, revolta. Aí, quero gritar desaforo, falar palavrão,
plantar a mão na cara de quem me xingou. Mas você grita,
você xinga, você faz, Abigail? Faz nada, você não tem é cora-
gem! Sou educada! Você é frouxa! Aí eu me revolto por ser
frouxa, fico nervosa, vermelha, tremo como agora que eu devia
ir lá e dizer umas poucas e boas para a Gracinha, mas vou?
Vou nada, aí...(GRITA A SI MESMA) Cala a boca, Abigail, que
eu, a própria Abigail, já não estou te agüentando mais! (TENTA
TOCAR A MÚSICA, MAS ERRA. TENTA NOVAMENTE,
ERRA). Tem horas que eu quero morrer! E tem horas que eu
quero te matar, Abigail!
(ENTRA LOPES)
LOPES Não faz isso ou você será culpada também da minha morte.
ABIGAIL Se não sentisse tanto frio acho que iria para sua casa.
ABIGAIL Ainda bem que tomei o rabo de galo. Ai, já não sei mais...Es-
quece a noite de ontem, seu Lopes.
ABIGAIL Oh, seu Lopes, um artista como o senhor mereceria coisa me-
lhor.
ABIGAIL (PARA SI) Não, Abigail, nem pense! Você tem um noivo! (IRRI-
TADA) Que nunca lhe falou essas coisas, sua tonta!
LOPES Agora eu sou só um palhaço triste, sem circo, sem público...
ABIGAIL (PARA SI) Não escorrega que você cai, Abigail. E aí você não
vai querer levantar que eu lhe conheço!
ABIGAIL O senhor tem é lábia, seu Lopes, uma língua afiada, vermelha,
dentro de dois lábios tão...tão... (PARA SI) Sossega o pito,
Abigail! Quieta o facho!
ABIGAIL Ele quer me tirar dessa vida de teatro, cheia de riscos, impre-
vistos...
ABIGAIL Um dia.
ABIGAIL Não fala mais nada! Me ajuda a ensaiar minha cena. Ainda não
sei direito e o Praxedes me mata!
Cena 6 – As gêmeas
FOFINHA Vem!
LINDINHA Eu não jogo, Fofinha! Charme, em mim, desborda, sai sem es-
forço cai sem intenção, de forma natural!
FOFINHA Não, essa desnaturada nem lembra que tem uma irmã gêmea!
LINDINHA Não fala assim, Fofinha! Não tenho culpa se as minhas formas
povoam a imaginação dos homens!
MEIRELES Então, por que não uma mudança radical? Algo consistente, de
verdadeiro conteúdo cultural?
PRAXEDES Nem!
MEIRELES E se...
PRAXEDES Não!
FOFINHA Dizem que lá não tem mais ponto! Pro seu bem, é melhor a
coisa ficar como está!
PRAXEDES Não pode ficar como está porque no ensaio de ontem nenhuma
das duas acertou a coreografia!
FOFINHA (SENTIDA) Tripudia, Lindinha! Não tenho corpo, mas tenho ca-
beça, ‘viu!
(ENTRA COISINHA).
LINDINHA Você viu, Fofinha? Não tem competência e quer botar a culpa
na gente!
FOFINHA É mesmo. Como quer estrear bem se nem ensaiar ele ensaia?!
(GRITA) Ah!, estou de mal de você!
FOFINHA Quem tem corpo não precisa nem de cabeça nem de habilida-
de.
LINDINHA Temos ligação, somos irmãs como Dircinha e Linda Batista!
FOFINHA (GRITA) Cruz! Cruz que eu devo carregar! Que ódio! Lindinha,
a próxima vez...
LINDINHA Ai, eu não vou aprender! Não vai dar tempo! Eu não tenho ca-
beça!
(ENTRA PRAXEDES).
COISINHA Liga, não! Toda estréia de teatro sempre precisa de mais quin-
ze dias!
MEIRELES A gente podia fazer uma votação. Quem acha que a música
deve passar para Abigail?
MEIRELES O que a senhora pretende dizer com tal ilação que não consigo
apreender todo o sentido?
PRAXEDES Não! Não são dez minutos que vão resolver nosso problema.
(COISINHA FAZ UM GESTO IRÔNICO DE CONCORDÂNCIA.
OS ATORES OLHAM ALARMADOS, EM SUSPENSE, PARA
PRAXEDES). Vamos estrear na unha!
ABIGAIL Não me erre a voz! (PARA SI) Era o que você devia dizer a ela,
Abigail!
FLORIS (ENTRA, PARA SI) Pelo andar do carro de boi vai dar merda
mesmo. E muita!
Mu-mu-mu-mu-um
Curral del Rey
Mu-mu-mu-mu-um
É o meu rincão
Mu-mu-mu-mu-um
É o luar
Mu-mu-mu-mu-um
Do meu sertão
Aguadeiros tem
Violeiros tem
Cachoeiras aqui tem também
Mu-mu-mu-mu-um...
Aguardente tem
Boa gente tem
Amizade aqui tem também
CAMPONÊS Num turtuvia, num turtuvia, maiada! Aqui num tem mais nada
pro bico d’ocês! Isso aqui tá tudo virando uma borresca!
CAMPONÊS E as rua, então? Tudo retin, retin, tudo às direita, feito linha es-
ticadinha! Tudo coisa de genheiro!
CAMPONESA Ma, óia! Eita, povo! Já tão derrubando o que levantaram prá
erguer de novo.
CAMPONÊS Progresso é assim. Daqui a pouco eles põem tudo abaixo pra
fazê de travêis!
CAMPONESA Vigia, home! Óia aquela ruona cheia de curva! Lá, onde cabaro
co’as cerca dos currá! É ela que tá cercano todo o Currá del
Rey!
CAMPONÊS Ieu vô! Oi, lá! Todo mundo dessas paragem tá ino! Ó, lá, os
cabôco se perdendo nas curva dela! Até cabôco mais “nham-
pam” que ieu já passiô nos contorno dela! Ieu vô! Toda novinha,
lisinha, deve de tê até os matinho tudo aparadim!
CAMPONÊS Só vô cunhecê!
CAMPONESA Vai cunhecê relho! Ocê fica aqui e se contenta com esse seu
grotão véio! (CORRE ATRÁS DO CAMPONÊS QUE FOGE)
Avenida do Contorno
Quantas curvas tu terás
Nelas sempre nos perdemos
Mas sem ti nós não vivemos
E a queremos sempre mais
Avenida do contorno
Teus escravos vamos ser
Tendo em troca tuas curvas
Tuas regras, teus sinais
MADEIRA (CORTANDO) Tinha certeza, uma pílula! Você foi cabeça dura!
PRAXEDES Fui e continuo sendo! Sua cena é uma porqueira e não entra
no meu espetáculo...
FLORIS... Tudo bem, vamos ficar calmos, mas o Praxedes, depois desse
vexame, podia descer de cima do tijolinho dele! Como é que a
gente fica? Tenho um recém-nascido pra sustentar!
PRAXEDES A gente não teve divulgação... A gente devia ir aos jornais, fa-
zer cartazes... Tenho um amigo na rádio...
LOPES O público até que veio. O problema é como impedir que ele se
vá antes de acabar o espetáculo!
FOFINHA Sei lá, gente! Remontar uma peça, sair em viagem com o espe-
táculo, não sei! A gente não pode é ficar assim!
LOPES Viajar não está fácil. Ultimamente não conheço uma só compa-
nhia que chegou melhor do que saiu.
PRAXEDES Nada, só estou cansado. Foram anos, dona Abigail, anos meti-
do naquela caixa dizendo texto, ensaiando, gastando a vida a
troco de dinheirinho minguado, pouco mais que nada. Isso é
uma arte ingrata.
COISINHA Não fala isso, Praxedes! Houve muito aplauso, houve até su-
cesso...
PRAXEDES Isso não paga, Coisinha! Não paga a tristeza de hoje nem o
cansaço de todos esses anos.
MEIRELES Tem de ter uma solução! Faz anos que trabalhamos juntos!
PRAXEDES Para ser frio e franco, acho que vai! O Sandoval não vai querer
produzir outra peça. Que acha, Gracinha?
FOFINHA Sei lá, acho que acaba. E eu nem consegui fala, Lindinha! Que-
ro saber como vamos pagar o aluguel.
LINDINHA Olha, tem um fotógrafo, aí, que anda ambicionando uns retra-
tos meus, assim, bem à vontade...Quer fazer uns cartões pra
vender lá em São Paulo...
PRAXEDES Isso quer dizer que o senhor não vai produzir mais teatro.
SANDOVAL Cinema! Vocês são atores, não são? O que está morrendo é o
teatro, não os atores. Consegui investidores para criar a Com-
panhia Cinematográfica Alcantil das Alterosas!
(ABIGAIL RETORNA)
SANDOVAL Exato! Vocês vão ser nossos Rodolfo Valentino, Pola Negri,
Mary Pickford... Filas de quinhentos, oitocentos, mil espectado-
res todos os dias! Que me dizem? Que me dizem?
SANDOVAL Isso, isso mesmo, Madeira! Você pegou bem o espírito da coi-
sa! Faremos muitas fitas, Meireles! Comecemos por baixo, mas
se prepare, pois logo chegaremos a Hamlet! Madeira, o senhor
podia se encarregar da história. O mundo gira e muda, meus
amigos, e nós devemos acompanhar as mudanças! (BEIJA AS
MÃOS DE GRACINHA) Adeus, minha diva, minha Marlene Di-
etrich. Estou pensando num papel de arromba pra você. Have-
rá grandes papéis pra todo mundo! (PERCEBE PRAXEDES E
COISINHA) Bem, pra quase todo mundo! (A PRAXEDES) Infe-
lizmente o cinema não usa ponto...
LINDINHA Vamos?
PRAXEDES Quando a gente não sabe o que dizer é porque não há nada a
ser dito, seu Coisinha. Um dia as coisas acabam.
LINDINHA Nem acredito, Fofinha, nós na fita! Qual será meu papel?
FOFINHA No cinema eu vou ter fala, tenho certeza! Vou ser uma atriz!
ABIGAIL No filme eu podia ter uma cena de beijo com o Lopes! Esfria,
Abigail, esfria! Esfria, nada, deixa pegar fogo, criatura!
MADEIRA Não, nesse filme a estrela ainda vai ter de ser a Gracinha, mas
logo, logo...
SEGUNDA PARTE
LINDINHA Uma atriz de cinema não deve ter intimidades com o público,
Fofinha. Deve pairar sobre a multidão de fãs!
GRACINHA Foi uma experiência fascinante meu primeiro filme como pri-
meira atriz.
FLORIS Que que é isso, Sandoval? Cadê a cena musical em que canto
pra fazer o Otelinho dormir?
GRACINHA Agora eu apareço. Cadê eu? Quem é essa que está fazendo
meu papel?
LOPES E no escuro!
SANDOVAL Não confunda, Gracinha! Uma coisa sou eu, o seu Sandoval,
outra é o produtor Sandoval.
GRACINHA Uma coisa sou eu, Gracinha, e a mesma coisa sou eu, atriz! E
as duas estão com vontade de lhe meter a mão!
SANDOVAL Vamos ser razoáveis! Não sou o único produtor. Existem inte-
resses... Isso é o futuro! A arte vai ser a técnica, a máquina.
PRAXEDES Sei lá! A vilmicranha devia encaixar com a estrovenga, mas sol-
tou o pino da grampôla! Não tive culpa!
FOFINHA Ah!, meu Deus, outra vez! Depois que entrei para o teatro as
perguntas que mais tenho ouvido são “e agora? O que a gente
faz?”.
SANDOVAL Tocar, não, Lindinha! O público não vai querer que a senhora
toque!
LINDINHA (IRRITADA) Pois então vou contar o que foi fazer o filme!
CENA 2 – Como nasce uma representação
MADEIRA Seja neutro, seja neutro! Poxa, passei a vida tentando aprender
a ser expressivo!
GRACINHA Por isso mesmo. Sou sua mulher, não sou uma marafona nem
marafaia, nem Maria Bagageira, nem Maria Catraia!
MEIRELES (TENSO) Aristides, com o desespero ditado pela fúria, não sa-
bia se morria. Ou se matava!
FLORIS (ASSUSTADA) En primeiríssimo lugar non mate! En segundo,
también non precisa morir! Yo dicho “todo es possible”. Es pos-
sible si y es possible non. Deja-me ver mejor: (LIMPA A BOLA
DE CRISTAL E OLHA AS CARTAS) Es possible non. Yo non
vedo muerte en su futuro, entendes? Nem su morte, nem, prin-
cipalmente, la muerte de su mujer. Está escrito e las cartas non
mentem!
MEIRELES Mas o homem muda o destino! (BRADA) Não serei corno ja-
mais!
FOFINHA Muito menos eu! Mas o fato é que correu na vizinhança o jura-
mento que Aristides fez:
LOPES Pra que ele foi dizer isso?! Conselho que eu dou aos homens e
rapazes aqui presentes: nunca façam afirmações irretratáveis
como esta. Aconselho a colocar sempre antes um “talvez”, um
“se Deus quiser”, “se a sorte ajudar”.
ABIGAIL Como era para o Lopes dizer, e não disse, a vizinhança come-
çou a rir, apontar Aristides pela rua. Ele se tornou não só moti-
vo de motejo e piada como o bairro profetizou: um sujeito assim
só pode acabar corno.
ABIGAIL E ela que começou até a lançar um olhar mais comprido para
um e outro mocetão taludo, moreno, de pestana grossa.
PRAXEDES Arrogância...
MADEIRA Não, você é que está cego! Marido não é o último a saber,
deve ser o primeiro a não querer saber! É melhor acreditar
sempre no que a mulher diz! Acreditar sempre!
FOFINHA Nada.
ESTELINHA Tornou-se dócil, suave como seda da China, gentil como tafetá
francês. (MEIRELES SE APROXIMA) Querido, como demorou!
Quer um refresco? Vou buscar seus chinelos. Antes, dê-me um
beijo. (SURPRESO MEIRELES SE APROXIMA PARA BEIJÁ-
LA NO ROSTO) Na boca! (LASCA UM BEIJO NA BOCA DE
MEIRELES)
MEIRELES Que mudança! Que surpresa feliz! De uns tempos pra cá você
tem mudado muito!
ESTELINHA (ABRAÇA-O) Entre em seu lar e descanse. Vou sair, mas re-
torno logo para seus braços.
MADEIRA Que é isso, Aristides, ficou maluco? É assim que paga a ajuda
que lhe dou?
MADEIRA Baixa essa arma, amigo ingrato! Meses atrás você veio aqui
corroído pelo ciúme e dizendo que sua mulher o maltratava. E
agora? Estelinha não está doce como mel? Graças aos meus
conselhos!
MADEIRA Então atira, se você viu! Você perde um amigo sincero, perde
uma mulher enamorada, ganha cadeia e o resto da vida de re-
morsos. (PUXA ARISTIDES PELO BRAÇO PARA LONGE DE
ESTELINHA) Mas, se você nada viu, o ciúme se esvai e seu
coração fica em paz. E, depois, se fosse verdade o que você,
injustamente, está pensando de mim e de Estelinha, você teria
não só uma mulher culpada querendo lhe compensar como
também uma mulher agradecida por você ter-lhe permitido tal
aventura. De qualquer ângulo que você analise a questão é
melhor que você nada tenha visto.
MADEIRA Eu sei. Não é todo homem que aprecia ser traído. Só os nor-
mais. Vai, Aristides. No que me diz respeito você nem esteve
aqui.
MEIRELES Aristides foi-se pensativo. E uma coisa ele não podia negar:
não carregava mais o peso do medo de ser traído. E nos últi-
mos dias sua vida conjugal, de fato, havia mudado para melhor.
FLORIS (BAIXO) Você parece que bebe, Praxedes! Quer ver a cena
pegar fogo? Estou improvisando também!
LINDINHA Que foi que eu fiz? Até uma improvisação tem de ter coerência!
MEIRELES Eu nunca confundo. Elas são uma única e mesma coisa. Lindi-
nha está certa: até uma mera improvisação tem de ter coerên-
cia.
MEIRELES Não seria capaz de tocar num fio de seu cabelo, minha queri-
da. E depois, a idéia me veio na hora. E se avisasse ninguém
deixaria.
GRACINHA (SE LEVANTA TAMBÉM TRÊMULA) Que foi que houve, meu
Deus?
MEIRELES E qual o motivo eu teria para atirar em você? Você é meu ami-
go!
MADEIRA Fazer tudo igual! Um dia desses, seu Coisinha, Meireles ainda
me dá um tiro na cara , de verdade, com o aplauso e aprova-
ção do público. Ser amante é um pesado e perigoso encargo,
seu Coisinha!
(SAI)