O Auto Do Circo
O Auto Do Circo
O Auto Do Circo
Prlogo
UMA MSICA MELANCLICA TIRADA DE UM VIOLINO INVADE O AMBIENTE, UMA MSICA COMO A TOCADA NA ANTIGA HORA DA AVE-MARIA,
QUE TODOS OS DIAS, S SEIS DA TARDE, SE OUVIA NO RDIO. ENTRA
XIMBEVA, UM PALHAO JOVEM, DE CABELO BASTO E ESPETADO, SOBRANCELHAS GROSSAS E UNIDAS, EMPURRANDO NUMA CADEIRA DE
RODAS, COSCORO, UM PALHAO VELHO, CARECA E CUJA MEMRIA
SOFRE AUSNCIAS. XIMBEVA EMPURRA A CADEIRA SEGUINDO A CADNCIA DA MSICA. VOLTA E MEIA SUSPIRA FUNDO COMO SE ESTIVESSE PRESTES A CHORAR. DEPOIS DE ALGUMAS VOLTAS PELO PALCO, PARA NO CENTRO DO MESMO. CHORA, TIRA UM LENO AMARROTADO DO BOLSO, ASSOA O NARIZ E COM O MESMO LENO SE PE A
LIMPAR E A LUSTRAR A CARECA DO VELHO. LIMPA AS ORELHAS DO
PALHAO VELHO COM ENERGIA. VAI JUNTANDO A CERA DE OUVIDO
EXTRADA AT FORMAR UMA BOLINHA. CONTEMPLA A BOLINHA ENTRE OS DEDOS E NO SABE O QUE FAZER COM ELA. PENSA EM JOGAR
NO CHO, EM COLOCAR NO BOLSO, EM JOGAR NA PLATIA, MAS NO
SE DECIDE POR NADA DISSO. POR FIM, A ENFIA DE NOVO NO OUVIDO
DO PALHAO VELHO E SOCA COM O DEDO. CONTINUA A LIMPEZA,
COSPE NO LENO PARA UMEDEC-LO E, COM ELE, ESFREGA A CARA
DO VELHO QUE MESMO DE OLHOS FECHADOS FAZ CARA DE NOJO E
TENTA AFASTAR-SE DO LENO. XIMBEVA, COM O LENO, ENFIA O DEDO NO NARIZ DO VELHO QUE GEME. COMPLETA A LIMPEZA BATENDO
COM LENO NO VELHO COMO SE O ESPANASSE. UMA VOZ AO MICROFONE O CHAMA.
VOZ
Ximbeva! Ximbeva! (XIMBEVA PRA ASSUSTADO E PROCURA A ORIGEM DA VOZ) Aqui, Ximbeva. (XIMBEVA PROCURA) Dentro de voc! (XIMBEVA APALPA A CABEA) No
na cabea! (XIMBEVA APALPA A BARRIGA) A, no! (DESCONFIADO APALPA A BUNDA. VOZ FALA IRRITADA) No corao, sua besta! Sou a voz da sua conscincia! (XIMBEVA
SORRI) Tenho acompanhado com que carinho voc trata Coscoro, esse velho palhao, que tantas glrias deu ao circo, alegrou tantas platias, fez rir tantas crianas (XIMBEVA BEIJA A
CARECA DE COSCORO, COSPE SOBRE ELA E LUSTRA) e,
COSCORO
XIMBEVA
H anos! H anos cuido, levo pra passear, ponho no sol pra tirar o mofo, lavo e limpo! E esse velho desgraado come o
mesmo que todo mundo, mas no sei que mistrio da natureza
se esconde nas tripas desse homem que desanda tudo o que
cai ali! Aquilo um sorvedouro e manjar fino, bebidas aromticas, sobremesas delicadas, tudo vira gs pestilento! At gua
benta! J dei pra ele beber ch de jasmim, gua de rosas, cndida, ajax pra ver se limpava a tubulao, mas no teve jeito!
Quem quiser, eu dou dado de papel passado! Mas quem quer?!
J esqueci, sem querer, trs vezes, mas paradas do circo, mas
o povo vem sempre devolver! (COSCORO ESPREGUIA-SE
E BOCEJA ACORDANDO)
COSCORO
XIMBEVA
Ih, comeou!
COSCORO
XIMBEVA
Eu aviso quando for uma ou outra. Agora, por exemplo, a parte cmica! Esperem s o drama pra ver!
COSCORO
XIMBEVA
Do mau humor...
COSCORO
(INTENCIONAL) Dos animais! Sou de tradicional famlia circense, um dos poucos ainda na ativa que fazem o legtimo espetculo circense... e o que vocs iro assistir, muito comportados e
respeitosos a histria da minha famlia que mistura nobres
franceses...
XIMBEVA
Ciganos da Hungria...
COSCORO
XIMBEVA
rueiros da Calbria...
COSCORO
artistas da Inglaterra...
XIMBEVA
vagabundos da Saxnia...
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
Que vieram ao Brasil no sculo XIX, a convite do prprio imperador D. Pedro II!
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
SOM DE SIRENA DE NAVIO. UMA TRUPE DE IMIGRANTES SALTIMBANCOS ENTRA NO PALCO CARREGANDO SUAS TRALHAS LIDERADAS POR
UMA MATRIARCA COM UM SOTAQUE CUJA ORIGEM INDEFINVEL.
MRIA
Terra, finalmente! Terra, Deus Bendito! Deus fez o mar, o homem fez o navio... (D UM TAPA NUM SENHOR A SEU LADO) e sua cabea, Grgori, inventou de nos colocar dentro dele!
(GRANDILOQUENTE) Virish crina! Idiota fui, idiota no serei
mais! Quero ser um co se voc me convence de outra!
GRGORI
MRIA
GRGORI
MRIA
GRGORI
MIRA
MIRKO
Aqui Amrica do Sul! (MRIA OLHA FURIOSA PARA GRGORI QUE SE ENCOLHE COM MEDO. GRITA ELEVANDO AS
MOS PARA O CU)
MRIA
Vikrm Brch! Vikrm Borch! (FORMA-SE UM TUMULTO ENTRE A TRUPE. DISCUTEM, BRIGAM E FAZEM MENO DE
SAIR, VOLTANDO AO NAVIO. MRIA GRITA) Nem morta!
Me Mria...
GRGORI
COSCORO
GUARDA
GRGORI
GUARDA
GRGORI
GUARDA
GRGORI
No vamos sair!
MRIA
GRGORI
Pra onde?
MRIA
XIMBEVA
ATORES FECHAM COM UM PANO PRESO A VARAS A METADE DO PALCO, FICANDO REDUZIDA A REPRESENTAO A POUCO MAIS QUE O
PROSCNIO. UMA CRIANA ATRS DO PANO TENTA VER O ESPETCULO DENTRO DA EMPANADA SENDO AFUNGENTADA POR UM DOS ATORES. O ESPETCULO BASTANTE SIMPLES COM NMEROS DE FORA,
MALABARISMO, CONTORCIONISMO, ETC. GRGORI D INCIO AO ESPETCULO. TEM UM FORTE SOTAQUE.
GRGORI
mundo, eu afirmo, pois falo nada menos que sete idiomas. Nossa trupe viajou pela China dos Mandarins, Japo dos Samurais,
pela misteriosa ndia dos Marajs e por todos os reinados e repblicas da Europa. Cabeas coroadas de todo o mundo aplaudiram nossos artistas! (TEM INCIO O ESPETCULO)
XIMBEVA
GRGORI
XIMBEVA
SULTO
MRIA
MIRA
H dez anos, ainda na Europa, uma tuberculose mal curada tinha decretado que pai Grgori morreria dos pulmes. Tenho ca-
10
cos de vidro no peito, parece, escutei pai Grgori gemer. (COBRE A BOCA COM A MO)
XIMBEVA
MIRA
COSCORO
MRIA
Soube ento que queria morrer nesta mesma terra. E sei que
amei Grgori muito, com dureza e raiva, como, s vezes, o
amor de gente como ns. E porque se ama de muitos jeitos.
XIMBEVA
COSCORO
O tempo passou e, como sempre, foi fechando feridas, saneando cortes e serenando os coraes. Mas no apagou as lembranas. Ainda hoje tenho ntida a imagem de Grgori como minha av contava. Ele era... (SUA MEMRIA SE ESVAI. OLHA
PARA XIMBEVA COM O ROSTO SEM EXPRESSO. ESTE RI
E EMPURRA A CADEIRA DE RODAS PARA PERTO DE MRIA. ELA CONTA DIRETAMENTE A COSCORO COMO SE
ELE FOSSE CRIANA)
11
MRIA
MIRKO
Ele t a. Vem seguindo a gente desde Lagoinha, trinta quilmetros pra trs. No gostei dele.
MRIA
Voc j me disse.
MIRKO
MRIA
Sim, sou eu que decido. (ENTRA O PELUDO. UM TIPO ROCEIRO, TMIDO, MAS ENRGICO. MANTM-SE DISTNCIA COM CABEA BAIXA, HUMILDE. MIRKO SAI IRRITADO.)
Que que quer?
PELUDO
Ficar no circo.
MRIA
PELUDO
MRIA
Tem famlia?
PELUDO
MRIA
PELUDO
MRIA
Se achega. (PELUDO SE APROXIMA CONSERVANDO SEMPRE A CABEA BAIXA. MRIA O MEDE. IRRITADA) Levanta
a cabea e me olha de frente que voc no nenhum coitado!
(PELUDO LEVANTA A CABEA E ENCARA MRIA. SUS-
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MRIA
Seu nome?
PELUDO
Ozr.
MRIA
Osrio?
PELUDO
(ATORES A-
Muito respeitvel pblico, bons amigos desta cidade! Esta semana nosso circo no tem riso. semana de contrio e respeito. semana de dor e lembrana. Esta semana no temos palhao, mas temos a representao de Deus que andou um dia
na terra e morreu por ns! A vida, paixo e morte de Nosso
Senhor Jesus Cristo!
Aberto seja o vosso corao
Porque a graa de Deus emana
E seja santa esta representao
Como santa esta semana. (CORO DE MULHERES CANTA
MSICA DA PAIXO DE CRISTO, TALVEZ UMA VERNICA)
XIMBEVA
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MULHER
MRIA
Sob o peso da dor e do sofrimento Cristo sofre a segunda queda! (CRISTO CAI SOB A CRUZ. SOLDADO BATE-LHE. CRISTO COM ESFORO LEVANTA-SE, MAS FURIOSO COM AS
PANCADAS DE PELUDO SOLTA A CRUZ NO CHO E AVANA PARA ELE. MRIA ENTRA NO MEIO DELES EVITANDO O PIOR. COMO VOZ ALTA NARRA AO PBLICO
COMO SE O ACIDENTE FIZESSE PARTE DO ESPETCULO.)
A parte humana de Cristo revolta-se com a humilhao e a dor!
(INCISIVA, PARA MIRKO) Mas ele tambm era Deus e sujeitou-se vontade do Pai. ( MIRKO AINDA ENCARA O PELUDO
QUE SE ENCOLHE. MRIA ORDENA A MIRKO) Cristo aceita
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OZR
MIRA
OZR
Foge!
MIRA
Fugir! Tens razo. Meu caminho tomar a estrada que me afaste da malcia e da calnia do mundo. (SOMBRIA) Minha vontade ter determinao e meu corao ter coragem?
OZR
MIRA
OZR
MIRA
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OZR
Sempre foram! (MIRA SE SOLTA DE OZR, AFASTA-SE RAPIDAMENTE) Eita!, que corao da gente s faz o que quer!
Agora, segurar a bomba no dente e o rojo na mo! (SALTA
DO TRAPZIO. MRIA E MIRKO ENTRAM) Dona Mria!
MRIA
Depois, Osrio!
OZR
MIRKO
MRIA
MIRKO
MRIA
OZR
MRIA
MIRKO
MRIA
MIRKO
MRIA
Tem inteligncia...
MIRKO
MRIA
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eu chorava nas primeiras neves porque no sabia se estaramos vivos ao final do inverno!
MIRKO
MRIA
MIRKO
MRIA
OZR
Mira...
MIRA
OZR
No.
MIRA
OZR
MIRA
(CORTANDO) Que que tem meu olhar? Eu olho pros cavalos, pra lona, pro trapzio... no sou cega!
OZR
Voc me desculpe.
MIRA
No desculpo, no! A confuso que voc me arrumou no desculpo nunca! (VOLTA-LHE AS COSTAS E CRUZA OS BRAOS, EMBURRADA.)
OZR
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MIRA
Como, adeus?
OZR
MIRA
OZR
No tou entendendo...
MIRA
OZR
MIRA
OZR
MIRA
OZR
MIRA
, Ozr! pra voc vir atrs de mim, sim, Ozr! (SAI. OZR
SAI ATRS DELA.)
Cena 5 O espetculo
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
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COSCORO
XIMBEVA
Que homem?
COSCORO
Aquele que morreu quando o presidente da repblica era aquele que... Lembra quando teve a grande guerra?
XIMBEVA
A primeira ou a segunda?
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
S de ouvir falar!
COSCORO
XIMBEVA
Lembrou?
COSCORO
Do que?
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
O peludo!
COSCORO
(IRRITADO) Era peludo, mas fez o melhor espetculo da regio. As crianas faziam coro pelas ruas quando chegava o circo.
ENTRA A TRUPE DE ATORES VESTIDOS DE MALHA. DESFILAM E COMPLEMENTAM O PBLICO, COMO NA ABERTURA DE UM ESPETCULO. A
IDIA QUE ENQUANTO OS ATORES COM O CORPO REPRESENTAM A
ATITUDE HIERTICA DA ENTRADA DOS CIRCENSES AO MESMO TEMPO
RELEMBREM UM CORO DE CRIANAS.
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ATORES
Procuro, no acho!
Banana, no cacho!
Acende o facho
Na bunda do tacho
Nem alto, nem baixo
riso, escracho
No circo l embaixo,
Palhao Rapatacho!
(COM FORTE SOTAQUE CASTELHANO) Senhores e senhoras, com muito orgulho e satisfao que nos encontramos novamente nesta cidade que sempre tem prestigiado e ovacionado, de forma calorosa e amiga, nosso circo e nossos artistas. A
saudade de vocs nos faz voltar. Depois de vitoriosa e aplaudidssima turn por So Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires
trazemos para vocs nosso novo espetculo!
COSCORO
O nosso circo se juntou com uma famlia de circenses da Espanha e cresceu tamanho e arte.
ATRIZ
COSCORO
ATRIZ
Acrobatas, mgico, animais amestrados, amazonas sobre cavalos, aramistas, vos e mortais no trapzio. No picadeiro a agitao febril dos nmeros, a preciso dos saltos, a concentrao, o
ritmo de um espetculo poderoso. Na platia a ateno, o silncio e a tenso, os olhos arregalados no crendo no que viam e
vendo, e continuando a ver e, mesmo assim, no crendo. A excitao, o espanto, depois o grito de aprovao, o aplauso, o riso!
ATOR
20
COSCORO
ATRIZ
APRES.
COSCORO
RAPATACHO
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COSCORO
RAPATACHO
No fala assim!
COSCORO
RAPATACHO
COSCORO
(CORAJOSO) E no posso? (RECONSIDERA) Mas vou comear por aquela moa ali que foi a que vaiou mais! ( MOA) Isso falta de corretivo na infncia! Falta de surra de vara! Falta
de cinto no lombo! (GRITA PARA O PBLICO) Quem a me
dela? (EXPLODE) Eu me irrito e me mordo! Tem de retornar a
palmatria! (PEGA UMA PALMATRIA DE PALHAO) Eu vou
l! ( MOA) Estica as mo! As duas!
RAPATACHO
No vai, no!
COSCORO
Vou!
RAPATACHO
No vai!
COSCORO
RAPATACHO
COSCORO
No aturo esculacho!
RAPATACHO
COSCORO
(AFRONTANDO) O que?
RAPATACHO
(AMEDRONTADO) Eu acho!
COSCORO
Voc no macho?
RAPATACHO
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ATOR INDICA UM NOVO NMERO. RAPATACHO SAI, COSCORO VAI SUA CADEIRA E AJUDANTES PREPARAM O
APARELHO PARA UM NOVO NMERO)
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
Por muitos anos fiz dupla com Ozr, meu pai. Hoje tenho o traste de Ximbeva.
XIMBEVA
COSCORO
ATRIZ 1
Dona Lica! Prende as galinhas que o circo chegou. (DO OUTRO LADO OUTRA ATRIZ RESPONDE)
ATRIZ 2
ATRIZ 1
ATOR
O palhao bom?
ATOR
ATRIZ 1
No tira o olho de riba do seu filho! Olha que o circo leva ele!
ATRIZ 2
Leva?
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ATRIZ 1
ATRIZ 2
ATRIZ 3
Judiao, de certo!
ATRIZ 2
ATOR
ATRIZ 2
ATOR
ATRIZ 3
No creio!
ATOR
ATRIZ 1
ATRIZ 2
ATRIZ 1
ATOR
ATRIZ 2
(AFASTAM-SE
CONCORDANDO)
ATRIZ 1
ATOR
No perco um!
ATORES PEGAM CADEIRAS E A TRAZEM PARA O PROSCNIO PARA ASSISTIR AO ESPETCULO. CUMPRIMENTAM-SE E SE SENTAM COMO SE
FOSSEM PLATIA DE UM ESPETCULO. REPRESENTAM COMO SE VIS-
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ATOR
Que gente desconhecida era aquela? Fazedora de coisas impossveis, equilbrios improvveis, habilidades s acreditveis
porque os olhos viam...
ATRIZ
ATOR
ATOR
Ningum era to rico que no precisasse do circo, nem to pobre que no pudesse entrar nele. Tudo mundo tinha acesso
arte. De Shakespeare a Antenor Pimenta, tantos dramaturgos e
atores inundaram meus olhos e corao.
ATRIZ
ATRIZ
A primeira vez que vim ao circo foi sem licena do pai. Vim s
espiar. Ento, o palhao comeou a tocar um violino e eu comecei a chorar, nunca tinha ouvido som e msica assim, espremia a alma da gente. Fiquei at o fim do espetculo. Pouco
importava se eu ia apanhar quando chegasse em casa.
ATRIZ
25
MIRKO
Vamos que j quase seis! Escovar os cavalos! Tratar dos animais, primeiro! Lucas, depois tem o aparelho pra consertar!
Vamos, Ziel, se prende na lonja que hoje voc se lana de volante! (ATORES LEVANTAM-SE RAPIDAMENTE LEVANDO
AS CADEIRAS E SE ENCAMINHAM AOS AFAZERES. ZIEL
PERMANECE SENTADO.)
COSCORO
Quatro e meia da manh comeava nosso dia. Seis horas, todos os dias, comeava nosso treinamento com tio Mirko.
MIRKO
Vamos, Ziel! Larga de cozinhar o galo, menino! (ZIEL, CONTRARIADO, LEVANTA-SE DEIXANDO A CADEIRA. UM OLHAR DE MIRKO FAZ COM QUE ELE VOLTE E RETIRE A
CADEIRA) t cansado de falar! Cada coisa tem seu lugar! (ZIEL GUARDA A CADEIRA, PRENDE-SE LONJA E SOBE NO
TRAPZIO.)
COSCORO
Ezequiel! Ziel era chamado, tinha nove pra dez anos. Ficou com
medo de saltar. (OLHA EM VOLTA E PERDE-SE NAS LEMBRANAS. CHAMA.) Ximbeva! (LUZ CAI SOBRE COSCORO)
MIRKO
Se lana, Ziel! (ZIEL NO TRAPZIO, MENEIA A CABEA) Deixa de coisa! Se joga que no tem perigo!
ZIEL
MIRKO
Vai ficar a at resolver se lanar! (OS OUTROS ATORES FAZEM EXERCCIOS VARIADOS SOB O COMANDO DE MIRKO
QUE ENSINA, MOSTRA COMO FAZER.)
ATRIZ
26
MIRKO
ZIEL
MIRKO
S se lanando!
ATOR
MIRKO
ZIEL
Tio!
MIRKO
Vai se lanar?
ZIEL
NEI
Mirko!
MIRKO
NEI
No sei viver fora do circo. Juro que tentei. Fiquei dois anos na
fbrica. , tristeza que me dava!
MIRKO
E a noiva?
NEI
MIRKO
NEI
Tem lugar?
MIRKO
27
MULHER 1
MELHER 2
No sermo?
MULHER 1
No sermo! Mas eu no baixei o olhar, sustentei dando desprezo. Fiz o sinal da cruz e sa de cabea erguida e pisando duro
pela igreja a fora. Deu raiva, deu vontade de falar desaforo
praquele padre, de chorar, mas no chorei!
MULHER 2
MULHER 1
MULHER 2
No so todos.
MULHER 1
ZIEL
Tira eu! (AS DUAS OLHAM, RIEM E SAEM. ZIEL ESPERA AINDA UM MOMENTO DEPOIS GRITA.) Tio Mirko! Tio! (MIRKO
ENTRA ACOMPANHADO DE UM PORT)
MIRKO
Vai saltar?
ZIEL
MIRKO
No tem perigo, Ziel! Faz do jeito que lhe ensinei que no tem
erro! (ZIEL SOBE NO TRAPZIO. O PORT SOBE NO OUTRO LADO E SE BALANA NO TRAPZIO. OS OUTROS
CIRCENSES ENTRAM ACOMPANHANDO COM ESPECTATIVA O NMERO.) Concentrao tudo. Conta o ritmo, sente o
balano do trapzio, vai! (ZIEL SE LANA E AGARRADO
PELO PORT. OS CIRCENSES VIBRAM E APLAUDEM.) Vai
ser volante melhor que eu, menino!
28
XIMBEVA
Que ?
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
Que mulher?
COSCORO
A minha!
XIMBEVA
Laodicia.
COSCORO
XIMBEVA
Alvina.
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
Todos gostavam.
COSCORO
29
XIMBEVA
COSCORO
s vezes bom no lembrar. (XIMBEVA SAI. ALVINA COMEA SUA FALA QUE CAPTA O CLIMA DE UMA DISCUSSO
FAMILIAR J ACIRRADA.)
ALVINA
Sempre fiz tudo o que o senhor mandou! Nunca tive boca nem
vontade pra nada! Agora, chega! No arredo p, no volto atrs! (QUASE GRITA) No sou sonsa como parece!
COSCORO
(NUM CRESCENDO FRIOSO) No fala assim comigo! (LEVANTA-SE DA CADEIRA E VAI AT ELA) No fala assim comigo! (ALVINA SE ENCOLHE COM MEDO. COSCORO
CONTM UM POUCO O MPETO DA FRIA.) H quanto tempo?
ALVINA
Trs anos!
COSCORO
ALVINA
COSCORO
(IRRITANDO-SE) Era mesmo! Gente de fora do circo! Onde voc est com a cabea, Alvina! Quantas histrias dessas voc j
ouviu contar e todas com o mesmo final?! (ALVINA PERMANECE INFLEXVEL) Se ao menos ele viesse viver no circo, aprendia nosso trabalho, nosso jeito... A gente diferente, filha!
Gente que no do circo no entende nossa profisso.
ALVINA
COSCORO
Vai ser sempre! No porque voc quer, mas porque eles, os outros, querem! Voc vai ouvir muito s podia ser de circo!
quando voc fizer qualquer coisa que no gostem! J sofri isso,
voc j sofreu isso!
ALVINA
COSCORO
Gosta de quem? Da artista, da bailarina, da volante, da contorcionista ou de voc mesma? Essa gente no quer nos ver no
dia a dia, filha!
30
ALVINA
Eu vou casar com ele, pai, e vou embora do circo! E vou com
sua beno ou sem ela!
COSCORO
ALVINA
COSCORO
(RETOMA O CONTROLE) claro que no, merda! Embora devesse! (DESABA, EMOCIONADO) No quero que voc deixe a
gente. Nunca pensei! J passou at pela minha cabea a dor
que sentiria se voc morresse, mas ir embora... Isso nunca
pensei... Sempre pensei na famlia junta, trabalhando, ensinando filhos, netos... Uma coisa sem fim como sempre foi. (COM
UMA EMOO DESESPERADA) Se eu bater em voc, voc
desiste dessa loucura?! (ALVINA, APS UM MOMENTO DE
INDECISO, APROXIMA-SE E ABRAA O PAI. CHORAM
ABRAADOS)
ALVINA
COSCORO
VINDA DO FUNDO, DO ESCURO, UMA MULHER SE APROXIMA. COSCORO FIXA O OLHAR, MAS NO CONSEGUE RECONHEC-LA. ELA CHEGA
PERTO, MRIA.
31
COSCORO
MRIA
COSCORO
MRIA
Todo mundo perdeu e no de hoje! Cad os circos? H algum tempo todo mundo vem perdendo a vontade de tudo!
COSCORO
, as famlias foram deixando, abandonando... o pblico foi abandonando... Se at as famlias mais tradicionais esto desistindo...
MRIA
COSCORO
verdade.
MRIA
COSCORO
MRIA
COSCORO
Lembro bem!
MRIA
(ALHEIA, IRRITADA) E, agora, olha s como est isto aqui! Ferrugem, aparelho sem cuidado, cordas velhas, lona rasgada sem
o carinho de um remendo! Eu j falei pra Grgori, mas ele no
toma providncia! (COSCORO COMEA A RIR)
32
COSCORO
MRIA
claro que morri, voc se lembra. J tinha passado dos noventa, cheia de imagens de tantas andanas e tantos espetculos.
Era noite de espetculo e soprava um vento de chuva no calor
daquele vero.O volante se preparou para o mortal no trapzio
e se lanou... No vi o final do salto. S percebi que estava cada por causa do cheiro de terra e serragem nova. E s ouvi,
longe, os gritos e aplausos para os trapezistas. E disse a mim
mesma, com certeza: estou morrendo. Acho que o corao
no suportou, to cheio estava de anos e lembranas! (COSCORO SE AGITA NA CADEIRA)
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
(SEM DAR IMPORTNCIA) Medo do que, seu Coscoro, o senhor sempre v coisa! Est at me vendo! Est vendo a minha
alma porque eu tambm j morri h muito tempo!
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
S pra relembrar!
33
XIMBEVA
COSCORO
Hoje no pode?
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
Estamos sozinhos!
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
Nem implorando.
COSCORO
Por favor!
XIMBEVA
Nem rezando.
COSCORO
Faz.
XIMBEVA
No.
COSCORO
Sim.
XIMBEVA
No!
COSCORO
XIMBEVA
COSCORO
Matar?
34
XIMBEVA
(ENTEDIADO) Eu desmaio e voc pensa que me matou. Esconde meu corpo no poro e, a, eu acordo e venho te assustar.
Como quer fazer a cena se no lembra? (RI COMO FANTASMA. E DE SACO CHEIO DESMONTA O PERSONAGEM. )
COSCORO
No, no precisa! Eu quero o momento quando o fantasma entrava sem eu perceber e apagava a vela. O povo ria!
XIMBEVA
COSCORO
XIMBEVA
Precisei de tempo pra entender e aceitar o que acabara de acontecer. Depois corri, gritei e tudo o que eu sentia por aquele
velho, que no era pouco, virou a substncia sem solidez do
choro. Parece coisa inventada, mas juro que aconteceu assim,
sem mais nem menos, como prprio do mistrio da morte.
(APAGA COM OS DEDOS A CHAMA DA VELA E A CENA
TORNA-SE ESCURO)
35
36
Ozor, o livro!
OZOR
(ABRINDO UM GRANDE LIVRO) J est na mo! Os olhos agudos em pala, a boca tem nsia de fala e a alma livre de com-
37
Comece a leitura!
OZOR
GIGANTE
COSCORO
(IRRITADO, SEGUINDO AS DECLAMAES RIMADAS) pera, pera l, com licena! Se voc pensa...
GIGANTE
COSCORO
GIGANTE
Crimes de sangue?
OZOR
Nenhum!
GIGANTE
GIGANTE
Saques,
violncias?
(OZOR
A)Nenhunzinho? Olha direito!
COSCORO
GIGANTE
Quieto!
COSCORO
GIGANTE
OZOR
MENEIA
CABE-
38
OZOR
Setecentos e quinze!
GIGANTE
OZOR
COSCORO
OZOR
COSCORO
GIGANTE
Soberba?
OZOR
COSCORO
Tudo isso?
OZOR
COSCORO
OZOR
COSCORO
OZOR
COSCORO
39
GIGANTE
COSCORO
GIGANTE
O homem se mede por aquilo que faz e contra fatos no h argumentos. Medidos e pesados os atos da vida nada mais resta
a no ser ditar a sentena. Ozor!
OZOR
GIGANTE
Entre risotas pobres de comdias tolas e lgrimas fceis de melodramas gastou o tesouro da vida!
COSCORO
GIGANTE
COSCORO
40
OZOR
COSCORO
Ento, eu lembro e conto porque estava l: Coscoro subitamente rompeu a imobilidade e o silncio e comeou a declamar
um velho poema de circo.
Um homem triste, marcado
Por desventuras na vida
Buscou mudar o seu fado
E a cura dalma ferida.
Foi ver doutor afamado,
Repleto de louros e palmas
Na profisso aclamado,
E com ele abriu sua alma.
Doutor, me rara a alegria
Meus dias seguem tristonhos
Esperana vossa maestria
Um riso franco meu sonho.
Amigo, eu tenho um remdio
Que espanta toda amargura
Dor dalma, tristeza e tdio,
E doenas iguais ele cura.
H um circo, aqui, nesta praa
Nele um famoso palhao
Mestre da arte e da graa
Ele a receita que passo.
Ergueu-se, ento, o cliente
Calado, andou pela sala
Estalou a lngua nos dentes
E, triste, deu sua fala.
Ento, meu caso sem jeito
Minha busca aqui cessa o passo
Remdio algum faz efeito
Doutor, sou eu o palhao. (SENTA-SE. PAUSA. SORRI, BREJEIRO) Desculpem, nada de melhor ocorreu em minha defesa.
41
COSCORO
OZOR
FIM
42
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