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O Auto Do Circo

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O AUTO DO CIRCO

De Lus Alberto de Abreu

Texto escrito especialmente para a

Cia Estvel de Repertrio


para a direo de Renata Zhanetta

Ateno: Texto registrado e distribudo em carter puramente de uso e leitura


PESSOAL. Todos os direitos reservados aos detentores legais dos direitos da
obra. Para a representao e comercializao legal da pea, entrar em contato
com o autor atravs do e-mail: luabreu@uol.com.br

Prlogo
UMA MSICA MELANCLICA TIRADA DE UM VIOLINO INVADE O AMBIENTE, UMA MSICA COMO A TOCADA NA ANTIGA HORA DA AVE-MARIA,
QUE TODOS OS DIAS, S SEIS DA TARDE, SE OUVIA NO RDIO. ENTRA
XIMBEVA, UM PALHAO JOVEM, DE CABELO BASTO E ESPETADO, SOBRANCELHAS GROSSAS E UNIDAS, EMPURRANDO NUMA CADEIRA DE
RODAS, COSCORO, UM PALHAO VELHO, CARECA E CUJA MEMRIA
SOFRE AUSNCIAS. XIMBEVA EMPURRA A CADEIRA SEGUINDO A CADNCIA DA MSICA. VOLTA E MEIA SUSPIRA FUNDO COMO SE ESTIVESSE PRESTES A CHORAR. DEPOIS DE ALGUMAS VOLTAS PELO PALCO, PARA NO CENTRO DO MESMO. CHORA, TIRA UM LENO AMARROTADO DO BOLSO, ASSOA O NARIZ E COM O MESMO LENO SE PE A
LIMPAR E A LUSTRAR A CARECA DO VELHO. LIMPA AS ORELHAS DO
PALHAO VELHO COM ENERGIA. VAI JUNTANDO A CERA DE OUVIDO
EXTRADA AT FORMAR UMA BOLINHA. CONTEMPLA A BOLINHA ENTRE OS DEDOS E NO SABE O QUE FAZER COM ELA. PENSA EM JOGAR
NO CHO, EM COLOCAR NO BOLSO, EM JOGAR NA PLATIA, MAS NO
SE DECIDE POR NADA DISSO. POR FIM, A ENFIA DE NOVO NO OUVIDO
DO PALHAO VELHO E SOCA COM O DEDO. CONTINUA A LIMPEZA,
COSPE NO LENO PARA UMEDEC-LO E, COM ELE, ESFREGA A CARA
DO VELHO QUE MESMO DE OLHOS FECHADOS FAZ CARA DE NOJO E
TENTA AFASTAR-SE DO LENO. XIMBEVA, COM O LENO, ENFIA O DEDO NO NARIZ DO VELHO QUE GEME. COMPLETA A LIMPEZA BATENDO
COM LENO NO VELHO COMO SE O ESPANASSE. UMA VOZ AO MICROFONE O CHAMA.
VOZ

Ximbeva! Ximbeva! (XIMBEVA PRA ASSUSTADO E PROCURA A ORIGEM DA VOZ) Aqui, Ximbeva. (XIMBEVA PROCURA) Dentro de voc! (XIMBEVA APALPA A CABEA) No
na cabea! (XIMBEVA APALPA A BARRIGA) A, no! (DESCONFIADO APALPA A BUNDA. VOZ FALA IRRITADA) No corao, sua besta! Sou a voz da sua conscincia! (XIMBEVA
SORRI) Tenho acompanhado com que carinho voc trata Coscoro, esse velho palhao, que tantas glrias deu ao circo, alegrou tantas platias, fez rir tantas crianas (XIMBEVA BEIJA A
CARECA DE COSCORO, COSPE SOBRE ELA E LUSTRA) e,

agora est a, entrevado, incapaz, carregando o fardo, a sina


que Deus lhe deu... (XIMBEVA SUSPIRA E CHORA) Foi ele
que lhe ensinou a profisso de palhao, no foi? (XIMBEVA
FAZ GESTO AFIRMATIVO) Era severo, disciplinador, dava-lhe
uns cascudos de vez em sempre, era carrasco mesmo! (XIMBEVA COM RAIVA D UM TAPA NA CABEA DE COSCORO, ARRANCA-LHE CABELOS DA CARECA E, TRANSTORNADO, MORDE A CABEA DE COSCORO) Mas bem
que foi ele que lhe acolheu quando lhe abandonaram, recmnascido, na entrada do circo, numa caixa de sapato: nu, feio,
zoido e cago! Ele lhe alimentou, ninou, limpou a bunda! Voc
era filho da me-rua e no quero nem imaginar quem foi seu
pai! (XIMBEVA DEPOIS DE UM MOMENTO DE ESPANTO,
INQUERE COM GESTOS A VOZ) isso, mesmo! Naquele
tempo voc j era o que continua sendo at hoje: um traste, cacaru sem prstimo, ruim at de se jogar fora! Um couro de
bruaca velha que no vale a tira rebentada de uma chinela havaiana gasta! E tem mais! Muito mais... (ENQUANTO A VOZ
FALA XIMBEVA DEPOIS DE OLHAR PARA AS COXIAS, FAZ
SINAL DE AGUARDE AO PBLICO E SAI. OUVE-SE BARULHO E GRITO DA VOZ DO MICROFONE. XIMBEVA VOLTA
ORGULHOSO, LIMPANDO AS MOS. OLHA COSCORO,
APONTA-O EMOCIONADO, E SE SACODE COMO SE ESTIVESSE CHORANDO EM SILNCIO. DEPOIS, OLHA-O DE
SOSLAIO, FAZ BEIO IRRITADO E APLICA-LHE UM CASCUDO.)
XIMBEVA

(AO PBLICO) Se esto com d porque no sabem o que eu


passo! Estou preso a esse traste como agulha e linha, mo e
luva, unha e carne, cu e cala!

COSCORO

(SEM SE MOVER ) Eu sou a cala!

XIMBEVA

H anos! H anos cuido, levo pra passear, ponho no sol pra tirar o mofo, lavo e limpo! E esse velho desgraado come o
mesmo que todo mundo, mas no sei que mistrio da natureza
se esconde nas tripas desse homem que desanda tudo o que
cai ali! Aquilo um sorvedouro e manjar fino, bebidas aromticas, sobremesas delicadas, tudo vira gs pestilento! At gua

benta! J dei pra ele beber ch de jasmim, gua de rosas, cndida, ajax pra ver se limpava a tubulao, mas no teve jeito!
Quem quiser, eu dou dado de papel passado! Mas quem quer?!
J esqueci, sem querer, trs vezes, mas paradas do circo, mas
o povo vem sempre devolver! (COSCORO ESPREGUIA-SE
E BOCEJA ACORDANDO)
COSCORO

(AO PBLICO) Boa noite... mas s pra quem merece! E que


no devem ser muitos!

XIMBEVA

Ih, comeou!

COSCORO

Enquanto o Ximbeva cala a boca, de onde no sai coisa que se


aproveite, eu digo pra vocs que isso aqui um circo de respeito e respeito uma qualidade rara e nunca demais! Quero
que vocs todos, sem exceo, se divirtam... quando for a hora!
Detesto, odeio risadas na parte do drama da mesma forma que
tenho ojeriza de seriedade na hora da comdia!

XIMBEVA

Eu aviso quando for uma ou outra. Agora, por exemplo, a parte cmica! Esperem s o drama pra ver!

COSCORO

Pra quem ainda no sabe, sou o palhao Coscoro, dono deste


circo, da lona, dos aparelhos, das cadeiras onde vocs esto
sentados...

XIMBEVA

Do mau humor...

COSCORO

(INTENCIONAL) Dos animais! Sou de tradicional famlia circense, um dos poucos ainda na ativa que fazem o legtimo espetculo circense... e o que vocs iro assistir, muito comportados e
respeitosos a histria da minha famlia que mistura nobres
franceses...

XIMBEVA

Ciganos da Hungria...

COSCORO

com aristocratas italianos...

XIMBEVA

rueiros da Calbria...

COSCORO

artistas da Inglaterra...

XIMBEVA

vagabundos da Saxnia...

COSCORO

Os mais admirveis artistas dos palcos e picadeiros...

XIMBEVA

Saltimbancos de rua, atores de cabar, cantores de feira...

COSCORO

Que vieram ao Brasil no sculo XIX, a convite do prprio imperador D. Pedro II!

XIMBEVA

Vieram ao Brasil socados no fundo de um poro de navio que


Europa no sculo XIX era uma misria s. Mas tudo isso s
meia verdade porque Coscoro era, mesmo, filho de um peludo
que se agregou ao circo nas andanas pelo Brasil!

COSCORO

Dobre a lngua, tome banho e bote gravata para falar da minha


famlia!... (COSCORO PRA O GESTO NO AR E OLHA PARA XIMBEVA COM AR ALHEIO)

XIMBEVA

Pronto! tava demorando! A memria de Coscoro est com a


pilha gasta e seu crebro est com problema no arranque!

COSCORO

Do que que eu estava falando? Tenho frio nas pernas! Anda,


Ximbeva, me leve pro sol!

XIMBEVA

Ximbeva isso, Ximbeva aquilo! L vamos ns! (EMPURRA A


CADEIRA DE RODAS) Essa a vida de Ximbeva: olhar e cuidar do velho palhao.

COSCORO

(AO PBLICO) Esta a vida de Coscoro: alinhar e dar sentido


s poucas e caras lembranas que lhe restam. E todas elas so
de circo. (SBITO, GRITA PARA XIMBEVA) Para! Que aquilo que eu estou vendo? (APONTA PARA UMA MULHER QUE
ENTRA NO PALCO ARRASTANDO UM BA)

XIMBEVA

No moro na sua cabea! Sei l que diabo de alucinao voc


est vendo agora.

COSCORO

Uma bela mulher de chapu... com xale e um camafeu no peito.

XIMBEVA

Puxando um ba? sua av quando ainda no era sua av.


chegando ao porto do Rio com a famlia! Todo dia voc lembra

a mesma coisa! (XIMBEVA EMPURRA A CADEIRA DE RODAS


COM COSCORO PARA FORA)

CENA 1 A chegada e os primeiros tempos

SOM DE SIRENA DE NAVIO. UMA TRUPE DE IMIGRANTES SALTIMBANCOS ENTRA NO PALCO CARREGANDO SUAS TRALHAS LIDERADAS POR
UMA MATRIARCA COM UM SOTAQUE CUJA ORIGEM INDEFINVEL.
MRIA

Terra, finalmente! Terra, Deus Bendito! Deus fez o mar, o homem fez o navio... (D UM TAPA NUM SENHOR A SEU LADO) e sua cabea, Grgori, inventou de nos colocar dentro dele!
(GRANDILOQUENTE) Virish crina! Idiota fui, idiota no serei
mais! Quero ser um co se voc me convence de outra!

GRGORI

(MANSO) Estamos todos aqui, na Amrica, e vivos!

MRIA

No fala comigo! Nunca tive tanto medo, tanto desarranjo nas


tripas, nem tanta vontade de ser sua viva!

GRGORI

Mas, chega! J ouvi suas lamentaes por trinta dias!

MRIA

E ainda vai ouvir por trinta anos! Gravtch, nia!

GRGORI

(RESMUNGA INCONFORMADO) Strbitch tria!

MIRA

(FORA A VISTA COMO SE LESSE UMA PLACA. SOLETRA


COM DIFICULDADE)) Ri-o de Ja-ne-i-ro... (ESPANTADA) Rio
de Janeiro? A gente no estava indo para o porto de Nova
York?

MIRKO

Aqui Amrica do Sul! (MRIA OLHA FURIOSA PARA GRGORI QUE SE ENCOLHE COM MEDO. GRITA ELEVANDO AS
MOS PARA O CU)

MRIA

Vikrm Brch! Vikrm Borch! (FORMA-SE UM TUMULTO ENTRE A TRUPE. DISCUTEM, BRIGAM E FAZEM MENO DE
SAIR, VOLTANDO AO NAVIO. MRIA GRITA) Nem morta!

Nem morta e seca eu piso num navio em todo o meu resto de


vida! Ficamos aqui!
MIRKO

Me Mria...

GRGORI

melhor. E sei, de ouvir dizer de fonte segura, que este pas,


Argentina, recebe muito bem aos artistas. (MRIA FULMINA
GRGORI COM O OLHAR. TRUPE CIRCENSE CARREGA
SUAS TRALHAS E COMEA A FAZER NMEROS SIMPLES
DE SALTIMBANCOS DE RUA - NMEROS DE ACROBACIAS,
FORA, MALABARISMO, MGICA. XIMBEVA ENTRA EMPURRANDO VELOZMENTE COSCORO NA CADEIRA DE
RODAS. COSCORO AGARRA-SE ASSUSTADO CADEIRA.
XIMBEVA EXECUTA UMA FREADA BRUSCA. COSCORO
PROJETADO PARA FORA DA CADEIRA, MAS IMEDIATAMENTE ASSUME A PERSONALIDADE DE NARRADOR TALVEZ SE DESFAZENDO DE SUA CARECA. AO PBLICO)

COSCORO

Os primeiros tempos no foram fceis para os antepassados de


Coscoro. Gente pobre, de qualquer raa ou nacionalidade,
tem, em primeiro lugar, o pssimo hbito de existir. E, em segundo lugar, o malfadado hbito de continuarem existindo, o
que incomoda muito as autoridades. (ENTRA UM GUARDA
REPRESENTADO APENAS POR UM CHAPU MILITAR)

GUARDA

Que desordem essa, cambada de desocupados?

GRGORI

Non, desocupado! Trabalho... artista!

GUARDA

Vo caar ofcio decente que artistas j temos os nossos, que


so poucos e podiam ser menos ainda! Vo fazer a artizinha
de vocs l pros arrebaldes, l pras montanhas, l pra sada do
mundo! Isso aqui capital do imprio!

GRGORI

Mostrei minha arte para o rei da Frana!

GUARDA

Ele no gostou e mandou todos vocs pra c! Eu no gostei e


estou mandando circular! (SAI)

GRGORI

No vamos sair!

MRIA

Vamos! Polcia aqui tem a mesma cara que no nosso pas! E


deve agir igual! Vamos andar que um dia a gente encontra parada.

GRGORI

Pra onde?

MRIA

Pra quem no tem pra onde ir qualquer rumo caminho!

A TRUPE JUNTA AS TRALHAS E COMEA SUA PEREGRINAO.


COSCORO

E assim foi. Saram no caminho de So Paulo que comeava a


enriquecer com o caf, entortaram no rumo de Minas de muitas
cidades, esbarraram at na divisa da Bahia e voltaram pisando
nos passos que tinham ido. Sempre a procura de festas, feiras,
colheitas e comemoraes pblicas onde pudessem trocar sua
arte por meios de melhor vida. (ATOR SENTA-SE NA CADEIRA
DE RODAS E ASSUME A PERSONALIDADE DE COSCORO)

XIMBEVA

Tanto isso verdade que, digo a vocs, at o fim da vida, este


velho palhao, j com a memria falha, quase branca de imagens, ainda se lembra das andanas que sua av Mria contava, pelos sertes do Brasil do final do sculo XIX. E se os primeiros tempos no foram fceis, os tempos verdadeiramente difceis vieram logo depois. O circo dos meus avs comeou com
um tapa-beco.

Cena 2 Um equvoco cmico e a primeira tragdia

ATORES FECHAM COM UM PANO PRESO A VARAS A METADE DO PALCO, FICANDO REDUZIDA A REPRESENTAO A POUCO MAIS QUE O
PROSCNIO. UMA CRIANA ATRS DO PANO TENTA VER O ESPETCULO DENTRO DA EMPANADA SENDO AFUNGENTADA POR UM DOS ATORES. O ESPETCULO BASTANTE SIMPLES COM NMEROS DE FORA,
MALABARISMO, CONTORCIONISMO, ETC. GRGORI D INCIO AO ESPETCULO. TEM UM FORTE SOTAQUE.
GRGORI

Boa tarde, distinto pblico! Perdo por no ter ainda aprendido


perfeitamente vossa adorvel lngua. Uma das mais belas do

mundo, eu afirmo, pois falo nada menos que sete idiomas. Nossa trupe viajou pela China dos Mandarins, Japo dos Samurais,
pela misteriosa ndia dos Marajs e por todos os reinados e repblicas da Europa. Cabeas coroadas de todo o mundo aplaudiram nossos artistas! (TEM INCIO O ESPETCULO)
XIMBEVA

O circo de tapa-beco no era mais do que fechar com panos os


fundos e a frente de um terreno entre duas casas. Ali se fazia o
espetculo.

GRGORI

A nossa ninfa, Mira, danou na corte francesa, prendeu olhares


dos xeiques rabes, provocou suspiros dos nobres de Veneza.
(MIRA DANA ENVOLTA EM VUS. APS DA DANA, RUFAM OS TAMBORES E XIMBEVA ANUNCIA)

XIMBEVA

Se nossa ninfa grega encheu vossos olhos preparai, agora,


vossos coraes! Vai se materializar aqui, agora, para vosso
sorriso e felicidade, a beldade, a graa, aquela que desprezou
prncipes persas e califas muulmanos! A deusa pag que encantou, enterneceu, enlouqueceu o Sulto de Bagd, Harum AlRachid! (ENTRA O SULTO) Para vosso gudio, Anabela de
Roterd!

ENTRA GRGORI COMO BELDADE DANANDO UM LUNDU NO QUAL TIRA


SETE CALOLAS. CANTAM.
SULTO

Te dou sete reinos,


Sete vestidos de brocado
Meu califado, meu tesouro
Um pote de ouro em p
Se voc me der
Uma coisa s! (bis)
Muitas libras esterlinas
Rubi, brilhante, jias finas
Vou te tratar a po de l
Se voc me der
Uma coisa s! (bis)
Muitas terras de fazenda
Mil e uma oferendas

Peles, brincos, lhe dou tudo


Sem ter d.
Se voc me der
Uma coisa s!
GRGORI

Sestrepou Sulto safado


Fique com seu califado
A zelar eu tenho um nome
No sou fruta que se morde
Nem biscoito que se come
No sou deusa, eu sou homem!

SULTO

Pois eu digo, Que me importa!


A casa tem muitas portas
Um amor tem muitos nomes
Palavra no volta atrs
Voc j me satisfaz
Vem matar a minha fome!

SAI ATRS DE GRGORI. OUVE-SE UM SINO TOCAR LENTAMENTE. A


TRUPE CONTINUA SUA PEREGRINAO. COSCORO SENTA-SE EM SUA
CADEIRA DE RODAS.
COSCORO

A famlia, contava minha av Mria, continuava suas andanas


l nos fundos do tempo, nos idos dos anos 90, no final do sculo XIX. Essa lembrana foi a que ela trouxe ntida at o final dos
seus anos. (MRIA SE DESTACA DA TRUPE E VEM AO
PROSCNIO)

MRIA

Era tempo de chuva, lembro bem, dessas chuvas sem fim de


outono. Nas estradas solitrias dos confins de Minas, nossas
duas carroas atolavam na lama, os focinhos das mulas se abriam e roncavam de esforo. Roupas, gente, carroa, tudo era
mido e salpicado de barro vermelho. Tristeza e frio. Tristeza e
tosse de Grgori. (MRIA FECHA OS OLHOS COM FORA.
COSCORO CONTINUA A NARRAO.)

MIRA

H dez anos, ainda na Europa, uma tuberculose mal curada tinha decretado que pai Grgori morreria dos pulmes. Tenho ca-

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cos de vidro no peito, parece, escutei pai Grgori gemer. (COBRE A BOCA COM A MO)
XIMBEVA

Voc no vai me deixar s, aqui, nessa beira de mundo!, rosnou


Mria, com raiva, como se fosse uma ordem. Grgori no obedeceu.

MIRA

Estranhei quando me Mria desceu da carroa em silncio e


se afastou pelo campo de mato ralo, debaixo da chuva grossa.
(MRIA GRITA SEM SOM) Depois, seu grito trincou o ar e o silncio daquele descampado. Chorei sabendo j que meu pai
estava morto.

COSCORO

Parou de chover no dia seguinte. Subia neblina quente debaixo


de um sol ardido quando ele foi enterrado beira da estrada, na
terra mida. Naquela imensido perdida no mundo fazia um silncio de doer nos ouvidos.

MRIA

Soube ento que queria morrer nesta mesma terra. E sei que
amei Grgori muito, com dureza e raiva, como, s vezes, o
amor de gente como ns. E porque se ama de muitos jeitos.

XIMBEVA

Disso tudo sabemos porque Coscoro, cujas lembranas agora


se perdem pra sempre, nos contou essa histria muitas e muitas vezes. (O SINO AINDA TOCA)

Cena 3 Um peludo na paixo de Cristo

COSCORO

O tempo passou e, como sempre, foi fechando feridas, saneando cortes e serenando os coraes. Mas no apagou as lembranas. Ainda hoje tenho ntida a imagem de Grgori como minha av contava. Ele era... (SUA MEMRIA SE ESVAI. OLHA
PARA XIMBEVA COM O ROSTO SEM EXPRESSO. ESTE RI
E EMPURRA A CADEIRA DE RODAS PARA PERTO DE MRIA. ELA CONTA DIRETAMENTE A COSCORO COMO SE
ELE FOSSE CRIANA)

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MRIA

Passamos pelo circo de pau fincado, de pau a pique, de pano


de roda. (ARMA-SE O PANO DE RODA QUE ENCOBRE OS
ATORES COM EXCEO DE MRIA, COSCORO E XIMBEVA QUE SE SITUAM FORA DO PANO) Seguamos, cidade por
cidade, a rota de outros artistas e, nesse tempo, o circo cresceu. Mirko casou com uma aramista de nossa terra, mas no
teve filhos, por culpa da mulher, ele acusava. Coitada. E, assim
foi, e nessas andanas, o sculo virou e o mundo no acabou
como muita gente acreditava. Foi nessa poca que ele apareceu.(SAEM XIMBEVA E COSCORO. MIRKO SE APROXIMA)

MIRKO

Ele t a. Vem seguindo a gente desde Lagoinha, trinta quilmetros pra trs. No gostei dele.

MRIA

Voc j me disse.

MIRKO

Mas voc que decide.

MRIA

Sim, sou eu que decido. (ENTRA O PELUDO. UM TIPO ROCEIRO, TMIDO, MAS ENRGICO. MANTM-SE DISTNCIA COM CABEA BAIXA, HUMILDE. MIRKO SAI IRRITADO.)
Que que quer?

PELUDO

Ficar no circo.

MRIA

Que que sabe fazer?

PELUDO

(PAUSA) Sei aprender.

MRIA

Tem famlia?

PELUDO

Tem uns, a, esparramado.

MRIA

Casado? (PELUDO NEGA COM A CABEA) Filhos? (PELUDO


NEGA) Nenhum?

PELUDO

Ainda no sei de mulher.

MRIA

Se achega. (PELUDO SE APROXIMA CONSERVANDO SEMPRE A CABEA BAIXA. MRIA O MEDE. IRRITADA) Levanta
a cabea e me olha de frente que voc no nenhum coitado!
(PELUDO LEVANTA A CABEA E ENCARA MRIA. SUS-

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TENTAM O OLHAR POR ALGUM TEMPO) Gostei do rapaz.


Era gente dura, mas no tinha sombra no olhar. Olhar limpo no
esconde maldade. (AO PELUDO) No tem pagamento. S comida e canto pra dormir.
PELUDO

Est bem, mas quero aprender as arte de ocs.

MRIA

Seu nome?

PELUDO

Ozr.

MRIA

Osrio?

PELUDO

Me chamo Ozr, mas capaz que seja Osrio.

(ATORES A-

BREM O PANO DE RODA PARA O INCIO DO ESPETCULO.


PELUDO SE PARAMENTA COMO SOLDADO ROMANO. ENTRA UM APRESENTADOR. H UM RUFO DE TAMBOR E
DEPOIS BATIDAS LENTAS, CADENCIADAS, INDICANDO UM
CLIMA MAIS GRAVE.)
APRES.

Muito respeitvel pblico, bons amigos desta cidade! Esta semana nosso circo no tem riso. semana de contrio e respeito. semana de dor e lembrana. Esta semana no temos palhao, mas temos a representao de Deus que andou um dia
na terra e morreu por ns! A vida, paixo e morte de Nosso
Senhor Jesus Cristo!
Aberto seja o vosso corao
Porque a graa de Deus emana
E seja santa esta representao
Como santa esta semana. (CORO DE MULHERES CANTA
MSICA DA PAIXO DE CRISTO, TALVEZ UMA VERNICA)

XIMBEVA

O circo lotava e a cidade inteira seguia comovida os passos da


paixo. Vocs no tem idia do que era uma sexta-feira santa
naqueles tempos. As cidades e povoados amanheciam em silncio e tristes. No se cantava, no se trabalhava, no se bebia, ningum gritava. Cada homem, mulher, criana e at bicho

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fechava-se dentro de si, dentro do silncio que parecia tomar o


mundo. (ENTRA MIRKO COMO CRISTO CONDUZINDO UMA
PESADA CRUZ. PRA EM FRENTE DA VERNICA QUE LHE
ENXUGA O ROSTO E EXPE AO PBLICO A IMAGEM DE
CRISTO ESTAMPADA NO PANO. O CANTO DO CORO
CRESCE EM INTENSIDADE.)
CRISTO

No choreis por mim, filhas de Jerusalm!


No choreis agora,
Choreis pelos tempos que vem
No choreis por fora
Choreis por dentro
No choreis por mim
Chorai por vossos rebentos! (CRISTO CONTINUA SUA CAMINHADA. PELUDO, COMO SOLDADO ROMANO, DESCE-LHE
O RELHO, MAS DESCE COM TANTA FORA E COM TANTO
MAU JEITO QUE MIRKO GEME DE FATO. CORO CONTINUA
O CANTO. CRISTO CONTINUA A CAMINHADA. SOLDADO
BATE-LHE NOVAMENTE FORTE. MIRKO SENTE A PANCADA E OLHA INCISIVAMENTE PARA PELUDO. ESTE NEM SE
APERCEBE. UMA DAS MULHERES DO CORO INTERVM.)

MULHER

No bata to forte no coitado!

MRIA

Sob o peso da dor e do sofrimento Cristo sofre a segunda queda! (CRISTO CAI SOB A CRUZ. SOLDADO BATE-LHE. CRISTO COM ESFORO LEVANTA-SE, MAS FURIOSO COM AS
PANCADAS DE PELUDO SOLTA A CRUZ NO CHO E AVANA PARA ELE. MRIA ENTRA NO MEIO DELES EVITANDO O PIOR. COMO VOZ ALTA NARRA AO PBLICO
COMO SE O ACIDENTE FIZESSE PARTE DO ESPETCULO.)
A parte humana de Cristo revolta-se com a humilhao e a dor!
(INCISIVA, PARA MIRKO) Mas ele tambm era Deus e sujeitou-se vontade do Pai. ( MIRKO AINDA ENCARA O PELUDO
QUE SE ENCOLHE. MRIA ORDENA A MIRKO) Cristo aceita

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sua paixo... (MIRKO PEGA A CRUZ E AINDA LANA UM


OLHAR IRADO A PELUDO) por nossos pecados... (CENA SEGUE. MRIA CONCLUI...) E por amor de todos ns!
CORO CANTANDO FECHA A REPRESENTAO COM O PANO DE RODA.
MAL O PANO DE RODA SE FECHA, ESTOURA DENTRO DELE BRIGA A
DISCUSSO. O CORO AUMENTA A ALTURA DO CANTO.

Cena 4 A era romntica do circo e de Mira


OZR E MIRA TREINAM NO TRAPZIO AO MESMO TEMPO EM QUE BATEM O TEXTO DE UM MELODRAMA. OZR J TEM UMA DESENVOLTURA TANTO FSICA QUANTO DE COMPORTAMENTO QUE O DIFERENCIA
DE SEU PRIMEIRO DIA NO CIRCO.
MIRA

Que hei de fazer se me fazem tal calnia? Quem h de acreditar-me?

OZR

Eu creio em tua inocncia.

MIRA

Tu e ningum mais. Quem h de acreditar nas palavras de um


tolo? No, meu fiel Felipe, minha situao no ter recurso nem
consolo!

OZR

Foge!

MIRA

Fugir! Tens razo. Meu caminho tomar a estrada que me afaste da malcia e da calnia do mundo. (SOMBRIA) Minha vontade ter determinao e meu corao ter coragem?

OZR

Sigo com a senhora.

MIRA

Pra onde vou se vai s. E l no se chega viva! (LANA-SE.


OZR A SEGURA) Deixa-me!

OZR

Pergunta brisa se ela deixa os campos, se a luz abandona a


lua, se o orvalho se separa das manhs de outono. Deixar-te
ofensa. Pergunta ao co se ele deixa o dono, se minha alma fiel
se afasta da tua presena. (OZR BEIJA MIRA)

MIRA

Essas falas no so suas. (OZR A BEIJA NOVAMENTE)

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OZR

Sempre foram! (MIRA SE SOLTA DE OZR, AFASTA-SE RAPIDAMENTE) Eita!, que corao da gente s faz o que quer!
Agora, segurar a bomba no dente e o rojo na mo! (SALTA
DO TRAPZIO. MRIA E MIRKO ENTRAM) Dona Mria!

MRIA

Depois, Osrio!

OZR

Depois a senhora vai saber pela boca de outro. (MRIA PARA


E ESPERA. PAUSA. OZR COMEA A FALAR COM DIFICULDADE, DEPOIS VAI DE SOPETO) Garrei a gostar da
menina Mira. De paixo. Agora, ou a menina gosta de mim o
mesmo tanto, ou a senhora permite o enrosco, ou vou ter de sair por esse mundo pra nunca mais!

MIRKO

Ou algum lhe quebra e te expulsa a p na bunda! (AVANA


PARA OZR)

MRIA

Mirko! (MIRKO PARA)

MIRKO

Isso coisa de homem, me!

MRIA

Quem decide se de homem ou de mulher sou eu! (A OZR)


Desde quando?

OZR

(ATRAPALHADO) Deveras comeou hoje, agora. Mas aflio


de gostar j t em mim h de muito tempo, acho. (MRIA
SORRI)

MRIA

Sai! (OZR SAI)

MIRKO

(FURIOSO) Tem de chutar esse um!

MRIA

um bom empregado...vai ser bom artista...

MIRKO

gente sem famlia...

MRIA

Tem inteligncia...

MIRKO

um natural da terra, no como ns!

MRIA

No como? Que que ns somos? Estamos melhor aqui do


que na nossa terra onde dividamos uma batata em quatro. L,

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eu chorava nas primeiras neves porque no sabia se estaramos vivos ao final do inverno!
MIRKO

No disso que estou falando!

MRIA

! Gente nossa no quem nasceu em nossa cidade. Voc j


viu o palhao Benjamin. Negro retinto, filho de escravo. Ele
gente nossa! No a terra, nem mesmo os parentes: a arte,
esse trabalho que nos faz iguais. Nosso povo o circo.

MIRKO

Pai Grgori prezava o nome de famlia!

MRIA

(IRRITADA) Pai Grgori j parte dessa terra como ns vamos


ser! No invoque o testemunho de um morto! Um morto no
muda de opinio como um vivo tem de mudar. (MIRKO SAI IRRITADO. MRIA SUSPIRA CANSADA. PARA SI.) E, sobretudo, no renove a minha saudade. (E SE AFASTA. ENTRAM
OZR E MIRA DE LADO OPOSTOS. PARAM.)

OZR

Mira...

MIRA

(IRRITADSSIMA) Que que voc foi falar com minha me? Eu


j lhe disse, alguma vez, que gostava de voc?

OZR

No.

MIRA

J recebi presente seu? J lhe elogiei sem preciso? J gabei


seus modos? (MENEIA A CABEA NEGATIVAMENTE) Ento!

OZR

O seu olhar... eu pensei...

MIRA

(CORTANDO) Que que tem meu olhar? Eu olho pros cavalos, pra lona, pro trapzio... no sou cega!

OZR

Voc me desculpe.

MIRA

No desculpo, no! A confuso que voc me arrumou no desculpo nunca! (VOLTA-LHE AS COSTAS E CRUZA OS BRAOS, EMBURRADA.)

OZR

Ento, Adeus! (VIRA-SE E SE DIRIGE SADA. MIRA VOLTASE PERPLEXA)

17

MIRA

Como, adeus?

OZR

Estou indo embora.

MIRA

(IRRITADA) Porque com vocs tudo tem de ser de sopeto?


Tem de ser claro ou escuro, gua ou vinho? (OZR A OLHA
SEM ENTENDER)

OZR

No tou entendendo...

MIRA

(IMPACIENTE) Ser que a gente tem de ensinar tudo a vocs?

OZR

S quero saber se vou embora ou se fico!

MIRA

(SUSPIRO) Mas voc j no disse que tinha percebido o meu


olhar?

OZR

Mas voc falou...

MIRA

(EXPLODINDO) Ah, meu Deus! Que importa o que eu falei!


(SAI. OZR FICA IMVEL, PERPLEXO.)

OZR

(PARA SI) Mas... eu vou ou eu fico? (MIRA VOLTA. E ENSINA


COM UM CANSAO IRNICO)

MIRA

, Ozr! pra voc vir atrs de mim, sim, Ozr! (SAI. OZR
SAI ATRS DELA.)

Cena 5 O espetculo

COSCORO FECHA OS OLHOS COM FORA. BATE NA CABEA. CHAMA.


COSCORO

Ximbeva! (XIMBEVA ENTRA IMITANDO NEGRO VELHO)

XIMBEVA

Ximbeva t aqui, sinhozinho. Que sinh tem pra mandar nego


Ximbeva fazer?

COSCORO

Que ano que foi?

XIMBEVA

Que foi o que?

18

COSCORO

Que eu tou tentando lembrar... (XIMBEVA FAZ UM GESTO DE


ENFADO E VOLTA-SE PARA SAIR) Onde que vai? Me ajuda!
Foi no ano que aquele homem morreu...

XIMBEVA

Que homem?

COSCORO

Aquele que morreu quando o presidente da repblica era aquele que... Lembra quando teve a grande guerra?

XIMBEVA

A primeira ou a segunda?

COSCORO

No complica! Como o nome da cidade onde a gente passava?

XIMBEVA

Que cidade, homem de Deus?!

COSCORO

Aquela que teve um incndio... Av Mria contava...

XIMBEVA

(IRRITADO) No conheci av Mria!

COSCORO

No? Nem minha me Mira? Nem meu pai Ozr?

XIMBEVA

S de ouvir falar!

COSCORO

Meu pai era Rapatacho, o melhor palhao que j vi!

XIMBEVA

Lembrou?

COSCORO

Do que?

XIMBEVA

Do que queria lembrar. O senhor me chamou...

COSCORO

No torra o saco! Estou lembrando do meu pai.

XIMBEVA

O peludo!

COSCORO

(IRRITADO) Era peludo, mas fez o melhor espetculo da regio. As crianas faziam coro pelas ruas quando chegava o circo.

ENTRA A TRUPE DE ATORES VESTIDOS DE MALHA. DESFILAM E COMPLEMENTAM O PBLICO, COMO NA ABERTURA DE UM ESPETCULO. A
IDIA QUE ENQUANTO OS ATORES COM O CORPO REPRESENTAM A
ATITUDE HIERTICA DA ENTRADA DOS CIRCENSES AO MESMO TEMPO
RELEMBREM UM CORO DE CRIANAS.

19

ATORES

Procuro, no acho!
Banana, no cacho!
Acende o facho
Na bunda do tacho
Nem alto, nem baixo
riso, escracho
No circo l embaixo,
Palhao Rapatacho!

ATORES FAZEM SEUS NMEROS AO MESMO TEMPO EM QUE NARRAM


JUNTAMENTE COM COSCORO O ESPETCULO)
APRES.

(COM FORTE SOTAQUE CASTELHANO) Senhores e senhoras, com muito orgulho e satisfao que nos encontramos novamente nesta cidade que sempre tem prestigiado e ovacionado, de forma calorosa e amiga, nosso circo e nossos artistas. A
saudade de vocs nos faz voltar. Depois de vitoriosa e aplaudidssima turn por So Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires
trazemos para vocs nosso novo espetculo!

COSCORO

O nosso circo se juntou com uma famlia de circenses da Espanha e cresceu tamanho e arte.

ATRIZ

Tempo de arquibancadas cheias, de nmeros variados, de


dramas e comdias que excitavam o pblico. As cidades paravam na expectativa da noite.

COSCORO

(RELEMBRANDO) Respeitvel pblico!

ATRIZ

Acrobatas, mgico, animais amestrados, amazonas sobre cavalos, aramistas, vos e mortais no trapzio. No picadeiro a agitao febril dos nmeros, a preciso dos saltos, a concentrao, o
ritmo de um espetculo poderoso. Na platia a ateno, o silncio e a tenso, os olhos arregalados no crendo no que viam e
vendo, e continuando a ver e, mesmo assim, no crendo. A excitao, o espanto, depois o grito de aprovao, o aplauso, o riso!

ATOR

E a emoo forte, espessa, as lgrimas que crianas, mulheres


e nem homens feitos conseguiam conter. Naqueles momentos,
eu lembro, no ramos gente comum.

20

COSCORO

No sei o que ramos, mas espetculo e pblico, ramos uma


coisa s. Digo a vocs, e acreditem: o espetculo no era os
nmeros, era o que crivamos com o pblico: a sensao de
unio, de unidade, de felicidade coletiva!

ATRIZ

A palavra circo significava promessa de sentimentos e emoes


novas que passavam a existir na vida dura das pessoas a partir
do espetculo. O circo era amado.

APRES.

E agora, com vocs, a esperada estria desta noite: o novo, o


meigo, o risonho e franco, palhao Coscoro! (COSCORO
ABANDONA A CADEIRA DE RODAS, D UM SALTO ACROBTICO E SOLTA UMA RISADA ESTRIDENTE E FAZ UM
GESTO DE CUMPRIMENTO. PARA O MOVIMENTO E FECHA
O RISO.)

COSCORO

Foi a maior vaia que um cristo j recebeu neste mundo de


Deus! Era um u que zunia no ar e ecoava nas minhas orelhas
quentes. Travei inteiro e fiquei pequenino, largado no meio do
picadeiro que parecia um deserto de grande. E ouvi a zuada
aumentando como onda que crescia em xingamentos, insultos e
ordens de fora!. Um coro ensurdecedor exigiu o palhao Rapatacho. (AOS POUCOS COSCORO ENCARNA O PERSONAGEM NO MOMENTO DA AO, SEM DEIXAR DE NARRAR) Me deu raiva e xinguei! Xingaram de volta e jogaram papel, casca de fruta. Chutei serragem do picadeiro pra cima deles! Urrei insulto, rugi, ameacei, dei soco no ar, sapateei na serragem de pura raiva e frustrao! J no enxergava de dio daquela gente! Quando dei por mim ouvi meu pai, fora de cena,
gritar: continua! Vai mais! Mais! Ento percebi que comeavam
a ecoar risadas. Esbravejei, puxei os cabelos, tentei morder o
cotovelo, bati em dois ajudantes do picadeiro, as risadas cresceram em nmero. Ento, percebi qual era o meu palhao.
Cresci em autoridade e mandei parar de rir, desafiei, ameacei
descer platia. Riram mais! Ento, meu pai entrou no picadeiro. (ENTRA EM CENA RAPATACHO)

RAPATACHO

Isso jeito de tratar o pblico?

21

COSCORO

So meus parentes? Devo dinheiro a eles? Por mim, enfileirava


tudinho e tocava porta afora!

RAPATACHO

No fala assim!

COSCORO

Falo e fao! E j! Voc no ouviu a vaia? Quem vaiou vai pra


rua!

RAPATACHO

muita gente! Voc pode?

COSCORO

(CORAJOSO) E no posso? (RECONSIDERA) Mas vou comear por aquela moa ali que foi a que vaiou mais! ( MOA) Isso falta de corretivo na infncia! Falta de surra de vara! Falta
de cinto no lombo! (GRITA PARA O PBLICO) Quem a me
dela? (EXPLODE) Eu me irrito e me mordo! Tem de retornar a
palmatria! (PEGA UMA PALMATRIA DE PALHAO) Eu vou
l! ( MOA) Estica as mo! As duas!

RAPATACHO

No vai, no!

COSCORO

Vou!

RAPATACHO

No vai!

COSCORO

Quieta o facho, Rapatacho!

RAPATACHO

No vai! Eu sou macho!

COSCORO

No aturo esculacho!

RAPATACHO

(CORAJOSO) E eu no me rebaixo, nem me agacho, embaixo


de macho. Despacho at gacho de barbicacho, de penca e de
cacho, racho e fao de capacho!

COSCORO

(AFRONTANDO) O que?

RAPATACHO

(AMEDRONTADO) Eu acho!

COSCORO

Voc no macho?

RAPATACHO

Sou, mas logo relaxo! (COSCORO E RAPATACHO TROCAM


TAPAS SONOROS COMO PRPRIO DOS PALHAOS.
MSICA CIRCENSE OU UMA SANFONA TOCADA POR UM

22

ATOR INDICA UM NOVO NMERO. RAPATACHO SAI, COSCORO VAI SUA CADEIRA E AJUDANTES PREPARAM O
APARELHO PARA UM NOVO NMERO)
COSCORO

(SENTANDO-SE EM SUA CADEIRA) Foi assim que nasceu o


palhao Coscoro. Raivoso, autoritrio e resmungo.

XIMBEVA

(AO PBLICO) O palhao e a pessoa so uma coisa s.

COSCORO

Por muitos anos fiz dupla com Ozr, meu pai. Hoje tenho o traste de Ximbeva.

XIMBEVA

E assim eu passo: Sou Ximbeva, no picadeiro e na arena, e sou


palhao fora de cena!

COSCORO

E nem assim aprende.

Cena 6 O circo e o mito

ATOR ATRAVESSA O PALCO CORRENDO.


ATOR

Me! Me! D um mirris que o circo chegou! (UMA ATRIZ


GRITA)

ATRIZ 1

Dona Lica! Prende as galinhas que o circo chegou. (DO OUTRO LADO OUTRA ATRIZ RESPONDE)

ATRIZ 2

Tem de prender os cachorros tambm?

ATRIZ 1

No precisa! Esse circo no tem leo, no!

ATOR

O palhao bom?

ATOR

azougue, tralha, triste de to bom! graa certa!

ATRIZ 1

No tira o olho de riba do seu filho! Olha que o circo leva ele!

ATRIZ 2

Leva?

23

ATRIZ 1

Pois no leva? Soube que l perto de no sei onde levaram


duas crianas!

ATRIZ 2

Misericrdia! E pra fazer o que?

ATRIZ 3

Judiao, de certo!

ATRIZ 2

Mas o qu, meu Deus?

ATOR

Compadre meu, Quelemente, soube de ver e, se no viu, foi


gente de boa f que contou e jurou, que essa gente de circo
quebra as juntas das crianas!

ATRIZ 2

Meu santo de devoo! E pramor de que?

ATOR

A senhora nunca viu, no espetculo, criana que se contorce,


que se dobra toda, pe os ps na cabea, tal qual se fosse elstico? Ento! No tem uma juntinha sequer. Eles quebram
tudinho!

ATRIZ 3

No creio!

ATOR

V se algum de ns, com a junta no lugar, consegue!

ATRIZ 1

Dizem que eles batem nas crianas!

ATRIZ 2

Eu tambm bato nos meus!

ATRIZ 1

Mas a senhora me, essa gente de circo no tem nem famlia,


vivem todos juntos.

ATOR

Sabe-se l de onde vem, pra onde vo. gente andeja, meio


cigana, no firma raiz.

ATRIZ 2

, gente que no tem raiz no de fiana.

(AFASTAM-SE

CONCORDANDO)
ATRIZ 1

Logo mais a gente se v no circo? (TODOS CONCORDAM)

ATOR

No perco um!

ATORES PEGAM CADEIRAS E A TRAZEM PARA O PROSCNIO PARA ASSISTIR AO ESPETCULO. CUMPRIMENTAM-SE E SE SENTAM COMO SE
FOSSEM PLATIA DE UM ESPETCULO. REPRESENTAM COMO SE VIS-

24

SEM O ESPETCULO, SEGUEM OS VOLANTES, ESPANTAM-SE COM


PROEZAS, RIEM EM UNSSONO DOS PALHAOS, ETC., EM CADA NARRATIVA.
ATRIZ

S de ver o pavilho iluminado na noite o corao batia mais


forte. O circo era um domingo de sol no dia-a-dia duro da gente.

ATOR

Que gente desconhecida era aquela? Fazedora de coisas impossveis, equilbrios improvveis, habilidades s acreditveis
porque os olhos viam...

ATRIZ

E todos testemunhavam. Gente que no era comum, que punha


dentro da gente vontades inconfessveis e sonhos inesquecveis!

ATOR

Nada era impossvel num circo. A gravidade era negada pelos


acrobatas e volantes, o riso bom e constante inundava as caras
de alegria e quebrava a seriedade de pedra de que feito mundo.

ATOR

Ningum era to rico que no precisasse do circo, nem to pobre que no pudesse entrar nele. Tudo mundo tinha acesso
arte. De Shakespeare a Antenor Pimenta, tantos dramaturgos e
atores inundaram meus olhos e corao.

ATRIZ

O drama do circo doa tanto, tanto, que apertava. A vida melhor


corria no picadeiro.

ATRIZ

A primeira vez que vim ao circo foi sem licena do pai. Vim s
espiar. Ento, o palhao comeou a tocar um violino e eu comecei a chorar, nunca tinha ouvido som e msica assim, espremia a alma da gente. Fiquei at o fim do espetculo. Pouco
importava se eu ia apanhar quando chegasse em casa.

ATRIZ

(EMOCIONADA) Os trapezistas voavam. Eram anjos sem asa.


Diziam que esse povo de circo tinha parte com o diabo. No sei,
talvez tivesse. Mas, parte com Deus, eles tinham, com certeza!
(ATOR QUE REPRESENTA MIRKO LEVANTA-SE BRUSCAMENTE E GRITA QUEBRANDO O ENCANTAMENTO DA CENA.)

25

Cena 7 O dia-a-dia do circo

MIRKO

Vamos que j quase seis! Escovar os cavalos! Tratar dos animais, primeiro! Lucas, depois tem o aparelho pra consertar!
Vamos, Ziel, se prende na lonja que hoje voc se lana de volante! (ATORES LEVANTAM-SE RAPIDAMENTE LEVANDO
AS CADEIRAS E SE ENCAMINHAM AOS AFAZERES. ZIEL
PERMANECE SENTADO.)

COSCORO

Quatro e meia da manh comeava nosso dia. Seis horas, todos os dias, comeava nosso treinamento com tio Mirko.

MIRKO

Vamos, Ziel! Larga de cozinhar o galo, menino! (ZIEL, CONTRARIADO, LEVANTA-SE DEIXANDO A CADEIRA. UM OLHAR DE MIRKO FAZ COM QUE ELE VOLTE E RETIRE A
CADEIRA) t cansado de falar! Cada coisa tem seu lugar! (ZIEL GUARDA A CADEIRA, PRENDE-SE LONJA E SOBE NO
TRAPZIO.)

COSCORO

Ezequiel! Ziel era chamado, tinha nove pra dez anos. Ficou com
medo de saltar. (OLHA EM VOLTA E PERDE-SE NAS LEMBRANAS. CHAMA.) Ximbeva! (LUZ CAI SOBRE COSCORO)

MIRKO

Se lana, Ziel! (ZIEL NO TRAPZIO, MENEIA A CABEA) Deixa de coisa! Se joga que no tem perigo!

ZIEL

No! (MIRKO PUXA A CORDA QUE PRENDE A LONJA E


DEIXA ZIEL BALANANDO NO AR.) No, tio!

MIRKO

Vai ficar a at resolver se lanar! (OS OUTROS ATORES FAZEM EXERCCIOS VARIADOS SOB O COMANDO DE MIRKO
QUE ENSINA, MOSTRA COMO FAZER.)

ATRIZ

(GEME, FAZENDO EXERCCIO DE DESLOCAO) No d


mais, tio Mirko!

26

MIRKO

(FAZENDO-A FORAR) D, ainda d muito! No querem ser


artistas? No querem aplauso? Pensa que s talento?

ZIEL

Deixa eu sair, tio!

MIRKO

S se lanando!

ATOR

(CANSADO) J est bom, tio!

MIRKO

Nunca est bom! (A OUTRO) Arruma esse aparelho direito,


menina! (IRRITADO, PARA TODOS) Para nada dar errado no
espetculo, nada deve dar errado no ensaio! Tudo arrumado direito e cada coisa em seu lugar! Ponham na cabea: nosso trabalho perigoso! Segurana tudo! Chega, por hoje! Tomar
caf e estudo! (AS CRIANAS GRITAM E SAEM CORRENDO. UMA FAZ ACENOS JOCOSOS PARA ZIEL. ESTE CHAMA
COM VOZ CHOROSA)

ZIEL

Tio!

MIRKO

Vai se lanar?

ZIEL

No! (MIRKO SE AFASTA. ENTRA UM HOMEM, NEI.TRAZ


UMA MALA E CHAPU NA MO.)

NEI

Mirko!

MIRKO

Nei! (SE ABRAAM) Como est a vida?

NEI

No sei viver fora do circo. Juro que tentei. Fiquei dois anos na
fbrica. , tristeza que me dava!

MIRKO

E a noiva?

NEI

Conversei. Ela disse que se eu sasse do emprego, desmanchava o noivado: estou s.

MIRKO

Est, no. Est com a gente.

NEI

Tem lugar?

MIRKO

Se arranja. Chega pra c tomar caf. (SAEM. ENTRAM DUAS


MULHERES)

27

MULHER 1

Foi, menina! Olhou pro meu lado e comeou a falar de Maria


Madalena, de mulheres pecadoras, de gente sem preceito nem
castidade! Comeou a falar mal de gente de circo. Quase morri
de vergonha, a igreja inteira olhou pra mim!

MELHER 2

No sermo?

MULHER 1

No sermo! Mas eu no baixei o olhar, sustentei dando desprezo. Fiz o sinal da cruz e sa de cabea erguida e pisando duro
pela igreja a fora. Deu raiva, deu vontade de falar desaforo
praquele padre, de chorar, mas no chorei!

MULHER 2

O que essa gente pensa que povo de circo? Pensa que a


gente mulher de estrada? Que no tem moral, no tem famlia?

MULHER 1

Essa gente gosta da arte, mas no gosta de artista. Gosta de


ver a gente de noite, no espetculo, mas no gosta de ver de
dia.

MULHER 2

No so todos.

MULHER 1

So bastante. E machuca! (VO SADA)

ZIEL

Tira eu! (AS DUAS OLHAM, RIEM E SAEM. ZIEL ESPERA AINDA UM MOMENTO DEPOIS GRITA.) Tio Mirko! Tio! (MIRKO
ENTRA ACOMPANHADO DE UM PORT)

MIRKO

Vai saltar?

ZIEL

Vou. (MIRKO, ANIMADO, BAIXA A CORDA DA LONJA)

MIRKO

No tem perigo, Ziel! Faz do jeito que lhe ensinei que no tem
erro! (ZIEL SOBE NO TRAPZIO. O PORT SOBE NO OUTRO LADO E SE BALANA NO TRAPZIO. OS OUTROS
CIRCENSES ENTRAM ACOMPANHANDO COM ESPECTATIVA O NMERO.) Concentrao tudo. Conta o ritmo, sente o
balano do trapzio, vai! (ZIEL SE LANA E AGARRADO
PELO PORT. OS CIRCENSES VIBRAM E APLAUDEM.) Vai
ser volante melhor que eu, menino!

28

Cena 8 - Fragmentos de memria

COSCORO, SENTADO EM SUA CADEIRA SUSPIRA E FAZ BEIO, TRISTE


COMO SE FOSSE UMA CRIANA.
COSCORO

(AO PBLICO|) t triste! (D DE OMBROS) Nem sei porqu,


mas t! Uma vontade de chorar... (SUSPIRA, DRAMTICO,
MAS COM BVIOS RESULTADOS CMICOS) No consigo
lembrar... Acho que por causa dela... como mesmo o nome?
(INTERROMPE O PENSAMENTO E GRITA) Ximbeva! Ximbeva! (ENTRA XIMBEVA)

XIMBEVA

Que ?

COSCORO

Que , no, senhor!

XIMBEVA

Que foi, senhor, homem de Deus! (ESPALMA AS MOS NA


BARRIGA) No grita assim que eu perco a criana!

COSCORO

(TENTANDO LEMBRAR) Como o nome daquela mulher?

XIMBEVA

Que mulher?

COSCORO

A minha!

XIMBEVA

Laodicia.

COSCORO

(ESTRANHA) Jura? (XIMBEVA AFIRMA COM A CABEA)


No, no por causa dela que eu estou triste. E o nome da filha
que eu tive com ela?

XIMBEVA

Alvina.

COSCORO

(LEMBRA) , Alvina. Morreu?

XIMBEVA

claro que no, Coscoro!

COSCORO

Eu gostava muito dela.

XIMBEVA

Todos gostavam.

COSCORO

Ento, porque que eu fico triste quando lembro dela?

29

XIMBEVA

Talvez porque ela foi embora. (COSCORO LEMBRA E SE


ENTRISTECE. UMA JOVEM, ALVINA, SURGE AO FUNDO)

COSCORO

s vezes bom no lembrar. (XIMBEVA SAI. ALVINA COMEA SUA FALA QUE CAPTA O CLIMA DE UMA DISCUSSO
FAMILIAR J ACIRRADA.)

ALVINA

Sempre fiz tudo o que o senhor mandou! Nunca tive boca nem
vontade pra nada! Agora, chega! No arredo p, no volto atrs! (QUASE GRITA) No sou sonsa como parece!

COSCORO

(NUM CRESCENDO FRIOSO) No fala assim comigo! (LEVANTA-SE DA CADEIRA E VAI AT ELA) No fala assim comigo! (ALVINA SE ENCOLHE COM MEDO. COSCORO
CONTM UM POUCO O MPETO DA FRIA.) H quanto tempo?

ALVINA

Trs anos!

COSCORO

E ningum nunca me falou nada!

ALVINA

O senhor era capaz de bater!

COSCORO

(IRRITANDO-SE) Era mesmo! Gente de fora do circo! Onde voc est com a cabea, Alvina! Quantas histrias dessas voc j
ouviu contar e todas com o mesmo final?! (ALVINA PERMANECE INFLEXVEL) Se ao menos ele viesse viver no circo, aprendia nosso trabalho, nosso jeito... A gente diferente, filha!
Gente que no do circo no entende nossa profisso.

ALVINA

No quero mais ser diferente, pai!

COSCORO

Vai ser sempre! No porque voc quer, mas porque eles, os outros, querem! Voc vai ouvir muito s podia ser de circo!
quando voc fizer qualquer coisa que no gostem! J sofri isso,
voc j sofreu isso!

ALVINA

Ele gosta de mim!

COSCORO

Gosta de quem? Da artista, da bailarina, da volante, da contorcionista ou de voc mesma? Essa gente no quer nos ver no
dia a dia, filha!

30

ALVINA

Eu vou casar com ele, pai, e vou embora do circo! E vou com
sua beno ou sem ela!

COSCORO

(FURIOSO, INDO EM DIREO A ELA) Como que voc fala


comigo assim, atrevida?!

ALVINA

(AFRONTANDO) O senhor no vai me bater!

COSCORO

(RETOMA O CONTROLE) claro que no, merda! Embora devesse! (DESABA, EMOCIONADO) No quero que voc deixe a
gente. Nunca pensei! J passou at pela minha cabea a dor
que sentiria se voc morresse, mas ir embora... Isso nunca
pensei... Sempre pensei na famlia junta, trabalhando, ensinando filhos, netos... Uma coisa sem fim como sempre foi. (COM
UMA EMOO DESESPERADA) Se eu bater em voc, voc
desiste dessa loucura?! (ALVINA, APS UM MOMENTO DE
INDECISO, APROXIMA-SE E ABRAA O PAI. CHORAM
ABRAADOS)

ALVINA

Eu venho sempre, juro!

COSCORO

O circo sempre vai estar aqui e o corao da gente tambm.


No devia, mas vou torcer pra tudo dar certo mesmo que isso
seja voc estar longe da gente. E deixa calar a boca se no
comeo a falar besteira. J no sei mais o que devo sentir! (AFASTA-SE EM DIREO DE SUA CADEIRA) E, depois, voc
a melhor contorcionista que j vi. De verdade. (INCONFORMADO) um desperdcio de artista. (SENTA-SE E DIZ AO PBLICO, EMOCIONADO) Alvina est a, longe, por esses pases
estrangeiros, acho que em Nova York na Alemanha, no sei.
(PAUSA) s vezes bom no lembrar.

Cena 9 O fim do jeito que se sonhou

VINDA DO FUNDO, DO ESCURO, UMA MULHER SE APROXIMA. COSCORO FIXA O OLHAR, MAS NO CONSEGUE RECONHEC-LA. ELA CHEGA
PERTO, MRIA.

31

COSCORO

V Mria! Que que est fazendo?

MRIA

Que estou fazendo? Cuidando do circo, coisa que voc devia


fazer! Isso aqui est um desmazelo!

COSCORO

Depois que Alvina foi embora perdi muito da vontade.

MRIA

Todo mundo perdeu e no de hoje! Cad os circos? H algum tempo todo mundo vem perdendo a vontade de tudo!

COSCORO

, as famlias foram deixando, abandonando... o pblico foi abandonando... Se at as famlias mais tradicionais esto desistindo...

MRIA

Tradicional o trabalho, a arte, no a famlia! Tradicional de


circo no o sobrenome, o empenho e o amor que a gente
pe nele! Antes de acabar as famlias tradicionais acabou o velho jeito de fazer o espetculo! Os filhos no querem aprender o
que os pais no tm mais empenho em ensinar! Tradicional era
um jeito de viver que estamos perdendo!

COSCORO

verdade.

MRIA

(RSPIDA, ARREMEDANDO) verdade! Tudo o que voc faz


concordar? Se eu e Grgori, na Europa, tivssemos concordado
com a misria em que a gente vivia nunca estaramos aqui,
nunca teramos um circo!

COSCORO

Que posso fazer? S eu sei a que custo mantenho o que restou


do nosso circo.

MRIA

Teve poca que tinha dois mastros, cavalos bem tratados, at


urso teve, lembra?

COSCORO

Lembro bem!

MRIA

(ALHEIA, IRRITADA) E, agora, olha s como est isto aqui! Ferrugem, aparelho sem cuidado, cordas velhas, lona rasgada sem
o carinho de um remendo! Eu j falei pra Grgori, mas ele no
toma providncia! (COSCORO COMEA A RIR)

32

COSCORO

(AO PBLICO) Est caducando! ( MRIA, ZOMBETEIRO) V


Grgori j morreu h muitos anos! Antes de eu nascer, V Mria! (MRIA O OLHA. COSCORO CAI EM SI, FAZ O SINAL
DA CRUZ) E a senhora tambm!

MRIA

claro que morri, voc se lembra. J tinha passado dos noventa, cheia de imagens de tantas andanas e tantos espetculos.
Era noite de espetculo e soprava um vento de chuva no calor
daquele vero.O volante se preparou para o mortal no trapzio
e se lanou... No vi o final do salto. S percebi que estava cada por causa do cheiro de terra e serragem nova. E s ouvi,
longe, os gritos e aplausos para os trapezistas. E disse a mim
mesma, com certeza: estou morrendo. Acho que o corao
no suportou, to cheio estava de anos e lembranas! (COSCORO SE AGITA NA CADEIRA)

COSCORO

Meu Deus! (GRITA) Ximbeva! Ximbeva! (ENTRA XIMBEVA,


MRIA SAI)

XIMBEVA

A gente no pode sair dois minutos!

COSCORO

(SEGURA XIMBEVA E SUSPIRA DE ALVIO) Graas a Deus!


Cheguei a pensar que eu tambm estava morto! Vi v Mria!
Estou com medo, Ximbeva. Porque ela apareceu?

XIMBEVA

(SEM DAR IMPORTNCIA) Medo do que, seu Coscoro, o senhor sempre v coisa! Est at me vendo! Est vendo a minha
alma porque eu tambm j morri h muito tempo!

COSCORO

No brinca com isso! (XIMBEVA GESTICULA E FALA COM


VOZ DE FANTASMA.)

XIMBEVA

Sou o caveiro! (DEPOIS DE UM MOMENTO ASSUSTADO,


COSCORO RI. MENEIA A CABEA)

COSCORO

Quantas vezes no fiz o caveiro? Circo que era circo tinha de


ter a esquete do caveiro. Faz?

XIMBEVA

O qu? Fazer o caveiro? (COSCORO CONFIRMA) Nem


morto!

COSCORO

S pra relembrar!

33

XIMBEVA

Isso do tempo dantanho, Coscoro! Tempo que o povo podia


rir de qualquer bobagem!

COSCORO

Hoje no pode?

XIMBEVA

(PEDANTE) Hoje o riso tem de ser inteligente! Tem de ter uma


explicao, uma tese, uma teoria por trs! Riso frouxo, riso bobo, riso alegre dos tempos pra trs...

COSCORO

(PARA SI) Tempo de circo! (A XIMBEVA) S quero relembrar!

XIMBEVA

No vou pagar mico!

COSCORO

Estamos sozinhos!

XIMBEVA

At sozinho eu tenho vergonha de no parecer inteligente.

COSCORO

(HUMILDE, COMEA UM JOGO ENTRE OS DOIS) Estou pedindo.

XIMBEVA

Nem implorando.

COSCORO

Por favor!

XIMBEVA

Nem rezando.

COSCORO

Faz.

XIMBEVA

No.

COSCORO

Sim.

XIMBEVA

No!

COSCORO

(GRITA EXPLODINDO) Faz, merda, que estou mandando!


(ASSUSTADO, COSCORO CORRE E, RAPIDAMENTE,
TRAZ UMA MESA NA QUAL EST COLADA UMA VELA. COLOCA A MESA NA FRENTE DE COSCORO E ACENDE A
VELA.)

XIMBEVA

(FAZ BEIO, EMBURRADO) Voc vai me matar?

COSCORO

Matar?

34

XIMBEVA

(ENTEDIADO) Eu desmaio e voc pensa que me matou. Esconde meu corpo no poro e, a, eu acordo e venho te assustar.
Como quer fazer a cena se no lembra? (RI COMO FANTASMA. E DE SACO CHEIO DESMONTA O PERSONAGEM. )

COSCORO

No, no precisa! Eu quero o momento quando o fantasma entrava sem eu perceber e apagava a vela. O povo ria!

XIMBEVA

(SAINDO, ENTEDIADO, PARA O PBLICO) Quando for a hora


de rir eu fao um sinal. pra no perder a amizade! (SAI
)

COSCORO

Ximbeva t morto, matado, mortinho! (CHORA) Que d de mim


se a polcia descobrir! Depois, Ximbeva pode virar caveira, alma
penada e vir me assombrar! (CORAJOSO) E eu l tenho medo
de Ximbeva? (SURGE XIMBEVA POR TRS DE COSCORO
COMO FANTASMA) Que frio me correu a espinha, do pescoo
at a ltima vertebrinha antes, l... da curva onde tudo acaba e
nada se aproveita! (XIMBEVA SOPRA APAGANDO A VELA)
Estou gostando disso, no! (ACENDE A VELA.XIMBEVA SOPRA NO PESCOO DE COSCORO) Que frio! (XIMBEVA,
POR TRS, ABRAA COSCORO QUE SE SENTE SATISFEITO A PRINCPIO. DEPOIS ESTRANHA, TATEIA OS BRAOS DE XIMBEVA CADA VEZ MAIS ASSUSTADO. NO
CHEGA A VOLTAR-SE PARA VER O FANTASMA. PARALISA
O MOVIMENTO E NARRA PARA O PBLICO.) O velho palhao Coscoro no conseguiu terminar a antiga e singela esquete
de circo. Como em tantas vezes, tambm nesta, a morte surgiu
inesperada e interrompeu fala, respirao, lembrana. Coscoro
ficou em suspenso por um segundo e depois caiu como corpos
mortos caem. (COSCORO CAI SOBRE A MESA)

XIMBEVA

Precisei de tempo pra entender e aceitar o que acabara de acontecer. Depois corri, gritei e tudo o que eu sentia por aquele
velho, que no era pouco, virou a substncia sem solidez do
choro. Parece coisa inventada, mas juro que aconteceu assim,
sem mais nem menos, como prprio do mistrio da morte.
(APAGA COM OS DEDOS A CHAMA DA VELA E A CENA
TORNA-SE ESCURO)

35

Cena 10 A virtude exaltada como nos melodramas de circo

A CENA, AO FUNDO, COMEA LENTAMENTE A SER ILUMINADA. FUMAA


DE GELO SECO TOMA O PALCO E, DENTRO DA NEBLINA QUE SE FORMA, COMEA A SURGIR A FIGURA DE COSCORO.ELE ANDA LENTAMENTE PARA O PROSCNIO SEM A CADEIRA DE RODAS.
COSCORO

Onde que estou? Ximbeva! Onde voc se meteu, peste?


Quando a gente mais precisa...(PERCEBE QUE EST SEM A
CADEIRA, ESPANTA-SE) Como foi que eu sarei? Isso um
sonho. (PRA, CRUZA OS BRAOS E ESPERA. IRRITA-SE.)
Pra ter sonho besta assim melhor nem dormir! (BATE PALMAS) Ei, vamos acordar, Coscoro! (PAUSA) t esquisito isso
aqui! (PAUSA) tou sentindo um pouquinho de medo... bastante!
(ESPANTADO) Estou morto! (SUSPIRA FUNDO E SUA CARA
TORNA-SE UMA MSCARA DE CHORO COM RESULTADO
CMICO. SUSPIRA INMERAS VEZES E FAZ BEIO) Coitado de mim! Agora, devo estar l, no velrio, esticado no caixo,
durinho, todo mundo em volta chorando...Oh, meu Deus, que
pena dele! (COMO SE VISSE O CORPO) Olha, parece que
dorme! (FAZ UMA CARETA E MENEIA A CABEA) Ave, Maria!
No gosto de ver morto, nem que seja eu mesmo! (PAUSA)
Mas no posso estar morto! Ximbeva! Onde voc se meteu, diabo! (COBRE A BOCA COM A MO, ASSUSTADO. OLHA
PARA OS LADOS) Se eu estou morto no bom falar o nome
do sujo, do p de bode, do anjo negro! (FAZ CARETA DE
CHORO NOVAMENTE. IRRITA-SE) Mas em que raio de lugar
eu estou? Ei! Ei! Tem algum ai? Responde, cacete! Pode ser
vivo ou morto, mas responde! (SEMPRE ANDANDO EM DIREO AO PROSCNIO, COSCORO V UMA FIGURA QUE
LENTAMENTE O ALCANA SADO DA NEBLINA AO FUNDO.
OLHAM-SE E VOLTAM-SE PARA A FRENTE. APREENSIVO.)
Ih, meu Deus! (PAUSA. COM RECEIO) No vou nem perguntar
nada que pra no saber a resposta! (OLHAM-SE NOVAMENTE. A FIGURA SUSPIRA. VOLTAM-SE FRENTE. COSCORO TAMBM SUSPIRA E FAZ BEIO. OLHAM-SE. FIGURA
TAMBM FAZ BEIO DE CHORO. VOLTAM-SE PARA A

36

FRENTE. OLHAM-SE DE NOVO E SEGURAM O CHORO.


VOLTAM-SE PARA A FRENTE E DESABAM EM CHORO COMO DOIS CLOWNS QUE SO. COSCORO PERGUNTA ENTRE SUSPIRO E LGRIMAS) verdade que ns estamos... (A
FIGURA CONFIRMA COM A CABEA. OS DOIS SUSPIRAM E
ABREM CHORO DE NOVO. PRAM O CHORO E SUSPIRAM
FUNDAMENTE. A FIGURA APRESSA O PASSO, SE DISTANCIA E SAI. COSCORO FAZ UM ACENO DE MO) Tchau! Seja l pra onde voc for! (COSCORO PARA) um sonho! Definitivamente um sonho e est acabado! Principalmente porque,
se isso for a morte, uma esculhambao! (CONVICTO) sonho! E se no for? Ai, minha Nossa Senhora! Ai, meu santo de
devoo, fazei com que tudo isso seja sonho! Larga de ser besta, Coscoro! Se voc morreu mesmo no tem santo que vai te
ressuscitar. E, se sonho, espera que logo voc acorda! isso,
esperar! Logo acordo. (PAUSA. TENSO.) Ento, acorda! Acorda, Coscoro! (ENTREDENTES, NUM CRESCENDO DE RAIVA) Acorda, desgraado! Acorda, filho da... (COBRE RAPIDAMENTE A BOCA PARA NO DIZER O PALAVRO E OLHA
DOS LADOS, ASSUSTADO. CHEGA AO COMEO DO
PROSCNIO E SUBITAMENTE VIRA A DIREITA. ASSUSTASE) Mas para onde minhas pernas esto me levando? No quero ir pra l! Parem! (BATE NAS PERNAS) Parem, vocs duas!
(CONTINUA A ANDAR CONTRA A VONTADE) No tou gostando disso! Pra onde que estou indo? (PARA SI) Pra onde as
almas vo depois da morte? (CAI EM SI, ASSUSTADO) Para o
julgamento! (QUASE SAIDA, COSCORO ASSUSTA-SE
COM A FIGURA QUE ENTRA. UMA FIGURA ALTA EM
PERNAS DE PAU, O GIGANTE.) Caraco! (A FIGURA AVANA EM SUA DIREO E O FAZ CAMINHAR PARA TRS AT
UMA CADEIRA TRAZIDA POR UMA FIGURA TORTA E CORCUNDA, OZOR. COSCORO SE V COMPELIDO A SENTAR.)
GIGANTE

Ozor, o livro!

OZOR

(ABRINDO UM GRANDE LIVRO) J est na mo! Os olhos agudos em pala, a boca tem nsia de fala e a alma livre de com-

37

paixo! (D UMA RISADA. COSCORO RI TAMBM, NERVOSO)


GIGANTE

Comece a leitura!

OZOR

De onde se julgam os crimes, aes e omisses; a utilidade das


obras e aquilo que sobra: o bom uso do tempo, o usufruto e o
rendimento bruto do maior capital, a vida! (D OUTRA RISADA.
COSCORO ARREMEDA A RISADA DE OZOR COMO
QUEM NO V A MENOR GRAA.)

GIGANTE

Mencione pecados, crimes e ofensas, que no passo seguinte eu


dito a sentena!

COSCORO

(IRRITADO, SEGUINDO AS DECLAMAES RIMADAS) pera, pera l, com licena! Se voc pensa...

GIGANTE

(FURIOSO) Calado! S se fala e age enquanto se tem vida!

COSCORO

(ASSUSTADO) Ento, estou morto mesmo! (FAZ CARA DE


CHORO) E no posso nem chorar meu falecimento porque tenho coisa mais importante pra resolver: meu julgamento!

GIGANTE

Crimes de sangue?

OZOR

Nenhum!

GIGANTE

Roubo, corrupo? (OZOR MENEIA A CABEA)

GIGANTE

Saques,
violncias?
(OZOR
A)Nenhunzinho? Olha direito!

COSCORO

Pode confiar nele, p!

GIGANTE

Quieto!

COSCORO

(PARA SI) Cismou comigo!

GIGANTE

Ozor, se pesarmos esta alma, para onde pende a balana?


Pra perdio ou para a bem-aventurana?

OZOR

MENEIA

CABE-

At agora, no livro, no foi lanado,


Nem grande obra, nem grande malfeito

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Nada muito errado, nada muito perfeito


Tudo segue passo a passo equilibrado.
GIGANTE

(RI) Ento, vamos romper com o delicado equilbrio!


Logro, engano, ludbrio!

OZOR

Setecentos e quinze!

GIGANTE

Avareza, ira, luxria?

OZOR

Avaro foi algumas vezes,


Irado em poucos momentos
Luxria, dois mil e setecentos!

COSCORO

(INDIGNADO) Tudo isso? Que raio de pecado esse de luxria?

OZOR

Sem-vergonhice, libidinagem, essas coisas!

COSCORO

(CONCORDANDO) Hum! Ento, t!

GIGANTE

Soberba?

OZOR

Mil, oitocentos e setenta!

COSCORO

Tudo isso?

OZOR

Trezentos deles s contra Ximbeva!

COSCORO

Contra Ximbeva tambm conta? Aquele s um traste, um tibes, um trolha toa!

OZOR

(ANOTANDO) Trezentos e um!

COSCORO

Isso s modo de falar! s veemncia, expressividade da lngua!

OZOR

mim, nada escapa! (RI)

COSCORO

(PARA SI) Julgamento ou no, alma penada ou no, isso aqui


j est me irritando!

39

GIGANTE

Tudo lanado e somado,


Bons atos e ms ofensas,
Levante-se, agora, o ru
E que oua a sentena!

COSCORO

Assim, sem mais? Ningum me defende? Que lugar esse? Se


isso lugar srio algum tem de me escutar, se no srio
quero ajudar a esculhambar! E se um sonho quero acordar, e
j! (SOAM TROMBETAS, COSCORO OLHA PARA AS COXIAS E SE ESPANTA) Jesus Cristo! (ENTRA CRISTO E, CALADO E SRIO, DIRIGE-SE A UMA CADEIRA QUE PRONTAMENTE TRAZIDA POR OZOR. SENTA-SE. COSCORO,
MEIO SEM JEITO, FALA A CRISTO) O senhor me desculpe se
eu no lhe representei como devia l nos dramas da paixo, no
circo. (CRISTO O OLHA SERIAMENTE. COSCORO SE ENCOLHE) Ichi, a coisa, aqui, sria! (A UM GESTO DE CRISTO
O GIGANTE COMEA A FALAR)

GIGANTE

O homem se mede por aquilo que faz e contra fatos no h argumentos. Medidos e pesados os atos da vida nada mais resta
a no ser ditar a sentena. Ozor!

OZOR

(L NO LIVRO A CONCLUSO) No cometeu grandes crimes,


nem fez grandes obras. Nos arrebaldes, seguiu vida obscura,
no meio de gente obscura. Riu, fez rir, viveu, mas nada de importante fez e valeu.

GIGANTE

Entre risotas pobres de comdias tolas e lgrimas fceis de melodramas gastou o tesouro da vida!

COSCORO

O senhor crtico de arte, ?

GIGANTE

(FURIOSO) Silncio, palhao, que no estamos no picadeiro!


(PAUSA) No h mais argumentos. Depois de encadeados, at
o ltimo, os fatos da vida o que resta o silncio. (PAUSA)

COSCORO

E Coscoro, que sou eu, no teve uma idia que o socorresse.


E o silncio imperou pesado no ambiente. E mais pesado ainda
dentro da alma.

40

OZOR

COSCORO

Ento, eu lembro e conto porque estava l: Coscoro subitamente rompeu a imobilidade e o silncio e comeou a declamar
um velho poema de circo.
Um homem triste, marcado
Por desventuras na vida
Buscou mudar o seu fado
E a cura dalma ferida.
Foi ver doutor afamado,
Repleto de louros e palmas
Na profisso aclamado,
E com ele abriu sua alma.
Doutor, me rara a alegria
Meus dias seguem tristonhos
Esperana vossa maestria
Um riso franco meu sonho.
Amigo, eu tenho um remdio
Que espanta toda amargura
Dor dalma, tristeza e tdio,
E doenas iguais ele cura.
H um circo, aqui, nesta praa
Nele um famoso palhao
Mestre da arte e da graa
Ele a receita que passo.
Ergueu-se, ento, o cliente
Calado, andou pela sala
Estalou a lngua nos dentes
E, triste, deu sua fala.
Ento, meu caso sem jeito
Minha busca aqui cessa o passo
Remdio algum faz efeito
Doutor, sou eu o palhao. (SENTA-SE. PAUSA. SORRI, BREJEIRO) Desculpem, nada de melhor ocorreu em minha defesa.

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(PARA SI) T lascado! (AO PBLICO) E, de novo, Coscoro se


calou.
OZOR

E de novo - dou f e testemunho porque l estava e vi: de novo,


Coscoro se ergueu e, inconformado, bradou:

COSCORO

Est certo! Um homem se mede pela obra. Mas se cobra de um


palhao circense o mesmo que se cobra de um presidente? Um
general? Um poderoso? No fui famoso, fui s um artista, no
fui capa de revista, no tive bero de ouro, s vezes nem cama.
No trabalho fui um mouro, fiz rir em comdias, chorar em melodramas, j tive mesa farta, j dormi sem ceia, mas uma coisa
nunca fiz: (AO GIGANTE) foi julgar a alegria alheia! Como qualquer circense fui acrobata, instrumentista, cmico, ator, mas
qual o qu, dizem que isso no tem valor. Nem grande feito,
ter o circo como eito e labuta e agradar o pblico como luta e
preceito! Meu peito s abrigou uma crena: a lona. Desculpa se
foi ofensa tal utopia, mas o esforo de dia-a-dia fazer o riso, o
drama, acrobacia, inundar de alegria e arte a vida dura de tanta
gente acreditar que o mundo pode ser visto por outra via! Observe, veja, espia: se a vida, por momentos, se transforma em
arte, o mundo muda, e mudar o mundo a grande utopia. Mas,
sem ofensa, desculpa se joguei minha vida em tal crena, perdo se minha f no teve valia. Sou s um palhao tolo que fez
rir os homens os quais com seus tolos erros fazem rir os deuses. (SENTA-SE)

OZOR

O silncio voltou, mas foi diferente. E a fala ficou suspensa, o


espanto tomou conta, uma emoo tonta subiu garganta e eu
juro que vi: (COM UM GESTO INDICA CRISTO) aquele que foi
homem chorou! (ATORES ENTRAM FAZENDO ACROBACIAS
DE SOLO E AREAS. GIGANTE, COSCORO E OZOR SE
JUNTAM TRUPE PARA A APOTEOSE FINAL QUE RELEMBRA OS VRIOS CIRCOS E CIRCENSES.)

FIM

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Ribeiro Pires, 25 de fevereiro de 2004

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