Seis Personagens A Procura de Um Autor
Seis Personagens A Procura de Um Autor
Seis Personagens A Procura de Um Autor
PERSONAGENS
PROCURA
DE UM
AUTOR
Texto de Luigi Pirandello
Traduo de Brutus Pedreira
OS PERSONAGENS DA COMDIA POR FAZER
O PAI
A ME
A ENTEADA
O FILHO
O RAPAZINHO
A MENINA
MADAMA PACE
OS ATORES DA COMPANHIA
O DIRETOR-ENSAIADOR
A PRIMEIRA ATRIZ
O PRIMEIRO ATOR
A SEGUNDA ATRIZ
A INGNUA
O GAL
OUTROS ATORES E ATRIZES
O ASSISTENTE
O CONTRA-REGRA
O MAQUINISTA
O SECRETRIO DO DIRETOR
O PORTEIRO DO TEATRO
OUTROS EMPREGADOS DO PALCO
NOTA
O PAI Vejam, vejam: a pea est por fazer; (ao Diretor.) mas,
se o senhor quiser, e seus atores tambm, podemos arranj-la
agora mesmo, entre ns.
O DIRETOR (Aborrecido) Mas o que que quer arranjar?
Aqui no se fazem desses arranjos! Aqui se representam
dramas e comdias.
O PAI Pois ento! Foi justamente por isso que viemos
procur-lo.
O DIRETOR E onde est o texto?...
O PAI Est em ns, senhor. (Os Atores riem.) O drama est
em ns; somos ns! E grande a nossa impacincia, o nosso
desejo de represent-lo, impelidos que somos pela paixo que
ferve dentro de ns e no nos d trgua!...
A ENTEADA (Escarnecendo, com graa prfida, de afetada
imprudncia) A minha paixo, se o senhor soubesse!... A
minha paixo... por ele!... (Indicando o Pai, quase o abraa,
mas desata, depois, num riso estridente.).
O PAI (Num repente de raiva) Fique em seu lugar, por
enquanto! E peo-lhe que no ria assim!...
A ENTEADA No? Ento, com licena: se bem que rf,
apenas h dos meses, vejam, senhores, como canto e como
dano! (Trauteia com malcia o Prends Garde Tchou-TchinTchou, de Dave Stamper, reduzido a Fox trote ou a one-step
lento por Francis Salabert; acompanhando a primeira
estrofe com passo de dana.) Les Chinois sont un peuple
malin, / De Shangai Pkin, / Ils ont mis des criteaux partout: /
amor, ficou cego? Ah! Que asco ento, que nojo de todas essas
complicaes intelectuais, de toda essa filosofia que descobre a
besta e depois quer salv-la, desculp-la... No posso ouvi-lo,
senhor! Porque, quando se constrangido a simplificar a vida
assim, bestialmente, pondo fora o estorvo humano de toda e
qualquer aspirao casta, de todo e qualquer sentimento puro,
idealismo, deveres, o pudor, a vergonha nada h que
provoque mais desprezo e nusea do que certos remorsos:
lgrimas de crocodilo!
O DIRETOR Vamos aos fatos, meus senhores, vamos aos
fatos! Isso so discusses.
O PAI Exatamente! Mas um fato como um saco: vazio, no
fica de p. Para que fique de p, preciso pr-lhe dentro a
razo e o sentimento que o determinaram. Eu no podia saber
que, morto aquele homem e, com eles de volta para c, na
misria, para atender ao sustento dos filhos ela (indica a Me.)
costurasse para fora e fosse justamente trabalhar para aquela...
aquela Madama Pace!
A ENTEADA Modista fina, se os senhores querem saber.
Serve - em aparncia - as melhores senhoras, mas tem tudo
disposto para que estas melhores senhoras depois a sirvam, por
sua vez, a ela... sem prejuzo das outras assim assim!
A ME Acredite senhor, garanto-lhe que no me passou pela
cabea, nem de leve, a suspeita de que aquela megera me dava
trabalho porque estava de olho na minha filha...
A ENTEADA Pobre mame! Sabe o que aquela Madama
Pace fazia assim que eu lhe entregava o trabalho de minha
me? Mandava-me tomar nota dos vestidos que lhe dera para
coser e que no estavam bem feitos, e descontava no preo
combinado... E assim, o senhor compreende, quem pagava era
eu, enquanto essa pobrezinha pensava sacrificar-se por mim e
por aqueles dois, costurando, mesmo durante a noite, a roupa
de Madama Pace. (Gestos e exclamaes de desprezo dos
Atores.).
O DIRETOR (Subitamente, Enteada) E l, um dia,
encontrou-se...
A ENTEADA (Indicando o Pai) - ... com ele, sim senhor, com
ele, velho cliente! Ver que cena para representar! Esplndida!
O PAI Com a chegada imprevista dela, da me...
A ENTEADA (Rpida, perfidamente) - ... quase a tempo!
O PAI (Gritando) No! A tempo! A tempo! Porque eu, por
sorte, a reconheci a tempo! E levei-a para casa, senhor! Imagine
agora a situao minha e dela um diante do outro! Ela assim
como est vendo, e eu, sem poder olh-la no rosto!
A ENTEADA Engraadssimo! Mas diga-me, senhor, uma
coisa: era possvel pretender que eu depois do que houve
me comportasse como uma donzela tmida, bem-educada e
virtuosa, de acordo com as suas malditas aspiraes a uma
slida sanidade moral?...
O PAI O drama para mim est todo nisto: na convico que
tenho de que cada um de ns julga ser um, o que no
verdade, porque muitos; tantos quantas as possibilidades de
ser que existem em ns: um com este; um com aquele
A CENA
O DIRETOR Vai ver, vai ver! Deixe por minha conta agora!...
A ENTEADA No, senhor! Da minha nusea, de todas as
razes, cada qual mais cruel e mais vil do que a outra, e que
fizeram de mim esta que sou; assim como sou, quer o senhor
tirar uma chinfrinadazinha romntico-sentimental, em que ele me
pergunta o motivo do meu luto, e eu lhe respondo,
choramingando, que h dois meses morreu o meu papaizinho?
No, no, meu caro senhor. preciso que ele me diga o que me
disse: ento, vamos tirar, vamos tirar depressa esse
vestidinho! E eu, com todo o meu luto no corao, com o meu
luto de apenas dois meses, fui para l est vendo? para l,
atrs daquele biombo, e, com estes dedos que me tremem de
vergonha e de nojo, desabotoei o corpete, o vestido...
O DIRETOR (Com as mos nos cabelos) Pelo amor de
Deus! Que est dizendo?...
A ENTEADA (Gritando frentica) A verdade, senhor, a
verdade!
O DIRETOR Sim, no nego, ser a verdade... e compreendo,
compreendo todo o seu horror; mas, compreenda, tambm a
senhora, que tudo isso no possvel, em cena!...
A ENTEADA No possvel? Ento, muito obrigada. No
entro nisso.
O DIRETOR Mas, no... veja...
A ENTEADA No entro! No entro! O que possvel em cena,
vocs dois juntos o combinaram l dentro. Obrigada!
Compreendo muito bem! Ele quer chegar logo representao
lhe ora eu, ora ela (indicando a Enteada.), ora aquela pobre
me...
A ENTEADA (Adiantando-se, como numa alucinao)
verdade, eu tambm, eu tambm, senhor, para tent-lo, tantas
vezes, na melancolia daquele escritrio, ao cair do crepsculo,
quando ele, reclinado numa poltrona, no tinha nimo de
decidir-se a dar volta ao interruptor da luz e deixava a sombra
invadir a sala e que aquela sombra se agitasse conosco que
amos tent-lo... (Como se ainda se visse l, naquele
escritrio, e a presena dos Atores a aborrecesse.) Se todos
os senhores fossem embora! Se nos deixassem ss! Mame
com aquele filho eu com aquela menina aquele rapaz,
sempre s em seguida, eu com ele (indica o Pai.) e depois eu
s, s... naquela sombra... (De repente, num salto, como se
quisesse agarrar-se viso que tem diante de si mesma,
resplandecente naquela sombra e viva.) Ah! Minha vida! Que
cenas, que cenas amos propor-lhe! Eu o tentava mais do que
todos eles...
O PAI Sim, mas talvez tenha sido por culpa sua, justamente,
por sua exagerada insistncia, por seus demasiados
descomedimentos!
A ENTEADA Qual nada! Se foi ele mesmo que me quis assim!
(Aproxima-se do Diretor para dizer-lhe confidencialmente.)
Eu creio, senhor, que foi antes por desnimo ou por desdm do
teatro, tal como o pblico habitualmente o v e o quer...
O DIRETOR Bem, bem, vamos adiante, vamos adiante, por
Deus! Cheguemos aos fatos, meus senhores!
embora, ele que deve, deve ficar aqui, de verdade, com este seu
belo pai e aquela me ali, que no tem outros filhos a no ser
ele... ( Me.) E vamos, vamos mame! Venha... (Voltando-se
para o Diretor a fim de mostrar-lha.) Veja s! Tinha se
levantado, tinha se levantado para det-lo... ( Me, quase a
atraindo por virtudes mgicas.) Venha, venha... (Depois, ao
Diretor.) Imagine que nimo pode ela ter para mostrar aqui, aos
seus atores, o que sente; mas tamanha a sua ansiedade por
aproximar-se dele que a a tem! v? est disposta a viver a
sua cena! (Efetivamente, a Me se aproxima e, assim que a
Enteada acaba de dizer as ltimas palavras, abre os braos
para significar que consente.).
O FILHO (Rpido) Ah, mas eu, no! Eu, no! Se no posso ir
embora, ficarei aqui, mas repito-lhe que no represento nada!...
O PAI (Ao Diretor, exaltado) Mas, o senhor pode obrig-lo!...
O FILHO Ningum pode obrigar-me!...
O PAI Eu o obrigarei!...
A ENTEADA Esperem, esperem! Primeiro, a Menina, na fonte!
(Corre para apanhar a Menina, abaixa-se, dobrando os
joelhos diante dela e toma-lhe o rostinho entre as mos.)
Pobre amorzinho meu, voc olha, perdida, com esses olhes to
lindos... Quem sabe onde pensa que est? Estamos num palco,
minha querida. Que um palco?... Pois est vendo? um
lugar onde se brinca a srio, onde se fazem peas. E ns vamos
fazer, agora, uma pea. A srio, sabe? Voc tambm...
(Abraa-a, apertando-a ao peito e embalando-a um pouco.)
Ah, meu amorzinho, meu amorzinho, que pea feia voc vai
FIM