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A Invenção Da Teatralidade

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vol. 13, n. 1, jun 2013, p.

56-70
Em pauta

A inveno da teatralidade1
Jean-Pierre Sarrazac2
A arte s pode reconciliar-se com sua prpria existncia ao exteriorizar seu
carter de aparncia, seu vazio interior.
Adorno, Teoria esttica.3

No incio de Da arte do teatro4, o Diretor, que acaba de conduzir o Amador de


Teatro ao espao teatral para que perceba seu mecanismo (construo geral, cena,
maquinaria dos cenrios, equipamentos de luz e todo o resto), pede a seu convidado
para se sentar por um instante na plateia e se interrogar a respeito de o que a Arte do
Teatro ... A lio merece ser compreendida: jamais se deveria abordar a mnima questo
de esttica teatral sem se colocar, mesmo que mentalmente, diante da cena. Antes de
refletir sobre o teatro importante constatar que esse palco estreito mas destinado a
servir de pedestal a um universo quando em repouso parece um deserto. Em outros
tempos a cortina vermelha permitia que se dissimulasse esse vazio ao olhar dos espectadores; ela estava ali para dar passagem s miragens construdas nos bastidores. Hoje,
a cortina de ferro, puramente funcional, interpe-se entre o pblico e os artistas no
incio da representao apenas para sublinhar melhor essa lacuna, esse vazio da cena
moderna. Atrs da cortina de veludo, nossos antepassados puderam pressentir a abundncia e a plenitude de um teatro baseado na iluso. No presente, mal a cortina de ferro
acaba de se elevar e j sabemos que esse cenrio, essa cenografia, jamais podero
1 Texto publicado originalmente em: Jean-Pierre Sarrazac. Linvention de La thtralit. In Critique du theatre. De
lutopie au dsenchantement. Paris: Circ, 2000, p. 53-71. A Presente traduo foi feita pela Profa. Dra. Slvia Fernandes
2 Jean-Pierre Sarrazac dramaturgo, diretor e professor emrito de estudos teatrais na Universit Paris 3Sorbonne Nouvelle.
3 Theodor W. Adorno, Thorie esthtique, Klincksieck, Collection dEsthtique, 1989. [Theodor W. Adorno, Teoria
esttica, trad.
4 Edward Gordon Craig, LArt du theatre, ditions O. Lieuter, 1942. Nova edio, Circ, coll. Penser le theatre,
apresentao de Georges Banu e Monique Borie, seguida de entrevista com Peter Brook, 1999. [Edward Gordon
Craig, A arte do teatro, trad.

preencher o vazio da cena nem nos preencher a ns, o pblico com o benefcio de
suas aparncias. A prpria cena, especialmente a mais preenchida, continua vazia; e
justamente esse vazio o vazio de toda representao que ela parece destinada a
exibir diante dos espectadores.
Alis, suspeito que Gordon Craig e seu Diretor expuseram seu Amador de Teatro
ao irremedivel vazio da cena apenas para apresent-lo concepo de que a Arte
do Teatro no tem nada a ver com a plenitude e a exploso da vida mas, ao contrrio,
liga-se aos movimentos subreptcios, errticos e desencarnados da morte Essa
palavra morte, nota Craig, naturalmente vem cabea por aproximao com a palavra
vida, que todos os realistas afirmam.
Iluso ou simulacro?
Supondo-se que a arte teatral do sculo XX continue baseada na imitao o
que pode dar margem a discusses na concepo de Craig e de muitos outros, a
includos diversos realistas, j no implica a submisso do espectador a uma iluso,
mas a observao crtica de um simulacro... Sou tentado a dizer que a ribalta e a
cortina vermelha foram de fato abolidas a partir do momento em que o espectador foi
convidado pelos atores ou qualquer outro condutor do jogo diretor, encenador, autor,
etc. a no se interessar pelo evento do espetculo, mas pelo advento, no centro da
representao, do prprio teatro daquilo que se chama teatralidade...
Mudana de regime do teatro, que se liberta do espetacular associando o espectador produo do simulacro cnico e a seu carter processual. Mudana implcita
e difcil de circunscrever em vrios criadores. Mudana perfeitamente identificvel e
explcita em Brecht, quando pretende que o teatro confesse que teatro, e j visvel
em Pirandello: o Diretor de Esta noite se improvisa no anuncia ao pblico, a cada
noite, que procura mostrar o funcionamento desse jogo em estado puro, essa simulao, esse simulacro geralmente conhecido como teatro.
Na virada do sculo XX, a exemplo de outras artes da representao, o teatro
toma conscincia de seu vazio interior e projeta esse vazio para o exterior. Evidentemente, tal reverso no poderia ocorrer sem a reunio de alguns pressupostos essenciais, de Zola a Craig, passando por Antoine, Lugn-Poe e Stanislvski: o surgimento
do encenador moderno, que tende a tornar-se autor da representao; a emancipao
da cena em relao ao texto; a focalizao progressiva dos artistas na essncia de

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sua arte, naquilo que especificamente teatral; a autonomia completa para alm do
compromisso e da unio proposta pela sntese wagneriana das artes ou Gesamtkustwerk do teatro e do teatral em relao s outras artes e tcnicas que participam da
representao... A cada vez que se tenta definir a revoluo que se completa nesse
momento da histria do teatro coloca-se a nfase na sagrao do encenador e no fim
da tutela absoluta do dramtico sobre o teatral; mas seria lastimvel esquecer outro
fator cuja importncia s mensurvel diante do buraco negro da cena: a revelao da
teatralidade pela escavao, prospeco, investigao do teatro.
Cita-se, com frequncia, a famosa definio de Roland Barthes de que a teatralidade o teatro menos o texto. Mas no deveria ser esquecida sua luminosa apresentao do Bunraku, essa forma teatral em que as fontes do teatro so expostas em
seu vazio e o que se expulsa da cena a histeria, quer dizer, o prprio teatro, e o que
se coloca no lugar a ao necessria produo do espetculo: o trabalho substitui
a interioridade.5 Se a teatralidade o teatro enquanto forma autnoma, ento esse
processo de formalizao no poderia completar-se sem o, esgotamento do contedo
pela forma, como se l nas Mitologias (a respeito do catch, tomado como paradigma
de um teatro da exterioridade).
A ideia de um teatro crtico que vai germinar, nos anos cinquenta, sombra do
TNP de Vilar, do Berliner Ensemble de Brecht e do Piccolo Teatro de Strehler, no se
limita crtica social por meio do teatro, como s vezes se pretende. No esprito de
Roland Barthes e Bernard Dort, os dois principais promotores dessa ideia, a dimenso
crtica e poltica da atividade teatral s tem sentido se estiver fundada na crtica em
ato do prprio teatro e na liberao do potencial de teatralidade. Por isso os editores
da revista Thtre Populaire elegem como alvo um teatro psicolgico e burgus cujos
valores apregoados so a interioridade, o natural e a proclamada continuidade entre
a realidade e o teatro. Ao contrrio, os artistas e escritores mencionados, enfaticamente, por Dort e Barthes Brecht, claro, mas tambm Pirandello ou Genet no
deixam de insistir sobre a ruptura, a disjuno entre o real e a cena. Para responder ao
mundo, para dar corpo crtica da sociedade, o teatro deve proclamar, antes de tudo,
sua insularidade: o palco j no est ligado realidade por meio da peneira e do sifo

5 Craig considera-se o primeiro a definir essa arte em sua autonomia, quer dizer, independente da literatura e
liberada dessa situao indivisa que, em Wagner, ainda a colocava sob o controle da msica, da poesia, da
pantomima e at mesmo da arquitetura e da pintura.
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dos bastidores6; no mais o lugar de um transbordamento anrquico do real, mas um


espao virgem, um espao vazio, uma pgina em branco em que vo se inscrever os
hierglifos em movimento da representao teatral.
O discurso dos defensores desse teatro crtico que constitui, ao mesmo tempo,
uma crtica do teatro no estranho s posies de Gordon Craig, mas delas se
distingue em um ponto essencial: para Barthes e Dort um teatro da teatralidade no
incompatvel com um teatro realista ao menos com certo tipo de realismo... Ao defenderem o realismo pico, os dois crticos brechtianos demarcam, integralmente, as
fronteiras com o realismo socialista e, de forma global, com todo sistema artstico que
se pretende reflexo ou reproduo direta do real. Em Thtre Populaire, o elogio dos
efeitos crticos e polticos de espetculos como Me coragem ou A vida de Galileu
liga-se ao reconhecimento do poder e da clareza de sua escritura cnica, em suma,
de sua teatralidade. O teatro realista deixa de ser considerado uma esponja do real,
para ser visto sobretudo como uma espcie de lugar in vitro: um espao vazio onde se
fazem experincias sobre o real, usando a teatralidade como nico protocolo.
Nos anos sessenta, quando Barthes se distancia do teatro (e transfere sua teoria da
teatralidade para outro lugar para a questo do Texto) Dort segue sozinho ampliando a
reflexo sobre o teatro e a teatralidade. Ele se interessa especialmente pelo processo de
reteatralizao do teatro, que culmina em Meyerhold na Unio Sovitica dos anos vinte e
trinta. Levar Meyerhold em considerao constatar, forosamente, com Josette Fral7, que
a afirmao do teatral como distinto do real condio sine qua non da teatralidade em
cena, e que a cena deve falar sua prpria linguagem e impor suas prprias leis. Mas a
contribuio mais decisiva de Dort para as relaes entre realismo e teatralidade de iniciar
uma verdadeira reavaliao de Stanislvski, de Antoine e do to mal falado naturalismo.
Ao apresentar Antoine como o patrono8 do teatro moderno, Dort se distancia
do idealismo de Gordon Craig. No v menos teatralidade ou uma teatralidade menos
6 Ver o captulo Brecht em processo do livro de Sarrazac Critique du theatre. De lutopie au dsenchantement. (N.T.)
7 Josette Fral, La Thtralit, Potique n. 75, ditions du Seuil, setembro 1988. O conceito de teatralidade, em
seus mltiplos usos no teatro e fora do teatro, torna-se cada vez mais fluido e tende a se banalizar. Portanto, para uma
melhor definio do conceito, eu proporia a comparao com o que chamo de teatralismo. Teatralismo designaria
o contrrio da teatralidade como tratada aqui... O surgimento da teatralidade procede da pura emergncia do
ato teatral no vazio da representao. O reino do teatralismo remete a essa doena esttica endmica que faz
com que o teatro sofra de sua prpria nfase e, de certo modo, de um excesso de si mesmo. Assim, quando
Stanislvski declara que O que faz dsesprer do teatro o teatro, no visa a teatralidade Meyherhold, mas esse
teatralismo enquanto estado histrinico e narcsico, manifestao redundante do teatro no teatro.
8 Bernard Dort, Antoine le patron, Thtre Public, op. cit.
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sutil nas encenaes naturalistas de Antoine que nos espetculos simbolistas e estilizados de um Lugn-Poe. Sem dvida, o autor de Thtre rel acredita que a verdadeira modernidade est mais presente no gesto experimental de colocar um fragmento de vida, um ambiente, sob a lente de aumento da quarta parede do que nas
cerimnias fantasmticas do Thtre dArt ou do Thtre de lOeuvre, longinquamente
inspiradas em Baudelaire e Wagner. Talvez ele consiga at mesmo discernir, sob a
aparncia de continuidade e unidade da representao naturalista, esse pontilhismo
ou, sobretudo, esse divisionismo que Antoine e Stanislvski praticam. Com base nesse
pressuposto, pode-se reavaliar o naturalismo teatral, considerando-o uma arte decididamente moderna e uma arte da teatralidade, ou seja, fundada na descontinuidade
e nos vazios. Lugn-Poe, Craig, Copeau j no so os pais obrigatrios do teatro
contemporneo; outra genealogia est prestes a se desenhar. Segundo a frmula de
Dort, se Barthes sonhou com um teatro em que a matria se tornaria signo9, a origem
desse sonho no estaria exclusivamente em um teatro oriental hipercodificado como
o Bunraku, mas tambm no realismo experimental de Brecht e seus predecessores
Antoine e Stanislvski.
O estar-a do teatro
Do vazio da cena e no fundo pouco importa que seja ostensivo (palco nu) ou
discreto (dispositivo realista ou mesmo naturalista) surge o corpo do ator e qualquer
outra partcula de teatro figurino, elemento de cenrio, iluminao, msica etc. A
partir do momento em que o palco no pretende mais ser contguo e comunicante
com o real, o teatro no mais colonizado pela vida. O jogo esttico desloca-se: no
se trata mais de colocar em cena o real, mas de colocar em presena, confrontar os
elementos autnomos ou signos, ou hierglifos que constituem a realidade especfica do teatro. Elementos discretos, separados, insolveis, que remetem apenas ao
enigma de sua apario e seu agenciamento. H uma oscilao do primado do real,
que ainda era lei no sculo XIX, para o Estar-a do teatro. Para essa literalidade que
vai tornar-se, tanto para Brecht quanto para o Novo Teatro, a grande demanda dos
anos cinquenta e sessenta. Artaud j a anunciava em 1926, sob a influncia determinante do ltimo Strindberg: No queremos criar, como se fez at aqui e como sempre
se fez no caso do teatro, a iluso daquilo que no ; ao contrrio, pretendemos fazer
9 Josette Fral, O naturalismo , ele prprio, reconhecido como uma forma de teatralidade.
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surgir diante dos olhos um certo nmero de quadros, imagens indescritveis, inegveis,
que falaro diretamente ao esprito. Os objetos, os acessrios, at mesmo os cenrios
no palco devem ser entendidos em sentido imediato, sem transposio: devem ser
tomados no pelo que representam, mas pelo que realmente so na realidade10?
O intermedirio entre Artaud e os crticos brechtianos ser Adamov, em um
perodo em que ainda classificado, com Ionesco e Beckett, como puro vanguardista strindbergo-kafkiano... Quanto definio desse Estar-a do teatro que dever
adquirir, na sequncia, uma dimenso mais filosfica, mais heiddegeriana ela est
contida por inteiro em algumas linhas de um texto de 1950, em que Adamov explica
que tentou fazer com que a manifestao (do) contedo (de suas peas) coincidisse
literalmente, concretamente, corporalmente com o prprio contedo. Quanto literalidade das peas de Adamov, no captulo anterior demos o exemplo esclarecedor do
personagem mutilado psiquicamente e fisicamente11.
De fato, mais que o exemplo do Mutilado (personagem de La Grande et la petite
manoeuvres de Adamov), a ideia geral da literalidade que Barthes e Dort subscrevem. Os transbordamentos corporais voluntariamente teratolgicos de Ionesco,
Beckett, Adamov deixam bastante em dvida, ao menos nos primeiros tempos, os
dois editores de Thtre populaire. Em compensao, o princpio da literalidade, cuja
nica finalidade afirmar a presena e a materialidade do teatro, os seduz. A literalidade torna-se a via privilegiada para o surgimento da teatralidade. O que fascina
Barthes no verdadeiro protagonista de Le Ping Pong quero dizer, o bilhar eltrico
o que o autor de Mitologias chama de objeto literal, um objeto que no tem por funo
dramatrgica e cnica simbolizar, mas simplesmente estar presente e, por meio dessa
presena que teima, produzir ao e situaes (mesmo que sejam ao e situaes
de linguagem). Isso se explica porque a gerao que defende essa dramaturgia do
Estar-a sustenta, igualmente, o Nouveau Roman. Dort ser um dos primeiros a desenvolver uma temtica em seus artigos Tempo das coisas e Romances brancos dos
Cahiers du Sud ou de Lettres nouvelles, que anuncia o Nouveau Roman; e sabe-se
da relao forte e tempestuosa que Barthes mantm, durante anos, com Robbe-Grillet.
Teatro ou romance, trata-se de exorcizar definitivamente o demnio da analogia.
Terminar de uma vez por todas com uma arte fundada no primado da interioridade,

10 Bernard Dort, Le Corps du theatre, Art Press, n. 184, outubro 1993.


11 Antonin Artaud, Oeuvres completes, t. II, Gallimard, 1961 (Sou eu, JPS, que sublinho)
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da psicologia, da profundidade. Para ns, a superfcie das coisas deixou de ser a


mscara de seu corao, declara o autor de Gommes. O que se tornou insuportvel
para os escritores e homens de teatro foi a manuteno da dicotomia neo-platnica
ideia/aparncias, alma/corpo em que o segundo termo considerado apenas uma
m traduo do primeiro. No incio dos anos cinquenta, parece ter chegado a hora de
um teatro inteiramente dedicado ao presente da representao e ao evento cnico. No
entanto, condio de liquidar, definitivamente, a parcela da herana hegeliana que
afirma que na cena, sempre, definitivamente, os conceitos que so representados,
vestidos, animados.
uma mudana de perspectiva semelhante promovida pelo Nouveau Roman que
os editores da revista Thtre populaire querem realizar no teatro. No entanto, para Barthes
e Dort, o campeo dessa revoluo no um escritor prximo do Nouveau Roman como
Beckett, por exemplo, ou os sustentculos mais radicais da literalidade Adamov ou o
primeiro Ionesco; esse campeo Brecht, na via dos espetculos do Berliner Ensemble
apresentados em Paris a partir de 1954. Em relao vanguarda dos anos cinquenta,
cujas obras os editores da revista Thtre Populaire julgam atemporais e no-histricas,
a dramaturgia brechtiana tem a imensa vantagem de integrar a dimenso da Histria, do
social, do poltico ao partido da literalidade... distncia, e com todo respeito ao contexto,
pode-se perguntar se o modo como Dort e Barthes rejeitam Beckett nesse momento, relegando-o s trevas de um teatro metafsico e de vanguarda burguesa (e o prprio Adamov
faz com que suas peas iniciais tenham destino semelhante) no tem algo de excessivo e
injusto... A reprovao retrospectiva que se pode fazer aos crticos de Thtre populaire
a de ter confundido a obra dos dramaturgos dos anos cinquenta com a leitura idealista que
deles foi feita (em Beckett, Anouilh privilegia o smbolo da ausncia de Godot, em lugar
da hiperpresena literal de Vladimir e Estragon). No entanto, a questo fundamental est
colocada: ser que o teatro pode continuar a fazer, como acontece em Sartre, a passagem
incessante do sensvel para o inteligvel e a anulao permanente da forma cnica em
proveito de ideias, teses e outras mensagens? No chegou a hora de o teatro destacar
esse momento de pura teatralidade, em que o sensvel torna-se significante?
No fundo, o princpio da literalidade nada mais que um gigantesco efeito
de distanciamento (brechtiano) ou de inquietante estranheza (freudiana) em que a
presena cnica dos objetos e dos seres, usada e banalizada por tantos sculos de
representao, recupera repentinamente sua potncia arcaica e enigmtica. Essa

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exigncia de literalidade que os textos de Adamov, Barthes e Dort expressam claramente vem selar o pacto de um teatro refundado na teatralidade... A srie de artigos
de Barthes consagrados Me Coragem e arte do Berliner Ensemble, bem como
a Leitura de Brecht de Dort, estabelecem que no teatro da literalidade e da teatralidade o sentido nunca global; sempre local e fragmentrio. O sentido sempre
apreendido na materialidade da cena, ela prpria espaada, como os caracteres de
impresso na pgina de um livro12, no vazio inaugural do teatro.
Para Barthes, o exemplo brechtiano oferece a oportunidade de revisar a questo
do sentido at mesmo para alm do teatro: da iseno ou da decepo com o
sentido, ligada Kafka e ao surgimento do Nouveau Roman, ele passa suspenso
do sentido, sob influncia direta do teatro pico. Ou seja, passa a levar em conta
o destinatrio da obra pica, seu papel de leitor ou espectador ativo, ocupado em
destrinchar o enigma do sentido depois que a leitura ou a representao terminaram.
De fato, Barthes deve literalidade brechtiana essa teatralidade polifnica, fundada
na espessura de signos, na superposio de sentidos sua concepo mais afinada
da razo semiolgica. A pura presena teatral aquilo que d a ver um objeto, um
corpo, um mundo em sua hipervisibilidade fragmentria, em sua opacidade mesma,
que me permite v-la e decifr-la sem esperana de chegar ao final de sua decifrao.
Assim, o contedo do espetculo no esvazia sua forma; a forma, ao contrrio,
constitui o elemento resistente que absorve minha ateno e canaliza minha reflexo. A
literalidade realiza o estado mximo de concentrao do objeto teatral e faz com que eu
me concentre nesse objeto. Por meio da intensificao e densidade extremas da matria
teatral que afeta tanto os atores e a linguagem quanto o cenrio e os objetos , o
espectador fica sem escapatria e se v confrontado com o Estar-a mtuo dos homens
e do mundo. Portanto, a literalidade tambm essa (falsa) opacidade, essa cegueira que
permite ver no refletor do teatro: Vemos Me Coragem cega, escreve Barthes, vemos
que ela no v; frmula que ecoa um Fragmento de 1964 sobre o dilogo platnico:
Ver o no ver, ouvir o que no se ouve (...). Ouvimos o que Mnon no ouve, mas s
ouvimos por causa da surdez de Mnon13.
No entanto, a reivindicao de literalidade que Dort e Barthes priorizam, nos
anos cinquenta e sessenta, hoje pode parecer insuficiente. Para certos detratores,
12 Arthur Adamov, Avertissement La Parodie et LInvasion, em Ici ET Maitenant, Gallimard, Coll. Pratique
du Thtre, 1964.
13 Walter Benjamin, Essais sur Bertolt Brecht, Petite collection Maspero, n. 39, 1969. [Walter Benjamin,
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sob a capa de literalidade e teatralidade Brecht s prope um teatro predicante e militante disfarado. E, mesmo que se chegue a provar que a nica pedagogia proposta
pelo teatro pico de ordem heurstica e socrtica, pode-se confrontar, ainda, com a
objeo de que Brecht no coloca em xeque, suficientemente, o conceito de representao no que implica em se furtar a esse presente absoluto, a esse mais-que-presente
de pura situao em presena do teatro. Se nos anos oitenta e noventa apareceram
novas exigncias de literalidade e teatralidade, elas se ligaram a um evento cnico que
deveria ser pura presentao, pura presentificao do teatro, a ponto de apagar toda
ideia de reproduo, de repetio do real.
Se o Novo romance e o Novo teatro esto razoavelmente distantes de ns
(restam as obras em sua singularidade, em particular a de Beckett), Brecht, por seu
lado, tornou-se suspeito aos olhos de muitos; portanto, a tentao de reavaliar negativamente o princpio de literalidade dos anos cinquenta grande, seja ao propor uma
verso mais potente da literalidade, seja ao desqualific-la... Hoje, certos homens de
teatro pretendem dar mais espao e destaque ao Estar-a do teatro. Tambm procuram
dilatar o instante teatral, ao distanciar o jogo de sua significao, ao liberar a teatralidade, definitivamente, de toda funo de comentrio em relao ao (a teatralidade
brechtiana continua subordinada ao comentrio do gestus14).
Mas, no centro dos questionamentos atuais, pode-se pensar tambm em questionar o abuso da literalidade e essa espcie de medo do sentido que ela engendra.
A profundidade no mais o que era. Pois enquanto o sculo XIX assistiu a um longo
processo de destruio das aparncias em proveito do sentido, o sculo XX desenvolveu um processo gigantesco de destruio do sentido... em proveito de que? No
desfrutamos mais das aparncias nem do sentido15. Aqueles que fazem teatro hoje e
refletem sobre ele no deveriam ficar indiferentes constatao irnica de Baudrillard.
Da cena ao texto
Definir a teatralidade como se faz, frequentemente, a partir do distanciamento do
teatro em relao ao texto no falso, mas pode levar ao uso unvoco e abusivo da noo.
14 Roland Barthes, Mre courage aveugle, Thtre populaire, n. 8, julho-agosto 1954, republicado em Oeuvres
completes, tomo 1, Seuil, 1993 [Roland Barthes, Me coragem cega, in; Fragment, Oeuvres compltes, 1, op. cit.
15 Sobre o comentrio de gestus, ver os crits sur le thtre, t. 2, de Brecht, editado pela lArche, em particular
o Petit Organon [Bertolt Brecht, Pequeno Organon para o Teatro, in. Sobre a necessria subordinao da
teatralidade ao comentrio do Gestus: Roland Barthes, Les Maladies du costume de thtre, Thtre populaire
n. 12, maro-abril 1955, republicado em Oeuvres completes, 1, op. cit. [Roland Barthes.
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Em todo caso, Barthes preveniu-nos contra tal reduo: ao mesmo tempo em que define a
teatralidade como o teatro menos o texto, introduz o paradoxo que faz da teatralidade um
dado de criao, no de realizao (Em squilo, em Shakespeare, em Brecht, o texto
escrito previamente tomado pela exterioridade dos corpos, dos objetos, das situaes,
Barthes precisa). A partir da, pode-se concluir que a posio barthesiana ambgua?
Sim, se considerarmos que no esclarece, de fato, as relaes que o texto mantm com
os outros componentes da representao teatral. No, na medida em que preserva a
possibilidade de uma relao dialtica, ou de uma tenso, entre esses componentes.
Para Barthes, para Dort, a teatralidade aquilo que permite pensar o teatro no sem
o texto mas, de modo recorrente, a partir de sua realizao ou seu devir cnico. Vontade de
voltar ao hic et nunc da representao e de reinstalar o teatro em sua dimenso propriamente cnica, depois de muitos sculos de subservincia literatura (Sua Majestade, diz
amavelmente Baty, enquanto Artaud denuncia a atitude de gramticos e invertidos, em
resumo, de ocidentais). Mas, sobretudo, vontade de libertar o teatro de sua identidade literria, abstrata e atemporal, para recuperar sua abertura para o mundo, para o real. Nesse
sentido, a teatralidade reinstitui a arte do teatro enquanto ato.
Os animadores de revista Thtre populaire certamente no foram os nicos nem
os primeiros a expressar essas preocupaes. Henri Gouhier, por exemplo, sempre
defendeu a ideia de que o teatro deveria ser pensado a partir do ncleo da representao. A representao, escreve, est inscrita na essncia da obra teatral; s existe
realmente no momento e no lugar em que se realiza a metamorfose. Portanto, a representao no um suplemento de que se poderia, a rigor, prescindir; um fim nos
dois sentidos da palavra: a obra feita para ser representada; essa sua finalidade; ao
mesmo tempo, a representao define um acabamento, o momento em que, enfim, a
obra plenamente ela mesma16... E cabe ao filsofo usar a expresso texto-partitura.
No entanto, no que diz respeito representao, a posio de Gouhier (ou a de
seu contemporneo Touchard, bastante prxima) continua a fazer parte desse textocentrismo denunciado por Dort. Para o muito galilaico autor de Leitura de Brecht, o
texto pode ser colocado no centro da representao teatral como nenhum outro componente cnico. Em ensaio claro e sbio, O texto e a cena: uma nova aliana17, Dort
mostra como nasceu e se desenvolveu a concepo moderna de uma obra dramtica

16 Jean Baudrillard, Cool memories, ditions Galile, 1987.


17 Bernard Dort, La Reprsentation mancipe, Actes-Sud, Coll. Le temps du theatre, Arles, 1988.
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incompleta, aberta, espera da cena... Quase a despeito de si mesmo, Hegel confirma


a existncia de uma parte criativa e no simplesmente interpretativa ou ilustrativa
do ator que, por meio da mmica, do jogo mudo, vem preencher as lacunas de um texto
em si mesmo inacabado. O texto e a cena... faz referncia a essas pginas da Esttica, em que se nota, a respeito do drama como novo gnero, que o poeta abandona
aos gestos aquilo que os antigos s exprimiam pelas palavras. Tanto quanto a Hegel,
Dort poderia remeter funo criativa da pantomima em Diderot e Lessing que, com
frequncia, est em contradio com as palavras.
Mas se Dort denuncia o textocentrismo para afirmar a autonomia da representao, recusa-se, categoricamente, a ceder ao mito moderno de uma teatralidade
que seria incompatvel com a existncia do texto. Chega mesmo a acrescentar, ao
paradoxo barthesiano da teatralidade, um segundo paradoxo: O teatro sem texto,
afirma, referindo-se especialmente a Artaud, um sonho de escritor (que) s pode ser
pensando e expresso no texto, por meio da escritura. Da o silncio teatral a que so
condenados esses profetas. De fato, trata-se de distinguir a ruptura necessria com
um teatro puramente literrio, um teatro sem corpos, do impasse de uma posio mais
extrema que consiste no repdio ao texto de teatro. Em Dort, a preocupao de encontrar o bom equilbrio ou o desequilbrio dinmico vai a tal ponto que ele se esfora
por resolver as contradies do autor de O Teatro e seu duplo: Quando Antonin Artaud
citava Woyzeck entre as primeiras obras a serem includas no repertrio de seu teatro
da Crueldade, sem dvida entrava em contradio com seu desejo de acabar com
as obras-primas do passado, mas tambm pressentia a nova aliana entre o texto e
a cena que bem poderia caracterizar o teatro de hoje para alm da pseudoposio
entre texto e encenao, entre um teatro do texto e um teatro teatral.
Ainda que ligado epifania da representao a esse momento em que se manifesta a teatralidade Dort continua atento problemtica do texto teatral, em particular
do texto contemporneo, e leva em conta as resistncias desse ltimo mimesis. Para
Dort no parece uma aberrao o texto recusar-se a jogar completamente o jogo da
representao pois, como escreveu Duras, quando o texto representado que se
est mais distante do autor. Para dizer a verdade, Dort, ao contrrio de Barthes, no
um homem da aporia, mas das passagens. Em O texto e a cena: uma nova aliana ou,
pouco mais tarde, em A representao emancipada, procura traar os contornos para
ele bastante razoveis de uma nova utopia (ps-brechtiana) da representao. Mas,

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ao propor uma nova aliana, Dort nos previne, sobretudo, contra os dois perigos que
ameaam as relaes entre a cena e o texto:
- Por um lado, essa atitude francamente reacionria, mas que ganha cada vez
mais espao, que consiste em querer restaurar o teatro literrio, o teatro de texto.
Pois no foi Jacques Julliard (e poderia ser Alain Finkielkraut) que afirmou, h alguns
anos, em uma de suas crnicas do Nouvel Observateur, que enquanto o teatro no
retornar ao lugar onde se faz ouvir a palavra sagrada do poeta; enquanto os encenadores atuais, esses tiranos mal educados, no deixarem de ser arrogantes com o
autor, o contrato dramtico, essa aventura a trs que une autor, intrpretes e espectadores em torno de um texto, permanecer despedaado, desonrado, destrudo? ...
Contentemo-nos de devolver Julliard e seus preconceitos (que, diga-se de passagem,
so anteriores ao surgimento da encenao moderna) ao que Dort nos diz sobre os
maiores textos de teatro: leitura (eles) parecem problemticos, complexos a ponto
de parecerem incoerentes, excessivos no limite da desordem, porque tomam partido,
deliberadamente, de seu prprio inacabamento e fazem apelo cena.
- Por outro lado, uma proposta que no menos vaga, incerta e arriscada s
porque toma partido da emancipao da representao (acredito que a expresso
remonta a Evreinoff). assim que Alain Badiou, em suas Dez teses sobre o teatro (Dix
thses sur le thtre) parece afastar a questo do texto ao reduzi-lo a uma essncia
eterna que somente a representao pode levar instantaneidade, imediaticidade,
em uma palavra, vida. Sem dvida Dort concordaria com a afirmao de Badiou de
que a ideia-teatro no texto e no poema est incompleta, e que a encenao no
interpretao, mas complementao. Mas imagino que acharia menos convincente
apresentar o teatro como um agenciamento de componentes materiais e ideais
extremamente disparatados, cuja nica existncia a representao. Em suas teses,
Badiou simplesmente esquece que na representao o texto tem, forosamente, estatuto e funo diferentes dos outros componentes... Sobretudo por falta: o texto o
nico elemento que existe de modo autnomo enquanto texto escrito no evento
da representao; transforma-se, metamorfoseia-se, pode at mesmo ser abolido
durante sua manifestao... Em seguida, por excesso: sua forma de invaso diferente de qualquer outro elemento presente em cena atravs dos corpos, das vozes,
do espao, e at mesmo do esprito dos espectadores, que podem conhec-lo antes
da representao.

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De uma polifonia que vir


Ser que preciso passar da proposio adamoviana, que Dort e Barthes subscreveram em minha concepo, o teatro est completa e absolutamente ligado
representao para a de Badiou, que pretende que a teatralidade s exista na
e para a representao. O inconveniente da ideia-teatro segundo Badiou que ao
remeter articulao ou como diria Dort, ao jogo entre os diferentes componentes
cnicos, s agrava a ambiguidade j notada em Barthes. De certo modo, a ideia-teatro vem preencher o espao vazio deixado pelo gestus brechtiano, pedra angular
da concepo de teatro crtico elaborada por Dort e Barthes: Toda obra dramtica
pode e deve reduzir-se ao que Brecht denomina gestus social, a expresso exterior,
material, dos conflitos da sociedade de que testemunha. Evidentemente, cabe ao
encenador descobrir e manifestar esse gestus, esse esquema histrico particular que
fundamenta todo espetculo: para isso, tem sua disposio o conjunto das tcnicas
teatrais: o jogo dos atores, a espacializao, o movimento, o cenrio, a iluminao
(...), o figurino. A vantagem do gestus hoje considerado obsoleto, como todo teatro
da fbula sobre a ideia-teatro ser, ao mesmo tempo, transcendente em relao
ao conjunto dos componentes da representao e estar indexado no texto. O gestus
existe como globalidade, como ponto de vista geral sobre o texto, mas tambm como
unidade (no sentido semiolgico) a partir da qual o texto pode ser lido, decupado,
comentado...
Fazendo o luto do brechtianismo, e a fim de preservar um certo jogo ou um certo
uso do teatro e do mundo real, Dort esforou-se por elaborar essa utopia de ligao,
mais tcnica que poltica, que eu evocava acima. Foi assim que escolheu ir alm da
metfora brechtiana da revoluo copernicana do teatro e anunciar uma revoluo
propriamente einsteiniana... Para tornar palpvel essa esperana, evoca um modelo
de representao ideal: A revoluo copernicana do princpio do sculo tornou-se
uma revoluo einsteiniana. A inverso do primado de texto e cena transformou-se em
relativizao generalizada dos elementos da representao teatral, uns em relao
aos outros. Renuncia-se ideia de uma unidade orgnica, fixada a priori, e at mesmo
de uma essncia do fato teatral (a misteriosa teatralidade) para conceber o teatro
como uma espcie de polifonia significante, aberta sobre o espectador18.

18 Alain Badiou, Dix thses sur le theatre, op. cit.


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A representao emancipada, no sentido dortiano, certamente tem muito a ver


com a polifonia barthesiana; entretanto, marcada pela recusa de uma teatralidade
ecumnica. Dort preconiza um tipo de relao violentamente contraditria entre os
diferentes componentes da representao que Brecht previa na origem de sua teoria
das artes-irms (Schwesterknste), mas que teria esquecido parcialmente: Por
conta de seu privilgio e de suas obrigaes de autor e encenador, e tambm de editor
do Berliner Ensemble, sem dvida sacrificou a independncia dessas artes-irms a
uma concepo dramatrgica unitria das obras que apresentava. Mas sua lio vai
alm de sua prtica. Desenha a imagem de uma representao no unificada, cujos
diversos elementos entrariam em colaborao, at mesmo em rivalidade, em lugar de
apagar suas diferenas e contribuir para a edificao de um sentido comum19.
Para Dort, jogo sempre sinnimo de luta e combate. Mas, ao mesmo tempo,
esse voluntarismo do Dort-terico atenuado e corrigido pelo hedonismo que a
marca do Dort-espectador. Ora, para esse espectador de dimenso romanesca o
prazer do teatro sempre adquire uma cor nostlgica, quase melanclica. Ser que
isso acontece porque sua atividade de crtico permanece fundada, para sempre, nos
combates travados com Barthes no tempo de Thtre populaire? Ou porque nenhum
espetculo, desde Me Coragem na encenao de Brecht ou A vida de Galileu dirigida por Strehler, pode responder totalmente expectativa criada por esses? Ou
ainda, ser que se trata de um sentimento mais geral e misterioso, diretamente ligado
ao surgimento da teatralidade: o sentimento da perda do teatro para o prprio teatro?
Para Bernard Dort, a representao teatral sempre aparece como o lugar da falta por
excelncia, a experincia de privao de um espao e um tempo para sempre inalcanveis. Como se hoje a paixo do espectador s pudesse expressar-se por um permanente desencanto. Desiluso que o artista (ele prprio um espectador desiludido do
esforo de fazer teatro) partilharia com o pblico. Em eco contraditrio ao Eu no vou
mais ao teatro de Barthes, Dort no cessa de nos advertir, mezzo vocce, que o teatro
jamais para de nos abandonar, de desertar de si e de ns. Em todo caso, foi sob o
signo da intensa nostalgia que Dort viu e viveu Sur la grande-route de Grber: Um
momento de repouso no movimento infinito de Grber de abandono do palco (...) Sur
la grande-route fala da ltima felicidade possvel.20.

19 Roland Barthes, Les Maladies du costume de thtre, op. cit.


20 Idem
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Persistir na tarefa (beckettiana) de acabar (mais uma vez) com o teatro, e sempre
sonhar com o retorno ao incio: talvez seja esse o ltimo paradoxo da teatralidade. Pois
o teatro s se realiza verdadeiramente fora de si, quando consegue libertar-se de si...
Ao produzir no teatro, a cada vez, o vazio do teatro.
Referncias Bibliogrficas
ADORNO, Theodor W.Teoria esttica. Lisboa: Ed. 70, 2011.
BARTHES, Roland. O imprio dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Martins
Fontes, 2007.
BAUDRILLARD, Jean.Cool memories. So Paulo: Estao Liberdade, 1996.
BENJAMIN, Walter. O que o teatro pico, IN Flvio R. Kothe e Florestan Fernandes (org.).
Walter Benjamin. Sociologia. So Paulo: tica, 1991, p. 202-218.
DORT, Bernard. A Representao Emancipada. Revista Sala Preta, Vol. 13.1. So Paulo:
USP/PPGAC, 2013.

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