A Invenção Da Teatralidade
A Invenção Da Teatralidade
A Invenção Da Teatralidade
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Em pauta
A inveno da teatralidade1
Jean-Pierre Sarrazac2
A arte s pode reconciliar-se com sua prpria existncia ao exteriorizar seu
carter de aparncia, seu vazio interior.
Adorno, Teoria esttica.3
preencher o vazio da cena nem nos preencher a ns, o pblico com o benefcio de
suas aparncias. A prpria cena, especialmente a mais preenchida, continua vazia; e
justamente esse vazio o vazio de toda representao que ela parece destinada a
exibir diante dos espectadores.
Alis, suspeito que Gordon Craig e seu Diretor expuseram seu Amador de Teatro
ao irremedivel vazio da cena apenas para apresent-lo concepo de que a Arte
do Teatro no tem nada a ver com a plenitude e a exploso da vida mas, ao contrrio,
liga-se aos movimentos subreptcios, errticos e desencarnados da morte Essa
palavra morte, nota Craig, naturalmente vem cabea por aproximao com a palavra
vida, que todos os realistas afirmam.
Iluso ou simulacro?
Supondo-se que a arte teatral do sculo XX continue baseada na imitao o
que pode dar margem a discusses na concepo de Craig e de muitos outros, a
includos diversos realistas, j no implica a submisso do espectador a uma iluso,
mas a observao crtica de um simulacro... Sou tentado a dizer que a ribalta e a
cortina vermelha foram de fato abolidas a partir do momento em que o espectador foi
convidado pelos atores ou qualquer outro condutor do jogo diretor, encenador, autor,
etc. a no se interessar pelo evento do espetculo, mas pelo advento, no centro da
representao, do prprio teatro daquilo que se chama teatralidade...
Mudana de regime do teatro, que se liberta do espetacular associando o espectador produo do simulacro cnico e a seu carter processual. Mudana implcita
e difcil de circunscrever em vrios criadores. Mudana perfeitamente identificvel e
explcita em Brecht, quando pretende que o teatro confesse que teatro, e j visvel
em Pirandello: o Diretor de Esta noite se improvisa no anuncia ao pblico, a cada
noite, que procura mostrar o funcionamento desse jogo em estado puro, essa simulao, esse simulacro geralmente conhecido como teatro.
Na virada do sculo XX, a exemplo de outras artes da representao, o teatro
toma conscincia de seu vazio interior e projeta esse vazio para o exterior. Evidentemente, tal reverso no poderia ocorrer sem a reunio de alguns pressupostos essenciais, de Zola a Craig, passando por Antoine, Lugn-Poe e Stanislvski: o surgimento
do encenador moderno, que tende a tornar-se autor da representao; a emancipao
da cena em relao ao texto; a focalizao progressiva dos artistas na essncia de
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sua arte, naquilo que especificamente teatral; a autonomia completa para alm do
compromisso e da unio proposta pela sntese wagneriana das artes ou Gesamtkustwerk do teatro e do teatral em relao s outras artes e tcnicas que participam da
representao... A cada vez que se tenta definir a revoluo que se completa nesse
momento da histria do teatro coloca-se a nfase na sagrao do encenador e no fim
da tutela absoluta do dramtico sobre o teatral; mas seria lastimvel esquecer outro
fator cuja importncia s mensurvel diante do buraco negro da cena: a revelao da
teatralidade pela escavao, prospeco, investigao do teatro.
Cita-se, com frequncia, a famosa definio de Roland Barthes de que a teatralidade o teatro menos o texto. Mas no deveria ser esquecida sua luminosa apresentao do Bunraku, essa forma teatral em que as fontes do teatro so expostas em
seu vazio e o que se expulsa da cena a histeria, quer dizer, o prprio teatro, e o que
se coloca no lugar a ao necessria produo do espetculo: o trabalho substitui
a interioridade.5 Se a teatralidade o teatro enquanto forma autnoma, ento esse
processo de formalizao no poderia completar-se sem o, esgotamento do contedo
pela forma, como se l nas Mitologias (a respeito do catch, tomado como paradigma
de um teatro da exterioridade).
A ideia de um teatro crtico que vai germinar, nos anos cinquenta, sombra do
TNP de Vilar, do Berliner Ensemble de Brecht e do Piccolo Teatro de Strehler, no se
limita crtica social por meio do teatro, como s vezes se pretende. No esprito de
Roland Barthes e Bernard Dort, os dois principais promotores dessa ideia, a dimenso
crtica e poltica da atividade teatral s tem sentido se estiver fundada na crtica em
ato do prprio teatro e na liberao do potencial de teatralidade. Por isso os editores
da revista Thtre Populaire elegem como alvo um teatro psicolgico e burgus cujos
valores apregoados so a interioridade, o natural e a proclamada continuidade entre
a realidade e o teatro. Ao contrrio, os artistas e escritores mencionados, enfaticamente, por Dort e Barthes Brecht, claro, mas tambm Pirandello ou Genet no
deixam de insistir sobre a ruptura, a disjuno entre o real e a cena. Para responder ao
mundo, para dar corpo crtica da sociedade, o teatro deve proclamar, antes de tudo,
sua insularidade: o palco j no est ligado realidade por meio da peneira e do sifo
5 Craig considera-se o primeiro a definir essa arte em sua autonomia, quer dizer, independente da literatura e
liberada dessa situao indivisa que, em Wagner, ainda a colocava sob o controle da msica, da poesia, da
pantomima e at mesmo da arquitetura e da pintura.
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sutil nas encenaes naturalistas de Antoine que nos espetculos simbolistas e estilizados de um Lugn-Poe. Sem dvida, o autor de Thtre rel acredita que a verdadeira modernidade est mais presente no gesto experimental de colocar um fragmento de vida, um ambiente, sob a lente de aumento da quarta parede do que nas
cerimnias fantasmticas do Thtre dArt ou do Thtre de lOeuvre, longinquamente
inspiradas em Baudelaire e Wagner. Talvez ele consiga at mesmo discernir, sob a
aparncia de continuidade e unidade da representao naturalista, esse pontilhismo
ou, sobretudo, esse divisionismo que Antoine e Stanislvski praticam. Com base nesse
pressuposto, pode-se reavaliar o naturalismo teatral, considerando-o uma arte decididamente moderna e uma arte da teatralidade, ou seja, fundada na descontinuidade
e nos vazios. Lugn-Poe, Craig, Copeau j no so os pais obrigatrios do teatro
contemporneo; outra genealogia est prestes a se desenhar. Segundo a frmula de
Dort, se Barthes sonhou com um teatro em que a matria se tornaria signo9, a origem
desse sonho no estaria exclusivamente em um teatro oriental hipercodificado como
o Bunraku, mas tambm no realismo experimental de Brecht e seus predecessores
Antoine e Stanislvski.
O estar-a do teatro
Do vazio da cena e no fundo pouco importa que seja ostensivo (palco nu) ou
discreto (dispositivo realista ou mesmo naturalista) surge o corpo do ator e qualquer
outra partcula de teatro figurino, elemento de cenrio, iluminao, msica etc. A
partir do momento em que o palco no pretende mais ser contguo e comunicante
com o real, o teatro no mais colonizado pela vida. O jogo esttico desloca-se: no
se trata mais de colocar em cena o real, mas de colocar em presena, confrontar os
elementos autnomos ou signos, ou hierglifos que constituem a realidade especfica do teatro. Elementos discretos, separados, insolveis, que remetem apenas ao
enigma de sua apario e seu agenciamento. H uma oscilao do primado do real,
que ainda era lei no sculo XIX, para o Estar-a do teatro. Para essa literalidade que
vai tornar-se, tanto para Brecht quanto para o Novo Teatro, a grande demanda dos
anos cinquenta e sessenta. Artaud j a anunciava em 1926, sob a influncia determinante do ltimo Strindberg: No queremos criar, como se fez at aqui e como sempre
se fez no caso do teatro, a iluso daquilo que no ; ao contrrio, pretendemos fazer
9 Josette Fral, O naturalismo , ele prprio, reconhecido como uma forma de teatralidade.
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surgir diante dos olhos um certo nmero de quadros, imagens indescritveis, inegveis,
que falaro diretamente ao esprito. Os objetos, os acessrios, at mesmo os cenrios
no palco devem ser entendidos em sentido imediato, sem transposio: devem ser
tomados no pelo que representam, mas pelo que realmente so na realidade10?
O intermedirio entre Artaud e os crticos brechtianos ser Adamov, em um
perodo em que ainda classificado, com Ionesco e Beckett, como puro vanguardista strindbergo-kafkiano... Quanto definio desse Estar-a do teatro que dever
adquirir, na sequncia, uma dimenso mais filosfica, mais heiddegeriana ela est
contida por inteiro em algumas linhas de um texto de 1950, em que Adamov explica
que tentou fazer com que a manifestao (do) contedo (de suas peas) coincidisse
literalmente, concretamente, corporalmente com o prprio contedo. Quanto literalidade das peas de Adamov, no captulo anterior demos o exemplo esclarecedor do
personagem mutilado psiquicamente e fisicamente11.
De fato, mais que o exemplo do Mutilado (personagem de La Grande et la petite
manoeuvres de Adamov), a ideia geral da literalidade que Barthes e Dort subscrevem. Os transbordamentos corporais voluntariamente teratolgicos de Ionesco,
Beckett, Adamov deixam bastante em dvida, ao menos nos primeiros tempos, os
dois editores de Thtre populaire. Em compensao, o princpio da literalidade, cuja
nica finalidade afirmar a presena e a materialidade do teatro, os seduz. A literalidade torna-se a via privilegiada para o surgimento da teatralidade. O que fascina
Barthes no verdadeiro protagonista de Le Ping Pong quero dizer, o bilhar eltrico
o que o autor de Mitologias chama de objeto literal, um objeto que no tem por funo
dramatrgica e cnica simbolizar, mas simplesmente estar presente e, por meio dessa
presena que teima, produzir ao e situaes (mesmo que sejam ao e situaes
de linguagem). Isso se explica porque a gerao que defende essa dramaturgia do
Estar-a sustenta, igualmente, o Nouveau Roman. Dort ser um dos primeiros a desenvolver uma temtica em seus artigos Tempo das coisas e Romances brancos dos
Cahiers du Sud ou de Lettres nouvelles, que anuncia o Nouveau Roman; e sabe-se
da relao forte e tempestuosa que Barthes mantm, durante anos, com Robbe-Grillet.
Teatro ou romance, trata-se de exorcizar definitivamente o demnio da analogia.
Terminar de uma vez por todas com uma arte fundada no primado da interioridade,
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exigncia de literalidade que os textos de Adamov, Barthes e Dort expressam claramente vem selar o pacto de um teatro refundado na teatralidade... A srie de artigos
de Barthes consagrados Me Coragem e arte do Berliner Ensemble, bem como
a Leitura de Brecht de Dort, estabelecem que no teatro da literalidade e da teatralidade o sentido nunca global; sempre local e fragmentrio. O sentido sempre
apreendido na materialidade da cena, ela prpria espaada, como os caracteres de
impresso na pgina de um livro12, no vazio inaugural do teatro.
Para Barthes, o exemplo brechtiano oferece a oportunidade de revisar a questo
do sentido at mesmo para alm do teatro: da iseno ou da decepo com o
sentido, ligada Kafka e ao surgimento do Nouveau Roman, ele passa suspenso
do sentido, sob influncia direta do teatro pico. Ou seja, passa a levar em conta
o destinatrio da obra pica, seu papel de leitor ou espectador ativo, ocupado em
destrinchar o enigma do sentido depois que a leitura ou a representao terminaram.
De fato, Barthes deve literalidade brechtiana essa teatralidade polifnica, fundada
na espessura de signos, na superposio de sentidos sua concepo mais afinada
da razo semiolgica. A pura presena teatral aquilo que d a ver um objeto, um
corpo, um mundo em sua hipervisibilidade fragmentria, em sua opacidade mesma,
que me permite v-la e decifr-la sem esperana de chegar ao final de sua decifrao.
Assim, o contedo do espetculo no esvazia sua forma; a forma, ao contrrio,
constitui o elemento resistente que absorve minha ateno e canaliza minha reflexo. A
literalidade realiza o estado mximo de concentrao do objeto teatral e faz com que eu
me concentre nesse objeto. Por meio da intensificao e densidade extremas da matria
teatral que afeta tanto os atores e a linguagem quanto o cenrio e os objetos , o
espectador fica sem escapatria e se v confrontado com o Estar-a mtuo dos homens
e do mundo. Portanto, a literalidade tambm essa (falsa) opacidade, essa cegueira que
permite ver no refletor do teatro: Vemos Me Coragem cega, escreve Barthes, vemos
que ela no v; frmula que ecoa um Fragmento de 1964 sobre o dilogo platnico:
Ver o no ver, ouvir o que no se ouve (...). Ouvimos o que Mnon no ouve, mas s
ouvimos por causa da surdez de Mnon13.
No entanto, a reivindicao de literalidade que Dort e Barthes priorizam, nos
anos cinquenta e sessenta, hoje pode parecer insuficiente. Para certos detratores,
12 Arthur Adamov, Avertissement La Parodie et LInvasion, em Ici ET Maitenant, Gallimard, Coll. Pratique
du Thtre, 1964.
13 Walter Benjamin, Essais sur Bertolt Brecht, Petite collection Maspero, n. 39, 1969. [Walter Benjamin,
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sob a capa de literalidade e teatralidade Brecht s prope um teatro predicante e militante disfarado. E, mesmo que se chegue a provar que a nica pedagogia proposta
pelo teatro pico de ordem heurstica e socrtica, pode-se confrontar, ainda, com a
objeo de que Brecht no coloca em xeque, suficientemente, o conceito de representao no que implica em se furtar a esse presente absoluto, a esse mais-que-presente
de pura situao em presena do teatro. Se nos anos oitenta e noventa apareceram
novas exigncias de literalidade e teatralidade, elas se ligaram a um evento cnico que
deveria ser pura presentao, pura presentificao do teatro, a ponto de apagar toda
ideia de reproduo, de repetio do real.
Se o Novo romance e o Novo teatro esto razoavelmente distantes de ns
(restam as obras em sua singularidade, em particular a de Beckett), Brecht, por seu
lado, tornou-se suspeito aos olhos de muitos; portanto, a tentao de reavaliar negativamente o princpio de literalidade dos anos cinquenta grande, seja ao propor uma
verso mais potente da literalidade, seja ao desqualific-la... Hoje, certos homens de
teatro pretendem dar mais espao e destaque ao Estar-a do teatro. Tambm procuram
dilatar o instante teatral, ao distanciar o jogo de sua significao, ao liberar a teatralidade, definitivamente, de toda funo de comentrio em relao ao (a teatralidade
brechtiana continua subordinada ao comentrio do gestus14).
Mas, no centro dos questionamentos atuais, pode-se pensar tambm em questionar o abuso da literalidade e essa espcie de medo do sentido que ela engendra.
A profundidade no mais o que era. Pois enquanto o sculo XIX assistiu a um longo
processo de destruio das aparncias em proveito do sentido, o sculo XX desenvolveu um processo gigantesco de destruio do sentido... em proveito de que? No
desfrutamos mais das aparncias nem do sentido15. Aqueles que fazem teatro hoje e
refletem sobre ele no deveriam ficar indiferentes constatao irnica de Baudrillard.
Da cena ao texto
Definir a teatralidade como se faz, frequentemente, a partir do distanciamento do
teatro em relao ao texto no falso, mas pode levar ao uso unvoco e abusivo da noo.
14 Roland Barthes, Mre courage aveugle, Thtre populaire, n. 8, julho-agosto 1954, republicado em Oeuvres
completes, tomo 1, Seuil, 1993 [Roland Barthes, Me coragem cega, in; Fragment, Oeuvres compltes, 1, op. cit.
15 Sobre o comentrio de gestus, ver os crits sur le thtre, t. 2, de Brecht, editado pela lArche, em particular
o Petit Organon [Bertolt Brecht, Pequeno Organon para o Teatro, in. Sobre a necessria subordinao da
teatralidade ao comentrio do Gestus: Roland Barthes, Les Maladies du costume de thtre, Thtre populaire
n. 12, maro-abril 1955, republicado em Oeuvres completes, 1, op. cit. [Roland Barthes.
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Em todo caso, Barthes preveniu-nos contra tal reduo: ao mesmo tempo em que define a
teatralidade como o teatro menos o texto, introduz o paradoxo que faz da teatralidade um
dado de criao, no de realizao (Em squilo, em Shakespeare, em Brecht, o texto
escrito previamente tomado pela exterioridade dos corpos, dos objetos, das situaes,
Barthes precisa). A partir da, pode-se concluir que a posio barthesiana ambgua?
Sim, se considerarmos que no esclarece, de fato, as relaes que o texto mantm com
os outros componentes da representao teatral. No, na medida em que preserva a
possibilidade de uma relao dialtica, ou de uma tenso, entre esses componentes.
Para Barthes, para Dort, a teatralidade aquilo que permite pensar o teatro no sem
o texto mas, de modo recorrente, a partir de sua realizao ou seu devir cnico. Vontade de
voltar ao hic et nunc da representao e de reinstalar o teatro em sua dimenso propriamente cnica, depois de muitos sculos de subservincia literatura (Sua Majestade, diz
amavelmente Baty, enquanto Artaud denuncia a atitude de gramticos e invertidos, em
resumo, de ocidentais). Mas, sobretudo, vontade de libertar o teatro de sua identidade literria, abstrata e atemporal, para recuperar sua abertura para o mundo, para o real. Nesse
sentido, a teatralidade reinstitui a arte do teatro enquanto ato.
Os animadores de revista Thtre populaire certamente no foram os nicos nem
os primeiros a expressar essas preocupaes. Henri Gouhier, por exemplo, sempre
defendeu a ideia de que o teatro deveria ser pensado a partir do ncleo da representao. A representao, escreve, est inscrita na essncia da obra teatral; s existe
realmente no momento e no lugar em que se realiza a metamorfose. Portanto, a representao no um suplemento de que se poderia, a rigor, prescindir; um fim nos
dois sentidos da palavra: a obra feita para ser representada; essa sua finalidade; ao
mesmo tempo, a representao define um acabamento, o momento em que, enfim, a
obra plenamente ela mesma16... E cabe ao filsofo usar a expresso texto-partitura.
No entanto, no que diz respeito representao, a posio de Gouhier (ou a de
seu contemporneo Touchard, bastante prxima) continua a fazer parte desse textocentrismo denunciado por Dort. Para o muito galilaico autor de Leitura de Brecht, o
texto pode ser colocado no centro da representao teatral como nenhum outro componente cnico. Em ensaio claro e sbio, O texto e a cena: uma nova aliana17, Dort
mostra como nasceu e se desenvolveu a concepo moderna de uma obra dramtica
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ao propor uma nova aliana, Dort nos previne, sobretudo, contra os dois perigos que
ameaam as relaes entre a cena e o texto:
- Por um lado, essa atitude francamente reacionria, mas que ganha cada vez
mais espao, que consiste em querer restaurar o teatro literrio, o teatro de texto.
Pois no foi Jacques Julliard (e poderia ser Alain Finkielkraut) que afirmou, h alguns
anos, em uma de suas crnicas do Nouvel Observateur, que enquanto o teatro no
retornar ao lugar onde se faz ouvir a palavra sagrada do poeta; enquanto os encenadores atuais, esses tiranos mal educados, no deixarem de ser arrogantes com o
autor, o contrato dramtico, essa aventura a trs que une autor, intrpretes e espectadores em torno de um texto, permanecer despedaado, desonrado, destrudo? ...
Contentemo-nos de devolver Julliard e seus preconceitos (que, diga-se de passagem,
so anteriores ao surgimento da encenao moderna) ao que Dort nos diz sobre os
maiores textos de teatro: leitura (eles) parecem problemticos, complexos a ponto
de parecerem incoerentes, excessivos no limite da desordem, porque tomam partido,
deliberadamente, de seu prprio inacabamento e fazem apelo cena.
- Por outro lado, uma proposta que no menos vaga, incerta e arriscada s
porque toma partido da emancipao da representao (acredito que a expresso
remonta a Evreinoff). assim que Alain Badiou, em suas Dez teses sobre o teatro (Dix
thses sur le thtre) parece afastar a questo do texto ao reduzi-lo a uma essncia
eterna que somente a representao pode levar instantaneidade, imediaticidade,
em uma palavra, vida. Sem dvida Dort concordaria com a afirmao de Badiou de
que a ideia-teatro no texto e no poema est incompleta, e que a encenao no
interpretao, mas complementao. Mas imagino que acharia menos convincente
apresentar o teatro como um agenciamento de componentes materiais e ideais
extremamente disparatados, cuja nica existncia a representao. Em suas teses,
Badiou simplesmente esquece que na representao o texto tem, forosamente, estatuto e funo diferentes dos outros componentes... Sobretudo por falta: o texto o
nico elemento que existe de modo autnomo enquanto texto escrito no evento
da representao; transforma-se, metamorfoseia-se, pode at mesmo ser abolido
durante sua manifestao... Em seguida, por excesso: sua forma de invaso diferente de qualquer outro elemento presente em cena atravs dos corpos, das vozes,
do espao, e at mesmo do esprito dos espectadores, que podem conhec-lo antes
da representao.
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Persistir na tarefa (beckettiana) de acabar (mais uma vez) com o teatro, e sempre
sonhar com o retorno ao incio: talvez seja esse o ltimo paradoxo da teatralidade. Pois
o teatro s se realiza verdadeiramente fora de si, quando consegue libertar-se de si...
Ao produzir no teatro, a cada vez, o vazio do teatro.
Referncias Bibliogrficas
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DORT, Bernard. A Representao Emancipada. Revista Sala Preta, Vol. 13.1. So Paulo:
USP/PPGAC, 2013.
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