Antonio Bivar - Três Peças
Antonio Bivar - Três Peças
Antonio Bivar - Três Peças
Entrar O Ar Puro e o Sol da Manh O Co Siams ou Alzira Power Imprensa Oficial So Paulo, 2010 Antonio Bivar tem a qualidade de ser o detonador de um tipo de teatro contestador dos anos 60. Criou entidades unissex, personagens distantes do realismo e que possibilitam um jogo fascinante. Fernanda Montenegro Em entrevista a Arnaldo Jabor, Suplemento Folhetim da Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 1991. Minhas trs primeiras peas foram escritas entre 1967 e 1970. primeira delas dei o ttulo de O Comeo Sempre Difcil, Cordlia Brasil, Vamos Tentar Outra Vez, logo abreviado para Cordlia Brasil. Escrevi-a em 1967, no meu ltimo ano de faculdade. Cursava Arte Dramtica no Conservatrio Nacional de Teatro da Universidade do Brasil hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Estudante de teatro e j tendo despontado como ator amador em Esperando Godot (a estreia) e Sonho de uma Noite de Vero em 1963 e 1964, respectivamente, e na faculdade orientado pelos professores, estudado e atuado em textos dos medievais a Machado de Assis, foram anos de treino e aprendizado na vasta gama da carpintaria teatral de todos os tempos os gregos, Nelson Rodrigues, Tennessee Williams, os angry young men ingleses, as experincias off Broadway americanas e o esprito da coisa no Brasil e o teatro do absurdo em geral. Os anos finais da dcada de 1960. A guerra no Vietn, maio de 1968 em Paris, a Contracultura (herdeira direta da Beat Generation) explodindo dos Estados Unidos para o mundo, o homem na Lua. A arte faa voc mesmo do Underground; o Flower Power, o glamour na propaganda dos novos experimentos, o acesso s ervas expansoras e drogas alucingenas, psteres de Che Guevara em quartos de comunidades psicodlicas e nas paredes de repblicas estudantis em simultaneidade com o dropping out (as fugas em massa das universidades), a revolta juvenil contra a caretice repressora do establishment, a queima dos sutis em Washington a cu aberto, as revolues sexuais e raciais um novo esprito anrquico-dionisaco alastrava-se pelo planeta. Os guardies do Sistema, as faces conservadoras, viam nessa movimentao mera degenerao da eterna irresponsabilidade juvenil. Outros, militantes antenados ou simplesmente hedonistas inebriados entregavam-se s novas atitudes como algo a ser vivido intensamente ou, no mnimo, algo a ser observado com interesse e, dependendo da circunstncia, experimentado. Este esprito, claro, chegou tambm ao Brasil, onde uma outra realidade tomava conta. Desde 1964 o Pas vivia sob o regime de ditadura militar provocando revoltas estudantis e a luta armada contra a represso. O teatro do lado dos oprimidos era uma das trincheiras mais ativas, manifestando-se com desafio e garra tendo, como pior inimigo, a censura federal. Estamos no eixo Rio So Paulo. Como autor jovem, entusiasta e sem nenhum medo, fui instintivamente ao cerne do esprito da poca: a nova dramaturgia, por medida econmica, devia ter poucos personagens. No meu caso contaria ainda com certa fantasia no conflito realista porque se teatro tinha que ter conflito realista eu era tambm inspirado pela fantasia. E na mistura dos elementos, o absurdo. Porque a realidade era, no mnimo, absurda. Creio ter aprendido a escrever teatro com Samuel Beckett, tendo que decorar Esperando Godot em seis meses de ensaio em 1963, dirigido por Maurice Perpignan. Na pea eu interpretava o Estragon. Se Beckett escrevia daquele jeito, escrever me pareceu fcil e eu tambm podia. E escrevi Cordlia Brasil que em 1967 logo na leitura dirigida por Fauzi Arap em um seminrio carioca de dramaturgia impressionou o pblico que lotava o Teatro Santa Rosa em Ipanema. Um ano depois, dirigida por Emilio di
Biasi Cordlia Brasil estreava no Teatro Mesbla, Rio e encerrava vitoriosa (e tempestuosa) carreira em So Paulo no histrico Teatro de Arena. Por ela recebi o Prmio Governador do Estado como autor do ano, em So Paulo. Na pequena arena, circundada por uma espremida e abarrotada arquibancada, a atuao de Norma Bengell, com Emlio di Biasi e Paulo Bianco, era arrebatadora. E meu texto e minha trilha sonora tinham por clmax o suicdio de Cordlia ao som do grito primal de Jim Morrison em When The Musics Over. Terminada a pea, o pblico deixava o teatro em estado de choque e estado de graa. Foi um dos grandes acontecimentos teatrais da temporada.. No mesmo ano e ainda em So Paulo recebi os outros dois prmios teatrais mais importantes do perodo, o Molire e o da Associao Paulista de Crticos Teatrais (APCT), pela segunda pea encenada no mesmo ano. Inspirado a escrever a segunda pea enquanto a primeira era ensaiada escrevi Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh no meu quarto em uma casa de fundos em Ipanema, casa que dividia com outros atores (nossa fiadora era Tnia Carrero!). Fauzi Arap, ao ler o primeiro ato, achou-o uma obra-prima e me arrebatou sua residncia na Avenida Paulista para eu continuar escrevendo a pea enquanto ele ia ensaiando o primeiro ato no Teatro Maria Della Costa com a prpria e mais Thelma Reston, Jonas Mello e Yolanda Cardoso nos outros papis. A terceira das peas includas neste volume a escrevi em 1969 depois de ter perdido a cpia da primeira verso de A Passagem da Rainha. Ento, em uma noite, inspiradssimo escrevi O Co Siams de Alzira Porra-Louca que iria acabar conhecida como Alzira Power. A primeira montagem, ainda com o ttulo original, aconteceu num pequeno teatro no complexo Ruth Escobar tendo por diretor Emilio di Biasi. Yolanda Cardoso e um muito jovem Antonio Fagundes eram os intrpretes. Teve carreira curta com um alternativo sucesso de estima. Todos queriam interpretar o personagem Alzira. De Raul Cortez em nova montagem a Dercy Gonalves no cinema dirigida por Rogrio Sganzerla. Nenhuma dessas ideias foi realizada. Aconteceria no ano seguinte depois que Antonio Abujamra me encontrou em Londres e levou-me a Nova York para conversarmos e eu escrever a toque de caixa alguns trechos para a nova montagem da pea, que ele ia dirigir no Rio. E foi no lendrio Hotel Chelsea em Nova York, inspirado por todos os powers e movimentos libertrios vigentes que escrevi a Alzira Power que consta deste volume. A montagem dessa pea dirigida por Abujamra, com Yolanda Cardoso e Marcelo Picchi foi o estouro da temporada de vero carioca, no Teatro Glucio Gil em Copacabana. E recebi o Governador do Estado como o melhor autor de 1971 no Rio. Fazia parte da tropa de choque da Nova Dramaturgia. Eis que surgiram, vindos de origens vrias, cinco autores, jovens na casa dos 20 anos, com estilos diversos, mas independentes da tradio dramatrgica que se vinha fazendo at ento na cena teatral brasileira. Assim que essa fora nova revelou contornos mais explcitos, recebeu da crtica a alcunha de Nova Dramaturgia. Os autores so, por ordem de estreia de peas, Antonio Bivar, Jos Vicente, Leilah Assumpo, Consuelo de Castro e Isabel Cmara. Um ano antes, num posto solitrio, Plnio Marcos fizera sua impressionante apario o que o posicionar, para sempre, como o originador da nova onda. Mas a verdade atestada pela diferena de apenas um ano, ano e meio no mximo, entre a apario de Plnio e o surgimento dos outros que esses autores j vinham municiados, cada um com suas prprias ideias e bagagens. E at se conhecerem nem faziam parte do mesmo milieu. Sobre o grupo escreveu um pesquisador: Estes cinco autores eram jovens tocados pelo esprito da poca e nesse esprito ligados. A exploso desse grupo rompe com as estruturas que dominavam nosso teatro at 1968. Um ano antes, Plnio Marcos causara furor com Navalha na Carne; no ano seguinte, Antonio Bivar com Cordlia Brasil e Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh, seguido, em 1969, de Jos Vicente com O Assalto, Leilah Assuno com Fala Baixo Seno eu Grito, Consuelo de Castro com Flor da Pele,e As Moas, de Isabel Cmara. Um autor importante e jovem estreado alguns anos antes, em entrevista publicada na Folha de S. Paulo, a respeito da Nova Dramaturgia, fez um interessante comentrio, hoje digno de relembrana. Lauro Csar Muniz nessa entrevista em
dezembro de 1969 disse: Na impossibilidade de explodir para fora, os novos autores foram buscar matria-prima para suas peas dentro de si mesmos, circunstanciados s suas mais ntimas experincias pessoais. Peas de carter confessional, onde as personagens j no so enfocadas em funo de condicionamentos sociais, mas em face de seus problemas individuais, existenciais. O que primeiro chama a ateno nas peas desses autores a economia. Economia de personagens e cenrio. Porm os dilogos e os conflitos... Ao contrrio das peas que dominaram a fase anterior, as peas da Nova Dramaturgia desenvolvem-se em ambientes fechados. Personagens evoluem do entendimento ao dio visceral, enjauladas fisicamente num ambiente opressor, sem sada. Ou sadas drsticas. No caso de minhas trs primeiras peas, acredito, quatro dcadas depois de escrev-las e v-las encenadas, o que impactou foi nelas a falta total de pudor no humor cruel, demolidor e profundamente crtico com que os personagens se entregavam ao pblico. A censura, fazendo tudo para impedir a exploso desse humor, acusava o autor de um amoralismo sem precedentes na histria da dramaturgia brasileira. De modo que neste volume esto as minhas trs primeiras peas. Cordlia Brasil, Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh e Alzira Power (ou O Co Siams). Constantemente encenadas aqui e fora do Pas j portam a aura de clssicas do moderno repertrio teatral brasileiro. Antonio Bivar So Paulo, julho de 2010 Cordlia Brasil Pea em dois atos Cordlia Brasil estreou em 17 de abril de 1968, no Teatro Mesbla, Rio de Janeiro, produo de Oduvaldo Vianna Filho, Gilda Grillo e Lus Jasmim. Elenco: Norma Bengell (Cordlia Brasil), Lus Jasmim (Lenidas Barbosa) e Paulo Bianco (Rico). Direo de Emlio di Biasi. Em 17 de setembro de 1968, uma nova montagem estreia no Teatro de Arena, em So Paulo, com Emlio di Biasi substituindo o ator Lus Jasmim. Personagens Lenidas Barbosa 28 anos, esprito anarquista, alienado, inventivo, brincalho, sonhador, romntico. Cordlia Brasil 28 anos. Realista, mas ingnua. E absurda. Mas coerente. Seu carma o da batalhadora sem chances nem oportunidades, que repentinamente se torna mulher de pavio curto que explode e acaba com tudo. Rico 16 anos. Descobrindo a vida. Cenrio Uma quitinete bem apanhada, mas decadente, em algum fundo da Zona Sul, Rio de Janeiro. esquerda, bifurcadas, as portas da cozinha e do banheiro. direita, a porta de sada. O apartamento, apesar da misria, mostra certo estilo uma certa excentricidade bomia coerente com o estilo da poca em que foi escrita (1967) e encenada (1968). Poucos mveis uma cama de casal, uma estante-armrio onde se guardam desde livros a roupas; uma mesa, duas cadeiras, um ba, um toca-discos porttil e uma cadeira de balano. poca Na estreia da pea no Rio de Janeiro, em 1968, o autor recebeu do critico Yan Michalski (Jornal do Brasil), o julgamento: Antonio Bivar o pensamento mais moderno do teatro brasileiro. Vinte anos depois, recebeu de outro crtico, Sbato Magaldi, o seguinte veredicto: Cordlia Brasil j um clssico do moderno repertrio teatral brasileiro. Por Cordlia Brasil e por outra pea sua, Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh, Antonio Bivar recebeu todos os prmios de Melhor Autor de 1968, em So Paulo (Molire, Governador do Estado e APCA). Por sua interpretao de Cordlia, Norma Bengell recebeu o Prmio Governador do Estado de Melhor Atriz de 1968 no teatro paulista. Primeiro Ato CENA 1 Lenidas na cama, brincando com um ursinho de pelcia. Entra Cordlia,furiosa,
de leno na cabea e uma bolsa a tiracolo. Por volta das sete horas da noite. CORDLIA (Furiosa) Ora, sim senhor! S faltava essa! LENIDAS (Tremendo) Que aconteceu? CORDLIA A francesa reclamou. Outra vez. LENIDAS Reclamou do qu? CORDLIA Que toda vez que voc passa pela porta dela, toca a campainha. LENIDAS (Inocente) Mentira. CORDLIA E se esconde. LENIDAS Mas mentira! CORDLIA Que mentira, que nada! Voc toca mesmo. Passa l e toca. Voc tem a mania de tocar todas as campainhas que encontra. Viu uma campainha, tocou. At parece criana. Voc se esquece que j tem quase trinta anos? LENIDAS (Manaco, tapando os ouvidos) Para de falar da minha idade! Voc sabe que detesto isso. CORDLIA Sei sim. Sei que voc morre quando algum lembra a sua idade. Fecha os olhos e se julga um menino de doze anos. Voc no se manca? Olha no espelho! LENIDAS Para com isso! CORDLIA Olha no espelho! Fica uns quinze minutos em frente do espelho. LENIDAS Fico at mais. CORDLIA (Imitando) Fico at mais, fico at mais... (Pequena pausa). Voc no mais uma criancinha no, meu caro. Voc j est mais pra l do que pra c. LENIDAS O espelho no me diz isso. CORDLIA No diz porque voc no pergunta. Pergunta pro espelho: (Madrasta) Espelho, espelho meu, existe algum mais pra l de Bagd do que eu? LENIDAS Voc morre de inveja. Eu posso passar por vinte anos. Voc que t um caco. Sua cara t cheia de barrancos, papadas... Seu corpo cheio de pneus... Suas pernas, varizes, varizes, varizes... CORDLIA (Assumida) E voc pensa que eu ligo pra isso? Eu assumo a minha idade. LENIDAS Isso fcil. Quero ver voc assumir a idade que aparenta. CORDLIA Tenho 28 anos e aguento a mo. No t nem a se pareo ter mais ou menos. LENIDAS Devia querer. Toda mulher tem que se preocupar com a aparncia. CORDLIA (Cortando) E da? Todo homem no deve se preocupar e no entanto... voc... LENIDAS Mas eu sou um caso parte. CORDLIA Isso voc nem precisa dizer. LENIDAS Da minha aparncia depende o meu futuro. CORDLIA Que futuro? LENIDAS Meu futuro de... cartunista. CORDLIA (Prtica) Ah! Foi bom voc falar de futuro, porque eu j ia me esquecendo. A gente precisa ter uma conversinha sria. (Pausa). J tempo de a gente fazer um acerto de contas (Pausa. Lenidas fica preocupado). Por causa da sua falta de responsabilidade, quem acaba sempre entrando bem sou eu. (Silncio) Voc no fala nada, no ? Isso quer dizer que voc sabe do que que estou falando. LENIDAS (Desconversando) No nada disso. Eu no... CORDLIA Manias. Manias. Manias. s isso o que voc tem: manias. LENIDAS (Olhando pro cu) Vai comear o sermo? CORDLIA Parece maluco. Os vizinhos vivem gozando a gente. LENIDAS E voc liga pra vizinho? CORDLIA Casal esquisito. Casal pirado. Gente doida... o que falam da gente por a. LENIDAS Mas Cordlia, voc nunca ligou pra isso! Voc at gosta de parecer meio doida. Antes da gente se casar voc adorava quando todo mundo se virava pra olhar pra gente. CORDLIA (Nostlgica) Isso era antes... LENIDAS Voc ficava feliz quando riam da gente! CORDLIA Antes da gente se casar eu era uma. Agora, casada com voc, acabei virando outra. LENIDAS No vejo onde. CORDLIA Antes da gente se casar eu era jovem, inexperiente, bobona... claro que gostava de chamar ateno.
LENIDAS (Irnico) Hoje voc no gosta de chamar a ateno... CORDLIA (Nostlgica) Quem, quando moa, no gosta de chamar a ateno? Toda aquela bobagem de posar de existencialista... LENIDAS No estou te reconhecendo. Por que que, ento, voc usa essas roupas estranhas? CORDLIA (Realista) Porque no tenho outras. LENIDAS (Apontando) E naquele ba? T cheio de vestido antigo, da sua av. Que voc usava quando a gente se conheceu. Por que voc no reforma? CORDLIA E eu l tenho tempo pra isso? LENIDAS Porque no quer. Tempo a gente sempre arranja. CORDLIA Por que voc no reforma pra mim? Voc no faz nada o dia inteiro... LENIDAS Eu sei costurar, por acaso? CORDLIA Pois devia aprender. Hoje em dia preciso estar pronto pro que der e vier. LENIDAS Eu?! Costurar?!!! CORDLIA Sei l, se voc fosse homem de verdade, voc dava era um jeito na sua vida. Todo mundo fala que quem sustenta esta casa sou eu. Que o meu maridinho fica o dia inteiro deitado, cuidando da beaut... (Lenidas faz cara de desentendido, Cordlia insiste) isso mesmo que voc ouviu, cuidando da beleza, da bot, conservando a juventude, enquanto eu... LENIDAS (Irritado) Saco! Quando que voc vai parar com isso? J no aguento esse papo de idade, beleza, juventude... CORDLIA No dia em que o meu maridinho acordar e tomar uma atitude de macho. LENIDAS (Desviando) Ah, voc casou comigo porque quis. Eu nem tava a fim. Foi voc que forou o nosso casamento. CORDLIA Ah, foi? LENIDAS E depois, eu nunca trabalhei. Voc j me conheceu como um invlido, um aposentado nato. (Pequena pausa) No consigo trabalhar. H muito tempo que j desisti de me esforar porque o resultado sempre o mesmo: eu e o trabalho no nascemos um para o outro. CORDLIA Ah, no?! LENIDAS No. Voc sempre soube disso. Foi a primeira coisa do meu currculo, que eu te falei, quando voc cismou com a minha cara e resolveu pegar no meu p. CORDLIA E sendo assim, pra sustentar o meu maridinho, eu tenho que fazer, entre outras coisas, a vida. Ser nada mais nada menos que uma biscate. LENIDAS No fale assim. CORDLIA Uma putinha. LENIDAS No suporto quando voc fala assim... to... to vulgarmente! Parece uma mulher toa. CORDLIA Ah, ?! Como que voc quer que eu fale? Feito uma cabao de colgio interno? (Pequena pausa) Seu ordinrio! Voc por acaso duvida que eu fao a vida? LENIDAS No duvido. CORDLIA (Decepcionada, furiosa) No duvida?! LENIDAS Sei l se duvido. No interessa se duvido ou no duvido. voc que t cada dia mais grossa, mais vulgar... Voc me agride! CORDLIA To sensvel! Que lindo! At parece um rapazinho afeminado. LENIDAS (Professoral, irritante) No se diz a-feminado, Cordlia, mas efeminado. H uma diferena entre afeminado e efeminado. CORDLIA (Direta) Veado. LENIDAS (Agredido) Que coisa desagradvel! CORDLIA (Seca) Quando eu voltar, vamos ter uma conversa sria. No durma, no. Fique acordado, bem acordadinho, me esperando. Voc pensa que eu vou aguentar muito tempo, ainda, trabalhar oito horas dirias num escritrio e fazer a vida noite, voc pensa? LENIDAS Cordlia, pacincia... Um dia a coisa muda. CORDLIA E esse dia vai ser bem antes do que voc gostaria. LENIDAS (Preocupado) Antes? Por qu? CORDLIA Depois a gente vai conversar sobre isso. (Ressentida) Me deixando fazer esse papel... LENIDAS Que remdio? No tem outro, no momento... CORDLIA Sabe de uma coisa, Lenidas, qualquer dia eu me mato.
LENIDAS No fique assim, s agora! Amanh melhora. CORDLIA Se voc no tomar uma atitude, eu juro que me mato. LENIDAS No demora a coisa muda. CORDLIA Quanto a isso no tenha dvida. Quando eu voltar, vamos conversar sobre isso. (Cordlia d a impresso de estar enrolando para no sair. Lenidas parece preocupado. O instante parece muito difcil. Cordlia recomea.) CORDLIA Que que voc vai fazer enquanto eu estiver fora? LENIDAS (Distrado) No sei... ainda no pensei... Talvez desenhe... Mas acho que eu vou fazer nada. CORDLIA (Boa) Voc jura que no toca a campainha da francesa? (Lenidas faz gesto que jura) Nem da outra vizinha? LENIDAS Juro, que ideia! CORDLIA V l, hein?! (Com ternura e dvida Cordlia vai at Lenidas e d-lhe um beijo. Ela vai sair.) LENIDAS (Chamandoa) Que que voc quer que eu prepare para o jantar? CORDLIA (Gostando) Eu que vou saber? LENIDAS S tem aquela sopa de cogumelo... CORDLIA Maggi? LENIDAS Maggi. CORDLIA (Brusca) Ento por que pergunta? Faz sopa. Pe dois litros dgua que rende mais. LENIDAS Mas no invlucro diz um litro. CORDLIA E da? Um litro, dois litros, que diferena faz? Bota dois litros que rende mais. A vida t difcil, a gente pobre. Tem que economizar. Tem que fazer render. LENIDAS Depois fica dizendo que cozinho mal. CORDLIA (Compreensiva) Esquece o que eu digo. Pra falar a verdade, no gosto de deixar voc sozinho. Seria to bom se eu pudesse ficar te fazendo companhia... LENIDAS U, ento por que no fica? CORDLIA (Ctica, mas para cima) Que pergunta!? E amanh? A gente vai comer o qu? LENIDAS Pra falar a verdade, eu tambm no me sinto bem sozinho. Comeo a pensar, a pensar, a pensar... Me d um cagao! CORDLIA (Suspirando e para sair) S sei que no fcil. (Abrindo a porta) E fecha a porta com chave, t? LENIDAS T. CORDLIA E nada de tocar a campainha dos outros, ouviu bem? (Atira um beijo e sai) (Lenidas espera um tempo e, com cara de menino levado, leve, solto, alegre, abre a porta, sai e fica um tempo fora. Ouvem-se sons de campainhas fora. Lenidas volta correndo e fecha a porta com chave. Suspira aliviado. Riso nervoso. Vai at o armrio, abre uma gaveta, pega um cigarro e acende. D uma longa tragada. Luz vai baixando.) CENA 2 Lenidas sozinho em casa diverte-se com os penduricalhos de Cordlia: brincos, colares, broches, pulseiras. Entra Cordlia acompanhada de um rapazola, muito jovem e bem mais alto que ela. Cordlia fica furiosa ao dar com Lenidas mexendo com as suas bijuterias. Lenidas pego de surpresa colocando um enorme brinco pingente na orelha. Rico, o rapazola, parece inibido. CORDLIA Ah, peguei! Seu ordinrio! Xeretando as minhas coisas. Filho da me! (Estabanada, vai at Lenidas, arranca o brinco da orelha dele e pega as outras bijuterias) por isso que outro dia dei por falta do camafeu da minha me. Onde foi que voc enfiou? LENIDAS Eu no peguei. CORDLIA Eu quero. LENIDAS J disse que no peguei, saco! CORDLIA Me diz onde foi que voc enfiou o camafeu da minha me? LENIDAS Ai minha santa Anastcia! CORDLIA (Desistindo) T bom, deixa pra l. Daqui pra frente voc no vai ter mais tempo de brincar com as minhas joias. Pode ir se preparando desde j. Amanh vou faltar ao escritrio. Vamos sair juntos. Vamos procurar emprego para voc. LENIDAS O qu?!
CORDLIA Exatamente o que voc ouviu. Procurar emprego para voc. De auxiliar de escritrio. LENIDAS Nem pensa nisso... CORDLIA A nica coisa de prtico que voc aprendeu na vida foi datilografia. Na esperana de se tornar um romancista. Agora voc vai trabalhar num escritrio. De datilgrafo. LENIDAS Ah, mas no vou mesmo. CORDLIA Ah, mas vai sim. LENIDAS Pelo amor de Deus, Cordlia! CORDLIA Deus, Deus, que coisa abstrata. LENIDAS Prefiro a morte. CORDLIA T bom. Mas se voc no morrer at amanh cedo, a gente vai atrs desse emprego. LENIDAS Mas Cordlia, com a MINHA sen sibilidade! um crime eu passar o dia socado num escritrio... CORDLIA Crime voc ficar o dia inteiro toa, enquanto eu, que sou a mais frgil, eu, que sou mulher, ficar me matando em dois empregos. LENIDAS Mas um s provisrio. Um dia a sorte muda. CORDLIA E vai mudar amanh. LENIDAS Ento eu vou embora. CORDLIA (Apontando) Vai. A porta est aber ta. (Rico pigarreia) LENIDAS Quem esse moo? CORDLIA Nossa! Eu tinha me esquecido com pletamente! LENIDAS Que falta de educao! Que que ele no vai pensar da gente? CORDLIA (Para Rico, exagerada, tentando consertar) Desculpa, meu bem, a gente tava resolvendo um assunto da maior urgncia. (Sorri, meio sem graa) Tadinho. No fica com vergonha do Lenidas, no! (Pequena pausa) Como mesmo o seu nome? RICO Rico. Quer dizer... Ricardo Stevenson Hulswitt. CORDLIA (Bem impressionada) Nossa! Seus pais so americanos? RICO Meu bisav. CORDLIA Era americano? RICO Ingls. CORDLIA Ingls? Que diferente! LENIDAS (Para Rico) Voc j leu Orlando, da Virginia Woolf? CORDLIA (Censurando) Lenidas! RICO (Para Lenidas) O qu? LENIDAS (Para Cordlia) Mas Cordlia, esse rapaz quase um menino! Pergunta a idade dele. CORDLIA Voc acha que vou ficar perguntando a idade de cada pessoa que encontro? LENIDAS De cada pessoa, no; mas de ALGUMAS eu acho que preciso. CORDLIA (Cortando) Conforme eu fui educada, perguntar a idade dos outros falta de educao. LENIDAS Se o Juizado de Menores e a Polcia te pegam... Voc pode ser presa como pedfila. CORDLIA E eu l sei o que isso? (Para Lenidas) Voc gosta, por acaso, quando perguntam a sua idade? LENIDAS Cordlia, s vezes voc me parece meio burra... CORDLIA (Para Rico) Sabe quantos anos ele tem? LENIDAS (Ameaando) Cordlia! CORDLIA Vou dizer, sim. Agora vou dizer a sua idade pra todo mundo. LENIDAS Experimenta. CORDLIA (Para Rico) Voc no acha ele meio... estranho? Imagina, ele esconde a idade! Mas eu vou dizer. LENIDAS Mas no vai mesmo. CORDLIA Vou sim. (Para Rico) Ele fica o dia inteiro em casa. Na cama. Deitado. Sabe pra qu? (Pequena pausa) Pra se conservar. Ficar sempre jovem. LENIDAS Voc vai se arrepender. CORDLIA Pra quando chegar a hora de explodir ter cara bonita. Pra sair bem nas fotografias. Ele acha que duma hora pra outra a sorte vai mudar. Vai sair do anonimato. Vai ficar famosssimo. Sucesso total. Cartunista. (Para Rico) Voc aguenta? (Para Lenidas) Muito creme de abacate na cara... pra ficar com as faces bem... (Gesticula com as mos, como que botando o rosto pra cima) Bem assim, n? (Pequena pausa) Muita entrevista na tev... (Para Rico, sarcstica) Seja sincero, me diga uma coisa: voc acha que aos 28 anos algum ainda pode ter
esperanas?... LENIDAS (Furioso) Cordlia, sua vaca, voc disse a minha idade! CORDLIA (Se fazendo de santa) Ai, desculpa, foi sem querer, juro! LENIDAS Disse, no disse? Agora voc vai ver. CORDLIA Juro. Tava s brincando. LENIDAS No, agora voc vai ver. CORDLIA (Implorando) Lenidas... LENIDAS Vou dizer, sim. E depois que eu dis ser, ele no vai querer nada com voc. CORDLIA (Para Lenidas, em tom baixo) Ele vai me dar cem cruzeiros. Voc vai estragar tudo. LENIDAS (Para Rico, direto) Ela j teve go norreia. RICO (Apavorado, apertando o pau) Gonorreia? CORDLIA (Tentando tirar de letra) Imagina! (Para Rico) cimes. Ele morre de cimes. No gosta de me ver com ningum. LENIDAS Era gonorreia sim. RICO (Preocupado) Que horas so? CORDLIA Juro que no era. Era cisma. que eu sou muito cismada e cismei. Mas voc pensa que no me precavi? Fui ao mdico do INPS e ele jurou que no era gonorreia. Mas eu continuei cismada, n? Por via das dvidas, tomei 500 miligramas de Benzetacil. E passou tudo, inclusive a cisma. Sem contar que isso foi no ano passado e de l pra c no senti mais nada. (Para Lenidas) Nem coceira, se voc quer saber. LENIDAS (Enigmtico, para Rico) Eu, fosse voc, no confiava nela. (Silncio tenso) Eu, que sou marido, no confio... RICO (Dividido, preocupado, apertando o pau, distrado) Que horas so? CORDLIA (Mudando de assunto, para Rico) Que tanto voc aperta o pinto?! (Pequena pausa) Vontade de fazer pipi? (Aponta) O banheiro ali. LENIDAS (Para Rico) Eu, fosse voc, ia embora. CORDLIA (Para Lenidas) Cala essa boca. LENIDAS (Para Rico) Voc v, eu, que sou marido dela, no tenho coragem... (Pequena pausa) Alis, eu NUNCA tive coragem. Sei nem por que ela casou comigo. (Tom assustador) Ela uma tarada. Uma ninfomanaca. RICO (Apreensivo, apertando mais ainda o pau) T ficando nervoso, acho que vou embora... CORDLIA (Calma) Daqui a pouco voc vai, no tenha pressa. (Para Lenidas) Ele sabe que eu fao a vida porque tenho que sustentar um marido deficiente. J expliquei tudo pra ele, na rua, antes de vir pra c. LENIDAS A gente v que ele ingnuo... CORDLIA (Mudando o tom, ligeira, exagerada na ternura) Lenidas, meu bem, voc no quer descer pra comprar o po e o leite pro caf da manh? LENIDAS A padaria t fechada. CORDLIA No botequim voc consegue. Todo mundo sabe que voc meu marido. LENIDAS Pra vocs sujarem a minha cama? Nada disso. Daqui no saio. Eu j estava quase dormindo quando vocs chegaram. CORDLIA (Para Rico) V como ele mentiroso? Quando a gente chegou ele no tava brincando de mulherzinha? No tava usando o meu brinco? LENIDAS Eu estava fazendo uma experincia. Estava pesquisando um novo personagem que t bolando. CORDLIA (Cortando) Aqui, . V se no meu olho tem catarata. Depois vamos ter uma conversinha a respeito do camafeu da minha me. LENIDAS (Na cama) Ah, sem essa. Se voc t a fim, apaga a luz e devora o rapaz a no cho. CORDLIA Indecente. LENIDAS (Ocupando toda a cama) S faltava essa. Na minha cama, nunca! RICO (Incomodado, sofrendo, apertando o pau) Onde fica o banheiro? LENIDAS (Para Cordlia) Ta uma ideia: por que vocs no trepam no banheiro? CORDLIA Voc sabe que no d, no banheiro. T cheio de roupa estendida, secando... LENIDAS Morar em quitinete um sufoco. (Tendo outra ideia) E na cozinha? CORDLIA Voc quer dizer... de p? Parece que no enxerga, Lenidas! Olha o tamanho do rapaz e olha o meu! LENIDAS Voc sobe no banquinho! CORDLIA Depravado. (Decidida, pega Rico pela mo e o leva para a cozinha) (Lenidas, sozinho em cena, pula da cama, corre at a sada para a cozinha,
tenta ouvir um pouco porta. Em seguida corre de volta cama e se enrola numa colcha. Luz vai baixando.) CENA 3 Em cena, Lenidas e Rico. Ouve-se Cordlia cantando no banheiro. RICO verdade aquele negcio de gonorreia? LENIDAS No, seu bobo, brincadeira. Era s pra irritar a Cordlia. (Pequena pausa) Foi bom? RICO (Satisfeito) Foi muito bom. LENIDAS Foi a primeira vez? RICO Com uma coroa, foi. LENIDAS Cordlia no coroa! RICO Pra mim, passou dos 20 coroa. LENIDAS Nossa! Que preconceito! RICO Que preconceito?! No falei que foi legal? (Pausa) A sua mulher sabe das coisas... LENIDAS Exemplo? RICO No vou ficar entregando, n? LENIDAS Por que no? Aqui entre ns... Entre homens! RICO No, no vou no. LENIDAS Pacincia. (Pequena pausa) Voc come muitas meninas? RICO Gostaria de comer mais. (Desabafando) P, cara, s penso em sexo! Fico de pau duro o dia inteiro. LENIDAS (Intelectualmente interessado) mesmo? Ento voc um pripico! RICO (Assustado) Que que isso? LENIDAS (Professoral) Uns dizem Prapo, outros, Priapo. Na Itlia, parece que Prapo. Na Grcia e no Brasil, Priapo. Eu falo Priapo, mas j me corrigiram vrias vezes. Enfim... RICO (Ansioso) Sei, mas o que isso? LENIDAS Priapo um deus da mitologia grega. O deus dos jardins. Ele filho de Dionsio, que o deus do teso, e de Vnus, a deusa do amor. RICO Mas por que voc disse que eu sou pripico? LENIDAS Voc no disse que fica de pau duro o dia inteiro? RICO Falei, mas e da? LENIDAS Ento, esse deus, o Priapo, ele tambm. Ele j nasceu de pau duro. E tem gente que meio assim. Voc, por exemplo. Da que a escola freudiana inventou que pripico quem fica de pau duro 24 horas por dia. RICO Isso mau? LENIDAS S quem pode responder voc. (Pequena pausa) Mas na poca do deus Priapo, a vida devia ser bem mais fcil. Naquela poca tinha as ninfas dos bosques, as niades das fontes... Elas viviam peladas, tudo era mais saudvel, bem mais livre... RICO , porque hoje no nada fcil. LENIDAS Sofrendo de priapismo voc deve se masturbar muito... RICO P, cara, voc tambm quer saber de tudo, hein? LENIDAS No... que eu realmente me interesso pelas pessoas. Me interessa saber como elas so, o que pensam, o que praticam... RICO Pra qu? S pra saber?... LENIDAS que um dia eu ainda vou ser um grande quadrinista. Al Capp, Lee Falk, Alex Raymond, Walt Disney, Robert Crumb... (Pequena pausa) Sabe? Os criadores do Ferdinando, do Mandrake, do Flash Gordon, do Mickey Mouse... (Pequena pausa) E para ser um cartunista razovel preciso, alm da imaginao, ter uma certa cultura, psicologia e experincia. E um bom trao. Imaginao eu tenho at demais. O que me falta experincia. por isso que eu fao perguntas. RICO No consigo te entender. LENIDAS simples. Voc um pripico e pripico tudo o que eu no sou. Eu, pro meu pnis ficar de p, voc no calcula o sacrifcio. Sou uma pessoa totalmente assexuada. Sexo jamais passa pela minha cabea. RICO No acredito. LENIDAS Ningum acredita. Mas a pura verdade. (Objetivo) Bem, minha vida sexual no interessa, voltemos sua. Eu perguntei e voc no respondeu: voc se masturba muito? RICO Me falaram que faz mal pra sade. LENIDAS Quer dizer que voc no se masturba? RICO (Impacientando-se) De vez em quando, no toda hora. LENIDAS Toda hora,
concordo, no deve fazer bem. (Mudando de assunto) Voc estuda? RICO Parei. LENIDAS (Chocado) No gosta de estudar? RICO (Tentando consertar) No, que t dando um tempo. Meu negcio ficar no stio, ajudando meu pai, fazendo galinheiro... LENIDAS Onde? RICO Em Jacarepagu. LENIDAS Tem namorada? RICO (Comeando a se irritar) P, meu, c t querendo saber de tudo! LENIDAS (Como quem desiste) Voc no t a fim de colaborar, pacincia. RICO Eu gosto de uma menina que mora do lado. Mas ela no quer nada comigo. S quer o cara do outro lado. LENIDAS sempre assim. (Mudando) E a Cordlia? RICO Que que tem? LENIDAS Como foi que vocs se conheceram? RICO Foi ali perto do cinema. LENIDAS (Consigo mesmo, encucando) Que esquisito... Ele disse que mora em Jacarepagu... (Voltando-se bruscamente para Rico) Como que voc veio parar aqui no Leblon? RICO que eu tenho uma tia que mora aqui perto. LENIDAS Mas voc no estava na sua tia, estava perto do cinema... RICO Pra falar a verdade eu tava era mesmo a fim dum pio. Da ela me viu e me chamou. (Cordlia volta do banheiro cantando e se perfumando com um spray. Ela joga um pouco de spray na sala e nos dois. Cordlia procura alguma coisa.) CORDLIA (Feliz, falando sem olhar para os dois) Nada como um cigarro depois do banho. (Pequena pausa) Falando mal de mim? LENIDAS Ele estava me contando como co nheceu voc. CORDLIA (Distrada) Ah, ? (Pequena pausa) Que mesmo que estou procurando? (Abre uma gaveta, procura, no encontra, volta-se para Lenidas) Lenidas... LENIDAS O qu? CORDLIA Voc pegou meu Continental que deixei aqui? LENIDAS Pra qu? CORDLIA Me d. LENIDAS Eu fumo, por acaso? CORDLIA Me d meu cigarro. LENIDAS Ai meu saco! CORDLIA Lenidas, eu tava guardando aquele Continental aqui na gaveta fazia uma semana! Quem ia pegar? LENIDAS Eu que vou saber? CORDLIA (Gritando) Me d meu cigarro. LENIDAS (Mesmo tom dela) J disse que no peguei! CORDLIA Eu quero meu cigarro. LENIDAS Ai minha santa pacincia! CORDLIA (Desistindo) Deixa pra l. Mas voc me paga. RICO (Apressado) Eu vou embora. Tenho aula amanh cedo. LENIDAS Mentiroso. RICO Qu?! LENIDAS Voc falou que no estuda! Te pe guei, hein! RICO Tenho aula com meu pai. Ele t me ensinando fazer uma coisa. LENIDAS Que coisa? CORDLIA (Despachando) Deixa o menino ir embora. J tarde e ele mora longe. Ns tam bm precisamos dormir. Amanh vamos acordar mais cedo e procurar emprego pra voc. (Lenidas apavorado com essa ideia salta da cama e corre ao banheiro) (Cordlia leva Rico at a porta de sada) CORDLIA Gostou, filhinho? Puxa, voc tava numa! RICO (Entregando um dinheiro a Cordlia) Puxa! Fazia um ms que eu no dava um pio. CORDLIA (Enfiando o dinheiro no peito) Ento volta daqui um ms e d outro. (Abre a porta e d um beijo em Rico; ele sai. Cordlia fecha a porta. Lenidas volta do banheiro) Estou exausta. (Cordlia senta na cadeira de balano) Que gracinha... LENIDAS O qu? CORDLIA Esse menino... (Enfia a mo no peito e tira a nota de cem, olha-a orgulhosa) Sabe, Lenidas, s vezes eu acho que vale a pena fazer a vida... (Sonhadora) A juventude uma coisa to bonita!... LENIDAS E como foi que vocs resolveram l na cozinha? CORDLIA (Recatada) Voc acha que eu vou ficar contando? LENIDAS Ah, conta... conta... conta.
CORDLIA (Alegre, embalando-se na cadeira) O menino... Como mesmo o apelido dele? LENIDAS Rico. CORDLIA O Rico tava to aflito... Coitadinho. Da eu usei um macete e ele no queria mais parar! Esse menino, pra idade dele, um prodgio, um fenmeno! E tem uma ginga! (Pequena pausa) Duas vezes! Tambm fazia um ms que ele no dava um pio. Que gracinha! To safadinho! (Pequena pausa) Existe coisa mais linda que a juventude? Esse menino... Ele podia at ser feio... Mas aos 16 anos qualquer pessoa bonita. E ele to bonito, meu Deus! LENIDAS Ficou gamada, ? CORDLIA (Disfarando) No isso... LENIDAS Ficou sim. (As palavras de Cordlia vo surtindo um efeito desagradabilssimo em Lenidas: a conscincia de que j no tem mais 16 anos. E Cordlia continua no devaneio.) CORDLIA No isso, juro. Eu fico assim... apaixonada... pela adolescncia... (Pequena pausa) Ns, por exemplo, que j temos quase 30 anos... (Lenidas tapa os ouvidos) Ns somos, de uma certa forma, jovens, ainda. Ns ainda somos capazes de inspirar algum sentimento... Talvez at amor... (Ponderando) difcil, mas pode acontecer. Mas o que eu acho triste, no nosso caso, no meu e no seu, em particular, que a gente j no tem mais nenhuma iluso... LENIDAS Voc no sabe o que est falando. Eu ainda tenho muita esperana... CORDLIA (Ignorando a fala dele, continuando) E quando a gente j no tem mais iluso... (Muda o tom, com garra, acreditando) Lenidas, esse menino me amou! Eu senti isso. E o que me deixa mais feliz que, alm dele ter me amado, ele ainda me pagou! Cem cruzeiros! Cem cruzeiros s pra me amar! (Excitada, brandindo a nota) Esse dinheiro pra mim sagrado. Se eu pudesse, eu nem gastava. (Orgulhosa) Eu ainda sou capaz de me fazer amar, de me fazer pagar, por uma criana de 16 anos! LENIDAS (Constrangido) Que vergonha, meu Deus! CORDLIA Vergonha de qu?! LENIDAS Cordlia, pra mim uma tortura quando voc fica mexicana. CORDLIA (Ainda sonhadora) Se voc compreendesse... LENIDAS Eu at compreendo. Mas voc fica to pattica, bancando a puta de corao doce... CORDLIA Ser que ele volta, um dia?... LENIDAS Quem sabe? CORDLIA (Firme) Tenho quase certeza que ele vai voltar... (Pequena pausa. Certa) Ele vai voltar. (Mudando o tom, objetiva, acordando) Ah, at me esqueci do seu emprego. Vamos dormir que amanh outro dia. LENIDAS No estou com sono. CORDLIA Mas eu estou. LENIDAS Eu ainda vou ler um pouco. CORDLIA Nada disso. Ns vamos dormir agora. LENIDAS Mas eu no estou com sono! T com a presso alta. CORDLIA E eu com a presso baixa. Voc est querendo me enrolar. Pra gente perder a hora, no acordar cedo e no procurar emprego pra voc, pensa que eu no sei? LENIDAS No nada disso. CORDLIA Pensa que me engana? LENIDAS (Emburrado) T bom, vamos dormir. Mas se eu ficar me virando na cama a noite inteira, azar o seu. CORDLIA O meu no, o seu. Se tem uma coisa que eu no sofro de insnia. s eu cair na cama pra logo puxar o ronco. LENIDAS (Insistindo) Vamos deixar esse negcio de emprego pra depois de amanh. S at eu me acostumar com a ideia. CORDLIA Nada disso. LENIDAS Puxa, Cordlia, eu fiquei at hoje sem trabalhar... CORDLIA (Decidida) Amanh ns vamos procurar emprego pra voc. LENIDAS Que que custa, um dia a mais, um dia a menos? Que diferena faz? CORDLIA No me interessa saber. LENIDAS Mas Cordlia... CORDLIA No interessa. LENIDAS Cordlia... CORDLIA V dormir, j. LENIDAS (Indo pra cama, resmungando) Que dio! Vo me destruir nesse emprego. Tenho certeza. Mas eu me mato. Juro que me mato.
Blecaute Segundo Ato CENA 1 Entram Cordlia e Lenidas vestidos com roupa de quem saiu procurando emprego. Lenidas entra rindo. Cordlia est furiosa. CORDLIA No ri no, que eu t puta da vida. Fiquei quieta na rua pra no dar vexame. (Pequena pausa) Que papel voc me faz! A gente entra no elevador com aquela mulher e voc aperta o boto de todos os andares! (Pequena pausa) Ora, sim senhor! (Lenidas para de rir e baixa a cabea, culpado) Eu morro de vergonha, finjo que no te conheo e voc me cutuca, rindo da mulher, que ficou uma ona! A mulher ficou uma arara! E ela era to distinta. Quase mandou a bolsa na nossa cara. (Pequena pausa, dramtica) Vinte andares! Parecia que a gente no ia chegar ao trreo nunca! Tava na cara que a mulher tava atrasada! (Pequena pausa) Puxa, Lenidas, ser que voc no aprende a se portar como adulto? LENIDAS Eu te avisei. CORDLIA Avisou o qu? LENIDAS Eu te avisei que no queria procurar emprego. CORDLIA E da? Aqui quem manda sou eu. LENIDAS Voc sabe que eu no tenho resistncia fsica para trabalhar. CORDLIA Voc um covarde. LENIDAS Sou mesmo. CORDLIA Falei com o cara da agncia. Ele te arranjou um emprego de auxiliar de escritrio. Voc vai trabalhar oito horas. Sbado e domingo livre. Dois mnimos, de salrio. pouco, mas pra quem nunca trabalhou... (Pausa para Lenidas meditar) Custava voc se esforar um pouco pra gente fechar o dia com chave de ouro? LENIDAS Eu tenho medo. CORDLIA Medo de qu? LENIDAS Voc sabe que eu morro de medo. CORDLIA Eu tambm tinha medo, idiota. O comeo sempre difcil. Depois, com o tempo, a gente acaba se acostumando. LENIDAS Prefiro a morte. CORDLIA Voc prefere eu sei o qu. (Pausa). Pra falar a verdade, no sei como tenho tido sade pra te aguentar. Com mais uma dessas que voc me deu hoje, eu te expulso na hora. LENIDAS Duvido. Voc no teria coragem. Voc sabe que outro voc no arranja... CORDLIA O qu? LENIDAS Voc no vai achar outro pra te aguentar como eu te aguento. CORDLIA No vou? LENIDAS No. CORDLIA Imagina! s eu querer. LENIDAS Quem, por exemplo? CORDLIA Bem, tem uns que voc no co nhece. Mas um que voc conhece... (Pausa para mistrio) LENIDAS Quem?! CORDLIA Quer que eu diga? LENIDAS Quero. CORDLIA Quer mesmo? LENIDAS Vai, diz logo. CORDLIA T bom. O Rico. LENIDAS Aquele menino? CORDLIA Por que no? LENIDAS Ora, no me faa rir. CORDLIA Pois , ele mesmo. LENIDAS Aquilo foi s uma vez e never more. CORDLIA Isso o que voc pensa. LENIDAS Voc s valeu pra tirar o atraso dele. E se eu te conheo, fogosa do jeito que voc , deve ter esquentado tanto a coisa que aquele no vai precisar tirar outro atraso to cedo. CORDLIA Voc que no tava l no lugar dele. (Suspira prazerosa). O menino saiu daqui gamado. LENIDAS Tanto que j deve ter encontrado outra no mesmo ponto. Aquele voc no v mais. CORDLIA Imagina. At parece que no me conhece. A mame aqui de deixar saudade. LENIDAS Deixa de ser vulgarona. CORDLIA Mas que volta, volta. Certeza absoluta. LENIDAS No se iluda. Ele me contou. Ele vidrado na garota do porto ao lado. CORDLIA No vai ser por isso que ele vai deixar de aparecer. (Campainha) Quem seria? LENIDAS Quem ser? (Cordlia abre a porta. Lenidas, rpido, corre e ocupa a
cama. Entra Rico) CORDLIA Lenidas, olha s quem est aqui. RICO (Menos tmido, um pouco mais vontade) Boa-noite. CORDLIA Fica vontade, a casa sua, querido. LENIDAS (Em devaneio, ligeiramente teatral.) Humm, essa coisa de no sair de casa, ter horrio pra nada, passar a vida na cama, no ver o tempo passar... Isso me deixa numa confuso! Nunca sei o ms, nunca sei a hora... (Para Rico) Voc sabe que dia hoje? RICO Da semana ou do ms? LENIDAS De ambos. (Cordlia sai para o banheiro) RICO Da semana, segunda... Agora, do ms... CORDLIA (Gritando, do banheiro) Amanh tera, seu primeiro dia de trabalho! LENIDAS (Respondendo a Rico) Segunda-feira? E eu que pensava que fosse quarta! Pra mim assim: segunda quarta, quarta quinta, sexta sbado, domingo segunda... (Pausa) Eu tenho uma tia, sabe? Ela uma das mdiuns que mais recebem l na minha cidade. E essa tia me disse que eu sou assim porque esta a minha ltima encarnao. Aqui na terra, bem entendido. (Pausa) Depois eu vou comear tudo de novo, s que num outro planeta. (Pequena pausa) Talvez com umas antenas na testa... (Desolado, existencialista) Voc j pensou, comear tudo de novo?... (Reconsiderando) Se bem que de antena na testa... Ser que vou me adaptar? Com as antenas, com o planeta... (Pequena pausa).Uma, duas, trs, vrias encarnaes... A, de novo mandado a outro planeta. E depois outro, mais outro... Acho que isso no tem fim, enquanto a gente no atingir a perfeio csmica. Da quem sabe voltar Terra... Numa condio diferente... No como ser humano, mas... pssaro, peixe... (Tomado) Se, quando eu atingir a perfeio, algum Ser Supremo me der a liberdade de escolha e a chance de voltar Terra... Digamos que eu escolhesse voltar como pssaro... Mas que pssaro? Andorinha, gavio, pintassilgo, beijaflor... (Decidido) Amanh mesmo vou comear estudar Ornitologia. CORDLIA (De volta do banheiro) Voc falando bobagem, o Rico vai pensar o que da gente? LENIDAS J decidi. Escrevo minha tia para esclarecer algumas dvidas sobre reencarnao e amanh mesmo vou pegar firme em Ornitologia. CORDLIA (Para Rico) Meu bem, voc, por acaso, teria um cigarro? RICO Claro. (Tira um cigarro do mao e oferece a Cordlia) CORDLIA Hummm, de filtro! Que chique! (Arranca o filtro, vira o cigarro do lado contrrio, coloca-o na boca, oferecendo-se para Rico acend-lo) No aguento cigarro de filtro (D uma longa baforada) Nada como um cigarro para relaxar os nervos. RICO (Para Lenidas) Voc quer um? LENIDAS No, muito obrigado, no fumo. CORDLIA (Para Rico) Meu bem, ser que voc pode me deixar uns dois? RICO Eu tambm no fumo. Eu trouxe este mao pra voc. CORDLIA No diga! Que gracinha! (Mais que rpida, pegando o mao) Viu, Lenidas, quando eu disse? (Para Rico) Meu anjo, voc j fumou quantos? RICO Eu disse que no fumo, mas fumei um, para experimentar. CORDLIA (Fazendo a conta de cabea) Um s? (Pequena pausa). Um seu e um meu: dois. Ficam sobrando dezoito. (Olha para Lenidas, desconfiada) Deixa eu guardar. Lenidas, aqui tem dezoito cigarros, contadinhos. Se voc pegar um, eu acabo com a tua raa. (Silncio). RICO (Sentando-se na cadeira de balano) T atrs de uma informao. Ser que fcil arranjar emprego em navio mercante? LENIDAS Sei l, voc me parece muito novo para trabalhar em navio mercante. Os marinheiros vo querer te faturar. RICO Que nada. Eu tenho um tio. Hoje ele mora na Pensilvnia. Ele comeou na minha idade. Marinha mercante. Viajou o mundo inteiro. LENIDAS Qual o seu signo? CORDLIA Puxa, Lenidas, voc vai comear de novo esse papo furado de horscopo? LENIDAS (Corrigindo-a) Astrologia. RICO ... LENIDAS (Cortando) Espera um pouco... no fala... deixa eu ver... (Concentra-se, a mo na testa) Deixa eu pensar... (Pausa. Observa Rico) Aqurio. RICO Nasci no dia 5 de fevereiro... LENIDAS Batata. Segundo decanato. Viu,
Cordlia, viu s? CORDLIA Voc chutou. LENIDAS (Para Rico) Ela no me leva a srio quando falo de Astrologia. CORDLIA Eu no te levo a srio nunca. LENIDAS (Entusiasmado, para Rico) Voc sabe que o signo de Aqurio o mais evoludo? As pessoas do seu signo so cem anos adiantadas sobre as pessoas dos outros signos e, quem sabe, at mesmo sobre as do prprio signo, sabe como ? So geralmente altas... CORDLIA E aquele seu primo? LENIDAS Eu disse geralmente. E depois, ele no meu primo. Alm do que, ele do primeiro decanato e, se voc me permite, estou falando do segundo. (Isto posto, inspira fundo e continua) Lincoln, Jlio Verne, Mozart, Bertolt Brecht, e at mesmo aquela atriz, a Jeanne Moreau... (Pequena pausa) Voc certamente j ouviu falar dessas pessoas... RICO No. Nunca. LENIDAS timo. Nota 10 em autenticidade. Sinal de que voc ainda tem tudo pela frente. (Comea) As pessoas do teu signo so confusas, revolucionrias, egostas, impacientes, ciclotmicas... RICO Que que isso? LENIDAS Ciclotmica? RICO isso mesmo. Que que isso? Outro dia voc falou que eu era pripico... e agora t falando isso a... LENIDAS Numa outra oportunidade eu explico. (Continuando) Apesar de ser o signo, do futuro, tambm o do passado, o que pode parecer ambguo, mas no . E logo voc vai compreender por qu. (Muda o tom) Aqurio o signo da amizade. Nada de amor. Por causa da ciclotimia, voc o tipo da pessoa destinada independncia total. Livre para enfrentar todos os riscos maravilhosos que a vida atual oferece. Escapar, fugir, voc no de ficar preso. (Pequena pausa) Certo? O seu signo se d perfeitamente com o meu, Escorpio. (Olhando para Cordlia) Agora tem uma coisa: voc deve fugir das pessoas de Peixes, que so muito negativas... CORDLIA Hummm, Lenidas, tu fica to fresco quando comea a falar de horscopo! LENIDAS (Corriginda-a) Astrologia. CORDLIA Foda-se. (Para Rico) Sabe com quem ele aprendeu essa bobagem? LENIDAS (Reverente) Com o grande Krishna Iogue l em Friburgo. CORDLIA Imagina! Um boliviano metido a hindu. Um depravado que vive em funo do Kama Sutra. Um indecente, que vive com uma piranha romena, que tem uma parenta examante de um deputado cassado. Esse grupo conhecido l em Friburgo como a famlia Trepa. Foi no meio desse povo que ele aprendeu a tirar mapa astral. LENIDAS Ele nem ouviu o que voc disse. CORDLIA (Para Rico) Ainda por cima t te chamando de tapado. LENIDAS (Mstico) Ele um iluminado. Um santo. CORDLIA (Debochando) mesmo? Que interessante! LENIDAS Ele sintoniza coisas que voc, com sua mente suja, no percebe. CORDLIA Ah ? Ento pergunta se ele t me sintonizando l na esquina? (Prtica) Sim, porque vou deixar vocs sozinhos, concentrados. Vou fazer a vida. Aqui nesta casa, t percebendo, um pouco, dois bom, trs demais. A demais, agora, sou eu. Vamos ver se quando eu voltar a coisa muda. (Para Lenidas) Acho bom voc dormir cedo. Amanh voc vai ter que enfrentar o batente. (Comea a se preparar e vai ao banheiro) RICO (Apertando o pau, para Lenidas) Eu vim aqui pra dar um pio. Voc pode dar um toque a, na Cornlia? LENIDAS (Corrigindo-o) Cornlia, no, Cordlia. RICO (Consertando) , Cordlia. LENIDAS Acho que agora no convm. (Pequena pausa) Voc no acha ela vulgar, s vezes? CORDLIA (Voltando) Que que vocs dois esto a cochichando? LENIDAS No de voc. CORDLIA (De sada) Acho bom mesmo. Bem, j vou indo. Vou ver se descolo alguma grana pra quebrar o nosso galho amanh e depois. (D um beijo no rosto de
Lenidas e outro em Rico. Sai desanimada.). LENIDAS Essa minha mulher no regula! Ser que ela no percebeu que voc veio pra fazer programa com ela? (Pequena pausa) Voc trouxe dinheiro? RICO Trouxe. LENIDAS Quanto? RICO Cem cruzeiros. LENIDAS Nossa! Onde que voc consegue tanto? RICO Transei um galinheiro de arame que tava jogado fora l no stio. Vendi pro stio do lado. LENIDAS Ento vamos fazer um negcio. Voc me d os cem cruzeiros que t precisando pra comprar revistas e material, trepa com a Cordlia e pode ficar aqui quanto tempo voc quiser. (Pequena pausa) Topa? RICO Voc acha que ela vai topar? LENIDAS Claro, seu bobo. Ela te adora! RICO Ento topo. LENIDAS Que timo! Vou at fumar um cigarro. (Vai at o lugar onde Cordlia guardou o mao, pega um e acende). RICO Ah, ento tambm quero um. LENIDAS (Prudente) Vamos nesse aqui mesmo. Eu fumo um pouco e te dou. O mao est cheio, ela no vai sentir falta de um. (Pausa. Contente) inacreditvel a gente ter visita por uns dias. Acho essa ideia muito estimulante. Nunca ningum vem visitar a gente, sabia? RICO Vocs no tm famlia? LENIDAS A minha famlia nem sabe onde eu ando. Quando sa de casa, l no sul de Minas, eu disse pro meu pessoal que no ia mandar notcia enquanto no tivesse me acontecido uma coisa muito importante. Pra eles no ficarem preocupados, sabe? (Pequena pausa) Como at agora no me aconteceu absolutamente nada, at hoje no mandei nenhuma carta. E pelo jeito eles nunca vo receber notcias minhas. RICO Vocs so bem diferentes mesmo, hein?! E faz tempo que voc saiu de casa? LENIDAS Uns seis ou sete anos, j perdi a conta. RICO Nossa! E a famlia da Cordlia? LENIDAS Cordlia deve ter aprontado alguma. Foi expulsa de casa quando tinha quinze anos. outra que nunca mais viu a famlia. Sabe aquele camafeu que ela vive pedindo? Parece que ela ganhou da me, quando era menina. Um dia a me dela descobriu o endereo e pintou aqui. Veio buscar o camafeu. Disse que a Cordlia no era digna dele. Disse que era uma relquia de famlia que vinha sendo passada de gerao para gerao, e que agora, por dignidade, ia para a irm da Cordlia, que mais correta que ela. RICO (Sensibilizado) E voc entregou o camafeu? LENIDAS Se eu no entregasse... acho que a mulher me estrangulava! Eu tava sozinho em casa! Cordlia tava trabalhando. At hoje ela no sabe. Pensa que fui eu que sumi com o camafeu! RICO Por que voc no contou? LENIDAS Cordlia ia morrer de tristeza. RICO Coitada! LENIDAS No de cortar o corao? (Pausa. muda de assunto. Fraterno) Sabe duma coisa? Acho voc um cara muito bacana. Ta, gosto de voc. Gosto de conversar com voc. Eu falo, falo, voc fica calado, ouvindo, interessado, registrando... Acho isso timo. (Pequena pausa. Medita) ... Aqurio... (Levanta-se) RICO (Cobrando) . Mas voc ainda no me falou o que ciclotmido. LENIDAS (Indo apanhar um grosso e antigo dicionrio caindo aos pedaos) Ciclotmido no. Ciclotmico. Voc sempre me entende mal. (Passa o dicionrio a Rico) E nunca deixe de consultar o dicionrio, quando em dvida. Letra c. (Pequena pausa) E fique vontade, enquanto vou ao banheiro. Faa desta a sua casa. Se se sentir mais vontade pelado, fique. (Lenidas sai para o banheiro. Rico, na cadeira de balano folheia o dicionrio procura da palavra. Luz vai baixando.) CENA 2 Noitinha do dia seguinte. Em cena, Rico e Lenidas. Lenidas na cama e Rico na
cadeira de balano. Ambos absortos na leitura de revistas em quadrinhos, que Lenidas deve ter comprado com os cem cruzeiros de Rico. Soa a campainha. Lenidas pula da cama, corre e se fecha no banheiro. Rico abre a porta. Entra Cordlia desgrenhada e furibunda. CORDLIA (Desconfiada) Ah sei... (Vendo a porta do banheiro fechada) Vou me lavar. Quem trancou a porta do banheiro? (Pequena espera) Lenidas, vai abrindo a porta! (Espera) Lenidas, quer abrir essa porta? LENIDAS (De dentro) J vou. (Continua no banheiro) CORDLIA Seu cretino. Tinha que me dar uma dessa? LENIDAS (De dentro) Sabe o que aconteceu?... CORDLIA No vem com desculpa. Voc tinha que sujar a minha barra. (Para Rico) Telefono toda contente para a agncia, pra saber como que estava indo o meu maridinho no emprego... e sabe o que o moo responde? (Pequena pausa) Que o meu maridinho simplesmente no foi trabalhar. Nem telefonou. J imaginou a minha cara? Tive que inventar uma desculpa. Que meu marido teve uma crise de colite na vspera. Que deve ter sido por isso que ele no foi. Mas da o moo da agncia, um rapaz por sinal muito educado, disse que no tinha importncia, que tinha outro emprego. S que pra ganhar bem menos. (Lgica) aquela coisa: foi ao vento, perdeu o assento. (Alto, para Lenidas) Voc no vai sair? LENIDAS J vou. CORDLIA Sai logo que eu no vou te bater, no. (Lenidas sai) LENIDAS Nossa, Cordlia! Voc t destruda! Que que aconteceu? CORDLIA Que que aconteceu, que que aconteceu... (Cara amarrada) Eu tava to puta por sua causa que assim que sa do escritrio resolvi rodar a bolsa. (Pequena pausa) Da um turco me apanhou, dizendo que me dava cinquenta cruzeiros se eu fosse com ele. (Pequena pausa) No pensei duas vezes, claro que fui. O turco tinha um nariz que... sai da frente. E um bigodo que s o Omar Shariff. Fiquei com medo, mas... Entramos no txi. Mal fechou a porta, j foi logo enfiando a mo entre as minhas pernas. Nem a com o motorista. Esqueci tudo, fui ficando fraca e o turco, mais que depressa, arrancou fora a minha calcinha. O motorista levou a gente num canto l da Barra e foi dentro do carro mesmo. O turco bem que estava gostando que o motorista ficasse olhando a gente se sacanear. E pra encurtar a histria, deixei o motorista se satisfazer com os meus ps enquanto o turco se satisfazia com o resto. Eu mesma estava noutra. Aproveitei a sacanagem pra fazer uma espcie de introspeco. E sabe duma coisa? Cheguei concluso de que no sou nem bem uma biscate, nem bem uma auxiliar de escritrio e nem bem uma dona de casa... (Pequena pausa) E alm disso, durante toda a sacanagem, eu s pensava em voc. LENIDAS Em mim? CORDLIA Em voc mesmo. Nas duas vezes que atingi o orgasmo, eu chamei o seu nome. LENIDAS Como? CORDLIA Disse o seu nome em voz alta, ora! LENIDAS Voc muito burra, Cordlia! No precisava ter passado por esse vexame. Podia ter vindo pra casa. CORDLIA E a gente ia comer o qu? O qu, me diz? No posso mais fazer vale no escritrio. LENIDAS Mas desde ontem o Rico est aqui... CORDLIA Eu disse comer. Dinheiro pra comer!... RICO Eu trouxe cem cruzeiros... CORDLIA (Imediatamente contente) Cem cruzeiros!!! Maravilha! Com os cem do Rico mais os cinquenta do turco... (Saindo para o banheiro) A gente podia dar uma festa! (Sai e comea a cantar uma msica qualquer do hit parade da poca) (Luz vai baixando). CENA 3 Noite do dia seguinte. Uma luz verde-azulada em resistncia cria um dj-vu de sonho. Em cena, Lenidas e Rico, um em cada canto do p da cama, soprando bolhas de sabo. Lenidas de vez em quando para de soprar e, obstinado, vira pginas do dicionrio a seu lado, procurando alguma palavra. LENIDAS (Admirando as bolhas que soprou) Olha s, que lindas! RICO Que que voc t procurando no dicionrio? Ciclotmico? LENIDAS No! Ciclotmico nem passou pela minha cabea.
RICO Voc se enganou. Eu no sou nada disso. LENIDAS (Soprando bolhas) Eu gosto quando elas demoram a estourar. Eu gosto quando elas se desfazem no cho. RICO (Sopra rpido e diz) Eu gosto quando estra logo. LENIDAS Eu no quis dizer que voc, particularmente, um ciclotmico. O que eu quis dizer que algumas pessoas do teu signo so. Ou mesmo de qualquer outro signo. RICO Ah, bom! A sim, concordo. (Pequena pausa) Uma que completamente ciclotmica a Cordlia. LENIDAS (Interessado) Em que sentido? RICO Toda hora ela muda. Uma hora t alegre, de repente fica triste. T boazinha, de repente vira fera. LENIDAS Voc tem razo, eu nem tinha percebido! A Cordlia ciclotmica, quem diria?!!! RICO (Apertando o pau, distraidamente) Ela t demorando... LENIDAS que fim de ms... Fim de ms ela sempre faz hora extra. RICO Ela no vai te pegar de tapa? (Pequena pausa) Voc nem deu as caras no outro emprego que ela te arrumou... LENIDAS No posso comear a trabalhar dum dia pro outro. Primeiro tenho que preparar o meu esprito. Fazer meu esprito se acostumar com a ideia... (Pequena pausa) Isso leva tempo! (A porta se abre e entra Cordlia) CORDLIA (Desanimada) No foi trabalhar de novo, no ? LENIDAS (Desculpando-se) No... Eu ia trabalhar mas depois pensei: (Decidido) No, no vou trabalhar. CORDLIA (Irnica e amarga, ainda que afetiva, vai l e acaricia os cabelos dele) Voc deve ter queimado todos os seus neurnios, at chegar a essa deciso. LENIDAS No, at que no. Bastou uma frase... (Pequena pausa) Me lembrei de quando era menino e frequentava o catecismo... Tinha um padre que dizia, sempre: Seja honesto consigo mesmo. CORDLIA (Distante) E o que que tem a ver o cu com as calas? LENIDAS Adivinha o que eu fiquei fazendo o dia inteiro? CORDLIA (Preguiosa) No t com vontade. LENIDAS (Insistindo) Adivinha. CORDLIA Eu ia ter que passar a noite inteira adivinhando. Sua imaginao no tem limite e a minha pacincia j t na raspa do tacho. LENIDAS (Animado) Passei o dia lendo o dicionrio... Procurando uma palavra linda, diferente... CORDLIA Mais um adjetivo?... LENIDAS No, um substantivo. Um substantivo para eu usar como adjetivo para a minha pessoa. Uma palavra fora de moda, esquecida... CORDLIA (Preparada para mais uma) Sei. LENIDAS Fui procurando, procurando... at que... CORDLIA (Cortando) Encontrou? LENIDAS Encontrei. Na letra p. Estou apaixonado. Adivinha que palavra? CORDLIA (Conhecendo Lenidas como ela o conhece): Prestidigitador. LENIDAS (Estupefato) Nossa, Cordlia, s vezes voc me assusta! s vezes voc me parece to ligada! Como foi que voc adivinhou?! CORDLIA (Quilometrada) Uma vez eu tambm fiz isso. (Mudando o tom, impaciente) Passei o dia lendo o dicionrio. Atrs, talvez, dessa mesma palavra. De modo que, quando voc disse Letra p, eu pensei: s pode ser prestidigitador. LENIDAS Voc sabe o que significa? CORDLIA Menor ideia. LENIDAS Vem do Latim... Praesto igual a rpido; e Digitu igual a dedo... CORDLIA Sei. LENIDAS Aquele que possui o dom de produzir iluso pela rapidez das mos. CORDLIA Bem, at a morreu o Neves... LENIDAS (Dicionrio) Aquele que, pela ligeireza das mos, faz deslocar ou desaparecer coisas, sem o espectador ver como... CORDLIA Haja vista o camafeu de minha me... LENIDAS (Continuando) Ilusionista, pessoa que exerce a prestidigitao, ou
seja, a bruxaria, a magia, o encanto... CORDLIA No vejo nenhuma ligao nisso que voc acaba de dizer... com aquilo que voc . LENIDAS A vida uma iluso... CORDLIA Isso pra mim nunca foi novidade. LENIDAS (Continuando) A vida uma iluso e eu, como prestidigitador, fao da vida o que bem entendo. Isto , nada, por enquanto. (Silncio) CORDLIA (Fatdica) T numa fossa, hoje! Que fossa! LENIDAS (Vendo Rico cochilando na cadeira de balano, com a mo abandonada no pau) Acho engraado o seu novo namorado, dorme o tempo todo. CORDLIA (Abstrada) Que fossa! LENIDAS Que que voc tem? CORDLIA (Esmaecida) Estou arrasada. LENIDAS (Suave) Cordlia... CORDLIA (Apagada) Arrasada... LENIDAS Cordlia... CORDLIA Fala. LENIDAS Com quantos homens voc j man dou brasa? CORDLIA (Reanimada) Deixa eu ver. (Salta e corre para a estante, de onde pega um caderni nho) Deixa eu ver, meu dirio t meio desatualizado... Deixa eu ver... (Pequena pausa) 114. LENIDAS Nossa! CORDLIA 114, no mole! LENIDAS E os dois de ontem? CORDLIA 115. LENIDAS No foram dois? CORDLIA No, seu besta. Fiz sacanagem. com os dois, mas s um... LENIDAS Sacanagem no conta? CORDLIA Claro que no! Se eu fosse contar... LENIDAS Puxa! E voc ainda se queixa... CORDLIA Se voc estivesse na minha pele... Se passasse o que eu passo... (Mudando de assunto, alegre) Ah, mas eu estou to feliz! (Conta) Eu tava rodando a bolsa pela praia, quando um fotgrafo americano, vistoso, a cara do Steve McQueen, s que mais encorpado... (Pequena pausa) Ele me viu, me chamou num canto e perguntou se eu deixava ele tirar umas fotos... (Pequena pausa) Ele disse que estava fazendo uma reportagem sobre mulheres tpicas, para uma revista da pesada. Eu no sei o que que tenho de tpica. Mas da ele me levou num lugar ali na praia... Tava escuro, mas a mquina dele era de flash... (Pequena pausa) Ele queria que eu ficasse pelada. Eu disse... pelada, no. Mas da ele me ofereceu dez dlares e eu... tu j viu, n... Aceitei na hora. No tinha ningum na praia... (Pequena pausa) Se voc visse as posies que eu fazia... LENIDAS at capaz de voc ficar famosa! CORDLIA Enquanto ele me fotografava, eu pensava: Se eu morrer amanh, morro descansada. Pelo menos uma coisa eu deixo neste mundo: a minha fotografia. LENIDAS Passarinho que come pedra sabe o cu que tem. CORDLIA Que foi que voc disse? LENIDAS Nada. Estava s lembrando dum ditado que minha av usava muito. CORDLIA (Contente) O americano fotografou tanto a minha bunda! Estou to feliz! Hoje eu queria... Hoje estou preparada, mesmo, para ouvir msica. Nada de cha-cha-cha. Hoje eu quero msica clssica. Clssica. Cheia de trompas, pratos, tambores, sinos, violinos. Uma msica exultante, exaltante. Hoje eu quero pera, Bizet! Quero ouvir vozes, vozes humanas... Gritando, berrando! Qualquer coisa que exulte o sexo e exalte a bunda! Opera, pera! Nem que seja uma pera bufa! (Mudando o tom, normal) Que que mesmo pera bufa? LENIDAS Tem nada disso aqui. S tem aquele disco do Perez Prado. CORDLIA Serve tambm. (Lenidas pe um mambo na vitrola) Estou to excitada! Imagina, ser chamada para ser fotografada nua! Vou at fazer uma extravagncia... LENIDAS O qu? CORDLIA Vou fumar um cigarro. Deixo a bagana pra voc. (Vai ao lugar onde deixara guardado o mao, pega-o, olha desconfiada para Lenidas e comea a contar, ao som do mambo, acompanhando o ritmo com o corpo enquanto conta) Por via das dvidas... Um, dois, trs, chacha-cha, quatro, cinco, seis, cha-cha-cha! E sete, oito, nove, cha-cha-cha, e dez, cha-cha-cha,e onze e doze e treze e catorze, quinze dezesseis, dezessete... (Olhar furioso para Lenidas) No
possvel! (Espalha os cigarros sobre a mesa e recomea, sem ligar se toca msica ou no) Um, dois, trs, quatro... LENIDAS (Com medo) Eu fumei um cigarro seu. CORDLIA (Cobrindo o rosto com as mos crispadas) Minha me santssima! LENIDAS (Temendo) Cordlia... CORDLIA Meu Deus do cu! LENIDAS Eu fumei s um. Tinha dezoito! Um no ia fazer falta! CORDLIA Voc no tem o menor respeito por mim! LENIDAS No foi falta de respeito! Foi s um cigarro! CORDLIA Voc fumou meu cigarro pelo sim ples prazer... LENIDAS (Adiantando-se) De fumar! CORDLIA (Puta da vida) De me deixar furiosa. LENIDAS (Humilde) Eu estava ansioso. Pre cisei fumar. CORDLIA E se no tivesse cigarro? LENIDAS Mas voc tinha 18! CORDLIA Ento! Dava pra 18 semanas! Um cigarro por semana! LENIDAS (Pouco caso) Pra fumar um cigarro por semana... CORDLIA Voc sabe que eu vivo a semana inteira em funo do meu cigarro semanal! LENIDAS Que ideia mais fixa! CORDLIA Voc mau pra mim. Voc no tem a mnima considerao por mim! Apesar de tudo o que eu fao por voc! Dois anos me matando pra te sustentar! LENIDAS Mas Cordlia... CORDLIA Fazendo o papel de puta sem ser. Dois anos dando pra Deus e o mundo, mas na hora H sempre com o pensamento em voc, dizendo o seu nome! Desde que te conheci sempre fui fiel a voc! LENIDAS Em pensamento. CORDLIA Em pensamento mesmo. Quer fidelidade maior que essa? (Chorando) Desgraado! Ordinrio! Coisa ruim! Enquanto eu me apodreo, engordo, emagreo, barriguda, bunduda, cheia de pneus, barrancos, varizes, rugas, olheiras e papadas, voc fica deitado, se conservando... LENIDAS Voc sabe que eu sofro de presso... CORDLIA Ainda por cima, debochado. O dia que eu virar um bucho completo voc se manda, pensa que eu no sei? LENIDAS Cordlia, mais fcil voc me abandonar primeiro! Ai como voc exagera! CORDLIA Voc me enganou. Voc vive me enganando. A cada dia voc me agride com uma nova trapaa. Voc rouba o meu cigarro, toca a campainha da francesa, no comparece ao trabalho, some com o camafeu de minha me, que ela me deu antes de morrer... camafeu que tinha sido da minha bisav, da minha av, da minha me e meu! Era uma joia que a minha maldita famlia vinha passando de gerao a gerao! LENIDAS O camafeu no fui eu. CORDLIA (Pattica) Eu guardava aquele camafeu com todo o carinho. Na esperana de um dia passar pra minha filha. Eu, que sonhava tanto ter uma filha! Uma filhinha a quem eu pudesse ensinar tudo o que essa vida maldita me ensinou. Pra minha filhinha no cair na mesma! (Retoma, forte) Burra que fui! Idiota, que sou! (Volta) Uma filhinha me esperando de sorriso na cara toda tarde, depois de um maldito dia de servio! Uma filhinha pra dar de mamar, embalar e fazer nanar, toda noite, com o mesmo sorriso encantador! Claro que eu ia acabar acreditando em Deus! Ia ter pelo menos um motivo pra acreditar em Deus! (Pequena pausa) Mas no. Com a vida que eu levo, com a vida que passo, no d para acreditar em nada, quanto mais em Deus! Estou exausta, exausta de te aturar! De ver voc com essa cara de inocente me passando pra trs. LENIDAS Por um cigarro?! CORDLIA Por um cigarro, sim. Mas podia ser por qualquer outra coisa. Se tivesse outra coisa. LENIDAS E voc? Voc tambm no me engana? CORDLIA No, meu amor, eu nunca te enganei. Tudo que fiz, tudo que fao, no teve um dia que, chegada em casa, eu no contei pra voc. Alm do mais, (Aponta) meu dirio sempre esteve ali. (Pequena pausa) Eu no te engano, no. Nunca menti
pra voc. LENIDAS Eu que vou saber? CORDLIA Alm de tudo mesquinho. LENIDAS Voc pode ter me escondido muita coisa... CORDLIA Nunca deixei de te contar um s detalhe dos vexames que passei, seu ordinrio. (Pausa. Aos prantos) Eu quero a minha me! ( comoo) Sou uma amaldioada! LENIDAS (Constrangidissimo) Que coisa desagradvel Que vergonha, meu Deus! CORDLIA (Brusca e possessa) Quer saber duma coisa? RUA! (Cordlia continua, no para. Enquanto isso, na cadeira de balano, Rico, que durante esta sequncia vez e outra teve espcies de principio de convulso no cochilo, sempre apertando o pau e mudando de lado na cadeira, agora tem quase um orgasmo no cochilo e se contorce. Cordlia no percebe nada disso e continua. Para Lenidas) LENIDAS O qu? CORDLIA RUA! LENIDAS Mas Cordlia... CORDLIA (Desvairada) Rua, j disse! (Para Rico) E ele tambm. J me encheu o saco esse silncio idiota! (Sacudindo Rico e acordando-o) Voc tambm, RUA! RICO (Acordando atnito) Ahnn??? CORDLIA (Ignorando os dois) Quero ficar sozinha, sozinha! Quero pensar, planejar. (Louca) J sei o que vou fazer! (D uma olhada ampla para o cmodo todo) A partir de amanh vou trabalhar feito louca, fazer muito extraordinrio, vou levantar um dinheiro e vou pintar tudo isso aqui de vermelho e vou transformar esta merda num bordel! LENIDAS Mas Cordlia, voc no pode fazer isso! Puxa, ns vivemos to bem nesses dois anos de casados! CORDLIA Casados, uma ova! Voc lembra? Quando eu quis casar com voc? O que voc disse? Casamento sei l o qu, bebeb-babab... Voc no lembra? (Pausa) Casar mesmo, voc nunca quis. Voc continuou Lenidas Barbosa, e eu, Cordlia Brasil... Unidos enquanto deu p. Agora no d mais. Pode pegar suas coisas e se mandar. LENIDAS Voc quer que eu v embora, eu vou. S que eu acho que voc est sendo precipitada! Por causa de um cigarro... CORDLIA O cigarro foi apenas a gota dgua. Cansei. Descobri agorinha mesmo que, do jeito que a gente vive, a gente simplesmente no existe. Eu e voc no existimos. LENIDAS Jogar dois anos fora?! Isso maldade... CORDLIA Eu sempre fui m. S que agora vou ser pssima. Vou dar sentido minha vida. Quero ser uma putona. (Pequena pausa) No sei como te aturei at hoje. Voc muito gelado pro meu gosto. Uma mulher com o MEU temperamento! LENIDAS Voc nunca se queixou... CORDLIA Porque eu era tmida. Os primeiros quatro meses juntos at que voc mandava uma brasa legal. Depois, de repente, parou. E eu no tinha coragem de chegar perto. Voc me intimidava. Sei l, voc tinha uma cara de padre. E eu aflita, precisada, sem ter coragem... LENIDAS (Intimidado) No gosto de falar dessas coisas. CORDLIA Passei seis meses na maior ansiedade. Uma mulher com o meu temperamento! Seis meses... Da que vi que voc no regulava. Perdida a pacincia, resolvi sair por conta prpria. (Pequena pausa) Aguentei sua presena dois anos! (Lenidas, desolado, comea a juntar suas coisas). Dois anos. Esperando que, com o tempo, voc mudasse. No fundo eu levava a srio a sua ideia de ser cartunista. Esperava que um dia voc casse na real e, em vez de histria em quadrinhos, escrevesse um romance. Um grande romance, um romance de quase trezentas pginas, o romance da MINHA vida. (Pequena pausa) Um livro pra virar best-seller, render muito dinheiro, pra gente dividir os lucros e tirar o p da lama. (Mudando o tom) Agora pode ir embora. Pode deixar que esse romance eu mesma escrevo. (Pequena pausa) Amanh mesmo vou falar com duas biscates que conheo. Trago elas pra c. Boto uma tabuleta na parede: NESTA CASA ABUNDA O PRAZER. Ou ento: NESTA CASA IMPERA A DEPRAVAO E O VCIO. (Pequena pausa) Quero muita sordidez, muita sacanagem. Quero ser (Abrindo os braos) A RAINHA DA
ZONA! Vou ser a maior exploradora de lenocnio da parquia e da histria. Vou comear com as meninas na janela mostrando tudo, bundas e tetas! LENIDAS A polcia vai fechar esse bordel antes da abertura! (Cordlia de repente bate com os olhos em Rico, acuado num canto apertando o pau. Vai at ele, empurrando-o com ambas as mos.) CORDLIA (Para Rico) E voc? Pensei que da fosse pintar um malandro, um futuro gigol, algo mais que essa insuportvel cara de anjo! Voc, de quem eu esperava trouxesse ao menos um clima pra esta casa, no faz outra coisa que apertar esse pauzo e ficar a, com essa cara de ponto de interrogao. LENIDAS (Tendo um lampejo, para Rico) Vamos imediatamente pro cas do porto. A minha intuio feminina, quero dizer, masculina, me diz que tem um cargueiro holands atracado l. Vamos diretamente ao comandante. Tenho certeza que ele vai nos empregar. Nem que seja pra descascar batata. J vi isso num filme. Na poca em que frequentava cinema. (Sonhando alto, empolgado com a ideia) Puxa, quem diria que a gente acabaria nos Pases Baixos! J tenho at passaporte! Faz tempo que tirei. Intua que isso um dia ia acontecer! (Para Rico) Voc no precisa de passaporte. Voc menor, e menor no precisa dessas formalidades. Ao menos na Holanda. Vai ser um saco, no comeo, a gente descascar batata. Mas depois, quando o navio estiver em pleno oceano, Atlntico ou Pacifico, sei l, quando o navio deixar para trs o Cabo da Boa Esperana e cruzar o Equador, longe de terra vista, a gente manda o navio pras picas! (Sai para o banheiro). CORDLIA (Atnita) Meu Deus, que loucura! LENIDAS (Retornando, com uma granada na mo) Esta granada, eu estava guardando para um dia explodir esta casa. Estava escondida atrs da descarga. Como esta casa agora vai ser transformada em servio de utilidade pblica, ou seja, um bordel, a granada agora vai explodir o navio, no meio do oceano, com a gente dentro. O navio afunda e a gente vai conhecer uma coisa que sempre me pareceu essencial: O FUNDO DO MAR. (Pequena pausa) Mas a gente leva tambm algumas caixas de busca-ps, pra enfiar no cu dos marinheiros. Assim eles vo conhecer a Lua, que tambm me parece essencial. (Pequena pausa) Vamos, que vou dar um jeito do navio sair ainda hoje, se possvel agora mesmo! (Pequena pausa, sada, triunfante) E j que no consegui me realizar como autor de histria em quadrinhos, vou me transformar em personagem de histria em quadrinhos. Ns dois. Serei o Simbad, e voc, o marujo. (Puxa Rico pela mo). Vamos. (Os dois saem de cena). CORDLIA (Abandonada) No era bem assim que eu queria... (Ouve-se um estrondo de exploso de bomba, efeitos de tremores bruscos e luzes lusco-fuscantes) A granada explodiu! Foram pras picas! (Caminha, desolada, at o armrio e retira um pacotinho embrulhado de farmcia. Vai mesa, assenta-se desanimada e desembrulha. um vidro de sonferos.) Sei que estou fazendo uma bobagem... mas no h outra sada... (Levanta-se, pega um copo com gua e engole todos os comprimidos) Diz a bula que o efeito quase imediato. (Pequena pausa) Melhor. Assim nem d tempo de arrepender. (Inspeciona a sala) Aparentemente est tudo em ordem. (Raciocinando) Mas no foi bobagem, o que fiz? Ainda no tentei tudo! Mas tambm,quem manda ser impaciente?! (Pequena pausa) O comeo sempre difcil, Cordlia Brasil, vamos tentar outra vez. Quem foi que disse isso? Minha professora de economia domstica? (Pequena pausa) Minha memria j comea a falhar. Mas ser que a morte vem mesmo? No consigo acreditar. Nem medo eu sinto. S uma solido que no tem tamanho. Ser que d tempo de escrever uma carta explicando tudo? Mas explicar o qu? A quem? J no tenho mais ningum. (Tenta levantar, desiste) Engraado!... Meu corpo t ficando duro... No sinto as minhas pernas. S a cabea, que j comea a pesar. Meu sentimento de aflio, mas, fisicamente, parece que meus nervos me abandonaram. (Aflita) Que que no vo pensar de mim, me encontrando morta sem nem um bilhete?! Merda! (Soa a campainha) Quem ser? (Soa novamente, Cordlia esfora-se para levantar e no consegue) A porta est s encostada, por que no entram? (Silncio) Desistiram. Foram embora. E as minhas foras j me abandonaram. J no tenho mais fora nem para gritar, pedindo socorro. Arrependi, mas agora tarde. Merda! (Pequena pausa) Por que ser que digo tanto merda? Deve ter sido a convivncia com a Solange. Solange s diz merda, por tudo e por nada. (Pausa) T ficando fraca, mas a minha cabea continua viva. Tenho a impresso que desta vez eu vou mesmo. Mas vou em
paz. Pelo menos deixei a marca da minha passagem pela Terra, a minha fotografia... (ltimo suspiro) A minha fotografia... (Luz vai baixando enquanto projetada a imagem de um corpo feminino nu, do pescoo pra baixo). FIM Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh Pea em dois atos Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh estreou em julho de 1968, no Teatro Maria Della Costa, em So Paulo, produo de Sandro Polloni. Elenco: Maria Della Costa (Heloneida), Thelma Reston (Geni Porreta), Yolanda Cardoso (Azevedo) e Jonas Mello (Carcereiro). Cenrios e figurinos de Sarah Feres, direo de Fauzi Arap. Em 7 de maro de 1969 estreou no Teatro Glucio Gil, no Rio de Janeiro, com Clia Biar (Heloneida), Rosita Toms Lopes (Geni), Maria Gladys (Azevedo) e Roberto Bonfim (Carcereiro). Cenrio de Joel de Carvalho, direo de Emlio di Biasi. Personagens Heloneida 36 anos aproximadamente. Mulher fina. Geni 34 anos. Ex-lutadora livre de circo. Carcereiro 25 anos, aproximadamente. Jandira Azevedo Uns 35 anos. Carcereira. Cenrio Uma cela de priso disfarada em confortvel compartimento. Bem no alto, ao centro esquer do, uma pequena janela de grades coberta com uma enorme cortina florida. Duas camas. Duas cadeiras. Ao centro, bem junto parede do fundo, uma privada com uma delicada capa disfarando. Bem no centro, no teto, uma lmpada coberta com uma cpula j bem velha. Enormes flores de papel crepom espalhadas pela cela. Ao abrir o pano, esto em cena Heloneida e Geni. Heloneida est pintando florzinhas numa cpula nova. Geni observa, admirada. Primeiro Ato CENA 1 GENI Voc sabe que at hoje eu no consegui entender... HELONEIDA (Sem tirar os olhos da cpula) O qu? GENI Voc... essa sua pacincia... (Pausa. Heloneida continua pintando) HELONEIDA Eu sempre fui assim... no ginsio a minha matria predileta era Economia Domstica... GENI Eu detestava Economia Domstica... HELONEIDA Voc no tem mesmo tipo de quem gosta de Economia Domstica. GENI Mas eu adorava Geografia... aqueles mapas... viajar... conhecer o mundo... pra falar a verdade, a nica matria que eu gostava era Geografia... um pouco pela Geografia, mesmo... um pouco pela professora... HELONEIDA Engraado, eu tambm gostava de Economia Domstica um pouco por causa da matria, um pouco por causa da professora, Dona Elza. Ela se parecia muito com a Hedy Lamarr. Um dia ela levou a nossa turma pra conhecer a casa dela. Que beleza! O bom gosto dela me fez acreditar mais ainda na matria... GENI Comigo era diferente... HELONEIDA ... tudo nos seus devidos lugares... como assim? GENI Eu gostava da minha professora no porque ela fosse uma boa professora, mas pelo jeito dela. HELONEIDA Como assim? GENI O nome dela era dona Zil. Tinha outra irm, dona Hermnia, que dava aula de Cincias. Da dona Hermnia eu no gostava muito. Primeiro porque eu odiava Cincias e depois, porque dona Hermnia era muito implicante comigo. Mas a dona Zil no. As duas eram solteironas. HELONEIDA (Suspirando) Por hoje chega. GENI O qu?
HELONEIDA Estou com a mo doendo de tanto pintar. GENI Ainda falta muito? HELONEIDA Amanh eu acabo. (Pausa) Que dia hoje? GENI No tenho a menor ideia. HELONEIDA Eu queria ver se terminava esta cpula pra domingo. GENI O Carcereiro tambm um tratante. HELONEIDA Por qu? Coitado. GENI Prometeu trazer um calendrio pra gente e at hoje... HELONEIDA Coitado, Geni. Ele tem outras coisas mais srias pra se preocupar. GENI Ento, por que promete? HELONEIDA Ora, Geni, ele faz tudo pra agradar a gente... (Olhando para a cpula velha no teto) Estou aflita pra trocar a cpula. Aquela est toda suja de mosca GENI Voc tambm... HELONEIDA O qu? GENI ... s pensa em limpeza. Aqui no tem mosca. HELONEIDA Mas j teve... no vero. GENI Em que estao ns estamos? HELONEIDA Sei l, parece primavera, mas deve ser fim de outono. GENI Como voc sabe? HELONEIDA Eu sinto... GENI Eu s sinto o vero... por causa das baratas... HELONEIDA Agora voc, aqui no tem baratas. GENI No vero tem. Elas passeiam pela barriga da gente quando a gente est dormindo. Que nojo! HELONEIDA (Censurando) Geni! GENI Eu tenho vontade de morrer, quando chega o vero. HELONEIDA Por qu? GENI Por causa das baratas, ora. Elas aparecem aos bandos. HELONEIDA Esquece, meu bem. (Alegre de repente) Sabe o que que me d a impresso de que estamos na primavera? (Mostra as flores de papel crepom espalhadas pela cela). Estas flores. No so lindas? GENI No tm perfume. HELONEIDA Ainda bem, a gente morria sufocada pelo cheiro. Se bem que uma vez pensei em jogar talco nelas, mas a, iam parecer empoeiradas. GENI O jardim da casa da minha professora de Geografia era cheio de girassol. O jardineiro da Dona Zil era cego dum olho. Ela tambm tinha um defeito fsico. (Pausa) Era na cabea. Tinha um lugar na cabea dela que no tinha cabelo. Deve ter sido de nascena. (Mostra o lugar) O cabelo dela era todo branco. Ela devia ter uns sessenta anos. O cabelo dela era todo branco e num lugar, bem aqui perto da testa, tinha um pedao de peruca preta toda cacheada devia ser de quando ela era mocinha quando o cabelo dela era preto e usava cachos. HELONEIDA Coitada! GENI Eu adorava ela. Um dia fizeram uma maldade com ela. Um cara da nossa classe enfiou um traque debaixo da saia dela. A coitada usava uns vestidos antigos que iam at o cho. Quando a bombinha explodiu, ela levou um susto to grande que os cachinhos dela caram. Coitada. A classe caiu na gargalhada, menos eu. Morri de pena dela. Fui l e peguei os cachinhos dela no cho e entreguei pra ela. Tinha uma cara to infeliz, mas ficou agradecida. HELONEIDA Coitada! Que gente desumana. GENI Mas espera um pouco. Quando acabou a aula eu chamei o sujeito que tinha feito aquilo e quase acabei com a raa dele. Naquela poca eu j era a rainha da porrada. Todo mundo me respeitava. HELONEIDA Sabe duma coisa, Geni? (Pequena pausa) Eu te adoro. GENI (Sem jeito) Obrigada. HELONEIDA Voc tem um jeito to honesto. Se no fosse a fatalidade... GENI O qu? HELONEIDA A fatalidade... GENI Como assim? HELONEIDA Foi ela quem nos uniu e por causa dela a gente vai passar o resto da vida juntas. (Olha para o cu) Se Deus quiser...
GENI Deus que me livre! Eu ainda tenho esperanas... HELONEIDA De qu? GENI Sei l... de sair... de viajar... HELONEIDA Voc? GENI ... Comear vida nova num outro lugar... HELONEIDA Pobre Geni... s vezes eu tenho a impresso de que sou sua me... ou pelo menos sua irm mais velha... GENI Voc no tem mais esperanas? HELONEIDA ... Apesar da nossa pouca diferena de idade... quantos anos voc tem mesmo? GENI Trinta e quatro. HELONEIDA Sou s dois anos mais velha que voc e no entanto... (Pausa) GENI No entanto o qu? HELONEIDA Sei l, voc me parece to criana... GENI Quer me enganar que voc no espera sair daqui? HELONEIDA Claro que no, meu anjo. Acho engraado como voc esquece... GENI Ah no, se for pra passar o resto da vida presa, eu prefiro a morte. HELONEIDA Voc se esquece que est aqui porque uma assassina... GENI (Ofendidssima) Voc precisava lembrar isso? HELONEIDA Claro, voc se esquece. GENI s vezes eu penso que me enganei a seu respeito. HELONEIDA Por qu? GENI Como voc cruel.. HELONEIDA Eu sou cruel? GENI Voc sabe que eu no gosto de lembrar. HELONEIDA isso que eu quero te ensinar! LEMBRAR. GENI Mas eu no quero! HELONEIDA Eu quero que voc seja feliz como eu. GENI Como voc? HELONEIDA . Como eu. Lembrando. GENI Eu juro que no te entendo. HELONEIDA Vou te dizer uma coisa, Geni. (Pausa) Eu estou muito feliz de estar aqui. Primeiro, porque foi aqui neste retiro... GENI Priso. HELONEIDA Prefiro chamar de retiro. GENI Est vendo? Voc tambm gosta de tapar o sol com a peneira. HELONEIDA Puxa, Geni, voc no entende. GENI Voc fica me lembrando uma coisa que eu quero esquecer... HELONEIDA T bem, deixa pra l. (Pausa) Mas como eu estava te dizendo, eu estou muito feliz de estar aqui. Primeiro, porque foi aqui que eu descobri o verdadeiro sentido da vida e depois, porque o destino, ou a fatalidade, sei l, nos uniu e eu estou imensamente grata de ter conhecido voc e o Carcereiro. No sei o que seria de mim sem vocs dois. (Pausa) Sabe duma coisa? Foi aqui neste retiro (Geni ameaa corrigir Heloneida, mas esta se corrige sozinha)... desculpa, priso (Sorri pra Geni) que eu descobri o verdadeiro significado de trs palavras essenciais: paz, liberdade e amor.. No engraado? (Pausa) No engraado eu precisar ter praticado um crime pra descobrir isso? (Pausa. Geni est calada) Voc no diz nada, Geni? GENI Pra falar a verdade, no sei. HELONEIDA Voc no est feliz por ter me conhecido? GENI (Sem jeito) Claro que estou. HELONEIDA E ento? GENI Sei l... HELONEIDA Voc se lembra de quando nos botaram juntas nesta cela? Isso aqui era horrvel. GENI (Mais animada) A gente no se suportava. HELONEIDA Pudera, voc era to grossa, chutava tudo, tinha uma aparncia horrvel... GENI E voc que no parava de chorar... . HELONEIDA Eu morria de medo de voc. GENI E eu, de voc. HELONEIDA De mim? GENI . Eu tinha um medo danado de voc. HELONEIDA Nossa, por qu? GENI Sei l. Ficava com medo de voc me matar.
HELONEIDA Deus me livre. GENI Um crime a mais, um crime a menos, que diferena faz pra quem est condenado priso perptua mesmo. Era isso que eu pensava e morria de medo. HELONEIDA Depois eu fui me animando. O Carcereiro, a bondade dele ajudou muito e pouco a pouco isso aqui foi se transformando num verdadeiro lar. Voc se lembra do esforo que eu tive pra transformar voc numa moa fina? GENI Eu era to impaciente. HELONEIDA Voc foi maravilhosa. GENI (Sem jeito) Obrigada. (As duas se abraam, comovidas. Pausa). Que vergonha, meu Deus! HELONEIDA Do que, boba? GENI Eu estava me lembrando, eu era to vulgarona. Tambm, tinha acabado de sair dum circo. HELONEIDA Imagina. Voc vinda do circo, e eu da mais alta sociedade. Juntas praticamente at que a morte nos separe. No engraado? GENI No brinca, Heloneida! HELONEIDA Voc transformada numa moa fina, e eu numa espcie de assistente social... HELONEIDA (Dando com os cabelos de Geni desarrumados) Geni, meu anjo, seu cabelo est horroroso! (Pega uma escova e comea a dar um jeito no cabelo de Geni) GENI Que que voc quer que eu faa? HELONEIDA s escovar de vez em quando. GENI Ah, eu no tenho jeito pra essas coisas. HELONEIDA (Censurando) Ora, Geni! GENI E no tenho mesmo. HELONEIDA (Censurando) Geni! GENI Eu nunca liguei pra isso. HELONEIDA Mas preciso ligar. GENI Pra qu? HELONEIDA Ora, Geni. Voc sabe... GENI Me diz, pra qu? HELONEIDA A aparncia faz a pessoa. Ou ser que voc no sabe disso? GENI Claro que sei. HELONEIDA No parece. GENI No sei pra que que eu vou ficar me arrumando. Hoje no meu dia de namorar. HELONEIDA Mas o meu. GENI E da? HELONEIDA Voc pensa que eu no sinto vergonha quando o Carcereiro vem me namorar e v voc toda desleixada? GENI Quando dia dele me namorar eu me cuido. HELONEIDA Mas preciso estar sempre arrumada, com os cabelos penteados, as roupas limpas, as unhas limpas... GENI Deixe pra l, o Carcereiro homem e homem no liga pra essas coisas. HELONEIDA Voc que pensa. GENI Eu conheo bem o Carcereiro. HELONEIDA Voc pensa que conhece. Outro dia ele andou se queixando de voc. GENI De mim? Que que ele falou? HELONEIDA Deixa pra l. (Pausa) GENI No, conta. HELONEIDA Deixa pra l. GENI No, agora conta. HELONEIDA Ele gosta muito de voc, de ns duas. GENI Isso t na cara. Mas que foi que ele andou falando? HELONEIDA O Carcereiro muito delicado. GENI Disso eu sei, mas desembucha logo, que que ele falou de mim? HELONEIDA Se voc soubesse a sorte que a gente tem. J pensou essa priso sem ele? GENI No cozinha o galo, conta logo. HELONEIDA A hora que ele quiser ele pode se mandar. Ele s est aqui pra variar. Ele uma das melhores famlias do Rio Grande do Sul.
GENI (Aborrecida) Ai Meu Deus! Conta. HELONEIDA Rapaz idealista. Rico do jeito que ele , podia estar gozando a vida e a juventude. Mas ele no. Primeiro foi se meter com a poltica. Num pas como este, tentar mudar as coisas. Melhorar. Como se adiantasse. A Terra inteira est beira da destruio. Ele achava que podia melhorar o mundo. Coitado. A gente v, pela cara dele, que ele sofre pela humanidade inteira. Outro dia, ali na cama comigo, ele chorou. Eu me senti como se estivesse sendo possuda por um santo. (Pausa) Ele j te falou de So Francisco de Assis? GENI (Impaciente) J. HELONEIDA Ele segue o exemplo de So Francisco de Assis. GENI Voc no est inventando, Heloneida? HELONEIDA Ora, Geni, imagina. (Pausa) Ele acha que a nica soluo para o problema da misria na Amrica Latina a revoluo. GENI Bidu. HELONEIDA Mas no a revoluo que nega o princpio religioso da Amrica Latina, mas uma revoluo partindo do cristianismo. Eu no compreendo nada disso, mas meu corao compreende tudo. GENI Essa histria ele j me contou, mas agora Heloneida (Com raiva), eu queria saber o que ele andou falando de mim? (Pausa. Heloneida no responde) Anda, diz. HELONEIDA No foi nada no. GENI No cozinha o galo, diz logo (Pausa). HELONEIDA Ele disse que estava preocupado com voc. GENI Comigo, por qu? HELONEIDA Disse que voc anda muito relaxada ultimamente. GENI Ele disse isso? HELONEIDA Disse. GENI Ordinrio. HELONEIDA Coitado. Ele pensa que voc tem algum problema. GENI Eu manjo esse carcereiro. HELONEIDA No fala assim, Geni. GENI Por que que ele no fala isso pra mim? HELONEIDA Porque ele educado. GENI Ah, que nada. Esse negcio de educao j me deu na pacincia. Fico possessa quando falam de mim. Esqueo at quem eu sou. (Barulho de chave abrindo a cela. Heloneida corre e se ajeita rapidamente, sentada na cadeira, numa pose faceira, bem feminina. Geni continua de cara amarrada. O Carcereiro entra trazendo numa bandeja dois pratos de sopa e dois pedaos de po seco. No d uma palavra. Deixa a comida e sai) GENI (Desconfiada) Te juro que eu no entendo esse cara. (Pausa) HELONEIDA (Sonhadora) No uma gracinha? GENI Na hora de namorar parece um papagaio. Quando vem trazer a comida nem olha pra gente. Eu, hein?! HELONEIDA Ele no brinca em servio GENI Custava perguntar como que a gente vai? HELONEIDA Pra qu? Ele muito prtico. S fala quando preciso. Em boca fechada no entra mosquito. GENI Isso na minha terra falta de educao. HELONEIDA Esquece, meu bem. Voc ainda no se acostumou? GENI Eu no. Cada vez que ele entra aqui e no fala com a gente, eu fico pra morrer. HELONEIDA Depois ele volta, e a vai perguntar como que foi o seu dia e tudo. GENI No me interessa. HELONEIDA Ele gosta tanto da gente. o jeito dele. (As duas comeam a tomar a sopa. Heloneida toma a sopa com elegncia. Geni gulosamente. De vez em quando assobia por entre os dentes para expelir os restos) GENI Se ele gostasse mesmo, ele dava era um jeito de melhorar a nossa comida. Que nojo! HELONEIDA Ele no pode fazer nada. (Pausa) Preciso fazer regime. GENI Porque no quer. HELONEIDA Ahn?
GENI No faz nada pra melhorar a nossa comida porque no quer. HELONEIDA Ele faz o que pode. Voc se esqueceu da semana passada? GENI O qu? HELONEIDA Viu? GENI O que aconteceu a semana passada? HELONEIDA Ele foi to gentil... Trouxe um estoque de sonrisal pra gente. GENI Grande coisa! HELONEIDA Puxa, Geni, como voc malagradecida. GENI A priso recebe caixotes de sonrisal. Se no do pra gente, estraga mesmo. propaganda. HELONEIDA Seu mau humor me deixa desanimada. (Bota o prato de lado) Estou satisfeita. (Deixa um pouco de sopa no prato) nessas horas que eu sinto como Deus grande. GENI No falei, olha! (Segura um fio de cabelo na mo) Olha um cabelo. Deus me livre, que comida nojenta! (Cospe para o lado). HELONEIDA Em qualquer restaurante, mesmo no mais chique, tem sempre um cabelo na comida. GENI Duvido. Se eu tivesse guardado todos os cabelos que aparecem na comida daqui, podia abrir uma fbrica de perucas. HELONEIDA uma boa ideia. S assim voc no anda mais despenteada. GENI Voc muito engraada. HELONEIDA (Levantando-se e carregando o prato de alumnio dela e o de Geni) Deixa eu dar uma arrumadinha nessa casa que daqui a pouco o Carcereiro est de volta. (Quando vai levando os pratos para um canto um deles cai. Heloneida faz cara de dio, de quem ia dizer um palavro, mas recua em tempo) GENI (Acudindo Heloneida em tempo, diz o palavro por ela) Merda! HELONEIDA (Gratssima) Obrigada, Geni. No sei o que seria de mim sem voc nessas horas. (Pega um pano e limpa o cho. Pausa) Ah, descobri por que voc est de mau humor. (Observa Geni com malcia) GENI Estou muito cheia. HELONEIDA (Maliciosa) Eu te conheo, Geni. GENI (Aborrecida, mas gostando da brincadeira) Nem eu me conheo. HELONEIDA Quer que eu diga por que voc est de ovo virado? GENI Fala. HELONEIDA Posso dizer? GENI Diz logo. HELONEIDA Voc no vai ficar chateada? GENI No faz doce, diz logo. HELONEIDA T bem. Voc est assim... (Pausa) porque hoje... (Pausa. Faceira) meu dia de namorar o Carcereiro. GENI (Ri falsamente) Eu?! HELONEIDA (Maliciosa) Sei, Geni. GENI Imagina! HELONEIDA Se eu no te conhecesse... GENI Voc acha que eu vou ficar de mau humor por isso? Se eu estivesse atrasada... HELONEIDA Mas se voc quiser... eu posso abrir mo hoje. GENI Deixa de ser boba. Ainda anteontem eu namorei o Carcereiro... Estou me sentindo em dia. HELONEIDA E o seu temperamento? GENI (Suspirando) Ah, como voc insiste. O Carcereiro no me faz a menor falta. HELONEIDA Porque ele est perto. Voc no sabe dar valor quilo que a gente tem. GENI Eu sou uma mulher muito vivida... HELONEIDA Sei! GENI Homem no novidade pra mim. HELONEIDA Voc no sabe a colher de ch que deram pra gente. . GENI O Carcereiro? HELONEIDA Nas outras prises femininas em vez de carcereiro, tem carcereira. GENI Que diferena faz? HELONEIDA Voc sabe. (O Carcereiro vem chegando. Barulho de chaves abrindo a cela. Heloneida se ajeita rapidamente. Geni continua impassvel. Ele entra feliz e galante). CARCEREIRO Pronto. J estou de volta. (Cumprimenta Geni, beijando-lhe a mo) No estou gostando nada da sua cara hoje. Que foi que aconteceu? GENI No, nada. CARCEREIRO No acredito. GENI No, nada.
CARCEREIRO Voc vai ter que me contar o que foi que te aconteceu... (Pausa) E ento? GENI Ah Carcereiro, deixa pra l. CARCEREIRO Anda menina, fala. GENI Ah Carcereiro, me esquece... CARCEREIRO (Olhando pra Heloneida) Mal educada! HELONEIDA Sabe por que que ela est assim? GENI Heloneida! HELONEIDA Ela est com cimes. GENI (Para Heloneida) Deixa de ser engraadinha. CARCEREIRO De quem? HELONEIDA Da gente... (Para Geni) Mas eu posso abrir mo... GENI Imagina, que pretenso! Quero ser a ltima... HELONEIDA Vai querer me enganar? Se eu no te conhecesse... GENI Heloneida, filha da me! CARCEREIRO (Rindo) Ah no, Geni. Voc me desculpa, mas hoje o dia da Heloneida. GENI Imagina, Carcereiro, quem voc pensa que ? HELONEIDA Ela ficou emburrada o dia inteiro. GENI , Heloneida, voc quer calar a boca? HELONEIDA Fala a verdade, Geni. GENI No estou achando graa nenhuma nessa brincadeira. CARCEREIRO Se for pra vocs duas ficarem brigando, eu vou embora. (As duas param na hora. Pausa. O Carcereiro tira um mao de cigarros do bolso. Bota trs cigarros na boca, acende-os e passa um pra Geni, outro pra Heloneida e fica com um. Os trs ficam em silncio um instante, fumando abstrados). Mais um dia na vida... GENI Quando eu penso que numa hora dessas eu podia estar viajando pelo mundo... HELONEIDA (Para o Carcereiro) No ginsio a matria predileta dela era Geografia. GENI Era mesmo, e da? CARCEREIRO Voc no se sente bem aqui, Geni? GENI (Irritada) Num verdadeiro paraso. CARCEREIRO (Tirando a camisa) Vocs me do licena, depois dum dia de trabalho eu gosto de ficar vontade. (Geni olha o Carcereiro com cara amargurada) HELONEIDA (Para o Carcereiro) Que que voc fez hoje? CARCEREIRO Praticamente quase nada. Pensei muito. Ouvi as notcias pelo rdio... HELONEIDA Que que h de novo? CARCEREIRO As mesmas guerras, novas guerras... GENI Novas guerras? CARCEREIRO Porque esse espanto? Cada dia surge uma nova guerra... pra se juntar com as outras... GENI Deus me livre! CARCEREIRO s vezes eu penso que estou perdendo meu tempo aqui nesta ilha... HELONEIDA (Censurando com carinho) Ah Carcereiro... CARCEREIRO Desculpa, se no fosse por vocs... (Heloneida sorri, sensibilizada) Esta priso est esquecida... ningum pratica nenhum crime digno de ser mandado pra c. S tem vocs duas aqui. GENI Que solido! HELONEIDA (A Geni) Voc queria mais gente aqui? GENI No isso. que d um certo conforto saber que tem mais prisioneiras perto da gente. Com s ns duas presas, fico com a impresso que somos as nicas condenadas... fico doida pra fugir. CARCEREIRO (Brincando) Como? GENI Sei l, nadando, voando, andando sobre as ondas. HELONEIDA Que gracinha! GENI O qu? HELONEIDA (Para o Carcereiro) Ela no um amor? Ningum me tira da cabea que ela est aqui por engano. CARCEREIRO Como assim?
HELONEIDA Eu no consigo pr na cabea que ela uma assassina. GENI (Furiosa) Heloneida, sua peste! Eu j te disse mil... (Correndo atrs de Heloneida, que se esconde atrs do Carcereiro) HELONEIDA Foi sem querer, Geni. GENI Sem querer? Eu te ensino... CARCEREIRO Parem com isso, se no... HELONEIDA (Para Geni) Foi sem querer, voc acha... GENI Na frente dele? Foi sem querer, na frente dele? HELONEIDA Eu juro que no falo mais. Pronto. CARCEREIRO Vamos parar com isso j. (As duas param de brigar. Pausa) Como se no bastasse o trabalho que tive durante o dia... Que foi que deu em vocs? Gostaria que vocs tivessem ouvido as notcias que eu ouvi pelo rdio... se vocs soubessem o que anda acontecendo pelo mundo... a vocs iam dar valor quilo que tm... e no preciso ir longe no, aqui perto mesmo, em toda a Amrica pra cima e pra baixo... mesmo na Amrica Central, a Costa Rica que foi sempre um pas calmo, declarou guerra Nicargua... e eu aqui por causa de vocs, e o mundo explodindo l fora. bom que vocs saibam que isso me deixa muito deprimido. Eu devia era estar l, dando a minha mo. Se acontecer mais uma dessas, eu no respondo por mim. GENI Ih, Carcereiro, voc tambm faz um drama... HELONEIDA (Para Geni) Deixa de ser ingrata. GENI Voc tambm... (Para o Carcereiro) Pois olha, se eu pudesse me mandar daqui j estava longe uma hora dessas. CARCEREIRO Como bobinha... o mundo mudou muito, minha filha, depois que voc veio pra c. GENI Vai ver que foi porque eu sa dele. CARCEREIRO No digo que no. GENI Olha, pra seu governo, eu no acredito nessa de guerra. Eu sei que guerra guerra, mas s entra nela quem quer... HELONEIDA Deixa de ser boba, tambm no assim, Geni. GENI Vai querer mudar a minha filosofia de vida? Imagina! Eu acho que no tem o menor sentido a gente viver pra ficar sentindo o problema da humanidade inteira. No um absurdo, na nossa poca, to esclarecida, ainda ficar tendo essas guerras?... Ah no, quero ser a ltima. No que depender de mim, eu estou aqui mais pra distribuir bondade e amor a todo mundo... CARCEREIRO (Brincando) Como na poca do circo? GENI No circo eu era lutadora, vivia da porrada, estava ganhando a minha vida honestamente, e tem mais, quando acabava a luta eu sempre levantava a outra. Nesse ponto eu tenho a conscincia tranquila. (Irritada) E quer saber duma coisa? Quero que esse pessoal que inventou a guerra falea. HELONEIDA Voc uma alienada, Geni! GENI E sou mesmo. Quero que morram todos esses indecentes... HELONEIDA Eu nem sei o que pensar... quando ouo essas notcias terrveis sobre essas guerras espalhadas pelo mundo inteiro, dou Graas a Deus de estar aqui, presa. Quando ouo sobre essa pobre gente inocente morrendo aos milha res, eu no vejo o menor sentido em coisas assim como, por exemplo, o teatro. GENI O teatro? HELONEIDA . S pra citar uma dessas artes que andam espalhadas por a. No vejo o menor sentido na literatura, no cinema, na pintura, na msica... Bem, pra msica eu ainda fao uma certa concesso, mas mesmo na arquitetura ou at mesmo na televiso... Isso pra no falar na escultura. GENI Escultura?! HELONEIDA Odeio a escultura. GENI Por qu? HELONEIDA (Envergonhada) Tenho uma passagem trgica ligada escultura, minha filha. GENI Conta. HELONEIDA Ah no, esse segredo eu levo pro tmulo. GENI (Para o Carcereiro) s porque voc est aqui. Depois ela vai me contar... e com prazer. CARCEREIRO mesmo, Heloneida? HELONEIDA (Abstrada) Eu era virgem naquela poca...
GENI Ento faz muito tempo? HELONEIDA Voc nem pode imaginar quanto. GENI Desculpa... HELONEIDA Um dia, na falta do que fazer, eu resolvi passar uma tarde no museu. Queria ficar sozinha e escolhi um museu. Vocs sabem que museu museu e que mesmo esses de arte moderna esto sempre vazios e aquele, que nem era de arte moderna, era um museu mesmo. Entrei numa sala e encontrei a esttua dum homem nu, no tamanho normal, tudo era no tamanho normal. Fiquei fora de mim, eu estava sozinha e aquela esttua... bonita... me deixou cega. Eu, nunca tinha tido um namorado, naquele tempo eu no era o que sou hoje, eu era muito feia, cheia de espinhas e muito jogada fora. Pra encurtar a histria, tirei toda a minha roupa e... nem tenho coragem de falar dessas coisas Que vergonha, Meu Deus, quando eu me lembro... CARCEREIRO E da? HELONEIDA De repente eu dei de cara com um homem horroroso me vendo fazer aquilo... e ele mesmo, que nojo, fazendo uma coisa nojenta... GENI Eu sei o que ... que sujeito cretino... e o que foi que voc fez? HELONEIDA Espera s... Mas naquele tempo eu era muito medrosa e por isso andava sempre armada... tinha um revlver na liga. CARCEREIRO E mandou fogo no cara? HELONEIDA No tive outra sada. GENI E no te prenderam? HELONEIDA Que que estou fazendo aqui? GENI Mas voc disse que foi h tanto tempo HELONEIDA (Impaciente) E da? GENI Mas voc est presa h to pouco tempo. HELONEIDA Como que voc sabe? GENI Vai querer me confundir? Ns entramos juntas aqui. HELONEIDA E da, voc marcou no calendrio? A gente tem por acaso um calendrio? Tempo uma coisa que passa mesmo, s vezes passa mais depressa, s vezes mais devagar. Mas que passa, passa. GENI Mas por causa desse crime que voc est aqui? HELONEIDA Por que no havia de ser? GENI Essa histria me parece muito mal contada. HELONEIDA Eu tenho cara de assassina pro-fissional? GENI Carcereiro, ser que voc podia dar uma olhada no livro de registro pra ver quando foi que a gente entrou aqui? CARCEREIRO Impossvel. GENI Por qu? CARCEREIRO Um dia, faz tempo j, na falta do que fazer, eu peguei o livro e fui ler numa rocha, pra ver se tinha algum nome famoso nele. Mas a o livro caiu ngua e sumiu. GENI Mas que azar! CARCEREIRO Desde ento nunca mais houve outro livro, mas tambm... GENI Mas eu e a Heloneida, a gente estava registrada nele, no estava? CARCEREIRO No digo que sim... GENI E ento? CARCEREIRO Mas tambm no digo que no... GENI Que que voc diz ento? CARCEREIRO Sei l, me parece que depois de vocs duas nunca chegou outra assassina aqui. HELONEIDA Verdade? GENI Carcereiro, voc lembra que tinha prometido trazer um calendrio pra gente? CARCEREIRO ... o rapaz que traz as encomendas do continente prometeu trazer, mas o coitado nunca mais apareceu... s vezes eu tenho a impresso de estar no meio de um pesadelo... estamos s ns trs aqui na ilha... me parece. HELONEIDA Misericrdia! GENI Eu no fico mais aqui. HELONEIDA Fica tranquila meu bem, ns estamos aqui com voc.
GENI No, aqui eu no fico. HELONEIDA Geni! GENI (Quase histrica) Eu quero ir embora, sabe Heloneida, eu estou ficando louca aqui nesta priso, eu quero ir embora, eu ainda sou moa, Heloneida. Eu fui de circo, Heloneida. Eu nunca parei em nenhum lugar. Pra mim, chegada sempre foi vspera de partida... eu quero ir embora (Chorando)... eu quero ir embora... HELONEIDA Calma, meu bem, no fica assim. (Acariciando Geni, que a repele) GENI Me larga, no ponha a mo em mim, falsa! HELONEIDA (Sem ligar continua acariciando Geni. Diz para o Carcereiro) No parece uma criana? GENI J disse pra tirar a mo de mim (Repele bruscamente Heloneida, que d um tapa em Geni e depois se arrepende). Voc me bateu, voc gosta de me bater, voc uma depravada, pensa que eu no sei? Meu Deus, o que que eu estou fazendo aqui? (Berrando) Eu quero ir embora. CARCEREIRO Vem Geni, vem dormir. (Geni est mais calma) Vem. (Conduz Geni para sua cama. Geni passivamente vai tirando a roupa e coloca uma camisola de dormir. O carcereiro espera. Heloneida est sentada, abstrada.) CARCEREIRO (Para Geni) Deita, deita. (Geni deita. Est calma e chora baixinho) GENI (Chorando baixinho) Eu quero ir embora... CARCEREIRO (Para Geni) Dorme. Daqui a pouco voc vai sonhar e vai estar longe daqui. Dorme. Muito longe daqui... (Geni geme um pouco baixinho, depois silencia. O Carcereiro senta ao lado de Heloneida) HELONEIDA Ela est ficando cada dia pior. Coitada. Se no fssemos ns dois, ela j teria se matado. Ela sempre foi muito aventureira, muito livre. CARCEREIRO Eu custo a acreditar que ela tenha praticado um crime. HELONEIDA Foi um crime de amor. CARCEREIRO Custo a acreditar que voc tambm... HELONEIDA Por favor... CARCEREIRO Desculpe. HELONEIDA Deixa pra l. Vem c. (Os dois vo at a cama de Geni. Pausa. Heloneida v que Geni est dormindo e a cobre) No uma gracinha? (Silncio) Vem (Os dois comeam a tirar a roupa. Luz baixa devagar) CENA 2 (Manh do dia seguinte. Heloneida e Geni em cena, fazendo flores de papel crepom. H flores espalhadas pela cela) HELONEIDA Hoje voc est to feliz! Ontem voc no me parecia tanto. GENI Mas ontem era domingo. HELONEIDA Como que voc sabe que ontem era domingo? GENI Muito simples: ontem eu estava triste. HELONEIDA E da? GENI Eu sempre fico triste nos domingos. HELONEIDA Essa explicao no me parece lgica. GENI Por qu? HELONEIDA Ainda ontem eu me lembro que eu perguntei a voc que dia era e que voc no soube me responder... GENI que na hora que voc me perguntou eu devia estar feliz, por isso... HELONEIDA No me venha com essa... GENI Mas claro. Na hora que eu fiquei triste, o dia passou a ser domingo, com toda certeza. HELONEIDA No foi o domingo que fez voc ficar triste... GENI O que que foi ento? HELONEIDA Foi outra coisa. GENI O que, por exemplo? HELONEIDA Eu que vou saber? GENI isso que d a gente no ter um calendrio... acabamos sempre brigando. HELONEIDA Agora voc vai querer pr a culpa em mim? GENI No estou dizendo isso. O Carcereiro outro dia... HELONEIDA Esquece. GENI T bem. Foi voc quem comeou. (Pausa) Uma coisa que eu no entendo so essas encomendas de flores de papel. HELONEIDA que o excesso de mortes faz com que haja um dficit na produo de
flores verdadeiras. Estamos numa poca da indstria plstica... GENI Se a gente est na poca da indstria plstica, por que que esse pessoal fica encomendando flores de papel? HELONEIDA que as flores de papel so geralmente feitas mo e isso lembra as artes mais antigas, sei l... e esse pessoal meio romntico. GENI Frescura. HELONEIDA No fala assim. GENI frescura mesmo. HELONEIDA Deixa de ser agressiva, Geni. Se no fossem essas encomendas, como que a gente ia ter dinheiro pra se vestir e o resto? GENI Vai querer me dizer que eles no exploram a gente? HELONEIDA No quero nem saber. S sei que com essas encomendas a gente ganha um dinheirinho e faz esta cela parecer um verdadeiro lar. GENI Isso verdade. A nica coisa que faz essa priso no parecer um verdadeiro lar que a gente no tem faca, gilete, arma de fogo e o resto. HELONEIDA Isso me d uma segurana... por isso que eu me sinto bem aqui. (Entra o Carcereiro) CARCEREIRO Bom-dia, meninas! GENI Que que voc vem fazer to cedo? CARCEREIRO Est um lindo dia l fora... o mar est calmo e no tem uma nuvem no cu... HELONEIDA Voc veio buscar a gente pra passear? CARCEREIRO No, nada disso. Eu vim buscar as flores. O rapaz do continente est a. GENI Traz ele aqui pra gente ver. CARCEREIRO Bem que eu gostaria... GENI Ento por que no traz? Sempre que ele vem aqui, diz que est com pressa. HELONEIDA Coitado! Vai ver que ele tem medo da ilha... da gente. CARCEREIRO O barco dele est cheio de gente, gente moa... alegre... GENI Ai, como eu gostaria de tomar um pouco de sol... faz tanto tempo... (O Carcereiro pega as flores). HELONEIDA Eu no diria o mesmo. GENI O qu? HELONEIDA Na minha idade... seria uma imprudncia... GENI O qu? HELONEIDA (Com cara de vtima) Me expor ao sol.. GENI Imagina, Heloneida, que bobagem! Por qu? HELONEIDA Ora, minha filha, depois dos trinta, no digo dos trinta, mas dos trinta e cinco, qualquer mulher com um pouquinho de senso de autocrtica no vai mais praia. GENI Que besteira. Eu sei o que voc est querendo... HELONEIDA O qu? GENI Voc est querendo que eu diga o contrrio... que voc est linda... CARCEREIRO (Saindo com as flores) Tchau, bonecas. Logo mais eu estou aqui. HELONEIDA Tchau! GENI D um beijo no bonito por mim. (Pausa) Que tristeza! (Pausa) Isso aqui ficou to triste sem as flores. HELONEIDA ... na mesma hora eu fico com a impresso de que estamos no outono... (Pausa) mas no tem importncia... logo a gente faz outras... Sabe, Geni, na poca que eu frequentava a praia, quando eu era mocinha, eu tinha um passatempo to esquisito... (Abre o vestido e mostra o umbigo para Geni) Olha! GENI Nossa! Que coisa indecente! HELONEIDA Pois . Eu tinha um orgulho des-se meu umbigo enorme. Eu tinha um peixinho pequenininho de estimao. Eu ia para a praia e levava ele comigo. Me deitava, punha gua no umbigo e o peixinho dentro. Ele ficava nadando e fazia uma ccega gostosa... Ah, que saudade! Um dia, o sol estava quente demais; eu dormi, a gua secou e o peixinho morreu. Quase morri de tristeza. A eu nunca mais fui praia. GENI Eu nem sei o que pensar. HELONEIDA Hein? GENI Sei l, eu no tenho opinio formada sobre nada, e isso que te aconteceu, realmente eu no sei o que pensar.
HELONEIDA No fica preocupada. Esquece. (Heloneida apanha um vestido e comea a costurar a mo) Ser que ainda est na moda a manga japonesa? GENI Que diferena faz? HELONEIDA Se voc soubesse... eu sempre fui uma escrava da moda, minha filha (Espeta o dedo e geme.) Ui! GENI (Diz por Heloneida) Merda! HELONEIDA Obrigada, meu anjo, espetei o dedo (chupa o sangue do dedo). Eu adoro costurar, mas se tem coisa que eu detesto chulear. GENI Por qu? HELONEIDA Sei l... GENI No o mais simples? HELONEIDA Deve ser por isso. GENI Ai meu Deus, como voc complicada. HELONEIDA Que que eu posso fazer?, a minha natureza. GENI Juro que eu no te entendo. Se eu costurasse... e olha que eu detesto costurar... no sei nem mesmo pregar um boto. Mas se eu costurasse, acho que eu gostaria mesmo era de chulear. HELONEIDA Como assim? GENI Porque... (Hesita) sei l... vai ver que porque o mais simples e eu no tenho muita pacincia... HELONEIDA No fundo voc tambm complicada... GENI Eu me lembro... quando eu era pequena... isso antes de entrar para o circo... eu adorava ajudar minha me na limpeza da casa... HELONEIDA Que engraado... no consigo imaginar voc morando numa casa... GENI Por qu? HELONEIDA S consigo imaginar voc num circo... sempre se mudando dum lugar para o outro... GENI Mas eu j tive a minha casa... faz tanto tempo... Eu me lembro. Minha me... ela era to engraada... ela costumava fazer limpeza na casa s sextasfeiras... eu acordava bem cedo e eu era to preguiosa naquele tempo... (Heloneida ri) S pra ajudar a minha me... e sabe por qu? HELONEIDA Por que, Geni? GENI Porque eu adorava mudar as coisas do lugar... eu adorava arrastar aqueles mveis antigos... pesados... puro jacarand... tinha um rgo l em casa... a nossa famlia era protestante... se eu no me engano... Adventista ou metodista, sei l... Tinha at um hino que eu gostava muito (Geni canta Rocha Eterna). Rocha Eterna, foi na cruz / Que morreste tu, Jesus. / Vem de ti um sangue tal / Que me limpa todo mal. / Rocha Eterna, que prazer / Eu terei em ti morrer. HELONEIDA Que bonito, Geni. GENI Eu adorava esse hino... de vez em quando, quando eu me lembro dessa cano... uma das poucas que ficaram na minha memria... HELONEIDA Engraado, eu tambm tenho um hino... minha famlia era catlica... no praticante... isso sempre me deixou frustrada... eu tinha uma amiga... a Dulcineia... a famlia dela era catlica praticante... eu me lembro... eu tinha uma inveja dela... ela detestava a igreja... ir missa... mas a me dela obrigava ela ir missa, ao catecismo... a minha no. (Pausa) no engraado esse nome... Dulcineia? GENI No acho nada engraado. HELONEIDA Mas d licena de que eu ache? Hoje ele parece to estranho... chego a ficar corada... GENI Eu tambm tinha uma amiga com um nome mais ou menos assim, a Sirineia... HELONEIDA Nossa! (Pausa) Naquela poca me parecia to normal... Dulcineia... (Comea a cantar) O meu corao s de Jesus./ A minha alegria a Santa Cruz... No um absurdo? GENI O qu? HELONEIDA Esse verso: A minha alegria a santa cruz... Estranho como eu me lembro... GENI Depois apareceu um circo l na minha cidade. Eu tinha dezesseis anos... era to diferente das outras meninas... vivia na companhia dos rapazes... jogava futebol e brigava muito. Eu era a rainha da porrada. Adorava brigar... qualquer discusso me esquentava e eu mandava o brao. As outras meninas fugiam da minha companhia... acho que as mes
proibiam... Esparramaram que eu no era mais moa e que ia ter um fim bem triste... eu sofria um pouco com isso, mas deixava pra l. Quando eu no tinha nada pra fazer, descia a rua principal com a cabea bem levantada... e quando eu ouvia os comentrios, a que eu requebrava mesmo. Eu gostava mesmo era da companhia dos rapazes. Com eles eu nunca tive problema. Tinha at um namorado... bonito... parecia com o Tyrone Power... foi com ele que eu mandei a minha primeira brasa... num canavial... que beleza... s vezes... quando eu paro pra pensar eu sinto que vale a pena viver... pra recordar... mas eu batia nele tambm... as outras meninas eram taradas por ele... mas ele, s gostava de mim... Nessas alturas a Dulcineia... HELONEIDA Dulcineia? GENI Sirineia, desculpa. Nessas alturas a Sirineia j era a maior biscate do lugar e um dia o meu namorado me traiu com ela... eu quase matei os dois de tanta porrada... foi nessa poca que apareceu o circo... um circo bonito... tinha at trs picadeiros. Minha me me levou pra ver O brio... eu gostei tanto... (Saudosa) O que eu chorei naquela noite! Mas o que me deixou vidrada foi o palhao... o nome dele era Piolho... meio anozinho... uma cara triste... ele brincou comigo... A eu comecei a frequentar o circo... fiz amizade com os artistas... eles gostavam de mim... (Pausa) HELONEIDA Sinto um pouco de vergonha pelo que eu vou dizer... mas que beleza deve ter sido a sua vida, Geni. GENI Um dia o circo foi embora... e eu junto. Logo descobriram que eu era de briga e fui pra luta livre. HELONEIDA Ainda bem. GENI Voc nem pode imaginar o sucesso. Em cada cidade que a gente chegava o alto-falante do circo anunciava: Hoje luta sensacional entre Geni Porreta..., era esse o meu nome artstico... Ficava assim de gente. Eu sempre vencia. Eu fazia mais sucesso que O brio... HELONEIDA Se voc soubesse como eu morro de inveja de voc. GENI Eu estava gamada pelo palhao o Piolho , e ele por mim, no comeo. Tudo ia bem no comeo. Como eu era feliz no amor, eu brigava com prazer. E com que classe. No fim de cada briga eu levantava a outra e era aplaudidssima pela plateia. Eu, quando me sinto feliz, sinto vontade de dar porrada em todo mundo... HELONEIDA (Censurando simpaticamente) Geni! GENI Era uma vida muito dura, mas eu gostava. Tudo ia bem at que apareceu uma nova artista... HELONEIDA Isso tinha que acontecer... que azar! GENI Uma loirona desbotada que tinha vindo do teatro... HELONEIDA Qual era o nome dela? GENI Pra que que voc quer saber? HELONEIDA No, pode ser at que eu conhea... conheo praticamente todo mundo do teatro... GENI Mas aquela voc no deve conhecer... faz muito tempo, Heloneida... at j esqueci o nome dela... HELONEIDA Quem seria?... ah, esquece. Continua. GENI Ela chegou toda metida, usando uns bos e umas plumas feitos de pena de galinha pintada... aquilo era uma droga, mas fazia um efeito... tudo quanto era homem do circo ficava vidrado nela. Mas como quem fazia sucesso mesmo com o pblico era eu, a mulher tratou logo de me destruir me tirando o meu palhao. O besta ficou vidrado por ela e me deixou na mo. Eu, como no podia deixar de acontecer, andei dando umas porradas nos dois, mas foi at pior. Todo mundo ficou contra mim e eu, chateada da vida, comecei a beber. Perdi o gosto de lutar e comecei a perder... HELONEIDA E o que que voc fez? GENI Voc nem pode imaginar. (Pausa) HELONEIDA Conta. GENI to difcil... HELONEIDA Eu posso imaginar. GENI Quando eu me lembro do que eu fiz... (Deprimida) Onde eu estava com a
cabea, Santo Deus! HELONEIDA No fica assim. Se no quiser con-tar no precisa. Eu compreendo. GENI No. Agora que eu comecei, eu acabo. Custe o que custar. HELONEIDA melhor. Assim voc pelo menos desabafa. GENI Voc no vai me perdoar nunca. (Pausa) Azar! (mais animada) Eu estava puta da vida mesmo. Um dia eu enchi a cara e esperei todo o pessoal do circo dormir, e a peguei gasolina... HELONEIDA (Horrorizada) Geni! GENI isso mesmo. Peguei gasolina e joguei em volta do circo e taquei fogo... enquanto o circo pegava fogo eu me apresentei no distrito... nesse ponto eu fui muito honesta. HELONEIDA Francamente, eu no sei o que pensar. GENI E eu sei? HELONEIDA No sobrou ningum? GENI S eu pra contar a histria. HELONEIDA E depois? GENI Sei l, s sei que estou aqui. (Pausa) HELONEIDA s vezes esta priso me parece uma espcie de... purgatrio. GENI No entendo. HELONEIDA A gente est aqui pra sofrer. um lugar tranquilo pra gente pensar e sofrer. Como um purgatrio. GENI Cada vez entendo menos. HELONEIDA Sofrer por aquilo que ns fizemos l fora... e compreender... GENI Vai querer me enganar que voc sofre? HELONEIDA Bom, sofrer mesmo eu no sofro. Mas tambm no quero sair daqui. GENI Pra falar a verdade, eu no me arrependo nada do que eu fiz. Aquele pessoal do circo bem que merecia o fim que teve... quem mandou me sacanear. Durante toda a minha vida eu fui muito sacaneada... No sei o que que eu estou fazendo aqui na Terra. HELONEIDA Hein? GENI , no sei mesmo. HELONEIDA Eu tambm no sei. Mas isso no interessa. O que importa que a gente tem uma misso a cumprir. Acho mesmo que cada pessoa tem uma misso especfica a cumprir aqui na Terra. Umas mais importantes, outras menos importantes. Cada pessoa tem por obrigao dar a sua contribuio para a melhoria do mundo e da condio humana. GENI Qual a nossa contribuio? HELONEIDA Fazer flores de papel. GENI Isso novidade pra mim. Quer dizer que todo mundo artista? HELONEIDA De certa forma. (Geni observa Heloneida curiosamente) GENI Sabe Heloneida, s vezes voc me parece uma santa. HELONEIDA (Acariciando Geni) Obrigada meu anjo, eu no sou nada disso. Eu tambm pratiquei vrios crimes. Eu tambm no sou nenhuma santa... GENI Vrios crimes? HELONEIDA (Elegaca) Muitos... (Pausa) GENI E nunca te pegaram? HELONEIDA Ora Geni, o que que estou fazendo aqui? GENI Mas voc disse vrios? HELONEIDA Ora Geni, no exija de mim uma coerncia que eu no tenho. Estou presa por causa de um dos meus crimes. Por qual, no me pergunte... perdi a memria. GENI Que coisa mais absurda. HELONEIDA Mas eu me lembro de um... (Geni sente que Heloneida vai contar e se ajeita como quem vai ouvir uma histria interessante) Voc quer ouvir? GENI (Fingindo-se no muito interessada) Se voc quer contar... HELONEIDA (Toma uma atitude afetada, superior, como quem vai fazer um discurso) Foi no carnaval. (Fazendo doce) Eu no estou com muita vontade de contar essa histria... fico muito abatida sempre que me lembro dela... mas enfim... j que voc insiste... (Suspira) vamos l... foi no carnaval.. Eu era muito rica naquela poca... a minha casa vivia assim de gente. (Com nfase) Uma que no saa de l era a Aracy de Almeida. Tambm no faltava usque escocs e a Aracy voc sabe como ela era... Mas eu era muito infeliz... vivia na
maior solido... (Geni se mostra impaciente. Heloneida percebe) Estou demorando pra entrar no assunto, no ? GENI (Sem jeito) No, no isso. HELONEIDA No, pode falar. to difcil pra mim... GENI Se no quiser contar, deixa. HELONEIDA No meu bem, agora eu comecei, vou at o fim, custe o que custar. GENI Ento conta. HELONEIDA (Retomando a posio) Foi no carnaval. Eu estava sozinha em casa... minha casa parecia um castelo... o terrao era cheio de colunas... lembrava a Grcia... GENI Voc j foi Grcia? HELONEIDA Nunca... e eu no me perdoo por isso... (Pausa) mas como eu estava dizendo, eu estava to infeliz que resolvi sair pra rua... a eu vi um rapaz muito bonito... tambm sozinho.. a eu fui falar com ele... GENI Nossa, Heloneida! HELONEIDA O que, Geni? GENI Voc acha que agiu direito? Por que no esperou ele vir falar com voc? HELONEIDA Ah no, minha filha. Eu estava muito impaciente e no podia perder tempo... (Pausa) A eu fui falar com ele... ele me contou uma histria to estranha... ele estava sem dinheiro... era de outra cidade... a eu fiquei com pena e o convidei pra ir at a minha casa. Ele aceitou e... a, no gosto nem de me lembrar... uma noite, no quarto, perdi a cabea e fiz uma coisa terrvel com ele GENI O qu? HELONEIDA Uma coisa terrvel... voc nem pode imaginar. GENI O que que pode acontecer de to terrvel entre uma mulher e um homem numa cama? HELONEIDA Eu no disse que voc no podia imaginar? GENI Ento conta. HELONEIDA De jeito nenhum. Este segredo eu levo para o tmulo. (Pausa) mas no dia seguinte eu recebi a visita duma amiga minha, e como eu estava com a conscincia pesada, eu no resisti e imediatamente contei pra ela. O rapaz me ouviu contando pra ela, ficou com dio e queria me matar... e ele era a coisa mais bonita que eu j tinha visto. GENI Qual era o nome dele? HELONEIDA Ah, voc me desculpa Geni, mas eu no digo. GENI Por qu? HELONEIDA Sei l, voc pode conhecer. Nem pensar. GENI Est bem, no precisa dizer o nome, mas o que foi que voc fez com ele? HELONEIDA No, Geni, este segredo eu fao questo de levar para o tmulo. GENI Mas voc no disse que contou pra sua amiga? HELONEIDA E eu no me perdoei por isso. GENI Se voc contou pra ela, voc no vai levar o seu segredo para o tmulo. HELONEIDA Ah, mas a minha amiga morreu logo depois. GENI (Espantada) Voc matou? HELONEIDA No foi bem assim. GENI Conta a verdade, Heloneida. HELONEIDA Ora, Geni, voc acha que eu ia matar a minha melhor amiga? GENI Voc?! HELONEIDA (Introspectiva) Resolvi ser honesta comigo mesma, j que no consigo ser honesta com os outros... GENI Que foi que voc disse? HELONEIDA No nada no, eu desliguei... desculpa. GENI Ento continua. HELONEIDA No dia seguinte ele me fez jurar que eu no ia fazer mais aquilo... e eu jurei... GENI Mas fez. HELONEIDA Que que eu podia fazer?, a carne fraca. GENI E eu que pensava que voc fosse uma pessoa forte... HELONEIDA E sou mesmo... mas se voc conhecesse aquele rapaz. Na manh do
segundo dia, ento... voc no pode imaginar... o dio dele era mortal, e quando digo mortal quero dizer mortal mesmo. Quase me estrangulou (Pausa. Saudosa) Foram quatro dias maravilhosos dos quais eu jamais me esquecerei nem que queira e olha que eu no quero mesmo... GENI Que vexame! HELONEIDA Ora, Geni, voc no tem o direito de dizer isso... GENI Nossa, Heloneida, que papel voc me faz... qual era a idade desse rapaz? HELONEIDA 16 anos. GENI Jesus! HELONEIDA No adianta voc querer me julgar porque eu nesse ponto sou muito responsvel. Eu estou aqui, pagando muito caro pelo que eu fiz. (Pausa) Pensando bem, onde eu estava com a cabea... voc acha que o fato de uma mulher de 36 anos fazer isso com um rapazinho de 16 pecar contra a natureza? GENI Depende do caso... HELONEIDA No meu caso, por exemplo. GENI Bom, no seu . HELONEIDA Onde eu estava com a cabea. Ele podia ser quase meu neto... GENI Tambm no exagere. HELONEIDA Hoje em dia? Na nossa poca as coisas acontecem muito depressa... GENI J estou perdendo a pacincia, conta de uma vez o que voc fez com ele... HELONEIDA Imagina! No posso, meu bem. Voc se esquece que estamos num teatro? GENI Que teatro? HELONEIDA Ora, Geni. GENI Voc tem a mania de achar que est num teatro... por qu? HELONEIDA Hoje em dia, no palco de um teatro a gente ouve as verdades mais secretas do ser humano. Coisas que a gente no ouve na rua, por exemplo. Pode-se dizer praticamente quase tudo num palco de teatro. GENI E ento? HELONEIDA De uma vez por todas, no me pea mais pra contar o meu segredo. Este prazer eu no vou dar plateia... GENI T bem, mas voc quem fica lembrando. HELONEIDA Ento no se fala mais nisso. (Pausa) Sabe duma coisa, Geni? Eu sempre amei o teatro acima de todas as coisas. E descobri que o melhor palco a prpria vida. Fazia o meu teatrinho particular representando, se possvel, um papel por semana. Nessas alturas eu estava representando Fedra... GENI Quem? HELONEIDA Fedra, uma grega... (Pausa) Essa histria est te cansando? (Heloneida vai at a boca de cena e fica um instante olhando a plateia) Fico com receio de estar cansando a plateia. GENI Azar! HELONEIDA Mas essa histria a plateia vai ter que ouvir, quer queira quer no queira. Seno eu acabo com a vida de algum aqui hoje. No se esqueam de que eu sou uma assassina. (Para Geni) Voc sabe que eu sou de levar a tragdia at as ltimas consequncias. GENI A tragdia em si j no uma ltima consequncia? HELONEIDA (Irritada) Maneira de dizer, Geni, no seja impertinente. (Pausa. Para Geni) Que cara essa? Vem c, vamos descansar um pouco (Pega a mo de Geni e vo as duas para a boca de cena. Luz sobre a plateia) HELONEIDA (Para Geni) E depois voc se queixa, Geni. Imagina a colher de ch. Uma priso com plateia. Voc no pode dizer que estamos sozinhas no mundo. Essa plateia, pelo menos duas horas por noite, faz companhia pra gente. No uma delcia? por isso que eu amo o teatro. Olha! (Mostra a plateia) Hoje em dia quem no representa bem o seu papel melhor cair morto. GENI (Lamentando) Ai de mim, eu quero sair dessa ilha, dessa priso. Ser que no tem um filho de Deus que queira me levar embora? HELONEIDA (Chocada) Geni! GENI Eu quero ir embora daqui. HELONEIDA (Decidida e prepotente) Vem! Vamos voltar. Voc tinha que ser inconveniente e constrangedora. Logo agora que a gente estava se comunicando com
o pblico. Vem! (Para o pblico) Desculpa, gente! Vem Geni (Quando elas esto voltando entra o Carcereiro. As duas levam um susto) Nossa! Que que voc vem fazer agora? CARCEREIRO Adivinha? GENI Voc est com uma cara esquisita, Car cereiro. CARCEREIRO Trago uma notcia pra vocs. GENI Que tipo de notcia... uma boa notcia? CARCEREIRO Depende. HELONEIDA (Desanimada) Ser que vo soltar a gente pelo nosso bom comportamento? GENI (Animada) Ser? CARCEREIRO No to ruim assim. GENI Ento o que ?, diz logo. CARCEREIRO (Sentando-se) Espera um pouco, deixa eu tomar respirao. HELONEIDA ( parte) O que ser? GENI Quer um pouco dgua, Carcereiro? CARCEREIRO Aceito, ( parte) pra dar tempo. HELONEIDA (Para o Carcereiro) Estou aflita pra saber. GENI (Trazendo a gua) Toma. CARCEREIRO Obrigado, minha filha. GENI Voc tem um cigarro? CARCEREIRO Tenho. (Tira o cigarro, ele mesmo acende e passa a Geni). Toma. GENI (Tirando uma longa baforada) Estou que no aguento mais. Se voc diz que uma boa notcia... CARCEREIRO Eu no disse... uma boa notcia... eu disse... depende. (As duas ficaram olhando para o Carcereiro em silncio. Pausa) CARCEREIRO Estourou uma guerra total e geral. O mundo inteiro. GENI (Decepcionada) Essa no mesmo uma boa notcia. HELONEIDA Que coisa horrvel. CARCEREIRO Mas espera um pouco. O mundo inteiro est explodindo, bombas em toda a parte. Todo mundo foi convocado. Eu, inclusive. AS DUAS Voc?! CARCEREIRO , a minha classe foi chamada. HELONEIDA Mas voc no vai se apresentar, no ? CARCEREIRO No sei. Francamente no sei. GENI Se voc no se apresentar, vai ser dado por insubmisso. CARCEREIRO Eu sei, eu sei. GENI Mas azar, nem pensa em deixar a gente. CARCEREIRO isso que me preocupa. HELONEIDA (Andando pelo palco, como se tentasse resolver o problema) Que situao, Meu Deus! Como que a gente vai resolver este problema? GENI No estou gostando nada de sua cara, Carcereiro. Voc est escondendo alguma coisa da gente. CARCEREIRO Eu? GENI Vai, diz logo o que voc tem pra dizer. CARCEREIRO Vocs no me deixam falar. GENI Est bem. Desembucha logo. (As duas, uma de cada lado, de braos cruzados, aguardam. Pausa) CARCEREIRO Vocs... vo ter uma nova companheira... no meu... AS DUAS O qu? CARCEREIRO Era essa a notcia. HELONEIDA Repete. Eu no ouvi bem. CARCEREIRO . Vem outra pra c. Eu vou ter que... GENI Voc est gozando a gente. CARCEREIRO Eu? HELONEIDA Fiquem quietos. Deixa eu pensar um minutinho s. (Heloneida anda de um lado pro outro, com uma mo na testa, como se estivesse se concentrando. Pausa. Geni e o Carcereiro acompanham com os olhos os movimentos de Heloneida).
Pronto. CARCEREIRO E ento? HELONEIDA Geni, deixa eu dar uma tragada no seu cigarro. (Geni passa o cigarro. Heloneida d uma longa tragada e devolve o cigarro a Geni). Toma, obrigada. (Para o carcereiro) O caso o seguinte. (Pausa. Muda de expresso. Furiosa, segura o Carcereiro pelos ombros e o sacode). Aqui nesta cela no entra ningum. CARCEREIRO Mas voc no entendeu... GENI (Segurando um brao do Carcereiro e torcendo-o) Mas eu entendi muito bem. HELONEIDA Imagina! Era s o que faltava... GENI A gente preparar a cama pra outra dormir... imagina! CARCEREIRO No nada disso. GENI No vem com conversa mole. HELONEIDA Aqui no entra ningum. CARCEREIRO T bem. Vocs no querem me ouvir... GENI Chega de papo furado. CARCEREIRO Depois no diz que eu no avisei. HELONEIDA Era s o que faltava. Chega, Carcereiro. No quero ouvir mais uma palavra. Estou muito puta da vida. (Chocada, cobre a boca) GENI (Cobre o rosto) Desculpa, Heloneida. HELONEIDA Por qu? GENI Eu devia ter dito por voc. HELONEIDA O qu? GENI O palavro. HELONEIDA No tem importncia. Estou muito puta da vida mesmo. GENI Eu nunca vou me perdoar por isso. (Pausa. Olhando o Carcereiro) E quem o culpado? HELONEIDA ... seno o Carcereiro? CARCEREIRO Eu?! GENI (Para o Carcereiro) Quer saber duma coisa? Fora daqui! CARCEREIRO T bom. Eu vou. HELONEIDA Ento anda, vai. (O Carcereiro sai) CARCEREIRO (Saindo) Depois vocs... GENI (Empurrando) Vai... HELONEIDA (Depois de o Carcereiro ter sado) Imagina, que pretenso! Segundo Ato CENA 1 (Heloneida e Geni esto em cena, discutindo) GENI O que ser que aconteceu com o Carcereiro? H dois dias que ele no aparece. HELONEIDA Eu desconfio que ele no aguentou e foi pra guerra... GENI O qu? HELONEIDA Acho que ele no aguentou e foi pra guerra... GENI Bem que eu te avisei. HELONEIDA Avisou o qu? GENI Voc lembra quando eu dizia: Esse Carcereiro no me engana... Voc se lembra? HELONEIDA Pois olha, se ele realmente foi pra guerra, ele fez muito bem. GENI E ns? HELONEIDA Esquece, meu anjo. Voc se lembra quando eu dizia: O Carcereiro est aqui s de passagem...? GENI Me lembro sim. Mas ele devia ter avisado que ia embora... estou morrendo de fome. Faz dois dias que eu no como. HELONEIDA Como que voc sabe? GENI Voc sempre me pergunta essas coisas. HELONEIDA Voc est sempre falando do tempo e isso me deixa irritada. Voc fala como se tivesse certeza. V se pe na cabea, de uma vez por todas, que aqui a gente no tem a menor noo do tempo. Como que voc sabe se faz s dois dias que ele foi embora? Eu, por mim, acho que ele foi embora h muito tempo. GENI Estou com fome. HELONEIDA Um jejum de vez em quando faz muito bem ao esprito. GENI Ah, no me venha com teorias.
HELONEIDA E faz mesmo. Quando eu frequentava a igreja, eu fazia jejum uma vez por ms. Era quando eu me sentia melhor. GENI Estou sentindo umas ferroadas na boca do estmago. S pode ser fome. HELONEIDA Tambm a culpa nossa. GENI Que culpa? HELONEIDA Se o Carcereiro foi embora, a culpa s pode ser nossa. GENI Por qu? HELONEIDA Estou sentindo uma tonteira... (Pausa) normal. Sempre que eu penso no tempo sinto uma espcie de nuvem na minha cabea. GENI Mas que culpa? HELONEIDA Voc se lembra da ltima vez que ele esteve aqui? GENI Ele quem? HELONEIDA Ora Geni, a gente est falando de quem? GENI O Carcereiro? HELONEIDA . Ele mesmo. A ltima vez que ele esteve aqui a gente tratou ele to mal.. GENI Foi mesmo? HELONEIDA E ento? Ele at trouxe uma notcia pra gente... no foi? GENI mesmo... agora estou me lembrando... HELONEIDA Qual foi mesmo a notcia?... Ns botamos ele pra fora... no foi? GENI ... foi. HELONEIDA Ento s pode ter sido uma pssima notcia... GENI Que que foi mesmo? HELONEIDA No me lembro... deixa eu ver... GENI Puxa pela memria. HELONEIDA Minha memria anda to fraca... deixa eu ver... primeiro ele falou da guerra... como sempre... depois... GENI isso mesmo. HELONEIDA Depois... Ah... (Com raiva) me lembrei... GENI E ento? HELONEIDA Ele disse que ns amos ter uma nova companheira. GENI Uma assassina? HELONEIDA . GENI Aqui dentro? HELONEIDA Acho que sim. GENI Nem pensar. Aqui no entra mais ningum. HELONEIDA Claro que no. Foi por isso que ns expulsamos o Carcereiro. GENI E com toda razo... imagina s faltava essa... viu? At passou minha fome. HELONEIDA natural. GENI O qu? HELONEIDA natural voc no sentir mais fome. Foi a reao. Mas se aparecer outra aqui, voc deixa pra mim. Quero fazer tanta maldade, at essa mulher ficar louca. GENI A gente obriga o Carcereiro mijar na cara dela. HELONEIDA . E tambm dar muito choque eltrico nela. GENI Eu por mim gostaria de torcer o nariz dela com alicate. HELONEIDA E eu de espetar o olho dela com a minha agulha at ela ficar cega. GENI Isso fcil. HELONEIDA O qu? GENI Ela ficar cega. s dar uma espetadinha em cada olho. HELONEIDA E voc acha que eu me contento com to pouco? Depois de espetar os olhos, a gente enfia a agulha no ouvido pra furar o tmpano. GENI No quero nem saber. Eu, por mim, pago pra ver o Carcereiro mijar na cara dela. HELONEIDA Voc acha que ele vai topar? GENI Sei l. Se ele no topar, a gente obriga. Quero ver quem mais forte. HELONEIDA Estou at sentindo uma nova vontade de viver. GENI Vai ser como nos tempos do Circo. HELONEIDA Acho que a gente no deve se precipitar. GENI Por qu? HELONEIDA melhor a gente pensar com calma...
GENI Que que essa xereta vem fazer aqui? HELONEIDA Pelo jeito, deve ter praticado um crime sem a menor imaginao. GENI Um crime de amor... HELONEIDA ... sem o menor requinte de maldade. Ah, no. Aqui no entra. Se tem coisa que eu no aguento gente medocre. Uma criminosa medocre ento, nem se fala. GENI (Fazendo uma cara estranha) Se bem... HELONEIDA Que cara essa? GENI Eu estava pensando... HELONEIDA O que, Geni? GENI (Peremptria) Entra sim. HELONEIDA O qu? GENI Eu estava pensando... at que vai ser bom a gente ter uma nova companheira... HELONEIDA Geni! GENI Claro, sua boba! HELONEIDA Deixa de ser idiota. GENI Mas claro... uma nova companheira... a gente vai se divertir como nunca... Isso aqui anda to sem graa ultimamente... vai ajudar a matar o tempo. HELONEIDA No, Geni. A gente tinha conseguido dar uma ordem na nossa vida... O tempo todo livre pra pensar, pra viver... GENI Nada disso, Heloneida. HELONEIDA Viver. Aqui, foi aqui que eu tive a agradvel sensao de que o tempo no passa. GENI No Heloneida, entra sim. HELONEIDA No Geni, voc me desculpa, mas aqui no entra ningum. Imagina! Eu pratiquei todos os meus crimes s para que me mandassem para a pior priso do mundo. Eu queria ser mandada para uma solitria, pra ficar bem longe da humanidade, que eu detesto. (Olha para a plateia) No, Geni, voc me desculpa, sinto muito, mas aqui no entra ningum. GENI a que voc se engana. Entra sim. No quero me chamar Geni. HELONEIDA Sabe duma coisa! Tem hora que eu te detesto. GENI Bem que eu desconfiava. HELONEIDA O qu? GENI Toda aquela sua conversa mole de dizer que era uma me pra mim. Mas eu tambm te detesto. Eu tambm passei todo esse tempo te aturando, sofrendo pra no dizer que te detesto. Mas agora me sinto at bem. Essa verdade eu tinha que acabar te dizendo mais cedo ou mais tarde. Mas agora eu no quero saber... Estou doida pra que essa mulher chegue logo... HELONEIDA No, Geni, aqui no entra ningum. GENI Claro que entra meu bem, no quero ser chamada de assassina. HELONEIDA Puxa, como voc mudou... GENI Que que voc quer dizer com isso? HELONEIDA Antigamente voc no gostava de reconhecer que era uma assassina... GENI Os tempos mudaram minha filha... sinto uma nova vontade de viver... (Barulho de chaves abrindo a cela. Sem olhar para a porta, as duas se ajeitam como se esperassem a visita do Carcereiro. Heloneida, como sempre que o Carcereiro aparece, est sentada numa pose bem faceira e feminina. Geni, impassvel. Entra Jandira.) AZEVEDO (Com vez masculinizada) Boa-noite! (Heloneida surpresa, sem se virar.) GENI (Tambm surpresa e sem saber o que est acontecendo) Quem voc? AZEVEDO Ah, minha pacincia, toda vez que eu entro aqui tenho que dizer quem sou eu? GENI Eu no te conheo. AZEVEDO (Prepotente) Senta a, minha filha. (Geni obedece, emburrada) HELONEIDA (Levantando-se, irritada) Afinal de contas, quem voc? AZEVEDO Vocs esto brincando comigo? HELONEIDA Eu no estou brincando. Quem voc? AZEVEDO T bem, minha filha. Sou a Carcereira. HELONEIDA Carcereira? GENI Estou sentindo umas tonteiras... HELONEIDA Ento voc...
AZEVEDO Sou a nova Carcereira... Quantas vezes vou ter que ficar repetindo? Meu nome Azevedo. GENI (Lembrando-se) Ah! Jandira! AZEVEDO J disse que meu nome Azevedo. HELONEIDA (Tentando ser simptica) Mas Jandira to... AZEVEDO (Explodindo) A-ZE-VE-DO! No me chamem de Jandira, detesto esse nome. V se eu tenho cara de Jandira? HELONEIDA T bem, desculpa. AZEVEDO Se me chamar de novo de Jandira, no respondo por mim. GENI ( parte) Imagina! AZEVEDO E tem mais! Vamos acabar duma vez com essa frescura de ficar enfeitando esta cela. Isso aqui uma priso ou o qu? HELONEIDA Mas Azevedo... (Se constrangendo ao pronunciar o nome, parte) Que vergonha... AZEVEDO T resmungando o qu? HELONEIDA Desculpa meu bem, eu olho pra sua cara e fico sem jeito de te chamar de Azevedo... isso. AZEVEDO Que que tem a minha cara? HELONEIDA Nada. Eu at que gosto da sua cara. AZEVEDO Sei, e da? HELONEIDA (Tentando ser simptica) Voc no acha, Geni, voc no acha que Azevedo no nome pra ela? GENI Francamente, no sei... HELONEIDA (Feminina) Azevedo, por gentileza, deixa eu te chamar de Jandira? AZEVEDO (Possessa) Voc est brincando comigo? HELONEIDA No, eu quero ser a ltima, juro... GENI (Para Azevedo) Quando a Heloneida cisma com uma coisa... AZEVEDO Chega! Se me chamar outra vez de Jandira, vai levar tanta bordoada, tanto cacete, que num instante voc no vai passar dum cogulo de sangue. GENI Nossa! HELONEIDA T bem, Azevedo. AZEVEDO E chega de conversa. Daqui pra frente vocs vo cortar o doze comigo. GENI Eu tambm? AZEVEDO Voc, principalmente. GENI (Rindo) Eu?! AZEVEDO Voc sim, por qu? E no ri, no. GENI (Sria) Que foi que eu fiz? AZEVEDO Eu sei. Essa sua cara no me engana. HELONEIDA Por favor, no fala assim com ela, Azevedo. AZEVEDO (Para Heloneida) E voc para de ficar toda hora repetindo o meu nome. Parece deboche. HELONEIDA Desculpa. AZEVEDO (Para Heloneida) E por que voc se di tanto por ela? HELONEIDA que ela to frgil. (Tentando dialogar com Azevedo) Imagina, nem parece que ela foi lutadora de circo. GENI (Censurando) Heloneida! AZEVEDO (Para Heloneida) Que foi que voc disse? HELONEIDA . Ela foi lutadora de circo. No parece um sonho? AZEVEDO Bem que eu estava desconfiando dessa cara. GENI ( parte) Santo Deus! HELONEIDA Que foi, Geni? AZEVEDO (Para Heloneida) Est vendo estes cinco dentes? HELONEIDA Perfeitos. AZEVEDO Postios. HELONEIDA Que azar! AZEVEDO (Para Heloneida) E me pergunta quem foi? (Olha para Geni) HELONEIDA (Olhando Geni desconfiada) No! AZEVEDO Pois . GENI (Sem graa) Como esse mundo pequeno. HELONEIDA (Para Geni) Voc tirou a palavra da minha boca. AZEVEDO (Com raiva) E da minha tambm. HELONEIDA (Para Azevedo) Se voc soubesse como ela mudou... (Geni consente
humilde) AZEVEDO Isso t na cara. (Pausa) Quem diria? HELONEIDA O qu? AZEVEDO Essa menina... se voc visse... uns dez anos atrs... HELONEIDA Foi h tanto tempo assim? AZEVEDO Ou menos, sei l. Essa mulher era uma peste... (Com raiva) Imagina... (Pega Geni pelo pulso e torce. Geni geme) HELONEIDA (Para Azevedo) Por favor... sem precipitao... conversando que a gente se entende... (Azevedo larga Geni) AZEVEDO como dizem: a justia falha, mas no falta. HELONEIDA Que foi que aconteceu entre vocs duas? AZEVEDO No quero nem lembrar. HELONEIDA Ah, no. Agora conta. Estou morrendo de curiosidade. GENI Pelo amor de Deus, no lembra essas coisas. HELONEIDA (Para Geni) Ah, no, Geni. Agora deixa ela contar. GENI Heloneida! Eu nunca pensei isso de voc. HELONEIDA No, Geni. Essa histria eu fao questo de saber. GENI (Para Heloneida) Voc tambm uma peste... eu nunca esperava... AZEVEDO (Para Geni) Voc cala a boca. Aqui quem manda sou eu. HELONEIDA (Para Geni) Desculpa, Geni. AZEVEDO E voc tambm, no fica muito vontade, no. HELONEIDA Desculpa. (Pausa) AZEVEDO Naquele tempo... antes de eu entrar para a Polcia Feminina... meu sonho era a luta livre... da, um dia eu apareci no circo dessa a pra procurar emprego... me arranjaram uma luta com ela. Eu, que lutava honestamente, fiquei at fora de mim, de tanta alegria. Ia ter a oportunidade de lutar com ela, que naquela poca tinha fama de grande lutadora... Falsa! (Pausa) Eu quase morro quando me lembro... parece at que estou vendo eu e ela l no picadeiro central... (Para Heloneida, mostrando Geni) Olha pra cara dela... Voc pode imaginar ela, me apresentando plateia com uma simpatia que voc no pode nem imaginar. Falsa! Nem bem comeou a luta e l vinha ela s de golpe baixo... (para Heloneida) Voc sabe que numa luta livre feita com arte ningum d murro na cara do outro, no ? Mas ela deu. E usava um anel, de propsito. Ela me deu um murro to forte que eu ca desmaiada, sem os cinco dentes da frente. A ela, que em vez de lutadora era uma verdadeira palhaa, jogou um balde dgua fria na minha cara. claro que eu acordei na hora. E ela, bancando a educada, se ajoelhou e apanhou os dentes que sobraram. Porque eu, por mal dos pecados, ainda acabei engolindo uns dois com o murro dela. (Mostra o estmago) Esto at hoje aqui dentro. Ela me entregou os dentes, me levantou muito educadamente e eu, com a cara de tacho, tive que sorrir para a plateia. Foi uma gargalhada s. E ELA recebeu todos os aplausos. Falsa! HELONEIDA Minha Nossa Senhora, Geni! GENI (Reagindo) Essa histria no foi bem assim... AZEVEDO (Possessa) E cala a boca! E no diz uma palavra! HELONEIDA Essa histria voc nunca me contou, hein Geni? E eu que tinha outra ideia de voc. Que maldade! GENI Sua peste! Fica puxando o saco da outra, fica. (Vira-se para Azevedo) Ela no parece uma santa? (Azevedo olha pra Heloneida que sorri, fingindo inocncia) Manda ela te contar as histrias dela. HELONEIDA (Inocente) Imagina! GENI (A Azevedo) Manda ela te contar. HELONEIDA Imagina! Eu tenho a minha conscincia tranquila. AZEVEDO (Para Heloneida) Tranquila? Pois a que voc se engana. HELONEIDA (Desconfiada) Que que voc quer dizer com isso? AZEVEDO Calma minha filha. Depois a gente conversa. HELONEIDA ( vontade) Ah, no Azevedo, se a gente tem que conversar, vamos conversar agora. AZEVEDO O qu? Onde voc pensa que est? Na sua casa? Aqui quem d ordens sou eu. HELONEIDA Eu tinha me esquecido, desculpa. AZEVEDO No que depender de mim, vocs vo acabar loucas. (Azevedo sai) HELONEIDA (Preocupada, falando consigo mesma) Que que ela quis dizer com
isso? (Pausa) Geni. GENI No fala comigo. HELONEIDA Que ser que ela quis dizer? (Pausa) No adianta pensar agora, Geni. GENI Nunca mais fale comigo. HELONEIDA Por qu? GENI Voc ainda pergunta? HELONEIDA Que foi que eu fiz? GENI (Possessa) Olha aqui, essa mulher hoje me lembrou muito bem dos meus tempos de circo. Se voc me encher a pacincia eu vou te dar muita porrada. HELONEIDA Deixa de ser estpida. Quando que voc vai raciocinar com a cabea? GENI Que que voc quer dizer com isso? HELONEIDA Quando a Jandira comeou a contar aquela histria eu pensei: ou isso uma verdadeira coincidncia, ou ns estamos realmente num teatro. Aquela situao me pareceu muito teatral e bastou eu pensar em teatro pra ir logo tratando de escolher o meu papel: o da prfida. Voc acha que eu fiz bem? (Pausa. Geni no responde) claro que voc no vai responder. Voc estava muito preocupada com o seu papel: o da vtima. E sabe duma coisa? Voc estava divina! (Olhando para a plateia) E a plateia nem aplaudiu... E a Azevedo? Podia ser melhor? Ningum me tira da cabea que a Azevedo tambm gosta muito de teatro... (Pausa). Geni! GENI O qu? HELONEIDA Vem c. GENI (Mal-humorada) No. HELONEIDA Por que, Geni? GENI Isso que voc fez no se faz. HELONEIDA Ora meu anjo, o que eu fiz foi uma espcie de relaes pblicas... GENI Sei. HELONEIDA Foi sim. Eu fingi que estava contra voc e do lado da outra... GENI Voc fingiu nada. Voc estava mesmo puxando o saco da outra. HELONEIDA Parece que voc no entendeu... GENI Eu entendi muito bem. HELONEIDA Eu estava fingindo... s pra aquilo no acabar em briga... se eu tivesse te defendido ela tinha batido em ns duas... ento eu fingi, e nada aconteceu. GENI Estou me sentindo humilhada. HELONEIDA Esquece, bobinha. Voc acha que eu acreditei naquilo que ela contou de voc? GENI Voc no acreditou? HELONEIDA Mas claro que no. Voc acha que eu era capaz de acreditar que voc fosse capaz de tanta maldade? GENI Mas era verdade. HELONEIDA Mentira! GENI Era verdade mesmo. Sou muito honesta pra reconhecer que naquele tempo eu era uma peste. HELONEIDA Santo Deus! GENI Mas isso era naquele tempo. Eu mudei muito. HELONEIDA Ainda bem. GENI Hoje, quando eu me lembro do que eu fui naquela poca que eu sinto o quanto o tempo passou. HELONEIDA Por qu? GENI Porque eu no sou mais a mesma. HELONEIDA Mas isso normal. GENI O qu? HELONEIDA O tempo muda as pessoas, at mesmo as coisas. GENI Quer dizer que eu no sou mais a mesma? HELONEIDA No sei, eu digo isso por mim. GENI Como? HELONEIDA Eu sinto que tambm eu no sou mais a mesma. GENI Quer dizer, se eu no sou mais a mesma, logicamente eu no sou mais culpada pelo que fiz em outra poca, no assim? HELONEIDA Mais ou menos. GENI Ento eu posso esquecer. HELONEIDA O qu?
GENI Todas as maldades que eu fiz. HELONEIDA Tambm no assim. Pra gente mudar mesmo, preciso lembrar e compreender. GENI No mais fcil a gente esquecer? HELONEIDA muito mais fcil. GENI Ento, pra que lembrar? HELONEIDA Justamente pra compreender. GENI O qu? HELONEIDA O verdadeiro sentido da vida. GENI Como difcil. (Pausa) HELONEIDA Geni, bem que voc podia cantar um pouco pra mim. GENI Agora? HELONEIDA Canta. GENI Por que justamente agora? Ah, eu no estou com vontade. HELONEIDA Por favor, Geni? GENI T bem. (Se prepara e comea a cantar) Que manh maravilhosa / Brilha o sol no cu de anil / As abelhas... (Heloneida comea a chorar baixinho) GENI Por que voc est chorando? HELONEIDA Estou me lembrando... GENI Lembrando o qu? HELONEIDA De tudo o que eu podia ter feito, todas as coisas proibidas, todas as maldades que eu no fiz e por isso eu choro... GENI Ainda tem tempo. HELONEIDA No, Geni, agora j tarde. GENI No fica assim, Heloneida. HELONEIDA Mas eu no estou triste. Estou at contente. No parece absurdo? GENI Francamente, no sei o que pensar. HELONEIDA Estou contente porque voc est aqui comigo. GENI Voc acha? HELONEIDA Mas claro. Voc no est contente? GENI Contente por qu? HELONEIDA Por isso. GENI Francamente, no sei. HELONEIDA No. Voc est contente, sim. Est sim. E eu estou ainda mais feliz por isso. (Heloneida est feliz) Imagina! Olha as minhas mos (Heloneida mostra as palmas das mos para Geni) Esto suadas. Estou transpirando de alegria. Sabe, Geni, ns duas, eu e voc, estamos vivas. GENI Engraado, quando voc fala assim eu sinto uma coisa esquisita aqui dentro. (Mostra a barriga) Uma espcie de febre, no sei explicar. HELONEIDA assim mesmo. (Pausa) Me diz uma coisa, Geni: Voc me acha atraente? GENI Acho. HELONEIDA Voc jura? GENI Juro mesmo. HELONEIDA (Desconfiando) Deixa eu ver. (Apanha um espelho e fica se olhando um pouco) Eu adoro o espelho. Antigamente, antes de tomar qualquer deciso, eu ficava horas me olhando... me dava uma segurana... parecia que eu via a minha alma no espelho... (Pausa) Me diz uma coisa, Geni: Voc me adora? GENI (Sem jeito) Adoro. HELONEIDA Viu, eu no disse? (Com toda segurana) Diante do espelho, de olhos bem abertos, eu me sinto capaz de tudo. GENI E voc tambm me adora? HELONEIDA Bem, adorar, adorar... (Numa atitude de superioridade, sem tirar os olhos do espelho, finge pensar antes de responder e depois, complacente) s vezes... eu... gosto muito de voc. (Luz vai baixando devagar) CENA 2 (Esto em cena Heloneida e Geni. Heloneida est acabando de pintar a cpula. Geni est com fome) GENI Estou pra morrer, de tanta fome. HELONEIDA (Sem ouvir, est orgulhosa do seu trabalho) Pronto, acabei. Pensava
que no ia acabar nunca mais. Tambm no mole pintar essas florzinhas... GENI Estou morrendo de fome. HELONEIDA (Mostrando a cpula a Geni) Voc gosta, Geni? GENI (Com a mo no estmago, com fome) Por que voc no deixa a outra, mesmo? HELONEIDA Imagina! Voc acha que eu ia ter esse trabalho toa? GENI No sei como a Azevedo ainda no levou esse chapu. HELONEIDA Isso no chapu Geni, uma cpula. GENI Eu sei, mas que eu tenho medo de dizer essa palavra. J entrei em muita fria por causa dela. HELONEIDA Como assim? GENI Em vez de dizer cpula, sempre digo cpula. HELONEIDA No liga pra isso. Isso acontece com muita gente. (Pausa) Deixa eu trocar. (Tira a cpula velha e pe a nova) Bom, assim est bem melhor. GENI Estou com uma fome! HELONEIDA Que coisa feia, Geni, voc s pensa em comer... (Olhando a cpula) Que que voc acha? GENI No vejo a menor diferena... estou morrendo de fome. (Explodindo de repente) No aguento mais essa priso. HELONEIDA Como voc fraca, Geni! Eu, que sou eu, nem penso em comer... podia at passar o resto da vida sem comer... GENI D licena de eu ter fome?... J faz dez dias que a gente no come... eu j no aguento mais... HELONEIDA No diz uma bobagem dessa... at pecado. Eu nem penso em comer... (Olha para o cu) Tenho outras coisas mais importantes pra pensar... GENI Mas eu estou morrendo de fome, Heloneida, d licena. HELONEIDA por isso que a humanidade to infeliz. S pensa em comer, comer, comer... isso no acaba nunca. GENI Que que voc quer que eu faa? HELONEIDA Se eu fosse chorar por isso... Tudo est muito bom para mim. (Pausa) Eu no me queixo de nada. Voc se lembra do tempo das vacas gordas, quando a gente podia se dar ao luxo de ter aqui, nesta cela, vinho francs, queijo camembert e at picles, os meus picles que eu tanto amava? GENI No fala nisso, Heloneida. HELONEIDA A vida assim mesmo: Voc j leu o Eclesiastes? GENI Voc se esquece que eu fui protestante? HELONEIDA E ento? o prprio Eclesiastes quem diz: Tem o tempo das vacas magras, o tempo das vacas gordas e depois, outra vez, o tempo das vacas magras... GENI Voc muito conformada. HELONEIDA Eu no sou conformada, no meu anjo... eu sou otimista. GENI (Irritada) T bem, Heloneida... fica combinado assim. HELONEIDA Se eu fosse chorar pelo que eu perdi nessa vida, eu nessas horas no passava dum vale de lgrimas. Mas eu no, nem penso nisso. Quando a Azevedo levou as nossas coisas, eu nem liguei. Voc viu que eu nem toquei no assunto... tive at a impresso de ter atingido um grau de superioridade. GENI Que fome. HELONEIDA Cada vez que eu perco uma coisa que eu gosto muito eu fico at feliz, pois tenho a impresso de que ganhei outra e at dou graas, mas graas mesmo, ao nosso pai eterno por isso. Cada vez eu compreendo mais o verdadeiro sentido da vida. Acho at que, se eu morresse agora, ia direto pro cu. GENI S porque voc no sente fome? Quer dizer que, quem tem fome, se morrer de fome vai pro inferno? HELONEIDA (Irritada) No isso, Geni, tem hora que voc me desespera... voc leva tudo ao p da letra. GENI Que que voc quer dizer com isso? HELONEIDA Deixa pra l, desiste. Tem hora que voc me lembra meu irmo. GENI Que irmo? HELONEIDA O meu irmo, Geni, ora... GENI Voc nunca me falou desse seu irmo. HELONEIDA Geni, sua cabea de vento, eu vivo falando do meu irmo. No falo de outra coisa. O Hermann se parecia muito com voc.
GENI Quem? HELONEIDA O Hermann, Geni. O meu irmo. V se presta ateno. GENI Que fome! HELONEIDA O meu irmo era assim... vivia com fome... at parece que tinha o estmago furado. Quando eu tentava mostrar a ele que nessa vida tem coisas mais importantes do que comer, ele me perguntava: O que, por exemplo? A eu ficava to possessa que no sabia responder, e s de raiva uma vez eu disse pra ele: Olha aqui Hermann, enquanto voc no compreender o que eu quero dizer eu no te dou comida.E no dava mesmo. de pequenino que se torce o pepino... esse ditado eu aprendi com uma freira. Portanto... GENI E quantos anos tinha esse seu irmo? HELONEIDA (Culpada) 16. GENI Que maldade, Heloneida. Na idade dele voc fazer uma coisa dessa. HELONEIDA Se voc conhecesse o meu irmo. Eu s queria o seu bem. Ele parecia um santo. Toda vez que eu olhava pra ele eu me lembrava de So Francisco de Assis. A nica coisa que estragava era aquela fome. Os meus pais morreram quando o meu irmo nasceu. GENI (Espantada) Do parto? HELONEIDA (Impaciente) No, Geni, de alegria. Morreram de alegria. GENI Que coisa absurda. HELONEIDA Se voc conhecesse o meu irmo... GENI Que fome! HELONEIDA Eu era muito mais velha que o meu irmo. Era que nem uma me pra ele. Eu ensinei tudo a ele e nunca deixei que ele se aproximasse desse mundo depravado que a gente vive. Mas ele era um fraco... vivia com fome. GENI Estou sentindo umas pontadas no estmago. HELONEIDA A eu dei a vida de So Francisco de Assis pra ele ler... Tranquei o Hermann num quarto e disse: Voc vai ficar a trancado lendo a vida de So Francisco at compreender que tem coisas mais importantes do que a fome... Sabe, Geni, So Francisco era um moo muito rico que levava uma vida bomia e desregrada at que um dia descobriu Deus e o verdadeiro sentido da vida, e a deixou a famlia, tudo, fez voto de pobreza e de fome e saiu por a, pregando o amor e a bondade a todo mundo. Eu tambm queria preparar o meu irmo pra que um dia ele tambm sasse por a espalhando o amor e a bondade... GENI Uma coisa que eu no entendo... HELONEIDA O qu? GENI Voc no disse uma vez que detestava a humanidade inteira? HELONEIDA Eu disse?! GENI Eu me lembro muito bem. Voc at disse que estava aqui, presa, s pra ficar bem longe da humanidade que voc detesta. HELONEIDA Mas eu disse isso? GENI Eu me lembro como se fosse hoje. HELONEIDA Onde eu estava com a cabea. Imagina... (Para a plateia) Eu amo a humanidade, e se eu me afastei dela porque as pessoas no estavam preparadas pra me compreender. Eu aceitava todo mundo, os outros que no me aceitavam, e pra no ser desagradvel eu me afastei. Foi isso... tanto que uma vez quando o Hermann... GENI Quem? HELONEIDA (Suspira impaciente) O meu irmo, Geni! Uma vez, trancado no quarto com o livro de So Francisco, ele chorava de fome, a eu abri a porta e disse: Voc me desculpa, mas eu s vou te dar comida quando voc compreender... E no dava mesmo. At que um dia eu abri a porta... eu nem gosto de lembrar... e encontrei ele morto... GENI Meu Deus! HELONEIDA Fiquei com tanto remorso... (Realista) mas foi melhor assim. Se ele continuasse vivo, ia sofrer muito... era muito fraco... Ele era to bonito, Geni. O que eu mais gostava nele eram as orelhas... GENI ... HELONEIDA As orelhas dele eram enormes... assim... GENI Nossa! HELONEIDA E bem abertas... pareciam duas flores desabrochadas... ele era
plido tambm no saa de casa mas as orelhas dele eram coradas... se eu no conhecesse meu irmo eu podia dizer que eram coradas de dio. GENI Tadinho! HELONEIDA Eu adorava brincar com as orelhas dele... (Alegre) ele sentia ccegas... mas ele tambm gostava... ele at pedia pra eu brincar com as suas orelhas... at dormir... (Suspirando) Ah, Geni, se voc conhecesse o meu irmo... eu pensava: Puxa, meu Deus, com duas orelhas dessas por que que ele no ouve o que eu digo? GENI Nem sei o que pensar... (Pausa) estou desmaiando de fome. (Barulho de chave abrindo a cela. Entra Azevedo com dois pratos de sopa e dois pes secos. Geni corre e apanha a sua) AZEVEDO Calma, que o Brasil nosso! GENI (Decepcionada) Sopa outra vez!. AZEVEDO (Para Geni) E no reclama. no. Voc queria o qu? Fil com fritas? (Para Heloneida) Toma! Que que voc est esperando? HELONEIDA No, muito obrigada, eu no estou com fome. AZEVEDO O qu? HELONEIDA No estou mesmo. E depois, estou precisando fazer regime. AZEVEDO Toma essa sopa, minha filha, e deixa de frescura. HELONEIDA Mas eu no quero, Azevedo. AZEVEDO O que voc diz no se escreve. Anda, toma a sopa. HELONEIDA (Irritada) D licena de eu no querer, Azevedo? AZEVEDO (Empurrando a sopa) TOMA! (Helo neida pega a sopa e comea a tomar) Depois, de noite, fica a, me gritando de fome. HELONEIDA (Fingindo surpresa) Eu?! AZEVEDO Que cara essa? Voc mesma. Fica a, de madrugada, gritando, dizendo que est com fome. Me acordando, me tirando do meu sono sagrado. Hoje voc vai tomar toda essa sopa. Voc pensa que eu no te manjo? Voc enjeita a sopa e chega de madrugada comea a gritar... eu acordo e venho ver o que e voc fica a chorando e os cambaus. A, como no tem mais sopa, eu sou obrigada a te dar as minhas reservas, os meus picles, a minha compota de goiaba e o meu queijo catupiri. No, nada disso. Daqui pra frente, voc vai ter que tomar a sopa na marra. Nem que eu tiver que usar uma sonda. HELONEIDA (Infantil) Que sopa nojenta. (Durante esta cena Geni est desligada, tomando a sopa gulosamente) AZEVEDO E no reclama, no! No reclama que eu corto o seu cabelo. (Chacoalha o cabelo de Heloneida) Nossa me, quanta caspa... encheu a sopa. HELONEIDA Eu no tenho caspa... AZEVEDO No tem caspa. Olha! (Chacoalha o cabelo de Heloneida) Parece uma tempestade de neve... olha! HELONEIDA mentira. Eu s lavo a minha cabea com xampu. AZEVEDO Ah, ? E onde que voc consegue xampu aqui na ilha... me d o endereo? HELONEIDA o Carcereiro quem me traz. AZEVEDO No diga! E como que esse Carcereiro que voc no me apresenta?... assim alto, louro, bonito... alemo? HELONEIDA No, no alemo no... filho de italiano, pra seu governo. AZEVEDO Sim senhora! A senhora com um bonito a escondido e eu aqui jogada fora. HELONEIDA Deixa de ser criana, Azevedo... voc sabe quem . (Geni, que acabou de tomar a sopa, sempre desligada, pega dois sonrisais, dois copos dgua, espera suspirando dissolver, toma um, e leva o outro a Heloneida. Heloneida no v o copo. Est discutindo com Azevedo) AZEVEDO No, voc est enganada, eu no conheo... HELONEIDA Ora Azevedo, voc conhece sim. AZEVEDO (Bruscamente possessa) Ah, ? Voc me gozou, no gozou? Agora, s de vingana eu vou levar tudo que vocs tm aqui. GENI (Como se despertasse) O qu? AZEVEDO (Pegando os objetos) ... agora, vocs duas vo ver com quantos paus se faz uma canoa. GENI Mas o que foi que eu fiz? AZEVEDO Voc sabe. GENI
Eu? AZEVEDO , voc mesmo. E eu no lhe devo nenhuma explicao. Voc se lembra da poca do circo? HELONEIDA Que isso? Deixa de ser saudosista, Azevedo. AZEVEDO Isso no saudosismo no, minha filha, vingana mesmo. HELONEIDA (Corajosa) O meu consolo, Azevedo, que voc tambm mais cedo ou mais tarde vai receber o castigo que merece. AZEVEDO (Surpresa e possessa) O qu? GENI isso mesmo. AZEVEDO (Tirando um chicote da cintura e estalando-o no ar. Para Heloneida) REPETE! HELONEIDA No. Voc ouviu muito bem. AZEVEDO Ento eu j sei o que que eu vou pegar. Eu estava fingindo que esquecia o espelho de pena de vocs mas agora... (Vai at o espelho. Corre e pega o espelho) No! AZEVEDO Nada disso. Me d o espelho, anda! (Azevedo est com as mos cheias de coisas, os objetos da cela) HELONEIDA Leva o que voc quiser, Azevedo, mas o espelho nem pensar... O espelho eu no dou. AZEVEDO (Explodindo) Que no d, o qu! (Para Geni) Segura isso aqui. (D os objetos para Geni segurar. Geni recusa.) GENI No. Isso eu no fao. AZEVEDO No faz? Ento eu vou te levar pro pau de arara. Vou te deixar bem esticada. GENI (Ponderando) Bom, nesse caso eu seguro. (Azevedo d os objetos a Geni) AZEVEDO Assim que eu gosto (Entregando os objetos. Para Heloneida) Agora me d o espelho. HELONEIDA Pelo amor de Deus, Azevedo, deixa eu ficar com o espelho. AZEVEDO Nada disso. O que eu puder fazer pra acabar com a festa de vocs, eu fao. HELONEIDA a nica coisa que eu te peo. AZEVEDO Pois esse prazer eu no te dou. Me d imediatamente o espelho seno eu te meto a mo na cara. (Arranca o chicote e o estala no ar. Heloneida desanimada entrega o espelho) Assim. (Pausa) Pra que que voc quer o espelho? HELONEIDA Pra que que voc acha que eu quero o espelho? Pra me ver nele. AZEVEDO S pra isso? HELONEIDA . pra me arrumar pra quando o Carcereiro vier me visitar. AZEVEDO Chega de brincadeira. Que mania essa sua de Carcereiro... Esse Carcereiro no existe. GENI No existe? AZEVEDO Claro que no, meu anjo. Onde j se viu priso feminina com Carcereiro. Por que que vocs iam ter essa colher de ch? HELONEIDA Me deixa o espelho? AZEVEDO A nica pessoa que vem visitar vocs sou eu e pra mim vocs no precisam de se enfeitar. GENI Voc est perdendo a esportiva, Azevedo. AZEVEDO No meu bem. Eu detesto vocs duas. Vocs so muito metidas. Eu vou acabar com essa segurana. GENI Se eu soubesse, eu tinha quebrado esse espelho e retalhado a sua cara com um caco. HELONEIDA (Chocada) No diga isso, Geni. GENI Digo sim. AZEVEDO (Debochando) Coisa boa! Quem mandou ser burra e no pensar nisso antes. Agora tarde... (Saindo) No que depender de mim, vocs vo acabar loucas. (Sai) GENI Desgraada. HELONEIDA Peste. GENI Tambm, a prxima vez que ela entrar aqui eu vou chamar ela de Jandira. HELONEIDA No brinca, Geni. GENI E chamo mesmo. Jandira. Quero ver. HELONEIDA Nem pensa nisso. Ela acaba com a nossa raa. GENI Que nada. A Jandira eu conheo. Deixa pra mim. HELONEIDA Ela muito perigosa, Geni. Eu morro de medo daquele chicote.
GENI Que nada. Aquele mata-mosca s pra impressionar a gente. A Jandira no de nada. (Barulho de chaves. Entra Azevedo) AZEVEDO Que discusso essa? HELONEIDA (Simptica) Que que voc veio fazer, Azevedo? No tem mais nada pra voc levar. AZEVEDO No da sua conta. (Apanha os pratos de sopa e v o copo com sonrisal que Heloneida no tomou) Voc no vai tomar o seu sonrisal? HELONEIDA No, muito obrigada. AZEVEDO Est bem. (Para Geni) Ento toma voc. GENI Mas eu j tomei o meu. AZEVEDO Mas vai tomar o outro. GENI Mas eu no quero. AZEVEDO (Prepotente) Toma. (Geni toma) Assim que tem que ser. Me obedecendo vocs s tm a ganhar. (Sai) HELONEIDA (Rindo) A Azevedo to engraada. No fundo eu at gosto dela. GENI (Possessa) Falsa! HELONEIDA (Ainda rindo) Que que foi, Geni? GENI Voc, com essa mania de superioridade... s a Azevedo entrar aqui que voc logo mija pra trs. HELONEIDA Que que voc queria que eu fizesse? GENI Sei l. Se voc fosse outra, a gente j tinha acabado com a alegria dela. Mas voc, no! Fica a, se mijando de medo. HELONEIDA (Chocada) Que isso, Geni? Onde voc pensa que ns estamos? GENI Dane-se! No quero nem saber. S quero me mandar desta merda! HELONEIDA Geni! GENI isso mesmo! HELONEIDA Respeita a plateia, Geni. No diz palavro. Voc j esqueceu que agora voc uma moa fina? GENI ... s queria me mandar daqui. HELONEIDA Pra onde? GENI Sei l... pro inferno mesmo... no quero nem saber... eu no posso ficar parada... o que eu quero movimento. HELONEIDA Nossa, Geni, voc est cada vez pior. GENI Que que voc quer dizer com isso? HELONEIDA Esquece, meu anjo. (Pausa) Estou numa solido... Antigamente a gente se comunicava tanto. Eu falava, voc me ouvia... voc falava, eu ficava te ouvindo, era to bom. Ultimamente eu fico falando sozinha e voc tambm. A gente no se ouve mais... nos ltimos dias eu tenho me cansado toa. GENI Eu tambm estou pregadona. (Pausa) Isso aqui est ficando insuportvel. HELONEIDA Por que ser que a Azevedo foi levar as nossas coisas? Isso aqui no est mais parecendo um lar. Do jeito que est eu tambm no vou aguentar ficar aqui muito tempo. Afinal de contas, na poca do ginsio a minha matria predileta era Geografia. GENI (Corrigindo) Economia Domstica. HELONEIDA . Desculpa. Geografia era a sua. (Introspectiva) Como era mesmo o nome da minha professora? GENI Ela no se parecia com uma artista? HELONEIDA verdade. Mas com qual artista? Com a Dorothy Malone? Com a Olivia de Havilland? GENI No. Acho que no era essa. HELONEIDA Com a Lana Turner? No, a Lana muito moa... ainda outro dia a filha da Lana matou o namorado da Lana... No, no era a Lana... era uma mais antiga, do cinema mudo. GENI No era Theda Bara? HELONEIDA ... eu acho que sim. Ela at apareceu nua num filme. GENI A Theda Bara? HELONEIDA . Ela mesmo. GENI Misericrdia! HELONEIDA Estou sentindo umas tonteiras, uma vontade de vomitar... GENI Foi a sopa. Voc no tomou o sonrisal. HELONEIDA mesmo. GENI Em compensao eu j estou com fome de novo. HELONEIDA Por qu? GENI Porque, alm de eu ter tomado o meu sonrisal, a Azevedo ainda me obrigou a tomar o seu, e com isso eu fiz a digesto depressa. HELONEIDA Com todas essas irregularidades, eu nem sei como que a gente continua viva. s vezes tenho a impresso de que estamos ns duas sozinhas no mundo.
GENI Meu Deus! HELONEIDA Me diz uma coisa, Geni. Voc acredita em Deus? GENI No acredito, mas morro de medo. HELONEIDA De Deus? GENI No Heloneida, de estar sozinha no mundo. HELONEIDA Mas voc no est sozinha, eu estou aqui com voc. GENI Mesmo assim eu estou me sentindo to sozinha... HELONEIDA Sabe, Geni, s vezes eu penso que estou num purgatrio, mas com os ltimos acontecimentos eu tenho quase a certeza de estar no inferno mesmo. GENI isso que eu no entendo. HELONEIDA O qu? GENI Por causa dos nossos crimes a gente no devia estar no inferno? HELONEIDA Eu tenho pensado muito nisso ultimamente. GENI E ento? HELONEIDA Mas acho que ns estamos numa priso. GENI Por qu? HELONEIDA Porque ns estamos vivas. GENI Voc tem certeza? HELONEIDA De qu? GENI De que estamos vivas? HELONEIDA No, Geni. Certeza eu no tenho. Eu nunca, durante toda a minha vida, nunca tive certeza de nada. S dvidas... isso que pior. GENI A gente estar viva? HELONEIDA (Suspirando) No, meu anjo. A gente no saber se est viva ou morta. GENI (Assustada) Ento a gente precisa de ver isso. Se no, a gente no pode saber se est num purgatrio, num inferno ou numa priso... HELONEIDA Mas ao mesmo tempo eu me pergunto... GENI O qu? HELONEIDA Ser que precisa a gente estar morta para estar no inferno? GENI (Com raiva). No me faa esse tipo de pergunta. Voc sabe que eu no sei responder. HELONEIDA No seja agressiva, Geni. Eu fiz essa pergunta a mim mesma. GENI E ento? HELONEIDA No sei, Geni... de repente eu no sei de mais nada. GENI Estou to confusa. HELONEIDA Esquece. (Pausa) Chega aqui. GENI Que que voc quer? HELONEIDA Me diz uma coisa. Como que est a minha cara? GENI Normal. HELONEIDA O que que voc quer dizer com isso? GENI No mudou nada. HELONEIDA Voc tem certeza? GENI Certeza, certeza eu no tenho. HELONEIDA (Desanimada) Ento no adianta. GENI Que que eu posso fazer? Eu tambm j no tenho certeza de nada... HELONEIDA Voc tambm j no mais a mesma. GENI Voc tambm. HELONEIDA O qu? GENI J no mais a mesma. HELONEIDA Essa que a verdade. dura, mas a gente vai ter que assumir. Quando a gente se conheceu aqui nesta cela... a gente era to estranha... eu no sabia nada de voc e voc no sabia nada de mim... depois... com o tempo a gente foi se descobrindo... voc me contava as suas histrias e eu te contava as minhas... a gente se ouvia... era divertido mesmo... as nossas vidas foram to ricas de experincias... ns nos aguentamos durante muito tempo por causa das nossas experincias passadas. Agora acabou... a gente no tem mais nada pra contar... essa a verdade... agora que eu vejo como ns somos diferentes... estou me sentindo to sozinha sem o meu espelho... GENI O espelho? HELONEIDA . A Azevedo levou. Como que eu vou me aprontar agora quando o Carcereiro vier me ver? GENI Mas o Carcereiro no existe. HELONEIDA Como que voc sabe? GENI Foi a Azevedo quem disse, voc no se lembra? HELONEIDA E voc acredita nela? GENI Por que que eu no vou acreditar? HELONEIDA Por que que voc acredita nela, e no em mim? GENI A Azevedo mais realista. HELONEIDA A Azevedo quer ser mais realista que o prprio rei. (Pausa) Isso aqui est ficando insuportvel... GENI por
isso que eu quero ir embora. HELONEIDA Voc v... a gente no est mais se entendendo como antes... acho que agora acabou... vai chegar um dia em que a gente vai ficar muda... sem mais nada pra dizer... a quem sabe se finalmente eu no vou conseguir aquilo que eu sempre quis... o meu isolamento total... (Pausa) Que solido, Meu Deus... eu no aguento mais viver sem as minhas coisas... primeiro o peixinho... GENI Que foi que voc disse? HELONEIDA No... nada, eu estava s me lembrando... primeiro o peixinho... ele morreu naquele vero... o ltimo que eu fui praia... (Mostra o umbigo a Geni) Olha! GENI (Censurando) Nossa, que coisa feia! HELONEIDA Mas eu gosto... s tenho coragem de mostrar pra voc... o meu peixinho ficava aqui... quando eu ia praia... enchia o meu umbigo de gua doce e punha o meu peixinho dentro... fazia uma ccega gostosa... depois ele morreu... (Pausa) Que solido... depois o meu irmo... o Hermann... as orelhas dele eram grandes... assim (Mostrando). GENI Nossa! HELONEIDA Eu fazia ccegas nas orelhas de meu irmo... os olhos dele brilhavam de felicidade, mas ele tambm morreu... a eu fiquei sozinha, eu que sempre fui indiferente a tudo... por isso eu brincava... a minha fantasia... eu tinha medo de sair de casa... das notcias dos jornais... medo de que acontecia no mundo... mas ao mesmo tempo eu gostava de estar viva... inventar coisas... o Piolho. GENI Quem? HELONEIDA O Piolho, Geni. Por que essa cara? GENI No Heloneida, o Piolho no. HELONEIDA O Piolho, sim, Geni. GENI O Piolho no. O meu palhao no... o Piolho no... HELONEIDA Eu inventei o Piolho, Geni. GENI Mentira. Essa histria... quem te contou... fui eu... o Piolho meu... HELONEIDA Quem sabe se no fui eu quem te contou essa histria... tanto faz... voc se lembra... GENI No, Heloneida... HELONEIDA ... A gente brincava... GENI Eu no quero mais brincar, Heloneida... no faz isso comigo... essa histria minha... um dia... voc lembra... eu peguei gasolina e joguei no circo... o circo estava cheio de gente... era domingo... a... voc lembra que eu risquei o fsforo... voc lembra... HELONEIDA No, Geni... essa histria... GENI Voc lembra... O Piolho... eu gostava tanto dele... ele tinha as orelhas grandes... assim... vermelhas... HELONEIDA No, Geni... voc est inventando... GENI ... Eu passeava com ele pelo campo... ele deitava no meu colo e dormia... ele dormia e era eu quem sonhava... eu enfeitava as orelhas dele com flores, flores do campo... eu quero o Piolho, eu quero o Piolho... eu quero... eu quero... eu quero ir embora... eu quero fugir... eu quero fugir daqui... HELONEIDA Mentira, Geni... tudo mentira... esse Piolho nunca existiu... esse circo nunca existiu... GENI Eu quero fugir daqui... eu quero fugir daqui... HELONEIDA (Gritando) Para com isso. Voc s fala em fugir, sumir desaparecer... fugir fcil... s voc fechar os olhos... por que que voc pensa que eu estou aqui?... eu tambm queria fugir... eu vivia querendo fugir... eu tinha que fugir... eu tinha que fugir... (Pequena pausa)... por isso eu estou aqui... fugir fcil... GENI No quero nem saber... no me venha com essa... mas o Piolho meu.. no vem no... HELONEIDA Que que adianta, Geni? GENI No... eu quero ir embora... HELONEIDA De repente eu me sinto vazia... no fim mesmo... GENI Mas eu no... eu estou muito viva... eu tenho esperana... eu vou fugir... HELONEIDA Mas pra qu, Geni?
GENI Sei l... as minhas pernas esto duras de tanto ficar parada... eu quero correr... eu vou me mandar... e agora... (Sai pela plateia) HELONEIDA Voc no pode fugir... isto aqui no tem sada Geni... GENI (Da plateia) Mas eu acho... eu acho uma sada... HELONEIDA No adianta, Geni... Isso aqui um hospcio... est cheio de gente l fora... eles vo fazer maldade com voc.... GENI ... eu quero ir embora... onde que est a porta?... ser que estou ficando louca?... onde que est a porta?... HELONEIDA No adianta, Geni... isso aqui uma priso... est cheio de guardas l fora... eles vo te dar choque eltrico, Geni... vo te pr na camisa de fora... Volta... GENI No... agora eu quero ir embora... eu no aguento mais... HELONEIDA No adianta, Geni... voc no pode fugir... Isto aqui um teatro, Geni... (As luzes da plateia se acendem) GENI (Desesperada no meio da plateia) Me ajuda, Heloneida... me ajuda... HELONEIDA Eu no posso, Geni... eu no posso fazer nada... a gente vai ter que ficar junta at o fim... at a morte... GENI (Gritando) No, Heloneida, eu no quero... me ajuda... HELONEIDA No, Geni... eu no posso fazer nada... voc no pode fugir... Volta, Geni. (Barulho de chaves. Entra Azevedo com os braos cheios de papel crepom de todas as cores) AZEVEDO Mas que gritaria essa? Trouxe trabalho pra vocs. (Dando pela falta de Geni) Cad a outra? HELONEIDA Hein? AZEVEDO Cad a outra? HELONEIDA Fugiu. AZEVEDO (Sem perturbar-se) Ah, ? Por onde? HELONEIDA Por ali. (Mostra a plateia) AZEVEDO Ah, sei. Ento no tem problema... (Vai at a boca de cena) Geni! (Pausa. Berrando) Geni! (Pausa) VOLTA PRA C! (Pausa) Voc no vai voltar? Ento eu vou a te buscar de chicote. (Desce para a plateia atrs de Geni) HELONEIDA (Procurando a Geni com os olhos. Da boca de cena) Geni, meu anjo, melhor voc voltar... seno a Azevedo te machuca... GENI No, eu quero ir embora... AZEVEDO (Da plateia) Ah, voc est a... espera que eu vou te pegar... (Sai correndo atrs de Geni. Geni volta correndo para o palco. Azevedo atrs. Geni sobe para o palco, desanimada) Voc vai querer ficar fugindo a vida inteira? Daqui voc no sai nunca mais. E no quero mais brincadeira comigo. Agora vocs vo ter que trabalhar pra cachorro. (Pausa) GENI (Preocupada) Me diz uma coisa, Azevedo. AZEVEDO Fala. GENI Que isso aqui, hein? AZEVEDO Isso, o qu? GENI Esse lugar aqui... que a gente est? AZEVEDO Por que que voc quer saber... que mania essa de querer saber tudo... eu que estou aqui h 14 anos, no sei! HELONEIDA (Espantada) 14 anos?! AZEVEDO 14 anos, sim... que cara essa? 14 anos contadinhos na folhinha... dia por dia... HELONEIDA Voc gosta tanto assim daqui? AZEVEDO O problema no gostar ou no gostar... em qualquer lugar eu tinha que trabalhar do mesmo jeito... quem sou eu pra escolher?... estou aqui ganhando a minha vida honestamente... cumprindo ordens. HELONEIDA Com quantos anos voc entrou aqui, Azevedo? AZEVEDO (Saudosa) Eu tinha 20 anos... entrei aqui s pensando numa coisa... GENI No qu? AZEVEDO Na minha aposentadoria... a nica coisa que me interessa. HELONEIDA Mas por que que voc no arranjou um emprego mais agradvel? AZEVEDO Sabe por qu? Porque aqui eu posso dar ordens. Posso mandar... posso obrigar a vocs fazerem o que eu quiser. Aqui eu me sinto poderosa.
GENI E ningum te d ordens? Ningum manda em voc? AZEVEDO (Possessa) Chega de conversa... aqui quem faz perguntas sou eu... e vamos comeando a trabalhar... Vo fazer flor... vo... est morrendo mais gente que nunca... recebi ordens de mandar vocs fazerem mil e quinhentos girassis at amanh cedo. GENI Mil e quinhentos! HELONEIDA Nossa! Ser que a gente consegue? (Pegam papel e comeam a trabalhar) AZEVEDO Consegue sim. Essa noite vocs no vo dormir... Quero tudo isso pronto at amanh cedo. Seno, vocs vo receber um castigo que vocs nem podem imaginar. (Sai) GENI A Azevedo tambm faz um drama! HELONEIDA Que bom! Eu j estava sentindo falta dessas encomendas de flores. Estava at pensando que o mundo tinha mudado... que no tinha mais mortes... (Fazendo flores) Sabe, Geni... eu j cansei de fazer girassol... estou doida pra aprender a fazer antrios... begnias... gernios... hortnsias... (Pausa) GENI Mil e quinhentos... no vai ser mole... HELONEIDA Eu estava pensando... GENI No qu? HELONEIDA Na fatalidade... foi ela quem nos uniu e por causa dela a gente vai passar o resto da vida juntas. (Olha para o cu) Se Deus quiser. GENI (Censurando) No brinca com essas coisas, Heloneida. HELONEIDA , sim. A gente ainda tem tanta coisa pela frente. Ns j cumprimos a primeira parte da nossa misso... (Pe uma flor de lado e pega mais papel) Isso me deixa aliviada... agora vem a segunda parte. GENI Que misso? HELONEIDA Ora Geni, como voc esquecida... todo ser humano tem uma misso a cumprir... umas mais importantes... outras menos importantes... ns j cumprimos a primeira parte... agora vem a segunda. GENI E qual era a primeira parte? HELONEIDA Fazer flores de papel. GENI E a segunda? HELONEIDA Fazer mil e quinhentas flores at amanh cedo. GENI E essa misso importante? HELONEIDA Importantssima (Olha fixamente a plateia). FIM O Co Siams ou Alzira Power Pea em dois atos O Co Siams estreou em 6 de agosto de 1969 no Teatro do Meio (Ruth Escobar), em So Paulo, com o seguinte elenco: Yolanda Cardoso (Alzira) e Antnio Fagundes (Ernesto), direo de Emlio di Biasi. Em janeiro de 1971 outra montagem, no Teatro Glucio Gil, no Rio de Janeiro, com Yolanda Cardoso e Marcelo Picchi, direo de Antnio Abujamra e cenrios e figurinos de Napoleo Moniz Freire. Personagens Alzira Mulher de aproximadamente 41 anos, agressiva e nervosa, impaciente e insubmissa. Funcionria aposentada dos Correios e Telgrafos. Ernesto Jovem de 23 anos, vendedor ambulante tpico. Terno, gravata e pasta. Cenrio Uma sala-quarto de apartamento modesto, no estilo final dos anos 60. Uma radiovitrola, um armrio, um sof-cama. direita, uma janela; esquerda, uma porta que d para a cozinha e para o banheiro. Na parede do fundo, a porta de entrada do apartamento. Primeiro Ato Ao abrir o pano, a porta de entrada do apartamento est aberta. Alzira est em cena sentada numa poltrona, de frente para o pblico, simulando um choro. Parado porta, est Ernesto, que tenta chamar a ateno de Alzira, sem sucesso. Alzira continua chorando. Ernesto toca a campainha. Alzira finge que no escuta e aumenta o choro. Ernesto toca mais forte e mais vezes a campainha. Ele est nervoso e
tmido. Alzira, sem ver o rosto de Ernesto, percebe que ele entrou e est de p, atrs dela. Alzira continua na mesma posio, sentada de costas para Ernesto, e de frente para o pblico, o qual ela encara, de vez em quando, como que sugerindo cumplicidade. Alzira para de chorar e espera a fala de Ernesto. Alzira est visivelmente irritada. Levanta-se da poltrona e enfrenta agressivamente Ernesto. ALZIRA Afinal de contas, quem o senhor? (Irritada) O senhor me desculpa, mas eu no o conheo. ERNESTO (Sem saber como agir) Eu posso ajudar em... alguma coisa? (Silncio) Que foi que aconteceu? (Pausa) A senhora estava chorando... a senhora me parece muito triste... (Pausa) Por que que a senhora est to deprimida? ALZIRA (Agressiva) O senhor no tem o direito de me fazer tantas perguntas. Se eu estou deprimida um problema meu. ERNESTO (Gentil) Eu sei... claro... mas que eu... ALZIRA Se o senhor quer saber, estou deprimida porque perdi o meu cachorro. ERNESTO Qual era a raa? ALZIRA Me diz uma coisa, meu senhor, o senhor est querendo puxar assunto, ? ERNESTO No, minha senhora... ALZIRA Que importncia tem a raa de um cachorro? Que mania essa das pessoas... Meu cachorro some e o senhor j vem logo querendo saber a raa. Eu sei pra qu. E se eu dissesse pro senhor que o meu cachorro era um co siams, o senhor acha que ia adiantar, agora que ele sumiu? ERNESTO A senhora est sendo agressiva... eu s quis ser gentil... eu reconheo o quanto difcil perder algum que a gente tanto quer bem... ALZIRA (Cortando, seca) Tudo mentira. Eu conheo muito bem as pessoas. Sei que o senhor est mentindo. O senhor pensa que eu no percebi. Est querendo puxar assunto. Pensa que eu no sei? Eu sei muito bem qual o interesse de todos os homens. Por isso eu detesto os homens. E as mulheres tambm. Que falta de respeito, eu que nem bem acabei de perder o meu cachorro e j vem logo o senhor querendo substitu-lo. Como se fosse possvel. ERNESTO Minha senhora... a senhora est enganada... a senhora no entendeu... ALZIRA Eu entendi muito bem. (Provocativa) O senhor sabe miar, por acaso? ERNESTO (Comeando a ficar irritado) Minha senhora... ALZIRA (Mudando o tom. Ilustrativa) O meu co siams miava. Eu tinha um casal de ces siameses. (Ernesto se sente mais irritado, Alzira desafia-o) Me diz uma coisa: o senhor no se acha pretensioso, no? O senhor sabe o que um co siams? (Pausa) Anda, responde. O senhor sabe o que um co siams? (Convicta) No existe coisa mais rara. (Alzira d de ombros e vira as costas para ele). ERNESTO A senhora me exaspera. ALZIRA (Voltando-se) E voc me desespera. Qual a sua profisso... antes de mais nada... qual a sua profisso? ERNESTO (Profissional) Eu exijo que a senhora me trate por senhor. Afinal eu estou aqui para tratar de negcios. E isso exige um tratamento mais respeitoso. ALZIRA ( vontade) Eu falo como eu quiser. Estou na minha casa e na minha casa eu falo como bem entender. Se o senhor no est contente, a porta est aberta. Voc entrou aqui de enxerido... ERNESTO (Suspirando) Sou corretor de automveis. ALZIRA (Chocada) Corredor de automveis??? Fora daqui. O senhor um louco! ERNESTO (Impaciente) A senhora no entendeu... ALZIRA Entendi muito bem. Fora daqui. Conheo bem esse tipo... corredor de automveis... So todos uns irresponsveis... conheci muito bem um quando eu era mocinha... O Chico Landi... (Dando de ombros) O Fittipaldi pinto perto dele. So todos uns loucos... ERNESTO Mas a senhora no entendeu... ALZIRA Entendi muito bem. Fora (Apontando). ERNESTO (Gritando) A senhora quer me ouvir? (Alzira ouve) Eu disse corretor: Tr, Tr, corretor de automveis. ALZIRA (Esnobando) E qual a diferena?... um d por um t... no fundo a
mesma coisa. So todos uns vagabundos. ERNESTO Minha senhora, de uma vez por todas... ALZIRA (Cortando) Eu sei muito bem o tipo de vida que o senhor leva. (Pausa) ERNESTO (Desistindo) T bem... eu vou embora... (Caminha para a porta de sada). ALZIRA (Tentando alcan-lo) Nem pensar. (Segurando-o pelo brao). Nada disso. S depois de me ouvir. Quem mandou o senhor entrar aqui? Sabe que eu posso process-lo por invaso de propriedade alheia? ERNESTO A porta estava aberta. ALZIRA Uai, e da?! ERNESTO Eu toquei a campainha. Ningum atendeu. A porta estava aberta... escancarada... e eu vi a senhora chorando... eu entrei... na melhor das intenes... agora... a senhora me desculpa, mas eu vou embora... (Ameaa sair). ALZIRA (Segurando-o) Nada disso. Agora que o senhor est dentro da minha casa vai ter que me ouvir. Dentro da minha casa quem d ordens sou eu. (Solta-o, vai at a porta, tranca-a com a chave, faz como quem vai guardar a chave no suti, olha pra ele, vai janela e joga a chave fora) Pronto. Hoje eu tenho muitas verdades pra jogar na sua cara! ERNESTO (Atnito) A senhora louca! (Vai at a janela) Eu vou gritar! ALZIRA Grita! (Desarruma o cabelo e tira uma pea de roupa e joga pela janela. Fica de combinao preta. Cumprimenta a vizinha) Boa-tarde, Dona Esmeralda. Com licena. (Fecha a janela. Para Ernesto) Pronto. Pode gritar. (Com dio) Cachorro! Ordinrio! Indecente! ERNESTO Pelo amor de Deus, para com isso. ALZIRA Indecente! Indecente! Indecente! Eu sei o tipo de vida que o senhor leva. ERNESTO (Cai sentado na poltrona. Afrouxa a gravata) Ser que a senhora podia ao menos abrir a janela... est fazendo um calor de matar... esse vero no est fcil... ALZIRA O senhor no sabe o caminho? ERNESTO (Levanta-se e abre a janela. Fica um instante olhando para fora). ALZIRA O senhor quer sair da janela? (Ele continua na janela) Que que os vizinhos no vo pensar de mim?... (Ele continua na janela) O senhor quer sair da janela? (Ele continua) O senhor no vai sair? Ento eu vou fechar... (Vai fechar. Ele a segura. Ela grita) Me solta! (Ele continua segurando. Ela d uma mordida no brao dele. Ele d um grito de dor e solta-a. Ela fecha a janela). ERNESTO (Passando a mo na mordida, gemendo de dor) Desgraada! ALZIRA (Mais calma) Isso para aprender a me respeitar. ERNESTO A senhora est perdida. Tinha uma mulher na janela ali em frente e ela viu tudo... Viu a senhora me mordendo. (Alzira fica sria, preocupada). ALZIRA Era a Esmeralda. (Para ele) A Esmeralda viu??? ERNESTO Tinha uma mulher na janela. ALZIRA (Fatalista) Era a Esmeralda, eu tenho certeza. Estou perdida. A essas horas todo mundo j sabe... (Para ele) Saia imediatamente! ERNESTO Com o maior prazer. (Vai at a porta. Tenta abrir. Est trancada) Est trancada. ALZIRA Destranca. ERNESTO A senhora jogou a chave pela janela. ALZIRA (No diz palavra, cai no sof abatida, um segundo depois levanta, decidida) Quem sabe se no tem algum desses malditos meninos l embaixo? (Abre a janela e sorri falsamente para Esmeralda) Boa-tarde, dona Esmeralda. A senhora vai bem? Hein? (Pausa) O qu?! No cu do papagaio? (Ernesto abre a pasta, tira uma chave de fenda e tenta abrir a porta. Alzira percebe e volta, contando a Ernesto do papagaio.) Que menino mais tarado, meu senhor! Enfiou um lpis no cu do papagaio! (Percebendo que ele est com a chave de fenda na porta) Nada disso. O senhor quer estragar a minha porta? ERNESTO (Continuando) A senhora me desculpa, mas aqui no fico mais um minuto... ALZIRA (Possessa, tira a chave de fenda da mo dele) J disse pra no estragar a minha porta. (Furiosa) O senhor arranhou... arranhou a minha porta. (Tenta feri-lo com a chave de fenda, os dois lutam e ele toma a chave dela) Me d a chave de fenda!
ERNESTO (Irritado) Ora, minha senhora.... ALZIRA (Irritadssima) Me d imediatamente essa chave de fenda. ERNESTO (Desanimado) Est bem. (Entregando) Toma. ALZIRA (Pegando a chave de fenda) Assim... (Vai at a janela e joga a chave fora) A senhora me d licena, dona Esmeralda? (Vai fechando a janela) E o papagaio? Se fodeu, n? (Fecha a janela e volta-se para Ernesto) Pro senhor aprender a no arranhar a minha porta. (Pequena pausa) O senhor no est vendo que a casa foi pintada recentemente? O senhor sabe quanto eu gastei pra pintar esta sala? (Ele no responde. Tira um cigarro do bolso e vai acend-lo. Imediatamente ela toma o cigarro dele, abre a janela e joga o cigarro fora) Com licena, dona Esmeralda. Hein? T sim, t um calor de matar, a senhora est com tudo, hein? Se eu pudesse eu tambm ia curtir uma janela... (Ernesto tirou outro cigarro e est fumando. Alzira para dona Esmeralda) Um momento... (Volta-se para Ernesto) Essa mulher uma fofoqueira... passa o dia inteiro na janela... tambm... sabe da vida de todo mundo... (Alzira ainda no percebeu que Ernesto est fumando. E, distrada, ela mesma pega um cigarro do mao dele e acende. D uma tragada e percebe que ele est fumando. Furiosa) O senhor no aprende mesmo! (Tira o cigarro da mo dele, vai at a janela e joga o cigarro fora. Para Esmeralda) Isso que vida, hein, dona Esmeralda? (Voltase para Ernesto, d uma tragada no cigarro e suspira profundamente). ERNESTO Mas a senhora est fumando... ALZIRA O senhor se esquece de que eu estou na minha casa... (Alzira fuma, com prazer) Aqui quem manda sou eu... Olha pras minhas pare-des... elas foram pintadas outro dia... Fumaa de cigarro mancha a parede... principalmente esse tipo de parede... essas tintas modernas tm isso de negativo... o efeito dura muito pouco... ERNESTO Mas a senhora est fumando... (Com ar de interrogao) ALZIRA Porque o senhor me deixa nervosa... (Pequena pausa. Ela tenta fazer rolinhos de fumaa) Me diz uma coisa: o senhor casado? ERNESTO Pra que que a senhora quer saber? ALZIRA Aqui quem faz perguntas sou eu... estou na MINHA CASA. ERNESTO Sou. ALZIRA Eu sabia. O senhor nem precisava me dizer. O senhor tem filhos? ERNESTO Dois. ALZIRA Eu bem que desconfiava. O senhor um irresponsvel. Pr dois filhos no mundo... um casal? ERNESTO Duas meninas. ALZIRA Duas meninas? Eu sabia. (Joga o cigarro pela janela e volta-se imediatamente para ele) O senhor tem moral para educar essas duas pobres criancinhas? Que pssimo exemplo o senhor deve dar... O senhor paga aluguel? Aposto que no paga. Eu conheo muito bem esse tipo. Tenho pena da sua mulher. O senhor um covarde... ERNESTO Minha senhora, o caso o seguinte... ALZIRA Pode dizer. ERNESTO Eu no lhe dei essa intimidade. ALZIRA O qu?! O que que o senhor quer dizer com isso? O senhor quer dizer que eu no estou me portando como devia? Que eu estou lhe faltando com o respeito? Como que o senhor se atreve? ERNESTO A senhora no me leve a mal pelo que eu vou dizer... mas a senhora uma louca. Uma louca varrida. ALZIRA Louca sim... louca porque tenho a coragem de dizer a verdade na sua cara... Louca porque no tenho medo do senhor. Aposto que a sua mulher no tem essa coragem. Ela deve ser do tipo da mulher que morre de medo do marido... uma pobre coitada. (Ele suspira) Est vendo? O senhor no responde. Conheo bem esse tipo. Tenho pena da sua mulher. (Brusca) Pena e dio... dio, ouviu? dio porque ela uma covardona. Todo ms... parece at que estou vendo... quando o cobrador vem cobrar o aluguel o senhor se esconde e ela, coitada, quem vai atender... a pobre coitada que passa pelo vexame de ter que atender o cobrador... sim, porque o senhor, naturalmente, se esconde. Quantos meses de aluguel o senhor j est devendo? (Ele nada responde) O senhor no vai responder? (Pausa)
Como se eu no soubesse. Meses e meses sem pagar o aluguel... at ser despejado... A o senhor, usando da sua proverbial m-f, manda a sua mulher porque ela inspira pena, manda a sua mulher junto com as suas duas pobres filhinhas procurar um novo apartamento... E a o novo proprietrio... que deve ser um moo muito fino, j que proprietrio... fica com pena... (Ernesto, que durante esse tempo vai perdendo a pacincia, levanta-se e vai at a janela) Onde que o senhor pensa que vai? ERNESTO (Desesperado, grita) Dona Ametista! Dona Ametista! ALZIRA Que Ametista?, seu burro! Querendo rebaixar minha amiga! Esmeralda! (Fecha a janela) Seu cafajeste! (Vai ao armrio, tira um copo, vai at a cozinha, abre um aucareiro e pe um pouco de acar dentro, vai at o filtro e pe um pouco de gua. Ele acompanha apavorado os movimentos dela). ERNESTO Que que a senhora est fazendo? ALZIRA (Voltando e oferecendo o copo a ele) No da sua conta. Toma! ERNESTO (Recusando) Deus me livre, deve ser veneno. ALZIRA O qu??? O senhor sabe o que est dizendo? O senhor sabe que eu posso processlo por difamao e calnia? (Ordenando) Toma! ERNESTO (Recusando) O qu que isso? ALZIRA (Oferecendo) gua com acar... calmante... o senhor est muito nervoso... e isso me incomoda... Toma! ERNESTO Mas eu no quero. ALZIRA (Berrando) TOMA! (Ele pega o copo e toma um gole. Alzira vai virando o copo, como que ajudando) Bebe tudo... acar custa dinheiro... dinheiro custa a ganhar... (Ele vai tomando) assim... Detesto gente nervosa. Perto de gente nervosa, eu, que geralmente sou calmssima, tambm acabo nervosa. (Pausa) O senhor est se sentindo melhor? ERNESTO Estou. ALZIRA Pois no parece. (Passa o dedo na testa dele) O senhor est suando... ERNESTO Deve ser o calor. ALZIRA O senhor est querendo insinuar que a minha casa quente? ERNESTO No isso.. ALZIRA Eu no admito. Eu me sinto muito bem aqui e todo mundo que vem me visitar obrigado a se sentir bem. ERNESTO A senhora bem que podia abrir a janela. ALZIRA Abre o senhor... Eu no acabei de dizer que na minha casa todo mundo obrigado a se sentir vontade? Se o senhor quer abrir a janela, v l e abra. ERNESTO (Levantando-se e abrindo a janela) Obrigado. s vezes a senhora sabe ser gentil. ALZIRA Nada de elogios. Eu detesto elogios. Dispenso. Isso coisa de gente fraca. ERNESTO Eu no sabia que a senhora pensava assim. Desculpa. ALZIRA E nada de desculpas. Detesto gente que pra viver tem que ficar a... pedindo desculpas. (Pausa) Qual o seu nome? ERNESTO Ernesto. ALZIRA Bem que eu desconfiava. Ernesto sim, mas de qu? ERNESTO A senhora me desculpa... ALZIRA J disse que detesto desculpas. ERNESTO No, no isso... que eu tenho... sabe como ... eu tenho... vergonha de dizer o meu nome inteiro... ALZIRA (Chocada) o senhor tem vergonha do seu prprio nome??? ERNESTO (Baixando a cabea tmido) Ernesto Pasqualini Parmelucci. ALZIRA O qu? Fala mais alto. ERNESTO (Levantando a cabea) Ernesto Pasqualini Parmelucci. ALZIRA Ora, sim senhor... Ter vergonha de um nome to bonito... Que falta de carter... Engraado, eu tambm conheci um Ernesto... ele era vendedor de revistas... Ernesto Pasqualini Parrmelucci... (Indiferente) Deve ser seu pai. O Ernesto era filho de italianos... O senhor filho de italianos? ERNESTO Neto. ALZIRA (Desligada, lembrando) Eu tive um namorado... era filho de italianos... tambm se chamava Ernesto... Ernesto Pasqualini Parmelucci... era jornaleiro... ERNESTO A senhora j disse. ALZIRA J disse e repito. O senhor no seja mal-educado... estou na MINHA
casa... (Pausa. Elegaca e nostlgica) Eu adorava o Ernesto... Desgraado! ERNESTO A senhora no xinga o meu pai... ALZIRA E voc cala a boca. Eu xingo o seu pai, a sua me, voc, sua mulher, e se duvidar muito eu acabo xingando as suas filhas. (Lembrando-se de Ernesto-pai) Desgraado! Naquele tempo eu vivia numa aldeia... (Entra, baixinho, uma msica antiga e romntica, uma valsinha, ou um fox-slow, por exemplo) Minha me era professora e meu pai era guarda-livros... e eu, filha nica, com 16 anos... (Ernesto ouve, esquecido e interessado) Um dia bateram na porta... e eu fui atender. Tinha um rapaz bonito... assim como o senhor... um pouco mais jovem... e tambm um pouco mais bonito. Desculpa, a verdade a gente deve dizer, no deve? Ele trazia duas pastas grandes... cheias de revistas... ele era vendedor de revistas... vinha de outra cidade... E eu estava sozinha em casa. Meu pai trabalhava no escritrio e minha me dava aula na escola. E claro que eu no ia deixar ele entrar. Mas quando o Ernesto abriu uma pasta, que eu vi aquele monte de revistas... eu esqueci tudo, perdi o medo, e deixei ele entrar. Depois eu paguei caro essa minha fraqueza. Mas ele me parecia to educado... conversou comigo... eu ofereci limonada pra ele... e ele me deu de presente duas revistas... eu me lembro como se fosse hoje... o Clube dos Amores e A Cena Muda... as revistas que eu mais gostava... O desgraado adivinhou... Depois, uma vez por semana ele aparecia... E a gente comeou a namorar escondido. claro que o meu pai, um Botelho de Albuquerque, no ia me deixar namorar um... (Com desprezo) vendedor. Eu aprendi corte-e-costura e estava fazendo o meu enxoval escondida... (Alegre, mudando o tom) Espera um pouquinho... (vai at o armrio, tira uma caixa de papelo, leva a caixa para o sof e abre. Tira de dentro um vestido de noiva) Olha! ERNESTO (Sem graa) Que bonito! ALZIRA No joia? Eu que fiz! Inteirinho, com bordado, passamanaria e tudo. Me ajuda a vestir? (Alzira, que est s de combinao, enfia o vestido, rindo, meio desajeitada. Ernesto ajuda) Pega ali a grinalda, a guirlanda... (Ernesto pega na caixa) A gente ia fugir pra casar... (Alzira ar ranca a grinalda, com dio) Aquele desgraado! Um belo dia, no vero... fazia muito calor... e ele me perguntou se podia tirar a camisa... e eu, na maior das inocncias, disse: Claro que pode, Ernesto... (Para Ernesto-filho) Desculpe... o senhor deve estar sentindo muito calor... se quiser tirar a camisa pode... ERNESTO No, muito obrigado, estou me sentindo bem... ALZIRA Ora, pode tirar, fica vontade... (ajuda ele a tirar a camisa). ERNESTO (Tirando a camisa, passivo) Obrigado! (Alzira, distraidamente, pega a camisa dele e atira pela janela. Ele assiste atnito e no diz palavra. Ela percebe) ALZIRA Que que eu fiz?... Desculpe. uma mania que eu tenho... jogo tudo pela janela. Imagine o senhor que s vezes eu esqueo e jogo at lixo pela janela... os vizinhos vivem fazendo reclamao de mim pro sndico... Quando eu jogo dinheiro bem que eles no reclamam... Um dia eu joguei uma dzia de ovos que eu tinha acabado de comprar na feira... Por uma falta de sorte, imagina o senhor, foi cair bem na cabea duma velhinha insuportvel que mora no primeiro andar. (Pausa) Todo mundo aqui me detesta. Mas em compensao eu tambm detesto todos eles. Os nicos que eu suporto um conjunto de rock que mora a no andar de cima. Eles tocam que tocam l em cima... uma msica barulhenta, insuportvel, mas eu adoro! Porque eu adoro a juventude. (Silncio. Para Ernesto) O corpo do Ernesto era to bonito... assim como o do senhor... Um pouco mais forte, claro. E um pouco mais bonito, desculpa. (Chegando perto de Ernesto) Ele tinha pelos no peito... (Passando a mo no peito de Ernesto, desde o umbigo) Parecia uma rvore, comeava fininho no umbigo e depois abria, no peito, que nem uma rvore... (Ernesto sente ccegas e vai-se encolhendo) Ele fez aquilo de maldade.... (Com dio e ressentimento, ela vai dar um mordida no peito de Ernesto, que escapa em tempo) Eu era uma estpida. Que cara essa? Me diz uma coisa... Quantos anos o senhor tem? ERNESTO 25. ALZIRA A idade do Ernesto. Ele tinha 23 anos... e eu 16 naquela poca. No sabia nada da vida... (Nervosa e perdida, comea a procurar alguma coisa) O senhor gosta de msica?
ERNESTO Gosto. (Querendo ir embora) Minha senhora... eu preciso mesmo... ALZIRA (Cortando rpido) O Ernesto tambm adorava msica... Que tipo de msica o senhor gosta? ERNESTO (Impaciente) Msica moderna. Mas minha senhora... ALZIRA Eu tenho. Eu tenho todo tipo de msica aqui em casa. Um pouquinho de cada gnero. Mas que gnero de msica moderna o senhor gosta? Msica Moderna s uma coisa muito abstrata... ERNESTO Eu gostaria de ouvir, mas eu tenho mesmo que ir... ALZIRA Tudo o que o senhor quiser ouvir eu tenho... Que que o senhor quer ouvir? ERNESTO (Impaciente, jogando) A senhora tem a... os Rolling Stones? ALZIRA Mas claro! Eu tenho tudo (Vai at a discoteca e pega um LP dos Rolling Stones, Let it Bleed) Olha! o ltimo! (Mostra exageradamente a capa). ERNESTO (Admirado e sem graa) No que a senhora tem mesmo?!! ALZIRA (Invocada) Que que o senhor quer dizer com isso? O senhor pensa que s porque eu sou uma funcionria aposentada dos Correios e Telgrafos, e porque eu no saio de casa, que eu no sei o que se passa no mundo? Pois fique o senhor sabendo que eu sei muito bem o que se passa no mundo, e por isso que eu no saio de casa. Justamente por isso. As pessoas tm a mania de achar que uma pessoa aposentada uma velha caqutica que fica mofando dentro dos seus aposentos... Eu leio todos os jornais, meu filho... Todos os jornais e todas as revistas do mundo... Em todas as lnguas... Foi pra isso que eu aprendi lnguas... S pra poder ficar em casa e me informar de tudo. (Informativa) O senhor pensa, por acaso, que eu no sei quem essa Florinda Bolkan? Pro seu governo o nome dela no Bolkan no. Bulco. Ela brasileira e nasceu no Cear. O senhor j esteve no Cear? ERNESTO No, infelizmente. ALZIRA Ento o senhor no sabe de nada. (Continuando informativa) O senhor sabia que o rei e as filhas do rei da Noruega foram tatuados por um velhinho finlands que hoje mora em Londres, num buraquinho, num subrbio distante, onde ele recebe os Hells Angels da Califrnia, que vo ali para serem tatuados pelo mesmo velhinho? O senhor no sabe. O senhor sabia que em Cuiab tem um obelisco que diz aqui o ponto central da Amrica do Sul? O senhor j esteve em Cuiab? (Ernesto faz sinal com a cabea que no) Ento o senhor no sabe de NADA! O senhor sabia que os salmes nascem nos rios da Groenlndia e que so pescados na desembocadura por pescadores dinamarqueses que no respeitam nem os filhotes? Ento o senhor no sabe de nada. Mas eu aposto que o senhor sabia que o sabi sabia assoviar. No sabia? Mas me diz uma coisa: o senhor sabia que a calcita e o topzio fum so consideradas duas pedras semipreciosas? E que o brilhante nada mais que o diamante lapidado?! ERNESTO Isso tambm quem no souber pode dar um tiro no ouvido (Alzira percebe que ele est sem camisa). ALZIRA Por que o senhor est sem camisa? O senhor no tem vergonha nessa cara? ERNESTO Mas foi a senhora mesmo quem me mandou tirar a camisa, dona. ALZIRA Bem que eu estava percebendo... Desde o minuto que o senhor entrou aqui... O senhor tem a maldade na testa. Estava querendo me seduzir, no estava? ERNESTO (Direto e decidido) A nica coisa que eu estou querendo me mandar daqui o quanto antes. A senhora uma louca. Uma louca varrida. Uma louca de hospcio. (Mostrando a janela) A senhora jogou a minha camisa fora... a senhora jogou.... ALZIRA (Cortando) Se o senhor tem 25 anos, eu tenho 45. Portanto, eu sou 20 anos mais velha que o senhor. Podia muito bem ser sua me. O senhor tinha coragem de fazer com sua me o que est querendo fazer comigo? ERNESTO Eu quem vou acabar ficando louco. No foi a senhora quem me mandou tirar a camisa? ALZIRA Eu s queria ver at onde o senhor ia... Seu cafajeste! ERNESTO Aqui eu no fico nem mais um minuto... (Vai at a porta e fora a maaneta. Enquanto isso Alzira vai at o armrio e pega um copo, pe acar e gua, mexe com a colherzinha e entrega a ele, que nem liga).
ALZIRA Toma. ERNESTO (Tentando abrir a porta) Eu vou sair e agora. ALZIRA (Berrando) TOMA! O senhor est muito nervoso e eu detesto gente nervosa na minha casa. (Ele pega e toma, desanimado) Assim... (Puxando-o pelo brao) Vem, vem. ERNESTO (Tentando se soltar) Me larga! ALZIRA E no grita. O senhor no queria ouvir msica? No me forou a procurar o disco? Agora o senhor vai ter que ouvir a msica (Alzira faz Ernesto sentar na poltrona) Olha. O disco que o senhor queria ouvir. (Tira o disco de dentro da capa e pe na vitrola. Em vez dos Rolling Stones sai a voz de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy, cantando Sweetheart) ERNESTO (Decepcionado) Mas no era essa... ALZIRA Eu detesto os Rolling Stones. O disco est aqui, olha. (mostra um desses vasos feitos de disco semiderretidos em gua fervente) Eu detesto msica moderna, pop, rock... Eu detesto os Rolling Stones, a Joan Baez, o Bob Dylan, o Led Zeppelin, o Pink Floyd, os Beatles e o Status Quo. Eu s respeito a Janis Joplin e o Jimi Hendrix, porque esto mortos. Quem vem minha casa obrigado a ouvir a Jeanette MacDonald, a Martha Eggert, a Ilona Massey, a Deanna Durbin e a Shirley Temple. E se duvidar muito eu ainda ponho a Carmen Miranda... ERNESTO Da Carmen Miranda at que eu gosto. bem melhor que essa a... ALZIRA Ah, assim?! O senhor aprecia a Pequena Notvel, a nossa Bombshell? (Vai at a pilha de discos e pega um 78 RPM da Carmen Miranda) Olha! (Ernesto arranca o disco da mo de Alzira. Ela corre atrs dele) Que que o senhor vai fazer com o meu disco? Cuidado. de cera. 78 rotaes por minuto! uma raridade. Me d, me d! (Ele continua correndo. Ela atrs) Cuidado. o Chica Chica Boom (Ele corre. Ela atrs). ERNESTO Gosta muito da Carmen Miranda, ? (Atira o disco pela janela) ALZIRA (Furiosa) O senhor jogou a minha joia rara pela janela, seu desastrado (Alzira desliga a vitrola, pega um prato de loua e quebra na cabea de Ernesto. Como se no bastasse, ela ainda pula em cima dele, e comea a dar murros no peito dele. Ernesto tenta prender Alzira com as mos. Os dois lutam). Me larga... seu ordinrio... me larga! ERNESTO (Lutando) Pacincia tem limite. Agora a senhora vai ver s uma coisa. (Arranca o vestido de noiva, a guirlanda, a grinalda, tudo, e atira pela janela. Alzira fica com a combinao de cetim preta). ALZIRA Meu vestido de noiva... ERNESTO Isso coisa do passado e eu detesto saudosismo (Ela recomea a bater nele). ALZIRA Meu vestido de noiva... (Batendo) Era o nico smbolo da minha infelicidade. ERNESTO Agora a senhora vai ver uma coisa s. (Lutando, ele arrasta Alzira para a cama) No era isso que, a senhora queria? (Tenta arrancar a combinao dela. Ela reage e consegue fugir. Ele corre atrs e agarra-a) ALZIRA Me larga... o senhor est me seduzindo... Eu j disse pra me largar... (Ela d uma mordida no peito dele, que d um grito de dor e a solta) ERNESTO (Gemendo de dor) A senhora me mordeu outra vez... (Fica de p, fricciona o peito e geme) Ai, como di... ALZIRA (Enquanto pega um pano tipo tecido indiano e se cobre. Indiferente) Ali no armrio tem Merthiolate. ERNESTO (Abrindo o armrio e procurando o remdio) De uma vez por todas, dona, me diz o que que a senhora quer comigo e me deixa ir embora. ALZIRA (Como que indiferente) Eu convidei o senhor a entrar aqui, por acaso? Entrou porque quis. Porque estava a fim de alguma. Isso para aprender a no se meter na vida de quem est em paz. Os vendedores so muito metidos. ERNESTO (Friccionando a mordida do peito com algodo embebido) Ai que dor! (Indo janela) Vou ver se vejo algum menino e vou pedir pra ele procurar a chave... ALZIRA (Bem calma e tranquila) Pode esperar sentado... eu conheo todos eles... S aparecem quando eu ponho msica na vitrola... ERNESTO Essa velharia? (Aponta os discos) ALZIRA por isso que eu detesto os vendedores. So todos uns grossos... que no tm a menor educao... s pensam numa coisa, na comisso, na comisso, na
comisso... ERNESTO Que merda! (Ainda na janela) No me aparece um menino. ALZIRA O senhor no diga mais um palavro aqui na minha janela. Que que a dona Esmeralda no vai pensar? Pensar no nada... O que que ela no vai dizer depois? Se o senhor quiser dizer palavro, v dizer na casa da sua me. ERNESTO porque a senhora me descontrola... ALZIRA E no adianta ficar a na janela... J disse que eles s aparecem quando eu ponho msica na vitrola... ERNESTO No v me dizer que eles gostam de pera? ALZIRA No pera, seu idiota, opereta. E eu no estou falando de opereta. Estou falando de msica moderna, modernssima, modernrrima, disco importado, que ainda nem chegou no Brasil... ERNESTO (Despeitado) S a senhora que tem? ALZIRA O senhor est querendo debochar de mim? s eu que tenho sim, e da, no posso ter? Eu assino a Cash Box, meu filho. ERNESTO Que isso? ALZIRA Uma revista de msica. americana. ERNESTO (Desprezando) Humm, americana... ALZIRA Traz tudo que novidade... a eu escolho, de acordo com o hit parade internacional... a eu encomendo os discos. Quando chega disco novo, ento... parece at passeata... essa rua fica assim de garotada... rapazes e moas... Da eu ligo a vitrola no ltimo volume... s vezes eu at boto alto-falante na janela... (Suspira) Ai... enquanto eles ficam l embaixo na maior das alegrias, eu fico aqui em cima aos prantos e barrancos... Eu detesto esse tipo de msica... (Pseudoautopiedosa) Mas eu descobri que essa a nica maneira deles tomarem conhecimento da minha inexpressiva existncia. Um dia... eu tinha sado pra receber a minha aposentadoria... E quando eu ia voltando... tinha um grupinho deles ali na esquina. Quando eu passei, uma das meninas disse: coroa barralimpa! Eu no sabia se aquilo era um bota pra cima ou um bota pra baixo, dei um sorrisinho amarelo, meu corao ficou assinzinho... eu pensei que ia desmaiar... (Mudando o tom, vingativa) Ah, mas tambm quando cheguei aqui em casa... liguei a vitrola (Liga a vitrola), peguei um compacto que estava em primeiro lugar no hit parade (Pega um disco suingado, sensual e pe pra tocar), peguei o alto-falante... e botei na janela. Aumentei o volume e comecei a danar, a danar, a danar (Ela dana sensual e debochadamente). Encheu de gente l embaixo... Ai eu dancei, dancei, dancei... Eu estava fora de mim... Arranquei a minha blusa e o meu suti... pra todo mundo ver mesmo... ERNESTO (Corre janela e grita, e faz sinal) A chave... a chave da porta... a chave... ALZIRA (Histrica) No... no... (Ela puxa Ernes-to pelo brao) No... eu j disse que no... (Mais uma vez os dois lutam. Alzira d um chute na canela dele, ele sai para o outro canto da sala, gemendo de dor e segurando a canela) Com licena, pessoal? (Alzira fecha a janela) ERNESTO (Definitivamente possesso) A senhora me tentou demais. Agora vai ver... (Agarra-a com violncia. Os dois lutam. Ernesto consegue arrastar Alzira at a cadeira e obriga-a a sentar. Pega umas cordas e tenta amarr-la. Ela se debate, em vo. Ele consegue amarr-la. Ela tenta andar arrastando a cadeira. Para na primeira tentativa mas continua mexendo-se). ALZIRA (Horrorizada) O que que o senhor vai fazer comigo? Pelo amor de Deus... ERNESTO (Abrindo sua pasta tira um canivete enorme, de mola. Aperta um boto e a lmina salta, para horror de Alzira). ALZIRA (Gritando) Socorro! Assassino! (Ernesto pega um leno e a amordaa). ERNESTO (Passando o canivete bem perto da cara de Alzira, aterrorizada. Depois ele vai passando o lado contrrio da lmina pelo pescoo, peito, barriga, pernas, e com a ponta levanta uma beira da combinao de Alzira. Ela d pulinhos de terror. Ernesto est, pela primeira vez, inteiramente seguro do seu prprio poder, para maior surpresa e espanto de Alzira.) No era isso que a senhora queria? Uma sacanagem diferente? Pois vai ter. (Brinca com o canivete) E isto s o comeo. (Numa espcie de ritual, Ernesto vai se despindo, enquanto a luz
vai baixando. Depois do ritual, Ernesto desamarra Alzira e a carrega para a cama. A msica de fundo, para a cena, pode ser, por exemplo, o Voodoo Chile, de Jimi Hendrix, ou outro rock sensual. Uma vez desamarrada, Alzira volta a lutar, meia-luz) ALZIRA O senhor est me seduzindo... (Ouve-se o rudo de uma bofetada. Alzira d um grito) ERNESTO Cala a boca, sua vagabunda. (Ele d um grito) Voc me deu um murro no olho! Agora vai ver s uma coisa... ALZIRA (Gritando e suplicando) Pensa na sua me... pensa na sua mulher... pensa nas suas filhinhas... ERNESTO Estou pensando em ns, em ns... (Alzira d um grito de dor) ALZIRA (Gritando) No, a no, a no. NO! (A msica sobe, blecaute). Segundo Ato Meia hora mais tarde. O dia j est morrendo. Ao abrir a cortina, Alzira est em cena sozinha, contente, sentada no sof-cama, acabando de ajeitar os cabelos. Em seguida derrama um pouco de lavanda na mo e passa no pescoo, colo, axilas e braos. Num volume suave est tocando Aint Nobodys Business If I Do, com Billie Holiday. Alzira est visivelmente relaxada e feliz. E divaga, fala sozinha, como se tivesse uma amiga invisvel ouvindo. ALZIRA ... Eu adoro a Billie Holiday. Ela to gentil quando canta... mesmo com essa voz rouca... Ningum diz que ela foi to drogada... Essa msica que est tocando, Aint Nobodys Business If I Do, quer dizer No da Conta de Ningum o que eu Fao. (Suspirando satisfeita) Ah, a vida, no final das contas, a melhor coisa que ns temos... (Ponderando) Apesar dos seus altos e baixos. Ah, se tudo fosse s harmonia... (Entra Ernesto, vindo do banheiro, abotoando as calas e com um olho roxo. Ernesto tambm est mudado, vontade, bem mais seguro de si, acafajestado). ERNESTO Falando sozinha, Alzira? ALZIRA (Suspirando) Ah, Ernesto, se voc soubesse... ERNESTO Que msica essa que est tocando? ALZIRA a Lady Day cantando... quando eu era lady eu dei... ERNESTO (Cortando) Voc tem muito dinheiro, Alzira? ALZIRA (Simptica) Por que essa pergunta to vulgar?... eu tenho jeito de rica? Nossa, Ernesto! Seu olho est roxo! ERNESTO Voc mudou, hein, Alzira? J est me chamando de Ernesto... ALZIRA (Ligeiramente reprimida) Desculpa. ERNESTO Nem parece a mesma... at me pede desculpas... Nada como uma boa sacanagem pra descontrair a gente... (Bem vontade) Seu banheiro at que gostoso... um pouco na base da frescura, mas bom... (Arrota) Desculpa. (Tirando o mao de cigarros do bolso) Quer fumar? (Alzira no responde) Foi voc mesma quem pintou a parede? ALZIRA Foi. ERNESTO (Fazendo gesto) Com o rolo? ALZIRA . Teraputica ocupacional. ERNESTO Voc que tem sorte... a aposentadoria... o tempo todo disponvel. Este apartamento seu? ALZIRA , eu ainda estou pagando... Comprei pela Caixa Econmica... Eu gosto muito daqui. Os vizinhos... no comeo eles me tratavam com toda a gentileza... A mulher aqui do andar de baixo disse que eu podia usar o telefone dela quando quisesse. Ela disse isso porque sabe que eu no tenho pra quem telefonar. Antigamente eu ainda tinha pai... tinha me... mas hoje... ERNESTO (Cortando) Sem essa, Alzira. ALZIRA O qu? ERNESTO Sem essa de hora da saudade. ALZIRA (Sem ligar, continuando) E mesmo que eu tivesse pai e me... que que adiantava?... quando a gente tem 45 anos os pais no tm a menor importncia... mesmo assim... tem hora que eu esqueo que tenho 45 e sinto falta da minha me... s vezes eu esqueo que ela morreu e chego at a escrever cartas... ERNESTO Bem, minha flor, a cascata t legal, mas eu preciso me mandar... A gente j brincou muito... Agora vai l na janela e pede a prum garoto ou pra dona Esmeralda trazer a chave e a minha camisa... (Mexendo no
armrio) Onde foi que voc enfiou o desodorante? (Ela no responde) Hein, minha flor? ALZIRA (Se levantando, mudando o tom, seca, indo ao banheiro) O senhor no acha que est muito vontade, no? (Volta com o desodorante) Toma. (Ernesto passa o desodorante). ERNESTO Voc no respondeu minha pergunta. ALZIRA Que pergunta? ERNESTO O tutu? Eu perguntei se voc tem muito tutu! ALZIRA Que que o senhor quer dizer com isso? ERNESTO Sem bronca, meu anjo... Voc entendeu. ALZIRA Meu senhor... ERNESTO Fica vontade Alzira... Se voc gostou... a gente pode acertar... ALZIRA Eu no sei o que que o senhor est querendo dizer... ERNESTO Voc no estava atrasada? Tava, no tava? (Alzira no responde) Voc querendo eu posso vir dar uma colher de ch de vez em quando. Era isso que eu queria dizer... Agora voc entendeu (Passa as costas da mo de leve no rosto dela) Claro que entendeu, minha flor... no precisa ficar com essa cara de animalzinho assustado... Fica tranquila que eu entendo... Eu sei que duro... uma mulher como a senhora... sozinha no mundo... ALZIRA (Sria) A nica coisa que eu lhe peo, meu senhor, um pouquinho mais de respeito... ERNESTO Que isso, minha filha? Agora h pouco voc no me pedia respeito... Fica vontade... voc est em forma... melhor que a minha mulher... ALZIRA (Olha pra ele, arrasada, depois cobre o rosto) Santo Deus, que que eu fui fazer? ERNESTO (Seco) Para com isso. ALZIRA Foi a segunda vez na vida... ERNESTO Para de chorar. ALZIRA Que vergonha, Meu Deus! ERNESTO Vergonha de qu, minha flor?... sem essa agora... voc no gozou? (Passa a mo no rosto dela) ALZIRA (Furiosa de repente, empurrando a mo dele) Tira a pata de mim... (Ele leva um susto) Tira a pata de cima de mim. ERNESTO Pronto, j tirei. ALZIRA O que o senhor fez comigo, seu depravado... ERNESTO Calma, minha flor... ALZIRA E para de me chamar de minha flor... que eu no te dei essa liberdade. Foi o senhor quem me seduziu... Me seduziu debochadamente... como se eu fosse uma mulher toa... As coisas que o senhor me fez... (Lembrando chocada) O senhor me sodomizou!!! (Comea a andar de um lado pro outro) O senhor pensa que eu no sei o que o senhor queria... (Olha bem pra ele) Era o meu dinheiro... O senhor entrou aqui s pra me dar um arrocho... S pra tirar o meu dinheiro... pensa que eu sou idiota... pensa que eu no percebi? Mas se deu mal. O meu dinheiro est muito bem guardado, santinho. Perguntou se eu tenho muito dinheiro? Tenho sim. Tenho muito dinheiro. Uma parte muito bem empregada, em aes. E outra parte, bem longe daqui, muito bem guardada, num banco l na Sua. Bem longe de gentinha ordinria como o senhor. Achou que ia conseguir tudo de mim... vendedor... conheo bem esse tipo... eu conheo bem os vendedores... conheci muito bem o seu pai... Voc, seu pai, eu conheo... ERNESTO (Decidido) Chega! A senhora quer saber duma coisa? Eu detesto esse meu emprego. Eu tenho horror desse meu emprego que me obriga a conhecer gente como a senhora. Eu vim aqui, na melhor das intenes, s pra oferecer um Volks, nada mais que isso, e a senhora nem me deixou falar... Se a senhora no estava interessada, por que no me deixou em paz? Me trancou aqui dentro... eu sei pra qu... O que a senhora fez comigo, faz com todos os vendedores... pensa que eu no sei? Hein, pensa que eu no sei? (Pequena pausa) ALZIRA Que que o senhor quer dizer com isso? ERNESTO Ora, a senhora sabe muito, bem. ALZIRA (Inocente) No, no sei mesmo. ERNESTO Sabe sim. (Alzira faz que no) por isso que eu detesto as mulheres... Do seu tipo.
E eu dou um azar que s cruzo com mulher do seu tipo... Toda vez que eu entro numa casa pra vender um Volks, eu encontro uma mulher assim que nem a senhora... Uma solteirona ranheta e insuportvel como a senhora... que s porque tem uma toca acha que dona do mundo... Eu prefiro a morte. Maldita, maldita a hora que eu pus na cabea que ser corretor de automveis era uma boa profisso... ALZIRA (Debochando) Ah, achava que ia ganhar a vida nas coxas, ? Que era s aparecer com a sua carinha que todo mundo ia se derreter, por causa dos teus lindos olhos? E tem mais. Quer saber duma coisa? O que voc tem mais embaixo, meu filho, no chega at l. Fica na metade do caminho. ERNESTO (Desconfiado e com dio) Que que a senhora quer dizer com isso? ALZIRA (Seca) Ah, se toda hora eu tiver que explicar a Ave Maria pro padre, eu prefiro calar a boca pra sempre, e no falar mais. ERNESTO Eu odeio as mulheres... principalmente as mulheres de hoje, que ficam fazendo concorrncia aos homens... So todas umas metidas, isso mesmo, umas metidas, umas mandonas... A culpa de tanta viadagem, de tanto bissexua lismo, de tanta aberrao hoje em dia s pode ser das mulheres... ALZIRA O senhor est muito vontade... E eu vou acabar com isso agora. Agora o senhor vai ver s uma coisa... Pacincia tem limite... ERNESTO E tem mesmo. A minha j esgotou... ALZIRA Mas a minha ainda no. (Comea a procurar o vestido de noiva) Onde foi que eu enfiei o meu vestido de noiva... (Ernesto est curioso) O senhor vai ver uma coisa s, pra deixar de ser entro... (Continua procurando o vestido). ERNESTO (Indo atrs, provocando) A senhora pensa que a dona do mundo.. s porque tem 45 anos? ALZIRA (Sem olhar para ele, procurando o vestido) Sou a dona da minha casa e do meu nariz. (Falando consigo mesma) Onde foi que eu enfiei aquele maldito vestido de noiva? (Continua procurando). ERNESTO Fica a... bancando a santa... ALZIRA (Parando de frente e cmplice da plateia, d uma levantada ligeira na saia) Eu nunca fui santa. (Continua procurado). ERNESTO Quando entrei aqui j tinha sua ficha, fica sabendo disso... (Alzira procura o vestido na pasta dele). ALZIRA (Mexendo na pasta) O senhor, por acaso, roubou o meu vestido de noiva? ERNESTO (Arrancando a pasta da mo dela) Tira a pata da minha pasta. ALZIRA Onde foi que o senhor enfiou o meu vestido? ERNESTO (Apontando a janela) Est l embaixo. ALZIRA (Saindo de cena) Foi o senhor quem jogou... (Volta da cozinha com uma vara de pescar) O senhor me deixa confusa. (Atira a linha pela janela e pesca o vestido) Agora o senhor vai ver uma coisa s... ERNESTO (Provocando) Meus amigos j tinham me falado da senhora... ALZIRA (Saindo de cena) Que amigos? (Volta trazendo um bumbo). ERNESTO A senhora sabe muito bem de quem estou falando... ALZIRA Tenho a impresso de que o senhor est um tanto equivocado, no sei no. ERNESTO Sabe sim... O Rogrio, o Ronaldo, o Reinaldo, o Roberto, o Raimundo, e o lvaro... so todos meus amigos, todos meus colegas, todos vendedores... ALZIRA (Esticando o vestido de noiva no sof, com o auxlio da vara de pescar) Todos uns panacas como o senhor... Se eles soubessem onde encontrar, j tinham vendido at a alma ao diabo... ERNESTO Todos j comeram a senhora... (Enquanto Alzira ajeita o vestido de noiva sobre o sof, Ernesto, cansado de andar atrs, senta-se na poltrona). Essa histria de co siams tudo papo furado. ALZIRA (Vem e se ajoelha aos ps dele, pol-trona, e fala inocentemente, olhando pra cara de Ernesto) Mas claro! E o senhor acreditou? Quanta inocncia! Imagina, que absurdo! Esse co siams nunca existiu. Quando o senhor entrou aqui... quando eu percebi que o senhor estava parado ali na porta... eu tive que inventar um motivo bem rpido... um motivo bem forte... pra parecer que eu estava arrasada. Tive que pensar rpido demais e por isso a minha imaginao escorregou... e eu inventei essa de co siams... (Rindo) E o senhor acreditou... agora imagina... onde j se viu... co siams... ERNESTO E a senhora acha que eu fui nessa? Acha que eu ia ser babaca de
acreditar? ALZIRA O que eu tinha era uma gata pequinesa... (Ela vai dar uma mordida no peito dele, que foge) que fugiu... por isso que eu estava triste... a gata se esfregava na minha perna... quando estava no cio... e eu me esfregava nela, quando eu estava no cio... a gente vivia muito bem... eu e a minha gata pequinesa... ERNESTO Sei. Meus amigos j tinham me falado da senhora... A senhora no passa de uma grande depravada... ALZIRA (Ofendidssima) Mentira... o senhor est inventando... eu sou uma mulher limpa... LIMPA, ouviu? Eu nunca fui atrs e nem precisei de ningum pra me satisfazer sexualmente, est me entendendo? Eu sempre resolvi o meu problema sozinha. Eu acho o cmulo da falta de imaginao, gente que pra se satisfazer sexualmente precisa de outra pessoa. Eu nunca precisei de ningum. Foi o senhor quem me seduziu... fora... Mas o senhor no pode nem imaginar a minha vingana... (Definitiva, pegando o vestido de noiva) Agora, chega de conversa. Pe o vestido. ERNESTO (Espantado) O qu??? ALZIRA (Fazendo vibrar a vara de pescar) Chega de conversa. Anda. Pe o vestido. ERNESTO (Como quem no leva a srio) A senhora est me gozando... ALZIRA (Berrando) Anda, pe o vestido... Seno eu te dou uma surra de vara. ERNESTO (Rindo com medo e sem graa) Mas Alzira... que que isso?... (Alzira d uma vergastada no ar. Ernesto desiste e pe o vestido) ALZIRA Assim... (Entrega a grinalda) Agora pe a grinalda. ERNESTO (Ainda no querendo) Ah, mas que brincadeira essa, Alzira? ALZIRA Pe a grinalda e cala a boca. (Ernesto pe a grinalda). ERNESTO (Sem graa) Que barato! (Alzira entrega um batom a ele e segura um espelho de cabo). ALZIRA Agora passa o batom. da Helena Rubinstein. (Para os cus, saudosa, elegaca) Que Deus a tenha, Helena Rubinstein... ERNESTO Ah no, batom no. ALZIRA (D uma vergastada no ar) Que no, o qu! Passa o batom. O Mick Jagger, que muito macho, usa batom... anda. (Ernesto passa o batom nos lbios) Agora faz assim, ... (Alzira faz gesto de batom, os lbios superior e inferior se pressionando e voltando, num estalo) Vai me dizer agora que nunca sentiu vontade de usar um suti... (Pega o bumbo e entrega Ernesto) Agora toca o bumbo. ERNESTO Ah no, isso eu no fao. Isso j ridculo... J ir longe demais... ALZIRA (Autoritria) Toca o bumbo. (Ernesto comea a tocar desajeitadamente) ERNESTO (Sofrendo) No estou gostando dessa brincadeira.. . ALZIRA Anda. Toca. Toca. Toca mais forte (Ele aumenta) Mais. Mais forte. (Ele aumenta) Quero ouvir o som, o som. Mais. Mais. (Ele bate mais e mais) O senhor acha que eu devo morrer de alegria s porque o senhor entrou aqui? O senhor acha que eu devo bater palmas? (Alzira bate palmas) Olha s pra sua cara (Ela pe o espelho de cabo na cara de Ernesto) Olha s pra sua cara. No quis bancar o garanho? No me tratou que nem uma gua? Agora eu estou te tratando que nem uma mula manca. E eu me sinto vingada pelo que voc, o senhor seu pai e seus amigos fizeram de mim. Isso eu aposto eles no contaram... to-dos eles usaram o meu vestido de noiva... todos. Teve um at que gostou... Ainda outro dia eu vi o retrato dele numa revista... fazendo um nmero de travesti grotesco numa boate entendida. (Dramtica) Ah, eu no posso ver um homem de terno e gravata que eu fico roda de vontade de obrigar ele a usar o meu vestido de noiva... (D uma cuspida de lado) Uhhh... homem que usa terninho e gravatinha me d vontade de vomitar. Ah, eu s queria que o Z Maria fosse vivo... ERNESTO Que Z Maria? ALZIRA Um amigo meu... o nico e verdadeiro amigo de toda a minha existncia... O nico homem que mereceu o meu mais sincero respeito e a minha total admirao... ERNESTO Ento devia ser um tarado...
ALZIRA Pra gente do seu tipo era tarado sim... Tarado porque era insubmisso. Nunca usou ter no e gravata, a no ser quando estava a fim de curtir em cima. Era um verdadeiro representante da juventude de hoje... Era bem o contrrio do senhor, que a vergonha da juventude. O Z Maria era um rebelde... era o meu, hum... alter ego, a minha alma gmea... Ah, se eu tivesse vinte anos menos... se eu tivesse vinte anos eu ia botar pra foder. Quando eu penso no Z Maria eu at sinto febre... Tenho vontade de dizer palavro e o cacete. Ele sim, era um santo. O que a sociedade fez com ele... Essa sociedade da qual o senhor, com seu terninho e sua gravatinha, faz parte... Ele morreu por culpa de vocs... Era um santo... Ah, eu s queria era estar l no Vaticano... no lugar do Papa... a o Z Maria ia ser canonizado. Por culpa de gente do seu tipo sabe o que foi que ele acabou sendo? Hein? ... foi ser traficante de drogas... Mescalina, cocana, metedrina, anfetamina, morfina, herona, cafetina e o cacete. No que fez muito bem, no tinha outra sada mesmo... E eu entrei num curso de enfermagem por correspondncia, s pra aprender a dar injeo nele. Eu aplicava e ele ficava louco... louco e maravilhoso. Um dia roubou um carro... um carro americano... e me convidou pra sair com ele. E eu fui, claro. Fomos at um lugar fora da cidade, onde tinha um precipcio. A ns descemos do carro e ficamos olhando a natureza. O Z Maria adorava e tinha o maior respeito pela natureza. Ele era incapaz de arrancar uma folha de uma rvore seca. Depois que a gente ficou horas perdidas olhando a natureza, ele entrou no carro e pediu que eu ficasse do lado de fora, olhando o que ele ia fazer... A ele ligou o carro, deu marcha r e foi em frente... Se atirou no abismo... com o carro e tudo... E a eu fiquei l em cima batendo palmas (Bate palmas) Eu achei lindo, lindo, lindo... (Muda o tom, coloquial, para Ernesto) Sabe como foi que eu conheci o Z Maria? Hein? Um dia eu ia passando na rua e ele me chamou. Ele fez psiu e eu virei. Ele sentiu que eu tinha boa vibrao. Ele sacou que o meu astral era altssimo. Ele ia muito com a minha cara. Ele at me botou um apelido: ele me chamava, gentilmente, de Alzira Porra Louca. E eu adorava. Um dia ele me deu cido... ERNESTO (Inocente) rico? ALZIRA Que rico? Lisrgico... cido lisrgico... LSD... foi maravilhoso. ERNESTO A senhora no tem vergonha, no? Nessa idade tomando droga... ALZIRA E LSD droga? Ah, como o senhor menor. LSD uma coisa santa, uma coisa santa. Ou pelo menos foi uma coisa santa... Agora j degenerou... ERNESTO A senhora no regula mesmo... ALZIRA Depois que eu tomei... cido eu passei a ver as pessoas como elas so... O senhor, por exemplo, eu vejo como um velhaco muito... sinistro, cheio de no-me-reles e no-me-toques, a mo suada, barriga monumental, sempre de cara amarrada, cuca fundida, morrendo de medo e muito covarde, no pode ouvir um peido que j pensa que guerra, canho. Ou ento... uma rumbeira. Uma Maria Antonieta Pons misto de Cuquita Carballo com Ninon Sevilla, danando rumba vestida de noiva... Uma rumbeira muito chata e fora da rumba... ranheta, muito ranheta... com tufos de cabelo saindo do nariz e da orelha... Horrorosa... horrorosa... um pouco assim A Noiva do Frankenstein... com mau hlito e cido rico... cheirando a talco azedo... um beb todo enrugado... um embrio de mil sculos... um monstro, entendeu? Um monstro! ERNESTO E a senhora, eu vejo assim como uma tarada, simples e modestamente. ALZIRA Tarada a sua me, sua mulher e suas filhas... ERNESTO A senhora no ofende as minhas filhas, que eu no admito. ALZIRA Ah, que no admite, o qu! Eu estou na minha casa... eu ofendo quem eu quiser. Estou cagando e andando pro que o senhor pensa. Me chamou de tarada? Tarado o senhor, que alm de tarado um degenerado. (Ernesto tira o vestido de noiva e joga no cho) Eu sei muito bem por que o senhor defende tanto as suas filhas... percebi muito bem... Seu degenerado... est s esperando as suas filhinhas ficarem mocinhas... sei muito bem pra qu... ERNESTO (Furioso) A senhora v pra puta que a pariu. ALZIRA (Autoritria, afrontando-o, sria) O senhor me respeita, hein? ERNESTO Que respeito, o cacete! Enquanto a senhora no abrir essa merda dessa
porta, eu digo e fao o que eu quero... s me esquentar mais um pouco... A senhora jogou a minha camisa fora... me fez usar esse vestido de pssimo gosto... me fez passar toda sorte de vexames... Fez cu doce o tempo todo s para depois me obrigar a comer a senhora, s de raiva... tudo calculado e planejado... A senhora uma piranha muito da escrota... ALZIRA (Fria e indiferente) O que vem de baixo... definitivamente... no me atinge. (Pega um trabalho de croch, senta na poltrona, e comea a trabalhar, de vez em quando levanta os olhos do croch). ERNESTO dona, acho que a gente j chegou ao fim, no chegou no? Eu tenho que ir mesmo, minha mulher est esperando, eu tenho uma casa pra sustentar... uma famlia, e ainda estou muito longe da aposentadoria... ALZIRA Esquece um pouco a famlia, a profisso, a aposentadoria... Me conta um pouco a seu respeito, alguma coisa assim... que me surpreenda... Anda, me diz, eu quero saber um pouco do seu minimistrio... ERNESTO Mas eu no tenho mistrio nenhum... tudo de mim a senhora j sabe... ALZIRA (Fazendo gesto com os olhos) Por favor, no repita... j conheo aquela sua logorreia... eu quero mistrio... mistrio... ERNESTO Mas eu j disse que no tenho... sou uma pessoa comum... normal... ALZIRA Claro que tem mistrio... todo mundo tem um certo mistrio... (Objetiva) Anda, me diz. No possvel que eu no consiga arrancar uma outra verdade do senhor. ERNESTO Minha senhora, eu no tenho verdade nenhuma, me deixa ir embora... Eu tenho uma famlia pra cuidar... eu tenho que ir pra casa... tenho que passar no sapateiro... eu mandei fazer dois sapatos para as minhas filhas... ALZIRA Humm..., que pena que o senhor no me falou antes... a eu podia sugerir aquele que a Judy Garland usava em O Mgico de Oz... (Estudando-o) Que comovente! O senhor tem duas filhas... (Pequena pausa) O senhor no quer me dar elas pra mim...? Pra eu criar? Quem sabe se eu no posso abrir um orfanato e me transformar... assim... numa nova Josephine Baker? E como que elas se chamam... as meninas? ERNESTO (Tmido) Uma se chama Dbora... a mais velha, e Alice, a caula, de dois anos... ALZIRA Que bonito. O senhor se casou cedo, no? Aposto que foi sua mulher quem escolheu o nome das meninas, no foi? ERNESTO . Foi. ALZIRA Nem precisava dizer. Me diz uma coisa, como que a sua mulher? Ela assim... como que eu digo?, moderna, despachada, prtica, dada? Ou ela nasceu numa noite de ar... abafado... quando a lua passava por Escorpio? ERNESTO Minha senhora, eu tenho a impresso de j ter deixado claro, que eu sou um homem responsvel, e eu no posso perder mais um minuto com os seus absurdos... ALZIRA Que responsvel o que? Que mania mais boc. Responsvel... O senhor tem 25 anos e quer ser responsvel... eu que tenho 45 no sou... Esse negcio de responsabilidade papo furado... o senhor no tem cabea? Ento pensa um pouco... ERNESTO A minha mulher no pensa assim... ALZIRA Ah, mesmo. Eu tinha me esquecido... Qual o nome da sua senhora? ERNESTO (Como que querendo que o cho se abra) ... Zulmira. ALZIRA No sei por que que eu fui perguntar... Tinha mais que certeza... S que a Zulmira a t me decepcionando... (Pequena pausa) E me diz uma coisa... A Zulmira, por acaso, sabe que do Oriente que vem tudo que sensato? No sabe? Ento a Zulmira no t com nada. Ser que a Zulmira sabe que l no Oriente, no pas dos magadais, as pessoas nascem caquticas, rejuvenescem de ano para ano, e falecem quando chegam a criancinhas? Se ela no sabe, como que eu posso ter um dilogo com Zulmira? Mas aposto que ela... supe... que seja do sul que vem tudo quanto preciso... Agora... de que sul?, no pergunte Zulmira. ERNESTO Isso que a senhora est falando destruio... e eu estou aqui no mundo para construir... ALZIRA (Tirando de letra) Ah, o senhor l sabe
o que seja construir?... (Pausa) por isso que a raa humana est praticamente perdida... ERNESTO No est no. ALZIRA Vai pensando assim que o senhor acaba se fodendo... ERNESTO Eu acredito na salvao da raa humana... ALZIRA O senhor devia comear a pensar na sua prpria salvao. (Abandonando o croch e levantando-se, possessa) E o senhor quer saber duma coisa? O poder aqui dentro sou eu. A raa humana no tem mais salvao. E fim de papo! (Pausa) Mas... me diz uma coisa... O senhor se casou virgem... ou o seu irmo mais velho te levou na zona quando voc fez dezoito anos? ERNESTO Minha senhora... eu j tinha que estar na minha casa... Minha mulher est me esperando... E as crianas choram quando eu no apareo na hora certa... ALZIRA Imagina s. No dia de hoje... criana vai chorar por uma coisa dessas? E a Zulmira... onde foi que ela nasceu? ERNESTO No Alto da Boa Vista. ALZIRA Do Rio?! ERNESTO No, de So Paulo. ALZIRA Ento ela tambm t por fora. (Pausa) Ah, que chato, eu espremo que espremo... e no sai nada do senhor. (Sacudindo-o) Anda, eu quero que o senhor me conte uma coisinha s, uma maldadezinha s. O senhor j fodeu alguma galinha, quando era pequeno? ERNESTO Isso contra a natureza. Eu nunca fiz isso e tenho nojo de quem fez... ou faz. ALZIRA (Suspirando) Ah, mas nem isso?! ERNESTO Mas uma vez eu vi... um menino enfiando uma bombinha de So Joo no cu de uma cachorrinha... vira-lata. ALZIRA Ento o senhor tambm no l flor que se cheire. ERNESTO (Decidido) Eu quero ir embora daqui agora. Nesse instante. ALZIRA Mas nem pensar. Eu ainda tenho muitas verdades pra arrancar da sua cara. (Ernesto tenta arrombar a porta, d chutes, fora a maaneta). ERNESTO Eu sou um cidado responsvel, responsvel, entendeu? Eu quero deixar isso bem claro. ALZIRA O senhor no aprende mesmo. (Impaciente) Ah, eu s queria ter um programa de televiso num horrio nobre, s meu, a o IBOPE ia ver o que IBOPE. Eu queria ter um programa de televiso na minha mo... A sim eu ia mostrar... a essa cidade inteira... o que responsabilidade. (Para Ernesto) O senhor sabe, em sntese, o que responsabilidade? Hein? No sabe. Pois eu vou dizer. (Sobe no sof) Responsabilidade uma coisa que s as pessoas de menos de 20 anos devem ter. Depois dos 20, meu filho... a gente devia mandar a responsabilidade pras picas... Ah, eu s queria ter um programa de televiso pra dizer isso pra todo mundo, pro mundo inteiro... Depois dos 20... a gente comea a perder ponto... por causa dessa palavra to mal entendida. Depois dos 20... a gente tem que fazer... sabe o qu? No sabe?, pois eu vou dizer. Depois dos 20 a gente tem que enlouquecer. Enlouquecer a gente e os outros... a cidade inteira... o mundo inteiro... Sabe o que que ns somos? Eu, o senhor, e o resto da raa humana? Uma merdinha assim, . Uma merdinha deste tamaninho. Uma pobreza, uma insignificncia s. Um cu, entende?, um cu! (Suspirando, desce do sof) E eu, tonta, s fui descobrir essa verdade depois dos 30. Mas tambm... o que eu j fiz pra recuperar o tempo perdido... Cada maldade, cada vingana, o senhor no pode nem imaginar... (Pequena pausa) E sabe de quem a culpa? (Ernesto no responde, Alzira insiste) E SABE DE QUEM A CULPA? Do seu pai. (Volta as costas pra ele). ERNESTO (Surpreso) Do meu pai? ? ALZIRA , do seu pai mesmo. Do Ernesto. ERNESTO Minha senhora, eu quero esclarecer uma coisa... ALZIRA Esclarece (Pequena pausa, Alzira espera). ERNESTO O meu nome no Ernesto. Quando a senhora perguntou o meu nome eu menti... Eu vi Ernesto escrito ali na parede... e disse que me chamava Ernesto... ALZIRA (Rindo) E o senhor acha que eu ia acreditar que o senhor se chamasse Ernesto? Esse Ernesto a da parede nunca existiu... eu inventei... e o senhor caiu? (Ri).
ERNESTO (Arrasado) A senhora me esgotou. (Pega a vara de pescar). ALZIRA (Afrontando, altiva) O senhor vai me bater? Pode bater. Anda. Bate. Bate... (Ernesto passa por Alzira e vai direto janela com a vara de pescar) ERNESTO Eu vou pescar a chave e a minha roupa... ALZIRA (Arrancando a vara da mo dele) Nada disso... (Atira a vara de pescar pela janela). ERNESTO No tem importncia... Eu vou ter que apelar, mas azeite... (Comea a gritar, da janela) gente! Socorro! Dona Esmeralda! Polcia! (Alzira deixa-o gritando e vai preparar mais um copo de gua com acar) Que merda! No tem um desgraado perto... No estou vendo ningum... POLCIA! SOCORRO! (Alzira entra com o copo de gua com acar). ALZIRA (Oferecendo o copo, complacente e direta) O senhor est muito nervoso. Toma! ERNESTO (Recusando) J cansei dessa gua com acar. A senhora est querendo me engordar? ALZIRA Chega de conversa. Toma. (Ele recusa) TOMA! (Ernesto pega o copo, bebe, Alzira ajuda, empurrando o lquido garganta adentro, e ele toma duma vez) Assim que eu gosto... (Pausa) O senhor no sentiu um gostinho estranho nessa gua com acar? ERNESTO (Apavorado) Que que a senhora botou dentro, dona?? ALZIRA (Fria) Eu te dou um doce se voc adivinhar... ERNESTO (Petrificado) A senhora me matou, dona... ALZIRA (Sria) Esta foi a ltima vez que voc teve oportunidade de usar as suas pernas. ERNESTO (Tentando enfiar o dedo na goela) Que foi que a senhora fez...? ALZIRA Esta foi a ltima oportunidade que voc teve de usar os seus braos, a sua boca, a sua cabea... Esta foi a ltima vez que voc teve oportunidade de usar o seu sexo. (Ernesto cai, fulminado). ALZIRA (Segreda plateia) Era soda custica. Blecaute Eplogo (O pblico aplaude. Ernesto continua estendido no cho e Alzira faz sinal para que o pblico cesse os aplausos) ALZIRA Alguma coisa vai mal neste pas. Vocs acabaram de aplaudir um crime. Vocs acabaram de aplaudir o MEU CRIME. E j que vocs aplaudiram o meu crime, eu vou dar o meu recital. ( vontade) Sabe duma coisa, gente? Eu estou precisando de falar, de falar muito, muito, muito... Mas eu tenho a impresso, de que no vou falar nada. Porque Europa no Amrica... Espanha no Mxico... E eu no sou Eva Pern. Quero apenas deixar o meu muito obrigada. Mas muito obrigada mesmo! Blecaute FIM Adendo (e Sugestes) 1) ABERTURA DA PEA: Antes de Ernesto surgir porta, Alzira pode estar sentada, na poltrona, fazendo croch, e muito alegre, conversar um pouco com a plateia. como se estivessem todos num recreio, ou ento, ela, Alzira, pode cantar um nmero relativamente ridculo, mas cheio de humor. E como numa farsa, ela para instantaneamente quando percebe, de costas para ela e para a porta de entrada, que Ernesto est l. Na primeira montagem da pea, que tinha o ttulo de O Co Siams, Yolanda Cardoso escolheu, para cantar, um samba-cano de Antnio Maria intitulado Aconteceu em So Paulo, gravado h muito tempo por Hebe Camargo. Na segunda montagem da pea, j Alzira Power, Yolanda mudava de msica conforme o mood. Entre outras, ela chegou a cantar a Escandalosa de Emilinha Borba. A atriz que fizer Alzira tem todo o direito de escolher a msica que quiser. Ou no cantar nada, se for do seu agrado assim. 2) DETALHE DO CENRIO: Num lugar da pare-de, visvel para o pblico e para Ernesto, alguns nomes masculinos escritos, entre eles, Ernesto Pasqualini Parmelucci. 3) CURIOSIDADES: No monlogo em que Alzira fala de jornais e revistas, onde ela conta que aprendeu lnguas pra ficar em casa e se informar de tudo, ler revistas, etc., a atriz que fizer Alzira pode improvisar e colocar informaes
recentes, sempre de cunho absurdo, a respeito de fatos e curiosidades do planeta. ndice No Passado Est a Histria do Futuro Alberto Goldman 5 Coleo Aplauso Hubert Alqures 7 As Trs Primeiras Peas Antonio Bivar 11 Cordlia Brasil 23 Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manh 103 O Co Siams ou Alzira Power 243 Crdito das Fotografias Todas as fotografias pertencem ao acervo de Antonio Bivar A despeito dos esforos de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas no de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicao de toda informao relativa autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados.