Angelica Liddell - o Casal Palavrakis
Angelica Liddell - o Casal Palavrakis
Angelica Liddell - o Casal Palavrakis
O CASAL PALAVRAKIS
De Angélica Liddell
Tradução: Amália Pereira
Supervisão de Tradução: Hugo Villavicenzio
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O CASAL PALAVRAKIS
De Angélica Liddell
O CASAL PALAVRAKIS
MATEO.- Tem certeza que estão usadas? Tem certeza que as usou? Quem compra as suas
calcinhas? Você deveria comprar suas próprias calcinhas. Escolher suas calcinhas. É uma
questão íntima, entende? Íntima. É sua escolha, seu ponto de vista sobre as coisas, sua
atitude. Até um verme tem opinião sobre as coisas. Tome, pega esse dinhero. Compre as
calcinhas que você quiser. Você tem direito a isso. Não permita que sua mãe escolha por você.
Compre umas calcinhas bonitas. Algum dia você tem que começar. É algo importantíssimo.
Confie em mim, importantíssimo. Já tem idade para comprar suas próprias calcinhas. Quantos
anos você tem? Doze? Doze anos? Boa idade para se conversar com uma mulher. Doze anos.
Uma verdadeira mulher. Nao está à vontade, não é? Eu também não. Somos as vítimas. Antes
de tudo somos as vítimas. Nunca se esqueça disso. As vítimas. Ele te bateu. Teu pai bateu em
você? Porco. Só porque você é linda. Ele sabe que o único jeito de passar a mão em você é te
enchendo de porrada. Os pais! Todos iguais! Ele bateu em você. Ele bateu por causa dos
lábios, porque você carrega na boca todo o sangue de uma ferida. Preciosa. Sua boca é
preciosa. Você quer uma bala? Algo doce para uma mulher doce. São os doces que nos fazem
viver, o desejo pelo doce nos mantêm vivos. O desejo por doces. A douçura. Mas, percebo que
você não está confortável. Nós dois não estamos confortáveis. Eu também o odiava. O meu
pai. O odiava tanto quanto você odeia o seu. Eu saía correndo para roubar chocolates, bolos,
balas, e me enchia a ponto de explodir. Graças aos doces consegui sobreviver. Nunca deixe de
comer doces. Não dê ouvidos aos seus país, dor de dentes, cáries, ah... Não ligue para isso.
Doze anos. Boa idade para se conversar com uma mulher. Doze. Você sabe quem sou eu?
Falaram de mim? Contaram, te contaram tudo. Você sabe o que aconteceu? Imagino que sim.
Você sabe. Vou te dar um conselho: nunca tenha filhos. Nunca!
ELZA.- Eram enforcados na floresta. Acabava faltando galhos para tantos cachorros
enforcados. Em um único pinheiro penduravam três. Era normal. Tão normal como o trigo
crescendo nos campos e a chuva caindo do céu. Enforcavam os galgos quando já não serviam
para correr. Não serviam. Não serviam. E nós crianças corríamos por todo lado, corríamos
muito, como se tivéssemos quatro patas, de repente nosso coração gelava,ficávamos com
medo de ser pendurados também. Como os galgos. Ninguém queria chegar por último. A gente
tinha que correr muito, muito mesmo. Por causa do pão, d` água, do leite! Correndo, sempre
correndo. Às vezes os homens deixavam a corda tão perto do chão que os cachorros
demoravam dias inteiros para morrer, e à noite choravam, choravam e choravam. E nós
crianças tínhamos pesadelos horríveis. E nos pesadelos, nossos pés sangravam. E no dia
seguinte a gente não tinha vontade de brincar, não. Teve muitos dias que não deu para ouvir a
risada de uma única criança. Pobres cachorros. Eles eram pendurados perto do chão de
propósito. De propósito. E os homens comiam, bebiam e se retorciam de rir em volta dos
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cachorros enquanto eles morriam. Naquele povoado torciam o pescoço dos gatos, batiam nas
mulheres e enforcavam os galgos, mas meu pai enforcava todos os tipos de cachorros. Galgos
ou não. Meu pai matou mais de cem cachorros lindos. Meu pai não gostava dos animais. Dizia
que um cachorro lambeu minhas coxas. Eu tinha três anos e ele dizia que um cachorro lambeu
as minhas coxas. Foi o primeiro cachorro que ele matou. Meu pai gostava tanto de mim que
sempre me presenteava com cachorros quando eu estava triste, e depois os matava, me dava
cachorros e os matava, me me dava cachorros e os matava, quando ficavam grandes os
matava, e voltava a me dar outro, e depois o matava. Dizia que lambiam minhas as coxas.
Lambiam minhas coxas. Meu pai era muito ciumento e não gostava dos animais. Não gostava
que os cachorros lambessem minhas coxas. Agora meu pai não me ama mais. Não tenha
medo. Meu pai já não existe. Ninguém vai te matar. Minha filha é um cachorro. Que bonita.
Fica linda de vestido azul. Meu pai é uma enguia. Minha filha é um cachorro. Minha filha é um
cachorro.
ELZA.- Quero que meus filhos sejam tão lindos como os arranha-céus de Nova York!
ELZA.- Quero que meus filhos sejam tão lindos como os arranha-céus de Nova York!
ELZA.- Quero que meus filhos sejam tão lindos como os arranha-céus de Nova York!
MATEO.- Vamos!
ELZA.- Eu não sou nada, me leva com você para longe, bem longe!
MATEO.- Não dá para ir além dos túmulos. Estamos no lugar mais remoto da terra. Você
gosta, gosta deste fim de mundo?
MATEO.- Ficamos!
ELZA.- Ganharemos, algum dia ganharemos esse maldito concurso, dançaremos melhor do
que ninguém, nossos pés nem sequer tocarão o chão, flutuaremos por cima de suas estúpidas
cabeças, fincaremos nossos saltos nos crânios deles! Vamos ganhar e nos dedicar a odiar o
mundo!
MATEO.- Ganharemos!
MATEO.- Odeio!
ELZA.- Eu quero gritar! Quero que meus filhos sejam tão lindos como os arranha-céus de Nova
York! Quero que meus filhos sejam tão lindos como os arranha-céus de Nova York! Quero que
meus filhos sejam tão lindos como os arranha-céus de Nova York!
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NARRADORA.- E Mateo engravidou Elza e se casaram, e um dilúvio de arroz caiu do céu.
Porque o céu gosta de apostar no amor mesmo quando os noivos não estão muito
preocupados com a imortalidade.
ELZA.- É tão difícil calcular a quantidade de água que o arroz precisa. Qualquer coisa
relacionada com o amor e o ódio é mais fácil, muito mais fácil. Eu sei que devo te amar e te
odiar ao mesmo tempo, se quiser sobreviver. Mas, esta questão da água e o arroz me enche
de ansiedade. Se a ansiedade pudesse crescer seria como duas tranças imensas, duas
tranças infinitas e negras, cheias de percevejos e de larvas, duas tranças negras e infinitas
saindo diretamente do meu osso esterno. Toda linguagem é inútil quando se trata de dizer a
verdade. Se você me ama, pegue um punhado de arroz e engula.
MATEO.- (Junto à vagina de Elza) Você quer mesmo nascer neste mundo ou não? Fala. É
uma decisão importante. Muito importante. Importante para todo mundo. Quero dizer,
importante para o universo. Vou te falar algo muito sério, escuta: há um momento em que
somos expulsos da vida. Todo mundo começa a ficar impaciente se você não morre, ninguém
quer que você volte para este mundo, ninguém, entendu bem? Absolutamente ninguém. Não
há piedade. Não te permitem voltar. Entende? E se você insiste em prolongar a sua vida todo
mundo fica muito irritado. Você foi expulso. Expulso. Entende? Tenho visto isso acontecer
muitas vezes. Eu ví como eles matam os velhos. Ví como os odeiam. Ví como são torturados.
Por isso vou perguntar outra vez. Deseja nascer neste mundo ou não? Fala. Fala. Depois não
se enfureça com a gente. Não venha simplemente cobrar de nós. Não jogue na nossa cara a
sua desgraça. Não somos pais perfeitos e nunca seremos. Terá que enfrentar pais
desesperados, absolutamente desesperados, e terá que lutar com nosso desespero, nosso
cansaço, e nosso fracasso. Nosso fodido fracasso. Não vai ser fácil, está entendendo? Nada
fácil. Aqui fora tudo está destruido. Está cheio de prisões, hospitais e manicômios. Prisões,
hospitais e manicômios por todos os lados, e mais cedo ou mais tarde você acaba num deles,
e uma vez dentro você some. Não existe mais esperança, não existe mais esperança. E são
muito poucos os que conseguem viver sem esperança, comer sem esperança, mijar sem
esperança. Por isso me reponda: você quer mesmo nascer neste mundo ou não? (Escuta
atentamente)
ELZA.- O quê?
MATEO.- Em primeiro lugar porque detesta o legado de seus pais. Também acha que o
simples fato de respirar o deixaria louco. Desconfia muito da felicidade da espécie humana e
acredita que o mundo é horroroso demais para coisas miúdas. Não quer vir ao mundo porque
acha que vai ser extremadamente difícil superar o instante do nascimento.
MATEO.- Você não entende? Nem teve a chance de escolher seus pais! Com quem ele vai se
encontrar?
ELZA.- Passei toda minha vida sendo diferente deles. O oposto deles.
MATEO.- E como sabe que é melhor? Só porque é diferente deles, o oposto deles?
ELZA.- Quando você olhar a criança deixará de pensar assim, deixará de ser o pior.
MATEO.- Pelo amor de Deus! Não sabemos nada sobre ele. Ele também não sabe nada de
nós. Ter um filho é algo muito brutal, muito insensato, irresponsável demais. Olhe o rosto de
toda essa gente. Estão destruídos, aniquilados, doentes. Acredito que trazendo um filho ao
mundo vamos causar uma grande desgraça, quero dizer, vamos acabar arruinando a
humanidade inteira.
ELZA.- Você está enganado. Precisamos de filhos lindos para vencer a morte.
MATEO.- Assim que ele nascer começaremos a ficar sozinhos, muito mais sozinhos.
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ELZA.- Não. Se você me abandonar eu terei meu filho. Se você morrer eu terei meu filho. Se
eu ficar velha eu terei meu filho. Se eu trouxer um filho ao mundo nunca estarei só.
ELZA.- O inimigo?
MATEO.- Você não quer entender, puta merda, sua maldita, não quer entender. É um a mais,
um a mais na lama, destruído, aniquilado, doente. E nós destruídos, aniquilados, doentes. E
todos destruídos, aniquilados e doentes.
ELZA.- Mas eu quero ter ele. E você também deveria gostar dele.
ELZA.- Vou me esforçar muito, não vai ser fácil, mas me esforçarei muito. Ele ficará contente
por ter nascido, tenho certeza.
MATEO.- Mas você me disse que odiava. Não se lembra? Me disse no cemitério.
MATEO.- Nada mudou. Você tem que odiar o mundo como antes, tanto quanto eu odeio.
Pensei que éramos nós dois odiando o mundo. Para sempre. Achei que nada mudaria nosso
ódio. O ódio, sabe do que estou falando? O ódio. Sua maldita! O mundo é repugnante!
Dissemos juntos! Odeio, odeio o mundo! Nós odiávamos a nós mesmos!
ELZA.- Mas agora o mundo tem que ser lindo, a comida tem que ser linda, as cadeiras tem que
ser lindas, o chão, os copos, a água, o leite, as portas, as janelas... tudo tem que ser lindo. O
café da manhã deve ser lindo, o cheiro do verde e muitas coisas que antes não eram. E você e
eu deveríamos ser lindos também.
MATEO.- Eu não quero ser lindo, quero ser o homem mais horrendo sobre a terra, quero ser o
pior, quero o destruir tudo. Dia e noite sonho em destruir tudo.
ELZA.- (Força Mateo para colocar a cabeça em seu ventre) Você tem que ser belo, tem que
ser belo, escuta teu filho, escuta de verdade!
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MATEO.- Não quero escutar!
ELZA.- Escuta!
MATEO.- Não, não...! Sua maldita! não pode nascer! (ELZA e Mateo estão exaustos depois
da briga)
MATEO.- Silêncio...
ELZA.- O quê?
MATEO.- Shss...
ELZA.- O que é?
MATEO.- (Silêncio)
MATEO.- Sim.
MATEO.- Tenho.
MATEO.- É sim.
ELZA.- Não.
MATEO.- Sim.
MATEO.- Sim.
MATEO.- Por fora são como todo mundo, como nossos pais.
MATEO.- Sim.
ELZA.- Mas, não tem crianças enterradas no cemitério. Olha, todo mundo é velho.
MATEO.- Não tem crianças enterradas porque os assassinos de crianças cortam as crianças
em pedacinhos e depois comem. Alguma vez você já viu um coelho enterrado?
ELZA.- Não.
MATEO.- Você nunca viu um coelho enterrado porque os coelhos são cortados em pedaços e
depois comidos. Acontece a mesma coisa com as crianças. Somos uma espécie de coelhos.
Quando você come um coelho é como se você comesse uma criança. Você já comeu carne de
coelho alguma vez?
ELZA.- Sim.
MATEO.- Pois é igual, igual a comer carne de uma criança. Você já sabe como é a sensação.
ELZA.- Só isso?
MATEO.- Só, não tem muito mais o que sentir. Nós crianças somos pequenas, e os assassinos
de crianças são grandes. Comem a gente. É isso.
MATEO.- Sempre têm fome, e dentro tem quatro estômagos, dois cor de rosa para as meninas
e dois de cor azul para os meninos.
MATEO.- Porque são diferentes. A carne das meninas é mais doce, e muito mais macia. A
digestão da carne das meninas é diferente.
MATEO.- E também são misturados com pão e vinho, sobretudo com vinho, litros e litros de
vinho.
MATEO.- Porque meu pai é um assassino de crianças. Minha mãe sempre fala. Assassino,
assassino de crianças, repete isso toda hora.
MATEO.- Um trem cortou as pernas dele. Agora já não pode mais correr atrás de mim. Silêncio
ELZA.- Sim.
ELZA.- Eu te amo.
MATEO.- Eu te amo.
MATEO.- Vou enfiar uma faca na barriga do seu pai e vou arrancar os quatro estômagos.
MATEO.- Claro, como os cachorros. Os assassinos de crianças têm dentes de cachorro. Olha
nos dentes do seu pai.
MATEO.- E depois a gente se casa, e deixaremos de ser crianças, e ninguém poderá mais nos
comer.
NARRADORA.- Enquanto durou a gravidez o casal Palavrakis teve sete sonhos horripilantes.
ELZA.- Primeiro sonho: Sou uma velha, meu filho me ve nua. Ele nunca tinha me visto nua
antes. Tenho a aparência de lama esbranquiçada espalhada pela cama. Ele fica com nojo de
mim e sente vontade de vomitar. Me filho vomita sobre mim. Seu vômito me arde, me corrói,
rompe minha a pele.
MATEO.- Segundo sonho: Minha filha chora sem parar. Passa vários dias chorando sem
parar. A pego no colo e ela cospe nos meus olhos. Me inunda de babas. Me urina com todas
suas forças. Enche as minhas mãos com a sua merda. Cheira mal. A coloco em um saco de
lixo e a atiro no rio.
ELZA.- Terceiro sonho: A primeira coisa que apareceu entre as minhas coxas foi a perna do
meu filho, uma perna tão roxa que parece que tinha crescido um pênis asqueroso em mim. A
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perna se move para cima e para baixo, desliza entre fluxos amarelos, se incha cada vez mais
parecendo um fígado doente. Meu filho é um pênis asqueroso.
MATEO.- Quarto sonho: Somos muito velhos, cheiramos mal. Minha filha não cresceu.
Continua sendo um bebê escorregadio e sanguinolento. Não parou de chorar desde o dia em
que nasceu. Nós morremos e ela fica presa no berço, sozinha, chorando, até que também
morre, de fome, e apodrece como nós. Os vermes a comem. Eles começam pelo mais macio,
pelos olhos.
ELZA.- Quinto sonho: Meu filho se deita em minha cama, completamente nú. Tem boca de
sapo. Põe sua boca em meu sexo, lambe, beija, chupa, introduz um braço, depois a cabeça e
volta a entrar dentro de mim. Ejacula. Ejacula por todos seus orifícios. Eu gemo de prazer.
Jorra entre as minhas pernas um líquido verde, como se fosse um sapo esmagado. É um pênis
asqueroso.
NARRADORA.- Chegou o dia do parto e todos ficaram assustados. O processo foi tão
doloroso que a senhora Palavrakis chegou a desejar a morte da criatura enquanto forçava.
Forçava como se tivesse dentro do corpo um diamante afiado. Enquanto isso o senhor
Palavrakis se encolhia em um canto, buscando lembranças de sua obscura infância.
MATEO.- Gostaria que outro homem vivesse minha vida, justo agora, agora que tudo está em
movimento, em convulsão, fluindo e entrando no mundo, um grande acontecimento. Agora,
neste momento, gostaria de deixar o mundo e me entregar à paralisia, apodrecer de tão quieto,
de tão vencido, secar. Detesto o movimento. Foi tudo culpa do movimento. Me aterroriza.
Consequências ruins do movimento. Se pudesse desaparecer sem ter que morrer. O medo
funciona como mais um osso do meu corpo. Medo de ser apenas um homem. Medo de ser
apenas um homem. Me encho de preguiça como se a preguiça fosse um vinho quente, e eu
um copo, um objeto inerte. O que eu sinto? O que devo sentir? Qual é o sentimento adequado?
A culpa deveria estar presente aqui com todas suas chagas, a culpa. Meu Deus, não consigo
sentir, não consigo sentir...
MATEO.- (Lê) “Um filho ou um escravo são propriedade e nada do que se faz com a
propriedade é injusto” Aristóteles.
ELZA.- (Lee) “É conveniente entrar no escuro no quarto das crianças? É bom que durmam no
quarto dos pais, junto com os pais, na mesma cama? Nús ou vestidos? É bom lhes dizer
sempre a verdade? É bom deixar eles chorarem? É bom que comam doces?”
ELZA.- É bom, definitivamente, é muito bom que as crianças comam doces. Elza e Mateo lêem
nas sacolas de supermercado: “Esta sacola não é um brinquedoo, para evitar riscos de asfixia
impeça que os bebês e as crianças brinquem com ela”
MATEO.- (De repente lêe impresso em uma sacola:) A responsabilidade é sua se seu filho se
tornar uma vítima.
ELZA.- Como?
ELZA.- Quando daremos permissão para ela usar tesouras, para tomar banho sozinha, para
ligar a tomada, para atravesar a rua? Quando? Como saberemos que não corre mais perigo?
Sempre surgirá um novo perigo, e outros perigos e mais perigos, até que ela morra. Silencio
ELZA.- A menina disse que os lençóis lhe dão câimbras. Voceê sabe alguma coisa?
NARRADORA.- Desde aquela conversa tinham passado muitos anos, e agora o casal
Palavrakis finalmente tinha obtido seu premio - finalmente ganharam o concurso de dança.
Mas, os troféus que sustentavam sobre seus joelhos pareciam mais com caixões do que com
presentes. Nas mãos do casal Palavrakis qualquer objeto adquiria uma aparência fúnebre.
Inclusive as pedras podiam perder a sua essência se fossem tocadas pelo casal. Tudo perdia
seu sentido com uma rapidez nem sequer imaginada. O cotidiano desse casal era a
reprodução viva da vaidade mórbida.
ELZA.- Não conseguem parar de falar. Deixe que falem, que fofoquem.
MATEO.- Você gosta que ele falem. Para todo mundo e a toda hora. Você gosta, não negue.
ELZA.- Tem gente que morreria por um gesto de compaixão. No fundo eles tem inveja de nós.
ELZA.- Eles têm direito. Nós estragamos seus sonhos para sempre.
MATEO.- Contam com riqueza de detalhes. Uma vez no túmulo não importa como você
chegou lá.
ELZA.- É deles. Nosso horror lhes pertence. Pertence a todos. Todos vieram ao enterro.
ELZA.- Simplemente têm medo. Medo que aconteça o mesmo com eles.
MATEO.- Leva as mãos ao rosto. Está quase vomitando. Esfrega os olhos. Não tem coragem
de olhar para nós. Veja. Não tem coragem. Vai ter que fazer um esforço sobrenatural para
resgatar a fé na vida. Vai embora, vai embora para um canto. Está passando mal. Devem ter
contado tudo a ele, com os mínimos detalhes.
ELZA.- Eles ficam mortos de curiosidade, querem saber o que sentimos. Tenho certeza.
Buscam em suas vidas algo horroroso, algo que seja parecido com a gente.
MATEO.- Talvez ele saia andando pela estrada e nunca mais volte. Abandonará sua cultura e
suas ambições. Como fizeram os outros.
NARRADORA.- Tão triste e tão horripilante era a história do casal Palavrakis que quem a
escutava sentia a garganta se fechar como se houvesse pequenos polvos enroscados na
traqueia. O que tinha acontecido com eles era, sem dúvida nenhuma, a pior coisa que podia
acontecer na vida de uma pessoa. A pior coisa. Naquela noite, na noite que ganharam o
prêmio, discutiram na frente de todos mundo
MATEO.- Eu nunca quis ter um carro, nem uma casa, nem um trabalho, nem tirar férias, nem
saúde, nem projetos, nem lembranças, nem profissão, nem família, nem filhos, nunca quis ter
filhos, como ia me reproduzir se detestava a vida? Eu só queria me acabar. Acabar comigo.
Você me obrigou a tudo.
MATEO.- E eu? Eu também precisava de amor. Por que não tentou comigo? Você nunca se
esforçou o suficiente.
ELZA.- Nunca.
ELZA.- E foi buscá-lo nos antros! E me deixou sozinha noite após noite com o ventre cheio de
filhos gritando para nascer!
ELZA.- Não! Eu não te dava nada em troca! Só as putas podiam te dar algo em troca! Um
homem como você só provoca repugnância!
MATEO.- Sabe o que eu penso? Que os que tentam procriar a qualquer preço pouco se
distinguem dos animais.
ELZA.- Os únicos que não querem procriar são os degenerados, os assassinos e os loucos.
Os que desperdiçam o sêmem com putas.
MATEO.- Não tinha mais escolha. Você meteu os cães na tua cama.
MATEO.- Como é que você teve a pouca vergonha de ficar grávida de um homem que odiava?
ELZA.- Nunca deveria ter confiado num homem incapaz de formar família.
MATEO.- Procriar a qualquer preço, é isso. Parir como os animais. Você queria ter a barriga
sempre cheia de bolas peludas, e forçar, e expulsar, e parir mais e mais ainda. Você queria
parir todos os cachorros do mundo. Você cheira cachorro. Tem olhos de cão. E ventre de
cadela.
MATEO.- É pior. É uma santa. Uma histérica que só pensa em ser mãe.
MATEO.- Mas nem todos devemos ser pais. Pais inúteis, fracassados. Nem todo mundo deve
fecundar. Somo filhos sem filhos, entende? Filhos sem filhos.
MATEO.- Desde o início fui um feto podre. Não deveria ter nascido.
MATEO.- Tira essa roupa, vamos, tira. Você vai ver como seu corpo já parece um cadáver.
Verá como eu entendo.
ELZA.- Eu também entendo! Estou velha, estou velha! E preciso deixar algo vivo sobre a terra!
Algo vivo sobre a terra! Sou uma múmia por dentro. Meu corpo é como um sarcófago. O tive
em minhas mãos e o perdi! Não me conformo, não me conformo! Ainda posso encher o mundo
de filhos, ainda dá tempo. Te suplico, me dê um filho.
MATEO.- Não posso acreditar que insiste! Quer dizer que você deixaria eu te foder, meter meu
pau dentro de sua buceta, que bufe sobre você, deixaria eu jorrar minha porra pegajosa e
quente dentro de suas coxas, permitirá que minhas babas fedidas escorram sobre você,
aceitaria tudo isso, apesar de tudo que nós dissemos, apesar do que sentimos um pelo outro?
ELZA.- Sim! Sim, sim, sim! As pessoas fazem isso todos os dias.
MATEO.- O único milagre consiste em poder acabar consigo mesmo. A natureza foi piedosa
com os desesperados.
ELZA.- Você não tem vida, não pode ter vida sem ter coração!
MATEO.- Você devorou meu coração. Ainda tem o sangue na ponta da tua língua.
ELZA.- Só mais um filho! Só estou te pedindo mais um filho, só mais um, só mais um! Um filho
que conseguisse crescer completamente, que ficasse do tamanho normal, sem nenhum
centímetro a mais, sem nenhum centímetro a menos. Nem sequer valeu a pena o esforço do
parto!
MATEO.- E se todos as crianças morressem aos sete anos? E se fosse essa a idade para
morrer? E se não crescessem?
MATEO.- Teve uma vida longa. Uma vida proporcional ao seu tamanho. Somos nós que
vivemos muito.
MATEO.- As coisas mudariam se tivesse vivido mais anos? Que você lhe teria dito? Nada! Não
temos nada a dizer aos filhos.
MATEO.- Para que, para apagar a morta? É isso? Quer apagá-la da memória?
ELZA.- Nunca.
ELZA.- Nunca!
ELZA.- Nunca.
MATEO.- A menina sendo enterrada e você cantando. Como se estivesse contente com
alguma coisa.
ELZA.- Eu contente?
MATEO.- Se você tivesse outro filho seria comido no bosque. O lobo o levaría entre os dentes.
Se tivesse cem filhos, todos seriam comidos. Todos os cem.
ELZA.- Se tivesse outro filho o levaria para longe. Bem longe de você.
ELZA.- (Silencio)
ELZA.- Facas?
ELZA.- É verdade.
ELZA.- Só facas.
MATEO.- Você colocou apenas facas. Três facas em volta do prato. Duas facas a direita e uma
a esquerda. Três em volta da minha sopa e três em volta da sua. Seis facas encima da mesa.
Você colocou seis facas sobre a mesa. Seis facas.
MATEO.- Com que diabos quer que eu tome a sopa? Assim? Poderia me cortar, sabia?
Poderia ficar muito machucado. Colocou seis facas sobre a mesa. Não entendo.
ELZA.- Nada.
MATEO.- Onde estão as colheres? E os garfos? Não estou vendo em lugar nenhum.
MATEO.- Quer dizer que a partir de agora vamos comer com facas, somente com facas?
Pergunto isso para ir me acostumando. Aos cortes, ao sangue e tudo mais. Imagina a salada
cheia de sangue?
ELZA.- Pare...
MATEO.- E a tolha de mesa, a toalha ia ficar muito suja. Você não é uma mulher suja. Ou é?
MATEO.- Tem seis fodidas facas sobre a mesa. Seis fodidas facas sobre a mesa!
MATEO.- Você não sabia que eram facas? Quer que eu faça uma demonstração? Vamos fazer
um teste? Vamos testar se são facas mesmo? Não é preciso sangrar muito.
ELZA.- Não.
ELZA.- Me deixa.
MATEO.- Quero esquecer, sua maldita, quero esquecer! Eu quero esquecer e você coloca seis
facas sobre a mesa.
ELZA.- Tomara que você morra, tomara que tenha muitos inimigos! Tomara que matem você!
MATEO.- Pega as seis facas! Pega! Me mata! E depois me corte em pedacinhos e coma tudo!
MATEO.- São para isso as facas? São para o meu pescoço? Seis facas para o meu pescoço?
Ahh! Põe seis facas sobre a mesa e nem sequer tem coragem para me apunhalar!
ELZA.- Chloé tinha sete anos e era linda. Fazia décadas que não nascia criatura mais linda.
Não se tinha notícia de beleza semelhante. As mães me pediam os cachos de seu delicado
cabelo. Todas queriam tocar seus cachos. Todas as mães. Existem cachos do cabelo de minha
filha nas casas de todas elas. Era convidada para todas as festas, ganhava todos os concursos
de beleza, ganhava sempre. Foi fotografada milhares de vezes. Era linda, linda. Qualquer
pessoa que se encontrava com ela começava a adorá-la imediatamente. Quando sorria, meu
Deus, quando sorria ... nada era mais doce do que seu sorriso. Nada! Mas as meninas
formosas sempre carregam uma manada de lobos nas suas costas, seres perversos que
surgem das profundezas da terra com o único objetivo de destruir a inocência. São seres
incapazes de enfrentar a beleza sem destruí-la. Não param até encontrar a menina mais linda
do mundo, eles acham que a beleza é algo injusto, que a beleza gera a luxúria, e só querem
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destruí-la. Porque minha filha era um desses seres encantadores que tem a capacidade de
reduzir os seus semelhantes à mais absoluta feiúra. Ninguém corre mais perigo do que as
crianças lindas, ninguém carrega mais sombras na nuca do que elas. As crianças lindas, aonde
quer que estejam, serão sempre perseguidas pelo horror.
NARRADORA.- Elza e Mateus queriam lembrar se naquele dia que levaram o cadáver também
tinha a fita amarela com a palavra PERIGO.
MATEO.- Tudo pode ser costurado, tudo pode ser fechado, é só uma máquina, só uma
máquina. Tudo pode voltar a seu lugar de origem. (Beliscando-se) Que é isto? Que é isto? Que
é isto?
ELZA.- O que?
MATEO.- Estou preocupado com a janela do seu quarto. Acende e apaga a luz a noite toda. E
quando apaga surgem vinte pares de olhos pendurados na janela, esperando que a menina
cresça e que possa sair sozinha pela rua. Você já imaginou como nossa filha aparece nos
sonhos desses pervertidos? O jeito que eles imaginam ela? As camisolas que botam nela? E
quando a deixam nua? Os artifícios que usam para acelerar o desenvolvimento de seu corpo?
Às vezes escuto gemidos, sinto de longe cheiro de mãos lambuzadas, os lençóis sujos e
pegajosos, porcos, porcos. Não suporto mais esta janela. O ar que a atravessa se transforma
em vendaval, e os raios de sol que a atingem virão caldeirões do inferno. Estou desconfiado.
Vou denunciar todos por seus sonhos repugnantes. Porcos, porcos. Temos que mudá-la de
janela. Melhor ainda, temos que colocar a menina em um quarto sem janela.
MATEO.- Teria preferido uma menina comum, uma menina igual a milhões de meninas que
existem.
MATEO.- Não.
MATEO.- O que?
ELZA.- Os lençóis, foram rasgados, foram cortados em pedacinhos muito pequenos, muito
pequenos...
MATEO.- Quem?
MATEO.- De novo?
ELZA.- Tudo.
ELZA.- Sim.
MATEO.- Tem que lhe deixar balas. Sempre tem que ter balas. Muitas balas, guloseimas. De
sabor morango, de limão, de laranja, de abacaxi, também gostava de abacaxi, de anis e de
pêssego. Tem que comprar, tem que comprar balas. Você deixou mais balas?
ELZA.- Sim!
MATEO.- Balas. Muitas balas para que ela não fique chateada. Muitas balas.
MATEO.- O que mais você viu? O que tem no seu quarto? Que mais ela fez?
ELZA.- Só tem os lençóis. Feito migalhas. Nunca gostou dos lençóis. Tinha cãimbras, se
lembra?
ELZA.- Escuta.
MATEO.- É o vento.
MATEO.- É o vento.
MATEO.- É o vento.
MATEO.- Nada.
ELZA.- Olha.
MATEO.- (Tira do bolso uma madeixa de cabelos) O que é isso? Quem colocou isso aquí no
meu bolso?
ELZA.- Preciso vê-la. Preciso saber como está apodrecendo. Eu preciso. Saber como cheira?
De onde saem os vermes? De que lado começaram a comê-la? Eu preciso saber disso.
Preciso saber se ela virou dentro do caixão, se ela mexeu, se a cabeça saiu rolando até os
pés.
ELZA.- Olha!
ELZA.- Eu te amava e porque te amava te imaginei morta de todas as formas possíveis. Desde
que você nasceu te imaginei morta. As pessoas costumam pensar na morte dos seres
queridos. Imaginar você morta era horrível, mas belo. Tinha algo de delicioso em seu cadáver.
Sempre tem algo de delicioso nos cadáveres. Eram imagens lindas de coisas indesejáveis.
Amar você foi angustiante, me deixou absolutamente vunerável, não cuidei de você o
suficiente, eu sei, eu sei. Mas, não teve um instante em que eu não me preocupasse com você.
Não teve um instante em que eu não transpirasse sangue por você. Não houve um instante
que não imaginasse você morta. Nunca pensei que sentiria tanto medo, segundo após
segundo. “Compra balas para mim”. Foi a última coisa que você disse, me compre balas, a
última coisa que ouvi você dizer, compre balas para mim, não disse outra coisa, compre balas,
disse compre balas, e eu passo o dia comprando balas, não faço outra coisa a não ser comprar
balas. A vida lá em casa ficou insuportável. Desde que você morreu, o pior de nossas almas
tem aflorado. Você foi um desses acontecimentos fatídicos da vida que fazem a gente tomar
consciência da nossa verdadeira podridão. Muito pouca gente tem um acontecimento fatídico
em suas vidas, realmente fatídico, muito pouca gente. Acredito que tem gente que nem sequer
sabe que existe uma coisa dessas. Acho que tem gente que nunca se apavorou consigo
mesmo. Às vezes, não consigo pensar em outra coisa senão em desaparecer.
MATEO.- Todo mundo nasce mais ou menos culpado, mais ou menos cruel ou mal. A maldade
que existe em mim não é maior da que existe no resto dos homens. Todo ser humano, em
algum momento de sua vida, deseja a morte de outro e semeia cadáveres em seus pesadelos.
Dependendo das circustâncias, qualquer um pode fazer um pacto com diabo. O ser solitário vai
em busca do solitário. E dentre todos os solitários o diabo é o que está mais só. Algumas vezes
o inferno é um bom refúgio. Acredito que é uma questão de movimentação. Existem os que
permanecem quietos e são inofensivos. Porém, existem outros que acreditam na ação. Se
movimentam. A culpa é do movimento. A culpa é do movimento. O sangue se move sem parar,
percorre nosso corpo permanentemente. Bom, tudo nasce e morre baixo do mesmo sol, e
ninguém deixa mais rastro que uma formiga esmagada no meio do caminho. Vai chegar o dia
em que os homens vão se degolar uns aos outros por causa da aversão que tem de si
próprios. Não se pode ser feliz o tempo todo. Mas, podemos ser desgraçados a vida toda. Elza,
eu pequei, pode fazer comigo o que quiser. Tem muita dor dentro de mim.
ELZA.- Sim.
ELZA.- Estava.
ELZA.- Sim.
ELZA.- Sim.
ELZA.- Sim.
ELZA.- Sim.
ELZA.- Sim.
NARRADORA.- Auto-mutilação?
ELZA.- No dia em que completou sete anos, a menina cortou os pulsos com a faca de partir o
bolo. Correu até seu pai com os braços escorrendo sangue e o abraçou com todas as suas
forças. Ela adorava o pai. Eu me joguei sobre ela para socorrê-la, mas, ela preferiu abraçar seu
pai. O seu pai. Abraçava seu pai como se fosse namorada dele. Manchou toda a sua camisa.
Acho que no fundo eles viveram uma história de amor. Eram um homem e uma mulher. Eles
nunca gostaram de mim, e eu também nunca fui capaz de gostar deles, certo? Nunca gostei da
minha filhinha, é isso o que você pensa? Nunca cuidei dela o suficiente. Nunca.
NARRADORA.- Por que não denunciou seu marido, senhora Palavrakis? (Pausa) A menina
tinha mordidas humanas?
NARRADORA.- Mas, seu marido era o lobo, compreende, senhora Palavrakis? O lobo.
NARRADORA.- Não minta senhora Palavrakis. Não se precipite em suas respostas. A menina
tinha mordidas humanas?
ELZA.- Quando era bem jovem fui babá, eu ganhava algum dinheiro cuidando de crianças,
eram bebês, por isso às vezes tinha que trocar as suas fraldas, e eu deixava... deixava que os
cachorros os chupassem, os lambessem, me entende? Eu nunca fiz nada para deter aos
cachorros. Os cachorros chupavam e eu olhava, somente olhava, como olhava a minha
filhinha enfiar a mão na imundície.
ELZA.- Bom, Mateo, não sei. São muitos seres humanos juntos. Alguma coisa acontece
quando se juntam tantos sujeitos num só. Vários seres humanos juntos, todos destruídos,
aniquilados, doentes. Será que a culpa não é de todos eles juntos? Juntos, juntos, juntos. Você
não se sente destruída, aniquilada, doente? Você não é responsável por nada? Nunca ficou
assustada consigo mesma?
ELZA.- Em um dia ele disse uma coisa que me fez chorar. Chloé ainda estava viva.
MATEO.- Passo o dia escavando na tristeza dos corpos, seguro corações inteiros nas mãos,
os intestinos escorregam pelas minhas luvas. Se arrancassem toda a pele de nossa filha ela
não seria nada além de uma ferida. Chloé é uma ferida viva. Tenho certeza. Por dentro é
viscosa e horrível. Não é nada bonita. Você não conseguiría distinguir ela de um cachorro
atropelado. É só matéria, é isso, só matéria.
NARRADORA.- Você sabe o que encontramos na carteira do senhor Palavrakis? Sabe o que
guardou na carteira durante todo este tempo?
NARRADORA.- A senhora Palavrakis morreu depois de pronunciar estas palavras. Seu pobre
coração não pôde suportar. Desde a morte do casal Palavrakis os habitantes do povoado
ficaram mais quietos. Muito mais quietos. Por mais estranho que pareça o vento jamais voltou a
soprar. Nem uma só folha se moveu. Todo mundo começou a se comunicar por meio de
monossílabos. O concurso de dança continuou acontecendo, mas nunca mais nenhum casal
recebeu o troféu sorrindo. A partir de certas horas podiam-se ver famílias inteiras em frente a
televisão, estáticos, sem movimentos, parados, com os olhos tão vazados como os de Edipo.
Agora, eles também conheciam o horror.