Vejo Um Vulto Na Janela Me Acuda Que Eu Sou Donzela PDF
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na Janela me
Acuda que Eu
sou Donzela
AO
POCA
1963 e 1964.
PERSONAGENS
MARIANGLICA
Pensionista mais antiga. Quarenta e tantos anos; no
consegue sair dos quinze. Alegre, ligada, desligada,
atualizada, retardada, cheia de cachinhos e laarotes,
pattica.
ANTONIA
Vinte e seis anos. Quieta, sbria, sria.
REN
Uns vinte e cinco anos, tipo fsico saudvel.
CARMINHA
Dezenove anos, boas maneiras, roupas finas.
CECLIA
Dezoito anos. Irrequieta, irreverente.
MARIA
Dezessete anos, desengonada.
JOANA
A empregada do pensionato. Uns vinte e quatro anos,
mas aparenta bem mais. Forte e "calejada".
LEOPOLDINA
A dona do pensionato. Cinqenta e quatro anos, talvez.
Paulista quatrocentona. Ou no.
PRIMEIRO ATO
QUADRO UM
JOANA - Por qu? Tem outro jeito? (Sai, resmungando.) Bexiga, lixa,
gota, serena!
CECLIA - Lavar prato? Ora, que onda essa? Ningum aqui Gata
Borralheira.
CECLIA - DE NOVO...?
LEOPOLDINA - Em novembro sobe.
MARIANGLICA - Nossa...
CECLIA - Mas subiu outro dia mesmo! Nada disso! Isto aqui no vale
o preo que voc cobra! uma sujeira! A nica coisa limpa aquela
cortina expressionista da janela do banheiro, que eu lavo, porque
parece asa de borboleta. A comida um horror. E acho tambm que
voc at devia assinar um jornal pras donzelas...
MARIA - A prpria.
TODAS - Oi.
MARIA - Serra?
CECLIA - Vou ter que dividir o quarto... pois . Eu sou Maria Ceclia.
Voc Maria do que? Ningum se chama s Maria.
CECLIA - Maria das Graas... Ah... Que amor... Maria, teu nome
uma graa.
CECLIA - Mas quanto esprito, meu Deus do Cu... Salvador Dal iria
se dar bem aqui.
CECLIA - No. Mas voc, sem dvida alguma a retardada que toda
penso que se preze tem. A dentro tem a caderneta de identidade
dela, por isso que ela no desgruda.
MARIA - Mas que baguna mais organizada, Deus! Tem tudo, aqui!
CECLIA - O que?
CARMINHA - Mas tudo isso j faz tanto tempo. Devia ficar de bem
com eles.
CECLIA - Voc disse que do teu av. Esta casa pode ser do teu
av. Voc tem que saber certo o nome do teu av. No sei no, nesse
mato a tem coelho, t sentindo um arrepio de mistrio nas antenas da
minha pele.
CECLIA - Mas no diga por que quer saber! Nem conte isso a
ningum.
CECLIA - E a tua me te deixa ir indo assim pro lugar que voc quer?
CECLIA - A minha acho que era mais assentada, minhas tias eram.
Me queriam na Pedagogia do Sdis, com freiras - como a Carminha -,
imagine. Ainda bem que j se foram todas.
MARIA - Atia.
CECLIA - Eu tambm.
MARIA - Meu Deus! Trancada! Eu! Nesta casa sem janelas! Mas isto
aqui no internato! Eu at escolhi este Pensionato, porque no tem
l, boa fama na Praa!
RENI - Sei. E eu devo passar por cima porque a Olga "dos nossos" e
o que importa so as reunies, a luta? Ah, no interessa! O Beto me
largou pela Olga e fim. Beto e Olga, o engenheiro e a pedagoga - bela
dupla. Quero que se danem e tudo o mais.
RENI - No sei por que maior. S porque tem mais tempo que o meu?
ANTONIA - Falta lavar esta meia. Vou dormir na minha tia hoje, meu
tio viajou.
CECLIA - Acho que foi escutado at no plo sul, Emilinha Borba, por
que no canta agora o "Babal"? (Para as outras.) "As banhistas", pra
variar, ? De Renoir, Czanne, Fragonard, ou hoje "O Banho Turco"
da Dominique?
MARIA (Do chuveiro) - No tinha nada mais a perguntar por que esse
pai pai do meu pai e no dela.
CECLIA Vacina?
TODAS Nel blu di pinto di blu, Nel blu di pinto di blu, Nel blu di pinto
di blu... (Black-out. Silncio. Tempo. No silncio, escuta-se o
barulho de uma mquina de escrever.).
QUADRO DOIS
RENI - Acho que no vou ter mais tempo de dar aula pro Chico.
CECLIA - Marianglica...
MARIA Ei: voc com esse "Caso da casa do meu av", e tem coisa
muito maior me preocupando, Ceclia! OS GORILAS, OS GRINGOS,
O TRUST DO IMPERIALISMO...
CECLIA (Corta) - NO! PRA! Eu juro que mudo desta casa hoje
mesmo, ah, mudo sim, vou arrumar minha mala j, e me mudo pro
banheiro!
CECLIA - Est claro que esta casa era do teu av, Maria! E tu no faz
nada, mas que sangue de barata, que falta de imaginao cientfica!
CECLIA - PONTO UM! Bom, vou pesquisar. Vai, comea, que que
tu quer falar?
CECLIA - ? ... Eu pensei que ele fosse telefonar pra... pra ns.
MARIA - Prefiro (tambm sem saber direito o que .) "pica", por isso
inventei "Pifa-pica", tu no gosta de originalidade? Mas pode rasgar a
revistinha que agora t aprendendo com o pessoal a. Sabia que
quando eu der vai ser um ato... "campestre"?... Quando eu der, eu no
vou dar, vou tre-par!
MARIA - Garoto... Deve ter mais de 20 anos! Uma barbona, uma boca
grossa e acolchoada dessas que quando beija afunda de to macio;
isso no garoto no, isso um HOMEM!
CECLIA - J beijou...?!
MARIA - Imagine!
MARIA - Melhor do que ficar sentada sem falar nem fazer nada!
MARIA -... Para prestar ateno nas sementinhas e escutar o que elas
dizem! (Fala baixinho, meiga). "Sim, eu sou uma semente, sim". Deu
pra escutar?
MARIANGLICA - Deu sim, mas favor acabar logo com isso que eu
quero usar o vaso sanitrio e no consigo na frente de ningum.
MARIA - Que foi que te deu hoje, Ceclia? Falar assim com a Antonia!
No nada disso, ela no do Partido...
MARIA - Grando?
MARIA - Ih...
MARIA - Zequinha?
JOANA - Ah, essa tu ia gostar, a Zequinha, vai ficar pior que a Ceclia,
o meu xod. pequirriquita assim, uma cabritinha empestada, num
obedece. Magine, nem sabe correr direito ainda e briga pra jogar
futebol. Ah, essa num casa, coitada.
MARIA - Isso a gente v depois. S sei que tem uma pessoa que eu
fao questo que fique bem instalada aqui com a famlia.
CECLIA - Quem.
MARIA - A Joana.
CECLIA - Ponto cinco. Esta outra foto dela bem mocinha. Olha
bem, guarda bem, que a gente vai pesquisar para ver que tipo de
mulher usava esse cabelo de tringulo.
QUADRO TRS
CECLIA - Se tu olhar direito pro teu jogo tem uma "tia Agamercinda"
goiabona, tua, entre dois valetes.
CECLIA - Mas pode ter certeza que o teu gal pe bem mais que a
mo nas raparigas de Campo Grande, no devia estar irritado.
MARIA (Irritada) - Ser que tu no entende que tem que ser assim,
Carminha? T na cara! No tem outro jeito! Tem que comear a
distribuir com justia as terras! Reforma agrria! No tem outro jeito!
CARMINHA - Mas que reforma agrria, o que isso? Distribuir terra!
Imagine! Pergunta pro Jango se ele distribui as dele! Imagine! Logo de
cara, a nossa terra, mas onde estamos!
LEOPOLDINA - Canastra.
CARMINHA - Bati.
RENI -... Paz! Me deixa chorar em paz! No adianta Antonia, sou toda
errada mesmo...
RENI Por isso parei com as aulas. Mas no agentei e procurei ele
de novo... Ele operrio, to saudvel, to sensual...
ANTONIA - E honesto.
CECLIA - Ah, faz tempo, Maria, nem lembro mais. Eu tinha uns 4 ou 5
anos.
CECLIA - Tinha.
MARIA - E a Leopoldina?
MARIA - DOPS.
CECLIA - Ai, brbaro! (Olha pela janela.) Nossa! Quase que eles
viram! Esto l na frente agora! Na rea!
MARIA - E a Leopoldina?
MARIA - No. Vem c. (As duas saem para o corredor, que est
vazio. Silncio. Comea o barulhinho da serra, longe, fininho.).
MARIA (Joga uma bolsinha pra Ceclia) - Leva essa bolsinha cafona
a pra gente ver, porque essa senhora, definitivamente, muito
esquisita.
MARIA - Mas hoje tu ainda mora aqui, a Leopoldina vai subir de novo,
tu pensionista e tem que achar ruim junto com a gente. Tu s tem 19
anos, com essa idade a gente muito mais a Zequinha da Joana do
que o nosso passado, Carminha. Tu no pode ser uma reacionria!
CARMINHA - Ento vai l pra Rssia, vai! Vai l ver de perto, o que
bom! Pergunta pra Antonia, ela deve saber, pergunta de onde
aquele lencinho de florzinha polons que o Julio trouxe pra ela!
CARMINHA (Corta) - Mas que pas, Maria, mas que pas, voc que
no entende nada de nada. Os Estados Unidos no so mais um
simples pas! uma coisa nova e enorme, maravilhosa, que
transcende as fronteiras e vai ultrapassar a linha mesquinha circular
da terra!!!
MARIA - Que coisa horrvel voc est falando! Porque quem alimenta
esse monstro o sangue nosso! O sangue nosso!
CECLIA - E safadas?
MARIA - E vaquinhas?
CECLIA - E putinhas?
MARIANGLICA - Queeeeem?
MARIA - Obrigada.
CECLIA - Tambm comprei um pra voc. Escondi. Procure.
CECLIA - Que foi que aconteceu com o Chico? Pode falar: a gente j
sabe que ele um brigo mesmo.
ANTONIA - Vou.
JOANA - , parecia, n?
MARIA - Um "pacto".
CECLIA - E eu?
LEOPOLDINA - Estou indo para a casa da tia dela pra ver o vestido
de noiva. Quer algum recado?
MARIA - Parece que vai botar, sozinha, os ovos todos, das Pscoas
todas.
MARIA - J liguei pra todo mundo que podia! Mas no estou nervosa
no, qualquer hora ele chega a correndo com aquela panca dele de
basquetebol e aqueles plos dele, no peito, feito um tringulo sumido
sei l onde, ui, dentro do calo. Ah, ele vai telefonar sim, eu sei que
vai dar tudo certo, nunca estive to entusiasmada e to feliz na minha
vida inteira e pronto!!!
CECLIA - Ah que novidade essa ladainha. Todo dia o dia mais feliz
da tua vida.
CECLIA - Ai, que delcia! Isso me estimula! Isso sim! Ai, que emoo!
O que a Leopoldina esconde nesse espao? Um corpo morto? Ser o
marido? Um cadver emparedado?
MARIA - Perfeito.
MARIA (No telefone da sala) - Ai, que raiva! Pensei que fosse o
Carlo.
CECLIA - Liguei pra te dizer que esse nosso papo... Tu tem toda
razo sim, Maria Quitria. Foi bom pra mim.
MARIA - De... Bem, olha Ceclia, tu minha amiga ntima ento vou te
fazer a maior confidncia, desde que tu no conte pra ningum.
MARIA - Mas nem toquei na tua cama! Juro! Foi tudo na minha!
(Pausa.) O galho da nossa rvore a na varanda, agentou bem. A
janela... Tu viu que ela abre. Ele entrou meia-noite e saiu de
madrugada. Um minuto depois vocs chegaram. (Pausa.).
QUADRO SEIS
LEOPOLDINA - Marianglica!
LEOPOLDINA - No. Ela gostava de ver mulher nua, mas tinha dio
ao mesmo tempo. Porque nesse dia a me deu uma surra nela, surra
de lenha, que entrou lasca e deixou marca.
MARIANGLICA - Que horror! E o pai expulsou de casa!
LEOPOLDINA - Ceclia!
QUADRO SETE
CECLIA - Mas no faz dessa dor a uma coisa intil, no. Transforma
ela e manda de volta, com dio.
MARIA - Tu est sentindo..? dio...?
MARIA - Sei.
CECLIA - Acho que eu... amava o Carlo. a primeira vez que falo
assim... de amor. Quando voc me contou que tinha... acontecido,
queria que tivesse sido eu. Mas depois fiquei contente porque foi
voc... porque eu gosto de voc tambm. tudo to confuso. Nunca
me senti to rf como hoje. (Toma comprimidos.).
LEOPOLDINA - Acho que agora vai ter que sair, Ceclia. Vendi o
pensionato, vamos, mexam-se, procurem outro lugar! E com alegria!
Mudou o governo! As mulheres esto marchando no Rio! A Famlia!
No Brasil inteiro! Animem-se!
MARIA - Antonia?
RENI - Modernssima? O Beto pode dar uma olhada? Ele vai dar um
excelente arquiteto!
RENI Ora, a Olga vai ser psiquiatra, pode transformar crianas nos
mais tranqilos robs!
MARIANGLICA - A morte tem a vida dentro dela, foi voc que disse!
No vai esquecer agora, o no da contradio! (Spot apenas no
poro, e, logo acima, no banheiro do pensionato, Carminha,
vestida de noiva, est ajoelhada junto banheira onde est o
corpo de Ceclia enrolado na cortina de borboleta. "Balana" a
banheira, como se fosse um bero, no ritmo da cano de ninar.
A lua grande comea a diminuir, muito lentamente. O dilogo
delas, todo nas sombras.).
RENI - Do Brasil...
FIM