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Apenas o Fim Do Mundo

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APENAS O FIM DO MUNDO

(​Juste la fin du monde, 1990​)

de ​Jean-Luc Lagarce

Tradução de Giovana Soar


2005

Personagens:

LUIZ, 34 anos
SUZANA, sua irmã, 23 anos
ANTONIO, irmão deles, 32 anos
CATARINA, mulher de Antonio, 32 anos
A MÃE, mãe de Luiz, Antonio e Suzana, 61 anos

A ação se passa na casa da Mãe e de Suzana, um domingo, evidentemente, ou ainda, ao


longo de quase um ano inteiro.
PRÓLOGO

Cena 1

LUIZ – Mais tarde, no ano seguinte


- era a minha vez de morrer -
agora eu tenho quase trinta e quatro anos e foi com esta idade
que eu morreria,
no ano seguinte,
há vários meses que eu esperava sem fazer nada,
fingindo, sem saber,
há vários meses que eu esperava acabar com isto,
no ano seguinte,
como quando às vezes ousamos agir,
só um pouco,
diante de um perigo extremo, imperceptivelmente, sem
querer fazer barulho ou cometer um gesto muito violento que
acordaria o inimigo e que te destruiria imediatamente,
no ano seguinte,
apesar de tudo,
o medo,
assumindo o risco e sem nunca ter esperança de sobreviver,
apesar de tudo,
no ano seguinte,
eu me decidi voltar a vê-los, voltar atrás,
voltar sobre os meus passos e fazer a viagem,
para anunciar, lentamente, com cuidado, com cuidado e precisão
- acho eu -
lentamente, calmamente, de forma ponderada
- e eu não fui sempre para os outros e para eles, mais precisamente, não fui sempre um
homem ponderado?,
para anunciar,
dizer,
apenas dizer,
a minha morte próxima e irremediável,
anunciá-la eu mesmo, ser o seu único mensageiro,
e parecer
- talvez o que sempre quis, quis e decidi, em
todas as circunstâncias e desde os tempos mais longínquos que eu ouso me lembrar -
e parecer uma vez mais poder decidir,
me dar e dar aos outros, e a eles, mais precisamente,
você, vocês, ela, e ainda os que não conheço (tarde
demais e paciência),
me dar e dar aos outros uma última vez a ilusão
de ser responsável por mim e de ser, até nesta situação
extrema, senhor de mim mesmo.

PRIMEIRA PARTE

Cena 1

SUZANA – É a Catarina.
Ela é a Catarina.
Catarina, Luiz.
Luiz.
Catarina.

ANTONIO – Suzana, por favor, deixa ele continuar, deixa ele continuar.

CATARINA – Ela está contente.

ANTONIO – Parece até um cachorrinho.

A MÃE – Não me diga, o que eu estou ouvindo, é verdade, tinha me esquecido, não me
digam uma coisa dessas, eles não se conhecem.
Luiz, você não conhece a Catarina? Não me diga isso, vocês não se conhecem, nunca se
encontraram, nunca?

ANTONIO – O que você queria? Você sabe muito bem.

LUIZ – Eu estou muito contente.

CATARINA – Sim, eu também, claro, eu também.


Catarina.

SUZANA – Você vai apertar a mão dela?

LUIZ – Luiz.
A Suzana já disse, acabou de dizer.

SUZANA – Você vai apertar a mão dela, ele vai apertar a mão dela. Não me diga que você
vai apertar a mão dela? Eles não vão apertar as mãos como se fossem estranhos.
Ele não muda, eu imaginava ele exatamente assim,
você não muda,
ele não muda, é assim que eu o imagino, ele não muda, o Luiz,
e com ela, Catarina, ela, você vai se dar muito bem, vocês vão se dar muito bem sem
problemas, ela é igual, vocês vão se dar muito bem.
Não aperte a mão, dê um beijo nela.
Catarina.

ANTONIO – Suzana, eles estão se vendo pela primeira vez!

LUIZ – Eu te dou um beijo, claro, ela tem razão, desculpe, eu fico contente, me permite?

SUZANA – Está vendo, era o que eu dizia, tem que dizer pra eles.

A MÃE – E ao mesmo tempo, quem é que me meteu semelhante idéia na cabeça, aqui
dentro da cabeça? Eu sabia. Mas eu sou assim, nunca poderia imaginar que eles não se
conheciam,
que vocês não se conheciam,
que a mulher do meu outro filho não conhecia o meu filho,
isso, eu não teria imaginado,
achado possível.
Vocês vivem de uma maneira muito esquisita.

CATARINA – Quando nós nos casamos, ele não veio e desde então, o resto do tempo, não
houve oportunidade.

ANTONIO – Ela sabe disso perfeitamente.

A MÃE – Sim, não me expliquem, é uma estupidez, não sei por que perguntei isso,
eu sei disso muito bem, mas estava me esquecendo, tinha me esquecido de todos esses
outros anos,
não me lembrava que fosse a este ponto, era o que eu queria dizer.

SUZANA – Ele veio de táxi.


Eu estava atrás de casa e ouço um carro,
eu pensei que você tinha comprado um carro, nunca se sabe, seria lógico.
Eu estava te esperando e o barulho do carro, do táxi, imediatamente eu soube que você
estava chegando, fui ver, era um táxi,
você veio de táxi desde a estação, era o que eu tinha dito, não devia, eu podia ter ido te
buscar,
eu tenho um automóvel próprio,
hoje você me telefona e eu teria ido imediatamente
te encontrar,
só tinha que me avisar e esperar por mim num café.
Eu tinha dito que você ia fazer isso,
eu disse pra eles
que você ia pegar um táxi,
mas todos eles acharam que você sabia o que você devia fazer.
A MÃE – Você fez boa viagem? Eu nem te perguntei.

LUIZ – Estou bem.


Não tenho carro, não.
E você, como é que vai você?

ANTONIO – Estou bem.


E você, como é que vai você?

LUIZ – Estou bem.


Não precisa exagerar, não é uma viagem longa.

SUZANA – Está vendo, Catarina, o que eu dizia,


é o Luiz,
ele nunca beija ninguém,
foi sempre assim.
o próprio irmão, ele não beija.

ANTONIO – Suzana, deixa a gente em paz!

SUZANA – O que foi que eu disse?


Eu não falei com você, pra esse aí eu não digo nada,
eu estou falando com você?
Mãe!

Cena 2

CATARINA – Eles estão na casa da outra avó,


nós não podíamos saber que você vinha,
e tirar eles de lá na ultima hora, ela não admitiria.
Eles teriam ficado muito felizes de vê-lo, disso a gente não tem a menor dúvida,
- não é? -,
e eu também, e Antonio a mesma coisa,
teríamos ficado muito felizes, claro, se finalmente eles tivessem conhecido você.
Eles nem imaginam como você é.

A mais velha tem oito anos.


Dizem, mas eu não me dou conta,
no meu lugar é difícil,
todo mundo diz,
dizem,
estas coisas nunca me parecem muito lógicas
- é um pouco, como eu diria? De brincadeira,
não é? -,
não sei,
dizem e eu não vou contradizer, que ela é parecida com o Antonio,
dizem que é a cara dele, versão menina,
a mesma pessoa.
Dizem sempre essas coisas, dizem isto de todas as crianças, não sei, por que não?

A MÃE – O mesmo gênio, o mesmo gênio terrível,


são os dois iguais, idênticos e teimosos.
O que ele é hoje, ela vai ser amanhã.

CATARINA – Você tinha nos enviado um bilhete,


você me mandou um bilhete, um bilhetinho, e flores,
eu me lembro.
Foi, era, foi um gesto muito simpático, eu fiquei
muito sensibilizada, mas na verdade,
você nunca tinha visto ela.
E também não vai ser hoje, paciência, não, não será
hoje que isso vai mudar.
Depois eu conto pra ela.
Nós tínhamos lhe enviado, lhe enviamos uma fotografia dela
- pequenininha, miudinha, bebê, essas coisinhas! –
e na fotografia, ela não está parecida com o Antonio, nem um pouco, não está parecida com
ninguém,
quando se é assim tão pequenininho não se é parecido com nada,
eu não sei se você recebeu.
Hoje ela está muito diferente, uma moça, e você não poderia reconhecê-la,
ela cresceu e tem cabelos.
É uma pena.

ANTONIO – Pára com isso, você está enchendo ele.

LUIZ – Nem um pouco,


por que é que você diz isso, não diga isso.

CATARINA – Eu estou enchendo você, eu encho todo mundo com isto, as crianças,
a gente acha que é interessante.

LUIZ – Não sei por que ele disse isso,


não entendi,
por que é que você disse isso?
é maldade, não, maldade não, mas é desagradável.
Isso não me enche nem um pouco, tudo isso, os meus afilhados, sobrinhos, os meus
sobrinhos, não são meus afilhados, meus sobrinhos, sobrinhas, a minha sobrinha, isso me
interessa.
Tem também um menino, ele se chama como eu.
Luiz?

CATARINA – Sim, eu lhe peço desculpas.

LUIZ – É um prazer, eu estou sensibilizado, fiquei sensibilizado.

CATARINA – Tem um menino, sim.


O menino tem,
tem agora seis anos.
Seis anos?
O que mais, sei lá?
Eles têm dois anos de diferença, dois anos os separam.
O que mais eu poderia contar?

ANTONIO – Eu não disse nada,


não me olha assim!
Você está vendo como ela me olha?
O que foi que eu disse?
Não foi o que eu disse que deve, que deveria, não foi o que eu disse que vai te impedir de
continuar,
eu não disse nada que poderia te constranger,
ela está constrangida,
ela quase não te conhece e está constrangida,
a Catarina é assim.
Eu não disse nada.
Ele está te ouvindo,
isto te interessa?
Ele está te ouvindo, ele acabou de dizer,
isso interessa pra ele, os nossos filhos, os teus filhos, os meus filhos,
isso agrada a ele,
isso te agrada?
Ele está adorando, é um homem adorando esta descrição da nossa prole,
ele adora este assunto,
não sei por que, o que me deu,
nada no rosto dele dava a entender que ele estivesse se enchendo,
eu disse isso deve ter sido sem pensar.

CATARINA – Sim, não, eu não estava pensando nisso.

LUIZ – É horrível, não está certo.


Eu me sinto mal,
me desculpa,
me desculpem,
eu não estou bravo com você, mas você fez com que eu me sentisse mal e agora,
eu estou me sentindo mal.
ANTONIO – A culpa vai ser minha.
Um dia tão bonito.

A MÃE – Ela estava falando do Luiz,


Catarina, você estava falando do Luiz,
do garoto.
Deixa ele, você sabe como ele é.

CATARINA – Sim. Desculpem. Eu estava dizendo,


ele se chama como você, mas, na verdade...

ANTONIO – Me desculpem.
Está bem, eu peço desculpa, eu não disse nada, façam como se eu não tivesse dito nada,
mas não me olhe desse jeito,
não continue me olhando assim,
francamente, francamente,
o que foi que eu disse?

CATARINA – Eu escutei.
Eu escutei você.

O que eu estava dizendo, ele tem antes de tudo,


e a origem esta sobretudo nisso
- eu estou contando -
ele tem antes de tudo o mesmo nome que o pai de vocês e fatalmente, por dedução

ANTONIO – Dos reis da França.

CATARINA – Escuta aqui, Antonio,


escuta aqui, eu não vou dizer mais nada, pra mim tanto faz,
conta você no meu lugar!

ANTONIO – Eu não disse nada,


eu estava brincando,
não se pode mais brincar,
num dia como o de hoje, se não se pode brincar...

A MÃE – Ele está brincando, não é a primeira vez que ele faz esta brincadeira.

ANTONIO – Explica.

CATARINA – Ele tem o nome do pai de vocês,


eu acho, nós achamos, nós achávamos, eu acho que é bom,
isso era do gosto do Antonio, era uma coisa, uma coisa que ele, que ele fazia questão,
e eu,
eu não via nada contra
- não é um nome que eu deteste.
Na minha família há o mesmo tipo de tradição, talvez se siga menos,
eu não presto muito atenção, eu só tenho um irmão, infelizmente,
ele não é o mais velho, então,
o nome dos pais ou do pai do pai do filho macho, o primeiro rapaz, essas histórias todas.
E depois,
e já que você não tinha filhos, já que você não tem filhos,
- porque teria sido lógico, nós sabemos... -
o que eu queria dizer:
já que você não tem filhos
e é o que o Antonio diz ,
você diz isso, você que disse isso,
o Antonio diz que você não vai ter
- não é que estamos decidindo por você, mas eu acho que ele tem razão. Depois de uma
certa idade, salvo algumas exceções, a gente desiste, a gente renuncia
já que você não tem filhos,
é sobretudo por isso,
já que você não vai ter filhos,
era lógico
(lógico, não é uma palavra bonita para uma coisa normalmente feliz e solene, o batizado
das crianças, bem)
era lógico, vocês me entendem,
isso poderia parecer apenas uma tradição, histórias antigas mas também é assim que nós
vivemos,
parecia lógico,
foi o que nos dissemos, que nós o chamássemos Luiz,
como o seu pai, e portanto como você, na verdade.
E eu acho também que isso é do gosto da sua mãe.

ANTONIO: Mas você continua sendo o mais velho, não há dúvida nenhuma em relação a
isso.

A MÃE – Que pena que você não possa vê-lo.


E se você...

LUIZ - E então, para este menino,


como é que vocês tinham tido? «O herdeiro macho»?
Eu não tinha enviado nenhum cartão?

ANTÓNIO – Mas que merda, não era disso que ela estava falando!

CATARINA – Antonio!
Cena 3

SUZANA – Quando você foi embora


- eu não me lembro de você -
eu não sabia que você ia embora por tanto tempo, não liguei,
não prestei atenção,
e eu me vi sem nada.
Eu te esquecia bem depressa.
Eu era pequena, criança, é o que dizem, eu era pequena.

Não foi bom que você tenha ido embora,


ido embora por tanto tempo,
não foi bom e não foi bom para mim
e não foi bom para ela
(ela não vai te dizer nada)
e, de certa forma, também não foi bom
para eles, Antonio e Catarina.
Mas também,
- acho que eu não estou enganada –
mas também não deve ser, não deve ter sido, não deve ser
bom para você,
para você também.
Você deve, às vezes,
mesmo se você nunca confesse,
mesmo se você nunca deva confessar
- e trata-se mesmo de confissão -
você deve às vezes, você também
(é o que eu digo)
você também,
você deve às vezes ter precisado de nós e lamentado não poder nos dizer.
Ou, mais habilmente
- eu acho que você é um homem hábil, um homem que poderíamos qualificar de hábil, um
homem «repleto de uma certa habilidade» -
ou ainda mais habilmente, você deve às vezes ter lamentado não poder nos fazer sentir que
você precisava de nós
e nos obrigar, por nós mesmos, a nos preocuparmos com você.

Às vezes, você nos mandava cartas,


às vezes você nos manda cartas,
não são cartas, são o quê? pequenos bilhetes, são apenas pequenos bilhetes, uma ou duas
frases, nada, como é que se diz?
elípticas.
«Às vezes você nos mandava cartas elípticas.»
Eu pensava, quando você foi embora
(o que eu pensei quando você foi embora),
quando eu era criança e quando você nos privou da sua companhia (é aí que isso começa),
eu achava que a sua profissão, o que você fazia ou ia fazer na vida,
o que você desejava fazer na vida,
eu achava que a sua profissão era escrever (seria escrever)
ou que, de qualquer modo
- e nós aqui sentimos, todos nós, você sabe, você não pode não saber, sentimos uma certa
forma de admiração, é a palavra exata, uma certa forma de admiração por você por causa
disso -,
ou que, de qualquer modo,
se você precisasse,
se você sentisse que precisava,
se, de repente, você sentisse, a obrigação ou o desejo, você saberia escrever,
se servir disso para sair de um passo mal dado ou para poder avançar ainda mais.
Mas nunca, em relação a nós,
Você nunca usa dessa possibilidade, desse dom (é assim que se diz, uma espécie de dom,
eu acho, você ri)
nunca, em relação a nós, você usa dessa qualidade
- é esta a palavra, uma palavra bem estranha já que se trata de você -
nunca você se utiliza dessa qualidade que você tem, com a gente, para nós.
Você não nos dá sequer a prova disso, você não nos julga dignos.
É para os outros.

Esses pequenos bilhetes


- as frases elípticas -
esses pequenos bilhetes vêm sempre escritos em cartões postais
(nós temos hoje, uma coleção invejável)
como se você quisesse, dessa maneira, sempre parecer estar de férias,
não sei, era o que eu achava,
ou ainda, como se, antecipadamente,
você quisesse reduzir o lugar que você nos consagraria
e oferecer a todo e qualquer olhar as mensagens sem importância
que você nos manda.
«Eu estou bem e espero que vocês também estejam bem.»
E mesmo, para um dia como o de hoje,
mesmo para dar uma notícia desta importância,
e você não pode ignorar que foi uma notícia importante para nós,
todos nós, mesmo se os outros não te dizem,
você escreveu apenas, lá também, umas rápidas indicações da hora e do dia num postal,
comprado certamente numa banca e representando, se bem me lembro, uma das novas
cidades da periferia, vista dum avião, com, podemos notar claramente, em primeiro plano, o
parque internacional de exposições.
Ela, a sua mãe, a minha mãe,
ela diz que você fez e sempre fez,
e desde a morte dele,
que você fez e sempre fez o que você tinha que fazer.
Ela repete isso
e se nós devêssemos por acaso, tentássemos, somente, apenas, se tentássemos insinuar,
ousar insinuar que talvez,
como direi?
Você não tinha sido tão tão presente,
ela responde que «você fez e sempre fez o que você tinha que fazer»,
e nós, nós nos calamos
o que é que a gente sabe?
A gente não te conhece.
O que eu suponho, o que eu supunha e o Antonio pensa como eu,
ele me confirmou quando achou que neste ponto e em outros, eu já estava na idade de
entender,
é que você nunca esquecia as datas importantes das nossas vidas,
os aniversários, fossem quais fossem,
que sempre você esteve perto dela, de certa maneira,
e que nós não temos nenhum direito de criticar a sua ausência.

É estranho,
eu queria ser feliz e ser feliz com você
- a gente se diz isso, a gente se prepara -
e eu faço críticas a você e você me ouve,
você parece me ouvir sem me interromper.

Eu continuo morando aqui com ela.


O Antonio e a Catarina, com as crianças
- eu sou a madrinha do Luiz -
eles têm uma casinha, um sobrado, eu ia corrigir,
não sei porquê mas você deve gostar (é o que eu acho) deve gostar destas ligeiras
nuances, casinha, bem,

como muitos outros, à alguns quilômetros daqui, por alí, para os lados da piscina
descoberta do complexo desportivo,
você pega o 9 e depois o 62 e depois ainda tem que andar um pouco.
É simpático, eu não gosto, nunca vou lá, mas é simpático.
Não sei por que,
eu falo,
e isso me dá quase uma vontade de chorar,
isso tudo,
o Antonio mora perto da piscina.
Não, não é simpático,
é um bairro bastante feio, estão reformando mas aquilo não tem mais o que fazer,
eu não gosto nada do lugar onde ele mora, é longe,
não gosto,
eles vêm sempre aqui e nós nunca vamos lá.
Os cartões postais, você poderia ter escolhido melhor, não sei, eu teria colado na parede,
podia ter mostrado para as amigas!
Bem. Não faz mal.
Continuo morando aqui com ela. Eu queria ir embora, mas é quase impossível,
não sei como explicar,
como dizer,
então não digo.
O Antonio acha que eu tenho tempo,
ele diz sempre essas coisas, você vai ver (você já se deu conta talvez),
ele diz que eu não estou mal,
e, na verdade, se pensarmos bem
- e na verdade, eu penso nisso, eu rio, pronto, eu até dou risada – na verdade, eu não estou
mal, não é isso que eu acho.
Eu não vou embora, eu fico,
vivo onde sempre vivi mas não estou mal.
Talvez
(será que podemos adivinhar estas coisas?)
talvez a minha vida será sempre assim, a gente tem que se resignar,
bem,
existem outras pessoas e elas são em maior numero.
existem outras pessoas que passam a vida inteira no lugar onde nasceram
e onde nasceram antes delas seus pais,
elas não são infelizes,
a gente tem que se contentar,
ou pelo menos elas não são infelizes por causa disso, não se pode dizer,
e talvez seja essa a minha sorte, essa palavra, o meu destino, esta vida.
Eu vivo no segundo andar, tenho o meu quarto, fiquei com ele, e também o quarto do
Antonio
e o seu também se eu quiser,
mas esse, nós não usamos,
é como um depósito, não é por mal, guardamos lá as velharias que já não servem pra nada
mas que não ousamos jogar fora,
e de certa forma,
é muito melhor,
é o que dizem todos quando estão contra mim,
muito melhor do que aquilo que eu poderia conseguir com o dinheiro que eu ganho se fosse
embora.
É quase como um apartamento.
É quase como um apartamento, mas, eu já estou acabando
mas não é a minha casa, é a casa dos meus pais,
não é a mesma coisa,
você deve conseguir entender isto.

Eu tenho também coisas que me pertencem, coisas de casa,


tudo isso, a televisão, o aparelho de som
e tem mais no meu quarto, lá em cima,
depois te mostro
(o Antonio de novo)
tem mais conforto do que aqui embaixo,
não, não é “aqui embaixo”, não goza de mim,
do que aqui.
Todas estas coisas me pertencem,
eu ainda não paguei todas, ainda não acabei de pagar,
mas elas me pertencem
e era de mim, diretamente,
que viriam tomá-las se eu não as pagasse.

E o que mais?
Eu falo muito, mas não é verdade,
falo muito quando tem alguém, mas o resto do tempo, não,
num longo prazo isso fica bem equilibrado,
sou proporcionalmente bem quieta.
Nós temos um carro, não é só meu, mas ela não quis aprender a dirigir,
ela diz que tem medo,
e eu sou a motorista.
É bem prático, isso nos ajuda e não precisamos estar sempre pedindo para os outros.

É isso.

O que eu quero dizer, é que está tudo bem e que teria sido um erro,
na verdade,
se você se preocupasse.

Cena 4

A MÃE – No domingo...

ANTONIO – Mãe!

A MÃE – Eu não disse nada,


estava contando pra Catarina.
No domingo...

ANTONIO – Ela conhece isso de cor.

CATARINA – Deixa ela falar,


você não deixa ninguém falar.
Ela ia falar.
A MÃE – Isto o incomoda.

A gente trabalhava,
o pai deles trabalhava, eu trabalhava,
e no domingo
- eu estou contando, não precisa escutar -,
no domingo, porque, durante a semana, as noites são curtas, tínhamos de levantar cedo no
dia seguinte, as noites durante a semana não eram a mesma coisa,
no domingo, a gente ia passear.
Sempre e sistematicamente.

CATARINA – Aonde você vai, o que é que você está fazendo?

ANTONIO – A lugar nenhum,


não vou a lugar nenhum,
onde você quer que eu vá?
Eu não me mexo, eu estava escutando.
No domingo.

LUIZ – Fica aqui com a gente, por que não? É triste.

A MÃE – Era o que eu estava dizendo:


você não o conhece mais, o mesmo gênio ruim de sempre,
acanhado,
desde criança, só isso!
E muitas vezes só pelo prazer,
você o vê agora como ele sempre foi.

No domingo
- como eu estava contando -
no domingo, a gente ia passear.
Não havia um único domingo em que não saíssemos, como um ritual, era o que eu dizia,
um ritual,
um hábito.
Íamos passear, impossível fugir disto.

SUZANA – É a história anterior,


de quando eu era bem pequena
ou de quando eu ainda não existia.

A MÃE – Bem, a gente pegava o carro,


hoje vocês não fazem mais isso,
a gente pegava o carro,
nós não éramos muito ricos, não, mas tínhamos um carro e eu acho que nunca vi o pai
deles sem carro.
Antes mesmo que nos tínhamos casado, tivéssemos casado¿
antes de nos sermos casados, eu já via ele,
- olhava para ele -
ele tinha um carro,
um dos primeiros por aqui,
velho e feio e fazia barulho, muito,
mas, bom, era um carro,
ele tinha trabalhado e ela era dele,
era o carro dele, o orgulho que ele tinha.

ANTONIO – A gente confia no que ela diz.

A MÃE – Depois, o nosso carro, mais tarde


mas eles não devem se lembrar,
não podem, eles eram muito pequenos,
não nem me dou conta, sim, eu acho,
nós havíamos trocado,
o nosso carro era longo, bem alongado,
«aerodinâmico»,
e preto,
porque preto, ele dizia isso, da sua cabeça,
preto era mais «chique», a palavra é dele,
mas bem na verdade, porquê ele não tinha achado outro.
Vermelho, eu o conheço bem, vermelho, isso, eu acho, era o que ele teria preferido.

No domingo de manhã, ele lavava, esfregava, um verdadeiro maníaco,


isso durava duas horas
e à tarde, depois de comer,
a gente ia embora.
Sempre foi assim, não sei,
muitos anos, belos e longos anos,
todos os domingos como uma tradição,
nada de férias, não, mas todos os domingos,
quer chova, quer faça sol,
ele dizia as coisas assim, uma frase para cada situação da existência,
«quer chova, quer faça sol»,
todos os domingos nós íamos passear.

Às vezes também,
no primeiro domingo de maio, já não sei bem por que,
uma festa talvez,
no primeiro domingo depois do oito de março, que é a data do meu aniversário,
e quando o oito de março caía num domingo, bom
e ainda no primeiro domingo das férias de verão
- a gente dizia «estamos saindo de férias», a gente buzinava, e de noite, quando a gente
voltava, a gente dizia que no fim das contas a gente estava melhor em casa,
bobagens -
e era um pouco assim também antes do início das aulas, aí, ao contrário, como se
voltássemos de férias, sempre a mesma história,
às vezes,
era o que eu estava tentando dizer,
nós íamos ao restaurante,
sempre os mesmos restaurantes, não muito longe e os donos nos conheciam e comíamos
sempre as mesmas coisas,
as especialidades e as coisas da época,
a carpa frita ou as rãs ao creme, mas eles não gostavam disso.

Depois, eles fizeram treze e quatorze anos,


Suzana era pequena, eles não se gostavam muito, estavam sempre se provocando, isso
deixava o pai deles uma fera, estas foram as últimas vezes e nada mais foi como antes.

Não sei por que eu estou contando isto, vou ficar quieta.

Outras vezes ainda,


piqueniques, apenas isso, íamos até à margem do rio,
Ai, ai!
Bem, é verão e comemos na grama, salada de atum com arroz e maionese e ovos cozidos
- aquele ali ainda adora ovos cozidos -
e depois, nós dormíamos um pouco, o pai deles e eu, em cima do cobertor, de um grande
cobertor verde e vermelho,
e eles, eles iam brincar de luta.
Era bom.

Depois, não estou dizendo isso por mal,


depois, esses dois cresceram demais, sei lá, como é que podemos saber como tudo
desaparece?
eles não queriam mais vir com a gente, eles iam cada um para o seu lado andar de
bicicleta, cada um por si, e nós só com a Suzana,
não valia mais a pena.

ANTONIO – A culpa é nossa.

SUZANA – Ou minha.

Cena 5

LUIZ – Foi talvez há uns dez dias apenas


- onde é que eu estava? -
devia ter sido há uns dez dias
e talvez seja por essa única e ínfima razão que eu decidi voltar aqui.
Eu me levantei
e disse que eu viria vê-los,
visitar,
e depois, nos dias seguintes,
apesar de todas as excelentes razões que me dei,
não mudei mais de opinião.

Há dez dias,
eu estava na minha cama e acordei,
calmamente, tranqüilo
- isso faz muito tempo,
hoje faz um ano, como eu disse no começo,
isso faz muito tempo que não me acontece mais, que eu me encontre sempre, toda manhã,
com apenas em mente para começar, começar de novo,
apenas em mente a idéia da minha morte próxima -
eu acordei, calmamente, tranqüilo,
com este pensamento estranho e claro

não sei se eu poderia descrevê-lo bem


com este pensamento estranho e claro
que meus pais, que meus pais,
e as pessoas também, todos os outros, na minha vida,
as pessoas mais próximas de mim,
que meus pais e todos aqueles de quem me aproximo ou que se aproximaram de mim,
meu pai também, no passado, admitamos que eu me lembre,
minha mãe, meu irmão que está hoje aqui,
e minha irmã também,
que todo mundo depois de terem feito uma certa idéia de mim, mais dia menos dia não me
amem mais, não me amassem mais
e que não me amam mais
(o que eu quero dizer)
«no fim das contas»
como que por desencorajamento, como que por cansaço de mim,
que eles me abandonassem sempre porque eu peço o abandono

era esta impressão, eu não encontro as palavras,


quando eu acordava
- um instante, saímos do sono, tudo é claro, a gente acha que o entende, e ele desaparece
em seguida -
que me abandonaram sempre,
pouco a pouco,
à mim mesmo, à minha solidão no meio dos outros,
porque não saberiam como chegar em mim,
me tocar,
e que é preciso desistir,
e desistem de mim, eles desistiram de mim,
todos,
de uma certa forma,
depois de tentarem tanto me manter perto deles,
e me dizerem isso também,
porque eu os desencorajo,
e porque eles querem entender que me deixar em paz, fazendo de conta que não se
preocupam mais comigo, é gostar ainda mais de mim.
Eu entendi que esta ausência de amor da qual me queixo e que foi para mim sempre a
única razão das minhas covardias,
sem que até então eu nunca tivesse percebido,
que esta ausência de amor fez sofrer sempre mais os outros do que eu.
Eu acordava com a idéia estranha e desesperada e indestrutível também que me amavam
vivo como gostariam de me amar morto
sem nunca poder nem saber me dizer nada.

Cena 6

LUIZ – Você não fala nada, a gente nunca te ouve.

CATARINA – Desculpa, não, não sei.


O que você quer que eu diga?

LUIZ – Eu lamento o incidente de agora a pouco,


eu queria que você soubesse disso.
Eu não sei por que ele disse isso, eu não entendi o Antonio.
Ele quer sempre que eu não demonstre interesse, ele deve ter prevenido você contra mim.

CATARINA – Eu não estava mais pensando nisso, nem pensava mais, não teve
importância.
Por que você diz isso:
«ele deve ter prevenido você contra mim»,
que ele tenha «me prevenido contra você»,
é uma idéia esquisita.
Ele fala de você como deve e ele não fala, de qualquer maneira, tão freqüentemente,
quase nunca,
eu não acho que ele fale de você e nunca nesses termos, nunca ouvi nada assim, você está
enganado.

Ele acha, eu acho, ele acha que você não quer saber nada dele, é isso, que você não quer
saber nada da vida dele, que isso não significa nada para você,
eu, as crianças, tudo isso, a profissão dele, o que ele faz...
Você sabe qual é a profissão dele, o que ele faz na vida?
Não é bem uma profissão,
você, você tem uma profissão, uma profissão é aquilo que se aprende, é para o que nos
preparamos, estou enganada?
Você conhece a situação dele?
Não é má, poderia ser pior, mas não é nada má,
A situação dele, você não conhece,
você conhece o trabalho dele? O que ele faz?
Isso não é uma crítica, isso me deixaria chateada se você entendesse assim,
se você entende assim não é legal e você não tem razão, não é uma crítica:
eu mesma, posso lhe dizer, eu mesma não saberia exatamente, com exatidão, eu não
saberia lhe dizer a função dele.
Ele trabalha numa pequena empresa de ferramentas,
para aqueles lados,
é assim que se costuma dizer, uma pequena empresa de ferramentas, eu sei onde fica,
às vezes eu vou esperá-lo,
agora quase nunca, mas antes, eu ia esperá-lo,
ele fabrica ferramentas, imagino, é lógico, eu suponho,
o que se pode ter para contar sobre isso?
Ele deve fabricar ferramentas, mas eu não saberia também explicar todas as pequenas
operações que ele acumula todos os dias e eu não poderia criticar você por também não
saber isso também, não.
Mas ele, ele pode deduzir,
ele deduz certamente,
que a vida dele não interessa a você
- ou se preferir eu não quero que você pense que estou inquirindo você –, ele acha
provavelmente,
eu acho que ele é assim
e você deve lembrar disso, ele não devia ser muito diferente mais novo,
ele acha provavelmente que o que ele faz não é interessante ou susceptível, a palavra
exata, ou susceptível de interessar a você.
E não é maldade minha,
(maldade, talvez¿)
não é maldade, sim,
achar que ele não está totalmente errado,
você não acha? ou eu me engano? Eu estou enganada?

LUIZ – De fato, não é maldade sua,


é mais certo.
Eu desejo, quanto a mim, o que eu desejaria,
eu ficaria feliz de poder...

CATARINA – Não me diga nada, eu o interrompo,


é preferível que você não me diga nada e que você diga a ele o que você tem para lhe
dizer.
Eu acho que é melhor e você não vê nisso nenhum inconveniente.
Eu, eu estou fora e não vou contar nada,
eu sou assim
não é meu papel
ou não assim, ao menos, que eu imagino.

E então você, por sua vez,


como é que você disse?
«prevenido contra mim».

LUIZ – Não tenho nada a dizer ou a não dizer, não entendo.

CATARINA – Muito bem, mais uma razão, perfeito então.

LUIZ – Volte! Catarina!

Cena 7

SUZANA – Essa garota, não dá pra acreditar, na primeira vez que a gente a viu,
a gente imaginou ela frágil e desarmada, tuberculosa ou órfã há cinco gerações,
mas a gente se enganou,
não se deve confiar nisso:
ela sabe escolher e decidir,
ela é simples, clara, precisa.
Ela se expressa bem.

LUIZ - Você sempre a mesma, Suzana?

SUZANA – Eu?

LUIZ – Sim. «A mesma.» Dando «sua opinião»?

SUZANA – Não, na verdade,


cada vez menos.
Hoje, um pouco, mas quase nunca.
Última homenagem em sua honra, só para você ficar com remorsos.
Sim?
Desculpa?

LUIZ- O quê?

SUZANA – Normalmente, de costume, o Antonio, nessa hora,


o Antonio me diz:
«Cala a boca, Suzana.»

LUIZ – Desculpa, eu não sabia.


«Cala a boca, Suzana.»

Cena 8

A MÃE – Isso não me diz respeito,


eu me meto sempre no que não me diz respeito, eu não mudo, sempre fui assim.
Eles querem falar com você, tudo isso,
eu os ouvi,
mas também eu os conheço,
eu sei,
como é que eu não saberia?
Se não tivesse ouvido, eu poderia simplesmente ainda adivinhar,
eu adivinharia sozinha, daria no mesmo.
Eles querem falar com você,
eles souberam que você voltaria e eles acharam que poderiam falar com você,
um monte de coisas para te dizer há muito tempo e finalmente a possibilidade.

Eles vão querer te explicar, mas vão te explicar mal,


porque eles não te conhecem, ou mal.
A Suzana não sabe quem você é,
isso não é conhecer, isso, é imaginar,
ela sempre imagina e não sabe nada da realidade,
e ele, Antonio,
Antonio é diferente,
ele te conhece mas do jeito dele como conhece tudo e todo mundo,
como ele conhece cada coisa ou como ele quer conhecer,
se fazendo uma idéia fixa e não havendo possibilidade de mudança.

Eles vão querer te explicar


e é provável que o façam,
e sem jeito,
o que eu quero dizer,
porque eles vão ter medo do pouco tempo que você dá pra eles,
do pouco tempo que vocês vão passar juntos
- eu também, não tenho ilusões, eu também desconfio que você não vai ficar muito tempo
por aqui, perto de nós.
Você mal tinha chegado,
eu te vi,
você mal tinha chegado e você já pensava que tinha cometido um erro e você quis ir
embora na mesma hora ,
não me diga nada, não me diga o contrário – eles vão ter medo
(é o medo, aí também)
eles vão ter medo do pouco tempo e eles serão desajeitados,
e vai ser tudo mal dito ou dito muito depressa,
de uma forma muito abrupta, o que dá no mesmo,
e brutalmente ainda,
porque eles são brutos, sempre foram e não deixarão de ser,
e duros também,
é o jeito deles,
e você não vai entender, eu sei como isso vai acontecer e como sempre aconteceu.
Você vai responder umas duas ou três palavras
e você ficará calmo como você aprendeu a ficar por si só
- não fui eu nem teu pai,
teu pai menos ainda,
não fomos nós que te ensinamos essa forma tão hábil e tão detestável de ser calmo em
todas as circunstâncias, eu não me lembro
ou não sou responsável -
você responderá apenas umas duas ou três palavras,
ou você sorrirá, é a mesma coisa,
você sorrirá para eles
e eles se lembrarão, mais tarde
a seguir, na seqüência,
à noite adormecendo,
eles se lembrarão apenas desse sorriso,
é a única resposta que vão querer guardar de você,
e é esse sorriso que eles vão discutir e discutir de novo,
nada vai mudar, bem ao contrário,
e esse sorriso terá agravado as coisas entre vocês,
vai ser como o rastro do desprezo, a pior das feridas.

Ela, Suzana, vai ficar triste por causa dessas duas ou três palavras,
por causa destas «apenas duas ou três palavras» lançadas as feras,
ou por causa desse sorriso de que falei,
e por causa desse sorriso,
ou dessas «apenas duas ou três palavras»,
Antonio vai ser ainda mais duro,
e mais brutal,
quando ele tiver que falar de você,
ou silencioso ou se recusando a abrir a boca,
o que será ainda pior .

A Suzana vai querer ir embora,


ela talvez já falou sobre isso,
ir para longe e viver uma outra vida
(é o que ela pensa)
num outro mundo, essas histórias.
Nada muito diferente, se nos lembrarmos
(eu me lembro)
nada muito diferente de você, mais novo do que ela
e nada muito menos complicado.
O mesmo abandono.
Ele, Antonio, ele queria mais liberdade, não sei,
é a palavra que ele usa quando está furioso
- a gente não acredita vendo ele assim, mas freqüentemente ele é um homem em fúria -
ele gostaria de poder viver de outra maneira com a sua mulher e seus filhos
e não dever mais nada
outra idéia que ele gosta e que ele repete,
não dever mais nada
A quem, ao quê? Não sei, é uma frase que ele diz às vezes, de vez em quando,
«não dever mais nada».
Bem. Eu o escuto. Tudo isso e nada mais.

E é pra você que eles querem pedir isso,


é para você que eles parecem querer pedir a autorização,
é uma idéia estranha
e você se diz que você não entende,
que você não deve nada para eles
e que eles não te devem nada
e que eles podem fazer o que eles quiserem das vidas deles,
isso, de certa forma,
e não é para te ofender,
para você isso tanto faz e não te diz respeito.
Talvez você não esteja errado,
muito tempo se passou (toda a história vem daí),
você nunca quis ser responsável e a gente jamais poderia te obrigar a ser.
(Você se diz talvez também, não sei,
eu falo,
você se diz talvez também que eu estou enganada,
que eu estou inventando,
e que eles não têm nada para te dizer
e que o dia vai acabar assim como começou,
sem necessidade, sem importância. Bem. Talvez.)

O que eles querem, o que eles queriam, talvez, é que você os encorajasse
- não foi sempre isso que faltou para eles, que a gente os encoraje?-
que você os encoraje, que você os autorize ou que você os proíba de fazer isto ou aquilo,
que você diga para eles,
que você diga para Suzana
- mesmo que não seja verdade, uma mentira, que mal há nisso? Apenas uma promessa
que fazemos sabendo de antemão que não vamos cumprir -
que você diga para Suzana para ir, às vezes,
duas ou três vezes por ano,
te visitar,
que ela poderá,
que ela poderia te visitar, se lhe desse vontade,
se ela tivesse vontade,
que ela poderia ir lá onde você vive agora
(nós não sabemos aonde você vive).
Que ela pode sair e ir embora e também voltar e que isso te interessa,
não que você parece se interessar, mas que isso te interessa, que isso te preocupa.

Que você dê, a ele,


ao Antonio, a sensação de que ele não é mais responsável por nós,
por ela ou por mim
- ele nunca foi,
eu sei disso melhor do que ninguém,
mas ele sempre achou que fosse
ele sempre quis acreditar
e sempre foi assim, estes anos todos,
ele se sente responsável por mim e responsável pela Suzana
e nada parece tanto um dever na sua vida
e uma dor também e uma espécie de crime por roubar um papel que não é o dele -
que você lhe dê o sentimento,
a ilusão
que você lhe dê a ilusão que ele poderá por sua vez, na sua hora, me abandonar
cometer uma covardia como essa
(aos olhos dele, tenho certeza que é isso),
que ele teria esse direito, que ele é capaz.
Ele não o fará,
Ele vai se construir outros obstáculos
ou ele vai se proibir por razões ainda mais secretas
mas ele gostaria tanto de poder imaginar, de ousar imaginar.
É um rapaz que imagina tão pouco, isso me faz sofrer.

Eles gostariam os dois que você estivesse mais por aqui,


mais presente,
mais vezes presente,
que eles possam te encontrar, te telefonar,
discutir com você e se reconciliar e perder o respeito,
esse famoso respeito obrigatório para com os irmãos mais velhos,
ausentes ou estranhos.
Você seria um pouco responsável
e eles, se tornariam por sua vez,
eles teriam o direito e poderiam mesmo abusar disso,
eles se tornariam por sua vez, enfim, trapaceiros de verdade.

Pequeno sorriso?
Apenas «as duas ou três palavras »?
LUIZ – Não.
Apenas o pequeno sorriso. Eu estava ouvindo.

A MÃE – É o que eu digo.


Você tem que idade,
que idade você tem, hoje?

LUIZ – Eu?
Você está me perguntando?
Eu tenho trinta e quatro anos.

A MÃE – Trinta e quatro anos.


Para mim também, faz trinta e quatro anos.
Eu nem me dou conta:
é muito tempo?

Cena 9

A MÃE – À tarde, sempre foi assim:


o almoço dura mais tempo,
a gente não tem nada para fazer, a gente estica as pernas.

CATARINA – Você gostaria de um pouco mais de café?

SUZANA – Você vai ser formal com ele a vida toda, eles vão continuar assim, formais,
sempre?

ANTONIO – Suzana, eles fazem como eles quiserem!

SUZANA – Mas que merda, você também!


Eu não falei com você, não estou falando com você,
não é com você que eu estou falando!
Ele não vai largar do meu pé, sempre assim, você vai ficar no meu pé o tempo todo,
eu não te perguntei nada,
o que foi que eu disse?

ANTONIO – É assim que você fala comigo?


Você fala comigo assim,
nunca te ouvi falar assim.
Ela quer aparecer,
é porque o Luiz está aqui, é porque você está aqui,
você está aqui e ela quer aparecer.

SUZANA – O que é que isto tem a ver com o Luiz,


que conversa é essa?
Não é porque o Luiz está aqui,
o que é que você está dizendo?
Merda, merda e merda!
Compreendeu? Entendeu? Sacou?
E tem mais! Vai à merda!

A MÃE – Suzana!
Não deixa ela ir embora,
mas que história é essa?
Você devia ir atrás dela!

ANTONIO – Ela vai voltar.

LUIZ – Sim, eu gostaria, de um pouco de café, eu gostaria.

ANTONIO - «Sim, eu gostaria, de um pouco de café, eu gostaria.»

CATARINA – Antonio!

ANTONIO – O que?

LUIZ – Você estava zombando de mim, tentando.

ANTONIO – Todos iguais, vocês são todos iguais! Suzana!

CATARINA – Antonio! Aonde você vai?

A MÃE – Eles vão voltar.


Eles voltam sempre.

Eu estou contente, eu não tinha dito, eu estou contente que nós estejamos todos aqui todos
reunidos.
Aonde você vai?
Luiz!

Catarina fica sozinha.

Cena 10
LUIZ – No inicio, o que a gente acredita
- eu acreditei nisso -
o que acreditamos sempre, eu imagino,
é tranqüilizador, é para ter menos medo,
a gente se repete a nós mesmos esta solução como para às crianças,
que fazemos dormir,
o que acreditamos por instantes,
o que a gente espera,
é que o resto do mundo desaparecerá com a gente,
que o resto do mundo poderia desaparecer com a gente,
se apagar, se devorar e não mais sobreviver à mim.
Partirem todos comigo e me acompanhar e nunca mais voltar.
Que eu os leve e que eu não esteja sozinho.

Em seguida, porém mais tarde


- a ironia voltou, ela me tranqüiliza e me conduz de novo -
depois a gente sonha, eu sonhava,
a gente sonha em ver os outros, o resto das pessoas, depois da nossa morte.
Nós os julgaremos.
A gente os imagina no enterro, a gente olha para eles,
eles nos pertencem agora, a gente os observa e não gosta mais muito deles,
gostar demais deles nos tornaria tristes e amargos e essa não deve ser a regra.
A gente os percebe de antemão,
a gente se diverte, eu me divertia,
a gente os organiza e faz e refaz a ordem da vida deles.
A gente se vê também deitado, olhando as nuvens, não sei, como nos livros para crianças,
é uma imagem que eu tenho.
Que vão fazer de mim quando eu não estiver mais aqui?
A gente gostaria de mandar, de reger, de aproveitar mediocremente da perturbação deles e
conduzi-los um pouco mais.
A gente gostaria de ouvi-los, eu não os ouço,
obrigá-los a dizer besteiras definitivas
e saber enfim o que eles pensam.
A gente chora.
A gente está bem.
Eu estou bem.

Às vezes, é como um sobressalto,


às vezes, eu me agarro mais, me torno odioso,
odioso e enraivecido,
eu refaço as contas, eu me lembro.
Eu mordo, às vezes acontece de eu morder.
Aquilo que eu tinha perdoado eu retomo,
um náufrago que mataria seus salvadores, eu enfio a cabeça deles no rio,
eu destruo vocês sem remorso com ferocidade.
Eu xingo.
Eu estou na minha cama, é noite, e porque eu tenho medo, não saberei adormecer,
Eu vomito o ódio.
Ele me tranqüiliza e me extenua
e esta exaustão me deixará desaparecer enfim.
Amanhã, eu estou calmo de novo, lento e pálido.
Eu mato vocês, uns depois dos outros, vocês não sabem e eu sou o único sobrevivente,
eu morrerei por último.
Eu sou um assassino e os assassinos não morrem,
será preciso me abater.
Tenho maus pensamentos.
Não gosto de ninguém,
nunca gostei de vocês, era mentira,
não gosto de ninguém e sou solitário,
e solitário não corro nenhum risco,
eu decido tudo,
a Morte também, ela é minha decisão
e morrer destrói vocês e é destruir vocês que eu quero.
Morro por despeito, morro por maldade e por mesquinharia,
eu me sacrifico.
Vocês sofrerão por mais tempo e muito mais do que eu,
e eu os verei, eu os perceberei, vou olhar para vocês
e vou rir de vocês e vou odiar a dor de vocês.

Por que é que a Morte deveria me tornar bom?


Essa é uma idéia de um sujeito vivo e que se inquieta com as suas possíveis perdições.
Mau e medíocre, eu tenho apenas minúsculos medos e ínfimas preocupações,
nada pior que isso:
o que vocês vão fazer de mim e de todas estas coisas que me pertenciam?
Isto não é bonito mas não ser bonito me deixaria menos lamentável.

Mais tarde ainda,


foi há alguns meses,
eu sumi.
Eu visito o mundo, eu quero me tornar viajante, errar.
Todos os moribundos têm estas pretensões, estilhaçar a cabeça contra os vidros do quarto,
abrir os braços num grande bater de asas imbecil,
errar, já perdido e
acreditar desaparecer,
correr diante da Morte,
pretender semeá-la,
que ela nunca possa me atingir ou que ela nunca saiba onde me encontrar.
Lá onde eu estava e sempre estive não estarei mais, estarei longe, escondido no grande
espaço, num buraco,
mentindo para mim e rindo de mim.
Eu visito.
Eu gosto de ser diletante, um rapaz falsamente frágil que definha e faz poses.
Eu sou um estrangeiro. Eu me protejo. Eu me adapto às circunstâncias.
Devia ter me visto, com o meu segredo, nas salas de espera dos aeroportos, eu era
convincente!
A Morte próxima e eu,
Nos despedindo,
nós passeamos,
nós caminhamos à noite pelas ruas desertas ligeiramente enevoadas, e nós gostamos
muito um do outro.
Nós somos elegantes e desenvoltos,
nós somos encantadoramente misteriosos
Nós não deixamos nada transparecer
e os recepcionistas à noite mostram respeito por nós, nós poderíamos seduzi-los.
Eu não fazia nada,
eu fazia de conta,
eu experimentava a nostalgia.
Eu descubro países, eu os gosto literários, eu leio livros, eu vejo novamente algumas
recordações,
às vezes faço longos desvios só para poder recomeçar,
e em outros dias,
sem que eu saiba ou compreenda,
me acontecia de querer evitar tudo e não reconhecer mais nada.
Não acredito em nada.

Mas quando numa noite,


no cais da estação
(é uma imagem bastante banal),
num quarto de hotel,
aquele «Hotel d`Anglaterre, Neuchâtel, Suíça» ou um outro, «Hotel du Roi de Sicile», tanto
faz,
ou na sala de trás de um restaurante cheio de felizes foliões onde eu jantava sozinho na
indiferença e no barulho,
vem alguém bater levemente no meu ombro e me diz com um delicado sorriso triste de
garoto perdido:
«Tudo isto para quê?»
este «tudo isto para quê?»
rebatedor da Morte
- ela tinha finalmente me encontrado sem ter me procurado -,
este «tudo isto para quê?» me leva para casa, me manda para casa,
me encorajando a voltar das minhas confusas e insignificantes evasões
e exigindo que de hoje em diante eu pare de brincar.
Já é tempo.
Atravesso de novo a paisagem em sentido contrário.
Cada lugar, mesmo o mais feio ao o mais idiota,
eu vou anotar que eu o vejo pela última vez,
eu quero guardá-lo.
Eu volto e espero.
Eu vou ficar tranqüilo agora, eu prometo,
não vou mais causar problemas,
digno e silencioso, estas palavras que a gente usa.
Eu perco. Eu perdi.
Eu arrumo, eu ponho ordem, eu venho aqui fazer uma visita, deixo as coisas nos seus
lugares, eu tento terminar, tirar conclusões, estar calmo.
eu não gesticulo mais e pronuncio frases simbólicas cheias de sub-entendidos gratificantes.
Eu me delicio.
Nada é tão agradável, nesse momento, quanto a minha própria angústia.
Me acontece também às vezes,
«nos últimos tempos»,
de sorrir para mim mesmo como que para uma fotografia futura.
Seus dedos percorrem-na evitando sujá-la ou deixar culpáveis marcas.
«Ele era exatamente assim»
e é tão falso,
se você refletisse um instante você poderia admitir,
é tão falso,
eu estava apenas fingindo que.

Cena 11

LUIZ – Eu não cheguei hoje de manhã, eu viajei durante a noite,


eu saí ontem à tarde e eu queria chegar mais cedo e mudei de idéia no meio do caminho,
eu parei,
é o que eu quis dizer,
e eu estava na estação, de madrugada,
desde as três ou quatro horas.
Estava esperando uma hora decente para vir pra cá.

ANTONIO – Por que é que você está me contando isso?


Por que é que você me diz isso?
O que é que eu devo responder,
eu devo responder alguma coisa?

LUIZ – Não sei, não,


eu te conto isso, eu queria que você soubesse,
não tem a menor importância,
eu te conto porque é a verdade e porque eu queria te contar.

ANTONIO – Não começa.

LUIZ – O quê?
ANTONIO – Você sabe. Não começa,
você vai querer me contar histórias,
eu vou me deixar levar,
eu te conheço muito bem, você vai me contar histórias.
Você estava na estação, esperando,
e pouco a pouco, você vai me embaralhar.
Bem.
Você viajou essa noite, foi tudo bem? Como é que foi?

LUIZ – Não, eu estava te contando isso, não tem a menor importância.


Sim, foi tudo bem.
Não sei, uma viagem um tanto quanto banal, vocês parecem sempre querer acreditar que
eu moro a milhares, a centenas, a milhões de quilômetros daqui.
Eu viajei, só isso.
Eu não digo nada se você não quer dizer nada.

ANTONIO – Não é esse o problema,


eu não disse nada, eu te escuto.
Neste exato momento, imediatamente, eu não te impedia de nada.
Sim?
A estação?

LUIZ – Não, nada, nada que valha a pena,


nada de importante,
eu estava contando isso, eu pensei que talvez você ficasse feliz,
bem,
feliz não, contente,
eu pensei que talvez você poderia ficar contente por eu te contar,
ou por saber, feliz por saber.
Eu estava no bar da estação,
não sei a que horas eu cheguei, por volta das quatro, talvez,
eu estava no bar e esperava, eu estava lá, não ia vir diretamente para cá,
ausente à tanto tempo e aparecer assim de improviso, não, elas poderiam se assustar,
ou então elas nem me abririam a porta
- imagino muito bem Suzana, ali, exatamente como eu a vejo, eu estou descobrindo ela,
imagino muito bem Suzana me recebendo com uma espingarda -
não,
eu esperava e eu me dizia,
eu estava pensando nisso e foi por isso que eu falei,
são idéias que nos passam pela cabeça e a gente se diz que mais tarde a gente deverá
repeti-las (recomendações que a gente faz a nós mesmos),
eu me disse,
eu me fiz a recomendação então de te dizer mais tarde quando eu te visse,
e também, claro, de dizer apenas pra você, sobretudo, é este o objetivo, esconder isto delas
porque elas poderiam ficar bravas,
eu me disse que eu te diria que tinha chegado muito mais cedo e que eu tinha andado por
aí.

ANTONIO – É isso,
exatamente isso, o que eu estava dizendo,
as histórias,
e depois a gente se embaralha,
e eu,
eu tenho que escutar e eu nunca vou saber o que é verdade
e o que é falso,
a parte de mentira.
Você é assim,
se tem uma coisa
(não, não é a única!),
se tem uma coisa que eu não esqueci quando penso em você ,
é disto tudo, estas histórias para nada,
histórias, eu não entendo nada.

Você não se dizia nada.


Você bebia seu café, você devia beber um café
e você tinha dor de barriga porque você não fuma e lugares como aquele, de manhã cedo,
sei disso melhor do que você,
lugares como aquele fedem a cigarro e dão vontade de vomitar,
com aquela fumaça que vem de cima e que te dá dor de cabeça e dor nos olhos.
Você lia o jornal,
você deve ter se tornado esse tipo de homem que lê os jornais, os jornais que eu nunca leio
- às vezes, sentados na minha frente, eu vejo estes homens que lêem esses jornais e eu
penso em você e eu me digo, estes devem ser os jornais que o meu irmão lê, ele deve ser
parecido com estes homens, e eu tento ler ao contrário e daí eu logo desisto e eu não estou
nem aí, eu faço o que eu quero! -
você tentava ler o jornal
porque, no domingo de manhã, no bar da estação,
você tem todos os rapazes que foram se divertir
e fazem barulho e eles continuam se divertindo
e você, no seu canto,
não consegue sequer ler, se concentrar na sua leitura
e a fumaça dos cigarros te dá apenas vontade de ir embora,
é nisso que você pensa, só nisso.
Você lamentava,
você lamenta ter feito essa viagem,
não, você não lamenta, você nem sabe porque veio, você não sabe a razão,
eu também não, eu não sei porque você veio
e ninguém entende,
e você quer lamentar que nós não sabemos,
porque se nós soubéssemos, se eu soubesse,
as coisas seriam mais fáceis para você, menos longas
e você já teria se livrado dessa chatice.

Você veio porque você decidiu,


isso te deu na telha um dia,
a idéia, apenas uma idéia.
Como é que você disse?
Uma «recomendação» que você se fez a si mesmo, a você mesmo?
merda,
ou então, depois de vários anos,
será que eu sei, como é que eu poderia saber?
talvez desde o primeiro dia,
logo depois de ir embora, no trem, ou logo no dia seguinte, imediatamente depois
- sempre foi assim lamentando tudo e o contrário também -
agora depois de vários anos, você se disse,
você não parava de se repetir,
você se dizia que você deveria um dia desses nos visitar,
nos ver, nos rever,
e daí, de repente, você se decidiu, não sei.
Você acha que isso é importante para mim?
Você se engana, não é importante para mim, não pode mais ser.

Você não se dizia nada, eu sei, eu te conheço.


Você não se dizia nada,
você não pensava que você me diria alguma coisa,
que você diria o que quer que fosse,
são besteiras, você inventa.
Foi agora, há pouco,
você me viu,
e você inventou tudo isso para falar comigo.
Você não se dizia nada porque você não me conhece,
você acha que me conhece, mas você não me conhece,
você me conheceria porque eu sou seu irmão?
Isso também são besteiras,
você não me conhece mais, faz muito tempo que você não me conhece mais,
você não sabe quem eu sou,
você nunca soube,
não é culpa sua e também não é minha,
eu também, eu não te conheço
(mas eu não tenho essa pretensão),
a gente não se conhece
e a gente não imagina que dirá isto ou aquilo a alguém que a gente não conhece.
O que queremos dizer a alguém que imaginamos,
são coisas que imaginamos também,
histórias e nada mais.

O que você quer, o que você queria,


você me viu e não sabe como chegar em mim,
«como lidar comigo»
- vocês sempre dizem isso, «não sabemos como lidar com ele»,
e ainda, eu os ouço «é preciso saber lidar com ele»,
é como a gente fala de um homem mau e bruto -
você queria se chegar e veio com essa,
você começa a conversa, você faz isso muito bem,
é um método, é apenas uma técnica para confundir e aniquilar as bestas,
mas eu, eu não quero,
não tenho vontade.
Por que você está aqui, eu não quero saber,
você tem esse direito, só isso e mais nada,
e de não estar aqui, você tem o direito também,
eu também tenho.
Aqui, de certa forma, é a sua casa e você pode estar aqui sempre que quiser e mais, você
também pode ir embora,
você tem sempre o direito,
isso não me diz respeito.
Nem tudo é excepcional na sua vida,
na sua vidinha,
é uma vidinha também, eu não tenho que ter medo disso,
nem tudo é excepcional,
você pode tentar tornar tudo excepcional,
mas nem tudo é.

LUIZ – Aonde você vai?

ANTONIO – Eu não quero estar aqui.


Agora você vai me falar,
você vai querer me falar
e eu vou ter que escutar
e não tenho vontade de escutar.
Eu não quero. Eu tenho medo.
Vocês têm sempre que me contar tudo,
sempre, o tempo todo,
desde sempre vocês falam comigo e eu tenho que escutar vocês.
as pessoas que nunca dizem nada, a gente acha apenas que eles querem ouvir,
mas muitas vezes, você nem sabe,
eu me calava para dar o exemplo.

Catarina!
INTERMÉDIO

Cena 1

LUIZ – É como a noite em pleno dia, não vemos nada, eu ouço apenas os barulhos, eu
escuto, eu estou perdido e não encontro ninguém.

A MÃE – O que foi que você disse?


Eu não ouvi, repete,
aonde você está?
Luiz!

Cena 2

SUZANA – Você e eu.

ANTONIO – O que você quiser.

SUZANA – Eu te ouvia, você estava gritando,


não, eu achei que você estava gritando,
eu achava que te ouvia,
eu te procurava,
vocês estavam brigando, vocês se reencontraram.

ANTONIO – Eu fiquei nervoso, nós ficamos nervosos,


não imaginei que fosse ser assim,
mas «de costume», nos outros dias,
nós não somos assim,
nós não éramos assim, acho que não.

SUZANA – Nem sempre assim.


Nos outros dias, nós vamos cada um para o seu lado,
a gente nem se esbarra.

ANTONIO – Nós nos entendemos.

SUZANA – É o amor.
Cena 3

LUIZ – E depois, no meu sonho ainda,


todos os cômodos da casa ficavam longe uns dos outros,
e eu nunca conseguia chegar neles,
era preciso caminhar durante horas e eu não reconhecia nada.

Voz da mãe:
Luiz!

LUIZ – E para não ter medo, como quando eu caminho durante a noite, eu sou criança,
e eu tenho agora que voltar depressa,
eu me repito isto,
ou então eu canto para ouvir apenas o som da minha voz,
e apenas isso,
eu canto que de agora em diante,
o pior de tudo
«sei muito bem,
o pior de tudo
seria eu estar apaixonado,
o pior de tudo
seria eu querer esperar um pouco,
o pior de tudo....»

Cena 4

SUZANA – O que eu não entendo.

ANTONIO – Eu também não.

SUZANA – Você ri? Eu nunca te vejo rir.

ANTONIO – O que nós não entendemos.

Voz de Catarina:
Antonio!

SUZANA, ​gritando.​ – Sim?


O que eu não entendo nem nunca entendi.
ANTONIO – E é pouco provável que eu não entenda um dia

SUZANA – Que eu entenda um dia.

Voz da mãe:
Luiz!

SUZANA, ​gritando.​ – Sim? Estamos aqui!

ANTONIO – O que você não entende...

SUZANA – Não era assim tão longe, ele podia ter vindo nos visitar mais vezes,
e também não é nada tão trágico,
sem dramas, traições,
é isso que eu não entendo,
ou não posso entender.

ANTONIO - «Assim.»
Não há outra explicação, nada mais.
Foi sempre assim, desejável,
não sei se a gente pode chamar desse jeito,
desejável e longínquo,
distante, nada se presta melhor para esta situação.
Ter ido embora e nunca ter sentido falta ou a simples necessidade.

Cena 5

CATARINA – Onde é que eles estão?

LUIZ – Quem?

CATARINA – Eles, os outros.


Não ouço mais ninguém,
vocês estavam discutindo, você e o Antonio,
eu não estou enganada,
a gente tava ouvindo o Antonio se irritar
e agora é como se todo mundo tivesse ido embora
e como se nós estivéssemos perdidos.

LUIZ – Eu não sei. Eles devem estar por aí.

CATARINA – Onde é que você vai?


Antonio!

Voz de Suzana:
Sim?

Cena 6

SUZANA – E que eu seja infeliz?


Que eu possa ser triste e infeliz?

ANTONIO – Mas você não é e nem nunca foi.


É ele, o Homem infeliz,
esse que não te via mais durante todos esses anos.
Você acha hoje que você foi infeliz
mas vocês são iguais,
você e ele,
e eu também sou como vocês,
você apenas decidiu que você era, que você devia ser e você quis acreditar nisso.
Você queria ser infeliz porque ele estava longe,
mas não é a razão, não é uma boa razão,
você não pode dizer que ele é responsável,
não é mesmo uma razão,
é apenas uma fachada.

Cena 7

A MÃE – Eu estava procurando vocês.

CATARINA – Eu não saí daqui, eu não tinha ouvido a senhora.

A MÃE – Era o Luiz, eu escutava, era o Luis?

CATARINA – Ele foi por ali.

A MÃE – Luiz!

Voz de Suzana:
Sim? Estamos aqui!
Cena 8

SUZANA – Por que é que você nunca responde quando a gente te chama?
Ela te chamou, a Catarina te chamou, e às vezes, nós também, nós também te chamamos,
mas você nunca responde
e daí é preciso te procurar, a gente tem que te procurar.

ANTONIO – Vocês me encontram sempre,


eu nunca fico perdido por muito tempo,
não me lembro que vocês tenham algum dia
«no fim das contas»
que vocês tenham algum dia, definitivamente, me perdido.
Logo ali, pertinho, podem me agarrar com a mão.

SUZANA – Você pode tentar me deixar mais triste ainda,


ou má, o que dá no mesmo,
não adianta.
Você também tem os seus truquezinhos,
eu os conheço, você acha que eu não os conheço?

ANTONIO – Era o que eu estava dizendo:


«reencontrado».

SUZANA – O quê?
Não entendi, é ridículo o que você disse, o que é que você disse?
Volta!

ANTONIO – Cala a boca, Suzana!

Ela ri, ali, completamente sozinha.

Cena 9

A MÃE – Luiz.
Você não estava me ouvindo? Eu estava te chamando.

LUIZ – Eu estava aqui. O que foi?

A MÃE – Não sei.


Não foi nada, achei que você tivesse ido embora.
SEGUNDA PARTE

Cena 1

LUIZ – E mais tarde, lá pelo fim do dia,


é exatamente assim
quando penso nisso,
que eu tinha imaginado as coisas,
lá pelo fim do dia,
sem ter dito nada do que estava mim
- é apenas uma idéia, mas não é possível -
sem nunca ter ousado provocar todo esse sofrimento,
eu tomei outra vez meu caminho,
eu pedi que me acompanhassem à estação,
que me deixem partir.

Eu prometo que não vai mais se passar tanto tempo


antes de eu voltar,
eu digo mentiras,
eu prometo estar aqui, de novo, em breve,
frases assim.

Nas semanas, nos meses talvez,


que se seguem,
eu telefono, eu dou notícias,
eu ouço o que me contam, faço algum esforço,
eu tenho o coração cheio de boa vontade,
mas foi mesmo a última vez,
é o que eu me digo sem deixar que percebam.
Ela, ela me acaricia uma única vez o rosto,
lentamente, como para me explicar que ela me perdoa não sei bem quais crimes,
e estes crimes que eu desconheço, eu os lamento,
eu sinto remorsos.

O Antonio está na beirada da porta,


ele chacoalha as chaves do carro,
ele diz várias vezes que ele não quer de maneira alguma me apressar,
que ele não deseja que eu vá embora,
que não está de forma alguma me enxotando,
mas que está na hora de partir,
e mesmo que tudo isso seja verdade,
ele parece querer me empurrar, é a imagem que ele me passa,
é a idéia que eu levo.
Ele não me impede,
e sem lhe dizer, eu ouso acusá-lo.

É disso que eu me vingo.


(Um dia, eu me concedi todos os direitos)

Cena 2

ANTONIO – Eu o acompanho,
eu te acompanho,
o que nós podemos fazer, o que a gente poderia fazer,
assim seria mais prático,
o que a gente pode fazer, é te acompanhar,
te acompanhar indo pra casa,
é na mesma direção, fica no caminho, só temos que fazer um pequeno desvio,
e te acompanhamos, a gente te deixa lá.

SUZANA – Eu também posso muito bem,


vocês ficam aqui, nós jantamos todos juntos,
eu levo ele, sou eu que levo ele,
e eu volto em seguida.
Melhor ainda,
mas nunca me ouvem,
e já está tudo decidido,
melhor ainda, ele janta conosco,
você pode jantar conosco
- não sei por que eu me dou ao trabalho -

e ele pega outro trem,


o que quê tem?
Melhor ainda,
estou vendo que não adianta nada...

Diz alguma coisa.

A MÃE – Eles fazem como bem entenderem.

LUIZ – Melhor ainda, eu durmo aqui, passo a noite aqui, só vou embora amanhã,
melhor ainda, eu almoço amanhã aqui em casa,
melhor ainda, eu não trabalho nunca mais,
deixo tudo pra lá,
eu caso com a minha irmã, vivemos muito felizes.

ANTONIO – Suzana, eu disse que eu o acompanhava,


ela é impossível,
está tudo resolvido e ela quer mudar tudo de novo,
você é impossível,
ele quer ir embora esta noite e você, você repete sempre as mesmas coisas,
ele quer ir embora, ele vai embora,
eu o acompanho, deixamos ele lá, fica no nosso caminho,
não é incômodo nenhum.

LUIZ – Juntamos o útil ao agradável.

ANTONIO – É isso mesmo, pronto, exatamente,


como é que se diz?
«matamos dois coelhos numa cajadada só».

SUZANA – Como você pode ser tão desagradável,


eu não entendo,
você é desagradável, você está vendo como você fala com ele,
você é desagradável, é inacreditável.

ANTONIO – Eu?
Isso é comigo?
Eu sou desagradável?

SUZANA – Você nem se dá conta,


você é desagradável, é inacreditável,
você não se escuta, se você se ouvisse...

ANTONIO – O que é que é isto agora?


Hoje ela está impossível, era o que eu dizia,
eu não sei o que é que ela tem contra mim,
eu não sei o que é que você tem contra mim,
você está diferente.
Se é o Luiz, a presença do Luiz,
não sei, estou tentando entender,
se é o Luiz,
Catarina, eu não sei,
eu não disse nada,
talvez seja eu que não entenda mais nada,
Catarina, me ajuda,
eu não disse nada,
estamos resolvendo a ida do Luiz,
ele quer ir embora,
eu o acompanho, eu disse que a gente o acompanhava, não disse mais nada,
o que é que eu disse a mais?
Eu não disse nada de desagradável,
por que é que eu diria alguma coisa desagradável,
o que é que isto tem de desagradável,
tem alguma coisa de desagradável no que eu disse?
Luiz! O que é que você acha,
eu disse alguma coisa de desagradável?
Não me olhem todos assim!

CATARINA – Ela não te disse nada de mal,


você está sendo um pouco brusco, ninguém pode te dizer nada,
você não se dá conta,
às vezes você é um pouco brusco,
ela queria apenas que você percebesse.

ANTONIO – Eu sou um pouco brusco?


Por que é que você diz isso?
Não.
Eu não sou brusco.
Vocês são terríveis comigo, todos.

LUIZ – Não, ele não foi brusco, eu não entendo o que vocês querem dizer com isso.

ANTONIO – Ah, pra você está tudo bem, «a Bondade em pessoa»!

CATARINA – Antonio.

ANTONIO – Eu não tenho nada, não me toca!


Façam como vocês quiserem, eu não queria nada de mal, não queria fazer nada de mal,
eu sempre tenho que fazer mal,
eu estava apenas dizendo,
isso me parecia bem, o que eu queria dizer apenas
- você também, não me toca! -
eu não disse nada de mal,
eu só estava dizendo que a gente podia acompanhá-lo, e agora,
vocês estão todos me olhando como se eu fosse uma alma do outro mundo,
não havia maldade nenhuma​ ​no que eu disse, não está certo, não é justo, não está certo
que vocês ousem pensar isso,

parem de me tratar sempre como um imbecil!

ele faz como ele quiser, eu não quero mais nada,


eu queria ser útil, mas me enganei,
ele diz que quer ir embora e a culpa vai ser minha,
a culpa vai ser minha,
isso não pode ser sempre assim,
não é uma coisa justa,
não podem ter sempre razão contra mim,
não é possível,

eu dizia apenas,
eu só queria dizer
e não era com má intenção,
eu dizia apenas,
eu só queria dizer...

LUIZ – Não chora.

ANTONIO – Se você me tocar: eu te mato.

A MÃE – Deixe-o, Luiz,


deixa ele agora.

CATARINA – Eu gostaria que você fosse embora.


Eu peço que me desculpe, eu não tenho nada contra você,
mas você deveria ir embora.

LUIZ – Eu também acho.

SUZANA – Antonio, olha para mim, Antonio,


eu não queria te magoar.

ANTONIO – Eu não tenho nada, eu sinto muito,


eu estou cansado, nem sei mais porquê, eu estou sempre cansado,
há muito tempo, é o que eu acho, eu me tornei um homem cansado,
não é o trabalho,
quando a gente esta cansado, a gente acha que é o trabalho, ou as preocupações, o
dinheiro, sei lá,
não,
eu estou cansado, não consigo explicar,
hoje, eu nunca estive tão cansado em toda a minha vida.

Não queria ser agressivo,


como é que você disse?
«brusco», eu não queria ser brusco,
eu não sou um homem brusco, não​ ​é verdade, são vocês que imaginam isso, vocês não
olham para mim, vocês dizem que eu sou brusco, mas não sou e nunca fui,

você disse isso e foi como se de repente com você e com todo mundo
tudo bem agora, eu sinto muito, mas agora eu já estou bem,

foi de repente como se com você,


em relação a você,
e com todo mundo,
com Suzana também
e com as crianças também, eu fosse brusco, como se me acusassem de ser um homem
mau
mas não é uma coisa justa,
não está certo.
Quando nós éramos mais novos, eu e ele,
Luiz, você deve se lembrar,
eu e ele, como ela disse, a gente sempre se batia
e era sempre eu que ganhava, sempre, porque eu sou mais forte, porque eu era maior do
que ele, talvez, não sei,
ou porque esse aí,
e é certamente o mais correto (eu acabei de pensar nisso, nesse exato momento, me veio
agora na cabeça)
porque esse aí se deixava bater, perdia de propósito e era sempre o coitadinho,
não sei,
hoje isso tanto faz pra mim,
mas eu não era brusco, nessa idade eu também não era brusco,
eu só tinha que me defender,
tudo isso, era só para me defender.
Não podem me acusar.

Não diga para ele ir embora, ele faz o quiser, também é a casa dele,
ele tem o direito, não lhe diga nada.

Eu estou bem.

Eu e a Suzana,
não é muito esperto
(me dá vontade de rir, ri comigo, me dá vontade de rir,
não fica assim,
Suzana?
Eu não ia bater nele, não precisa ter medo, acabou)
não é muito esperto, eu e a Suzana, nós devíamos estar sempre juntos,
não devíamos nunca nos separar,
como é que se diz, se dar as mãos?
unir forças,
dois não é muito contra esse aí, você não parece se dar conta disso,
é preciso ser pelo menos dois contra esse aí,
eu digo isto e me dá vontade de rir.
Hoje, durante todo o dia, você esteve do lado dele,
você não o conhece,
ele não é má pessoa, não
não é isso que estou dizendo,
mas de qualquer forma você não tem razão,
porque ele não é totalmente bom, também, você se engana e não é muito esperto,
é, é isso, não é muito esperto
por besteira, você ficar contra mim.

A MÃE – Ninguém está contra você.

ANTONIO – Claro. Com certeza. É possível.

Cena 3

SUZANA – E depois então, um pouco mais tarde.

A MÃE – Nós quase não nos mexemos mais,


estamos as três, como que ausentes,
a gente olha para eles, a gente se cala.

ANTONIO – Você diz que a gente não te ama,


eu te ouço dizer isso, eu sempre te ouvi,
eu não me lembro de nenhum momento da minha vida em que você não tenha dito isso,
num momento ou outro,
tão longe quanto eu possa voltar atrás, eu me lembro que você sempre acabava dizendo
isso,
- é a sua maneira de concluir as coisas se você é atacado -
eu me lembro sempre de você dizendo isso que a gente não te ama,
que nós não te amávamos,
que ninguém, nunca, te amou,
e que é disso que você sofre.
Você é criança, e eu ouço você dizer isso
e eu acho, não sei por que, sem que eu possa explicar,
sem que eu entenda realmente,
eu acho,
e no entanto eu não tenho nenhuma prova

- o que eu quero dizer e você não poderia negar se você quisesse se lembrar comigo,
o que eu quero te dizer,
não faltava nada pra você e você não passou por nada que se possa chamar de
infelicidade.
Mesmo a injustiça de ser feio ou de ser desgraçado e as humilhações que isso provoca,
você não as conheceu e você foi protegido -

eu penso,
eu pensava,
que talvez, sem que no entanto eu entenda
(como uma coisa que me ultrapassava),
que talvez você não estivesse errado,
e que, de fato, os outros, os nossos pais, eu, o resto do mundo,
nós não éramos bons com você
e nós te fazíamos mal.
Você me persuadia,
eu estava convencido de que te faltava amor.
Eu acreditava em você e eu tinha pena de você,
e este medo que eu sentia
- e mais uma vez, é de medo que se trata -
este medo que eu tinha que ninguém nunca amasse você,
este medo, por sua vez, me deixava infeliz também,
como sempre os irmãos mais novos se sentem na obrigação de serem, por imitação e
preocupação,
infelizes por sua vez,
mas também culpado,
culpado também por não ser tão infeliz,
de fazer esforço para ser,
culpado por não acreditar nisso em silêncio.

Às vezes, eu e eles,
e eles os dois, os nossos pais, eles falavam sobre isso e mesmo na minha frente,
como ousamos evocar um segredo pelo qual eu devia ser também responsabilizado.
Nós pensávamos,
e muita gente, hoje eu acho isso, muita gente, homens e mulheres,
esses com quem você deve viver desde que você nos deixou,
muita gente deve com certeza pensar isso também,
nós pensávamos que você não estava errado,
que para repetir tantas vezes, gritando tanto como um insulto, devia ser verdade,
nós pensávamos que, de fato, nós não amávamos você o suficiente,
ou que pelo menos,
que não sabíamos demonstrar
(e não saber demonstrar é a mesma coisa, não te dizer suficientemente que amávamos
você, deve ser a mesma coisa que não te amar o suficiente).
Não dizíamos assim com tanta facilidade,
nunca nada aqui é dito com facilidade,
não,
a gente não o confessava,
mas por certas palavras, certos gestos, os mais discretos, os menos explícitos,
por certas gentilezas
- mais uma expressão que vai te fazer rir, mas agora não me importa nem um pouco se sou
ridículo ou não, você nem imagina -
por certas gentilezas em relação a você,
nós nos dávamos ordens uns aos outros, maneira de dizer,
para que se cuidasse melhor e com maior freqüência de você,
que se desse mais atenção a você,
e nos encorajávamos mutuamente para dar a você a prova
de que te amávamos muito mais do que você poderia imaginar.
Eu cedia.
Tinha que ceder.
Sempre, eu tive que ceder.
Hoje, não é nada, não foi nada, são coisas ínfimas
e eu, também, não podia pretender, por minha vez,
isso sim seria engraçado,
sentir uma infelicidade insuperável,
mas eu guardo isto sobretudo na memória:
eu cedia, eu te abandonava inteiramente, eu devia tentar ser, esta palavra que me repetiam,
eu devia tentar ser «razoável».
Eu devia fazer menos barulho, te dar o lugar, não te contrariar
e desfrutar do espetáculo tranqüilizador da sua sobrevivência ligeiramente prolongada.

Nós nos vigiávamos,


a gente se vigiava, nós nos tornávamos responsáveis por esta tal infelicidade.
Porque toda a sua infelicidade nunca foi mais do que uma tal infelicidade,
você sabe disso tão bem quanto eu,
e elas também sabem,
e hoje todo mundo reconhece esse jogo muito bem
(esses com quem você vive, os homens, as mulheres, você não vai me fazer acreditar do
contrário,
devem ter descoberto a fraude, eu tenho certeza de que eu não me engano),
toda a sua tal infelicidade é apenas uma maneira que você tem, que você sempre teve e
que você terá sempre,
porque você queria, você não saberia mais se desfazer disso, você está colado a este
papel,
que você tem e que você sempre teve de fingir,
de se proteger e de fugir.

Nada em você nunca é atingido,


foram precisos anos, talvez, para que eu percebesse,
mas nada em você nunca é atingido,
você não sente dor,
- se te doesse, você não diria, eu aprendi isso sozinho -
e toda a sua infelicidade é apenas uma maneira de responder,
uma maneira que você tem de responder,
de estar aqui na frente dos outros e de não deixá-los entrar.
É a sua maneira de ser, o seu jeito,
a infelicidade estampada na cara como os outros tem um ar de cretinos satisfeitos,
você escolheu isso e isso te serviu e você o conservou.

E nós, nós nos fizemos mal também,


nós não tínhamos nada a nos reprovar
e só podiam ser os outros que te prejudicavam e nos tornavam responsáveis a todos nós
juntos,
eu, eles,
e pouco a pouco, a culpa era minha, só podia ser minha culpa.
Deviam gostar muito de mim já que não gostavam o suficiente de você e então quiseram
me tirar aquilo que não me davam, e não me deram mais nada,
e eu ficava ali, cheio de bondade sem interesse sem nunca poder me queixar,
sorrindo, brincando,
satisfeito, realizado,
isso, esta é a palavra, realizado,
enquanto que você, inexplicavelmente, transpirava sempre a infelicidade
da qual nada nem ninguém, apesar de todos estes esforços, poderia te distrair e te salvar.

E quando você foi embora, quando você nos deixou, quando você nos abandonou,
eu nem sei mais qual palavra definitiva você nos atirou na cara,
eu devo ter sido mais uma vez o responsável,
ficar em silêncio e admitir a fatalidade, e ter pena de você, me preocupar com você à
distância
e nunca mais ousar dizer uma única palavra contra você, nem sequer ousar pensar uma
única palavra contra você,
ficar aqui, como um pateta, te esperando.

Eu, eu sou a pessoa mais feliz da face da terra,


e nunca me acontece nada,
e agora me acontece uma coisa que eu não posso me queixar,
já que, «de costume»,
nunca me acontece nada.
Não é numa única vez,
numa única vezinha,
que eu posso covardemente me aproveitar.
E as pequenas vezes, que foram tantas, estas pequenas vezes em que eu podia ter me
deitado no chão e nunca mais me mexer,
em que eu teria gostado de ficar no escuro e nunca mais responder,
estas pequenas vezes, eu as acumulei e tenho centenas na minha cabeça,
e nunca era nada, no fim das contas,
o que é que era?
eu não podia falar sobre isso,
eu não saberia explicar
e eu não posso protestar nada,
é como se nunca tivesse me acontecido nada.
E é verdade, nunca me aconteceu nada e eu não posso achar o contrário.

Você está aqui, na minha frente,


eu sabia que você ia ficar assim, me acusando sem palavras,
em pé na minha frente me acusando sem palavras,
e eu tenho pena de você, eu sinto piedade por você, é uma palavra antiga, mas eu sinto
piedade por você,
e medo também, e preocupação,
e apesar de toda essa raiva, eu espero que não te aconteça nada de mal,
e eu já estou me censurando
(você ainda nem foi embora)
pelo mal que eu estou te fazendo hoje.

Você está aqui,


você me oprime, a gente não agüenta mais,
você me oprime,
você nos oprime,
eu te vejo, eu tenho ainda mais medo por você agora do que quando eu era criança,
e eu acho que eu não posso censurar nada à minha própria existência,
que ela é tranqüila e doce
e que eu sou um pobre imbecil que já está se censurando por ter tentado se lamentar,
enquanto que você,
silencioso, ah tão silencioso,
bom, repleto de bondade,
você espera, retorcido na sua infinita dor interior, cujo início do início eu não poderia sequer
imaginar.
Eu não sou nada,
eu não tenho o direito,
e quando você nos deixar outra vez, quando você me deixar, eu serei menos ainda,
estarei aqui me censurando as frases que eu disse,
tentando lembrá-las com exatidão,
ou menos ainda,
apenas com o ressentimento,
o ressentimento contra mim mesmo.

Luiz?

LUIZ – Sim?

ANTONIO – Acabei.
Não vou dizer mais nada.
Só os imbecis ou aqueles tomados pelo medo, poderiam rir.

LUIZ – Eu não os ouvi.

EPÍLOGO

LUIZ – Depois, o que eu faço,


eu vou embora.
Eu não volto nunca mais. Eu morro alguns meses mais tarde,
um ano no máximo.
Uma coisa da qual eu me lembro e que eu vou contar ainda (depois eu vou ter acabado):
É no verão, durante estes anos em que estive ausente, foi no sul da França.
Porque eu me perdi, à noite, numa montanha,
eu decido caminhar ao longo da estrada de ferro.
Ela me evitará os meandros do caminho, o trajeto será mais curto e eu sei que ela passa
perto da casa onde eu moro.
À noite, nenhum trem circula, não corro nenhum risco
e seria assim que eu me encontraria.
Num certo momento, eu estou na entrada de um imenso viaduto,
ele domina o vale que eu vislumbro sob a luz da lua,
e eu caminho sozinho pela noite,
à mesma distância do céu e da terra.
O que eu penso
(e era isso que eu queria dizer)
é que eu devia soltar um grande e belo grito,
um grito longo e feliz que ressoaria pelo vale inteiro,
que era essa felicidade que eu deveria me oferecer,
berrar de uma vez por todas,
mas eu não faço,
não fiz.
Eu retomo o caminho com apenas o barulho dos meus passos sobre o cascalho.

São esquecimentos como este que eu vou lamentar.

Julho 1990
Berlim.

O texto ​Apenas o fim do mundo ganhou sua primeira montagem no Brasil em 2006,
realizada pela Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, com direção de Marcio Abreu e
no elenco: Ranieri Gonzalez (Luiz), Simone Spoladore (Suzana), Christiane de Macedo (A
Mãe), Giovana Soar (Catarina) e Rodrigo Ferrarini (Antonio).

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