Jornada de Um Imbecil Até o Entendimento
Jornada de Um Imbecil Até o Entendimento
Jornada de Um Imbecil Até o Entendimento
personagens
MANDRIO
TECO
MANDUCA
POP
PILICO
TOTOCA
CHAPU
SOBRE
PARALELEPPEDO PARA ALGUM CHUTAR (1965). A verso
definitiva, JORNADA DE UM IMBECIL AT O ENTENDIMENTO, foi
escrita em 1969.)
PRIMEIRO ATO
(ENTRAM MANDRIO E TECO. O PRIMEIRO MASCA SEU CHARUTO
NERVOSAMENTE E O SEGUNDO TEM UMA EXPRESSO DE BEATO.)
MANDRIO Voc tem que dar um jeito. Nisso que no pode ficar.
TECO Eu fao o que posso.
MANDRIO O que muito pouco.
TECO Mas que tem sido suficiente.
MANDRIO Foi suficiente. Agora preciso mais. Muito mais. Ontem, o que
eles trouxeram? Nada!
TECO A culpa do Pilico, ele que nos faz concorrncia. Fica a
oferecendo vantagens aos nossos homens justamente durante o servio.
Essas vantagens, alm de impossveis de serem cumpridas, fazem com que
nossos homens ambicionem melhores condies de vida. Isso nos leva
fatalmente a uma crise econmica. Esse procedimento da parte do Pilico
condenvel. O aliciamento que ele vem fazendo antitico. Esse simples
fato j merece a ateno da nossa parte. Porm o pior mesmo que, com
seu falatrio, ele distrai o pessoal, que no consegue mais concentrar-se no
servio. E, em consequncia, a produo diminuiu e as rendas caram
vertiginosamente. E com elas, naturalmente, as taxas para o deus Orongon.
MANDRIO Voc tem o dom de me explicar o bvio.
TECO Voc acha?
MANDRIO Acho. Tudo o que voc disse eu j sabia. O que eu quero
saber o que voc faz para impedir a evoluo desse estado de coisas.
TECO (CNICO) Rezo!
MANDRIO Reza?
TECO Rezo.
MANDRIO Reza?!
TECO Rezo.
MANDRIO Idiota! Voc pago para criar mitos e supersties, no para
rezar.
TECO Rezar faz parte dos mitos.
MANDRIO Mas no rezando que voc vai impedir que o Pilico me faa
concorrncia, nem vai impedir que a nossa gente se rebele.
TECO Creio nos meus mtodos. A alta dos preos dos ovos episdica.
MANDRIO Pois eu lhe digo que os seus mtodos esto superados.
TECO A prtica apia a minha teoria, pois h uma relativa diminuio da
parte varivel do Capital, simultaneamente com o progresso da acumulao
e da concentrao que acompanha isto.
MANDRIO Ento o que significa esse povo descontente?
TECO Uma pequena minoria.
TOTOCA Eu...
POP Deixa o Manduca escutar. Ele tambm filho de Orongon.
TOTOCA Claro. E depois vivemos numa democracia.
MANDUCA E o Pilico nada pode fazer para impedir que eu escute e fale.
Nada.
PILICO Afinal, somos aliados, Manduca. Sabe aquele auxlio que voc me
pediu? Pois estou disposto a conceder. Depois falaremos dos detalhes.
Agora deixa eu fazer a minha proposta ao Pop, to simptico...
POP (RI FELIZ) Obrigado.
PILICO E Totoca, to bonita.
TOTOCA (COM DENGO) Obrigada.
MANDUCA Creio que a hora no de propostas comerciais. A hora de
criar condies para que cada um tenha o seu prprio chapu.
PILICO Mas isso utpico.
MANDUCA No , no. Voc no conseguiu o seu?
PILICO Bem, mas no meu caso...
MANDUCA Voc melhor do que os outros?
POP O Teco disse que perante Orongon todos os homens so iguais.
TOTOCA Seria timo que cada um tivesse o seu chapu.
PILICO Teoricamente isso lindo. Mas a prtica nos aconselha a
deixarmos isso para outra etapa.
MANDUCA Depois que eu explicar o meu plano, voc ver que j existem
as condies objetivas.
PILICO Mais vale um pssaro na mo do que dois voando.
MANDRIO (FORA DE CENA) Vamos intervir.
TECO (DEM) Com muito tato.
MANDRIO (ENTRANDO) Ol, meus ilustres trabalhadores!
TECO Cansados, hoje?
MANDRIO Vamos fria. Pop, quanto rendeu?
POP S isso.
MANDRIO S isso?
TECO S isso?
POP S.
TECO Absurdo.
MANDRIO Por que s isso?
POP Porque o Pilico e o Manduca ficaram conversando comigo e no me
deixaram trabalhar.
MANDRIO Voc ouviu, Teco?
TECO Pop, voc sabe que quem no trabalha ser castigado por
Orongon?
POP Sei.
MANDRIO E da?
TECO Por que no trabalhou?
POP Porque eles conversaram comigo.
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MANDRIO Manduca, sabe que isso pode lhe fazer perder o emprego?
PILICO (COM UMA TABULETA) Precisa-se de empregados! Precisa-se de
empregados!
TECO Que sujeira!
MANDRIO Falta de tica!
PILICO Precisa-se de empregados!
MANDUCA Ento?
MANDRIO Ento o qu?
MANDUCA Vou ou no ser despedido?
MANDRIO Dessa vez passa. Porm voc precisa produzir mais.
TECO Muito mais.
MANDUCA Produzo de acordo com as circunstncias.
TECO Vamos atender a Totoca.
MANDRIO Totoca, venha c.
TECO Espero que tenha sido um dia rendoso, com a graa de Orongon.
TOTOCA S rendeu isso. (ENTREGA UM CRUZEIRO PREGADO NUMA
TBUA.)
MANDRIO Mas est timo! Isso um cruzeiro forte!
TECO Para o primeiro dia de trabalho no est mal.
MANDRIO Claro que para o futuro h de melhorar. Tenho certeza. Confio
na capacidade da Totoca.
TOTOCA Obrigada.
TECO Como , Manduca, vamos penitncia?
MANDUCA Eu vou jantar.
MANDRIO Quem no trabalha no come.
MANDUCA E quem no come no trabalha.
PILICO Precisa-se de empregados!
MANDUCA E eu trabalhei.
MANDRIO Porm rendeu pouco.
TECO Confesse-se arrependido e faa jejum.
MANDUCA Quero saber quando se come aqui.
MANDRIO Depois do trabalho.
PILICO Precisa-se de empregados!
MANDUCA Quando se come?
MANDRIO Agora. E espero que todos vocs saibam compreender a nossa
generosidade e produzam mais amanh.
MANDUCA Venha comer, Pop.
POP Oba!
TECO Voc, no.
TOTOCA E por que no?
TECO Ele vai fazer jejum para se penitenciar por ter andado em ms
companhias e trabalhado com negligncia.
POP Mas eu estou com fome!
MANDRIO Assim o Pop aprende a obedecer.
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TOTOCA Coitadinho!
MANDUCA No admitiremos injustias. Se o Pop no jantar, eu e a
Totoca tambm no jantaremos em solidariedade.
TECO Melhor, sobra mais.
MANDRIO .
TOTOCA Faam bom proveito.
MANDUCA S que amanh no iremos trabalhar.
MANDRIO Voc ouviu, Teco?
MANDUCA Nem depois, nem depois. Ou vocs nos do jantar, conforme o
combinado, ou no voltaremos ao trabalho nunca mais.
MANDRIO (AO TECO) E agora, seu idiota?
TECO A situao requer calma.
MANDRIO Estou calmo.
TECO Eles esto ganhando.
PILICO Precisa-se de empregados!
(POP E TOTOCA DO ALGUNS PASSOS EM DIREO AO PILICO.)
MANDRIO Esperem!
MANDUCA O qu?
MANDRIO Vamos jantar.
POP Viva! Viva!
TOTOCA Eu estou com uma fome!
MANDUCA Camaradas! Amanh vamos iniciar uma campanha para
melhora da comida.
TOTOCA timo!
POP Viva! Viva!
(MANDRIO E TECO SERVEM A COMIDA.)
MANDUCA Camaradas! Depois de amanh iniciaremos a campanha para o
pagamento de taxas menores para o chapu.
TOTOCA timo!
POP Viva! Viva!
MANDRIO Voc no come, Teco?
TECO Perdi o apetite.
MANDRIO Eu tambm.
TECO A situao grave.
MANDRIO Gravssima!
TECO A culpa do Pilico.
MANDRIO Ele est ganhando terreno.
TECO Na aparncia.
MANDRIO A turma est disposta a passar para o lado dele.
TECO Isso chaveco. Porm, isso no lhe dar vantagens. A chantagem
que esto fazendo conosco, faro com ele depois.
MANDRIO E o idiota no percebe.
TECO Precisamos esclarec-lo.
MANDRIO Vamos visit-lo esta noite.
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(PAUSA MSICA)
MANDRIO Que responde?
TECO Ou est conosco, ou est contra voc mesmo.
PILICO Qual a vantagem material que levo nisso tudo?
(PAUSA)
MANDRIO No vejo o que lhe possa dar.
PILICO Quero o Pop pelo menos.
MANDRIO De jeito nenhum!
PILICO Nada feito, ento.
TECO Esperem um pouco. Podemos fazer um outro acordo.
PILICO Desembuche.
TECO Um dia da semana pelo menos cedemos a Totoca e o Pop para
voc.
MANDRIO Nada feito.
PILICO Nessa base eu topo.
MANDRIO Mas quem no topa sou eu! Minha renda j vai cair com a
eliminao do Manduca. Se fico sem os outros um dia que seja, me ser
pesado.
PILICO Como ser ento?
(TECO PEGA MANDRIO PELO BRAO E O LEVA PARA UM CANTO.)
TECO Escuta aqui, Mandrio, o que fede mais: o excremento de um bode
ou o de uma girafa angolana?
MANDRIO No sei.
TECO Se voc no entende de merda, como quer dar palpite em conchavo
poltico? Deixa tudo por minha conta.
(TECO VOLTA PARA JUNTO DE PILICO.)
TECO Ele empresta os dois no dia de folga deles.
MANDRIO A, ainda v l.
PILICO Tambm aceito.
TECO E voc, Pilico, nesse dia, desconta a taxa de Orongon e me d.
PILICO Claro.
TECO Est feito o acordo?
MANDRIO Feito.
PILICO Feito.
TECO timo lidar com gente inteligente.
PILICO Bondade sua.
MANDRIO O mesmo digo eu.
TECO Sou sincero. Todos samos ganhando. A subverso est sufocada. E
se me permitirem uma sugesto... As taxas de Orongon sero aumentadas.
PILICO Naturalmente.
MANDRIO Naturalmente.
TECO As taxas de Orongon sero re-aumentadas.
PILICO Manda brasa!
(MANDRIO TAMBM CONCORDA.)
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SEGUNDO ATO
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MANDRIO Demais.
TOTOCA Obrigada. No querem sentar?
MANDRIO Estamos bem de p.
TECO Precisamos ser breves. Amanh voc tem muito o que fazer. Tem a
tal campanha.
TOTOCA verdade. Mas sentem um pouquinho.
TECO J que insiste.
TOTOCA Foi muita gentileza da parte de vocs virem me acordar para
dizer que eu fico linda de papelotes.
TECO que sua beleza nos preocupal
MANDRIO Muito.
TOTOCA Verdade?
TECO Verdade. E a maior prova disso que, pensando que esse trabalho
que voc faz pode vir a prejudicar a sua beleza, resolvemos promov-la.
TOTOCA E que trabalho farei?
TECO Um que condiga com seu corao generoso e no desgaste a sua
beleza.
MANDRIO E logicamente lhe dar maiores rendimentos.
TOTOCA Isso no me preocupa muito. Trabalho apenas por gosto. Mas
que terei que fazer?
MANDRIO O que eu mandar.
TOTOCA Em especfico?
TECO Como voc pode constatar, vivemos numa poca de crise. Ningum
d esmolas e, muito a contragosto, nos vemos forados a elevar certar
taxas, criar outras novas e diminuir o tempo de lazer. Tudo, claro, para o
bem da comunidade. O Pop, porm, talvez no compreenda a necessidade
de tais medidas. Talvez ele no possa comer todos os dias. Esse simples
fato pode dar a ele uma sensao de misria. E pessoas com essa sensao
precisam de certa assistncia, seno se revoltam.
TOTOCA E vou ter que ajud-lo a se conformar?
MANDRIO Isso mesmo.
TECO para o bem dele. Se ele se revolta, no ganhar as graas de
Orongon e ns vamos lamentar muito.
MANDRIO E ter que usar violncia.
TECO O que contra todos os nossos princpios.
TOTOCA E quanto ao Manduca?
MANDRIO Ser despedido. No nos serve mais.
TECO Ele ir trabalhar com o Pilico. Ele ofereceu emprego a vocs, no
foi?
TOTOCA Foi.
TECO Ento o Manduca no ficar desamparado nessa hora. Graas a
Orongon. Fico tranquilo. Me preocupava com a sorte desse moo. S se o
Pilico for muito sem carter que no lhe dar emprego.
MANDRIO Aceita, Totoca?
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TOTOCA No cho. E isso no motivo para voc acordar o Pop. Lembrese que ele precisa descansar bem, para poder trabalhar bem e no ser
despedido tambm.
POP isso mesmo.
MANDUCA Eu fui despedido. Voc no acha isso grave?
TOTOCA Eu, no.
MANDUCA Pois saiba que a nossa situao gravssima. Eles podem
tambm despedir vocs. Precisamos agir imediatamente. Vocs dois
recusem-se a trabalhar at que o Mandrio volte a me admitir no servio.
TOTOCA Quem no trabalha no come.
POP Tem razo. isso mesmo.
MANDUCA Compensa uns dias de jejum por uma bela vitria. Ns, unidos,
os venceremos com facilidade.
TOTOCA Manduca, no seja to egosta. Voc no h de querer que todos
fiquem sem comer por sua causa, no ? Veja, seu egosmo j est
roubando horas de sono do Pop.
POP isso mesmo.
MANDUCA Egosmo, uma ova! Se vocs me deixam sozinho, ns todos
nos estrepamos do primeiro ao quinto.
TOTOCA Voc est muito nervoso, Manduca. Precisa tomar um calmante.
V dormir e amanh voc estar melhor, e ver que tudo isso que voc
quer besteira. No justo voc querer arrastar o Pop e eu junto com
voc. V dormir. Nada to grave como parece.
MANDUCA Eu perco o emprego e isso no grave?
TOTOCA No .
POP No ?
TOTOCA Ele pode ir trabalhar com o Pilico.
POP Ah, ! Voc no vai passar fome.
MANDUCA Isso o nosso fim. Continuaremos escravos.
TOTOCA Durma, Pop. Amanh voc tem que trabalhar. Voc no quer
ter a mesma sorte que o Manduca, quer?
POP Coitadinho do Manduca.
TOTOCA . Ele vai para o inferno.
MANDUCA Pintado de verde e amarelo.
POP Coitado de voc.
MANDUCA Coitado de voc, Pop.
(MANDUCA VAI SE AFASTANDO. TOTOCA E POP VOLTAM A DORMIR.
MANDUCA SE DIRIGE AO PBLICO.)
MANDUCA Perdi essa batalha, porm a luta continua. O amadurecimento
das condies objetivas fatalmente chegar. A classe operria triunfar e
assumir o poder, quer queira, quer no a decadente burguesia. O
imperialismo norteamericano e seus tteres internos sero esmagados pela
dialtica irreversvel da Histria. Amm. (PAUSA) Bem, mas agora no h
outro jeito. Vou falar com o Pilico.
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POP O Mandrio desconta a taxa para Orongon, que para o Teco rezar
por mim. E com o resto eu compro comida. Mas d para comprar to
pouquinho...
MANDUCA E quem vende a comida?
POP O Mandrio.
MANDUCA Da, todo o dinheiro fica com ele.
POP mesmo.
MANDUCA Ele fica cada vez mais rico e voc fica cada vez mais pobre.
POP mesmo. Mas o que ele faz com o dinheiro?
MANDUCA Bem, ele compra comida, roupa, sapato, charuto...
POP Gente...
MANDUCA Pop, no se meta a ter idias. Voc precisa s dizer o que
est no texto.
POP T bom. O que voc quer que eu faa?
MANDUCA Me solta.
POP No posso. Vou trabalhar com o Pilico.
MANDUCA Que lucro voc vai ter l? Nenhum.
POP Como nenhum? Eu vou trabalhar com o chapu dele sem pagar
nada. Ele falou.
MANDUCA Ele no disse isso. Ele disse que voc trabalhava de manh e
ele, de tarde.
POP Pois ento. Ele no falou em taxa.
MANDUCA Oh, idiota! Ele entra com o chapu, voc, com o trabalho, e
vo ganhar igual?
POP Vamos.
MANDUCA No, no, no! Ele vai te fazer scio nessa base: o que voc
ganhar com o seu trabalho, vai dar pra ele at pagar a metado do chapu.
Ele vai te vender comida a prazo, porque voc no vai poder comprar
vista. Logo, voc vai passar a vida toda com dvida para com ele. E quem
deve escravo.
POP Mas um dia eu serei proprietrio do meu chapu.
MANDUCA Nunca. Voc no conseguir pag-lo nunca. Se voc trabalhar
mais, ele aumentar as taxas.
POP Ser?
MANDUCA . Que ganho mentindo?
POP Acho que nada.
MANDUCA Ento me solta.
POP No sei se devo.
MANDUCA Claro que deve. a nica forma de deixar de ser escravo
deles.
POP Eu no sou escravo.
MANDUCA , sim, Pop! Voc no trabalha com o chapu deles?
POP Trabalho, sim.
MANDUCA Voc no acredita no Deus deles?
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