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Jornada de Um Imbecil Até o Entendimento

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JORNADA DE UM IMBECIL AT O ENTENDIMENTO

Autor: PLNIO MARCOS

personagens
MANDRIO
TECO
MANDUCA
POP
PILICO
TOTOCA

(Esta pea possui duas verses anteriores. A primeira verso OS


FANTOCHES
(1958),
e
a
segunda

CHAPU
SOBRE
PARALELEPPEDO PARA ALGUM CHUTAR (1965). A verso
definitiva, JORNADA DE UM IMBECIL AT O ENTENDIMENTO, foi
escrita em 1969.)

PRIMEIRO ATO
(ENTRAM MANDRIO E TECO. O PRIMEIRO MASCA SEU CHARUTO
NERVOSAMENTE E O SEGUNDO TEM UMA EXPRESSO DE BEATO.)
MANDRIO Voc tem que dar um jeito. Nisso que no pode ficar.
TECO Eu fao o que posso.
MANDRIO O que muito pouco.
TECO Mas que tem sido suficiente.
MANDRIO Foi suficiente. Agora preciso mais. Muito mais. Ontem, o que
eles trouxeram? Nada!
TECO A culpa do Pilico, ele que nos faz concorrncia. Fica a
oferecendo vantagens aos nossos homens justamente durante o servio.
Essas vantagens, alm de impossveis de serem cumpridas, fazem com que
nossos homens ambicionem melhores condies de vida. Isso nos leva
fatalmente a uma crise econmica. Esse procedimento da parte do Pilico
condenvel. O aliciamento que ele vem fazendo antitico. Esse simples
fato j merece a ateno da nossa parte. Porm o pior mesmo que, com
seu falatrio, ele distrai o pessoal, que no consegue mais concentrar-se no
servio. E, em consequncia, a produo diminuiu e as rendas caram
vertiginosamente. E com elas, naturalmente, as taxas para o deus Orongon.
MANDRIO Voc tem o dom de me explicar o bvio.
TECO Voc acha?
MANDRIO Acho. Tudo o que voc disse eu j sabia. O que eu quero
saber o que voc faz para impedir a evoluo desse estado de coisas.
TECO (CNICO) Rezo!
MANDRIO Reza?
TECO Rezo.
MANDRIO Reza?!
TECO Rezo.
MANDRIO Idiota! Voc pago para criar mitos e supersties, no para
rezar.
TECO Rezar faz parte dos mitos.
MANDRIO Mas no rezando que voc vai impedir que o Pilico me faa
concorrncia, nem vai impedir que a nossa gente se rebele.
TECO Creio nos meus mtodos. A alta dos preos dos ovos episdica.
MANDRIO Pois eu lhe digo que os seus mtodos esto superados.
TECO A prtica apia a minha teoria, pois h uma relativa diminuio da
parte varivel do Capital, simultaneamente com o progresso da acumulao
e da concentrao que acompanha isto.
MANDRIO Ento o que significa esse povo descontente?
TECO Uma pequena minoria.

MANDRIO Que cresce dia a dia.


TECO No seja alarmista. As coisas no so to graves assim. Ainda
temos o controle da situao.
MANDRIO Sim, da situao temos, porm no temos o controle da
oposio, e essa justamente que me tira o sono.
TECO Tome Nembutal.
MANDRIO No enche o saco! Voc devia rezar menos e vigiar mais.
TECO Mas s isso que eu fao, orar e vigiar.
MANDRIO Deve estar orando de olhos fechados e vigiando
negligentemente para no ver os fatos.
TECO Haver algum fato que no esteja na minha paisagem imediata?
MANDRIO H vrios.
TECO Ento conte... Eu adoro fofocas.
MANDRIO Outra noite, aps o jantar, voc saiu para rezar. Todos o
seguiram, menos o Manduca. Ele ficou conversando com o Pilico,
conversando em tom confidencial. No aguentando mais de... curiosidade,
fingi que ia... fazer... bem, necessidades... e dissimuladamente fui para trs
de uma rvore prxima, para escutar o que diziam.
TECO Como voc sabe que foi atrs da rvore? Poderia estar na frente.
MANDRIO E onde a frente da rvore?
TECO Do lado oposto ao montinho de coc.
MANDRIO Como voc sabe?
TECO Elementar, meu caro Watson, todo mundo caga atrs da rvore.
MANDRIO O que interessa que eu escutei o que diziam.
TECO O que diziam?
MANDRIO Coisas de arrepiar.
TECO Conta, conta.
MANDRIO O Pilico convidava o Manduca para ir trabalhar com ele e,
como sempre, oferecia vantagens enormes. Chegou at a falar em
estabilidade!
TECO E o Manduca?
MANDRIO Recusou.
TECO Que estpido!
MANDRIO Por qu?
TECO Porque... porque fica falando com o Pilico.
MANDRIO Ah, bom...
TECO E o caso acabou a? Isso prova que o Manduca est bem
doutrinado.
MANDRIO Acontece que o caso no acabou a.
TECO Bem... ento conte.
MANDRIO O Manduca pediu auxlio ao Pilico para poder acabar conosco.
TECO Cruz credo!
MANDRIO Ele garantiu que, com a ajuda do Pilico, o plano dele no
falharia e que eu e voc iramos para a cucuia direto.

TECO E o Pilico resolveu ajudar?


MANDRIO Ficou de estudar o caso.
TECO Canalha! Porm ele nada conseguir contra ns. Voc se inteirou do
esquema dele?
MANDRIO No, o Manduca no abriu o jogo.
TECO Ento o que o Pilico ficou de estudar?
MANDRIO Se vale a pena acabar conosco ou no.
TECO Cruz credo!
MANDRIO Como voc v, nesta altura do campeonato no adianta mais
rezar...
TECO Precisamos agir.
MANDRIO timo! Assim que se fala.
TECO Toda araruta tem seu dia de mingau.
MANDRIO A alta do preo dos ovos episdica.
TECO mais nobre dar um balde de sangue para um anmico do que
fazer a barba todos os dias.
MANDRIO No podemos falhar.
TECO O caso requer ao.
MANDRIO Pronta e rpida!
TECO Ento agiremos! De nossa atuao depende o nosso futuro.
MANDRIO O preo da liberdade a eterna vigilncia!
TECO O futuro da ptria repousa na juventude!
MANDRIO de pequeno que se torce o pepino!
TECO Deus, Ptria e Famlia!
MANDRIO A sobrevivncia da cultura ocidental um imperativo!
TECO Precisamos incentivar o plantio do agrio!
MANDRIO S Esso d a seu carro o mximo!
TECO Sem dvida! No estamos aqui para botar azeitona na empadinha
dos outros. Viva o Tratado de Tordesilhas!
MANDRIO Atacaremos o inimigo!
TECO - J!
MANDRIO Agora!
(OS DOIS FICAM PARADOS. DEPOIS DE CERTO TEMPO, MANDRIO FALA:)
MANDRIO Bom, e da?
TECO melhor dar tempo ao tempo.
MANDRIO Quero ao pronta e rpida.
TECO Tem toda razo.
MANDRIO Vamos ao.
TECO Agiremos.
MANDRIO Isso voc j falou.
TECO Tem razo.
MANDRIO Ento vamos prtica.
TECO Bem lembrado.
MANDRIO Por onde comeamos?

TECO Pelo comeo.


MANDRIO Quero saber o que fazer.
TECO Atacaremos o inimigo.
MANDRIO Isso voc tambm j falou.
TECO Destruiremos o mal pela raiz.
MANDRIO Ah, isso parece bom.
TECO Ento ponto pacfico.
MANDRIO Vamos adiante.
TECO Vamos.
MANDRIO Desembucha o plano de uma vez.
TECO Que plano?
MANDRIO De ataque ao inimigo.
TECO Claro! Atacaremos pelos flancos. Direito e esquerdo. Pela
retaguarda e pela frente. Por mais bravo que seja o inimigo no escapar
ao cerco.
(PAUSA. MANDRIO FICA PENSATIVO.)
TECO Que acha?
MANDRIO Para ser franco, no entendi.
TECO Mas to evidente! Usaremos a ttica do lao hngaro.
MANDRIO Bem... Isso bom. E depois?
TECO Depois de estrangular, s enterrar.
MANDRIO Continuo sem entender.
TECO Puxa, to simples!
MANDRIO Quero saber os detalhes.
TECO Eles ficam no meio e ns em volta.
MANDRIO Quero saber de que jeito isso possvel.
TECO A que complica um pouco.
MANDRIO Pois trate de no complicar.
TECO Bem... J sei!
MANDRIO Ento fale.
TECO Nosso caso segurar o que j temos.
MANDRIO Brilhante!
TECO Obrigado. Temos que diminuir a comida e aumentar o tempo de
trabalho. Alis, um colega, eminente planejador, j dizia que, para no
haver uma reverso de expectativas, o fluxo da espiral do desenvolvimento
em reas em vias de recuperao exige que surja uma interdependncia e
que o raciocnio seja ofuscado pela fome, que o trabalho faz esquecer.
MANDRIO Pois , pois ... Porm justamente isso que o Pilico quer.
TECO Atente para o detalhe: irreversvel.
MANDRIO At parece que voc trabalha para ele. Ele ofereceu mais
comida e menos trabalho.
TECO Eu adoto uma campanha contra o cio e abeno o jejum.
MANDRIO Era s o que faltava. Se eles assim j acham ruim, imagine
sacrificados. Nos matariam no primeiro dia.

TECO No, se agirmos com energia. Cerceando certas liberdades. Todos


sabem que um povo com fome e liberdade rebela-se. Porm, se esse povo
s tem fome, no se rebela. A Histria testemunha das minhas palavras.
Por exemplo, vamos impedir que eles falem com o Pilico.
MANDRIO No posso. No tenho foras. At a Totoca est fora da rea
das minhas influncias.
TECO No creio! A Totoca sempre foi fiel ao nosso culto.
MANDRIO Pra voc ver como nosso culto est bagunado.
TECO Cruz credo! Porm no creio que a Totoca seja contra ns.
MANDRIO Ela no contra nem a favor, muito pelo contrrio.
TECO Lamentvel.
MANDRIO Hoje ela pegou um chapu e saiu por a. (SUSPIRA.) Foi
trabalhar com os outros.
TECO Com que alegao ela cometeu tal desatino?
MANDRIO Disse que quer ganhar o seu prprio sustento.
TECO Isso louvvel. So sempre uns lucrinhos a mais.
MANDRIO S voc no percebe que essa tomada de posio por parte
dela tem origem nessa doutrina dissolvente que ultimamente se espalhou
por a.
TECO Absurdo! No existe doutrina alguma.
MANDRIO verdade o que te digo. Falo com base.
TECO Maior absurdo nunca escutei. Voc confunde insatisfao dessa
gentalha com movimento organizado.
MANDRIO O Manduca anda com coisa na cabea. E eu posso garantir
que no chapu. (TECO RI COM MALCIA.) Tambm no isso, sua besta!
Ele nem casado . Ele anda tendo idias.
TECO Cruz credo! Isso grave.
MANDRIO Gravssimo!
TECO Lamentvel!
MANDRIO Terrvel!
TECO Gravssimo!
MANDRIO Lamentvel!
TECO Terrvel!
MANDRIO Gravssimo!
TECO Lamentvel!
MANDRIO Terrvel!
TECO Gravssimo!
MANDRIO Chega!
TECO Mas como a Totoca foi se perder?
MANDRIO Foi culpa minha de certa forma. Naquela noite, depois que o
Manduca conversou com o Pilico, eu percebi que ele estava muito excitado e
achei que no era bom. Para aliviar a tenso, mandei a Totoca... ter com
ele. Golpe ttico.
TECO Hbil. Muito hbil.

MANDRIO Mas falhou.


TECO No diga!
MANDRIO Agora j disse. Ele passou a noite toda a falar de seus
fantsticos sonhos.
TECO (GRAVE) E ela?
MANDRIO Escutou.
TECO E nada?
MANDRIO E nada. (PAUSA) Que me diz?
TECO Cruz credo!
MANDRIO Diga alguma coisa inteligente!
TECO Dada a existncia, tal como exposta nos recentes trabalhos
pblicos de Poisson e Wattman, um Deus pessoal qu-qu-qu de barbas
brancas qu-qu-qu, fora do tempo sem extenso, que do alto da sua
divina apatia, sua divina atambia, sua divina fantasia, nos ama
entranhadamente, salvo algumas raras excees. Por motivos ignorados,
mas que o futuro revelar...
MANDRIO Mas isso outra pea! Voc esqueceu o texto?
TECO Esqueci o cacete! O autor da pea o Plnio e a nica forma que ele
tem de dizer uma coisa inteligente plagiando, o que por sinal est muito
na moda.
MANDRIO Isso verdade. Mas o que me preocupa que a Totoca
comeou a mudar e hoje culminou com a ridcula deciso de voltar ao
trabalho.
TECO Bom, eu acho que a Totoca pode ser recuperada. Mande-a passar a
noite comigo.
MANDRIO Para qu?
TECO Talvez consiga convenc-la de que est procedendo mal.
MANDRIO No adianta. Ela j ouviu tudo o que voc tinha pra dizer.
TECO No custa repetir. Voc sabe, as mulheres so to volveis...
Conversa vai, conversa vem... ela volta para o nosso lado.
MANDRIO No insista.
TECO Mas pela causa...
MANDRIO Deixa essa parte comigo.
TECO Bem... melhor assim, menos trabalho pra mim.
MANDRIO O que eu quero de voc uma forma eficiente de manter a
harmonia.
TECO Use a energia. A violncia.
MANDRIO Eu no posso fazer uma coisa dessas. E afinal, eu sou bom,
generoso e quero o progresso de todos.
TECO Eu sei, eu sei...
MANDRIO Ento trate de criar uma regra que mantenha as distncias.
Alguma coisa que faa com que eles achem justo no terem nada e eu ter
tudo. (PARA O PBLICO) Afinal de contas, eu tenho quatro chapus e eles,

nenhum. Se eu no emprestar os meus chapus, eles no podem pedir


esmolas.
TECO E fui eu que criei a conveno de que anti-higinico pedir esmolas
sem chapu.
MANDRIO E como sou bom negociante, vi que era timo negcio eu
mesmo vender a comida, forando-os a comprarem de mim, sob pena de
dispens-los do meu servio, caso fossem comprar mais barato em outro
lugar.
TECO E eu criei a imagem do Deus Orongon, que impe castigos terrveis,
horripilantes, e que faz arder para sempre as almas desobedientes e,
principalmente, os ladres de chapus.
MANDRIO E todos ns progredimos.
TECO Todos.
MANDRIO Eu, por ser mais rico, conquistei a Totoca.
TECO Muito justo. As melhores coisas para os de mais posses. E ele
depois deu esmolas para os pobres. Totoca muito dada.
MANDRIO E eu, se no sou querido, sou temido.
TECO E eu, se no sou amado, sou respeitado.
MANDRIO O que vem a dar no mesmo.
TECO E somos todos felizes!
MANDRIO ramos felizes! At que apareceu o Pilico e comeou a fazer
concorrncia.
TECO E o Manduca se ps a pensar.
MANDRIO Isso um horror.
TECO Eles so uma ameaa para ns.
MANDRIO Eles so a minha dor de cabea.
TECO So possudos pelo demnio.
MANDRIO So corruptos.
TECO No crem em Orongon. So subversivos.
MANDRIO No exite mais paz.
TECO o sinal dos tempos.
MANDRIO Imaginem, o Pilico quer se igualar a mim! No se contenta
com o seu chapeuzinho.
TECO Pecador!
MANDRIO Ambicioso!
TECO Mas o caso do Manduca mais grave. Ele no tem nem um
chapeuzinho e quer progredir.
MANDRIO um mal-nascido.
TECO Bola preta pra ele.
MANDRIO A situao grave. O Pilico, com sua concorrncia, que cria
ambiente propcio para a desordem.
TECO Precisamos elimin-lo.

MANDRIO Vamos expuls-lo do nosso bando. Porm, sem comprometer


os alicerces da nossa ideologia. Por certo, eles aproveitariam a ocasio para
ganhar terreno.
TECO Agiremos de acordo com as circunstncias. Pesaremos as
consequncias, analisaremos nossas possibilidades, anteveremos os
resultados. E a nossa poltica ter xito.
MANDRIO Assim espero.
(OUVEM-SE CANTOS FORA DE CENA.)
MANDRIO A vm eles.
TECO Vamos nos esconder para ouvir o que dizem.
(ELES SE ESCONDEM. ENTRAM MANDUCA, PILICO, POP E TOTOCA. VO
CANTANDO. CADA UM TEM UM DISFARCE DE MENDIGO. MANDUCA FAZ O
ALEIJADO, USA MULETAS (PRECISA DE APOIO). PILICO FAZ O HOMEM DE
UM BRAO S (QUER ESTENDER O OUTRO). TOTOCA FAZ A POSSUDA DA
MOLSTIA DE SO GUIDO (DANA SEMPRE). POP FAZ O CEGO (NO V
NADA). CHEGANDO NO PALCO, TIRAM OS DISFARCES E VOLTAM A SER
PESSOAS NORMAIS.)
TOTOCA Finalmente chegamos.
MANDUCA Eles no esto.
POP mesmo.
TOTOCA Onde ser que eles foram?
MANDUCA Provavelmente esto pescando na beira do rio, ou batendo
papo sombra de uma rvore.
TOTOCA Vida boa.
MANDUCA Enquanto a gente se mata de trabalhar.
TOTOCA Essa doena de So Guido me cansa bastante.
MANDUCA E eu ento com meu aleijo.
POP Pior sou eu, de cego. No vejo nada. No tenho distrao alguma. E
no me queixo. O Teco falou que vou ter minha recompensa no Reino de
Orongon.
MANDUCA No justo a gente trabalhar para eles se divertirem. No
justo.
POP Est certo, os chapus so deles.
MANDUCA Est certo nada, seu idiota!
PILICO Se vocs trabalhassem comigo, tambm sobraria tempo para
vocs pescarem.
MANDUCA Vocs so sempre iguais. No princpio do vantagens, depois
nos exploram.
POP Manduca, no fala mais a palavra explora. O Teco disse que quem
fala essa palavra perde a graa de Orongon.
MANDUCA Mas que Orogen, animal?
POP Orongon, o deus de que o Teco fala.
MANDUCA Voc mesmo um imbecil! Acredita em tudo quanto
bobagem.

TOTOCA Coitadinho do Pop!


TECO (FORA DE CENA) O Pop est bem doutrinado.
MANDRIO (DEM) Mas o Manduca j problema.
MANDUCA Escute, Pop. Esse negcio de Orongon pura besteira.
TOTOCA E os demnios so os exploradores.
MANDUCA No nosso caso, so o Mandrio e o Teco.
POP Cruz credo!
TOTOCA Ah, eles no! Eles so to bonzinhos.
MANDUCA Bonzinhos na aparncia. No ntimo so maus. E precisam ser
eliminados.
POP Cruz credo!
TOTOCA No concordo. Voc um extremista. Por isso comete enganos.
Mandrio muito bom. Ele que nos permite trabalhar.
POP Com a graa de Orongon!
TOTOCA E esse trabalho que nos d a independncia econmica.
MANDUCA Esse trabalho a faz cada vez mais dependente. Escrava.
preciso conquistar a liberdade a qualquer preo. Sem sentimentalismo.
TOTOCA Eu no quero te ouvir mais.
MANDRIO (FORA DE CENA) Puxa, o Manduca um perigo.
TECO (DEM) Mas no tem apoio de ningum.
PILICO Escute, Totoca, o Manduca um sectrio. Agora, eu acho timo
que voc queira ser independente economicamente. E num ponto temos
que dar razo ao Manduca. Ele est certo quando diz que voc, trabalhando
com o Mandrio, no atingir seu objetivo.
TOTOCA No?
PILICO Claro que no. As condies de trabalho que ele oferece so
pssimas. Venha trabalhar comigo. Logo voc vai progredir.
TOTOCA Qual a sua proposta?
MANDRIO (FORA DE CENA) Vamos intervir.
TECO (DEM) Espere! Vamos ouvir a proposta.
MANDRIO Para qu?
TECO Para cobri-la, caso seja preciso.
PILICO As vantagens que ofereo...
MANDUCA Um momento, Totoca.
TOTOCA O que foi?
PILICO No se meta.
MANDUCA E por que no?
PILICO Esse assunto no lhe interessa.
MANDUCA Naturalmente que interessa.
PILICO Esse um assunto particular.
MANDUCA A Totoca que decide se quer falar em particular com voc.
TOTOCA Eu...
MANDUCA Lembre-se de sua reputao, Totoca. Ela pode ser abalada com
essa entrevista particular.

TOTOCA Eu...
POP Deixa o Manduca escutar. Ele tambm filho de Orongon.
TOTOCA Claro. E depois vivemos numa democracia.
MANDUCA E o Pilico nada pode fazer para impedir que eu escute e fale.
Nada.
PILICO Afinal, somos aliados, Manduca. Sabe aquele auxlio que voc me
pediu? Pois estou disposto a conceder. Depois falaremos dos detalhes.
Agora deixa eu fazer a minha proposta ao Pop, to simptico...
POP (RI FELIZ) Obrigado.
PILICO E Totoca, to bonita.
TOTOCA (COM DENGO) Obrigada.
MANDUCA Creio que a hora no de propostas comerciais. A hora de
criar condies para que cada um tenha o seu prprio chapu.
PILICO Mas isso utpico.
MANDUCA No , no. Voc no conseguiu o seu?
PILICO Bem, mas no meu caso...
MANDUCA Voc melhor do que os outros?
POP O Teco disse que perante Orongon todos os homens so iguais.
TOTOCA Seria timo que cada um tivesse o seu chapu.
PILICO Teoricamente isso lindo. Mas a prtica nos aconselha a
deixarmos isso para outra etapa.
MANDUCA Depois que eu explicar o meu plano, voc ver que j existem
as condies objetivas.
PILICO Mais vale um pssaro na mo do que dois voando.
MANDRIO (FORA DE CENA) Vamos intervir.
TECO (DEM) Com muito tato.
MANDRIO (ENTRANDO) Ol, meus ilustres trabalhadores!
TECO Cansados, hoje?
MANDRIO Vamos fria. Pop, quanto rendeu?
POP S isso.
MANDRIO S isso?
TECO S isso?
POP S.
TECO Absurdo.
MANDRIO Por que s isso?
POP Porque o Pilico e o Manduca ficaram conversando comigo e no me
deixaram trabalhar.
MANDRIO Voc ouviu, Teco?
TECO Pop, voc sabe que quem no trabalha ser castigado por
Orongon?
POP Sei.
MANDRIO E da?
TECO Por que no trabalhou?
POP Porque eles conversaram comigo.

10

TECO Ah, ? O Demnio te pegar. No tem jeito.


POP Eu no quero.
TECO Ento tem que fazer penitncia.
POP Eu fao. Qual ?
TECO V fazer as suas obrigaes para o encantado.
POP Est bem.
MANDRIO (PARA O TECO) Idiota! Isso est fora de moda. Manda ele dar
as horas de descanso em trabalho para Orongon.
TECO Depois. Agora vamos ao outro.
MANDRIO Manduca, onde est a fria?
MANDUCA Pega.
MANDRIO S isso?
TECO S isso?
MANDUCA E olhe l!
MANDRIO E por que s isso?
MANDUCA Dia ruim.
TECO mentira. Olha, Manduca, quem mente se estrepa.
MANDUCA E da?
TECO Bem, e da... que... se voc mentir...
MANDUCA Vou perder as graas de Orongon.
TECO Isso mesmo.
MANDUCA J no engulo essa histria.
TECO Mas isso um sacrilgio.
MANDRIO Quero saber por que rendeu pouco.
MANDUCA J disse, dia ruim.
MANDRIO Ns sabemos que mentira.
TECO Sabemos.
MANDURA Como? Vocs estavam l?
MANDRIO Pop disse que voc conversou o dia todo com ele. No
trabalhou, nem deixou ele trabalhar.
MANDUCA E dedo-duro no perde a graa de Orongon?
TECO Zelar pelos interesses do patro no delao.
MANDRIO Agora explique-se.
MANDUCA Conversei porque no tinha para quem pedir.
TECO No minta.
MANDUCA No estou mentindo. Voc no estava l. Portanto no enche.
TECO Vamos penitncia.
MANDUCA Quero avisar vocs de uma coisa.
TECO Fale.
MANDUCA De hoje em diante, no descontem mais a taxa de Orongon
das minhas comisses.
TECO O que voc disse?
MANDUCA O que voc ouviu.
TECO Faa alguma coisa, Mandrio! Urgente!

11

MANDRIO Manduca, sabe que isso pode lhe fazer perder o emprego?
PILICO (COM UMA TABULETA) Precisa-se de empregados! Precisa-se de
empregados!
TECO Que sujeira!
MANDRIO Falta de tica!
PILICO Precisa-se de empregados!
MANDUCA Ento?
MANDRIO Ento o qu?
MANDUCA Vou ou no ser despedido?
MANDRIO Dessa vez passa. Porm voc precisa produzir mais.
TECO Muito mais.
MANDUCA Produzo de acordo com as circunstncias.
TECO Vamos atender a Totoca.
MANDRIO Totoca, venha c.
TECO Espero que tenha sido um dia rendoso, com a graa de Orongon.
TOTOCA S rendeu isso. (ENTREGA UM CRUZEIRO PREGADO NUMA
TBUA.)
MANDRIO Mas est timo! Isso um cruzeiro forte!
TECO Para o primeiro dia de trabalho no est mal.
MANDRIO Claro que para o futuro h de melhorar. Tenho certeza. Confio
na capacidade da Totoca.
TOTOCA Obrigada.
TECO Como , Manduca, vamos penitncia?
MANDUCA Eu vou jantar.
MANDRIO Quem no trabalha no come.
MANDUCA E quem no come no trabalha.
PILICO Precisa-se de empregados!
MANDUCA E eu trabalhei.
MANDRIO Porm rendeu pouco.
TECO Confesse-se arrependido e faa jejum.
MANDUCA Quero saber quando se come aqui.
MANDRIO Depois do trabalho.
PILICO Precisa-se de empregados!
MANDUCA Quando se come?
MANDRIO Agora. E espero que todos vocs saibam compreender a nossa
generosidade e produzam mais amanh.
MANDUCA Venha comer, Pop.
POP Oba!
TECO Voc, no.
TOTOCA E por que no?
TECO Ele vai fazer jejum para se penitenciar por ter andado em ms
companhias e trabalhado com negligncia.
POP Mas eu estou com fome!
MANDRIO Assim o Pop aprende a obedecer.

12

TOTOCA Coitadinho!
MANDUCA No admitiremos injustias. Se o Pop no jantar, eu e a
Totoca tambm no jantaremos em solidariedade.
TECO Melhor, sobra mais.
MANDRIO .
TOTOCA Faam bom proveito.
MANDUCA S que amanh no iremos trabalhar.
MANDRIO Voc ouviu, Teco?
MANDUCA Nem depois, nem depois. Ou vocs nos do jantar, conforme o
combinado, ou no voltaremos ao trabalho nunca mais.
MANDRIO (AO TECO) E agora, seu idiota?
TECO A situao requer calma.
MANDRIO Estou calmo.
TECO Eles esto ganhando.
PILICO Precisa-se de empregados!
(POP E TOTOCA DO ALGUNS PASSOS EM DIREO AO PILICO.)
MANDRIO Esperem!
MANDUCA O qu?
MANDRIO Vamos jantar.
POP Viva! Viva!
TOTOCA Eu estou com uma fome!
MANDUCA Camaradas! Amanh vamos iniciar uma campanha para
melhora da comida.
TOTOCA timo!
POP Viva! Viva!
(MANDRIO E TECO SERVEM A COMIDA.)
MANDUCA Camaradas! Depois de amanh iniciaremos a campanha para o
pagamento de taxas menores para o chapu.
TOTOCA timo!
POP Viva! Viva!
MANDRIO Voc no come, Teco?
TECO Perdi o apetite.
MANDRIO Eu tambm.
TECO A situao grave.
MANDRIO Gravssima!
TECO A culpa do Pilico.
MANDRIO Ele est ganhando terreno.
TECO Na aparncia.
MANDRIO A turma est disposta a passar para o lado dele.
TECO Isso chaveco. Porm, isso no lhe dar vantagens. A chantagem
que esto fazendo conosco, faro com ele depois.
MANDRIO E o idiota no percebe.
TECO Precisamos esclarec-lo.
MANDRIO Vamos visit-lo esta noite.

13

POP A comida estava gostosa, graas a Orongon.


MANDUCA Agora podemos conseguir o que quisermos deles. Eles
precisam de ns.
TOTOCA . Juntos levamos vantagens. Se eles nos despedem, tm eles
prprios que trabalhar.
POP Eu comi bem. Com a graa de Orongon.
MANDUCA Bem, vamos dormir. Amanh ser outro dia.
TOTOCA Eu estou gostando bastante da minha nova vida. Est sendo
divertida.
POP Vou rezar e depois dormir.
(POP REZA E DEPOIS DORME. MANDUCA E TOTOCA DORMEM. TECO E
MANDRIO APROXIMAM-SE DE PILICO.)
PILICO Que querem?
TECO Fale baixo.
MANDRIO Queremos lhe falar.
PILICO Sejam breves. Estou com sono.
TECO Seremos rpidos.
PILICO Ento falem.
TECO Voc acha que procedeu corretamente fazendo a propaganda que
fez, justamente numa hora difcil para ns?
PILICO Mas era uma tima hora para mim.
MANDRIO Foi falta de tica de sua parte.
PILICO Se sobre tica que vo falar, voltem amanh. O assunto muito
complexo e eu estou com sono.
TECO Voc acha que est ganhando popularidade?
PILICO Ningum pode negar que me tornei simptico.
TECO verdade. E eles podem passar a trabalhar do seu lado talvez
amanh mesmo.
PILICO Amanh ou depois. Uma questo de tempo.
TECO Naturalmente.
PILICO Naturalmente.
TECO E podem vir a fazer exigncias descabidas.
MANDRIO E eu, a fazer propaganda que preciso de empregados.
TECO Como v, tica no um assunto to complexo.
MANDRIO E precisa existir.
TECO Convnio entre os da mesma categoria.
MANDRIO Ou nos defendemos mutuamente, ou eles assumem o controle
das coisas.
PILICO Acho que vocs tm razo.
TECO Melhor assim.
MANDRIO Coopera conosco?
PILICO Que pretendem fazer?
MANDRIO Punir o Manduca.
TECO Destru-lo para sempre.

14

(PAUSA MSICA)
MANDRIO Que responde?
TECO Ou est conosco, ou est contra voc mesmo.
PILICO Qual a vantagem material que levo nisso tudo?
(PAUSA)
MANDRIO No vejo o que lhe possa dar.
PILICO Quero o Pop pelo menos.
MANDRIO De jeito nenhum!
PILICO Nada feito, ento.
TECO Esperem um pouco. Podemos fazer um outro acordo.
PILICO Desembuche.
TECO Um dia da semana pelo menos cedemos a Totoca e o Pop para
voc.
MANDRIO Nada feito.
PILICO Nessa base eu topo.
MANDRIO Mas quem no topa sou eu! Minha renda j vai cair com a
eliminao do Manduca. Se fico sem os outros um dia que seja, me ser
pesado.
PILICO Como ser ento?
(TECO PEGA MANDRIO PELO BRAO E O LEVA PARA UM CANTO.)
TECO Escuta aqui, Mandrio, o que fede mais: o excremento de um bode
ou o de uma girafa angolana?
MANDRIO No sei.
TECO Se voc no entende de merda, como quer dar palpite em conchavo
poltico? Deixa tudo por minha conta.
(TECO VOLTA PARA JUNTO DE PILICO.)
TECO Ele empresta os dois no dia de folga deles.
MANDRIO A, ainda v l.
PILICO Tambm aceito.
TECO E voc, Pilico, nesse dia, desconta a taxa de Orongon e me d.
PILICO Claro.
TECO Est feito o acordo?
MANDRIO Feito.
PILICO Feito.
TECO timo lidar com gente inteligente.
PILICO Bondade sua.
MANDRIO O mesmo digo eu.
TECO Sou sincero. Todos samos ganhando. A subverso est sufocada. E
se me permitirem uma sugesto... As taxas de Orongon sero aumentadas.
PILICO Naturalmente.
MANDRIO Naturalmente.
TECO As taxas de Orongon sero re-aumentadas.
PILICO Manda brasa!
(MANDRIO TAMBM CONCORDA.)

15

TECO As taxas de Orongon sero re-re-aumentadas.


PILICO Com correo monetria e tudo!
(MANDRIO CONCORDA.)
TECO Com as graas de Orongon! Louvado seja Orongon!

fim do primeiro ato

16

SEGUNDO ATO

(TODOS DORMEM, MENOS TECO E MANDRIO.)


MANDRIO O acordo com o Pilico no me agradou.
TECO Era a nica forma de voltarmos a controlar a situao.
MANDRIO Acho que no futuro ele voltar a nos criar problemas.
TECO Primeiro cuidaremos do Manduca. Depois liquidaremos o Pilico.
Cada coisa tem seu tempo.
MANDRIO O Manduca j est liquidado.
TECO Ainda no. Temos que cortar os laos que ele criou com o Pop e a
Totoca. No podemos deixar nenhuma possibilidade para ele escapar.
MANDRIO Bem lembrado.
TECO Com o Pop ser fcil, ele estpido. Porm com a Totoca ser
mais complicado.
MANDRIO Que pretende fazer?
TECO Nome-la uma espcie de assistente nossa. Um elemento de
direo.
MANDRIO No gosto da idia. Quando maior o nmero de dirigentes,
mais fraca fica a direo.
TECO A gente tem que jogar conforme o jogo.
MANDRIO Mas quem d as cartas sou eu.
TECO Isso mais tarde. Agora o jogo requer uns blefes. Trouxemos o Pilico
para o nosso lado. Trazemos o Pop e a Totoca. Liquidamos o Manduca.
Depois provocamos um atrito com o Pilico e o destruiremos. E a os outros
tero que fazer o nosso jogo, ou...
MANDRIO Ou?...
TECO Sero todos destrudos.
MANDRIO Destrudos todos, e quem vai trabalhar para mim, seu animal?
(PAUSA)
TECO Bem... eu acho... que tudo sair bem...
MANDRIO Troque isso em midos.
TECO Eu acho... que sem o Pilico e o Manduca por perto, Pop e Totoca
voltam a ser o que sempre foram. Obedientes lei de Orongon.
MANDRIO - Isso eu tambm acho.
TECO Ento vamos entrar em ao.
MANDRIO Antes quero te avisar que, se seu plano falhar, voc me
pagar caro.
TECO Se meu plano falhar, voc no ter condies de cobrar nada.
MANDRIO (ENGOLINDO EM SECO) Bem... Espero que tudo saia bem.
TECO Com a graa de Orongon h de sair. E por falar em Orongon,
preciso aumentar com urgncia a taxa dele.

17

MANDRIO Maquiavel perto de voc era pinto.


TECO Obrigado. Quanto taxa para Orongon...
MANDRIO Ser aumentada.
TECO Sarav!
MANDRIO Vamos agir.
TECO Comeamos pela Totoca.
(OS DOIS APROXIMAM-SE DA TOTOCA E A ACORDAM.)
TECO Acorda, Totoca.
TOTOCA (ACORDANDO) Ah, hoje no, estou cansada.
MANDRIO Precisamos lhe falar.
TOTOCA Audcia do bofe! Acordar a gente para falar. No podiam esperar
at amanh?
MANDRIO No.
TOTOCA Aconteceu algo grave?
TECO No, nada de grave, mas eu e o Mandrio estivemos conversando
sobre voc.
TOTOCA Falavam mal, j sei.
TECO Pelo contrrio.
MANDRIO Falvamos sobre o seu procedimento na hora do jantar. Sua
participao naquela coisa toda.
TOTOCA Bem, e da? No gostaram?
TECO Achamos muito nobre o seu gesto. Nos comoveu ver voc
preocupada com a sorte do Pop. Isso agrada a Orongon.
TOTOCA Bem, o mrito cabe ao Manduca.
MANDRIO Esse no me agrada.
TECO Nem a Orongon.
TOTOCA Mas a iniciativa partiu dele.
MANDRIO Por isso mesmo no me agrada.
TOTOCA No entendo.
TECO Ele mau. um possudo do demnio. Serve-se da sua bondade e
da estupidez do Pop para atingir seus torpes propsitos.
MANDRIO Vocs so inocentes-teis dele.
TOTOCA Espero que vocs no tenham vindo me acordar s para me
dizerem essas coisas.
TECO No. Ele... isto , ns queramos lhe dizer...
TOTOCA Falem logo o que querem falar e me deixem dormir. Estou
cansada. E amanh precisamos iniciar a companha de melhor e mais
comida.
(TECO E MANDRIO SE ASSUSTAM. PAUSA)
TOTOCA Vamos, falem.
(MANDRIO CUTUCA TECO.)
TECO Ns queramos lhe dizer que... voc fica muito bem de papelotes.
TOTOCA (FACEIRA) Bondade de vocs.
TECO No bondade. o que achamos. Ela no est linda, Mandrio?

18

MANDRIO Demais.
TOTOCA Obrigada. No querem sentar?
MANDRIO Estamos bem de p.
TECO Precisamos ser breves. Amanh voc tem muito o que fazer. Tem a
tal campanha.
TOTOCA verdade. Mas sentem um pouquinho.
TECO J que insiste.
TOTOCA Foi muita gentileza da parte de vocs virem me acordar para
dizer que eu fico linda de papelotes.
TECO que sua beleza nos preocupal
MANDRIO Muito.
TOTOCA Verdade?
TECO Verdade. E a maior prova disso que, pensando que esse trabalho
que voc faz pode vir a prejudicar a sua beleza, resolvemos promov-la.
TOTOCA E que trabalho farei?
TECO Um que condiga com seu corao generoso e no desgaste a sua
beleza.
MANDRIO E logicamente lhe dar maiores rendimentos.
TOTOCA Isso no me preocupa muito. Trabalho apenas por gosto. Mas
que terei que fazer?
MANDRIO O que eu mandar.
TOTOCA Em especfico?
TECO Como voc pode constatar, vivemos numa poca de crise. Ningum
d esmolas e, muito a contragosto, nos vemos forados a elevar certar
taxas, criar outras novas e diminuir o tempo de lazer. Tudo, claro, para o
bem da comunidade. O Pop, porm, talvez no compreenda a necessidade
de tais medidas. Talvez ele no possa comer todos os dias. Esse simples
fato pode dar a ele uma sensao de misria. E pessoas com essa sensao
precisam de certa assistncia, seno se revoltam.
TOTOCA E vou ter que ajud-lo a se conformar?
MANDRIO Isso mesmo.
TECO para o bem dele. Se ele se revolta, no ganhar as graas de
Orongon e ns vamos lamentar muito.
MANDRIO E ter que usar violncia.
TECO O que contra todos os nossos princpios.
TOTOCA E quanto ao Manduca?
MANDRIO Ser despedido. No nos serve mais.
TECO Ele ir trabalhar com o Pilico. Ele ofereceu emprego a vocs, no
foi?
TOTOCA Foi.
TECO Ento o Manduca no ficar desamparado nessa hora. Graas a
Orongon. Fico tranquilo. Me preocupava com a sorte desse moo. S se o
Pilico for muito sem carter que no lhe dar emprego.
MANDRIO Aceita, Totoca?

19

TECO Orongon inspire sua deciso.


MANDRIO Voc vai ganhar mais.
TECO E trabalhar menos.
MANDRIO Ter tempo para se divertir.
TECO Para rezar... para cuidar da sua beleza...
(PAUSA)
TOTOCA Aceito.
TECO Orongon seja louvado!
MANDRIO Est empregada.
TECO Quanto campanha que voc iniciava amanh para tratar da
comida...
TOTOCA Agora j compreendi a realidade da situao. No vejo mais
razo para essa campanha.
MANDRIO timo!
TECO Orongon seja louvado!
(TOTOCA DEITA-SE E DORME. OS DOIS APROXIMAM-SE DE POP.
MANDRIO VAI LHE DANDO PONTAPS.)
TECO Acorda, Pop!
MANDRIO (DANDO PONTAPS) Acorda, vagabundo!
TECO Viemos lhe falar em nome de Orongon.
POP Orongon seja louvado!
TECO Estamos muito zangados com voc.
POP Mas eu no fiz nada.
MANDRIO Voc escutou, Teco? No fez nada.
TECO Pop, voc est cheio de pecado.
POP Cruz credo!
MANDRIO E eu no quero que pecadores trabalhem para mim.
POP Mas o que eu fiz?
MANDRIO No sabe?
POP No.
MANDRIO o cmulo! No sabe!
TECO Maldita ignorncia.!
MANDRIO Seu trabalho rendeu pouco.
POP No foi culpa minha.
TECO No fez o jejum que eu recomendei.
POP Eu estava com fome.
MANDRIO Negligenciou no servio.
TECO Ofendeu Orongon.
POP Orongon me pedoe!
MANDRIO Acompanhou o Manduca em sua revolta.
TECO Seguiu os demnios.
POP Ai, Orongon meu!
MANDRIO Agora pagar pelos seus erros.
TECO Quem semeia ventos colhe tempestade.

20

MANDRIO Mais vale dois marimbondos voando do que um na mo.


POP Que vai me acontecer?
MANDRIO Ser despedido.
TECO Orongon o abandonar.
POP (COMEA A REZAR) Orongon lulubabaluba...
MANDRIO No vai mais ter o que comer. (RI SARCSTICO.)
TECO Orongon no o ouvir.
MANDRIO Est feita a justia.
TECO O pecador ser castigado.
POP Que vou fazer?
TECO Sei l!
MANDRIO Dane-se!
(PAUSA)
POP (REZA DESESPERADO) Orongon lulubabaluba...
MANDRIO Anda logo com isso! Esse imbecil j me encheu a pacincia.
TECO Silncio, pecador! (POP ASSUSTA-SE.) Orongon, em sua infinita
bondade, escutou suas preces. D graas a Orongon.
POP Graas a Orongon!
TECO Orongon ordena saber de voc, pecador, se seu arrependimento
sincero.
POP Pode dizer a Orongon que , sim. Eu estou arrependido de verdade.
TECO Jura?
POP Juro.
TECO Voc jura que nunca mais se revolta contra minhas ordens?
POP Juro.
TECO Jura que nunca mais escuta o Manduca?
POP Juro! Juro! Juro!
MANDRIO Nem o Pilico?
POP Juro! Juro! Juro!
TECO E que s obedece a mim?
MANDRIO E a mim!
POP Juro! Juro! Juro! Juro!
MANDRIO timo.
TECO Est perdoado em nome de Orongon.
POP Eu vou ganhar as graas de Orongon?
TECO Se no quebrar o juramento, vai.
POP E se o Manduca falar comigo?
MANDRIO Voc no escuta, e pronto!
POP E se eu escutar?
MANDRIO Eu no deixo voc trabalhar com o meu chapu.
TECO E eu no rezo pela sua alma.
POP Se ele falar comigo, eu no escuto, e pronto!
MANDRIO Assim voc vai bem.
TECO Com a graa de Orongon.

21

POP Com a graa de Orongon!


(TECO E MANDRIO AFASTAM-SE. POP BENZE-SE E COMEA A REZAR.
NO MEIO DA ORAO, DORME.)
TECO Est tudo indo bem.
MANDRIO Acho bom que v assim at o fim.
TECO Com a graa de Orongon, ir.
MANDRIO Vamos ao Manduca.
(TECO E MANDRIO APROXIMAM-SE DE MANDUCA, QUE DORME.)
TECO Acorda, Manduca!
MANDUCA (ACORDANDO, ASSUSTADO) Que ?
MANDRIO Boa noite.
MANDUCA So vocs?
TECO Como v.
MANDUCA Pensei que fosse pesadelo.
MANDRIO Precisamos falhar-lhe.
MANDUCA Por que no esperaram eu acordar?
MANDRIO Porque eu no quis. E da?
MANDUCA Bem, falem logo o que querem e caiam fora.
MANDRIO Viemos te avisar que voc no trabalha mais com o meu
chapu.
TECO Que Orongon se apiade de ti.
MANDUCA E o diabo te carregue!
TECO Cruz credo!
MANDUCA J falaram o que tinham para falar?
MANDRIO Que pensa fazer?
MANDUCA No da sua conta.
TECO Claro que ficamos preocupados com sua sorte.
MANDUCA No perca o sono com essa preocupao.
MANDRIO No vai trabalhar com o Pilico? (RI.)
TECO Ele convidou, no foi? (RI.)
MANDUCA Vocs vero o que farei.
MANDRIO Vai ser divertido.
MANDUCA Agora sumam.
(TECO E MANDRIO VO SAINDO.)
MANDUCA Teco! Teco!
TECO Que voc quer?
MANDUCA Antes que me esquea...
TECO Que ?
MANDUCA Voc sabe remar?
TECO Sei. Por qu?
MANDUCA Ento v merda de barquinho!
TECO Cruz credo!
(MANDUCA RI. TECO E MANDRIO AFASTAM-SE.)

22

TECO Tomaremos as 36 pastilhas de Nembutal e dormiremos sem


lembrar os esgotos de Varsvia.
MANDRIO Teco, depois que conheci Freud, mame ficou tima.
TECO E por falar em bomba atmica, bum pra voc!
MANDRIO James Bond no mais aquele. Palmadinhas nos zerinhos
dele.
TECO uma brasa, mora!
(TECO E MANDRIO VO DORMIR. MANDUCA OBSERVA PARA VER SE
TODOS DORMEM E, P ANTE P, APROXIMA-SE DE POP E TOTOCA.
MANDUCA ACORDA-OS.)
POP Puxa, outra vez! (V MANDUCA, FICA ASSUSTADO.)
MANDUCA Preciso lhe falar.
POP Louvado seja Orongon!
MANDUCA Fique quieto, seu imbecil!
POP No posso te escutar. Eu jurei. (TAPA OS OUVIDOS.)
MANDUCA Isso no hora de brincar.
POP No estou brincando.
MANDUCA Presta ateno, seu cretino.
POP No escuto nada do que voc diz.
MANDUCA Voc ficou louco? Tire a mo da orelha e presta ateno.
(MANDUCA TIRA A MO DE POP DA ORELHA.)
POP No faa isso! Orongon lulubabaluba...
MANDUCA Escuta, Pop. Pra com essas malditas oraes!
POP Cruz credo! Eu escutei. (TAPA OS OUVIDOS DE NOVO.)
MANDUCA Pop, por que voc no quer me ouvir?
POP (DESTAPANDO UM POUCO A ORELHA PARA ESCUTAR) Porque voc
um possudo dos demnios.
MANDUCA Quem falou essa besteira?
POP O Teco e o Mandrio. Se eu escutar, perco as graas de Orongon e
no como nunca mais.
MANDUCA Isso mentira, seu bobo.
TOTOCA (ACORDANDO) O que isso? Pop, acordado a essa hora, meu
rapaz? Se voc no dorme direito de noite, como poder produzir amanh
no trabalho?
POP Foi o Manduca que me acordou. Eu no tive culpa.
TOTOCA Que coisa lastimvel, Manduca! Seu procedimento me choca. Por
favor, no perturbe o Pop.
MANDUCA Que h com vocs? Ficaram loucos? Eu os acordei porque
aconteceu uma coisa muito sria. Deixem de brincadeira e prestem
ateno.
TOTOCA Que foi que aconteceu?
MANDUCA O Mandrio me despediu.
TOTOCA E por isso voc acordou o Pop?
MANDUCA Claro! A situao grave.

23

TOTOCA No cho. E isso no motivo para voc acordar o Pop. Lembrese que ele precisa descansar bem, para poder trabalhar bem e no ser
despedido tambm.
POP isso mesmo.
MANDUCA Eu fui despedido. Voc no acha isso grave?
TOTOCA Eu, no.
MANDUCA Pois saiba que a nossa situao gravssima. Eles podem
tambm despedir vocs. Precisamos agir imediatamente. Vocs dois
recusem-se a trabalhar at que o Mandrio volte a me admitir no servio.
TOTOCA Quem no trabalha no come.
POP Tem razo. isso mesmo.
MANDUCA Compensa uns dias de jejum por uma bela vitria. Ns, unidos,
os venceremos com facilidade.
TOTOCA Manduca, no seja to egosta. Voc no h de querer que todos
fiquem sem comer por sua causa, no ? Veja, seu egosmo j est
roubando horas de sono do Pop.
POP isso mesmo.
MANDUCA Egosmo, uma ova! Se vocs me deixam sozinho, ns todos
nos estrepamos do primeiro ao quinto.
TOTOCA Voc est muito nervoso, Manduca. Precisa tomar um calmante.
V dormir e amanh voc estar melhor, e ver que tudo isso que voc
quer besteira. No justo voc querer arrastar o Pop e eu junto com
voc. V dormir. Nada to grave como parece.
MANDUCA Eu perco o emprego e isso no grave?
TOTOCA No .
POP No ?
TOTOCA Ele pode ir trabalhar com o Pilico.
POP Ah, ! Voc no vai passar fome.
MANDUCA Isso o nosso fim. Continuaremos escravos.
TOTOCA Durma, Pop. Amanh voc tem que trabalhar. Voc no quer
ter a mesma sorte que o Manduca, quer?
POP Coitadinho do Manduca.
TOTOCA . Ele vai para o inferno.
MANDUCA Pintado de verde e amarelo.
POP Coitado de voc.
MANDUCA Coitado de voc, Pop.
(MANDUCA VAI SE AFASTANDO. TOTOCA E POP VOLTAM A DORMIR.
MANDUCA SE DIRIGE AO PBLICO.)
MANDUCA Perdi essa batalha, porm a luta continua. O amadurecimento
das condies objetivas fatalmente chegar. A classe operria triunfar e
assumir o poder, quer queira, quer no a decadente burguesia. O
imperialismo norteamericano e seus tteres internos sero esmagados pela
dialtica irreversvel da Histria. Amm. (PAUSA) Bem, mas agora no h
outro jeito. Vou falar com o Pilico.

24

(MANDUCA APROXIMA-SE DO PILICO E O ACORDA.)


MANDUCA Desculpe acord-lo a essa hora.
PILICO Realmente uma hora imprpria. Eu estava no melhor do sono.
MANDUCA Mais uma vez desculpe.
PILICO Agora que eu j acordei, no adianta mais se desculpar.
MANDUCA verdade. Mas se procedi assim, porque tenho urgncia de
tratar um negcio com voc.
PILICO Que negcio poderemos ter a tratar?
MANDUCA Sobre aquele anncio que voc fez ontem sobre emprego.
PILICO . Aquilo foi ontem. Hoje mudei de idia.
MANDUCA No entendo.
PILICO Muito simples. Eu estava pensando em ampliar meu negcio.
Porm, analisei a situao e conclu que no era hora para isso. Talvez no
futuro. J, no. (BOCEJA.)
MANDUCA Quer dizer...
PILICO Que aquele anncio est sem efeito.
MANDUCA Mas eu estou sem emprego.
PILICO Problema seu. Alis, muito grave. Ser difcil conseguir colocao
nessa poca de crise.
MANDUCA Eu aceito qualquer condio de trabalho.
PILICO Lamento, mas no posso atend-lo.
MANDUCA Trabalho a troco de comida.
PILICO Talvez no futuro isso venha a me interessar.
MANDUCA Mas eu preciso j.
PILICO J, no posso. J lhe expliquei. Porm prometo-lhe que a primeira
oportunidade que tiver, me lembrarei de voc.
MANDUCA Que ser de mim?
PILICO No fao a menor idia. E agora, se me d licena, preciso dormir.
Boa noite. (DEITA-SE.)
MANDUCA Espere, Pilico. Eu ainda tenho uma proposta a lhe fazer.
realmente vantajosa...
(PILICO RONCA NA CARA DO MANDUCA. PAUSA. MANDUCA FICA
PENSATIVO POR UM MOMENTO. DEPOIS, SORRATEIRAMENTE, APROXIMASE DO CHAPU DE MANDRIO. CERTIFICA-SE QUE TODOS DORMEM. PEGA
UM CHAPU E VAI SE AFASTANDO CUIDADOSAMENTE. PILICO FICA DE P
E FECHA A SADA.)
PILICO Pega ladro!
(MANDUCA QUER FUGIR, MAS EST CERCADO POR TODOS OS LADOS.
MANDRIO APROXIMA-SE DE MANDUCA E ESSE ENTREGA O CHAPU.
MANDRIO AMARRA AS MOS DE MANDUCA E O JOGA NO CHO.)
MANDRIO Maldito ladro!
TECO Graas a Orongon foi preso.
PILICO Fiz bem em no confiar nele.
POP Xi... Ele vai perder as graas de Orongon.

25

TOTOCA Pobre homem, a sua revolta o perdeu.


MANDRIO Quando soube do roubo, quase tive um enfarte.
TECO Fiquei cansado.
POP E eu, com fome.
TOTOCA Tudo por culpa do ladro.
PILICO Precisamos fazer justia.
MANDRIO Ser feita.
(MANDRIO CANTA ATIREI O PAU NO GATO; TECO CANTA ALELUIA;
POP CANTA HINO DO ESTUDANTE. TOTOCA CANTA CHUVAS E
BNOS. PILICO CANTA A MARSELHESA; TODOS CANTAM JUNTOS
QUE TUDO V PARA O INFERNO.)
MANDRIO Ele ser morto para sempre.
PILICO Acho que basta amarr-lo por algum tempo.
MANDRIO No, no basta. No dia em que ele for desamarrado, volta a
ser uma ameaa.
TECO Sendo assim, despacha logo o criminoso para o inferno. L ele
receber seu castigo. Os pecadores devem ser punidos com energia para
servirem de exemplo.
PILICO Acho que basta amarr-lo, j disse. Uns tempos sem comer faro
com que ele crie juzo. Depois pode voltar a ser aproveitado. Eu mesmo
posso lhe dar uma chance no futuro.
MANDRIO Como dizia o grande filsofo Al Capone, os fantasmas no
enchem o saco.
TECO Bem lembrado.
MANDRIO Partindo desse princpio, quero a pena mxima
TECO Temos homens que zelam pela sociedade, graas a Orongon!
PILICO O crime dele no foi to grave assim.
POP , no foi.
TODOS No foi?
POP Foi ele quem disse.
PILICO Ele s roubou um chapu.
TECO E isso no grave?
MANDRIO Porque no foi o chapu dele que esse co roubou.
POP Para quem tem muitos chapus, no to grave perder um.
TOTOCA Pop, no se mete a ter idias!
MANDRIO (PARA POP) Cretino! Ingrato!
TECO Pop, se voc falar mais, vai para o inferno!
PILICO O Pop tem razo.
TECO Orongon o perdoe pela blasfmia.
MANDRIO Espero que o Pilico no crie caso.
PILICO Jamais tive essa idia.
MANDRIO timo!
TECO Graas a Orongon!

26

MANDRIO Daremos a pena mxima.


PILICO No, daremos a mnima.
MANDRIO Voc est procurando encrenca.
TECO Restrinja-se aos seus problemas. Voc nada tinha a ver com o
chapu roubado.
PILICO No quero ver esse homem morto. No permito.
POP Muito bem!
TOTOCA No se meta, Pop. Olha que pode acontecer com voc a
mesma coisa que vai acontecer com o Manduca.
TECO Orongon terrvel! Uuuuuu.....
PILICO Voc est certo, Pop.
MANDRIO Voc est errado, Pop.
TOTOCA Seja bom, Pop.
MANDRIO Se no for, eu tomo o seu chapu.
TECO E eu no rezo por voc.
MANDRIO E voc vai passar fome.
TECO E ficar nas profundezas.
PILICO Tudo besteira, Pop.
TOTOCA No escute!
TECO Olha Orongon...
MANDRIO Olha a fome!
TECO O demnio tem mil formas.
MANDRIO A fome tem mil caretas.
PILICO Venha trabalhar comigo.
MANDRIO Ele s tem um chapu.
PILICO Trabalharei de manh, voc de tarde.
TECO Ele te perde!
MANDRIO Ele mente!
PILICO Eles te escravizam!
TECO Ele te arrasta para a perdio1
MANDRIO Reflita, Pop!
TECO Orongon te inspire!
PILICO Resolva como quiser.
(OS TRS AFASTAM-SE DE POP PARA QUE ELE PENSE.)
MANDRIO No falei que o Pilico ia ser problema?
TECO Precisamos acabar com ele.
MANDRIO Invente alguma coisa infalvel.
TECO Cacetete!
MANDRIO Mais forte.
TECO Metralhadora!
MANDRIO Mais forte.
TECO Canho!
MANDRIO Mais forte.
TECO Bomba atmica!

27

MANDRIO Mais forte.


TECO Mulheres marchadeiras!
MANDRIO Bravo! Muito bem!
(TOTOCA APARECE COM TAMBOR.)
TOTOCA Plam, rataplam, plam, plam, plam, rataplam, plam! Silncio!
Escutem todos! O demnio est nas ruas. Para destru-lo, precisamos
escutar a palavra de Orongon.
(TODOS, MENOS PILICO, APLAUDEM, GRITAM BRAVO.)
TOTOCA Fale o porta-voz de Orongon.
TECO Orongon, que est nas alturas, ordena-me a falar aos homens de
boa vontade. E tambm aos pecadores.
(PILICO VAIA. TODOS APLAUDEM.)
TECO O diabo est solto. Ele anda por a fazendo promessas absurdas.
facil reconhec-lo. Esse demnio, disfarado de homem, faz a ganncia
crescer no corao de fracas criaturas e, atravs dessas artimanhas, as
destri. Foi assim com o Manduca. Fez com que esse infeliz se revoltasse
contra o bom Mandrio. E, depois de oferecer auxlio, negou-se a ajud-lo,
levando-o ao desespero e ao roubo. Agora a perdio espera nosso exirmo Manduca. Por culpa de quem? Quem o perdeu?
PILICO tudo mentira, Pop.
POP Sai pra l, demo!
MANDRIO Boa, Pop!
PILICO Peo a palavra.
TECO Fala.
(MANDRIO, TOTOCA E POP INICIAM UMA VAIA E A TOCAR TAMBOR,
IMPEDINDO PILICO DE FALAR. TECO RETOMA A PALAVRA. SILNCIO
ABSOLUTO.)
TECO Democraticamente demos a palavra ao demo, porm ele nada tinha
a dizer. Ningum o escutou. Viva Orongon!
TODOS Viva! Viva!
MANDRIO Ficou provado que voc to culpado quanto o ladro. Por
isso voc o defende. S por isso.
TECO Pena que no existe uma lei que possa punir essa gente que lana a
discrdia.
MANDRIO Podamos confiscar-lhe os bens.
PILICO Que lei protegeria esse crime?
MANDRIO A lei, ora a lei! (RI.)
PILICO E o nosso acordo?
MANDRIO Desfeito.
TECO S fazemos acordo com Orongon.
PILICO Isso traio!
MANDRIO Traio o que voc fez com o Manduca.
TECO Apunhalou o infeliz pelas costas. Calabar!
PILICO Quero julgamento para o ladro.

28

MANDRIO Ele o ter. Julgamento justo.


TECO Com a graa de Orongon.
PILICO Quando ser?
MANDRIO Quando for.
TECO Agora vamos repousar.
PILICO Canalha!
MANDRIO a me!
TECO Com licena.
MANDRIO Pop, voc fica de guarda ao ladro. Se ele fugir, sua cabea
vai rolar.
(TODOS DORMEM. POP MONTA GUARDA AO MANDUCA.)
MANDUCA Oi, Pop.
POP Que ?
MANDUCA Me solta.
POP Voc est louco?
MANDUCA Eles querem me matar.
POP . Foi o que o Mandrio falou.
MANDUCA Ento me solta.
POP No posso.
MANDUCA Voc quer que eu morra?
POP Eu, no! Mas, se eu te soltar, voc vai fugir.
MANDUCA Claro!
POP Pois . Da ele me cortam a cabea.
MANDUCA Olhe, se voc me soltar, ns matamos o Teco e o Mandrio e
ficamos com os chapus.
POP No, no! Matar crime. Quem mata vai para o inferno.
MANDUCA Mas eles querem me matar.
POP Porque voc roubou.
MANDUCA Eles tambm roubaram nossa liberdade.
POP A minha, no!
MANDUCA Claro que a sua tambm. Voc escravo deles.
POP Eu, no!
MANDUCA , sim. Com que chapu voc pede esmola?
POP Com o do Mandrio, claro.
MANDUCA E o que voc ganha? Nada. Voc trabalha de graa.
POP De graa, no. Ele me d 10% do lucro.
MANDUCA Que lucro, animal? Tudo lucro na profisso de pedir.
POP E o emprego de capital?
MANDUCA Que capital?
POP O chapu. Por isso ele tira a taxa de conservao do chapu todos
os dias. O que sobra o lucro.
MANDUCA E o que voc faz com a sua parte?

29

POP O Mandrio desconta a taxa para Orongon, que para o Teco rezar
por mim. E com o resto eu compro comida. Mas d para comprar to
pouquinho...
MANDUCA E quem vende a comida?
POP O Mandrio.
MANDUCA Da, todo o dinheiro fica com ele.
POP mesmo.
MANDUCA Ele fica cada vez mais rico e voc fica cada vez mais pobre.
POP mesmo. Mas o que ele faz com o dinheiro?
MANDUCA Bem, ele compra comida, roupa, sapato, charuto...
POP Gente...
MANDUCA Pop, no se meta a ter idias. Voc precisa s dizer o que
est no texto.
POP T bom. O que voc quer que eu faa?
MANDUCA Me solta.
POP No posso. Vou trabalhar com o Pilico.
MANDUCA Que lucro voc vai ter l? Nenhum.
POP Como nenhum? Eu vou trabalhar com o chapu dele sem pagar
nada. Ele falou.
MANDUCA Ele no disse isso. Ele disse que voc trabalhava de manh e
ele, de tarde.
POP Pois ento. Ele no falou em taxa.
MANDUCA Oh, idiota! Ele entra com o chapu, voc, com o trabalho, e
vo ganhar igual?
POP Vamos.
MANDUCA No, no, no! Ele vai te fazer scio nessa base: o que voc
ganhar com o seu trabalho, vai dar pra ele at pagar a metado do chapu.
Ele vai te vender comida a prazo, porque voc no vai poder comprar
vista. Logo, voc vai passar a vida toda com dvida para com ele. E quem
deve escravo.
POP Mas um dia eu serei proprietrio do meu chapu.
MANDUCA Nunca. Voc no conseguir pag-lo nunca. Se voc trabalhar
mais, ele aumentar as taxas.
POP Ser?
MANDUCA . Que ganho mentindo?
POP Acho que nada.
MANDUCA Ento me solta.
POP No sei se devo.
MANDUCA Claro que deve. a nica forma de deixar de ser escravo
deles.
POP Eu no sou escravo.
MANDUCA , sim, Pop! Voc no trabalha com o chapu deles?
POP Trabalho, sim.
MANDUCA Voc no acredita no Deus deles?

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POP Acredito, sim.


MANDUCA Ento voc escravo deles.
POP Eu no sou escravo!
MANDUCA , sim, Pop! Voc tem fome?
POP Se eu tenho fome?
MANDUCA , Pop. Voc tem fome?
POP Tenho.
MANDUCA E voc come sempre que voc tem fome?
POP No, s s vezes.
MANDUCA E s s vezes que voc tem fome?
POP No, toda hora.
MANDUCA E por que voc no come toda hora?
POP Porque eles no deixam.
MANDUCA Ento voc escravo deles.
POP Eu no sou escravo!
MANDUCA , Pop.... Me solta!
POP Bem... eu...
MANDRIO - Pop!
POP Que foi?
MANDRIO O ladro fugiu?
POP No! No!
MANDRIO timo! Acorde o Teco e a Totoca. Vamos julgar e matar o
ladro.
POP Acorde, Teco! Acorde! O Mandrio quer julgar e matar o ladro.
TECO Ah, sim. Mas precisamos rezar primeiro.
MANDRIO Para qu?
TECO Para que Orongon nos inspire no julgamento do ladro.
MANDRIO Eu acho bobagem, porque ele vai ser morto de qualquer jeito.
Mas, se voc quer rezar, reze.
TECO - Obrigado. Ajoelhem-se. (TODOS AJOELHAM-SE. TECO FAZ GESTOS
COM A MO.) Fiquem de p. (TODOS OBEDECEM. TECO FAZ GESTOS DE
PADRE.) Ajoelhem-se de novo. (OBEDECEM. TECO FAZ NOVOS GESTOS.)
Pronto. Podemos julg-lo em nome de Orongon.
PILICO Ou mat-lo em nome de Orongon!
TECO Pronto, o desmancha-prazeres acordou.
MANDRIO V se no d palpite!
TOTOCA O ladro est dormindo!
MANDRIO Ento no precisa de julgamento. Vamos mat-lo.
TECO Deixa eu benz-lo.
MANDRIO Ele est dormindo. No vai saber se foi benzido ou no.
TECO mesmo.
PILICO (ACORDANDO MANDUCA) Ei, acorda!
MANDUCA Que querem?
TOTOCA O ladro acordou.

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PILICO Agora tero que fazer julgamento.


MANDRIO Aumentou nosso servio.
TECO Ele sempre complica tudo.
MANDRIO Bem, vamos ao julgamento. Eu serei o promotor, o Teco, o
juiz, Pop, o advogado de defesa e a Totoca, o jri.
PILICO E eu?
MANDRIO Voc no pode nem assistir.
PILICO Por que no?
MANDRIO Voc no tinha nada com o chapu roubado.
PILICO Vou ser o advogado de defesa.
MANDRIO J o Pop.
PILICO Quem escolhe o ru. Manduca, quer que eu te defenda? Eu te
solto. Voc vem ser meu scio. Trabalharemos com o mesmo chapu. Diz
que sim, anda!
MANDUCA Nunca!
PILICO Eles te matam!
MANDUCA Dane-se!
PILICO A morte o fim!
MANDUCA V merda!
PILICO Eu te liberto, te livro deles para sempre!
MANDUCA (DANDO UMA BANANA PARA PILICO) pra voc!
MANDRIO Chega! Audincia encerrada.
PILICO Tem muita bolinha na cuca.
MANDRIO O Pop ser o advogado de defesa. O ru deixou correr o caso
revelia. Quem nomeia o advogado dele sou eu. S para ele no dizer que
no teve quem o defendesse.
TECO Tem incio a sesso. Fale o promotor.
MANDRIO Antes de comear, quero avisar que, se voc, Pop,
apresentar algum argumento em favor do ladro, eu lhe tomo o chapu.
TECO E eu no rezo por voc.
MANDRIO Voc, Totoca, ter que consider-lo culpado. E voc, Teco, j
sabe que tem que dar a pena mxima. Esto de acordo?
TODOS De acordo.
MANDRIO Este ladro trabalhava na profisso de pedir com um chapu
de minha propriedade. E abusou da minha confiana, tentando roubar o
chapu. Felizmente foi preso e agora, de acordo com a lei, vai ser morto,
porque eu no confio mais nele. E quando eu no confio mais numa pessoa,
ela no mais tem serventia, e justo que morra.
TECO Justo porque no tem f em Orongon. Tem a palavra o advogado de
defesa.
(POP VAI FALAR.)
MANDRIO Se falar, tomo o seu chapu!
(POP RECUA.)
MANDUCA Fale, Pop, voc sabe que sou inocente.

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(POP VAI FALAR.)


TECO Se falar, no rezo por voc.
(POP RECUA.)
MANDUCA Vamos, Pop! Se voc se omite, serei morto.
(POP VAI FALAR.)
TOTOCA Pop, no arrume encrenca para voc.
(POP RECUA.)
MANDRIO Vamos adiante.
TECO Jri, fale!
TOTOCA Culpado.
TECO Ateno para a sentena. (PAUSA) Quem rouba ladro e no
merece confiana. E quem no merece confiana deve morrer para sossego
do prximo. Em nome de Orongon, eu o condeno morte.
(SILNCIO)
MANDRIO Meus parabns! Foi uma sentena inspirada por Orongon!
TECO Ora, ora... Com tal promotor, todos os rus so condenados.
PILICO No devemos esquecer que o Pop esteve brilhante na defesa.
(MANDRIO E TECO PIGARREIAM.)
MANDRIO Bem, agora preciso mat-lo.
TECO Ento vamos!
(TODOS COMEAM A MALHAR MANDUCA. NVENS DE SERRAGEM.)
MANDUCA (ANTES DE CAIR) Est bem. Vocs ganharam esta batalha.
Podem me matar. Mas a idia de que cada um deve ter seu chapu vocs
no conseguiro sufocar nunca. (ACABA DE FALAR E MORRE.)
(POP FICA EM POSE CLSSICA DE PENSADOR POR ALGUNS INSTANTES.
DEPOIS, LEVANTA-SE, RECOLHE OS CHAPUS E ATIRA-OS PARA O
PBLICO. TODOS O CERCAM AMEAADORAMENTE.)
POP (PARA TECO) E agora?
(TECO OLHA AMEAADORAMENTE. POP COMEA A RIR, AT GARGALHAR,
E TODOS, RINDO E GARGALHANDO, CONTORCENDO-SE DE RISO, ESPERAM
O PANO CAIR.)

fim

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