A Maldição Do Vale Negro - Caio F Abreu
A Maldição Do Vale Negro - Caio F Abreu
A Maldição Do Vale Negro - Caio F Abreu
Peça em 1 Ato
Caio Fernando Abreu
em colaboração com Luiz Arthur Nunes
PERSONAGENS
● NARRADOR
● AGHATA, uma velha governanta
● CONDE MAURÍCIO DE BELMONT, um velho nobre, muito doente
● ROSALINDA, uma donzela de 19 anos
● MARQUES RAFAEL D'ALENÇON, um jovem mancebo.
● CONDESSA URSULA DE BELMONT, irmã do conde e louca
● JEZEBEL, uma cigana
● VASSILI, um cigano cego
AGATHA — Uma... duas... três... quatro... cinco… seis... sete... Acho que é o
suficiente por hoje. (Observa Maurício.) Talvez mais uma ou duas…(pinga mais) ou
três.
AGATHA — Estava justamente a prepará-la para vós, senhor conde. Aqui está
(serve-lhe).
AGATHA — Não vos preocupeis demasiado, senhor conde. Deus, na sua infinita
bondade de misericórdia, saberá por certo apiedar-se de vossa desdita. Vamos,
deveis beber a tisana toda. Mais um gole… Assim.
AGATHA — Ainda não a vi hoje, senhor. Deve andar pelos bosques colhendo
frutos e flores silvestres, como é de seu feitio.
AGATHA — A chuva parou já faz mais de hora. Temos sol de novo. O senhor
conde quer que eu descerre os reposteiros?
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AGATHA — Tranqüilizai-vos, senhor. Ela jamais saberá.
CENA 2 - O Presságio
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AGATHA (Lúgubre.) — A cascata costuma parar quando algo terrível está para
acontecer. Esta é a maldição do Vale Negro.
MAURÍCIO — Cala-te, Agatha. Não atemorize nossa linda pequena. (à Rosalinda.)
Não te assuste, minha rósea tulipa. É apenas um fenômeno natural, inexplicável
pela ciência dos homens. (Ouvem-se latidos.) E quanto aos gritos...
RAFAEL — Folgo em sabê-lo. Para não incorrer no erro de vir visitar-vos à noite.
O que dificilmente aconteceria. (Olhando de soslaio a Rosalinda.) A não ser que...
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RAFAEL (Estremecendo.) — Brrrrrrr! Que conversa desagradável!
ROSALINDA (De olhos baixos.) — Vós ordenais, meu padrinho. A mim cabe
obedecer. Com vossa licença, senhor marquês. (Sai com Agatha.)
CENA 4 - A Hipoteca
RAFAEL — Não desejo roubar vosso precioso tempo, estimado conde. Outrossim,
quero crer que já não vos resta muito. Devo confessar que pareceres já um cadáver.
E em adiantado estado de putrefação.
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MAURÍCIO (Examinando os papéis.) — Tendes razão. Oh, senhor! Inesgotável
é a taça de infortúnios que me fazeis sorver neste vale de lágrimas!
RAFAEL — Sois injusto com o bom Deus, senhor conde. Ao fim e ao cabo, sois
vós o único responsável por vossas próprias desditas.
RAFAEL (Implacável.) — Não, não basta! Já fui assaz insultado por vós, e não
vou perder a oportunidade de vos dar o merecido troco! Não, senhor conde, não
podeis negar que estais colhendo hoje o amargo fruto de vossa desenfreada paixão
pelo jogo!
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RAFAEL — Ah, vejo que vossa memória começa a reavivar-se. Sim, foi numa
“noute nefasta”, como dizeis, há mais de dez anos que, sentado a uma mesa de
truco, com meu pai, após já haver perdido vultosíssima quantia e já embotado pelos
vapores etílicos...
RAFAEL — Se vós tivésseis uma mente... Digamos... Mais atilada, poderíeis fazer
bem mais do que imaginais em vosso próprio benefício.
MAURÍCIO — Falai logo, canalha! O que mais ainda quereis deste lamentável
destroço humano?
RAFAEL (Direto.) — Não sou homem de meias palavras. Quero vossa afilhada.
MAURÍCIO (Tomado de cólera.) — Como vos atreveis? Ficai sabendo que não
sois digno de lamber o chão onde roça a fímbria da saia de Rosalinda. (Tossindo
violentamente.) O mais ignóbil dos répteis é mais nobre do que vós. Cederia a mão
de Rosalinda ao mais imundo dos mineiros do Vale Negro, jamais a vós. Mil vezes a
mais terrível miséria!
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ROSALINDA (Entrando com Agatha.) — Senhor, que tendes?
CENA 5 - O Acordo
ROSALINDA — Mas então por que está ele neste deplorável estado?
RAFAEL — A vida desregrada que levou, minha flor das montanhas, os ágapes
desenfreados, os muitos crimes que cometeu o corroem por dentro.
ROSALINDA — Crimes? De que falais? Meu padrinho nunca cometeu crime algum.
RAFAEL - Como não? Então não sabeis que hipotecou todas as suas propriedades
à casa d'Allençon?
RAFAEL — Crime é deixar ao desabrigo uma donzela como vós. A hipoteca vence
justamente hoje.
RAFAEL (Interrompendo.) — Que não tendes mais teto que vos abrigue, menina.
Nem vós, nem vosso padrinho, nem a bruxa governanta, nem aqueles cães
demoníacos.
ROSALINDA — Mas não podeis cometer essa vileza. O senhor conde está
gravemente enfermo. Sua morte é questão de meses, como pudeste observar. Oh,
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senhor marquês, apiedai-vos de nossa desgraça! Que tendes vós em lugar de
coração? Uma taça de veneno?
ROSALINDA — De mim? Sabei que tudo faria para amenizar as derradeiras horas
de meu benfeitor.
CENA 6 - O Embate
NARRADOR — Alguns meses depois daquele dia em que Rosalinda levou a cabo
o seu gesto de desprendimento e afeto filial, a situação modificou-se sensivelmente
no castelo dos Belmont. O marquês d’Allençon, desistindo de protestar os títulos da
hipoteca, a ameaça da ruína deixara de pender sobre a família. A atitude do
marquês, aliás, sofrera uma profunda transformação. Seu habitual cinismo e
arrogância, como num passe de mágica, cederam lugar a uma solicitude. Rafael
passou a visitar mais amiúde o castelo e, inclusive, participava das tertúlias e saraus
familiares. Freqüentemente, ele e Rosalinda passavam as calorosas tardes estivais
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a percorrer os bosques e pradarias. Voltavam ao pôr do sol, carregando braçadas
de antúrios, gerânios, crisântemos, hortênsias, magnólias, petúnias, begônias e
miosótis. Entrementes, fatos mui estranhos continuavam a ocorrer nos sombrios
aposentos da mansão dos Belmont. Em semi obscuridade, o Conde Maurício está
dormindo, recostado no sofá quando entra Úrsula. Roupas rasgadas, desgrenhada,
inteiramente louca. Traz uma boneca nos braços.
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MAURÍCIO (Despertando, estonteado.) — Rosalinda, Rosalinda, que aconteceu,
minha cornucópia de água-régia?
ÚRSULA — Sim, assassino! Apesar dos pés quebrados, a corça ainda pode fugir.
ÚRSULA — Tarde demais, corrupto! Como a ave peregrina que mais dia, menos
dia, torna ao ninho — a justiça sempre chega.
Por
ÚRSULA (Encolhe-se, a boneca cai ao chão, ela tenta inutilmente apanhar.) —
piedade, não! Minha filhinha! Mata-me, se quiseres. Mas por tudo que há de mais
sagrado, peço-te: poupa o mais puro fruto de meu ventre!
AGATHA - Besta imunda! (Vai chicoteando Úrsula para fora da sala.) Retira-te para
teu infecto covil! Foste feita para o aconchego dos ratos, das lacraias e dos
escorpiões — não para o convívio dos seres humanos. (Para Maurício, antes de
sair.) Serenai-vos, senhor Conde. O velho Bonifácio saberá tratar desta lepra em
forma de gente. (Vai saindo, chicoteando Úrsula. Os cães latem furiosamente lá
fora. Grande alarido. Depois, volta o silêncio. A boneca ficou caída ao chão, aos pés
de Maurício.)
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joga-a longe.) Agatha, Agatha! Tira este aborto daqui! Socorre-me que morro... (O
Conde Maurício soluça, arquejante. Foco em Maurício e na boneca calva. A luz vai
diminuindo em resistência, enquanto ele geme. Em off sobrepondo-se aos gemidos,
vão crescendo a gargalhada de Agatha, os uivos de Úrsula e os latidos dos cães
enfurecidos.)
CENA 7 - A Rejeição
ROSALINDA — E então o que? Não te entendo. O que se passa contigo? Por que
chegas assim, tão agastado, sem uma saudação sequer… nem ao menos um
ósculo... Um amplexo?
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ROSALINDA (Ressentida.) — Amor meu, que duras palavras! Tu, que sempre me
demonstraste tanto carinho, tanta afeição, tanto… ardor...
ROSALINDA — Mas eu não! Eu continuo sendo tua escrava fiel e obediente! Sabes
bem que meu antigo asco por ti transmutou-se na mais excelsa paixão!
ROSALINDA — Peço-te perdão, meu querido amigo. Foi quiçá por excesso de
pundonor que não fiz mais cristalinas as minhas palavras. Mas como transmitir à fria
brancura impassível do papel o turbilhão que me devasta o peito, desde que fui
abençoada por este milagre... Este augusto milagre...
RAFAEL (Cortando-a, possesso, e sacudindo-a pelos braços.) — Alegria?
Alegria?!!!
ROSALINDA — Sim, amado. Agora só nos resta finalmente desvelar aos olhos do
mundo a nossa união, realizar o nosso sonho dourado... Ah, meu príncipe, toda
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noite, em meu leito, contemplo-me, núbil, galgando ao lado teu o mármore dos
degraus do altar...
RAFAEL — Isso! Reza, reza, pois vais precisar muito da misericórdia divina. Porque
de mim, minha cara, não tens mais nada a esperar. Apaga meu nome de tua
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memória! Esquece para sempre que eu existo! Nunca mais, ouviste bem? Nunca
mais pretendo voltar a ver-te!
ROSALINDA (Reagindo como uma loba ferida.) — Rafael, Rafael, não tens o
direito de fazer isso comigo! É cruel, é monstruoso demais! O que será de minha
honra ultrajada?
CENA 8 - O Abandono
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Deste modo, a pérfida serviçal terminou descobrindo o segredo que torturava o
coração de Rosalinda. Insidiosamente, conseguiu conquistar a confiança da
rapariga, dizendo-se sua amiga e protetora. Finalmente, quando Rosalinda não
podia mais esconder o seu estado, a perversa Agatha aconselhou que revelasse
toda a verdade ao conde.
MAURÍCIO — Bons dias, minha querida. (Observando-a.) Mas por que estás
assim, cabisbaixa e meditabunda? Pareces infeliz... Teu semblante, onde
sempre luziam os arrebóis da alegria, agora está turvo de uma névoa de
tristeza...
ROSALINDA — Padrinho...
MAURÍCIO — Que flor tão rara é essa, que floresce em tempo de inverno?
Onde está ela?
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ROSALINDA — Está bem, padrinho. Sei que haveis de compreender e perdoar- me.
ou ter um filho.
(Pausa.) V
ROSALINDA — Foi para salvar vossos bens que cometi essa iniqüidade, padrinho.
MAURÍCIO — Não me chames mais de padrinho, não tens esse direito! E retira-te
imediatamente daqui! Não pertences mais a este lar. Não passas de uma reles
meretriz, como o foi tua mãe. (Agatha vai conduzindo-o para fora.) Hás de pagar
amargamente, criatura ingrata e sem pudor! O demônio tomou conta de tua alma.
Hás de rolar na lama e te arrastar no vício, noite após noite, ébria e solitária, à
margem de qualquer dignidade, clamando inutilmente por misericórdia!
CENA 9 - A Despedida
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será desta pobre órfã com um filho a germinar-lhe no seio? Abandonada por todos,
por todos desprezada. Jamais pensei que minh’alma pudesse abrigar tamanha dor!
O fel da desilusão inunda-me o peito! (Recobrando-se.) Tenho de ir-me. (Olhando
ao redor.) Jamais olvidarei estes salões, estas paredes, estes móveis... Aqui passei
os melhores anos de minha desditosa existência. (Detendo-se diante de um objeto,
comovida.) Ah, o velho cofre de charão… Nunca me foi permitido abri-lo. Deve
conter antigos segredos de família. Mas, que vejo? Alguém haverá esquecido a
chave na fechadura... Sei que não devo abri-lo mas a curiosidade me espicaça...
elhos papéis... e... oh! Um
Sinto os dedos a queimar... (Abre o cofre.) V
daguerreótipo! Que belo! (Examina o medalhão enquanto fecha a tampa do cofre.)
Quem será esta dama de melancólico semblante? Que formosa! Mas… oh, Senhor!
Como se parece comigo! Dir-se-ia minha irmã... ou minha, minha... (Neste instante
entra Agatha, segurando uma capa. Num ato reflexo, Rosalinda esconde o
daguerreótipo no seio.)
AGATHA — Ainda estais aí? Que fazeis aí parada, minha pequena? Tão
assustadiça. Pareceis uma lebre surpreendida pelo caçador...
AGATHA — Não deveis ter medo. O mundo é vasto, pequena. (Para si.) E cheio
de prazeres inauditos... (Voltando-se à jovem.) Deves procurar um velho
cavalheiro que compreenda a vossa desventura...
AGATHA — Que a vida pode ser vivida de muitas maneiras. Algumas, bem
divertidas. E não será difícil para uma rapariga encantadora como vós...
(tocando-a) com esse porte de amazona, esses cachos de Pandora...
ROSALINDA — Não vos entendo, Agatha. E por que me tocais com tal ardor?
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AGATHA — Porque sois tenra como um faisão natalino. Opípara… rubicunda e
capitosa (largando-a) Mas entendereis com o tempo minhas palavras. Agora ide
sem mas delongas. Se vosso padrinho vos surpreender...
AGATHA — Vossa mãe vos trazia envolvida nela quando veio estrebuchar nas
escadarias do castelo numa gélida noite de inverno há 19 anos atrás.
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Deixava-se então cair ao pé de uma árvore e, com as roupas estraçalhadas pelas
urzes e espinhos e os pés ensangüentados pelas pedras do caminho, adormecia
exausta, escutando ao longe os uivos ameaçadores dos lobos e as lúgubres vozes
das aves noturnas. Enquanto isso, perto dali, numa clareira da floresta, uma tribo
de ciganos havia montado acampamento e dedicava-se a seus afazeres habituais.
JEZEBEL — Nada, querido. São os Arcanjos do Tarot dos Bohemios que hoje só
me contam incongruências. Devo estar louca, carajo! Mas toca, por favor, toca
mais... Os sons de teu violino tem a virtude de acalentar minh’alma como o mais
doce dos vinhos...
VASSILI — Não, Jezebel. Eu conheço muito bem os sons dos animais e das
pessoas. São muito distintos. Tu sabes que desde que perdi minha visão, minha
audição ficou ainda mais aguçada.
JEZEBEL — Sim, sim, claro. Confio em teu ouvido, mas não confio em teus
temores, carajo! Por piedade, deixa-me ver a sorte em paz... (Invocando.) Forças
ocultas do mais Alto Astral, orientem minhas mãos para desvendar o segredo.
as, o que é isto?
(Ruído. Rosalinda entra e coloca-se atrás de uma árvore.) M
Há alguém aqui?
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VASSILI — Te disse, Jezebel . Olha, aqui, a direita...
JEZEBEL (Erguendo-se.) — Quem está aí? (Saca um punhal.) Vamos, que não
estou para brincadeiras!
ROSALINDA — Não tenho para onde ir . Perdi-me pela floresta e cheguei até
aqui orientada pelo som maravilhoso de um violino.
JEZEBEL — Era o violino de Vassili. (Para Vassili.) Tinha razão, querido, é uma
pobre garota perdida na tempestade.
VASSILI (Caminhando para Rosalinda.) — Esta voz, por Deus, esta voz...
Posso tocar teu rosto, querida?
ROSALINDA — Rosalinda, senhora. Mas por que ele está tão agitado?
JEZEBEL — É sua imaginação muy exacerbada. Ele acredita que te pareces com
alguém que ele conheceu. Vamos, dá-me teu manto. Está todo molhado. (Examina
o manto). Que belo trabalho. Estranho! Parece que já vi algo semelhante... faz muito
tempo... Onde encontraste este manto, niña?
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ROSALINDA — Agatha me-lo deu.
ROSALINDA — Não sei, como posso saber? Mas imagino que seja...
ROSALINDA (Assustada.) — Que está acontecendo? Não sou vossa filha, sou
apenas uma pobre órfã recolhida pela bondade do Senhor Conde Maurício de
Belmont.
JEZEBEL — Maurício de Belmont! Maldición! Queres dizer que este cão ainda vive?
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VASSILI — Cão dos Infernos! Irei matá-lo com minhas próprias mãos..
ROSALINDA — Não entendo o que dizeis. Porque quereis matar meu padrinho?
CENA 11 - A Retomada
JEZEBEL (Entrando com Vassili e Rosalinda) ...e foi isto que aconteceu.
VASSILI — Agatha, que se fazia passar por confidente de Úrsula, a traiu, contando
toda a verdade a Maurício.
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ROSALINDA — Posso imaginar o resto. Meu tio mandou seus esbirros invadirem o
acampamento cigano.
JEZEBEL — Ele mesmo comandou o ataque. E com suas próprias mãos cegou
Vassili com uma chibatada.
AGATHA — Não vos entendo. Que quereis dizer com isso? Não tendes direito
algum, não passais de uma pobre enjeitada.
AGATHA — Vosso pai? Porventura delirais? Vosso pai há muito não pertence ao
reino dos vivos.
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VASSILI (Torcendo-lhe o braço.) — Vamos, confesse antes que te mate como a um
cão leproso.
AGATHA — Sim. Ela perdeu a razão quando vós nascestes. Vosso tio então
encerrou-a lá.
VASSILI — Precisamos libertar minha amada Úrsula. Vamos todos à cripta. E tu,
Agatha, virá conosco para mostrar-nos o caminho.
JEZEBEL — Vamos.
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ratazanas e aranhas, não fosse aquela estranha voz entoando uma canção que
parecia vir de além-túmulo.
ROSALINDA — Por Deus! Está tão escuro aqui . Não consigo ver nada.
ROSALINDA (Avançando para Úrsula.) - Mamãe! Oh, mamãe, julgava que estáveis
morta!
ÚRSULA (Para a boneca.) — Filha, filhinha querida. Não deves ter medo, não
deixarei que te façam mal. (Para Vassili.) Afasta-te, Maurício! Não permitirei que
destruas o fruto do meu amor! (Mudando o tom.) Besouro que cai de costas não
levanta nunca mais.
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Cariño, não me reconheces? Sou eu, teu Vassili. Teu
VASSILI (Para Úrsula.) —
amor, o cigano...
ÚRSULA — Vassili? Não, não: Vassili foi assassinado por Maurício. Seu sangue
cigano cobriu o verde dos campos como o sangue inocente dos pés quebrados da
corça... O vermelho da violência derramado impunemente sobre o verde da
humildade...
VASSILI (Insistindo.) — E esta menina, vês? Esta doce menina é Rosalinda, nossa
filha querida. Veja que linda é!
ÚRSULA (Para a boneca.) — Tanto tempo. Tudo faz tanto, tanto tempo. Hoje é
como se fora outrora. E nunca mais outra vez.
ROSALINDA — Mamãe, mamãe, sou eu, Rosalinda, tua filha, a flor de teu ventre
puro.
ÚRSULA (Para a boneca.) — Minha filha? Minha filha é esta aqui. Filhinha,
filhinha... (Para a boneca.) — Sossega, ninguém te fará mal.
JEZEBEL (Torcendo-lhe o braço.) — Cala-te, víbora! Tuas palavras são mais
monstruosas que tua corcunda! (Como se orasse.) No amor, residem forças
incríveis... capazes de mudar o rumo do universo...
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ÚRSULA — Esse rosto... essa pele morena... esse corpo delgado… (Detêm-se.)
Não, não! Não acredito! Vai-te daqui! És um impostor! Um sicário a mando de
Maurício para me torturar ainda mais! (Em delírio.) Bezouro que cai de costas...
VASSILI (Transtornado, agarrando-a com mais força.) — Úrsula, Olhe bem para
mim, em meus olhos, estes olhos cegos...
ÚRSULA — O frescor de hortelã de teu hálito cálido, tuas mãos nodosas e fortes. A
carícia áspera de tua barba dura. Não, não pode ser verdade, seria bom demais.
Será que estou ficando louca, Virgem Santíssima?
VASSILI — É verdade, cariño, sou eu! E aqui também está Jezebel, nossa querida
amiga e protetora.
ÚRSULA — Vassili, meu Vassili... Ai, Jesus, parece um sonho… (Delírio.) Ou quem
sabe Deus teve pena de mim e me chamou para sentar ao lado seu no empíreo
celestial?
Ai, carajo!
JEZEBEL (Disfarçando.) —
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ÚRSULA — Rosalinda?... (Olha para a boneca. Olha para Rosalinda. Deixa cair a
boneca). Meu Deus... não pode ser... seria demasiada ventura para meu coração se
essa donzela fosse... fosse...
ÚRSULA (Abraçando-a.) — Filha querida! Oh, fruto mais puro que o meu ventre
jamais gerou! Enfim posso abraçar-te!
ÚRSULA — Minha boa Jezebel... Mas... que aconteceu? Por que estão todos aqui?
Por que estou vestida assim? Que tenebrosa masmorra é essa? (Começando a
delirar de novo). Há como um poço escuro em minha memória... Um poço escuro
onde flutuam corças de pés quebrados... negros besouros caídos de costas... (Vê
Agatha e recua espavorida). O que ela está fazendo aqui?
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MAURÍCIO (Está adormecido, quando Úrsula entra lentamente e toca em seus
cabelos.) — Quem me tocou? Úrsula? Fugiste novamente? Agatha, tira esta louca
daqui!
ÚRSULA (Perfeitamente lúcida.) — Já não estou louca, meu caro irmão. Meu
bem-amado e minha querida filha me devolveram a razão.
ÚRSULA (Muito segura.) — Tua maldade não tem limites, Maurício. Os sofrimentos
que já causaste, as vidas que destruíste, certamente fariam petrificar a própria
Górgona.
ÚRSULA — Sim, uma aristocrata, uma condessa de Belmont. Mas antes de tudo,
uma mulher. E uma mulher com coração! Não podia assistir indiferente aos
tormentos dos desventurados mineiros e de suas miseráveis famílias. Explorados,
inermes, escravizados por ti, meu irmão! Os camponeses entregando suas
lamentáveis vidas às profundezas da terra de teu porco latifúndio, enquanto as
mulheres, as criancinhas e os anciãos inocentes morriam à míngua em suas fétidas
choupanas. Foi a caridade que me levou...
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ÚRSULA — Aproximei-me dos mineiros, inicialmente, movida por um sentimento
cristão de amor ao próximo. Queria somente mitigar as duras penas impostas por ti
àqueles infelizes. Queria levar-lhes comida e agasalho, ensinar àquelas pobres
criancinhas a cartilha e o catecismo. Mas o verdadeiro espírito de solidariedade
humana, eu o aprendi com aquele que consideras um pária: Vassili!
ÚRSULA — Sim, ele mesmo. Foi Vassili quem me ensinou que o mundo não
precisa necessariamente ser dividido entre pobres e ricos, em miseráveis e
poderosos, em senhores e escravos. Em nobres, de um lado, e em mineiros,
ciganos e negros do outro.
MAURÍCIO — Basta! Já foste longe demais, insensata! Vejo que estás mais
demente do que nunca. Retorna ao teu repulsivo subterrâneo. Nada tens a fazer
aqui, na casa que desonraste. Teu sonho libertário acabou! (Irônico.) E contudo teu
coração ainda pulse, a própria vida acabou para ti, espectro de gente!
ÚRSULA (Muito calma.) — Enganas-te, mui prezado irmão. Após tantos anos
obnubilada, a vida recomeça para mim. Neste exato momento, quando acabei de
reencontrar meu marido e minha filha. (Afasta o reposteiro e aparecem Vassili,
Rosalinda, Jezebel e Agatha.)
CENA 14
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JEZEBEL (Matreira.) — E por que não? Pelo que disse, trata-se apenas de uma
tisana medicinal. (Arranca-o das mãos de Agatha.) Tisana medicinal! Isto é um forte
veneno: arsênico! A corcunda está assassinando lentamente o Conde!
MAURÍCIO (Tossindo muito) — Ledo engano! Meu esfalfado coração já não resiste
a esses golpes cruéis... Que trevosa sina a minha! Ajudem-me que morro! (Para
Jezebel). Cigana Jezebel, antes de morrer quero revelar-vos um segredo.
JEZEBEL — Um segredo? Por mim não daria ouvidos a tuas palavras sujas. Mas a
morte é poderosa. Está bem. Fala.
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de minha cega cupidez! Por tudo que há de mais sagrado, perdoai -me! Deixo para
vós toda a minha fortuna (morre).
VASSILI (Ainda tonto.) — Sim. Estou mais vivo do que nunca. E quero saber,
Rosalinda, de que homem estás falando.
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CENA 15
RAFAEL (Contrito.) — Vim justamente pedir-vos perdão por todo o mal que
involuntariamente vos causei. Estou amargamente arrependido. Desde que vos
desonrei, vossa imagem não me sai do pensamento. Doce Rosalinda, julgo
enlouquecer sem vosso amor. Quero reparar meu erro. Perdoai-me, por piedade.
Vim pedir vossa mão ao Conde Maurício.
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JEZEBEL — É uma alucinação. Vassili, senta-te um pouco. Estás fatigado de
tantas emociones.
VASSILI — Não, não! Quero ficar de pé. Meus olhos... não compreendo... Que luz
cegante é essa? Que claridade espantosa há no mundo!
VASSILI — Quero ver... ver... Não é possível, não posso acreditar, não é verdade! É
um milagre... um verdadeiro milagre, um milagre divino! (Olhando uma a uma,
incrédulo) Jezebel, Úrsula, Rosalinda: começo a ver claramente vossos queridos
rostos!
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ROSALINDA — Oh, meu Deus, como agradecer-vos tanta felicidade?
FIM
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