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A Maldição Do Vale Negro - Caio F Abreu

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A maldição do Vale Negro

Peça em 1 Ato
Caio Fernando Abreu
em colaboração com Luiz Arthur Nunes

ANÁLISE AQUI - CLIQUE


CRONOGRAMA - CLIQUE

PERSONAGENS
● NARRADOR
● AGHATA, uma velha governanta
● CONDE MAURÍCIO DE BELMONT, um velho nobre, muito doente
● ROSALINDA, uma donzela de 19 anos
● MARQUES RAFAEL D'ALENÇON, um jovem mancebo.
● CONDESSA URSULA DE BELMONT, irmã do conde e louca
● JEZEBEL, uma cigana
● VASSILI, um cigano cego

CENA 1 - ​A Governanta Leal

NARRADOR — Na província de Castel franco, estende-se um vale coberto por


densa floresta de pinheiros e cipreste, conhecido pelo nome de Vale Negro. No topo
de uma das montanhas que dominam o vale, ergue-se, imponente, o castelo dos
condes de Belmonte, de santíssima linhagem e senhores daquela região. A nossa
história tem início na tarde de 15 de abril do ano da graça de 1834. Uma chuva
miúda e fria cai sobre a terra, paralisando a formosa primavera, que já por toda a
parte começava a ostentar os dons fecundos do seu rico e poético reino. Numa sala
do castelo, o velho conde Maurício, último descendente da estirpe e que outrora,
governara seus domínios com a mão de ferro, dorme um sono entrecortado de
gemidos e sobressaltos. A governanta Agatha, que há muitos anos serve a família,
pinga lentamente algumas gotas de uma tisana escura num cálice de cristal.

AGATHA — Uma... duas... três... quatro... cinco… seis... sete... Acho que é o
suficiente por hoje. ​(Observa Maurício.) Talvez mais uma ou duas…​(pinga mais) ou
três.

MAURÍCIO ​(Gemendo.) — Aghata... sinto-me dolorosamente mal, Agatha... Não


vais dar-me a tisana?

AGATHA — Estava justamente a prepará-la para vós, senhor conde. Aqui está
(serve-lhe).

MAURÍCIO — Arre, que sabor repugnante! E se ao menos adiantasse de alguma


cousa! Parece-me, ao contrário, que estou cada vez pior, Agatha... Oh, Senhor,
que cruéis provações ainda me reservará o destino?

AGATHA — Não vos preocupeis demasiado, senhor conde. Deus, na sua infinita
bondade de misericórdia, saberá por certo apiedar-se de vossa desdita. Vamos,
deveis beber a tisana toda. Mais um gole… Assim.

MAURÍCIO — Agatha, onde está Rosalinda?

AGATHA — Ainda não a vi hoje, senhor. Deve andar pelos bosques colhendo
frutos e flores silvestres, como é de seu feitio.

MAURÍCIO — Com este tempo chuvoso?

AGATHA — A chuva parou já faz mais de hora. Temos sol de novo. O senhor
conde quer que eu descerre os reposteiros?

MAURÍCIO — Não, por favor. A luz me molesta. ​(Suspira.) Pobre Rosalinda!


Deus permita que não descubra jamais o hediondo segredo que envolve as
suas origens... Agatha, juras que, se eu morrer, jamais revelarás a verdade a
Rosalinda?

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AGATHA — Tranqüilizai-vos, senhor. Ela jamais saberá.

CENA 2 - ​O Presságio

ROSALINDA ​(Entrando com um cesto de palha carregado de flores e frutos.)


— Quem jamais saberá o que?

AGATHA ​(Friamente.) — Falávamos sobre os males que afligem vosso padrinho,


Rosalinda.

MAURÍCIO — Aproxima-te, meu primaveril crisântemo. Que trafega estás. Então,


anda pelos bosques?

ROSALINDA — Sim, padrinho. Oh, quando raiou o sol, a natureza toda


parecia explodir em cores inefáveis e perfumes inebriantes. Caminhava pelos
montes, entre as cabras, e pensava em vós, abandonado aqui neste leito.
Como deveis padecer, meu amado benfeitor!

MAURÍCIO ​(Amargo.) ​— Quiçá eu mereça todos estes abomináveis tormentos.

AGATHA ​(Seca.)​ — Deus sabe o que faz.

ROSALINDA — O que dizeis, Agatha? Todos os camponeses e mineiros do


Vale Negro sabem que não existe fidalgo mais nobre, mais justo e magnânimo que
meu amado padrinho, o conde Maurício de Belmont.

AGATHA — Calada! ​(Escutando.)​ Ouvis? A cascata parou.

MAURÍCIO — ​(Agitado.)​ Não! ​(Ouvem-se gritos ao longe.)

AGATHA — Os gritos novamente.

ROSALINDA — Tenho, tanto medo, padrinho. De que sofrida garganta brotam


esses brados inumanos? E por que a cascata pára?

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AGATHA ​(Lúgubre.) — A cascata costuma parar quando algo terrível está para
acontecer. Esta é a maldição do Vale Negro.

MAURÍCIO — Cala-te, Agatha. Não atemorize nossa linda pequena. ​(à Rosalinda.)
Não te assuste, minha rósea tulipa. É apenas um fenômeno natural, inexplicável
pela ciência dos homens. ​(Ouvem-se latidos.)​ E quanto aos gritos...

AGATHA ​(Cortando.) — Os cães estão latindo. Deve ter chegado alguém.


(Indo a janela.) Cérbero, Belzebu, Astaroth, Asmodeu, Belfegor, Lúcifer, quietos!
(Cessam os latidos. Ouvem-se batidas de aldrava.)

MAURÍCIO — Atende, Agatha. ​(Agatha sai.)

ROSALINDA — Quem poderá ser? Oh, padrinho, sinto um aperto no coração.


Tenho um pressentimento...

AGATHA ​(Anunciando.)​ — O marquês Rafael d'Allençon.

CENA 3 - ​A Visita Indesejada

RAFAEL ​(Entrando.) — Maldição! Esses cães são verdadeiros demônios! ​(A


Maurício.) Por que razão viveis cercado de feras? ​(Melífluo.) ​Acaso tendes medo
que alguém vos roube esta gentil donzela?

MAURÍCIO — A maldade no coração dos homens é incalculável, caro marquês.


Mas não precisais temer. Os cães, durante o dia, permanecem acorrentados. Só
são soltos ao anoitecer.

RAFAEL — Folgo em sabê-lo. Para não incorrer no erro de vir visitar-vos à noite.
O que dificilmente aconteceria. ​(Olhando de soslaio a Rosalinda.) ​A não ser que...

AGATHA ​(Levemente irônica.) — Seria um erro fatal. São animais


ferocíssimos, que só obedecem ao seu tratador, o velho feitor Bonifácio.
Seriam capazes de trucidar qualquer um de nós. Inclusive eu, que os alimento.

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RAFAEL ​(Estremecendo.)​ — Brrrrrrr! Que conversa desagradável!

MAURÍCIO ​(Secamente.) — Abrevia-mo-la, pois, senhor marquês. A que devo


a honra de vossa presença aqui em meu tugúrio?

RAFAEL — Assunto particular, caríssimo conde.

MAURÍCIO — Agatha, retira-te. ​(A Rosalinda.) Bálsamo de minh’alma, necessito


estar a sós com o marquês.

ROSALINDA ​(De olhos baixos.) — Vós ordenais, meu padrinho. A mim cabe
obedecer. Com vossa licença, senhor marquês. ​(Sai com Agatha.)

CENA 4 - ​A Hipoteca

RAFAEL — Não desejo roubar vosso precioso tempo, estimado conde. Outrossim,
quero crer que já não vos resta muito. Devo confessar que pareceres já um cadáver.
E em adiantado estado de putrefação.

MAURÍCIO — Deus, a virgem e o Espírito Santo são testemunhas de minha


desventura. Ide logo ao cerne da questão. Não tolero vossa presença maligna.

RAFAEL ​(Lentamente.) ​— A hipoteca vence hoje.​ ->>> PCD !!!

MAURÍCIO — Que dizeis?

RAFAEL — A hipoteca vence hoje. Apenas isso.

MAURÍCIO ​(Agitado.) — Não é possível... Isso é um engodo… Conheço


vossas diabólicas tramas... Por certo adulterastes os papéis...

RAFAEL — Os papéis cá estão em minha algibeira. Não há sombra de fraude


neles. Podeis verificar. ​(Entrega-os.) ​Parece-me que vossa senil memória anda
já a pregar-vos peça.

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MAURÍCIO ​(Examinando os papéis.) — Tendes razão. Oh, senhor! Inesgotável
é a taça de infortúnios que me fazeis sorver neste vale de lágrimas!

RAFAEL — Sois injusto com o bom Deus, senhor conde. Ao fim e ao cabo, sois
vós o único responsável por vossas próprias desditas.

MAURÍCIO — Que quereis dizer com isso, biltre dos infernos.

RAFAEL — Ora, caro senhor, apesar de possuir a metade de vossa idade,


conheço bastante bem vosso passado. Acaso esqueceste que vosso
companheiro preferido das noitadas de esbórnia e deboche era,
​ ue Deus o tenha!
coincidentemente, o meu finado pai? ​(Compungido.) Q

MAURÍCIO ​(Amargo.)​ — Vosso pai...

RAFAEL — Sim, o velho marquês d’Allençon, de quem, aliás, herdei muitas


“virtudes”, como gosto pelos “prazeres” da vida: a boa mesa, o vinho, as mulheres,
as canções...

MAURÍCIO — Ah, que acerbas recordações vindes me despertar!

RAFAEL — A concupiscência, a devassidão e o vício que levaram o meu progenitor


à loucura e à morte são agora a causa de vossa ruína financeira, senhor Conde
Maurício de Belmont. Ou porventura olvidais que foi sobre o pano verde que
empenhaste toda vossa fortuna?

MAURÍCIO ​(Num arranque.) ​— Basta, basta de ressuscitar esses horrendos


fantasmas do passado!

RAFAEL ​(Implacável.) — Não, não basta! Já fui assaz insultado por vós, e não
vou perder a oportunidade de vos dar o merecido troco! Não, senhor conde, não
podeis negar que estais colhendo hoje o amargo fruto de vossa desenfreada paixão
pelo jogo!

MAURÍCIO — Aquela noute... Aquela noute nefasta...

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RAFAEL — Ah, vejo que vossa memória começa a reavivar-se. Sim, foi numa
“noute nefasta”, como dizeis, há mais de dez anos que, sentado a uma mesa de
truco, com meu pai, após já haver perdido vultosíssima quantia e já embotado pelos
vapores etílicos...

MAURÍCIO ​(Cortando, no auge do desespero.) — Eu não podia, não conseguia


parar! Era mais forte do que eu!

RAFAEL ​(Continuando, implacável.) — ... já embotado pelos vapores etílicos,


Vossa Senhoria ofereceu como garantia de sua derradeira aposta, os títulos de suas
propriedades. Todos os bens do ilustre clã dos Belmont hipotecados a não menos
ilustre casa d’Allençon!

MAURÍCIO — Ah, Deus de minh’alma! O que me resta fazer agora?

RAFAEL — Se vós tivésseis uma mente... Digamos... Mais atilada, poderíeis fazer
bem mais do que imaginais em vosso próprio benefício.

MAURÍCIO — Falai logo, canalha! O que mais ainda quereis deste lamentável
destroço humano?

RAFAEL ​(Direto.)​ — Não sou homem de meias palavras. Quero vossa afilhada.

MAURÍCIO ​(Tomado de cólera.) — Como vos atreveis? Ficai sabendo que não
sois digno de lamber o chão onde roça a fímbria da saia de Rosalinda. ​(Tossindo
violentamente.) O mais ignóbil dos répteis é mais nobre do que vós. Cederia a mão
de Rosalinda ao mais imundo dos mineiros do Vale Negro, jamais a vós. Mil vezes a
mais terrível miséria!

​ Então estais completamente arruinado. A escolha é


RAFAEL ​(Sem se abalar.) —
vossa. Mas... Como sou um homem magnânimo, tendes até amanhã, ao meio-dia,
para vos retirardes do castelo.

MAURÍCIO ​(Tossindo muito agitadamente.) ​— Infâmia! Gozasse eu de alguma


saúde eu vos expulsaria daqui a chicotadas, vil cobarde!

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ROSALINDA ​(Entrando com Agatha.)​ — Senhor, que tendes?

MAURÍCIO — Ajuda-me, Agatha, preciso repousar. ​(Agatha sai conduzindo


Maurício)

ROSALINDA ​(A Rafael)​ — O que fizeste a meu padrinho, arrogante mancebo?

CENA 5 - ​O Acordo

RAFAEL — Vamos, minha pombinha. Nada fiz a vosso padrinho.

ROSALINDA — Mas então por que está ele neste deplorável estado?

RAFAEL — A vida desregrada que levou, minha flor das montanhas, os ágapes
desenfreados, os muitos crimes que cometeu o corroem por dentro.

ROSALINDA — Crimes? De que falais? Meu padrinho nunca cometeu crime algum.

RAFAEL - Como não? Então não sabeis que hipotecou todas as suas propriedades
à casa d'Allençon?

ROSALINDA — Sei-o. Mas isso não é crime. As propriedades pertencem a ele.

RAFAEL — Crime é deixar ao desabrigo uma donzela como vós. A hipoteca vence
justamente hoje.

ROSALINDA — Isso quer dizer que... que...

RAFAEL ​(Interrompendo.) — Que não tendes mais teto que vos abrigue, menina.
Nem vós, nem vosso padrinho, nem a bruxa governanta, nem aqueles cães
demoníacos.

ROSALINDA — Mas não podeis cometer essa vileza. O senhor conde está
gravemente enfermo. Sua morte é questão de meses, como pudeste observar. Oh,

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senhor marquês, apiedai-vos de nossa desgraça! Que tendes vós em lugar de
coração? Uma taça de veneno?

RAFAEL — Tudo depende de vós, minha pequena...

ROSALINDA — De mim? Sabei que tudo faria para amenizar as derradeiras horas
de meu benfeitor.

RAFAEL — Basta que sejais… complacente com este vosso admirador.

ROSALINDA — Complacente? Que insinuais? Não vos entendo. Falai claramente,


por misericórdia.

RAFAEL ​(Incisivo.) — Sobre esse assunto não há necessidade de falar claramente.


(Insinuante.) ​Não haverá lugar em vosso coração para um pouco de ternura?

ROSALINDA ​(Percebendo) - Oh, sim. Agora compreendo o que desejais. ​(Resoluta.


persignando-se.) Está bem. Se isso pode salvar meu benfeitor da ruína, podeis
dispor de meu corpo e de minh’alma como quiserdes, para a satisfação de vossos
brutais prazeres. ​(Abre os braços resolutamente.)

RAFAEL (Abraçando-a.) — Sois mais ladina do que aparentais, pequena. Nos


menores frascos repousam as mais puras essências.

CENA 6 - ​O Embate

NARRADOR — Alguns meses depois daquele dia em que Rosalinda levou a cabo
o seu gesto de desprendimento e afeto filial, a situação modificou-se sensivelmente
no castelo dos Belmont. O marquês d’Allençon, desistindo de protestar os títulos da
hipoteca, a ameaça da ruína deixara de pender sobre a família. A atitude do
marquês, aliás, sofrera uma profunda transformação. Seu habitual cinismo e
arrogância, como num passe de mágica, cederam lugar a uma solicitude. Rafael
passou a visitar mais amiúde o castelo e, inclusive, participava das tertúlias e saraus
familiares. Freqüentemente, ele e Rosalinda passavam as calorosas tardes estivais

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a percorrer os bosques e pradarias. Voltavam ao pôr do sol, carregando braçadas
de antúrios, gerânios, crisântemos, hortênsias, magnólias, petúnias, begônias e
miosótis. Entrementes, fatos mui estranhos continuavam a ocorrer nos sombrios
aposentos da mansão dos Belmont. Em semi obscuridade, o Conde Maurício está
dormindo, recostado no sofá quando entra Úrsula. Roupas rasgadas, desgrenhada,
inteiramente louca. Traz uma boneca nos braços.

ÚRSULA ​(Fala para as paredes, às vezes para si mesma ou para a boneca.) —


Como sói ser verde o campo quando o astro-rei principia a tombar no horizonte! Por
um segundo, a natureza inteira se veste de dourado... Vês, filhinha? O verde dos
campos sendo mansamente invadido por todo esse esplendor dourado que brota do
arrebol. Que espetáculo redentor para a torturada visão dos homens! O ouro
​ té...
derramando-se sobre o verde, tingindo o azul do firmamento. ​(Estremecendo.) A
até que os besouros começam a cair. Lentamente, despencam dos céus feito gotas
negras de chuva. Vindos do infinito, qual aranhas viscosas e peçonhentas… E
quando caem de costas — ah, quando um besouro cai de costas, não se levanta
nunca mais. ​(Quase gritando.) Nunca, nunca mais! ​(Com o grito, Maurício agita-se e
geme dormindo. Úrsula volta-se para ele.) Vês, filhinha? E assim que são os
poderosos. Desalmados, impiedosos. Dormem profundamente, confortáveis como
se repousassem sobre um campo de ouro. Indiferentes à queda lenta dos besouros
negros sobre o charco de sua alma manchada pelo sangue dos inocentes. Alheios à
desventura dos oprimidos camponeses que labutam no fundo lamacento das minas
para cobrir de ouro seu medonho latifúndio. ​(Vai-se aproximando de Maurício.) ​Mas
se todos — ah, se todos unidos erguessem atrevidos suas sofridas cabeças para
gritar não! Ao opressor... Ah, filhinha: como tudo poderia ser diverso desta
iniqüidade. Quão ditosa seria novamente a pobre corça dos pés quebrados!
​ ompanheiros, uni-vos! Uni-vos para destroçar o maligno! ​(Segura
(Gritando.) C
​ ste, que se traveste de benfeitor
Maurício e começa a sacudi-lo violentamente.) E
dos pobres e dos oprimidos! Uni-vos como os famintos de justiça para destroçá-lo
em pedaços sangrentos!

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MAURÍCIO ​(Despertando, estonteado.) — Rosalinda, Rosalinda, que aconteceu,
minha cornucópia de água-régia?

ÚRSULA ​(Possessa, aos uivos, tentando estrangular Maurício.) — Somente a morte


do maldito poderá redimir o sangue dos oprimidos!

MAURÍCIO ​(Num espasmo.) ​— Úrsula, que fazes aqui?

ÚRSULA — Sim, assassino! Apesar dos pés quebrados, a corça ainda pode fugir.

MAURÍCIO ​(Tenta levantar-se, Úrsula o empurra. Ele está apavorado. Grita.) —


Agatha! Agatha, tira esta louca daqui!

ÚRSULA — Tarde demais, corrupto! Como a ave peregrina que mais dia, menos
dia, torna ao ninho — a justiça sempre chega.

AGATHA ​(Entrando, com um chicote.) — Para trás, animal! ​(Estalando o chicote.)


Afasta-te, fera repelente! Ou te reduzirei a pó num estalar de dedos.

​ Por
ÚRSULA (​Encolhe-se, a boneca cai ao chão, ela tenta inutilmente apanhar.) —
piedade, não! Minha filhinha! Mata-me, se quiseres. Mas por tudo que há de mais
sagrado, peço-te: poupa o mais puro fruto de meu ventre!

AGATHA - Besta imunda! ​(Vai chicoteando Úrsula para fora da sala.) Retira-te para
teu infecto covil! Foste feita para o aconchego dos ratos, das lacraias e dos
escorpiões — não para o convívio dos seres humanos. ​(Para Maurício, antes de
sair.) Serenai-vos, senhor Conde. O velho Bonifácio saberá tratar desta lepra em
forma de gente. ​(Vai saindo, chicoteando Úrsula. Os cães latem furiosamente lá
fora. Grande alarido. Depois, volta o silêncio. A boneca ficou caída ao chão, aos pés
de Maurício.)

MAURÍCIO ​(Após demorado silêncio, apanha a boneca e começa a acariciá-la


sordidamente.) — Haverá de ser tão inesgotável a bondade de Deus a ponto de, um
dia, ser capaz de perdoar-me? Merecerei a graça suprema de sua doce mão
pousada sobre este fervilhar de vermes no caldeirão de minha alma pútrida? ​(Grita,
como numa tragédia grega.) Infeliz de mim! ​(Num frenesi, beija a boneca. Depois

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joga-a longe.) Agatha, Agatha! Tira este aborto daqui! Socorre-me que morro... ​(O
Conde Maurício soluça, arquejante. Foco em Maurício e na boneca calva. A luz vai
diminuindo em resistência, enquanto ele geme. Em off sobrepondo-se aos gemidos,
vão crescendo a gargalhada de Agatha, os uivos de Úrsula e os latidos dos cães
enfurecidos.)

CENA 7 - ​A Rejeição

NARRADOR — Transcorridos mais alguns meses, a situação no castelo de


Belmont em nada se modificara. Rafael d’Allençon soubera perfidamente ganhar a
confiança de Rosalinda com juras de eterno amor e promessas de matrimônio.
Pouco a pouco, as fibras do coração da donzela, passaram a vibrar no compasso da
mais pura e devotada paixão. Porém, horas mais negras estavam por vir. Um dia,
Rosalinda descobriu que ia ser mãe. Sem coragem de contar a Rafael, durante
vários dias, amargou sozinha seu terrível segredo. Por casualidade, iniciara-se a
temporada da caça à raposa, e Rafael passara uma semana sem visitá-la. Uma
manhã, munindo-se de coragem, Rosalinda tomou da pena e verteu seu coração,
transbordante de receios, numa longa missiva endereçada ao marquês. Rafael
aproxima-se por trás de Rosalinda, que não percebe sua presença, e atira-lhe a
carta a seus pés.

​ Qual a razão disto?


RAFAEL ​(Agressivo.) —

ROSALINDA — Ah, meu amado, és tu. Que susto me causaste!

RAFAEL ​(Seco.)​ — E então?

ROSALINDA — E então o que? Não te entendo. O que se passa contigo? Por que
chegas assim, tão agastado, sem uma saudação sequer… nem ao menos um
ósculo... Um amplexo?

RAFAEL — Ora, Rosalinda, não me venhas de borzeguins ao leito! Quero saber o


que significam as aleivosas insinuações contidas nessa missiva.

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ROSALINDA ​(Ressentida.) — Amor meu, que duras palavras! Tu, que sempre me
demonstraste tanto carinho, tanta afeição, tanto… ardor...

RAFAEL — Tratava-te assim porque eras dócil e cordata comigo. Porque te


curvavas a todos os meus caprichos. Mas agora...

ROSALINDA — Mas eu não! Eu continuo sendo tua escrava fiel e obediente! Sabes
bem que meu antigo asco por ti transmutou-se na mais excelsa paixão!

RAFAEL — Chega de tergiversações! Exijo que me esclareças imediatamente o


significado desta carta!

ROSALINDA — Peço-te perdão, meu querido amigo. Foi quiçá por excesso de
pundonor que não fiz mais cristalinas as minhas palavras. Mas como transmitir à fria
brancura impassível do papel o turbilhão que me devasta o peito, desde que fui
abençoada por este milagre... Este augusto milagre...

RAFAEL — Que história é essa de milagre? Vamos, fala!

ROSALINDA ​(Em êxtase.)​ — O milagre da maternidade!

RAFAEL — O que? Um filho?!

ROSALINDA — Sim, um filho! Sublime fruto a coroar o nosso amor!

RAFAEL ​(Agarrando-a brutalmente.)​ — O que estás a dizer? Ficaste louca?

ROSALINDA — Rafael, Rafael, foste tu quem perdeu a razão! Não te reconheço.


Julgava que rebentarias de alegria ao saber...


RAFAEL ​(Cortando-a, possesso, e sacudindo-a pelos braços.) — Alegria?
Alegria?!!!

ROSALINDA — Sim, amado. Agora só nos resta finalmente desvelar aos olhos do
mundo a nossa união, realizar o nosso sonho dourado... Ah, meu príncipe, toda

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noite, em meu leito, contemplo-me, núbil, galgando ao lado teu o mármore dos
degraus do altar...

RAFAEL ​(Empurrando-a.) — Casar contigo? Quem te pôs esta idéia ridícula na


cabeça?

ROSALINDA ​(Chocada.) — Tu mesmo, Rafael! Tu mesmo quantas vezes juraste


que um dia... Que só precisávamos um pouco de paciência e ocultar por algum
tempo o nosso amor, até conseguires convencer tua família...

RAFAEL ​(Cortando, irônico.) — ...que eu desposaria uma enjeitada? Uma bastarda?


Uma criatura sem nome, sem posição e sem fortuna? Porventura chegaste a
acreditar um segundo que eu, um nobre, um aristocrata, um d’Allençon uniria meus
destinos a uma qualquer? Alguém que não sabe sequer de onde veio nem quem
são seus pais?

ROSALINDA ​(Com dolorosa compreensão.) — Então isto significa que estiveste a


mentir-me esse tempo todo...

RAFAEL ​(Rindo a bandeiras despregadas.) — Que esperta és! Só agora percebes


que eu estava tão somente...

ROSALINDA ​(Cortando.) — ...brincando comigo, iludindo meu pobre coração,


fazendo-me crer que me querias, apenas para me seduzir, me conquistar,
desfrutar-me como mero objeto de tua lascívia, de teus instintos libidinosos...

RAFAEL ​(Às gargalhadas.) — E tu caíste na esparrela, franguinha! E com que


facilidade! A tua estultícia, menina, é realmente espantosa!

ROSALINDA — Oh, Virgem Santíssima! Oh, Senhora protetora dos aflitos!


Valei-me nesta sombria encruzilhada do destino!

RAFAEL — Isso! Reza, reza, pois vais precisar muito da misericórdia divina. Porque
de mim, minha cara, não tens mais nada a esperar. Apaga meu nome de tua

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memória! Esquece para sempre que eu existo! Nunca mais, ouviste bem? Nunca
mais pretendo voltar a ver-te!

ROSALINDA ​(Reagindo como uma loba ferida.) — Rafael, Rafael, não tens o
direito de fazer isso comigo! É cruel, é monstruoso demais! O que será de minha
honra ultrajada?

RAFAEL ​(Irônico.) — Naquelas noites ardentes, deleitada em meus braços, qual


uma gata no cio, não pensavas em tua honra. Porque se não a entregasses a mim,
tê-la-ias entregue ao primeiro que passasse! Pois fica tu sabendo, insensata, que
doravante não há mais nada entre nós! Nada!

ROSALINDA ​(Numa última e desesperada tentativa, agarrando-se a ele.) ​— Rafael,


meu dilacerado amor!

RAFAEL ​(Desvencilhando-se.) ​— Basta! Só tenho uma única e derradeira palavra


a dizer-te!

ROSALINDA ​(Abrindo os braços, com renovada esperança.) ​— Dize, meu anjo e


meu algoz! Que palavra é essa?

RAFAEL ​(Cuspindo a palavra.)​ — Marafona! ​(Sai a passos largos.)

ROSALINDA — Ah, por piedade! ​(Rosalinda, soluçando, em seu desespero,


apodera-se da carta esquecida, despedaça-a com fúria e esfrega freneticamente os
pedaços pelo rosto e pelo corpo.)

CENA 8 - ​O Abandono

NARRADOR — Depois desse trágico desfecho, Rosalinda chorou, dias inteiros,


lágrimas grossas como punhos. Fundas olheiras ensombreceram seu semblante
angelical. Só deixava a solidão dos seus aposentos para ir à capela atirar-se aos
pés da Virgem. Com freqüência, deixava-se adormecer sobre as frias lajes do
oratório, até ser despertada, muitas horas depois, pela mão da governanta Agatha.

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Deste modo, a pérfida serviçal terminou descobrindo o segredo que torturava o
coração de Rosalinda. Insidiosamente, conseguiu conquistar a confiança da
rapariga, dizendo-se sua amiga e protetora. Finalmente, quando Rosalinda não
podia mais esconder o seu estado, a perversa Agatha aconselhou que revelasse
toda a verdade ao conde.

MAURÍCIO — Bons dias, minha querida. ​(Observando-a.) Mas por que estás
assim, cabisbaixa e meditabunda? Pareces infeliz... Teu semblante, onde
sempre luziam os arrebóis da alegria, agora está turvo de uma névoa de
tristeza...

ROSALINDA — Padrinho...

MAURÍCIO — Sim, dize... Conta-me a razão de tuas penas.

ROSALINDA ​ (Hesitante.) ​— Padrinho querido. eu...

MAURÍCIO — Vamos, fala. Não confias em teu velho amigo?

ROSALINDA — Padrinho, há mais um anjinho aos pés da Virgem Maria...

MAURÍCIO — Não entendo o sentido de tuas palavras, Rosalinda. Podes ser


mais precisa?

ROSALINDA — Padrinho, uma nova flor começa a desabrochar para a vida...

MAURÍCIO — Que flor tão rara é essa, que floresce em tempo de inverno?
Onde está ela?

ROSALINDA ​(Baixando os olhos.)​ — Aqui, padrinho. Em meu ventre.

MAURÍCIO ​(Surpresíssimo.) — Que dizes, Rosalinda? Não me atormentes com


enigmas e despautérios! Recuso-me a aceitar a terrível verdade que se esconde
por detrás de tuas palavras!

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ROSALINDA — Está bem, padrinho. Sei que haveis de compreender e perdoar- me.
​ ou ter um filho.
(Pausa.) V

MAURÍCIO ​(Reagindo com violência.) — Um rebento? Um bastardo? Mas quem


te desonrou? ​(Esbofeteando-a.) ​— Vamos, fala maldita!

ROSALINDA ​(Aos prantos.) — O marquês Rafael d’Allençon é o culpado da minha


desventura.

MAURÍCIO — Ah, aquele réptil nauseabundo! ​(Tossindo, agitado.) Desgraçada,


não vês que apressas a minha morte? Atraiçoas-te toda a cega confiança que
durante esses 19 anos depositei em ti. Retira-te daqui, vamos! Enxovalhaste o
nome do conde Maurício de Belmont!

ROSALINDA — Perdão, padrinho, perdão! Eu juro que...

MAURÍCIO ​(Cortando.) ​— Perjura! Jamais te perdoarei! ​(Chamando.) Agatha,


socorre-me que morro... ​(Agatha acorre e o ampara.) Todos, todos me
atraiçoaram... Pobre idiota! De onde supunha que só pudessem vir flores e
sorrisos, surge inesperadamente a lâmina que me estraçalha o peito.

ROSALINDA — Foi para salvar vossos bens que cometi essa iniqüidade, padrinho.

MAURÍCIO — Não me chames mais de padrinho, não tens esse direito! E retira-te
imediatamente daqui! Não pertences mais a este lar. Não passas de uma reles
meretriz, como o foi tua mãe. ​(Agatha vai conduzindo-o para fora.) ​Hás de pagar
amargamente, criatura ingrata e sem pudor! O demônio tomou conta de tua alma.
Hás de rolar na lama e te arrastar no vício, noite após noite, ébria e solitária, à
margem de qualquer dignidade, clamando inutilmente por misericórdia!

CENA 9 - ​A Despedida

ROSALINDA ​(Sozinha.) — Infeliz de mim! Deus é testemunha de que agi com a


melhor das intenções. Agora nada mais me resta a fazer aqui. Oh, Senhor, o que

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será desta pobre órfã com um filho a germinar-lhe no seio? Abandonada por todos,
por todos desprezada. Jamais pensei que minh’alma pudesse abrigar tamanha dor!
O fel da desilusão inunda-me o peito! ​(Recobrando-se.) Tenho de ir-me. ​(Olhando
ao redor.) Jamais olvidarei estes salões, estas paredes, estes móveis... Aqui passei
os melhores anos de minha desditosa existência. ​(Detendo-se diante de um objeto,
comovida.) Ah, o velho cofre de charão… Nunca me foi permitido abri-lo. Deve
conter antigos segredos de família. Mas, que vejo? Alguém haverá esquecido a
chave na fechadura... Sei que não devo abri-lo mas a curiosidade me espicaça...
​ elhos papéis... e... oh! Um
Sinto os dedos a queimar... ​(Abre o cofre.) V
daguerreótipo! Que belo! ​(Examina o medalhão enquanto fecha a tampa do cofre.)
Quem será esta dama de melancólico semblante? Que formosa! Mas… oh, Senhor!
Como se parece comigo! Dir-se-ia minha irmã... ou minha, minha... ​(Neste instante
entra Agatha, segurando uma capa. Num ato reflexo, Rosalinda esconde o
daguerreótipo no seio.)

AGATHA — Ainda estais aí? Que fazeis aí parada, minha pequena? Tão
assustadiça. Pareceis uma lebre surpreendida pelo caçador...

ROSALINDA — Estava apenas a despedir-me do cenário que emoldurou minha


juventude. Já estou a ir-me, Agatha. Enfrentarei com bravura a escuridão dos meus
caminhos.

AGATHA — Não deveis ter medo. O mundo é vasto, pequena. ​(Para si.) E cheio
de prazeres inauditos... ​(Voltando-se à jovem.) Deves procurar um velho
cavalheiro que compreenda a vossa desventura...

ROSALINDA ​(Sem compreender.)​ — Que dizeis?

AGATHA — Que a vida pode ser vivida de muitas maneiras. Algumas, bem
divertidas. E não será difícil para uma rapariga encantadora como vós...
(tocando-a)​ com esse porte de amazona, esses cachos de Pandora...

ROSALINDA — Não vos entendo, Agatha. E por que me tocais com tal ardor?

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AGATHA — Porque sois tenra como um faisão natalino. Opípara… rubicunda e
capitosa ​(largando-a) Mas entendereis com o tempo minhas palavras. Agora ide
sem mas delongas. Se vosso padrinho vos surpreender...

ROSALINDA — Tendes razão.

AGATHA — Levai isto para proteger-vos da intempérie. ​(Dá-lhe o manto.)

ROSALINDA — Como sois bondosa, Agatha! ​(Vestindo a capa e


acariciando-a.) Essa velha capa... Lembro-me dela. Meu padrinho me contou que
pertencera a minha mãe.

AGATHA — Vossa mãe vos trazia envolvida nela quando veio estrebuchar nas
escadarias do castelo numa gélida noite de inverno há 19 anos atrás.

ROSALINDA — Pobre genitora! Como há de ter padecido! Devo partir agora.


Adeus, minha boa Agatha. (​Abraçam-se. Rosalinda sai.)

AGATHA — Finalmente os fados estão a meu favor! Com o afastamento da


pequena, torno-me a única herdeira do conde Maurício de Belmont. Serei a mulher
mais poderosa de todo o Vale Negro. Agatha, a reles governanta, a bruxa intratável,
a corcunda repugnante, a harpia selvagem! Ah, os camponeses pagarão caro o seu
desprezo, a sua maledicência. Resta apressar a morte do conde. ​(Apanha a
tisana.) Algumas gotas a mais hoje, outras amanhã, e eu em breve estarei
completamente sozinha no castelo. ​(Conta as gotas.)​ Uma... duas... três... quatro…

CENA 10 - ​Descobrindo as Origens

NARRADOR — Enquanto a pérfida governanta regozijava-se com o golpe do


destino que viera ajudar seus planos diabólicos, a desgraçada Rosalinda, com
o peito dilacerado pela dor, deixava o castelo de Belmont, onde vivera os anos
mais floridos da sua existência. E em meio à tempestade que rugia com fúria,
embrenhou-se na floresta e caminhou durante três dias e três noites, só parando
para repousar num monte de feno quando lhe faltavam totalmente as forças.

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Deixava-se então cair ao pé de uma árvore e, com as roupas estraçalhadas pelas
urzes e espinhos e os pés ensangüentados pelas pedras do caminho, adormecia
exausta, escutando ao longe os uivos ameaçadores dos lobos e as lúgubres vozes
das aves noturnas. Enquanto isso, perto dali, numa clareira da floresta, uma tribo
de ciganos havia montado acampamento e dedicava-se a seus afazeres habituais.

Jezebel põe as cartas do Tarot, enquanto Vassili toca seu violino.

JEZEBEL — Há algo voltando do passado... Mas, não consigo ver claramente! O


passado está presente novamente, mas também é o futuro... Uma menina... E que
bela é! Um velho senhor... e uma mulher muito má... Muitos conflitos... A morte...
Mas, ao final, a justiça vencerá...

VASSILI — Que coisas estás a resmungar, Jezebel?

JEZEBEL — Nada, querido. São os Arcanjos do Tarot dos Bohemios que hoje só
me contam incongruências. Devo estar louca, carajo! Mas toca, por favor, toca
mais... Os sons de teu violino tem a virtude de acalentar minh’alma como o mais
doce dos vinhos...

VASSILI ​(Toca mais um pouco, depois para abruptamente.) — Jezebel, há alguém


entre as árvores.

JEZEBEL — Não há ninguém, Vassili. Algum coelinho perdido, alguma serpente.


Vamos, toca.

VASSILI — Não, Jezebel. Eu conheço muito bem os sons dos animais e das
pessoas. São muito distintos. Tu sabes que desde que perdi minha visão, minha
audição ficou ainda mais aguçada.

JEZEBEL — Sim, sim, claro. Confio em teu ouvido, mas não confio em teus
temores, carajo! Por piedade, deixa-me ver a sorte em paz... ​(Invocando.) Forças
ocultas do mais Alto Astral, orientem minhas mãos para desvendar o segredo.
​ as, o que é isto?
(Ruído. Rosalinda entra e coloca-se atrás de uma árvore.) M
Há alguém aqui?

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VASSILI — Te disse, Jezebel . Olha, aqui, a direita...

JEZEBEL ​(Erguendo-se.) — Quem está aí? ​(Saca um punhal.) Vamos, que não
estou para brincadeiras!

ROSALINDA (​Aparecendo.) ​— Sou eu, senhora. Apenas uma pobre órfã.

JEZEBEL — Aproxima-te. ​(Rosalinda aproxima-se.) Com mil demônios, uma


menina! E toda molhada. Que te aconteceu, niña?

ROSALINDA — Não tenho para onde ir . Perdi-me pela floresta e cheguei até
aqui orientada pelo som maravilhoso de um violino.

JEZEBEL — Era o violino de Vassili. ​(Para Vassili.) Tinha razão, querido, é uma
pobre garota perdida na tempestade.

VASSILI ​(Caminhando para Rosalinda.) — Esta voz, por Deus, esta voz...
Posso tocar teu rosto, querida?

ROSALINDA ​(Hesitando.)​ — Não sei ... Que quereis vós de mim?

VASSILI — É que me recordo de... de uma mulher que conheci em tempos


mais ditosos. ​(Passando os dedos no rosto de Rosalinda.) Sim, sim, por
Deus, não é possível, não posso crer, não pode ser verdade, a pele, os olhos,
o nariz, as sobrancelhas, as pálpebras... é o mesmo, exatamente o mesmo...
Tudo, tudo é igual...

JEZEBEL — Acalma-te, Vassili. A menina está assustada. Aproxima-te do fogo,


toma um pouco de vinho. Como te chamas?

ROSALINDA — Rosalinda, senhora. Mas por que ele está tão agitado?

JEZEBEL — É sua imaginação muy exacerbada. Ele acredita que te pareces com
alguém que ele conheceu. Vamos, dá-me teu manto. Está todo molhado. ​(Examina
o manto). Que belo trabalho. Estranho! Parece que já vi algo semelhante... faz muito
tempo... Onde encontraste este manto, niña?

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ROSALINDA — Agatha me-lo deu.

JEZEBEL E VASSILI ​(Muito espantados.)​ — Agatha!

ROSALINDA — Sim, a governanta do castelo do Vale Negro. ​(Nova reação dos


​ ertenceu a minha mãe. Gostais? Tomai. ​(Entrega o manto a Jezebel, o
ciganos.) P
daguerreótipo fica visível.)

JEZEBEL — Mas o que é isto? És tu?

ROSALINDA — Não. É um velho daguerreótipo. Encontrei-o por acaso...

JEZEBEL — Mas a semelhança é impressionante!

VASSILI — ​(Agitadíssimo.)​ Quem é a mulher do retrato?

ROSALINDA — Não sei, como posso saber? Mas imagino que seja...

JEZEBEL E VASSILI — Quem?

ROSALINDA — Minha mãe... que eu não conheci ...

VASSILI ​(Muito emocionado.) — Tua mãe? Jezebel... olha o daguerreótipo e


diz-me toda a verdade... é... é... é Úrsula?

JEZEBEL — Sim, é Úrsula.

VASSILI ​(Abraça Rosalinda, chorando.) — Minha filha... formosura, mi corazón,


que tortuosos caminhos foram necessários cruzar até encontrarte...

ROSALINDA ​(Assustada.) — Que está acontecendo? Não sou vossa filha, sou
apenas uma pobre órfã recolhida pela bondade do Senhor Conde Maurício de
Belmont.

JEZEBEL — Maurício de Belmont! Maldición! Queres dizer que este cão ainda vive?

ROSALINDA — Sim, mas por pouco tempo. Padece de grave enfermidade.


(Chorando).​ Expulsou-me do castelo, lançando-me os mais terríveis vitupérios.

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VASSILI — Cão dos Infernos! Irei matá-lo com minhas próprias mãos..

ROSALINDA — Não entendo o que dizeis. Porque quereis matar meu padrinho?

JEZEBEL — Não há tempo a perder. Devemos ir imediatamente ao castelo. No


caminho lhe explicaremos tudo, niña. Agora vamos.​ (Saem.)

CENA 11 - ​A Retomada

NARRADOR — Um turbilhão agitava a mente de Rosalinda, ainda incrédula, diante


de tão inesperadas revelações. Sua intuição, porém, aconselhava-a a obedecer ao
espírito forte e decidido da cigana Jezebel e a confiar na doçura do rosto e da voz
de Vassili, que calava fundo em sua alma de órfã desamparada. Sem perda de
tempo, Jezebel preparou uma carroça e os três puseram-se a caminho. Quando
chegaram ao castelo, já era noite fechada. A lua escondera-se atrás de plúmbeas
nuvens prenunciadoras de tempestade. A astuta cigana havia preparado um
narcótico para os cães que guardavam os portões, e assim eles puderam penetrar
na propriedade.

JEZEBEL ​(Entrando com Vassili e Rosalinda) ​...e foi isto que aconteceu.

ROSALINDA — Quer dizer que meus verdadeiros pais são...

JEZEBEL — O Cigano Vassili e Úrsula, a irmã do Conde Maurício de Belmont. Os


dois se apaixonaram loucamente, há muitos anos, é claro. Maurício não podia
admitir que uma Belmont se casasse com um cigano. Estava tão possesso que
queria mandar matar toda a tribo. Úrsula então abandonou o castelo e se escondeu
com os ciganos nas montanhas. Lá celebraram o matrimônio.

ROSALINDA — Mas meu padrinho... meu tio descobriu tudo...

VASSILI — Agatha, que se fazia passar por confidente de Úrsula, a traiu, contando
toda a verdade a Maurício.

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ROSALINDA — Posso imaginar o resto. Meu tio mandou seus esbirros invadirem o
acampamento cigano.

JEZEBEL — Ele mesmo comandou o ataque. E com suas próprias mãos cegou
Vassili com uma chibatada.

ROSALINDA — Pobre, querido papai. ​(Toca-o com ternura.)

VASSILI — Meu anjo. ​(Subitamente.)​ Ouço um barulho. Vamos nos esconder.

ROSALINDA — Aqui... atrás deste reposteiro... ​(Vassili e Jezebel escondem-se.)

AGATHA ​(Entrando, surpresa.) — Vós por aqui novamente? Não bastaram as


maldições que vosso padrinho vos lançou? Que quereis? Uma esmola? Uma côdea
de pão?

ROSALINDA — Quero apenas o que me é de direito. Não preciso de vossa


piedade!

AGATHA — Não vos entendo. Que quereis dizer com isso? Não tendes direito
algum, não passais de uma pobre enjeitada.

ROSALINDA — Enjeitada, eu? Como, se meu pai está aqui próximo?

AGATHA — Vosso pai? Porventura delirais? Vosso pai há muito não pertence ao
reino dos vivos.

ROSALINDA ​(Puxando o reposteiro.)​ — Como não?

AGATHA (​Recuando.)​ — O cigano Vassili! Jezebel! Que desejais?

VASSILI — Somente a verdade, Agatha. Nada mais que a verdade.

JEZEBEL ​(Ameaçando-a com o punhal.)​ — Vamos, mulher. Donde está Úrsula?

AGATHA — Não sei , não sei ...

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VASSILI ​(Torcendo-lhe o braço.) — Vamos, confesse antes que te mate como a um
cão leproso.

AGATHA — Por piedade, eu conto. ​(Recompõe-se.) Úrsula foi encarcerada na


cripta subterrânea embaixo da cascata.

ROSALINDA — A cascata… Quer dizer que aqueles uivos dilacerados que se


ouvem quando a cascata para pertencem à... à minha mãe?

AGATHA — Sim. Ela perdeu a razão quando vós nascestes. Vosso tio então
encerrou-a lá.

VASSILI — Minha pobre Úrsula.

JEZEBEL — E onde estão as chaves da cripta?

AGATHA — Aqui. ​(Estendendo-lhe um molho de chaves.)

VASSILI — Precisamos libertar minha amada Úrsula. Vamos todos à cripta. E tu,
Agatha, virá conosco para mostrar-nos o caminho.

JEZEBEL — Vamos.

AGATHA — A cascata parou novamente. ​(Ouvem-se gritos ao longe.)

CENA 12 - ​O Resgate de Úrsula

NARRADOR — Desse modo, através de uma passagem secreta, conhecida


somente por Agatha, os quatro penetraram nos subterrâneos do castelo de Belmont.
Desceram por uma íngreme escada em caracol e embrenharam-se num labirinto de
lúgubres corredores e estreitas galerias escavadas na rocha. Os gritos misteriosos
haviam cessado, e o sepulcral silêncio era apenas perturbado pelo eco surdo dos
seus passos e pelo ocasional bater de asas de um morcego. Finalmente,
desembocaram numa cripta úmida e infecta, que dir-se-ia habitada apenas por

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ratazanas e aranhas, não fosse aquela estranha voz entoando uma canção que
parecia vir de além-túmulo.

ROSALINDA — Por Deus! Está tão escuro aqui . Não consigo ver nada.

JEZEBEL ​(Tomando a vela das mãos de Agatha.) — Pronto. Assim é melhor.


(Olhando em volta.) Mas que lugar sujo... É uma pocilga, carajo. ​(Para Agatha.)
Vamos, desalmada. Donde está Úrsula?

​ Ali. ​(Aparece Úrsula,


AGATHA ​(Apontando para um ponto, que Jezebel ilumina.) —
completamente louca, suja e desgrenhada. Canta, enquanto embala uma boneca
nos braços.)

VASSILI — Minha querida, luz de meus olhos... Úrsula, bem amada!

ROSALINDA ​(Avançando para Úrsula.) - Mamãe! Oh, mamãe, julgava que estáveis
morta!

ÚRSULA ​(Para a boneca.) — Filha, filhinha querida. Não deves ter medo, não
deixarei que te façam mal. ​(Para Vassili.) Afasta-te, Maurício! Não permitirei que
destruas o fruto do meu amor! ​(Mudando o tom.) Besouro que cai de costas não
levanta nunca mais.

JEZEBEL — Está completamente louca! Maurício de Belmont há de pagar muito


caro todas as atrocidades que tem cometido!

​ A corça corria celeremente sobre o ouro dos campos.


URSULA ​(Chorando.) —
Como se fora uma seta voando sobre o verde. Até... até que numa curva mais
abrupta do escarpado caminho, numa curva ignominiosa seus pés quebraram.

ROSALINDA ​(Num gemido.)​ — Desditosa genitora!

​ E ela não pode correr mais. As corças de pés


ÚRSULA ​(Em pleno delírio.) —
quebrados não podem correr. Apenas rastejam. Como os besouros caídos de
costas... que não se levantam nunca mais.

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​ Cariño, não me reconheces? Sou eu, teu Vassili. Teu
VASSILI ​(Para Úrsula.) —
amor, o cigano...

ÚRSULA — Vassili? Não, não: Vassili foi assassinado por Maurício. Seu sangue
cigano cobriu o verde dos campos como o sangue inocente dos pés quebrados da
corça... O vermelho da violência derramado impunemente sobre o verde da
humildade...

VASSILI ​(Insistindo.) — E esta menina, vês? Esta doce menina é Rosalinda, nossa
filha querida. Veja que linda é!

ÚRSULA ​(Para a boneca.) — Tanto tempo. Tudo faz tanto, tanto tempo. Hoje é
como se fora outrora. E nunca mais outra vez.

ROSALINDA — Mamãe, mamãe, sou eu, Rosalinda, tua filha, a flor de teu ventre
puro.

ÚRSULA ​(Para a boneca.) — Minha filha? Minha filha é esta aqui. Filhinha,
filhinha... ​(Para a boneca.)​ — Sossega, ninguém te fará mal.

AGATHA ​(Mordaz.) — É definitivamente inútil. Esta parva jamais recuperará a


razão.


JEZEBEL ​(Torcendo-lhe o braço.) — Cala-te, víbora! Tuas palavras são mais
monstruosas que tua corcunda! ​(Como se orasse.) No amor, residem forças
incríveis... capazes de mudar o rumo do universo...

VASSILI ​(Pegando Úrsula pelos ombros e sacudindo-a.) — Úrsula. Te digo que


sou Vassili! Muitos anos se passaram. Mas estou vivo. E estou aqui para vingar
nosso amor. Sou Vassili! Vassili!

ÚRSULA ​(Com um lampejo de lucidez.)​ — Vassili?

VASSILI - Sim, minha amada, não reconheces meu rosto?

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ÚRSULA — Esse rosto... essa pele morena... esse corpo delgado… ​(Detêm-se.)
Não, não! Não acredito! Vai-te daqui! És um impostor! Um sicário a mando de
Maurício para me torturar ainda mais! ​(Em delírio.)​ Bezouro que cai de costas...

​ Ah, Santo Deus! Vai começar outra vez!


JEZEBEL ​(Um tanto irritada.) —

VASSILI ​(Transtornado, agarrando-a com mais força.) — Úrsula, Olhe bem para
mim, em meus olhos, estes olhos cegos...

ÚRSULA ​(Tocando-o.) — Meu Deus, o manso veludo dessa tez… a suavidade


desses lábios carmesim... Vassili, serás mesmo tu? O brinco em tua orelha
esquerda...

VASSILI — Úrsula, minha vida...

ÚRSULA — O frescor de hortelã de teu hálito cálido, tuas mãos nodosas e fortes. A
carícia áspera de tua barba dura. Não, não pode ser verdade, seria bom demais.
Será que estou ficando louca, Virgem Santíssima?

VASSILI — É verdade, cariño, sou eu! E aqui também está Jezebel, nossa querida
amiga e protetora.

ÚRSULA — Vassili, meu Vassili... Ai, Jesus, parece um sonho… ​(Delírio.) Ou quem
sabe Deus teve pena de mim e me chamou para sentar ao lado seu no empíreo
celestial?

​ Ai, carajo!
JEZEBEL ​(Disfarçando.) —

VASSILI — Não, não, estás viva! Acabaram-se teus tormentos!

ÚRSULA ​(Reconhecendo-o finalmente.) — Sim, agora eu tenho certeza! És tu,


Vassili! Meu adorado! Mas de que desvão esquecido da memória me surgiste?

​ amos agora começar


VASSILI — Úrsula! ​(Abraçam-se e beijam-se ardentemente.) V
vida nova, tu, eu e Rosalinda...

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ÚRSULA — Rosalinda?... ​(Olha para a boneca. Olha para Rosalinda. Deixa cair a
boneca). Meu Deus... não pode ser... seria demasiada ventura para meu coração se
essa donzela fosse... fosse...

ROSALINDA ​(Abrindo os braços.)​ — Vossa filha!

ÚRSULA ​(Abraçando-a.) — Filha querida! Oh, fruto mais puro que o meu ventre
jamais gerou! Enfim posso abraçar-te!

ROSALINDA — Mamãe, querida! Que felicidade encontrar-vos!

ÚRSULA — Minha boa Jezebel... Mas... que aconteceu? Por que estão todos aqui?
Por que estou vestida assim? Que tenebrosa masmorra é essa? ​(Começando a
delirar de novo). Há como um poço escuro em minha memória... Um poço escuro
onde flutuam corças de pés quebrados... negros besouros caídos de costas... (​Vê
Agatha e recua espavorida).​ O que ela está fazendo aqui?

JEZEBEL ​(Agarrando-a por um braço, impaciente.) —Não há tempo para explicar,


Úrsula. Nem para loucuras outra vez. Mais tarde te contaremos tudo. Temos, agora,
que desmascarar Maurício. Deixemos este infecto covil. Somente um monstro sem
coração poderia encarcerar sua própria irmã. ​(Saem todos)

CENA 13 - ​O Embate entre Irmãos

NARRADOR — Celeremente voltaram todos ao castelo. Depois de tão cruéis


sofrimentos, a felicidade parecia prestes a sorrir aos nossos heróis. O coração de
Rosalinda, do malgrado a alegria do seu reencontro com os pais, ainda estava
velado por uma nuvem de inquietação. A pobre rapariga pensava no fruto de seu
desgraçado amor, que crescia em seu seio como uma erva daninha e em breve
viria ao mundo sem a proteção de um pai. Quando chegaram ao castelo, o relógio
soava as doze badaladas.

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MAURÍCIO ​(Está adormecido, quando Úrsula entra lentamente e toca em seus
cabelos.) — Quem me tocou? Úrsula? Fugiste novamente? Agatha, tira esta louca
daqui!

ÚRSULA ​(Perfeitamente lúcida.) — Já não estou louca, meu caro irmão. Meu
bem-amado e minha querida filha me devolveram a razão.

MAURÍCIO — Teu bem-amado? Tua querida filha? Se te referes àquele cigano


imundo, fica tu sabendo que há muitos anos eu mesmo o ceguei com uma
chicotada. Deve andar esmolando pelas sarjetas. E quanto a tua ingrata filha, eu a
expulsei de meus domínios. Não há lugar para meretrizes no castelo do Conde
Maurício de Belmont . E tu, mais do que ninguém, sabes muito bem disso...

ÚRSULA ​(Muito segura.) — Tua maldade não tem limites, Maurício. Os sofrimentos
que já causaste, as vidas que destruíste, certamente fariam petrificar a própria
Górgona.

MAURÍCIO ​(Interrompendo-a.) — Ousas acusar-me? Foste Tu — tu, minha cara


irmã, quem iniciou este rosário de desgraças. És tu, e apenas tu, a culpada de tudo.
Ou não te recordas? Queres que te refresque a memória? Mesmo antes de te
amancebares com aquele cigano asqueroso, já me desafiavas, insuflando os
mineiros do Vale Negro contra mim. Contra mim, teu próprio irmão! Tu, uma
aristocrata, uma condessa do clã dos Belmont!

ÚRSULA — Sim, uma aristocrata, uma condessa de Belmont. Mas antes de tudo,
uma mulher. E uma mulher com coração! Não podia assistir indiferente aos
tormentos dos desventurados mineiros e de suas miseráveis famílias. Explorados,
inermes, escravizados por ti, meu irmão! Os camponeses entregando suas
lamentáveis vidas às profundezas da terra de teu porco latifúndio, enquanto as
mulheres, as criancinhas e os anciãos inocentes morriam à míngua em suas fétidas
choupanas. Foi a caridade que me levou...

MAURÍCIO ​(Interrompendo-a.) — Caridade? Chamas de caridade a teu gesto de


incitamento à rebelião contra a autoridade?

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ÚRSULA — Aproximei-me dos mineiros, inicialmente, movida por um sentimento
cristão de amor ao próximo. Queria somente mitigar as duras penas impostas por ti
àqueles infelizes. Queria levar-lhes comida e agasalho, ensinar àquelas pobres
criancinhas a cartilha e o catecismo. Mas o verdadeiro espírito de solidariedade
humana, eu o aprendi com aquele que consideras um pária: Vassili!

MAURÍCIO — Maldito seja!

ÚRSULA — Sim, ele mesmo. Foi Vassili quem me ensinou que o mundo não
precisa necessariamente ser dividido entre pobres e ricos, em miseráveis e
poderosos, em senhores e escravos. Em nobres, de um lado, e em mineiros,
ciganos e negros do outro.

MAURÍCIO — Basta! Já foste longe demais, insensata! Vejo que estás mais
demente do que nunca. Retorna ao teu repulsivo subterrâneo. Nada tens a fazer
aqui, na casa que desonraste. Teu sonho libertário acabou! ​(Irônico.) E contudo teu
coração ainda pulse, a própria vida acabou para ti, espectro de gente!

ÚRSULA ​(Muito calma.) — Enganas-te, mui prezado irmão. Após tantos anos
obnubilada, a vida recomeça para mim. Neste exato momento, quando acabei de
reencontrar meu marido e minha filha. ​(Afasta o reposteiro e aparecem Vassili,
Rosalinda, Jezebel e Agatha.)

CENA 14

MAURÍCIO — Jezebel! Vassili! Rosalinda! Não é possível! ​(Tosse.) Agatha, Agatha,


minha tisana!

AGATHA ​(Libertando-se de Jezebel, muito sôfrega, apanha o vidro.) Pronto, senhor


conde. Aqui está.

JEZEBEL — Deixa-me ver este frasco.

AGATHA ​(Tentando escondê-lo.)​ — Não!

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JEZEBEL ​(Matreira.) — E por que não? Pelo que disse, trata-se apenas de uma
tisana medicinal. ​(Arranca-o das mãos de Agatha.) Tisana medicinal! Isto é um forte
veneno: arsênico! A corcunda está assassinando lentamente o Conde!

MAURÍCIO — Veneno! Oh, ingrata Agatha! E eu que te supunha a única criatura no


mundo a manter-me alguma fidelidade! ​(Tosse e entra em violenta crise.)

AGATHA — Pois te enganaste, velhaco! Eu sempre quis apenas tua fortuna!

ÚRSULA — Não a deixem fugir!

VASSILI ​(Segurando Agatha.)​ — Não escapará, maldita!

MAURÍCIO ​(Tossindo muito) — Ledo engano! Meu esfalfado coração já não resiste
a esses golpes cruéis... Que trevosa sina a minha! Ajudem-me que morro! ​(Para
Jezebel).​ Cigana Jezebel, antes de morrer quero revelar-vos um segredo.

JEZEBEL — Um segredo? Por mim não daria ouvidos a tuas palavras sujas. Mas a
morte é poderosa. Está bem. Fala.

MAURÍCIO — Jezebel... sempre vos amei. Jezebel, ah Jezebel, deixai-me repetir


vosso nome como se música fora para meus fatigados ouvidos… Jezebel, meu
sonho mais acalentado sempre foi beijar vossos lábios de carmim. Tivesse tido eu
tal privilégio, quiçá o destino não me houvera transformado neste sórdido algoz que
ora agoniza. Mas sempre me desprezaste. ​(Tosse) Jezebel, não negueis o
derradeiro pedido de um moribundo. Sinto que morro, Jezebel. Dai-me um beijo. Um
único beijo, um derradeiro beijo e morrerei feliz.

JEZEBEL ​(Hesita. Todos olham. Acaba curvando-se e beijando-o) — Meu coração


sempre pertencerá a Vassili, ainda que ele não me quiera. Que os deuses se
apiedem de teu espírito..

MAURÍCIO — Rosalinda, sobrinha querida... Úrsula, minha devotada irmã...


Desventurado cigano Vassili, eternamente a vagar pelas sombras... Todos vítimas

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de minha cega cupidez! Por tudo que há de mais sagrado, perdoai -me! Deixo para
vós toda a minha fortuna ​(morre).

JEZEBEL — Se finou. ​(Fecha os olhos dele com delicadeza e melancolia) ​Acabou.


Está morto. ​(Rosalinda e Úrsula choram)

AGATHA ​(Aproveitando-se da emoção de Vassili, apanhou a bengala que Maurício


deixou cair) — Adeus, idiotas! Não me pegarão com vida. ​(Vassili tenta apanhá-la.
Leva uma pancada na cabeça e cai desfalecido. Agatha foge rindo às gargalhadas)

ÚRSULA — Vassili! Oh, meu Deus, ela o matou!

ROSALINDA — Papai, papai! Fale comigo!

JEZEBEL — Maldição! (​Ouvem-se os cães latindo. Jezebel corre à janela.) Os cães


despertaram e vão atacá-la! Que cena horrível! Meu Deus, a estão destroçando!
Tanto sangue! ​(Pausa) Que isto, agora? Há um cavalheiro chegando. Mas
demasiado tarde... Ele saca uma escopeta e aponta para os cachorros. ​(Ouvem-se
vários estampidos.)

ROSALINDA (​Correndo à janela.)​ — Rafael, só pode ser ele!

JEZEBEL — Quem é esse homem?

​ O pai de meu filho.


ROSALINDA ​ (Baixando os olhos.) —

VASSILI ​(Despertando.)​ — Que ouço? Minha filha...

TODOS — Vassili ! Papai ! Ele está vivo!

VASSILI ​(Ainda tonto.) — Sim. Estou mais vivo do que nunca. E quero saber,
Rosalinda, de que homem estás falando.

​ Do homem por quem me apaixonei. Do biltre infame a


ROSALINDA ​(Dolorosa.) —
quem — ah, tola donzela, iludida por perfídias! — entreguei minha pureza e que me
desgraçou.

32
CENA 15

RAFAEL ​(Entrando com o corpo de Agatha.)​ — Os cães a destroçaram.

ÚRSULA — Teve o fim que merecia.

JEZEBEL — Pobre corcunda!

RAFAEL — Rosalinda, eu...

ROSALINDA ​(Cortando.) — Que mais ainda quereis de mim, cruel mancebo?


Ide-vos daqui. Atraiçoaste-me com vossas juras inconseqüentes, com vosso falso
amor .


RAFAEL ​(Contrito.) — Vim justamente pedir-vos perdão por todo o mal que
involuntariamente vos causei. Estou amargamente arrependido. Desde que vos
desonrei, vossa imagem não me sai do pensamento. Doce Rosalinda, julgo
enlouquecer sem vosso amor. Quero reparar meu erro. Perdoai-me, por piedade.
Vim pedir vossa mão ao Conde Maurício.

ROSALINDA — Tarde demais. Ele está morto.

VASSILI ​(Levantando-se.) ​— Mas eu a concedo. Eu sou seu verdadeiro pai. Se é


verdade que amas minha filha… ​(Interrompendo-se, olhando em volta.) Mas, que
está acontecendo? Sinto uma vertigem...

ÚRSULA — Vassili, o que tens? O sangue fugiu de tuas faces.

VASSILI — Não compreendo... Meus olhos. Eu podia anteriormente decifrar alguns


cobres... o verde, o azul... Sim, porque não há escuridão total na cegueira...
Somente uma luminosidade... uma luminosidade nas sombras… ​(olhando para
qualquer coisa vermelha que há em cena) mas o vermelho... Há quanto tempo não
o via... Por Deus, o vermelho!

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JEZEBEL — É uma alucinação. Vassili, senta-te um pouco. Estás fatigado de
tantas emociones.

ÚRSULA — Venha, querido.

VASSILI — Não, não! Quero ficar de pé. Meus olhos... não compreendo... Que luz
cegante é essa? Que claridade espantosa há no mundo!

ROSALINDA — Papai, papai!

VASSILI — Quero ver... ver... Não é possível, não posso acreditar, não é verdade! É
um milagre... um verdadeiro milagre, um milagre divino! ​(Olhando uma a uma,
incrédulo) Jezebel, Úrsula, Rosalinda: começo a ver claramente vossos queridos
rostos!

ÚRSULA — A pancada que Agatha te deu...

ROSALINDA — ...fez com que vossa visão voltasse!...

VASSILI — Sim, sim, pelos deuses! Jeus, Jesus, recuperei a visão!

JEZEBEL — Louvado seja Deus!

TODOS — Louvado seja!

RAFAEL ​(Para Rosalinda.) ​— Então, quereis contrair matrimônio comigo?

ROSALINDA — Minha resposta só poderia ser afirmativa, meu amado. Não


conseguiria ocultar por mais tempo que meu coração vos pertence desde o primeiro
momento que vos vi! ​(Beijam-se apaixonadamente.)

VASSILI — Agora seremos todos felizes...

ROSALINDA — Sim, os sofrimentos tiveram seu fim.

RAFAEL — Agora, a paz e a justiça reinarão para sempre no castelo de Belmont.

ÚRSULA — Amanhã mesmo triplicarei o salário dos mineiros.

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ROSALINDA — Oh, meu Deus, como agradecer-vos tanta felicidade?

JEZEBEL — As cartas não mentem jamais.

NARRADOR — E assim, punidos os culpados, e terminados os infortúnios daquelas


almas abnegadas, cerremos docemente as cortinas sobre este quadro familiar,
enquanto as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantam o hino misterioso
do amor, da ventura e da paz.

FIM

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