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Curso de Apologética - Apendice1

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Vem e segue-me!

Santo Afonso de Ligório (1696-1787)


"Morra um de nós dois... Não quero ver-te mais!"

De uma biografia do Doutor da Igreja, Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787):

A 28 de agosto de 1723, a corte estava de gala. Duques e príncipes ostentavam


seus mais ricos e reluzentes adornos. Celebrava-se a festa da imperatriz Isabel, esposa de
Carlos VI. Dom José (pai de Santo Afonso) convidou seu filho para a cerimônia do beija-
mão.
— Meu pai — respondeu Afonso — que quer que eu faça neste mundo, onde tudo
é vaidade?
— Pois bem — gritou colérico dom José — faze o que quiseres, e vai aonde te
aprouver.
— Acalme-se, meu pai; eu irei com o senhor.
— Vai aonde quiseres, já te disse... e, com um gesto de desdém retirou-se.
"Abandona o mundo, entrega-te a Mim..."
Tomando o seu carro, dirigiu-se, não à corte, mas a Marianela, sua casa de campo.
Afonso, entretanto, perplexo, dizia consigo: Se resisto ao pai, causo-lhe desgosto; se a ele
atendo, temo ofender a Deus. Que fazer?...
Acabrunhado pela inquietação e incerteza, dirigiu seus passos para o hospital dos
incuráveis. Todo ocupado em lavar feridas e curar misérias, sente-se de repente envolvido
por uma luz vivíssima. Todo o edifício parecia estremecer. E ouviu uma voz muito
distinta:
— Abandona o mundo... Entrega-te a Mim...
Aquilo impressionou-o. Não seria a resposta às suas dúvidas? Prosseguiu, todavia,
zelando dos doentes, como se nada acontecera. Terminada a sua caridosa visita, desceu a
escadaria do hospital, de volta para casa, quando de novo o deslumbrou o misterioso
esplendor acompanhado daquela mesma exortação:
— Abandona o mundo... Entrega-te a Mim...
Não pôde caminhar. As lágrimas brotaram-lhe abundantes dos olhos.
— Senhor — exclamou — demasiado Vos resisti. Eis-me aqui... Fazei de mim o
que Vos aprouver...
Com o coração a transbordar de emoção, dirigiu-se à igreja de Nossa Senhora das
Mercês. Prostrou-se diante da imagem de Maria, e ali, pela terceira vez, ouviu a voz do
Céu:
— Abandona o mundo... Entrega-te a Mim...

Ao sair da igreja, era como se tivesse renascido

Nesse instante renovou Afonso o propósito de deixar tudo para consagrar-se a


Deus e, como penhor de fidelidade, ergueu-se, descingiu sua espada de cavaleiro e
colocou-a sobre o altar de sua Mãe, a Senhora das Mercês. Ao sair da igreja, era como se
tivesse renascido. Encaminhou-se para casa de seu diretor espiritual, o Padre Pagano,
contou-lhe o sucedido e manifestou-lhe a resolução irrevogável de abandonar logo o
mundo.
— Filho — aconselhou o Padre — isto não é negócio que se resolva num dia. É
preciso refletir. Dentro de um ano, veremos o que convém fazer. Apenas entrou Afonso
em seu aposento, apresentou-se-lhe dom José. Falou demoradamente. As palavras
'abandono, fortuna, carreira, glória, renome de família, casamento brilhante', saíram-lhe
atropeladamente dos lábios. Afonso, com o coração apertado pela dor quase desesperada
do pai, respondeu:
— Pai, não posso ir contra Deus... Contra Deus... não posso.
Dom José enfureceu-se, e batendo violentamente a porta, saiu gritando:
— Morra um de nós dois... Não quero ver-te mais.
Afonso compreendeu que era inútil ocultar por mais tempo a verdade. A continuar
assim, o único que conseguia era prolongar as torturas do idolatrado pai. Seguiu-o, pois,
e, entrando resolutamente em seu aposento, começou dizendo:
— Meu pai, vejo-vos triste por minha causa; mas devo declarar-vos que não
pertenço mais ao mundo. Deus quer que me retire dele... Não me leveis a mal... pai, dai-
me a vossa bênção.

Até um célebre religioso tentou demover o Santo de sua vocação, mas não o conseguiu

Num instante viu dom José desmoronarem-se todos os cálculos e ilusões de sua
vida. Não agüentava mais. Escureceram-se-lhe os olhos e, sem articular uma palavra,
retirou-se; mas não se deu por vencido. [...]
Tomou o carro e foi visitar poderosos seculares e distintos Sacerdotes, amigos de
Afonso. Alguns prometeram-lhe que tentariam dissuadir o advogado de sua apressada
resolução.
Até um célebre religioso pôs a serviço de dom José sua influência e seu renome.
O Comandante voltou para casa cheio de esperanças. Curto, porém, muito curto foi o seu
gozo. A todos os argumentos, fossem lá de quem fossem, Afonso respondia:
— Deus me chama... Não posso resistir-lhe...

Embora houvesse consentido, durante um ano não quis ver o filho

Aquele que triunfara do filho, acabava de triunfar também do pai. Dom José cedia,
mas com uma condição: Afonso não iria para nenhum convento; continuaria vivendo com
sua família. Afonso, por sua vez, dirigido pelo padre Pagano, cedeu.
A 27 de outubro de 1723, o herdeiro dos Ligórios trocava suas luxuosas vestes de
nobre cavaleiro pela humilde veste clerical. O pai, embora houvesse consentido, durante
um ano inteiro, não quis ver o filho. Se, às vezes, o encontrava em seu caminho, soltava
gemidos de dor e afastava-se.
Anos mais tarde, ao passar diante de uma igreja, ouviu a voz do pregador. Crendo
ser a voz do filho, entrou, e, oculto no meio da multidão, sentiu-se pouco a pouco
comovido por aquela palavra insinuante e impregnada de sobrenatural unção. Ali mesmo
inclinou sua fronte altiva e chorou. Quando Afonso, naquela tarde, voltou para casa,
encontrou-se na porta com dom José que o esperava.
— Filho... meu filho — disse-lhe o ancião abraçando-o com ternura — meu filho,
ensinaste-me a conhecer a Deus... Graças pela vocação que te deu. Deus te abençoe! [...]
(Pe. José Montes CSSR, Afonso Maria de Ligório, o Cavaleiro de Deus, Vozes,
Petrópolis, 1962, pp. 24 a 26, 28, 37-38 / Imprimi potest: Pe. José Ribolla CSSR, Superior
Provincial, São Paulo, 2-8-1961).
Perseguições aos santos

Santo Inácio de Loyola (1491-1556)

Fabio Ciardi, Los fundadores hombres del Espíritu, Ediciones Paulinas, Madrid, 1983, pp. 250 a 253:
Contra Santo Inácio de Loyola, oito processos

As novidades que Santo Inácio traz à vida religiosa não são menos evidentes que
as de São Francisco, e também não podiam deixar de suscitar oposições. Basta notar os
oito processos que sofreu antes da fundação da Ordem (Inácio os enumera claramente a
D. João III, Rei de Portugal, em 15 de março de 1545).
Somente o último processo se refere diretamente a toda a nascente Companhia,
mas também os outros têm relação com ela; sem dúvida, não tanto no que diz respeito a
sua estrutura quanto, indiretamente, no que toca às idéias e modalidades operativas que
haverão de ser sua alma. O modo e o próprio fato de dar os Exercícios, o estilo de vida
que leva com os discípulos em Alcalá, Salamanca e Paris, assim como o conteúdo da
pregação que faz em Roma, tornam-no muitas vezes suspeito aos olhos da Inquisição,
seja de formar parte da seita dos Iluminados, seja de professar o luteranismo. [...]
Sem embargo, assim como Francisco encontrou um Giovanni Colonna que lhe
abriu o caminho, Inácio encontrou o Cardeal Gaspar Contarini, seu discípulo nos
Exercícios, que o compreende e aplana o caminho da aprovação. E, sobretudo, um
Pontífice que reconhece a origem carismática da obra. 'Spiritus Dei es hic', ou 'digitus
Dei est hic', teria dito Paulo III com uma frase que permaneceu célebre. [...] Com idêntica
força confirmará nos documentos oficiais o reconhecimento da inspiração do Espírito na
fundação da Companhia. Ademais, vê na nova Ordem a resposta para as necessidades de
reforma da Igreja. Também posteriormente, em múltiplos atos de estima e nos favores
que outorga à Companhia, o Papa mostra que reconhece seu carisma.

Mesmo depois da aprovação papal, a Companhia de Jesus é formalmente condenada pela


Sorbonne

Isso não o impedirá de, por sugestão do Cardeal Guidiccioni — já benévolo em


relação à nova Ordem por uma inspiração que, segundo Ribadeneyra, levava à vontade
onde não a levavam os argumentos humanos — limitar a aprovação ao número de só
setenta membros, a fim de permitir provar o caminho e a contribuição concreta da nova
instituição.
De todas as formas, a aprovação não fará cessar as oposições e contrariedades à
Companhia, oposições que culminarão, no fim da vida de Inácio, com o decreto da
faculdade de Teologia de Paris, a qual, assim como três séculos antes se havia declarado
contra as Ordens mendicantes, agora condenava as novidades que trazia a Companhia,
acusando-a de ser perigosa para a Fé, perturbadora da paz da Igreja, destruidora das
Ordens religiosas e nascida para destruir mais do que para edificar.

Santa Teresa de Ávila (1515-1582)

William Thomas Walsh, Santa Teresa de Ávila, Espasa-Calpe S.A., Madrid, 1960, 3ª ed., pp. 236 a 246:
O povo de Ávila não se teria sublevado tanto se se tivesse descoberto um inimigo
estrangeiro oculto dentro das muralhas da cidade.

Aquela fundação era algo que ultrapassava as medidas

Pensar que uma freira quisesse obter sua liberdade por meio de um pretexto
inconsistente e utilizá-la para organizar um mosteiro ridículo, que não era outra coisa
senão um esconderijo e um insulto para o (mosteiro) da Encarnação e todos os que com
ele eram relacionados, sem falar das pessoas da cidade que teriam que sustentar a ela e às
que haviam sido bobas para segui-la, era algo que ultrapassava as medidas. Aquela mulher
presunçosa, desleal, desobediente e despeitada fizera cair a desgraça de cheio sobre o
convento, sobre suas moradoras e sobre toda a ordem carmelitana. Tais eram as coisas
que corriam de boca em boca e que os parentes repetiam a partir do exterior às freiras de
dentro, e estas à Superiora. [...]

Já havia conventos demais na cidade, e tudo aquilo parecia muito suspeito...

Ávila era uma (cidade) quase mais levítica do que católica, pois toda família de
verdadeira importância tinha um ou mais de seus membros em algum dos conventos que
ali existiam. Precisamente porque o povo gostava da religião e não a odiava, é que
perseguiam Teresa.
Não era apenas porque o convento teria que ser mantido por suas contribuições,
mas antes porque já havia um excessivo número deles pertencentes a todas as grandes
ordens; e para as muitas freiras e seus parentes em quase todas as casas da cidade, o abrir
um novo convento se lhes afigurava desnecessário, e até insultante. E aquele segredo com
que se levara a cabo (a fundação) fazia tudo parecer muito suspeito. [...] A classe das
pessoas mais ilustres e respeitáveis [...] era a que dirigia o ataque. [...]
Os regedores e letrados da cidade reuniram-se e designaram a Alonso Yera e
Perálvarez Serrano para que visitassem de parte deles o senhor Bispo para pô-lo ao
corrente do que pensava a cidade acerca do ultraje que se havia descoberto, e que, se fosse
o caso, se apelasse a Felipe II e ao Real Conselho de Castela. Em uma terceira reunião
[...] fizeram os planos necessários para congregar todos os chefes da opinião pública da
cidade em uma junta magna no Concelho, no dia seguinte; junta para a qual também foi
convidado o Bispo.

Por causa daquelas pobres mulheres, uma assembléia imponente e solene

Foi uma imponente e solene assembléia a que se reuniu no Domingo após a Missa,
e a cidade não teria podido realizar, caso estivesse ameaçada por uma inundação, ou pela
peste, ou por uma invasão, uma demonstração de maior importância do que a promovida
por causa daquelas pobres cinco mulheres que só pediam que lhes deixassem rezar e
comer o pouco que podiam.
Tudo quanto em Ávila havia de antiga nobreza, de religioso estava representado
naquela colorida multidão. Nela tinha assento o licenciado Brizuela, representando e
atuando como provisor do Bispo, bem como os oficiais da cidade vestidos com seus
brilhantes trajes adornados de ouro. O Cabido da catedral estava representado pelos
Cónegos Pérez Soria e o Arquidiácono Sedano. O convento dominicano de São Tomás
enviou vários delegados, entre os quais o Prior Padre Pedro Serrano e o jovem teólogo
Padre Domingo Bánez. Em nome dos Franciscanos encontravam-se presentes o Padre-
guardião, Martin de Aguirre, e o Padre Hernando de Valderrábano; pelos Premonstraten-
ses, o Abade, Francisco Branco, e o pregador; pelos Beneditinos, o Abade dom Pedro de
Antoyano e um dos Frades; pelo colégio de São Gil (dos Jesuítas), o Padre Baltasar
Álvarez e o Padre Jerônimo Ripalda. Assistiram também o mestre Daza e outros
Sacerdotes letrados e cavaleiros leigos das melhores famílias da cidade de Ávila.
Uma vez sentados e em silêncio, o corregedor abriu a sessão. [...] Assim disse:
[...]

É uma inovação, e portanto trata-se de algo sem dúvida perigoso e detestável

«É matéria para todos notória, a inovação surgida nesta cidade outro dia em forma
de um convento de Carmelitas Descalças. E o mero fato de constituir uma inovação basta
para fazer ver claramente o perigoso e detestável que é. A confusão que produz na coisa
pública, as inteligências que perturba, as línguas que desata, as murmurações que
fomenta, as desordens que engendra [...] tudo isto, quem o ignora? E, assim sendo,
considerando o que em geral acontece com toda inovação, torna-se a presente a mais
perigosa de todas, já que leva a máscara e o manto de uma piedade maior. Permitir que
se multipliquem os conventos e as Ordens religiosas não aumenta o bem comum |...] já
que, afinal de contas, o que é dado a um convento é subtraído ao resto da cidade. [...]

Além do mais essa Freira tem um espírito muito singular...

«E como podemos saber, senhores, se esta fundação não é uma fraude ou um


engano do demónio? Dizem que essa religiosa tem revelações e um espírito muito
singular. [...] Eu não a acuso de fraude, por ser matéria que não me compete; mas gostaria
de inspirar cautela aos espíritos prudentes, para que não admitam inovações, não
multipliquem os conventos, não lhes permitam se estabelecer sem o conhecimento e a
autorização da cidade, e que, por meio de pessoas ponderadas, se averigúe se seu direito
é questão do serviço de Deus ou não é. Esta é minha opinião e espero que seja aprovada
por todos os sábios e experientes que aqui se encontram congregados».
Uma vez terminada a alocução do corregedor, o licenciado Brizuela, na sua
qualidade de provisor do Bispo, tomou a palavra para informar a assembléia de que a
fundação se tinha feito com a autorização de Sua Senhoria. Leu a seguir o Breve do Papa
Pio IV no qual se outorgava o consentimento para isso. E, cumprida tal obrigação, pediu
licença para se retirar discretamente.

Quase todos aprovaram as razões do corregedor, sem sequer tomar o trabalho de examiná-
las... E ninguém se atrevia a defender a verdade

O corregedor manteve seus pontos de vista e inquiriu a opinião dos demais. Quase
todos aprovaram plenamente suas razões, sem sequer tomar o trabalho de examiná-las,
como diz a Crônica Carmelitana.
Outros, de idéias duvidosas ou contrárias, ficaram silenciosos, sem atrever-se a
defender publicamente a verdade; debilidade muito própria das comunidades em que o
interesse egoísta é freqüentemente anteposto ao bem público justamente por aqueles que
estão mais obrigados a defendê-lo, e que têm sobeja autoridade para fazê-lo.

Foi aumentando a indignação geral contra Santa Teresa, e apareceram outras acusações
igualmente sem consistência
Com um discurso atrás do outro, foi aumentando a indignação geral contra as
Carmelitas, e de maneira tão violenta que Teresa se surpreendeu, ao ouvi-lo dizer, de que
não tivessem ido todos, numa turba desenfreada, destroçar sua pequena morada.
Além da acusação geral de que havia prejudicado os outros seis conventos de
Ávila e, por meio deles, a toda a comunidade e em especial aos pobres, alegou-se que sua
fundação sobre a base da pobreza contradizia o espírito do Breve pontifício, que havia
permitido um dote, assim como que tal Breve não tinha sido apresentado à Sua Majestade
e ao Real Conselho de Castela para aprovação. Os homens práticos fizeram observar, por
seu lado, que a casa estava sujeita a um imposto que a cidade não devia perder. Argüiam
outros que se tinha causado um prejuízo material a toda a comunidade por algumas
ermidinhas que tinham começado a se erigir em cumprimento de sua ambição infantil, e
que um de tais retiros ia privar da luz do sol uma construção em arco debaixo da qual se
recolhiam as águas de vários mananciais para o uso público; pelo que a água ia gelar no
inverno e, por conseguinte, não seria possível utilizá-la. [...]

Parecia que estava em jogo a segurança de toda a Espanha...

No conjunto, a reunião [...] foi a mais solene que se podia ter celebrado no mundo,
como se nela tivessem estado em jogo a perda ou a segurança da Espanha... Concordaram
todos em que seria um bem que desaparecesse o mosteiro.
Teresa escreveu mais tarde a tal respeito: 'Espantava-me do que o demônio fazia
contra umas mulherzinhas, e como lhes parecia a todos que era um grande dano para o
lugar apenas doze mulheres e a prioresa... e de vida tão estreita. [...]
Tem-se o testemunho dela mesma (Santa Teresa) de que o seu único defensor foi
um dominicano; e é coisa inteiramente certa que foi Frei Domingo Bánez, professor de
teologia no convento de São Tomás.

Apenas uma voz ousou defender a inocência

O Padre Bánez, destinado a ser um dos teólogos mais prestigiosos de seu século,
e a sustentar a célebre polêmica com os Padres jesuítas Molina e Suárez, sobre o livre-
arbítrio — discussão ainda de pé — era naquele tempo homem de trinta e quatro anos de
idade. [...]
No ano de 1561, fora enviado a Ávila, para ensinar teologia. Na sua Ordem gozava
da fama de ser um pensador tão profundo como arguto, e ao mesmo tempo humilde, afável
e de grande discrição, muito dado à oração e às mortificações. Ao assistir com os outros
Dominicanos à tal famosa junta, não conhecia ainda Teresa, mas [...] teve a coragem de
levantar-se sozinho para defendê-la, sem considerar que os restantes membros de sua
própria Ordem permaneciam discretamente calados. Disse:

"É minha consciência que me obriga a falar"

«Talvez pareça temerário opor-me a tantas e tão graves pessoas e a raciocínios tão
bem expressos. Mas, se minha consciência me assegura e me obriga mais do que a de
outros a tomar parte numa discussão livre como esta, não posso deixar de declarar o que
ela me dita em favor do novo mosteiro das Carmelitas Descalças.
«Meu testemunho estará pelo menos isento de toda a paixão, pois até o momento
presente jamais falei com a fundadora e nunca a vi, nem tratei de sua fundação em nenhum
sentido.
«Admito que se trata de algo novo e, como tal, produziu os efeitos que toda
inovação costuma produzir nas multidões. Mas isso não é razão para que também os
produza nos conselhos graves e prudentes, já que nem toda inovação é repreensível. Por
acaso foram as outras Ordens religiosas fundadas de outra maneira? Por acaso as reformas
que vemos dia a dia e as que viram nossos antepassados não nasceram quando menos se
pensava? Por acaso a própria Igreja cristã não foi reformada pelo próprio Cristo? É bem
certo que nada dela, por excelente que fosse, poderia ser melhorado se todos nos
submetêssemos covardemente ao medo da inovação.

"Quanto louvor mereceria Ávila se seguíssemos os passos dessa heróica virgem!"

«O que se implanta para a maior glória de Deus e para a reforma dos costumes
não deve ser chamado de inovação ou invenção, mas renovação da virtude, que é sempre
velha. [...] A inovação que se opõe à virtude e ao melhor serviço de Deus, senhores, é
verdadeiramente repreensível. O convento das Carmelitas recentemente fundado é uma
restauração do que se tinha perdido, para o melhoramento dessa santa Ordem e a
edificação da gente cristã. E, assim sendo, deveria ser mais bem favorecido,
especialmente pelos chefes das cidades cristãs, a quem incumbe fomentar tais atos dignos
de louvor. Oxalá muitos possam imitá-lo! Oh! quanto louvor mereceria Ávila, e todos os
nossos reinos, e toda a Igreja, se seguíssemos os passos dessa heróica virgem! [...]

"Que é isto, senhores? São quatro pobres freiras a causa de tamanha perturbação em
Ávila?"

«Se homens vãos e viciosos não são considerados temerários, por mais que se
multipliquem, por que hão de ser tidos e perseguidos como tais aqueles que seguem a lei
da virtude? Repletas estão as cidades de gente perdida, fervilham as ruas de homens
ociosos, insolentes e atrevidos, de rapazes e moças entregues ao vício; e a nenhum deles
se lhe considera temerário, nem há quem se dê ao trabalho de remediá-lo; e apenas quatro
pequenas freiras metidas em um canto, a encomendar suas almas a Deus, hão de ser
consideradas como um grave prejuízo e uma carga intolerável para a coisa pública? E é
isto o que perturba e conturba a cidade? E há assembléias que o tomem em consideração?
Que é isto, senhores? Por que nos reunimos aqui? Que exército inimigo assedia esta
cidade? Que peste a consome? Que fome a aflige? Que ruína a ameaça? São quatro pobres
freiras descalças, silenciosas, virtuosas, a causa de tamanha perturbação em Ávila?

O que pensar de uma cidade que faz reunião tão solene para assunto de tão pouca monta?

«Seja-me permitido dizer que o prestígio de uma cidade tão importante parece
menor quando realiza uma reunião tão solene para assunto de tão pouca monta. [...]
«Este novo convento foi estabelecido com o conhecimento e o conselho do Bispo
e, o que é mais ainda, por um Breve especial da Sé Apostólica. De sorte que está
completamente fora da jurisdição secular. E, por fim, senhores e Padres, eu não posso de
nenhum modo concordar com que o mosteiro seja suprimido por ordem da cidade; mas,
se houver algo contra ele e se houvesse razão para suprimi-lo, o senhor Bispo, a quem
correspondeu estabelecê-lo, deve ser informado e consultado».

A voz do bom senso fez baixar um tanto os ânimos exaltados; mas não impediu que
prosseguissem as maquinações contra a Santa
Estas francas palavras tinham forçosamente que produzir efeito em uma reunião
de católicos sinceros, se bem que exaltados; e o fato foi que triunfou ali a razão contra os
preconceitos quase unânimes. A assembléia votou que se fizesse uma proposição pedindo
que fosse consumido o Santíssimo Sacramento em São José (o convento de Santa Teresa)
e se fechasse o local, consultando o Bispo antes de dar qualquer outro passo.
O Bispo se manteve do lado de Teresa. O mestre Daza, representando-o, na
segunda reunião magna, fez saber à cidade que o convento havia sido estabelecido pela
autoridade episcopal em conformidade com uma permissão do Papa, e que ele mesmo,
que proferia aquelas palavras, presidira à cerimônia de inauguração e dissera ali a
primeira Missa. Isso não satisfez aos chefes da oposição, e o Concelho da cidade enviou
a Madrid Alonso de Robledo, com o estipêndio de um ducado por dia, para que
apresentasse suas queixas ao Conselho Real. Partiu de Ávila no dia 12 de setembro e
esteve de volta dez dias depois. Imediatamente após sua chegada reuniu-se novamente o
Consistório e decidiu persistir na luta. Com tal escopo enviaram Diego de Villena a
Madrid, onde permaneceu cinqüenta dias, presumivelmente estudando as leis e expondo
razões para que se fizesse desativar o convento.

Marcelle Auclair, Teresa de Ávila, pp. 263-270:


A princesa de Éboli e a Santa Inquisição

A Madre Teresa ia, sossegadamente, a caminho de Segóvia: tudo parecia correr


bem naquela fundação.
De momento reservava-lhe uma perigosa missão: a transferência clandestina—
poderia dizer-se o rapto — das catorze Religiosas do convento de Pastrana, vítimas da
extravagante Ana Mendoza y la Cerda, princesa de Éboli.
O Príncipe morrera havia um ano. A mulher não pudera resignar-se a ser apenas
uma viúva como as outras: tomou, em Madrid, o hábito do Carmelo — um hábito que ela
mandara, previamente, remendar — da mão do mesmo padre que dera os últimos
sacramentos àquele marido amado com tal loucura, que não desejaria sobreviver-lhe.
Abandonando os penhores desse amor, os dez filhos, entrou para um carro
hermeticamente fechado, à semelhança da Madre Teresa, e, renunciando a Satanás, que a
ela não renunciava, partiu para Pastrana.
Quando a Prioresa, Isabel de São Domingos, foi informada, por noite velha, da
sua chegada, exclamou:
— A Princesa no convento! Está a casa perdida!
Não vinha só: à maneira das viúvas da índia que sobem à fogueira com toda a sua
comitiva, trazia algumas raparigas, suas criadas, e exigiu que fossem admitidas com ela
no noviciado.
Exigia! Aquela mulher só sabia exigir! Curiosa maneira de falar, para uma
Carmelita! E era ainda o princípio...
Para a Irmã Ana da Madre de Deus — nome que tomara em religião — não havia
regras, nem Constituições, nem toques de sino e menos ainda se tratava de obedecer fosse
a quem fosse. Entendia que havia de falar quando tivesse vontade, receber, sair, para o
que abriu uma comunicação da sua cela com a rua. Impondo a obrigação de ser tratada
com todas as honras devidas aos seus títulos, a Irmã Ana da Madre de Deus não fazia
caso da Prioresa e troçava abertamente de capelães, confessores, visitantes.
Causou, enfim, tantos escândalos, que se tornou necessário dizer que a sua
presença era fortuna demasiada para um pobre mosteiro e que só a corte era digna dela:
assim lho fez entender, polidamente, mas com firmeza, Isabel de São Domingos.
Ana de Mendoza, dita da Madre de Deus, não se iludiu com o sentido de palavras
tão corteses, gritou que a expulsavam e queixou-se ao Rei. Conseguiu apenas ser remetida
mais uma vez, mas com maior vigor, ao universo das pecadoras mal arrependidas. Filipe
II, enjoado, chamava-lhe, agora «uma mulher famosa».
— O primeiro dos vossos deveres é o de tratardes dos vossos filhos — intimou-
lhe o monarca.
De regresso ao palácio procurou e encontrou um meio de se distrair: perseguir as
pobres Descalças. [...]
Como soubera ela, no momento da fundação dos conventos de Pastrana, que a
Madre Teresa tinha escrito uma narrativa da sua vida? Teresa de Jesus guardava segredo
sobre essa auto-biografia, escrita unicamente por ordem dos seus confessores e só a eles
destinada. Ter-se-ia acautelado mais contra uma indiscrição da Princesa, do que de outra
qualquer pessoa. Como se veio a saber que a Fundadora conservava uma cópia? Devido
à imprudência — visto não se ter provado nenhuma intenção má — de uma religiosa
Agostinha, que Teresa se vira obrigada a aceitar por imposição de Ana de Mendoza e que
não tardou a ser despedida. A tumultuosa dama sentiu-se arrastada por tão veemente
impulso de curiosidade pela narrativa em questão, que nada houve que não fizesse para
conseguir obtê-la. Fez todos os mimos a Teresa, que não se deixou iludir, mantendo-se
na recusa. Exasperada, a dama agitou-se, protestou, conseguiu a intervenção do marido,
Rui Dias, que, para alcançar a paz, dirigiu as suas súplicas à Madre; enfim, nem sequer
hesitou em se comprometer por juramento que só ela e o marido é que veriam o
manuscrito. Mas porque era tanta desconfiança para com ela, se a sua tia, Dona Luísa de
La Cerda, tivera um exemplar em sua casa?
Teresa de Jesus não teve remédio senão aceder.
A Princesa, tenaz nos caprichos, não o era igualmente no Cumprimento da palavra
jurada: a narrativa da Vida da Madre Teresa andou por cima das mesas do Palácio de
Palência; as aias, as seriadas, puderam, com todo o vagar, edificar-se ou divertir-se à custa
dela: acharam imensa graça às visões de Teresa de Jesus e, de brincadeira, foram-nas
comparando aos enganos demoníacos de Madalena da Cruz. Chegou a Madrid o ruído de
tais gracejos a que a Princesa juntou a sua ponta de malícia. Durante uma estação o melhor
dos divertimentos da corte consistia em trazer à baila o assunto, a fim de provocar as
centelhas do espírito maldoso de Ana de Mendoza.
Ah! a Madre Teresa arrancava-lhe das garras as freiras inocentes ? Em paga a
princesa de Èboli regalou-se em denunciar à Inquisição o Livro da Vida de Teresa de
Jesus, acusando-o de conter «visões, revelações e a exposição de doutrinas perigosas»1.
Enquanto a dama zarolha ia tramando as suas intrigas, vivia a Madre na quietude
das almas límpidas, muito longe de imaginar até onde podiam ir o ódio e a vaidade ferida.
[...]
Teresa de Jesus trouxera para Segóvia o cadernito dos Pensamentos sobre o Amor
de Deus e mostrou-o ao confessor, o P. Yanguas, Padre tão apuado pela austeridade das
suas virtudes como o comentários a S. Tomás. Leu-as e disse:
— Para que vos cansais a escrever tais coisas? Deitai ao fogo.
A Madre, sem responder, sem que o seu rosto denunciasse a menor emoção, atirou
as folhas para uma fogueira que ali estava acesa.
Compreende-se, pois, o receio do P. Diogo perante o «caderninho» explosivo de
Teresa de Jesus. Defendeu-se da acusação de intransigência afirmando ter falado apenas
em tom de gracejo e só para experimentar a obediência da Madre; nunca teria admitido

1
SEC t, I p. 123
que ela pudesse atirar tão rapidamente às chamas aquele admirável escrito «que nada
continha contra a nossa fé».2
Era conhecer muito mal quanto a Madre se alegrava em obedecer e a sua total
ausência de amor próprio de autor.
Todavia o texto foi salvo: uma das «metediças» tinha copiado o manuscrito, às
escondidas. Teresa julgava-o destruído e não pensou mais nele.

Marcelle Auclair, Teresa de Ávila, pp. 297, 304 e 305:


Calúnias à Inquisição feitas por uma noviça presunçosa

O Carmelo de Sevilha recusou-se a aceitar mais de uma daquelas raparigas do Sul.


Ainda assim admitiam uma, cujo nome a caridade carmelita encobriu. Era «uma grande
beata, já canonizada por toda a cidade».3 [...]
«A infeliz era ainda mais santa a seus olhos que aos nossos — conta a Madre de
S. José — e como entre nós lhe faltavam os elogios, pois que o rigor da Regra é a pedra
de toque para inferir do valor do que só brilha na aparência, não tardou a sentir-se mais
descontente a nosso respeito do que nós a respeito dela. Nunca houve maneira de a fazer
sujeitar às Constituições: tinha quarenta anos, muita autoridade e sabia admiravelmente
livrar-se de dificuldades: quando se recusava a comer do que nós comíamos dava por
pretexto a doença, afirmando que inchava e convidando-nos a ler em Galeno que aquelas
comidas não podiam de modo algum convir-lhe. Outras vezes invocava a falta de hábito
ou o grande calor que faz nestas províncias. A nossa Madre ordenava-nos que a
suportássemos, que não levássemos as coisas bruscamente, na esperança de que o tempo
se encarregasse de corrigir tudo aquilo; chegava a dar-lhe licença de se confessar e
conversar com eclesiásticos da sua amizade».4 [...]
A noviça anónima, a presumida santa, saíra do Carmelo furiosa, por verificar que
tantas austeridades eram superiores às suas forças. Teresa de Jesus regozijou-se com o
caso, sem se lembrar que a vingança é doce para as almas baixas: o terreno prestava-se a
isso. De facto, apesar de o Arcebispo visitar algumas vezes a Madre Teresa, conquistado
pela irradiação da sua santidade, feita de graças humanas ao serviço da graça divina, e de
enviar ao convento víveres e trigo, parecia que os Sevilhanos não abdicavam das suas
preocupações. A vizinhança olhava sem benevolência para aquela casa onde se celebrava
missa sem que um sino tocasse alguma vez, a convidar a boa gente do bairro a juntar-se
às orações: não haveria ali qualquer coisa suspeita? Não tardaram a ter a resposta no facto
seguinte: Certo dia a Rua das Armas, seriamente alarmada, viu surgir a Inquisição, com
todo o seu séquito, entrando pela casa das estrangeiras. Ao contrário do que era habitual,
tudo aquilo se fez com «a mais escandalosa»5 exibição. Acorrera numerosa companhia.
Os juízes e notários entraram no convento de S. José, ao passo que aguazis e familiares,
amontoados na rua, faziam sentinela diante das saídas. Fizeram-se buscas, interrogaram
Teresa de Jesus, sempre radiante nas ocasiões de prova, e as suas filhas desvairadas. Os
artigos principais da acusação denunciavam a marca evidente das calúnias da orgulhosa
beata, a noviça, cujo nome o Carmelo ocultará para todo o sempre, daquela que preferia
difamar as Carmelitas a confessar-se vencida pelas suas virtudes.
Sobre a Madre pesava nada menos que a suspeita de seguir os odiosos princípios
dos Alumbrados: era coisa que podia levar longe uma mulher, cujos escritos haviam sido
denunciados e cujos êxtases e tantas manifestações miraculosas atraíam perigosamente a

2
t. IV p. 54-55
3
MJ ct SEC t. VI, p. 243
4
MJ ct SEC t. VI, p. 432
5
LO t. VI c. XXX art. I.
atenção. Lançavam-se em rosto às pobres Religiosas a sua mesma pobreza: como não
tinham véus que chegassem para todas, quando se apresentavam na grade da comunhão,
passavam-nos umas às outras, o que foi interpretado pela noviça espia como «um
cerimonial».
Depois de terem comungado voltavam-se para a parede, para se recolherem, pois
que a grade da comunhão ficava num pátio onde o sol dardejava intensamente: outro rito
suspeito.
Afirmava-se que a Madre obrigava as Religiosas a confessarem-se com ela...
Teresa de Jesus recordava-se da noviça manhosa que caminhava em bicos de pés e
empurrava muitas vezes a porta, como por engano, quando ela conversava com uma ou
outra das suas filhas, segundo um costume querido a todas. E que mais se dizia ainda? As
Carmelitas reformadas — afirmava-se — ligavam-se umas às outras, de pés e punhos
atados, e flagelavam-se mutuamente... «Prouvera a Deus que não dissessem mais nada!»
acrescentava Maria de S. José.
Nesse dia os inquisidores saíram como tinham entrado, causando grande decepção
ao povo que contava ver sair com eles aquelas freiras vindas do Norte. Mas nem por isso
era menos grave a situação. Suspensão de processo apenas significava falta de provas
flagrantes e aquele tribunal esforçava-se sempre por alcançá-las.

Marcelle Auclair, Teresa de Ávila, pp. 331, 335-337, 340:


O auge da perseguição

No princípio das perseguições, dissera a Madre Teresa de Jesus:


— Se Deus conceder um ou dois anos de vida ao Papa, ao Rei, ao Núncio e ao
nosso P. Graciano, tudo se arranjará como deve ser. Mas se um deles nos vem a faltar,
estamos perdidos.6
Ora o Núncio Ormanetto morreu. Fora o mais poderoso defensor do Carmelo
reformado: poder feito de santidade, pois morreu tão pobre que Filipe II teve de lhe pagar
as despesas das exéquias. Apenas o enterraram saiu o Tostado de Portugal, dirigindo-se
à pressa a Madrid; rondava pela corte, sem dela se afastar, pronto a valer-se da sua
autoridade de delegado do Superior geral da Ordem, o P. Rúbeo. O monarca não o
autorizara ainda a visitar os mosteiros de Descalços e Descalças, mas tinha protecções,
intrigava; que iria acontecer? [...]
O grito de combate de Teresa de Jesus foi um apelo à oração em todos os seus
mosteiros: «...para que se cumpra o que for melhor para o serviço de Deus».7 [...]
Estávamos apenas no princípio.
O novo núncio, Filipe Sega, chegara a Madrid. Prevenido contra os Descalços
pelo Cardeal Boncompagni, protector dos Calçados, tomara partido e alinhara entre os
inimigos da Reforma teresiana. [...]
O núncio Sega não retirou a Graciano o mandato de Visitador, mas proibiu-o de
visitar um convento só que fosse. O Rei e o Conselho de Castela emitiram opinião oposta,
sem contudo provar eficazmente ao P. Graciano que o apoiavam. [...]
Foram as Religiosas da Encarnação que, para provarem a sua dedicação à Madre
Fundadora, forneceram o primeiro pretexto para violências: aquelas freiras, que seis anos
antes se tinham revoltado contra a Reformadora, revoltavam-se desta vez a seu favor.
Estavam nas vésperas da eleição de nova Prioresa e só queriam a Madre Teresa
de Jesus. Tostado decidira outra coisa: enviou o Provincial dos Calçados, «munido de
grandes censuras e excomunhões» para as que dessem os votos à Fundadora.

6
CTA LXXXVII
7
CTA CLXXXIV
A Madre relata os factos com imensa vivacidade e frescura; vê-se que, apesar do
seu tormento, aquela mulher de espírito não podia deixar de se rir da cólera ridícula dum
homem grave:
«... Como se nada fosse com elas cinquenta e cinco Religiosas votaram em mim.
Cada vez que lhe entregavam um voto, o Provincial excomungava e amaldiçoava;
amarfanhava o bilhete, batia-lhe com o punho em cima e queimava-o. Há quinze dias que
estão excomungadas; nem sequer têm direito de entrar no coro, mesmo quando não se
está a celebrar o ofício divino; ninguém pode falar-lhes, nem os confessores nem os
próprios pais.
«O mais bonito do caso foi que no dia seguinte a estas eleições feitas a martelo —
elecciones machacadas — o Provincial voltou e ordenou-lhes que tornassem ao princípio.
Elas responderam que não havia razão para isso, pois que já tinham votado. Vendo isto
excomungou-as outra vez, chamou as restantes, em número de quarenta e quatro, mandou
eleger outra Prioresa e submeteu a escolha à confirmação de Tostado.
«Assim se fez, mas as outras mantêm-se e afirmam que só obedecerão àquela
Prioresa na qualidade de Vigária.
«Eis, em resumo, o que se passou. Todos estão pasmados com tão grave ofensa.
Pelo que me toca, não tenho o menor desejo de me ver em tal Babilónia...».8 [...]
Os confessores, a quem as excomungadas não tinham direito de falar, eram o P.
João da Cruz e o P. Germano de São Matias. [...]
Toda a cidade comentava com indignação:
...Levaram-nos para a cadeia como malfeitores...
...Vergastaram-nos por duas vezes e infligiram-lhes os piores tratamentos que se
possam imaginar...
...Maldonado arrastou o P. João para Toledo...
...O Prior dos Calçados, de Ávila, tomou à sua conta o P. Germano que cuspia
sangue: houve quem visse...
São ambos uns santos...
...O P. João deixou-se apanhar como um cordeiro...
...Pela manhã conseguiu escapar-lhes...
— Conseguiu escapar? Fugiu? Está salvo?
O coro do povinho tremia de respeito:
— Não fugiu para evitar o martírio; foi para voltar à casita, ao pé da Encarnação
e fazer desaparecer papéis a respeito da reforma. Fechou-se à chave e, enquanto os
Calçados lutavam contra a porta, engoliu ele os documentos que não podia destruir doutra
maneira.
Foi um frémito de angústia na cidade:
— E depois?...
— Depois entregou-se...
No próprio dia enviou uma carta ao Rei, ou antes veementes intimativas. [...]
Pela primeira vez ficava sem resposta uma carta da Madre Teresa de Jesus ao rei
de Espanha.
Filipe II calava-se, mas o demónio lutava.
Noite de Natal de 1577. Um golpe de vento infernal apagou a candeia que Teresa
de Jesus levava na mão quando descia uma escada para se dirigir à capela; faltou-lhe um
pé, caiu e partiu o braço esquerdo.
— Era bem pior o que o demónio queria fazer-me, disse ela.

8
CTA CXCVIII
E ofereceu os seus sofrimentos pela salvaguarda daquele «santinho que era Frei
João».

Fim da tempestade

Marcelle Auclair, Teresa de Ávila, pp. 371, 376, 377:


A 24 de Dezembro [de 1578], pela manhã, a porta do mosteiro de S. José teve de
se abrir diante dos enviados do Núncio que traziam um decreto a entregar à Madre Teresa.
Esse decreto ordenava, sob ameaça das mais severas penas, que Descalços e Descalças
ficassem sujeitos ao Provincial e Prelados dos Mitigados de Castela e Andaluzia.
Era o golpe de morte para a reforma. «Uma manhã de Juízo final» (!) dizia a
Madre. «Todos os presentes, oficiais de justiça teólogos, fidalgos, estavam aterrados». Os
termos de decreto eram tão violentos que a Madre teria querido tapar os ouvidos; mas não
se atrevia a falar nem a mover-se.
Enquanto enunciavam os termos do decreto, a Madre Teresa olhava para um papel
que um deles tinha na mão, e esperava que fosse fulminada a excomunhão contra ela; mas
contentaram-se com intimar-lhe a transferência para outro mosteiro onde ficaria até ao
fim dos seus dias.
Os próprios excessos a que o ódio levava os Calçados deviam finalmente voltar-
se contra eles: ia chegar o momento em que «os inimigos seriam envolvidos pelas vagas».
Muitos senhores importantes, entre os quais o conde de Tendillas, foram dizer ao
Rei que se consideravam pessoalmente ofendidos com tantos ultrajes dirigidos à Madre
Teresa de Jesus e ao Carmelo reformado; e aquele monarca, demasiado prudente, não
teve remédio senão pôr de parte a sua reserva. «O nosso Rei Católico Dom Filipe»
mandou chamar o núncio Sega:
«Fui informado da guerra que os Calçados fazem aos Descalços e Descalças do
Carmelo. Considero muito suspeitos esses ataques contra pessoas que sempre mostraram
tanta austeridade e perfeições. Disseram-me que não sois afecto aos Descalços: mostrai-
vos, doravante, favorável à virtude.
O Núncio do Papa não teve outro remédio senão obedecer ao soberano de todas
as Espanhas. Por um breve do 1º de Abril de 1579, desligou o Carmelo reformado da
obediência dos prelados mitigados e colocou-o sob a jurisdição do P. Angelo de Salazar,
que, apesar de Calçado, era muito amigo da Madre Teresa e da reforma. Podia-se
considerar o caso resolvido com êxito e a Fundadora pôde exclamar:
— Quando considero os meios de que o Senhor usou para que as malícias e
crueldades dos inimigos do Carmelo conseguissem apenas contribuir para o seu
crescimento, fico varada de admiração!

São Filipe Néri (1515-1595)

Marcel Jouhandeau, Saint Philippe Neri, Plon, Paris, 1957, p. 139:

Acusaram São Filipe Néri de fomentar uma seita


e de criar conventiculos cuja independência expunha à heresia

No final do pontificado de Paulo IV, por volta de 1558, Filipe (São Filipe Néri)
teve que sofrer perseguição. Alguns acusavam-no de fomentar uma seita à parte, de criar
conventículos cuja independência expunha à heresia.
Na noite de 28 para 29 de agosto de 1558, em que se perseguiam os monges
apóstatas, Filipe foi importunado em sua residência.
Trataram-no de ambicioso, de fautor de novidades, durante uma investigação de
várias horas. Depois, teve que comparecer perante o tribunal da Inquisição, onde tinham
aberto um inquérito sobre seus procedimentos sob o estímulo do cardeal Rosário.

Santa Rosa de Lima (1586-1617)

P. Pr. Victorino Osende, Santa Rosa de Lima, Pluma Fuente, Lima, 4a. ed., pp. 30, 31, 34, 38, 39 e 52:
Chama realmente a atenção como Rosa, sendo tão santa e favorecida pelo Céu,
pôde ser tão perseguida e maltratada por pessoas que eram sinceramente cristãs e que
estavam muito longe de ser inimigas, como sua própria mãe. A explicação é a que já
indicamos. Rosa não estava então canonizada, nem havia sido proclamada Patrona do
Novo Mundo. Era uma pobre e humilde donzela, que se esforçava por seguir as pegadas
do Divino Cordeiro, fugindo da vaidade e do mundo, e levando uma vida oculta e
escondida com Deus, em Jesus Cristo. Sua mãe nada compreendia dessas coisas, e estava
multo longe de vislumbrar o futuro que estava reservado a sua filha. Por isto, tudo o que
via de estranho e singular em sua vida, o atribuía a manias, ilusão ou fanatismo devoto; e
se porventura alguma vez, diante da realidade e da evidência dos fatos, caía em si e
reconhecia seu procedimento injusto, rapidamente a paixão e o mau humor que a
dominavam voltavam a cegar-lhe, e faziam ruir seus bons propósitos...
Rixas, desprezos, pancadas e maus tratos choviam a cada passo sobre a tímida e
inocente virgem, a quem nem sua delicadeza nem suas lágrimas podiam defender dos
furiosos ataques de sua Iracunda mãe. Quem ouvisse Maria de Oliva durante esses
acessos, a consideraria a mulher mais Infeliz do mundo por ter uma filha como Rosa. Esta
era, segundo a. mãe, uma hipócrita, farsante, que procurava enganar todo mundo com
embustes e encantamentos, uma beata perversa e dissimulada, que queria fazer-se passar
por santa, quando não era mais do que um monstro de orgulho que se obstinava era
prosseguir com seus caprichos, mofando-se de sua mãe e de todo mundo.....
Nem faltaram diretores desavisados e imprudentes, pouco versados nos caminhos
interiores da perfeição, que sem experiência dos princípios e da sólida virtude de Rosa,
censuravam sem maior exame sua conduta, atribuindo-a a causas muito distantes da
verdade e da Justiça. Levando adiante suas opiniões, arrojadamente tentavam persuadir a
Santa virgem que seu modo de viver estava fora das regras, que caminhava sem
segurança, seguindo unicamente o seu arbítrio e seus caprichos, nascidos do destempero
de seus humores e da debilidade de seu cérebro, em virtude de muitos jejuns e austerida-
des. Estas e outras opiniões expostas em público fomentavam sem dúvida os caprichos
de Maria de Oliva, tornando seu natural mais insuportável, e seriam suficientes para
desanimar a quem não tivesse o espírito de Rosa...
Santa Rosa sofreu a oposição e a perseguição mais rancorosa durante oito ou dez
anos, da parte do mundo, de sua família, e, o que é pior, de alguns maus ministros do
santuário, que é o último e mais poderoso recurso de que o demónio lança mão para fazer
vacilar as almas e torná-las infiéis a Deus e à sua vocação.

São Luis Maria Grignion de Montfort (1673-1716)

J. M. Texier, São Luís Maria Grignion de Montfort, Vozes, Petrópolis, 1948, pp. 44-45:
Os ímpios o tomavam como diabólico, chamando-o de Anticristo; os mundanos
consideravam-no extravagante, e os bons tinham-no como esquisito e fora do comum

A conduta de Grignion de Montfort de tal forma pareceu extraordinária aos seus


contemporâneos que os ímpios a tomavam como diabólica, chamando-o de malfeitor, de
anticristo, de obsesso; os mundanos consideravam-no extravagante, e os bons pelo menos
tinham-no como esquisito e fora do comum.

J. M. Texier, São Luís Maria Grignion de Montfort, Vozes, Petrópolis, 1948, p. 188:

Que Santo não foi acusado de singularidade?

Acusara-o de singularidade, mas... de igual reprimenda fora porventura excetuado


algum santo? Enfim, um santo é singular somente porque se eleva sobre o comum dos
homens. Certamente que Montfort era singular, pois fazia uma guerra contínua ao mundo
e às suas máximas falsas, porque calcava aos pés todo respeito humano, porque colocava
o serviço de Deus acima de qualquer consideração humana.
Não fora esta, com efeito, a mesma linha de conduta que sublevara o mundo contra
Jesus e seus Apóstolos? O santo missionário podia, pois, reputar-se feliz por estar em tão
boa companhia.

Georges Rigault, Saint Louis-Marie Grignion de Montfort, Les Traditions Françaises, Tourcoing, 1947,
pp. 9-10:

O Santo desconcerta e às vezes escandaliza o homem comum

Por definição, um santo não pode ser um homem em tudo semelhante aos outros
homens. Ele não fica no plano da natureza, mas tende à perfeição do Pai celeste. Seu
incessante progresso em direção a Deus aumenta, dia após dia, a distância existente entre
ele e as almas tornadas pesadas, imobilizadas pela carne. O santo espanta a humanidade
média. Ele a escandaliza, enquanto não a eleva acima dos baixos horizontes.
O santo é um original; e ele o é tanto mais quanto sua época, seu ambiente, seus
auditórios estiverem mais longe do Céu. Ele o é porque tem mais futuro no espírito,
porque negligencia os hábitos, os preconceitos, as contingências para preceder seu século
no tempo, para levar seus irmãos a esse fim misterioso que seu olhar de profeta descobriu.
Mesmo quando se encontra entre verdadeiros cristãos, ele os surpreende ainda; ele se
apóia, por assim dizer, sobre eles, para se projetar para o alto com mais audácia. Tendo
partido de muito alto, ele avista logo os cumes; sem orgulho, mas sem medo, ele se
interroga diante de Deus: Quod non ascendam? (Até onde não me elevarei?). E ele
provoca vertigens em seus contemporâneos.

São João Bosco (1815-1888)

José Maria Alves, SDB, Sonho e Realidade, 2ª ed., 1948, Vila do Conde, pp. 218-223:
Em nome da lei..

Dali a três dias apresentam-se no Oratório três cavalheiros, elegantemente


vestidos, que pedem para falar com D. Bosco.
— A que devo a honra desta visita? Pergunta o Santo.
— Precisamos falar-lhe particularmente... Viemos aqui para uma visita
domiciliária.
— Trazem algum documento?
— Não, mas... e fizeram a sua apresentação.
Eram o delegado da Segurança Pública e dois advogados, que representavam o
fisco.
Aquela busca tinha o seu quê de aparatoso. Enquanto os ilustres senhores
estabeleciam o seu primeiro contacto com D. Bosco, pelas escadas, à porta e no pátio
apareciam, como por encanto, vários guardas; e um corpo de soldados, encarregados de
velar pela segurança e ordem públicas, bem armados, estavam fora do Oratório.
Não se opôs o virtuoso sacerdote à aviltante investigação, mas não permitiu que a
iniciassem sem o documento comprovativo a autorizá-los. O delegado mandou buscar o
decreto.
Entretanto, não se sabe como, espalhou-se por toda a casa a notícia de que queriam
levar preso a D. Bosco. Oa alunos ficaram irrequietos, nervosos e um grupo dos maiores
chegou, resoluto, até junto de D. Bosco, segredando-lhe:
— Dá licença? Nós cá estamos!
Tranquilizou-os, com bondade, e mandou-os sossegados para o seu trabalho.
Chegou finalmente o decreto. Então o delegado, cingiu a faixa de questor; e,
ladeado por cinco polícias, o representante do fisco disse, com voz cavernosa:
— Em nome da lei, intimo a busca domiciliária ao sacerdote João Bosco.
— Se assim é, respondeu o santo, exercei a vossa autoridade; cedo, porém, porque
me é imposta pela força.
Acompanhou-os ao seu gabinete e pôs-se à disposição deles.
Tudo foi examinado cuidadosamente na sua pessoa: os bolsos, o canhenho, as
calças, o colete, a batina, a bainha da mesma e até... a borla do pobre barrete eclesiástico
foi submetida à mais rigorosa inspecção.
Não, que podia encontrar-se nela o corpo do delito!...
— Essa é minha. Ninguém lhe toque, gritou o advogado Grassetti, ao dar com os
olhos numa carta com o selo pontifício. E vós, guardas, atentos ao vosso dever!
E, do cesto dos papéis, misturada com trapos e lixo, foi arrebatada a tão desejada
carta, que era apenas... um sobrescrito.
— E tempo de acabar com isto, — disse um, já abastado. Entregue-nos as cartas,
que procuramos, e vamo-nos logo embora.
— Que cartas? Não posso dar-vos aquilo que não tenho. Os senhores acreditam
em mim?
— Acreditamos como no Evangelho.
— Se assim é, podem ir para casa muito sossegados porque, nem no meu gabinete,
nem em canto algum da casa encontrarão nada que lhes possa interessar ou que seja
indigno dum sacerdote honesto.
— E, no entanto, garantiram-os que tem cá o corpo do delito; e havemos de
encontrá-lo, dê por onde der.
— Mas digam-me lá, atalhou D. Bosco: Julgam-me tão parvo? Pensam que, se
houvesse algum documento comprometedor, eu não o teria inutilizado ou escondido?
Continuem, continuem...
Tudo foi rebuscado, aberto, escancarado; cartas, documentos, escritos, papéis,
gavetas, armários...
D. Bosco, que tinha tanto que fazer, pediu licença para se sentar à mesa e continuar
o seu trabalho.
Mal começou a escrever, interromperam-no:
— Nós queremos ver tudo que V. Rev.ª escreve.
— A vontade. Aqui não há segredos.
Era D. Bosco a escrever, e cinco — tantos eram eles — a ler-lhe as cartas, não
davam conta do recado. Cansaram-se e voltaram às pesquisas.
— Que há nesta gaveta? Perguntaram com ansiedade.
— Coisas secretas, confidenciais. Aí ninguém mexe.
— Ora essa! Abra imediatamente.
— Não posso. Todo o cidadão tem direito de guardar bem e esconder aquilo que,
sem desonra dele, não pode ser visto.
— Ou abre ou arrombamos.
— Ora valha-me Deus! — E D. Bosco levantou-se e foi abrir.
O advogado Tua quis ter a honra de apoderar-se de todos aqueles documentos.
Começa a examiná-los um por um Cora de vergonha e depois, dirigindo-se a D. Bosco:
— Vossa Reverência está a mangar comigo?
— Eu nao mango com ninguém. Os senhores obrigaram-me a abrir...
Eram as facturas do azeite, do arroz, do pão, do alfaiate, do sapateiro... todas por
pagar.
— Eu bem queria — continuou o santo — que ninguém soubesse da minha vida;
e tinha vergonha de que vissem tantas dívidas. Os senhores assim o quiseram... paciência.
Se ao menos Deus lhes inspirasse a pagar algumas destas facturas!
Acharam graça, riram todos e passaram adiante. Chegaram à estante dos livros.
Um dos guardas folheava um volume dos Bolandistas e perguntou:
— De que tratam estes livros?
— São livros dos jesuítas que nada têm que ver com os senhores.
— Sejam seqüestrados...
— Não, acudiu outro, vejamos antes de que tratam.
Como estavam escritos em latim e não entendiam, D. Bosco explicou:
— Aqui conta-se a vida de S. Simão Stilita, o qual, com receio de perder a sua
alma, se retirou para o deserto onde levou vida de penitência. Pregava do alto duma coluna
contra os homens, que só tratam de gozar, sem pensar nas penas que, na outra vida, estão
preparadas para os que vivem mal neste mundo.
— Basta, basta — atalharam. Se continua o sermão, vamos acabar por confessar-
nos.
— E então? Disse D. Bosco. Hoje é sábado, dia de confissão para os meus rapazes.
Nesta altura o clérigo Roggero apareceu com uma garrafa de vinho generoso,
bebendo todos à saúde da «investigação».
O discurso da confissão burilado habilmente por D. Bosco e rematado com o belo
epílogo dos cálices de vinho, tez com que aqueles senhores pensassem um bocadinno a
sério na vida espiritual. E, com efeito, alguns deles procuraram depois D. Bosco para se
confessarem.

Biografia y escritos de San Juan Bosco, BAC, Madrid, 1955, p. 273:

Livro cheio de fanatismo, que transtorna o cérebro

Trecho de uma conversa de São João Bosco (1815-1888) com um sr. Selmi, ferrenho anti-
clerical que fora nomeado Diretor-Geral do Ensino, e, neste cargo, colocava obstáculos
à obra educadora de Dom Bosco (é o próprio Santo que relata a conversa, na qual
conseguiu dobrar a extrema hostilidade inicial de seu opositor):
Sr. Selmi — [...] devo dizer-lhe que detesto seus livros.
São João Bosco — Lamento por meus pobres livros. Mas, se o sr. se dignar
apontar-me suas falhas, corrigirei nas outras edições.
— Não é o sr. o autor da Vida de Domingos Sávio?
— Para servi-lo, sr. comendador.
— É um livro cheio de fanatismo. Meu filho o leu e de tal maneira enlouqueceu,
que a todo momento me está pedindo que o leve a conhecer Dom Bosco; e temo que isso
lhe transtorne o cérebro.
— Isso significa apenas que os fatos estão bem narrados e que os meninos os
compreendem. E essa era precisamente minha intenção. Mas, quanto ao linguajar, o estilo,
o sentido geral..., notou o sr. alguma coisa?
— Quanto a isso, não; pelo contrário, notei facilidade e popularidade no estilo.
Quanto a sua História da Itália, aconselharia que a revisasse antes de a reimprimir.
— Com muito gosto; se o sr. me fizer notar as modificações e correções, ficarei
muito grato.
— Ainda bem que o sr. não é obstinado [...].

J. Modesti, ''Os tempos difíceis de Dom Bosco" in "Boletim Salesiano", ano 46, n.° 5, set/out., Escolas
Profissionais Salesianas, São Paulo, 1985, pp. 24 a 26:

"Eminência, passei tempos difíceis, tempos difíceis..."

De um artigo publicado no Boletim Salesiano, sobre algumas das adversidades pelas


quais teve que passar São João Bosco (1815-1888) no cumprimento de sua missão:

No dia 23 de dezembro de 1887, um mês antes da sua morte, Dom Bosco recebe
a visita do arcebispo de Turim, seu grande amigo, cardeal Caetano Alimonda. Na
conversa, Dom Bosco desabafa: «Eminência, passei tempos difíceis, tempos difíceis...».
Certamente naquele momento, na visão panorâmica de moribundo, desfilaram
pela sua mente certas dificuldades que somente a têmpera de um Santo poderia suportar.

Dificuldades com o Vaticano

Um dos grandes amores de Dom Bosco foi sempre o Papa. Tocar em Dom Bosco
no seu amor pelo Vigário de Cristo era atingi-lo nas pupilas dos olhos. Ora, Deus permitiu
que este amor sofresse dúvidas da parte de alguns prelados romanos. Para comemorar o
18º centenário da vinda de São Pedro a Roma, as Leituras Católicas publicaram um seu
trabalho sobre o Príncipe dos Apóstolos. O opúsculo foi bem recebido pela crítica. Na
página 192, Dom Bosco afirma a respeito da presença de Pedro em Roma:
«Creio oportuno, entre parênteses, dar a todos aqueles que falam ou escrevem
deste assunto, o conselho de não considerá-lo como verdade de fé».
Dom Bosco mexeu em um vespeiro. Os tais prelados acharam que Dom Bosco
negava o primado do Sumo Pontífice. O opúsculo ia ser colocado no «índice dos livros
proibidos». Dom Bosco sofreu agonias devido a isso. Felizmente interveio o seu grande
amigo o Papa Pio IX, que impediu essa odiosa e injusta medida. Foi pedido a Dom Bosco
que nas novas edições se tirasse aquela afirmação.
Toda a vida do santo transcorreu nos dois pontificados de Pio IX e Leão XIII.
Vimos como Pio IX amava Dom Bosco. Quisera levá-lo para Roma; fazê-lo
membro da corte pontifícia como monsenhor. Naturalmente, Dom Bosco não aceitou,
pois seria a morte da sua obra. O Papa aprovou sua congregação contra mil e uma
objeções. Quando no fim de sua vida, fevereiro de 1878, quer ver Dom Bosco mais uma
vez, negam-lhe. Reclama: «Que é que eu fiz a Dom Bosco? Escrevi-lhe três cartas e ele
nem sequer respondeu». Dom Bosco, por sua vez, também queria saber por que suas
cartas ao Papa não obtinham resposta. A explicação é simples. A correspondência de
ambos era vigiada e censurada. As pessoas que em Turim perseguiam Dom Bosco tinham
conseguido cúmplices dentro dos muros do Vaticano. E assim Dom Bosco não pôde ver
pela última vez seu grande protetor e amigo, que ele considerava co-fundador da sua
congregação.

Ao subir ao trono pontifício, Leão XIII tinha algum preconceito contra São João Bosco;
posteriormente o tratará com um carinho maternal

O novo Papa, Leão XIII, subiu ao trono de São Pedro com algum preconceito
contra o nosso Santo. Tanto que por várias semanas Dom Bosco só pôde ver o Papa em
audiências públicas. Seus pedidos para uma audiência particular foram desconhecidos.
Duro para Dom Bosco, que, quando encarregado pelo Vaticano de resolver com o
governo italiano a questão da nomeação dos bispos, tivera entrada franca nos palácios
apostólicos, a qualquer hora do dia e da noite. A pouco e pouco o novo Papa vai
conhecendo o Santo e cada vez mais se convence de que se trata de um homem de Deus.
Avançando os anos, cresce a veneração do Vigário de Cristo pelo humilde padre
de Turim. Tanto que na última visita que Dom Bosco faz a Roma, no dia 13 de maio de
1887, o Papa o trata com um carinho maternal... Era o reconhecimento da santidade
daquele que exigirá que os seus sucessores, entre outras qualidades, tenham 'uma
indiscutível adesão à Santa Sé e a tudo o que a ela se referir'.

Dificuldades com os arcebispos de Turim

Dom Bosco fora ordenado sacerdote por D. Luiz Fransoni, arcebispo de Turim.
Este prelado dedicava muita afeição ao jovem sacerdote. Aprovou sua missão entre os
jovens; constituiu o Oratório como Paróquia pessoal dos meninos que o freqüentavam.
Visitava-o na sua humilde capela; aceitava convites para as festinhas que os meninos
organizavam; incumbia Dom Bosco de estudar certas teorias pedagógicas dadas na
Universidade. Mas, infelizmente, por questões políticas, o seu grande amigo foi exilado
para a França, onde faleceu.
Sucedeu-lhe um outro grande seu amigo, D. Alexandre Ricardi di Netro. Tudo
parecia sorrir para o nosso Santo, que iniciara a fundação da congregação salesiana. Mas
que desilusão. O prelado não o aceita como fundador da congregação; o quer submisso a
si com todos os seus. Dom Bosco sabe que isto é o fim da congregação. Não ordena
nenhum seminarista do Santo a não ser que seja aluno do Seminário diocesano. Dom
Bosco é obrigado a aceitar. No fim do curso de teologia, os dez que mandara, deixam as
fileiras da congregação. Dom Bosco reclama, é o fim da congregação; o arcebispo não
cede.

"Confiou demais nos homens mesmo com libré sagrada e se desenganou amargamente"

Nesse ínterim o prelado falece. Dom Bosco trabalha para que um grande amigo
seu e benfeitor seja o novo arcebispo e consegue. O Papa nomeia D. Lourenço Gastaldi.
Dom Bosco sorri e com ele a nascente congregação. Confiou demais nos homens mesmo
com libré sagrada e se desenganou amargamente. O Arcebispo era santo, culto,
apostólico; mas de um temperamento colérico. Precipitado em seus atos. Por dá cá aquela
palha toma... atitudes desnecessárias. Não admite o que julga ser diminuição de sua
autoridade. Disso surgem as maiores provações para o nosso Santo.

O Arcebispo chega a suspender São João Bosco das confissões

Na cúria turinense, alguns sopram aos ouvidos do arcebispo que Dom Bosco se
opunha à sua autoridade; que os seus seminaristas não estudavam o suficiente e tinham
pouco espírito religioso. Essas insinuações eram mandadas a Roma, enquanto Dom Bosco
procurava dar os retoques finais na sua congregação. Nesse comenos, saíram no prelo
quatro opúsculos contra o arcebispo (após a morte de Dom Bosco foram conhecidos três
dos autores). O Arcebispo pensa que foram impressos no Oratório. Chega a suspender
Dom Bosco das confissões (a pena mais grave para um sacerdote).

"Dom Bosco é um Santo"

O conflito dura dez anos. Cada dia se torna mais grave, com grande alegria dos
anticlericais que sopram na fogueira. O Papa Leão XIII toma a questão em suas mãos.
Dita um acordo entre Dom Bosco e o arcebispo. Parece inculpar Dom Bosco. Há protestos
dentro e fora da congregação. Mas o Papa diz a um dos cardeais que protestava: «Sei o
que estou fazendo. Conto com a virtude desse homem de Deus. Dom Bosco, nós o
conhecemos, é um santo». [...]

"Porque eras aceito de Deus, foi necessário que a provação te atingisse"

Quando da controvérisa entre Dom Bosco e o arcebispo Gastaldi, um ilustre


prelado romano escrevia a Dom Bosco: 'Porque eras aceito de Deus, foi necessário que a
provação te atingisse'. Naqueles últimos momentos, Dom Bosco, recordando esses
tempos difíceis, podia dizer, como São Paulo, com toda a tranqüilidade de consciência:
«Terminei a carreira, batalhei o bom combate, guardei a fé; no mais está-me reservada a
coroa de glória que o justo Juiz haverá de me dar».

A propósito da difamação

P. Francisco Alves, CSSR, Tesouro de Exemplos, Vol. II, p. 242:

Conta-se que um discípulo do sábio Sócrates, querendo contar-lhe um fato que


ouvira numa roda de conhecidos, começou assim:
— Ouve, mestre, o que se diz de um teu amigo...
— Pára! pára! — interrompeu-o o filósofo. — Já passaste por três peneiras o que
me vais contar?
— Por três peneiras!? — exclamou o discípulo, admirado.
— Sim, meu amigo, por três peneiras. Vejamos se o que me desejas contar pode
passar por elas. A primeira é a verdade. Tens plena certeza do fato? Examinaste
seriamente se é verdade?
— Não examinei, mas ouvi falar e...
— Bem — atalhou Sócrates — pois que não passa pela primeira, estás certo de
que passará pela segunda peneira? Se o que me queres contar, se bem que duvidoso, é ao
menos alguma coisa boa?
— Boa, propriamente, não é. Compromete...
— Ora — interrompeu novamente o mestre — se é duvidoso e mau o que me vens
contar, vejamos se consegue salvar-se na última peneira. Tens motivos graves para contar
o que ouviste? Será necessário que eu seja informado?
— Necessário, propriamente, não, mas...
Sorriu então, o filósofo e continuou sua lição, dizendo:
— Se o que me desejas contar é duvidoso, não é coisa boa, nem precisa ser
conhecido por outros, melhor será não contá-lo.
A difamação é um pecado como a calúnia e a maledicência. Quem comete essa
injustiça tem obrigação de reparar o dano causado ao próximo.

São João da Cruz (1542-1591)

Crisogono de Jesus OCD, Vida de San Juan de la Cruz, in Vida y Obras de San Juan de la Cruz, BAC,
Madrid, 1964, pp. 310, 311, 312 e 313:
Alguém inicia um processo de difamação contra ele (São João da Cruz). E o padre
Diego Evangelista, o definidor de trinta e um anos, intemperante e rancoroso.
Comissionado pelo definitório para completar algumas informações do processo contra o
padre Gracián, quer envolver na mesma sorte o santico de Fray Juan, como o chamava
Madre Teresa (Santa Teresa de Jesus).....
O padre Diego Evangelista, a quem os contemporâneos chamam de «moço de
pouca prudência e colérico», não busca Informações; exige declarações de culpabilidade,
que necessita para desonrar seu Pai — tão aureolado já de virtudes e de milagres — e
expulsá-lo da Ordem. Por isso, sem dúvida, se dirige aos conventos de freiras. Espera
atemorizá-las e aturdi-las. Para isso emprega alternativamente oferecimentos e ameaças.
E quando não lhe vale nem uma coisa nem a outra — porque não lhe valem — falsificará
as declarações, escrevendo o que não disseram, dando um sentido mau as mais inocentes
ações. As freiras de Granada, as mais terríveis e infamemente acossadas pelo definidor,
pelo fato de terem sido tão queridas pelo perseguido, assustam-se e, em vista da perversa
interpretação que se dá ao que existe de mais santo, queimam uma gaveta cheia de
escritos, cartas e retratos de seu pai Frei João.
O que faz, enquanto isso, o Padre Doria, Vigário Geral (da Ordem)? Está
ignorante, em seu convento de Madri, ao que acontece na Andaluzia, quando todos estão
escandalizados com o alvoroço levantado pelo Padre Diego Evangelista, seu comissário?
... Tão benevolamente olham o Vigário Geral e os definidores a atuação do Padre Diego
que, em vez de penitenciá-lo, o mimam, levando-o à Itália, onde continua, mesmo depois
de morto Frei João (São João da Cruz) seu infame trabalho difamatório.
Estando ele (Frei Diego) em Sanlucar, chegou a notícia da morte de Frei João da
Cruz e enquanto as freiras, Maria de São Paulo especialmente, choram e lamentam o
desaparecimento do Santo, o padre Diego exclama: «Se não morresse, eu lhe tiraria o
hábito e não morreria na Ordem».

Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690)

Pe. Bougaud, Vigário geral de Orleans, História da Beata Margarida Maria ou da Origem da devoção ao
Coração de Jesus. Livraria Internacional, Porto-Braga, 1879, pp. 228-229:
A roda de Margarida tudo eram dúvidas, suspeitas e contradições. Imaginemos o
que seria em 1675 aos olhos de suas irmãs, as religiosas de Paray, a nossa humilde
Margarida. Deus acabava de confiar-lhe uma admirável missão e honra inestimável,
fazendo-a confidente das angustias e sofrimentos de seu Sagrado Coração; mas tudo isto
as religiosas ignoravam. Nem o padre de la Colombière (o Beato Cláudio de la
Colombière, Jesuíta), nem a superiora e muito menos a Beata lhes haviam revelado o
segredo; sabiam somente o que viam; isto é, estar em oração tempo imenso; levantar-se
às dez horas, o que sem dúvida lhe era permitido pela superiora, mas desusado na
Visitação; atos que pareciam singulares, como trabalhar de joelhos e outros que as
pasmavam sem aclararem o seu espírito, como os seus desmaios que obrigavam as
religiosas a levarem-na em braços; e, o que ainda mais atraía a atenção, frequentes
conferências com a superiora, com o padre de la Colombière e outros confessores
extraordinários, conferências não muito do agrado de Margarida e cujo motivo elas
ignoravam; finalmente tudo quanto traz facilmente aos lábios palavras como estas: «Por
que não fará a nossa querida irmã como todas nós? Que desejo de singularizar-se!»
A isto acrescia um estado de êxtase singular e de que acima falamos, que
aumentava de dia em dia, tornando-a incapaz de qualquer ofício. Ocuparam-na na
enfermaria, mas sem muito proveito, apesar da sua bondade, zelo e dedicação a toda a
prova e de sua caridade, que muitas vezes a levava a praticar atos de heroísmo tal que só
o ouvi-los repugnaria aos nossos leitores. Também a haviam empregado na cozinha, mas
foi por pouco tempo, porque tudo lhe caía das mãos, e a admirável humildade com que
reparava estes seus desazos, não impedia que prejudicasse a ordem e regularidade que
devem reinar em uma comunidade. Tinham-lhe confiado educação das meninas, que
muito a amavam e lhe cortavam pedaços do hábito como a uma santa, mas o seu estado
de êxtase impedia-a de vigiar quanto era necessário. Pobre irmã! Em 1675, muito mais
que em 1672, a sua vida já não era na terra, era necessário deixá-la no seu céu!
Acresciam ainda as doenças, curas súbitas, recaídas repentinas, um estado que os
médicos não compreendiam e muito menos as religiosas. Como não se admirariam?
Como não diriam: Mas em tudo isto não terá grande parte a imaginação, um
temperamento mal regulado, e talvez alguma ilusão? Interrogavam-na, mas debalde,
porque não respondia coisa pelo menos satisfatória ou que desse à comunidade alguma
luz. De maneira que algumas chegavam a dizer que Soror Margarida Maria era uma
visionária. Acusavam-na de se ter apoderado do espírito da superiora e do padre de la
Colombière e de lhes fazer acreditar as suas alucinações. Algumas até foram mais longe;
Imaginando que Margarida estava possessa, quando a encontravam, lhe lançavam água
benta.

Santo Afonso de Maria Ligório (1696-1787)

Conta uma biografia de Santo Afonso Maria de Ligório, a quem Pio IX conferiu o título
de Doutor da Igreja:

Pe. José Montes CSSR, Afonso de Ligório o Cavaleiro de Deus, Editora Vozes, Petrópolis, 1962,
pp. 35, 36, 40, 41 e 43:
Afonso (Santo Afonso de Ligório) ofereceu a Deus sua vida, resolvido a
empreender a fundação (da Congregação do Santíssimo Redentor), ainda que lhe fosse
mister sofrer toda sorte de contratempos. Com efeito, apenas dera os primeiros passos,
desencadeou-se contra ele a mais furiosa tempestade. O menos que lhe diziam sem
rebuços, era que se lançava numa extravagância .... que se deixava levar pelas alucinações
de uma visionária .... que os louvores lhe tinham feito perder o juízo e o orgulho e a
vanglória o cegavam.
O tio, dom Mateus Gizzio, reitor do seminário, repetia-lhe em todos os tons:
— Sois uma cabeça sem miolo; deixai-vos arrastar pela fantasia de uma freira;
não ouvis nenhum conselho; sois a burla e o escárnio da cidade.
A maior campanha movia-lhe o Colégio da Sagrada Família de Jesus, onde
Afonso fora pensionista e onde tanto trabalhara. Para o Padre Ripa e seu estabelecimento,
a decisão de Afonso e sua perda representava uma catástrofe. O antigo missionário dos
chineses esforçou-se em vão por dissuadi-lo; mostrou-lhe por todos os modos que sua
resolução era ridícula, um verdadeiro pecado seguir os conselhos de uma freira e
abandonar o bem que vinha fazendo no colégio. Não tendo conseguido virar a cabeça de
seu pensionista, dirigiu-se Ripa a Monsenhor Falcoia numa carta que raiava pelo
atrevimento e injúria. Ao mesmo tempo rompeu com os padres Pagano e Fiorilli e tal
modo amotinou a opinião pública contra esses dois sacerdotes que ambos rogaram a
Afonso tomasse por diretor & Monsenhor Falcoia e os deixasse em paz.
Ripa, esperto em manejar as armas e acostumado a ver-se sabe Deus em que
questões com os chineses, de tal maneira sublevou a opinião e moveu guerra a Afonso,
que este, todo perplexo, perguntava a si mesmo, se em verdade seus diretores não o
haviam induzido a uma aventura. Abandonado dos melhores amigos, dirigiu-se a Scala a
manifestar as hesitações a Sóror Maria Celeste (Venerável Maria Celeste Crostarosa).
— Dom Afonso, esta obra é de Deus. Haveis de ver os resultados.
Havia naquele mosteiro uma religiosa, anciã, que sofria de demência. Sóror Maria
Celeste, e suas co-irmãs, suplicaram a Deus que, se as visões fossem verdadeiras, e não
puro engano, fizesse um milagre, restituindo a razão à pobre freira. Afonso achava-se em
Nápoles, quando recebeu este recado: — Sóror Maria Madalena (a enferma) acaba de
recobrar a razão...
Em Nápoles, no entanto, as más línguas continuaram a denegrir-lhe a reputação.
Ripa e alguns amigos não descansavam. O menos que propalaram era: Afonso é um
iludido, vaidoso, orgulhoso, a vergonha e a desonra do clero napolitano. ...
Mas tinham-lhe revelado que a Congregação se fundaria, embora tivesse de passar
pela prova de fogo, isto é, arrostar dificuldades não só externas, mas, principalmente
internas. Estas dificuldades internas são características da obra Afonsina. Todas as
fundações têm esbarrado com inimigos externos. Tiveram suas desarmonias internas, é
certo; mas estas, na vida de fundador, têm sido quase sempre dificuldades que sobrevêm
a toda sociedade de homens. Na obra de Afonso, nós o veremos, não faltaram as tramas
exteriores, e cem vezes esteve a Congregação a ponto de soçobrar. Mas, se grandes foram
essas tormentas, incomparavelmente maiores foram as internas e ao Fundador, na hora de
sua agonia, não faltou um Judas...
Os inimigos tinham espalhado as notícias mais ridículas. Diziam que o Papa,
informado das pretensões de Afonso, proibira a Monsenhor Falcoia de ocupar-se dele e
da Fundação. Alguns pregadores apresentavam-no do alto da cátedra, como um exemplo
de erros e de quedas, que estão expostas as almas presumidas e orgulhosas. Os parentes
e amigos recebiam-no envergonhados. O tio, reitor do seminário, evitou encontrar-se com
ele. O padre Ripa cerrou-lhe as portas do colégio. Nas ruas apontavam-no com o dedo
como se fosse um louco.

Acusado de criar uma... "seita das costeletas"

Pe. José Montes CSSR, Afonso de Ligório o Cavaleiro de Deus, Editora Vozes, Petrópolis, 1962, p. 30:
Entretanto, aquele admirável apostolado ia terminar de um modo tragicômico. A
multidão que se aglomerava em torno do zeloso sacerdote (Santo Afonso Maria de
Ligorio), crescia, sem cessar. Numerosos eram, também, os clérigos e seculares
instruídos, que o ajudavam. A gente da cidade começava a desconfiar daqueles
ajuntamentos. Alguns se aproximavam, mais por curiosidade, ouviam a Afonso e
retiravam-se edificados. Outros, talvez com propósitos investigadores, andavam
suspeitando... política... heresia... Introduziram-se astutamente nas filas e descobriram
uma confirmação formidável de suas suspeitas... É que Afonso repreendia um operário
por se entregar a mortificações exageradas. E um cavalheiro, dom Pórpora, secundava o
sacerdote, acrescentando:
— Olha, filho, é preciso comer para viver. Se tua mulher te oferece umas
costeletas, come-as e bom proveito!
Não suspeitava o bom Pórpora, quanto iriam caminhar as suas costeletinhas.
Aquelas palavras, ouvidas de má tenção e interpretadas de maneira pior ainda,
correram por toda a cidade: "Seita das Costeletas". E começou a correr o boato de que
tudo aquilo, com aparências piedosas, terminava em escandalosas bacanais. Uma
denúncia após outra foi chegando ao prefeito da cidade. A polícia prendeu logo alguns
dos já famosos sectários, entre os quais Barbarese e Nardone. Interrogados, responderam
que se reuniam para ouvir o senhor de Ligório. Ao ouvir o nome do poderoso patrício
(Santo Afonso, da nobre e poderosa família dos Liguori, de Nápoles), a autoridade deu
imediatamente liberdade aos presos; mas, dirigindo-se ao Arcebispo, a mesma autoridade
conseguiu que as reuniões fossem suspensas.

Lutas contra o demónio

São Bento

São Gregório Magno, Vida e milagres de São Bento, Editora Civilização, pp. 41-43:
O monge dissipado que voltou ao bom caminho

Num daqueles mosteiros que tinha construído nos arredores, havia um monge que
não conseguia permanecer recolhido, mas que, assim que os irmãos se inclinavam para
rezar, saía fora e dissipado se entretinha em coisas terrenas e passageiras. Havendo-o
advertido repetidas vezes o seu abade, foi conduzido ao homem de Deus, o qual por sua
vez o increpou duramente pela sua falta de tino. Retornando ao mosteiro, mal se lembrou
por dois dias da admoestação do servo de Deus; porque no terceiro, voltando ao seu antigo
nodo de proceder, começou a passear durante o tempo da oração. Sendo avisado o servo
de Deus pelo superior que constituíra naquele mosteiro, disse-lhe: «Eu mesmo irei e o
corrigirei pessoalmente».
E tendo ido o homem de Deus ao mosteiro, na hora estabelecida, concluída a
salmodia, aplicaram-se os irmãos à oração; e então viu que um demónio, em forma de
negrinho, arrastava para fora, puxando pela barra do hábito, o monge que não conseguia
permanecer na oração. Então disse em voz baixa ao superior do mosteiro, cujo nome era
Pompeiano, e ao servo de Deus Mauro: «Estais a ver quem é que arrasta para fora aquele
monge?» Ao que responderam eles negativamente. Rezemos, pois, disse-lhes, para que
também vós vejais atrás de quem esse monge está indo. Ao cabo de dois dias de oração,
o monge Mauro viu o negrinho; Pompeiano, porém, que era superior do mosteiro, não
conseguia vê-lo.
No dia seguinte, terminada a oração, saindo o homem de Deus do oratório,
surpreendeu o monge estando fora, e para o curar da cegueira de coração surrou-o
fortemente com a vara. Desde aquele dia não mais sofreu engano do demónio, e
permaneceu constante na oração. O antigo inimigo não se atreveu a dominar por mais
tempo a imaginação do monge, como se ele próprio tivesse recebido os golpes.

São Gregório Magno, Vida e milagres de São Bento, Editora Civilização, p. 113:
O monge libertado do demónio

Indo um dia o santo ao oratório de São João, localizado no mais alto do monte,
passou por ele o demónio, disfarçado sob a forma de um alveitar9 que levava consigo um
vaso de chifre e umas ataduras próprias do seu ofício. Como Bento lhe perguntasse aonde
ia, respondeu que ia levar um remédio para os irmãos. Foi-se então o venerável Pai à
oração e, concluída esta, logo voltou.
Mas o espírito maligno, pela sua parte, encontrara um monge ancião tirando água,
e imediatamente entrara nele, derrubando-o por terra e atormentando-o furiosamente.
Ao voltar da oração o homem de Deus, viu o que estava a ser torturado com tanta
crueldade, e aplicou-lhe uma única bofetada, saindo logo dele o espírito maligno e nunca
mais ousando voltar a ele.

São João Bosco (1815-1888)

José Maria Alves, SDB, Sonho e Realidade, 2ª ed., 1948, Vila do Conde, pp. 229-232:
Vexações diabólicas

Os salesianos tinham notado que a saúde de D. Bosco ia decaindo de dia para dia.
Viam-no pálido, magro, abatido e muito ensonado.
— Que tem, D. Bosco? Está doente?
— Precisaria de dormir. Há quatro ou cinco noites que não prego olho.
— Pois durma! Em lugar de fazer serão, deite-se mais cedo.
— Não é isso! Vontade de dormir não me falta; mas há quem me obrigue a passsr
a noite em claro.
— Quem?
— Olhai. Há já algumas noites que o mafarrico se diverte à custa do pobre D.
Bosco. Parece que não tem mais nada que fazer. Mal pego no sono, sinto nos ouvidos
uma voz cavernosa, sopra um vento impetuoso, e ele aí vem revistar-me, espalhar os
papéis, desordenar os livros.
Estava uma destas noites a rever as provas dum dos fascículos das «Leituras
Católicas», «O Poder das Trevas», e, tendo-as deixado em cima da mesa, pela manhã
encontrei-as no chão. Mais de uma vez tive que andar à procura delas, pois o maroto
escondia-mas.
À noite passada deu-lhe para acender a estufa e levantou tamanha labareda que ia
pegando fogo à casa. Os cobertores da minha cama — estava eu deitado — começaram a
escorregar para os pés. Nunca tal tinha acontecido. Dali a pouco estava já meio destapado.

9
Veterinário prático. O chifre que levava servia para com ele se derramarem os remédios na boca do
animal doente; e as ataduras referidas no texto serviam para se amarrarem três pés dos animais que
estavam a ser tratados.
Puxei pela roupa, sem ligar importância ao caso, mas dali a pouco a cena repete-se. Era o
patife a querer brincar comigo... Acendi a luz, levantei-me, procurei, revistei e... até olhei
debaixo da cama. Mas... que é dele?
Deitei-me novamente, abandonando-me à divina Providência. Com a luz acesa,
não havia novidade, mas na escuridão...
À porta do meu quarto rangia, dolente, e a impetuosidade do vento era tal, que
parecia a cada instante querer arrombá-la. Ruídos estranhos, como de rodas de carro
arrastando-se estridentes em cima do meu quarto, atordoavam-me, enquanto,
improvisamente, gritos agudíssimos, estonteantes, me faziam saltar. De repente abre-se a
porta, e um terrível monstro, de fauces escancaradas, avança para me devorar. Fiz o sinal
da cruz e o monstro desapareceu».

Houve quem—sem nada dizer a D. Bosco — quisesse ficar de noite, no quarto


contíguo, para certificar-se da verdade de quanto D. Bosco tinha narrado. E, note-se que
esse tal, homem assaz corajoso, tinha-se mostrado valente e impávido em muitas
ocasiões.
Pois bem. Cerca da meia-noite, ouviu um rumor tão estranho que, não podendo
resistir ao medo que dele se apoderou, fugiu horrorizado.
D. Bosco bem queria que alguém ficasse com ele durante a noite, mas ninguém se
atrevia.
E a perseguição diabólica continuava.
O demónio agarrava-o pelas costas e agitava-o duma maneira espantosa. Oprimia-
o, sufocando-o. D. Bosco procurava defender-se dando murros, que... não atingiam
ninguém. Tornava a levantar-se, buscava por todos os cantos e... nada. Rezava, benzia-se
e, por instantes, via-se livre daquele tormento, mas bem depressa voltava.
Agora era a mesinha de cabeceira que dançava alegremente com o seu tac-tac,
bem compassado.
Para ver se encontrava um pouco de sossego, D. Bosco resolveu ir passar uma
temporada a Ivrea, com Monsenhor Moreno. Mas nem lá o espírito maligno o deixou, por
longo tempo, em paz.
Numa noite, mal tinba apagado a luz, começou o travesseiro a balouçar — como
em Turim — e apareceu-lhe aos pés da cama o terrível monstro em acto de se lançar
contra ele.
D. Bosco deu um grito que acordou todos os que estavam no Paço. Acudiram os
criados, o secretário do bispo, o vigário geral e o próprio Prelado, temendo que tivesse
sucedido alguma desgraça.
— Que foi D. Bosco?
— Que tem?
— Sente-se mal?
E D. Bosco a sorrir:
— Não é nada, não é nada... Foi um sonho. Não tenham medo!... Vão descansar
e... desculpem.
De manhã, D. Bosco contava ao Prelado o que lhe tinha acontecido.

Na noite de 3 para 4 de Março, estando deitado, levantou-lhe a cama no ar e depois


deixou-a cair com tamanha violência que o Santo ficou com o corpo todo dorido e parecia
que o sangue lhe queria saltar da cabeça.
— D. Bosco, suplicavam seus filhos, mande-o embora, esconjure-o.
— Se o mando embora ele vai para os meus rapazes.
— Então pergunte-lhe o que é que ele quer.
— Quem sabe se não lho perguntei já.
— E que respondeu ele? Diga! Diga!
— Rezai! Foi a única resposta.
Contava mais tarde o bom Pai a um grupo dos seus rapazes as noites terríveis
passadas então, quando um deles o interrompeu, dizendo:
— Eu cá não tenho medo do demónio.
— Não digas isso, meu filho, respondeu D. Bosco, com voz vibrante. Mal tu sabes
o poder que o demónio tem, se o Senhor lhe desse licença de agir.
— Se eu o visse agarrava-o pelo pescoço.
— Não digas tolices; morrerias de medo.
— Mas... e se fizesse o sinal da cruz?
— Valia só por alguns instantes.
— E D. Hosco como fez para o afastar?
— Ah! Eu sei bem qual foi o meio para o afugentar. E estou certo que não voltará
tão depressa.
— Qual foi? Diga! Diga!
— Foi o sinal da Cruz?
— Foi a água benta?
— Encontrei o meio... e como foi eficaz!
Calou-se e não disse mais nada.
Depois, em ar de epílogo, acrescentou:
— O que é certo é que eu não desejo a ninguém momentos tão terríveis como
aqueles por que eu passei. É preciso pedir muito a Deus que não permita ao demónio
brincadeiras de tão mau gosto.

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