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4-Texto Do Artigo-33-1-10-20190521

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ANÁLISE NARRATIVA DA BÍBLIA: INTRODUÇÃO, MÉTODO E

CONTRIBUIÇÕES PARA APROXIMAÇÃO DO LEITOR AOS TEXTOS


NARRATIVOS DA BÍBLIA
Cirilo Gonçalves Neto¹

RESUMO

É comum que as análises do texto Bíblico, pelo menos as mais tradicionais, nos tire do texto para compreendê-lo.
Diferente dessas análises tradicionais, a análise narrativa da Bíblia tem como objetivo a aproximação ao texto.
Este artigo apresenta uma introdução à teoria da análise narrativa da Bíblia por meio da sua história e do seu como,
apontando a relação entre autor, leitor, narrador e obra, bem como coloca de forma resumida os principais pontos
da metodologia da análise narrativa, sendo estes: narrador, leitor, enredo, personagens, focalizações, tempo e
enquadramento. Seu objetivo é o de apontar a análise narrativa da Bíblia como uma metodologia de aproximação
do leitor ao texto, com intenção de que essa seja uma contribuição à leitura da Bíblia.
Palavras-Chaves: Narrativa. Análise. Bíblia. Leitura. Aproximação

ABSTRACT

It is common for analyzes of the biblical text, at least the most traditional, to draw us from the text to understand
it. Unlike these traditional analyzes, the narrative analysis of the Bible aims to approximate the text. This article
presents an introduction to the theory of narrative analysis of the Bible through its history and its how, pointing
out the relation between author, reader, narrator and work, as well as summarizes the main points of the
methodology of narrative analysis, being these: narrator, reader, plot, characters, focus, time and framing. Its
purpose is to point to the narrative analysis of the Bible as a methodology to bring the reader closer to the text,
with the intention of making a contribution to the reading of the Bible.
Keywords: Narrative. Analysis. Bible. Reading. Approximation
INTRODUÇÃO
A leitura da Bíblia é, ou pelo menos deveria ser, uma das principais práticas da
espiritualidade cristã, é o que aponta Peterson (2004, p.11). Todavia, as metodologias utilizadas
para leitura e interpretação da Bíblia muitas vezes tendem a nos afastar do próprio texto para
podermos, assim, compreendê-lo. A análise narrativa, por sua vez, tem como objetivo nos
colocar dentro da narrativa bíblica para percebermos os elementos, pistas, personagens e formas
utilizadas pelo autor para compreender melhor o sentido do texto.
TEORIA DA ANÁLISE NARRATIVA
O QUE É UMA NARRATIVA
“Desde que o mundo é mundo, o homem sempre esteve ao lado de suas narrativas, ao
redor do fogo, por meio da escrita rupestre entremeada de sons guturais e até a elaboração da
linguagem” (BEDRAN, 2012, p.25). “. A narrativa é o gênero literário que se estrutura sobre
uma história. A narrativa tem como traços fundamentais : a construção de um mundo, sendo
este o mundo da narrativa, onde se encontra códigos e regras de funcionamento, é o “universo”
criado pelo narrador para a construção da história; a relação de causalidade, são as ações
ligadas que trazem um sentido a narração, diferenciando-a do simples descrição; como terceiro
¹ Graduado em Teologia, pela Faculdade Latino-americana, 2018, Arujá, SP. E-mail: cirilogn@gmail.com
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e último traço o tempo, as narrativas acontecem dentro de um tempo, a cronologia das ações é
o que as diferencia do discurso. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.28; VITÓRIO, 2016,
p.15-18)
Narrar é, portanto, contar uma história que faça sentido, dentro de um mundo, por meio
de ações que construam uma relação de causalidade e tudo isso dentro de um tempo. É contar
respeitando uma estrutura de narração. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.28; VITÓRIO,
2016, p.15-18)
COMO SURGIU A ANÁLISE NARRATIVA DA BÍBLIA
A ideia de uma análise sistemática das características da narrativa bíblica surge, pela
primeira vez, em 1981, com Robert Alter no livro: A arte da narrativa bíblica, exercendo assim
uma grande influência na exegese bíblica. Alter não era um teólogo, mas um literato judeu que
se propôs a analisar a Bíblia Hebraica com ferramentas da literatura voltadas às narrativas.
Apesar de nos anos seguintes outros estudos na área surgirem, a sua obra foi o pontapé inicial
ao método de estudos da Bíblia através da narrativa. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009,
p.19)
O QUE BUSCA A ANÁLISE NARRATIVA DA BÍBLIA
Para que se entenda de forma mais clara o que é e qual a proposta da análise da
narrativa bíblica, Marguerat e Bourquin explicam os dois principais caminhos de análise que
eram utilizados na época e que perduram até os dias de hoje. São estes: a análise histórico-
crítica e a análise semiótica ou estrutural. Os autores apresentam em sua obra as diferenças e
peculiaridades desses três caminhos de análise bíblica, a histórico-crítica, análise semiótica e a
análise narrativa. Usaremos a reformulação do esquema de Jakobson proposta por Robert M.
Fowler. (FOWLER, 1991, p. 54-55, apud MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.15) para
melhor compreensão das diferenças e peculiaridades desses caminhos.
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Esquema de Fowler - Figura 1

Fonte: MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.15


Para Fowler (1991) a comunicação textual articula, necessariamente, dois eixos: o
vertical, conhecido como o eixo mimético ou eixo da representação e o horizontal, entendido
como o eixo retórico ou eixo da comunicação. O eixo mimético ou da representação tem como
foco a representação do mundo e o código linguístico, já o eixo retórico ou da comunicação é
caracterizado pela relação entre autor e leitor mediada pela obra. É por isso que, enquanto a
análise histórico-crítica tem seu interesse no acontecimento histórico, no que está por trás do
texto: o verdadeiro autor, verdadeiro leitor, contexto exato da época em que a obra foi escrita e
orientando-se quase sempre pelo autor, a análise semiótica tem seu interesse no funcionamento
da linguagem, fixando-se no texto em si, buscando nele um sistema de signos que traga o
sentido e se orientando pela mensagem/obra. (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p.15-18)
A partir desses interesses podemos perceber que enquanto a análise histórico-crítica
se localiza ao norte (mundo representado> INFORMAÇÃO) do esquema de Fowler, a
semiótica pode ser encontrada ao sul (mundo signos verbais> LINGUAGEM).
(MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 17-18)
Mas então, qual o interesse e onde nesse esquema se localiza a análise narrativa? A
análise narrativa se encontra no eixo da comunicação, o seu interesse está no “como” o autor se
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comunica ao leitor. Alter (2007, p.126) diz que “tudo que é relatado é essencial para a história,
mas certas pistas especiais são sugeridas pelo ritmo com que se descrevem as ações”. Seu
principal objetivo é analisar a estrutura e as “pistas” utilizadas pelo narrador para que a
comunicação chegue ao leitor. Seu olhar é sobre a linha AUTOR> OBRA> LEITOR,
considerando o efeito da narrativa sobre o leitor ou leitora. (ALTER, 2007; MARGUERAT e
BOURQUIN, 2009, p.18)
NARRADOR, AUTOR REAL E IMPLÍCITO
Uma das principais características de uma narrativa é a “voz” que guia a história, a ela
é dada o nome de narrador. Como nos aponta Vitório (2016, p.17), o narrador é aquele a quem
cabe “...se decidir pelo modo como os fatos serão apresentados, montar o conjunto do enredo e
pensar a correlação interna dos fatos.” Será ele que construirá o caminho da narrativa, podendo
ou não se fazer presente nela. Nas narrativas bíblicas o narrador, tradicionalmente, se esconde
atrás de suas palavras, porém isso não o impede de estar presente através da estratégia narrativa
no desenvolver da história. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.21-27; VITÓRIO, 2016,
p.27-39)
Ainda sobre o narrador Vitório (2016, p. 56) nos traz cinco características que estão
presentes nessa voz que guia a história. Ele é onipotente, pois tem o poder de criar o que quiser
para a construção da narrativa; onisciente, pois sabe tudo o que pode acontecer, no caso da
narrativa bíblica, este tem ciência até mesmo sobre os pensamentos de Deus; presciente, pois
até mesmo o futuro é conhecido por ele; onipresente, sendo capaz de narrar a partir de qualquer
lugar e tempo; e por último confiável, pois no mundo da narrativa o leitor parte do princípio de
ser conduzido pelo narrador, sem que esse precise explicar a origem do seu saber, ainda que o
narrador possa “jogar” com a confiabilidade durante a narração. (VITÓRIO, 2016, p.55-57)
Um cuidado a ser tomado é não confundir o narrador com o autor real e nem mesmo
com o autor implícito. Como já mencionamos, o narrador é a “voz” que guia a narrativa,
enquanto o autor real nos é desconhecido. O autor implícito por sua vez, é o sujeito da estratégia:

O autor é ‘implícito’, quer dizer, reconstruído pelo leitor, a partir da narrativa.


Ele não é o narrador, mas sim o princípio que inventou o narrador, assim como
todos os elementos da narrativa. Foi ele que empilhou as cartas dessa maneira
particular, que quis que tal acontecimento se desse com tal personagem, nesses
termos ou por meio dessas imagens. (CHATMAN, 1978, p.148 apud
MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.25)
NARRATÁRIO, LEITOR REAL E IMPLÍCITO
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Assim como o autor real, implícito e narrador, precisamos diferenciar o leitor real, o
leitor implícito e o narratário. O leitor real é aquele que, de fato, tem o texto na mão, somos eu
e você diante do texto, enquanto que o implícito é aquele que imaginamos a partir da narração,
podemos ter algumas pistas dele pelas estratégias usadas pelo narrador e, enfim, o narratário é
a figura para qual o narrador se dirige por meio da narrativa.
Figura 2

Fonte: MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.24)


A RELAÇÃO/JOGO ENTRE NARRADOR E LEITOR
E o leitor, qual o seu papel? Umberto Eco (2011, p.37) diz que o texto é um mecanismo
preguiçoso e por isso depende do leitor para funcionar. Ao construir a história, o narrador conta
com a participação do leitor, em uma espécie de jogo entre narrador e leitor a narrativa ganha
o seu sentido. É o leitor quem dará vida ao texto participando da construção da narrativa de,
pelo menos, três formas: interação, cooperação e experiência de leitura. (ECO, 2011, p.37;
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.23; ZABATIERO e LEONEL, 2016, p.115)
A cooperação, se faz por meio do que o autor tem como hipótese, os conhecimentos
prévios e as competências do leitor, dando dessa forma a possibilidade de que o leitor use da
sua imaginação para trazer o sentido. É claro que, essa imaginação deve respeitar os limites do
sentido do texto, ao mesmo tempo em que o narrador, por meio do texto, também coopera para
uma construção do leitor, dando informações, pistas e usando de uma estratégia que ao mesmo
tempo em que se constrói um sentido para a narrativa, também se construa um leitor para tal.
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.147-167)
A interação, acontece na forma como o narrador programa o percurso do leitor, as
escolhas e caminhos que ele faz durante a narrativa para “guiar o leitor”, fazendo do texto um
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labirinto de possibilidades onde o narrador está junto, conduzindo o leitor pelo caminho.
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.147-167)
A experiência da leitura é a forma como a interpretação da leitura do texto é capaz de
gerar experiências de vida, a narrativa é capaz de nos impelir a ações, transformações e
ressignificações na forma de pensar e agir. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.147-167)

‘Interpretar’ não é somente ‘compreender’ no sentido de uma investigação


intelectual metodicamente conduzida, mas é também ‘executar’, como se diz,
aliás, do músico que interpreta uma partitura ou do ator que interpreta um
papel, um personagem, que ele ‘executa’. (BUHLER, 1995 p.253 apud
MARGUERAT E BOURQUIN. P.176)
A participação do leitor acontece de forma mais clara e profunda nas narrativas onde
o narrador deixa de lado detalhes, permitindo que na falta desde o leitor contribua através da
sua imaginação. Um texto escrito com bastante detalhes é caracterizado como de primeiro
plano, enquanto um texto construído de forma rápida e escasso de detalhes é considerado como
de segundo plano (ZABATIERO e LEONEL, 2011, p.114).

...qualquer narrativa de ficção é necessariamente e fatalmente rápida porque,


ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e de
personagens, o narrador não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e
pede ao leitor que preencha toda uma série de lacunas. (...) Que o problema
seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender - não
terminaria nunca. (ECO, 1994, p. 9).
Por meio dessas formas e estratégias utilizadas pelo autor na construção do narrador e
da narração se dará as relações entre o texto e leitor, narrador e narratário. (MARGUERAT e
BOURQUIN, 2009, p.147-167)
METODOLOGIA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
A análise narrativa serve-se de uma metodologia que se divide em algumas etapas, das
quais as principais são: narrador, leitor, enredo, personagens, focalizações, tempo e
enquadramento. Será a partir da construção destas etapas que leitor e narrador caminharão
juntos, construindo um mundo e uma história que se desdobrará nas relações de causalidade
dentro do tempo. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.55-74).
ENREDO
O enredo é necessário em qualquer narrativa, sem o enredo não há narrativa. Ele é a
estrutura da história em si. Como vimos anteriormente, a narrativa precisa de um “mundo” e de
uma relação de causalidade. Para entendermos melhor essa estrutura da história e como se dá a
7

construção desse mundo e as causalidades geradas na narração usaremos o esquema quinário


de Pe. Larivaille (LARIVAILLE, 1974, pg. 368-388, apud MARGUERAT e BOURQUIN
p.57).
O modelo quinário do Pe. Larivaille (1974) apresenta cinco momentos de uma
narrativa, onde a história se desenrola através de uma tensão narrativa: a situação inicial (ou
exposição), nó, ação transformadora, desenlace, e a situação final. Explicaremos melhor cada
um desses.
Situação Inicial (ou exposição): É o ponto de partida, geralmente onde se aponta o lugar,
tempo, circunstâncias, personagens.
Nó (ou complicação): é o que vai desencadear a ação, geralmente onde se dá o ponto de tensão
e os personagens e problemas são inter-relacionados.
Ação Transformadora (ou clímax): é a resolução da dificuldade ou problema, pode ser
pontual ou processual. Um bom narrador constrói a sua narração de forma que o clímax seja o
momento esperado pelo leitor, podendo utilizar de pistas para que o leitor fique na expectativa
pelo o que irá de fato acontecer.
Desenlace: É a etapa simétrica do nó. É o momento onde é descrito as consequências da ação
transformadora.
Situação Final: É a exposição do novo estado. Corresponde à alteração da situação inicial e
preparo para uma nova narração.
Esquema quinário - Figura 3

Fonte: MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.58.


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PERSONAGENS
Os personagens são criados pelo narrador para trazer vida ao enredo, são eles os
responsáveis por fazer a história acontecer. Marguerat e Bourquin (2009 p.77) apresentam três
tipos de classificação de personagens levando em consideração: o (1) número, a (2) intensidade
da presença e os (3) traços constitutivos.
A classificação por número se dá entre singular ou coletiva, podendo ser um único
personagem ou um coletivo (exemplo: multidão). Já sobre a intensidade da presença temos
os personagens protagonistas, são aqueles que desenvolvem um papel ativo na narrativa; os
figurantes, são aqueles que compõem a narrativa; e temos também os personagens cordão
(encontra às vezes entre os extremos do protagonista e do figurante), responsáveis por serem
um ponto de partida, uma conexão ou uma pequena participação na história. É E. M. Forster
(FORSTER, 1993, p.77-87, apud MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.78) quem propõe a
divisão no que diz respeito aos traços constitutivos, está se dá entre personagens planos e
personagens redondos. Os personagens planos são aqueles marcados por um único traço,
geralmente aqueles que suas ações, falas e posturas mantém um padrão. Já os personagens
redondos são marcados por seus diversos traços e assumem com frequência o papel de
protagonista na narrativa, “mudam” a medida que a história se desenrola, surpreendendo o leitor
com a sua forma de pensar e agir, é aberto a transformações.
É comum a identificação do leitor com os personagens, todavia isso não se dá sempre
em total liberdade, o narrador pode utilizar de estratégias que influenciam o leitor no julgamento
e na forma como ele se sente em relação a determinado personagem. M.A Powell (1990, p.56-
57 apud MARGUERAT E BOURQUIN, 2009, p.86) aponta três sentimentos pelos quais o
narrador, por meio de estratégias, pode gerar no leitor. Seriam eles a empatia, que acontece
quando o leitor se identifica ou se comove por algum personagem, seja por conta de um
problema que ele passa, uma característica ou pelo o que ele representa; o sentimento de
simpatia, que vem a partir de uma identificação, mas não tão intensa quanto a empatia; o
sentimento de antipatia, quando o personagem é ou faz algo contrário ao sistema de valores do
leitor ou até mesmo quando ele é a oposição ao personagem que o leitor tem empatia. Sobre os
personagens:

Sua índole pode ser revelada pelo relato das ações, da aparência, dos gestos,
da postura e da roupa que usam. por intermédio dos comentários de outros
personagens; pelo discurso direto, pelo monólogo narrado ou pelo monólogo
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interior; ou ainda pelas afirmações do narrador sobre o modo de ser e as


intenções dos personagens, que podem ser feitas de maneira categórica ou
motivada pelo contexto. (ALTER, 2007, p.177).
Perceber essas estratégias do narrador faz parte da análise narrativa e aponta para uma
percepção do sistema de valores do mundo do texto e do narrador.
FOCALIZAÇÃO
Ao narrar, o narrador pode se utilizar de diferentes tipos de focalização. É como se o
narrador se colocasse em três diferentes posições ou como no exemplo de Vitório (2016, p.105),
o narrador, como no cinema, escolhe a câmera pela qual o personagem será mostrado. São três
os tipos nesse caso: a focalização zero, é a visão ampla do todo, sem os limites de tempo e
espaço; a focalização externa, correspondendo a visão do leitor, são descritas com detalhes e
podem ser facilmente imaginadas pelo leitor, é a visão de alguém que está vendo a cena; e a
focalização interna, é a mais próxima do personagem, nos dá acesso à sua própria interioridade.
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p. 92-94; VITÓRIO, 2016,p. 105-109)
As focalizações podem acontecer de forma monofocalizada (visando um só
personagem) ou plurifocalizada (visando mais de um personagem). A focalização se torna
quase que um jogo na narrativa, como em um filme, as mudanças de câmera no processo é algo
comum, tornando o texto mais interessante e abrindo as portas para se imaginar as cenas.
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.93)
Focalizações - Figura 4

Fonte: MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.92


TEMPO
Quando se fala sobre o tempo é preciso diferenciar o tempo contado, que é o tempo
referente ao da história, aquele que é “dito” pelo narrador (ex: passaram-se cinco dias) e o tempo
contando referente a duração da narrativa.

A narrativa é uma sequência duplamente temporal …: há o tempo da coisa-


contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do significante).
Essa dualidade é não somente o que torna possíveis todas as distorções
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temporais que observamos de um modo geral nas narrativas (três anos de vida
de do herói resumidas em duas frases de um romance, ou em poucos planos
de uma montagem “frequentativa” de cinema, etc.), mas fundamentalmente
ela nos convida a constatar que uma das funções da narrativa é monetizar um
tempo num outro tempo. (METZ, 1968, p.27 apud GENETTE, 2017, p.91).

A temporalidade é articulada através da ordem e a velocidade. Sobre a velocidade


pode se afirmar que:

Entende-se por velocidade a relação entre uma medida temporal e uma medida
espacial (tantos metros por segundo, tantos segundos por metro): a velocidade
da narrativa se definirá através da relação entre uma duração, a da história,
medida em segundos minutos, horas, dias, meses e anos e um comprimento: o
do texto, medido em linhas e em páginas. (GENETTE, 2017, p.123).
Será nessa equação do quanto se demora narrando um tempo, que conseguiremos
definir a velocidade da narração. O narrador pode utilizar-se de uma pausa descritiva, tido como
um tempo nulo na duração da história; uma cena, correspondendo a velocidade onde a narrativa
e a história contada caminham de forma igual; um sumário: quando um período relativamente
longo é contado de forma mais acelerada; e por último a elipse, quando existe um período de
silêncio ou omissão de acontecimentos em um determinado espaço de tempo. É o máximo da
velocidade. (MARGUERAT E BOURQUIN, 2009, p.108-113)
Sobre a ordem o narrador pode se utilizar tanto analepse, que seria uma volta ao
passado, um fato, informação, uma memória trazida do passado para a narrativa presente,
quanto da prolepse, que seria a projeção do futuro. Essa quebra da cronologia é chamada de
anacronia e servem para ajudar na organização e na construção do significado de uma narrativa.
(MARGUERAT E BOURQUIN, 2009, p.113-114)
ENQUADRAMENTO
Sobre o enquadramento é necessário saber que este se dá pelo “conjunto de dados que
constituem as circunstâncias da história contada. Pode se revestir de um valor factual e/ou de
um teor metafórico, seus componentes são: o tempo, o lugar, o meio social.” (MARGUERAT
e BOURQUIN, 2009 p.97-98). O enquadramento temporal é aplicado somente a história
contada, o tempo interno da história, diferente do tempo em que se conta, como foi apresentado
anteriormente. No enquadramento temporal, as referências são cronológicas, nos aponta o
momento onde as ações aconteceram, sobre a sua duração ou sobre o espaços de tempo como
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dia, noite, primavera, onde as ações se situam. (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.99-
101)
Sobre o lugar, o enquadramento é a posição geográfica que a narrativa se coloca,
dentro e fora de algum lugar, na Judeia ou na Samaria. É importante notar os movimentos de
transição entre os enquadramentos, os movimentos de saída ou chegada em algum lugar.
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.101-103)
Já o enquadramento social, diferente do tempo e lugar, é mais complexo e nem sempre
é claro, podendo ser percebido através do que representa um personagem ou lugar (ex: sinagoga,
fariseu, saduceu). Em algumas situações, o enquadramento terá valor factual, em outros
metafórico, faz parte da estratégia do narrador e cabe ao leitor fazer as associações e avaliações
necessárias para perceber e colocar a narrativa em determinado enquadramento.
(MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.103-105)
A APROXIMAÇÃO DO LEITOR AO TEXTO
Como vimos anteriormente, as principais formas de análise do texto bíblico são feitas
a partir de um olhar “fora” da narrativa, buscam a compreensão e tem seu foco na história por
trás do texto ou na linguagem utilizada, mas não necessariamente no conjunto e na construção
do texto. Mesters (2012, p.13-19.) na “parábola da porta”, nos conta a história de como a
cientificidade do estudo biblíco afastou o povo da leitura, criou um distanciamento entre o texto
e as pessoas, anulando a vida que o texto gera no povo. Como uma possibilidade de resposta a
esse distanciamento Leonel (2016), ao falar sobre a análise narrativa diz que:

Uma outra proposta é que, ao invés de mantermos um ‘distanciamento’


científico das Escrituras para estudá-las, conforme alguns métodos propõem,
nós nos aproximemos delas, atendendo ao convite para que participemos de
um diálogo. Dessa forma o processo de comunicação será iniciado e nos
envolveremos com os textos da mesma forma como nos envolvemos com
outros textos que nos empolgam e nos cativam. (ZABATIERO e LEONEL,
2016, p. 123).
É nesse convite ao diálogo que a análise narrativa faz, que se abre a possibilidade de
uma ressignificação da relação do leitor com o texto, da relação das pessoas com a Bíblia. Se
através das outras metodologias de análise deve-se manter neutro em frente o texto, na análise
narrativa o leitor é chamado a se aproximar. É nessa aproximação, nessa relação com o narrador
e nesse mergulho na narrativa que a aproximação acontece de pelo menos três formas.
(ZABATIERO e LEONEL, 2016, p.123-124).
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A primeira forma de aproximação se dá pelo gênero literário da narrativa. O simples


fato da narrativa ser comum ao ser humano desde a sua origem, fazendo parte do seu cotidiano
(BEDRAN, 2012, p.25), não leva a um estranhamento como quando se busca o significado de
uma palavra no grego ou no hebraico ou até mesmo quando fazemos uma pesquisa histórica
para descobrir o verdadeiro autor de um livro bíblico. A narrativa é familiar ao ser humano pelo
simples fato de que ali se passa é uma história, nós, humanos, somos feitos por nossas histórias.
É natural que exista uma aproximação do que nos é comum, do que nos é de origem. (BEDRAN,
2012, p.25).
A segunda forma de aproximação acontece através do como o narrador constrói os
personagens. Uma mãe que perde o filho, um cego que começa a enxergar, uma perseguição,
uma traição, uma festa, nos identificamos com o mundo e com os personagens construídos pelo
narrador. Somos impelidos a sentir a medida que os personagens agem na história. Somos
convidados a fazer juízo como também somos surpreendidos pelas ações, fazemos parte da
história à medida que aceitamos o convite do narrador. Ao ler-se o texto como narrativa é não
é possível se ficar neutro ou indiferente, o texto ganha vida no coração do leitor. (ALTER, 2007,
p.177; MARGUERAT e BOURQUINP, 2009, p. 76-89; ZABATIERO e LEONEL, 2011,
p.121-123).
A terceira forma de aproximação está na relação entre o leitor e o narrador, as formas
como o leitor é chamado a participar da construção da narrativa. Como vimos o leitor coopera
a partir dos seus conhecimentos e das aberturas dadas pelo narrador, da interação e do jogo que
acontece entre narrador e leitor e da experiência que o texto é capaz de gerar no leitor. Esse
processo faz a leitura algo participativo, o leitor se sente parte junto ao narrador. A relação
formada aqui é a principal diferença entre a análise narrativa e outras análises apontadas
(semiótica e crítica). (MARGUERAT e BOURQUIN, 2009, p.147-167).
Na aproximação do leitor ao texto abra-se a possibilidade de um novo caminho da
leitura bíblica, caminho que mesmo utilizando de uma metodologia é capaz de gerar relação,
proximidade, sentido e transformação na vida de um leitor. (MARGUERAT e BOURQUIN,
2009, p.173-177) ZABATIERO e LEONEL, 2011, p.123-124).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando análise da narrativa e a Bíblia se encontram nasce a análise narrativa da Bíblia.
O seu principal interesse é a construção sobre a relação entre o autor, obra e leitor, procurando
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não mais o “quem” ou “o que”, mas sim o “como” o texto foi construído pelo autor e como é
recebido pelo leitor. Nessa construção e relação entre o narrador criado pelo autor e o leitor a
atenção se volta às estratégias utilizadas pelo narrador e a colaboração do leitor, por meio do
enredo da narrativa, seus personagens, a focalização utilizada pelo narrador, o tempo e o
enquadramento.
A análise narrativa da Bíblia tem a capacidade de aproximar o leitor do texto, seja por
meio das identificações presentes através dos personagens, do ato comum ao ser humano de
narrar e da colaboração na leitura, com a capacidade de experimentar o sentido da interpretação.
A metodologia da análise, diferente de outras metodologias de leitura bíblica, nos leva sempre
ao texto da narrativa, nos fazendo aprofundar, como se essa metodologia nos abrisse uma porta
para o mundo contido na narração, como se colocasse em nós um óculos que nos aponta
detalhes, formas e estratégias que passam despercebidos em uma simples leitura, mas que ao
mesmo tempo não nos tira do texto para a busca do sentido.

REFERÊNCIAS

ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.

BEDRAN, Bia. A arte de cantar e contar histórias: Narrativas orais e processos criativos.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das letras, 1966.

ECO, Umberto, Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 2011.

GENETTE, Gérad. Figuras III. Trad. Ana Alencar. 1ed. São Paulo: Estação liberdade, 2017.

MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à


análise narrativa. Trad. Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

MESTERS, Carlos. Por Trás das Palavras: Um estudo sobre a porta de entrada no mundo da
Bíblia. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

PETERSON, Coma este Livro: As sagradas escrituras como referência para uma sociedade
em crise. Trad. Josué Ribeiro. Niterói: Textus, 2004.
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VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa de Bíblia: primeiros passos de um método. São Paulo:
Paulinas, 2016.

ZABATIERO, Júlio; LEONEL, João. Bíblia, literatura e linguagem. São Paulo: Paulus, 2011.

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