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Verdade e Metodo II 10 100

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vras, como ocorre com todas as palavras.

Tanto os conceitos, onde 20 que não se pode ler Platão


se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano como o precursor da
ontoteologia. Mesmo a Metafísica
de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, de Aristóteles possui dimensões
com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo so- diferentes do que as que foram
[12] brecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica reveladas por Heidegger em seu
aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de tempo. Para isso penso poder
novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer apelar, dentro de certos limites,
para o próprio Heidegger. Penso
para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que sobretudo na predileção de
de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformula- Heidegger pela "famosa analo-
ção não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo gia". É assim que ele costumava
da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da lin- dizer na época de Marburgo. A
guagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto doutrina aristotélica da analogia
entis foi para ele desde o princí-
definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos pio um recurso contra o ideal da
conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redesco- fundamentação última, como
bertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradi- Husserl num estilo semelhante a
ção platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, Fichte havia assumido. Seguindo
anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modifica- um distanciamento cuidadoso da
auto-interpretação transcendental
ções - como por exemplo no caso de representação (Reprãsenta- de Husserl, encontramos em
tion)14 - são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles Heidegger freqüentemente a ex-
desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo pressão "co-originariedade" -
parte do acervo conceituai da metafísica, no que se refere à configu- uma ressonância da "analogia" e
[13] uma versão au fond
ração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a fenomenológico-hermenêutica.
meu tratado acadêmico sobre a idéia do bem 15, onde, pelo contrário, Não foi, portanto, somente a
procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do crítica aristotélica à idéia do bem
que se costuma admitir, e què o projeto aristotélico da que levou Heidegger do conceito
ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles de phronesis para seu próprio
caminho. Ele recebeu também
extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da um impulso do próprio núcleo da
metafísica. metafísica de Aristóteles, e
Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensa- principalmente da Física, como
mento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e mostra seu artigo sobre a Physis,
muito rico em perspectivas'. A
refiro-me em especial aos meus estudos de PlatãoN. (Tive a satisfa- partir dali fica claro por que
ção de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coi- atribuí um papel tão central à
sa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece estrutura de diálogo da lin-
guagem. O que aprendi de Platão,
o mestre do diálogo, ou melhor,
14. Cf. Verdade e método, vol. I, p. 74s, 146s, 210s. dos diálogos de Sócrates,
15. "Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles" (Sitzungsbericht de Heid. compostos por Platão, é que a
Akad. d. Wiss., Philos.-histor. Klasse, Abh. 2), Heidelberg, 1978, p. 16; Ges. Werke,
vol. 7.
estrutura de monólogo da
16. Cf. para isso Ges. Werke, vol. 5, 6 e 7.
consciência científica jamais
permitirá, de modo pleno, ao
pensamento filosófico alcançar
seus intentos. A minha
interpretação do excurso à 7á
Carta parece-me estar acima dos
questionamentos críticos sobre a
autenticidade desse fragmento. É
só a partir daqui que podemos
compreender por que a
linguagem da filosofia, desde
então, desenvolve-se
constantemente no diálogo com
sua própria história - antes disso,
comentando, corrigindo e
criando variações, e com o
surgimento da consciência
histórica, numa duplicidade nova
e cheia de tensão entre a
reconstrução histórica e a
transposição especulativa. A
linguagem da metafísica é e
permanece sendo o diálogo,
mesmo que esse se dê na distância
de séculos e milênios. Por este
motivo, os textos de filosofia não
são propriamente textos ou obras,
mas contribuições a um diálogo
que dura através dos tempos.
17. Vom Wesen und Begriff der 'Physis", Aristóteles, Física, B 1.

21
Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às que jamais se consegue realizar plenamente essa tarefa, por razões
ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêuti- essenciais, e que isto não demonstra a debilidade de nossa experiên-
co, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Ro- cia. A investigação da recepção não pode querer liberar-se das impli-
bert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida. É cações hermenêuticas, contidas em toda interpretação.
sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida Também Manfred Frank foi um promotor essencial da herme-
por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pes- nêutica filosófica, através de seus trabalhos baseados num profun-
quisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o do conhecimento do idealismo alemão e do romantismo. Mas aqui
que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Pare- também nem tudo me parece claro. Em diversas publicações 2G ele
ce-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apre- criticou o diálogo e debate críticos que tive com a interpretação
sentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda psicológica de Schleiermacher. Para isso ele apoiou-se nas idéias
vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito do estruturalismo e do neo-estruturalismo, dedicando um cuidado
vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo fundamental à interpretação gramatical em Schleiermacher, par-
do clássico, em Verdade e método 1, quer ilustrar o quanto a mo- tindo da semiótica moderna. Procura valorizar a interpretação gra-
bilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se matical, frente à psicológica. Segundo me parece, porém, não é o
chama de clássico (e que contém, todavia, um componente nor- caso de se desvalorizar a interpretação psicológica, que é o contri-
mativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que buto realmente novo de Schleiermacher. Igualmente não se pode
a compreensão se transforma e se renova constantemente. O querer reduzir o conceito de adivinhação, como se ele tivesse a ver
exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo apenas com o "estilo". Como se o estilo não fosse a própria concre-
clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que consi- ção do discurso. Além do mals,Schleiermacher manteve o conceito [15]
de adivinhação até o fim, como demonstra o discurso acadêmico
[14] dero uma deformação das reais intenções de Platão". Neste ponto, paradigmático de 182921.
Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua
crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim Não nos importa falar de um sentido puramente lingüístico da
o pitagorismo do número, do som e do sonho". Não me senti interpretação gramatical, como se ela pudesse existir sem a inter-
atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A esté-
20. Das individuelle Allgemeine. Textstrukturierung und -interpretation nach
tica da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me Schleiermacher, Frankfurt, 1977, assim como Einleitung zu Schleiermacher,
parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configura- Hermeneutik und Kritik, 1977 (p. 7-66).
ção receptiva em meras facetas. 21. Ali, o conceito de adivinhação desempenha de modo absoluto a função
descrita por mim. É claro que no processo divinatório está em questão um procedimento
Também não estou convencido de que a "experiência estética", analógico. A questão é, porém, saber a quem deve servir esse procedimento da analogia.
"Toda comunicação é o reconhecimento do sentimento", cita o próprio Frank em sua
que Jauss tenta fazer valer, satisfaça à experiência da arte. Este era nova e excelente edição da Hermenêutica de Schleiermacher, p. 52. A interpretação não é
exatamente o ponto nuclear do meu conceito de "indistinção estéti- passível de ser realizada plenamente enquanto interpretação psicológica; mas enquanto
interpretação gramatical, ao contrário, possibilita uma compreensão perfeita (Lücke 205),
ca", segundo a qual a experiência estética não pode ser isolada, de Não é na interpretação gramatical, mas na psicológica que se assenta, portanto, a
tal forma que a arte se torne um mero objeto de fruição. O mesmo individualização e com isso o problema hermenêutico. É isso que está em questão e foi o
ocorre, segundo me parece, com a "recusa" de Jauss da fusão de ho- que me interessou. Contrariamente, Frank insiste com razão contra Kimmerle, em que a
interpretação psicológica aparece em Schleiermacher desde o princípio, e foi graças a ele
18. No trabalho sobre a idéia do bem, referido acima na nota 15, tentei demonstrar de que esta se impôs no ãmbito da hermenêutica.
modo convincente que esta deformação começa já com Aristóteles: Ele converte a meta-
matemática platônica em meta-física. 23

19. Philosophische Rundschau, 10, 1962, p. 225-237. 22


rizontes. Eu próprio sublinhei em minha análise que a distinção do
horizonte representa um momento integral no processo de investi-
gação hermenêutica. A reflexão hermenêutica ensina, no entanto,
pretação psicológica. O problema hermenêutico mostra-se justa- idéia da fundamentação transcendental última de Husserl e com
mente na interpenetração da interpretação gramatical pela inter- isso também o reconhecimento do ego transcendental e de sua
pretação psicológica individualizante, na qual entram em jogo os autoconstituição temporal como última instância de fundamentação
condicionantes complexos do intérprete. Reconheço que, para das Investigações lógicas.
isso, deveria ter observado de modo mais contundente a dialética e A identidade do eu, assim como a identidade do sentido, que
estética de Schleiermacher, que Frank invoca com razão. Teria se constrói através dos participantes do diálogo, permanece into-
feito mais justiça à riqueza da compreensão individualizante em cada. É evidente que nenhuma compreensão de um pelo outro dia-
Schleiermacher. No entanto, logo após o aparecimento de Verda- logante consegue abranger todo o âmbito do compreendido. Nesse
de e método, consegui recuperar alguma coisa disto22. Meu inte- ponto, a análise hermenêutica deve se desfazer de um falso modelo
resse não era apreciar Schleiermacher em todas as suas dimen- de compreensão e entendimento. Por isso, no entendimento, ja-
sões, mas caracterizá-lo como o propulsor de uma história efeitu- mais se dá o caso de a diferença ser tragada pela identidade. Quan-
al, que se inicia justamente com Steinthal e que ao alcançar o do dizemos que nos entendemos sobre alguma coisa, isso não sig-
cimo teórico-científico com Dilthey passa a dominar de maneira nifica, em absoluto, que um tenha uma opinião idêntica ao outro.
indiscutível. A meu ver, isso restringiu o problema hermenêutico, e "Chega-se a um acordo", como diz muito bem a expressão. É uma
esta história efeitual não é uma ficção'. forma mais elevada de syntheke, se quisermos servir-nos da genia-
Os novos trabalhos de Manfred Frank forneceram, nesse meio lidade da língua grega. A meu ver, querer isolar e fazer objeto de
tempo, ao leitor alemão as bases do neo-estruturalismo24. Isso es- crítica os elementos do discurso, do discurs, é um desvirtuamento
clareceu-me muita coisa. De modo especial ficou claro, na explana- da perspectiva. Assim, na realidade, esses elementos não se dão, e
ção de Frank, até que ponto a refutação da metafísica da présence torna-se compreensível por que, do ponto de vista dos "signos",
[16] em Derrida orienta-se pela crítica que Heidegger dirige a Husserl e precisamos falar de différance ou différence. Nenhum signo, no
sua crítica à ontologia grega, sob o conceito do "ser simplesmente sentido absoluto de significá6, é idêntico a si mesmo. A crítica de
dado" ("Vorhandenheit"). Nesse proceder, porém, não se faz plena- Derrida contra o platonismo, que ele supõe encontrar-se nas Inves-
mente justiça nem a Husserl, nem a Heidegger. Husserl não se de- tigações lógicas de Husserl e no conceito de intencionalidade, no
teve no ideal-da-significação-una, sobre a qual fala a primeira inves- Ideen I, não deixa de ter razão. Isso, porém, já foi esclarecido por
tigação lógica, mas intentou demonstrar a identidade por ele ali su- Husserl há muito tempo. Partindo do conceito de síntese passiva e
posta, através de uma análise do tempo. da teoria das intencionalidades anônimas, parece-me, na verdade,
A fenomenologia da consciência do tempo explicita a haver uma linha transparente que chega à experiência hermenêuti-
fundamentação temporal da validade objetiva. Esta é a intenção ca, a qual, suposto que se refute a violência metodológica do modo
indubitável de Husserl que acaba sendo convincente. Segundo me de pensar transcendental, pode coincidir amplamente com minha
parece, não se consegue suprimir a identidade quando se refuta a máxima: "Quando se consegue compreender, compreende-se de
modo diferente"." Depois da conclusão de Verdade e método I, o
22. Cf. meu artigo "Das Problem der Sprache in Schleiermachers Hermeneutik", tema preferencial de minhas pesquisas foi durante décadas o lugar
in: Kleine Schriften III, p. 129s; cf. Ges. Werke, vol. 4.
23. Há pouco tempo, W. Anz elaborou os aspectos produtivos para uma
que o conceito de literatura ocupa no círculo de questionamento
hermenêutica filosófica na "dialética" de Schleiermacher num importante artigo publicado da hermenêutica. Confira neste volume os artigos "Texto e inter-
em Zeitschrift für Theologie und Kirche, 1985, p. 1-21, intitulado "Schleiermacher pretação" e "Destruição e desconstrução", assim como os traba-
und Kierkegaard".
24. Cf. M. Frank, Das Sagbare und das Unsagbare. Studien zur neuesten
25. Cf. Verdade e método, vol. I, p. 444s.
franzõsischen Hermeneutik und Ideologiekritik. Frankfurt, 1980, assim como Was ist
Neostrukturalismus? Frankfurt, 1983.
25
24
lhos apresentados nos volumes VIII e IX. Como disse inicialmente, tocada no piano; e é com razão, se-
[17] em Verdade e método I, parece-me que ainda não se alcançou, com gundo me parece, que essa
reprodução viva receba o nome de
precisão, a diferenciação necessária entre o jogo da linguagem e o interpretação. Por isso, deve-se
jogo da arte e, na realidade, a mútua pertença de linguagem e arte manter a caracterização comum de
em nenhum lugar é tão palpável como no caso da literatura, que se interpretação, tanto no caso da
define justamente através da arte da linguagem - e do escrever! reprodução como no caso da cultu-
ra da leitura. Reproduzir é também
De há muito a poética aparece ao lado da retórica e com a ex- compreender, mesmo que seja mais
pansão da cultura da leitura - já na época do Helenismo e, de do que isso. Não se trata de uma
modo completo, na época da Reforma - o escrito, as literae, pas- criação completamente livre, mas
sam a ser o conceito comum, que reúne os textos. Isso significa simplesmente daquilo que tão bem
expressa a palavra "apresentação",
que a leitura passa a ocupar o centro da hermenêutica e da por meio da qual a compreensão de
interpretação. Ambas estão a serviço da leitura, que é, por sua vez, uma obra já consoli-
compreensão. Onde está em questão a hermenêutica literária, trata- dada eleva a uma nova realidade. Na leitura dá-se algo diferente, [18]
se em primeiro plano da essência da leitura. Por mais que estejamos pois ali a realidade de sentido do que está fixado por escrito consu -
convencidos do primado da palavra viva, da originariedade da ma-se na própria execução de sentido, e nada mais acontece.
linguagem viva no diálogo, ainda assim a leitura remete para um Assim, a consumação do compreender não significa, como na re-
ãmbito mais vasto. Com isso justifica-se o amplo conceito de produção'', a realização num novo fenómeno sensível.
literatura a que me referi em Verdade e método I, na conclusão da
primeira parte, antecipando o que viria posteriormente.
A leitura em voz alta (declamação) mostra que a leitura é ela
mesma uma realização plena de sentido e com isso essencialmente
Neste ponto parece necessário deter-nos um pouco na diferen-
diferente da apresentação teatral ou de auditório. Isso vale tam-
ciação entre ler e reproduzir. Talvez não possa ir tão longe como
bém para a leitura silenciosa, mesmo que esta se articule vocal-
Emilio Betti, que em sua teoria da interpretação separa completa-
mente, como era evidente na Antigüidade Clássica. Trata-se de
mente um do outro, o compreender e o reproduzir. Devo insistir
uma realização plena de sentido, embora preenchida pela intuição
que é a leitura e não a repródução que representa o verdadeiro
apenas de um modo esquemático. Permanece aberta para diversos
modo de experiência da própria obra de arte, e que a define como
preenchimentos imaginativos. Cheguei a ilustrar isso, apoiando-me
tal. Ali, trata-se de uma "leitura" no sentido "eminente" da palavra,
no trabalho de Roman Ingarden. Isso serve também para aquele
assim como o texto de poesia é um texto em sentido "eminente" da
que lê em voz alta (declamador): O bom declamador não pode es-
palavra. Na verdade, a leitura é a forma efetiva de todo encontro
quecer em nenhum momento que ele não é o verdadeiro falante,
com a arte. Não está presente apenas nos textos, mas também nas
mas está a serviço de um processo de leitura. Embora sua declama-
artes plásticas e na arquitetura".
ção seja re-produção e representação feita para um outro, incluin-
A reprodução é diferente. Nela está em questão uma nova reali- do portanto uma nova realização no mundo sensível, permanece
zação na matéria sensível das sonoridades e sons - e, com isso, inserido na intimidade do processo de leitura.
algo como uma nova criação. É evidente que uma reprodução quer

27. Muito peculiar é a questão de como se dá a relação de ler e reproduzir no caso da música.
26. Cf. meu artigo "Das Lesen von Bildern und Bauten", in: Festschrift für M. lmdahl, ed. Temos que concordar que a música não é experimentada realmente na leitura das notas, e
por G. Goehm, Würzburg, 1986. isto marca sua diferença em relação à literatura. De certo isso vale também para o drama
que originalmente não estava destinado à leitura. Mesmo a epopéia, nos primórdios, estava
referida, num sentido externo, ao recitador. Apesar disso, permanecem diferenças essenci-
26 fazer aparecer a obra autêntica. ais. A música tem que ser criada, e o ouvinte tem que participar, de certo modo. Nessa ques-
Assim ocorre com o drama repre- tão aprendi muito de Georgíades, a cuja obra Nennen und Erklingen, recém-editada a par-
sentado no palco, com a música tir de suas obras póstumas, remeto aqui (Gõttingen, 1985).
27
É nessas distinções que se pode esclarecer a questão que, num 28 para depois aplicá-lo como
outro contexto, tenho sempre de novo colocado, qual seja, de saber padrão de medida às palavras.
Como vimos, a leitura não é uma
que função desempenha no acontecimento hermenêutico a intenção reprodução que permite
do autor. Isto aparece claramente no uso cotidiano do discurso, comparação com o original. É o
onde não está em questão penetrar na rigidez da escrita. Precisamos mesmo que ocorre com a doutrina
compreender o outro; precisamos compreendê-lo, compreender o epistemológica, superada pala
que ele tinha em mente ao falar. Ele, por assim dizer, não se separou investigação fenomenológica,
de si próprio, não se fiou nem se expõs, através de um discurso fixa- segundo a qual temos na
consciência uma imagem da
do por escrito ou de algum outro modo, a um estranho, que pudesse suposta realidade, a que se chama
desvirtuar, querendo ou não, através de mal-entendidos, aquilo que de "representação". Toda leitura
ele deveria compreender. E mais ainda: Ele não se separou do outro, ultrapassa os vestígios enrijecidos da
para quem ele está falando e que o está escutando. palavra em direção ao sentido do
que é propriamente dito; não se
Até que ponto o outro compreende o que eu quero dizer, de- trata, portanto, de um retroceder ao
monstra-se pelo modo como ele prossegue a conversa. Com isso, o processo originário de produção,
compreendido passa da indeterminação de sua direção de sentido que devesse ser compreendido como
para uma nova determinação, que permite ser compreendida ou uma realização da alma ou como um
mal-entendida. É isto o que acontece verdadeiramente no diálogo: fenõmeno expressivo. E além disso
o que conhece do que se tem em
O que se tem em mente articula-se, à medida que se torna algo co- mente são apenas os vestígios da
[19] mum. A enunciação individual, portanto, está sempre inserida num palavra. Isso inclui que quando
acontecimento comunicativo, não podendo ser compreendida alguém compreende o que um outro
como algo singular. Por isso, falar de mens auctoris e da palavra diz, este algo não é apenas o que o
"autor" só possui uma função hermenêutica onde não está em outro tinha em mente, mas algo
questão uma conversa viva, mas apenas exposições fixas. Aí surge a partilhado, comum. Quem traz à
fala um texto pela leitura, mesmo
questão: Será que só compreendemos retrocedendo ao autor? E que seja sem qualquer articulação
será que, quando retrocedemos, compreendemos suficientemente sonora, esta construindo seu
aquilo que tinha em mente o autor? E o que acontece quando isso sentido, na direção semântica que
não é possível porque nada sabemos sobre ele? tem o texto, dentro do universo de
sentido a que ele próprio está
Nesse ponto, parece-me que a hermenêutica tradicional não aberto. É neste ponto que, em
superou ainda, totalmente, as conseqüências do psicologismo. Na última instância, se justifica o
leitura e compreensão de um escrito está em questão um processo, ponto de vista romântico que segui,
pelo qual aquilo que está fixado no texto deve elevar-se a uma nova segundo o qual todo compreender
já é interpretar. Schleiermacher28
expressão e deve concretizar-se de novo. Ora, a essência do falar afirmou-o de modo expresso: "A
concreto consiste em que aquilo que se tem em mente sempre ul- interpretação distingue-se da
trapassa o que é dito. Por isso, creio que se trata de um mal-enten- compreensão apenas como o falar
dido ontológico imperceptível hipostasiar o que quem fala tem em em voz alta distingue-se do falar
mente como o padrão de medida da compreensão. Como se fosse interior"28.
possível primeiro criá-lo num tipo de comportamento reprodutivo A mesma coisa vale para a leitura. Denominamos ler o ler que
compreende. O próprio ler já é assim interpretação do que se tem
em mente. Assim, a leitura é a estrutura fundamental comum a
toda consumação de sentido.
Mesmo que a leitura não seja reprodução, todo texto que le-
mos só se realiza na compreensão. Também o texto que está sendo
lido experimenta um crescimento ontológico, e é só através deste
que a obra recebe sua atualidade plena. Creio que isso se dá, mes- [20]
mo quando não se trata de reprodução no palco ou no púlpito.
No artigo Texto e interpretação, analisei as diversas formas de
texto com que a hermenêutica tem de se haver. No entanto, o caso
específico da historiografia necessita de um esclarecimento espe-

28. Sãmtl. Werke, vol. 3, p. 384.


29. Cf. Verdade e método, vol. 1, p. 289.

29
ciai. Mesmo partindo da pressuposição de que também a investiga- A filologia é a alegria pelo sentido que se enuncia. É indiferente se o
ção histórica é, em último caso, interpretação, e, portanto, a reali- mesmo se expressa pela linguagem ou de outra forma. Assim, na-
zação de um sentido, precisamos colocar a questão se a relação do turalmente tanto a arte é portadora desse sentido como a ciência e a
historiador para com o texto investigado, ou para com a própria filosofia. Contudo, mesmo esse sentido mais amplo de filologia,
história, não é diferente da relação do filólogo para com o seu tex- como o que compreende o sentido, é diferente da história, mesmo [21]
to. A resistência que o historiador sente diante de minhas explana- que também esta busque compreender o sentido. Enquanto ciên -
ções em Verdade e método I (p. 482s) permite-me concluir que não cias, ambas fazem uso dos métodos de sua ciência. Porém, à medida
escapei do perigo de equiparar excessivamente, neste ponto, o que se trata de um texto, mesmo que de estatuto diferente, estes não
modo de ser característico da compreensão histórica com o do filó- devem ser compreendidos apenas pelas vias da investigação metodo-
logo. Como eu posso ver claramente agora, não se trata apenas de lógica. lodo texto já sempre encontrou seu leitor, antes que a ciência
uma questão de critério, como pensava em Verdade e método I. A viesse em seu auxilio. A diferença entre alegria pelo sentido que se
história não é somente uma espécie de filologia em grande escala expressa e investigação do sentido que está oculto já articula o
(Verdade e método I, p. 503). Em ambos os casos, está em jogo um âmbito de sentido em que se movimentam as duas formas de com-
outro sentido de texto e, com isso também, de sua compreensão. preensão. De um lado está a motivação do leitor pelo sentido - e o
conceito de leitor pode ser estendido, sem dificuldades, a todas as
O conjunto da tradição, capaz de representar o objeto históri- formas de arte. Do outro lado, está o saber inconsciente do leitor
co, não forma um texto no mesmo sentido que é a configuração de sobre sua própria pátria e proveniência, a profundidade histórica do
texto singular para o filólogo. Será que o conjunto da tradição se próprio presente. A interpretação de textos dados, cujo sentido se
oferece ao historiador da mesma maneira que o texto que o filólo- expressa, permanece, assim, sempre referida a uma compreensão
go tem diante de si? O texto, e sobretudo o texto literário, é para o precedente e consuma-se no seu enriquecimento.
filólogo como uma medida fixa, que precede qualquer nova inter-
pretação. O historiador, pelo contrário, deve antes reconstruir seu
texto básico, a própria história. Nesse ponto, certamente, não se De modo semelhante, o texto-sentido da história já está sem-
podem estabelecer linhas divisórias absolutas. Também o historia- pre predeterminado, em parte pela própria história de vida, em
dor, naturalmente, deve compreender primeiro os textos literários parte pelo que os eruditos sabem, através do saber histórico. Já es-
e outros com que ele se depara, como o faz o filólogo. Também o fi- tamos conformados nessa configuração histórica, que abarca o
lólogo, muitas vezes, deve primeiro reconstruir e fazer uma análise conteúdo de nossa própria origem, já bem antes que a investigação
crítica de seus textos, a fim de que se tornem compreensíveis, e na histórica inicie seu procedimento metodológico. Visto que a histo-
sua compreensão ele precisa admitir a inclusão de informações his- ricidade corresponde a cada um de nós, jamais se desfaz totalmente
tóricas do mesmo modo que admite todos os outros conhecimen- o vínculo vital que liga a tradição e a origem com a investigação
tos possíveis de sua ciência. Apesar disso, o ponto de vista da com- histórica crítica. Mesmo quem procura apagar sua própria indivi-
preensão, a perspectiva do sentido, não é igual nos dois casos. O dualidade, tal como um pretenso espectador da história do mundo,
sentido de um texto refere-se àquilo que ele quer dizer. O sentido como Ranke, permanece sendo sempre um filho de seu tempo e
de um acontecimento, pelo contrário, é aquilo que se pode extrair um cidadão de sua pátria. Nem o filólogo e nem o historiador po-
da leitura, a partir de textos e outros testemunhos, e quiçá até na dem conhecer esses condicionamentos de sua própria compreen-
reavaliação de sua própria intenção enunciativa. são, que os precedem e assim constituem condições que antece-
dem seu autocontrole metodológico. Isso vale para ambos, embora
A título de elucidação, gostaria de apresentar aqui um sentido o caso do filólogo seja diferente do historiador. Para o filólogo, a si-
de filologia, que poderia ser uma tradução literal da palavra grega: multaneidade de sentido expressa no texto é produzida por sua in-

30 31
terpretação (quando ele consegue realizá-la). Por outro lado, o his- tarismo social, se é que devem sobreviver à crítica de Rousseau, que
toriador procede a uma construção e desconstrução de contextos segundo o próprio Kant, foi decisiva para ele.
de sentido, o que está sujeito a uma constante retificação, destrui- Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do
ção de lendas, descoberta de falsificações, a uma constante irrup- universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos
ção de construções de sentido - na procura de um sentido subja- sobre Platão e Aristóteles. Os primeiros textos de minha formação
cente, que talvez jamais possa ser encontrado até o ponto da simul- intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no
taneidade da evidência de sentido. volume V dessedição alemã, sob o título Praktisches Wissen [Saber
Uma corrente um pouco diferente, que contribuiu para o pro- prático] (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência
gresso de meus estudos, refere-se aos problemas das ciências so- da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco,
ciais e da filosofia prática. O interesse crítico que Jürgen Habermas estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta
demonstrou, nos anos sessenta, pelos meus trabalhos, foi critica- problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição
mente significativo. Sua crítica e minha contra-argumentação fize- aristotélica da filosofia prática foi retomada e abordada sob
ram-me ver a dimensão em que havia ingressado quando transpus diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica
o âmbito do texto e da interpretação em direção ao caráter de lin- atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios
[22] guagem de toda compreensão. Isso permitiu-me aprofundar ainda políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa filo-
mais a participação que a retórica tem na história da hermenêuti- sofia prática permanece sendo, para o conceito científico do con-
ca, que é ainda maior na forma de existência da sociedade. Alguns junto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode
estudos deste volume também testemunham essa questão. ser ignorada. Há que se aprender com Aristóteles que o conceito
Finalmente, a mesma problemática obrigou-me a elaborar de grego de ciência, episteme, significa conhecimento racional. Isso
modo mais agudo o teor teórico-científico de uma hermenêutica filo- significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange
sófica, na qual a compreensão, a interpretação e o procedimento das propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, epis- [23]
ciências hermenêuticas devem encontrar sua legitimação. Isto le- teme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de
vou-me a tratar de um problema, com que eu me havia ocupado in- tekne. Em todo caso, o saber prático e político têm fundamental-
tensamente desde meus primeiros trabalhos: O que é a filosofia prá- mente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didá-
tica? Como podem a teoria e a reflexão dirigir-se para o âmbito da tico e de sua aplicação. O saber prático (Kõnnen), na verdade, é
práxis, visto que esta não tolera nenhum distanciamento, mas, pelo aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fun-
contrário, exige o engajamento. Essa questão tocou-me desde cedo damentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento
através do pathos existencial de Kierkegaard. Ademais, orientei-me socrático pelo bem, mantido por Platão e Aristóteles. Quem
pelo modelo da filosofia prática de Aristóteles. Procurei evitar o ma acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa
delo distorcido de teoria e sua aplicação, que, partindo do conceito substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as
moderno de ciência, determinou de modo unilateral também o con- forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo
ceito de práxis. Foi nesse ponto que Kant introduziu a autocrítica da contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com
modernidade. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, de sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e
Kant, acreditei e acredito encontrar uma verdade, quiçá parcial, re- responsabilizar-se pela utilização do mesmo.
duzida ao imperativo, que é no entanto inabalável dentro de seus li- Ora, a filosofia prática não é certamente, ela própria, esta ra-
mites: Os impulsos do Iluminismo não podem prender-se a um utili- cionalidade. Ela é filosofia, isto é, uma reflexão, e uma reflexão so-
bre aquilo que deve ser a configuração da vida humana. No mesmo

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sentido, a hermenêutica filosófica não é ela própria a arte do com-
preender, mas a sua teoria. Contudo, tanto uma quanto a outra for-
ma de conscientização surge da práxis, e sem esta não é nada mais
do que um mero processo vazio. Este é o sentido específico de saber
e ciência, que se há de legitimar novamente a partir da problemática
hermenêutica. Este foi o objetivo a que tenho dedicado meu traba-
lho, mesmo depois da conclusão de Verdade e método I.

Pequena errata: Atualmente, a discussão entre


hermenêutica e desconstrutivismo continua viva. Cf. a excelente
crítica de J. Ha-bermas a Derrida, in: Der philosophische Diskurs der
moderne (O discurso filosófico da modernidade), Frankfurt 1985, II — PRELIMINARES
p. 191s, assim como o debate Text und Interpretation, em língua
inglesa, por Dallmayr (preparado em Iowa), as observações que eu
fiz a F. Dalimayr, Polis and Praxis (Cambridge 1984), que
completam Destruição e desconstrução (cf. abaixo, p. 418).

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2. O problema da história na filosofia alemã mais recente [27]
(1943)

Se quisermos caracterizar o modo de ser próprio da filosofia


alemã dos últimos decênios, encontraremos no seu posicionamen-
to histórico o seu traço mais importante. Por algumas vezes, obser-
vadores anglo-saxões caracterizaram esse posicionamento como
sufocante e perguntaram o porquê de a filosofia alemã ocupar-se
preponderantemente com a história da filosofia. De fato, esse inte-
resse da filosofia pela sua própria história não é de modo algum
evidente, contendo um conjunto próprio de questões. Se na filoso-
fia, como em todo conhecimento, está em jogo a busca da verdade,
por que precisamos perceber os caminhos e desvios que nos levam
a ela? Além do mais, a crítica que Friedrich Nietzsche fez à história,
na famosa segunda Consideração intempestiva, ainda está resso-
ando em nossos ouvidos, de homens de hoje. O sentido histórico
será realmente aquela ampliação majestosa de nosso mundo que o
século XIX percebeu nele? Não será ele, antes, um sinal de que o
homem moderno já não tem mais um mundo próprio, desde que
aprendeu a olhar para o mundo com cem olhos simultâneos? O
sentido de verdade não se dissolve quando as perspectivas vacilan-
tes, onde se manifesta a verdade, se tornam conscientes?
De fato, importa porém compreender como o caráter histórico
da existência humana e de seu conhecimento acabou tornando-se
um problema para nós. Na Alemanha usamos a expressão "Proble-
ma da historicidade". O que assim se questiona não é a antiga ques-
tão pela essência e sentido da história. De há muito que a transfor-
mação ininterrupta das coisas humanas e a ascensão e queda de po-
vos e culturas são objetos da consideração filosófica. Os gregos, os
primeiros a configurar a concepção ocidental de mundo, não consi-
deraram essa ascensão e queda como a essência da existência (do ser

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homem), mas como o que provém de alguma outra coisa, que sem- afirmar sob o signo de Kant e de seu questionamento epistemológico
pre permanece em toda mudança, por ser a ordem justa. O modelo, pela fundamentação da ciência. Na Crítica da razão pura, Kant
segundo o qual se pensava o ser humano, era a natureza, a ordem respondeu à questão pela possibilidade de uma ciência pura da
cósmica que se mantém e se renova num eterno retorno. Também a natureza. Isso agora foi ultrapassado na medida em que se
ordem humana deveria ser assim permanente, pois que a sua mu- pergunta pela possibilidade da ciência da história. Ao lado da
[28] dança significaria sua decadência. História é história da decadência'. Crítica da razão pura, procurou-se colocar uma Crítica da razão
Somente com o cristianismo se reconheceu a singularidade irrepe- histórica (para usar uma expressão de Wilhelm Dilthey). O problema
tível do ser humano como seu traço essencial próprio. O conjunto da história apresentou-se como o problema da ciência da história.
das coisas humanas, "este cosmos", é um nada frente à essência Como esta adquire seu direito de ser uma teoria do conhecimento?
única do Deus transcendente, e o ato da redenção oferece à histó- Perguntar desta forma, porém, significou medir a [29] ciência da
ria humana um novo sentido. A história humana é a constante deci- história nos moldes das ciências da natureza. O livro clássico da
são a favor ou contra Deus. O homem situa-se na história da salva- lógica neokantiana da história traz um título bem característico:
ção, determinada pelo caráter único do ato redentor. Cada um de "Os limites da formação conceitual das ciências da natureza". Nele,
seus momentos ganha um peso absoluto. O conjunto dos destinos Heinrich Rickert procura demonstrar o que caracteriza o objeto da
humanos, porém, permanece resguardado na providência divina e história, e porque na história em lugar de se procurar leis universais,
na espera da consumação de todas as coisas. Desta forma, a exis- como na ciência da natureza, reconhece-se o singular, o individual. O
tência humana é finita e, não obstante, referida ao infinito. A histó- que é que transforma um mero fato numa realidade histórica? A
ria tem um sentido próprio e positivo. Esta pressuposição susten- resposta é: Seu significado, isto é, sua relação com o sistema dos
tou durante um milênio o pensamento da metafísica da história, no valores culturais humanos. Neste questionamento, apesar de todas as
Ocidente cristão. Em versão secularizada, também a fé no progres- restrições, o modelo de conhecimento das ciências da natureza
so, própria da época do Iluminismo, acaba sendo mais um elemen- continua sendo o determinante. O problema da história resume-se
to de contribuição nesse contexto. Até mesmo o último grandioso inteiramente no problema epistemológico sobre a possibilidade de uma
ensaio de filosofia da história, a dissertação de Hegel sobre a razão ciência da história.
na história, permanece uma metafísica estruturada nesses mesmos
moldes. Foi somente com a ruína dessa base metafísica que o pro- Na verdade, porém, a questão da história afeta a humanidade
blema da história tornou-se determinante para a consciência da
não como um problema de conhecimento científico, mas como um
existência humana. Tornou-se o problema da historicidade.
problema da própria consciência de vida. Também não se trata
simplesmente do fato de nós, enquanto humanos, termos uma his-
No ano de 1841, o velho Schelling foi convidado a ocupar a cá-
tória, isto é, de vivermos nosso destino perpassando as fases de as-
tedra de filosofia em Berlim e enfrentar os efeitos política e cienti-
censão, plenitude e decadência. O decisivo é, antes, que justamente
ficamente perigosos de Hegel. Sem que o soubesse ou quisesse, a
nesse movimento do destino buscamos o sentido de nosso ser. O
crítica de Schelling a Hegel acabou decretando o fim da posição de
liderança da filosofia na cultura ocidental. Não foi a sua própria fi- poder do tempo, que nos dilacera, desperta em nós a consciência
de uma força própria sobre o tempo, pela qual configuramos nosso
losofia que se impôs, mas a predominância metodológica das ciên-
cias da natureza. Também o problema da história formulou-se se- destino. Mesmo na finitude, perguntamos por um sentido. Este é o
problema da historicidade, que afeta a filosofia. Na Alemanha, o
gundo esse modelo metodológico.
país clássico do romantismo, as dimensões desse problema apare-
1. Cf. minha resenha a respeito da obra Platons Stellung zur Geschichte, de G. Rohr, em
Ges. Werke, vol. 5, p. 327-331.
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Ao sair das profundezas do hegelianismo epigonal e do
materialismo acadêmico da metade do século, a filosofia passou a se

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