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O Visconde Partido Ao Meio: Italo Calvino

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ITALO CALVINO

O VISCONDE
PARTIDO
AO MEIO

Tradução
Nilson Moulin
Copyright ©2002 by Espólio de Italo Calvino
Proibida a venda em Portugal

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Il visconte dimezzato

Capa
Jeff Fisher

Preparação
Márcia Copola

Revisão
Juliane Kaori
Gabriela Morandini

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Calvino, Italo, 1923-1985.


O visconde partido ao meio / Italo Calvino ; tradução
Nilson Moulin. — São Paulo : Companhia das Letras, 2011.

Título original: Il visconte dimezzato.


isbn 978-85-359-1813-7

1. Romance italiano i . Título.

11-00282 cdd -853

Índice para catálogo sistemático:


1. Romances : Literatura italiana 853

2011

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz ltda .
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
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H avia uma guerra contra os turcos. O visconde


Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava pelas planícies da
Boêmia rumo ao acampamento dos cristãos. Acompanhava-o
um escudeiro chamado Curzio.
As cegonhas voavam baixo, em bandos brancos, atraves-
sando o ar opaco e parado.
— Por que tantas cegonhas? — perguntou Medardo a
Curzio —, para onde estão voando?
Meu tio acabava de chegar, se alistara havia pouco, para
agradar a alguns duques, nossos vizinhos, empenhados na­
que­la guerra. Munira-se de um cavalo e de um escudeiro no
último castelo em mãos cristãs, e ia apresentar-se ao quartel
imperial.
— Estão voando para os campos de batalha — disse o
escudeiro, sombrio. — Vão nos acompanhar por todo o ca­
minho.
O visconde Medardo ficara sabendo que naquelas terras
o voo das cegonhas é sinal de boa sorte; e queria mostrar-se
alegre por vê-las. Mas, a contragosto, sentia-se inquieto.
— O que pode atrair as pernaltas aos campos de batalha,
Curzio? — perguntou.
— Agora, também elas comem carne humana — respon-
deu o escudeiro —, desde que a carestia tornou os campos
áridos e a estiagem secou os rios. Onde há cadáveres, as ce-
gonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e os
abutres.
Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade
em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto con-
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fuso, ainda não separados em bem e mal; a idade em que
cada experiência nova, também macabra e desumana, é toda
trepidante e efervescente de amor pela vida.
— E os corvos? E os abutres? — perguntou. — E as aves
de rapina? Onde foram parar? — Estava pálido, mas seus
olhos cintilavam.
O escudeiro era um soldado de pele escura, bigodudo,
que nunca erguia os olhos.
— À força de comer as vítimas da peste, a peste os atacou
também. — E apontou com a lança certas moitas escuras
que a um olhar mais atento se revelavam não de plantas, mas
de penas e pés ressecados de aves de rapina.
— Assim, nem dá para saber quem morreu antes, se a ave
ou o homem, e quem se lançou sobre o outro para esganá-
-lo — disse Curzio.
Para fugir da peste que exterminava as populações, fa-
mílias inteiras tinham se encaminhado para os campos, e a
agonia havia golpeado a todos ali. Em montes de carcaças,
espalhadas pela planície árida, viam-se corpos de homens e
mulheres, nus, desfigurados pelas marcas da peste e, coisa a
princípio inexplicável, penugentos: como se daqueles braços
macilentos e costelas tivessem crescido penas pretas e asas.
Eram as carcaças de abutres misturadas com as sobras deles.
O terreno já ia mostrando sinais de batalhas. A marcha
se tornara mais lenta porque os dois cavalos topavam nos
restos e lombadas.
— O que está acontecendo com nossos cavalos? — per-
guntou Medardo ao escudeiro.
— Senhor — respondeu ele —, nada desagrada tanto aos
cavalos quanto o fedor das próprias tripas.
A faixa de planície que atravessavam achava-se de fato
cheia de carcaças equinas, algumas para cima, com os cascos
voltados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado
na terra.
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— Por que tantos cavalos caídos neste ponto, Curzio? —
perguntou Medardo.
— Quando o cavalo sente que está sendo atingido na bar­
riga — explicou Curzio —, trata de segurar as vísceras. Al-
guns apoiam a pança no chão, outros se viram de costas para
que elas não caiam. Mas a morte não tarda a ceifá-los do
mesmo jeito.
— Quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem
nesta guerra?
— As cimitarras turcas parecem feitas de propósito para
rasgar-lhes o ventre com um só golpe. Mais adiante verá os
corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e depois os
cavaleiros. Pronto, lá está o campo.
Nos limites do horizonte elevavam-se os pináculos das
tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a
fumaça.
Continuando a galopar, viram que os caídos da última
batalha tinham sido quase todos removidos e enterrados.
Só se viam alguns membros dispersos, especialmente dedos,
apoiados nos restolhos.
— De vez em quando há um dedo indicando o caminho
— disse meu tio Medardo. — Que significa?
— Deus os perdoe: os vivos cortam os dedos dos mortos
para arrancar-lhes os anéis.
— Quem vem lá? — disse uma sentinela com capote co­
berto de mofo e musgo como a casca de uma árvore exposta
à tramontana.
— Viva a sagrada coroa imperial! — gritou Curzio.
— E que morra o sultão! — replicou a sentinela. — Mas,
por favor, quando chegarem ao comando, digam-lhes para
mudar logo o turno, pois começo a deitar raízes!
Agora os cavalos corriam para escapar da nuvem de mos-
cas que circundava o campo, zumbindo pelas montanhas de
excrementos.

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— De muitos valentes — observou Curzio — o esterco
de ontem ainda está no chão, e eles já chegaram ao céu. — E
benzeu-se.
Na entrada do acampamento, costearam uma fila de bal-
daquins, sob os quais mulheres de cabelos encaracolados e
corpulentas, com longos vestidos de brocado e os seios nus,
acolheram-nos com gritos e risadas.
— São os pavilhões das cortesãs — disse Curzio. — Ne-
nhum exército possui outras tão lindas.
Meu tio já cavalgava com o rosto virado para trás, obser-
vando-as.
— Cuidado, senhor — acrescentou o escudeiro —, an-
dam tão sujas e empestadas que nem os turcos as aceitariam
como presas de um saque. Além de carregadas de chatos,
percevejos e carrapatos, agora até os escorpiões e os lagartos
fazem ninhos sobre elas.
Passaram diante das baterias do campo. À noite, os arti-
lheiros cozinhavam o rancho de água e nabos no bronze das
espingardas e dos canhões, abrasado dos intensos disparos
da jornada.
Chegavam carroças cheias de terra e os artilheiros a pe-
neiravam.
— A pólvora está ficando escassa — explicou Curzio —,
mas a terra onde as batalhas aconteceram está tão impreg-
nada que, insistindo-se, dá para recuperar algumas cargas.
Depois vinham as instalações da cavalaria, onde, entre as
moscas, os veterinários trabalhavam sem parar remendando
a pele dos quadrúpedes com costuras, faixas e emplastos de
alcatrão fervente, todos relinchando e escoiceando, inclusive
os doutores.
As tendas da infantaria seguiam-se por um grande tre-
cho. O sol se punha e diante de cada tenda os soldados esta-
vam sentados com os pés imersos em tinas de água morna.
Sendo comuns os alarmes repentinos de dia e de noite, mes-

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mo na hora do pedilúvio continuavam a segurar o capacete e
a lança. Em tendas mais altas e montadas em forma de quios-
que, os oficiais punham talco nas axilas e se refrescavam com
leques de rendas.
— Não fazem isso por frescura — disse Curzio —, ao
contrário: querem mostrar que se acham completamente à
vontade em meio à dureza da vida militar.
O visconde de Terralba foi logo conduzido à presença do
imperador. Em seu pavilhão cheio de tapeçarias e troféus, o
soberano estudava nos mapas os planos de futuras batalhas.
As mesas estavam cobertas de mapas abertos, e o imperador
espetava neles alfinetes, retirando-os de uma almofada pró-
pria que um dos marechais lhe estendia. Os mapas já estavam
tão carregados de alfinetes que não se entendia mais nada, e
para ler alguma coisa precisavam tirar os alfinetes e voltar a
recolocá-los. Nesse tira e põe, para ficar com as mãos livres,
tanto o imperador quanto os marechais mantinham os alfi-
netes entre os lábios e só podiam falar por meio de ganidos.
Ao ver o jovem que se inclinava diante dele, o soberano
emitiu um ganido interrogativo e tirou depressa os alfinetes
da boca.
— Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade —
apresentaram-no —, o visconde de Terralba, de uma das
mais nobres famílias da região de Gênova.
— Que seja logo nomeado tenente.
Meu tio bateu as esporas, ficando em sentido, enquanto
o imperador fazia um amplo gesto real e todos os mapas se
enrolavam sobre si mesmos e caíam.

Naquela noite, embora cansado, Medardo tardou a dor-


mir. Andava para a frente e para trás perto da tenda, e ouvia
os apelos das sentinelas, os cavalos relinchando e a fala entre-
cortada de soldados durante o sono. Observava no céu as es­

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trelas da Boêmia, pensava na nova patente, na batalha do dia
seguinte e na pátria distante, na música dos caniços dentro
d’água. No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvi-
das, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e
indiscutíveis, e assim era ele próprio. Se tivesse podido pre-
ver a terrível sorte que o aguardava, talvez também a tivesse
considerado natural e acabada, mesmo em toda a sua dor.
Estendia o olhar até o limite do horizonte noturno, onde
sabia que se localizava o campo dos inimigos, e com os bra-
ços cruzados apertava as costas com as mãos, contente por
ter certeza ao mesmo tempo de realidades longínquas e dife-
rentes, e da própria presença no meio delas. Sentia o sangue
daquela guerra cruel, disseminado por mil córregos sobre a
terra, chegar até ele; e se deixava tocar, sem experimentar rai­
va nem piedade.

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