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Epidemiologia e etiologia
A peritonite bacteriana espontânea (PBE) vem sendo identificada com frequência cada vez maior
em pacientes com hepatopatia crônica avançada e ascite concomitante ou insuficiência hepática
fulminante acompanhada de ascite.3,4 A hepatopatia crônica subjacente geralmente é a cirrose
alcoólica em pacientes de idade mais avançada, enquanto a cirrose pós-necrótica predomina
entre crianças e adultos jovens. A PBE é uma condição comum e séria, que ocorre em 10 a 30%
dos pacientes com cirrose e ascite e está associada a uma mortalidade da ordem de 30 a 50%.2,5-
7 O risco de PBE é maior em indivíduos cirróticos que apresentam baixos níveis de proteína na
ascite (= 1 g/dL).8,9 A E. coli é a causa mais comum de PBE, sendo isolada em cerca da metade
dos pacientes. As espécies de pneumococos e estreptococos são cada uma responsável por 15 a
20% dos casos; as espécies de Klebsiella são responsáveis por cerca de 10% dos casos; e os
organismos anaeróbicos ou microaerófilos causam aproximadamente 5% dos casos.
Staphylococcus aureus é uma causa infrequente de PBE, mas constitui uma das principais causas
de peritonite em pacientes cirróticos com shunts peritoneovenosos de LeVeen. Uma variedade de
outros organismos, entre os quais Listeria monocytogenes, Campylobacter coli e espécies de
Aeromonas, têm sido responsáveis por casos isolados de PBE.10 Na maioria dos casos em que o
organismo causador é aeróbico, um único organismo está envolvido, e a bacteremia
concomitante é um achado frequente.
Embora a incidência de peritonite primária seja maior entre as crianças, também pode
desenvolver-se em adultos, sendo que quase todos os pacientes adultos afetados são mulheres.11
Apesar de muitos pacientes terem tido nefrose, a maioria não apresenta ascite preexistente. A
fonte de infecção geralmente é oculta, mas pode envolver a flora genital feminina. Os
organismos infecciosos quase sempre são pneumococos ou estreptococos do grupo beta-
hemolítico A. Os bacilos gram-negativos raramente estão implicados. Por motivos ainda
desconhecidos, a incidência da peritonite primária sofreu uma queda acentuada nas últimas
décadas.
Diagnóstico
Características clínicas. A manifestação clínica da PBE frequentemente é mínima.3,6,7 Embora a
ascite esteja sempre presente, o volume de líquido ocasionalmente pode ser pequeno o bastante
para requerer confirmação por ultrassonografia. A febre é o sintoma mais comum, mas está
ausente em mais de 30% dos casos. A dor abdominal e a encefalopatia hepática estão presentes
na maioria dos pacientes. Entretanto, apenas metade dos pacientes com PBE apresentam
sensibilidade abdominal, enquanto os sinais e sintomas de infecção podem estar ausentes em até
1/3 dos casos. Desta forma, a suspeita de PBE deve ser levantada diante de qualquer paciente
cirrótico que apresente hipotensão ou deterioração clínica inexplicável.
Exames laboratoriais.
Como as contagens bacterianas costumam ser muito baixas, a coloração do líquido ascítico pelo
método de Gram na PBE tipicamente resulta negativa. Entretanto, uma coloração de Gram é
sempre útil, pois a visualização de um único tipo bacteriano seria consistente com a PBE,
enquanto a presença de múltiplas formas bacterianas seria sugestiva de peritonite secundária.
Dada a baixa concentração de bactérias, o rendimento das culturas é melhor com a inoculação de
10 a 20 mL de líquido ascítico em uma garrafa de hemocultura ou BACTEC, junto à cabeceira
do leito.14
Três variantes de PBE foram identificadas com base nas contagens de PMN no líquido ascítico e
culturas. Na PBE típica, a contagem de PMN é igual ou superior a 250 células/mcL, e as culturas
são positivas. Quando a contagem de PMN é igual ou superior a 500 células/mcL, mas as
culturas são negativas, a síndrome é denominada ascite neutrofílica cultura-negativa (ANCN).
Quando a contagem de PMN é abaixo de 250 células/mcL e as culturas são positivas, a síndrome
é denominada bacteriascite (BA). As características clínicas e o prognóstico da PBE e da ANCN
são indistinguíveis, e ambas variantes devem ser tratadas do mesmo modo. Em contraste, a BA
pode ser autolimitada. Se os pacientes forem assintomáticos, é possível monitorá-los com
observação intensiva e repetição da paracentese após 48 horas. A terapia antibiótica pode ser
iniciada, caso haja desenvolvimento de sintomas clínicos ou se a contagem de PMN no líquido
ascítico aumentar.
Em um paciente com cirrose e ascite, algumas condições podem ser confundidas com peritonite,
tais como a úlcera péptica aguda, colecistite, obstrução da artéria mesentérica e outros processos
intra-abdominais. Nestas circunstâncias, a paracentese é útil para se estabelecer um diagnóstico.
A peritonite bacteriana aguda pode ser distinguida da peritonite tuberculosa pela observação de
vários aspectos. A peritonite tuberculosa é marcada por um curso mais indolente, ausência de
leucocitose periférica, evidência radiológica de tuberculose pulmonar e uma resposta
mononuclear no líquido peritoneal. No paciente com peritonite tuberculosa sem cirrose nem
ascite, o abdome pode exibir uma consistência pastosa característica.
A peritonite pode ser superficialmente sugerida pela dor abdominal da porfiria aguda, pela cólica
plúmbica, pela acidose diabética e pela crise tabética, mas os outros aspectos destas doenças
servem para distingui-las da peritonite. Os sinais e sintomas da febre mediterrânea familiar –
temperatura alta, dor abdominal, defesa muscular abdominal e leucocitose periférica – podem
sugerir uma peritonite bacteriana. A periodicidade da febre familiar do mediterrâneo e sua
ocorrência de forma predominante em descendentes de sefardi, armênios e árabes são úteis para
diferenciá-la da peritonite bacteriana.
Pode ser difícil diagnosticar a PBE em um paciente com lúpus eritematoso sistêmico que
apresente dor abdominal e febre. Estes sintomas podem ter origem em uma variedade de
problemas cirúrgicos independentes (p. ex., úlcera perfurada, obstrução intestinal e oclusão
mesentérica) que precisam ser distinguidos dos problemas abdominais diretamente relacionado
ao lúpus, como a vasculite, pancreatite secundária à vasculite ou terapia com corticosteroide, e
PBE. O exame do líquido peritoneal obtido por paracentese, culdocentese ou durante a
laparoscopia pode ser a única forma de determinar a ocorrência da peritonite bacteriana.
Tratamento
Até a disponibilização dos resultados da cultura, o paciente deve receber uma cobertura ampla
dirigida contra os organismos entéricos. Os fármacos nefrotóxicos, incluindo os
aminoglicosídeos, devem ser evitados sempre que possível.17 O cefotaxime (2 g, via
endovenosa, a cada 8 horas) emergiu como agente favorito para uso no tratamento empírico da
PBE. Entre os agentes alternativos úteis estão o ceftriaxone, ceftazidime, cefonicida,
ceftizoxime, ampicilina-sulbactam, meropenem e imipenem-cilastatina, além das
fluoroquinolonas (isto é, ciprofloxacina, levofloxacina, gatifloxacina e moxifloxacina).6,7
Tradicionalmente, os antibióticos endovenosos são administrados durante 10 a 14 dias.
Entretanto, a terapia com duração de 5 dias parece ser igualmente efetiva, desde que o paciente
apresente uma evolução clínica satisfatória e seu líquido ascítico esteja estéril, com uma
contagem de PMN < 250 células/mcL antes da descontinuação dos antibióticos.6,7,18,19
Diagnóstico
Os aspectos clínicos da peritonite secundária incluem mais comumente os sinais peritoneais,
como defesa muscular involuntária, sensibilidade à percussão e dor abdominal. Pode haver
distensão abdominal. O abdome frequentemente não é silenciosoE é comum haver febre e
leucocitose. A presença de ar livre pode ou não ser visualizada nas radiografias abdominais. Um
ultrassom ou tomografia computadorizada (TC) mostrando a presença de gases ou líquido livre
associados a um quadro clínico compatível confirmam o diagnóstico. Quando o diagnóstico é
clinicamente evidente, os exames radiológicos são desnecessários.
Tratamento
A peritonite secundária à perfuração intestinal, apêndice gangrenoso rompido ou traumatismo
penetrante requer intervenção cirúrgica imediata, além de terapia antimicrobiana. A terapia
cirúrgica para controle do foco deve ser direcionada para a correção da doença subjacente,
desbridamento de tecidos circundantes e prevenção de infestação microbiana recorrente. Para
tanto, geralmente é necessário realizar drenagem, ressecção, exclusão ou sutura da víscera
envolvida durante a laparotomia ou laparoscopia. A lavagem intraoperatória com salina e o
desbridamento peritoneal radical não se mostraram úteis. A lavagem peritoneal pós-operatória e
a laparotomia repetida planejada foram sugeridas, mas não melhoram o resultado e acabam
levando a novas cirurgias, internações mais prolongadas e custos maiores do que com a adoção
de uma estratégia de reoperação “sob demanda”.36,37
Cerca de 20 a 30% dos pacientes que necessitam de operação para tratamento da peritonite ou de
um abscesso intra-abdominal terão de se submeter a um 2º procedimento cirúrgico para resolver
a infecção e estabelecer um controle do foco adequado.38 As avaliações realizadas pelos
cirurgiões sobre a adequação do controle do foco alcançado com o procedimento operatório
original têm se mostrado fortemente preditivas da necessidade subsequente de reoperação e da
mortalidade do paciente.39
A maioria dos antibióticos alcança concentrações no líquido ascítico que equivalem a pelo
menos a metade dos níveis encontrados simultaneamente no soro e que excedem a concentração
inibitória mínima para o organismo infectante. Por este motivo, a terapia sistêmica isolada
geralmente é adequada para o tratamento da peritonite bacteriana em pacientes com ascite. A
instilação intraperitoneal de antibióticos aparentemente é desnecessária. São raros os estudos
realizados de forma sistemática sobre a duração requerida do curso de antibiótico. Para a maioria
dos pacientes, os agentes antimicrobianos podem ser descontinuados assim que os sinais clínicos
de infecção começam a se resolver, e a temperatura e contagem de leucócitos sanguíneos
começam a voltar ao normal. Os pacientes em geral não requerem mais de 7 dias de tratamento,
sendo que muitos podem ser tratados por períodos menores.40-42
Diagnóstico
Características clínicas. A peritonite é indicada pelo desenvolvimento de febre, sensibilidade ou
dor abdominal e leucocitose, e pelo isolamento de um agente bacteriano ou micótico a partir do
líquido efluente de um paciente sob diálise peritoneal. O isolamento de bactérias a partir do
dialisado de um paciente que não apresenta estes achados frequentemente sinaliza a ocorrência
de contaminação, e não de infecção. A turbidez do dialisado pela presença de neutrófilos é
observada em 2 a 3% das diálises. Embora a turbidez em si não necessariamente indique a
existência de peritonite, deve ser considerada uma indicação de infecção até a disponibilização
dos resultados da cultura. Entretanto, a ausência de bactérias ao exame de uma amostra de
sedimento de dialisado corada pelo método de Gram não necessariamente confirma a ausência de
infecção, dada a necessidade de diluições extensivas da amostra. Sendo assim, não é possível se
basear em um resultado negativo da coloração de Gram para discriminar entre infecção e
inflamação estéril.43
Tratamento
A peritonite causada por espécies de Candida é mais frequentemente uma complicação da diálise
peritoneal, cirurgia gastrintestinal ou perfuração de víscera abdominal. A peritonite por Candida
que agrava a diálise peritoneal é tratada com anfotericina B endovenosa ou intraperitoneal, ou
ambas, a uma concentração final no dialisado de 2 a 4 mcg/mL. O fluconazol também pode ser
útil para o tratamento da peritonite causada por Candida albicans, assim como uma
equinocandina (p. ex., caspofungina).43,51
Enquanto a adição de lavagem peritoneal, com ou sem antibióticos, aparentemente não melhora
os resultados promovidos pelos antibióticos endovenosos e pela terapia cirúrgica convencional, a
administração intraperitoneal de antibióticos pode ser útil em casos de pacientes que necessitam
de diálise peritoneal. Exemplificando, é possível adicionar diferentes antibióticos diretamente ao
dialisado, em concentrações específicas, como 50 mg de ampicilina/L ou 5 a 10 mg de
gentamicina/L. Dada a possibilidade de ocorrer bacteremia, os antibióticos também devem ser
administrados por via endovenosa nestes pacientes, em uma dosagem adequada ao nível de
função renal. Quando a peritonite se desenvolve como complicação da diálise peritoneal ou de
um shunt peritoneovenoso, seu controle frequentemente requer a remoção ou substituição do
cateter durante a administração de antibióticos.43,51 Em pacientes com história de peritonite
causada por S. aureus, a profilaxia com uso tópico de pomada à base de mupirocina (aplicada nas
narinas), uso tópico de creme de gentamicina (aplicado no local de saída do cateter) ou
administração oral de rifampina pode diminuir a incidência de episódios subsequentes de
peritonite estafilocócica e perda de cateter peritoneal.43,51-54 Além disso, para a colocação do
cateter de diálise peritoneal, a profilaxia antibiótica endovenosa pré-operatória diminui o risco de
peritonite, mas não afeta a incidência de infecção junto ao túnel ou saída do cateter.55
Abscessos intra-abdominais
Os abscessos intra-abdominais podem manifestar-se como complicações de uma cirurgia
abdominal, de condições intra-abdominais (p. ex., diverticulite, apendicite, doença no trato biliar,
pancreatite, perfuração visceral, peritonite) ou de um traumatismo abdominal penetrante; como
febre de origem indeterminada; ou como disfunção de órgãos adjacentes (p. ex., a conhecida
pneumonia de lobo inferior associada a um abscesso subfrênico ou à obstrução do intestino
delgado). A disseminação bacterêmica da infecção a partir de um foco distante para um sítio
intra-abdominal é menos comum como causa de abscessos intra-abdominais.
A imagem de ressonância magnética (RM) exerce papel negligível na avaliação das infecções
intra-abdominais. Os exames de medicina nuclear também são menos úteis do que a TC e a
ultrassonografia. Apesar dos resultados iniciais aparentemente promissores, as varreduras com
gálio-67 e índio-111 mostraram-se menos úteis do que as técnicas de TC e ultrassonografia. As
varreduras de colecintigrafia usando ácido hepatoiminoacético (HIDA ou lidofenina) marcado
com tecnéscio-99m são úteis para avaliar a vesícula biliar e demonstrar vazamentos de bile
subsequentes à colecistectomia ou outros procedimentos biliares [ver Cálculos biliares e doença
do trato biliar]. A arteriografia e os exames com contraste de bário raramente são usados para
diagnosticar abscessos intra-abdominais. Havendo tratos fistulosos, porém ocasionalmente
podem ser úteis.
Tratamento e prevenção
A escolha dos antibióticos depende dos organismos isolados a partir das hemoculturas ou do
material extraído dos abscessos. Até a disponibilização desta informação, a escolha dos fármacos
deve ser guiada pelos mesmos princípios aplicáveis ao tratamento da peritonite. Embora o uso
dos antibióticos seja essencial, sobretudo devido ao risco de bacteremia, esta terapia isolada não
consegue erradicar os abscessos intra-abdominais e, portanto, é secundária a uma drenagem
imediata e efetiva destas formações.
Até a metade da década de 1970, a drenagem cirúrgica era considerada obrigatória para o
tratamento de abscessos intra-abdominais. Contudo, o tratamento sofreu mudanças dramáticas
em apenas alguns anos, com a introdução da drenagem percutânea de abscessos guiada por
ultrassom ou TC. A ultrassonografia pode ser usada para guiar a drenagem de coleções amplas
ou superficiais, mas a TC é preferida para abscessos menores ou mais profundos.58 Muitos
estudos demonstraram que a drenagem percutânea de abscessos é uma técnica segura e efetiva
para uma ampla gama de coleções intra-abdominais. As taxas de sucesso variam de 47 a 92%, e
a maioria dos estudos relata taxas de sucesso superiores a 80%, similares às taxas de sucesso
obtidas com a drenagem cirúrgica.59 A falha do tratamento é mais comum em pacientes
imunossuprimidos e naqueles com flegmões pouco definidos, abscessos multiloculares,
hematomas espessos ou infecções organizadas, ou abscessos com tratos fistulosos associados.
Apenas as características radiográficas são insuficientes para indicar quais abscessos responderão
à drenagem percutânea. Assim, uma medida aparentemente razoável é instituir a drenagem
percutânea em todos os casos de pacientes que possuem uma via de acesso segura, contanto que
o procedimento seja realizado por funcionários capacitados e o paciente não necessite de
intervenção cirúrgica. A drenagem cirúrgica, então, pode ser usada para pacientes com recidivas,
insuficiências ou complicações. É necessário que um cirurgião esteja envolvido na tomada da
decisão sobre o método de drenagem a ser usado, pois um cirurgião será chamado em caso de
insucesso da abordagem inicial. Mesmo no caso dos abscessos que geralmente requerem
intervenção cirúrgica, como os abscessos periapendiculares e diverticulares e as infecções
pancreáticas (ver adiante), a drenagem percutânea permite controlar temporariamente a sepse e,
com isso, adiar o procedimento operatório até que as condições ideais sejam alcançadas.
Eventualmente, este procedimento permite a realização de apenas um procedimento definitivo,
em vez de vários procedimentos em fases.60
Relatos recentes mostram que alguns abscessos pequenos, que podem ser diagnosticados por TC,
são resolvidos apenas com terapia antibiótica e sem necessidade de drenagem cirúrgica ou
percutânea. Nestes relatos, o tratamento não cirúrgico de abscessos maiores que 5 cm tendeu à
falha, porém a maioria dos abscessos com este tamanho ou menores foram resolvidos apenas
com tratamento antibiótico.61,62 De qualquer forma, quando há uma “janela” segura até o
abscesso, bem como disponibilidade dos conhecimentos especializados necessários, uma forma
de tratamento provavelmente satisfatória consiste em instalar um cateter percutâneo. Se o
abscesso for pequeno, o acesso percutâneo for difícil e o paciente não estiver gravemente doente,
então uma abordagem lógica é iniciar um curso de antibióticos e acompanhar a evolução do
paciente. Se o abscesso aumentar de tamanho, uma via de acesso percutânea pode ser
disponibilizada. Caso o quadro do paciente piore, então uma abordagem aberta para drenagem
passa a ser necessária, se o acesso percutâneo não for possível.
Abscessos intraperitoneais
Os abscessos intraperitoneais podem ser formados de 2 maneiras: (1) a partir de uma peritonite
difusa, em que há desenvolvimento de loculações de pus em áreas anatomicamente dependentes,
como na pelve, goteiras paracólicas e áreas subfrênicas; ou (2) por disseminação da infecção a
partir de um processo inflamatório ao peritônio contíguo. Cerca de 1/3 dos abscessos intra-
abdominais são intraperitoneais, e quase a metade dos abscessos intraperitoneais ocorre junto ao
quadrante inferior direito.
Abscessos subfrênicos
Cerca de 60% dos abscessos subfrênicos desenvolvem-se após cirurgias que envolvem o
duodeno e o estômago, trato biliar ou apêndice; 20 a 40% dos abscessos desenvolvem-se após a
ruptura de uma víscera oca (como uma apendicite aguda ou úlcera péptica perfurada), em que a
infecção é subsequentemente lacrada. Um percentual variável de abscessos subfrênicos
desenvolvem-se após um traumatismo abdominal penetrante ou fechado, sendo que menos de
5% se desenvolvem na ausência de condições predisponentes. O diagnóstico dos abscessos
subfrênicos às vezes é adiado por causa da localização destas formações junto à porção
intratorácica da cavidade peritoneal, que é inacessível pelo exame físico.
Características clínicas. As manifestações de um abscesso subfrênico variam de uma doença
aguda severa a um processo crônico insidioso caracterizado por febre intermitente, perda de
peso, anemia e sintomas inespecíficos. A síndrome crônica é mais frequentemente observada em
pacientes previamente tratados com antibiótico. No passado, este tipo de abscesso podia
permanecer subclinicamente latente por períodos prolongados, antes do diagnóstico. Isto é
incomum, atualmente. Diante de qualquer paciente com febre de origem indeterminada que tenha
passado por cirurgia abdominal – mesmo quando a operação foi realizada há muitos meses –
deve ser levantada a suspeita de abscesso intra-abdominal e realizado um exame de TC.
Picos de febre, dor e sensibilidade abdominal (mais comumente junto à margem costal inferior),
e perda de peso são manifestações comuns. As características de um processo intratorácico,
como dor no ombro, dor torácica, tosse, dispneia, estertores e efusão pleural, são mais
frequentemente observadas do que as características de uma condição intra-abdominal. É comum
haver leucocitose. Em raros casos, os pacientes apresentam uma doença febril, obscura e
prolongada, que é agravada pelo desenvolvimento repentino de um empiema quando o abscesso
subfrênico se rompe através do diafragma. Embora esteja presente em cerca de 80% dos
pacientes com abscesso subfrênico, o líquido pleural geralmente é um transudato. A efusão
pleural que se desenvolve após uma cirurgia abdominal é mais comumente causada por uma
inflamação que ocorre abaixo (e não em cima) do diafragma.
Abscessos retroperitoneais
As infecções piogênicas do retroperitônio manifestam-se como outras infecções intra-
abdominais. De fato, muitos abscessos intra-abdominais surgem a partir de distúrbios viscerais
abdominais. Mais de 2/3 dos pacientes com abscessos retroperitoneais também apresentam
condições subjacentes debilitantes, tais como tumores malignos, uso de corticosteroide,
alcoolismo e diabetes. Mais de 80% destas infecções são polimicrobianas, envolvendo
organismos entéricos aeróbicos e anaeróbicos.74 A TC é decisiva para o diagnóstico dos
abscessos retroperitoneais. Isto também é valido para os abscessos primários do psoas, que
frequentemente são causados por S. aureus,75 e para os abscessos perinéfricos, que em geral se
originam no trato urinário.76 Assim como em outros abscessos, o sucesso do tratamento requer
drenagem percutânea ou cirúrgica imediata e administração de antibióticos adequados.76,77
Infecções pancreáticas
A maioria das infecções pancreáticas ocorre como complicação da pancreatite, que pode resultar
de alcoolismo (38%), cálculos biliares (11%), traumatismo cirúrgico (16%) ou outros fatores
(35%). As definições antigas de necrose peripancreática, necrose pancreática infecciosa e
abscessos pancreáticos foram abandonadas por serem de difícil aplicação e pouca utilidade.78 As
infecções associadas à necrose pancreática tendem a ocorrer durante as primeiras 3 semanas
subsequentes ao início da pancreatite necrotizante aguda, sendo pouco localizadas junto ao
retroperitônio. O controle da fonte é difícil. A morbidade e mortalidade podem ser altas. A
necrose infectada muitas vezes requer desbridamento cirúrgico aberto, apesar dos relatos
promissores do uso combinado de drenagem percutânea e desbridamento assistido por
laparoscopia. As infecções mais localizadas tendem a ocorrer após mais de 3 semanas do início
agudo da doença. As infecções localizadas tardias com frequência podem ser tratadas por via
percutânea, mas ainda tendem a necessitar de um controle de foco adicional.79
Diagnóstico. O método mais acurado para determinar se uma área de necrose pancreática ou
peripancreática está infectada é realizar a aspiração com agulha fina guiada por TC, seguida de
coloração de Gram e cultura. Esta etapa é indicada se a condição do paciente sofrer deterioração
após uma estabilização ou melhora inicial.85
Tratamento. O controle do foco é obrigatório. Este controle frequentemente pode ser feito por
desbridamento cirúrgico aberto, às vezes auxiliado por drenagem percutânea, técnicas
laparoscópicas ou ambas.86 O resultado melhora quando a intervenção é feita mais tardiamente
no curso da doença. A terapia antibiótica é a mesma empregada no tratamento de outras
infecções intra-abdominais.
Abscessos viscerais
Abscessos hepáticos
Epidemiologia e etiologia. Os abscessos hepáticos piogênicos ocorrem em diversos contextos,
tais como infecção do trato biliar, extensão direta a partir de um sítio contínuo de infecção,
bacteremia do sistema portal a partir de focos sépticos intra-abdominais e traumatismo não
penetrante.87-89 Os abscessos hepáticos podem ocorrer como resultado de bacteremia sistêmica
ou como complicações de uma cirurgia abdominal ou traumatismo abdominal penetrante. Estes
abscessos também podem ocorrer como complicações do carcinoma hepatocelular,90 doença
granulomatosa crônica,91,92 ou procedimentos de drenagem biliar trans-hepática percutânea
realizados em pacientes com câncer e icterícia obstrutiva. Os abscessos piogênicos podem ser
únicos ou múltiplos.
Assim como outros abscessos intra-abdominais, os abscessos hepáticos piogênicos envolvem
principalmente bactérias entéricas. Um total de 2/3 destes abscessos têm origem polimicrobiana,
enquanto pelo menos 1/3 envolvem micro-organismos anaeróbicos. S. aureus pode ser o
organismo causador em pacientes com bacteremia e em crianças. As espécies de Klebsiella
frequentemente são responsáveis pelos abscessos hepáticos formadores de gases, que de forma
típica ocorrem em pacientes diabéticos.93 As hemoculturas são positivas em cerca de metade dos
pacientes com abscesso hepático piogênico. Além disso, existe a possibilidade de ocorrer
infecções metastáticas.
Aspectos clínicos. A febre é o sintoma mais comum e está presente em quase 90% dos pacientes.
Calafrios e perda de peso ocorrem em cerca de metade dos casos. Como a dor abdominal,
sensibilidade abdominal ou hepatomegalia são encontradas em apenas 50% dos casos; muitos
destes pacientes apresentam febre de origem indeterminada. A leucocitose está presente na
maioria dos casos. A icterícia é incomum, mas os níveis séricos de fosfatase alcalina estão
elevados em quase todos os pacientes. A ruptura de um abscesso hepático, ainda que seja
incomum, frequentemente é acompanhada de dor abdominal difusa e choque séptico.94
Abscessos esplênicos
Os abscessos esplênicos são incomuns.99 Diferente dos outros abscessos intra-abdominais, estes
costumam ter origem bacterêmica, especialmente em pacientes com endocardite. Em outros
pacientes, uma hemoglobinopatia, vasculite com infarto esplênico, traumatismo e
imunossupressão podem atuar como fatores predisponentes. Febre e calafrios, além de uma dor
no quadrante superior esquerdo são achados comuns. Quando o polo superior do baço é afetado,
pode haver predominância de sintomas diafragmáticos, pleurais e pulmonares, contudo os
sintomas peritoneais se tornam mais comuns quando o polo inferior é o sítio de infecção. Entre
os organismos responsáveis, estão S. aureus, estreptococos, espécies de Salmonella e bactérias
entéricas. Os fungos são importantes como causa em pacientes imunocomprometidos. A TC e a
ultrassonografia são os exames radiográficos de maior utilidade. A instituição de uma terapia
antimicrobiana adequada é essencial. A esplenectomia era frequentemente considerada
necessária para promoção de um tratamento efetivo no passado, mas hoje há evidências
indicando que a drenagem percutânea ou até mesmo apenas a terapia antibiótica podem ser
suficientes em determinados casos selecionados.100 Experiência adicional se faz necessária para
que o tratamento ideal destas infecções pouco comuns possa ser determinado.101
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