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Entre Plantas e Rezas

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161

Atribuição BB CY 4.0

Entre plantas e rezas: reflexões sobre o ofício


da benzeção no Quilombo de Mata Cavalo a
partir de um processo formativo
Edson Caetano1
Elidiane Martins de Brito Silva2

Resumo

Este texto traz reflexões sobre a benzeção, enquanto trabalho e educação,


exercida por homens e mulheres no quilombo de Mata Cavalo, localizado no
município de Nossa Senhora do Livramento no Estado de Mato Grosso. Os
dados empíricos resultam do desenvolvimento de uma proposta extensionista
que envolveu a realização de oficinas formativas com esses sujeitos sociais
presentes no cotidiano do referido quilombo. As ações formativas visam
salvaguardar os saberes e os fazeres curativos locais e fortalecer o coletivo dos
benzedores e das benzedeiras. A análise dos resultados foi feita sob a
perspectiva do materialismo histórico, a fim de entender os saberes e os fazeres
curativos da benzeção, articulados com a produção de suas existências materiais
e imateriais no referido território quilombola. Conclui-se que a prática da
benzeção, nesse contexto, articula-se a partir da produção da vida associando o
poder das rezas, a produção de remédios elaborados à base de plantas
medicinais, os saberes ancestrais e a espiritualidade. Dessa maneira, a benzeção
praticada pelos quilombolas de Mata Cavalo constitui uma estratégia política e

1 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação pela


Universidade Estadual de Campinas, Graduação em Ciências Sociais pela PUC/CAMP. Professor
do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso e líder do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre Trabalho e Educação – GEPTE. Contato: caetanoedson@hotmail.com
2 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas


sobre Trabalho e Educação (GEPTE). Professora da Educação Básica do Estado de Mato Grosso.
Contato: elimarbri2008@hotmail.com
Revista SCIAS. Direitos Humanos e Educação, Belo Horizonte/MG, v. 5, n. 1, p. 161-
185, jan./jun. 2022. e-ISSN: 2596-1772.
cultural ante às problemáticas enfrentadas pela comunidade, assim como outra
perspectiva do processo formativo cunhado e produzido a partir da cultura, da
história e da realidade sociocultural desse grupo social.

Palavras-chave

Saberes tradicionais; Benzeção; Comunidade Quilombola; Ancestralidade.

Recebido em: 24/03/2022


Aprovado em: 19/07/2022

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Revista SCIAS. Direitos Humanos e Educação, Belo Horizonte/MG, v. 5, n. 1, p. 161-


185, jan./jun. 2022. e-ISSN: 2596-1772.
Between plants and prayers: reflections on
the magic blessing profession in the
Quilombo of Mata Cavalo from a formation
process

Abstract
This text presents reflections on magic blessing, as a work and educational tool,
carried out by men and women in the Quilombo of Mata Cavalo, located in the 163
municipality of Nossa Senhora do Livramento in the State of Mato Grosso. The
empirical data result from the development of an extension project that
involved formation workshops with these social subjects present in the daily life
of that quilombola community. The formation actions aim to safeguard local
knowledge and curative practices and strengthen the collective of male and
female blessers. The analysis of the results has embraced the perspective of
historical materialism, in order to understand the knowledge and the curative
practices related to magic blessing, articulated with the production of their
material and immaterial existences in the aforementioned quilombola
community. It has been concluded that the practice of magic blessing in this
context is based on the production of life associating the power of prayers, the
production of medicines made from medicinal plants, ancestral knowledges,
and spirituality. In this way, the magic blessing practiced by the quilombolas of
Mata Cavalo constitutes a political and cultural strategy to face the problems in
the community, as well as another perspective of the formation process coined
and produced by this social group on the basis of their culture, history and
sociocultural reality.

Keywords

Traditional knowledges; Magic blessing; Quilombola community; Ancestry.

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Introdução

O presente artigo tem a finalidade de refletir sobre o ofício da benzeção


exercido no quilombo3 de Mata Cavalo, localizado no município de Nossa
Senhora do Livramento-MT. Os dados empíricos deste artigo resultam de
oficinas formativas, possibilitadas por meio do projeto de extensão tecnológica,
que teve início no mês de julho de 2021, intitulado “Conhecimentos tradicionais
e o direito de reconhecimento de benzedeiras e benzedores do quilombo de
Mata Cavalo/Nossa Senhora do Livramento4”, desenvolvido pelo Grupo de 164

Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), vinculado ao


Programa de Pós-Graduação de Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso (PPGE/UFMT) com o financiamento da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Mato Grosso5 (FAPEMAT). Dessa forma, objetiva-se,
com este estudo, resgatar e salvaguardar os saberes e fazeres curativos dos(das)
benzedeiros(as), garrafeiros(as), erveiros(as), raizeiros(as), especialistas dos
chás, entre outros na referida comunidade quilombola. Essa proposta
extensionista articula-se a partir de uma pesquisa de caráter qualitativo, que
traz em seu bojo a pesquisa participante.

As ações do projeto são desenvolvidas pelos integrantes do grupo de


pesquisa, envolvendo estudantes de doutorado do PPGE/UFMT, bem como
bolsistas estudantes de cursos de graduação que desenvolvem atividades de
apoio ao desenvolvimento desta proposta, inclusive, uma delas, moradora da
comunidade. O processo formativo do referido projeto, junto aos(às)
curadores(as) locais, foi organizado em 12 oficinas formativas com duração de 2
horas cada, em plataforma de transmissão remota (oficinas gravadas e
transmitidas via videoconferência) e mais 2 horas de atividades domiciliares. A
proposta formativa tem a finalidade de fortalecer e de encorajar benzedeiras e
benzedores do quilombo de Mata Cavalo a reivindicar direitos, ocupar espaços e
propor alternativas para o fortalecimento das práticas tradicionais de cura e

3 Utilizamos o termo quilombo/comunidades quilombolas ancorados na perspectiva conceitual


de Leite (2000, p. 335) que considera o “quilombo como uma forma de organização, de luta, de
espaço conquistado e mantido através de gerações” como também um espaço de resistência e
luta pela garantia dos territórios tradicionais ainda não reconhecidos pelo Estado Nacional
Brasileiro.
4 Projeto de Extensão Tecnológica aprovado sob o processo número 0266129/2021 pela

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso (FAPEMAT).


5 Órgão governamental que acolhe e ampara o desenvolvimento de projetos de pesquisa

científica e inovação tecnológica no Estado de Mato Grosso.


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cuidado por meio, especialmente, da criação da Associação de Benzedeiras e
Benzedores.

Tal projeto fundamentou-se na Política Nacional de Plantas Medicinais e


Fitoterápicos, aprovada por meio do Decreto nº 5.813, de 22 de junho de 2006,
na qual reconhece e valoriza as diferentes práticas populares de uso de plantas
medicinais e de remédios caseiros para a cura e o cuidado dos seres humanos.
Desse modo, o ofício tradicional da benzeção, atrelado ao uso e ao manejo de
remédios feitos de plantas medicinais, fitoterápicos e serviços relacionados à 165
fitoterapia, pode ser considerado uma iniciativa ainda muito tímida do
reconhecimento pela ciência e pelo SUS. Isso porque, tal ofício, revela-se como
uma prática de saúde ancorada na segurança, na eficácia e na qualidade de
serviços prestados à comunidade quilombola local “na perspectiva da
integralidade da atenção à saúde” (BRASIL, 2006, p. 21), associando o
atendimento médico local ao conhecimento tradicional sobre as plantas
medicinais. Ressaltamos também a existência de benzedeiros(as) em outros
contextos socioculturais, os(as) quais desenvolvem seu ofício tradicional
ancorados na potência curativa da palavra por meio de rezas, de cantos e de
oratórias, sem, necessariamente, fazerem o uso e a indicação da fitoterapia em
suas práticas de cura e cuidado.

Importante salientar que, inicialmente, a proposta extensionista estava


direcionada somente aos(às) benzedeiros(as) do quilombo, posteriormente, o
processo formativo estendeu-se a todos(as) que se autodenominavam
curadores(as) locais do referido quilombo. As oficinas formativas foram
gravadas e, em seguida, transcritas com a finalidade de divulgar e de produzir
este e outros textos científicos, protagonizando os saberes tradicionais desse
grupo social. Entretanto, neste texto, buscaremos refletir especificamente sobre
a atuação dos(as) benzedeiros(as) na comunidade mencionada.

As ações formativas da proposta extensionista exposta possibilitou-nos


mapear 12 (doze) curadores da área da benzeção, sendo 7 (sete) do sexo
feminino e 5 (cinco) do sexo masculino, na faixa etária de 55 a 76 anos. Os(as)
moradores(as) do quilombo Mata Cavalo produzem as suas existências a partir
do trabalho no campo, da labuta diária na terra, da criação de pequenos

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animais, da produção de garrafadas, de artesanato e de doces regionais,
conforme relatos durante as oficinas formativas. As associações 6 comunitárias
são algumas iniciativas de organização coletiva desse grupo étnico e têm, como
força motriz, seus saberes culturais, ancestrais e ambientais.

Dessa maneira, compreendemos que a benzeção é um trabalho e uma


categoria do trabalho como elemento central na formação humana, tanto no que
diz respeito ao desenvolvimento histórico humano quanto para compreender a
realidade material de existência. Por meio do trabalho, homens e mulheres 166
transformam a natureza para satisfazer as suas necessidades e, nesse processo,
transformam-se e humanizam-se, produzindo diferentes simbologias,
linguagens, modos de vida, costumes, relações de produção etc. Concebemos o
trabalho em seu sentido ontológico (MARX, 1982), mas também como um
princípio educativo (SAVIANI, 2017).

Conforme Kosik (2002), na qualidade de postura investigativa da


materialidade, devemos romper com a realidade aparente, avançando para a
compreensão da totalidade concreta e, a partir do todo, compreender as partes
e, assim, chegar na essência do fenômeno. Dessa maneira, nossas análises estão
baseadas no método materialismo histórico dialético enquanto método, postura
e práxis de produção de outros saberes e realidades possíveis.

Nossas reflexões debruçam-se, também, de maneira crítica e


denunciante, sobre a formatação mercantil e desumanizante do trabalho no
modo de produção capitalista, que concebe a força de trabalho e o próprio
trabalhador como mercadoria e que se monetarizam em lucros e capital. Acerca
disso, Marx (2004, p. 59) refere-se da seguinte maneira:

[...] o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais pobre


quanto mais riqueza ele produz, quanto mais a sua produção
aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma
mercadoria, tanto maior número de bens produz. Com a
valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta
a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz
apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao

6 Moreira Santana Santos (2017) argumenta sobre a importância da atuação das associações
para o fortalecimento coletivo quilombola em Mata Cavalo, embora exista alguns conflitos
internos. Algumas associações referenciadas pela autora são: a Associação da comunidade de
Mata Cavalo de Baixo, a Associação dos produtores Rurais de Mata Cavalo de Baixo e a
Associação da Mutuca.
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trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma
proporção com que produz bens.

A vertente do trabalho, em favor da produção da existência dos grupos


sociais marginalizados, é invisibilizada pelas estruturas coloniais dominantes, a
valorização da vida que acontece e se (re)produz no cotidiano por meio das
experiências (THOMPSON, 1998). Dessa maneira, a produção da existência
abrange a dimensão material e imaterial da vida, diferentes saberes que
circulam na esfera popular são construídos, reconstruídos e compartilhados
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com as gerações futuras. Sobre os saberes tradicionais, aqueles que são oriundos
da sabedoria popular, Albuquerque e Sousa (2016, p. 232) afirmam que “há
saberes que são ancestrais, que antecedem o surgimento da ciência, que foram e
são “gestados no cotidiano de vida e de trabalho”. A construção desses saberes
tradicionais está alinhada às identidades de um grupo que, juntamente com
seus modos próprios de existência, aprendem e garantem seus territórios
ancestrais, como é o caso do quilombo de Mata Cavalo.

O decreto nº 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política


Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, define os territórios tradicionais como “espaços necessários a
reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais,
sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária”. Desse modo, os
territórios tradicionais e sua biodiversidade são indispensáveis para que esses
grupos sociais elaborem seus modos próprios de reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica pautados em seus saberes e fazeres tradicionais,
com base em suas tradições e suas ancestralidades.

Nesse sentido, a seguir, discorreremos sobre o ofício da benzeção em


Mata Cavalo, breves reflexões sobre esse trabalho que se produz articulado às
diferentes dimensões da existência humana em dado contexto específico de luta
e de resistência. Durante a realização das oficinas, entre falas, risos, emoções e
muitas discussões, compreendemos o ofício dos(as) benzedeiros(as) conforme
suas visões de mundo ante as condições materiais e imateriais de suas
existências. Desse modo, no sentido de escuta atenta e de diálogo respeitoso,
reverenciamo-nos às sabedorias curativas que dão sentido à vida do(a)
benzedeiro(a) quilombola.

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A benzeção enquanto ofício e invocação da potência
curativa na comunidade quilombola de mata cavalo

[...] e, assim, a gente vai fortalecendo o nosso caminho,


persistindo no caminho, e o mundo está precisando muito de
reza, as pessoas estão precisando muito de reza, nosso planeta
está precisando de reza. E precisamos que as pessoas também
aprendam com a sabedoria da terra, com a sabedoria das
plantas, das ervas. Aprendam a receber essas informações, essa
comunicação, esse amor que é emitido da terra e do céu
também, né? Então é um fluxo, assim: nessa linha vertical, do
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céu para a terra e da terra para o céu; e, também, na horizontal,
de nós para todos os nossos irmãos. E é nesse fortalecimento
que eu confio, que eu boto fé. E é por isso que eu estou aqui
trazendo essa palavra para vocês de confiança, de fé, de amor.
Eu espero um dia encontrar vocês aí pessoalmente, receber um
abraço, receber uma bênção, aprender com as plantas da região
de vocês. Sou muito grata por essa oportunidade, por esse
encontro. Fiquem com Deus! E que o manto da Virgem Maria
proteja todos nós a todo tempo, que abra o nosso coração para o
amor como Jesus nos ensinou, que a gente continue firme e
forte nessa jornada, sua bênção! (SABRINA NEGRI, ESCOLA
DE ALMAS BENZEDEIRAS, VÍDEO O TRABALHO
COLETIVO, ACERVO GEPTE, 18’06”, 2021).

Com essas palavras carregadas de afeto, a benzedeira Sabrina Negri


encerra o vídeo reproduzido na primeira oficina formativa, convocando
todos(as) os(as) benzedeiros(as) e demais curadores locais ao fortalecimento
coletivo pelo pulsar da vida e pelos encantos da existência, produzidos a partir
da prática de cura e cuidado local, especialmente, a benzeção, que, ao mesmo
tempo em que abençoa, cura, educa e possibilita as trocas comunitárias, ou seja,
os saberes pluralizam-se em redes.

Conforme Brandão (2012, p. 111), é na comunidade que o espaço da vida


floresce “[...] e a essência de cada comunidade são os sujeitos e as relações que
se estabelecem entre eles e com a natureza”. Dessa maneira, os momentos
dialógicos vivenciados nas oficinas formativas possibilitaram aos(às)
benzedeiros(as) a reflexão sobre seu ofício de benzer, da importância da
natureza e seus territórios na garantia da produção da vida a partir da
experiência. Sobre seu trabalho de benzeção, Dona Berenice relata:

Então é assim, essa binzição é um dom da pessoa. Um dom


memo, de coração. A gente tem que ter muita fé em Deus e tem
que ter um coração bão viu. Que a gente tá livrando as pessoas,

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curando as pessoa, ensinando o remédio certo, benzendo na
hora certa. Lá em casa, meu pai benzia muita gente, mas eu,
assim, eu benzo mais quando num vai lá em casa, que lá é meu
lugar de descanso, qualquer lugar que tiver só ligar pra mim: ‘eu
tô sentindo isso, isso e isso’. E, também, eu tenho aquele dom
de cura, por exemplo, a pessoa faz as coisa e se num me conta:
‘ah tá acontecendo isso, isso e isso comigo’, eu faço as minha
oração ao Senhor e vai embora. (BERENICE, 64 ANOS,
QUILOMBO DE MATA CAVALO, 23/11/2021).

Percebemos, na fala da benzedeira, a presença de diferentes saberes na


prática da benzeção, inclusive, na maneira com que seu ofício está organizado a
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partir da tríade: diálogo, benção e prescrição, conforme assevera-nos Quintana
(1999). Dona Berenice, além de escutar e sensibilizar-se diante da doença do
outro, benze e ensina quais remédios devem ser usados para complementar o
tratamento do benzido. Toda essa dinâmica da benzeção mobiliza diferentes
saberes locais, ambientais e permite a “complexa inter-relação entre crenças-
conhecimentos e as práticas”, como propõe Toledo e Barrera-Bassols (2009, p.
40).

Oliveira (1985b) reflete sobre a contradição entre o saber popular e o


erudito, ou seja, como esse jogo de forças apresenta-se no cenário social, tendo,
de um lado, o saber erudito proveniente da ciência moderna, que se entrelaça
aos ideais capitalistas de exploração, de lucro, de individualismo e da opressão;
e, do outro lado, o saber popular, fundamentado na vida, nas relações sociais e
no ato de resistência política e cultural. Os ritos da benzeção são compreendidos
pela autora como uma possibilidade de leitura da identidade, forjada numa
relação de afetividade e solidariedade, que sustenta a existência de um nós
próprio, assumido pelos diferentes grupos sociais no interior da cultura popular.
Dessa maneira, a benzeção protagoniza-se como uma potencialidade política,
pois permite a articulação desse ofício ao processo histórico do grupo.

O contato direto com a realidade concreta de Mata Cavalo, a partir dos


momentos que antecederam a realização das oficinas formativas, e em visitas
aos lares dos especialistas7 da cura, possibilitou-nos compreender a situação de
vulnerabilidade social em que essas famílias vivem, sendo a benzeção, entre

7 A autora Elda Rizzo de Oliveira (1985a) cunha esse termo a partir das diferentes especialidades

que se formatam com suporte no trabalho da benzeção em diferentes contextos culturais,


históricos e sociais.
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outras práticas de cura e de cuidado, entendida como uma necessidade perante
a situação socioeconômica em que produzem suas existências. As plantas
medicinais, cultivadas em suas hortas caseiras, fazem parte do ofício de ser
benzedeiro(a) quilombola de Mata Cavalo. A calorosa acolhida, permitiu-nos
adentrar em territórios outros, apreciar e aprender “com eles e elas”, e não
“sobre eles e elas”, a missão de construir outros saberes pautados na perspectiva
da “Ecologia de Saberes8” (SANTOS, 2020). Ao indagarmos sobre as
modalidades de benzeção exercidas nesse contexto, as respostas diversificaram-
se da seguinte maneira: 170

[...] benzo. Eu benzo de cobra, eu benzo de arca caída, dor de


cabeça… Benzo dos 3 tipo de arca caída. (SEBASTIANA, 67
ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO, 06/10/2021).

[...] ein Zé, o home te… eu passei ali em frente de Maria do Catú,
ela me cerca na rua é… O netinho dela ruim, caganeira,
vomitando. E, às veiz, cê vai com pressa, né? Corpo quente, o
prazo de chegar e fazer aquilo que foi fazer... Aí, parei, fiquei
quieta assim, falei, mas ela já pediu, eu num vou negar, né? Prá
benzer a criança, né? Aí, eu benzi a criança, fui embora. Quando
é mais, aí, ontem, era pr’eu cabar de fazer uns serviço que eu
tava fazendo, minha cunhada me achou eu lá na rua: ‘vambora
vambora’, disviando de lá prá cá, né? Me achou eu de lá pra cá e
já passou a mão, e já vim embora com eles. Ficou assim. Hoje,
eu vortei. Quando vortei lá, passei nessa mema rua, lembrei da
criança, perguntei pá-pá vó dele: _ e o nenê? _ ‘Tá bão!!’
(ANTÔNIA, 74 ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO,
05/10/2021).

[...] essa do ar, aprendi com minha concunhada. [...] Quebrante,


a do ar, também, você tem que fazer o sinal da cruz e ir rezando
na mente e você não precisa falar alto, é só você mentalizar e
rezar Pai Nosso, Ave maria e Salve Rainha. [...] Aprendi benzer
de nervo rendido, quando você tá com torcicolo, rendidura
(MARIA VERÔNICA, 55 ANOS, QUILOMBO DE MATA
CAVALO, 05/10/2021).

[...] eu benzo de arca caída, quebrante, zipela, e mordedura de


cobra somente, cinco coisas, né? (EMILIANO VENÂNCIO, 67
ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO, 06/10/2021).

[...] principalmente, dor de dente. Dor de dente, benzi uma


sobrinha meu uma vez que veio aqui chorando com dor de

8 Boaventura de Sousa Santos (2020) propõe que a ecologia de saberes e a tradução intercultural
emergem da possibilidade de inteligibilidade crítica e articulada a diferentes contextos com base
na diversidade de saberes, transformando-se em uma ferramenta capacitadora que se alicerça às
lutas sociais contra os diferentes tipos de opressão e de dominação.
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dente, aí, benzi, até hoje nunca mais doeu. [...] É, eu benzo de
quebranto, dor de dente, e arca caída, né? Isso... [...] Com lenço.
Exatamente. [...] Quebranto é com, com raminho de folha, né?
(OZENIL, 59 ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO,
05/10/2021).

Olha, animal quando tá doente, eu já benzi, mais eu num…


Primeiramente, eu acho que Deus num dá… Esses dia, tava com
uma égua meu aí, ela tava… eu é porque eu sei que ela tava no
cio, desconfiei que ela tava no cio. Mais aí deu uma dor de
barriga nela, ela caiu ali bem de frente ao Leonor:_‘oia essa
égua tava rolando, rinchando, ela rolava, que eu soltava ficava
socando os cocô com força, a coice… eu acho que era da dor, 171
né?’ Aí eu falei ‘num tem nada ver, deixa eu tentar benzer prá
ver se Deus ajuda que seja bão…’ Aí eu benzi ela, peguei o
remédio com um pouquinho de farelo e um pouquinho de sal e
arrumei o remédio e dei pra ela. Aí ela, eu com medo, ela vinha
assim, tava loca, parecia que tava cega, num sei. E eu falei ‘meu
Deus! Será que é loucura? (PAULINA MARTINS, 70 ANOS,
QUILOMBO DE MATA CAVALO, 06/10/2021).

Percebemos, pelas falas dos(as) benzedeiros(as) e dos(as) curadores(as)


locais de Mata Cavalo, as múltiplas configurações da benzeção, que é exercida
nesse contexto de luta e resistência, do trabalho marcado pela inventividade,
pela praticidade e pela educação que promove o compartilhamento desses
saberes às gerações futuras e, principalmente, à valorização da vida. Dessa
maneira, as diferentes benzeções, tais como as de mordedura de cobra, de arca
caída, de dor de dente, de quebrante, de ar na cabeça, de erisipela, de rendidura
e as ministradas em crianças e em animais são exemplos de saberes
tradicionais, que são produzidos a partir dos saberes e dos fazeres curativos de
homens e mulheres que desenvolvem suas próprias metodologias e
instrumentos de trabalho pautadas na valorização da vida.

Sousa e Albuquerque (2021) afirmam que, além do dom da cura


intrínseco ao(à) benzedeiro(a), diferentes saberes são mobilizados,
cotidianamente, para aperfeiçoar o ofício de cura com base em sua trajetória
sociocultural, produzidos e reinventados por meio de suas relações sociais entre
os pares e também com outros grupos. Dessa maneira, esses especialistas da
cura, além de diagnosticar as doenças, expressam a sensibilidade aguçada para
diferenciar a tipologia da doença, ou seja, se é de origem espiritual ou física. “É
preciso saber e tornar inteligível ao doente as causas de seu adoecimento, e

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buscar formas de reconciliá-lo com antes aplicar-lhe uma terapêutica” (SOUSA;
ALBUQUERQUE, 2021, p. 104).

Considerando que a doença, na perspectiva da medicina popular, não é


vista de maneira multifacetada, como ela é concebida pela medicina erudita, a
benzeção trata o benzido de maneira integral corpo, alma e espírito. Desse
modo, o tratamento ordena-se a partir de diálogos, de diagnósticos, de rezas e
de terapêuticas indicadas para cada caso específico, exemplo disso é a
complementação ao tratamento com o uso de remédios feitos à base de plantas 172
medicinais.

Nesse sentido, a benzeção, na função de prática de cura e de cuidado,


promove concomitantemente o trabalho, a educação e, consequentemente, a
humanização. O trabalho da benzeção funda-se a partir da medicina popular,
que, na perspectiva de Oliveira (1985b), caracteriza-se como prática de cura
diante dos problemas sociais enfrentados pelos grupos sociais oprimidos e
marginalizados e, ao mesmo tempo, estratégia de “resistência política e cultural
às práticas que regulam o comportamento daqueles que acreditam que ciência
só se faz na universidade (OLIVEIRA, 1985a, p. 9).

O processo formativo, decorrente da proposta extensionista, tornou


possível a reflexão dos(as) benzedeiros(as) quilombolas de Mata Cavalo na
função de agentes de cura de utilidade pública no que diz respeito à produção
das práticas de cura e de cuidado exercidas na comunidade. A sabedoria da
benzeção que circula nesse contexto elabora-se a partir de outros saberes
peculiares à referida comunidade, tais como os saberes do cerrado, bioma que
contempla a flora local (plantas, cascas, raízes) para a produção dos remédios
associados à prática da benzeção e, para isso, a garantia de seus territórios
tradicionais é essencial para a produção e para o compartilhamento desse saber-
fazer curativo às futuras gerações. Sobre essa questão da importância dos
territórios para a produção da vida, apresentaremos uma breve reflexão a
seguir.

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A natureza e o território como elementos dos bem-fazer

Então, esta conexão, quando eu falo em uma conexão com a


natureza, porque ela... a natureza, gente, ela é um ser
maravilhoso. Porque tudo é por Deus, né? Então, não cai uma
árvore, uma folha de uma árvore, se não for permitido por Deus.
E quando eu busco rezar pra uma pessoa, pra um enfermo,
primeiramente, a Deus e depois pedindo força à natureza.
Porque a natureza, ela vem; o universo, ele consegue captar
muita energia positiva em torno das pessoas... né? Porque... que
bom que as pessoas tivessem, a maioria, esse conhecimento de
falar com natureza, né? Agradecer a natureza. E isso, a gente
recebe uma força assim, é fantástica isso, né? Então ela é uma 173
das que ajuda mesmo, aí, quando cê vai benzer uma pessoa, se
ela tá em casa, cê leva também o conhecimento das plantas, né?
Que é o chá que a gente vai conhecendo, conhecendo aos
poucos, né? (VANILZA, 60 ANOS, QUILOMBO DE MATA
CAVALO, 05/10/2021).

A fala descrita acima, da benzedeira Vanilza, nos diz muito sobre o ofício
da benzeção como trabalho e educação alinhados à potência da medicina,
presente no cerrado de Mata Cavalo, pois a natureza é concebida como fonte de
vida. Dessa maneira, a natureza é compreendida como um ser vivo que emana a
cura e o cuidado, existindo, pois, uma rede de convivência que possibilita a
interação harmônica entre humanos e outros seres não-humanos, revelando-se
uma rica relação de interdependência.

Sobre isso, Krenak (2020), no livro O amanhã não está à venda, convoca
a raça humana a reconectar-se à natureza, preservando-a no sentido de garantir
a existência das gerações futuras. Nesse sentido, podemos refletir e indagar
sobre como garantir a continuidade da vida no planeta sem respeitar os direitos
da natureza? Desse modo, compreendemos que os saberes e os fazeres da
benzeção estão atrelados ao território e à natureza como um ser sagrado, que
oferece os processos de cura e de cuidado.

Falar de território remete-nos a outras tantas questões que perpassam as


diferentes dimensões da vida humana, o que nos interessa aqui é fomentar
problematizações quanto à importância do cerrado, ou seja, do território para a
produção da existência, a interdependência dos(as) benzedeiros(as)
quilombolas com a natureza. Desse modo, entendemos que é nos territórios
tradicionais que a vida acontece, que novos saberes e fazeres são criados,
recriados e compartilhados a partir das necessidades dos seres humanos que,

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juntos, buscam alternativas para superação de suas dificuldades diante das
diferentes problemáticas locais.

Os(as) benzedeiros(as) que vivem em Mata Cavalo ancoram-se no


cerrado para a produção dos seus saberes e fazeres curativos, pois associam as
rezas ao uso de remédios feitos à base de plantas medicinais. O cerrado ao redor
de suas casas, suas hortas caseiras e seus quintais são “verdadeiras farmácias
populares” (ALBUQUERQUE et al. 2016, p. 98), que lhes fornecem a matéria-
prima suficiente para a produção da cura e do cuidado com o próximo. 174

Conforme sinalizam os estudos de Santos (2017), o povo quilombola de


Mata Cavalo, há 126 anos, trava uma luta histórica incansável associada à
resistência contra seus expropriadores (fazendeiros, grileiros, garimpeiros). As
disputas por terras perpassam desde a violência física à simbólica, que resultam
em discriminação, em exclusão e em preconceito. A ineficiência do Estado
burocrático brasileiro, diante dos ataques sofridos por esse grupo étnico, torna o
problema da falta de regularização fundiária mais grave ainda e, de certa
maneira, impulsiona a violação dos direitos humanos desse povo.

Amorim (2017) ressalta que, no ano 2000, os quilombolas de Mata


Cavalo receberam, pela Fundação Cultural Palmares, o reconhecimento e a
formalização da existência de descendentes de escravos africanos no município
de Nossa Senhora do Livramento-MT, atribuindo-lhes o título de comunidade
quilombola. Mesmo diante dessa conquista, os conflitos perpetuam de maneira
acirrada nos territórios tradicionais de Mata Cavalo.

À vista disso, estima-se que no quilombo de Mata Cavalo vivam 415 9


famílias em condições de vida precárias: falta abastecimento de água adequado,
dificuldade de acesso à assistência médica, às habitações insalubres e, também,
“dificuldade de acesso as políticas concernentes aos grupos quilombolas”
(SANTOS, 2017). A produção da existência em Mata Cavalo está estritamente
articulada à cultura e à natureza, sendo essa concebida como um ser vivo que
necessita ser salvaguardada para que seja possível a continuidade do ciclo da

9 Conforme dados apresentados por Amorim (2017, p. 46) em consulta ao cadastro da


associação da referida comunidade.
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vida nesse território quilombola. Sobre essa profunda interação com a natureza,
a benzedeira Paulina Rosária relata:

[...] então, esse que a senhora tem lá é o Jatobá do campo. Lá


em casa, um dia que cês for, na entrada de casa tem um pé de
jatobá, aquele é do campo. E lá dentro da mata, do corgo, tem o
jatobá do mato! Que é o que eu faço xarope. Então o que que
acontece, pra trazer ele pra cá, eu num quis… Num existe
mudinha, é o caroço… É igual essa menina explicou lá, vô
esperar nascer o caroço, pra quando ela tiver grandinha, eu
trago [...]. (PAULINA ROSÁRIA, 60 ANOS, QUILOMBO DE
MATA CAVALO, 06/10/2021). 175

O desenvolvimento do ofício de benzedeiro(a), no contexto quilombola de


Mata Cavalo, requer dos curadores locais da benzeção conhecer as propriedades
curativas que o cerrado dispõe, relacionar esses saberes ao desenvolvimento de
técnicas de plantio, cultivo de plantas utilizadas no preparo de remédios e,
ainda, a produção da reza adequada para cada tipo de mal diagnosticado,
caracterizada como a invocação da cura por meio da oralidade. A produção da
cura e do cuidado fundamenta-se a partir das experiências cotidianas
sustentadas em trocas comunitárias entre esses(as) benzedeiros(as)
inventariados a partir de uma rede de saberes que floresce nesse contexto de
luta e resistência.

[...] Aí, cê fala, dá o nome, faz tudo, trabalha, se esforça, eles


ganha fama. Como falei pra Ingri, Ingri, ela ligou Pai Nenzinho
à lavagem, falei eu to indo mas é uma lavagem mística, si fazer
lavagem como foi aqueles anos, não conta com nóis, se for só
pra usar os quilombolas não precisa contar comigo, daí falei, eu
to indo, pode ficar tranquila. Pego e vou, pra representar o
quilombo, eu vou, tranquilo. Porque a minha terra vale mais, o
meu povo vale mais, porque o mundo que nóis tamos nele hoje,
os povo quilombola é discriminado, ninguém reconhece nóis
como gente, ser humano, é invasor e nóis não invasemo nada,
nóis tamo brigando por causa do nosso direito, e nosso direito
que Deus deu, e vem de uma geração, então ali tá nosso pedaço
de imbigo, ninguém que dá nosso pedaço de imbigo na mão de
fazendeiro, essa que nóis tem que pensar. Eu já pensei em
desistir, já pensei de ir embora, eu já pensei em largar de tudo
embora, e se eu largar? Porque, se todos os terreiros fosse uma
força maior, nóis tinha mais objetivo, mas cada um puxa de um
lado. (SIZERNANDO, 63 ANOS, QUILOMBO DE MATA
CAVALO, 07/10/2021).

O benzedeiro e pai de santo Sizernando, o famoso Nezinho, expressa, em


sua fala, o seu posicionamento político de luta contra os fazendeiros, que

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cercam o quilombo na tentativa de usurpar os territórios tradicionais que
nutrem os saberes ancestrais da comunidade. A discriminação e a opressão são
mecanismos que a estrutura colonial dominante se utiliza com a finalidade de
segregar e de negar os direitos desse grupo étnico à saúde, à educação e,
principalmente, à terra, elemento que torna possível o acesso ao alimento, à
cura e, essencialmente, à produção da vida. Dessa maneira, podemos entender o
território quilombola de Mata Cavalo como um espaço de compartilhamento de
visões de mundos e de vivências de benzedeiros(as) sobre a cura e o cuidado em
seus territórios. 176
Brandão (2002, p. 152) traz a ideia antropológica da educação por meio
da cultura, que torna possível compreender as práticas religiosas – no caso, a
benzeção – como espaços em que o processo formativo acontece pautado na
cotidianidade e nas experiências comunitárias, que se revelam em ricos
“territórios de trocas de bens, serviços e de significados”. Diante disso,
consideramos imprescindível para o bem-fazer da benzeção a interação com a
natureza na qualidade de madre que alimenta e nutre a vida coletiva, a luta
pelos territórios, tornando possível a coesão do grupo que luta e resiste há mais
de um século pelo direito à terra. O reconhecimento da terra como fonte de vida
faz com que esses curadores locais da benzeção fundamentem seus saberes e
fazeres a partir do pulsar da vida, contrariando a mentalidade capitalista sobre a
vida e a saúde, ou seja, a mercantilização da vida.

Sobre uma situação específica, em que foi consultada por uma


profissional da área da saúde, a benzedeira Estivina argumenta sobre as
distinções quanto às terapêuticas realizadas pela medicina popular e àquelas
praticadas pela medicina erudita.

[...] e eu falei, eu num sô gorda, eu tô inchada, e a muié _ ‘não,


cê tá gorda’, _ ah, dotora, mais eu tô gorda como, que se eu num
como coisa desagerada? Ela falou _ ‘não, mais ocê tá’. Falei _
ah! Ainda, ela falou assim _ ‘o que é que cê tomou?’ E eu falei _
é chá de boldo. É chá de boldo. Mas emagrece, esse o boldo daí
emagrece qualquer um. [...] Eles ficaram queto, né? E
perguntaram se eu tenho as plantas aqui medicinal prantada, eu
falei _ eu tenho! eu tenho lá em casa, pode ir lá que eu tenho.
Eu tenho mais fé nos remédios do mato do que dos médicos.
[...] Remédio acaba com o estômago da gente, rebenta tudo!
(ESTIVINA, 61 ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO,
05/10/2021).

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É possível compreender, diante desse relato de Dona Estivina, a maneira
com que a medicina exercida por essa benzedeira se articula à natureza e ao
território para a solução de suas necessidades, ela não ignora a atuação e a
eficácia da medicina erudita exercida pela médica citada, por isso recorre a esse
atendimento. Entretanto, faz menção à preferência por remédios naturais e faz
uma crítica aos remédios industrializados que representam a lógica do capital, a
do lucro. A ciência da benzeção utilizada por Dona Estivina “[..] é gerada
coletivamente, na sua relação direta com os oprimidos. É uma ciência que não
pretende dogmatizar-se nem isolar-se dos valores sociais” (OLIVEIRA, 1985a, p. 177
76).
É essencial compreender que a produção, o compartilhamento do saber e
o fazer da benzeção em Mata Cavalo estão relacionados à terra, considerando,
nessa dinâmica, a luta dessa comunidade pelo direito aos seus territórios
tradicionais e a utilização das técnicas e de práticas criativas no tratamento de
males que atingem as pessoas afetadas. A resistência dessa comunidade
articula-se a partir do enfrentamento a seus expropriadores, à preservação de
seus rios e cerrado, a sua produção de alimentação saudável a partir de seus
roçados, ao plantio e cultivo de plantas medicinais em seus quintais e/ou hortas
caseiras. Sendo assim, entendemos que o ofício da benzeção exercido no
contexto do quilombo também está fundamentado na religiosidade e na
ancestralidade, que garantem a recriação, a continuidade e o compartilhamento
da medicina popular às futuras gerações.

A ancestralidade e a fé a serviço da vida

A partir do processo formativo desenvolvido com os(as) benzedeiros(as)


quilombolas de Mata Cavalo foi possível compreender, mediante observações,
relatos e debates coletivos, o papel da ancestralidade na produção dos saberes e
dos fazeres, concernentes à benzeção entre as gerações e a religiosidade
representada em altares erguidos nas casas, em rezas sussurradas ou oralizadas;
e a reverência aos santos ou a entidades espirituais de devoção tão comum entre
esses homens e mulheres que exercem a benzeção. Quando perguntados(as)
sobre quem os(as) havia ensinado a benzer, os curadores da benzeção
responderam:

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[...] eu pratiquei com meu pai. [...] É. Meu pai foi benzedor. [...]
Morou uns tempo. Aí depois ele faleceu. Ele era baiano. [...] É.
Eu aprendi com ele. [...] Eu só olhando ele fazer, ele nunca me
ensinou. (EMILIANO VENÂNCIO, 67 ANOS, QUILOMBO DE
MATA CAVALO, 06/10/2021).

[...] ó, eu, nóis já viemos de geração em geração, né? Porque o


Marcelino que era escravo, que era dono do terreiro maior aqui
do Mata Cavalo. Era lá...daí ficou pra minha vó. [...] Marcelino
Paes de Barros, ele era escravo. [...] Então são nossos
antepassados, né? Aí, ele foi pra mãe de minha vó, daí que ficou
eu. Eu, quando entrei pro Terreiro, tinha 10 anos, eu tô com 63
anos. (SIZERNANDO, 63 ANOS, QUILOMBO DE MATA 178
CAVALO, 07/10/2021).

[...] meu pai era analfabeto, num escrevia não, mas tem uma
sabedoria. Eu, eu assisti ele curar pessoas com lepra, que num
tinha nem cabelo mais na cabeça. E, com isso, me interessei
mais em aprofundar em remédio caseiro. ((PAULINA
ROSÁRIA, 60 ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO,
06/10/2021).

[...] sozinha. Foi ouvindo assim, eu aprendi sozinha. [...] Foi é,


na verdade, eu aprendi benzer com uma tia, de benzer de arca
caída. [...] Foi aí que aprendi benzer com ela, Hoje já
morreu. [...] Hunrrum! Aí, o… com, aprendi benzer assim, eu
tenho minhas oração e fui confiando nela e fui benzendo, né?
Fiquei benzendo os povo confiando, traz as criança pra mim
benzer e eu benzo. (LÚCIA CONCEIÇÃO, 66 ANOS,
QUILOMBO DE MATA CAVALO, 05/10/2021).

[...] até hoje eu tenho a casca de cágado d’água que papai deixou
pra mim. Pra eu pôr na garrafada e dá pra bebê recém-nascido.
[...] Papai ensinou muita oração, mais eu faço oração pros’otro,
ninguém duvide que eu faço. Eu sei como fazer minha oração,
do jeito que ele me ensinou. Se eu quiser hoje à noite fazer uma
oração pro senhor, o senhor pode viajar como fora, que eu tô te
acompanhando. Do jeito que ele me ensinou. É pra criança, é
pra adulto. Pai dele, pai dele benzia gente até com pau. O pai do
meu pai. Ele podia tá andando pro mato, se ele encontrasse com
o senhor e falasse assim ó: ‘ocê num tá bem’, já tirava o chapéu
e te benzia ali mesmo no meio do mato e já panha um pedaço de
pau e benzia. Eu, quando era criança, eu num alcancei as
palavra dele. Eu vi ele, mas ele, porque ele era um, um baita
dum negão alto e barbudo, e eu tinha medo dele (risos).
(ESTIVINA, 61 ANOS, QUILOMBO DE MATA CAVALO,
05/10/2021).

Conforme Sousa e Albuquerque (2021) nas práticas e nos saberes de cura


existem uma dimensão formativa que se desdobra na educação com o auxílio da
prática social, diferentemente da educação institucionalizada, a educação do

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cotidiano é feita, refeita e compartilhada em um contexto específico. O aprender
com os antepassados faz com que a prática da benzeção seja ensinada e
aprendida, ou seja, esses “saberes aprendidos no cotidiano formam homens e
mulheres para a vida. Ao entrar em contato com eles, por meio de suas
experiências socioculturais, esses conhecimentos tendem a ser incorporados à
cultura familiar” (SOUSA E ALBUQUERQUE, 2021, p. 139).

O ofício da benzeção, praticado e exercido pelos antepassados ainda em


situação de escravidão no quilombo de Mata Cavalo, aponta para a 179
inventividade com que os quilombolas elaboravam seus modos próprios de lidar
com as mazelas da vida, como a produção e a vivência de suas raízes culturais
nos terreiros e/ou igrejas da comunidade. Desse modo, são (re)criadas
estratégias para fortalecer seus saberes e seus fazeres curativos nesse contexto
de luta e resistência ante os seus expropriadores e diante da dificuldade de
acesso a médicos e a hospitais, forçando, ao longo dos tempos, os quilombolas
de Mata Cavalo a recriarem as práticas de cura e de cuidado, tais como: a
benzeção, as garrafadas, os chás, os lambedores, os emplastos, ou seja, os
remédios feitos a partir da natureza. Elegendo, dessa maneira, os(as)
benzedeiros(as) como uma especialidade dos curadores locais no trato e no
cuidado com as pessoas da comunidade, como também suas produções de
remédios, que se revelam em laboratórios de experimentos e farmácias vivas.

Quando alguns benzedores mencionam que aprenderam o ofício da


benzeção sozinho, ou, como relata o benzedor Clemêncio, “[...] Deus que me deu
essa inclinação pra mim. [...] É, Deus que me deu. Ninguém me ensinou, foi
providência divina”, isso denota que a educação processada na prática da
benzeção deu-se pela “postura de observação, silêncio ou escuta” (SOUSA E
ALBUQUERQUE, 2016, p. 239). Desse modo, inferimos que a aprendizagem
consolidou-se de modo solitário, porém olhando e escutando os mais
experientes na prática da benzeção. Nesse sentido, a educação processada por
meio da benzeção ancora-se em gestos, sussurros, rezas, escuta atenta,
observação minuciosa e sabedoria da produção e elaboração de remédios.

A dimensão religiosa é central ao ofício da benzeção no quilombo de


Mata Cavalo, onde a devoção aos santos católicos complementa o fazer curativo

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da benzeção. Os santos são agentes que auxiliam na cura e no cuidado do
benzido, a invocação da potência curativa articula-se a partir do Deus pai, o
Espírito Santo, Deus filho, dos santos de devoção e das palavras do(a)
benzedeiro(a). A religião católica é a mais praticada na comunidade, no entanto,
temos benzedeiros(as) adeptos da umbanda e do candomblé, que são
auxiliados(as) também por suas entidades espirituais.

Tanto as igrejas católicas quanto os terreiros são espaços comuns, em que


os(as) benzedeiros(as) do quilombo de Mata Cavalo buscam forças espirituais e 180
orientação para prosseguir curando e cuidando das pessoas na comunidade.
Conforme alguns relatos, a benzeção é uma atividade que “puxa” muito a força
do(a) benzedeiro(a), por isso, eles devem estar sempre preparados, fortalecidos
e protegidos pelos seres não-humanos.

Constatamos, a partir do processo formativo, a importância da


religiosidade e da ancestralidade para a promoção dos saberes e dos fazeres
curativos concernentes à prática da benzeção no quilombo de Mata Cavalo, e
como essas são essenciais para compartilhar esse ofício às novas gerações.
Como relatou-nos o benzedor Emiliano Venâncio, numa oficina formativa:

[...] eu já benzi muito e ainda tô benzendo. E o povo que benzia,


tá morrendo. Tá cabando. Então ela falou um, um, um ditado,
que tá cabando as pessoas que benze, né? Então, ocê tem que
olhar e retificá que, no lugar que a gente tá, tem que ficar outro,
igual você falou ai aquecida, né? Então a gente mexe, cê já vai
preparando outra pessoa para que signifique que fique no seu
lugar. Porque o troço, ele vai andando, retificando, ele num fica
parado. Isso aqui gira como se fosse o mundo, o mundo é uma
bola, mas tem gente que fala assim: ‘o mundo é parado’. Não! O
mundo gira, a Terra gira. Hum. Ela gira. Então nós giramos
junto, então nós temo que fazer e deixar, porque um dia, se nóis
faltá, tem aquele pra cobrir, aquele nosso componente, aqueles
que tão nascendo, né? E vem subindo. Esse, nós temos é
obrigatoriamente deixar esses ensinos, porque próprio a palavra
de Deus cobra. (EMILIANO VENÂNCIO, 67 ANOS,
QUILOMBO DE MATA CAVALO, 23/11/2021).

Quintana (1999) entende a benzeção como uma prática social que se


altera e se dinamiza ao longo do tempo, esse ofício, que se reconstrói
permanentemente. Dessa maneira, os(as) benzedeiros(as) elaboram seus
próprios sentidos articulados com a esfera social, a benzeção jamais será uma

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prática estática, pois esse trabalho modifica-se a partir da realidade, da
criatividade e da inventividade presentes no quilombo de Mata Cavalo.

Existe uma preocupação por parte desses(as) benzedeiros(as) no que


tange à continuidade do exercício da benzeção na comunidade, tendo em vista
que as novas gerações apresentam pouco interesse para aprender a prática da
benzeção. Embora haja essa constante preocupação, felizmente, pelos relatos
desses(as) curadores(as) locais, alguns jovens já vêm iniciando nesse campo de
atuação, como descreve a benzedeira Paulina Rosária (60 ANOS, QUILOMBO 181
DE MATA CAVALO, 23/11/21): “óia, é que nem a neta dessa daqui, ela num
sabe que a Nanda vai ser benzedeira. Ela já pede pra benzer. Um dia, cheguei lá,
ela pegou e falou assim, primeiro eu benzí ela, depois ela falou assim: ‘tia, deixa
eu benzê a senhora?’ E pegou a foia, diz que foi me benzer”.

No ofício da benzeção, as vertentes religiosas associam-se ao exercício da


fé, que tem a crença e o amor como mecanismos para que a produção da vida
floresça e seja compartilhada no quilombo. Desse modo, a espiritualidade e os
saberes e os fazeres curativos da benzeção no contexto de Mata Cavalo são
ensinados e aprendidos por meio da ancestralidade, que contempla as
influências do catolicismo, como, também, de outras religiões de matriz africana
(umbanda e candomblé). Assim sendo, o processo de ensino e aprendizagem da
benzeção fundamenta-se a partir do poder da palavra, da observação, da escuta
atenta e da imitação, que permite que os(as) benzedeiros(as) transitem entre o
mundo material e o espiritual, nesse último, com o auxílio dos seus santos
católicos e/ou das entidades espirituais, para garantir a eficácia no trabalho e o
reconhecimento social pela comunidade da figura do(a) benzedeiro(a)
quilombola de Mata Cavalo.

Considerações finais

O processo formativo realizado a partir da proposta extensionista


“Conhecimentos tradicionais e o direito de reconhecimento de benzedeiras e
benzedores do quilombo de Mata Cavalo/Nossa Senhora do Livramento”,
possibilitou-nos adentrar no universo dos(as) benzedeiros(as) do quilombo de
Mata Cavalo, compreender suas visões de mundo, bem como as suas lutas

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territoriais como fator indispensável para a produção de suas existências. O
ofício da benzeção, nesse contexto, está associado à interdependência desses
curadores locais com as plantas medicinais do cerrado, com a ancestralidade e
com a religiosidade que regam as práticas de cura e de cuidado concernentes à
benzeção.

O modo de ser benzedeiro(a) no quilombo de Mata Cavalo fundamenta-


se a partir dos saberes e dos fazeres curativos, os quais emergem por meio da
experiência que se dá no cotidiano das relações sociais. A habilidade de 182
manipular as palavras de cura, as rezas específicas para cada mal e a sabedoria
adquirida proveniente do cultivo e das técnicas de preparo de remédios feitos
das plantas medicinais (cascas, sementes, raízes, frutos, flores) são aprendidos,
elaborados e compartilhados a partir da observação criteriosa da escuta atenta e
da imitação.

A educação que se processa por meio da benzeção não está relacionada ao


âmbito da educação formal, mas situa-se no campo da vida cotidiana e do
conhecimento, saberes e fazeres criados, recriados e compartilhados diante da
situação de vulnerabilidade social cujos(as) quilombolas vivem na referida
comunidade. A luta pela terra, pela preservação do cerrado, pelo acesso à água
potável, pela soberania alimentar são direitos que os(as) benzedeiros(as) e
outros moradores do quilombo reivindicam, em virtude dos atos negligentes dos
seus expropriadores e dos diferentes níveis de governo, no cotidiano de luta, de
opressão e de discriminação vivenciados por esses sujeitos sociais. O ofício da
benzeção, exercido no quilombo de Mata Cavalo, requer coragem, coletividade,
fé na luta e na resistência contra os ditames da classe dominante, para garantir a
produção de saberes e de fazeres alinhados aos seus territórios tradicionais, à
espiritualidade e à ancestralidade.

O desenvolvimento da proposta extensionista possibilitou-nos, na função


de pesquisadores(as), conhecer e problematizar a benzeção como possibilidade
de trabalho, de formação humana e de manutenção da vida em um contexto
quilombola de luta e de resistência, esse ofício tradicional, que insurge a lógica
cartesiana e capitalista, manifesta-se como uma estratégia que se contrapõe à
expropriação da vida. Nesse sentido, os diálogos estabelecidos, entre a

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universidade e os curadores locais, traz, para o âmbito acadêmico, essas outras
educações elaboradas por essa comunidade subalternizada, e possibilita o
reconhecimento, a valorização e o protagonismo dos(as) benzedeiros(as)
quilombolas no ofício de curar, de cuidar e de educar no cotidiano quilombola
local.

Diante dessas breves reflexões, apontamos outros espaços possíveis para


a consolidação do ensino e da aprendizagem, seja no cerrado, sejam nos
quintais ou nos terreiros do quilombo de Mata Cavalo, para além disso, a prática 183
da benzeção rompe com a ideia ocidentalizada de que a educação processa-se
apenas por meio da escola e pelas matrizes da ciência moderna. Apresentamos,
neste texto, novas bases epistemológicas para pensar não somente a educação
não escolar, como também evidenciar o protagonismo de outros mestres da
educação: os(as) benzedeiros(as) quilombolas de Mata Cavalo, os(as) quais
cuidam, curam e educam, integrando a dimensão mágico-religiosa em seu
trabalho, revelando-se em autênticos(as) doutores(as) do cerrado.

Referências

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