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Renata Carneiro Vieira Ensp Mest 2022

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Renata Carneiro Vieira

A Lesbofobia no processo de Saúde e Adoecimento de mulheres lésbicas no Complexo da


Maré-RJ

Rio de Janeiro
2022
Renata Carneiro Vieira

A Lesbofobia no processo de Saúde e Adoecimento de mulheres lésbicas no Complexo da


Maré-RJ

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Saúde Pública, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, na
Fundação Oswaldo Cruz, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Saúde Pública.
Área de concentração: Políticas Públicas,
Gestão e Cuidado em Saúde.

Orientadora: Prof.ª Dra. Valéria Ferreira


Romano.

Rio de Janeiro
2022
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Renata Carneiro Vieira

A Lesbofobia no processo de Saúde e Adoecimento de mulheres lésbicas no Complexo da


Maré-RJ

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Saúde Pública, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, na
Fundação Oswaldo Cruz, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Saúde Pública.
Área de concentração: Políticas Públicas,
Gestão e Cuidado em Saúde.

Aprovada em: 29 de julho de 2022.

Banca Examinadora

Prof.ª Dra. Erotildes Maria Leal


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof.ª Dra. Cristiane Batista Andrade


Fundação Oswaldo Cruz – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

Prof.ª Dra. Valéria Ferreira Romano (Orientadora)


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2022
AGRADECIMENTOS

A Dayana Gusmão, por ter incentivado este trabalho desde as primeiras ideias, ter
“autorizado” minha entrada na Maré e em sua vida. Cresço imensamente ao caminhar com você
e é sempre um prazer te ouvir.
A Valéria Romano, minha orientadora querida, por ter me escolhido, por me encorajar
a me envolver, me implicar, me abrir, me colocar e me mostrar nesse projeto. Com qualquer
outra pessoa isso não teria saído. Obrigada pelo estímulo e por estar ao meu lado.
A Rita, minha parceira de vida, por pensar cada passo desse projeto comigo, escrever
ao meu lado, criticar, refletir, me inspirar, me ensinar e me permitir transbordar. Eu não poderia
sonhar com melhor companheira para estar ao meu lado. Obrigada por estar sempre, pelo colo,
pela paciência, pela cumplicidade e amor.
A Denize, que me ensinou que eu podia confiar de novo, que sempre foi família e está
sempre do meu lado. Por tantos anos de parceria e cumplicidade, por tanto. Eu não teria chegado
onde estou sem você. E Vandrea, Bruna e Diangeli, nossa família paulistana.
Vini, por ter segurado minha mão e me levado a tantos lugares, físicos e emocionais.
Você veio mudar a minha vida, me mostrou que eu podia ser quem eu sou e me tornou melhor.
Ao Rico, quem desde sempre esteve do meu lado. Meu maior presente, minha casa,
agradeço por você existir. E Ju, família que ganhei, que amo e que é tão importante.
A Sara, minha irmã de vida, que tornou possível minha sobrevivência na Volta Redonda
dos anos 90 e se manteve ao meu lado em cada passo, que distância nenhuma diminuiu a
presença ou a importância.
A Ivi, que também foi casa, parte da família que escolhi construir e ainda é um pedaço
de mim. Obrigada por ter me apresentado tanta coisa e me tirado da caixinha tantas vezes. E a
Moisés e Mariana, amigos amados e companheiros de caminhada.
A Monique, Camila, Carol, Gabi, Mari Bretas, Raquel, Renan e Ju Montez. Nosso
“isolamento” tornou a caminhada, além de possível, muito mais leve. Num curso que acabou
se tornando à distância, vocês estiveram presentes em todos os momentos.
À AMFaC, que me proporcionou o primeiro espaço para falar de lésbicas e sempre foi
terreno fértil para pensar o cuidado em saúde e o SUS com equidade e justiça social.
Especialmente Débora Teixeira, Débora Junqueira, Marcele, Thais Façanha, Rayane, Gabriel
Velloso, Melanie, Jorge, Ana Melodias, Carol Toffoli (e novamente Moisés e Rita, claro).
E a Laura, Lucas, Luís, Raul, Ana Clara, Aluá, Akin, Rosa, Nina, Maria, Carlos, Zayon
e Lia, pelo olhar sem preconceito e por me ensinarem tanto amor.
RESUMO

Estudos internacionais demonstram que mulheres lésbicas têm maior prevalência de


determinados problemas de saúde, o que pode ser atribuído ao constante sofrimento pela
lesbofobia. Entretanto, estes estudos são realizados predominantemente com mulheres brancas,
com alta escolaridade e renda, sendo, portanto, difícil generalizar seus dados para lésbicas
brasileiras, especialmente em favelas e periferias, pelas condições de vida e pelas outras
opressões que atravessam a existência destas mulheres. Esta pesquisa propõe um olhar para a
lesbofobia e suas relações com o processo saúde-adoecimento, no contexto do Complexo da
Maré, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, tendo
como método a História Oral, onde o olhar sobre o passado e sobre o presente ofertam um
contexto histórico e cultural para o tema abordado. Foi realizada uma entrevista em
profundidade com uma mulher lésbica, favelada que, tendo muito a dizer sobre a lesbofobia,
trouxe abrangência e novos sentidos para a construção de uma identidade lésbica e para suas
relações com o processo saúde-adoecimento.

Palavras-chave: lésbicas; saúde; comunidade; preconceito.


ABSTRACT

International studies show that lesbian women have a higher prevalence of certain health
problems, which can be attributed to the constant suffering from lesbophobia. However, these
studies are predominantly carried out with white women, with high schooling and income, and
it is therefore difficult to generalize their data to Brazilian lesbians, especially in favelas and
peripheries, due to the living conditions and other oppressions that cross the existence of these
women. This research proposes a look at lesbophobia and its relations with the health-illness
process, in the context of Complexo da Maré, one of the largest favelas in Rio de Janeiro. This
is qualitative research, using the Oral History method, where the look at the past and the present
offer a historical and cultural context for the topic addressed. An in-depth interview was
conducted with a lesbian woman from a favela who, having a lot to say about lesbophobia,
brought scope and new meanings to the construction of a lesbian identity and to her
relationships with the health-illness process.

Keywords: lesbians; health; community; preconception.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Modelo de estresse de minorias sexuais.................................................... 26


Figura 2 - Estresse de minorias sexuais..................................................................... 27
Figura 3 - Mapa Sensorial exposto no CEASM......................................................... 39
Figura 4 - Mapa do Complexo da Maré..................................................................... 42
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAFP American Association of Family Phisician


ABL Associação Brasileira de Lésbicas
AMFAC Associação de Medicina de Família e Comunidade do Rio de Janeiro
APS Atenção Primária à Saúde
CBC Currículo Baseado em Competências
CBMFC Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade
CEASM Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
GT Grupo de Trabalho
GT Sex Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos
HPV Human papillomavirus, sigla em inglês para Papilomavírus humano
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros Lésbicas,
LGBTIA+ Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Intersexuais,
Assexuais e o símbolo + simboliza as demais orientações sexuais e identidades
de gênero
LGBTQA Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Queer e
Assexuais
MFC Medicina de Família e Comunidade
mFC Médica de Família e Comunidade
MSM Mulheres que fazem sexo com mulheres
ONG Organização não governamental
PNSILGBT Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Travestis e Transgêneros
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
SBMFC Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
SINAN Sistema de Informação de Agravos de Notificação
SUS Sistema Único de Saúde
UFF Universidade Federal Fluminense
UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 12
2 OBJETIVOS................................................................................................. 17
2.1 OBJETIVO GERAL...................................................................................... 17
2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS......................................................................... 17
3 HOMOFOBIA NÃO, LESBOFOBIA........................................................ 18
4 HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA....................................... 20
5 A LESBIANIDADE NA HISTÓRIA......................................................... 24
6 SAÚDE DE MULHERES LÉSBICAS...................................................... 25
6.1 O PROCESSO DE SAÚDE E ADOECIMENTO......................................... 25
6.2 A RELAÇÃO COM OS SERVIÇOS DE SAÚDE........................................ 29
7 O SUS E A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE....................................... 32
8 A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E A SAÚDE DE
LÉSBICAS..................................................................................................... 34
9 O COMPLEXO DA MARÉ......................................................................... 37
10 METODOLOGIA......................................................................................... 46
10.1 ANÁLISE DE DADOS.................................................................................. 48
10.2 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS........................................................................ 48
10.3 RISCOS E BENEFÍCIOS PARA A PARTICIPANTE DA PESQUISA......... 49
10.4 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.................... 49
10.5 CUSTOS RELACIONADOS À PESQUISA................................................. 49
11 RESULTADOS E DISCUSSÃO................................................................. 50
11.1 ANCESTRALIDADE.................................................................................... 50
11.2 A MARÉ DE DAYANA................................................................................. 51
11.3 PROTESTANTISMO.................................................................................... 53
11.4 VIVÊNCIA LÉSBICA................................................................................... 54
11.4.1 Entendendo-se e assumindo-se lésbica....................................................... 54
11.4.2 Violências lesbofóbicas................................................................................ 56
11.5 MOVIMENTO SOCIAL............................................................................... 60
11.6 SAÚDE.......................................................................................................... 62
11.7 UMBANDA................................................................................................... 64
11.8 CASA RESISTÊNCIAS................................................................................ 66
12 CONCLUSÃO.............................................................................................. 70
REFERÊNCIAS........................................................................................... 73
ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO...........................................................................................
78
APRESENTAÇÃO

Sou uma mulher branca, cisgênera, lésbica, médica de família e comunidade, vivendo
no Brasil (e na cidade do Rio de Janeiro) em 2022. Enquanto escrevo, estamos vivendo a
pandemia de COVID-19 sob o (des)governo Bolsonaro e é difícil explicar esse momento/lugar
para alguém que não esteja por aqui agora. Enquanto ideias ultraconservadoras vêm ganhando
cada vez mais força no país, o sujeito que ocupa a Presidência da República estimula que
preconceito e ódio se manifestem nos espaços públicos e privados. Como se não bastasse a livre
expressão de misoginia, racismo e LGBTfobia, as forças conservadoras que dominam este país
escolhem a necropolítica como política de governo e o coronavírus, que se espalhou por todo o
mundo, por aqui se tornou mais um instrumento de morte.
Enquanto lesbofóbicos perderam qualquer pudor em demonstrar seu ódio nas ruas e nas
redes sociais, nosso medo só cresce. Apesar disso, insisto em não esconder meu afeto. Andar
de mãos dadas com minha esposa, nos beijarmos na rua, é também um ato político. Sei que
estamos protegidas pela minha branquitude, por nosso endereço da Zona Sul e pelo status, a
renda e a facilidade de encontrarmos empregos que o diploma de medicina nos dá. Ainda assim,
já levamos gritos na cara, já sofremos empurrões e assédio e os olhares são diários.
De qual lugar de fala falo da vida de sapatonas na favela? O da médica que sempre
trabalhou em favelas e não encontra na literatura escritos que caibam na vivência das lésbicas
que encontrei nesse caminho, que traduzam o que vejo e que me tragam ferramentas para atuar
na realidade em que atuo. Pensei em estudar como os futuros médicos estão sendo formados
para cuidar de mulheres lésbicas na favela, como profissionais da atenção primária identificam
estas mulheres e como lidam com suas demandas ou até como as lésbicas da favela enxergam
e usam o sistema de saúde. Mas espero que elas me falem um pouco sobre si, seus processos de
saúde e adoecimento e as práticas de cuidados que têm e que gostariam de ter, porque acredito
que qualquer tipo de cuidado precisa partir daí.
Trago aqui um pouco da história da vida de uma mulher que conheço há alguns anos e
que desde o primeiro momento me inspira. Uma mulher incrível, forte, sensível, com uma
energia transformadora que atinge a tudo e a todos que a cercam. Sei que foi também um
privilégio ouvi-la falar de sua vida, seus valores, suas crenças e agradeço imensamente a
confiança em mim e na proposta de afetar positivamente a vida de outras lésbicas e de
profissionais de saúde.
Espero, neste trabalho, somar minha voz à dela e usar este lugar de privilégio para
mostrar a força, a resistência e as potências das mulheres lésbicas do Complexo da Maré.
Acredito que estes escritos também são um ato político e quero, com eles, me posicionar e me
comprometer com a luta pela vida e pela saúde das mulheres lésbicas, especialmente as que
vivem em favelas e periferias, e por uma Medicina de Família e Comunidade que brigue pela
equidade e por um Sistema Único de Saúde público, gratuito e de qualidade.
Neste texto, escolho apresentar as autoras e os autores que trago contando um pouco do
seu lugar de fala, sempre que possível informando identidade de gênero, raça, orientação sexual
e formação, porque acredito que são aspectos que influenciam a forma como olham para e
interpretam o mundo e que isso merece ser conhecido quando as(os) “ouvimos”.
12

1 INTRODUÇÃO

O interesse em estudar saúde de mulheres lésbicas nasce de três locais: o de me entender,


me aceitar e me assumir como mulher lésbica; do encontro com o movimento social e o relato
das lésbicas sobre seus atendimentos em saúde, carregados de sofrimento e medo; e de, como
médica de família e comunidade (mFC), perceber a lacuna sobre o cuidado de lésbicas na
formação em saúde e o quanto os estudos existentes sobre saúde de lésbicas eram insuficientes
para me dar ferramentas para a ação na minha realidade de trabalho.
Assumir-se lésbica é um processo doloroso. Aceitar que você não se encaixa no que é
tido como normal é se perceber parte do grupo que em toda sua vida você também entendeu
como errado, imoral ou doente. Esse sentimento vem acompanhado do medo (muitas vezes da
certeza) da ruptura das relações familiares e de amizade, da perda do emprego, de ser expulsa
da comunidade religiosa, de não corresponder às expectativas.
Quando tive meu primeiro relacionamento lésbico, ainda no início da adolescência, foi
tudo muito confuso. Não entendia o que estava sentindo, demorei a perceber que aquela
amizade “maior” era paixão, não aceitei que estar apaixonada por outra menina me tornava
lésbica - aquela imagem “nojenta”, errada, que tinha em relação a mulheres que ficavam com
outras mulheres no meio da década de 90. Acreditei que podia viver a relação que estava
descobrindo sem refletir sobre ela, sem nomeá-la, sem conversar sobre isso nem mesmo com a
“amiga” que estava comigo. O meu preconceito internalizado e a reação que as pessoas tiveram
tornou tudo muito doloroso. No momento em que, aos 15 anos, não conseguimos mais lidar
com o cenário de brigas e medos, nos afastamos e de alguma forma decidi viver como se nada
daquilo tivesse acontecido. Era mais dor do que eu podia lidar e o que consegui foi “empurrar”
para algum canto bem escondido dentro de mim tanto o amor e o desejo sexual que tinha por
ela, quanto a ruptura de vínculos familiares e de amizade que havia tido.
Reprimi tanto as lembranças – boas e ruins – quanto o desejo que poderia ter por outras
mulheres e por muitos anos me relacionei com homens, até conseguir acessar novamente meus
sentimentos e me permitir viver minha sexualidade. Ao longo de quase 20 anos em que me
escondi e não me aceitei, vivi esse sofrimento de diversas formas: gastrite, enxaqueca, dor de
ovulação, depressão, perda de peso, dor cervical, excesso de sono, ganho de peso, insônia,
pneumonia, choro fácil, irritabilidade. Passava todo o tempo me vigiando para controlar algo
que nem sabia bem o que era e atenta ao meu redor, sempre alerta para possíveis olhares,
julgamentos, agressões. Passar por uma experiência traumatizante de diversas formas de
13

violência transformou a forma de me relacionar com outras pessoas e, com isso, influenciou (e
ainda influencia) meu autocuidado, minha saúde e meus processos de adoecimento.
Depois de ter me assumido lésbica e ter tomado consciência dessa relação estreita entre
o sofrimento decorrente da lesbofobia e meus sintomas e problemas de saúde, decidi buscar
informações sobre as especificidades de saúde de mulheres lésbicas, mas, sem me surpreender,
percebi que há poucas pesquisas e publicações sobre esse tema, principalmente no cenário
brasileiro (FACCHINI; BARBOSA, 2006). A partir dessa demanda pessoal refleti sobre meu
papel como médica de família e comunidade e entendi que precisava usar meus privilégios – a
branquitude, a alta escolaridade, a independência financeira, o status social como médica, o
contato próximo com outros profissionais de saúde – para divulgar o conhecimento que estava
conseguindo encontrar para o maior número possível de pessoas, principalmente profissionais
de saúde e mulheres lésbicas.
Em um misto desse sentimento de querer ajudar outras mulheres com a busca por rede
de apoio para mim mesma, procurei por espaços de militância social de lésbicas, onde
acreditava que poderia encontrar pares e a possibilidade de lutar ao lado delas, dando
significado e utilidade ao sofrimento que vinha vivendo. Fui ao primeiro espaço político
LGBTI+ de mãos dadas com um amigo que foi essencial no meu processo de me aceitar e
entender, que foi o primeiro a ouvir minhas confissões e que esteve sempre ao meu lado. Fomos
a uma reunião do setorial LGBTI+ do PSOL e lá conheci outra pessoa que marcaria a minha
vida: Michele Seixas, mulher lésbica, negra, favelada, hoje amiga e parceira, que falava sobre
o grupo de planejamento familiar de sua Clínica da Família, o quanto ele não tinha nenhuma
relação com sua vivência e suas demandas e como iria à próxima reunião daquele grupo e
exigiria que fossem abordadas as possibilidades de reprodução assistida para casais de mulheres
lésbicas cisgêneras.
A partir desse encontro soube que estava sendo organizada pela mandata da vereadora
Marielle Franco – também uma mulher lésbica – uma frente unindo coletivas e grupos de
lésbicas do Rio de Janeiro em torno da criação do Projeto de Lei do Dia da Visibilidade Lésbica.
Comecei a participar de grupos virtuais e reuniões e organizamos juntas algumas atividades
para discutir assuntos de saúde com grupos de militantes lésbicas. Nessas atividades, ouvi
diversos relatos de violências sofridas por elas em consultas médicas e nas unidades de saúde.
Indicações erradas de exames e medicamentos, negação de consultas e exames, queixas não
validadas, orientações que não faziam nenhum sentido para elas. Todas as meninas tinham
muitas dúvidas sobre saúde sexual, não conheciam nada ou quase nada sobre direitos
reprodutivos e nenhuma delas disse que já tinha sido abordada em relação a saúde mental, a
14

violência ou uso de substâncias por qualquer profissional de saúde. Apesar de já ter lido
pesquisas que diziam que as mulheres lésbicas não conseguiam sequer revelar sua orientação
sexual ao profissional de saúde e que, quando o faziam, vivenciavam preconceito e
desconhecimento de suas especificidades, foi assustador ouvir as histórias nas vozes das
mulheres que as haviam vivido.
Duas histórias foram muito marcantes: uma mulher atendida na Clínica da Família do
seu bairro informou que só se relacionava com mulheres e que nunca tinha tido qualquer tipo
de penetração vaginal, mas o médico insistiu em fazer um exame especular e rompeu seu hímen
de forma agressiva, com muita dor e sangramento; e uma menina evangélica que havia buscado
ajuda de um profissional que também era da igreja e foi encaminhada para uma “clínica de
reabilitação” onde, entre outras violências, foi estuprada diariamente, segundo ela mesma “para
aprender a ser mulher”. As mulheres que participaram das oficinas que fizemos eram lésbicas
que assumiam publicamente sua sexualidade, participavam de movimento social, tinham
consciência do quanto eram oprimidas e agredidas por sua orientação sexual, tinham rede de
apoio (mesmo que fosse apenas as companheiras do movimento) e ainda assim tinham pouca
ou nenhuma informação de saúde e passaram por diversas situações no mínimo constrangedoras
com médicos e outros profissionais de saúde. Os grupos eram diversos, tinham desde
trabalhadoras da construção civil até advogadas e professoras universitárias com doutorado, e
nenhuma delas sabia como se transmite o papilomavírus (HPV) ou se precisavam ou não fazer
rastreamento de câncer de colo de útero.
Na construção e realização dessas atividades, ficou nítido também o quanto boa parte
das (poucas) informações que eu tinha conseguido encontrar sobre saúde de lésbicas não se
aplicavam à realidade que vivemos. Os estudos são majoritariamente norte-americanos e
europeus, realizados com mulheres lésbicas brancas, jovens, de classe média ou média-alta,
com alto nível de escolaridade (FACCHINI; BARBOSA, 2006), vivendo em realidades muito
diferentes da brasileira, especialmente a de favelas e periferias. Como achar que um estudo
realizado entre lésbicas norueguesas, ricas, na casa dos 30 anos, que diz que se assumir
socialmente como lésbica é fator de proteção para saúde mental é útil para pensar sofrimento
de uma menina preta que mora em Rio das Pedras, que recém se entendeu lésbica, e é
financeiramente dependente de uma família evangélica?
A experiência das oficinas e a convivência com essas mulheres me trouxe a certeza de
que há muita coisa a se fazer para que o cuidado em saúde de lésbicas tenha alguma qualidade
e garanta um mínimo de dignidade. A partir daí comecei a fazer atividades com médicos de
família e comunidade, residentes e outros profissionais de saúde. Desde 2017, junto com outros
15

colegas mFC que fazem parte do Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade, Diversidade e
Direitos (GT Sex) da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) fiz
oficinas, mesas redondas, palestras e rodas de conversa sobre saúde de lésbicas para esse
público. Na maior parte das vezes os participantes tinham ouvido falar nada ou pouco sobre o
assunto. As dúvidas se repetem, especialmente acerca das possibilidades de transmissão e
prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST) no sexo entre duas mulheres com
vulva, das indicações de rastreamento de câncer de colo de útero e da abordagem da família e
das várias formas de violência (VIEIRA; BORRET, 2020). Pude perceber que mesmo a
Medicina de Família e Comunidade, que se pretende integral e centrada no indivíduo, ainda não
é capaz de identificar e acolher os sofrimentos específicos causados pela marginalização e
exclusão social sofridos por quem não só é uma mulher numa sociedade machista, como ama e
vive com outras mulheres.
Vinda de uma família de classe média, branca, do interior do estado do Rio, comecei a
ter contato com o território de algumas favelas na graduação. Estudei na Universidade Federal
Fluminense (UFF), que me trouxe a possibilidade de ampliar a visão do mundo desde muito
cedo - vamos ao campo discutir compreensões de saúde antes de entrar pela primeira vez no
anatômico ou em serviços de saúde. Em contato com o Programa Médico de Família de Niterói
e com algumas atividades de educação em saúde não só me encantei com a saúde da família e
a possibilidade de praticar um cuidado integral e longitudinal, mas também compreendi um
papel muito além do prescritivo. No movimento estudantil ganhei ferramentas e tive contato
com outras formas de olhar para os territórios - desde as atividades do grupo do Teatro do
Oprimido até relações com o Movimento dos Sem Terra me mostraram o que diz o texto de
Gondim e Monken (2018), de que o território é um espaço onde a vida acontece e deve ser
visto:

[...] não só como lócus de moradia e depositário final de eventos, mas, sobretudo,
como lugar de produção e reprodução social, de trocas materiais e simbólicas e de
convivência entre pessoas, enfim, voltado para toda forma de manifestação da vida
social cotidiana (GONDIM; MONKEN, 2018, online).

Os territórios nas favelas têm dinâmicas próprias e únicas e não é possível falar numa
uniformidade sob o termo “favelas cariocas”. De lugares onde o tráfico é comandado por
moradores do local, que conhecem os vizinhos e têm uma relação com a comunidade, até locais
hoje dominados por milícias; de áreas com valas abertas a outras com água e esgoto encanados;
das dinâmicas “protegidas” da Zona Sul às incursões policiais da Zona Norte; da população
constituída por imigrantes nordestinos ou famílias que sempre viveram no Rio de Janeiro; por
16

uma população mais jovem ou por muitos idosos; da favela plana para a favela morro. A história
de cada favela é peculiar, ligada a como e quando se deram as primeiras ocupações, à sua
localização na cidade do Rio, aos seus primeiros habitantes e à relação entre eles e deles com o
Estado.
Conhecer o território e entender como as pessoas adoecem e como elas produzem saúde
é essencial para um cuidado centrado no indivíduo nos seus aspectos biopsicosocioespirituais e
na comunidade e para o planejamento de serviços de saúde não só eficientes, mas que
promovam equidade e universalidade. E não é possível compreender as demandas de um
território sem conhecer sua história, as relações interpessoais, entre grupos, da comunidade com
o Estado, com as políticas públicas, sem conhecer suas lutas, tornando essas tarefas mandatórias
para qualquer profissional ou unidade de saúde comprometidas com seu trabalho.
Por muito tempo acreditei que, quando conseguisse me assumir lésbica, a depressão, a
ansiedade e as várias somatizações desapareceriam como mágica, que quando estivesse vivendo
plenamente minha (homo)sexualidade não sentiria mais nada daquilo. É evidente que não foi
como aconteceu, mas os últimos anos têm sido de muita reflexão, de equilibrar meu processo
de cura com minha militância, de perceber (e aprender a respeitar) minhas limitações e entender
qual pode ser o meu papel na construção de novos conhecimentos e de um cuidado em saúde
melhor para mulheres lésbicas.
Acredito que esse trabalho faça parte de todos esses processos: o de compreender e
aceitar a influência de ser lésbica nos meus processos de saúde e adoecimento; o de assumir
minha responsabilidade enquanto médica de família e comunidade com o cuidado integral e
equânime; e o de, sem deixar esse lugar de médica de família e comunidade, ser parte de uma
militância por uma sociedade mais justa e igualitária.
Considerando raça, classe e gênero como matrizes de opressões que produzem relações
de poder e dominação e atenta aos processos de apagamento histórico de narrativas e
perspectivas não hegemônicas na sociedade brasileira, neste estudo pretendo conhecer, sob a
lente da interseccionalidade, quem são as mulheres lésbicas que vivem no Complexo da Maré,
um complexo de favelas na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro - RJ, buscando compreender
como a lesbianidade interfere em seus processos de saúde e adoecimento.
17

2 OBJETIVOS

2.1 OBJETIVO GERAL

Analisar os sentidos atribuídos à lesbofobia e sua influência no processo saúde-


adoecimento no contexto do Complexo da Maré, Rio de Janeiro.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

a) Identificar a construção cultural de uma identidade lésbica;


b) Conhecer os sentidos atribuídos à lesbofobia;
c) Relacionar a lesbofobia com o processo saúde-adoecimento.
18

3 HOMOFOBIA NÃO, LESBOFOBIA

A homossexualidade é um marcador social de diferença pois decorre em marginalização


e exclusão social. Submetidas a diversos tipos de violência em todos os ambientes da vida –
família, escola, trabalho, igreja, etc. – pessoas homossexuais vivem em um contexto marcado
por discriminação, ansiedade, medo e têm dificuldade de acessar cuidados em saúde. No que
tange à saúde mental, o esforço feito pelas pessoas homossexuais para ocultar seus desejos e
práticas ou o constante enfrentamento social que vivem a partir do momento em que se
assumem estão associados ao estresse e ao isolamento, levando a sofrimento e privando-as de
suportes sociais importantes (MEYER, 2003).
Evidências encontradas em pesquisas internacionais sugerem que, em comparação com
heterossexuais, gays e lésbicas apresentam maior índice de transtornos mentais, incluindo
problemas com uso de substâncias, transtornos de humor e suicídio (COCHRAN, 2001). Em
estudos que pesquisaram especificamente mulheres lésbicas, foram encontrados maiores
índices de depressão, ansiedade, uso de substâncias e autoagressões, assim como de doenças
cardiovasculares e câncer (HIRSCH et al, 2016). No Brasil, o Ministério da Saúde reconheceu
em 2011 que ser LGBT é um determinante social de saúde no país quando publicou a portaria
nº 2.836 instituindo a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais:

Com o objetivo geral de promover a saúde integral da população LGBT, eliminando


a discriminação e o preconceito institucional e contribuindo para a redução das
desigualdades e para consolidação do SUS como sistema universal, integral e
equitativo (BRASIL, 2013, p. 20).

A homossexualidade feminina pouco esteve descrita em leis que criminalizaram a


relação sexual ou afetiva entre pessoas do mesmo gênero pelo mundo. Essa ausência não é
reflexo da aceitação deste tipo de relacionamento, mas sim do apagamento da sexualidade
feminina na sociedade ocidental (NAVARRO-SWAIN, 2004). O sexo das mulheres por muitos
anos serviu apenas à reprodução e ao prazer masculino e a relação sexual sem a presença do
pênis é deslegitimada ou até considerada ofensiva.
Seja por medo de como os profissionais de saúde irão reagir quando souberem sobre a
orientação sexual ou por não acreditarem que eles serão capazes de acolher e dar respostas a
suas demandas (COELHO, 2001), ou ainda por não terem suporte familiar e social para buscar
os serviços de saúde (BARBOSA; FACCHINI, 2009), lésbicas fazem menos rastreamento de
19

câncer de colo de útero (AGÉNOR et al., 2014) e tomam menos vacina para HPV (AGÉNOR
et al., 2015), chegam aos serviços com estágios mais avançados de câncer de mama (MCNAIR,
2003) e algumas pesquisas demonstram que têm inclusive mais eventos cardiovasculares, como
infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral (KNIGHT; JARRETT, 2017). Ao mesmo
tempo, a vivência estigmatizada causa sofrimento e decorre em índices aumentados de
depressão, ansiedade, transtornos alimentares e suicídio (MEYER, 2003).
Mulheres lésbicas estão submetidas a ao menos duas formas de opressão social no Brasil
hoje: de orientação sexual e de gênero. Quando estas mulheres vivem em uma favela no Rio de
Janeiro, outros fatores se cruzam com os anteriores: o classismo, o racismo e o preconceito com
o território onde vivem. No espaço urbano das grandes cidades, as favelas se produzem como
territórios-resistência. Áreas habitadas majoritariamente por pessoas negras, consideradas vidas
descartáveis para o capitalismo global, as favelas podem ser lidas tal como produzidas pelo
discurso hegemônico: espaços marginais, violentos e que precisam ser controlados para a
manutenção da segurança dos demais habitantes da cidade. Mas faço a leitura das favelas como
espaços em que, apesar da negligência do Estado em prover serviços públicos e da contínua
prática necropolítica, são espaços de intensa produção de subjetividade, socialização,
conhecimento e cultura. Espaços que, tal como os quilombos, são produzidos pelo desejo de
vida frente à política de morte, onde os corpos negros objetificados lutam por cidadania, por
dignidade e por liberdade. Como nos apresentou sua favela a escola de samba Mangueira em
2022: “teu cenário é poesia, liberdade e autonomia que o negro conquistou”.
Não é possível pensar favelas e periferias nos grandes centros urbanos nacionais, sem
trazer para a centralidade do debate a hierarquização racial que estrutura a sociedade brasileira.
O racismo à brasileira por denegação (GONZALEZ, 1988), naturaliza as favelas como espaços
negros que, portanto, podem ser sitiados, desumanizados e produzidos a partir do olhar do outro
hegemônico. O mito da democracia racial no Brasil (GONZALEZ, 1988) torna possível a
tentativa de universalização da experiência lésbica nacional a partir de uma produção de
conhecimento hegemônica branca e economicamente privilegiada. Num país sócio racialmente
desigual como o Brasil, é necessário não essencializar a experiência de subjetivação de lésbicas
e, ainda mais importante, pensar práticas de cuidado em saúde conscientes dessas
desigualdades, com vista ao princípio de equidade que é norteador do Sistema Único de Saúde.
20

4 HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA

Michel Foucault, um filósofo francês, homossexual, branco, descreveu em sua trilogia


“História da Sexualidade” como o controle da sexualidade serviu como um mecanismo de
controle dos corpos e da reprodução dos trabalhadores, garantindo uma mão de obra abundante
e produtiva para o crescimento do capitalismo, principalmente a partir do século XVIII. Como
o próprio autor coloca, a preocupação em relação ao sexo naquele momento buscava “assegurar
o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma,
proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora”
(FOUCAULT, 2015). Para ele, a Igreja, a Medicina e o Direito controlavam a vida sexual das
pessoas, reprimindo e, especialmente, produzindo discursos, tanto morais quanto racionais, para
dizer quando, como, com quem e para que deve servir a sexualidade.
Para assegurar a condenação das “formas de sexualidade insubmissas à economia estrita
da reprodução” (FOUCAULT, 2015, p. 37), Foucault afirma que estas três instituições
estabeleceram como correta apenas a sexualidade centrada na relação matrimonial, condenando
o prazer e excluindo práticas que não estivessem interessadas apenas na reprodução e, para isso,
patologizaram e criminalizaram a homossexualidade. A Medicina criou a sexologia,
determinando quais práticas sexuais eram saudáveis, definindo comportamentos corretos e
ligando a doenças e diagnósticos tudo o que considerava errado para a sociedade capitalista
ocidental.
Dentro desse grupo de comportamentos indesejáveis foram incluídas as relações entre
pessoas do mesmo sexo. Esta prática sexual e estes relacionamentos sempre existiram, mas a
regulação da sexualidade produziu o homossexual como uma “espécie” (FOUCAULT, 2015),
e, tentando afastá-lo cada vez mais do ser humano supostamente normal, a medicina buscou
causa, atribuiu uma anatomia específica, descreveu um estilo de vida e o nomeou de diversas
formas.
Michel Foucault, entretanto, dá pouca atenção a como esse sistema age de formas
diferentes e produz efeitos distintos em homens e mulheres. Desde seus primórdios, o
capitalismo estabeleceu um sistema de dominação e uma divisão sexual do trabalho, relegando
à mulher o trabalho doméstico não remunerado e a responsabilidade da reprodução – seja
gerando outros indivíduos, seja garantindo as condições para que os homens possam continuar
seu trabalho produtivo, cozinhando, lavando, cuidando das crianças e dos doentes.
Compreendendo o patriarcado como nos apresenta bell hooks, professora e feminista
negra estadunidense:
21

Um sistema político-social que insiste que os homens são inerentemente dominantes,


superiores a tudo e a todos considerados fracos, especialmente mulheres, e que são
dotados do direito de dominar e governar (HOOKS, 2004).

Em uma sociedade patriarcal (como a nossa) é aceito que os homens dominem as


mulheres através de mecanismos mais ou menos naturalizados no cotidiano. Sendo assim, é
difícil imaginar que os mecanismos de controle atuem da mesma forma e tenham o mesmo
impacto na sexualidade e na vida de mulheres e homens.
Olhando para isso, a feminista branca lésbica também estadunidense Adrienne Rich
denuncia a existência, na sociedade ocidental moderna, de uma instituição social para o controle
da vida das mulheres, a qual denominou heterossexualidade compulsória – “a imposição da
heterossexualidade como forma de assegurar o direito dos homens de acesso físico, econômico
e emocional" às mulheres (RICH, 2019, p. 34). Sendo assim, a heterossexualidade compulsória
não trata apenas de orientação sexual, nem fala somente sobre mulheres lésbicas, bissexuais e
pansexuais, mas é um regime político que, a partir de estruturas e normas sociais consolidadas,
garante a manutenção de uma relação de exploração das mulheres pelos homens.
Na heterossexualidade compulsória, a existência da mulher se dá a partir do olhar do
homem e sempre em comparação com este. Como colocado pela filósofa francesa branca
Simone de Beauvoir no seu clássico “O Segundo Sexo” (BEAUVOIR, 2016), o ser humano
universal é o homem, a mulher é sempre “o outro”, e o ideal construído do que é uma mulher
gira em torno do interesse do homem. Nestas condições, os valores ligados ao feminino estão
sempre relacionados com submissão: fragilidade, docilidade, afetividade, ser mais emocional e
menos racional, ter um “dom natural” ao cuidado, à maternidade, etc.
Da mesma forma, as mulheres aprendem a medir seu próprio valor a partir do olhar do
homem, de quão atraentes são para ele, ao mesmo tempo em que são estimuladas a não olhar
para seus próprios sentimentos e desejos, assim como para seus corpos. O casamento e a
maternidade são o “caminho natural” em suas vidas e sua sexualidade é interditada para si
mesma, servindo apenas ao prazer do outro, o homem. Se mulheres só podem ficar com homens
e se homens são naturalmente dominadores, violentos, inaptos para o cuidado, infiéis, só resta
à mulher se conformar e se submeter a esse tipo de relação.
Utilizando mecanismos que vão desde a violência física até o controle da consciência, a
heterossexualidade compulsória assegura que a sexualidade masculina dominante, violenta e
incontrolável seja tida como normal e inevitável e garante que as mulheres se submetam a
relações desiguais, insatisfatórias e muitas vezes humilhantes por não perceberem que existem
22

outras formas possíveis de se relacionar e de viver a sexualidade (seja com outras mulheres ou
mesmo com homens).
Adrienne apresenta alguns métodos utilizados na heterossexualidade compulsória para
garantir a supremacia masculina, que atingem também mulheres de todas as orientações
sexuais. Se uns hoje já são amplamente reconhecidos como violentos, alguns são mais sutis ou
aceitos socialmente e outros sequer são percebidos como uma forma de violência. A idealização
do amor romântico, que aprendemos desde os filmes infantis e se perpetua em novelas,
comédias românticas e até em comerciais, é uma forma quase inconsciente de dizer à mulher
qual é o seu lugar social – a moça “pura” que será salva e encontrará a felicidade nos braços de
um homem “guerreiro” e forte – e quais atividades estão destinadas a ela: o trabalho de cuidar,
muitas vezes não remunerado, e as diversas atividades domésticas.
O papel sexual das mulheres também nos é ensinado desde sempre. Os mesmos
discursos que Foucault identificou como prescritores de uma sexualidade voltada ao
capitalismo, reforçam a desigualdade de gênero: meninos são estimulados a conhecer seu pênis
e compará-lo ao de outros meninos, meninas têm de fechar as pernas e usar banheiros
reservados, são punidas se manipularem sua vulva, aprendem que ela é suja e feia. Se a
masturbação um dia foi um tabu na educação masculina, há muito é motivo de risos o fato de
meninos se demorarem no banheiro ou colecionarem revistas com fotos de mulheres
hipersexualizadas, enquanto muitas mulheres não sabem sequer que urina e sangue menstrual
saem de orifícios diferentes. A pulsão sexual é um direito masculino na sociedade ocidental
capitalista patriarcal.
Quando falamos de violência e exploração sexual pensamos em estupro, cafetinagem,
escravidão sexual. Talvez nos lembremos das clitoridectomias, dos casamentos infantis, das
noivas compradas, da criminalização das mulheres adúlteras. Mas Rich nos apresenta diversas
outras formas pelas quais homens estão envolvidos na exploração e escravidão sexual das
mulheres: além dos cafetões e dos membros das quadrilhas de tráfico de mulheres, os
funcionários públicos corruptos que participam do esquema de tráfico, os proprietários,
gerentes e empregados de bordéis, além dos clientes da prostituição; os produtores e os
fornecedores de pornografia; os estupradores, os molestadores de crianças, os perpetradores de
incesto e os agressores e estupradores de esposas (RICH, 2019). Em todas estas situações,
homens usam de seu poder social, econômico ou físico para dominar e usar os corpos das
mulheres, de forma que a desigualdade de poder se mantenha ou aumente.
Um dos meios de garantir que as mulheres continuem se submetendo a relações
heterossexuais é esconder delas que existem outras formas de viver. Adrienne Rich denuncia
23

que esta é a importância do apagamento da lesbianidade. Não apenas por serem consideradas
erradas, doentes ou ilegais, não apenas pela negação da sexualidade da mulher independente do
homem ou da sexualidade da mulher que não seja para a reprodução. Para a heterossexualidade
compulsória é importante que mulheres que amam, transam e se realizam com outras mulheres
sejam negadas e, para isso, marginalizadas e invisibilizadas.
24

5 A LESBIANIDADE NA HISTÓRIA

A historiadora brasileira, branca, lésbica, Tania Navarro-Swain pergunta se o fato de a


história não falar das relações físicas e emocionais entre as mulheres é por que essas não
existiram? (NAVARRO-SWAIN, 2004). Ela nos lembra que a história, assim como a ciência,
não é neutra, é uma interpretação de indícios mais ou menos bem conservados, feita por alguém
a partir de sua própria cultura, visão do mundo, preconceitos e interesses. Além disso, a autora
levanta uma série de indícios de culturas e civilizações em que as mulheres, além de terem
outros papéis, podiam “amar-se umas às outras”: a Grécia antiga; alguns grupos indígenas no
Brasil anteriores à invasão portuguesa; as guerreiras amazonas, sejam brasileiras, do Oriente
Médio ou Norte da África; e as celtas.
A expressão “lésbica” (ou “lesbiana” em alguns textos) vem da Ilha de Lesbos, na
Grécia, e já denominou simplesmente a mulher que nascia neste local. Mas nesta ilha, há cerca
de 2.600 anos, viveu Safo, poetisa que escrevia sobre seus sentimentos e desejos por outras
mulheres e foi uma personagem muito importante na sua época. Ela tinha uma escola de poesia
e música para mulheres e sua obra foi considerada uma das maravilhas da Antiguidade, com
estátuas em sua homenagem e moedas cunhadas com sua imagem. Entretanto, suas poesias
foram queimadas pela primeira vez em 380 a.C. e novamente no início do cristianismo, tendo
restado apenas um poema seu completo nos dias atuais. (NAVARRO-SWAIN, 2004)
O termo foi (e ainda é) usado como xingamento, com conotação negativa, assim como
outras formas de se referir às mulheres que se relacionam com mulheres: mulher-macho, maria-
joão, invertida, caminhoneira, sapatão. Mas nos últimos anos, a partir da luta dos movimentos
sociais, esses termos vêm sendo ressignificados e tomados pelas mulheres lésbicas e usados
como forma de demonstrar orgulho e reafirmar nossa existência. De Safo, passando pela Rainha
Cristina da Suécia ou Francisca Luís, Isabel Antonia e Felipa de Souza, mortas pela Inquisição
no Brasil por terem relacionamentos com mulheres, até Florence Nightingale, Virginia Woolf,
Gertrude Stein, Anna Freud, Audre Lorde, Angela Davis e Marielle Franco, mulheres em todos
os tempos sempre amaram e se relacionaram com mulheres e, cada vez com mais orgulho,
continuaremos nos relacionando e construindo nossas famílias.
25

6 SAÚDE DE MULHERES LÉSBICAS

Atualmente já é possível encontrar estudos que demonstram a existência de


especificidades na saúde de mulheres lésbicas em relação ao processo de saúde-adoecimento, à
prevalência de determinadas condições, às demandas, e também em relação ao acesso aos
serviços. Apesar da grande maioria destes estudos serem conduzidos nos Estados Unidos e na
Europa e com mulheres brancas, jovens, com alta escolaridade e renda, são os que utilizamos
nas diversas realidades brasileiras enquanto ainda não produzimos mais dados nacionais.
As evidências encontradas nessas pesquisas sugerem que, em comparação com
heterossexuais, lésbicas apresentam maior índice de transtornos mentais, incluindo problemas
com uso de substâncias, transtornos de humor e suicídio (COCHRAN, 2001). Outros estudos
encontraram maiores índices de depressão, ansiedade e autoagressões, e ainda de doenças
cardiovasculares e câncer (HIRSCH et al., 2016).
Podemos destacar dois pontos cruciais para os desfechos negativos em saúde: por um
lado os fatores que levam ao sofrimento e ao adoecimento e, por outro, a dificuldade de acesso
e a relação ruim com profissionais e serviços de saúde.

6.1 O PROCESSO DE SAÚDE E ADOECIMENTO

É bastante conhecido nos estudos sobre sexualidade o termo “estresse de minorias


sexuais”, do epidemiologista psiquiátrico, branco, homossexual, norte americano Ilan Meyer
(MEYER, 2003), um modelo explicativo para os diversos níveis de estressores que, em
conjunto, atuam causando sofrimento mental, isolamento social e adoecimento. O trabalho de
Meyer se iniciou em 1995 (MEYER, 1995) e é citado em quase todos os trabalhos sobre
sofrimento e saúde da população LGBT que tive acesso no levantamento bibliográfico realizado
para a presente pesquisa. Entretanto, em 1977 a assistente social estadunidense, branca, lésbica,
Virginia Rae Brooks (que posteriormente mudou seu nome para Winn Kelly Brooks) já havia
descrito um modelo que considerava estes aspectos. Em sua tese de doutorado e,
posteriormente, em seu livro intitulado Minority Stress and Lesbian Women (em tradução livre:
Estresse de Minorias e Mulheres Lésbicas), a autora descreve como a exposição a estressores
culturais, sociais e econômicos se traduz em estresse psicológico e físico para mulheres lésbicas
(RICH, 2020).
E Virginia ia além. Ainda na década de 80 a autora já trazia para o conceito de estresse
de minorias outros fatores como o gênero das mulheres lésbicas, além de raça e classe social.
26

A autora propôs um modelo que se utiliza de níveis de estressores, de mais externos a mais
internos de cada pessoa, e levantou a importância do tempo pelo qual a pessoa está exposta a
estes estressores, bem como a frequência e a intensidade destes nos resultados para a saúde.

Figura 1 - Modelo de estresse de minorias sexuais

Fonte: Adaptação de RICH (2020).

O modelo de Meyer agrupa os fatores externos (culturais e sociais) de Brooks como


“experiências de violência” e detalha mais os fatores psicológicos, também classificando todos
os fatores como mais externos ou internos ao indivíduo. Para ele, pessoas pertencentes às
minorias sexuais sofrem por 4 fatores (Figura 2): 1. Por experienciar episódios de violência,
sejam agressões físicas, sexuais, psicológicas, materiais, morais ou de qualquer outra forma; 2.
pelo medo constante de sofrer agressões, que leva a pessoa a ficar assustada e se manter
vigilante todo o tempo; 3. por viver, em cada ambiente da vida, o conflito entre se assumir e
enfrentar as disputas que advém dessa exposição, ou se esconder e viver ainda mais vigilante
e; 4. pela LGBTfobia internalizada – a insegurança, o auto ódio, a vergonha de se saber aquilo
que por toda a vida você aprendeu que era errado, sujo, doentio.
27

Figura 2 - Estresse de minorias sexuais

Fonte: Elaboração própria (2021).

Em termos de violência, são mais conhecidas as formas de agressão mais silenciosas


contra as mulheres homossexuais ou, como já vimos, socialmente aceitas, ocorrendo
predominantemente na esfera privada, assim como ocorre na opressão feminina de forma geral.
Entretanto, a falsa ideia de que mulheres lésbicas não são agredidas vem sendo combatida
ativamente através da produção de dados e da visibilização de situações de violência,
especialmente pelo movimento social e por mulheres lésbicas que vêm ocupando espaço na
academia. O maior exemplo é o Dossiê do Lesbocídio no Brasil, produzido por pesquisadoras
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PERES et al., 2018).
Lesbocídio é entendido como a “morte de lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio,
repulsa e discriminação contra a existência lésbica” (PERES et al., 2018, p. 19). Em 2018 o
Dossiê do Lesbocídio no Brasil, publicado por Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felippe
Soares e Maria Clara Dias, levantando casos de 2014 até 2017 a partir de sites de notícias, redes
sociais e outros meios de comunicação que fossem expressões de notícias criminais nacionais,
regionais e locais. Como as próprias autoras chamam a atenção, o lesbocídio é um crime de
ódio, perpetrado principalmente por homens “insatisfeitos com a existência de determinadas
lésbicas ou da categoria como um todo”, que nem sempre têm com sua vítima vínculo familiar,
conjugal ou doméstico (PERES et al., 2018, p. 20).
Entretanto, na maior parte do tempo vivemos experiências de discriminação vindas
principalmente de familiares, amigos ou vizinhos (tendo assim menos visibilidade que a
28

homofobia sofrida por homens), temos menos acesso à escolarização que homens gays, além
de assumirmos menos a orientação sexual, especialmente no trabalho e para profissionais de
saúde (FACCHINI; BARBOSA, 2006). Em uma pesquisa citada pelo Dossiê Saúde das
Mulheres Lésbicas, 11,4% das mulheres homossexuais entrevistadas na Parada do Orgulho
LGBT de São Paulo relataram já ter sofrido violência física, 47,5% agressão verbal ou ameaça
de agressão e 4,9% violência sexual, sendo que, destas, 29,7% identificaram a casa como local
da agressão e 20,3% identificaram familiares como agressores.
Uma das formas mais sutis de lesbofobia, que por muitas vezes chega a ser tomada como
um sinal de aprovação social da lesbianidade, é a fetichização. Na mídia, não é raro encontrar
imagens de casais de mulheres - mulheres jovens, magras, na maioria das vezes brancas - em
poses sensuais. Entretanto, esta imagem serve aos homens heterossexuais, que se sentem
convidados ou impelidos a participar daquela atividade sexual, que eles acreditam que só vai
estar completa com a participação de um pênis. Essa fetichização deslegitima a relação entre
mulheres, as objetifica e a falsa sensação de aceitação que ela gera termina no momento em que
a participação masculina é negada, dando lugar a diversas formas de agressão.
Outras formas comuns de violência contra lésbicas, sobretudo no seio da família de
origem, aquela onde a pessoa nasce, cresce e estabelece suas primeiras relações, são as micro
punições, a hiper vigilância sutil, as hostilizações verbais, as restrições e os movimentos de
adequação às normas estabelecidas por meio de uma reeducação forçada (BRAGA et al., 2018).
Dentro desses movimentos para uma adequação forçada à norma heterossexual está uma forma
de violência que ocorre especificamente contra mulheres lésbicas: o estupro corretivo, a
violência sexual praticada com a intenção de “corrigir” a orientação sexual.
Partindo de uma ideia de que a mulher é lésbica porque “não encontrou o homem certo”,
porque “não sabe o que é bom”, homens, comumente familiares ou amigos da vítima, se
utilizam do estupro como forma de punição e de “ensinar a ser mulher”. Segundo a agência de
notícias Gênero e Mídia, que analisou dados coletados no Sistema de Informação de Agravos
de Notificação (SINAN) via Lei de Acesso à Informação, em média, 6 lésbicas foram
estupradas por dia em 2017, em um total de 2.379 casos registrados. Ainda de acordo com a
agência:

Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez. É dentro de
casa e no meio familiar que as mulheres lésbicas são violentadas. Em 61% dos casos,
a agressão ocorreu na residência, enquanto 20% aconteceram em vias públicas e 13%
em “outros locais”. Os homens são algozes. Aparecem como autores em 96% das
agressões sexuais. Mulheres são apenas 1% das agressoras. Em 2% das agressões há
29

registros de ambos os gêneros como agressores. Em 1% dos casos notificados o gênero


do autor não é identificado (SILVA, 2019, online).

Desde 24 de setembro de 2018 o estupro corretivo passou a integrar o texto do Código


Penal brasileiro. O artigo 226 da Lei n° 13.718, passou a ter a seguinte redação: “Art. 226. A
pena é aumentada: IV - de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado: b) para
controlar o comportamento social ou sexual da vítima” (BRASIL, 2018, online).
São frequentes também outras formas de violência. Qualquer conduta que cause danos
emocionais, diminuição da autoestima, que tente controlar a partir de ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância, perseguição, insulto, chantagem,
ridicularização ou qualquer outro meio é considerada violência psicológica (BRASIL, 2006),
uma forma subjetiva de agressão que muitas vezes pode não ser percebida até por quem a sofre.
No caso de mulheres lésbicas, o agressor se utiliza do estigma social que existe contra a
lesbianidade para ameaçar ou insultar a vítima, reforça a lesbofobia internalizada e o isolamento
social, dificultando a busca por ajuda, e quando elas têm filhos eles são comumente usados
como forma de chantagem. A dependência financeira também é um dos maiores fatores que
prendem lésbicas nestas relações abusivas, seja com a família de origem, seja no
relacionamento com a parceira.
Ao contrário de pessoas que vivem opressões por raça/etnia ou religiosas, lésbicas
geralmente não encontram alguém que seja modelo ou que compartilhe da sua experiência
dentro da família de origem e não têm a casa como um refúgio ou ambiente seguro. Pelo
contrário, a família de origem pode ser seu primeiro e principal agressor.
A violência intrafamiliar pode ocorrer tanto na família de origem quanto na família
formada pela mulher lésbica na vida adulta. Diversos estudos nacionais e internacionais já
demonstraram que a forma como a família de origem reage à revelação da identidade sexual ou
de gênero tem impacto na saúde da pessoa LGBTIA+ (TEIXEIRA et al., 2021). Reações ruins,
rejeição e punição resultam em jovens com maior incidência de problemas de saúde mental
(RYAN et al., 2009), de tentativas de suicídio, de uso prejudicial de álcool ou outras substâncias
ilícitas e até da probabilidade de terem uma relação sexual desprotegida (PUCKETT et al.,
2015).

6.2 A RELAÇÃO COM OS SERVIÇOS DE SAÚDE

Se hoje identificamos algumas das maneiras pelas quais lésbicas adoecem mais que
mulheres heterossexuais, não podemos deixar de levar em consideração a relação destas
30

mulheres com o sistema e os profissionais de saúde. O Dossiê Saúde de Mulheres Lésbicas nos
traz números impressionantes retirados de estudos realizados no Brasil: até 60% das mulheres
que fazem sexo com mulheres (MSM) que acessaram serviços de saúde não revelaram sua
orientação sexual. Entre as que revelaram, mais da metade relatou reações discriminatórias por
parte do profissional (FACCHINI; BARBOSA, 2006).
Em outro estudo analisado pela equipe do Dossiê, 59,5% das entrevistadas relataram
sua orientação sexual ao profissional de saúde, mas 88,6% delas o fez por iniciativa própria,
sem isso ter sido perguntado pelo profissional, e apenas 5,1% afirmaram que o médico
perguntou sua orientação sexual. Sobre as mulheres que se assumiram para o profissional de
saúde, a pesquisa afirma que:

[...] 18,3% relataram reação preconceituosa por parte do profissional; 7,9%,


demonstração de surpresa; e 15,3%, alguma "situação desagradável" após o relato.
Entre as que não relataram, 30,6% saíram do consultório com receita de contraceptivo;
19,4% com indicação de preservativo masculino; 3,2% com indicação de teste de
gravidez e 4,8% tiveram hipótese diagnóstica associada a gravidez, ou seja, 58%
foram avaliadas e receberam condutas como se tivessem orientação heterossexual,
embora a maior parte delas praticassem sexo exclusivamente com mulheres (REDE
FEMINISTA DE SAÚDE, 2006, p. 26).

Outro estudo realizado entre 2014 e 2015 pela equipe da professora Andrea Rufino,
médica ginecologista e sexóloga, branca, brasileira, no Centro de Saúde da Mulher da
Universidade Estadual do Piauí entrevistou 34 mulheres nas cinco regiões do país e demonstrou
que a consulta ginecológica é um ambiente desfavorável para a revelação da orientação sexual
de mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM). Segundo as mulheres que participaram da
pesquisa, ginecologistas raramente perguntaram sua orientação sexual, sua anamnese seguiu
um roteiro heteronormativo e também reagiram negativamente à sua revelação (RUFINO et al.,
2018).
No cenário da Atenção Primária à Saúde (APS), as enfermeiras Luciane de Araújo,
Lucia Penna, Joana Carinhanha e Cristiane Costa publicaram em 2019 uma pesquisa na qual
entrevistaram 24 enfermeiras e 21 médicos que trabalhavam em unidades de APS no município
do Rio de Janeiro, a maioria especialista em saúde da família, que demonstrou o despreparo e
o preconceito dos profissionais em relação às mulheres lésbicas, trazendo transcrições de falas
como:

A lésbica, só de olhar para ela, você já sabe que é sapatão. [...] mas, ela diz que é
casada e mora com o marido. Às vezes, ainda tenho dúvidas sobre ela. Não acredito.
Você logo vê que é [lésbica], pela sua apresentação masculinizada, por seus trajes,
pelo comportamento, mesmo que ela não fale. Quando é masculinizada você consegue
31

ver nas entrelinhas. Nem precisa perguntar. Essas mais masculinas têm sexo sem
penetração porque não gostam. Geralmente, não gostam de penetração porque não
gostam de homem. Daí, quase sempre têm receio em relação ao preventivo, por causa
do espéculo. Já as outras [femininas] são mais como nós [referindo-se à
heterossexualidade]. Noto também que elas dão um intervalo muito grande entre os
exames [preventivo]. Maior que o recomendado. Essas mais pesadas [masculinas] não
gostam mesmo. Acho que associam o espéculo ao pênis [...] já as femininas, nunca vi
terem problema com o exame (ARAUJO et al., 2019, online).

As autoras concluem que os enfermeiros e médicos são omissos e violentos, inclusive


desacreditando e deslegitimando as vivências dessas mulheres, suas consultas são
heteronormativas e apresentam enorme assimetria na relação com a paciente e, além de terem
tido uma formação deficiente no que tange à diversidade sexual, os profissionais se
desresponsabilizam por se atualizarem para responder às demandas dessa população, repetindo
que não aprenderam em suas formações e não recebem treinamento em serviço.
32

7 O SUS E A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Um sistema de saúde público e gratuito para todos os cidadãos foi uma conquista do
povo brasileiro na construção da Constituição Federal de 1998, após o período da Ditadura
Civil-Militar. Em 1988, a partir do reconhecimento de que saúde não é uma mercadoria, mas
um direito de todos e dever do Estado, o país que naquele momento tentava iniciar a construção
de uma nova democracia queria dizer que todos os seus cidadãos deveriam ser tratados como
detentores de direitos humanos básicos. Não apenas universal – o que garante acesso a cuidado
em saúde para todas as pessoas que estejam no Brasil – o Sistema Único de Saúde (SUS) foi
pautado por princípios que deveriam garantir o respeito às diferenças e o combate à
desigualdade: integralidade e equidade.
É sobre esses dois princípios que afirmo que o SUS precisa pensar políticas de saúde
específicas para mulheres lésbicas. A integralidade garante que cada indivíduo seja visto por
inteiro, dentro de sua realidade familiar e comunitária, a partir de uma perspectiva que olhe para
sua realidade biológica, psicológica e social (PAIM; SILVA, 2010). Sendo assim, tanto os
aspectos relacionados à sexualidade quanto o sofrimento causado pela lesbofobia devem ser
considerados, desde a elaboração das políticas públicas de saúde até o cuidado individual nas
unidades.
A equidade, enquanto princípio, tem um significado que vai além da igualdade, do
garantir que todos serão tratados da mesma forma. Entendo a equidade aqui como ligada a um
senso de justiça social e à tentativa de diminuir o impacto na vida das pessoas das desigualdades
e, por isso, é neste princípio que baseio a justificativa para esta pesquisa. No Brasil, o Ministério
da Saúde já reconheceu, quando aprovou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (PNSILGBT), que ser LGBT é um determinante
social de saúde, em 2011 (BRASIL, 2013). No documento que divulga a Portaria 2.836 de 1º
de dezembro de 2011, que institui a PNSILGBT, o Ministério da Saúde afirma que:

A Política Nacional de Saúde LGBT é um divisor de águas para as políticas públicas


de saúde no Brasil e um marco histórico de reconhecimento das demandas desta
população em condição de vulnerabilidade. É também um documento norteador e
legitimador das suas necessidades e especificidades, em conformidade aos postulados
de equidade previstos na Constituição Federal e na Carta dos Usuários do Sistema
Único de Saúde (BRASIL, 2013, p. 06).

E a Atenção Primária à Saúde, como porta de entrada preferencial para o sistema de


saúde, portanto ponto estratégico para a garantia de acesso e de um cuidado de qualidade, assim
33

como coordenadora do cuidado, deve ser o primeiro lugar a olhar para as mulheres lésbicas do
território pelo qual é responsável e compreender suas vulnerabilidades e as especificidades do
seu processo de saúde e adoecimento. Enquanto prestadora de um cuidado continuado ao longo
do tempo, inserida no território e tendo uma abordagem familiar e comunitária, pode ser uma
importante aliada no processo de se entender e se assumir lésbica, atuar como apoio das relações
familiares, auxiliar no processo de construção de redes de apoio, na identificação de lugares
seguros e instituições sociais na comunidade ou na rede municipal de saúde e de assistência
social e, inclusive, atuar no território no combate à lesbofobia.
34

8 A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E A SAÚDE DE LÉSBICAS

A medicina de família e comunidade é a especialidade médica que atua na APS com um


olhar integral para seus pacientes e seu território, garantindo vínculo com os indivíduos e as
famílias e um cuidado longitudinal, devendo ser “competente clinicamente para proporcionar a
maior parte da atenção que necessita o indivíduo, considerando sua situação cultural,
socioeconômica e psicológica” (ARIAS-CASTILLO et al., 2010, p. 01).
A literatura internacional é veemente em dizer que a formação de médicos de família e
comunidade, tanto na graduação quanto na pós-graduação, peca ao não abordar temas relativos
à sexualidade e à diversidade sexual, e especialmente à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais
(AMERICAN ACADEMY OF FAMILY PHYSICIAN, 2019; BEAGAN; FREDERICKS;
BRYSON, 2015). Ao mesmo tempo, como mostra o estudo de Luciane Araújo na APS, os
profissionais culpam a falha na sua formação e se desresponsabilizam de se atualizar e adquirir
as habilidades e competências necessárias para sua abordagem (ARAUJO et al., 2019).
Associação Americana de Medicina de Família (AAFP), do termo em inglês American
Academy of Family Physicians, reconhecendo esta lacuna na formação, publicou em 2014 e
revisou em 2019 um documento de recomendações para currículos de residência em Medicina
de Família com estratégias de treinamento, a partir de atitudes, comportamentos, conhecimentos
e habilidades que são essenciais para a atenção à saúde de lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais, queer e assexuais (LGBTQA). (AAFP, 2019) Esse documento, entretanto, não
aponta qualquer especificidade de mulheres lésbicas dentro do grupo LGBTQA.
Não são poucos também os estudos que mostram que médicos de família têm
dificuldade em abordar a orientação sexual das mulheres em suas consultas e em lidar com as
demandas das mulheres lésbicas e bissexuais, seja por preconceito ou por despreparo (BAYEN
et al., 2020; WESTERSTÅHL; BJÖRKELUND, 2003) Apenas em 2019 a WONCA (World
Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General
Practitioners/Family Physicians) criou seu Grupo de Interesse Especial em Saúde LGBTQ,
reconhecendo a necessidade e o interesse de que seus membros associados “tomem uma posição
para fornecer às pessoas LGBTQ cuidados de saúde justos, equitativos, dignos e de alta
qualidade em cada comunidade onde residem” (WONCA, 2019, online, livre tradução).
Entretanto, a Medicina de Família e Comunidade, enquanto especialidade médica que
se propõe a atender “os problemas relacionados com o processo saúde-enfermidade, de forma
integral, contínua e sobre um enfoque de risco, no âmbito individual e familiar” (ARIAS-
CASTILLO et al., 2010, p. 01) e “centrado na pessoa, contextualizada em sua família e
35

comunidade” (ARIAS-CASTILLO et al., 2010, p. 01) não pode se esconder atrás de falhas na
graduação ou na dificuldade de alguns profissionais para continuar prestando uma atenção
inadequada e muitas vezes violenta às mulheres lésbicas e bissexuais.
A Associação Americana de Medicina de Família publicou em 2017 o guideline
Preventive Health Care for Women Who Have Sex with Women (KNIGHT; JARRETT, 2017),
com as evidências disponíveis para indicação de rastreamentos e indicação de cuidado em
saúde, reforçando que:

Os médicos de família devem promover a confiança e a comunicação para fornecer


um ambiente acolhedor e sem julgamento, que apoie os cuidados de saúde
culturalmente competentes e os melhores resultados (KNIGHT; JARRETT, 2017, p.
314, tradução livre).

A Royal Australian College of General Practitioners também publicou, em 2009, um


guia para médicos de família com informações sobre mulheres lésbicas e bissexuais (MCNAIR,
2009) ressaltando as especificidades de saúde destas mulheres e afirmando que estas deveriam
ser “fácil e efetivamente” acolhidas pelo MFC.
A formação de médicas e médicos de família no Brasil tem como norteador o Currículo
Baseado em Competências (CBC) da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade (SBMFC). Este documento, em relação à sexualidade e diversidade sexual aponta,
como competência essencial:

Maneja de forma oportuna as demandas relacionadas à sexualidade humana,


identidade sexual, homoafetividade, transsexualidade, sexualidade em situações
especiais (reabilitado físico, doente mental e deficiente, gravidez e puerpério,
soropositivos, doenças clínicas avançadas) e situações de preconceito sexual
(homofobia, heterossexismo) (SBMFC, 2015, p. 60).

Outra competência essencial elencada no CBC é “lida com seus pré-conceitos de modo
a não influenciar negativamente a abordagem das pessoas sob seu cuidado” (SBMFC, 2015, p.
60). Entretanto, as residências em MFC ainda são tímidas em apresentar o tema a seus alunos.
A primeira atividade tratando especificamente sobre saúde de lésbicas na Medicina de
Família e Comunidade foi realizada pela Associação de Medicina de Família e Comunidade do
Rio de Janeiro (AMFaC) em junho de 2017, com uma mesa redonda que está registrada nos
endereços eletrônicos: https://www.facebook.com/amfacrj/videos/1415010868584125/ e
https://www.facebook.com/amfacrj/videos/1415104451908100/. A atividade foi feita por mim
e contou com a participação de Virgínia Figueiredo, representando a Liga Brasileira de
Lésbicas, um dos movimentos sociais organizados de lésbicas no país.
36

Em 2016, foi fundado no interior da SBMFC o Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade,


Diversidade e Direitos (GT Sex) com o objetivo de aprofundar o estudo destes temas e produzir
e estimular a produção de eventos e de literatura de temas ligados não apenas à diversidade
sexual, mas a questões relacionadas a gênero e a sexualidade de uma forma geral. Participo do
grupo desde sua formação e fui uma de suas coordenadoras.
Em 2017, foi realizada pela primeira vez no Congresso Brasileiro de Medicina de
Família e Comunidade (CBMFC) a oficina nomeada “Homem com homem, mulher com
mulher: o que você precisa saber e outras conversas sobre pessoas homossexuais.” por mim e
outros 2 colegas mFC. A oficina, prevista para ser realizada para até 50 pessoas, teve uma
procura de mais de 300 congressistas e seu formato foi adaptado. Nela, levantamos de forma
anônima as perguntas que os participantes tinham sobre saúde LGBTI+ e fomos respondendo
de forma participativa com a plateia. A mesma oficina foi repetida no 1º Congresso Carioca de
Atenção Primária à Saúde, ainda em 2017, no 1º Congresso Sudeste de MFC, em 2018, e
novamente no CBMFC em 2019. As dúvidas levantadas sobre saúde de lésbicas nestas oficinas
foram sistematizadas e publicadas no artigo Main Questions from Brazilian Family Physicians
on Lesbians and Bisexual Women’s Healthcare (VIEIRA; BORRET, 2020).
O GT Sex ainda organizou em 2018 e 2019 seminários temáticos nacionais sobre
sexualidade e diversidade e em ambos houveram oficinas sobre saúde de mulheres lésbicas e
bissexuais (VIEIRA et al., 2019). Além disso, realizamos diversas atividades com alunos de
graduação e residentes de vários programas e, desde o início da pandemia de Covid-19,
membros do GT Sex estiveram presentes em muitas palestras e rodas de conversa online sobre
o tema.
37

9 O COMPLEXO DA MARÉ

Em agosto (mês da visibilidade lésbica no Brasil) de 2017, a Câmara de Vereadores do


Rio de Janeiro votou o Projeto de Lei que incluiria o Dia da Visibilidade Lésbica no Calendário
Oficial da cidade, apresentado pela vereadora Marielle Franco (FRANCO, 2017), e o reprovou.
Mas o movimento que integrou diversas organizações de luta de mulheres lésbicas para a
elaboração do Projeto de Lei gerou diversos frutos – e ouso dizer que entre eles está este
trabalho, pois foi naquele contexto que conheci diversas militantes e o movimento de lésbicas
da Maré.
Duas destas militantes foram Dayana Gusmão, assistente social, preta, lésbica e Michele
Seixas, também assistente social, negra e lésbica, que publicaram em 2018 um artigo em que
contam sobre os dez anos do movimento de lésbicas na Maré, trazendo um pouco de sua riqueza
e luta, no qual relatam que ele começa a se organizar em 2008 dentro do movimento LGBT e
avança a partir da necessidade de criação de uma rede social de apoio. (GUSMÃO et al., 2018)
Segundo as autoras, a pioneira do movimento de lésbicas da Maré foi uma agente comunitária
de saúde preta, Jéssica Andrade, que começou promovendo pequenos encontros reservados para
falar sobre suas vivências, mas que não podiam ser divulgados publicamente, pois a maioria
das mulheres que compareciam não eram publicamente assumidas, já que “as violações contra
lésbicas na favela eram bastante cruéis” (GUSMÃO et al., 2018, online).
A dificuldade para identificar as mulheres lésbicas que viviam na Maré se manteve ao
longo dos anos, já que as regras impostas pelo tráfico, o avanço do conservadorismo religioso,
a inexistência de proteção no território e a negação de direitos imposta à população da favela
como um todo fazem com que seja difícil se assumir publicamente. Ainda assim, o movimento
de lésbicas da Maré foi ocupando espaços e se aproximando de grupos que lutavam por direitos
de mulheres, de redes e grupos nacionais de lésbicas, além de instituições públicas, como o Rio
Sem Homofobia e a Fiocruz.
É pelo contato com a Coletiva Resistência Lésbica da Maré e com mulheres lésbicas
que fazem parte deste movimento e que têm relações com outras mulheres lésbicas do território,
inclusive as que não são militantes, que escolhi fazer essa investigação no Complexo da Maré.
Entendo que a Maré não representa a realidade de todas as favelas do Rio de Janeiro, assim
como não é possível compreender a Maré como um território único e homogêneo, mas acredito
que é justamente esta heterogeneidade, esta realidade diversa que pode me permitir ouvir
diferentes histórias, tentar compreender as formas pelas quais a lesbianidade pode influenciar
38

a saúde das mulheres neste território e refletir sobre uma prática da medicina de família e
comunidade em uma realidade diferente da que nos contam os livros e artigos já existentes.
A primeira vez que entrei na Maré estava completando um mês da morte de Marielle,
brutalmente assassinada pelo Estado brasileiro, e fui com minha esposa e um casal de amigas
ao sarau em sua homenagem, no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM).
Entre as várias coisas que me impressionaram naquele dia, destaco 3: os vários talentos que se
apresentaram ali, com poesia, música, moda, fotografia, performances, pintura; a organização
de um espaço tão grande e com tantas atividades – pré-vestibular, curso de informática,
preparatório para Ensino Médio, produção de um jornal – e organizado e gerido por pessoas da
Maré, e não Organizações Não Governamentais (ONG) de fora ou pessoas que viriam de fora
dizer do que aquelas pessoas precisavam.
A terceira e principal foi um mapa, cuja foto nunca mais saiu do meu celular, o “Mapa
Sensorial da Maré” (Figura 3). Esse mapa me tocou porque, ao mesmo tempo que me lembrou
nossas atividades de territorialização da APS (que desde meus tempos de UBS Conceição em
Diadema eu adoro), a legenda me mostrou um olhar muito mais sensível para o território, que
talvez devêssemos aprender. Esta territorialização, trabalho do professor Luiz Lourenço com
estudantes do curso preparatório para o Ensino Médio, conforme apresentado no próprio
trabalho:

[...] pretende revelar outra face da cartografia, trabalhando não com dados objetivos e
sim com as percepções e sensações que os jovens estudantes do preparatório sentem
sobre os lugares que compõem a Maré. Medo, violência, lazer, liberdade, tristeza e
felicidade, esses são os sentimentos percebidos pelos estudantes quando se deparam
com as paisagens da Maré (Figura 3, 2018).
39

Figura 3 - Mapa Sensorial exposto no CEASM

Fonte: Fotografia tirada pela autora do Mapa Sensorial exposto no CEASM (2018).

Olhar para o mapa do Complexo da Maré e ler sentimentos – violência/medo,


lazer/liberdade, tristeza e felicidade – me fez pensar em como o que nós, na saúde, marcamos
no mapa pode não dizer nada sobre a vida daquelas pessoas e ter ideia, pela primeira vez, da
diversidade e da pluralidade daquele lugar.
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que conhecemos como
favela é chamado de aglomerado subnormal:

[...] um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos,


casas etc.) carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou
tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou
particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa (IBGE, 2011,
p. 19).

E no município do Rio de Janeiro 1.443.773 pessoas vivem em 1.018 favelas,


representando 22,8% dos habitantes da cidade (ou seja, nesta cidade, 1 em cada 5 pessoas
moram em favelas) (IBGE, 2011).
40

Mas os moradores de favelas sabem que esta definição não fala quase nada sobre sua
realidade. Reconhecendo que a representação das favelas determina políticas públicas e hoje
está calcada em preconceitos, baseados em estereótipos negativos, que não permitem
compreender a realidade social, econômica, política e cultural daquele espaço, o Observatório
de Favelas, entidade formada por moradores de favelas, também sediada no Complexo da Maré,
chama a atenção para o fato de que essa imagem sobre o que é uma favela é marcada por muita
estigmatização e por ideias de carência, de ausência – de serviços públicos essenciais e
legalização dos imóveis, como coloca o IBGE, de arruamento regular, de segurança, de direitos
(SILVA et al., 2009).
O Observatório nos lembra ainda que o que o Estado e o mercado definem como o ideal
de ocupação das cidades é um modelo baseado em teorias urbanísticas e pressupostos culturais
determinados por classes e grupos sociais hegemônicos e as favelas, por características
morfológicas e composição social, foram jogadas para a ilegalidade e a desconformidade.
Considerando todos estes aspectos, propõe o conceito de favela que prefiro usar neste trabalho:

A favela é um território constituinte da cidade caracterizada, em parte ou em sua


totalidade, pelas seguintes referências:
− Insuficiência histórica de investimentos do Estado e do mercado formal,
principalmente o imobiliário, financeiro e de serviços;
− Forte estigmatização socioespacial, especialmente inferida por moradores de
outras áreas da cidade;
− Níveis elevados de subemprego e informalidade nas relações de trabalho;
− Edificações predominantemente caracterizadas pela autoconstrução, que não se
orientam pelos parâmetros definidos pelo Estado;
− Apropriação social do território com uso predominante para fins de moradia;
− Indicadores educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do conjunto
da cidade;
− Ocupação de sítios urbanos marcados por um alto grau de vulnerabilidade
ambiental;
− Grau de soberania por parte do Estado inferior à média do conjunto da cidade;
− Alta densidade de habitações no território;
− Taxa de densidade demográfica acima da média do conjunto da cidade;
− Relações de vizinhança marcadas por intensa sociabilidade, com forte valorização
dos espaços comuns como lugar de encontro;
− Alta concentração de negros (pardos e pretos) e descendentes de indígenas, de
acordo com a região brasileira;
− Grau de vitimização das pessoas, sobretudo a letal, acima da média da cidade
(SILVA et al., 2009, p. 22-23).

Afinal, o discurso que afirma que as favelas são “territórios violentos”, como se aquele
ambiente fosse produtor de pessoas violentas e que este seja o destino inevitável das pessoas
que ali vivem, é utilizado pelo Estado para justificar a marginalização destes locais, a não
garantia dos direitos básicos de seus moradores e sua intervenção violenta, supostamente como
41

uma resposta à violência que seria própria ao ambiente e às pessoas. Com isso, desde a
truculência com que policiais e agentes das forças armadas tratam seus moradores até as
chacinas realizadas nas operações policiais, a falta de segurança alimentar, de boas escolas e de
áreas de lazer são aceitas socialmente e tanto o Estado quanto o mercado podem continuar
desumanizando e explorando as pessoas faveladas.
A Maré leva ao extremo o conceito de que territórios são vivos. Morro do Timbau, Baixa
do Sapateiro, Marcílio Dias, Parque Maré, Parque Rubens Vaz, Parque Roquete Pinto, Parque
União, Nova Holanda, Praia de Ramos, Conjunto Esperança, Vila do João, Vila dos Pinheiros,
Conjunto Pinheiros, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Nova Maré e Novo Pinheiros (conhecido
como Salsa e Merengue) compõem o território quase totalmente plano, formado
majoritariamente por ocupações espontâneas, mas também por intervenções públicas com
desapropriações, aterramento e obras de urbanização.
42

Figura 4 - Mapa do Complexo da Maré

Fonte: Redes da Maré (2019).

Hoje tenho a impressão de que na Maré tem de tudo, de que é possível não sair dali para
nada e ter ao seu alcance qualquer coisa que imaginar. Se nas definições oficiais na favela tudo
é falta, é ausência, andando por ali o que se vê é muita vida, movimento, sons, cores, cheiros,
que mudam o tempo todo. As pessoas ocupam as ruas e se apropriam dela não só para se
locomover, mas para lazer, trabalho, comunicação. Maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro,
formado por 16 favelas em uma área que começou a ser ocupada na década de 1930, o
Complexo da Maré hoje tem cerca de 140 mil moradores (REDES DA MARÉ, 2019).
Dominada pelo tráfico de drogas, dividida e disputada por 3 diferentes facções, é
constantemente alvo da necropolítica do Estado brasileiro que autoriza forças militares a
43

invadirem o território de forma truculenta, atirando a esmo, deixando claro que, para quem
define as políticas nesse país, aquelas vidas não importam.
Vidas, em sua maioria, negras. Segundo o Censo da Maré, 62,1% das pessoas que vivem
no Complexo são negras (52,9% pardas e 9,2% pretas), 36,6% brancas, 0,6% indígenas e 0,5%
amarelas. Sua população é majoritariamente jovem e mais um dado denuncia o genocídio da
juventude negra que habita aquele território: a partir da faixa etária dos 19 anos, quando
começam a incidir as causas externas de morte que atingem mais os homens, a população, antes
equilibrada entre homens e mulheres, passa a ser majoritariamente feminina (REDES DA
MARÉ, 2019).
No seu artigo sobre o movimento de lésbicas na Maré, Dayana Gusmão e Michele
Seixas chamam atenção também para a importância das pessoas vindas do Norte e Nordeste no
processo de construção dos primeiros barracos da favela e de uma rede mínima de esgoto e
captação de água, pelos seus conhecimentos na área da construção civil (GUSMÃO et al.,
2018). O Censo também reforça a origem nordestina da população: atualmente, apesar de os
nordestinos representarem pouco mais de 9% da população metropolitana fluminense, na Maré
eles correspondem a 25,8% dos moradores (REDES DA MARÉ, 2019).
Assim como o artigo sobre a história do movimento de lésbicas na Maré chama a
atenção para o crescimento do conservadorismo religioso, o Censo da Maré aponta que 47,2%
dos moradores do complexo se declaram católicos e 21,2% evangélicos e afirma que há uma
“imensa pressão contra o espiritismo e as religiões afro-brasileiras promovida nas últimas
décadas, principalmente por algumas denominações do campo pentecostal e neopentecostal”
(REDES DA MARÉ, 2019, online). Outra publicação, a cartilha Juventudes LGBT de favelas:
prevenção e enfrentamento da violência contra a juventude LGBT de favelas, elaborada pelo
Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de Favelas, falando sobre a violência neste território,
afirma que:

Nos últimos 10 anos, percebeu-se um fortalecimento substancial do número de igrejas


nos territórios de favelas. Isso acontece em parte pelo trabalho assistencial que
algumas igrejas fazem no território e em parte pela assinatura, pelo aval, do Estado
para fortalecer tal relação. Esse acirramento tornou-se mais evidente à época da gestão
Anthony Garotinho (1998 - 2002) no governo do estado do Rio de Janeiro, na qual a
distribuição de "cheques-cidadão" era administrada por igrejas evangélicas destes
territórios. Cada igreja exigia que para retirar o benefício o cidadão assistisse a um
número determinado de cultos. Essa estratégia acabou por fortalecer as igrejas nesses
territórios e acirrou a perseguição a todas as pessoas que vivem e agem de modo
diferente do previsto na Bíblia dos protestantes (CUNHA et al., [s.d.], p. 20).
44

Entretanto, em momento algum o Censo da Maré traz dados relacionados à orientação


sexual dos moradores do Complexo. Também identificando esta lacuna, a Coletiva Resistência
Lésbica da Maré, em conjunto com um grupo da Faculdade de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), iniciou um mapeamento das mulheres lésbicas e bissexuais do
território e suas redes sociais, afetivas e políticas, para que os dados possam embasar a exigência
de políticas públicas e para aumentar essa rede de relações e garantias de direitos. A pesquisa
foi suspensa pela pandemia de Covid-19, mas em 2020 Beatriz Adura Martins, mulher branca,
lésbica, psicóloga e professora da UFF e Dayana Gusmão publicaram seus resultados parciais,
tendo identificado 59 mulheres lésbicas e bissexuais em 9 das 16 favelas do Complexo da Maré
(MARTINS; GUSMÃO, 2020).
Da mesma forma que a maioria dos estudos sobre lésbicas, o mapeamento alcançou
principalmente mulheres lésbicas e bissexuais jovens – 84,7% das entrevistadas têm entre 15 e
29 anos e nenhuma mulher tem mais de 60 anos. Entretanto, ao passo que outros estudos são
realizados, em sua maioria, com mulheres brancas de classe média, em relação à raça/cor, no
Mapeamento sócio-cultural-afetivo no Complexo da Maré, 67,8% das mulheres lésbicas e
bissexuais são negras e apenas 28,8% se autodeclaram brancas e no tocante à situação
financeira, 20,3% se encontram desempregadas e 52,5% dependem financeiramente de alguém
(MARTINS; GUSMÃO, 2020).
Outro dado interessante, agora comparando com o Censo Populacional da Maré,
enquanto lá 61,5% das mulheres moradoras da Maré maiores de 10 anos já havia se tornado
mãe (REDES DA MARÉ, 2019), 88,1% das mulheres lésbicas e bissexuais entrevistadas no
Mapeamento não têm filhos. Essa diferença também é muito grande em relação à filiação
religiosa: 69,5% não são filiadas a nenhuma religião e 20,3% são filiadas a religiões de matriz
africana, provavelmente refletindo a forma como as religiões cristãs costumam lidar com a
diversidade sexual e o papel da mulher na sociedade.
Mais duas análises do Mapeamento são importantes para este trabalho. O primeiro se
refere ao acesso aos serviços de saúde e reforçam a importância de, na Atenção Primária à
Saúde, olharmos para o processo de saúde e adoecimento de mulheres lésbicas em favelas e
periferias: das 59 entrevistadas, 48 dizem conseguir acesso ao SUS e, destas, 47 acessam sua
Clínica da Família de referência. A outra traz dados relacionados ao preconceito enfrentado por
estas mulheres: 51,2% não se sentem confortáveis com a família pela orientação sexual; 69,5%
se sentem seguras para namorar mulheres apenas em alguns locais do Complexo da Maré e
10,1% não se sentem seguras em nenhum lugar na favela; 79,6% já sofreram preconceito
45

(dentro e/ou fora da Maré), 74,6% sofreram violência psicológica e 22% afirmam que já foram
agredidas fisicamente (REDES DA MARÉ, 2019).
Espero trazer para esse trabalho um pouco dessa relação com o território, de sentimentos
de mulheres que vivem ali, traduzidos por elas mesmas, da percepção da heterogeneidade do
Complexo da Maré e da heterogeneidade das mulheres lésbicas que vivem na Maré e seus
olhares para sua lesbianidade e para como ser uma mulher lésbica vivendo neste território
influenciou seu processo de saúde e adoecimento ao longo da vida.
46

10 METODOLOGIA

Não faria sentido escolher para este trabalho uma metodologia que se propusesse neutra
ou apenas racional, na qual meu envolvimento com o tema e com a pessoa que dele participou
não estivesse evidente e fizesse parte de todas as suas etapas. Enquanto pesquisa qualitativa,
importam aqui as vivências da mulher lésbica entrevistada (e as minhas) e a percepção que
temos destas experiências.
Sendo este um estudo das relações entre lesbofobia e processo saúde-adoecimento, se
fez necessário escolher uma entrevistada entre as que efetivamente pudessem contribuir para o
ampliamento do pensamento sobre o tema. A pergunta: “quem entrevistar?” tornou-se, assim,
central. O entendimento do significado da experiência de lesbofobia e sua relação com o
processo saúde-adoecimento fez com que a História Oral (ALBERTI, 2005) fosse escolhida
como método nesta pesquisa. A História Oral prioriza entrevistar quem viveu situações, quem
pode fornecer depoimentos significativos, numa espécie de método para registrar a relação ou
o papel estratégico da pessoa entrevistada com o tema da pesquisa.
Assim, a posição e a disponibilidade da entrevistada escolhida foram fundamentais para
a definição sobre o método. Ser uma mulher lésbica que nasceu e vive no Complexo da Maré
era, obviamente, pré-requisito. Mas foi importante também trocar com alguém que fosse capaz
de refletir sobre a sua própria vivência e, sabendo que não é possível universalizar sua
experiência, conhecesse outras histórias – não só outras mulheres – de lesbianidade e lesbofobia
na Maré. Achei interessante também que a sapatão escolhida tivesse uma atuação política, tanto
para que a reflexão oriunda desta militância estivesse presente nesse estudo quanto por acreditar
que a politização traz um olhar diferenciado e mais qualificado para os processos vividos pela
lesbofobia e para o próprio território da Maré.
Na História Oral, a importância da disponibilidade e da circunstância de vida e
envolvimento com o tema da pessoa entrevistada tem grande relevância, sendo mesmo
determinante para o rumo do estudo. A predisposição para falar sobre o passado e o presente, o
grau de envolvimento com o tema, o estilo de fala da entrevistada é que determinam se aquele
depoimento traz contribuições para o conjunto da pesquisa; fazendo com que a escolha da
entrevistada, por mais criteriosa e cuidadosa que seja, “só é plenamente fundamentada no
momento de realização das entrevistas, quando se verifica, em última instância, a propriedade
ou não da seleção feita” (ALBERTI, 2005). Na História Oral os critérios do pesquisador antes
de iniciada a entrevista podem ser completamente frustrados ou completamente surpreendidos;
o inesperado passa a fazer parte integrante da coleta de dados. Por isso, uma das decisões mais
47

importantes é escolher pessoas dispostas a falar sobre si com intensidade, onde não seja um
problema revelar sua posição e experiência, onde um diálogo franco e aberto para prestar um
depoimento aprofundado e absolutamente singular possa acontecer. Se a pessoa pesquisada tem
uma percepção aguda sobre sua experiência e tem também uma visão de conjunto sobre o tema,
possivelmente fará uma entrevista satisfatória.
Assim, convidei para construir comigo este trabalho Dayana Gusmão, mulher negra,
cria da Maré, assistente social, que no período desta pesquisa é mestranda do Programa de Pós
Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), assessora da Fiocruz para questões de gênero e raça e coordenadora geral da Casa
Resistências Espaço de Cultura Mareense, espaço de produção de cultura e saúde e acolhimento
de lésbicas de favelas em situação de violência. Dayana foi fundadora da Coletiva Resistência
Lésbica da Maré e já foi coordenadora política da Articulação Brasileira de Lésbicas, além de
ter trabalhado na ONG Conexão G e na Redes da Maré.
Começou a descobrir sua sexualidade ainda na adolescência, no final dos anos 90, início
dos anos 2000. De família evangélica, passou por vários processos de violência, levou anos
para aceitar e assumir sua lesbianidade, mas hoje, aos 36 anos, além de uma liderança
reconhecida em todo o país no movimento sapatão, vive plenamente sua sexualidade, tem um
relacionamento saudável que é fonte de cuidado e inspiração e consegue falar sobre tudo que
passou. Filha de Iansã, “uma força guerreira, perigosa, insubordinada” (WERNECK, 2010),
essa mulher brilhante é também uma força da natureza, capaz de, como ventania, mudar o
mundo por onde passa. Mas também sabe ser leve, ser brisa, sem deixar de ser inspiração e
força.
A pergunta sobre quantas pessoas entrevistar persegue qualquer pesquisador, mas na
História Oral ela depende diretamente dos objetivos da pesquisa, podendo ser, portanto, restrita
a apenas uma única pessoa, especialmente se seu depoimento for suficientemente significativo
e possibilitar construir uma interpretação bem fundamentada. Outro aspecto importante é o
estilo de entrevista a ser adotado pela pesquisadora. Neste estudo a escolha foi por realizar uma
entrevista de história de vida e não uma entrevista temática, principalmente pelo fato de que a
narrativa da trajetória de vida, apesar de demandar mais tempo para ser realizada, possibilita
uma abordagem relevante e aprofundada, critério fundamental para os resultados esperados.
Através da história de vida podemos conhecer melhor a experiência pessoal, o discurso, as
referências. Por isto, foi importante incluir parte do período inicial de vida da entrevistada, o
que ofertou contexto para a construção dos sentidos que a levaram a participar da pesquisa, uma
vez que não foi realizado um estudo prévio sobre sua trajetória de vida.
48

Minha relação com Dayana é anterior a este projeto de pesquisa, se iniciou nas
atividades sobre saúde do movimento social de lésbicas e já dura alguns anos. Por isso, ao
decidir que estudaria saúde de mulheres lésbicas a consultei se seria possível realizar a pesquisa
na Maré e, em seguida, a convidei para participar da qualificação do projeto junto com a banca.
Após a aprovação do CEP, marcamos de realizar a entrevista na Casa Resistências Espaço de
Cultura Mareense, uma casa na Vila do Pinheiro, uma das favelas do Complexo da Maré, que
é sede da Coletiva Resistência Lésbica da Maré, local de acolhimento para lésbicas faveladas
vítimas de lesbofobia e aglutinador da cultura sapatão.
A entrevista em profundidade foi realizada com assinatura prévia do Consentimento
Livre e Esclarecido, em um único dia, com duração de aproximadamente 4 horas, sem roteiro
pré determinado, iniciando com uma nova apresentação da pesquisa, seus objetivos e como ela
havia sido construída até ali. Iniciei com um pedido: “me conta a sua história”, e a partir daí as
perguntas foram surgindo conforme a história se desenvolveu. A conversa foi gravada por
celular e posteriormente transcrita para facilitar a análise dos dados.

10.1 ANÁLISE DE DADOS

Em uma pesquisa que utiliza História Oral, o quesito análise de dados constitui a própria
transcrição e organização da entrevista e por isso é importante que se construa uma espécie de
sumário da entrevista, localizando os assuntos abordados. Aqui essa espécie de sumário da
entrevista consta como parte integrante dos itens que compõem o seguinte capítulo: Resultados
e Discussão.

10.2 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

A presente pesquisa está cadastrada na Plataforma Brasil sob o número de


Protocolo/CAAE 53114321.7.0000.5240 e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz em 28/01/2022. Esta pesquisa
obedeceu às orientações sobre ética em pesquisa da Resolução nº 510/2011 e nº 580/2018, do
Conselho Nacional de Saúde que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências
Humanas e Sociais.
49

10.3 RISCOS E BENEFÍCIOS PARA A PARTICIPANTE DA PESQUISA

Os riscos ligados à participação da entrevistada na pesquisa envolviam o possível


constrangimento durante a gravação ou desconforto ao responder algumas questões que
solicitam informações pessoais durante a entrevista. Porém, a mesma foi informada de que a
qualquer momento poderia desistir de participar da pesquisa e retirar seu consentimento, ou
apenas se negar a responder algumas das perguntas. Como o tema pode invocar sofrimento
mental prévio e presente, também existia o risco de alguns problemas de saúde serem
identificados.

10.4 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

A participante da pesquisa foi orientada sobre a natureza da pesquisa, sua justificativa,


objetivos e métodos, bem como sobre potenciais riscos e benefícios. A participante foi orientada
durante uma breve reunião prévia, sendo apresentado o termo de consentimento livre e
esclarecido (ANEXO) em duas vias para caso desejasse, voluntariamente, participar da
pesquisa. Nesse termo consta os contatos da pesquisadora e do Comitê de Ética em Pesquisa,
caso a participante necessite responder quaisquer dúvidas sobre a pesquisa, a qualquer
momento.

10.5 CUSTOS RELACIONADOS À PESQUISA

Esta pesquisa não contou com financiamento de fontes públicas ou privadas para seus
custos operacionais. Os custos associados a materiais impressos, equipamento multimídia e
áudio, transporte e alimentação da pesquisadora foram arcados pela própria.
50

11 RESULTADOS E DISCUSSÃO

11.1 ANCESTRALIDADE

Dayana começa a contar sua história não a partir de si mesma, mas de sua ancestralidade,
das mulheres que vieram antes dela. Sem contato com a mãe biológica, sua maior referência é
a avó paterna, uma mulher de origem indígena, nordestina (assim como pouco mais de um
quarto dos mareenses), trabalhadora doméstica, protestante. Saída de Alagoas com uma família
que a trouxe para trabalhar como babá, ela começa a construir a própria vida na Maré em 1939,
logo no início da construção da comunidade. Aos 102 anos, ainda é uma forte influência em
sua vida. O pai, militar da marinha, é apresentado como uma figura protetora, porém, pelas
constantes viagens a trabalho, distante, que por muitos anos não consegue defendê-la dos
abusos que sofreu. Aos 8 anos, seu pai se casa e é esta mulher que Dayana vai identificar como
mãe.
Dayana se apresenta reverenciando sua ancestralidade, num movimento de se demarcar
como corpo individual e subjetivo, mas também como corpo coletivo, fruto de estratégias de
sobrevivência e de uma teimosia em viver frente a todas adversidades impostas a corpos
racializados como inferiores. Dayana é fruto da diáspora africana e da resistência indígena que,
como as águas dos rios, acham caminhos teimosos na incessante busca pelo mar.
Dayana sabe que a luta por sua individualidade é a luta pelo direito de ser sujeito, pelo
direito de ser reconhecida como humana, numa sociedade que hierarquiza e desumaniza sujeitos
em função da ficção racial. Sua vida é a vitória da teimosia de suas ancestrais, da luta árdua e
cotidiana traçada por elas. É por isso que, por vezes, ao longo da entrevista, Dayana fala sobre
si, ora na primeira pessoa do singular e ora na primeira pessoa do plural. Não por acreditar que
sua vivência possa ser homogeneizada para a experiência de todas as mulheres lésbicas
faveladas e racializadas como subalternas, mas por se compreender como parte de um
continuum que representa a liberdade/emancipação que se busca alcançar por meio do bem
viver, como bem descreve o movimento brasileiro de mulheres negras (PRESTES, 2018), por
meio de uma sociedade efetivamente democrática, justa e capaz de romper em definitivo com
o racismo cisheteropatriarcal capitalista.
Há uma armadilha da branquitude em ler Dayana como referência homogeneizante para
todas as mulheres lésbicas faveladas, uma armadilha de silenciamento, de negação das
subjetividades diversas e da negação da lente interseccional sobre cada uma dessas vivências
marginais. O “nós” de Dayana é um contraponto a essa armadilha, à medida que se reconhece
51

como corpo coletivo, mas que busca a possibilidade de sua individualidade, de sua
subjetividade enquanto uma mulher negra favelada da Maré, em meio a tantas que se
diferenciam e se aproximam em suas diversas vivências marginais.

11.2 A MARÉ DE DAYANA

Costumo dizer que a Maré é um país, digo em tom de brincadeira, mas cada vez mais
tenho feito esta afirmação de modo político. Existem no território comunidades
angolanas, senegalesas, chinesas e gente de todo o país que encontrou nos movimentos
das marés, formas de viver e modos de habitar (GUSMÃO, 2020, online).

Em consonância com o Observatório de Favelas, Dayana não reduz a Maré a um


território de ausências. Além disso, se recusa a homogeneizar o complexo de favelas como um
território único, que deva ser pensado da mesma maneira, mas reconhece e valoriza a construção
sócio-histórica-racial de cada favela que o compõe. É possível afirmar que, para Dayana, apenas
com conhecimento sobre a dinâmica das regiões é possível pensar e produzir políticas públicas
efetivas, em consonância com as necessidades locais, tal como nos afirma o Observatório no
artigo "O que é favela, afinal?":

[...] elas devem ser reconhecidas em sua especificidade sócio-territorial e servirem de


referência para a elaboração de políticas públicas apropriadas a estes territórios. [...] é
da concretude da sua morfologia que se estabelecem as referências possíveis do que é
compreendido como uma morada digna, dotada das condições necessárias para o bem-
estar e o bem-viver (SILVA, et. al., 2009, p. 22).

Apresentando-se como “cria da Divisa”, se referindo ao território entre as favelas Nova


Holanda e Baixa do Sapateiro, região que historicamente vive conflitos intensos entre facções
rivais e entre o Estado e o tráfico, Dayana fala do quanto nessa região os moradores ouvem tiros
todos os dias, dos imóveis marcados por esses tiros e do quanto, nesta vivência, “você cresce
com a cabeça fodida”, relatando que “deu um estalinho perto de mim eu já estou me tremendo”.
Aos 12 anos, teve o que chama de “primeiro contato com o desespero do território”.
Voltando da escola com uma amiga, já estava quase chegando em casa quando os tiros
começaram: “A cena é meio turva para mim, mas o que eu me lembro da cena é de muito
barulho e muita gritaria. Depois que eu fui entender o que tinha acontecido, uma amiga tomou
um tiro no ombro, ela cai do meu lado, e eu fiquei paralisada em pé olhando, sem saber o que
fazer e aí uma vizinha abriu a porta e me puxa e então, pega a menina no colo”.
Mais uma vez o território se apresenta como local de violações mas também de potência
e coletividade: é uma vizinha quem sai de casa em meio ao tiroteio e a tira da rua, pega sua
52

amiga no colo e a leva para ser socorrida. E este momento Dayana identifica como o início de
alguma forma de militância, pois, ainda criança, começa a se perguntar “por que a polícia podia
fazer isso, se não faziam no bairro onde eu estudava, por que faziam isso no bairro onde eu
moro?”.
Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira, escreve sobre a divisão racial presente nas
cidades brasileiras, afirmando que favelas e periferias são espaços racializados como negros.
Nesses espaços, o Estado se apresenta não com a função de proteger e garantir direitos para
quem ali habita, mas sim de produzir medo e contenção social (GONZALEZ, 1984). Favelas e
periferias são o lócus principal da política Estatal de genocídio da juventude negra. É falacioso
pensar que o Estado está ausente nas favelas da Maré. Pelo contrário, este se faz presente
quando o caveirão circula pela comunidade dizendo que veio “roubar a alma dos moradores”,
se faz presente quando autoriza as forças de segurança pública a adentrar os territórios com
helicópteros e caveirões atirando a esmo, reforçando a ideia de que todo morador de favela ou
periferia é bandido em potencial e portanto pode ter seu corpo e mente violados por balas que
nunca são perdidas.
Tal como nos relata Dayana, a presença violenta das forças de segurança pública nos
territórios de favelas e periferias produz impactos imensuráveis nos processos de saúde e
adoecimento das populações afetadas. A sensação de menos valia, o medo constante, o estresse
pós-traumático que se atualiza cotidianamente, a constante tarefa de lidar com a morte, a
impossibilidade de viver o luto apropriadamente são apenas alguns exemplos de como a
banalização da violência impacta a vida de moradores de favelas.
Após este episódio, a família se muda, inicialmente para a Baixa do Sapateiro e
finalmente para o Timbau que, segundo ela, é considerada “a Zona Sul da favela”. Alguns anos
depois, no final dos anos 90, início dos anos 2000, a violência policial recrudesceu, a Polícia
Militar do Rio de Janeiro começou a fazer operações com os tanques blindados conhecidos
como “caveirão”. Em sua tese de doutorado, a também cria da Maré Marielle Franco, socióloga,
negra, lésbica, assassinada pelo Estado brasileiro no ano de 2019, questiona as Unidades de
Polícia Pacificadora como projeto político de inclusão social de áreas de favela e periferias.
Para a autora, o nome do projeto parte do pressuposto que as favelas precisam ser pacificadas,
como se fossem áreas de produção de marginalidade e violência, o que denota uma visão
estereotipada sobre essas regiões. Marielle (FRANCO, 2014) sugere que tal política de
“inclusão” deveria receber o nome de Unidade de Políticas Públicas, com o objetivo de garantir
cidadania e direitos constitucionais para moradores de favela e periferia. A instabilidade do
território faz com que a família se mude para Belém, no Pará, onde viveram por quase 3 anos.
53

11.3 PROTESTANTISMO

A igreja evangélica faz parte da vida da família de Dayana há muitas gerações – como
ela conta, seu avô fundou uma delas. Parte de sua socialização desde a infância, participa de
diversos grupos da igreja e no início da adolescência já é reconhecida como uma liderança
dentro desta comunidade. Mas também é neste ambiente que recebe o rótulo de “indomável”,
"Eu era sempre a que não prestava, porque eu encobria todo mundo, não comia ninguém, e
era sempre a culpada, era sempre a má influência: “não anda com a Dayana``”.
O protestantismo nasce na Alemanha no século XVI como uma religião cristã,
dissidência do catolicismo. Suas igrejas são conhecidas como evangélicas por se basearem nos
quatro evangelhos do Novo Testamento bíblico e dizem que a Bíblia é sua única regra de fé e
prática (AGUIAR et al., 2021). Com o colonialismo e a expansão capitalista que dizimou e
dominou outras culturas, o cristianismo é imposto às sociedades colonizadas e, apesar de ainda
haver uma dominância do catolicismo na América Latina, as igrejas protestantes vêm, desde o
século XIX, ganhando cada vez mais força no Brasil, especialmente em favelas e periferias de
zonas urbanas. Atualmente, as igrejas evangélicas são um dos principais espaços de
socialização nestas áreas pois, além de se mobilizarem para suprir uma série de demandas das
quais o Estado se desresponsabiliza - de assistência social, mas também de saúde, educação e
saneamento – se apresentam como um espaço seguro contra a degeneração moral que,
apregoam, é a responsável por todos os males da nossa sociedade (SENHORAS, 2016).
Entretanto, se por um lado a igreja é capaz de proteger de algumas violências, ela produz
muitas outras. A Pastora Ivana Warwick, mulher transgênera, brasileira, branca, relata:

Embora fundamentadas no Novo Testamento, a interpretação literal do Antigo


Testamento é utilizada pela maioria das igrejas evangélicas para condenar as
orientações sexuais e as identidades de gênero fora da norma
heterossexual/cisgênero… muitas igrejas fundamentalistas, geralmente pentecostais e
neopentecostais, possuem lideranças que pregam um discurso de ódio contra pessoas
LGBTQIA+ por meio de cultos de cura da homossexualidade, exorcismo do demônio
e apoio a movimentos políticos conservadores (AGUIAR et al., 2021).

Dayana reconhece que a religião protestante é responsável por muita repressão, por uma
relação ruim com os corpos femininos e por muitos tabus. Mas conta que também foi nesta
socialização no ambiente da igreja que percebeu que “alguma coisa muito esquisita” estava
acontecendo quando entendeu uma atração sexual diferente da de suas amigas - não queria ficar
com os meninos como elas. A primeira menina por quem sentiu interesse também era da igreja
54

e foi de lá que veio a reação a esse relacionamento: Dayana passou a sofrer um processo que
chama de exorcismo, um ritual que une jejum, oração e leitura da Bíblia a violência física e
psicológica por aproximadamente 3 dias a cada episódio.
E assim como para a maior parte das mulheres lésbicas, o primeiro perpetrador da
violência é a família de origem. Mãe e avó eram quem impunham as sessões de exorcismo,
sempre na ausência do pai, que viajava muito a trabalho. Quando ele estava em casa, eram
constantes as ameaças sobre o que aconteceria quando ele novamente viajasse. Iniciadas aos 15
anos, Dayana relata 18 sessões de exorcismo até ser expulsa da igreja. Apesar de já estar há
muitos anos fora deste ambiente, ela ainda afirma que “quando eu digo que o exorcismo
religioso dá certo, ele dá certo, ele te traumatiza”, relembrando dos primeiros anos que viveu
distante da igreja.
Infelizmente, o Mapeamento Sócio-Cultural-Afetivo das Lésbicas e Mulheres
Bissexuais do Complexo da Maré nos mostra que a tentativa de conversão da sexualidade que
Dayana sofreu não é um acontecimento isolado ou tão raro quanto gostaríamos: das 59 mulheres
entrevistadas na pesquisa, onze delas relataram terem sido submetidas a alguma forma de
tratamento de conversão, das quais dez tinham um cunho religioso, seja da própria religião ou
da família (MARTINS; GUSMÃO, 2021).
A mágoa que ela traz vem também de um sentimento de não ter sido protegida por
ninguém. Ao contrário, a comunidade religiosa, que prega a compaixão e o amor, apoiou por
cerca de 3 anos a tortura física e psicológica de uma adolescente e mais de uma vez ela repete
“Eu não tenho ranço (da igreja) à toa”.

11.4 VIVÊNCIA LÉSBICA

O exercício da lesbianidade dentro da Maré não é de simples compreensão porque


aglutina tantas incidências que demanda um olhar atento para não cair no fatalismo
de que é impossível ser uma lésbica feliz vivendo na Maré e ao mesmo tempo não
criar um lugar de romantização das situações vividas pelas mulheres não
heterossexuais da Maré (GUSMÃO, 2020, online).

11.4.1 Entendendo-se e assumindo-se lésbica

Dayana conta que por volta dos 15 anos percebeu que tinha “alguma coisa muito
esquisita” em relação a sua sexualidade, que não tinha vontade de ficar com meninos como
suas amigas, mas diz que “não sabia que aquilo era ser sapatão”. Não tinha qualquer referência
sobre lésbicas ou mulheres que ficavam com outras mulheres, citando novamente a repressão
55

familiar em relação a determinados assuntos. Em texto publicado na revista Le Monde, Dayana


relata:

Lembro que quando era pequena e morávamos na divisa da Nova Holanda com a
Baixa do Sapateiro, tinha uma vizinha que morava há muitos anos com uma amiga. A
vizinhança sempre comentava sobre a “mulher machinho”, mas o assunto nunca foi
falado conosco. Não parecia coisa da qual crianças devessem se ocupar. Ao mesmo
tempo em que toda vizinhança comentava num tom claramente lesbofóbico, a rede de
cuidados construída pelas mulheres da vila que abrigava mais de 50 moradores, não
excluía as duas mulheres. Só me dei conta que elas eram um casal quando eu já tinha
uns 19 anos e elas se separaram (GUSMÃO, 2020, online).

É um dos aspectos da heterossexualidade compulsória (RICH, 2019) se mostrando no


cotidiano: o apagamento das vivências lésbicas que estão acontecendo desde sempre em todos
os territórios e épocas. Ao nomear o casal de mulheres como amigas e invisibilizar a
lesbianidade, aquela comunidade impede que adolescentes como Dayana (ou mesmo que
mulheres adultas) percebam que existem outras formas de viver sua sexualidade e, faz com que,
ao se perceberem atraídas por mulheres, não reconheçam a possibilidade afetiva da
lesbianidade. A interdição do aparecimento de personagens femininas que se relacionam com
outras mulheres em filmes, novelas ou livros; a proibição de se falar nesse assunto em casa ou
na escola e a insistência nas imagens do relacionamento heterossexual como único possível são
formas de dizer às meninas que seu único destino possível é estar com homens.
Quando, ainda aos 15 anos, beija uma menina da igreja na praça e esse comportamento
é duramente repreendido, a identidade sapatão é suprimida. Afirmando que o exorcismo
religioso a deixou traumatizada, Dayana lembra que após sair da casa dos pais e conquistar
independência financeira, aos 18 anos, não só não conseguiu assumir um relacionamento com
outra mulher, porque se sentia “radicalmente errada”, como casou-se com um homem. Apesar
de, após quase 5 anos, terminar o casamento para iniciar um relacionamento com uma mulher
por quem se apaixonou, ela conta que foi apenas cerca de 10 anos depois disso que conseguiu
dizer “eu sou sapatão”.
Essa dificuldade demonstra nitidamente o que a teoria chama de lesbofobia internalizada
(VIEIRA; BORRET, 2021). Desde o nascimento a heterossexualidade compulsória da nossa
sociedade nos diz que o correto, o normal é ser heterossexual. No caso de Dayana, como para
boa parte das adolescentes que experimenta se relacionar com outra menina, a vivência lésbica
é duramente punida e associada a coisas demasiadamente negativas – seja pecado, possessão,
seja doença, loucura, crime. Associar-se a essa imagem, mesmo após se afastar da igreja e não
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estar mais dependendo da família, mexe com valores e crenças que estão arraigadas muito
profundamente, para além do que acreditamos conscientemente.
Dayana acredita que essa dificuldade teve relação com um “ranço protestante”, mas
também com não querer se submeter a um rótulo. Mesmo depois de assumir pela primeira vez
um relacionamento com outra mulher e de estar trabalhando no Programa do governo estadual
do Rio de Janeiro Rio sem Homofobia, um espaço em que se espera haver uma receptividade
maior para pessoas LGBTIA+, foi apenas com o fim conturbado do relacionamento que todos
souberam de sua orientação sexual. Neste ambiente de trabalho conta que tentava “se marcar
hétero” e que por muito tempo dizia que não era sapatão, mas era “mulher de sapatão”.
Apesar de ter estado com mulheres desde a adolescência, é apenas após se separar do
marido, quase 10 anos após aquele beijo na praça, que viveu um primeiro relacionamento
estável com uma mulher.

11.4.2 Violências lesbofóbicas

Uma menina de 15 anos sente atração sexual por alguém da mesma idade, com quem
convive na igreja, se encontram em uma praça junto com outros adolescentes e se beijam. Uma
cena corriqueira, que não incomodaria, se as envolvidas não fossem duas meninas. Ao serem
vistas nesse momento, ambas se tornam vítimas de diversos tipos de violência que, ao menos
para Dayana, continuam se repetindo ao longo da vida e repercutindo em diversos aspectos.
Muitos problemas de saúde são gerados por níveis elevados de sofrimento pela violência
estrutural, física, psicológica, sexual e simbólica que lésbicas sofrem na família, na escola, no
trabalho, em lugares públicos, etc. Os números dessa violência são imprecisos e subestimados,
porque as vítimas não se sentem seguras para denunciá-la e porque, quando o fazem, os serviços
de saúde ou segurança que as recebem não registram a motivação lesbofóbica da agressão.
Desde os primeiros episódios, o principal perpetrador de violência na vida da
entrevistada foi a família de origem. Ao mesmo tempo em que reconhece a importância da avó
e da mãe ao começar a contar sua história por elas, Dayana as percebe como pessoas que a
agrediram de diversas formas. A violência da qual ela mais fala é o exorcismo religioso, mas
também conta que “minha mãe me mordia, me batia” e ao mesmo tempo diz que “minha avó
sempre foi mais violenta que minha mãe”.
O Mapeamento Sócio-Cultural-Afetivo das Lésbicas e Mulheres Bissexuais do
Complexo da Maré (MARTINS; GUSMÃO, 2021) também encontrou esse perfil doméstico
nas violências sofridas pelas mulheres entrevistadas: 8,5% delas afirmaram ter sofrido violência
57

física e 25,4% disseram que sofreram violência psicológica dentro de casa. Ao mesmo tempo,
37,3% relataram preconceito da família quando revelaram sua orientação sexual, 15,3% nunca
revelaram essa orientação para a família e uma entrevistada relatou ter sido expulsa de casa
quando a família soube da sua orientação sexual.
Apesar da família ser a origem mais conhecida de violência contra pessoas LGBTIA+,
ainda há poucos estudos sobre as características ou motivações dessa violência (TEIXEIRA et
al., 2021). Crenças religiosas, a convicção de que a orientação sexual é uma escolha e pode ser
corrigida, vinda de pessoas também cresceram em uma sociedade ainda mais heteronormativa
e preconceituosa, frustração com a quebra da expectativa da vida idealizada para aquela filha,
tentativa de enquadrá-la num modelo considerado normal, inclusive para evitar agressões
vindas da sociedade em geral são alguns dos relatos. De qualquer forma, para mulheres lésbicas,
a família, longe de corresponder ao ideal romantizado de segurança e afeto, muito
frequentemente é a primeira e às vezes maior produtora de violência e sofrimento.
Além da agressão física, de impedir o acesso a comida e de sair de casa, Dayana sofreu
muitas violências psicológicas e chama atenção a forma como fala delas: “No momento que eu
começo a passar por esse exorcismo, elas começam a quebrar as minhas perspectivas, então
assim “você não vai fazer faculdade, você nunca vai ser nada, porque você não quer seguir
Jesus” ou “Só que a violência psicológica faz um negócio contigo que é... ela paralisa. A minha
sensação com a violência psicológica, sabe aquela imagem do cavalo preso na cadeira de
plástico? É a minha sensação com a violência psicológica. Então eu saí de casa, achando que
agora eu vou viver e eu não consegui me relacionar com as mulheres, porque eu me sentia
radicalmente errada. Quando digo que o exorcismo religioso dá certo, ele dá certo, ele te
traumatiza.”
É entendida como violência psicológica qualquer conduta que cause danos emocionais
e diminuição da autoestima com o objetivo de degradar ou controlar ações, comportamentos,
crenças e decisões através de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante ou insultos (TEIXEIRA et al., 2021). Há estudos com adolescentes
LGBTIA+ que mostram que ela é, além da forma mais prevalente de violência, a que causa
mais sofrimento e mais agravos, levando desde quadros de diminuição do autocuidado, maior
frequência de uso prejudicial de álcool e drogas, transtornos alimentares, depressão, ansiedade
até a mais chances de pensar e tentar suicídio (NATARELLI et al., 2015). Além das violências
que ela mesma sofreu, Dayana traz em seu relato uma das formas mais extremas de violência
lesbofóbica intrafamiliar: muitos anos depois, descobriu que uma menina com quem se
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relacionou ainda não adolescência havia sido expulsa de casa após sua experiência homossexual
ser descoberta.
Outra informação que Dayana traz sobre a violência intrafamiliar é que ela se intensifica
ao se mudarem para Belém, por aquele ser um ambiente ainda mais conservador. As grandes
metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, pela convivência de pessoas de origens, credos,
raças e sexualidades mais diversas permitem de alguma forma uma gama maior de expressões
de ser e estar no mundo e, ainda que o ambiente da favela talvez não permita o anonimato
relativo de outras áreas dos grandes centros urbanos, sendo parte da cidade ela também constrói
e absorve essa cultura menos opressora.
É possível identificar na história de Dayana mais uma forma de violência interpessoal,
a violência moral - quando o agressor comete calúnia, injúria ou difamação contra a vítima para
desmoralizá-la perante um grupo ou a sociedade (TEIXEIRA et al., 2021). Quando termina a
relação com o ex-marido para ficar com uma mulher, ele ameaça expor intimidades de quando
ainda eram um casal e sua nova relação com uma mulher, dizendo que vai “destruir sua
imagem”. Vemos aí um homem que, em uma ameaça machista e lesbofóbica, usa da lesbofobia
estrutural e de todas as violências que a vítima sabia que estaria exposta em uma tentativa de
submetê-la a sua vontade.
É interessante notar o papel da escola e da educação nesta relação com a violência que
Dayana sofreu. Muitos adolescentes LGBTIA+ identificam a escola como mais um perpetrador
de violência, seja institucionalmente, seja na relação com colegas e professores. Em 2016 foi
realizada no Brasil uma pesquisa com jovens LGBTIA+ sobre o ambiente escolar e 72,6%
revelou já ter sido agredido verbalmente na escola por sua orientação sexual e 69,1% ouviu
comentários LGBTIfóbicos de professores ou funcionários da escola. (ALBUQUERQUE,
2016) Na pesquisa, mais da metade (55,9%) disseram que as medidas tomadas pela instituição
para lidar com a violência foram ineficazes (ALBUQUERQUE, 2016).
Entretanto, além de não trazer este relato, quando conta sobre o momento em que
rompeu o ciclo de violência vinda da mãe, Dayana fala que “eu estava um pouco envolvida por
conta escola, já entendendo um pouco mais os meus direitos ali em termos de não-violência”.
Conta que via a escola como um refúgio e fala especialmente de uma professora de quando
vivia em Belém, que se aproximou e a convidou para um grupo que tinha com alguns alunos
sobre literatura, no qual faziam discussões sobre violência. Estas discussões foram fazendo com
que Dayana refletisse sobre o que vinha passando: “Ali entendi que o que eu sofria em casa
não era mau humor da minha avó, que aquilo não tinha relação com amor”. E termina com
uma frase que certamente deixaria feliz aquela professora: “Talvez ela nunca saiba o quanto
59

me salvou, mas no final das contas acho que é isso que um defensor de direitos humanos faz, a
gente vai espalhando centelhas de liberdade”.
Dayana diz ainda que sempre considerou a educação importante, inclusive para ter
condições de romper com o ciclo de violência e deixar de depender da família ou de qualquer
outra pessoa. Sempre doeu muito ouvir as familiares dizerem que não faria faculdade, que “não
seria ninguém por não seguir Jesus”. Estudou em escolas públicas toda a vida
(tradicionalmente desvalorizadas no nosso país) e, aos 17 anos, completando o Ensino Médio,
passou no vestibular para duas universidades públicas. Retornando ao Mapeamento Sócio-
cultural-afetivo de Lésbicas da Maré, vemos que o investimento na educação parece ser algo
comum a estas mulheres: 44% completaram o Ensino Médio e 42,3% estão no ou completaram
o Ensino Superior.
Dayana tinha um plano para sair da violência à qual estava submetida dentro de casa:
juntar dinheiro e, assim que pudesse, ir morar sozinha. Um dos aspectos marcantes em uma
relação violenta intrafamiliar contra adolescentes é a dependência financeira. Dificilmente o
jovem que está descobrindo sua sexualidade aos 12, 15 ou 17 anos tem condições materiais de
sair de uma situação de violência dentro da própria casa. Por mais que os vínculos emocionais
possam ser rompidos, a dependência mantém o adolescente ali. Trabalhando desde os 14 anos,
Dayana juntou dinheiro e aos 18 anos conseguiu sair de casa.
Entretanto, conviver com a lesbofobia ao longo da adolescência sempre tem
consequências com implicações sobre a saúde, sofrimento psíquico e adoecimento. Uma
pesquisa (MONGIOVI, 2018) realizada no Brasil demonstra que a vivência da homofobia pode
desencadear comportamento depressivo, ansiedade, medo, ideação e tentativa de suicídio entre
os adolescentes. Neste estudo qualitativo relata-se que os impactos negativos abrangem também
os seus hábitos de vida e de autocuidado, acarretando inadequações do padrão de sono,
alimentação e atividade física e a associação destes fatores como desencadeantes de sintomas
físicos como dores de cabeça, no corpo, vômitos e desmaio; também se relata a experiência de
homofobia a partir de violência física, verbal, psicológica e sexual, ocorridas no ambiente
escolar, na família, na comunidade, e também dentro dos serviços de saúde, quando da
solicitação de atendimento especializado em saúde.
Dayana, antes de sair de casa, tomou providências que tornaram possível sobreviver.
Aos 17 anos, além de fisicamente impedir que a mãe a agredisse, segurando suas mãos e
dizendo que revidaria se apanhasse novamente, decide enfrentar as ameaças e contar para o pai
tudo que vinha acontecendo desde os 15 anos. Falando sobre este episódio, ela reflete: “quando
você trabalha com o binômio da repressão, você coloca o pé na garganta do leão, você acha
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que venceu, só que uma hora que você der um mole, e você vai dar um mole, você vai baixar a
guarda, ele te engole, foi o que aconteceu”. Apesar da relação entre os pais nunca ter se
recuperado e da sua relação com a família ter continuado muito difícil, agressões físicas e
ameaças não aconteceram mais depois deste dia. Como ela mesma disse: “eu acho que esse
ímpeto de violência foi sendo talhado no meu corpo ao longo da vida".

11.5 MOVIMENTO SOCIAL

Existem estudos que identificam a participação no movimento social como fator de


proteção à saúde de mulheres lésbicas (FACCHINI; BARBOSA, 2006), tanto por este espaço
permitir a formação de uma rede de apoio, de um grupo de pessoas com a qual ela se identifica
e com quem é capaz de dividir seus traumas e as violências cotidianas a que é submetida, quanto
pela luta política permitir que ela dê um significado a tudo que passou (e ainda passa) e
transforme o sofrimento em ajuda para outras lésbicas. Em nossa entrevista, Dayana reconhece
esse papel da militância: "esse espaço me cura, ao fazer alguma coisa por outra mulher
violentada, de algum modo, aquilo me cura um pouco."
Se hoje ela é uma liderança reconhecida pela militância sapatão em todo o país, não
fazem sequer 10 anos que ela participa deste movimento. Sua primeira aproximação se dá por
dois caminhos, que acontecem num mesmo período: o trabalho no Rio sem Homofobia, no qual
tem contato direto com diversas ONGs e coletivas LGBTIA+ do estado, e o namoro com uma
mulher lésbica que já fazia parte do movimento.
Dayana conta que mais nova, logo que terminou a relação com o ex-marido, já havia
participado do movimento de mulheres na Maré e ali entendeu que sua principal forma de atuar
é na relação individual, a partir de conversas com outra mulher ou com grupos pequenos,
ouvindo seus problemas e pensando em soluções, e que foi assim que foi construindo sua
militância. Após deixar o emprego no Rio sem Homofobia, trabalhou na ONG Conexão G, que
atua na garantia de direitos da população LGBTIA+ em favelas no Rio de Janeiro. Lá, a partir
dessas conversas individuais, começa a aglutinar as mulheres lésbicas da Maré e se aproxima
do grupo com que fundaria a Coletiva Resistência Lésbica da Maré.
No artigo 10 anos de atuação do movimento de lésbicas no Complexo da Maré: reflexões
de sapatões faveladas, Dayana, junto com Michele Seixas, Ana Teixeira e Jéssica Andrade
(GUSMÃO et al., 2018) contam sobre esse início da organização das lésbicas dentro do
Conexão G, inicialmente feita por Jéssica com mulheres que sequer tinham se assumido
publicamente como lésbicas, até alguns anos depois chegarem a conquistar visibilidade dentro
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da favela, organizando, lideradas por Michele, a I Visibilidade Lésbica da Maré, uma atividade
dentro da programação da Semana da Diversidade da Parada LGBT da Maré. Nesse período
participaram de várias edições da Parada LGBT da Maré, capacitaram profissionais das Clínicas
da Família do território sobre saúde de lésbicas e realizaram atividades de educação em saúde,
fizeram debates com alunos do preparatório do Redes da Maré e sempre buscaram mapear onde
estavam as lésbicas na Maré e alcançá-las.
A partir dessa mobilização, Dayana e outras 5 ativistas fundaram em 2017 a Coletiva
Resistência Lésbica de Favelas, que depois originou a Coletiva Resistência Lésbica da Maré
(GUSMÃO et al., 2018). Sobre esse movimento de saída da Conexão G e criação da Coletiva,
na matéria que publicou na Revista Le Monde, Dayana conta que:

A ideia era ter um espaço seguro para escuta e sociabilidade sapatão e bi. Obviamente
outras demandas foram se apresentando e em 2017 decidimos dar tom mais político à
coletiva ocupando espaços de decisão e fazendo articulação com outros grupos
estaduais e nacionais da pauta lésbica e bissexual (GUSMÃO et al., 2018, online).

Ao mesmo tempo em que construía o movimento lésbico na Maré, o grupo que ali
atuava se articulava com outros grupos organizados no Rio de Janeiro e no Brasil e com o
movimento nacional, principalmente a Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL). Organização
presente em quase todos os estados do Brasil, a ABL visa empoderar coletivamente mulheres
lésbicas e bissexuais, promover direitos humanos e cidadania e enfrentar o preconceito, a
opressão e a violência e representa as mulheres lésbicas e bissexuais, entre outros espaços, no
Conselho Nacional de Saúde. Com essa aproximação, Dayana se envolve com a ABL e chega
a fazer parte de sua diretoria.
Entretanto, o mesmo movimento social que pode ser proteção pode reproduzir
violências e ser adoecedor. Dayana sente que se encaixar em um modelo de militância a afastou
de suas parcerias na Maré, além de impor uma agenda de compromissos que muitas vezes não
deixava espaço para outras atividades profissionais e pessoais. E estar no movimento nacional,
institucional, sem conseguir dar conta de tudo que esperam que ela dê, mais do que significado
para o sofrimento, traz ansiedade, tristeza, desapontamento.
Mas não é fácil se retirar deste espaço. Além disso levar a uma ruptura de relações
interpessoais importantes de longa data, que não entendem sua necessidade de “dar passos
atrás”, Dayana percebe o quanto o movimento social significa em sua vida: "saio da igreja e
me lanço nesse mundo, então aquilo passou a ser o meu mundo". Mas são as alterações de
saúde, corporificações do sofrimento que continuar no movimento institucional estavam lhe
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causando, e o apoio encontrado na Umbanda que a fazem questionar se estava ali porque
acreditava no que estava fazendo ou porque gostava da fama e de reconhecimento que lhe
traziam e finalmente fazem com que se afaste e invista sua energia militante em outras frentes.

11.6 SAÚDE

Em diversos momentos Dayana cita questões de saúde - desde quando diz que a cabeça
é “fodida” pelos tiros que ouvia constantemente na infância até os sintomas que experimenta
quando lida, hoje, com dificuldades no movimento social lésbico ou com meninas que sofreram
violência e a procuram contando suas histórias: irregularidade menstrual, queda de cabelo,
enjôo, vômito, dores, alterações de pele. E, quando pergunto diretamente o que faz para se
cuidar, ela diz que “não acredita na separação cabeça-corpo” e cita algumas formas de
autocuidado que consegue ter hoje: “Eu estou fazendo terapia, floral, fazendo pilates, indo para
o terreiro, fazendo os banhos do terreiro, e mesmo assim tem dia que eu falo: gente, espera
aí!".
Entretanto, na maior parte das vezes que pergunto sobre lesbofobia e adoecimento, ela
não fala só por/de si, entra em cena a Dayana militante, que pensa saúde para a coletividade,
que fala sobre demandas ginecológicas não acolhidas nas unidades de saúde, da tentativa de
construir uma relação do movimento sapatão com as Clínicas da Família e a alegação da
necessidade de sua intervenção como assistente social da Redes da Maré para a garantia de
atendimento. Ela demora para falar de seu próprio autocuidado, talvez porque esse processo de
cuidar de si, para a menina que desde cedo aprendeu que devia ser forte, ainda é incipiente. É
possível perceber também o quanto esse reconhecimento de que precisa - e de que pode precisar
- de cuidados é muito incentivado pela companheira. Ao mesmo tempo em que busca cuidado
em saúde para a coletividade de lésbicas, Dayana tem uma grande facilidade de negar cuidado
para si mesma.
Apesar de dizer que consegue ter uma boa relação com as Clínicas da Família, são as
dificuldades e as experiências negativas que mais surgem na conversa. Em uma roda de
conversa que participamos juntas há alguns anos, Dayana contou sobre um episódio que marca
o início do movimento de lésbicas na Maré, mas que ilustra a violência institucional que muitos
estudos afirmam existir em vários lugares do mundo: uma menina lésbica buscou atendimento
em uma das Clínicas da Família que cobre o território do Complexo da Maré. O médico, um
homem branco, idoso, não perguntou sobre o comportamento sexual da paciente, que nunca
tinha tido relações sexuais com penetração vaginal, e decidiu fazer um exame ginecológico
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utilizando um espéculo. Inseriu o instrumento, causando sangramento e dor intensa na menina


que, em um reflexo, levantou a perna e acertou o rosto do médico. O profissional, além de não
reconhecer seu erro nem se preocupar com a paciente, a acusou de agressão, gritou e desferiu
uma série de insultos lesbofóbicos. Quando a paciente conseguiu destrancar a porta e sair da
sala, outros usuários estavam assustados do lado de fora e a acolheram e defenderam.
Essa história nos possibilita fazer duas importantes reflexões: sobre como a comunidade
é capaz de se apoiar, se unir e combater violências do Estado, ainda que este Estado esteja
representado por um profissional de saúde com sua suposta neutralidade médica, demonstrando
uma negativa a aceitar que um profissional exerça cuidado em saúde de maneira violenta e
desrespeitosa com moradores dali. A outra é sobre a instituição saúde, ali representada por este
profissional, em sua inabilidade declarada em reconhecer e acolher uma mulher lésbica, em
reconhecer suas próprias limitações e deficiência enquanto profissional e sua incapacidade de
ser humilde para reconhecer erros, se desculpar e buscar caminhos de diálogo e construção
conjunta de um cuidado em saúde. O conhecimento da história e acolhimento dessa menina por
outras lésbicas do Complexo deram início à organização local que até hoje, cerca de 15 anos
depois, luta por direitos e continua acolhendo as meninas e mulheres lésbicas da Maré.
Dayana conta, na entrevista, sobre a primeira vez em que atuou como liderança lésbica
no Rio de Janeiro na relação com a Atenção Primária: um grupo de meninas de uma favela na
Zona Oeste pediu ajuda por várias estarem com queixas ginecológicas e ela, além de costurar o
atendimento na Clínica da Família de referência, participou de um primeiro atendimento em
grupo, porque a enfermeira que faria esse atendimento falou “Olha, eu não sei nem por onde
começar essa conversa com essas meninas". Importante frisar que, neste caso, a enfermeira
(diferente do médico no relato anterior) reconhece sua inabilidade e pede ajuda, mas fica a
reflexão do quanto a formação em saúde não inclui a capacitação de profissionais para lidar
com mulheres que fazem sexo com mulheres e que, para que essas mulheres tenham acesso ao
direito constitucional à saúde, é preciso não só garantir acesso, mas também qualificar
profissionais para estes atendimentos.
Nesta busca por assistência à saúde digna para lésbicas na Atenção Primária no Rio de
Janeiro, e especialmente no Complexo da Maré, Dayana diz que sempre escuta um mesmo
argumento por parte dos gestores: "você não pode dizer que tem uma população não atendida,
porque você não tem um número”. É uma denúncia grave, porque a Política Nacional de Saúde
Integral LGBT já coloca essa população como prioritária por ser atravessada pela LGBTfobia,
e mesmo que houvesse apenas uma mulher lésbica em todo o território, pelos princípios da
universalidade e, especialmente, da equidade, as Clínicas da Família deveriam se organizar para
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acolhê-la com dignidade e respeito. Por parte de Dayana, essa foi uma das motivações para a
construção, em parceria com a Universidade Federal Fluminense, do Mapeamento Sócio-
cultural-afetivo de Lésbicas e Mulheres Bissexuais de Favelas (MARTINS; GUSMÃO, 2021).
Apesar de dizer que sempre usou o SUS, Dayana não fala sobre um contato com o
sistema de saúde pelas próprias demandas. Chama atenção também, para mim, que ela fale
sempre sobre “ginecologista”, “consulta ginecológica”, “outras consultas”, mas em momento
algum fale sobre médico de família, generalista ou qualquer outra expressão que remeta à
especialidade. Como é comum ouvir por todo o país, ela se queixa também de dificuldade de
conseguir agendar consultas e demora no tempo de espera por elas nas Clínicas da Família da
Maré. Segundo o Mapeamento, pouco mais de 80% das lésbicas da Maré usam o SUS, 78%
dependem exclusivamente dele e 79,6% acessam as Clínicas da Família do território
(MARTINS; GUSMÃO, 2021).
Mesmo sendo assistente social e tendo uma formação política sólida, consciente de seus
direitos, ela, como a enorme maioria das mulheres lésbicas, não tem vínculo com uma equipe
ou uma unidade de saúde enquanto usuária e tem dificuldade tanto de acessar a APS quanto de
enxergá-la como local de cuidado. Nascida quase ao mesmo tempo que o Sistema Único de
Saúde, vivendo toda a vida em territórios negligenciados pelo classismo e o racismo da
sociedade brasileira, sendo mulher, negra, lésbica, Dayana afirma: “eu não sei fazer isso (cuidar
da saúde) separado do terreiro, então é muito nesse sentido, e também porque quando a gente
fala de cuidados e de saúde, porque o cuidado branco, medicinal, tenha me sido muito negado
enquanto direito”.

11.7 UMBANDA

Se o cristianismo – religião branca, europeia, moralista, conservadora, criada e dirigida


exclusivamente por homens – foi fonte de preconceito e violência, Dayana encontra
acolhimento, cuidado e, como ela mesma diz, “salvação” na Umbanda, religião de matriz
africana. Filha de Iansã, orixá guerreira, dos ventos e tempestades, vibrante e impetuosa, que
absorve conhecimentos e adquire habilidades dos relacionamentos que teve com outros orixás,
mulher de liderança, “bela, suave e sedutora como brisa”, “forte, resistente e furiosa como
vendaval” (SILVA, 2018), identifica o terreiro como um lugar para ter contato com uma
sabedoria ancestral.
Se para o protestantismo a menina Dayana “não prestava”, era a “má influência” que
deveria ser domada, na Umbanda a mulher Dayana é potência. Ao refletir sobre a construção
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da identidade feminina de mulheres negras em Diáspora, a médica brasileira, negra, lésbica


Jurema Werneck nos convida a perceber como influências de matriz africana permitem a
construção de uma feminilidade não necessariamente consoante com o padrão imposto e
proposto pela colonialidade ocidental cristã:

Trabalhadoras, lutadoras, as que não estão subordinadas ao poder masculino, as que


não têm ou não querem homens ou filhos (mas sem abrir mão do sexo), sensuais,
voluntariosas, fortes. Estas são algumas das possibilidades de sermos o que somos,
alguns dos exemplos de nosso repertório de identidades, ou de feminilidades, que
encontraram ressonância e pertinência entre nós ao longo dos séculos, sendo atuantes
até hoje, século XXI (WERNECK, 2010, p. 79).

A intelectual negra nigeriana Oyeronke Oyewumi (2021), discute, a partir de estudos


sobre o povo iorubá, o quanto a categoria mulher é uma categoria não universal, produzida no
seio do pensamento colonial e imposta a outras dinâmicas socioculturais com o intuito de
validar a colonialidade de gênero como uma narrativa universalizante. Na perspectiva iorubá,
não existe uma suposta inferioridade feminina ou posição referenciada da mulher na sociedade.
As representações ditas femininas de orixás na religião de matriz africana (Oxum, Nanã,
Iemanjá, Iansã, Obá) não expressam a feminilidade ocidental cristã colonial. Pelo contrário,
representam mulheres potentes, plurais, insubordináveis, insubmissas, cientes de suas vontades
e desejos. Na contramão das religiões cristãs, que objetivam produzir mulheres conforme os
interesses do vigente sistema patriarcal, as religiões de matriz africana abrem espaço para que
mulheres se permitam ser sujeitas integralmente. Se na adolescência Dayana enfrenta
dificuldades em ser aceita na igreja evangélica por não se comportar tal como o roteiro de
gênero pensado para si, na vivência da umbanda, seu comportamento ventania encontra
acolhida e ressonância em Iansã.
Coincidindo com isso, o Mapeamento Sócio-cultural-afetivo das lésbicas da Maré nos
mostra que 66,7% das lésbicas que dizem ter uma religião são de religiões de matriz africana e
afirma:

Das que possuem religião, colocamos diversas opções para entender quais são estas.
12 delas responderam são do Candomblé/ Umbanda/Afro-brasileira ou Africana, o
número mais expressivo dentre as respostas e que traz à tona as religiões nas quais
lésbicas e bissexuais conseguem estar (MARTINS, GUSMÃO, 2021, p. 29).

Apesar de ter crescido em um ambiente religioso, é na Umbanda que a fé realmente


passa a fazer parte de sua vida. Dayana conta que “quando eu chego no terreiro tem uma coisa
que é... eu sempre fui a senhora da minha vida, eu sempre estive no controle da minha vida. E
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os meus erros e acertos são em função disso, mas no terreiro, para que eu possa compor aquele
lugar, eu preciso abrir mão de ser a pessoa que tem sempre o controle da minha vida, para que
muitas vezes essa orientação venha de outro lugar, e de um lugar que eu não tenho provas
materiais e concretas de que aquilo vai dar certo.” E resume: “É você se jogar sabendo que
vai ter uma rede embaixo, mesmo sem certeza, você entendeu?”
Depois que falamos sobre o protestantismo e os episódios de violência por eles
impostos, não perguntei novamente sobre religião. Foi quando perguntei sobre o cuidado em
saúde que o terreiro apareceu na conversa. Dayana diz "eu não consigo pensar em cuidado sem
pensar no terreiro, para mim é meio inseperável". Quando precisou se afastar do movimento
social, foi este espaço que passou a ser seu refúgio e é ele quem guia suas escolhas desde então
e foi lá que ganhou apoio para concretizar um sonho, que une cuidado, cura, apoio a lésbicas
em situação de violência, militância e, como não podia deixar de ser, fé: a Casa Resistências.

11.8 CASA RESISTÊNCIAS

“Eu nunca tive, nem no meu maior devaneio, nunca pensei em abrir uma casa dessas.
Nem no meu maior surto.” É assim que Dayana, na entrevista, fala pela primeira vez da Casa
Resistências Espaço de Cultura Mareense. Em cima de um bar (com o nome mais que
apropriado de Bar das Minas) na Vila do Pinheiro, a Casa, inaugurada em abril de 2022 com
apoio de mandatos de vereadoras e deputadas estaduais e financiamento coletivo pela internet
(que continua aberto para receber doações em www.vakinha.com.br/vaquinha/nascimento-da-
casa-resistencias ou pelo pix 2740755@vakinha.com.br), é sede da Coletiva Resistência
Lésbica da Maré e um local de acolhimento de lésbicas faveladas que foram expulsas de casa.
Recém reformada pela Coletiva, tem um quarto com beliches e armários, banheiro e um terraço
que faz as vezes de cozinha e área de convivência e oferece moradia, apoio psicológico e social
e caminhos.
A Casa tem uma relação íntima com o terreiro. Dayana vinha sonhando com esse espaço,
sem acreditar que ele poderia um dia se tornar realidade, até que lá uma divindade lhe diz:
"Anota o sonho, desenha o sonho, escreve o sonho, esse sonho vai acontecer. Esse sonho está
no seu destino, e ele vai acontecer, e esse é o mecanismo de cura que você tanto procurava”.
A partir daí começa a falar sobre isso com outras pessoas e oportunidades começam a surgir.
Exu, o senhor dos caminhos, o orixá vilanizado que Dayana diz que “traz uma sabedoria
que é marginalizada, e eu acho que é a sabedoria que eu quero que ocupe a Casa”, é o primeiro
guia desta casa. O conceito de movimento, regido por Exu, está presente também na proposta
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de que a Casa seja um lugar para estas meninas vítimas de violência ficarem até se
reorganizarem, por poucos meses, ganhando ferramentas e forças para trilhar os próprios
caminhos. A ideia é essa, “que todo mundo que passe por aqui ganhe caminhos”.
A Umbanda, identificada como local de cuidado e cura, traz outras contribuições para a
construção do ambiente da Casa, valores que Dayana e o grupo da Coletiva entendem como
importantes na construção desse espaço: Oxalá, que rege o cuidado da cabeça; Ogum, orixá da
guerra, que ensina estratégias e a escolher batalhas; e Iansã, “para dizer que o vento que é uma
tempestade pode ser uma brisa, porque a menina que chega está desorganizada
emocionalmente, então ela vai chegar destruindo tudo. Então alguém precisa ensinar que essa
energia de destruição pode ser canalizada para outra coisa.”
Mas a Casa para Dayana representa muito mais que militância e apoio para outras
lésbicas, ela mesma diz: “a Casa vem para lembrar das minhas violências, porque eu sofri
violência dos 15 aos 18 anos, debaixo do nariz de todo mundo, todo mundo sabia, ninguém
interveio.” Se a Casa nasce para ressignificar a violência que passou, é “o mecanismo de cura
que tanto procurava”, Dayana admite que esse não é um processo fácil. Lidar com o sofrimento
das meninas que chegam vítimas de várias violências, muitas vezes bem parecidas com as que
sofreu, a faz reviver, na memória e no corpo, as dores que já gostaria de ter superado. Nesse
sentido, a Casa na história de Dayana pode ser um concreto exemplo de Sankofa. Na mitologia
iorubá, Sankofa é o pássaro que tem os pés para frente e a cabeça virada para trás, numa alusão
ao futuro, vinculado e intimamente relacionado ao passado-presente.
E o sofrimento trazido pelas mulheres lésbicas que buscam a Casa Resistências a tem
feito refletir sobre como lida com a própria dor: “porque eu comecei a trabalhar muito novinha,
depois eu preciso ser a dona da minha vida muito novinha, e nesse processo a gente vai
soterrando o corpo”. Nesse processo de “soterrar o corpo”, Dayana corporiza os sentimentos
com os quais não consegue lidar e fala diversas vezes sobre enjôo, vômito, queda de cabelo,
psoríase, irregularidade menstrual.
A Casa Resistências é um espaço sonhado e produzido por uma mulher que sofreu as
mais duras violências lesbofóbicas no passado e que compreende a necessidade de se curar
através do encontro com outras mulheres e meninas que vivenciam situações parecidas. Mas a
Casa também é espaço para que a vivência dessas violências seja percebida não de maneira
individual, mas sim coletivizada, amenizada e compreendida como uma violência produzida
pela sociedade e não uma violência internalizada. O processo de oportunizar encontros de cura
e resgate de subjetividade é uma forma de curar Dayana e também cada uma das mulheres que
atravessam a casa. Sim, a casa é espaço de travessia e não de ancoragem, como diz a própria
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Dayana. Travessia para que cada uma dessas meninas possa ser acolhida, resgatada e restituída
em todas as suas potências plurais e possa alçar voos, não ser paralisada pelas lesbofobias. A
Casa é produzida na coletividade e nas subjetividades diversas que ali se encontram para se
curar e potencializar.
Dayana fala sobre como sempre teve a imagem de uma pessoa forte e como, na Casa,
se sente convocada a ser forte o tempo todo, mas ao mesmo tempo, é “tudo menos forte”: “E
aí, como que é estar em uma casa, estar em um espaço onde você é tudo, menos forte? É muito
difícil, ao mesmo tempo eu sou convocada a ser forte o tempo inteiro, por conta das relações
políticas, das relações que tem em torno da Casa, por conta dos cuidados que eu tenho que ter.
Uma coisa que está muito forte para mim, é quem é que cuida da minha saúde mental?”
Este sentimento de que precisa “ser forte”, além da personalidade de Dayana e da
reação aos processos de exclusão e violência que sofreu no âmbito familiar, remete ao que
Regina Facchini relata no Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas ter encontrado em sua revisão:
que mulheres lésbicas buscam formas de afirmar para a sociedade e para a família que tiveram
sucesso na vida como uma forma de provar que eles estavam errados em tudo que disseram que
ela era, muitas vezes assumindo inclusive “uma desmedida responsabilização nos cuidados ou
suporte material a membros da família de origem” como forma de obter aprovação
(FACCHINI; BARBOSA, 2006).
Para lidar com isso, além do suporte da Umbanda, uma estratégia de cuidado que
Dayana vem desenvolvendo junto com suas parceiras na produção de acolhida e cuidado na
Casa, é o movimento de blindá-la do primeiro contato com as meninas que buscam a Casa. Esse
trabalho tem ficado por conta da equipe de acolhimento, composta atualmente por uma equipe
multidisciplinar, formada por duas psicólogas e uma enfermeira residente de Saúde Mental.
Para Dayana é essencial ter a casa como espaço de produção de cultura: “porque eu
entendo que sem cultura a gente não muda a sociedade, então discutir conceitos, discutir como
a gente vive, os modos de vida, é mudar a sociedade.”. Ela, que já mencionou sua descrença na
separação corpo-mente, acredita também que a produção de saúde é indissociável da produção
de arte e cultura e que só com essa confluência é possível pensar em bem viver, da maneira
como a marcha de mulheres negras reivindica essa possibilidade (PRESTES, 2018).
Outro desejo seu é criar, na Casa, uma horta para cultivo de alimentos e de plantas
medicinais, também pensando em produção de saúde e de vida. E a última fala de Dayana na
entrevista mostra, ao mesmo tempo, a grandeza dessa mulher negra, lésbica, favelada, e a vida
e a potência desse território (e vice e versa, a grandeza desse território e a potência dessa
mulher):
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“Meu sonho audacioso nos próximos anos, eu quero criar um grande corredor verde
daqui até a mata (Parque Ecológico da Maré), porque eu acho que é sobre restaurar, é sobre
reflorestar. E não só reflorestar as possibilidades de afeto, é reflorestar a vida. Eu refloresto
no concreto da Maré, para dizer: cara, tem caminho, tem possibilidade”.
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12 CONCLUSÃO

Muitas vezes ao longo desse projeto me perguntei o porquê de ter escolhido um tema
que me mobiliza tanto, especialmente nos últimos dias, tentando dar um encerramento, escrever
uma conclusão. A história me atravessa de diversas formas e sei que em muitos momentos em
que penso estar falando de Dayana estou, na verdade, falando também de mim. No fundo eu sei
que escolhi o tema exatamente por isso, por essa proximidade e afetação, ainda que
considerando profundamente a diversidade que a vivência de opressões interseccionais nos
proporcionaram. bell hooks fala sobre isso, sobre ler e escrever como um processo de cura
(HOOKS, 2017). Mas o processo de cura é lento e especialmente doloroso - muitas vezes me
fazendo postergar, muitas vezes me levando a escrever apenas um parágrafo e me sentir
extremamente cansada e muitas vezes me fazendo chorar ao ler o que escrevi. Ainda que não
curada, nesse processo, me percebo mais atenta e consciente de minhas dores e cicatrizes, além
de meus privilégios e minhas potências, e assim considero que saio mais leve e mais forte, nem
que seja apenas por concluí-lo.
Posso dizer que encontrei nesta pesquisa algo que não é parte da minha experiência
pessoal, que em poucos momentos tive acesso em minha formação profissional, poucas vezes
considerei com a intensidade devida em meu cotidiano de prática de cuidado e que não encontrei
nas leituras que tenho feito sobre o tema até aqui: a potência, enquanto produção de saúde, de
uma religião acolhedora, que não apenas aceita a diversidade sexual, mas que não impõe
modelos de comportamento ou que não tenta encerrar indivíduos em normas limitantes. A
relação de Dayana com a Umbanda, uma religião de matriz africana, me abre os olhos tanto
para a possibilidade da religião como um espaço de produção de cuidado quanto para a
importância de conhecer mais sobre práticas de cuidado produzidas na marginalidade da
colonialidade, práticas de cuidado que consideram a coletividade como caminho de bem viver.
Também percebo que o que menos consegui trazer para o trabalho foi o que estava mais
distante da minha vivência: o Complexo da Maré. Ele atravessa toda a história de Dayana e está
ali, como o território vivo que produz toda a sua potência e resiliência. Sua vivência tem
nuances que não encontramos nas pesquisas com lésbicas brancas estadunidenses ou europeias;
seus valores e formas de lidar com a vida nascem nas intersecções que a atravessam enquanto
mulher negra, lésbica, favelada. Talvez fosse ilusória a minha expectativa de entender como a
Maré, enquanto território marginalizado, atravessa o processo de subjetivação de uma mulher
lésbica negra. A Maré não aparece para Dayana como um tema à parte de sua construção de
subjetividade, mas é parte indissociável de quem ela é e de como se constrói, desde o medo das
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forças de segurança pública, à rejeição de ser contida em estereótipos, no caminho de se


perceber como parte de um coletivo ou na busca incessante por ter seus direitos garantidos, a
Maré ensina enquanto produz Dayana como sujeita pessoal e política.
Para mim, tanto a minha dificuldade em escrever sobre o tema quanto a história de
Dayana e das meninas que chegam à Casa Resistências reforçam a importância que a violência
lesbofóbica tem no processo de saúde e adoecimento e, com isso, reafirmam a importância de
sensibilizar e capacitar profissionais de saúde para uma produção de cuidado atenta às opressões
impostas pela heterossexualidade compulsória. E acredito que, ao longo da conversa, Dayana
tenha apontado caminhos.
Ao começar sua apresentação falando sobre ancestralidade, sobre as que vieram antes
dela e a permitiram aqui estar, ela compreende-se como corpo e sujeita individual e coletiva.
Ao falar sobre saúde, ela fala de si, mas traz a coletividade à medida que sempre traz consigo a
perspectiva de luta por equidade e garantia de acesso qualificado para a diversidade de mulheres
lésbicas nas Unidades Básicas e outros serviços de saúde. Dayana propõe para si e para as
mulheres lésbicas, por meio da Casa Resistências e de sua história, um processo de cuidado e
de produção de saúde coletivo, comunitário, no lugar de uma individualização da produção de
saúde e bem viver. Ela propõe, por meio da Casa, um futuro que traz a experiência comunitária
para a centralidade de se pensar saúde.
Numa livre associação, pode-se considerar a Casa Resistências como o ovo na boca do
pássaro Sankofa na história coletivo-pessoal de Dayana. Frente à ineficiência na produção de
cuidado de uma instituição de saúde branca, patriarcal, cisheteronormativa, Dayana nos convida
a pensar produções de cuidado com vistas ao bem viver que extrapolam a individualidade, a
biomedicina, a universalização de corpos e vivências e que reconhecem a potência da
socialização de saberes, da democracia e do senso de coletividade.
A Casa Resistências representa, para Dayana, um espaço de cuidado pessoal e coletivo,
espaço no qual que se permite olhar para si e, até certo ponto, cuidar de feridas e sequelas de
inúmeras situações de violência impostas ao longo da vida por uma sociedade
cisheteronormativa, racista e patriarcal. Essas violências, que são produzidas socialmente,
levam a sofrimento e adoecimento individual, mas que são também coletivos. Inclusive,
compreender esse sofrimento como socialmente produzido e coletivamente vivenciado reduz a
sensação de culpa, de auto ódio, de isolamento e solidão que a lesbofobia social tenta imprimir.
Pensando nisso, termino minhas conclusões olhando com especial atenção para a prática
de cuidado em saúde produzida por mim e por profissionais de saúde formados, assim como
eu, por uma academia branca, cisheteronormativa, machista e colonial e questionando o quanto
72

nossas práticas de cuidado, ao não considerarem vivências e saberes diversos tem um papel
muito significativo na reprodução de uma série de violências.
Audre Lorde nos dizia, ainda na década de 70, que as ferramentas do senhor nunca serão
capazes de desmantelar a casa grande (LORDE, 2019). A Casa Resistências, fruto da insistência
de Dayana em garantir o reconhecimento de sua subjetividade e de apoiar muitas outras meninas
com vivências similares à sua, nos ensina muito sobre caminhos possíveis de produzir práticas
de cuidado em saúde objetivando o bem viver, quem sabe enxergando uma dinâmica social que
mais do que romper com o cisheteropatriarcado racista, seja capaz de acolher vivências diversas
sem hierarquias ou opressões, para produzir uma sociedade efetivamente democrática, onde
sujeitos têm a liberdade de ser garantida.
73

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78

ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezada participante,

Você está sendo convidada a participar da pesquisa “A lesbofobia no processo de saúde e


adoecimento de mulheres lésbicas no Complexo da Maré - RJ”, desenvolvida por Renata Carneiro
Vieira, discente do mestrado em saúde pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da
Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ), sob orientação da Prof.ª Dra. Valéria Ferreira Romano.

O objetivo central do estudo é analisar como a lesbofobia influencia no processo de saúde e


adoecimento de mulheres lésbicas que vivem no Complexo da Maré - RJ.

Você está sendo convidada a participar desta pesquisa por ser uma mulher lésbica e residir em
alguma das favelas no Complexo da Maré que estão participando da pesquisa: Nova Maré, Baixa do
Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro, Conjunto Esperança, Conjunto Pinheiro, Vila Pinheiro,
Salsa e Merengue, Vila do João.

Sua participação é voluntária e você tem plena autonomia para decidir se quer ou não participar,
bem como para retirar sua participação a qualquer momento. Você não será penalizada de nenhuma
maneira caso decida não participar ou desistir da mesma durante o processo. Contudo, ela é muito
importante para a execução da pesquisa e ela foi pensada de maneira a não lhe trazer desconforto.

O convite é para realizar uma entrevista presencial, que pode acontecer em um ou mais
encontros, entre a pesquisadora e você, com algumas perguntas sobre sua vida como mulher na Maré.
Os encontros serão marcados de acordo com sua preferência de horário e acontecerão em espaço
reservado, que garanta sua privacidade. As conversas serão gravadas em áudio, conforme sua
autorização, sem necessidade de registro por foto/imagem/vídeo. Sua participação na pesquisa não
requer nenhuma outra atividade além da descrita acima. O tempo de duração da entrevista será de
aproximadamente uma hora.

A qualquer momento você poderá solicitar do pesquisador informações sobre sua participação,
o que poderá ser feito através dos meios de contato explicitados neste Termo.

Rubrica pesquisador: ______________


Rubrica participante: ______________
Página 1 de 4
79

Todos os dados coletados nessa pesquisa são confidenciais e seu anonimato será garantido na
divulgação dos resultados. Para garantir o sigilo e a confidencialidade dos dados, apenas a pesquisadora
responsável e suas orientadoras terão acesso aos dados de áudio. Qualquer dado que possa identificá-la
será omitido na divulgação dos resultados da pesquisa.

Se houver algum dano decorrente da pesquisa, você terá direito a buscar indenização, por meio
das vias judiciais.
Ao final da pesquisa, todo material será mantido em arquivo em posse da pesquisadora, por pelo
menos 5 anos, conforme Resolução 510/16 do CNS e orientações do CEP/ENSP e com o fim deste
prazo, será descartado.

A participação nesta pesquisa não trará nenhum benefício direto para você. De uma forma
indireta, sua participação contribuirá para a construção do conhecimento sobre integralidade do cuidado
em saúde, possibilitando uma melhor compreensão das formas pelas quais atua a lesbofobia em um
contexto de favela e um melhor entendimento das percepções de saúde de mulheres lésbicas neste
contexto.

Os riscos ligados à sua participação envolvem o possível constrangimento durante a gravação


ou possível desconforto ao responder algumas questões que solicitam informações pessoais durante a
entrevista, porém, a qualquer momento, você poderá desistir de participar da pesquisa e retirar seu
consentimento, ou apenas se negar a responder algumas das perguntas. Como o tema pode invocar
sofrimento mental prévio e presente, também existe um risco de alguns problemas de saúde serem
identificados.

Nesse caso, além do acolhimento no momento da entrevista, você pode ser encaminhada para a
Clínica da Família de referência, inclusive, se você assim desejar, com referência escrita contando um
pouco da sua história e/ou discussão do caso com os profissionais de referência. As nove favelas
incluídas nesta pesquisa, Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro, Conjunto
Esperança, Conjunto Pinheiro, Vila Pinheiro, Salsa e Merengue, Vila do João, têm como referência uma
de 3 unidades de saúde municipais: Clínica da Família Adib Jatene, Clínica da Família Augusto Boal
ou Centro Municipal de Saúde Vila do João. Nestas unidades, todos os moradores têm uma equipe de
referência e profissionais de saúde que devem acompanhar todos os usuários cadastrados. Antes do
início desta entrevista, (as)os médicas(os) que fazem parte das equipes destas clínicas foram contatados
pela pesquisadora, que lhes apresentou o projeto, explicou sobre a possibilidade de identificação de
alguns problemas de saúde no decorrer do processo e pactuou que, se necessário, estas mulheres seriam
encaminhadas para a equipe para atendimento e acompanhamento, o que já é previsto como parte do
trabalho desta equipe.

Seus dados serão mantidos em sigilo. A qualquer momento, durante a pesquisa ou


posteriormente, você poderá solicitar do pesquisador informações sobre sua participação e/ou sobre a
pesquisa, o que poderá ser feito através dos meios de contato explicitados neste Termo.

Os resultados da pesquisa serão divulgados na dissertação de mestrado da pesquisadora e em


instituições de saúde, em meios acadêmicos, científicos e outros que possam contribuir para a melhoria

Rubrica pesquisador: ______________


Rubrica participante: ______________
Página 2 de 4
80

das condições de saúde e redução das desigualdades sociais. Prevê-se, ao final da pesquisa, uma roda de
conversa com devolutiva para as participantes e comunidade, guardados o sigilo e confidencialidade,
considerando a importância e benefício da ampliação do conhecimento.

O Termo é redigido em duas vias, sendo uma da participante e outra da pesquisadora. Todas as
páginas devem ser rubricadas pela participante da pesquisa e pesquisador, com ambas as assinaturas
apostas na última página. Você receberá uma via e ao final constam os telefones e endereços
institucionais do pesquisador principal e do Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP.

Em caso de dúvida quanto à condução ética do estudo, entre em contato com o Comitê de Ética
em Pesquisa da ENSP ou com o Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio
de Janeiro. Os Comitês são formados por grupos de pessoas que têm por objetivo defender os interesses
dos participantes das pesquisas em sua integridade e dignidade e assim, contribuir para que sejam
seguidos padrões éticos na realização de pesquisas. Se necessário fazer contato eles:

Rubrica pesquisador: ______________


Rubrica participante: ______________
Página 3 de 4
81

Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ


Comitê de Ética em Pesquisa
Tel do CEP/ENSP: (21) 2598-2863
E-Mail: cep@ensp.fiocruz.br
Endereço: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/ FIOCRUZ, Rua Leopoldo
Bulhões, 1480 –Térreo - Manguinhos - Rio de Janeiro – RJ - CEP: 21041-210
Horário de atendimento ao público: das 9h às 16h
Acesse https://cep.ensp.fiocruz.br/participante-de-pesquisa para maiores informações.

Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde:


Rua: Evaristo da Veiga, 16 - 4º andar - Centro - RJ
CEP: 20031-040
Telefone: 2215-1485
E-mail: cepsmsrj@yahoo.com.br ou cepsms@rio.rj.gov.br
Site: http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/comite-de-etica-em-pesquisa

Contato com a pesquisadora responsável:


Renata Carneiro Vieira (Mestranda em Atenção Primária na ENSP/FIOCRUZ)
Telefone: (21) 998542879
E-mail: renatacvieira81@gmail.com

Rio de Janeiro, ___ de ____________ de _____ .

___________________________________________
Pesquisadora: Renata Carneiro Vieira

Declaro que entendi os objetivos e condições de minha participação na pesquisa intitulada “A


lesbofobia no processo de saúde e adoecimento de mulheres lésbicas no Complexo da Maré - RJ” e
concordo em participar.

Autorizo a gravação da entrevista


Não autorizo a gravação da entrevista

_____________________________________________
(Assinatura da participante)

Nome da participante: _______________________________________________________

Página 4 de 4

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