Renata Carneiro Vieira Ensp Mest 2022
Renata Carneiro Vieira Ensp Mest 2022
Renata Carneiro Vieira Ensp Mest 2022
Rio de Janeiro
2022
Renata Carneiro Vieira
Rio de Janeiro
2022
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Renata Carneiro Vieira
Banca Examinadora
Rio de Janeiro
2022
AGRADECIMENTOS
A Dayana Gusmão, por ter incentivado este trabalho desde as primeiras ideias, ter
“autorizado” minha entrada na Maré e em sua vida. Cresço imensamente ao caminhar com você
e é sempre um prazer te ouvir.
A Valéria Romano, minha orientadora querida, por ter me escolhido, por me encorajar
a me envolver, me implicar, me abrir, me colocar e me mostrar nesse projeto. Com qualquer
outra pessoa isso não teria saído. Obrigada pelo estímulo e por estar ao meu lado.
A Rita, minha parceira de vida, por pensar cada passo desse projeto comigo, escrever
ao meu lado, criticar, refletir, me inspirar, me ensinar e me permitir transbordar. Eu não poderia
sonhar com melhor companheira para estar ao meu lado. Obrigada por estar sempre, pelo colo,
pela paciência, pela cumplicidade e amor.
A Denize, que me ensinou que eu podia confiar de novo, que sempre foi família e está
sempre do meu lado. Por tantos anos de parceria e cumplicidade, por tanto. Eu não teria chegado
onde estou sem você. E Vandrea, Bruna e Diangeli, nossa família paulistana.
Vini, por ter segurado minha mão e me levado a tantos lugares, físicos e emocionais.
Você veio mudar a minha vida, me mostrou que eu podia ser quem eu sou e me tornou melhor.
Ao Rico, quem desde sempre esteve do meu lado. Meu maior presente, minha casa,
agradeço por você existir. E Ju, família que ganhei, que amo e que é tão importante.
A Sara, minha irmã de vida, que tornou possível minha sobrevivência na Volta Redonda
dos anos 90 e se manteve ao meu lado em cada passo, que distância nenhuma diminuiu a
presença ou a importância.
A Ivi, que também foi casa, parte da família que escolhi construir e ainda é um pedaço
de mim. Obrigada por ter me apresentado tanta coisa e me tirado da caixinha tantas vezes. E a
Moisés e Mariana, amigos amados e companheiros de caminhada.
A Monique, Camila, Carol, Gabi, Mari Bretas, Raquel, Renan e Ju Montez. Nosso
“isolamento” tornou a caminhada, além de possível, muito mais leve. Num curso que acabou
se tornando à distância, vocês estiveram presentes em todos os momentos.
À AMFaC, que me proporcionou o primeiro espaço para falar de lésbicas e sempre foi
terreno fértil para pensar o cuidado em saúde e o SUS com equidade e justiça social.
Especialmente Débora Teixeira, Débora Junqueira, Marcele, Thais Façanha, Rayane, Gabriel
Velloso, Melanie, Jorge, Ana Melodias, Carol Toffoli (e novamente Moisés e Rita, claro).
E a Laura, Lucas, Luís, Raul, Ana Clara, Aluá, Akin, Rosa, Nina, Maria, Carlos, Zayon
e Lia, pelo olhar sem preconceito e por me ensinarem tanto amor.
RESUMO
International studies show that lesbian women have a higher prevalence of certain health
problems, which can be attributed to the constant suffering from lesbophobia. However, these
studies are predominantly carried out with white women, with high schooling and income, and
it is therefore difficult to generalize their data to Brazilian lesbians, especially in favelas and
peripheries, due to the living conditions and other oppressions that cross the existence of these
women. This research proposes a look at lesbophobia and its relations with the health-illness
process, in the context of Complexo da Maré, one of the largest favelas in Rio de Janeiro. This
is qualitative research, using the Oral History method, where the look at the past and the present
offer a historical and cultural context for the topic addressed. An in-depth interview was
conducted with a lesbian woman from a favela who, having a lot to say about lesbophobia,
brought scope and new meanings to the construction of a lesbian identity and to her
relationships with the health-illness process.
1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 12
2 OBJETIVOS................................................................................................. 17
2.1 OBJETIVO GERAL...................................................................................... 17
2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS......................................................................... 17
3 HOMOFOBIA NÃO, LESBOFOBIA........................................................ 18
4 HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA....................................... 20
5 A LESBIANIDADE NA HISTÓRIA......................................................... 24
6 SAÚDE DE MULHERES LÉSBICAS...................................................... 25
6.1 O PROCESSO DE SAÚDE E ADOECIMENTO......................................... 25
6.2 A RELAÇÃO COM OS SERVIÇOS DE SAÚDE........................................ 29
7 O SUS E A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE....................................... 32
8 A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E A SAÚDE DE
LÉSBICAS..................................................................................................... 34
9 O COMPLEXO DA MARÉ......................................................................... 37
10 METODOLOGIA......................................................................................... 46
10.1 ANÁLISE DE DADOS.................................................................................. 48
10.2 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS........................................................................ 48
10.3 RISCOS E BENEFÍCIOS PARA A PARTICIPANTE DA PESQUISA......... 49
10.4 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.................... 49
10.5 CUSTOS RELACIONADOS À PESQUISA................................................. 49
11 RESULTADOS E DISCUSSÃO................................................................. 50
11.1 ANCESTRALIDADE.................................................................................... 50
11.2 A MARÉ DE DAYANA................................................................................. 51
11.3 PROTESTANTISMO.................................................................................... 53
11.4 VIVÊNCIA LÉSBICA................................................................................... 54
11.4.1 Entendendo-se e assumindo-se lésbica....................................................... 54
11.4.2 Violências lesbofóbicas................................................................................ 56
11.5 MOVIMENTO SOCIAL............................................................................... 60
11.6 SAÚDE.......................................................................................................... 62
11.7 UMBANDA................................................................................................... 64
11.8 CASA RESISTÊNCIAS................................................................................ 66
12 CONCLUSÃO.............................................................................................. 70
REFERÊNCIAS........................................................................................... 73
ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO...........................................................................................
78
APRESENTAÇÃO
Sou uma mulher branca, cisgênera, lésbica, médica de família e comunidade, vivendo
no Brasil (e na cidade do Rio de Janeiro) em 2022. Enquanto escrevo, estamos vivendo a
pandemia de COVID-19 sob o (des)governo Bolsonaro e é difícil explicar esse momento/lugar
para alguém que não esteja por aqui agora. Enquanto ideias ultraconservadoras vêm ganhando
cada vez mais força no país, o sujeito que ocupa a Presidência da República estimula que
preconceito e ódio se manifestem nos espaços públicos e privados. Como se não bastasse a livre
expressão de misoginia, racismo e LGBTfobia, as forças conservadoras que dominam este país
escolhem a necropolítica como política de governo e o coronavírus, que se espalhou por todo o
mundo, por aqui se tornou mais um instrumento de morte.
Enquanto lesbofóbicos perderam qualquer pudor em demonstrar seu ódio nas ruas e nas
redes sociais, nosso medo só cresce. Apesar disso, insisto em não esconder meu afeto. Andar
de mãos dadas com minha esposa, nos beijarmos na rua, é também um ato político. Sei que
estamos protegidas pela minha branquitude, por nosso endereço da Zona Sul e pelo status, a
renda e a facilidade de encontrarmos empregos que o diploma de medicina nos dá. Ainda assim,
já levamos gritos na cara, já sofremos empurrões e assédio e os olhares são diários.
De qual lugar de fala falo da vida de sapatonas na favela? O da médica que sempre
trabalhou em favelas e não encontra na literatura escritos que caibam na vivência das lésbicas
que encontrei nesse caminho, que traduzam o que vejo e que me tragam ferramentas para atuar
na realidade em que atuo. Pensei em estudar como os futuros médicos estão sendo formados
para cuidar de mulheres lésbicas na favela, como profissionais da atenção primária identificam
estas mulheres e como lidam com suas demandas ou até como as lésbicas da favela enxergam
e usam o sistema de saúde. Mas espero que elas me falem um pouco sobre si, seus processos de
saúde e adoecimento e as práticas de cuidados que têm e que gostariam de ter, porque acredito
que qualquer tipo de cuidado precisa partir daí.
Trago aqui um pouco da história da vida de uma mulher que conheço há alguns anos e
que desde o primeiro momento me inspira. Uma mulher incrível, forte, sensível, com uma
energia transformadora que atinge a tudo e a todos que a cercam. Sei que foi também um
privilégio ouvi-la falar de sua vida, seus valores, suas crenças e agradeço imensamente a
confiança em mim e na proposta de afetar positivamente a vida de outras lésbicas e de
profissionais de saúde.
Espero, neste trabalho, somar minha voz à dela e usar este lugar de privilégio para
mostrar a força, a resistência e as potências das mulheres lésbicas do Complexo da Maré.
Acredito que estes escritos também são um ato político e quero, com eles, me posicionar e me
comprometer com a luta pela vida e pela saúde das mulheres lésbicas, especialmente as que
vivem em favelas e periferias, e por uma Medicina de Família e Comunidade que brigue pela
equidade e por um Sistema Único de Saúde público, gratuito e de qualidade.
Neste texto, escolho apresentar as autoras e os autores que trago contando um pouco do
seu lugar de fala, sempre que possível informando identidade de gênero, raça, orientação sexual
e formação, porque acredito que são aspectos que influenciam a forma como olham para e
interpretam o mundo e que isso merece ser conhecido quando as(os) “ouvimos”.
12
1 INTRODUÇÃO
violência transformou a forma de me relacionar com outras pessoas e, com isso, influenciou (e
ainda influencia) meu autocuidado, minha saúde e meus processos de adoecimento.
Depois de ter me assumido lésbica e ter tomado consciência dessa relação estreita entre
o sofrimento decorrente da lesbofobia e meus sintomas e problemas de saúde, decidi buscar
informações sobre as especificidades de saúde de mulheres lésbicas, mas, sem me surpreender,
percebi que há poucas pesquisas e publicações sobre esse tema, principalmente no cenário
brasileiro (FACCHINI; BARBOSA, 2006). A partir dessa demanda pessoal refleti sobre meu
papel como médica de família e comunidade e entendi que precisava usar meus privilégios – a
branquitude, a alta escolaridade, a independência financeira, o status social como médica, o
contato próximo com outros profissionais de saúde – para divulgar o conhecimento que estava
conseguindo encontrar para o maior número possível de pessoas, principalmente profissionais
de saúde e mulheres lésbicas.
Em um misto desse sentimento de querer ajudar outras mulheres com a busca por rede
de apoio para mim mesma, procurei por espaços de militância social de lésbicas, onde
acreditava que poderia encontrar pares e a possibilidade de lutar ao lado delas, dando
significado e utilidade ao sofrimento que vinha vivendo. Fui ao primeiro espaço político
LGBTI+ de mãos dadas com um amigo que foi essencial no meu processo de me aceitar e
entender, que foi o primeiro a ouvir minhas confissões e que esteve sempre ao meu lado. Fomos
a uma reunião do setorial LGBTI+ do PSOL e lá conheci outra pessoa que marcaria a minha
vida: Michele Seixas, mulher lésbica, negra, favelada, hoje amiga e parceira, que falava sobre
o grupo de planejamento familiar de sua Clínica da Família, o quanto ele não tinha nenhuma
relação com sua vivência e suas demandas e como iria à próxima reunião daquele grupo e
exigiria que fossem abordadas as possibilidades de reprodução assistida para casais de mulheres
lésbicas cisgêneras.
A partir desse encontro soube que estava sendo organizada pela mandata da vereadora
Marielle Franco – também uma mulher lésbica – uma frente unindo coletivas e grupos de
lésbicas do Rio de Janeiro em torno da criação do Projeto de Lei do Dia da Visibilidade Lésbica.
Comecei a participar de grupos virtuais e reuniões e organizamos juntas algumas atividades
para discutir assuntos de saúde com grupos de militantes lésbicas. Nessas atividades, ouvi
diversos relatos de violências sofridas por elas em consultas médicas e nas unidades de saúde.
Indicações erradas de exames e medicamentos, negação de consultas e exames, queixas não
validadas, orientações que não faziam nenhum sentido para elas. Todas as meninas tinham
muitas dúvidas sobre saúde sexual, não conheciam nada ou quase nada sobre direitos
reprodutivos e nenhuma delas disse que já tinha sido abordada em relação a saúde mental, a
14
violência ou uso de substâncias por qualquer profissional de saúde. Apesar de já ter lido
pesquisas que diziam que as mulheres lésbicas não conseguiam sequer revelar sua orientação
sexual ao profissional de saúde e que, quando o faziam, vivenciavam preconceito e
desconhecimento de suas especificidades, foi assustador ouvir as histórias nas vozes das
mulheres que as haviam vivido.
Duas histórias foram muito marcantes: uma mulher atendida na Clínica da Família do
seu bairro informou que só se relacionava com mulheres e que nunca tinha tido qualquer tipo
de penetração vaginal, mas o médico insistiu em fazer um exame especular e rompeu seu hímen
de forma agressiva, com muita dor e sangramento; e uma menina evangélica que havia buscado
ajuda de um profissional que também era da igreja e foi encaminhada para uma “clínica de
reabilitação” onde, entre outras violências, foi estuprada diariamente, segundo ela mesma “para
aprender a ser mulher”. As mulheres que participaram das oficinas que fizemos eram lésbicas
que assumiam publicamente sua sexualidade, participavam de movimento social, tinham
consciência do quanto eram oprimidas e agredidas por sua orientação sexual, tinham rede de
apoio (mesmo que fosse apenas as companheiras do movimento) e ainda assim tinham pouca
ou nenhuma informação de saúde e passaram por diversas situações no mínimo constrangedoras
com médicos e outros profissionais de saúde. Os grupos eram diversos, tinham desde
trabalhadoras da construção civil até advogadas e professoras universitárias com doutorado, e
nenhuma delas sabia como se transmite o papilomavírus (HPV) ou se precisavam ou não fazer
rastreamento de câncer de colo de útero.
Na construção e realização dessas atividades, ficou nítido também o quanto boa parte
das (poucas) informações que eu tinha conseguido encontrar sobre saúde de lésbicas não se
aplicavam à realidade que vivemos. Os estudos são majoritariamente norte-americanos e
europeus, realizados com mulheres lésbicas brancas, jovens, de classe média ou média-alta,
com alto nível de escolaridade (FACCHINI; BARBOSA, 2006), vivendo em realidades muito
diferentes da brasileira, especialmente a de favelas e periferias. Como achar que um estudo
realizado entre lésbicas norueguesas, ricas, na casa dos 30 anos, que diz que se assumir
socialmente como lésbica é fator de proteção para saúde mental é útil para pensar sofrimento
de uma menina preta que mora em Rio das Pedras, que recém se entendeu lésbica, e é
financeiramente dependente de uma família evangélica?
A experiência das oficinas e a convivência com essas mulheres me trouxe a certeza de
que há muita coisa a se fazer para que o cuidado em saúde de lésbicas tenha alguma qualidade
e garanta um mínimo de dignidade. A partir daí comecei a fazer atividades com médicos de
família e comunidade, residentes e outros profissionais de saúde. Desde 2017, junto com outros
15
colegas mFC que fazem parte do Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade, Diversidade e
Direitos (GT Sex) da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) fiz
oficinas, mesas redondas, palestras e rodas de conversa sobre saúde de lésbicas para esse
público. Na maior parte das vezes os participantes tinham ouvido falar nada ou pouco sobre o
assunto. As dúvidas se repetem, especialmente acerca das possibilidades de transmissão e
prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST) no sexo entre duas mulheres com
vulva, das indicações de rastreamento de câncer de colo de útero e da abordagem da família e
das várias formas de violência (VIEIRA; BORRET, 2020). Pude perceber que mesmo a
Medicina de Família e Comunidade, que se pretende integral e centrada no indivíduo, ainda não
é capaz de identificar e acolher os sofrimentos específicos causados pela marginalização e
exclusão social sofridos por quem não só é uma mulher numa sociedade machista, como ama e
vive com outras mulheres.
Vinda de uma família de classe média, branca, do interior do estado do Rio, comecei a
ter contato com o território de algumas favelas na graduação. Estudei na Universidade Federal
Fluminense (UFF), que me trouxe a possibilidade de ampliar a visão do mundo desde muito
cedo - vamos ao campo discutir compreensões de saúde antes de entrar pela primeira vez no
anatômico ou em serviços de saúde. Em contato com o Programa Médico de Família de Niterói
e com algumas atividades de educação em saúde não só me encantei com a saúde da família e
a possibilidade de praticar um cuidado integral e longitudinal, mas também compreendi um
papel muito além do prescritivo. No movimento estudantil ganhei ferramentas e tive contato
com outras formas de olhar para os territórios - desde as atividades do grupo do Teatro do
Oprimido até relações com o Movimento dos Sem Terra me mostraram o que diz o texto de
Gondim e Monken (2018), de que o território é um espaço onde a vida acontece e deve ser
visto:
[...] não só como lócus de moradia e depositário final de eventos, mas, sobretudo,
como lugar de produção e reprodução social, de trocas materiais e simbólicas e de
convivência entre pessoas, enfim, voltado para toda forma de manifestação da vida
social cotidiana (GONDIM; MONKEN, 2018, online).
Os territórios nas favelas têm dinâmicas próprias e únicas e não é possível falar numa
uniformidade sob o termo “favelas cariocas”. De lugares onde o tráfico é comandado por
moradores do local, que conhecem os vizinhos e têm uma relação com a comunidade, até locais
hoje dominados por milícias; de áreas com valas abertas a outras com água e esgoto encanados;
das dinâmicas “protegidas” da Zona Sul às incursões policiais da Zona Norte; da população
constituída por imigrantes nordestinos ou famílias que sempre viveram no Rio de Janeiro; por
16
uma população mais jovem ou por muitos idosos; da favela plana para a favela morro. A história
de cada favela é peculiar, ligada a como e quando se deram as primeiras ocupações, à sua
localização na cidade do Rio, aos seus primeiros habitantes e à relação entre eles e deles com o
Estado.
Conhecer o território e entender como as pessoas adoecem e como elas produzem saúde
é essencial para um cuidado centrado no indivíduo nos seus aspectos biopsicosocioespirituais e
na comunidade e para o planejamento de serviços de saúde não só eficientes, mas que
promovam equidade e universalidade. E não é possível compreender as demandas de um
território sem conhecer sua história, as relações interpessoais, entre grupos, da comunidade com
o Estado, com as políticas públicas, sem conhecer suas lutas, tornando essas tarefas mandatórias
para qualquer profissional ou unidade de saúde comprometidas com seu trabalho.
Por muito tempo acreditei que, quando conseguisse me assumir lésbica, a depressão, a
ansiedade e as várias somatizações desapareceriam como mágica, que quando estivesse vivendo
plenamente minha (homo)sexualidade não sentiria mais nada daquilo. É evidente que não foi
como aconteceu, mas os últimos anos têm sido de muita reflexão, de equilibrar meu processo
de cura com minha militância, de perceber (e aprender a respeitar) minhas limitações e entender
qual pode ser o meu papel na construção de novos conhecimentos e de um cuidado em saúde
melhor para mulheres lésbicas.
Acredito que esse trabalho faça parte de todos esses processos: o de compreender e
aceitar a influência de ser lésbica nos meus processos de saúde e adoecimento; o de assumir
minha responsabilidade enquanto médica de família e comunidade com o cuidado integral e
equânime; e o de, sem deixar esse lugar de médica de família e comunidade, ser parte de uma
militância por uma sociedade mais justa e igualitária.
Considerando raça, classe e gênero como matrizes de opressões que produzem relações
de poder e dominação e atenta aos processos de apagamento histórico de narrativas e
perspectivas não hegemônicas na sociedade brasileira, neste estudo pretendo conhecer, sob a
lente da interseccionalidade, quem são as mulheres lésbicas que vivem no Complexo da Maré,
um complexo de favelas na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro - RJ, buscando compreender
como a lesbianidade interfere em seus processos de saúde e adoecimento.
17
2 OBJETIVOS
câncer de colo de útero (AGÉNOR et al., 2014) e tomam menos vacina para HPV (AGÉNOR
et al., 2015), chegam aos serviços com estágios mais avançados de câncer de mama (MCNAIR,
2003) e algumas pesquisas demonstram que têm inclusive mais eventos cardiovasculares, como
infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral (KNIGHT; JARRETT, 2017). Ao mesmo
tempo, a vivência estigmatizada causa sofrimento e decorre em índices aumentados de
depressão, ansiedade, transtornos alimentares e suicídio (MEYER, 2003).
Mulheres lésbicas estão submetidas a ao menos duas formas de opressão social no Brasil
hoje: de orientação sexual e de gênero. Quando estas mulheres vivem em uma favela no Rio de
Janeiro, outros fatores se cruzam com os anteriores: o classismo, o racismo e o preconceito com
o território onde vivem. No espaço urbano das grandes cidades, as favelas se produzem como
territórios-resistência. Áreas habitadas majoritariamente por pessoas negras, consideradas vidas
descartáveis para o capitalismo global, as favelas podem ser lidas tal como produzidas pelo
discurso hegemônico: espaços marginais, violentos e que precisam ser controlados para a
manutenção da segurança dos demais habitantes da cidade. Mas faço a leitura das favelas como
espaços em que, apesar da negligência do Estado em prover serviços públicos e da contínua
prática necropolítica, são espaços de intensa produção de subjetividade, socialização,
conhecimento e cultura. Espaços que, tal como os quilombos, são produzidos pelo desejo de
vida frente à política de morte, onde os corpos negros objetificados lutam por cidadania, por
dignidade e por liberdade. Como nos apresentou sua favela a escola de samba Mangueira em
2022: “teu cenário é poesia, liberdade e autonomia que o negro conquistou”.
Não é possível pensar favelas e periferias nos grandes centros urbanos nacionais, sem
trazer para a centralidade do debate a hierarquização racial que estrutura a sociedade brasileira.
O racismo à brasileira por denegação (GONZALEZ, 1988), naturaliza as favelas como espaços
negros que, portanto, podem ser sitiados, desumanizados e produzidos a partir do olhar do outro
hegemônico. O mito da democracia racial no Brasil (GONZALEZ, 1988) torna possível a
tentativa de universalização da experiência lésbica nacional a partir de uma produção de
conhecimento hegemônica branca e economicamente privilegiada. Num país sócio racialmente
desigual como o Brasil, é necessário não essencializar a experiência de subjetivação de lésbicas
e, ainda mais importante, pensar práticas de cuidado em saúde conscientes dessas
desigualdades, com vista ao princípio de equidade que é norteador do Sistema Único de Saúde.
20
4 HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA
outras formas possíveis de se relacionar e de viver a sexualidade (seja com outras mulheres ou
mesmo com homens).
Adrienne apresenta alguns métodos utilizados na heterossexualidade compulsória para
garantir a supremacia masculina, que atingem também mulheres de todas as orientações
sexuais. Se uns hoje já são amplamente reconhecidos como violentos, alguns são mais sutis ou
aceitos socialmente e outros sequer são percebidos como uma forma de violência. A idealização
do amor romântico, que aprendemos desde os filmes infantis e se perpetua em novelas,
comédias românticas e até em comerciais, é uma forma quase inconsciente de dizer à mulher
qual é o seu lugar social – a moça “pura” que será salva e encontrará a felicidade nos braços de
um homem “guerreiro” e forte – e quais atividades estão destinadas a ela: o trabalho de cuidar,
muitas vezes não remunerado, e as diversas atividades domésticas.
O papel sexual das mulheres também nos é ensinado desde sempre. Os mesmos
discursos que Foucault identificou como prescritores de uma sexualidade voltada ao
capitalismo, reforçam a desigualdade de gênero: meninos são estimulados a conhecer seu pênis
e compará-lo ao de outros meninos, meninas têm de fechar as pernas e usar banheiros
reservados, são punidas se manipularem sua vulva, aprendem que ela é suja e feia. Se a
masturbação um dia foi um tabu na educação masculina, há muito é motivo de risos o fato de
meninos se demorarem no banheiro ou colecionarem revistas com fotos de mulheres
hipersexualizadas, enquanto muitas mulheres não sabem sequer que urina e sangue menstrual
saem de orifícios diferentes. A pulsão sexual é um direito masculino na sociedade ocidental
capitalista patriarcal.
Quando falamos de violência e exploração sexual pensamos em estupro, cafetinagem,
escravidão sexual. Talvez nos lembremos das clitoridectomias, dos casamentos infantis, das
noivas compradas, da criminalização das mulheres adúlteras. Mas Rich nos apresenta diversas
outras formas pelas quais homens estão envolvidos na exploração e escravidão sexual das
mulheres: além dos cafetões e dos membros das quadrilhas de tráfico de mulheres, os
funcionários públicos corruptos que participam do esquema de tráfico, os proprietários,
gerentes e empregados de bordéis, além dos clientes da prostituição; os produtores e os
fornecedores de pornografia; os estupradores, os molestadores de crianças, os perpetradores de
incesto e os agressores e estupradores de esposas (RICH, 2019). Em todas estas situações,
homens usam de seu poder social, econômico ou físico para dominar e usar os corpos das
mulheres, de forma que a desigualdade de poder se mantenha ou aumente.
Um dos meios de garantir que as mulheres continuem se submetendo a relações
heterossexuais é esconder delas que existem outras formas de viver. Adrienne Rich denuncia
23
que esta é a importância do apagamento da lesbianidade. Não apenas por serem consideradas
erradas, doentes ou ilegais, não apenas pela negação da sexualidade da mulher independente do
homem ou da sexualidade da mulher que não seja para a reprodução. Para a heterossexualidade
compulsória é importante que mulheres que amam, transam e se realizam com outras mulheres
sejam negadas e, para isso, marginalizadas e invisibilizadas.
24
5 A LESBIANIDADE NA HISTÓRIA
A autora propôs um modelo que se utiliza de níveis de estressores, de mais externos a mais
internos de cada pessoa, e levantou a importância do tempo pelo qual a pessoa está exposta a
estes estressores, bem como a frequência e a intensidade destes nos resultados para a saúde.
homofobia sofrida por homens), temos menos acesso à escolarização que homens gays, além
de assumirmos menos a orientação sexual, especialmente no trabalho e para profissionais de
saúde (FACCHINI; BARBOSA, 2006). Em uma pesquisa citada pelo Dossiê Saúde das
Mulheres Lésbicas, 11,4% das mulheres homossexuais entrevistadas na Parada do Orgulho
LGBT de São Paulo relataram já ter sofrido violência física, 47,5% agressão verbal ou ameaça
de agressão e 4,9% violência sexual, sendo que, destas, 29,7% identificaram a casa como local
da agressão e 20,3% identificaram familiares como agressores.
Uma das formas mais sutis de lesbofobia, que por muitas vezes chega a ser tomada como
um sinal de aprovação social da lesbianidade, é a fetichização. Na mídia, não é raro encontrar
imagens de casais de mulheres - mulheres jovens, magras, na maioria das vezes brancas - em
poses sensuais. Entretanto, esta imagem serve aos homens heterossexuais, que se sentem
convidados ou impelidos a participar daquela atividade sexual, que eles acreditam que só vai
estar completa com a participação de um pênis. Essa fetichização deslegitima a relação entre
mulheres, as objetifica e a falsa sensação de aceitação que ela gera termina no momento em que
a participação masculina é negada, dando lugar a diversas formas de agressão.
Outras formas comuns de violência contra lésbicas, sobretudo no seio da família de
origem, aquela onde a pessoa nasce, cresce e estabelece suas primeiras relações, são as micro
punições, a hiper vigilância sutil, as hostilizações verbais, as restrições e os movimentos de
adequação às normas estabelecidas por meio de uma reeducação forçada (BRAGA et al., 2018).
Dentro desses movimentos para uma adequação forçada à norma heterossexual está uma forma
de violência que ocorre especificamente contra mulheres lésbicas: o estupro corretivo, a
violência sexual praticada com a intenção de “corrigir” a orientação sexual.
Partindo de uma ideia de que a mulher é lésbica porque “não encontrou o homem certo”,
porque “não sabe o que é bom”, homens, comumente familiares ou amigos da vítima, se
utilizam do estupro como forma de punição e de “ensinar a ser mulher”. Segundo a agência de
notícias Gênero e Mídia, que analisou dados coletados no Sistema de Informação de Agravos
de Notificação (SINAN) via Lei de Acesso à Informação, em média, 6 lésbicas foram
estupradas por dia em 2017, em um total de 2.379 casos registrados. Ainda de acordo com a
agência:
Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez. É dentro de
casa e no meio familiar que as mulheres lésbicas são violentadas. Em 61% dos casos,
a agressão ocorreu na residência, enquanto 20% aconteceram em vias públicas e 13%
em “outros locais”. Os homens são algozes. Aparecem como autores em 96% das
agressões sexuais. Mulheres são apenas 1% das agressoras. Em 2% das agressões há
29
Se hoje identificamos algumas das maneiras pelas quais lésbicas adoecem mais que
mulheres heterossexuais, não podemos deixar de levar em consideração a relação destas
30
mulheres com o sistema e os profissionais de saúde. O Dossiê Saúde de Mulheres Lésbicas nos
traz números impressionantes retirados de estudos realizados no Brasil: até 60% das mulheres
que fazem sexo com mulheres (MSM) que acessaram serviços de saúde não revelaram sua
orientação sexual. Entre as que revelaram, mais da metade relatou reações discriminatórias por
parte do profissional (FACCHINI; BARBOSA, 2006).
Em outro estudo analisado pela equipe do Dossiê, 59,5% das entrevistadas relataram
sua orientação sexual ao profissional de saúde, mas 88,6% delas o fez por iniciativa própria,
sem isso ter sido perguntado pelo profissional, e apenas 5,1% afirmaram que o médico
perguntou sua orientação sexual. Sobre as mulheres que se assumiram para o profissional de
saúde, a pesquisa afirma que:
Outro estudo realizado entre 2014 e 2015 pela equipe da professora Andrea Rufino,
médica ginecologista e sexóloga, branca, brasileira, no Centro de Saúde da Mulher da
Universidade Estadual do Piauí entrevistou 34 mulheres nas cinco regiões do país e demonstrou
que a consulta ginecológica é um ambiente desfavorável para a revelação da orientação sexual
de mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM). Segundo as mulheres que participaram da
pesquisa, ginecologistas raramente perguntaram sua orientação sexual, sua anamnese seguiu
um roteiro heteronormativo e também reagiram negativamente à sua revelação (RUFINO et al.,
2018).
No cenário da Atenção Primária à Saúde (APS), as enfermeiras Luciane de Araújo,
Lucia Penna, Joana Carinhanha e Cristiane Costa publicaram em 2019 uma pesquisa na qual
entrevistaram 24 enfermeiras e 21 médicos que trabalhavam em unidades de APS no município
do Rio de Janeiro, a maioria especialista em saúde da família, que demonstrou o despreparo e
o preconceito dos profissionais em relação às mulheres lésbicas, trazendo transcrições de falas
como:
A lésbica, só de olhar para ela, você já sabe que é sapatão. [...] mas, ela diz que é
casada e mora com o marido. Às vezes, ainda tenho dúvidas sobre ela. Não acredito.
Você logo vê que é [lésbica], pela sua apresentação masculinizada, por seus trajes,
pelo comportamento, mesmo que ela não fale. Quando é masculinizada você consegue
31
ver nas entrelinhas. Nem precisa perguntar. Essas mais masculinas têm sexo sem
penetração porque não gostam. Geralmente, não gostam de penetração porque não
gostam de homem. Daí, quase sempre têm receio em relação ao preventivo, por causa
do espéculo. Já as outras [femininas] são mais como nós [referindo-se à
heterossexualidade]. Noto também que elas dão um intervalo muito grande entre os
exames [preventivo]. Maior que o recomendado. Essas mais pesadas [masculinas] não
gostam mesmo. Acho que associam o espéculo ao pênis [...] já as femininas, nunca vi
terem problema com o exame (ARAUJO et al., 2019, online).
Um sistema de saúde público e gratuito para todos os cidadãos foi uma conquista do
povo brasileiro na construção da Constituição Federal de 1998, após o período da Ditadura
Civil-Militar. Em 1988, a partir do reconhecimento de que saúde não é uma mercadoria, mas
um direito de todos e dever do Estado, o país que naquele momento tentava iniciar a construção
de uma nova democracia queria dizer que todos os seus cidadãos deveriam ser tratados como
detentores de direitos humanos básicos. Não apenas universal – o que garante acesso a cuidado
em saúde para todas as pessoas que estejam no Brasil – o Sistema Único de Saúde (SUS) foi
pautado por princípios que deveriam garantir o respeito às diferenças e o combate à
desigualdade: integralidade e equidade.
É sobre esses dois princípios que afirmo que o SUS precisa pensar políticas de saúde
específicas para mulheres lésbicas. A integralidade garante que cada indivíduo seja visto por
inteiro, dentro de sua realidade familiar e comunitária, a partir de uma perspectiva que olhe para
sua realidade biológica, psicológica e social (PAIM; SILVA, 2010). Sendo assim, tanto os
aspectos relacionados à sexualidade quanto o sofrimento causado pela lesbofobia devem ser
considerados, desde a elaboração das políticas públicas de saúde até o cuidado individual nas
unidades.
A equidade, enquanto princípio, tem um significado que vai além da igualdade, do
garantir que todos serão tratados da mesma forma. Entendo a equidade aqui como ligada a um
senso de justiça social e à tentativa de diminuir o impacto na vida das pessoas das desigualdades
e, por isso, é neste princípio que baseio a justificativa para esta pesquisa. No Brasil, o Ministério
da Saúde já reconheceu, quando aprovou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (PNSILGBT), que ser LGBT é um determinante
social de saúde, em 2011 (BRASIL, 2013). No documento que divulga a Portaria 2.836 de 1º
de dezembro de 2011, que institui a PNSILGBT, o Ministério da Saúde afirma que:
como coordenadora do cuidado, deve ser o primeiro lugar a olhar para as mulheres lésbicas do
território pelo qual é responsável e compreender suas vulnerabilidades e as especificidades do
seu processo de saúde e adoecimento. Enquanto prestadora de um cuidado continuado ao longo
do tempo, inserida no território e tendo uma abordagem familiar e comunitária, pode ser uma
importante aliada no processo de se entender e se assumir lésbica, atuar como apoio das relações
familiares, auxiliar no processo de construção de redes de apoio, na identificação de lugares
seguros e instituições sociais na comunidade ou na rede municipal de saúde e de assistência
social e, inclusive, atuar no território no combate à lesbofobia.
34
comunidade” (ARIAS-CASTILLO et al., 2010, p. 01) não pode se esconder atrás de falhas na
graduação ou na dificuldade de alguns profissionais para continuar prestando uma atenção
inadequada e muitas vezes violenta às mulheres lésbicas e bissexuais.
A Associação Americana de Medicina de Família publicou em 2017 o guideline
Preventive Health Care for Women Who Have Sex with Women (KNIGHT; JARRETT, 2017),
com as evidências disponíveis para indicação de rastreamentos e indicação de cuidado em
saúde, reforçando que:
Outra competência essencial elencada no CBC é “lida com seus pré-conceitos de modo
a não influenciar negativamente a abordagem das pessoas sob seu cuidado” (SBMFC, 2015, p.
60). Entretanto, as residências em MFC ainda são tímidas em apresentar o tema a seus alunos.
A primeira atividade tratando especificamente sobre saúde de lésbicas na Medicina de
Família e Comunidade foi realizada pela Associação de Medicina de Família e Comunidade do
Rio de Janeiro (AMFaC) em junho de 2017, com uma mesa redonda que está registrada nos
endereços eletrônicos: https://www.facebook.com/amfacrj/videos/1415010868584125/ e
https://www.facebook.com/amfacrj/videos/1415104451908100/. A atividade foi feita por mim
e contou com a participação de Virgínia Figueiredo, representando a Liga Brasileira de
Lésbicas, um dos movimentos sociais organizados de lésbicas no país.
36
9 O COMPLEXO DA MARÉ
a saúde das mulheres neste território e refletir sobre uma prática da medicina de família e
comunidade em uma realidade diferente da que nos contam os livros e artigos já existentes.
A primeira vez que entrei na Maré estava completando um mês da morte de Marielle,
brutalmente assassinada pelo Estado brasileiro, e fui com minha esposa e um casal de amigas
ao sarau em sua homenagem, no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM).
Entre as várias coisas que me impressionaram naquele dia, destaco 3: os vários talentos que se
apresentaram ali, com poesia, música, moda, fotografia, performances, pintura; a organização
de um espaço tão grande e com tantas atividades – pré-vestibular, curso de informática,
preparatório para Ensino Médio, produção de um jornal – e organizado e gerido por pessoas da
Maré, e não Organizações Não Governamentais (ONG) de fora ou pessoas que viriam de fora
dizer do que aquelas pessoas precisavam.
A terceira e principal foi um mapa, cuja foto nunca mais saiu do meu celular, o “Mapa
Sensorial da Maré” (Figura 3). Esse mapa me tocou porque, ao mesmo tempo que me lembrou
nossas atividades de territorialização da APS (que desde meus tempos de UBS Conceição em
Diadema eu adoro), a legenda me mostrou um olhar muito mais sensível para o território, que
talvez devêssemos aprender. Esta territorialização, trabalho do professor Luiz Lourenço com
estudantes do curso preparatório para o Ensino Médio, conforme apresentado no próprio
trabalho:
[...] pretende revelar outra face da cartografia, trabalhando não com dados objetivos e
sim com as percepções e sensações que os jovens estudantes do preparatório sentem
sobre os lugares que compõem a Maré. Medo, violência, lazer, liberdade, tristeza e
felicidade, esses são os sentimentos percebidos pelos estudantes quando se deparam
com as paisagens da Maré (Figura 3, 2018).
39
Fonte: Fotografia tirada pela autora do Mapa Sensorial exposto no CEASM (2018).
Mas os moradores de favelas sabem que esta definição não fala quase nada sobre sua
realidade. Reconhecendo que a representação das favelas determina políticas públicas e hoje
está calcada em preconceitos, baseados em estereótipos negativos, que não permitem
compreender a realidade social, econômica, política e cultural daquele espaço, o Observatório
de Favelas, entidade formada por moradores de favelas, também sediada no Complexo da Maré,
chama a atenção para o fato de que essa imagem sobre o que é uma favela é marcada por muita
estigmatização e por ideias de carência, de ausência – de serviços públicos essenciais e
legalização dos imóveis, como coloca o IBGE, de arruamento regular, de segurança, de direitos
(SILVA et al., 2009).
O Observatório nos lembra ainda que o que o Estado e o mercado definem como o ideal
de ocupação das cidades é um modelo baseado em teorias urbanísticas e pressupostos culturais
determinados por classes e grupos sociais hegemônicos e as favelas, por características
morfológicas e composição social, foram jogadas para a ilegalidade e a desconformidade.
Considerando todos estes aspectos, propõe o conceito de favela que prefiro usar neste trabalho:
Afinal, o discurso que afirma que as favelas são “territórios violentos”, como se aquele
ambiente fosse produtor de pessoas violentas e que este seja o destino inevitável das pessoas
que ali vivem, é utilizado pelo Estado para justificar a marginalização destes locais, a não
garantia dos direitos básicos de seus moradores e sua intervenção violenta, supostamente como
41
uma resposta à violência que seria própria ao ambiente e às pessoas. Com isso, desde a
truculência com que policiais e agentes das forças armadas tratam seus moradores até as
chacinas realizadas nas operações policiais, a falta de segurança alimentar, de boas escolas e de
áreas de lazer são aceitas socialmente e tanto o Estado quanto o mercado podem continuar
desumanizando e explorando as pessoas faveladas.
A Maré leva ao extremo o conceito de que territórios são vivos. Morro do Timbau, Baixa
do Sapateiro, Marcílio Dias, Parque Maré, Parque Rubens Vaz, Parque Roquete Pinto, Parque
União, Nova Holanda, Praia de Ramos, Conjunto Esperança, Vila do João, Vila dos Pinheiros,
Conjunto Pinheiros, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Nova Maré e Novo Pinheiros (conhecido
como Salsa e Merengue) compõem o território quase totalmente plano, formado
majoritariamente por ocupações espontâneas, mas também por intervenções públicas com
desapropriações, aterramento e obras de urbanização.
42
Hoje tenho a impressão de que na Maré tem de tudo, de que é possível não sair dali para
nada e ter ao seu alcance qualquer coisa que imaginar. Se nas definições oficiais na favela tudo
é falta, é ausência, andando por ali o que se vê é muita vida, movimento, sons, cores, cheiros,
que mudam o tempo todo. As pessoas ocupam as ruas e se apropriam dela não só para se
locomover, mas para lazer, trabalho, comunicação. Maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro,
formado por 16 favelas em uma área que começou a ser ocupada na década de 1930, o
Complexo da Maré hoje tem cerca de 140 mil moradores (REDES DA MARÉ, 2019).
Dominada pelo tráfico de drogas, dividida e disputada por 3 diferentes facções, é
constantemente alvo da necropolítica do Estado brasileiro que autoriza forças militares a
43
invadirem o território de forma truculenta, atirando a esmo, deixando claro que, para quem
define as políticas nesse país, aquelas vidas não importam.
Vidas, em sua maioria, negras. Segundo o Censo da Maré, 62,1% das pessoas que vivem
no Complexo são negras (52,9% pardas e 9,2% pretas), 36,6% brancas, 0,6% indígenas e 0,5%
amarelas. Sua população é majoritariamente jovem e mais um dado denuncia o genocídio da
juventude negra que habita aquele território: a partir da faixa etária dos 19 anos, quando
começam a incidir as causas externas de morte que atingem mais os homens, a população, antes
equilibrada entre homens e mulheres, passa a ser majoritariamente feminina (REDES DA
MARÉ, 2019).
No seu artigo sobre o movimento de lésbicas na Maré, Dayana Gusmão e Michele
Seixas chamam atenção também para a importância das pessoas vindas do Norte e Nordeste no
processo de construção dos primeiros barracos da favela e de uma rede mínima de esgoto e
captação de água, pelos seus conhecimentos na área da construção civil (GUSMÃO et al.,
2018). O Censo também reforça a origem nordestina da população: atualmente, apesar de os
nordestinos representarem pouco mais de 9% da população metropolitana fluminense, na Maré
eles correspondem a 25,8% dos moradores (REDES DA MARÉ, 2019).
Assim como o artigo sobre a história do movimento de lésbicas na Maré chama a
atenção para o crescimento do conservadorismo religioso, o Censo da Maré aponta que 47,2%
dos moradores do complexo se declaram católicos e 21,2% evangélicos e afirma que há uma
“imensa pressão contra o espiritismo e as religiões afro-brasileiras promovida nas últimas
décadas, principalmente por algumas denominações do campo pentecostal e neopentecostal”
(REDES DA MARÉ, 2019, online). Outra publicação, a cartilha Juventudes LGBT de favelas:
prevenção e enfrentamento da violência contra a juventude LGBT de favelas, elaborada pelo
Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de Favelas, falando sobre a violência neste território,
afirma que:
(dentro e/ou fora da Maré), 74,6% sofreram violência psicológica e 22% afirmam que já foram
agredidas fisicamente (REDES DA MARÉ, 2019).
Espero trazer para esse trabalho um pouco dessa relação com o território, de sentimentos
de mulheres que vivem ali, traduzidos por elas mesmas, da percepção da heterogeneidade do
Complexo da Maré e da heterogeneidade das mulheres lésbicas que vivem na Maré e seus
olhares para sua lesbianidade e para como ser uma mulher lésbica vivendo neste território
influenciou seu processo de saúde e adoecimento ao longo da vida.
46
10 METODOLOGIA
Não faria sentido escolher para este trabalho uma metodologia que se propusesse neutra
ou apenas racional, na qual meu envolvimento com o tema e com a pessoa que dele participou
não estivesse evidente e fizesse parte de todas as suas etapas. Enquanto pesquisa qualitativa,
importam aqui as vivências da mulher lésbica entrevistada (e as minhas) e a percepção que
temos destas experiências.
Sendo este um estudo das relações entre lesbofobia e processo saúde-adoecimento, se
fez necessário escolher uma entrevistada entre as que efetivamente pudessem contribuir para o
ampliamento do pensamento sobre o tema. A pergunta: “quem entrevistar?” tornou-se, assim,
central. O entendimento do significado da experiência de lesbofobia e sua relação com o
processo saúde-adoecimento fez com que a História Oral (ALBERTI, 2005) fosse escolhida
como método nesta pesquisa. A História Oral prioriza entrevistar quem viveu situações, quem
pode fornecer depoimentos significativos, numa espécie de método para registrar a relação ou
o papel estratégico da pessoa entrevistada com o tema da pesquisa.
Assim, a posição e a disponibilidade da entrevistada escolhida foram fundamentais para
a definição sobre o método. Ser uma mulher lésbica que nasceu e vive no Complexo da Maré
era, obviamente, pré-requisito. Mas foi importante também trocar com alguém que fosse capaz
de refletir sobre a sua própria vivência e, sabendo que não é possível universalizar sua
experiência, conhecesse outras histórias – não só outras mulheres – de lesbianidade e lesbofobia
na Maré. Achei interessante também que a sapatão escolhida tivesse uma atuação política, tanto
para que a reflexão oriunda desta militância estivesse presente nesse estudo quanto por acreditar
que a politização traz um olhar diferenciado e mais qualificado para os processos vividos pela
lesbofobia e para o próprio território da Maré.
Na História Oral, a importância da disponibilidade e da circunstância de vida e
envolvimento com o tema da pessoa entrevistada tem grande relevância, sendo mesmo
determinante para o rumo do estudo. A predisposição para falar sobre o passado e o presente, o
grau de envolvimento com o tema, o estilo de fala da entrevistada é que determinam se aquele
depoimento traz contribuições para o conjunto da pesquisa; fazendo com que a escolha da
entrevistada, por mais criteriosa e cuidadosa que seja, “só é plenamente fundamentada no
momento de realização das entrevistas, quando se verifica, em última instância, a propriedade
ou não da seleção feita” (ALBERTI, 2005). Na História Oral os critérios do pesquisador antes
de iniciada a entrevista podem ser completamente frustrados ou completamente surpreendidos;
o inesperado passa a fazer parte integrante da coleta de dados. Por isso, uma das decisões mais
47
importantes é escolher pessoas dispostas a falar sobre si com intensidade, onde não seja um
problema revelar sua posição e experiência, onde um diálogo franco e aberto para prestar um
depoimento aprofundado e absolutamente singular possa acontecer. Se a pessoa pesquisada tem
uma percepção aguda sobre sua experiência e tem também uma visão de conjunto sobre o tema,
possivelmente fará uma entrevista satisfatória.
Assim, convidei para construir comigo este trabalho Dayana Gusmão, mulher negra,
cria da Maré, assistente social, que no período desta pesquisa é mestranda do Programa de Pós
Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), assessora da Fiocruz para questões de gênero e raça e coordenadora geral da Casa
Resistências Espaço de Cultura Mareense, espaço de produção de cultura e saúde e acolhimento
de lésbicas de favelas em situação de violência. Dayana foi fundadora da Coletiva Resistência
Lésbica da Maré e já foi coordenadora política da Articulação Brasileira de Lésbicas, além de
ter trabalhado na ONG Conexão G e na Redes da Maré.
Começou a descobrir sua sexualidade ainda na adolescência, no final dos anos 90, início
dos anos 2000. De família evangélica, passou por vários processos de violência, levou anos
para aceitar e assumir sua lesbianidade, mas hoje, aos 36 anos, além de uma liderança
reconhecida em todo o país no movimento sapatão, vive plenamente sua sexualidade, tem um
relacionamento saudável que é fonte de cuidado e inspiração e consegue falar sobre tudo que
passou. Filha de Iansã, “uma força guerreira, perigosa, insubordinada” (WERNECK, 2010),
essa mulher brilhante é também uma força da natureza, capaz de, como ventania, mudar o
mundo por onde passa. Mas também sabe ser leve, ser brisa, sem deixar de ser inspiração e
força.
A pergunta sobre quantas pessoas entrevistar persegue qualquer pesquisador, mas na
História Oral ela depende diretamente dos objetivos da pesquisa, podendo ser, portanto, restrita
a apenas uma única pessoa, especialmente se seu depoimento for suficientemente significativo
e possibilitar construir uma interpretação bem fundamentada. Outro aspecto importante é o
estilo de entrevista a ser adotado pela pesquisadora. Neste estudo a escolha foi por realizar uma
entrevista de história de vida e não uma entrevista temática, principalmente pelo fato de que a
narrativa da trajetória de vida, apesar de demandar mais tempo para ser realizada, possibilita
uma abordagem relevante e aprofundada, critério fundamental para os resultados esperados.
Através da história de vida podemos conhecer melhor a experiência pessoal, o discurso, as
referências. Por isto, foi importante incluir parte do período inicial de vida da entrevistada, o
que ofertou contexto para a construção dos sentidos que a levaram a participar da pesquisa, uma
vez que não foi realizado um estudo prévio sobre sua trajetória de vida.
48
Minha relação com Dayana é anterior a este projeto de pesquisa, se iniciou nas
atividades sobre saúde do movimento social de lésbicas e já dura alguns anos. Por isso, ao
decidir que estudaria saúde de mulheres lésbicas a consultei se seria possível realizar a pesquisa
na Maré e, em seguida, a convidei para participar da qualificação do projeto junto com a banca.
Após a aprovação do CEP, marcamos de realizar a entrevista na Casa Resistências Espaço de
Cultura Mareense, uma casa na Vila do Pinheiro, uma das favelas do Complexo da Maré, que
é sede da Coletiva Resistência Lésbica da Maré, local de acolhimento para lésbicas faveladas
vítimas de lesbofobia e aglutinador da cultura sapatão.
A entrevista em profundidade foi realizada com assinatura prévia do Consentimento
Livre e Esclarecido, em um único dia, com duração de aproximadamente 4 horas, sem roteiro
pré determinado, iniciando com uma nova apresentação da pesquisa, seus objetivos e como ela
havia sido construída até ali. Iniciei com um pedido: “me conta a sua história”, e a partir daí as
perguntas foram surgindo conforme a história se desenvolveu. A conversa foi gravada por
celular e posteriormente transcrita para facilitar a análise dos dados.
Em uma pesquisa que utiliza História Oral, o quesito análise de dados constitui a própria
transcrição e organização da entrevista e por isso é importante que se construa uma espécie de
sumário da entrevista, localizando os assuntos abordados. Aqui essa espécie de sumário da
entrevista consta como parte integrante dos itens que compõem o seguinte capítulo: Resultados
e Discussão.
Esta pesquisa não contou com financiamento de fontes públicas ou privadas para seus
custos operacionais. Os custos associados a materiais impressos, equipamento multimídia e
áudio, transporte e alimentação da pesquisadora foram arcados pela própria.
50
11 RESULTADOS E DISCUSSÃO
11.1 ANCESTRALIDADE
Dayana começa a contar sua história não a partir de si mesma, mas de sua ancestralidade,
das mulheres que vieram antes dela. Sem contato com a mãe biológica, sua maior referência é
a avó paterna, uma mulher de origem indígena, nordestina (assim como pouco mais de um
quarto dos mareenses), trabalhadora doméstica, protestante. Saída de Alagoas com uma família
que a trouxe para trabalhar como babá, ela começa a construir a própria vida na Maré em 1939,
logo no início da construção da comunidade. Aos 102 anos, ainda é uma forte influência em
sua vida. O pai, militar da marinha, é apresentado como uma figura protetora, porém, pelas
constantes viagens a trabalho, distante, que por muitos anos não consegue defendê-la dos
abusos que sofreu. Aos 8 anos, seu pai se casa e é esta mulher que Dayana vai identificar como
mãe.
Dayana se apresenta reverenciando sua ancestralidade, num movimento de se demarcar
como corpo individual e subjetivo, mas também como corpo coletivo, fruto de estratégias de
sobrevivência e de uma teimosia em viver frente a todas adversidades impostas a corpos
racializados como inferiores. Dayana é fruto da diáspora africana e da resistência indígena que,
como as águas dos rios, acham caminhos teimosos na incessante busca pelo mar.
Dayana sabe que a luta por sua individualidade é a luta pelo direito de ser sujeito, pelo
direito de ser reconhecida como humana, numa sociedade que hierarquiza e desumaniza sujeitos
em função da ficção racial. Sua vida é a vitória da teimosia de suas ancestrais, da luta árdua e
cotidiana traçada por elas. É por isso que, por vezes, ao longo da entrevista, Dayana fala sobre
si, ora na primeira pessoa do singular e ora na primeira pessoa do plural. Não por acreditar que
sua vivência possa ser homogeneizada para a experiência de todas as mulheres lésbicas
faveladas e racializadas como subalternas, mas por se compreender como parte de um
continuum que representa a liberdade/emancipação que se busca alcançar por meio do bem
viver, como bem descreve o movimento brasileiro de mulheres negras (PRESTES, 2018), por
meio de uma sociedade efetivamente democrática, justa e capaz de romper em definitivo com
o racismo cisheteropatriarcal capitalista.
Há uma armadilha da branquitude em ler Dayana como referência homogeneizante para
todas as mulheres lésbicas faveladas, uma armadilha de silenciamento, de negação das
subjetividades diversas e da negação da lente interseccional sobre cada uma dessas vivências
marginais. O “nós” de Dayana é um contraponto a essa armadilha, à medida que se reconhece
51
como corpo coletivo, mas que busca a possibilidade de sua individualidade, de sua
subjetividade enquanto uma mulher negra favelada da Maré, em meio a tantas que se
diferenciam e se aproximam em suas diversas vivências marginais.
Costumo dizer que a Maré é um país, digo em tom de brincadeira, mas cada vez mais
tenho feito esta afirmação de modo político. Existem no território comunidades
angolanas, senegalesas, chinesas e gente de todo o país que encontrou nos movimentos
das marés, formas de viver e modos de habitar (GUSMÃO, 2020, online).
amiga no colo e a leva para ser socorrida. E este momento Dayana identifica como o início de
alguma forma de militância, pois, ainda criança, começa a se perguntar “por que a polícia podia
fazer isso, se não faziam no bairro onde eu estudava, por que faziam isso no bairro onde eu
moro?”.
Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira, escreve sobre a divisão racial presente nas
cidades brasileiras, afirmando que favelas e periferias são espaços racializados como negros.
Nesses espaços, o Estado se apresenta não com a função de proteger e garantir direitos para
quem ali habita, mas sim de produzir medo e contenção social (GONZALEZ, 1984). Favelas e
periferias são o lócus principal da política Estatal de genocídio da juventude negra. É falacioso
pensar que o Estado está ausente nas favelas da Maré. Pelo contrário, este se faz presente
quando o caveirão circula pela comunidade dizendo que veio “roubar a alma dos moradores”,
se faz presente quando autoriza as forças de segurança pública a adentrar os territórios com
helicópteros e caveirões atirando a esmo, reforçando a ideia de que todo morador de favela ou
periferia é bandido em potencial e portanto pode ter seu corpo e mente violados por balas que
nunca são perdidas.
Tal como nos relata Dayana, a presença violenta das forças de segurança pública nos
territórios de favelas e periferias produz impactos imensuráveis nos processos de saúde e
adoecimento das populações afetadas. A sensação de menos valia, o medo constante, o estresse
pós-traumático que se atualiza cotidianamente, a constante tarefa de lidar com a morte, a
impossibilidade de viver o luto apropriadamente são apenas alguns exemplos de como a
banalização da violência impacta a vida de moradores de favelas.
Após este episódio, a família se muda, inicialmente para a Baixa do Sapateiro e
finalmente para o Timbau que, segundo ela, é considerada “a Zona Sul da favela”. Alguns anos
depois, no final dos anos 90, início dos anos 2000, a violência policial recrudesceu, a Polícia
Militar do Rio de Janeiro começou a fazer operações com os tanques blindados conhecidos
como “caveirão”. Em sua tese de doutorado, a também cria da Maré Marielle Franco, socióloga,
negra, lésbica, assassinada pelo Estado brasileiro no ano de 2019, questiona as Unidades de
Polícia Pacificadora como projeto político de inclusão social de áreas de favela e periferias.
Para a autora, o nome do projeto parte do pressuposto que as favelas precisam ser pacificadas,
como se fossem áreas de produção de marginalidade e violência, o que denota uma visão
estereotipada sobre essas regiões. Marielle (FRANCO, 2014) sugere que tal política de
“inclusão” deveria receber o nome de Unidade de Políticas Públicas, com o objetivo de garantir
cidadania e direitos constitucionais para moradores de favela e periferia. A instabilidade do
território faz com que a família se mude para Belém, no Pará, onde viveram por quase 3 anos.
53
11.3 PROTESTANTISMO
A igreja evangélica faz parte da vida da família de Dayana há muitas gerações – como
ela conta, seu avô fundou uma delas. Parte de sua socialização desde a infância, participa de
diversos grupos da igreja e no início da adolescência já é reconhecida como uma liderança
dentro desta comunidade. Mas também é neste ambiente que recebe o rótulo de “indomável”,
"Eu era sempre a que não prestava, porque eu encobria todo mundo, não comia ninguém, e
era sempre a culpada, era sempre a má influência: “não anda com a Dayana``”.
O protestantismo nasce na Alemanha no século XVI como uma religião cristã,
dissidência do catolicismo. Suas igrejas são conhecidas como evangélicas por se basearem nos
quatro evangelhos do Novo Testamento bíblico e dizem que a Bíblia é sua única regra de fé e
prática (AGUIAR et al., 2021). Com o colonialismo e a expansão capitalista que dizimou e
dominou outras culturas, o cristianismo é imposto às sociedades colonizadas e, apesar de ainda
haver uma dominância do catolicismo na América Latina, as igrejas protestantes vêm, desde o
século XIX, ganhando cada vez mais força no Brasil, especialmente em favelas e periferias de
zonas urbanas. Atualmente, as igrejas evangélicas são um dos principais espaços de
socialização nestas áreas pois, além de se mobilizarem para suprir uma série de demandas das
quais o Estado se desresponsabiliza - de assistência social, mas também de saúde, educação e
saneamento – se apresentam como um espaço seguro contra a degeneração moral que,
apregoam, é a responsável por todos os males da nossa sociedade (SENHORAS, 2016).
Entretanto, se por um lado a igreja é capaz de proteger de algumas violências, ela produz
muitas outras. A Pastora Ivana Warwick, mulher transgênera, brasileira, branca, relata:
Dayana reconhece que a religião protestante é responsável por muita repressão, por uma
relação ruim com os corpos femininos e por muitos tabus. Mas conta que também foi nesta
socialização no ambiente da igreja que percebeu que “alguma coisa muito esquisita” estava
acontecendo quando entendeu uma atração sexual diferente da de suas amigas - não queria ficar
com os meninos como elas. A primeira menina por quem sentiu interesse também era da igreja
54
e foi de lá que veio a reação a esse relacionamento: Dayana passou a sofrer um processo que
chama de exorcismo, um ritual que une jejum, oração e leitura da Bíblia a violência física e
psicológica por aproximadamente 3 dias a cada episódio.
E assim como para a maior parte das mulheres lésbicas, o primeiro perpetrador da
violência é a família de origem. Mãe e avó eram quem impunham as sessões de exorcismo,
sempre na ausência do pai, que viajava muito a trabalho. Quando ele estava em casa, eram
constantes as ameaças sobre o que aconteceria quando ele novamente viajasse. Iniciadas aos 15
anos, Dayana relata 18 sessões de exorcismo até ser expulsa da igreja. Apesar de já estar há
muitos anos fora deste ambiente, ela ainda afirma que “quando eu digo que o exorcismo
religioso dá certo, ele dá certo, ele te traumatiza”, relembrando dos primeiros anos que viveu
distante da igreja.
Infelizmente, o Mapeamento Sócio-Cultural-Afetivo das Lésbicas e Mulheres
Bissexuais do Complexo da Maré nos mostra que a tentativa de conversão da sexualidade que
Dayana sofreu não é um acontecimento isolado ou tão raro quanto gostaríamos: das 59 mulheres
entrevistadas na pesquisa, onze delas relataram terem sido submetidas a alguma forma de
tratamento de conversão, das quais dez tinham um cunho religioso, seja da própria religião ou
da família (MARTINS; GUSMÃO, 2021).
A mágoa que ela traz vem também de um sentimento de não ter sido protegida por
ninguém. Ao contrário, a comunidade religiosa, que prega a compaixão e o amor, apoiou por
cerca de 3 anos a tortura física e psicológica de uma adolescente e mais de uma vez ela repete
“Eu não tenho ranço (da igreja) à toa”.
Dayana conta que por volta dos 15 anos percebeu que tinha “alguma coisa muito
esquisita” em relação a sua sexualidade, que não tinha vontade de ficar com meninos como
suas amigas, mas diz que “não sabia que aquilo era ser sapatão”. Não tinha qualquer referência
sobre lésbicas ou mulheres que ficavam com outras mulheres, citando novamente a repressão
55
Lembro que quando era pequena e morávamos na divisa da Nova Holanda com a
Baixa do Sapateiro, tinha uma vizinha que morava há muitos anos com uma amiga. A
vizinhança sempre comentava sobre a “mulher machinho”, mas o assunto nunca foi
falado conosco. Não parecia coisa da qual crianças devessem se ocupar. Ao mesmo
tempo em que toda vizinhança comentava num tom claramente lesbofóbico, a rede de
cuidados construída pelas mulheres da vila que abrigava mais de 50 moradores, não
excluía as duas mulheres. Só me dei conta que elas eram um casal quando eu já tinha
uns 19 anos e elas se separaram (GUSMÃO, 2020, online).
estar mais dependendo da família, mexe com valores e crenças que estão arraigadas muito
profundamente, para além do que acreditamos conscientemente.
Dayana acredita que essa dificuldade teve relação com um “ranço protestante”, mas
também com não querer se submeter a um rótulo. Mesmo depois de assumir pela primeira vez
um relacionamento com outra mulher e de estar trabalhando no Programa do governo estadual
do Rio de Janeiro Rio sem Homofobia, um espaço em que se espera haver uma receptividade
maior para pessoas LGBTIA+, foi apenas com o fim conturbado do relacionamento que todos
souberam de sua orientação sexual. Neste ambiente de trabalho conta que tentava “se marcar
hétero” e que por muito tempo dizia que não era sapatão, mas era “mulher de sapatão”.
Apesar de ter estado com mulheres desde a adolescência, é apenas após se separar do
marido, quase 10 anos após aquele beijo na praça, que viveu um primeiro relacionamento
estável com uma mulher.
Uma menina de 15 anos sente atração sexual por alguém da mesma idade, com quem
convive na igreja, se encontram em uma praça junto com outros adolescentes e se beijam. Uma
cena corriqueira, que não incomodaria, se as envolvidas não fossem duas meninas. Ao serem
vistas nesse momento, ambas se tornam vítimas de diversos tipos de violência que, ao menos
para Dayana, continuam se repetindo ao longo da vida e repercutindo em diversos aspectos.
Muitos problemas de saúde são gerados por níveis elevados de sofrimento pela violência
estrutural, física, psicológica, sexual e simbólica que lésbicas sofrem na família, na escola, no
trabalho, em lugares públicos, etc. Os números dessa violência são imprecisos e subestimados,
porque as vítimas não se sentem seguras para denunciá-la e porque, quando o fazem, os serviços
de saúde ou segurança que as recebem não registram a motivação lesbofóbica da agressão.
Desde os primeiros episódios, o principal perpetrador de violência na vida da
entrevistada foi a família de origem. Ao mesmo tempo em que reconhece a importância da avó
e da mãe ao começar a contar sua história por elas, Dayana as percebe como pessoas que a
agrediram de diversas formas. A violência da qual ela mais fala é o exorcismo religioso, mas
também conta que “minha mãe me mordia, me batia” e ao mesmo tempo diz que “minha avó
sempre foi mais violenta que minha mãe”.
O Mapeamento Sócio-Cultural-Afetivo das Lésbicas e Mulheres Bissexuais do
Complexo da Maré (MARTINS; GUSMÃO, 2021) também encontrou esse perfil doméstico
nas violências sofridas pelas mulheres entrevistadas: 8,5% delas afirmaram ter sofrido violência
57
física e 25,4% disseram que sofreram violência psicológica dentro de casa. Ao mesmo tempo,
37,3% relataram preconceito da família quando revelaram sua orientação sexual, 15,3% nunca
revelaram essa orientação para a família e uma entrevistada relatou ter sido expulsa de casa
quando a família soube da sua orientação sexual.
Apesar da família ser a origem mais conhecida de violência contra pessoas LGBTIA+,
ainda há poucos estudos sobre as características ou motivações dessa violência (TEIXEIRA et
al., 2021). Crenças religiosas, a convicção de que a orientação sexual é uma escolha e pode ser
corrigida, vinda de pessoas também cresceram em uma sociedade ainda mais heteronormativa
e preconceituosa, frustração com a quebra da expectativa da vida idealizada para aquela filha,
tentativa de enquadrá-la num modelo considerado normal, inclusive para evitar agressões
vindas da sociedade em geral são alguns dos relatos. De qualquer forma, para mulheres lésbicas,
a família, longe de corresponder ao ideal romantizado de segurança e afeto, muito
frequentemente é a primeira e às vezes maior produtora de violência e sofrimento.
Além da agressão física, de impedir o acesso a comida e de sair de casa, Dayana sofreu
muitas violências psicológicas e chama atenção a forma como fala delas: “No momento que eu
começo a passar por esse exorcismo, elas começam a quebrar as minhas perspectivas, então
assim “você não vai fazer faculdade, você nunca vai ser nada, porque você não quer seguir
Jesus” ou “Só que a violência psicológica faz um negócio contigo que é... ela paralisa. A minha
sensação com a violência psicológica, sabe aquela imagem do cavalo preso na cadeira de
plástico? É a minha sensação com a violência psicológica. Então eu saí de casa, achando que
agora eu vou viver e eu não consegui me relacionar com as mulheres, porque eu me sentia
radicalmente errada. Quando digo que o exorcismo religioso dá certo, ele dá certo, ele te
traumatiza.”
É entendida como violência psicológica qualquer conduta que cause danos emocionais
e diminuição da autoestima com o objetivo de degradar ou controlar ações, comportamentos,
crenças e decisões através de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante ou insultos (TEIXEIRA et al., 2021). Há estudos com adolescentes
LGBTIA+ que mostram que ela é, além da forma mais prevalente de violência, a que causa
mais sofrimento e mais agravos, levando desde quadros de diminuição do autocuidado, maior
frequência de uso prejudicial de álcool e drogas, transtornos alimentares, depressão, ansiedade
até a mais chances de pensar e tentar suicídio (NATARELLI et al., 2015). Além das violências
que ela mesma sofreu, Dayana traz em seu relato uma das formas mais extremas de violência
lesbofóbica intrafamiliar: muitos anos depois, descobriu que uma menina com quem se
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relacionou ainda não adolescência havia sido expulsa de casa após sua experiência homossexual
ser descoberta.
Outra informação que Dayana traz sobre a violência intrafamiliar é que ela se intensifica
ao se mudarem para Belém, por aquele ser um ambiente ainda mais conservador. As grandes
metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, pela convivência de pessoas de origens, credos,
raças e sexualidades mais diversas permitem de alguma forma uma gama maior de expressões
de ser e estar no mundo e, ainda que o ambiente da favela talvez não permita o anonimato
relativo de outras áreas dos grandes centros urbanos, sendo parte da cidade ela também constrói
e absorve essa cultura menos opressora.
É possível identificar na história de Dayana mais uma forma de violência interpessoal,
a violência moral - quando o agressor comete calúnia, injúria ou difamação contra a vítima para
desmoralizá-la perante um grupo ou a sociedade (TEIXEIRA et al., 2021). Quando termina a
relação com o ex-marido para ficar com uma mulher, ele ameaça expor intimidades de quando
ainda eram um casal e sua nova relação com uma mulher, dizendo que vai “destruir sua
imagem”. Vemos aí um homem que, em uma ameaça machista e lesbofóbica, usa da lesbofobia
estrutural e de todas as violências que a vítima sabia que estaria exposta em uma tentativa de
submetê-la a sua vontade.
É interessante notar o papel da escola e da educação nesta relação com a violência que
Dayana sofreu. Muitos adolescentes LGBTIA+ identificam a escola como mais um perpetrador
de violência, seja institucionalmente, seja na relação com colegas e professores. Em 2016 foi
realizada no Brasil uma pesquisa com jovens LGBTIA+ sobre o ambiente escolar e 72,6%
revelou já ter sido agredido verbalmente na escola por sua orientação sexual e 69,1% ouviu
comentários LGBTIfóbicos de professores ou funcionários da escola. (ALBUQUERQUE,
2016) Na pesquisa, mais da metade (55,9%) disseram que as medidas tomadas pela instituição
para lidar com a violência foram ineficazes (ALBUQUERQUE, 2016).
Entretanto, além de não trazer este relato, quando conta sobre o momento em que
rompeu o ciclo de violência vinda da mãe, Dayana fala que “eu estava um pouco envolvida por
conta escola, já entendendo um pouco mais os meus direitos ali em termos de não-violência”.
Conta que via a escola como um refúgio e fala especialmente de uma professora de quando
vivia em Belém, que se aproximou e a convidou para um grupo que tinha com alguns alunos
sobre literatura, no qual faziam discussões sobre violência. Estas discussões foram fazendo com
que Dayana refletisse sobre o que vinha passando: “Ali entendi que o que eu sofria em casa
não era mau humor da minha avó, que aquilo não tinha relação com amor”. E termina com
uma frase que certamente deixaria feliz aquela professora: “Talvez ela nunca saiba o quanto
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me salvou, mas no final das contas acho que é isso que um defensor de direitos humanos faz, a
gente vai espalhando centelhas de liberdade”.
Dayana diz ainda que sempre considerou a educação importante, inclusive para ter
condições de romper com o ciclo de violência e deixar de depender da família ou de qualquer
outra pessoa. Sempre doeu muito ouvir as familiares dizerem que não faria faculdade, que “não
seria ninguém por não seguir Jesus”. Estudou em escolas públicas toda a vida
(tradicionalmente desvalorizadas no nosso país) e, aos 17 anos, completando o Ensino Médio,
passou no vestibular para duas universidades públicas. Retornando ao Mapeamento Sócio-
cultural-afetivo de Lésbicas da Maré, vemos que o investimento na educação parece ser algo
comum a estas mulheres: 44% completaram o Ensino Médio e 42,3% estão no ou completaram
o Ensino Superior.
Dayana tinha um plano para sair da violência à qual estava submetida dentro de casa:
juntar dinheiro e, assim que pudesse, ir morar sozinha. Um dos aspectos marcantes em uma
relação violenta intrafamiliar contra adolescentes é a dependência financeira. Dificilmente o
jovem que está descobrindo sua sexualidade aos 12, 15 ou 17 anos tem condições materiais de
sair de uma situação de violência dentro da própria casa. Por mais que os vínculos emocionais
possam ser rompidos, a dependência mantém o adolescente ali. Trabalhando desde os 14 anos,
Dayana juntou dinheiro e aos 18 anos conseguiu sair de casa.
Entretanto, conviver com a lesbofobia ao longo da adolescência sempre tem
consequências com implicações sobre a saúde, sofrimento psíquico e adoecimento. Uma
pesquisa (MONGIOVI, 2018) realizada no Brasil demonstra que a vivência da homofobia pode
desencadear comportamento depressivo, ansiedade, medo, ideação e tentativa de suicídio entre
os adolescentes. Neste estudo qualitativo relata-se que os impactos negativos abrangem também
os seus hábitos de vida e de autocuidado, acarretando inadequações do padrão de sono,
alimentação e atividade física e a associação destes fatores como desencadeantes de sintomas
físicos como dores de cabeça, no corpo, vômitos e desmaio; também se relata a experiência de
homofobia a partir de violência física, verbal, psicológica e sexual, ocorridas no ambiente
escolar, na família, na comunidade, e também dentro dos serviços de saúde, quando da
solicitação de atendimento especializado em saúde.
Dayana, antes de sair de casa, tomou providências que tornaram possível sobreviver.
Aos 17 anos, além de fisicamente impedir que a mãe a agredisse, segurando suas mãos e
dizendo que revidaria se apanhasse novamente, decide enfrentar as ameaças e contar para o pai
tudo que vinha acontecendo desde os 15 anos. Falando sobre este episódio, ela reflete: “quando
você trabalha com o binômio da repressão, você coloca o pé na garganta do leão, você acha
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que venceu, só que uma hora que você der um mole, e você vai dar um mole, você vai baixar a
guarda, ele te engole, foi o que aconteceu”. Apesar da relação entre os pais nunca ter se
recuperado e da sua relação com a família ter continuado muito difícil, agressões físicas e
ameaças não aconteceram mais depois deste dia. Como ela mesma disse: “eu acho que esse
ímpeto de violência foi sendo talhado no meu corpo ao longo da vida".
da favela, organizando, lideradas por Michele, a I Visibilidade Lésbica da Maré, uma atividade
dentro da programação da Semana da Diversidade da Parada LGBT da Maré. Nesse período
participaram de várias edições da Parada LGBT da Maré, capacitaram profissionais das Clínicas
da Família do território sobre saúde de lésbicas e realizaram atividades de educação em saúde,
fizeram debates com alunos do preparatório do Redes da Maré e sempre buscaram mapear onde
estavam as lésbicas na Maré e alcançá-las.
A partir dessa mobilização, Dayana e outras 5 ativistas fundaram em 2017 a Coletiva
Resistência Lésbica de Favelas, que depois originou a Coletiva Resistência Lésbica da Maré
(GUSMÃO et al., 2018). Sobre esse movimento de saída da Conexão G e criação da Coletiva,
na matéria que publicou na Revista Le Monde, Dayana conta que:
A ideia era ter um espaço seguro para escuta e sociabilidade sapatão e bi. Obviamente
outras demandas foram se apresentando e em 2017 decidimos dar tom mais político à
coletiva ocupando espaços de decisão e fazendo articulação com outros grupos
estaduais e nacionais da pauta lésbica e bissexual (GUSMÃO et al., 2018, online).
Ao mesmo tempo em que construía o movimento lésbico na Maré, o grupo que ali
atuava se articulava com outros grupos organizados no Rio de Janeiro e no Brasil e com o
movimento nacional, principalmente a Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL). Organização
presente em quase todos os estados do Brasil, a ABL visa empoderar coletivamente mulheres
lésbicas e bissexuais, promover direitos humanos e cidadania e enfrentar o preconceito, a
opressão e a violência e representa as mulheres lésbicas e bissexuais, entre outros espaços, no
Conselho Nacional de Saúde. Com essa aproximação, Dayana se envolve com a ABL e chega
a fazer parte de sua diretoria.
Entretanto, o mesmo movimento social que pode ser proteção pode reproduzir
violências e ser adoecedor. Dayana sente que se encaixar em um modelo de militância a afastou
de suas parcerias na Maré, além de impor uma agenda de compromissos que muitas vezes não
deixava espaço para outras atividades profissionais e pessoais. E estar no movimento nacional,
institucional, sem conseguir dar conta de tudo que esperam que ela dê, mais do que significado
para o sofrimento, traz ansiedade, tristeza, desapontamento.
Mas não é fácil se retirar deste espaço. Além disso levar a uma ruptura de relações
interpessoais importantes de longa data, que não entendem sua necessidade de “dar passos
atrás”, Dayana percebe o quanto o movimento social significa em sua vida: "saio da igreja e
me lanço nesse mundo, então aquilo passou a ser o meu mundo". Mas são as alterações de
saúde, corporificações do sofrimento que continuar no movimento institucional estavam lhe
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causando, e o apoio encontrado na Umbanda que a fazem questionar se estava ali porque
acreditava no que estava fazendo ou porque gostava da fama e de reconhecimento que lhe
traziam e finalmente fazem com que se afaste e invista sua energia militante em outras frentes.
11.6 SAÚDE
Em diversos momentos Dayana cita questões de saúde - desde quando diz que a cabeça
é “fodida” pelos tiros que ouvia constantemente na infância até os sintomas que experimenta
quando lida, hoje, com dificuldades no movimento social lésbico ou com meninas que sofreram
violência e a procuram contando suas histórias: irregularidade menstrual, queda de cabelo,
enjôo, vômito, dores, alterações de pele. E, quando pergunto diretamente o que faz para se
cuidar, ela diz que “não acredita na separação cabeça-corpo” e cita algumas formas de
autocuidado que consegue ter hoje: “Eu estou fazendo terapia, floral, fazendo pilates, indo para
o terreiro, fazendo os banhos do terreiro, e mesmo assim tem dia que eu falo: gente, espera
aí!".
Entretanto, na maior parte das vezes que pergunto sobre lesbofobia e adoecimento, ela
não fala só por/de si, entra em cena a Dayana militante, que pensa saúde para a coletividade,
que fala sobre demandas ginecológicas não acolhidas nas unidades de saúde, da tentativa de
construir uma relação do movimento sapatão com as Clínicas da Família e a alegação da
necessidade de sua intervenção como assistente social da Redes da Maré para a garantia de
atendimento. Ela demora para falar de seu próprio autocuidado, talvez porque esse processo de
cuidar de si, para a menina que desde cedo aprendeu que devia ser forte, ainda é incipiente. É
possível perceber também o quanto esse reconhecimento de que precisa - e de que pode precisar
- de cuidados é muito incentivado pela companheira. Ao mesmo tempo em que busca cuidado
em saúde para a coletividade de lésbicas, Dayana tem uma grande facilidade de negar cuidado
para si mesma.
Apesar de dizer que consegue ter uma boa relação com as Clínicas da Família, são as
dificuldades e as experiências negativas que mais surgem na conversa. Em uma roda de
conversa que participamos juntas há alguns anos, Dayana contou sobre um episódio que marca
o início do movimento de lésbicas na Maré, mas que ilustra a violência institucional que muitos
estudos afirmam existir em vários lugares do mundo: uma menina lésbica buscou atendimento
em uma das Clínicas da Família que cobre o território do Complexo da Maré. O médico, um
homem branco, idoso, não perguntou sobre o comportamento sexual da paciente, que nunca
tinha tido relações sexuais com penetração vaginal, e decidiu fazer um exame ginecológico
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acolhê-la com dignidade e respeito. Por parte de Dayana, essa foi uma das motivações para a
construção, em parceria com a Universidade Federal Fluminense, do Mapeamento Sócio-
cultural-afetivo de Lésbicas e Mulheres Bissexuais de Favelas (MARTINS; GUSMÃO, 2021).
Apesar de dizer que sempre usou o SUS, Dayana não fala sobre um contato com o
sistema de saúde pelas próprias demandas. Chama atenção também, para mim, que ela fale
sempre sobre “ginecologista”, “consulta ginecológica”, “outras consultas”, mas em momento
algum fale sobre médico de família, generalista ou qualquer outra expressão que remeta à
especialidade. Como é comum ouvir por todo o país, ela se queixa também de dificuldade de
conseguir agendar consultas e demora no tempo de espera por elas nas Clínicas da Família da
Maré. Segundo o Mapeamento, pouco mais de 80% das lésbicas da Maré usam o SUS, 78%
dependem exclusivamente dele e 79,6% acessam as Clínicas da Família do território
(MARTINS; GUSMÃO, 2021).
Mesmo sendo assistente social e tendo uma formação política sólida, consciente de seus
direitos, ela, como a enorme maioria das mulheres lésbicas, não tem vínculo com uma equipe
ou uma unidade de saúde enquanto usuária e tem dificuldade tanto de acessar a APS quanto de
enxergá-la como local de cuidado. Nascida quase ao mesmo tempo que o Sistema Único de
Saúde, vivendo toda a vida em territórios negligenciados pelo classismo e o racismo da
sociedade brasileira, sendo mulher, negra, lésbica, Dayana afirma: “eu não sei fazer isso (cuidar
da saúde) separado do terreiro, então é muito nesse sentido, e também porque quando a gente
fala de cuidados e de saúde, porque o cuidado branco, medicinal, tenha me sido muito negado
enquanto direito”.
11.7 UMBANDA
Das que possuem religião, colocamos diversas opções para entender quais são estas.
12 delas responderam são do Candomblé/ Umbanda/Afro-brasileira ou Africana, o
número mais expressivo dentre as respostas e que traz à tona as religiões nas quais
lésbicas e bissexuais conseguem estar (MARTINS, GUSMÃO, 2021, p. 29).
os meus erros e acertos são em função disso, mas no terreiro, para que eu possa compor aquele
lugar, eu preciso abrir mão de ser a pessoa que tem sempre o controle da minha vida, para que
muitas vezes essa orientação venha de outro lugar, e de um lugar que eu não tenho provas
materiais e concretas de que aquilo vai dar certo.” E resume: “É você se jogar sabendo que
vai ter uma rede embaixo, mesmo sem certeza, você entendeu?”
Depois que falamos sobre o protestantismo e os episódios de violência por eles
impostos, não perguntei novamente sobre religião. Foi quando perguntei sobre o cuidado em
saúde que o terreiro apareceu na conversa. Dayana diz "eu não consigo pensar em cuidado sem
pensar no terreiro, para mim é meio inseperável". Quando precisou se afastar do movimento
social, foi este espaço que passou a ser seu refúgio e é ele quem guia suas escolhas desde então
e foi lá que ganhou apoio para concretizar um sonho, que une cuidado, cura, apoio a lésbicas
em situação de violência, militância e, como não podia deixar de ser, fé: a Casa Resistências.
“Eu nunca tive, nem no meu maior devaneio, nunca pensei em abrir uma casa dessas.
Nem no meu maior surto.” É assim que Dayana, na entrevista, fala pela primeira vez da Casa
Resistências Espaço de Cultura Mareense. Em cima de um bar (com o nome mais que
apropriado de Bar das Minas) na Vila do Pinheiro, a Casa, inaugurada em abril de 2022 com
apoio de mandatos de vereadoras e deputadas estaduais e financiamento coletivo pela internet
(que continua aberto para receber doações em www.vakinha.com.br/vaquinha/nascimento-da-
casa-resistencias ou pelo pix 2740755@vakinha.com.br), é sede da Coletiva Resistência
Lésbica da Maré e um local de acolhimento de lésbicas faveladas que foram expulsas de casa.
Recém reformada pela Coletiva, tem um quarto com beliches e armários, banheiro e um terraço
que faz as vezes de cozinha e área de convivência e oferece moradia, apoio psicológico e social
e caminhos.
A Casa tem uma relação íntima com o terreiro. Dayana vinha sonhando com esse espaço,
sem acreditar que ele poderia um dia se tornar realidade, até que lá uma divindade lhe diz:
"Anota o sonho, desenha o sonho, escreve o sonho, esse sonho vai acontecer. Esse sonho está
no seu destino, e ele vai acontecer, e esse é o mecanismo de cura que você tanto procurava”.
A partir daí começa a falar sobre isso com outras pessoas e oportunidades começam a surgir.
Exu, o senhor dos caminhos, o orixá vilanizado que Dayana diz que “traz uma sabedoria
que é marginalizada, e eu acho que é a sabedoria que eu quero que ocupe a Casa”, é o primeiro
guia desta casa. O conceito de movimento, regido por Exu, está presente também na proposta
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de que a Casa seja um lugar para estas meninas vítimas de violência ficarem até se
reorganizarem, por poucos meses, ganhando ferramentas e forças para trilhar os próprios
caminhos. A ideia é essa, “que todo mundo que passe por aqui ganhe caminhos”.
A Umbanda, identificada como local de cuidado e cura, traz outras contribuições para a
construção do ambiente da Casa, valores que Dayana e o grupo da Coletiva entendem como
importantes na construção desse espaço: Oxalá, que rege o cuidado da cabeça; Ogum, orixá da
guerra, que ensina estratégias e a escolher batalhas; e Iansã, “para dizer que o vento que é uma
tempestade pode ser uma brisa, porque a menina que chega está desorganizada
emocionalmente, então ela vai chegar destruindo tudo. Então alguém precisa ensinar que essa
energia de destruição pode ser canalizada para outra coisa.”
Mas a Casa para Dayana representa muito mais que militância e apoio para outras
lésbicas, ela mesma diz: “a Casa vem para lembrar das minhas violências, porque eu sofri
violência dos 15 aos 18 anos, debaixo do nariz de todo mundo, todo mundo sabia, ninguém
interveio.” Se a Casa nasce para ressignificar a violência que passou, é “o mecanismo de cura
que tanto procurava”, Dayana admite que esse não é um processo fácil. Lidar com o sofrimento
das meninas que chegam vítimas de várias violências, muitas vezes bem parecidas com as que
sofreu, a faz reviver, na memória e no corpo, as dores que já gostaria de ter superado. Nesse
sentido, a Casa na história de Dayana pode ser um concreto exemplo de Sankofa. Na mitologia
iorubá, Sankofa é o pássaro que tem os pés para frente e a cabeça virada para trás, numa alusão
ao futuro, vinculado e intimamente relacionado ao passado-presente.
E o sofrimento trazido pelas mulheres lésbicas que buscam a Casa Resistências a tem
feito refletir sobre como lida com a própria dor: “porque eu comecei a trabalhar muito novinha,
depois eu preciso ser a dona da minha vida muito novinha, e nesse processo a gente vai
soterrando o corpo”. Nesse processo de “soterrar o corpo”, Dayana corporiza os sentimentos
com os quais não consegue lidar e fala diversas vezes sobre enjôo, vômito, queda de cabelo,
psoríase, irregularidade menstrual.
A Casa Resistências é um espaço sonhado e produzido por uma mulher que sofreu as
mais duras violências lesbofóbicas no passado e que compreende a necessidade de se curar
através do encontro com outras mulheres e meninas que vivenciam situações parecidas. Mas a
Casa também é espaço para que a vivência dessas violências seja percebida não de maneira
individual, mas sim coletivizada, amenizada e compreendida como uma violência produzida
pela sociedade e não uma violência internalizada. O processo de oportunizar encontros de cura
e resgate de subjetividade é uma forma de curar Dayana e também cada uma das mulheres que
atravessam a casa. Sim, a casa é espaço de travessia e não de ancoragem, como diz a própria
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Dayana. Travessia para que cada uma dessas meninas possa ser acolhida, resgatada e restituída
em todas as suas potências plurais e possa alçar voos, não ser paralisada pelas lesbofobias. A
Casa é produzida na coletividade e nas subjetividades diversas que ali se encontram para se
curar e potencializar.
Dayana fala sobre como sempre teve a imagem de uma pessoa forte e como, na Casa,
se sente convocada a ser forte o tempo todo, mas ao mesmo tempo, é “tudo menos forte”: “E
aí, como que é estar em uma casa, estar em um espaço onde você é tudo, menos forte? É muito
difícil, ao mesmo tempo eu sou convocada a ser forte o tempo inteiro, por conta das relações
políticas, das relações que tem em torno da Casa, por conta dos cuidados que eu tenho que ter.
Uma coisa que está muito forte para mim, é quem é que cuida da minha saúde mental?”
Este sentimento de que precisa “ser forte”, além da personalidade de Dayana e da
reação aos processos de exclusão e violência que sofreu no âmbito familiar, remete ao que
Regina Facchini relata no Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas ter encontrado em sua revisão:
que mulheres lésbicas buscam formas de afirmar para a sociedade e para a família que tiveram
sucesso na vida como uma forma de provar que eles estavam errados em tudo que disseram que
ela era, muitas vezes assumindo inclusive “uma desmedida responsabilização nos cuidados ou
suporte material a membros da família de origem” como forma de obter aprovação
(FACCHINI; BARBOSA, 2006).
Para lidar com isso, além do suporte da Umbanda, uma estratégia de cuidado que
Dayana vem desenvolvendo junto com suas parceiras na produção de acolhida e cuidado na
Casa, é o movimento de blindá-la do primeiro contato com as meninas que buscam a Casa. Esse
trabalho tem ficado por conta da equipe de acolhimento, composta atualmente por uma equipe
multidisciplinar, formada por duas psicólogas e uma enfermeira residente de Saúde Mental.
Para Dayana é essencial ter a casa como espaço de produção de cultura: “porque eu
entendo que sem cultura a gente não muda a sociedade, então discutir conceitos, discutir como
a gente vive, os modos de vida, é mudar a sociedade.”. Ela, que já mencionou sua descrença na
separação corpo-mente, acredita também que a produção de saúde é indissociável da produção
de arte e cultura e que só com essa confluência é possível pensar em bem viver, da maneira
como a marcha de mulheres negras reivindica essa possibilidade (PRESTES, 2018).
Outro desejo seu é criar, na Casa, uma horta para cultivo de alimentos e de plantas
medicinais, também pensando em produção de saúde e de vida. E a última fala de Dayana na
entrevista mostra, ao mesmo tempo, a grandeza dessa mulher negra, lésbica, favelada, e a vida
e a potência desse território (e vice e versa, a grandeza desse território e a potência dessa
mulher):
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“Meu sonho audacioso nos próximos anos, eu quero criar um grande corredor verde
daqui até a mata (Parque Ecológico da Maré), porque eu acho que é sobre restaurar, é sobre
reflorestar. E não só reflorestar as possibilidades de afeto, é reflorestar a vida. Eu refloresto
no concreto da Maré, para dizer: cara, tem caminho, tem possibilidade”.
70
12 CONCLUSÃO
Muitas vezes ao longo desse projeto me perguntei o porquê de ter escolhido um tema
que me mobiliza tanto, especialmente nos últimos dias, tentando dar um encerramento, escrever
uma conclusão. A história me atravessa de diversas formas e sei que em muitos momentos em
que penso estar falando de Dayana estou, na verdade, falando também de mim. No fundo eu sei
que escolhi o tema exatamente por isso, por essa proximidade e afetação, ainda que
considerando profundamente a diversidade que a vivência de opressões interseccionais nos
proporcionaram. bell hooks fala sobre isso, sobre ler e escrever como um processo de cura
(HOOKS, 2017). Mas o processo de cura é lento e especialmente doloroso - muitas vezes me
fazendo postergar, muitas vezes me levando a escrever apenas um parágrafo e me sentir
extremamente cansada e muitas vezes me fazendo chorar ao ler o que escrevi. Ainda que não
curada, nesse processo, me percebo mais atenta e consciente de minhas dores e cicatrizes, além
de meus privilégios e minhas potências, e assim considero que saio mais leve e mais forte, nem
que seja apenas por concluí-lo.
Posso dizer que encontrei nesta pesquisa algo que não é parte da minha experiência
pessoal, que em poucos momentos tive acesso em minha formação profissional, poucas vezes
considerei com a intensidade devida em meu cotidiano de prática de cuidado e que não encontrei
nas leituras que tenho feito sobre o tema até aqui: a potência, enquanto produção de saúde, de
uma religião acolhedora, que não apenas aceita a diversidade sexual, mas que não impõe
modelos de comportamento ou que não tenta encerrar indivíduos em normas limitantes. A
relação de Dayana com a Umbanda, uma religião de matriz africana, me abre os olhos tanto
para a possibilidade da religião como um espaço de produção de cuidado quanto para a
importância de conhecer mais sobre práticas de cuidado produzidas na marginalidade da
colonialidade, práticas de cuidado que consideram a coletividade como caminho de bem viver.
Também percebo que o que menos consegui trazer para o trabalho foi o que estava mais
distante da minha vivência: o Complexo da Maré. Ele atravessa toda a história de Dayana e está
ali, como o território vivo que produz toda a sua potência e resiliência. Sua vivência tem
nuances que não encontramos nas pesquisas com lésbicas brancas estadunidenses ou europeias;
seus valores e formas de lidar com a vida nascem nas intersecções que a atravessam enquanto
mulher negra, lésbica, favelada. Talvez fosse ilusória a minha expectativa de entender como a
Maré, enquanto território marginalizado, atravessa o processo de subjetivação de uma mulher
lésbica negra. A Maré não aparece para Dayana como um tema à parte de sua construção de
subjetividade, mas é parte indissociável de quem ela é e de como se constrói, desde o medo das
71
nossas práticas de cuidado, ao não considerarem vivências e saberes diversos tem um papel
muito significativo na reprodução de uma série de violências.
Audre Lorde nos dizia, ainda na década de 70, que as ferramentas do senhor nunca serão
capazes de desmantelar a casa grande (LORDE, 2019). A Casa Resistências, fruto da insistência
de Dayana em garantir o reconhecimento de sua subjetividade e de apoiar muitas outras meninas
com vivências similares à sua, nos ensina muito sobre caminhos possíveis de produzir práticas
de cuidado em saúde objetivando o bem viver, quem sabe enxergando uma dinâmica social que
mais do que romper com o cisheteropatriarcado racista, seja capaz de acolher vivências diversas
sem hierarquias ou opressões, para produzir uma sociedade efetivamente democrática, onde
sujeitos têm a liberdade de ser garantida.
73
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Human Papillomavirus Vaccine Among U.S. Women and Girls: A National Survey. Annals
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https://www.globalfamilydoctor.com/groups/SpecialInterestGroups/LGBTQ.aspx. Acesso
em: 1 jul. 2021.
Prezada participante,
Você está sendo convidada a participar desta pesquisa por ser uma mulher lésbica e residir em
alguma das favelas no Complexo da Maré que estão participando da pesquisa: Nova Maré, Baixa do
Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro, Conjunto Esperança, Conjunto Pinheiro, Vila Pinheiro,
Salsa e Merengue, Vila do João.
Sua participação é voluntária e você tem plena autonomia para decidir se quer ou não participar,
bem como para retirar sua participação a qualquer momento. Você não será penalizada de nenhuma
maneira caso decida não participar ou desistir da mesma durante o processo. Contudo, ela é muito
importante para a execução da pesquisa e ela foi pensada de maneira a não lhe trazer desconforto.
O convite é para realizar uma entrevista presencial, que pode acontecer em um ou mais
encontros, entre a pesquisadora e você, com algumas perguntas sobre sua vida como mulher na Maré.
Os encontros serão marcados de acordo com sua preferência de horário e acontecerão em espaço
reservado, que garanta sua privacidade. As conversas serão gravadas em áudio, conforme sua
autorização, sem necessidade de registro por foto/imagem/vídeo. Sua participação na pesquisa não
requer nenhuma outra atividade além da descrita acima. O tempo de duração da entrevista será de
aproximadamente uma hora.
A qualquer momento você poderá solicitar do pesquisador informações sobre sua participação,
o que poderá ser feito através dos meios de contato explicitados neste Termo.
Todos os dados coletados nessa pesquisa são confidenciais e seu anonimato será garantido na
divulgação dos resultados. Para garantir o sigilo e a confidencialidade dos dados, apenas a pesquisadora
responsável e suas orientadoras terão acesso aos dados de áudio. Qualquer dado que possa identificá-la
será omitido na divulgação dos resultados da pesquisa.
Se houver algum dano decorrente da pesquisa, você terá direito a buscar indenização, por meio
das vias judiciais.
Ao final da pesquisa, todo material será mantido em arquivo em posse da pesquisadora, por pelo
menos 5 anos, conforme Resolução 510/16 do CNS e orientações do CEP/ENSP e com o fim deste
prazo, será descartado.
A participação nesta pesquisa não trará nenhum benefício direto para você. De uma forma
indireta, sua participação contribuirá para a construção do conhecimento sobre integralidade do cuidado
em saúde, possibilitando uma melhor compreensão das formas pelas quais atua a lesbofobia em um
contexto de favela e um melhor entendimento das percepções de saúde de mulheres lésbicas neste
contexto.
Nesse caso, além do acolhimento no momento da entrevista, você pode ser encaminhada para a
Clínica da Família de referência, inclusive, se você assim desejar, com referência escrita contando um
pouco da sua história e/ou discussão do caso com os profissionais de referência. As nove favelas
incluídas nesta pesquisa, Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro, Conjunto
Esperança, Conjunto Pinheiro, Vila Pinheiro, Salsa e Merengue, Vila do João, têm como referência uma
de 3 unidades de saúde municipais: Clínica da Família Adib Jatene, Clínica da Família Augusto Boal
ou Centro Municipal de Saúde Vila do João. Nestas unidades, todos os moradores têm uma equipe de
referência e profissionais de saúde que devem acompanhar todos os usuários cadastrados. Antes do
início desta entrevista, (as)os médicas(os) que fazem parte das equipes destas clínicas foram contatados
pela pesquisadora, que lhes apresentou o projeto, explicou sobre a possibilidade de identificação de
alguns problemas de saúde no decorrer do processo e pactuou que, se necessário, estas mulheres seriam
encaminhadas para a equipe para atendimento e acompanhamento, o que já é previsto como parte do
trabalho desta equipe.
das condições de saúde e redução das desigualdades sociais. Prevê-se, ao final da pesquisa, uma roda de
conversa com devolutiva para as participantes e comunidade, guardados o sigilo e confidencialidade,
considerando a importância e benefício da ampliação do conhecimento.
O Termo é redigido em duas vias, sendo uma da participante e outra da pesquisadora. Todas as
páginas devem ser rubricadas pela participante da pesquisa e pesquisador, com ambas as assinaturas
apostas na última página. Você receberá uma via e ao final constam os telefones e endereços
institucionais do pesquisador principal e do Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP.
Em caso de dúvida quanto à condução ética do estudo, entre em contato com o Comitê de Ética
em Pesquisa da ENSP ou com o Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio
de Janeiro. Os Comitês são formados por grupos de pessoas que têm por objetivo defender os interesses
dos participantes das pesquisas em sua integridade e dignidade e assim, contribuir para que sejam
seguidos padrões éticos na realização de pesquisas. Se necessário fazer contato eles:
___________________________________________
Pesquisadora: Renata Carneiro Vieira
_____________________________________________
(Assinatura da participante)
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