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Aula 6

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TÓPICOS ESPECIAIS EM

ARQUIVOS E ACERVOS
HISTÓRICOS
AULA 6

Prof. Antonio José Fontoura Junior


CONVERSA INICIAL

Os diferentes tipos de arquivos e o trabalho histórico

Um dia todos os documentos, de todos os arquivos, estarão


digitalizados? Ainda que esse seja um esforço coletivo conduzido por arquivos
de todo o mundo, trata-se de uma realidade ainda bastante distante. Não são
poucos os acervos que não possuem, na atualidade, qualquer projeto de
digitalização, sem desconsiderarmos aqueles que sequer têm ainda seus
documentos devidamente organizados e classificados. Assim, é parte da
realidade de historiadores e historiadoras o trabalho nos arquivos e o contato
direto com documentos. Neste texto iremos discutir os diferentes tipos de
arquivos, as posturas profissionais ligadas ao trabalho com arquivistas e
documentos, bem como discutir certos conhecimentos específicos (como a
leitura de manuscritos) ligados ao trabalho presencial em arquivos.

TEMA 1 – O TRABALHO HISTÓRICO NOS ARQUIVOS

Em todo o capítulo, usei amplamente os arquivos do Priorado de


Corbeny. A classificação desta coleção, criada no século XVIII, é
bastante singular; os arquivistas da abadia primeiro deixaram de lado
as peças que consideravam mais importantes; eles as agruparam em
certo número de pacotes, com uma numeração contínua; quanto aos
documentos que consideraram pouco interessantes – que para nós
são muitas vezes os mais valiosos – formaram anexos, cada um dos
quais é colocado após um dos grupos anteriores, e atribuíram a
mesma referência, mas com a ressalva “informações”. (Bloch,1924. p.
207)

Quase um terço da obra Os reis taumaturgos, um clássico do historiador


francês Marc Bloch (1886-1944) sobre a história religiosa medieval, é composta
por notas de rodapé. Em sua grande maioria, apresentam detalhes
metodológicos ligados a análise de termos e conceitos, discussões sobre
particularidades de documentos e, além disso, informações sobre as pesquisas
realizadas em arquivos. A obra foi lançada originalmente em 1924, momento
em que a publicação de fontes históricas já era uma prática corrente na França,
mas, ainda assim, muito das pesquisas ainda foram feitas diretamente em
arquivos. E vários deles, como aquele do Priorado de Corbeny, ainda sem uma
organização sistemática, permanecendo as formas de catalogação construídas
pelos arquivistas do século XVIII.

2
No que se refere às pesquisas em documentos e organização de
arquivos históricos, o caso do Brasil é mais tardio em relação ao europeu, e
mais lamentável. No século XIX, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878),
como parte de seus esforços para produzir uma história nacional, notabilizou-
se pela descoberta e publicação de catálogos de documentos relacionados à
história do Brasil, encontrados em diferentes arquivos europeus. Mas bem já
adiantado no século XX, em 1951, o historiador Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982) ainda lamentava o atraso das pesquisas históricas brasileiras,
particularmente na deficiência dos arquivos e na tímida publicação de
documentos históricos essenciais às pesquisas (Holanda, 2010, p. 66-78). Nas
primeiras décadas do século XXI ainda são raros os arquivos brasileiros que
possuem recursos adequados à manutenção e divulgação de seus acervos, e
não são poucos os documentos históricos que correm risco de deterioração
diante da ausência de interesse político em sua preservação. Não há
necessidade de argumento mais incisivo do que lembrarmos o incêndio do
Museu Nacional de 2018, que não foi uma eventualidade, mas consequência
de má gestão.
Os estudos históricos ainda dependem essencialmente da visita a
arquivos e da pesquisa de documentos. Em primeiro lugar, pelo óbvio fato de
que a maioria dos documentos não está digitalizada ou publicada,
especialmente no caso do Brasil. Mas, além disso, mesmo quando existem
documentos digitalizados ou publicados, historiadores e historiadoras devem
evitar que o sentido de seus trabalhos seja determinado pelas políticas de
divulgação determinada pelos arquivos. Por vezes, o que uma instituição
arquivística decide publicar pode constituir um quadro parcial, e mesmo
tendencioso, de determinado evento ou processo histórico. Mas há um terceiro
ponto em que os arquivos são fundamentais aos estudos históricos: a validade
do próprio saber historiográfico.
De acordo com Hunt et al. (1995, p. 251), “Os arquivos em Lyon, França,
estão guardados em um antigo convento em uma colina com vista para a
cidade. Chega-se a ele subindo cerca de trezentos degraus de pedra. Para o
realista prático, a subida vale o esforço; o relativista pode não se incomodar”.
Qual a origem da argumentação das historiadoras? Contrapondo-se a
determinados posicionamentos denominados de pós-modernos em relação à
história, elas estão afirmando que visitas aos arquivos, por mais difíceis que

3
possam ser, justificam-se pela busca de certas verdades sobre o passado e de
respostas a problemas históricos. Para uma abordagem relativista, a visita aos
arquivos seria desnecessária, já que adeptos dessa concepção acreditam que
o que fazem historiadores e historiadoras não é em nada diferente de uma obra
de ficção. Então, por que se incomodariam em suplantar os degraus dos
arquivos de Lyon? Afinal, em sua concepção tanto ingênua quanto danosa da
história, lá não existiria nada especial de verdadeiro ou objetivo a ser
encontrado.
Subir as escadas do arquivo de Lyon, suportar a poeira nos arquivos
eclesiásticos de sua cidade, submeter-se a improvisadas condições de trabalho
em um sem número de museus ou bibliotecas se relaciona, portanto, a uma
tomada de posição em relação à validade do saber histórico, à legitimidade de
suas pesquisas e à importância pela busca de respostas sobre o
desenvolvimento social. De fato, sabemos que o conhecimento histórico não é
neutro ou objetivo, como acreditavam os oitocentistas quando, aliás, os
arquivos foram alçados ao altar de centros da verdade sobre o passado. No
entanto, contrapondo-se a concepções niilistas, os arquivos continuam sendo
depositários das fontes com as quais se constrói um conhecimento válido sobre
o passado e que têm condições de estabelecer determinadas verdades,
mesmo que provisórias, sobre o presente. Afinal, qual conhecimento não é
provisório?
E dentro de sua importância, cabe a historiadores e historiadoras
compreender as regras práticas de funcionamento dos arquivos, seus métodos
de trabalho e as possibilidades de conhecimento que pode ser adquirido nos
diferentes acervos de preservação da memória. Se, do ponto de vista teórico,
os arquivos são fundamentais ao saber histórico, compreender sua realidade
concreta e cotidiana faz parte de nosso desenvolvimento profissional.

TEMA 2 – A PESQUISA EM ARQUIVOS PÚBLICOS

Para além das discussões teóricas, há a realidade prática dos arquivos


que deve ser conhecida pelos pesquisadores. Não há dúvida de que não se
vive mais no século XIX, em que mulheres eram proibidas de entrar em
arquivos ou, quando recebiam autorização para consultar documentos,
deveriam estar acompanhadas por um funcionário – ser historiador, então, era
uma atividade considerada eminentemente masculina (Smith, 2003). Isso não
4
significa, porém, que os arquivos não possuam suas próprias regras, que
devem ser conhecidas e respeitadas e, mais do que isso, fazem parte do
próprio cotidiano de trabalho.
Em primeiro lugar, um componente ético: o de buscar, na medida do
possível, manter os documentos consultados da mesma forma que foram
encontrados. Isso significa procurar ter o cuidado necessário no manuseio dos
arquivos e de seus acervos, especialmente quando forem bastante sensíveis.
Por vezes, a consulta a documentos mais delicados deve ser feita em locais
específicos e, muitas vezes, com o apoio de máscaras e luvas – proteção tanto
ao pesquisador quanto aos documentos. Essa preocupação ética se estende,
porém, a um respeito mais amplo à memória que se encontra preservada nos
arquivos, por conta dos riscos da dilapidação criminosa do patrimônio público.
Em 2019, o Arquivo Público Mineiro iniciou a instalação de câmaras de
segurança na tentativa de prevenir novos roubos, após a devolução de 280
documentos que haviam sido furtados entre 2015 e 2016. Problemas
semelhantes ocorrem em bibliotecas, em que são visados livros raros, e
museus, que são alvo de ladrões especializados em obras de arte. Em 2006,
foram roubados do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, pinturas de
Dalí, Matisse, Monet e Picasso (Portela, 2018).
Um segundo ponto a ser atentado por historiadores e historiadoras é a
compreensão de que os arquivos, especialmente os Arquivos Públicos,
possuem um determinado regime de trabalho, com horários e condições de
pesquisa bastante específicos. Deve-se, por isso, planejar a visita ao arquivo
com antecedência, tendo-se ciência dos horários de funcionamento. Aqui, uma
sugestão bastante prática: não se deve confiar em informações presentes em
sites institucionais. Para evitar aborrecimentos, o mais recomendado é ligar
diretamente no arquivo e solicitar informações sobre horário de funcionamento,
inclusive perguntar se atende na hora do almoço, e disponibilidade dos
funcionários para responder a possíveis dúvidas.
Além disso, é necessário ficar atento às condições fornecidas para a
realização das pesquisas: os espaços; a existência de iluminação adequada e
de tomadas; saber se os acervos estarão disponíveis; verificar a presença de
catálogos (impressos ou on-line) que informam sobre os documentos
presentes. Há arquivos públicos, por exemplo, que não permitem a cópia dos
documentos consultados, obrigando os pesquisadores a manuscreverem os

5
conteúdos importantes. Se, em outros momentos, compreendiam-se os
possíveis danos causados aos documentos pela manipulação necessária às
fotocópias, na atualidade o uso de câmeras portáteis, especialmente de
telefones celulares, não gera qualquer dano aos documentos1.
Considere, ainda, a realidade da pesquisa e dos arquivos em cada
localidade. No Brasil, existem instituições que oferecem um atendimento
bastante adequado à pesquisa, enquanto outras, sofrendo com falta de
recursos e pessoal, não têm condições de apresentar suporte minimamente
adequado. Além disso, catálogos podem estar desatualizados; acervos podem
ter sido removidos para diferentes instituições (ou estar em processo de
restauro, o que usualmente impede sua consulta); documentos podem ter sido
arquivados de forma equivocada e não se encontram onde, a princípio,
deveriam estar.
Considerando uma abordagem metodológica, lembre-se de ir aos
arquivos tendo uma noção, a mais precisa possível, dos documentos que
deseja pesquisar. Não há dúvida de que muitas pesquisas históricas surgem de
um contato relativamente lúdico com documentos do passado, mas em geral os
arquivos públicos são muito extensos e complexos para tais práticas. Fique
atento a informações e documentos inesperados que podem surgir do contato
com os arquivos, mas, a princípio, direcione seu contato com os documentos
levando em consideração a problemática de sua própria pesquisa.
Por fim, tenha ciência de que você eventualmente entrará em contato
com arquivos que estão absolutamente despreparados para receber
pesquisadores. Será você quem, por fim, acabará por decidir se valerá o
esforço de enfrentar pesadelos burocráticos ou logísticos para consultar
determinados documentos. Não é incomum que cartórios, por exemplo,
possuam acervos de documentos bastante significativos, mas que, sem
conhecimento de sua importância, acabem dificultando o acesso por parte de
historiadores, quando não promovem queimas de arquivos para conjuntos
documentais que consideram inúteis.

1 Existem arquivos, no Brasil, que cobram taxas para cópias realizadas de documentos mesmo
quando feitas a partir de celulares dos pesquisadores. Por um lado, diante da ausência de
recursos aos Arquivos Públicos, compreende-se que poderia ser uma fonte de renda
complementar para estas instituições. Porém, além desses custos serem, não raramente,
abusivos, deve-se lembrar da própria realidade da pesquisa no Brasil, notadamente a histórica:
também ela é, usualmente, carente de recursos.
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Todas essas discussões envolvem problemas práticos do acesso a
arquivos. São, porém, apenas parte das condições reais com as quais
historiadores e historiadoras se defrontam no trabalho de consulta à
documentação. Cada instituição tem sua própria história, dificuldades e
características. De concreto, fica que, em qualquer caso, sua formação como
profissional da história será enriquecida com a experiência de visita e trabalho
em arquivos.

TEMA 3 – OS ARQUIVOS DE INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS

O trabalho com arquivos de instituições religiosas, notadamente os da


Igreja Católica, não se restringe às pesquisas históricas ligadas à religiosidade.
Deve-se lembrar que, no caso do Brasil, durante séculos o Estado e a Igreja
estavam ligados, fazendo com que muita documentação fosse produzida e
mantida por religiosos. Dessa documentação, os registros de nascimento e
óbito são os documentos mais evidentes, mas é possível destacar também o
acesso de historiadores e historiadoras, na atualidade, a dados e arquivos
inquisitoriais utilizados para se conhecer diferentes aspectos do cotidiano de
outros tempos. Assim, diante de sua importância social, particularmente nas
sociedades ocidentais, os arquivos da Igreja Católica, em especial, são
fundamentais para se conhecer diferentes aspectos da realidade do passado.
Como a presença da Igreja Católica no Brasil acompanhou o processo
de colonização, é possível encontrar documentos desde o século XVI, embora
a documentação católica comece a se tornar mais abundante a partir do século
XVIII. Muitos documentos, como os das visitações ao tribunal do Santo Ofício,
por exemplo, encontram-se já publicados, alguns inclusive utilizando uma grafia
moderna, isso facilita a leitura e pesquisa. Mas ainda é imenso o conjunto
documental que se encontra apenas manuscrito, sem contar aqueles
documentos que não possuem versões digitalizadas e só podem ser
encontrados nos próprios arquivos. Neste caso, vale a pena mencionar que
historiadores e historiadoras que desejem trabalhar com esse tipo de material
precisam aprender a ler a escrita manuscrita de diferentes épocas. Observe,
por exemplo, o texto a seguir, produzido no século XVII. Trata-se de um
registro de batismo.

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Figura 1 – Registro de batismo (1686) - Igreja Católica, 1640-2012.

Fonte: Brasil, 2014, imagem 4.

Faz parte do trabalho de consulta também a identificação das


abreviações, extremamente comuns em textos manuscritos. No texto anterior,
o nome da criança batizada aparece à esquerda (João Branco), seguido pela
informação: “A doze de maio de mil seiscentos e oitenta e seis, batizei e pus os
santos óleos a João, filho de Manuel da Cunha e Ana Tenória”.
Vários arquivos produzidos pela Igreja Católica, inclusive no Brasil,
podem ser encontrados on-line atualmente, por meio do site FamilySearch2. O
serviço, gratuito, foi criado e é mantido por uma diferente instituição religiosa, a
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias que, por questões relativas
à sua própria crença, desenvolveu um hercúleo projeto de registro de
nascimentos e óbitos. Além de consulta a dados já cadastrados, o serviço
permite, por vezes, que os pesquisadores acessem cópias digitalizadas da
documentação original, o que possibilita uma compreensão mais ampla do
próprio documento e das informações presentes. A imagem anterior, com o
registro de batismo de João Branco, por exemplo, foi extraída deste site.
Considerando que a Igreja Católica, até 1889, compartilhava funções
Estatais (recebendo, inclusive, recursos públicos para seu funcionamento),
seria de se esperar que esta documentação estivesse sempre à disposição dos
pesquisadores. Ainda que, tecnicamente, sejam documentos privados,
segundo o Decreto n. 4.073, de 3 de janeiro de 2002, os registros católicos de
nascimentos e óbitos são, conforme o texto da lei, “automaticamente
considerados documentos privados de interesse público e social”. Porém, na
prática, o acesso a esses registros pode não ser simples.
Determinadas ordens religiosas, apesar de possuírem rica
documentação, impõem costumeiramente obstáculos aos pesquisadores. Mas
se, de uma forma geral, os documentos paroquiais podem ser consultados,
surge o problema da estrutura. Não é raro que os arquivos se encontrem em

2 <https://www.familysearch.org>
8
más condições de preservação, além de carência de um sistema qualquer de
catalogação. Além disso, e mesmo quando existe boa vontade da instituição, a
maior parte dos arquivos de natureza religiosa, especialmente católicos, está
despreparada para receber pesquisadores. Não é incomum que as pesquisas
sejam feitas em espaços improvisados e, usualmente, não existem funcionários
que possam acompanhar o pesquisador nas longas horas e dias necessários à
consulta dos materiais. Com a utilização de câmeras digitais esse trabalho se
acelera, pois é possível fotografar grande quantidade de documentos para
consulta posterior. Na maior parte do tempo, porém, improviso é a primeira
regra da pesquisa.

TEMA 4 – AS BIBLIOTECAS NA CONDIÇÃO DE ARQUIVOS

Chegando ao Brasil em 1980, o livro Mais prazeres do sexo, do escritor


inglês Alex Comfort, se tornou um sucesso de vendas de um dos mais
conhecidos autores da chamada Revolução Sexual. Nesta obra, Comfort
defendia a liberalização sexual como forma de autodescobrimento e convidava
seus leitores a conhecer práticas sexuais heterodoxas, inclusive com duas ou
mais pessoas. Já em 1987, quando foi reeditada, a obra trazia em sua capa,
em uma faixa vermelha, a mensagem “Nova edição, revista e atualizada”.
A obra tinha sido revista em função do surgimento da Aids. Na versão
revisada desapareceram as descrições de atos sexuais que não fossem
monogâmicos, foram retiradas imagens explícitas de trocas de casais e o
discurso de irrestrita liberdade sexual deu lugar a textos mais comedidos,
recomendando o cuidado com novos parceiros e a adoção de práticas de sexo
seguro. Toda a edição acabou sendo reformulada, com as novas informações
“consideradas à luz do conhecimento que se tem hoje desses riscos à saúde”
(Comfort, 1987, p. 5).

9
Figura 2 – As diferentes capas de Mais prazeres do sexo (reprodução).

Fonte: Comfort, 1987.

As bibliotecas, ainda que muitas vezes não sejam vistas desta forma,
são também arquivos e bastante valiosos. São espaços para guarda de
documentos – preferencialmente livros e periódicos, mas não somente –, além
de estabelecerem estratégias de gestão desse material por meio de políticas
de manutenção e construção de acervos, em função de certas concepções de
difusão da informação (Piovezan, 2020).
Nas bibliotecas encontram-se não apenas os textos dos livros em si, que
possuem um inegável valor. Para além deles, é possível encontrar a
materialidade dos livros e o suporte para esses textos, que são características
importantes. Sem a possibilidade de comparação de diferentes edições de um
mesmo texto, não seria possível, por exemplo, identificar as mudanças
ocorridas nas edições de Mais prazeres do sexo, nem associar as alterações
nesta obra tanto à Revolução Sexual, por um lado, quanto à ascensão do medo
da Aids, por outro. A pequena faixa vermelha em um livro tão significativo
quanto o de Comfort acabava, assim, como um signo do fim das esperanças
liberalizantes da Revolução Sexual.
Outro exemplo bastante conhecido da utilidade da comparação de
edições é o do clássico Raízes do Brasil. Sua primeira edição, datada de 1936,
é encontrada em apenas algumas bibliotecas e seu conteúdo é bastante
diferente das edições posteriores, e mais conhecidas, da obra. Apenas pela
análise da primeira edição é possível perceber a influência que autores

10
nazistas tiveram no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda (que escreveu
sua obra quando morava na Alemanha), algo que foi excluído a partir da
segunda edição. Tanto a comparação quanto as conclusões só foram possíveis
porque as bibliotecas foram consideradas arquivos documentais.
E esses são apenas alguns dos possíveis exemplos de informações que
só podem ser obtidas por meio da manipulação dos exemplares: detalhes de
encadernação, antigas anotações e sublinhados, uso de diferentes fontes,
possíveis rasuras e detalhes da diagramação são informações que podem ser
obtidas pela análise do livro concreto, para além do texto em si. Tais detalhes
revelam formas de leituras, dão indícios da apropriação dos conteúdos e
revelam estratégias mercadológicas dos livreiros, ampliando, assim, o
conhecimento histórico do texto, sua produção, circulação e uso. Ou seja, para
além dos próprios textos que abrigam, as bibliotecas são valiosas e possuem
múltiplas possibilidades de pesquisa fornecidas por seus acervos.
Não se pode esquecer, por exemplo, que as bibliotecas são locais de
guarda e consulta de periódicos. Na atualidade, a Biblioteca Nacional possui a
Hemeroteca Digital3, projeto que se propõe a digitalizar e disponibilizar
periódicos on-line, os quais podem ser consultados a qualquer momento pela
Internet, facilitando o trabalho de pesquisa. Porém, há vantagens em se
consultar periódicos diretamente na biblioteca. Em primeiro lugar, a própria
materialidade dos exemplares tende a revelar, assim como ocorre com os
livros, diferentes formas de leitura e apropriação dos conteúdos. Além disso, a
Biblioteca Nacional não digitalizou todos os periódicos já publicados, por isso
os historiadores que utilizarem apenas os exemplares on-line podem deixar de
consultar fontes importantes para suas pesquisas. Vale ressaltar que o estudo
das fontes não deve estar subordinado às políticas de digitalização e
publicação dos arquivos, pois isso pode gerar distorções nas análises
históricas.
A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin é outro exemplo de como
uma biblioteca deve ser compreendida também na condição de arquivo. Trata-
se de um acervo com mais de 60 mil livros, formado pela doação da coleção
construída pelos bibliófilos Guita e José Mindlin à Universidade de São Paulo
(USP). Aberto ao público desde 2013, o acervo conta também com um projeto
de digitalização de obras raras, que se encontram à disposição para consulta

3 <https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>
11
na Internet4. Não é incomum que as bibliotecas de pesquisadores e
colecionadores acabem doadas, sendo os livros mantidos em espaços
específicos e de acordo com a organização original de seu proprietário.
Trata-se do respeito aos fundos, regra própria da arquivologia, que já se
destacou em outros momentos. Tais fundos são, sem dúvida, importantes
pelas próprias obras, que passam a estar disponíveis aos pesquisadores, mas
também são valiosas pelo que revelam sobre a formação intelectual de seus
antigos proprietários.
Por fim, outros documentos existentes em bibliotecas podem ser
utilizados como fontes de pesquisas históricas. O historiador Cláudio Denipoti
pesquisou antigas fichas de consulta para descobrir quem eram os leitores de
obras de sexualidade que se encontravam no acervo da Biblioteca Pública do
Paraná, nas primeiras décadas do século XX (Denipoti, 1994). Conseguiu,
assim, relevar mais detalhes sobre quem seriam os leitores que se
interessavam por um tema que, à época, era considerado tabu.
De acordo com a Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004, e a Lei n.
12.192, de 14 de janeiro de 2010 – as leis do chamado Depósito Legal – todas
as publicações produzidas no Brasil devem, necessariamente, enviar uma
cópia para a Biblioteca Nacional para fim de preservação da produção
intelectual brasileira. A lei se refere tanto a produções impressas, como livros e
periódicos, quanto a fonogramas, videogramas e partituras, permitindo a
construção de um acervo que vai muito além de apenas livros (Biblioteca
Nacional).

TEMA 5 – OS ARQUIVOS PESSOAIS

Apenas a partir do século XX arquivos pessoais passaram a ser


considerados como passíveis de serem preservados em instituições
arquivísticas (Williams, 2008). Mesmo que eventuais documentos particulares
tenham sido inseridos nos acervos, de uma forma geral a documentação
particular era considerada composta de documentos sem importância histórica
e, por isso, inútil. Afinal, tais documentos eram totalmente diferentes daqueles
tradicionais mantidos pelos arquivos, que se centravam em documentação
institucional.

4<https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/1>

12
Na atualidade, existem políticas bem estabelecidas de preservação de
arquivos individuais, mas, ainda assim, dentro de limites bastante específicos.
O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) – órgão ligado ao Ministério da
Justiça que tem a função de definir a política nacional sobre arquivos – pode
considerar a preservação de arquivos de particulares, desde que se refiram a
“marcos ou dimensões significativas da história social, econômica, técnica ou
cultural do país”, podendo, então, por meio de decreto presidencial, ser
“declarados de interesse público e social” (Conarq). A Fundação Getúlio
Vargas, por sua vez, possui, desde 1973, o Programa de Arquivos Pessoais
(PAP), no qual reúne “quase duas centenas de arquivos de homens públicos
de atuação destacada no cenário nacional” (FGV). Este e outros programas
semelhantes são, na atualidade, responsáveis pela manutenção de acervos
particulares como o de Sérgio Buarque de Holanda, o de Jorge Amado (quase
vendido para uma universidade estadunidense) ou o de Pagu, que foi
encontrado no lixo, sendo casualmente recuperado por uma catadora
(Piovezan, 2020).
Por que tais arquivos interessam? Porque podem lançar luz sobre o
trabalho intelectual e político de determinados personagens públicos, com base
em uma documentação privada. A documentação de Sérgio Buarque de
Holanda, por exemplo, deu margem à publicação de obras póstumas. A de
Jorge Amado – como de tantos outros arquivos de particulares, arquivados sob
as mesmas condições – é bastante significativa por sua correspondência com
outras personalidades públicas. Não é incomum, aliás, a prática de publicação
da correspondência particular de personalidades públicas, como forma de
contribuição às fontes históricas dos eventos e processos históricos dos quais
participaram, direta ou indiretamente.
Há, porém, um limite importante dessas políticas: trata-se, muito
comumente, de arquivamento de documentos de políticos ou de
personalidades das artes, especialmente da literatura. Ou seja, não são
representação da vida comum de determinado período ou sociedade,
acabando por construir acervos documentais que são, de certa forma,
tendenciosos.
Repare que parâmetros como marcos ou dimensões significativas da
história ou homens públicos de atuação destacada se assemelham muito a
uma concepção de história do século XIX, em que eram pesquisados apenas

13
os chamados grandes homens, considerados, então, os agentes privilegiados
do desenvolvimento histórico. Definições como aquela do Conarq ou do PAP
repetem, mesmo que não intencionalmente, definições semelhantes. Se os
arquivos superaram as políticas de manter em seus acervos apenas
documentos institucionais (os documentos históricos por excelência da escola
metódica francesa, por exemplo), ainda preservam algo das concepções
tradicionais históricas ao se debruçarem nos documentos apenas dos grandes
homens responsáveis pelos grandes marcos históricos. Reproduzem assim,
em seus arquivos, uma concepção de história que é, na atualidade,
ultrapassada.
Desde as últimas décadas do século XX, foram iniciadas discussões
entre os arquivistas sobre a inclusão de documentos de pessoas ditas comuns
nos acervos dos arquivos. O objetivo desta política – em sintonia, aliás, com
questionamentos da própria prática histórica – era o de valorizar a atuação
cotidiana dos indivíduos na condição de agentes históricos, procurando
estabelecer relação entre a existência particular e o contexto social
(Mckemmish , 1996). Portanto, o objetivo era apresentar, por assim dizer, uma
relação entre o micro e o macro, destacando inclusive possibilidades de
resistência ao status quo. Alguns dos primeiros arquivos com essa perspectiva
surgiram com viés político, procurando recuperar a vivência de feministas e de
pessoas LGBT.
Tal perspectiva, porém, apresenta dificuldades inúmeras. A primeira, e
talvez mais significativa, é o fato de que as pessoas ditas “comuns” produzem
documentos materiais ou digitais a todo instante, e procurar preservá-los
integralmente seria absolutamente impossível. Devem existir, assim,
parâmetros de seleção, tanto na seleção de indivíduos quanto de registros. O
quanto desta seleção acabaria reforçando as concepções sociais já
estabelecidas?
Um segundo ponto é que, diferentemente das instituições, o que se
denomina de arquivos pessoais, costumeiramente, são amontoados de
documentos sem qualquer organização, mínima que seja. Se um dos princípios
da prática arquivística é o de respeito à organização original dos documentos,
isso perde todo o valor diante de emaranhados documentais não raramente
sem nexo. Nestes casos, deve ser imposto aos documentos algum tipo de
organização para que possam se tornar úteis a trabalhos de pesquisa.

14
Figura 3 - Exemplo da desorganização comum de um arquivo particular.

Créditos: Antonio Jose Fontoura Junior.

De toda forma, há dois tipos de documentos, comuns em arquivos


pessoais, que são rotineiramente utilizados por historiadores e historiadoras.
O primeiro são as correspondências, gênero documental sobre o qual há
uma abundante historiografia. Ligado a índices de alfabetização, bem como à
valorização do mundo privado, o estudo de correspondências de diferentes
épocas e sociedades tende a enriquecer os estudos históricos, fornecendo
perspectivas individuais e singulares do passado.
O segundo tipo são os álbuns de fotografias familiares. Tipos de
arquivos que gradualmente estão desaparecendo por conta da profusão de
imagens digitalizadas, os álbuns tendem a ser um dos poucos conjuntos
documentais particulares que costumam possuir algum tipo de organização.
Seja por ordem cronológica, por pessoa representada ou específicos para
determinados eventos, os álbuns fotográficos são documentos valiosos sobre a
vida cotidiana no passado, as diferentes possibilidades de existência e as
mudanças ocorridas na sociedade para além dos grandes “marcos ou
dimensões significativas da história”.
Fica para os historiadores, arqueólogos e arquivistas de amanhã
discutirem as possibilidades de recuperação e utilização de álbuns de imagens
digitais, tão massivamente criadas e tão facilmente destruídas.

NA PRÁTICA

Quais são seus arquivos pessoais que poderiam render interessantes


estudos históricos? Não é incomum que mesmo historiadores e historiadoras

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ignorem a existência de arquivos documentais interessantes na própria família.
Procure investigar com seus parentes a existência de correspondências, álbuns
de fotografias, diários, coleções musicais e de vídeos e considere a
possibilidade de organizar esse material em um arquivo familiar. Assim, você
aprende um pouco mais sobre a própria história familiar, além de entrar em
contato com a problemática de organização de arquivos.

FINALIZANDO

Discutimos, anteriormente e também nesta aula, a relação que se


estabelece entre concepções da história e o trabalho em arquivos. É importante
termos em mente que as dificuldades que estão envolvidas com o trabalho com
documentos históricos, qualquer que seja o tipo de arquivo utilizado, está em
íntima relação com o tipo de pesquisa que pretendemos desenvolver
historicamente: Que fontes pretendemos utilizar? Quais perguntas
procuraremos responder? Que contribuições à compreensão do presente
poderemos proporcionar? E, para isso, temos de compreender as funções dos
arquivos, seus múltiplos diálogos com a história, bem como suas formas
prosaicas e cotidianas de funcionamento.

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REFERÊNCIAS

BLOCH, M. Les rois thaumaturges. Paris: Istra, 1924.

BRASIL, São Paulo. Registros da Igreja Católica, 1640-2012.


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2020.

COMFORT, A. Mais prazeres do sexo. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

DECLARAÇÃO de interesse público e social. CONARQ. Disponível em:


<http://conarq.arquivonacional.gov.br/declaracao.html>. Acesso em: 24 abr.
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