10.17058/rzm.v11i2.16617
Recebido em 21 de Fevereiro de 2022
Aceito em 13 de Outubro de 2022
Autor para contato: luismaffei@id.uff.br
A difícil estranheza de uma cidade do smart
La difícil extrañeza de una cidade del smart
The hard strangeness in a city of smart
Luis Sant'Anna Maffei1
Resumo: Smart, numa meritocracia neoliberal, é palavra-chave da mentalidade
contemporânea. Dela vem a ideia de smart city. Este ensaio pretende investigar alguns
efeitos do paradigma smart em nossa relação com as cidades, especialmente se tivermos
em mente a infamiliaridade que a urbe pode ensejar e que a vigilância tende a abolir. O
smartphone, que hoje medeia a relação dos corpos e mentes com a cidade, talvez seja a
mais clara evidência da perda da presença e da estranheza no estar no urbano.
Palavras-chave: Cidade. Smart. Vigilância. Presença.
Resumen: Smart en una meritocracia neoliberal, es palabra clave de la mentalidad
contemporánea. De eso viene la idea de smart city. Este artículo investiga algunos efectos
del paradigma smart en nuestra relación con las ciudades, especialmente si pensamos en
el no familiar que la urbe provoca y la vigilancia tiende a abolir. El Smartphone, que hoy
media la relación de cuerpos y mentes con la ciudad, tal vez sea clara evidencia de la
pérdida de la presencia y de la extrañeza en el estar urbano.
Palabras Clave: Ciudad. Smart. Vigilancia. Presencia.
Abstract: Smart is a keyword in a contemporary mentality founded in a neoliberal
meritocracy. Smart city comes from this. This article intends to investigate some effects
1
Doutor em Literatura Portuguesa/ Letras Vernáculas (UFRJ, 2007), doutorando no Programa de
Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ.
Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 171-180, 2022.
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caused by “smart” paradigm in our relation with cities, especially if we think in
unfamiliar that metropolis can provoke but surveillance leads toward abolition.
Smartphone mediates the relation between bodies and minds with the city, and may be
the clearest evidence of loss of presence and strangeness in the being in the urban.
Keywords: City. Smart. Capitalism. Surveillance. Presence.
Num ensaio sobre as cidades inteligentes e seus desafios, Antoine Picon elenca
problemas e promessas dessa recente configuração urbana. O que define esse modelo de
cidade se fundamenta no “uso intensivo de tecnologias de informação e comunicação”
(PICON, 2007, p. 40). Além de se referir à “relação entre humanos e máquinas” (p. 43),
Picon pensa no indivíduo enquanto partícipe ativo desse novo tipo de cidade, cuja
“moralidade”, escreve o professor francês, “deveria provavelmente começar com o uso
mais sensato de smartphones” (PICON, 2007, p. 43).
Este texto pretende especular sobre a maneira como o smartphone passa a ser um
mediador da relação entre os corpos que ocupam a cidade e a cidade que ocupa esses
corpos, e como isso tem a ver com a noção de smart. Mesmo Picon, em seu ensaio nada
acrítico, entende que os habitantes das cidades inteligentes serão “indivíduos digitalmente
empoderados” (PICON, 2007, p. 41), ou seja, associa intrinsecamente a noção de
inteligência a um processo de digitalização – e esse processo de digitalização envolve
poder, ou seja, alguma negociação de caráter político. Suspeito que esse empoderamento
está diretamente vinculado ao uso “sensato de smartphones” (PICON, 2007, p. 43). Uma
pergunta que talvez se impusesse agora, caso houvesse espaço para uma breve digressão,
diria respeito aos tipos de empoderamento digital que se oferecem aos usuários dos
smartphones na construção de cidades inteligentes – e as semelhanças ou diferenças delas
em relação a cidades mais habitáveis, mais interessantes.
“Os limites da inteligência” foi escrito em 2007. Desde então, passou mais tempo
do que pode sugerir uma contagem cronológica, numérica, de anos. A pandemia da
Covid-19 quase concretou uma hipótese de controle muito efetiva sobre as pessoas: a de
medir, através de um programa em seus celulares, se elas estavam ou não infectadas, além
de monitorizar seus paradeiros e os de outras pessoas com quem tivessem se relacionado.
É duvidoso afirmar que uma reflexão sobre cidades inteligentes, escrita na terceira década
do século XXI, possa se permitir, pacificamente, articular um smartphone à sensatez, ao
menos a um modelo mais tradicional de sensatez, que ainda a ligue ao bom senso. Parecenos claro que, passado tanto tempo, ainda que nem tantos anos, desde 2007, meditar
acerca do uso dos smartphones pelas pessoas exige meditar sobre sua contraface: o uso
das pessoas pelos smartphones.
Começar dando um passo atrás, das smart cities e dos smartphones para
simplesmente o smart, é produtivo. Esse adjetivo tem sido um dos mais representativos
de certa mentalidade contemporânea. Num ensaio em que investiga distorções
provocadas por uma moral meritocrática, Michael Sandel, enquanto reflete acerca do
credencialismo, afirma:
Em todas as eras, políticos e formadores de opinião, publicitários e
anunciantes, buscam uma linguagem de julgamento e avaliação que,
esperam, irá persuadir. Essa retórica, de modo geral, baseia-se em
valores opostos: justo versus injusto, livre versus não livre, progressivo
versus reacionário, forte versus fraco, aberto versus fechado. Em
décadas recentes, à medida que modos meritocráticos de pensamento
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ascenderam, os valores opostos predominantes passaram a ser
inteligente versus burro.
Até recentemente, o adjetivo “inteligente” descrevia, sobretudo,
pessoas. Em inglês americano, chamar uma pessoa de “smart” é elogiar
sua inteligência. (...) Com o despontar da era digital, “smart” passou a
descrever coisas (...). Mas a era digital chegou em parceria com a era
da meritocracia; portanto, não é surpreendente que “inteligente”
também tenha vindo para descrever modos de governar. (SANDEL,
2020, p. 135).
A seguir, Sandel nota que o uso da palavra smart cresceu exponencialmente, a
partir da década de 1990, no vocabulário dos presidentes estadunidenses, chegando ao
ápice com Barack Obama. Segundo o autor, “em uma era meritocrática, ser inteligente
tinha peso persuasivo maior do que estar certo.” (SANDEL, 2020, p. 136). Com isso em
mente, pode-se perguntar se uma cidade inteligente, smart, também não incorreria na
sistemática escolha da inteligência mesmo em circunstâncias em que se oferecessem
opções eticamente mais aceitáveis. Um pensador como Antoine Picon considera com
cuidado os perigos que a smart city corre, quer dizer, os perigos que uma smart city
oferece a uma significativa parcela das pessoas que a habitam.
É que, quando “os valores opostos predominantes passaram a ser inteligente
versus burro”, há realmente perigos em jogo. A era da meritocracia é parceira da era
digital. Considerando que se trata de uma era única (a meritocrática é a digital e viceversa), essa é também a era que começa com a glória da globalização, os anos 1990, e
que hoje nos exibe uma face ferida pelas consequências dessa mesma globalização. O
neoliberalismo, que acompanha a economia global como prática e produção de uma razão
autoritária, entende que a inteligência resulta em êxito pessoal, pois a moral neoliberal
simula a inexistência, por exemplo, de determinantes sociais na vida das pessoas,
consideradas exclusivamente de modo individual. Portanto, se o empreendedorismo de si
dá certo se aplicado de modo smart, as situações de fracasso são responsabilidade nua e
dura de quem não empreendeu bem, isto é, quem não é smart.
Vivemos, em suma, um conúbio, mais vivo que nunca, entre inteligência e sucesso
e, nas suas antípodas, entre falta de inteligência e fracasso. Não é surpreendente que, se “
‘inteligente’ também tenha vindo para descrever modos de governar”, a gerência
hegemônica, que vai muito além dos governos de Estados, não seja assim tão simpática
aos que não são smart, já que não o são por sua exclusiva responsabilidade. Está embutida
numa governança smart (do Estado à empresa, das relações pessoais à universidade) a
falta de espaço e tempo para um cuidado com o que não seja exitoso, e isso acentua a
desigualdade e a exclusão. Nesse sentido, mesmo com todos os cuidados, não é óbvio
imaginar uma cidade smart que se dedique a cuidar de quem não o seja, e a maioria desses
pertence aos estratos mais pobres e desamparados da população.
No universo digital, a palavra smart se liga intrinsecamente a aparelhos
capacitados para acessar redes – a Internet, o GPS etc. Penso etimologicamente, não em
smart, mas em sua tradução mais comum para o português, “inteligente”: o leg- latino,
antepositivo do vocábulo em cuja origem está “inteligência” e suas variantes, guarda a
noção de juntar, reunir, o que nos sugere que, da inteligência, se espera a articulação, a
potencialização de um encontro. Nesse sentido, um aparelho inteligente teria a capacidade
de fazer reuniões, unir, içar pontes. No entanto, esses aparelhos nos ligam a possibilidades
deles – por exemplo, um televisor smart nos apresenta a possibilidade de acesso à
Internet, mas dentro dele, televisor. Isso não apresenta nenhuma novidade nem espanto,
ou melhor, talvez apresente a novidade, mas não o espanto. Já os aparelhos smart que, ao
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contrário de um televisor, nos seguem pelas ruas da cidade, que consequência nos
oferecem ao, especialmente, nos ligar a eles?
A cidade que se configura na sua relação com esse tipo de inteligência, cabe
assinalar, veio sendo preparada por algumas características das transformações que o
capitalismo impôs à urbe desde o século XIX – sendo as cidades, assim como os Estados,
como indica Janice Caiafa, espaços privilegiados para a ação da axiomática capitalista
(CAIAFA, 2004, p. 190), algo que tanto incomodou Lewis Mumford, que lamenta
inclusive o advento do que ele chama de “Cidade Invisível”, pois “[m]uitas das funções
originais da cidade, outrora” exigentes da “presença física de todos os participantes,
foram hoje transpostas para formas sucessivas de transporte rápido, desdobramento
mecânico, transmissão eletrônica, distribuição mundial.” (MUMFORD, 1998, p. 607).
Mumford editou A cidade na história no hoje longínquo ano de 1961, num
momento em que a cidade moderna já tinha de lidar, desde algum tempo, com a saturação
da eletrônica e a transmissão à distância, sem o que não haveria terreno para a elaboração
da cidade “inteligente”. O teórico estadunidense já deplora um processo que torna
prescindível a “presença física de todos os participantes” e que se encontra hoje em
situação paroxística. A esse processo, gosto de chamar de produção de des-presença.
Voltarei a isso.
Uma cidade smart possui feição nova. Tateio certas características desse tipo de
cidade em perspectiva a uma concepção moderna de urbe, portanto já quase antiga.
Certamente, a smart city é dócil ao smartphone, talvez até precise dele para operar muitas
das suas “inteligências”. A propósito, pode ser útil verificar uma nuance da palavra smart.
O inglês possui uma versão mais próxima do sentido do que se expressa, em português,
por “inteligência”, “inteligente”, que é intelligence, intelligent – as etimologias de
“inteligência” e intelligence são a mesma, pois o latim é de onde o inglês apanhou esse
termo e seus correlatos. Smart, traduzível e frequentemente traduzido por “inteligente”,
mostra, não obstante, uma gradação em relação a intelligent: é, por assim dizer, o
exercício de uma inteligência da ordem da agilidade, da esperteza, da elaboração de
soluções, o que tem a ver com inteligência, etimologicamente, em virtude da ideia de
juntar e unir presentes no leg-. Por outro lado, smart não abre cortina para uma
inteligência da ordem do exercício crítico e de um pensamento complexamente elaborado.
Essa inteligência, que opera, na maioria dos casos, a partir da linguagem, costuma ser
lenta, saturnina, e corre riscos num mundo, e nas cidades, da supervalorização do smart.
Tenham que nível tenham de smart, as cidades hoje se veem mediadas, não pela
recém-referida linguagem, mas por dispositivos muito espertos, alguns dos quais ocupam
nossas mãos e olhares, vigiando-nos enquanto se encontram colados a nossos corpos.
Outros, por sua vez, nos vigiam de fora, e são os dispositivos de vídeo-vigilância.
Fernanda Bruno, em ensaio acerca desse problema, entende que sempre houve vigilância
nas cidades e Estados modernos, mas certa mudança importante marca o contexto
contemporâneo: as “tecnologias móveis de comunicação”, como os “telefones celulares”
(BRUNO, 2009, p. 138), participam ativamente desse novo cenário. A autora nos ajuda a
pensar uma das mais importantes mudanças na relação que temos com a cidade a partir
da vigência de várias formas de vigilância:
(...) a mobilidade, que antes poderia, em certos casos, ser uma forma de
escapar à vigilância ou transgredi-la, se torna seu meio privilegiado:
estar em movimento ou ser móvel significa, muitas vezes, estar sujeito
à vigilância e ao monitoramento, uma vez que não há mais distância
material, espacial, temporal ou informacional que se interponha entre o
sistema de vigilância/ monitoramento e o sujeito/ objeto vigiado.
(BRUNO, 2009, p. 139).
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Fica sugerida a articulação entre o smart e a vigilância – indo mais longe, a
vigilância é um traço constitutivo dos aparelhos smart, inclusive o smartphone. Se a crise
sanitária causada pela Covid-19 acabou não pretextando o controle ubíquo da saúde da
população através de seus celulares, controles mais (como o das câmeras de vigilância)
ou menos (como o de aplicativos) declarados são condição dessa simbiose entre o culto
de uma inteligência ágil e resolutiva e a subjetividade neoliberal.
Entre esses aplicativos, destaca-se o GPS, recurso disponível em qualquer
smartphone. Considerando a experiência de estar numa cidade, o GPS oferece um tipo de
segurança ao usuário que, por um lado, o ajuda, por exemplo, a desbravar uma cidade
desconhecida. Por outro lado, o GPS opera através de certa pressuposição teleológica, já
que seu princípio smart é que devemos ter um destino; por isso, fica constrangida a
hipótese do perder-se, da desorientação, já que o GPS pretende justamente nos orientar.
Julgo que não há maneira de lidarmos com qualquer cidade onde faça sentido estar sem
que nos abramos à hipótese de nos perdermos nela – quer dizer, só quando nos perdemos
num lugar podemos conhecê-lo, pois não há conhecer sem que haja estranhar. Esse é um
ponto em que uma cidade inteligente não é, necessariamente, uma cidade interessante –
toquei nessa diferença logo no segundo parágrafo deste ensaio.
É por essas e outras que Janice Caiafa, em diálogo com o incontornável Mumford,
ressalta a abertura da cidade para o estrangeiro, na forma de visitantes sempre
potencialmente inesperados, e também pelo que Mumford chama de “challenge of
‘outside’ experiences” (Apud CAIAFA, 2004, p. 181), isto é, experiências de fora,
criações de alteridades – Caiafa chega a formular que a cidade faz da sua estrangeiridade
um devir (CAIAFA, 2004, p. 181). O jogo é mesmo de conhecer mas estranhar, posto que
só lastima essa estrangeiridade o que a autora entende como “função container”, a que se
opõe uma heterogeneidade cujos efeitos mais interessantes se devem à “aventura” na
cidade se franquear ao imprevisível, ao invés de se aferrar à repetição rotineira (CAIAFA,
2004, p. 182).
Mergulhar na cidade resulta numa experiência de não linearidade. Ninguém terá
expresso tão bem essa condição como Walter Benjamin: “Saber orientar-se na cidade não
significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta,
requer instrução.” (BENJAMIN, 1987, p. 71). Instrução e disponibilidade, pois esse
perder-se participa do mesmo processo instrutivo. A partir de referência benjaminiana à
“instrução”, faz sentido investigar o estar numa cidade a partir da sua condição de
exercício cognitivo, por isso recorro à reflexão de Virgínia Kastrup sobre o aspecto
inventivo da cognição. Em certa altura de seu estudo, em conversa com alguns
neurocientistas, Kastrup afirma:
Chageux e Danchin (...) entendem que aprender é selecionar caminhos neurais e
estabilizar conexões desde sempre possíveis. É, em outras palavras, reduzir
possibilidades. Mehler assume, no campo da linguagem, posição ainda mais radical.
Segundo sua teoria, ao longo do desenvolvimento, o que predominam são as perdas
e conhecer é, no fundo, desaprender. (KASTRUP, 2007, p. 102).
O trabalho do GPS também se parece com reduzir possibilidades. Mas, em
verdade, o dispositivo abole o exercício autônomo da construção de possibilidades e de
seu sucessivo abandono. Perder é um verbo potente, tanto em Benjamin como no diálogo
de Kastrup com os neurocientistas: perder-se na cidade é perder um caminho certo, que
indica a supremacia do télos. A cada perda advém uma nova hipótese cognitiva, ou seja,
de conhecer a cidade onde se está, seja a nossa, seja estranha. Além disso, a bússola que
é o smartphone, especialmente o GPS, rareia uma das soluções mais antigas para esse
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perder-se, que é entrevistar alguém que não conhecemos. Esse tipo de contato nos
arremessa de pronto à infamiliaridade, pois a linguagem ali encenada pode acenar com
camadas de inesperado.
Na continuação de seu “Infância em Berlim por volta de 1900”, Benjamin
escreve:
(...) o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto
seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão
nitidamente como um desfiladeiro. Essa arte aprendi tardiamente; ela tornou real o
sonho cujos labirintos nos mata-borrões de meus cadernos foram os primeiros
vestígios. Não, não os primeiros, pois houve antes um labirinto que sobreviveu a
eles. O caminho a esse labirinto, onde não faltava sua Ariadne, passava por sobre a
Ponte Bendler, cujo arco suave se tornou minha primeira escarpa. (KASTRUP, 1987,
p. 71).
Nesse fragmento, o que mais me interessa é a imagem, tão frequente na relação
do século XIX com suas cidades, do labirinto. Benjamin rememora uma cidade que o
fascinou na infância, e, de certo modo, o estar na cidade, desde que aberto à
estrangeiridade, à aventura, ao conhecer e desconhecer, solicita uma mirada de criança,
que vê (como se fosse) pela primeira vez. Os olhares daquelas pessoas que, na Paris
haussmaniana, por exemplo, viam o nunca antes visto, possuem a infantilidade do
deparar-se com o absolutamente novo. Mas não é necessário que a cidade apresente
mudanças tão radicais para que seja experimentada infantilmente; basta que o olho se
abra, transeunte, e aprenda o movimento, tão possibilitado pela urbe, de aprenderdesaprender.
É o século XIX que populariza o verbo flâner e a prática da flânerie. Surge o
flâneur, que guarda em si as potencialidades do observador e do vagabundo, do vagaroso
e, claro, do deambulador, ou seja, aquele que erra. O casamento entre o XIX e o flâneur
se deve ao novo momento vivido pelas cidades, que entram (algumas mais que outras,
obviamente) em franca modernização. Considerando a leitura benjaminiana de
Baudelaire, é possível suspeitar de que a flânerie reclama o labirinto, sem o qual o passeio
se torna excessivamente seguro e familiar.
Todavia, hodiernamente, a cidade vigiada, como indica Fernanda Bruno, tem
como uma de suas espertezas o sequestro da “mobilidade”, pois o movimento dos corpos
não os protege, pelo contrário, potencializa o monitoramento e a vigilância. A perda de
um prazer que sempre se ofereceu ao flâneur, o anonimato, debilita a própria flânerie (ou
alguma sua versão contemporânea), pois uma cidade que se entenda ágil e ocupada por
tecnologias móveis de comunicação recusa a seu habitante e a seu visitante a experiência
do labirinto e a exploração da estrangeiridade, chegando a cercear também uma
deslocação mais livre.
A cidade, assim, se não pode mais ser associada ao panóptico, em virtude da
distribuição da vigilância, segundo Bruno, é cada vez mais um espaço de controle, o que
fica reforçado justamente pela “vigilância distribuída” (BRUNO, 2009, p. 140). O
monitoramento urbano tem a ver com instâncias de poder, como o Estado e organismos
diretamente ligados ao mercado, como grandes estabelecimentos comerciais. Mas, além
deles, há outros dispositivos que se situam entre o controle e o impedimento da vivência
estrangeira na cidade. O citado GPS, com sua vocação teleológica e orientadora, é um
exemplo.
Há outros tipos de “coleira eletrônica” (DELEUZE, 2013, p. 229) – aliás, o Gilles
Deleuze do “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” entendeu, há quase trinta
anos, que “[n]ão há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de
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controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto”
(DELEUZE, 2013, p. 228, 229). Hoje, ficção (anti)científica parece ser uma existência
sem esse tipo de mecanismo, que anda conosco para todo o lado na forma do smartphone.
O celular só é smart em virtude de certos aplicativos, como o GPS (que dá, precisamente,
“a posição de um elemento” referida por Deleuze), que lhe permitem uma conexão
constante. Como já afirmei, só é inteligente um aparelho que, de algum modo, reúna, faça
conexão, ainda que essas conexões sejam, sobretudo, para possibilidades dos próprios
aparelhos.
Um desses outros tipos de “coleira eletrônica”, que exerce um controle mais sutil,
porém muito contundente, sobre a ação das pessoas em seu cotidiano é o WhatsApp. Hoje
pertencente ao Facebook, o WhatsApp é um aplicativo de troca de mensagens que se
tornou hegemônico nos últimos anos. É cada vez mais raro encontrar quem não o utilize,
e, entre quem o utiliza, é cada vez mais raro encontrar quem o faça de maneira
descontínua, pois uma das características desse dispositivo é criar uma circunstância
comunicativa permanente, seja entre duas pessoas, seja entre agrupamentos familiares,
profissionais ou de outro perfil. O WhatsApp mobiliza inclusive certos fantasmas nas
relações: a partir de sua quase incontornabilidade e de seu uso inintervalado, torna-se um
gesto o fato de alguém demorar a responder a uma mensagem, posto que o programa
informa se o destinatário “visualizou” ou não o que recebeu.
Um aplicativo como esse atua diretamente na relação da pessoa com a cidade. Se
o espaço urbano, como nos diz Janice Caiafa, possui um devir estrangeiro e pode,
inclusive, nos deparar com linguagens recheadas de inesperado, o WhatsApp é uma trava
para a infamiliaridade. Uma das consequências de se abrir ao labirinto da cidade é perderse. Imagino agora alguém perdido na cidade que resolva comunicar a um “grupo” de
WhatsApp que não sabe bem seu paradeiro. Dependendo da intimidade entre as pessoas,
a criatura perdida receberia, em muito pouco tempo, desde sugestões de achamento até
pitos por não ter sido suficientemente cuidadosa. A cidade é que, na sua experiência,
estaria claramente perdida.
Mesmo em casos menos limite, o situar-se na cidade é invadido por esse misto de
espectralidade e familiaridade de softwares como o WhatsApp. Certo oscilar entre a
atenção e a distração proporciona que o corpo ocupe a cidade e que a cidade ocupe o
corpo; além disso, em virtude da mesma distração, a cidade é palco privilegiado do jogo
entre aprender e desaprender, operador de uma cognição inventiva, e a pessoa distraída
encontra-se com inauditas zonas de si mesma. Essa disponibilidade distraída, facilitadora
de olhares imprevistos, dá lugar a uma constante atenção e a outra disponibilidade –
agora, contudo, não é a urbe o que recebe a atenção ou a disponibilidade, mas demandas
advindas do fluxo ininterrupto de mensagens digitais.
Portanto, um espectro invade a experiência, pois aparece um minúsculo texto, ou
uma gravação, ou uma imagem, que retira quem lê, ouve ou vê (o celular, obviamente)
do seu presente e da sua presença. Urge, então, que se responda a esse chamamento, sem
que essa resposta apresente qualquer sintaxe com o que esteja sendo vivido nas ruas.
Mesmo a memória, que mantém, como Benjamin tão bem formulou, vínculos potentes
com a cidade (quem cresceu numa sabe perfeitamente o que seja isso), tem de dar lugar
a outro tempo, que não é presente, porque não se presentifica, mas é um contínuo
presente, pois aplicativos como o WhatsApp são propensos a não sair de cena, e tornam
quem o usa propenso a não se afastar do smartphone.
Uma familiaridade digital invasiva, espectral, acarreta um tipo de não estar, uma
des-presença. Forjo essa noção a partir da ideia de “produção de presença” formulada por
Hans Ulrich Gumbrecht. Um exemplo do que seja isso:
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Uma bela jogada de futebol americano ou de beisebol, de futebol ou de hóquei,
aquele momento sobre o qual todos os torcedores mais experimentados estão de
acordo, independentemente da vitória ou da derrota da sua equipe, é a epifania de
uma forma complexa e incorporada. Assim como uma epifania, uma bela jogada é
sempre um evento: jamais podemos prever se surgirá, ou quando (...); desfaz-se,
literalmente, à medida que surge. (GUMBRECHT, 2010, p 143).
Algo não muito distinto se pode dizer de uma experiência de presença na cidade:
há epifanias, grandes jogadas, paisagens que causam acordos ou desavenças a partir de
formas complexas e incorporadas. Estar na cidade “é sempre um evento; jamais podemos
prever” o que surgirá no atrito com o labirinto, ainda que a cidade possua uma concretude
que não a desfaça inteiramente – lá estão, onde sempre estiveram e onde se espera que
sempre estejam, o Redentor, o MASP, o Alvorada, São Januário; mas que luz os informa?
Que “quando” é este que nos deixa vê-los? Seguro um vocábulo importante, “epifania”:
na lida com a urbe, não concebo qualquer epifania (penso especialmente nas mundanas)
que não demande a presença física, cuja prescindibilidade tanta angústia causou em
Mumford.
Conversando com o Italo Calvino de As cidades invisíveis, Renato Cordeiro
Gomes escreve que “[é] a memória (...) que condiciona a leitura da cidade, em busca de
um sentido explícito e reconhecível, que a sociedade moderna já não permite”.
(CORDEIRO GOMES, 2008, p. 46). Por outro lado, a não linearidade e o não
reconhecimento do estar na cidade podem ser de fato um devir estrangeiro, e, nesse
sentido, a cidade moderna ainda possibilita, como fica evidente na própria investigação
de Cordeiro Gomes, uma literatura – uso essa expressão em sentido amplo, considerando
tudo o que a cidade inspira em termos de escritura, e é nesse tensionamento (memória e
escrita) que se cria um palimpsesto urbano (os labirintos nos mata-borrões dos cadernos
de Benjamin já são uma pequena literatura).
Que tipo de relação a des-presença provoca na cidade smart? Acrescento: que tipo
de relação entre memória e escrita esse tipo de cidade possibilita? É que só haverá escrita
numa cidade cuja estranheza seja visível, e o smartphone, aparelho mestre da smart city,
não é amigo do olhar o mundo. Em certa ocasião, ouvi alguém desejar que houvesse
conexão de internet sem fio disponível em toda a orla do Rio de Janeiro. Aproveitando
uma ideia ampla de literatura da cidade, que textos podem ser escritos ao mesmo tempo
em que sejam partilhados, nas mídias sociais, desde o litoral carioca? Que olharão os
olhos de quem esteja sentado diante do mar, mas também de seu telefone celular?
Insisti na proximidade que há entre a noção de smart e uma versão muito
neoliberal de esperteza. Gostaria de pensar em possibilidades de gestos, sempre
minúsculos, granulares, que possam infundir alguma sabotagem numa dinâmica smart,
da qual partem consequências como as que esquissei neste ensaio. Esses gestos terão de
roubar do smart a exclusividade de uma inteligência ágil, esperta, e tentar enfiar nele uma
outra política, na qual o smart consiga, por vezes, ser lento como certo pensamento
crítico. Pensando com Deleuze & Guattari e Foucault, Janice Caiafa nos lembra de que o
“capitalismo não se expande (...) sem oferecer riscos para si mesmo”; logo, “é como se a
esperteza micropolítica do capitalismo pudesse ser usada contra ele em alguns
momentos.” (CAIAFA, 2000, p. 61). Em seguida, Caiafa cita uma entrevista de Foucault,
na qual ele afirma que nosso problema não é o vazio, mas a inadequação dos meios para
pensarmos nosso tempo e seus traços mais agudos, suas potencialidades, inclusive.
Não vejo grande esperteza micropolítica no que Picon entende como “uso mais
sensato de smartphones”, posto que o que chamei de modelo mais tradicional de sensatez
não passou incólume pelo capitalismo neoliberal – pelo contrário: a sensatez foi
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transformada num pilar para o afastamento, meramente performático, do que receba a
pecha de ideológico. Além disso, como usar com sensatez um dispositivo programado
para gerar um excesso de desejo – de uso?
No começo deste texto, referi-me de passagem a um empoderamento digital que
pudesse permitir aos usuários dos smartphones colaborar para a construção de cidades
inteligentes, ou, o que é mais suave, cidades mais habitáveis. Penso que usar os
smartphones contra o neoliberalismo, passa, antes de tudo, por continuarmos dirigindo as
câmeras dos celulares contra a violência policial e outras coações do nosso tempo, pois
(quase) todas elas são a ponta de lança de um sistema econômico necropolítico. Além e
apesar disso, é bom desempoderar um pouco esses aparelhos, esquecê-los em casa, deixálos, e deixá-los, quando não tão distantes assim, ao menos menos barulhentos.
Mais importante que tudo é que essa “esperteza micropolítica” não seja assim tão
sensata, mas, pelo contrário, cultive, na relação com o smartphone e todo o autoritário e
totalitário conjunto smart de nosso tempo, certa extravagância, algum descabimento, um
toque de recusa (teria isso a ver, mais ou menos, com adequar os meios)? Não tenho ideia
clara de como fazê-lo, mas, quem sabe?, arriscar esses não saberes em devir e deriva pode
ser o começo de algum começo.
Referências:
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