p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939
PAISAGEM SONORA EM DRÁCULA
SOUNDSCAPE IN DRACULA
Adriana Falqueto Lemos
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória/Brasil).
Professora no Instituto Federal do Sul de Minas (Pouso Alegre/Brasil).
E-mail: flemos.adriana@gmail.com
Rossanna dos Santos Santana Rubim
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória/Brasil).
Bibliotecária/Documentalista do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (São Mateus/Brasil).
E-mail: rossannarubim@gmail.com
Emiliane Santana Gomes
Mestre em Letras pelo Programa de Mestrado Profissional em Letras, Profletras, pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Santa Cruz/Brasil).
Professora das Redes Estadual e Municipal (Itamaraju/Bahia).
E-mail: emilianesantanagomes@gmail.com
Recebido em: 16 de abril de 2023
Aprovado em: 5 de junho de 2023
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
RPR | a. 20 | n. 2 | p. 06-22 | jul./dez. 2023
DOI: https://doi.org/10.25112/rpr.v2.3373
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RESUMO
Este trabalho deriva de uma pesquisa de tese que estudou o romance Drácula e as características góticas
encontradas no texto. Ao trabalharmos com uma perspectiva que abrangia também os aspectos sonoros
durante a análise, foi possível perceber que há, no romance, marcas importantes que dizem tanto sobre
a literatura gótica, quanto sobre os entrelaçamentos nas relações entre música, sociedade e natureza,
formando, assim, uma paisagem sonora.
Palavras-chave: Drácula. som. música. sociedade. paisagem.
ABSTRACT
This work derives from a thesis research that studied the novel Dracula and the Gothic features found
in the text. When working with a perspective that also covered the sound aspects during the analysis, it
was possible to perceive that there are, in the novel, important features that say as much about Gothic
literature as about the interweaving in the relationships between music, society and nature, thus forming,
a soundscape.
Keywords: Dracula. sound. music. society. soundscape.
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1 INTRODUÇÃO
Os estudos literários têm por objeto primordial o texto produzido em determinado tempo, com
motivações estético-culturais. Com o passar do tempo, os mesmos têm desenvolvido e abarcado diversas
metodologias e tipos de objetos diferentes, e hoje é possível que os pesquisadores escolham esta ou
aquela corrente teórica com a qual gostariam de destrinchar um texto. A concepção de texto, nesse
sentido, também se modificou e, dentro do que a história cultural dos objetos vem estudando, podemos
chamar nosso objeto de estudo de “objeto cultural”. Esta ideia de texto se ancora nos pressupostos de
Roger Chartier, estudioso da Nova História Cultural dos livros e da leitura. “A história cultural, tal como a
entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social e construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 2002, p. 17).
Nesse sentido, este texto traz discussões que visam entender de que forma o aspecto sonoro no
romance Drácula traz ao leitor a ideia de ambiência, fazendo com que sua leitura se torne uma experiência
completa – do ponto de vista dos sentidos. Este expoente da literatura gótica, publicado originalmente
em 1897, pelo irlandês Bram Stoker, configura-se numa materialização de um pouco da cultura e da
história da Transilvânia, com base em mito vampiresco, numa tessitura de relações conflituosas de
luxúria e afeto do mundo tangencial e do que se supõe imaginário; num crescente de acontecimentos que
favorecem experiências de horror genuínas, permeadas por uma ampliação de sensações resultantes da
leitura. Assim, o texto do romance, na perspectiva da história cultural, é percebido como ponto de partida
para a análise que é feita. Nas seções a seguir, discutiremos formas de leitura do texto e traremos uma
breve revisão dos temas do romance. Ao final da discussão, faremos considerações a respeito de como
o som é componente importante para que o leitor possa ser afetado pelo romance – tanto no aspecto
gótico per se, quanto no aspecto cultural – de época.
2 A RESPEITO DE TEXTO NA HISTÓRIA CULTURAL
O tripé formado pelo “texto, o objeto que lhe serve de suporte e a prática que dele se apodera”
(CHARTIER, 2002, p. 127) seria o que compõe um objeto cultural. Tomemos o romance Drácula a fim de
exemplificar o que queremos dizer: o texto chega até nós não da forma como o autor o projetou, mas
com marcas textuais tipográficas que o organiza, que orientam a leitura e que produziram e produzem
práticas próprias de se ler o texto. De acordo com Chartier,
Considerar a leitura como um ato concreto requer que qualquer processo de construção
de sentido, logo de interpretação, seja encarado como estando situado no cruzamento
entre, por um lado, leitores dotados de competências específicas, identificados pelas
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suas posições e disposições, caracterizados pela sua prática do ler, e, por outro lado,
textos cujo significado se encontra sempre dependente dos dispositivos discursivos e
formais — chamemos-lhes “tipográficos” no caso dos textos impressos — que são os
seus (CHARTIER, 2002, p. 26).
Drácula, especificamente, é um exemplo de literatura epistolar: seu texto é subdividido em relatos de
diferentes formatos e com diferentes autorias. Organizados cronologicamente pela personagem Mina, os
relatos descrevem as aflições e as experiências de diferentes personagens envolvidos na trama macabra,
que gira em torno do antagonista Drácula, durante a década de 1890.
Outro aspecto instigante a respeito do estudo da narrativa do romance é levantado por Anthony
Salazar em Curing the Vampire Disease with Transfusion: The Narrative Structure of Bram Stoker’s Dracula
(2017). De acordo com o autor, não havia, até a data de seu estudo, pesquisas a respeito da técnica
utilizada por Stoker para escrever Drácula. Stoker inicia seu romance como se este fosse uma literatura de
viagem, já que a intenção de Harker é descrever para Mina como está sendo seu traslado para o trabalho,
num lugar distante de onde eles moram.
A narrativa do livro, de acordo com Salazar, é composta por esse tipo de registros – só que estes vão
se tornando cada vez mais intrincados e complexos. Se, a princípio, o objetivo era simplesmente relatar
um fato para a noiva, posteriormente, os motivos ganham contornos mais heroicos. Há várias pessoas
usando variados tipos de registros (que vão desde cartas, bilhetes, gravações em áudio), e a ideia é que
estas anotações sejam úteis para que outras pessoas precisem lutar contra o mal no futuro (SALAZAR,
2017, p. 4). Assim, pode-se dizer que os agentes que descrevem os fatos o fazem acerca dos momentos
passados. Eles não controlam o fluxo dos acontecimentos, não sabem que futuro os espera e apenas
registram da melhor maneira que conseguem. De acordo com Adriana Falqueto Lemos, no artigo Efeitos
da narrativa epistolar em histórias de horror: de Drácula aos videogames de Survival Horror:
O formato epistolar certamente produz esse efeito de verdade almejado por Stoker.
Nesse caso, especificamente, é possível perceber a intenção do autor em implicar em
seu texto uma legitimação que venha de fora de si, como se sua autoria se resumisse
na organização dos registros deixados por outros, e que os relatos por si só fossem
suficientes para verificação da veracidade. Mesmo que Stoker não tenha tido por
pretensão o desejo de que sua obra fosse tomada como fato verídico, o jogo que ele
propõe (como organizador de uma série de relatos feitos por terceiros) provoca no leitor,
pela própria forma como a narrativa se apresenta um efeito de curiosidade, como se este
estivesse lendo registros secretos, escondidos, guardados, revelados etc. (FALQUETOLEMOS, 2019, p. 49-50).
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A respeito da organização textual, observamos o artigo de Noel Gough, intitulado Textual Authority
in Bram Stoker’s Dracula; or, What’s Really at Stake in Action Research? (1996). Na perspectiva de Gough,
Stoker consegue criar uma rede narrativa que faz com que seu romance seja, na realidade, multimidiático.
Infelizmente, não é possível que se tenha acesso ao formato pretendido por Stoker, já que deveríamos
ler os excertos em formato de “notas de diários, documentos, bilhetes, memorandos, registros de
bordo, notícias de jornal, cartas, gravações em fonógrafo, máquinas de datilografia etc” (FALQUETOLEMOS, 2019, p. 49), por exemplo. Mesmo assim, Gough informa que a produção é responsável por
reunir informação suficiente para que as personagens superem os obstáculos para superar o mal, ou
seja, derrotar o vampiro (1996, p. 259).
Para Gough, escrever é um ato de resistência – na medida em que passam a compreender e a conhecer
o mundo em que se encontram, as personagens também conseguem encontrar sentido e amparo quando
escrevem sobre o que estão vivendo (GOUGH, 1996, p. 259; BACKHOUSE, 2003, p. 17; SALAZAR, 2017,
p. 4; BUTLER, 2002, p. 14). A escrita os auxilia, inclusive, num processo de libertação da alienação da
situação em que vivem ao tentar compreender as circunstâncias para buscar um meio de libertação.
Assim, como ponderado por Backhouse,
A estrutura narrativa e o conteúdo refletem o mundo de opostos que Stoker criou. Ele
justapôs o sobrenatural e o cotidiano; um desesperado Jonathan Harker à mercê de
três vampiras voluptuosas é seguido diretamente pelo relato de Mina Murray sobre
sua agenda de trabalho lotada; o leitor é transportado do “redemoinho imaginativo”
dos Cárpatos e levado de volta ao status quo do Império Britânico. O conteúdo explora
a eterna batalha entre o bem e o mal; o homem e o monstro, valores familiares em
contraste com a autoindulgência arbitrária que Drácula representa (2003, p. 912).
Antes que falemos sobre as questões que envolvem a confecção do texto – ou o fato deste romance
ser epistolar, nos atentamos para o que Chartier propõe a respeito de práticas e representações. Para o
historiador, “a apropriação, tal como a entendemos, tem por objeto uma história social das interpretações,
remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e
inscritas nas práticas específicas que as produzem” (CHARTIER, 2002, p. 26). Ou seja, temos práticas
The narrative structure and the content reflect the world of opposites Stoker created. He juxtaposed the supernatural and the
everyday; a desperate Jonathan Harker at the mercy of three voluptuous vampires is followed directly by Mina Murray’s account
of her busy work schedule; the reader is transported from the ‘imaginative whirlpool’ of the Carpathians and whisked back to
the status quo of the British Empire. The content explores the eternal battle between good and evil; the man and the monster,
family values in contrast to the wanton self-indulgence that Dracula represents.
1
2
Todas as traduções são de nossa autoria, salvo indicação nas referências.
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que são inseridas dentro de um tempo, uma sociedade e uma instituição específicas, e estas práticas são
apropriadas por pessoas que as apreendem.
Portanto, interpretações de obras literárias, por exemplo, estão vincadas em práticas interpretativas
que foram apropriadas por leitores ao longo do tempo. Assim, conclui-se que diferentes estratégias na
organização e confecção do texto implicam diferentes formas de apropriação desse objeto cultural, algo
que explica o fato de narrativas epistolares escritas em primeira pessoa serem mais facilmente tomadas
como verdade.
A forma como esses documentos foram organizados será esclarecida pela leitura dos
mesmos. Todos os trechos desnecessários foram eliminados, para que uma história
completa – e quase em desacordo com as crenças dos tempos mais recentes – possa
ser vista como simples fato. Não há nesses documentos uma única afirmação que possa
ter sofrido as alterações e os erros da memória: todos os relatos aqui presentes são
rigorosamente contemporâneos aos eventos por eles registrados; e esses registros
seguem o ponto de vista de seus autores, estando circunscritos aos limites de seu
conhecimento (STOKER, 2014, p. 50).
Não seria possível, portanto, ignorar o projeto editorial e a prática de leitura por ele proposta. Além
disso, o romance se insere dentro de um circuito cultural e pertence a um gênero. A partir desta perspectiva,
a análise que propomos objetiva a leitura do tempo presente de um objeto cultural, projetado num tempo
passado, para localizar diferenciações que podem construir significações (CHARTIER, 2002, p. 121). Ou
seja, temos por intenção ler um texto que foi projetado no passado de maneira a compreendermos, hoje,
qual significado podemos dele depreender. Para Chartier, “as estruturas do mundo social não são um
dado objetivo, tal como o não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente
produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras”
(2002, p. 27).
A realidade em que nos localizamos é formada por uma série de dispositivos que indiciam nossa
vivência e nosso fazer. Assim, a produção de artistas também estará, de uma forma ou de outra, vinculada
a práticas que fazem parte de sua vida, pois suas práticas são circunscritas pelas categorias históricas
e psicológicas em que estão inseridos. De outra forma, Antonio Candido se aproxima do assunto em
Literatura e Sociedade, observando que
Tanto quanto os valores, as técnicas de comunicação de que a sociedade dispõe influem
na obra, sobretudo na forma, e, através dela, nas suas possibilidades de atuação no
meio. Estas técnicas podem ser imateriais – como o estribilho das canções, destinadas
a ferir a atenção e a gravar-se na memória; ou podem associar-se a objetos materiais,
como o livro, um instrumento musical, uma tela (CANDIDO, 2010, p. 42).
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Quando lemos um texto, é possível que consigamos identificar características de uma cultura e de
um tempo, porque, no cerne das criações artísticas, reside uma relação entre a criação do autor e a sua
vivência no mundo.
Segundo Candido, é através dessa mútua identificação, do que é parte do quotidiano e de atividades
que são valoradas e reconhecidas pela comunidade, que o impacto emocional insurge. Afinal, a obra seria
uma relação entre autor e público, estando o autor, neste caso, desempenhando um papel social.
Isto quer dizer que um escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo
capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas
alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo
profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria
e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e
a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e
público (CANDIDO, 2010, p. 83-84, grifos do autor).
Por isso, a obra também molda comportamentos e atitudes. Ela se insere num tempo e dialoga com
o tempo do leitor, impulsionando tensões e interpretações que se multiplicam durante as leituras. “São
dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de
circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo” (CANDIDO, 2010, p. 84).
De forma bastante interessante, Backhouse escreve sobre Stoker:
Stoker tinha o “hábito” de incluir referências a pessoas e lugares que conhecia. Whitby
é um elemento importante em Drácula. Em 1893, ele passou férias lá e, enquanto
pesquisava para o romance, encontrou vários elementos que foram posteriormente
incorporados. O naufrágio foi baseado em um evento real. As personagens Lucy e Mina
são uma mistura de três jovens que ele conheceu, que também estavam de férias (2003,
p. 83).
Encontrar reminiscências da vida de autores em suas obras não é algo raro. De qualquer forma, é
interessante que se perceba esta influência neste estudo, já que as paisagens sonoras descritas por
Stoker fizeram parte da sua vida também.
Stoker had a ‘habit’ of including references to people and places that he knew. Whitby is an important element in Dracula. In
1893 he had a holiday there and whilst researching for the novel found several elements that were later incorporated. The shipwreck was based on a true event. The characters Lucy and Mina are a mixture of three young ladies he met, who were also on
holiday.
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3 DRÁCULA E SEUS TEMAS – BREVE REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Os estudos sobre Drácula, segundo Paul Riquelme (apud CLASEN, 2012, p. 379), seguem duas
frentes: a primeira faz a linha psicológica, e a segunda, histórica. De forma geral, os temas que circulam
na obra parecem ecoar as preocupações da sociedade vitoriana da época: “degeneração (dijkstra),
colonização reversa (arata), homossexualidade (schaffer), a ‘nova mulher’ (senf), materialismo
darwiniano e a dissolução da alma (blinderman)” por “degeneração (Dijkstra), colonização reversa (Arata),
homossexualidade (Schaffer), a ‘nova mulher’ (Senf), materialismo darwiniano e a dissolução da alma
(Blinderman)” (CLASEN, 2012, p. 3804).
Drácula falou sobre as ansiedades vitorianas, mas seu texto parece renovar seu significado conforme
o tempo passa. Para Clasen (2012), o que explica a facilidade que o público tem para absorver o romance
é o fato de que o mito do vampiro pode adquirir novos significados, sempre atendendo às necessidades
das sociedades que o leem.
No passado, por exemplo, o vampiro era um ser hedonista, que gerava repulsa e medo; sua
imortalidade não era vista como privilégio, se tratava, antes, de uma maldição antinatural e sacrílega. O
vampiro moderno é sedutor, sua imortalidade é muito valorizada e as pessoas passaram a sonhar em ter
uma vida eterna para acumular riquezas e bens (CLASEN, 2012, p. 392-393).
Um dos elementos que produzem sentido diferente daquele projetado no seu tempo - e que pode
ser analisado - é o som em Drácula. Entre ruídos e música, efeitos se projetam na leitura e são estes
significados que buscamos entender neste texto.
4 PAISAGENS SONORAS
Chartier (2002) explica-nos que forma é o conteúdo (sentido). Quando Norton (1972) declara
que o romance gótico consegue unir forma com significado, ele destaca o trabalho dos escritores na
detalhada descrição de eventos e cenários de seus romances. É como se, ao escreverem, os autores
estivessem pintando imagens e estas cenas fossem imprescindíveis para causar no leitor um efeito de
deslumbramento próprio do gótico. A música fazia parte dessa pintura, já que os autores acreditavam
que
Uma sensibilidade cada vez mais refinada a várias formas de arte, especialmente
a música frequentemente está subjacente ao padrão de ação de muitos romances
4
[…] degeneration (Dijkstra), reverse colonization (Arata), homosexuality (Schaffer), the ‘New Woman’ (Senf), Darwinian materialism and the dissolution of the soul (Blinderman).
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góticos de tal forma que o crescimento e o status social de seus personagens são
frequentemente correlatos à sua resposta à poesia e música do que à sua inculcação
pelas virtudes orais (NORTON, 1972, p. 325).
Com personagens bastante sensíveis à música e à poesia, além da pintura e a percepção de que a
natureza era objeto de observação, os autores góticos escreviam para a projetar, de forma balanceada,
luz e trevas, e construir, a partir de discussões, o efeito sublime. Para Burke (apud NORTON, 1972, p. 32),
o jogo de oposições entre extremos é o que cria a forma mais bela de sublimes, e é o contraponto entre
forças opostas, sustentando o estilo gótico.
Durante uma narrativa como Drácula, há momentos de tensão que se intercalam com momentos em
que as personagens se recompõem. Em ambos os períodos, os sons e a música estão presentes, sendo
importantes para a composição do efeito de sublime e, portanto, para a construção da obra como um
todo.
O “Sublime a partir do romantismo é visto nas forças poderosas da natureza, o Sublime é uma mescla
de assombro, horror e deleite, [...] referente a um êxtase e transcendência que a obra literária causaria
ao leitor” (GUERRA, 2018, p. 173). Observa-se que “o sublime está associado a qualidades ‘masculinas’
de força e tamanho (aquelas capazes de invocar admiração, temor ou terror); o belo, com qualidades
‘femininas’ de pequenez, suavidade e delicadeza” (TROTT, 1998, p. 81 apud WHITMORE, 2013, p. 216).
Assim, as forças evocadas pela natureza e pela sua grandiosidade, encontradas em romances góticos
como Drácula, podem ser identificadas como sublimes.
Os ecos, sons e mensagens indecifráveis são temas recorrentes nas narrativas góticas (SEDGWICK
1986, p. 9-10, apud JONES, 2010, p. 7). Tais ecos podem ser interpretados como formas sonoras do duplo.
As mensagens indecifráveis podem ser produto de efeitos sonoros, o que gera efeitos de descontinuidade
e fragmentação, também aspectos presentes nas narrativas góticas. Destaca-se ainda sons que causam
estados de consciência alterados, e os sons que presentificam a sensação de vastidão da natureza, como
os sons do vento e os barulhos e grunhidos produzidos por animais. Assim, os elementos da natureza,
como o vento, também têm papel importante nesses cenários góticos (LOVELL-SMITH, 2008, p. 103;
RAILO, 1964, p. 13). A natureza desempenha a voz das emoções em tramas românticas, mas, em
An increasingly refined sensitivity to various forms of art, especially music, frequently underlies the pattern of action of many
Gothic novels, so much so that their characters’ growth and social status are often more correlative to their response to poetry
and music than to their inculcation of the oral virtues.
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The sublime is associated with ‘masculine’ qualities of strength and size (those capable of invoking admiration, awe or terror);
the beautiful with ‘feminine’ qualities of smallness, smoothness and delicacy.
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romances góticos, ela surge como uma força incontrolável, que pode ampliar a sensação de desamparo
das personagens e o efeito do sublime no leitor.
A atmosfera foi uma das preocupações de Gates (1976) ao desenvolver suas análises. A arte de Stoker
estava na capacidade que ele tinha de produzir efeitos a partir da escrita, causados pela confluência de
uma série de elementos que podem ser descritos como “sonoros”. Segundo Gates (1976, p. 24), são:
[...] efeitos tradicionais: os sons noturnos misteriosos, um suprimento aparentemente
inexaurível de luar romântico e um coro de alerta de camponeses medrosos e
supersticiosos. A música “fantasmagórica”, que era o dispositivo favorito de Ann Radcliff,
é substituída em Drácula pela música das “crianças da noite”, os lobos7.
A narrativa de Drácula contém uma série de descrições de paisagens e sons que produzem o efeito
ora de angústia, ora de deleite. A natureza é dúbia, às vezes, convidativa, às vezes, amedrontadora. Não
é difícil perceber como os efeitos sonoros, produzidos pela descrição, desempenham papel crucial na
ambientação do romance, portanto, no reconhecimento deste como uma produção gótica. Observe-se
este trecho:
Nisso, um cachorro começou a uivar em alguma fazenda, lá longe, à margem da estrada
– longa lamúria feita de medo e agonia. O som foi ecoado por outro cão, e outro, e mais
outro, em diversos pontos nas imensas trevas. Carregada pelo vento que agora soprava
pela Garganta, uma alucinante teia de uivos tomou forma ao nosso redor, parecendo
estender-se pela região inteira, até distâncias inconcebíveis – e logo minha transtornada
fantasia imaginou todos os cachorros do país uivando na soturna extensão da noite. Ao
ouvir o primeiro uivo, os cavalos haviam começado a se empinar e retroceder. Mas o
cocheiro lhes disse algumas palavras tranquilizadoras, e os animais logo se aquietaram,
embora continuassem suando e tremendo, como se houvessem recém-terminado uma
fuga pavorosa. Na lonjura das montanhas, entre as escarpas que nos cercavam por
todos os lados, começou um uivo mais agudo, mais alto, mais selvagem: o uivo dos
lobos. [...] Na agudez do vento, eu ainda percebia o queixume dos cachorros, mas numa
toada cada vez mais débil. O uivo dos lobos, no entanto, parecia cada vez mais próximo,
como se as feras estivessem nos cercando por todos os lados. Fiquei terrivelmente
assustado (STOKER, 2014, p. 67-68).
Ao escrever de forma tão minuciosa a respeito do som e do efeito que ele causa nos leitores, Stoker
tem por objetivo projetar no leitor as sensações causadas em Jonathan, mas, ao mesmo tempo, usar
[…] traditional effects: mysterious nocturnal sounds, an apparently inexhaustible supply of romantic moonlight, and a warning
chorus of fearful, superstitious peasants. The ‘ghostly’ music which was a favorite device of Ann Radcliffe is replaced in Dracula
by the music of ‘the children of the night’, wolves.
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a memória auditiva da audiência. O efeito causado no leitor é de espelhamento, conforme explicado
por Carroll (1990, p. 90): “nós nos emocionamos com a ficção de uma forma tão vivida que nós nos
sentimos como se estivéssemos participando dela; especificamente, pensa-se que nos sentimos como
se fôssemos o protagonista”8. E este reconhecimento – a ideia que temos a respeito do que são esses
uivos dos lobos, é parte de uma memória auditiva, de algo que já ouvimos e que é rememorado enquanto
se lê a descrição feita por Stoker.
O autor utiliza o universo não diegético (o mundo real/sensível do leitor, e o que esses sons significam)
para construir um universo diegético com descrições de sons que o leitor reconhece e consegue reavivar
na mente, no momento da leitura. Poderíamos dizer que tais afirmações coadunam com a leitura de
Pereira (2005), graças à atenção que ela dá às experiências dos ouvintes. Para a autora, as escutas
compõem representações de mundo compartilhadas socialmente (PEREIRA, 2005, p. 156).
Ao longo do romance, há inúmeras descrições sonoras que colaboram para a criação de uma ambiência
sinistra e intimidadora. Não é preciso, na maior parte das vezes, que o perigo se apresente de forma física
diante do personagem para que o leitor sinta angústia; o som como prenúncio do que está por vir é
suficiente para que Jonathan se sinta apavorado.
Além de sons de lobos, ouve-se o “[...] rangido agônico produzido pelas coisas raramente usadas [...]”
(STOKER, 2014, p. 74) e o “[...] agudo lamento de dobradiças [...]” (STOKER, 2014, p. 128) no castelo. Estes
sons são descritos a fim de fazer com que os objetos pareçam seres vivos em sofrimento, com o uso de
personificação. As tábuas rangem em agonia, as dobradiças lamentam serem usadas. Nos corredores,
“[...] em cujo assoalho de pedra nossos passos ecoaram soturnamente [...]” (STOKER, 2014, p. 75), o
silêncio é quebrado apenas por passos. Fazem parte deste repertório sonoro o “doloroso lamento de
cães”, o “gemido rapidamente sufocado de vítimas” e o “agonizante grito feminino” das mulheres que
perdem seus filhos para as mãos dos monstros do castelo (STOKER, 2014, p. 118). E, quando o ambiente
parece tranquilo, “subitamente, no meio do silêncio, os lobos voltaram a uivar no vale profundo” (STOKER,
2014, p. 78).
Na localidade de Whitby, não é diferente, o som tem papel importante na ambientação das descrições
que Mina faz no seu diário. Nas águas, “há uma boia com sino, que badala de forma lúgubre ao açoite
do vento em dias de mau tempo” (STOKER, 2014, p. 145-146). Em um dia de chuva, Mina escreve, por
exemplo, que “a tempestade foi terrível, e me arrepiei várias vezes ao escutar a ventania zunindo entre
We are moved by the fiction in such a vivid way that we feel as though we are participants in it; specifically, we are thought to
feel as though we were the protagonist.
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os campanários e chaminés. As rajadas eram tão fortes que pareciam tiros de canhão” (STOKER, 2014, p.
181). As tempestades descritas por Mina, com alentadas descrições da grandiosidade sonora e física das
forças da natureza, provocam o efeito de sublime (GATES, 1976, p. 29).
Outro ponto de ambiência significativo no romance é a tomada do dia pela noite, conforme as anotações
de Jonathan Harker manifestam logo no início da narrativa. Ele chega muito cansado e dorme durante
quase o dia inteiro, passando a encontrar o Conde todas as noites que se seguem. Assim como descrito
em seu diário, Harker começa a se sentir oprimido, observando que “há algo estranho neste lugar, algo
que me perturba. Meu desejo é estar bem longe daqui – na verdade, meu desejo é jamais ter vindo. Talvez
essa existência noturna esteja cobrando seu preço; mas quem dera fosse apenas isso!” (STOKER, 2014,
p. 88). A sensação exprimida por Harker (1976, p. 27) é a de um suspense que não aparenta se sustentar
em indícios, mas que se revela, segundo Gates, como um estado de emoções típico da literatura gótica, a
sensação de que se está vivendo em um pesadelo.
Gates (1976, p. 93) nota diferenças demarcadas por Stoker entre o mito do vampiro e Drácula. O
romancista deu ao seu antagonista alguns atributos que outros vampiros não tinham, como a falta de
reflexo no espelho, a falta de sombra e a capacidade de enxergar no escuro. Além disso, como explicado
por Van Helsing, Drácula
[...] pode, com algumas limitações, aparecer e desaparecer à vontade, onde e quando
desejar, sob as muitas formas que estão à sua disposição; pode, até certo ponto,
comandar os elementos: a tempestade, o nevoeiro, o trovão; pode controlar todas as
criaturas inferiores ou malignas: o rato, a coruja, o morcego – a mariposa, a raposa e o
lobo; pode aumentar ou diminuir seu próprio tamanho; e pode, às vezes, desaparecer e
ficar invisível (STOKER, 2014, p. 400).
Por isso, os sons e barulhos são ameaçadores na narrativa, já que eles podem ser inocentes ou
antecipar a chegada do mal. Ou seja, o leitor nunca sabe o que esperar do próximo parágrafo.
Em outra passagem, durante o tempo em que Mina passa com Lucy, ambas passeiam com frequência,
o que lhes dá oportunidade para ouvir bandas que tocam pela cidade. Nesse sentido, o leitor irá perceber
o som de outro jeito: a forma com que Stoker fala da sonoridade das ruas dá a ver uma cidade agitada e
que pode ser reconhecida pelos seus leitores contemporâneos. Em uma das ocasiões em que as amigas
passeiam, Mina diz que elas escutam músicas de dois compositores chamados Louis (Ludwig) Spohr
(1784-1859) e Alexander Campbell Mackenzie (1847-1935) (STOKER, 2014, p. 192). Destaca-se o fato
de Stoker ter pontuado os nomes de dois compositores contemporâneos, o que, certamente, fez com que
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seus leitores reconhecessem na narrativa descrições não apenas dos lugares que estavam acostumados
a frequentar, mas também repertórios que eles conheciam.
Esta ideia aparece em um estudo sobre as músicas da Bossa Nova e o cenário urbano do Rio de Janeiro
da década de 1950, intitulado O Nome, o Olhar e a Escuta da Cidade: memórias de ouvintes, texto em que
Simone Luci Pereira (2005, p. 156) afirma que a experiência do público em diálogo com obras artísticas
contemporâneas revela representações de mundo compartilhadas, abordando a metrópole como “texto
que temos para ser lido/ouvido”.
Um texto com formas empíricas que se articulam na percepção da cidade como
linguagem e comunicação, algo a ser lido/ouvido tanto em si mesmo quanto a partir
das leituras/escutas de seus habitantes (os ouvintes da Bossa Nova), estruturando
uma representação desse meio urbano, atualizando-o como enunciados e traçados que
caracterizam os usos da cidade, a escuta desse meio urbano (PEREIRA, 2005, p. 156).
Segundo McClary (1991, p. 8), “[...] a música não reflete a sociedade de forma passiva; ela serve
como um fórum público, no qual vários modelos de organização de gênero (assim como muitos outros
aspectos da vida social) são reafirmados, adotados, contestados e negociados”9. A música tem um
papel importante na vida das pessoas, fala sobre elas e sobre o seu tempo de forma poética. Quando
encontramos referências musicais em um romance como Drácula, descobrimos um mundo não-diegético
cristalizado. A música representa o mundo, e o mundo cultural influencia as representações contidas
na música, num sistema circular de práticas e representações que se retroalimenta. Fazem parte desta
concepção as noções de práticas e representações de Chartier (2002).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A maneira como a música se constitui segue parâmetros sociais, ou seja, seu sentido subscrevese a um contexto histórico, social e cultural. Por buscar uma pesquisa que priorize a análise cultural e
contextual da música é que McClary (1991, p. 20) entende que os estudos formalistas não serão capazes
de proporcionar leituras sobre os significados das composições e nem de seus usos. A pesquisa sobre
música, segundo a autora, nem sempre se relaciona a observações técnicas; muitas análises estéticas
e retóricas estiveram interessadas no efeito causado pela música. Pessoas não treinadas formalmente,
não acadêmicas, acreditam que as músicas têm significado:
[...] music does not just passively reflect society; it serves as a public forum within which various models of gender organization
(along with many other aspects of social life) are asserted, adopted, contested, and negotiated.
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[...] elas podem soar felizes, tristes, sexy, funky, bobas, americanas, religiosas ou
qualquer coisa do tipo. Alheias ao ceticismo de músicos teóricos, elas ouvem música
para dançar, chorar, relaxar ou ficar românticas. Compositores de músicas para filmes
ou comerciais consistentemente associam seu sucesso comercial ao conhecimento
pragmático do público da significação musical – a habilidade com que John Williams,
por exemplo, manipula os códigos semióticos da sinfonia do final do século XIX em E.T.
ou Star Wars é de tirar o fôlego. [...] No mundo social, a música alcança esses efeitos o
tempo todo10 (McCLARY, 1991, p. 21).
O significado na música, assim como nos textos, não é dado ou natural, ele faz parte das relações
culturais e sociais do contexto no qual a música surgiu e de onde o ouvinte se encontra. Por isso, quando
Pereira (2005) e Patrocínio (2013), por exemplo, lançam mão de experiências de ouvintes para entender a
música, eles não o estão fazendo de forma subjetiva: a percepção das pessoas é constituída socialmente
e, por isso, válida. E as experiências dos ouvintes, além de se configurarem como parte importante da
forma como o conhecimento vem sendo gerado hoje (historicizado, socializado, hermenêutico), ampliam
a maneira como o corpo se insere nos estudos, se relacionando às sensações físicas e experiências
corporificadas (McCLARY, 1991, p. 24).
Parece importar ao autor a descrição minuciosa e superlativa das paisagens (urbanas ou rupestres)
visualizadas pelo personagem Harker, potencializando a possibilidade de que o leitor tenha uma
experiência imaginária tanto visual, quanto sonora, a partir de uma narrativa que parece de apresentar
gradativamente, num crescendo, a mudança de ambientes e destino (literal e figurativamente) daquele
passageiro.
A paisagem sonora que se desenha em Drácula dá a ver aos leitores os sons da metrópole e aqueles
ouvidos pelas personagens amedrontadas, à espera do pior. A descrição das sensações auditivas faz com
que o leitor absorva a atmosfera pretendida pelo autor, que espera que seu público mimetize as emoções
das personagens ao mesmo tempo em que identifique o tempo e a cultura em que vive, sentindo que o
texto poderia estar baseado em fatos reais. A proposta é divertida e ainda aguça a curiosidade e o deleite
de leitores ao redor do mundo, e é preciso dar crédito a Stoker: descrições das paisagens sonoras não são
algo de que um escritor deva abrir mão, mesmo que suas obras não sejam góticas.
It can sound happy, sad, sexy, funky, silly, ‘American,’ religious, or whatever. Oblivious to the skepticism of music theorists, they
listen to music in order to dance, weep, relax, or get romantic. Composers of music for movies and advertisements consistently
stake their commercial success on the public’s pragmatic knowledge of musical signification – the skill with which John Williams,
for instance, manipulates the semiotic codes of the late nineteenth-century symphony in E.T. or Star Wars is breathtaking. […] In
the social world, music achieves these effects all the time (McCLARY, 1991, p. 21).
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