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Revista de Direitos Difusos VOLUME 5 7 - 5 8 Janeiro-Dezembro/2012 Ano XIII Coordenadores Guilherme José Purvin de Figueiredo Marcelo Abelha Rodrigues Revista de Direitos Difusos ISSN 1517-9192 Diretor Executivo: Guilherme José Purvin de Figueiredo. Apoio institucional: IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública; APRODAB – Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil; PROAM – Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental; NIMA-Jur – Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC-Rio, AADA – Asociación Argentina de Derecho Administrativo e ABRAMPA - Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Supervisão Editorial: Letras Jurídicas Editora Ltda. - EPP – Publicações Jurídicas Rua Senador Feijó, 72 - 3º andar, sl. 32, Centro - São Paulo/SP, CEP 01006-000 Telefone/Fax: 11-3107-6501 - e-mail: <editorial@letrasjuridicas.com.br> Coordenadores: •• Guilherme José Purvin de Figueiredo – Procurador do Estado de São Paulo. Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Doutor em Direito pela USP. Sócio Fundador da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil. Professor de Direito Ambiental no Curso de Graduação em Direito da Universidade São Francisco e nos Cursos de Especialização em Direito Ambiental das Faculdades de Direito da PUC-RJ, PUC-SP e PUC-PR e da Unianchieta-Jundiaí/SP. •• Marcelo Abelha Rodrigues – Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Adjunto III do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Advogado militante. Membro do Conselho Editorial da Revista de Processo da RT e do Conselho Editorial da Revista de Direito Ambiental, também da RT. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Vice-presidente da Sociedade Capixaba de Direito Processual. Conselho Editorial: •• A. Daniel Tarlock (Distinguished Professor of Law, and Associate Dean for Faculty Chicago-Kent College of Law IlIinois Institute of Technology Chicago - USA) •• Alaôr Caffé Alves (Professor Associado da Faculdade de Direito da USP) •• Ana Cláudia Bento Graf (Professora de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Procuradora do Estado do Paraná) •• Antonio Herman V. Benjamin (Ministro do Superior Tribunal de Justiça) •• Carlos Bocuhy (Presidente do PROAM – Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental) •• Carlos Frederico Marés de Souza Filho (Professor da Faculdade de Direito da PUC-Paraná) •• Cecy Thereza Cereal Kreutzer de Góes (Advogada do Instituto Ambiental do Paraná) •• Clarissa Ferreira Macedo D’Isep (Professora da Faculdade de Direito da PUC-SP, FIG e SENAI/São Bernardo do Campo - SP) •• Danielle de Andrade Moreira (Professora da PUC-Rio. Coordenadora do Setor de Direito Ambiental do NIMA e do Curso de Especialização em Direito Ambiental) •• Élida Séguin (Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Ex-presidente do IBAP) •• Erika Bechara (Professora de Direito Ambiental. Doutora em Direito pela PUC–SP. Coordenadora Geral da APRODAB) •• Fernanda de Salles Cavedon (Advogada. Doutora em Direito Ambiental pela Universidad de Alicante, Espanha. Professora de Direito Ambiental da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI) •• Fernando C. Walcacer (Professor de Direito Ambiental da PUC-Rio. Coordenador do Setor de Direito Ambiental do NIMA e do Curso de Especialização em Direito Ambiental) •• Fernando Cardozo Fernandes Rei (Doutor pela Universidad Complutense de Madrid, pela USP e pela Universidad de Alicante. Professor titular da FAAP. Diretor da SBDIMA. Foi por duas vezes Diretor-Presidente da CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) •• Fernando Reverendo Vidal Akaoui (Promotor de Justiça/SP, Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP, Professor titular e Coordenador Pedagógico da Faculdade de Direito da UNISANTA, 2º Vice-Presidente da ABRAMPA e Conselheiro do CONAMA) •• Gerd Winter (Professor do Centro de Pesquisas de Direito Ambiental Europeu – Universidade de Bremen – Alemanha) •• Giampiero Di Plinio (Professore straordinario di Diritto pubblico comparato nella Facoltà di Economia dell’ Università G. d’Annunzio Chieti Pescara, Italia) •• Jacqueline Morand-Devillier (Professeur à I’Université de Paris I - Panthéon Sorbonne) •• Jean Jacques Erenberg (Procurador do Estado de São Paulo) •• John E. Bonine (Professor holding the B.B. Kliks Chair in Law - University of Oregon; Director of the LL.M. Program in Environmental and Natural Resources Law; Founder of the Environmental Law Alliance Worldwide (ELAW); Founder of the Environmental Law Professors international network). •• José Nuzzi Neto (Procurador de Autarquia - DAEE) •• Lindamir Monteiro da Silva (Procuradora do Estado de São Paulo. Pós-graduada pela Universidade Mackenzie. Diretora do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública) •• Luciana Cordeiro de Souza (Doutora pela Faculdade de Direito da PUC-SP. Professora de Direito Ambiental da Unianchieta) •• Márcia Brandão Carneiro Leão (Mestre e Doutora em Direito Internacional pela USP. Professora de Direito Internacional de Meio Ambiente na Pós-graduação da FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado) •• Márcia Dieguez Leuzinger (Procuradora do Estado do Paraná. Doutora em Direito pela UNB) •• Marcos Ribeiro de Barros (Procurador do Estado de São Paulo) •• Michel Prieur (Diretor Científico do CRIDEU – Doyen Honoraire de Ia Faculte de Droit et dês Sciences Economiques de Limoges. Presidente Adjunto da Comissão de Direito Ambiental da UlCN - França) •• Odete Medauar (Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP. Presidente do CEDAU – Centro de Estudos de Direito Administrativo, Ambiental e Urbanístico) •• Sávio Renato Bittencourt Soares Silva (Promotor de Justiça/RJ, Mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra, Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da PUC-RJ, da FGV-RIO, da FEMPERJ e da EMERJ. Presidente da ABRAMPA) •• Sheila C. Pitombeira (Procuradora de Justiça – Ministério Público do Estado do Ceará. Professora de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade de Fortaleza - CE) •• Solange Teles da Silva (Professora da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Amazonas e da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos) •• Vladimir Garcia Magalhães (Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Ambiental da Universidade Católica de Santos) Redação: Rua Cristóvão Colombo, 43 – 10° andar – São Paulo/SP – CEP 01006-002 Fone/Fax: (11) 3104-2819 AS COTAS RACIAIS PARA ACESSO À EDUCAÇÃO SUPERIOR EM INSTITUIÇõES PÚBLICAS DE ENSINO NO BRASIL: ESTUDOS SOB UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR Fernando Gaburri1 RESUMO O presente artigo tem o propósito de debater temas relevantes e atuais sobre as cotas para ingresso de grupos vulneráveis em instituições públicas de ensino superior. O estudo leva em consideração a situação de vulnerabilidade em razão da pigmentação da pele, da situação socioeconômica e da pertença à etnia indígena. O enfoque da matéria central seguirá as determinações constitucionais brasileiras, dentre as quais citam-se o princípio da igualdade material e da autonomia universitária, bem como as recentes inovações legislativas levadas a cabo pela Lei Federal n. 12.711, de 29.08.2012 e do Decreto do Poder Executivo Federal n. 7.824, de 11.10.2012. Também serão levados em consideração os recentes pronunciamentos e entendimentos do Supremo Tribunal Federal acerca das cotas para ingresso nas universidades. 1 Mestre em direito civil comparado pela PUC/SP e doutorando em direitos humanos pela USP; Diretor Nacional do Núcleo de Estudos dos Direitos da Pessoa com deficiência do IBAP; Professor de direito civil da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN e do Centro Universitário do Rio Grande do Norte – Uni-RN; Procurador do Município do Natal/RN. 93 Revista de Direitos Difusos Após debatidos e enfrentados os principais pontos sobre o assunto, chegar-se-á à conclusão de que as cotas, em si mesmas, são constitucionais, embora a inovação da Lei n. 12.711 de 2012 possa interferir na autonomia universitária. Palavras-chave: Educação. Grupos Vulneráveis – Cotas para Ingresso em Instituições Públicas de Ensino Superior. Autonomia Universitária. Constitucionalidade da Reserva de Vagas. RéSUMé Cet article est destiné à étudier des questions pertinentes et actuelles sur les quotas d’entrée des groupes vulnérables dans les établissements publics d’enseignement supérieur. L’étude prend en compte la situation de vulnérabilité en raison de la pigmentation de la peau, le statut socioéconomique et l’appartenance à un groupe ethnique indigène. La mise au point de la question centrale suivra les décisions constitutionnelles brésiliennes, parmi qui comprennent le principe de l’égalité et de l’autonomie des universités, ainsi que les récentes innovations législatives entreprises par le fédéral Loi no 12 711, 29.08.2012 et le fédéral fédéral décret exécutif no 7 824, 11.10.2012. Sont également pris en considération les récentes prises de position et les interprétations de la Cour suprême concernant le reserve d’admission dans les universités. Après avoir discuté et abordé les points principaux sur le sujet, viendra à la conclusion que Le reserve, em elle-même, est constitutionnelle, même si l’innovation de la loi n. 12 711 2012 peut interférer avec l’autonomie des universités. Mots Clés: L’éducation. Reserve D’entrée des Groupes Vulnérables Dans les Établissements Publics D’enseignement Supérieur. Autonomie des Universités. Constitutionnalité des Reserves. INTRODUÇÃO O presente artigo tem o propósito de analisar a questão da constitucionalidade das cotas raciais para ingresso de minorias em instituições públicas de ensino superior, o que será feito por meio de um estudo interdisciplinar entre o direito e alguns ramos das ciências humanas, como a sociologia, filosofia e antropologia. 94 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 Durante os anos 80 e 90 o conhecimento de campos vizinhos do direito e sociedade vem adotando menor formalismo e mais rica interpretação, aproximando a vida social do direito, levando a um resultado de maior efetividade, com uma menor instrumentalidade. Na linha da interdisciplinaridade, documentos de humanidades, estudos interpretativos sociolegais e antropologia legal constituem, primariamente, o corpo dos estudos culturais legais.2 O estudo cultural do direito é uma atividade interdisciplinar, envolvendo sociólogos, antropólogos, conhecimentos literários e de acadêmicos de direito. Isto traça, nitidamente, a distinção entre o estudo cultural e o tradicional conhecimento jurídico. Neste diapasão, na coleção Law Histories, o editor Paul Gewirtz afirma que livros tradicionais de direito tratam-no como um conjunto de regras e obrigações sociais. O livro Histórias do Direito, diferentemente, encara o direito não como regras e obrigações, mas como histórias, explanações, performances e mudanças linguísticas – como narrativas e retórica.3 1. A DICOTOMIA OCIDENTE VERSOS RESTO A dicotomia West and rest pode ser concebida em alguns sentidos, como a) no de permitir caracterizar e classificar sociedades em diferentes categorias; b) de uma imagem que condensa diferentes e variadas características (diferentes sociedades, culturas, povos e lugares); c) modelo de comparação, que permite observar como as diversas sociedades assemelham-se, ou diferenciam-se, umas das outras: as sociedades do rest são consideradas como fechadas, ou distantes ou não pertencente às sociedades do West, o que permite explicar certas distinções de valores (por exemplo, West adjetiva-se como desenvolvido, bom, desejável, e non-west adjetiva-se como subdesenvolvido, ruim, indesejável).4 A América foi o primeiro espaço constitutivo de um novo padrão de poder de vocação mundial. A codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados deu-se com base na ideia de raça, vale dizer, de uma suposta diferença biológica que colocava uns em situação 2 COOMBE, Rosemary. Is there a Cultural Studies of Law? IN: MILLER, Toby (Ed.). A companion to Cultural Studies. Cambridge: Basil Blackwell, 2001. p. 36. 3 COOMBE, Rosemary. Is there a Cultural Studies of Law?. Cit., p. 37. 4 HALL, Stuart. The West and the rest: discourse and Power. disponível em: www. colorado.edu/.../HallWest&Rest.pdf Acesso em 05.08.2012. p. 186. 95 Revista de Direitos Difusos de inferioridade em relação a outros, asssumida como o principal elemento fundante das relações de dominação que a conquista imporia.5 No período colonial a drenagem de renda e a monopolização do mercado de consumo era mais ou menos elevada, quer se tenha por base o ciclo do açúcar (drenagem quase que total) ou o do ouro (um pouco menor) e do café (ainda mais reduzida). O sistema monopolista cria uma legião de pessoas subordinadas às vigentes estruturas econômicas, porque não teriam outra alternativa a não ser vincularem-se à atividade dominante em cada período. Como a inexistência de fluxo de renda ligava-se ao desistímulo do empreendedorismo, a única alternativa remanescente para a ascensão social seria algum tipo de educação, a ser buscada na Europa (excluídos os escravos e servis). Sem educação não poderia haver ascensão social, nem a consequente formação de renda, o que impossibilitava a formação de uma classe média sólida com acesso à educação e à informação (era uma estrutura social com topo e base, mas sem parcelas intermediárias).6 A falta de acesso à terra, à educação e à distribuição de renda tornava o trabalhador escravo sempre dependente. Esses péssimos padrões de distribuição de renda traduzir-se-ão em pobreza para os descendentes de servis, negros e indígenas, de tal modo que exclusão social e discriminação racial não mais se dissociariam, provocando marginalização e dificuldade de ascensão social a imensa parcela da população.7 De fato, antes da II Guerra Mundial, o racismo ao redor do mundo era socialmente aceito, politicamente apoiado, economicamente suportado, intelectualmente justificado e legalmente tolerado.8 Embora formalmente extinto, o racismo faz-se sentir ainda nos tempos atuais. A mídia televisada seria, talvez, uma das grandes colaboradoras para a manutenção da injustiça, já que os negros são representados como criminosos, prostitutas, criadas, traficantes; raramente aparecem em papéis de autoridades, de glamour ou virtude. Essa 5 QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. In: LANDER [Comp.]. La Colonialidad del Saber: Eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 202. 6 SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa; RIBEIRO, Ivan. Concentração, estruturas e desigualdade: as origens coloniais da pobreza e da má distribuição de renda. São Paulo: Idcid, 2006. p. 45-46. 7 SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa; RIBEIRO, Ivan. Concentração, estruturas e desigualdade: as origens coloniais da pobreza e da má distribuição de renda. Cit., p. 49. 8 KYMLICKA, Will. Multicultural Odysseys. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 89. 96 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 estereotipagem não se dá apenas na distribuição material, mas também na imagem cultural.9 O processo de mudança desses paradigmas, no sentido de se construir um conhecimento por meio do qual a história e a cultura dos negros sejam valorizadas e sua autoestima aumentada, iniciar-se-ia, talvez, com seu ingresso nas universidades, possibilitando o estabelecimento de uma relação direta entre a implementação do sistema de cotas e a alteração do conhecimento tradicionalmente produzido e transmitido pelas instituições de ensino e pesquisa.10 2. DIREITO À EDUCAÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Desde a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, de 1789, já se externava a preocupação com o direito à educação. No preâmbulo daquele documento já se ostilizava a ignorância, a saber: “Les Représentants du Peuple Français, constitués en Assemblée nationale, considérant que l’ignorance, l’oubli ou le mépris des droits de l’homme sont les seules causes des malheurs publics et de la corruption des Gouvernements, ont résolu d’exposer, dans une Déclaration solennelle, les droits naturels, inaliénables et sacrés de l’homme [...]”11 Na mesma linha se posicionou a Declaração Jacobina, de 1793, em cujo art. 22 podia se encontrar a seguinte disposição: “Article 22. L’instruction est le besoin de tous. La société doit favoriser de tout son pouvoir les progrès de la raison publique, et mettre l’instruction à la portée de tous les citoyens.”12 Ainda valendo-se de textos franceses, a Constituição de 1848, em duas oportunidades, referia-se ao direito à educação, em seus arts. 9º e 13. 9 YOUNG, Iris Marion. Structural Injustice and the Politics of Difference. In: LENZ, Günter H; DALLMANN, Antje [Orgs.]. Justice, Governance, Cosmopolitanism, and the Politics of Difference: reconfigurations in a Transnational World. Berlin: Humboldt-Universität, 2007. p. 20. 10 SANTOS, Gislene Aparecida dos. Reconhecimento, utopia, distopia: os sentidos da política de cotas raciais. São Paulo: Annablume, 2012. p. 145. 11 “Os representantes do povo francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem [...]” (Tradução livre). 12 “Artigo 22 – A instrução é a necessidade de todos. A sociedade deve favorecer, com todas as suas forças, os progressos da razão pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.” (Tradução livre). 97 Revista de Direitos Difusos A Declaração Universal dos Direitos Humanos contemplou o direito à educação tanto em sua forma clássica, individualista, como também segundo sua função social, como se infere da alínea 2, de seu art. 26 a seguir transcrito: “2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.” Em 1960 foi celebrada pela UNESCO a convenção sobre a luta contra a discriminação na educação, aprovada internamente pelo Decreto Legislativo n. 40 de 1967 e ratificada pelo Brasil pelo Decreto n. 63.223, de 06.07.1968. Segundo Erick Santos13, é a mais antiga norma internacional concernente, especificamente, ao direito à educação e, passado quase meio século de sua vigência interna no Brasil, a maior parte de seus dispositivos permanece atual e aplicável aos problemas educacionais. Em seguida veio o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, internalizado pelo Brasil mediante o Decreto n. 591, de 06.07.1992, cujo art. 13 determina que os Estados-partes reconhecem o direito de toda pessoa à educação; concordam que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana; que a educação deverá capacitar a todos a participarem efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais, étnicos ou religiosos. Em 1974 foi realizada a Conferência Geral da Organização Geral das Nações Unidas, quando resultou a Recomendação sobre a Educação para a Compreensão, a Cooperação e a Paz Internacional e a Educação relativa aos Direitos Humanos e às Liberdades Fundamentais. Em 1989 foi aprovada a Convenção sobre os Direitos da Criança e em 1990, por ocasião da Conferência Mundial da Tailândia, a Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Essa Declaração, ao reclamar a interveniência da sociedade, no tocante aos suportes para a educação, evidencia o espírito participativo, que implica no reconhecimento de 13 SANTOS, Erick. A educação especial em face da Convenção da UNESCO contra a discriminação no ensino. In: RANIERI, Nina [Coord.]. Direito à educação: igualdade e discriminação no ensino. São Paulo: EDUSP, 2010. p. 213. 98 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 que não há como atribuir isoladamente ao Estado a responsabilidade prioritária na prestação da educação.14 A esse respeito, Mônica Herman S. Caggiano15 observa que: “O campo da educação, portanto, sob forte influência do impacto participativo, passa a demandar ações concretas de índole coletiva direcionadas à garantia de melhores condições para o aprendizado. E, para tanto, são convocadas todas as forças sociais. Sob essa nova roupagem, especial atenção é atribuída ao papel desempenhado pelos educadores e pela família. A instrução e o preparo desses representa fator de realce, que não pode ser ignorado, conduzindo a sociedade a um repensar coletivo quanto à garantia de meios adequados a oferecer um nível de ensino compatível com as exigências do século XXI e, notadamente, com as recomendações da ONU que já anteviam os desafios desses novos tempos.” Com base nos documentos acima mencionados é possível apresentar uma primeira conclusão, de que a educação, como direito humano, não pode ser vista como caridade, nem como uma commodity cuja distribuição é determinada pelo mercado, mas como uma prerrogativa especialmente forte que os indivíduos possuem como uma questão de direito. E como prerrogativa, o direito à educação reveste-se do atributo da justiciabilidade, vale dizer, da possibilidade de ser invocado perante o Poder Judiciário (ou outro órgão com funções análogas) e aplicado pelos juizes em benefício de seus titulares.16 3. DIREITO À EDUCAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 A atual Constituição afirma a educação como direito social de todos em seu art. 6º, fazendo com que figure como direito civil e político e dever do Estado, da família e da sociedade, nos arts. 205 a 214. Sob sua égide foi aprovada a Lei n. 9.394, de 20.12.1996, segunda e atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira. A Constituição Federal abre o Capítulo III de seu Título VIII com a seguinte disposição: 14 CAGGIANO, Mônica Herman S. Educaçção. Direito fundamental. In: RANIERI, Nina [Coord.]. Direito à educação. São Paulo: EDUSP, 2009. p. 27-28. 15 CAGGIANO, Mônica Herman S. A educação. Direito fundamental. In: RANIERI, Nina. Direito à educação. Cit., p. 28. 16 PANNUNZIO, Eduardo. O Poder Judiciário e o direito à educação. In: RANIERI, Nina [Coord.]. Direito à educação: aspectos fundamentais. Cit., p. 63-65. 99 Revista de Direitos Difusos “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Após observar os avanços do direito à educação na Constituição Federal de 1988 em relação às ordens constitucionais anteriores, Nina Ranieri17 anota que essa proteção produz importantes consequências jurídicas e políticas, que podem ser identificadas, pelo menos, em dois principais aspectos: a) no concernente ao pacto federativo, no qual se instala uma forma de cooperação efetiva e eficaz no campo educacional. Assim 18 é que o art. 208, I e § 1º , da Constituição, preveem a obrigatoriedade do ensino fundamental e seu inciso II19 a universalização progressiva do ensino médio, o que vem complementado pela norma de colaboração entre União, Estados e Municípios, nos termos do art. 21120. O mecanismo adequado para o atingimento desse desiderato é a vinculação de receitas provenientes de impostos (algo excepcional no sistema tributário brasileiro, já que impostos são tributos cuja receita não é vinculada) nos termos do caput do art. 21221. 17 RANIERI, Nina. Os Estados e o direito à educação na Constituição de 1988: comentários acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. in: RANIERI, Nina [Coord]. Direito à educação. Cit., p. 39. 18“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...] § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.” 19 “Art. 208 [...] II - progressiva universalização do ensino médio gratuito”. 20 “Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino. § 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios; § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. § 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. § 5º A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular.” 21 “Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita 100 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 b) a afirmação democrática do direito à educação, que pressupõe a possibilidade de acesso aos diversos níveis da educação formal àqueles que preencham os requisitos legais para tanto previamente estabelecidos. 4. AS COTAS PARA ACESSO DE MINORIAS AO ENSINO PÚBLICO UNIVERSITÁRIO E A LEI FEDERAL 12.711/2012 Na busca de uma igualdade muito mais material do que formal, os Poderes Legislativo e Executivo vêm se preocupando em estabelecer critérios diferenciados para o acesso de grupos vulneráveis à educação, frente à insuficiência dos critérios tradicionais na garantia daquele amplo acesso. Nesta linha, o Poder Legislativo, por meio do Projeto de Lei n. 73/99 adotou, pela primeira vez, medidas de inclusão, propondo reserva de 50% das vagas em universidades federais e estaduais. O Projeto de Lei n. 3.627/2004, já arquivado, versava sobre reserva de vagas para ingresso em instituições públicas federais de ensino de egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas. No âmbito do Poder Executivo, destaca-se a Universidade Federal de Brasília – UnB, como a primeira instituição federal de ensino a aprovar reserva de vagas, muito embora não o tenha feito por lei, mas por ato administrativo de 2003. Essa ação afirmativa baseia-se no critério racial e étnico.22 Em 2004 a Universidade Federal da Bahia – UFBA, também por ato administrativo, instituiu política de cotas combinando os critérios de raça e de proveniência do ensino médio. Em 2004, a Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, instituiu um sistema de cotas para autodeclarados negros e indígenas, que tenham cursado ensino médio em escola pública. A diferença das demais universidades é que a Unifesp criou vagas adicionais para esses candidatos, ao invés de fazê-los concorrer nas vagas já existentes, destinadas à ampla concorrência. resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.” 22 Em relação à medida inclusiva adotada pela UnB, o Partido Democratas ajuizou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – n. 186/DF, questionando a reserva de 20% das vagas oferecidas no vestibular daquela instituição para candidatos negros. 101 Revista de Direitos Difusos Daí por diante, inúmeras instituições públicas de ensino, federais e estaduais, aderiram, por atos administrativos próprios, o sistema de cotas para ingresso de estudantes, na quase totalidade dos casos, provenientes de escolas públicas, de raça negra ou de etnia indígena. Com a vigência da Lei n. 12.711, de 29.08.2012, publicada no Diário Oficial da União de 30.08.2012, com cláusula de vigência imediata23, houve uma uniformização dos critérios de acesso às instituições federais de ensino, de modo que causaria estranheza a convivência da Lei Federal com as diversas resoluções aprovadas por cada universidade federal, pois, seguramente, os critérios eleitos pela administração de cada uma daquelas instituições não coincidirão com os adotados pela nova Lei. De outro lado, embora a uniformização possa sair prejudicada, não se pode olvidar que as universidades públicas são dotadas de autonomia nos termos do art. 20724 da Constituição e, talvez, nesta estaria compreendido o poder-dever de aprovar ações afirmativas por meio de resoluções, pois estas atenderiam melhor do que uma lei genérica, às especificidades da região em que a instituição está localizada. Ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 186, o Ministro Marco Aurélio, posicionando-se favoravelmente, considerou que a prática das ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras estaria baseada em diversos princípios e regras constitucionais; que a implementação de ação afirmativa por ato administrativo de cada universidade pública decorreria da autonomia universitária prevista no caput do art. 207 da Constituição. Neste mesmo sentido o Supremo Tribunal Federal se pronunciou ao apreciar o Recurso Extraordinário n. 597285/RS, rechaçando o argumento de ausência de lei formal autorizadora da ação afirmativa de reserva de vagas levada a cabo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS, ao fundamento de que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei n. 9.394, de 20.121996, por seu art. 5125, deixaria para as universidades a fixação dos critérios a serem utilizados na seleção de estudantes.26 23 “Art. 9º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” 24 “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” 25 “Art. 51. As instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino.” 26 Conferir informativo n. 665, disponível em: HTTP://www.stf.jus.br. Acesso em 25.09.2012. 102 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 Assim sendo, a constitucionalidade da Lei Federal n. 12.711/2012 é duvidosa, não pelo conteúdo da ação afirmativa que traz, mas talvez por malferir o princípio da autonomia universitária das instituições federais de ensino que, a partir de 30.08.2012 não mais poderiam continuar praticando seus sistemas próprios de ações afirmativas – muito mais condizentes com as especificidades regionais do campo de abrangência de cada instituição – pela razão mesma de a matéria ter sido unificada no âmbito federal. 4.1. AS COTAS NAS INSTITUIÇõES FEDERAIS DE ENSINO Em âmbito federal, com a superveniência da Lei n. 12.711, de 29.08.2012, regulamentada pelo Decreto n. 7.824, de 11.10.2012, a matéria restou uniformizada. Pelo art. 1º da Lei, as instituições federais de ensino reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por cada turno e curso, o mínimo de 50% das vagas ofertadas para estudantes que tenham cursado, integralmente, o ensino médio em escolas públicas27. Assim, a exemplo de uma universidade federal que disponibiliza 40 vagas para o curso de direito no período noturno, deve-se fazer uma cisão das vagas ofertadas, sendo 20 destinadas à ampla concorrência e 20 aos egressos de escolas públicas. Deixadas de lado as vagas da ampla concorrência e dirigindo a atenção às Vagas reservadas, o parágrafo único do art. 1º determina que dessas 20 vagas hipotéticas a metade (ou seja, 10 vagas), deve ser destinada a estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. As outras 10 vagas da porção de que trata o caput do art. 1º (ou seja, apenas considerando o universo das vagas reservadas) serão preenchidas por egressos de escolas públicas, qualquer que seja a renda familiar. O art. 3º da Lei traz um complicador, pois vale-se daquele mesmo universo do art. 1º para destinar as vagas reservadas a outras classes de estudantes, que podem ou não ser coincidentes com a de egressos de escolas públicas. Pelo art. 3º, em cada instituição federal de ensino superior as vagas reservadas para ingresso na graduação serão preenchidas, 27 Pelo disposto no parágrafo único do art. 4º do Decreto n. 7.824/2012, não poderão concorrer às vagas reservadas os estudantes que, em algum momento, tenham cursado parte do ensino fundamental ou médio em escolas particulares. . 103 Revista de Direitos Difusos por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual de pretos, pardos e indígenas da população da unidade da federação onde está instalada a instituição, com base no último senso do IBGE. O parágrafo único do art. 3º determina que no caso de não preenchimento das vagas por pretos, pardos e indígenas, as remanescentes (considerando-se apenas o universo das vagas reservadas) serão preenchidas pelos estudantes tratados no art. 1º da Lei, ou seja, pelos egressos de escolas públicas. Ao que parece, a Lei buscou priorizar os pretos, pardos e indígenas, de sorte que o art. 3º deveria estar topograficamente antes do art. 1º. Em outras palavras, se sobrarem vagas após chamados os pretos, pardos e indígenas, serão convocados os egressos de escolas públicas, sendo que destes, a metade das vagas remanescentes serão destinadas aos estudantes oriundos de famílias de baixa renda (assim consideradas aquelas com 1,5 salários mínimos per capita, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei e do art. 2º, I, do Decreto) e, a outra metade das vagas remanescentes será destinada aos egressos de escolas públicas, qualquer que seja a renda familiar. Esquematizando, para aquela universidade federal hipotética que oferece 40 vagas para o curso noturno de direito, cuja proporção de pretos, pardos e indígenas no estado federado em que está inserida seja de 50%, as vagas serão assim distribuídas: a) 20 vagas para a ampla concorrência; b) 20 vagas reservadas que serão assim distribuídas: b.1: 10 vagas (50%, que é a proporção de pretos, pardos e indígenas naquele estado) destinadas aos inscritos pretos, pardos e indígenas; b.2) das 10 remanescentes 5 vagas serão destinadas a estudantes de baixa renda que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas; b.3) as demais 5 vagas serão destinadas a estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escola pública, qualquer que seja a renda familiar. O art. 2º da Lei 28, que elegera o método da meritocracia unicamente para a seleção dos egressos de escolas públicas (portanto deixando 28 “Art. 2º As universidades públicas deverão selecionar os alunos advindos do ensino médio em escolas públicas tendo como base o Coeficiente de Rendimento (CR), obtido por meio de média aritmética das notas ou menções obtidas no período, considerando-se o currículo comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação. Parágrafo único. As instituições privadas de ensino superior poderão adotar o procedimento descrito no caput deste artigo em seus exames de ingresso.”” 104 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 os pretos, pardos e indígenas de fora desse critério) pfora vetado pela Presidenta da República, sob o fundamento de que: “O Coeficiente de Rendimento, formado a partir das notas atribuídas ao longo do ensino médio, não constitui critério adequado para avaliar os estudantes, uma vez que não se baseia em exame padronizado comum a todos os candidatos e não segue parâmetros uniformes para a atribuição de nota.” Procurando demonstrar que essa política de cotas trata-se de uma medida compensatória, e não estrutural, o art. 10 determina que, no prazo de 10 anos da vigência da Lei, o Poder Executivo promoverá a revisão do programa especial para o acesso, às instituições federais superior de ensino, de estudantes pretos, pardos e indígenas e dos egressos de escolas públicas. O artigo causa espécie. Ora, de que vale uma revisão operada pelo Poder Executivo se a Lei é atribuição do Poder Legislativo? Talvez o art. 10 pretenda que o Poder Executivo, no decorrer de 10 anos, envie ao Poder Legislativo relatórios sugestivos de manutenção, ou alteração do texto legal vigente29. E ao Poder Legislativo, autônomo que é em relação ao Executivo nos termos do art. 2º30 da Constituição, será facultado atender, ou não, àquela singela sugestão, mediante edição de nova lei. Por fim, o art. 8º da Lei e o art. 8º do Decreto determinam que a implementação da reserva de vagas se dê paulatinamente, de modo que no primeiro ano de sua vigência apenas a quarta parte das vagas de que trata o art. 1º necessitarão ser reservadas.31 No segundo ano serão reservados 2/4 (a metade) das vagas do caput do art. 1º, no terceiro ano ¾ delas e, finalmente, no quarto ano 4/4 (a totalidade) das vagas do caput do art. 1º, que corresponde a metade da totalidade das vagas oferecidas. 29 O Decreto parece caminhar nesse sentido, ao criar um órgão denominado de Comitê de Acompanhamento e Avaliação das Reservas de Vagas nas Instituições Federais de Educação Superior e de Ensino Técnico de Nível Médio. O art. 7º do Decreto determina que: “Art. 7º O Comitê de que trata o art. 6o encaminhará aos Ministros de Estado da Educação e Chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, anualmente, relatório de avaliação da implementação das reservas de vagas de que trata este Decreto. 30 “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” 31 Se o art. 1º determina que a metade das vagas sejam reservadas, e se o art. 8º faculta às instituições reservarem apenas 25% daquela metade do art. 1º a cada ano, apenas 25% (ou seja, a quarta parte) da totalidade das vagas oferecidas serão necessariamente reservadas no primeiro ano de vigência da Lei. 105 Revista de Direitos Difusos Se na aplicação dos percentuais acima referidos resultar em número fracionado, o arredondamento dar-se-á para o número inteiro imediatamente subseqüente, devendo ser assegurada, no mínimo, uma vaga em decorrência da reserva de que tratam a Lei e o Decreto. Nestes termos determina o art. 5º do Decreto: “Art. 5º Os editais dos concursos seletivos das instituições federais de educação de que trata este Decreto indicarão, de forma discriminada, por curso e turno, o número de vagas reservadas. § 1º Sempre que a aplicação dos percentuais para a apuração da reserva de vagas de que trata este Decreto implicar resultados com decimais, será adotado o número inteiro imediatamente superior. § 2º Deverá ser assegurada a reserva de, no mínimo, uma vaga em decorrência da aplicação do inciso II do caput do art. 2o e do inciso II do caput do art. 3o. § 3º Sem prejuízo do disposto neste Decreto, as instituições federais de educação poderão, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir reservas de vagas suplementares ou de outra modalidade.” 4.2. AS COTAS NAS INSTITUIÇõES ESTADUAIS DE ENSINO Em relação às instituições estaduais de ensino a Lei n. 12.711 de 2012 não tem incidência, de modo que cada estado federado é autônomo para legislar sobre o assunto, de acordo com as especificidades regionais ou, se prevalecente a tese da autonomia universitária, cada universidade estadual, por ato administrativo próprio, é autônoma para disciplinar sua ação afirmativa por meio de cotas. No Estado do Rio de Janeiro a reserva de vagas se deu mediante a promulgação da Lei n. 4.151, de 04.09.2003 (ora revogada pela Lei n. 5.346, de 11.12.200832), que para ingresso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, no mínimo 45% das vagas oferecidas no exame vestibular são reservadas a alunos negros, egressos de escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro e candidatos com deficiência e integrantes de minorias étnicas. Em 2004 a Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, instituiu interessante Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social – 32 A constitucionalidade da Lei Fluminense está sendo questionada pela ADI n. 3.197/RJ, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – COFENEN. 106 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 PAAIS, sem previsão de cotas, destinado aos candidatos autodeclarados negros e indígenas. O PAAIS consiste na atribuição de uma pontuação adicional no vestibular, proporcionalmente ao desempenho obtido nas provas. Nesta linha, a Universidade de São Paulo – USP instituiu em 2007 um programa de inclusão – INCLUSP, que conjuga a inclusão social com o mérito, com base na aplicação de uma bonificação proporcional à nota obtida pelo candidato Embora a UNESP não conte com um programa de cotas, sua ação afirmativa é no sentido de manter um cursinho prevestibular gratuito para candidatos egressos da rede pública, que os prepara para ingresso em instituições públicas e privadas de ensino. 4.3. O ARGUMENTO COMPENSATóRIO JUSTIFICADOR DAS AÇõES AFIRMATIVAS Os críticos do argumento compensatório, como é o caso das ações afirmativas para ingresso de grupos vulneráveis ao ensino público superior, alegam que os beneficiados não são necessariamente aqueles que sofreram a discriminação, além do que os que “pagam” pela compensação nem sempre seriam os responsáveis pelos erros que estão sendo corrigidos. É verdadeiro que muitos dos beneficiários das ações afirmativas podem ser estudantes de minorias de classe média, que não passaram por dificuldades que afligem as camadas mais pobres da população. É por isso que os críticos das políticas compensatórias afirmam que se a questão for a de ajudar pessoas em desvantagens, que as políticas compensatórias baseiem-se em critérios sociais e não na raça.33 O critério de identificação dos beneficiários é realmente mais complexo de se resolver do que o de uma eventual responsabilização de quem não participou do sistema discriminatório. A Constituição Federal resolve a segunda questão Em termos diretos e satisfatórios ao determinar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e, ao tratar do direito ao ambiente ecologicamente sadio e equilibrado, não exita em afirmar que é dever da geração presente defendê-lo e preservá-lo para as futuras gerações. Ou seja, a geração presente situa-se em posição de credora das gerações passadas e, ao mesmo tempo, de devedora em relação às futuras. Daí conclui-se pela falaciosidade e fragilidade do argumento de que “inocentes estariam a pagar pelos pecadores”. 33 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 212. 107 Revista de Direitos Difusos De outro lado, talvez não haja relação entre à necessidade de o beneficiário da ação afirmativa ter sofrido direta ou pessoalmente a discriminação e ter sido contemplado com uma vaga em universidade. Mas para tanto a ação afirmativa deve ser vista não unicamente como uma política de recompensa, mas também como um meio de atingir um objetivo socialmente mais importante.34 Como observa Nina Ranieri35, as decisões prolatadas nos casos das cotas não representam a jurisprudência atual da Corte. Tratam-se, ao contrário, de decisões extraordinárias, de natureza política, fortemente influenciadas pela injustiça da exclusão social e do preconceito racial, religioso, étnico e econômico, a ressaltar a natureza dinâmica da Constituição, que expressa o seu significado tanto pela evolução interpretativa como pela pressão dos eventos. E prova disso foi a realização de audiência pública em março de 2010, pelo Ministro Relator da ADPF n. 186/DF e do RE n. 597.285/RS. No julgamento da ADPF n. 186/DF, destaca-se o seguinte trecho: “Por sua vez, no que toca à reserva de vagas ou ao estabelecimento de cotas, entendeu-se que a primeira não seria estranha à Constituição, nos termos do art. 37, VIII. Afirmou-se, de igual maneira, que as políticas de ação afirmativa não configurariam meras concessões do Estado, mas deveres extraídos dos princípios constitucionais. Assim, as cotas encontrariam amparo na Constituição”.36 5. O DISCURSO SOBRE A VALIDADE DO CRITéRIO RACIAL PARA CONCRETIZAÇÃO DE POLíTICAS DE COTAS Segundo Stuart Hall37, discurso seria um modo de falar, pensar ou de representar um dado assunto ou tópico sobre o qual produz um significativo conhecimento, que influencia as práticas sociais, com reais consequências e efeitos. Discursos não são redutíveis a interesses de 34 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Cit., p. 213. 35 RANIERI, Nina [Coord.]. Direito à educação: igualdade e discriminação no ensino. Cit., p. 38. 36 Trecho da ADPF n. 186/DF publicado no informativo n. 663 do STF, disponível em HTTP://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo663. htm#Políticas de ação afirmativa e reserva de vagas em universidades públicas - 1. Acesso: 04.06.2012. 37 HALL, Stuart. The West and the rest: discourse and Power. Cit., p. 205. 108 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 classes, embora sempre opere em relação de força (são parte do modo como a força circula e é contestada). A questão se um discurso é verdadeiro ou falso é menos importante do que se ele é efetivo na prática. Quando o discurso é efetivo (organizando e regulando relações de força) é chamado de regime da verdade. Os grupos racializados são oprimidos pela exploração capitalista, resultando em um mercado de trabalho segmentado tendente a reservar trabalhos menos importantes, mais mal remunerados.38 Segundo Nina Ranieri39, de um modo geral, a legislação e os projetos de lei sobre a matéria adotam variáveis como renda individual ou familiar, tempo de permanência na escola pública, raça, etnia, cor da pele ou local de residência, para estabelecer o discrimen; e conclui que “Outros diversos atos legislativos e normativos disciplinam, direta ou indiretamente, matéria conexa, sendo a (sic) idéia de diversidade ou de igualdade racial marcada, também nesses casos, como indicativa,, ou relativa» a indivíduos de cor negra, a denotar forte preocupação com o tema da inclusão.” Ao rever parcialmente sua posição contrária às cotas educacionais, Nina Ranieri40 ressalva sua discordância em relação ao critério racial como elemento determinador das ações afirmativas. Explica que apesar da inegável desigualdade social entre brancos e negros e da real existência de preconceito em relação aos indivíduos de cor negra41, não podem ser negados os benefícios das ações afirmativas àqueles em situação de desvantagem educacional, devido a causas socioeconômicas, independentemente da cor, etnia, procedência, religião, cultura ou local de moradia. Um outro fator que, normalmente, coloca em cheque a distribuição de vagas pelo critério racial é o de a pessoa, após beneficiada por esse direito, não se apresentar à sociedade como cotista. Em sua tese de livre-docência, Gislene Aparecida dos Santos42 constatou que muitos alunos por ela entrevistados afirmavam que grande quantidade 38 YOUNG, Iris Marion. Structural Injustice and the Politics of Difference. Cit., p. 51. 39 RANIERI, Nina [Coord.]. Direito à educação: igualdade e discriminação no ensino. Cit., p. 42. 40 RANIERI, Nina [Coord.]. Direito a educação: igualdade e discriminação no ensino. Cit., p. 48-49. 41 Tecnicamente, não se poderia falar em cor negra, mas em raça negra, pois cores seriam, por exemplo, pretos e pardos. 42 SANTOS, Gislene Aparecida dos. Reconhecimento, utopia, distopia: os sentidos da política de cotas raciais. Cit., p. 83. 109 Revista de Direitos Difusos de estudantes cotistas, após ingressarem em uma universidade pública por meio das cotas, negavam sua forma de acesso, haja vista que não se tornam públicos os dados sobre quem ingressou pelas cotas ou pela ampla concorrência. 6. CONCLUSÃO Décadas após a II Guerra Mundial a “revolução dos direitos humanos” desencadeou uma gama de ideias acerca de igualdade étnica e racial, uma série de movimentos contestando “sistemas de hierarquia étnico-racial, que preenchem a narrativa dos esforços contemporâneos pelo multiculturalismo e por direitos de minorias.43 Uma efetiva participação dos negros no processo de formação da vontade política e na elite intelectual do país frearia o processo de imperialismo cultural, que torna “os diferentes” invisíveis. Essa dominação cultural traz a injustiça da insignificante expressividade em comparação com a cultura dominante, que impõe sua experiência e modo de vida social.44 Como bem observa Bhikhu Parekh45, em uma sociedade multicultural, às vezes, é preciso ir mais além para garantir a alguns grupos, ou a indivíduos desses grupos, não só direitos diferentes, mas também direitos adicionais. Se certos grupos foram marginalizados durante muito tempo, carecem da confiança e das oportunidades necessárias para participarem como iguais na sociedade, de modo que, em certos casos, se tenha que conceder-lhes direitos que não estejam ao alcance de outros. À guisa de conclusão, Ronald Dworkin expõe que: Temos, todos nós, inteira razão ao desconfiarmos das classificações por raça. Elas têm sido usadas para negar, em vez de respeitar, o direito à igualdade, e todos nós estamos conscientes da injustiça que daí decorre. Mas se entendermos mal a natureza dessa injustiça, ao não estabelecermos as distinções simples que são necessárias para o seu entendimento, estaremos correndo o risco de cometer ainda mais injustiças. Pode ser que os programas de admissão preferencial não criem, de fato, uma sociedade mais igualitária, pois é possível que não tenham os efeitos imaginados por seus advogados. Essa questão estratégica de43 KYMLICKA, Will. Multicultural Odysseys. Cit., p. 88. 44 YOUNG, Iris Marion. Structural Injustice and the Politics of Difference. Cit., p. 60. 45 PAREKH, Bhikhu. Repensando el multiculturalismo: diversidade cultural y teoria política. Tradução de Sandra Chaparro. Madrid: Istmo, 2005. p. 385. 110 v. 57-58 – Janeiro-Dezembro/2012 veria estar no centro do debate sobre esses programas. Não devemos, porém, corromper esse debate imaginando que tais programas são injustos mesmo quando funcionam. Precisamos ter o cuidado de não usar a Cláusula de Igual Proteção para fraudar a igualdade.46 Portanto, acredita-se que as cotas raciais sejam um mecanismo de reforço ao processo de reconhecimento dos negros como sujeitos de direito, no sentido emprestado ao termo por Axel Honneth47, ou seja, em uma perspectiva intersubjetiva em que se relacionam e se confirmam reciprocamente como pessoas individuadas em uma medida cada vez maior. Essas esferas são o amor, o direito e a solidariedade. REFERÊNCIAS COOMBE, Rosemary. 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Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 369. 47 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: 34, 2003. p. 121. 111 Revista de Direitos Difusos y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. RANIERI, Nina [Coord.]. Direito à educação. São Paulo: EDUSP, 2009. ________. Direito à educação: igualdade e discriminação no ensino. São Paulo: EDUSP, 2010. SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração, Estruturas e Desigualdade: As origens coloniais da pobreza e da má distribuição de renda. São Paulo: Idcid, 2006. SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para Libertar: os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 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