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DEMOCRACIA E LITERATURA NO PRAGMATISMO DE RORTY∗
Tiago Medeiros Araújo1
Instituto Anísio Teixeira (IAT)
RESUMO:
O pragmatismo de Richard Rorty possui como uma das suas peculiaridades o fato de
atribuir plena relevância moral à literatura em detrimento da pretensiosa prescrição
filosófica que põe a moral na linha reta da ética. Uma vez que as descrições filosóficas,
de caráter universal, não são capazes de impelir indivíduos à progressão moral sem
sugerir uma dada concepção política indesejável, Rorty compreende que a literatura,
cujo vocabulário pretende esboçar as faces do particular, atende, melhor do que a própria
filosofia, às nossas demandas éticas. Isso é possível porque as descrições literárias
ambientam os indivíduos sob sua própria condição finita e contingente, o que desdobra a
ampliação da lealdade e a progressão moral, através da menção à dor alheia. Nesse
sentido, uma cultura que herde seu vocabulário moral da literatura pode realizar-se mais
plenamente de modo a promover um maior grau de felicidade e erradicação dos
sofrimentos de seus componentes do que uma cultura cuja orientação moral é fruto da
especulação metafísica. Nesse artigo, abordo esse anverso moral da literatura como
elemento afim aos ideais éticos projetados na configuração democrática liberal.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Literatura; Ética; Rorty.
DEMOCRACY AND LITERATURE ON RORTY’S PRAGMATISM
ABSTRACT:
The pragmatism of Richard Rorty has as one of the unique fact of assigning the full
moral significance of literature rather than the pretentious philosophical requirement that
puts morality in a straight line of ethics. Once the philosophical descriptions of a
universal nature, are not able to push individuals to moral progress without suggesting a
particular political conception undesirable, Rorty understands that literature, whose
vocabulary intends to sketch the faces of a particular answer, rather than the actual
Trabalho fruto das discussões do grupo Poética Pragmática orientadas pelo Prof. Dr. José Crisóstmo de
Souza.
1
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia – Brasil e
Coordenador do Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação do Instituto Anísio Teixeira (IAT),
Salvador, Bahia – Brasil. E-mail - tt_medeiros_ufba@hotmail.com
∗
Democracia e literatura no pragmatismo de Rorty – Tiago Medeiros Araújo.
Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010.
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philosophy, to our ethical demands. This is possible because the literary descriptions
environment the individuals under its own condition finite and contingent, which
doubles the magnification of loyalty and moral progress, in references to the pain of
others. In this sense, a culture that inherits its moral vocabulary of the literature can be
carried out more fully in order to promote a greater degree of happiness and eradication
of the sufferings of its components from a culture whose moral compass is the result of
metaphysical speculation. In this article, I approach this side moral of literature as part
of the moral order designed to ethical ideals in a liberal democratic setting.
KEYS-WORDS: Democracy; Literature; Ethics; Rorty.
1 - Preâmbulo
Com uma carreira promissora dentro da tradição analítica, Rorty seria mais um
dos herdeiros de Carnap, não fosse a sua formação pessoal que lhe inspirou valores
democráticos mais convergentes com o pragmatismo do que com qualquer outra tradição
filosófica. Num curioso movimento de maturação desenvolvido em Trostky e as
orquídeas selvagens2, substituiu o vocabulário filosófico das proposições, do
significado, da referência, da verificação, pelo vocabulário narrativo, de índole
persuasiva, voltado aos interesses civis e privados; substituindo, destarte, o analítico
pelo sintético. O arsenal teórico vigoroso, com o qual elabora seu projeto, chegou a
despertar a atenção de filósofos da estatura de Habermas. Em geral, como crítico da
tradição, atacou os dualismos (platônicos) da filosofia, tentando retirá-la de uma posição
transcultural para trazê-la a uma autoperspectiva intracultural. Todavia – não atuando
estritamente como crítico – a face positiva de sua filosofia reside, sobretudo, na oferta de
possibilidades para autocriação dos indivíduos, para a reorientação do papel da filosofia
e para a reinvenção das instituições políticas democráticas.
Nesse artigo, me concentrarei em duas noções de suma importância em seu
pensamento: a noção de democracia e a de literatura. Como objetivo do trabalho, determe-ei na análise dos dois termos, e na relação que há entre eles na perspectiva
neopragmatista de Rorty. Para tanto, em primeiro lugar, farei considerações sobre a
democracia na maneira em que ele a lê, ou seja, como um arranjo político contingente –
e como forma contingente de vida social –, culminância dos anseios do liberalismo
iluminista; e, posteriormente, sobre a dimensão ética da literatura que vem a congruir
com esse arranjo político.
A despeito do que os filósofos iluministas racionalistas pretendiam, ao esboçar
propostas filosóficas que refletissem a política a partir de uma imagem objetiva da
natureza humana – o que chamaremos de “teoria do si próprio” –, a democracia possui
2
Esse ensaio, que possui um cunho assumidamente autobiográfico, foi publicado na coletânea Philosophy
and social hope. (RORTY.1999 p 3 a p. 20)
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uma prioridade em relação à filosofia. Sua realização na prática não pressupõe uma
teoria que lhe funde ou legitime, conquanto é resultado de movimentos, descrições e
comportamentos impostos no intercurso da história cuja incorporação é perplexamente
contingente. Além disso, sua característica heterogênea e dinâmica, como mencionarei
adiante, não se harmonizaria com uma teoria do si próprio do tipo filosófico tradicional,
posto que tal teoria implica um desenho acabado das aspirações morais dos indivíduos e
culturas, o que sugeriria uma cisão entre as pessoas certas – que respondem a essas
aspirações – e as errados – que lhe negam. A democracia, ao contrário, é a expressão
política calcada na diferença manifesta de indivíduos e culturas, cujo exercício pleno
pressupõe aquiescência à cisão público/privado.
Sem a tarefa de fundamentação, a possibilidade de redescrever as práticas
democráticas é a única missão producente dos filósofos no horizonte da política. A
consideração pela dimensão ética da literatura reflete uma das diretrizes dessa missão,
conquanto reconhece a contingência de nossos vocabulários éticos e conquanto enfoca
no indivíduo, em suas peculiaridades existenciais e formativas, o componente
fundamental do quadro democrático.
Como narrativa sobre pessoas, a literatura é uma opção melhor para a realização
de nossos ideais éticos do que os discursos de natureza filosófica ou religiosa, onde o
que está em jogo é uma Natureza Humana, o Destino do Povo, ou a Vontade de Deus.
Rorty crê que a literatura já tomou a primazia da filosofia na cultura ocidental. Aponta
que esta cultura abandona cada vez mais os resquícios medievais de cunho essencialista
que durante séculos lhe circunscreveram. Trata-se de um discurso onde os indivíduos
formam e desenvolvem seus interesses e valores, reconhecendo a inexistência de um
ponto de vista transcultural e supra-histórico detentor do sentido prático de suas vidas
particulares. A literatura auxilia na redescrição das práticas democráticas ao contribuir
para a própria ampliação da comunidade a um nível de maior adesão social – a ideia, por
exemplo, da justiça como lealdade ampliada (Justice as larger loyalty)3.
Mais detalhadamente, com a literatura é possível uma reformulação no perfil do
indivíduo no que diz respeito a como ele se concebe no convívio com o outro; ela
possibilita uma reconfiguração que engendra uma ampliação da lealdade, de modo a
tornar um de “nós” os indivíduos fora de nosso circulo de identificação. Por esse viés,
podemos imaginar um processo de progressão moral que é justamente a aceitação e
inclusão de indivíduos como membros de uma comunidade de identificação
generalizada, muito fraterno ao que a democracia se propõe a ser.
Contudo, para tornar mais claras, tanto as ideias de democracia e literatura,
quanto a relação de fraternidade entre ambas, esboçarei um mapa com algumas das
3
Esse ensaio, que revela os desdobramentos do pragmatismo deflacionista de Rorty no terreno da ética,
foi publicado na coletânea Philosophy as cultural politics: philosophical papers IV.(RORTY, 2007 p. 4255).
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posições de Rorty, dentre as quais as idéias de ética sem princípios, redescrição e
liberalismo.
2 – Democracia e filosofia
Pode-se dizer que a democracia liberal, tal como Rorty a lê, deve sua origem ao
individualismo europeu, onde os valores principais começaram a ser esboçados desde o
fim da Idade Média e tomaram um melhor acabamento com o iluminismo. O ideal de
emancipação dos pensadores iluministas apontava para uma pálida imagem na qual a
liberdade das pessoas fosse determinadora da realidade política. Em busca dessa
realidade, contudo, a violência revolucionária fundamentou sua prática e muitos
pescoços foram guilhotinados por idealistas políticos radicais – pessoas que acreditavam
que a única forma de se alcançar o bem comum era eliminando os que lhe opunham em
ideias. O reconhecimento do caráter nocivo dessas práticas apontou para uma concepção
política que incorporasse a diferença, a própria contradição como sua característica
primordial (algo que recebe coroamento com Hegel). Tal concepção, poetizada por Walt
Whitman, é o esboço do que abordo aqui sob a alcunha de democracia liberal.
Os valores que a tradição iluminista, ancorada no racionalismo, legou à cultura
ocidental – onde a razão determinaria a essência humana, onde essa essência seria
distribuída em todos os seres humanos e onde a objetividade assume o posto de
horizonte da cultura – pressupõem a hipostasiação do pensamento, ou seja, a reificação
da atitude reflexiva e contemplativa e a assunção do privilégio dessa atitude, tanto na
dimensão cognitiva, quanto na dimensão das instituições e práticas, o que ressalta o
dualismo aparência/realidade. Rorty observa que isso impede a realização das atuais
demandas reivindicadas pela democracia na prática, pois acabam por recorrer a uma
teoria do si próprio4 como delineadora da base da democracia.
O conjunto de valores liberais que constitui o espírito da concepção de
democracia, contudo, realiza-se de modo pleno e satisfatório, ao passo em que
abandonamos os resquícios racionalistas, dualistas, essencialista, próprios do projeto
político filosófico dos pensadores setecentistas, tendo em vista que essas descrições se
desdobraram na negação da diferença e da contradição desejável e realizável na prática
da democracia.
A dissolução dos resquícios substanciais do homem se dá em Rorty como
caudatária de um movimento filosófico mais amplo, condensado na seguinte passagem:
4
Rorty aloca todas as teorias que buscam o fundamento das instituições, práticas e expressões culturais
(no sentido mais amplo do termo cultura) em alguma instância ou entidade que represente a essência ou a
natureza anistórica humana no que chama de “teorias do si próprio”. Essas teorias almejam a
decodificação, a revelação ou o desvelamento da harmonia ou coerência interna ao humano, sugerindo o
desdobramento disso como fundamento da cultura.
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Filósofos tais como Heidegger e Gadamer nos mostraram modos de ver os
seres humanos como completa e absolutamente históricos. Outros filósofos,
tais como Quine e Davidson, esvaeceram a distinção entre verdades
permanentes da razão e verdades temporárias do fato. Psicanalistas
esvaeceram a distinção entre moralidade e prudência. O resultado é a
eliminação da imagem do si próprio comum aos metafísicos gregos, à
teologia cristã e ao racionalismo iluminista: a imagem de um centro natural
a-histórico, o lugar da dignidade humana, envolto por uma periferia acidental
e não-essencial. (RORTY, 1997, p. 236)
A concepção de identidade de Rorty é definida como uma “rede de crenças e
desejos”. Essa abordagem está em plena congruência com o contexto social no qual os
indivíduos estão inseridos, posto que crenças e desejos são postulados no interior de
circunstâncias históricas e culturais específicas. Isso lhe permite vislumbrar uma relação
de derivação para com a realidade plural do contexto contemporâneo ao indivíduo. Uma
relação mesmo inescapável.
Contudo, o problema de se almejar uma teoria que se queira como reveladora do
si próprio como queriam os iluministas (que reivindica uma estabilidade em alguma
categoria do eu), calcada em algum predicado substancializado ou numa essência
genérica, para justificar a democracia (uma realidade política heterogênea e dinâmica) e
direcionar as instituições e práticas que florescem em seu interior, é que esta teoria
jamais poderia englobar os horizontes valorativos discrepantes e contraditórios que a
democracia na prática engloba. A negação de um predicado hipostasiado não é admitida
por tal teoria. O que caracteriza a prioridade da democracia em relação a teorias desse
tipo é a compreensão de que os indivíduos não precisam de essências genéricas ou
predicados gerais compartilháveis universalmente para assegurar e justificar a
preservação da harmonia geral – não porque essa harmonia geral simplesmente dispense
essa justificação, mas porque não há possibilidade de encontrar uma justificativa nãocircular para tanto.
Rorty ilustra a prioridade da democracia em relação à filosofia quando aponta
para uma possível orientação para os filósofos no sentido de que eles
podem desejar desenvolver uma teoria acerca do si próprio humano
conveniente com as instituições que ele ou ela admiram. Mas [em
contrapartida] um tal filósofo não está com isso justificando essas
instituições por referência a premissas mais fundamentais, mas o inverso: ele
ou ela estão fixando primeiramente a política e costurando uma filosofia a
seguir. (idem. P. 238/239).
Costurar uma filosofia sobre uma política já fixada é reconhecer que para falar de
política é tão desnecessário o ponto de vista de Deus quanto a descrição da natureza do
eu. Como o próprio Rorty diz: “Em vista de propósitos da teoria social, nós podemos
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colocar de lado tópicos tais como uma natureza a-histórica do homem, a natureza da
determinação do si próprio, a motivação do comportamento moral e o significado da
vida humana”.(Idem. P. 240). A democracia, ao dispensar uma teoria do si próprio como
sua fundadora, configura-se, propriamente, como o melhor arranjo político para
promoção e instauração dos valores liberais almejados pelos iluministas, embora seu
exercício pleno ainda seja manchado pelos resquícios das pretensões racionalistas. No
que tange à filosofia, Rorty compreende que o seu papel enquanto tradição de exercício
do pensamento é o de oferecer redescrições de quadros comportamentais e de intervir
nos vocabulários utilizados pela cultura, com vistas a promover novas instituições e
práticas (CALDER, 2006). Assim, o instrumento da “redescrição” oportunizaria a
estratégia para emancipar a cultura de seu conteúdo essencialista – conteúdo esse que
dificulta a consecução das metas apontadas pelos valores liberais. O exercício das
redescrições é, por excelência, o de disponibilizar novos tópicos para os que
compartilham um mesmo jogo de linguagem, ou seja, novos candidatos a valores de
verdade – é a ampliação das palavras de nosso vocabulário e de nossos horizontes de
comportamento.
O que a redescrição promove por um ângulo metafilosófico é a possibilidade de
encararmos nossas instituições políticas como contingentes e moldáveis. Além disso, ela
nos mune para uma série de possibilidades novas e multiplicadas para nossa própria
autocriação, de um modo a reconhecermos nossas afinidades com as instituições
contingentes que nos engloba. Ela promove uma maior gama de escolhas para as
realizações pessoais dos membros da cultura.
Com o reconhecimento do caráter contingente das instituições democráticas que
não se adequam a uma concepção fixa e rigorosa do eu, não há fundamento que sustente
a democracia por oposição a outros arranjos políticos – nem mesmo o totalitarismo
fascista. O único argumento em favor da democracia é sua utilidade. Cabe à
configuração política democrática apenas fornecer os meios para ampliação das
possibilidades de escolha dos indivíduos, dado esse que assegura tal utilidade.
A democracia, contudo, é muito mais do que uma aspiração que motiva os
discursos e determina os itens da agenda liberal que terão prioridade. É uma forma de
vida social que deriva sua utilidade da flexibilidade na recepção da diferença de
indivíduos e grupo. Vale ressaltar que a liberdade em si mesma não é pauta para o
pragmatismo de Rorty. Esta seria apenas uma abreviação de diversas práticas e traços de
nossa cultura liberal. Mas vale salientar também que à cultura liberal (no sentido que
Rorty descreve em Contingência, ironia e solidariedade5) cabe um constante esforço
pela contínua emancipação do sofrimento causado pela opressão, ou abuso, de uns
indivíduos sobre outros. Esse sofrimento se traduz na peculiar dor da humilhação, cujo
5
Ainda na introdução dessa obra, Rorty afirma: “Tomo minha definição de ‘liberal’ de Judith Shklar, para
quem liberais são as pessoas que consideram a crueldade a pior coisa que fazemos”. (RORTY. 2004 P.
18)
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expurgo é possível pela redescrição no âmbito moral, o que enfocarei agora, a partir das
considerações sobre uma ética sem princípios.
3 – Acordo político, ética sem princípio e literatura
Em Ethics without principles6, Rorty reivindica o naturalismo de Darwin para
descrever o homem como um animal hábil para adaptação: tanto no que diz respeito às
questões físicas quanto no que diz respeitos às questões éticas. Sustenta sua busca na
ideia de justificação a ser aceita pelo grupo de indivíduos interessados no acordo, como
a marca que distingue os homens dos animais, por oposição à busca dos princípios para
além das aparências de Platão.
Nesse ensaio , vemos que a moral não é hierarquicamente superior à prudência, e
que, aliás, se reduz a ela. O certo não é determinado por um conjunto de máximas
prescritivas derivadas da avaliação filosófica rigorosa de nossa essência humana, mas é,
simplesmente, o que é útil para um determinado público. É a partir do acordo entre
indivíduos e grupos que se engendra o perfil de conduta correta, ou seja, a partir das
deliberações geradas pelo diálogo interessado e não anteriormente a ele – revelada por
iluminação divina ou sagacidade filosófica.
Rorty quer apoiar-se numa ideia naturalista para desprezar os resquícios
metafísicos da ética sustentada num eu (self). Localiza em Annete Bayer e David Hume
(Idem. P. 75/76) ferramentas produtivas para seu intento, pois os lê como propiciadores
da relevância e prioridade dos sentimentos na experiência moral. Numa perspectiva do
tipo humiana, as relações com o outro não são desprovidas de paixão nem identificação,
inclusão e consideração em relação ao outro. Os sentimentos possuem uma relevância
moral na medida em que são eles quem motivam os comportamentos e motivam as
considerações que só depois são formalizadas na esfera do racionalmente recomendável
ou não. Com isso, o que chama um indivíduo para o campo do exercício moral são seus
sentimentos (HUME, 2004). Assim sendo, a filosofia moral, na perspectiva de Rorty,
não é um escrutínio sobre a solidez onde repousam os princípios de nosso ato moral. O
que se pode dizer é que “a filosofia moral assume a forma de narração histórica e
especulação utópica, em vez de busca de princípios”.(RORTY, 2004, p. 114)
O vocabulário moral do “nós”, então, é derivado da nossa sensibilidade natural
não verticalizada e supra-histórica, mas formulada no intercurso de nossas relações
intra-comunitárias. A nossa capacidade de condoermo-nos pela dor alheia é o que
estende o nosso comportamento direcionado à nossa família, lugar onde a alteridade não
subverte a individualidade, a uma comunidade maior de pessoas. É o que amplia a
6
Esse ensaio combina aspectos do pensamento de Stuart Mill, John Dewey, David Hume e Annete Bayer,
tomando como contra-posição a filosofia moral de Kant. Foi publicado na coletânea Philosophy and social
hope (RORTY. 1999 p. 72 – 91)
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lealdade. O sentimento de solidariedade é, nesse sentido, a melhor – porquanto, talvez, a
única – arma para investida em direção à inclusão moral.
É importante frisar que essa concepção ética vinculada aos sentimentos e ao
acordo destrona, numa atitude iconoclasta, a verdade. A verdade, para Rorty, é um termo
utilizado apenas com referência às coisas mais “triviais” e superficialmente objetivas,
em circunstâncias nas quais não se tem conflitos de posições, e onde se consente por
mera intuição. Isso não é o caso no campo das questões práticas de ordem ética e
política. Nesse campo, no que diz respeito a conflitos de interesses e posições, julgar que
uma asserção é verdadeira é julgar que ela foi acordada pelos indivíduos interessados no
debate. É verdadeiro porque se justifica. Desse modo, Rorty reduz o conteúdo do
predicado verdade à justificação. Julgar que há um consenso universal que pode ser
estabelecido, como fruto de uma asserção reveladora e verdadeira, é, para Rorty,
impraticável e, até mesmo, contra-producente. A questão da verdade, então, torna-se a
questão de se falar em acordo, em resposta a demandas que interferem indivíduos e
grupos de um modo prático e contra as quais precisam se mobilizar e proceder. Ou seja,
verdadeiro é o que se justifica para um público específico.
O que essa ética sem princípios, de índole deflacionada, iconoclasta e norteada
pelo acordo tem como anverso político é a própria democracia. Não ter princípio é não
ter um elemento externo ao jogo de linguagem que caracteriza o vocabulário ético em
questão para orientá-lo e motivá-lo. Compreende-se assim que a motivação no interior
das práticas é caudatária da capacidade de enxergarmos os indivíduos envolvidos como
parecidos conosco. Esse processo de ampliação da lealdade é onde localizo o ponto
nevrálgico da relação entre a democracia e a literatura.
No ensaio Para emancipar a nossa cultura, ele diz: “Vejo o progresso moral
como a habilidade imaginativa das pessoas para identificar-se com pessoas com as quais
seus ancestrais não foram capazes de se identificar” (SOUZA, 2005, p. 92/03). Tarefa
essa que manuais de filosofia ou sermões religiosos não conseguiriam executar, uma vez
que funcionam como aparatos intelectuais grandiloquentes que desprezam as
circunstâncias contingentes e os valores que estão envolvidos em qualquer conflito de
ordem política. Todavia, ainda nesse texto, Rorty, fazendo apelo aos sentimentos nas
relações morais, diz:
Se você quer quebrar a xenofobia, um modo prático de fazê-lo é estimular
essa atração emocional, tornando o casamento interétnico algo fácil e
legítimo. Se você não puder, de início, conseguir que aquelas pessoas
próximas a você se casem com aqueles estranhos, você pode ao menos contar
histórias a respeito destes, histórias em que a imaginação substitui as relações
físicas reais. (idem p.93)
Essa sugestão de Rorty aponta para a coesão e harmonia sociais como tarefas a
serem realizadas eminentemente pela iniciativa política, dentro de uma conjuntura
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democrática, uma vez que o que está em jogo é a persuasão para o acordo. Vale notar
ainda que essa sugestão é fraterna à tarefa do romancista, enquanto possuindo um
compromisso com a cultura, uma vez que é no vocabulário da literatura que as
circunstancias particulares e contingentes nas quais os indivíduos são formados
florescem. Rorty precisa ancorar-se em outros recursos intelectuais que não aqueles que
lidam com teorias (como a ciência), dogmas (como a religião), ou idéias (como a
filosofia), e a literatura é o que melhor se insere no interior de seu pensamento para esse
tipo de finalidade, porque trata do próprio indivíduo sem resquícios de hipostasia do
pensamento. Um exemplo ilustrativo disso é a obra de Milan Kundera, que entende o
romance como o espaço onde as possibilidades existenciais humanas esgotam-se no
desenvolvimento do conflito do personagens com suas respectivas problemáticas
existenciais. (KUNDERA, 2009)
É importante ressaltar que a idéia, propriamente dita, que Rorty faz da literatura
não é (pelo menos não somente) a de instrumento estético para deleite pessoal. Não se
trata apenas de uma mera narrativa, mas sim de um veículo para o progresso moral. Por
esse caminho, Rorty aponta para um tratamento diferenciado do tema da literatura, pois
lhe atribui um vínculo para além das qualidades estéticas e características que são
descritas como fatalmente inerentes a escolas literárias e modelos de pensamento. O que
está em jogo não é a compreensão das razões e ferramentas do autor literário, mas a
relevância de sua produção no horizonte comportamental, na influência que o destino
dos personagens pode exercer nos indivíduos reais. Assim, trata-se do vínculo de
dimensão ética que garante a coesão dos indivíduos na sociedade. Em Ironia privada e
esperança liberal Rorty diz: “A palavra ‘literatura’ abarca hoje praticamente qualquer
tipo de livro que se possa imaginar que tenha relevância moral – o que se possa imaginar
que altere o sentido do que é possível e importante.”(RORTY, 2004, p. 147). A literatura
exercita, com primazia, no âmbito moral, a redescrição mencionada na seção anterior.
Nesse sentido, uma cultura que herde e cultive seu vocabulário de romances pode
prover uma melhor interação de seus membros do que uma cultura que preserve acima
de tudo um vocabulário filosófico. Uma cultura literária tende a inspirar, na relação dos
indivíduos, valores de cunho mais contingente, e, por sua vez, promover uma
consideração pela condição de finitude e de busca pela erradicação dos próprios
sofrimentos, que, em geral, é o mais desejável. Para Rorty, a tarefa do intelectual liberal
não está tão ligada a teorias sociais e descrições que de um modo radical apontam a
solução para os problemas sociais que nos são impostos, mas, tendo em vista a justiça
social, sensibilizar as pessoas para os sofrimentos dos outros, expandindo nossos
horizontes morais e tornando esses outros parte de nossa comunidade moral. Como já foi
sugerido, a literatura alcança dimensão ética por poder realizar esse tipo de conquista.
Isso se dá mais ou menos como nesse fragmento:
Assim, a lição que extraio do exemplo de [Marcel] Proust é que os romances
são um meio mais seguro do que a teoria para expressar o reconhecimento
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que se tem da relatividade e da contingência das figuras de autoridade. É que,
em geral, os romances concernem a pessoas – coisas que, ao contrário das
idéias gerais e dos vocabulários finais, são evidentemente limitadas pelo
tempo, inseridas numa rede de contingências. Uma vez que os personagens
dos romances envelhecem e morrem – uma vez que obviamente
compartilham a finitude dos livros em que aparecem –, não nos sentimos
tentados a achar que, por adotar uma atitude em relação a eles, adotamos uma
atitude em relação a todos os tipos possíveis de pessoas. Em contraste, os
livros que se referem a idéias, mesmo quando escritos por historicistas como
Hegel e Nietzsche, assemelham-se a descrições de relações eternas entre
objetos eternos, em vez de descrições genealógicas da filiação de
vocabulários finais, que mostram que tais vocabulários foram gerados por
acasalamentos ao acaso, por quem-esbarrou-em-quem. (RORTY, 2004 p.
187/188)
Acredito que a estreiteza na relação entre essas duas esferas (democracia e
literatura) é vital para se compreender bem a afinidade entre ética e política na filosofia
de Rorty. É importante frisar que seu filosofar encontra amparo na substituição do
tratamento dos temas filosóficos como problemas do tipo quebra-cabeças por um
tratamento mais socializado e civilizado da filosofia. Além disso, Rorty preferiu, como
costuma dizer, substituir a razão pela esperança de um futuro melhor, a razão (que quer
compreender o mundo para dominá-lo) pela imaginação (que quer reinventar o mundo
para transformá-lo). Ao seu pragmatismo, cabe a possibilidade de vislumbrar uma
configuração social na qual as pessoas sofram menos do que na atual. Nesse espírito,
interessa-se mais em disponibilizar formas novas de reinterpretar e reconfigurar o
mundo do que em se perder na busca por fundamentos que justifiquem a atual
configuração.
De todo modo, embora Rorty utilize a redescrição para superar os estorvos
filosóficos do vocabulário racionalista iluminista, mantém o vigor iluminista da
emancipação do indivíduo, emancipação de todo conteúdo antiliberal. Entendendo que o
recurso de inclusão do outro não pode ser fundado na razão ou em outro imperativo
abstrato, crê na aceitação do outro pela via do vocabulário – digamos – literário. A
literatura, então, além de fornecer novas formas de autocriação para os indivíduos,
fornece melhores formas da realização plena do liberalismo e da democracia (como
solidariedade), pois fornece a possibilidade de promoção de novos valores morais, de
novos candidatos a membros da comunidade, e de ampliação da própria comunidade.
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