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Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo1 Julio Cesar Talhari Mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC/USP) jtalhari@hotmail.com Resumo Muitas análises entendem os museus como parte de uma cultura de consumo e veem seus frequentadores apenas como consumidores. O presente artigo busca um afastamento de tais estudos ao tentar compreender o comportamento dos visitantes da Pinacoteca de São Paulo em suas formas de sociabilidade, bem como sua relação com os objetos de arte tendo como base uma perspectiva antropológica da arte e da cultura material. Assim, analisa-se, situacionalmente, as relações dos visitantes de modo que, por meio das obras de arte e dos laços de sociabilidade, as interações sociais possam ser ampliadas e, em vez de ocasião para distinção simbólica e social, a visita possa ser entendida como oportunidade de construção pessoal. Palavras-chave: Cultura material; sociabilidade urbana; museus; análise situacional; agência social. Abstract Many analyses understand the museum as part of a consumer culture and see their visitors only as consumers. This article seeks a departure from such studies to try to understand the behavior of the visitors of Pinacoteca de São Paulo in its forms of sociability and their relationship with art objects based on an anthropological perspective of art and material culture. Thus, it analyzes, situationally, relations of visitors so that through the works of art and sociability ties social interactions can be extended and, instead of occasion for symbolic and social distinction, the visit can be understood as an opportunity for personal construction. Key-words Material culture; urban sociability; museums; situational analysis; social agency. 74 Introdução Os museus muitas vezes são analisados como parte de uma cultura do pós-modernismo, que é baseada no consumo (Featherstone, 1995). O sociólogo britânico Nick Prior (2006, p. 509), por exemplo, airma que os museus da atualidade são “descarados puxadores de multidão”. Segundo ele, há um processo de mercantilização da cultura que coloca os museus “ao lado de shopping centers e cinemas dentro dos campos do consumo e do entretenimento.” (Prior, 2006, p. 519; tradução minha2). Os museus são fenômenos urbanos e estão conectados com mudanças mais amplas na cidade, as quais têm sua dinâmica pautada por processos econômicos. O ponto de inlexão na trajetória dessas instituições foi o Centro George Pompidou, em Paris. Inaugurado em 1977, o Beaubourg, como também é conhecido por conta do bairro em que se localiza, estabeleceu um paradigma em que a oferta de várias atividades e serviços, e não apenas exposições de artes plásticas, passa ser a característica principal das instituições culturais. Além disso, teve impacto signiicativo em seu entorno, o que o alçou como modelo de política de renovação urbana. Do ponto de vista da fruição artística, Otília Arantes (1991) já na década de 1990 avaliava a relação com a obra de arte a partir do surgimento dos chamados “novos museus”. Criados ou reformados sob 1. Este artigo contém trechos adaptados de minha dissertação de mestrado, Cultura e sociabilidade no museu de arte: etnografia dos visitantes da Pinacoteca do Estado, orientada pelo prof. dr. Heitor Frúgoli Jr., no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP). Essa pesquisa, realizada entre 2012 e 2014, só foi possível graças à bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), a quem agradeço. 2. Todas as traduções presentes neste texto são de minha autoria, exceto quando indicado. Portanto, doravante, isso não será mais sinalizado. ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo a inluência do Centro Pompidou, seriam semelhantes a shopping centers, pois teriam capacidade de atrair uma massa de “consumidores” mais interessada em gastar seu tempo nos restaurantes, cafés, lojas ou áreas ajardinadas do que propriamente no contato com a arte. Tais críticas também indicam a importância da arquitetura nos museus para criar um aspecto de espetacularização. As obras de arte, portanto, seriam negligenciadas, e o foco estaria no consumo de massa e no entretenimento. Essa analogia entre museus e shopping centers permanece ainda hoje, tornandose quase um senso comum. A socióloga estadunidense Sharon Zukin reforça a ideia de que os museus são cada vez mais lugares de consumo: “Talvez, hoje em dia, trata-se de um público consumidor, e o museu, em muitos casos, está em paralelo com o shopping center” (Zukin apud talhari & Frúgoli Jr., 2014, p. 19). Em pesquisa de mestrado com os visitantes da Pinacoteca de São Paulo, minha intenção foi manter um distanciamento de visões que enquadram a frequentação de museus dentro da questão de consumo. Para isso, o recorte privilegiou as interações sociais e materiais das pessoas que frequentam a instituição. Tentou-se, assim, fornecer uma visão alternativa sobre os espaços culturais que pudesse escapar das explicações unicamente economicistas ou que tratam o assunto com base num ponto de vista moralista. Um pressuposto que se conigurou ao longo da pesquisa foi pensar a relação dos visitantes com as obras de arte e com a arquitetura como forma de expansão das interações sociais para além do espaço físico e temporal do museu. Para isso, foi importante a teoria de agência social desenvolvida por Alfred Gell (1998), na qual se pode entender os objetos como pessoas. Do mesmo modo, foi fundamental como inspiração para o olhar analítico de Daniel Miller (2013) sobre a cultura material. Os dois autores permitem pensar a visitação a espaços culturais não como uma atividade passiva, mas como modo de apropriação de conteúdos enquanto possibilidade de novas construções pessoais e sociais. O recorte etnográico adotado, que se desdobrou no procedimento analítico, foi o de observar situações. A abordagem situacional aqui utilizada beneiciase tanto dos desenvolvimentos da Escola de Manchester quanto da Escola de Chicago, sobretudo com base na síntese promovida por Michel Agier (2011). Portanto, a estratégia para enfrentar etnograicamente um contexto dinâmico como o da Pinacoteca foi a descrição de algumas situações no museu, sempre tendo em mente que há um quadro estruturante mais amplo que, segundo Erving Goffman (2010 [1963]), são as ocasiões sociais, isto é, a visita como um todo, e não apenas o momento em que a interação ocorre. Assim, foi possível demonstrar com densidade etnográica certas regularidades veriicadas ao longo do estudo, tanto do público dito espontâneo quanto das visitas de caráter mais pedagógico. Embora a observação etnográica não tenha se restringido a visitas guiadas, o papel ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 75 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo das atividades educativas na Pinacoteca se mostraram signiicativas. Elas adensam algumas características que estão presentes nas demais visitas em decorrência da própria postura da instituição. Por isso, as descrições a seguir privilegiaram contextos educativos, o que, no entanto, não invalida projeções mais abrangentes sobre a experiência dos visitantes no museu. 3. A obra pode ser acessada pelo site da instituição (na aba “acervo”): <www.pinacoteca.org.br>. 76 Leitura de imagens Uma das atividades propostas pelo Núcleo de Ação Educativa (NAE) da Pinacoteca para os visitantes escolares, que praticamente dominam o museu de terça a sexta, é a leitura de imagens. Segue, assim, a descrição de um grupo de estudantes durante essa fase da visitação. A obra em foco foi a tela A fazedora de anjos (1908)3, do pintor gaúcho Pedro Weingärtner, que faz parte do acervo da instituição. Era um grupo de aproximadamente 20 pessoas de um curso de fotograia do senac. Eles, na maioria rapazes, estavam acompanhados por uma educadora da Pinacoteca e da professora do curso. Esta auxiliava a educadora nas explicações, além de fazer perguntas ao grupo a im de instigar certa interação. Alguns arriscavam interpretações, sempre estimulados por ambas. Eram jovens na casa dos 20 anos, quase todos negros. A maioria carregava câmeras semiproissionais. Notei que a obra apresentada causava grande interesse. Alguns visitantes que não pertenciam ao grupo aproximavam-se para ouvir as explicações. Uns ouviam por pouco tempo e depois saíam; outros permaneciam. As explicações giravam em torno do contexto histórico em que tais cenas se desenrolavam, os costumes e valores da época. A educadora da Pinacoteca, ajudada pela professora, tentava fazer com que os alunos percebessem por eles mesmos o contexto social que a obra representava e no qual a história era contada. Os estudantes eram motivados a apreender, mediante indicações fornecidas pela própria obra, como a classe social dos personagens representados, o signiicado de certos gestos que com a passagem do tempo perderam muito do seu sentido – por exemplo, um cumprimento feito com o levantamento do chapéu –, o tipo de roupa usada como indicativo de um evento festivo, detalhes da arquitetura etc. Ambas tentavam retirar do repertório dos próprios alunos elementos que tornassem mais fácil a compreensão da obra e da história narrada. Os estudantes foram solicitados a descrever a cena da primeira parte do tríptico. À medida que eles falavam sobre a presença de uma jovem descendo de uma carruagem acompanhada por uma mulher mais velha, a educadora adicionava detalhes em forma de perguntas: “Que ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo lugar era aquele?”; “Era uma rua, uma praça?”; “Havia alguém as observando?”; “Por que havia mais gente em volta?”; “Como eles estavam vestidos?”; “E as mulheres, como se vestiam?”; “Quem era a mulher mais velha?”; “A mãe?”; “Era carnaval?”; “Quem era o homem que tirou o chapéu quando a moça saía da carruagem e se preparava para subir uma escada?”; “Por que ele fez isso?”. Um dos alunos era o mais empolgado e tentava sempre responder às perguntas. Os outros pareciam mais tímidos, às vezes desinteressados, mas ainda assim participavam na tentativa de interpretação das cenas retratadas. Conforme a história icava mais clara, o interesse aumentava (e mais visitantes que passavam pela sala se aproximavam para ouvir as explicações). Temas como o papel social da mulher naquele período (início do século XX), a pressão por desempenhar um determinado comportamento, os sacrifícios para manter as aparências, tudo isso ia sendo levantado conforme se evidenciava que o tríptico narrava a história de uma moça de classe alta que possivelmente se apaixonara por um homem numa festa de carnaval e desse caso amoroso surgira um ilho indesejado. A cena do segundo painel, que mostra a moça com um bebê no colo na casa da tal “fazedora de anjos”, contrasta de modo signiicativo com a primeira. Ali, na casa da senhora que aguarda a moça entregar-lhe a criança, a mãe, toda de negro, põe-se pensativa, olhando para o vazio, mas, pelo modo como a obra é disposta, dá a impressão de que está pensando na primeira cena, a da festa de carnaval, quando seu infortúnio possivelmente teria começado. A educadora e a professora pediram para os alunos analisarem a cena. Orientaram o olhar deles para que reparassem numa escada que liga a casa da idosa à rua. A professora perguntou: “Por que o artista colocou essa escada aí?”. Explicou, então, que a escada não fora colocada ali à toa, pois o artista queria dizer algo por meio de todos os detalhes da composição. Apontou, assim, para uma roda ao fundo, já na rua, que permite vislumbrar que se trata de uma carruagem esperando a moça. Explicou que a escada mostra que a casa está abaixo do nível da rua, o que representaria a baixeza do ato que estava ocorrendo ali naquela cena. A educadora perguntou se os estudantes já haviam ouvido falar da “roda dos enjeitados”. Muitos acenaram que sim, e então ela tentou demonstrar que a questão do abandono de crianças é bastante recorrente na sociedade, mas que a história narrada pelo tríptico remetia a uma situação em particular que era própria de mulheres de classes altas no Brasil do início do século XX, época em que os casamentos ainda funcionavam para encetar e fortalecer determinadas relações sociais. Portanto, relações amorosas que não fossem aprovadas pela família eram censuradas e perseguidas, e só aconteciam na clandestinidade. Os frutos desses relacionamentos – ou seja, os ilhos indesejados –, assim, deveriam ser escondidos da sociedade. A descrição da obra permitiu, então, que eles izessem comparações ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 77 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo com a sociedade atual. Foi lembrado que hoje a mulher tem mais liberdade para escolher seus relacionamentos, e os atuais casos de abandono passam a ter mais relação com as condições de pobreza das mães ou com a falta de estrutura familiar. O terceiro painel é o mais impressionante. Nele, icamos sabendo que a idosa coloca os bebês rejeitados num forno para morrerem queimados. A pintura mostra as imagens de anjinhos subindo em direção ao céu e a tal senhora perto de uma mesa, onde moedas de ouro estão espalhadas. Os estudantes e demais visitantes que se aproximaram do grupo mostraram-se tensos e apreensivos com a explicação dada. Na verdade, a educadora deixou claro que essa era uma das leituras possíveis, pois não se sabe exatamente se a idosa do terceiro painel é a mesma do segundo ou se é justamente a mãe retratada já na sua velhice e atormentada por ter abandonado o ilho. Após certa tensão com o inal da história, os visitantes que se haviam aproximado rapidamente se separaram do grupo de alunos. A educadora logo em seguida despediu-se, e os estudantes foram dispensados pela professora para livre circulação pela Pinacoteca. Nesse ponto, torna-se apropriado analisar a situação descrita por meio de uma incursão na teoria de agência elaborada por Alfred Gell (1998). Gell dá “ênfase não à comunicação simbólica, e sim à agência, intenção, causação, resultado e transformação.” (gell, 2009 [1998], p. 251; grifos do autor). A Antropologia da Arte de Gell baseia-se na ação e no “papel prático de mediação que desempenham os objetos de arte no processo social” (idem, p. 252). Sua teoria da arte pode ser deinida como “as relações sociais na vizinhança de objetos que atuam como mediadores de agência social” (idem, ibidem). O autor compara, por exemplo, a admiração que temos por uma obra de arte com a afeição que uma garotinha tem por sua boneca: Considere uma garotinha com sua boneca. Ela ama sua boneca. Sua boneca é sua melhor amiga (ela diz). Ela arremessaria sua boneca ao mar estando num bote salvavidas para salvar seu irmão mais velho autoritário que está se afogando? De jeito nenhum. (gell, 1998, p. 18). Do mesmo modo seria nossa admiração, enquanto adultos, por David de Michelangelo, porque tanto a boneca quanto a escultura “são certamente seres sociais – ‘membros da família’” (idem, ibidem). Talvez o exemplo mais eloquente de coisas como seres sociais, contudo, seja a relação dos seres humanos contemporâneos com seus carros: Um carro, apenas como uma possessão e um meio de transporte, não é intrinsecamente um locus de agência, seja a agência de seu proprietário ou a sua própria. Mas na verdade é muito difícil para um proprietário de carro não o considerar como uma parte do corpo, uma prótese, algo investido com sua própria agência social vis-à-vis outros agentes sociais. Assim como um vendedor confronta um cliente potencial com seu corpo 78 ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo (seus dentes em bom estado e seu cabelo bem penteado, índices corporais de competência nos negócios), do mesmo modo ele confronta o comprador com seu carro (por exemplo, um Mondeo, último modelo, preto), outra parte, destacável, de seu corpo disponível para inspeção e aprovação. Contrariamente, um dano sofrido pelo carro é um golpe pessoal, um ultraje, mesmo que o dano possa ser consertado e pago pela seguradora. (idem, ibidem). Nesse sentido, A fazedora de anjos exerce sua agência sobre os visitantes ao chamar atenção, despertar interesse e admiração, pois, como conirma Gell (idem, p. 23), se bonecas e carros podem aparecer como agentes em certas situações sociais, o mesmo ocorre com obras de arte. Portanto, além de propiciar uma situação de interação entre estudantes, professora e educadora, a obra de Weingärtner potencializa as relações sociais ao operar como mediadora entre a agência do artista e os visitantes (receptores, como será visto adiante). O tríptico capta a atenção do grupo e de outros visitantes que passam pela sala, isto é, exerce uma agência nas pessoas ali presentes. Essa agência, no entanto, não provém da obra de forma autônoma; ao contrário, derivase de uma rede de intencionalidades que, por meio do tríptico, conecta o artista, a narrativa exibida na pintura e os espectadores. A história pintada há quase cem anos gera interpretações que, iéis ou não à ideia original, são discutidas por educadora, professora e estudantes. Mas o que se entende aqui por agência? Gell (idem, p. 22) airma que seu conceito de agência “é relacional e contexto-dependente”. Sua ideia ica mais clara novamente com o exemplo de sua relação com o carro. Gell informa que seu carro é um Toyota, mas ele e sua família chamam-no de Toyolly, ou apenas Olly, isto é, assim como outros proprietários de carro, ele e sua família atribuem uma personalidade ao veículo. Entretanto, ainda que nesse caso o carro seja considerado um agente social, uma pessoa, sua agência não é absoluta. Pelo contrário, depende do contexto e daquele que é considerado “paciente” em uma situação especíica: […] embora eu espontaneamente atribuísse “agência” ao meu carro se ele quebrasse no meio da noite, longe de casa, comigo dentro, eu não acho que meu carro tem objetivos e intenções, como um agente veicular, que são independentes do uso que eu e minha família fazemos dele, com o qual ele pode cooperar ou não. Meu carro é um agente (potencial) em relação a mim como um “paciente”, não em relação a si mesmo, como um carro. Ele é um agente somente na medida em que eu sou um paciente, e ele é um “paciente” (o correspondente de um agente) somente na medida em que eu sou agente em relação a ele. (idem, ibidem). A relação da agência entre “agentes” e “pacientes” mostra-se, portanto, complexa, relacional e dependente de uma situação social especíica. No entanto, a relação entre o tríptico A fazedora de anjos e os visitantes da Pinacoteca não é uma relação apenas entre dois termos. Para compreender de maneira mais clara ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 79 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo 4. Abdução, para Gell (1998, p. 14-16), é uma inferência de agência a partir do índice, como no seguinte exemplo: “Quando vemos uma foto de uma pessoa sorrindo, nós atribuímos uma atitude de simpatia para ‘a pessoa na foto’ […]. Nós respondemos à imagem dessa forma porque a aparência de sorrir desencadeia uma inferência (oculta) de que (a menos que esteja fingindo) essa pessoa é amigável, assim como o sorriso de uma pessoa real provocaria a mesma inferência” (idem, p. 15). 5. A obra de Weingärtner gerou discussões na época de sua primeira exposição, em 1910, por conta justamente de sua narrativa e “não por sua fatura, bastante convencional” (AYERBE, PICCOLI & HANNUD, 2011, p. 165). Assim, o artista não se faz reconhecer na obra por meio de sua pincelada ou alguma técnica particular que o fizesse agir sobre o protótipo. Gell, por exemplo, argumenta que mesmo no caso dos retratos, que tendem a imprimir a agência do retratado sobre o artista, que por sua vez apenas mediaria essa agência para imprimi-la no índice (a obra de arte), em algumas situações é a ação do artista que fica impressa na tela, como no caso da Mona Lisa de Leonardo da Vinci: “Leonardo é visto como responsável pela aparência de Mona Lisa, ou ao menos, pelo que é fascinante e persuasivo em sua aparência do ponto de vista do paciente/ receptor” (GELL, 1998, p. 53). O artista como primeira fonte de agência fica mais evidente em outro exemplo, que Gell (idem, p. 55) denomina de “fórmula do ‘gênio artístico’”. Gell demonstra sua tese com base em Salvador Dalí e uma de suas obras mais famosas, A persistência da memória (que faz parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA). De acordo com Gell (idem, p. 56), a agência de Dalí faz-se presente tanto por sua técnica quanto pelo fato de o protótipo pertencer ao mundo dos sonhos do artista. Nesse sentido, a obra seria um autorretrato surrealista do próprio Dalí. 80 as formas de agenciamento por meio de objetos, é viável tomar como base o modelo elementar de relação de agência a respeito das obras de arte, isto é, aquele que liga o receptor, o índice (a obra), o artista e um protótipo. Neste momento, é necessário explicar o que são esses termos. Gell, embora faça questão de afastar-se do modelo semiótico, utiliza termos peirceanos para elaborar sua teoria de abdução4 da agência. Assim, tem-se: 1. Índices: entidades materiais que motivam inferências abdutivas, interpretações cognitivas etc.; 2. Artistas (ou outros “originadores”): aqueles a quem são atribuídas, por abdução, responsabilidade causal pela existência e características do índice; 3. Receptores: aqueles em relação aos quais, por abdução, os índices são considerados exercer agência, ou que exercem agência via índice; 4. Protótipos: entidades conservadas, por abdução, a serem representadas no índice, frequentemente em virtude de semelhança visual, mas não necessariamente. (idem, p. 27). No caso em análise, o índice é o próprio tríptico. Já o artista, seguindo o modelo elementar que tem por base o contexto das obras de arte, é o próprio Weingärtner. Contudo, dependendo do nexo agenciativo analisado, o artista pode ser outra(s) pessoa(s). Isso será explicado adiante. Por ora, é importante deixar claro que, para Gell, o termo “artista” nem sempre é empregado em seu sentido literal tal como é entendido no campo artístico, uma vez que a relação de agência que ele propõe pode ser aplicada em diversos contextos em que há relações entre pessoas e objetos – como já apontado nos exemplos da boneca e do carro – e não apenas na relação artista-obra-espectador. Os receptores são os visitantes ou os próprios educadores, que estão em contato com a obra e, nesse sentido, sofrendo sua agência. O protótipo, no caso de A fazedora de anjos, é o tema que deu origem à representação executada pelo artista5. Contudo, a literatura sobre história da arte brasileira não é exata a respeito do que aqui chamamos de protótipo: “uns propõem uma leitura alicerçada na igura literária de Margarida (de Fausto, de Goethe), outros dizem tratar-se de uma discussão sobre o aborto e o infanticídio, e ainda há aqueles que agrupam as duas interpretações” (ayerbe, Piccoli & hannud, 2011, p. 165). Em todos os casos, no entanto, parece ser pertinente uma interpretação da relação ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo entre protótipo e artista baseada na fórmula, proposta por Gell (1998, p. 39), da produção de imagem realista: Protótipo-A ----> Artista-P, onde “A” signiica a posição como agente e “P”, como paciente na relação. Aqui, a aparência do protótipo dita o que o artista faz […]. O protótipo, como agente social, nesse caso, imprime sua aparência no índice, por meio da agência mediada pelo artista, que é um “paciente” com relação ao protótipo enquanto continua a ser um “agente” em relação ao índice. (idem, ibidem). Embora o índice seja central para a abdução da agência, ele quase nunca é o agente primário. Logo, o nexo agenciativo proposto é mais complexo, vai além de uma relação entre dois termos, mas depende do índice para existir, pois ele causa uma perturbação no ambiente que revela e potencializa a agência exercida. Portanto, para Gell, há agentes primários e secundários, bem como pacientes primários e secundários. Voltando ao tríptico, embora a obra esteja na posição de agente em relação ao espectador (receptor), ela sofre a agência do artista que, por sua vez, está sob efeito da agência do protótipo, isto é, o tema a ser materializado na pintura. Em fórmula proposta por Gell (1998, p. 52), a relação poderia ser expressa como [[[Protótipo-A] ฀ ArtistaA] ฀ Índice-A] ----> Receptor-P, onde o protótipo exerce agência sobre o artista, o qual, sob essa inluência, pinta a obra (índice) que exercerá agência sobre o receptor (a seta longa indica a relação entre o índiceagente e o paciente primário)6. Assim, Weingärtner, inluenciado tanto por um contexto social especíico quanto por um tema clássico, objetiva a narrativa por meio da realização do tríptico, que, alocado numa sala da Pinacoteca, exerce agência sobre os visitantes. Nesse sentido, pode-se entender que a questão do infanticídio, presente em Fausto, bem como no contexto social vivido pelo artista, é revelado aos visitantes por meio de A fazedora de anjos. Tem-se, portanto, uma antiga questão social como agente social, que, ao exercer agência sobre o artista, se apresenta e produz efeito em espectadores contemporâneos. Entretanto, um objeto ou uma obra de arte está inserido numa rede de intencionalidades, o que faz com que não exista apenas a conexão aqui apresentada entre artista, obra e aquele que a contempla ou mantém algum contato com ela, mas também permite a compreensão de outros tipos de agenciamento mediante enfoques distintos em relação ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 6. Nos exemplos anteriormente citados de Leonardo da Vinci e Salvador Dalí, teríamos fórmulas diferentes quanto à relação entre os termos. Em Mona Lisa a fórmula seria [[[Artista-A] ฀ Protótipo-A] ฀ Índice A] -----> Receptor-P, onde Da Vinci exerce agência sobre o protótipo (a aparência da modelo) que também exerce agência sobre o índice (a tela), o qual finalmente age sobre o receptor (atualmente, o visitante do Louvre, em Paris). Em A persistência da memória, a fórmula ficaria assim: Artista-A -----> [Índice-P ฀ [Protótipo-P ฀[Receptor-P]]], onde a seta longa coloca Dalí como foco e fonte primária da agência. Essas fórmulas, como alerta Gell (1998, p. 57), não dizem respeito a nenhuma característica objetiva das obras em si, mas a uma mudança de perspectiva, que passa da obra para o artista, o que revela aspectos menos ligados a atributos artísticos do que ao culto da personalidade. Entretanto, Gell (idem) afirma que há liberdade para se descrever o nexo da relação, o qual depende da perspectiva que se queira adotar. 81 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo 7. Como exemplo do que Gell entende por obra aberta, ele cita o caso de Mary Richardson, uma sufragista que, em 1914, entrou na National Gallery, em Londres, e esfaqueou uma tela de Diego Velázquez (The Rokeby Venus [Vênus ao espelho], 1647-1651) como forma de protesto pela prisão de Emmeline Pankhurst (GELL, 1998, p. 62-65). Para Gell, o ato de Richardson foi um gesto artístico, pois ela produziu uma nova Vênus ao espelho, isto é, uma Vênus moderna que, a partir de seu ato, passou a ser uma representação de Pankhurst e seu sofrimento. Ele conta que, embora a obra tenha sido restaurada meses depois, a obra de Richardson (que ele chama de “Slashed” Rokeby Venus, algo como Vênus ao espelho “esfaqueada”) durou por alguns meses e sobrevive até hoje por meio da reprodução fotográfica. Segundo Gell, a “destruição de arte é a produção da arte em seu sentido inverso; mas tem a mesma estrutura conceitual básica. Iconoclastas exercitam um tipo de ‘agência artística’” (idem, p. 64). Em outro texto, ao abordar uma armadilha de caça como trabalho de arte, pois conecta dois seres (o caçador e a presa) por meio de um objeto, Gell (2001 [1996], p. 189) defende uma definição de obra de arte que inclua qualquer objeto ou performance que incorpore intencionalidades. 8. A opção por descrever o nexo das relações de forma que a agência partisse do tema (protótipo), passasse pelo artista e, mediante a obra, alcançasse os visitantes tem relação com a situação observada. Se a visita educativa tivesse dado ênfase, por exemplo, à relação da obra com a temática geral da sala (“pintura de gênero”), seria mais apropriado analisar a agência dos curadores. Portanto, o recorte adotado derivou-se de uma situação concreta observada, pois “qual análise é a apropriada é uma questão de julgamento social ou psicológico.” (GELL, 1998, p. 57). 82 ao nexo das relações, já que para Gell a obra de arte é aberta7. Assim, a obra em questão também pode ser entendida como índice da agência dos curadores que, ao colocarem-na junto a outras obras, constroem narrativas paralelas, quais sejam, a construção do gênero por meio da pintura ou a mudança no gosto artístico da virada do século XIX para o XX, que fez “os quatro gêneros consagrados pela arte acadêmica perde[rem] espaço paulatinamente para cenas de interiores domésticos, representações de dramas morais e obras que davam relevo a valores simples da vida rural.” (ayerbe, Piccoli & hannud, 2011, p. 157). Do mesmo modo, um visitante pode “agir” em relação à obra ao tirar uma foto dela e publicá-la numa mídia social com uma legenda que indique sua própria interpretação ou tão somente a visita ao museu, ou, ainda, que expresse o nível cultural do “fotógrafo” por meio da exposição de seus interesses. Já os estudantes de fotograia do senac podem expressar sua perícia na técnica que estão aprendendo e, assim, estabelecer novas relações de agência, com base agora na reprodução fotográica8. É desnecessário reproduzir aqui as fórmulas pelas quais a teoria de Gell poderia expressar esses nexos de agência alternativos. Basta salientar que a visita ao museu deve ser entendida como uma prática social não apenas porque na maioria dos casos os visitantes estão acompanhados, mas também porque a relação desses visitantes com as obras de arte apontam para um contexto social mais abrangente. Embora mediado por objetos, o museu permite interações sociais que não se reduzem nem a seu espaço físico nem à temporalidade que uma situação especíica pode apresentar. Aqui parece produtiva a noção de pessoa distribuída empregada por Gell (1998, p. 96-154). Eis um exemplo revelador mencionado pelo autor: as minas terrestres dos soldados de Pol Pot, no Camboja. Como todo armamento desse tipo, as minas espalhadas por esses soldados tinham a capacidade de matar ou ferir gravemente qualquer pessoa mesmo sem a presença física daqueles que as “plantaram”. Gell entende a mina não apenas como ferramenta, mas como parte do corpo de um soldado, pois ela é um componente do que faz o soldado o que ele é, ou seja, a identidade social de um homem como soldado está vinculada ao armamento que ele carrega e eventualmente utiliza: “essas minas eram componentes de suas identidades como pessoas humanas, assim como muitas de suas impressões digitais ou as ladainhas de ódio e medo que inspiravam suas ações” (idem, p. 21). Assim, as minas não eram agentes autônomos, mas mediadores das intencionalidades (índices) dos soldados ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo que, como partes do corpo desses homens, expandiam a presença espaço-temporal dos comandados de Pol Pot. Esse exemplo deixa claro que o índice, diferentemente do que diz a teoria semiótica quando o relaciona à ideia de signo, não é uma simples representação – como a palavra “cachorro” seria em relação ao animal canino, isto é, um signo –, mas uma parte das pessoas (ou dos agentes sociais). Como em outro exemplo trazido por Gell (idem, p. 104), “não é absurdo supor que a pintura feita por Constable da catedral de Salisbury é uma parte da catedral de Salisbury”. Do mesmo modo, o tríptico de Weingärtner é uma parte daquele contexto narrado. Portanto, a visita educativa dos estudantes de fotograia permitiu que eles, sem desconsiderar as relações de sociabilidade mantidas dentro do grupo, mantivessem outras relações sociais que ultrapassavam os limites físicos e temporais da sala expositiva. O tríptico levou os estudantes ao início do século XX e não apenas apresentou a eles um contexto social produzido pela narrativa mediada pelo artista e pela própria obra, mas também os colocou numa ligação material com o período e com a questão em foco. Propostas poéticas Em outra ocasião, num dos pátios que ica no térreo do museu, observei um grupo de estudantes de uma escola pública, acompanhado do professor, que experimentava roupas e acessórios do século XIX. O educador do museu orientava a atividade, chamada de “proposta poética” pelo educativo do museu. De dentro de um armário, retirava ternos e acessórios masculinos e distribuía aos alunos. Algumas caixas foram colocadas sobre um pequeno tapete redondo, que demarcava a área do pátio em que a atividade se desenvolvia. Nas caixas, havia vestidos de época e acessórios femininos. O professor e as meninas eram os que mais demonstravam interesse na atividade. Dois meninos afastaram-se do grupo, cerca de três metros, sentaram no parapeito de uma janela e apenas observaram, não sem demonstrar certo enfado. Outro menino, sentado no chão abraçado à namorada, só se levantou após insistência do professor, que lhe entregou um cabide com calça, paletó e gravata. Com muita reticência, mas estimulado pelo professor e pela namorada, o rapaz foi aos poucos experimentando a roupa que lhe foi dada. Além de terno, o rapaz usava chapéu e bengala. O professor também vestia o mesmo igurino e em certo momento disse: “O que é que um professor de ilosoia tem que fazer…”. Enquanto isso, três meninas tentavam, com alguma diiculdade, vestir-se com os trajes femininos, muito parecidos por sinal com aqueles pintados em muitas telas do acervo. Cada menina contava com o auxílio de duas amigas, pois vestir e fechar os espartilhos mostrou-se trabalhoso. Diferentemente do professor e ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 83 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo do rapaz – que, já vestidos, andavam pelo pátio girando as bengalas –, as meninas passavam mais tempo escolhendo peças do vestuário e acessórios. Experimentavam as peças até sentirem-se satisfeitas com a combinação. O professor tentou chamar os dois meninos afastados para a atividade, mas eles não responderam. Ambos vestiam camisetas pretas com nomes de banda de rock e ouviam música com fones de ouvido. Em dado momento, uma das meninas, que participava da atividade ajudando a colega a vestir-se, foi junto aos garotos e icou algum tempo conversando com eles. No entanto, os garotos não mudaram de postura, e a menina voltou a ajudar as amigas. Ao inal da atividade, com todos vestidos, o educador juntou o grupo para uma foto. Pegou a câmera de uma das meninas e pediu para ela compartilhar a imagem com os demais colegas posteriormente. O educador também chamou os garotos que não participaram da atividade para o retrato, embora o professor tivesse dito – meio de brincadeira, meio a sério – que eles não deveriam aparecer, uma vez que não participaram. Os rapazes também não se mostraram muito animados em sair na foto, mas ao im juntaram-se ao grupo. Logo em seguida, ainda com os estudantes agrupados, o educador perguntou: “Foi fácil vestir as roupas?”. As meninas disseram que não. Uma delas disse: “Não conseguiria vestir sozinha, sem ajuda de outras pessoas”. Então, ele perguntou novamente: “Vocês pegariam ônibus com uma roupa dessas?”. O professor disse que sim, mas todas as garotas vestidas deram risadas e disseram que não. Para inalizar, o educador pediu para as meninas ingirem que havia algo no chão que elas deviam pegar. As garotas riram novamente, a princípio, mas tentaram fazer o que foi pedido. Sem saber direito como movimentar-se dentro dos vestidos, elas conseguiram, após algum tempo e com muita diiculdade, agacharse como se estivessem pegando algo. O educador pediu, então, que todos guardassem as roupas nos armários e nas caixas e encerrou a atividade. Mila Chiovatto, coordenadora do NAE, explica em que se baseia tal atividade e qual o seu objetivo: Um dos nossos pressupostos metodológicos […] é tentar fazer com que a construção de conhecimento, ou seja, aquilo que podemos chamar vulgarmente de educação, passe para além dos olhos e da cabeça, envolva o corpo, passe pelo corpo. É importante fazer com que as artes visuais não iquem restritas à visão, mas que façam conexões com a vida cotidiana, que façam conexões com a vida de agora, para não icar também só no passado. […] Tentamos fazer com que os conhecimentos ou as signiicações, as interpretações obtidas durante o contato com a obra ou que vão ser construídas durante o contato com a obra – [a proposta poética] pode acontecer antes ou depois da atividade da visita e da leitura de imagens, não tem problema –, para que elas possam ter uma signiicação mais intrínseca, para o indivíduo vivenciar uma determinada experiência. Então a experiência com as roupas pode funcionar para discutir 84 ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo desde, por exemplo, como é que o vestuário condiciona um determinado comportamento social até como se constrói um retrato (entrevista concedida em 20 de março de 2014). Essa construção do conhecimento que, segundo Chiovatto, passa pelo corpo, abrange também o contato com a cultura material: objetos, roupas e acessórios. A atividade proposta ajuda a entender o vestuário ou a indumentária para além de uma forma de representação material de distinções culturais (sahlins, 2003 [1976], p. 178203) ou de classiicação nos “serviços de marcação” (douglas & isherwood, 2013 [1979], p. 121-123), mas também como um elemento na construção da subjetividade do usuário, como propõe Daniel Miller (2013, p. 21-65). Miller elabora uma abordagem antropológica sobre a indumentária que difere do que ele denomina de “perspectiva semiótica” (idem, p. 22). Defendidas por Marshall Sahlins e Mary Douglas, tal perspectiva dominou por muito tempo os debates sobre cultura material e teve o mérito de lançar novamente o olhar antropológico sobre os objetos, o que desencadeou o interesse de outros pesquisadores e fez surgir uma Antropologia do Consumo. Não obstante, segundo Miller, o problema da perspectiva semiótica é “ver o vestuário como a superfície que representa ou deixa de representar o cerne interior do verdadeiro ser, [o que tende] a considerar supericiais as pessoas que levam a roupa a sério” (idem, p. 23). Na atividade descrita, pode-se perceber de que modo o vestuário, nas palavras de Chiovatto, “condiciona um determinado comportamento social” e, consequentemente, atua na construção do indivíduo enquanto ser social. Mais do que representar diferenças sociais ou operar modos de classiicação, a atividade realizada envolve a relação prática com as roupas e acessórios de outra época. Isso ajuda a compreender que o que signiica ser homem e ser mulher no século XIX – a despeito das simpliicações inerentes a uma atividade desse tipo – passa por uma construção do “eu” que envolve a relação do corpo com o vestuário. Por conseguinte, subentende-se que o que cada um é hoje também é resultado de condicionamentos provocados pelo vestuário utilizado. Difícil não associar, por exemplo, o comportamento dos dois garotos que se recusaram a participar da atividade a uma possível imagem que eles têm de si próprios enquanto adeptos de um estilo musical muitas vezes tido como agressivo ou rebelde. A camiseta preta com nome de bandas de rock não apenas representaria um gosto musical e atuaria para classiicálos como “roqueiros”, mas também para construir um determinado comportamento, ainda que de maneira provisória, que tende a fazer com que os garotos assumam uma postura de isolamento e de enfrentamento, visível na recusa explícita em participar da atividade com os demais colegas. Além de atividades similares observadas no decorrer da pesquisa com outros grupos de estudantes, notei outro tipo de prática poética junto a um público distinto ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 85 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo 9. Essa situação assemelha-se a um exemplo descrito por Gell (1998, p. 54) em que alunos de uma escola de arte são orientados, pelo professor, a pintar algo motivado pelas imaginações deles próprios. Nesse caso, os estudantes são artistas, mas produzem índices sob a ordem do professor. Assim, os trabalhos artísticos serão resultados da agência do professor, ao passo que os artistas (alunos) estão na posição de pacientes. Gell usa o exemplo para falar sobre relações sociais entre adultos e crianças baseadas na autoridade dos primeiros. Se pensarmos na situação aqui descrita, o educador assume uma posição de autoridade em relação às idosas, o que poderia ser apenas situacional, mas que revela um caráter mais amplo quando ele aconselha as mulheres a frequentar mais vezes o museu, que é um lugar público. Embora o conselho seja plenamente justificável e compreensível, não deixa de indicar uma inferioridade do grupo no que diz respeito à sua condição social e faixa etária. 86 daquele composto por alunos do Ensino Médio, como a realizada com grupos de idosas, parte do projeto Meu Museu. Em uma dessas atividades, contei 21 mulheres participantes, todas, aparentemente, com mais de 60 anos, acompanhadas por dois educadores: um homem, com uma máquina fotográica, e uma moça. Como nas práticas desse tipo com estudantes, a ação ocorreu no térreo. Havia duas mesas no local e também frutas, pães e queijos, tudo de plástico. A educadora, em certo momento, pediu que as senhoras pegassem os “alimentos” e arrumassem as duas mesas. Assim, formaram-se dois grupos, cada um deles envolvido em dispor os alimentos de plástico numa das mesas. Depois que as mesas foram postas, como se arrumadas para um café da manhã, as idosas sentaramse em bancos dispostos num semicírculo diante das duas mesas. Logo em seguida, começaram a conversar entre si. Uma delas disse, apontando para as mesas: “Lá na roça não tem isso. Tem frutas, mas não pão francês; o pão lá é feito em casa”. Outra mulher, em tom de brincadeira, fez uma comparação sobre os conteúdos: “Ali é a mesa do rico e aqui é a do pobre; o rico ica olhando o pobre”. Com as duas mesas arrumadas, o educador explicou que essas eram algumas das maneiras possíveis de disposição de alimentos utilizadas nas pinturas de natureza-morta vistas durante a exposição. Em seguida, o educador agradeceu o trabalho das participantes e todos aplaudiram. Ao inal, ele enfatizou que a Pinacoteca é um lugar público e que elas deveriam usufruir do museu sempre que tivessem vontade, vir em grupos, com a família, amigos, tomar um café, passear etc. Como na proposta poética em que os alunos vestiram roupas e acessórios de época, aqui as participantes da atividade também se relacionam com a arte por meio de uma interação direta com objetos, mas nesse caso os objetos são alimentos de plástico que emulam aqueles encontrados em telas de natureza-morta. Fica evidente, portanto, como em torno desses objetos articula-se uma série de relações e intencionalidades. A montagem das mesas com os alimentos reúne em torno desses objetos relações de sociabilidade e serve de veículo para histórias pessoais e expressões de visões de mundo e estilos de vida. A partir da intenção do educador em aproximar um dado gênero artístico às práticas cotidianas do grupo, vários comentários são feitos de modo a situar as participantes umas em relação às outras e a promover identiicações ou diferenciações em termos de trajetórias de vida ou origem social9. Se pensarmos como Gell (1998), é possível ver uma rede de agenciamentos que começa com pintores de naturezas-mortas, como Pedro Alexandrino, que reproduzem ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo a realidade por meio de obras de arte, as quais servem, como protótipos, para uma atividade de produção artística, proposta pelo educador, que envolve o trabalho coletivo para remontar a cena original que serviu, por sua vez, de protótipo aos artistas. No meio disso, uma incrível teia de relações sociais é construída, tanto no presente como através do tempo. Atividades que aparentemente utilizam a arte para a “construção do conhecimento”, a educação e a inclusão social não deixam de ser um fazer artístico, se adotarmos a perspectiva de Gell. O museu, dentro dessa visão, deixa de ser um espaço apenas contemplativo para tornar-se um espaço dinâmico em que a produção artística está constantemente em ação por meio das intencionalidades dos visitantes nas diversas atividades em que eles podem engajar-se. Considerações inais Embora as situações descritas aqui sejam no contexto de visitas guiadas ou atividades educativas, a Pinacoteca claramente adota uma postura pedagógica em que os elementos informativos estão no corpo do próprio museu, nas paredes das salas e no prédio em geral. O edifício, assim, é o principal agente social com quem os visitantes são confrontados. Por meio de suas paredes e instalações, o visitante, mesmo aquele que não recorre a uma visita guiada, é submetido à agência dos curadores e coordenadores do setor educativo. Embora cada vez mais os museus sejam vistos como espaços de encontro, de passeios desinteressados, de relações de sociabilidade, menos ligados a uma relação com a arte propriamente dita, o uso arquitetônico da Pinacoteca permite uma conexão entre os visitantes e uma intensa rede de intencionalidades não aparentes, mas signiicativas. Isso cria um vínculo entre os frequentadores do museu e agentes espacial e temporalmente distantes, como pintores, escultores, arquitetos e curadores. Ademais, o prédio produz um encantamento que muitas vezes rivaliza com as obras em exposição. O museu é percebido como um local que concentra uma multiplicidade de agências que incide sobre seus frequentadores. A Pinacoteca é uma “viagem na história”, como muitas vezes ouvi, porque permite a abdução da agência (gell, 1998) de pessoas que, ou passaram por ali muitos anos antes, ou trazem épocas passadas por meio de suas obras. E é por conta desse engajamento material com o espaço físico e com os objetos ali dispostos que muitas pessoas com quem conversei, principalmente aqueles do público dito espontâneo, referiram-se à visita como “um banho de cultura”. É verdade que a expressão apresenta um aspecto problemático, que tem a ver com certa concepção elitista de cultura. Não obstante, a ideia de “banho” diz respeito a propriedades materiais que saem de um corpo e impregnam outro. Se ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 87 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo por um lado o banho retira as impurezas, portanto, leva materiais embora, por outro, adiciona outras propriedades materiais que dão o sentido de estar limpo. No lugar da sujeira, tem-se o cheiro do sabão ou de outras substâncias utilizadas. Sem adentrar aqui no signiicado do banho para rituais de diversos povos, a expressão “tomar um banho de loja”, tão utilizada nas sociedades ditas de consumo, é suiciente para demonstrar que a ideia de banho está associada ao acréscimo material nos corpos. Assim, não está em jogo apenas a percepção de acréscimo material nos corpos, mas a ideia de renovação pessoal. Tomar um banho de loja indicaria a possibilidade de renovação dos indivíduos por meio da construção de uma nova relação com as roupas e acessórios recém-adquiridos (Miller, 2013, p. 21-65). Tomar um “banho de cultura”, do mesmo modo, aponta para uma nova construção subjetiva do visitante com base na sua recente relação com os objetos do museu, que pode pautar, a partir daí, sua relação com o mundo. A importância de um estudo etnográico com os visitantes de uma instituição cultural é descontruir certo senso comum que muitas vezes é reproduzido pela mídia e até mesmo por estudos de caráter macroestrutural. Os museus, de uma maneira geral, sofrem com um debate pouco aprofundado que se polariza da seguinte maneira: ora são vistos como um ambiente elitista, ora são os novos centros de consumo. O que tentamos demonstrar aqui é que, embora a Pinacoteca de certa forma seja um museu singular quanto à ênfase numa orientação pedagógica, a relação com os objetos de arte é uma oportunidade de produção subjetiva, o que as atividades educativas apenas enfatizam. As visitas desacompanhadas do educativo, em maior ou menor grau, apontam para a mesma conclusão. É possível, assim, pensar a relação do homem com os objetos, bem como as interações sociais mediadas por estes, não como um ato negativo, isto é, de gasto material, mas de acréscimo. Podemos também deslocar o foco de um mero consumismo ou do consumo como sinônimo de marcação social – que se por um lado cria identiicações, por outro, reproduz e amplia distinções – para a atuação das pessoas no mundo tanto como produtoras quanto como receptoras de cultura material e de sentido. Por im, torna-se possível ver os visitantes como citadinos que utilizam espaços tidos como fechados para estabelecer e fortalecer laços de sociabilidade entre eles próprios e interações sociais menos óbvias com aqueles que de alguma maneira participaram na produção ou organização do espaço físico e material que os cerca. 88 ARTIGOS | PROA: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 06, p. 74 - 89, 2016 Julio Cesar Talhari Arte e interação social na Pinacoteca de São Paulo Referências agier, M. Antropologia da cidade – lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. arantes, O. “Os novos museus”. Novos Estudos Cebrap, n. 31, out., 1991, p. 161-169. ayerbe, J. 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