artigo
193
O amadurecimento dos corpos e do
cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
DOI
http://dx.doi.org/10.11606/
2179-0892.ra.2017.132073
Edson Tosta Matarezio Filho
Universidade de São Paulo | São Paulo, SP, Brasil
sociais@hotmail.com
resumo
palavras-chave
Este artigo visa mostrar algumas relações que os Ticuna estabelecem entre
“corpo” e “território”. Para tanto, parto da noção de na’ane, que podemos traduzir
aproximadamente como cosmo/mundo/terra/roça. Este termo evoca ainda
noções de tempo, mas principalmente mantém uma relação com o corpo
ticuna, em especial, o corpo em formação. Tudo leva a crer que a cosmogonia
ticuna remonta as fases de amadurecimento sexual dos corpos nos mitos e isso
é reproduzido nos corpos das pessoas. O foco deste artigo serão as relações do
chamado mundo ainda “verde” (do’ü) com o corpo das moças que passam pelo
ritual de iniciação feminina, a Festa da Moça Nova. Nestas relações entre o corpo
e o cosmo, alguns temas vêm à tona, como o incesto, o sangue, os cabelos, as
periodicidades astronômicas e dos corpos das moças.
Ticuna, corpo,
território, mito, ritual.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
cosmogonia e mundo altamente transformacional
Cumpre destacar, antes de tudo, que não sou o primeiro a tratar da relação
entre o corpo e território para os Ticuna. Muito do que desenvolvo neste artigo
se deve aos avanços feitos pelo linguista ticuna Abel Antonio Santos Angarita,
em sua dissertação de mestrado (2013) e em artigos (2008, 2010), como pretendo mostrar ao longo do texto. Além dessas referências bibliográicas que
o leitor encontrará neste artigo, faço também um extenso uso de meus dados
de campo, que foram sistematizados em minha tese de doutorado (Matarezio
Filho, 2015b). Este trabalho de campo compreende períodos intermitentes entre
2012 e 2014, perfazendo um total de cinco meses. As principais comunidades
ticuna onde realizei meu campo foram Nossa Senhora de Nazaré e Vendaval,
ambas localizadas no município de São Paulo de Olivença (AM, Brasil). Outras
comunidades em que permaneci poucos dias também foram importantes para
compor a etnograia, na ocasião, bastante focada na Festa da Moça Nova: Belém
do Solimões, Campo Alegre, Vila Independente, Umariaçu I e II, localizadas no
município de Tabatinga (AM); Santa Clara (município de São Paulo de Olivença);
Porto Lima, do município de Benjamin Constant.
A escolha por icar mais tempo nas comunidades de Nossa Senhora de
Nazaré, às margens do igarapé Camatiã, e Vendaval, na beira do rio Solimões,
foi devido à grande frequência com que os Ticuna destas comunidades fazem
a Festa da Moça Nova. Isto não acontece em todo o território ocupado por estes
índios, seja no Brasil, Peru ou Colômbia. A presença e a frequência com que
é feita a Festa varia bastante de acordo com o país e a comunidade. Algumas
comunidades do igarapé Camatiã, especialmente as de religião católica – como,
Nossa Senhora de Nazaré, Tchowariãpü, Nova Jerusalém, Mangueira, Vila Bahia
e a recém-formada Ütapü (2016) – realizam ainda vivamente este ritual. Em
muitas comunidades ticuna os missionários evangélicos – da Igreja Batista, por
exemplo, dentre outras – coíbem a Festa, como é o caso da comunidade vizinha
de Nazaré, Decuãpü. Na Colômbia, Valenzuela (2010) nos mostra uma etnograia
detalhada deste ritual na comunidade de Arara. Goulard (2009, 2011) também
faz referência a esta comunidade e à comunidade do Rio Pupuña, também na
Colômbia, como praticantes do ritual, em sua etnograia dos Ticuna.
Além destas diferenças no espaço, temos uma variação da Festa no tempo
também. Não sou o primeiro a etnografar a Festa da Moça Nova dos Ticuna,
são notáveis os trabalhos de Nimuendaju (1952), Goulard (2009) e Valenzuela
(2010), por exemplo. A comparação entre estas etnograias nos mostra que os
rituais se transformam ao longo do tempo. Alguns elementos que Nimuendaju menciona – em sua monograia pioneira dos Ticuna do Brasil – já não existem mais, novidades que não existiam começam a aparecer na Festa, novas
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
194
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
interpretações nativas também são formuladas. Estas etnograias, além dos
meus dados de campo, serão fundamentais para examinarmos as relações do
chamado mundo ainda “verde” (do’ü) com o corpo das moças que passam pelo
ritual de iniciação feminina.
A forma como Peter Rivière caracteriza as “narrativas míticas, cosmologias
e práticas sociais das Terras Baixas da América do Sul” (1995: 191), como um
“mundo altamente transformacional” (idem: 192), serve como uma luva para
pensarmos a relação entre corpo e cosmologia para os Ticuna.1 Comecemos
pelo espaço para mostrarmos como – tanto na mitologia como no ritual – o
“cosmos” ticuna (na’ane) se apresenta de uma forma extremamente plástica e
transformável.
Esta plasticidade refere-se a um “mundo” (na’ane) passível de contração,
como quando os gêmeos míticos, Yoi e Ipi, reduzem o tamanho do mundo com
o(s) io(s)2 de cabelo de sua irmã para encurralar a onça que comeu o pai deles,
Ngutapa (Oliveira Filho, 1988; Goulard, 2009; Matarezio Filho, 2015b). O contrário
é o que se busca na dança do tracajá. Esta dança repete a performance que o ser
mítico Tchürüne ensinou aos Ticuna. De acordo com Gruber, ela é feita para expandir o mundo, evitar que ele diminua, promover a fartura3 e evitar catástrofes
que poderiam destruir os Ticuna4. Deste modo, há intervenções no “mundo” para
transformá-lo, ele pode ser ampliado ou reduzido. O que se revela é uma instabilidade, pois está sempre a um passo da destruição por um grande desastre,
como os relatados nos mitos.
“No princípio” (norigü), antes da solidiicação do mundo, o cosmos era
composto de um pó suspenso envolto em uma neblina branca (tawane) e úmida
(kaiyane) (Angarita, 2013: 29-32). A cosmogonia ticuna é narrada da seguinte
maneira por Angarita:
En medio de estos fenómenos meteorológicos (tawane rü kaiyane), de la nada
apareció el ser llamado Mowichina, quien se movía entre la bruma y la neblina;
era como el viento, aparecía y se desaparecía buscando dónde apoyar sus pies.
Este ̀üne [imortal/encantado] con el tiempo logró juntar con sus fuerzas las
partículas y concebir una massa esférica. Con sus pies amasó estas partículas
atmosféricas formando una esfera que llega a ser grande con el tiempo (Angarita, 2013: 32).
Patrícia Rosa nos dá mais informações sobre Mowichina e a formação do
“mundo” (na’ane).
Naquele tempo, dizem, não se conhecia o intercurso sexual para procriar. Contam que do vapor d’água surgiu Mowichina, um demiurgo, caracterizado como
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
195
1
Os Ticuna conformam
uma população atual de mais
de 50 mil pessoas distribuídas
entre Brasil, Colômbia e Peru
(Goulard 2009: 15). No Brasil,
constituem o mais numeroso
grupo indígena, contando
com quase 47 mil indivíduos
(IBGE, 2010). Estão distribuídos
ao longo da bacia do Rio
Solimões (AM), com sua maior
concentração no alto curso
deste rio e apresentando
também uma forte presença em
cidades amazônicas.
2
As versões variam entre
um único io (Goulard, 2009) e
vários ios (Oliveira Filho, 1988).
3
“Segundo os ticunas,
a dança do tracajá serve
para ampliar o mundo. Os
movimentos dos dançarinos,
para trás e para frente, vão
abrindo e espalhando cada
vez mais a superfície da terra.
Quando não se realizam festas,
o mundo diminui porque não
há danças. E diminui a fartura
de alimentos na aldeia porque
não são oferecidas as bebidas
feitas com os produtos da roça.”
(Gruber, 1999: 22-23).
4
O informante de
Valenzuela diz que a Festa da
Moça Nova, ritual em que se
executa a dança do tracajá, é
feita “para ampliar el mundo,
para que nunca, nunca se dañe
em cima de nosotros [Jorge
Manduca]” (2010: 73).
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
196
“um homem bonito, forte”. Como ele, surgiu sua “parenta” Ta’é, “uma mulher
forte como ele”. Do vapor d’água Mowichina cria o mundo e todos os “seres
viventes desse tempo”. (...) sempre que se avista a neblina sobre o rio, “é ele
[Mowichina] renovando o mundo” (Rosa, 2015: 89).
Retornarei a esta importante informação de que, naquele tempo, “não se conhecia o intercurso sexual para procriar”. Por hora, sigamos na sequência de seres
que povoarão o “mundo” neste princípio das coisas.
Mowichina cria, então, o Ngutapa, que “não tinha pai nem mãe nesse tempo, porque não tinha gravidez”, por isso, parece que eles só “faziam namoros
sem casamento”. (...) Não tinha, naquele tempo, vagina de mulher aberta, nem
isso de família (idem: 89-90).
Após solidiicar a terra e separar dela os cursos de água, algumas formas de vida
humana foram criadas. É criado o casal primordial, Ngutapa e Mapana.
As versões do mito de origem dos Ticuna variam um pouco. Em linhas
gerais, Ngutapa e sua esposa, Mapana, estão na floresta e Ngutapa amarra sua
mulher de pernas abertas. Mapana, amarrada, recebe a ajuda de um gavião
cão-cão (cõw – gralhão – Ibycter americanos)5 que lhe dá vespas. Noutras versões ela mesma se transforma em vespa. Mapana, transformada em vespa ou
arremessando uma casa de cabas, pica os joelhos de Ngutapa, que engravida
neste local. Em cada joelho foi gestado um casal de irmãos. No joelho direito,
Ngutapa gestou Yoi e Mowatcha e, no joelho esquerdo, Ipi e Aicüna (Matarezio
Filho, 2015b: 105). Esta, na maior parte das narrativas (Nimuendaju, 1952; Oliveira Filho, 1988; Goulard, 2009), é a primeira cena do mito de origem ticuna.
Antes de analisar a cosmogonia ticuna em suas relações com a formação
do corpo, gostaria de ressaltar que, neste início da formação, o “mundo”
(na’ane) é ü’üne, ou seja, instável e sem deinição6. A palavra ü’üne é muitas
vezes traduzida como “imortais” ou “encantados”. Goulard prefere deini-la
como “estado de imortalidade” (2009, 2011). Já Angarita (2013), como vimos,
ressalta a instabilidade, indeinição ou o fato de estar em processo de formação o que é designado como ü’üne. Outra forma de se designar o estado
do “mundo” neste momento em que ele é povoado por Ngutapa e seus ilhos,
é referir-se a ele como “verde” (do’ü), “com o mato bem baixinho” (bunecü), não
estava formado completamente7 (Matarezio Filho, 2015b: 176). O local onde
eles habitavam é chamado de Eware e existe até hoje, próximo a comunidade
de Vendaval, localizada às margens do rio Solimões. Gruber descreve a vegetação neste lugar desta forma:
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
5
Esta espécie de gavião tem
como hábito se alimentar de
marimbondos.
6
“En resumen, el
territorio ̀-üne es el inicio de
formación de Naane [“mundo”],
es el estado inestable sin
deinición de forma concreta
que a través de tiempo fue
formándose y moldeándose
hasta establecerse deinido,
pero nuevamente y con el
tiempo volverá a ser inestable.”
(Angarita, 2013: 120).
7
“(…) se dice que en tiempos
de Ngutapa (dios tutelar) el
mundo era verde, biche, en el
tiempo de hoy el mundo ya
es maduro “naana marü ya”.
(Valenzuela, 2010: 56).
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
197
Os velhos contam que as árvores do Eware são diferentes. A mata é baixa, nunca
cresce e nunca morre. (...) Essa vegetação do Eware se chama bunecü, porque é
sempre pequena e nova, como uma criança, bue (1998: 22).
Ou seja, estamos tratando aqui de uma vegetação imortal, “nunca cresce e nunca morre”, por isso ela se mantém sempre jovem.
O tempo de Ngutapa é o tempo da inexistência da vagina, da fertilidade
e da gravidez feminina. Então, temos uma passagem da indistinção do vapor
d’água para o par de demiurgos Mowichina e Ta’é, primeiros seres que aparecem
e começam a dar forma ao cosmos. Mowichina, em especial, dá origem a Ngutapa, cujo conflito com Mapana originará a “vagina de mulher aberta” (Rosa, 2015:
90; Pardo, 2008: 85). Juntamente com a origem da vagina – ocasionada pela
agressão de Ngutapa contra Mapana – ocorre a gravidez de Ngutapa, em seus
joelhos. Este último dá à luz a dois pares de casais de gêmeos. Somente a partir
desta geração é que a reprodução passará a ser sexuada8. No entanto, neste tempo, o mundo ainda vivia em completa escuridão. Antigamente não se via a luz
do dia porque Wõne, uma enorme samaumeira, cobria o céu com seus galhos. Yoi
é o responsável por derrubar a imensa árvore. A queda da árvore não só originou a
alternância entre o dia e a noite, como seu tronco, galhos e folhas se tornaram o
rio Solimões, os igarapés e lagos (Matarezio Filho, 2015b: 253).
Do coração (ma’ü̃ne) desta samaumeira nascerá um pé de umari (Poraqueiba
sericea), cuja fruta será uma mulher, a “ilha do umari” (Tetchi arü ngu’u). Ipi, o irmão travesso de Yoi, irá engravidar esta moça. Ao nascer a criança, ele busca jenipapo para ralar e pintar seu ilho, mas acaba se ralando todo. A borra de jenipapo
é jogada no rio e se transforma em peixes. O que se segue é a pescaria da qual se
originam os Ticuna (magüta) e os outros povos que habitam o mundo. Quando
decidiram deixar a convivência com os mortais (yunatü), Yoi e Ipi foram para lados
opostos do mundo, Yoi foi para o Oeste e Ipi para o Leste. Contudo, Yoi não gostou
da escolha e, à noite, “inverteu a terra para que Ipi permanecesse no Oeste, enquanto ele permaneceu no Leste da terra” (Nimuendaju, 1952: 134). Deste modo,
Ipi desceu o rio Solimões e Yoi subiu o rio, nestes locais eles permanecem até hoje.
Rio acima, portanto, é a terra onde mora Yoi e muitos outros imortais (ü’üne).
Pelo desenrolar do mito, podemos notar que o aparecimento da fertilidade
e da reprodução sexuada dos corpos ocorre em paralelo com a estabilização do
cosmos (na’ane). Tracemos um paralelo esquemático para icar mais claro:
(1) Vapor d’água → (2) formação do “cosmos” (na’ane) → (3) mundo verde (Ngutapa
e Mapana) → (4) derrubada da samaumeira por Yoi e Ipi ou origem do dia → (5)
inversão do curso do rio por Yoi → (6) passagem da água para a terra (pescaria
das gentes).
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
8
Rosa localiza a primeira
reprodução de “ilho pelo sexo”
no casamento de Mowatcha e o
quatipuru (2015: 96).
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
198
(1) Ausência de pessoas → (2) surge Mowichina, ser assexuado → (3) “faziam namoros sem casamento” (Ngutapa e Mapana) → (4) a “ilha do umari”, origem da primeira mulher casável / desejável → (5) separação de “mortais” (jusante) e “imortais”
(montante) → (6) nasce o ilho de Ipi e os magüta são pescados.
Portanto, a maturidade sexual dos corpos e do cosmos ticuna são atingidas em
paralelo na mitologia. Veremos que este paralelo encontra fortes ressonâncias
no ritual de iniciação das moças ticuna, a chamada Festa da Moça Nova9.
corpo e espaço
Na’ane é uma palavra complexa e de difícil tradução. Além dos sentidos que me
foram dados para na’ane (cosmo/mundo/terra/roça), todos evocadores de espaço10, Goulard airma ainda existir um sentido de tempo também neste termo.
Traduzido como “cosmos”, este termo “expressa, às vezes, o tempo, o espaço”
(Goulard, 2012: 19; Angarita, 2013: 142). Na’ane também é referido por Valenzuela como o “corpo de Ngutapa”. Ao semear a terra os Ticuna estariam alimentando o “corpo de Ngutapa”: “al sembrar se abre un espacio para uma esencia que
alimenta la tierra y Ngutapa la retribuye; el acto de comer no es simplemente
eso, nos apoderamos de la escencia de Ngutapa (los cuatro principios, porá:
fuerza o poder, conocimiento y sabiduría: kua, vida: mau y nae: pensamiento).”
(Valenzuela, 2010: 93). Se, por um lado, a terra é um corpo, por outro lado, o
corpo também pode ser semeado. O tabaco, por exemplo, é semeado no corpo
do recém-nascido através do sopro da fumaça do cigarro pelo pajé. Isso tornará
o corpo da criança mais forte (pora)11.
Os quatro princípios referidos acima por Valenzuela são também mencionados por Angarita como propriedades tanto dos corpos (üne), quanto do
“mundo” (na’ane). Este autor sintetiza desta forma a relação entre corpo e “mundo”: “todo Naane posee naüne y todo naüne es Naane” (2013: 147), ou seja, todo
território (naane) possui corpo (naüne) e todo corpo é território. Isto em função
de possuírem os mesmos “princípios fundamentais” (ibdem). Na’ane possui os
princípios que compõem os seres para os ticuna – pora, maü̃, kuã e ã’ẽ 12 –, humanos e não humanos, visíveis e invisíveis. “[S]oy Naane y Naane soy yo. (...) Naane es
humano vivo que se transforma en todo momento” (idem: 155) e todos possuem
uma origem comum, são formados pela mesma matéria e energia.
A análise morfológica que Abel Angarita realiza em sua dissertação sobre o
conceito na’ane contribui para reforçar a relação entre corpo e território, vejamos
o seguinte trecho:
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
9
Para análises mais
extensas desta Festa, ver
Matarezio Filho (2013, 2014a,
2014b, 2014c, 2015a, 2015b,
2015c), Valenzuela (2010) e
Goulard (2001, 2002, 2010, 2011,
2012).
10 “Remarquons qu’il existe
un seul terme dans la langue
tikuna pour désigner le cosmos
et le jardin, ce dernier étant
perçu comme un microcosme
du premier” (Goulard, 2010:
122). Angarita ressalta o fato
deste espaço ser construído:
“El concepto de Naane puede
ser traducido como “cosmos,
universo, territorio”. (...) Naane
signiica territorio construido o
hech.” (2013: 11).
11 “El tabaco crece en
el cuerpo, es porque se ha
implanta soplando su cuerpo
con el tabaco, es por eso que
se enrolla en su corana, se les
enrolla en sus piernas, es para
que se quede ahí. Se quedará
en su cuerpo, con eso tendrá
fuerza” (Angarita, 2013: 165).
12 O signiicado de cada
um deste termos é bastante
complexo. Simpliicando
bastante podemos traduzir
kuã como “conhecimento”
ou “sabedoria” (Valenzuela,
2010, Angarita, 2013) e pora
como “força” ou “poder” (idem;
Goulard, 2009). As palavras
maü̃ e ã’ẽ, por exemplo, são
referidas por Goulard (2009),
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
La palabra Naane está compuesta por tres morfemas: na, ser; –a, poseer, y –ne
tronco o carne, que se reiere a un ser que posee tronco, carne o cuerpo; en otras
palabras (...) (2013: 11).
Em outro trecho, o morfema –ne ganha sentidos adicionais:
El morfema -ne se reiere a la imagen, igura, gráica o diseño del ser (na). Ne signiica cuerpo, tronco, carne, sustancia, forma, representación o signo. Ne es o son las
formas de existencia animal, humana y vegetal, líquido, gas, vapor, fluido, energía,
el bien, el mal, ambiente, tierra, naturaleza, cosmos, universo, mundo, idea, pensamiento, conocimiento, el humano y los ̀ünetagü (plural de ̀üne). (idem: 10).
Baseando-me nos trechos acima, gostaria de destacar principalmente a conexão,
no pensamento ticuna, entre o território (na’ane) e o corpo (naüne)13, evidenciada
pelo morfema –ne. Esta evidência linguística nos aproxima de uma noção corpórea/corporal do cosmos14. Neste sentido, há algo aqui que nos remete ao célebre
artigo – divisor de águas da etnologia dos povos das Terras Baixas da América
do Sul – “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” (Seeger,
Da Matta e Viveiros de Castro, 1979). Como defendem os autores, a originalidade
dos povos desta região estaria numa noção de pessoa “com referência especial
à corporalidade enquanto idioma simbólico focal” (idem: 3). No caso ticuna em
questão, podemos airmar que o cosmo é uma pessoa magniicada, ampliada.
E, neste caso, a corporalidade de na’ane está presente não apenas como “idioma
simbólico”, mas de fato na língua, especiicamente, no morfema –ne. O cosmo
ticuna, e suas variantes espaço-temporais, possui tronco, carne, corpo.
fases do corpo e do cosmos, patamares do
cosmos e o aperfeiçoamento do corpo
Vimos acima que a formação da reprodução sexuada pode ser interpretada em paralelo à formação do cosmo ticuna. No entanto, é possível ainda ir além. O amadurecimento dos corpos também parece retomar o percurso de amadurecimento do
mundo. Isso se evidencia pela referência ao amadurecimento dos vegetais como
“idioma simbólico”15 para se referir ao amadurecimento dos corpos e do mundo.
É Angarita quem estabelece o paralelo a que estou me referindo. “El pensamiento tikuna percibe que todos los cuerpos transigen en distintas fases; inicio – plenitud
– inalización o niño – joven – adulto y biche (verde) – maduro – acabado – danado”
(2013: 116). As distintas fases do cosmo (na’ane) são identiicadas pelo linguista como
as seguintes: Naane na doü, “Naane verde”, Naane na bu, “territorio recientemente formado”, Naane na ỳ “territorio desarrollado, crecido o viejo”, Naane na yàchi rü na chie,
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
199
respectivamente, como
“princípio corporal” e “princípio
vital”. Estes dois últimos
componentes da pessoa são
mais vulgarmente traduzidos
como “espíritos”. É Angarita
quem complexiica melhor as
possibilidades de tradução dos
termos: maü̃, “Vida, función vital
del cuerpo, principio con el cual
funcionan los signos vitales
de desarrollo, crecimiento y
procreación” (2013: 152); ã’ẽ,
“principio de conocimiento,
pensamiento y razonamiento
(...) Es la capacidad del ser para
captar y aprender todo: hablar,
trabajar, dar y recibir consejos,
para recitar consejos, participar
y practicar los ritos de iniciación.
Es para conocer y saber de las
reglas clánicas y consanguíneas”
(ídem: 153).
13 Esta conexão também
foi desenvolvida pela análise
de Goulard (2009: 322-329).
Airma este autor, que “todos los
seres – sea cual sea su estado –
viven en espacios deinidos por
metáforas tomadas del cuerpo
físico” (ídem: 322).
14 “Se piensa tambien
el na-ane en forma
antropomorizada(...)” (Goulard,
2009: 325).
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
“território caduco acabado en caos” (idem: 116-117). O processo de amadurecimento
dos corpos e do território é similar ao que acontece com uma fruta, uma árvore ou as
fases da lua. O território e o corpo passam pelos mesmos processos de amadurecimento, passando de “verde” (doü) à “maduro” (ỳ) e, por im, “caduco” (ỳü̃-ỳüchi).
O cuidado com o corpo possui um efeito direto sobre o ambiente (Angarita, 2013:
106). Atualmente Naane está caduco, devido à desobediência das normas clânicas
de casamento e a negligência com a prática da Festa da Moça Nova (idem: 156-57). O
Eware, lugar onde habitam os imortais (ü’üne), é o lugar onde as pessoas “contaminadas” (puya) são colocadas à prova. Salvo algumas exceções – por exemplo, pessoas que
tratam do corpo para se puriicarem – todos os mortais (yunatü) estão contaminados
de puya em algum grau. A presença ou a proximidade de mortais contaminados por
puya no Eware acaba por reduzir a capacidade ou energia ü’üne (imortal) do local
(idem: 86). As ocorrências de incestos (womachi) também enfraquecem a imortalidade (ü’üne) do território (idem: 93-4). Outra causa relatada como obstrução dos
imortais é a presença de brancos. Portanto, por um lado, o não cumprimento da regra
de casamento afasta a imortalidade de um território, por outro lado, a realização das
Festas de Moça Nova atrai os imortais e torna o ambiente melhor para se viver.
O aperfeiçoamento corporal e os patamares do cosmo – também considerados na’ane – estão intimamente relacionados. Os seres que povoam os patamares
inferiores são também seres imperfeitos.
Conforme os patamares vão subindo, os
seres vão tornando-se mais “perfeitos”
(Angarita, 2013: 163). Na ilustração ao lado
podemos notar que, nos patamares inferiores ao na’ane dos mortais (yunatü) ticuna,
encontram-se os “homens sem ânus”, “homens sem olhos” e os “anões”.
a moça nova e o corpo verde
Das fases de amadurecimento dos corpos e
do cosmo que vimos acima, enfocarei agora
a maturidade do corpo ainda considerado
“verde” (do’ü), em especial o corpo da moça
que passa pelo ritual de iniciação. Ao ter sua
menarca (yaacügü), a menina ticuna é colocada em reclusão e sairá no último dia de
sua festa de iniciação. Valenzuela compara a
imaturidade do “mundo” e a imaturidade do
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
200
Figura 1
Ilustração retirada de Angarita
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
201
corpo da moça que acaba de menstruar. O autor menciona que a fala de seu informante demonstra uma conexão entre a madurês e a menstruação. Ao menstruar, a
moça estaria amadurecendo, como uma planta:
(…) se dice que en tiempos de Ngutapa (dios tutelar) el mundo era verde, biche,
en el tiempo de hoy el mundo ya es maduro “naana marü ya”. Esta última palabra “ya” contiene la noción de maduro y es usada por el abuelo Jorge Manduca al
referirse a la mujer luego de su menstruación “yagú” (2010: 56).
A moça deve permanecer em silêncio durante toda a reclusão, sob pena de
morrer atacada por um “bicho” (ngo’o). A mesma característica de “quietude”
também é atribuída ao mundo (na’ane) em formação. De acordo com Angarita,
o território que está em processo de formação (naane tama na yaane) “socialmente implica estar en quietud, em completa calma, realizando acciones que no
afecten la construcción corporal de Naane.” (2013: 118). Deste modo, a construção
corporal das moças e do território implicam numa mesma atitude transformacional. Como uma lagarta em seu casulo16, a quietude da moça em seu quarto de
reclusão contribuirá para a passagem esperada no ritual.
Em um trecho de uma canção que é entoada na Festa da Moça Nova a moça
é comparada a um “ingá magrinho” (Matarezio Filho, 2015b: 310). Temos novamente aqui um exemplo do que Goulard chamaria de “metáfora vegetal” (2009)
usada para se referir à pessoa ticuna. A maturidade do corpo da moça é pensada
nestes termos, como o amadurecimento de uma planta. No entanto, para além
da “metáfora”17, devemos pensar quanto os Ticuna não possuem uma espécie de
“natureza vegetal”, ou seja, pertencem ao mesmo “plano de imanência” (Viveiros
de Castro, 2015) das plantas e vice-versa (“natureza” ticuna das plantas). Desta
forma, pessoas e plantas sofreriam processos de amadurecimento idênticos.
Estaríamos diante de desenvolvimentos paralelísticos que – me baseando nas
conclusões de Lima para a caça de porcos entre os Juruna (Yudjá) – “não remetem a nenhuma realidade objetiva ou externa, equiparável ao que entendemos
por natureza” (1996: 35). O amadurecimento dos corpos, das plantas e do cosmos
– que, aliás, possuem os mesmos princípios constituidores – seriam um referente do outro (ibdem). A professora ticuna Hilda Thomas do Carmo, que traduziu
esta canção comigo, me disse que o trecho abaixo faz referência “às crianças que
apanham o ingá verde, antes da hora”:
Tautatürü aicümatatürü damaücütürü bacatchacane ya tuerü’ü̃ta ngipe’eguwai curü bacaparane curümama damatatürü buãtatürü i bugune
yayima nhemane yapama rü’ü̃ doüemata cuüiyacawe aitchatarü ngetücü
pa iri, iri, pa woworecü.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
16 “[Los Ticuna s]e utilizan,
para signiicar la nueva situación,
metáforas tomadas de los
mundos vegetal y animal. Una
de ellas compara su aislamiento
con el de la larva del insecto que
espera que le nazcan las alas para
salir de su crisálida y convertirse
en mariposa” (Goulard, 2009:
156). Cf. também Nimuendaju
(1952: 89).
17 “Noções como metáfora e
metonímia (...) nos atrapalham
em nossos anseios de
determinar a lógica subjacente
das chamadas proposições
aparentemente irracionais”
(Lima, 1996: 29)
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
202
Será que você vai icar bonita como olho da macaxeira na frente da sua mãe,
com a batata da perna bem grossa e bonita? Será que você vai icar igual o ingá
ainda verde (doü), magrinho, que a criança apanha? O aitcha rapaz solteiro vai
apanhar você, moça nova?
Em contraposição ao “ingá magrinho” temos a macaxeira vistosa, como se pretende que a moça ique. Isto está indicado pela palavra baca, que me foi explicada como “quando a maniva está bem bonita, bem madurinha, com os brotos das
folhas bonitos”. Na música a cantora compara a planta da macaxeira bem viçosa
com a moça nova que vai sair da reclusão.
Nesta canção aparece ainda o pássaro aitcha. Não consegui identiicar esta
ave, mas ele aparece no livro dos pássaros ticuna (OGPTB, 2002). Aqui temos
a referência de que o aitcha pegará a moça ainda “verde”, como o ingá verde.
Trata-se uma comparação com um casamento ou relação sexual feitos antes do
tempo. A moça depois de sair da reclusão ainda deve esperar um tempo para
se relacionar com seus futuros parceiros. Uma das razões para a Festa ser feita
é para que o ventre da moça não se esfrie, não tenha “odor verde”18, ou seja, que
adoece facilmente. Esta é a mesma explicação de ouvi do professor ticuna Ondino Casimiro sobre o caminho de cinzas que é feito para que a moça ou a mãe
no puerpério caminharem até o rio. Isso é feito para que seu corpo não esfrie, ou
seja, mantenha-se saudável e fértil.
o gosto amargo do incesto
Existe uma relação no pensamento ticuna entre a maturidade do corpo e o
incesto ou “sexo mal feito”19 (womatchi). Para compreendermos esta relação
devemos antes examinar a origem dos clãs e sua relação com o paladar. O mito
ticuna de origem dos clãs conta, resumidamente, que o herói mítico Yoi foi
entregando às pessoas recém-pescadas porções do caldo de uma espécie de
jacaré (niri) e elas foram adquirindo paladares distintos e, portanto, clãs diferentes. A concepção ticuna de clãs, portanto, evoca um aspecto sensível da pessoa
que pertence a ele. O mito que narra a origem dos clãs, coletado por Goulard,
começa com a seguinte frase: “Naquele tempo as pessoas não tinham sabor”
(2009: 411). Um dos termos utilizados para se referir ao clã, além de _kü-a20, é
justamente _ãka, literalmente “pela boca”, expressando a noção de “gosto”, “sabor” (idem: 94). A partir do momento em que Yoi obrigou as pessoas “sem sabor”
a provarem um caldo, elas possuem “sabores”, ou melhor, paladares distintos
e pertencem a clãs distintos. Antes de serem separados desta forma, os Ticuna
eram incestuosos e isto causava diversas catástrofes – dilúvios, terremotos – que
extinguiam os primeiros seres. Contudo, esta mudança corpórea, a ingestão do
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
18 “(...) el vientre, la matriz;
que no se enferme, que no se
enfríe que no entre frío, porque
en ese momento para nosotros
la mujer expide un olor, un
olor como a verde, nosotros le
decimos a verde, que si no se
cuida se enferma fácilmente,
esa es la parte más delicada
donde va a formar nueva vida”
(Valenzuela, 2010: 112).
19 Sobre está tradução do
termo womatchi, em geral
traduzido como “incesto”, ver
Rosa (2015). Esta noção de
incesto também se conecta com
a de puya, poluição ou os “males
do corpo” (Matarezio Filho
2015b: 235 e passim)
20 Nimuendaju (1952) utiliza
a notação kia’ e Cardoso de
Oliveira (1983[1961], 1983[1964])
escreve kie para se referirem à
mesma ideia.
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
caldo do jacarezinho (niri), cria pessoas distintas, pessoas que tem paladar e que,
por isso, obedecem a uma regra de casamento.
Incesto e paladar, portanto, estão intimamente relacionados no pensamento
ticuna. Esta relação é detalhada por Goulard da seguinte forma:
A situação de incesto produz um estado amargo, da-ü. Mas o amargor é uma expressão da imaturidade, de tudo o que ainda está verde, do-ü (não suave-amargo). Assim, no mito de origem, a terra estava verde, do-ü, ela estava instável;
somente o im das relações incestuosas pela institucionalização dos clãs permitiu
sua estabilidade (2004: 89, tradução minha).
Conforme as pessoas adquirem “sabor”, elas podem se casar de modo correto.
Portanto, a regra matrimonial foi criada pelos paladares distintos sentidos pelas
pessoas, mas, ao mesmo tempo, estes paladares podem ser alterados, amargados, em caso de quebra da regra. Podemos notar isso no exemplo dado por Bueno: “Uma pessoa que tenha esses hábitos condenáveis [desobediência às regras
matrimoniais, dentre outros] pode até sentir outros sabores ao experimentar os
alimentos, que ao invés de doces lhe pareçam amargos, por exemplo” (2014: 57)
Mostrei até aqui, portanto, a relação entre a (i)maturidade do mundo e a (i)
maturidade dos corpos das pessoas. A ontologia ticuna – e as canções entoadas
no ritual feminino atestam isso – estabelece o corpo como ainda verde na infância e o mundo dos imortais também ainda verde. Enquanto os clãs não foram
instituídos e as pessoas começaram a casar corretamente a terra foi destruída
várias vezes por diversas catástrofes. Com a instituição dos clãs pelos paladares
distintos dos corpos, a terra se estabiliza, “amadurece”. A terra do mito e a terra
dos imortais é imatura, assim como os corpos destes seres está “em formação” e
os corpos das moças iniciadas, também se formando.
sangue e cosmologia
No que segue veremos algumas relações que o corpo da moça que passa pela
iniciação (worecü) mantém com o cosmos. A relação entre o território e o corpo – ou, como pretendo mostrar também, os rios e o sangue – é estabelecida
pelo ticuna Abel Angarita no seguinte comentário: “La sangre es la esencia, es
el agua de la inmortalidad, que circula en un cuerpo cerrado que es el territorio.
(Abel Santos, com. per.) ” (Valenzuela, 2010: 91). Vimos que existe uma “natureza
vegetal” ticuna, que estabelece o corpo como ainda verde na infância e o mundo
dos imortais também ainda verde. A citação acima estabelece uma relação entre
o sangue que circula no corpo e os rios que correm no mundo. O corpo seria um
território fechado, onde circula o sangue, a “água da imortalidade”. Neste senRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
203
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
tido, tudo leva a crer que uma abertura deste sistema fechado, o próprio corpo
que menstrua, provocaria uma reviravolta cosmológica.
O contato com as águas do Eware, ou de um igarapé qualquer após a moça
passar por todo o ritual, seria a única forma controlada de lidar com a abertura
deste sistema de “rios” de sangue que é o corpo e seu sistema circulatório. Notemos bem que a ligação entre estes dois sistemas deve ser controlada, para isso
que serve o ritual, já que quando estão menstruadas as mulheres não podem
se aproximar muito do rio, sob o risco de serem raptadas pela cobra-grande
(Yewae). Um episódio mítico que torna essa relação entre sangue e rio mais
evidente é o inal do mito de To’oena, a primeira moça nova. Por desobedecer a
regra de se manter reclusa, no inal do mito o corpo de To’oena, transformado
em caça, se esvai em sangue no igarapé Tunetü, afluente do Eware (Matarezio
Filho, 2015b: 519).
A periodicidade do corpo das moças também está intimamente conectada à
periodicidade astronômica. Camacho (2000) nos apresenta três variantes muito
semelhantes do mito de Lua para os Ticuna. Este astro e sua irmã são do clã da
garça (idem: 41). O sol é do clã da arara. Lua e Sol, portanto, são de clãs “com
pena”21, mas têm raiva um do outro (idem: 45). Camacho também faz referência
a Lua como o responsável pela menstruação mensal das mulheres: “O jovem Lua
gosta das mulheres, cada mês ele baixa à terra, por esta razão vem às mulheres a
menstruação” (idem: 44). Baseados nisso, podemos airmar – algo que Belaunde
(2005, 2006) generaliza para todas as Terras Baixas da América do Sul –, para os
Ticuna: a menstruação não é considerada algo natural do corpo feminino. Pelo
contrário, a menstruação “vem às mulheres” por efeito da visita de Lua à terra
todos os meses. Para subir ao céu, Lua vai pelo tronco oco de uma árvore, quando chega lá em cima vemos a lua cheia (natamüü) (Camacho, 2000: 44).
Segundo Belaunde, o mito de Lua, tão difundido nas Américas, teria uma
função mnemônica do tabu do incesto, ou seja, sugere “que a estória do incesto
de Lua seja um mito sobre como a memória torna possível que as mulheres separem irmão de cônjuge (...) o incesto primordial de Lua é a instância fundadora
do parentesco humano, já que impõe o domínio da memória” (2006: 225-226).
Um dos índices desta memória “fundadora do parentesco humano” é a própria
periodicidade da Lua e seu correlato, a periodicidade do corpo feminino. Além
da lua, presente nas pinturas no ritual, esta memória é agenciada também pelo
fruto desta união incestuosa, a estrela da manhã, ilho de Lua e de sua irmã.
Um dos nomes do ilho de Lua é Womatchi, o próprio termo ticuna usado para
designar o incesto22.
Em uma das “canções de moça” (worecütchiga)23 que gravei em campo a referência ao sol aparece ao longo de toda a música, como nos seguintes trechos:
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
204
21 Ou seja, da mesma
metade exogâmica, já que o
sistema de parentesco ticuna
divide as pessoas em duas
metades, os clãs “com penas”
(aves) e os clãs “sem penas”
(outros animais e plantas).
22 “Três nomes para a mesma
pessoa: Wora, Womatchi
e Woremecuri, a estrela
da manhã, o ilho da lua”
(Faulhaber, 2003: 42)
23 Gravação de Ondino
Casimiro, comunidade de Nossa
Senhora de Nazaré, município
de São Paulo de Olivença (AM).
Cf. Matarezio Filho (2015b: 252).
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
205
Natchawatayecu awreün ya oi oi gamacuaratchi
Por sua causa eu estou de resguardo, vovô, vovô, sol
Iri iri iri pa worecü
Moça nova
Nhumarüwai moünrütawai cunamawai oi oi yama cuaratchi
Agora mesmo, amanhã mesmo, você mesmo, vovô, vovô, sol
Cumatürüwai baatchigu
Com seus raios na aurora
Natanũwata icü tchiitchigu curügunegü
Saia e ique de pé no meio dos festeiros, teus festeiros
Iri iri iri pa worecü
Moça nova
(...)
Tchinagücü ya oi, oi yama cuaratchi cumatürüna natchinagügu
Vovô, vovô, sol, icará de pé com você
Tacatürüyecu tchiitchiün
Apareça, saia da reclusão para nós
Iri iri iri pa worecü
Moça nova
Para compreendermos este pedaço da canção devemos ter em mente o mito da
samaumeira derrubada por Yoi, que vimos acima.
A existência de uma periodicidade astronômica, a alternância entre o dia e
a noite, portanto, é colocada em paralelo com o ciclo menstrual feminino: “por
sua causa eu estou de resguardo, vovô, vovô, sol”, diz a canção acima. A alternância entre o dia e a noite precede a periodicidade do corpo feminino. É como se
a origem do dia, num mundo onde só existia a noite, fosse o princípio de toda
a alternância. Como a menarca que transforma uma menina estéril num corpo
fértil cíclico. Se este raciocínio estiver correto, teríamos a seguinte proporção, dia
: noite :: menstruação : não-menstruação. Um mundo com uma noite eterna,
como antes de Yoi e Ipi derrubarem a samaumeira mítica, seria como uma mulher que nunca menstruou.
O controle da periodicidade feminina é feito também no sentido de não
“comprometer a ordem do mundo” (Lévi-Strauss, 2006 [1968]: 200)24. Devido
à equivalência postulada pelo pensamento indígena entre as várias periodicidades, a falta de controle sobre a menstruação pode “pôr em risco a ordem
do universo” (idem: 199). Lévi-Strauss usa propositalmente a palavra regras em
seu duplo sentido para evocar o duplo perigo da “insubordinação social” e da
“insubordinação isiológica” das mulheres (ibdem). As regras são impostas às
moças ticuna durante iniciação. Principalmente nos inúmeros cantos de aconRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
24 “O perigo de qualquer
desrespeito das mulheres a
uma periodicidade estrita
comprometer a ordem do
mundo, com gravidade
comparável à de uma suspensão
da alternância entre dia e noite
ou o embaralhamento das
estações, evidencia-se também
no modo como os mitos e ritos
procedem para fundar uma
equivalência entre os vários
tipos de periodicidade do
calendário.” (Lévi-Strauss, 2006
[1968]: 200).
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
selhamento que elas ouvem durante os três dias de festa, mas também numa
espécie de educação corporal pela qual a moça passa, submetendo sua postura,
pele, dieta, resistência à dor, seu silêncio, etc., também a regras estritas. Todas
estas regras inculcadas pelo ritual “constituem o penhor e o símbolo de outras
regras, cuja natureza isiológica atesta a solidariedade que une os ritmos sociais
e cósmicos” (ibdem).
Sabiamente, Lévi-Strauss lembra que o controle da menstruação pelos
ameríndios refere-se também a um asseguramento da periodicidade temporal
de um modo geral. O perigo de uma ausência de periodicidade, ou uma periodicidade excessivamente acelerada, é retratado nos mitos ticuna que falam dos
imortais (ü’üne). O mito de Ngowarutcha e Ngunetuma (Firmino e Gruber, 2010,
vol. 3) nos mostra uma temporalidade diferente operando na terra dos imortais.
Após passar dias na floresta, Ngowarutcha chega na beira de um campo e vê uma
casa. “Onde ele chegou era um lugar bom para ele. Era a casa de Ngonetuma”.
Eis a mulher que o recebe com boas-vindas na terra dos encantados (ü’üne).
O nome Ngonetuma pode ser traduzido, segundo o ticuna Ondino, como “dia
que não anoitece” (ngone = dia). Ngonetuma levou então Ngowarutcha para um
lugar cheio de “bichos” (ngo’ogü). “Ele olhou dentro do lugar e viu muitos bichos
(ngo’ogü) andando com os machados deles. Em meio minuto escureceu e ele viu
os bichos”. Perguntei a Ondino, que traduzia a história comigo, como aconteceu
aquele escurecer tão rápido. Ele me explicou que “não é muito escuro, é como
quando a nuvem cobre o sol, só um momentinho. Então clareou de novo”. As
noites neste lugar passariam assim, rapidamente, e logo clarearia de novo. “Para
este pessoal, Ngonetuma, quando passava uma nuvem no sol, escurecia um
pouquinho, era como se tivesse anoitecido e passado outro dia. Em um minuto,
meio minuto, já era outro dia para eles. De repente, escureceu, clareou e já era
outro dia”. Ondino comentou que neste local o tempo passava muito rápido. Este
mito nos mostra, portanto, que a terra dos imortais é um lugar onde, num piscar
de olhos, literalmente, o dia se transforma em noite e vice-versa. Evocamos, com
isso, o caráter temporal e altamente transformacional do conceito de cosmo
(na’ane) ticuna.
Ngowarutcha é uma criança que é abandonada por seus cunhados na floresta, exceto um. Trata-se, no mesmo mito, de uma dupla negação da periodicidade: (1) a viagem de Ngowarutcha para um local onde a periodicidade astronômica é rápida demais e (2) a negação da regularidade da troca de cônjuges, já
que, expulsando o atual doador de esposas (as irmãs de Ngowarutcha) e futuro
tomador, quebra-se a periodicidade da troca de cônjuges.
O pensamento indígena transpõe esta desregulação da periodicidade
astronômica para a desregulação da periodicidade do corpo feminino. Vejamos
como Lévi-Strauss demonstra esta transposição entre estes dois códigos:
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
206
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
Se principalmente as mulheres precisam ser educadas, é porque são seres periódicos. Devido a isso, elas se encontram constantemente ameaçadas – e por causa
delas, o universo inteiro – pelas duas eventualidades que acabamos de evocar.
Seu ritmo periódico pode se desacelerar e imobilizar o curso das coisas. Ou pode se
acelerar, e precipitar o mundo no caos. Pois o espírito pode com a mesma facilidade
imaginar que as mulheres deixem de gerar e de icar menstruadas, ou que sangrem sem parar e deem ̀ luz a torto e a direito. Em qualquer uma dessas hipóteses,
os astros que regem a alternância dos dias e das estações não poderiam mais desempenhar seu papel. Sempre afastados do céu pela busca, doravante impossível, de
uma esposa perfeita, sua demanda jamais terminaria (2006 [1968]: 459).
Uma desregulação da periodicidade feminina se desdobra num caos cósmico.
Seja pelo excesso de sangramento – como o caso de To’oena – ou pelo estancamento deinitivo dele. Numa cosmologia em que Lua é o responsável por iniciar
a primeira menstruação das moças, uma desregulação do corpo implica num
comprometimento da alternância entre dia e noite, e entre as estações do ano.
Para os ameríndios, de maneira geral, o primeiro sangramento menstrual de
uma moça é um evento que diz respeito não somente à toda a comunidade em
que ela vive, mas pode até mesmo alterar a ordem cósmica (Lévi-Strauss, 2006
[1968]: 199, Belaunde, 2006). Para os Ticuna, em particular, a periodicidade cósmica e a relação com todos os outros seres que habitam o universo dependem
de um bom andamento nas primeiras regras das mulheres.
fios de cabelo da moça e fios do mundo
Como mencionei no início deste texto, a terra foi reduzida no tempo mítico
usando-se o(s) io(s) de cabelo da cabeça de Mowatcha, a irmã que nasceu do
mesmo joelho que Yoi, o joelho direito de Ngutapa. Fica claro que a quantidade
de cabelo é exígua, além do fato de um io de cabelo ser extremamente frágil
para tal empreendimento. Contudo, os irmãos conseguem amarrar o “mundo” e
encurtá-lo. Tendo em vista que o ponto alto da Festa da Moça Nova é o momento em que a moça tem todos os seus cabelos arrancados, temos aqui uma inversão que o ritual aplica ao mito. Durante o ritual, todos os ios são arrancados da
cabeça da moça nova, ao contrário do que acontece no mito, em que um único
io é tirado da cabeça da irmã dos gêmeos. Ao mesmo tempo, um dos motivos
para a Festa ser realizada é, como vimos, a ampliação do mundo, através da
dança do tracajá. Enquanto no mito o mundo é reduzido, no ritual ele é ampliado (Matarezio Filho, 2015b: 443-44).
Segundo Luisa Elvira Belaunde, “[p]or toda a Amazônia, sangrar é a ‘troca de
pele/corpo’ par excellence, e são as mulheres quem mais evidentemente fazem
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
207
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
com que isso aconteça, em suas regras e no nascimento da criança.” (2006: 207208). Os Ticuna não fogem a esta regra amazônica, o mesmo acontece com a
moça nova ao ter sua primeira menstruação. Ela inicia uma troca de pele, como
fazem as cobras, quando tem sua menarca, mudança esta que é exacerbada durante o ritual. O processo começa com o primeiro sangramento da moça, a pintura de todo o corpo com jenipapo favorece a renovação da pele e, ao inal do ritual,
os cabelos arrancados inalizam a “troca de pele”, o rejuvenescimento da moça.
Outra referência importante é a feita à Mowatcha. Não se trata de qualquer
cabelo capaz desta prova de força. Para estreitar o mundo usaram o cabelo da
irmã que nasceu junto com Yoi, o mais valoroso herói cultural ticuna. Mowatcha
muitas vezes é referida como a “bem aconselhada” (a-a-emaekü) (Goulard, 2009:
394), justamente o que se pretende das moças que passam pelo ritual, serem
bem aconselhadas pelas mulheres mais velhas.
A noção ticuna de “io” (tü) é algo que nos indica bastante da importância
dos cabelos no ritual e a conexão que existe entre os corpos e o cosmos. Os ios
conectam os corpos entre si e os corpos ao cosmo (na’ane). Nos diz Angarita
sobre estas conexões, que
[l]os yuukügü [xamãs] consideran que los cuerpos están interconectados con todas las estructuras de Naane por el medio que es el tü [“io”], que intrínsecamente está conformado por el tabaco implantado en el cuerpo de las personas (...) En
in, el cuerpo está íntimamente ligado a los demás cuerpos, cualquier desorden
individual, afectará relativamente a todos los del medio circundante y viceversa
(2013: 177-78).
O mundo e os corpos estão, portanto, interconectados por tramas de ios. Esses
“ios” (tü), visíveis apenas aos olhos dos pajés, estão intimamente relacionados
aos cabelos (yae) das moças que são arrancados no ritual. Nas palavras do xamã
Pedro à Rosa, “na’ane é feita no comecinho, com os ios [tü*] de cabelo das mulheres ancestrais” (2015: 84).
conclusão
Procurei mostrar ao longo deste texto – inspirado na proposta de Rivière de um
mundo ameríndio “altamente transformacional” – as múltiplas relações entre o
corpo e o uma particular noção de território dos Ticuna. Vimos que esta noção
de território se desdobra numa polissemia que inclui vários espaços – a roça, o
mundo e mesmo todo o cosmo –, além da referência temporal todas incluídas
no termo na’ane. Todos estes espaços-tempos são pensados como construídos
por obra de alguma agência, não são um dado da “natureza”, assim como a
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
208
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
própria menstruação. Acontecimento isiológico por natureza para o mundo
ocidental, a menstruação não é da ordem da natureza para os povos ameríndios
(Belaunde, 2006: 217). No âmbito desta fabricação e manutenção da ordem
cósmica, procurei delinear a íntima conexão que existe entre o cuidado e a construção do corpo e esta ordem, com um destaque especial para o corpo da moça e
o ritual de iniciação feminina.
Procurei mostrar a variante ticuna das práticas e concepções amazônicas da
menarca e suas relações com as transformações do corpo e do território que, no
caso ticuna, sofrem um desenvolvimento paralelo. Este artigo pode ser considerado uma contribuição ao estudo comparativo de Belaunde (2006), na medida
em que relaciona corpo, território e menstruação, de uma perspectiva ticuna.
Um exemplo mais próximo da região ticuna deste tipo de relação poderia ser
encontrado nas etnograias da região do Vaupés, Noroeste amazônico (cf., por
exemplo, Cayón, 2010)25. Uma análise comparativa das variações da relação
destes termos entre os povos do alto rio Negro e do alto rio Solimões – áreas etnográicas muito próximas, mas ainda pouco comparadas – aguarda um desenvolvimento que se mostra bastante produtivo.
No princípio, o cosmo ticuna é caracterizado como “imortal”, instável e sem
deinição (ü’üne), ainda em formação ou verde (do’ü). Com o envelhecimento
do “mundo”, apenas algumas partes, como o Eware, mantêm esta qualidade de
“imortal”. No entanto, as intervenções no “mundo” no sentido de transformá-lo
ainda estão em curso. Desta maneira, mostrei como a plasticidade do cosmo é
acessada tanto no mito – por exemplo, quando o mundo é reduzido com um io
de cabelo – quanto nas danças rituais que expandem a superfície da terra. Principalmente, as intervenções nos corpos não só trazem consequências para o cosmo
como o próprio cosmo é pensado como um corpo (naüne). Vimos como as fases
de formação do cosmo remontam às fases de amadurecimento dos corpos. Em
especial, foquei o paralelo que existe entre o amadurecimento sexual dos corpos e
o surgimento da reprodução sexuada ao longo da formação do “mundo” (na’ane).
A moça que passa pelo ritual de iniciação também é considerada “imortal”
(ü’üne) e tem seu corpo ainda verde (do’ü), em formação. Este corpo verde, imaturo, se conecta, como vimos, a uma noção de incesto (womatchi) que remete ao
sabor amargo. É com a instituição dos diversos paladares que a terra se estabiliza e não é mais destruída pelas catástrofes relatadas nos mitos. No entanto, a
ocorrência do incesto nos dias atuais mantém sempre em risco o cosmo.
O sangue é comparado ao sistema de rios, a periodicidade do corpo feminino encontra equivalência com outras periodicidades astronômicas. Baseados
nestas análises, podemos airmar que o pensamento ticuna estabelece uma
equivalência entre a periodicidade da alternância do dia e da noite (astronômica) e a periodicidade do corpo feminino (isiológica). Daí a importância de
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
209
25 Agradeço às(aos)
pareceristas anônimas(os) por
esta indicação, dentre outras
que tentei incorporar ao texto.
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
um ritual feito logo após a primeira menstruação de uma moça. Vimos que o
momento mais esperado do ritual de iniciação feminina é o arrancamento dos
cabelos das moças. Cabelos (yae) estes que estão intimamente relacionados
aos ios (tü) que conectam os corpos entre si e os corpos ao cosmo. O ritual mais
importante para os Ticuna, portanto, a Festa da Moça Nova, é uma forma de
assegurar o bom andamento da ordem cósmica.
Edson Tosta Matarezio Filho é pós-doutorando do Departamento de Antropologia da USP, com período de estagiado no Laboratoire d’Anthropologie Sociale
(LAS/EHESS/Paris). Seu mestrado “Ritual e Pessoa entre os Waimiri-Atroari” de
2010, foi publicado em 2014. Dirigiu os ilmes documentários “O que Lévi-Strauss
deve aos Ameríndios” (LISA, 2013) e “IBURI Trompete dos Ticuna” (LISA, 2014).
referências bibliográficas
ANGARITA, Abel Antonio Santos (Wachiãükü)
2008 “Territorio – Cuerpo – Agua”. In TELLO, Carlos (org.). Lenguas y tradición
oral - IX Encuentro para la Promoción y Difusión del Patrimonio Inmaterial
de Países Iberoamericanos. Colômbia, ISBN: 978-958-98841-0-2.
2010 “Narración tikuna del origen del territorio y de los humanos”.
In ECHEVERRI, Juan Álvaro (org.). Mundo Amazónico. Revista
anual, volumen 1, Leticia, Colombia, Instituto Amazónico de
Investigación (IMANI), Universidad Nacional de Colombia.
2013 Percepción tikuna de Naane y Naüne: territorio y cuerpo. Leticia,
Colômbia, teses, Universidad Nacional de Colombia, Leticia.
BELAUNDE, Luisa Elvira
2005 El recuerdo de luna: género, sangre y memoria entre los pueblos
amazónicos. Lima, Universidad Mayor de San Marcos.
2006 “A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero
na Amazônia”. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 49, n. 1.
BUENO, Maria Isabel Cardozo da Silva
2014 Sobre encantamento e terror: imagens das relações entre
humanos e sobrenaturais numa comunidade Ticuna (Alto
Solimões, Amazonas, Brasil). Rio de Janeiro, tese, UFRJ.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
210
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
CAMACHO, Hugo A.
2000 Historias de los abuelos de Moruapü. Bogotá,
Imprenta Nacional de Colombia.
CAYÓN, Luis
2010 Penso, logo crio: a teoria makuna do mundo. Brasília,
tese, Universidade de Brasília.
FAULHABER, Priscila
2003 “Descrições da indumentária ritual de dança da coleção
ticuna do Acervo Curt Nimuendaju do Museu Paraense
Emílio Goeldi”. In FAULHABER, Priscila (org.). Magüta Arü
Inü. Jogo de Memória - Pensamento Magüta. (CD-Rom).
FIRMINO, Lucinda S. e GRUBER, Jussara G.
2010 Ore i nucümaügüü: Histórias Antigas, volumes 3. Benjamin
Constant, Amazonas, Organização Geral dos Professores
Ticunas Bilíngues – OGPTB, (Coleção Eware).
GOULARD, Jean-Pierre
2001 “Le Costume-masque”. Bulletin Société Suisse des
Américanistes, Genève, v. 64-65: 75-82.
2002 “Le Temps du passage: exister pour vivre: L’Entre-deux
chez les Ticuna d’Amazonie”, Autre: cliniques, cultures et
sociétés : Revue Transculturelle, vol. 3, n. 1. Paris.
2004 “Du Héron cendré au jaguar ou comment l’identité clanique
fait le corps chez les Ticuna”. In HÉRITIER, Françoise e
XANTHAKOU, Margarita (orgs.). Corps et affects. Odile Jacob.
2009 Entre mortales e inmortales – El ser según los Ticuna de la
Amazonía. CAAAP, CNRS-MAEE-IFEA, Lima.
2010 “Le Sens du poil chez les Tikuna (Amazonie)”, Cahier
d’anthropologie sociale, n. 6, Polis et Sang, L’Herne.
2011 “La Sur-face du masque: perpétuation et métamorphose chez les
Tikuna”, In GOULARD, J.P. e KARADIMAS, D.(orgs.), Visages des dieux,
masques des hommes, regards d’Amazonie. Paris, CNRS-Editions, p. 129-153.
2012 “La metamorfosis ritual: la identidad religiosa en la Amazonia”.
Revista Colombiana de Antropología, vol. 48 (2): 15-37.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
211
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
GRUBER, Jussara Gomes
1999 Instrumentos musicais ticunas, apostila manuscrita. Publicado
também no volume organizado por Antonio Alexandre Bispo: Die
Musikkulturen der Indianer Brasiliens - II, em Musices Aptatio-1996/97Jahrbuch, Roma, Consociatio lntemationalis Musicae Sacrae.
IBGE
2010 Censo Demográico 2010 – Características gerais dos indígenas – Resultados
do universo. Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística – IBGE, ISSN
0104-3145, Censo demográico, Rio de Janeiro, p.1-245. Disponível
em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demograico_2010/
Caracteristicas_Gerais_dos_Indigenas/pdf/Publicacao_completa.pdf
LÉVI-STRAUSS, Claude
2006[1968]
A origem dos modos ̀ mesa. São Paulo, Cosac & Naify.
LIMA, Tânia Stolze
1996 “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em
uma cosmologia tupi”. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2: 21-47.
MATAREZIO FILHO, Edson Tosta
2013 “Trompetes ticuna da Festa da Moça Nova”. Anais do VI Encontro
Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, 27-31
maio, 2013, João Pessoa, Paraíba / organizadores: Carlos
Sandroni e Alice Lumi Satomi. – João Pessoa: UFPB. Disponível
em: http://abetmusica.org.br/dld.php?dld_id=168
2014a “Para crescer é preciso sofrer A Festa da Moça Nova dos Ticuna”. Anais do
II Seminário Infância Criança Indígena. São Carlos: Universidade Federal
de São Carlos, v. 1. p. 1-10. Disponível em: https://www.academia.edu/
attachments/35602409/download_ile?st=MTQ2MTYxMjc3NCwxODku
MzMuMjQwLjc1LDMzNjc3NDM%3D&s=proile
2014b “Desaios de tradução em uma língua indígena – Ticuna”. In FALEIROS,
Álvaro; FRANCISO, Mário Ramos; ROSA, Gisele Marion; LATORRE, Vanice
Ribeiro Dias (orgs.). Jornada TRADUSP: tradução e poética. 1ed. Rio de
Janeiro, Vermelho Marinho, v. 1, p. 73-86. Disponível em: http://citrat.
fflch.usp.br/sites/citrat.fflch.usp.br/iles/u13/JornadaTRADUSP2013.pdf
2014c “Do corpo ao cosmos - condensações rituais dos Ticuna”. Periferia
(Bellaterra), v. 19: 28-54. Disponível em: http://ddd.uab.cat/pub/
periferia/periferia_a2014m6v19n1/periferia_a2014m6v19n1p28.pdf
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
212
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
2015a “Trompetas Ticuna de la Fiesta de la Moça Nova”. In BRABEC
DE MORI, Bernd; LEWY, Matthias e GARCÍA, Miguel A.
(orgs.). Mundos audibles de América. Cosmologías y prácticas
sonoras de los pueblos indígenas (Estudios Indiana 8). Berlim,
Iberoamerikanisches Institut / Gebr. Mann Verlag. Disponível em:
http://www.iai.spk-berlin.de/ileadmin/dokumentenbibliothek/
Estudios_Indiana/Estudios_Indiana_8_online.pdf
2015b A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios
Ticuna, São Paulo, tese, USP. Disponível em: http://www.
teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-16092015-164516/
publico/2015_EdsonTostaMatarezioFilho_VCorr.pdf
2015c “A Canção dos Imortais dos índios Ticuna”. In: AQUINO, Z. G. O.;
GONÇALVES SEGUNDO, P. R.; MAREGA, L. M. P.; CAVALCANTE Fº,
U.; SANTOS, T. J. F.; DIOGUARDI, G. (orgs.). A multidisciplinaridade
nos estudos discursivos. 1 ed. São Paulo, Editora Paulistana, v. 1,
p. 178-202. Disponível em: http://eped.fflch.usp.br/sites/eped.
fflch.usp.br/iles/A%20multidisciplinaridade%20nos%20
estudos%20discursivos%20-%20VI%20EPED.pdf
NIMUENDAJU, Curt
1952 The Tukuna. American Archeology. Berkeley e Los
Angeles, University of California Press.
OGPTB
2002 Werigü arü ae / organização geral dos professores Ticuna
bilíngues [OGPTB]. Brasília, Ministério da Educação.
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco
1988 “O Nosso Governo”: os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo, Marco Zero.
PARDO, Camilo Alejandro Vargas
2008 DEL YAJÉ AL MITO DE GÚTAPA Relación de una experiencia en la selva
amazónica. Bogotá, dissertação, Pontiicia Universidad Javeriana.
RIVIÈRE, Peter
1995 “AAE na Amazônia”. Revista de Antropologia, vol. 38, n. 1: 191-203.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
213
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
ROSA, Patrícia Carvalho
2015 “Das misturas de palavras e histórias”: etnograia das
micropolíticas de parentesco e os “muitos jeitos de ser Ticuna”.
Campinas, tese, Universidade Estadual de Campinas.
SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo
1979 “A construção da pessoa nas sociedades indígenas
brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, 32:2-19.
VALENZUELA, Hugo Ramos
2010 El Ritual Tikuna de da pelazón en la Comunidad de Arara, sur
del trapecio amazónico. Una Experiencia Etnográica. Leticia,
Colômbia, dissertação, Universidad Nacional de Colombia.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo
2015 Metafísicas Canibais. São Paulo, Cosac & Naify.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017
214
artigo | Edson Tosta Matarezio Filho | O amadurecimento dos
corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna
215
The Maturation of the Bodies and the Cosmos
– Myth, Ritual and Person Ticuna
abstract
keywords
This article aims to show some relationships that Ticuna established between
“body” and “territory”. Therefore, I analyze the notion of na’ane, we can roughly
translate as cosmos / world / land / garden. This term also evokes notions of
time, but rather maintains a relationship with the body ticuna, in particular,
the body being formed. It seems that ticuna cosmogony dates stages of sexual
maturation of bodies in myths and it is reproduced in people’s bodies. The focus
of this article will be the relations of the world still called «green» (do’ü) with
the body of the girls who pass through the female initiation ritual, the “Festa
da Moça Nova”. In these relationships between the body and the cosmos, some
issues come to the fore, as incest, blood, hair, astronomical periodicities and the
bodies of the girls.
Ticuna, Body,
Territory, Myth,
Ritual.
Recebido em 18 de maio de 2016. Aceito em 19 de janeiro de 2017.
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 1: 193-215 | USP, 2017