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54 6 www.festivalvillalobos.com.br f ac eb ook. com / festi val vi l l al obos • i n sta g ra m.com/festiva lvilla lob os • twitter: @fv l o b o s II Simpósio Nacional Villa-Lobos: práticas, representações e intertextualidades Anais – 1ª Edição Rio de Janeiro, 2017 Antonio J. Augusto, Lucia Barrenechea, Humberto Amorim et al. 54º Festival Villa-Lobos II Simpósio Nacional Villa-Lobos: práticas, representações e intertextualidades Anais – 1ª Edição Rio de Janeiro, 2017 Sarau Agência de Cultura e PPGM-UFRJ Simpósio Nacional Villa-Lobos (1: 2017: Rio de Janeiro,RJ) Anais do II Simpósio Nacional Villa-Lobos: práticas, representações e intertextualidades, 07 a 10 de novembro de 2016,54º Festival Villa-Lobos / [organização] Antonio J Augusto, Lúcia Barrenechea e Humberto Amorim [et al.] - Rio de Janeiro: Sarau Agência de Cultura Brasileira, PPGM/UFRJ, 2017 1ª Edição. Modo de acesso: http://festivalvillalobos.com.br/site/simposio-nacional-villalobos ISSN 2527-1652 1. Música 2. Villa-Lobos, Heitor, 1887-1959 3. Musicologia 4. Música brasileira. I. Augusto, Antonio J II. Amorim, Humberto III. Barrenechea, Lúcia IV Título 2 Apresentação Após sua bem sucedida estreia em 2015, dentro do Núcleo Acadêmico do Festival Villa-Lobos, o “Simpósio Nacional Villa-Lobos: obra, tempo e reflexos” chega à sua segunda edição, cumprindo firmemente o propósito de se aprofundar no amplo espectro que emana da obra do maior gênio musical brasileiro. E é com imenso orgulho que o Museu Villa-Lobos apresenta a presente edição dos anais do evento tão bem cuidado por seu coordenador Antonio Augusto e brilhantemente defendido pelos conferencistas Ricardo Tacuchian, César Buscacio, Maria Alice Volpe e Samuel Araújo, e pelos participantes que contribuíram para trazer luz a diferentes aspectos da produção villa-lobiana. Esperamos, mais uma vez, poder contribuir para que a obra de nosso patrono alcance um entendimento e um consequente reconhecimento nacional e internacional pela grandeza de sua criação. Marcelo Rodolfo Consultor musical do Museu Villa-Lobos Diretor artístico do Festival Villa-Lobos 3 Sumário Conferências A Atualidade de Villa-Lobos Ricardo Tacuchian 5 Bricolagens Musicais de Villa-Lobos: um nacionalismo brasileiro de inspiração francesa Cesar Maia Buscacio e Virgínia Buarque 17 Mesa-redonda: Análise e apropriações Textura nos quartetos de cordas de Villa-Lobos: estudos preliminares Alexandre Schubert 34 Heitor Villa-Lobos – Guia Prático para piano n. 1: considerações para uma abordagem pedagógica Francine Alves dos Reis 46 Lendas Brasileiras Rodrigo Cicchelli Velloso 56 Mesa-redonda: Alteridades e discursos Crocodilos, caldeirões e canibais: Villa-Lobos e a construção de uma representação na Paris dos anos 1920. Tiago de Souza 70 Entre tradições modernas e românticas: o horizonte interpretativo sobre Bach por VillaLobos na Paris dos anos 1920-1930 Daniel Salgado da Luz 83 Mesa-redonda: Interações e Interpretação Villa-Lobos e a schottisch: a interpretação musical por classificação genérica Mário Sève 100 O maxixe excomungado e o “Choros nº 1”: da periferia aos grandes mestres Maristela Rocha 116 Mesa-redonda: Práticas e discursos A música brasileira em torno da Feira Mundial de Nova York (1939-1940): Villa-Lobos e o pan-americanismo musical Pedro Belchior 131 Análise do discurso musical de Heitor Villa-Lobos: uma dialética entre referencialismo e formalismo Joel Albuquerque 146 Uirapuru: a lenda do pássaro encantado, de Heitor Villa-Lobos Rodrigo Passos Felicissimo 158 4 A Atualidade de Villa-Lobos Ricardo Tacuchian1 Academia Brasileira de Música Introdução A questão do critério de valor da obra de arte é muito complexa. Um sucesso arrebatador de público ou de crítica, numa première, pode ser fortuito e não resistir a apresentações posteriores para novos públicos e outros críticos. O prestígio político passageiro do artista ou, ao contrário, um momento de exacerbação de seus desafetos podem provocar um julgamento falso da qualidade de sua obra, tanto para o bem como para o mal. O rigor técnico e estrutural de uma obra também não é uma garantia para que ela seja colocada no Olimpo das obras de arte. Uma peça bem estruturada não é obrigatoriamente uma peça de bom nível artístico. Sob outro ponto de vista, a criatividade do artista costuma ser um critério importante de avaliação. Numa perspectiva semiológica, o maior grau de informação da obra ou, em outras palavras, o protagonismo do signo novo seria um critério importante de valor. Mas, a prática corrente, nem sempre confirma este paralelismo entre signo novo e valor. A questão é extremamente subjetiva porque dois críticos, igualmente bem treinados, podem chegar a julgamentos diferentes, diante da apresentação de uma nova obra musical. Só existe um critério que garante o valor de uma obra de arte: o filtro do tempo. Uma obra aplaudida com todos os louros pode encolher com o tempo enquanto que outra, passando por diferentes gerações já distanciadas de paixões e políticas passa a merecer o reconhecimento da história que antes lhe fora negado. Somente o tempo e a perspectiva histórica podem garantir a qualidade da obra de arte. A história da música está cheia de exemplos de vaias ou aplausos que reverteram em sentido oposto com o tempo. Villa-Lobos morreu há 57 anos e sua obra vem sobrevivendo ao tempo, presente no repertório de grandes orquestras e solistas e no catálogo de importantes selos fonográficos. Sua obra é objeto recorrente de pesquisa de estudiosos brasileiros e internacionais e um permanente estímulo para novas reflexões no mundo acadêmico. Seu reconhecimento é unânime e ele conquistou uma posição privilegiada ao lado dos maiores compositores do século XX. A permanência da obra de arte, depois de meio século da morte de seu autor é, sem dúvida, um critério insofismável de seu valor. 1 Maestro e compositor brasileiro, Doutor em Música pela University of Southern California. Suas composições são executadas na Europa e na América Latina e sua discografia está disponível em CD e LP. Além de publicações de artigos e contribuições acadêmicas. 5 Portanto, entre os vários e discutíveis critérios do valor da obra de arte está a sua capacidade de atravessar o tempo, mantendo interesse estético, independentemente do contexto histórico quando foi criada. Mais de 50 anos depois da morte de Villa-Lobos, parece que sua obra está preenchendo o critério da permanência no tempo, vencendo a barreira da história. Esta comunicação levanta alguns dados que demonstram a vitalidade da música do mestre brasileiro, o seu interesse despertado no público e entre os intérpretes e o surgimento de novos estudos com análises e reflexões que procuram entender melhor a sua obra. Assim, em pleno século XXI, ocorrem eventos comemorativos, catálogos discográficos são ampliados com suas composições e vários estudos acadêmicos apresentam novas visões sobre a obra do compositor. Esta retrospectiva não pretende ser completa, mas apenas levanta alguns fatos que confirmam nossa tese da vitalidade e da atualidade de Villa-Lobos no século XXI. 1- Eventos Comemorativos e Lançamentos Editoriais no século XXI Vários Encontros foram realizados no Brasil e no exterior para lembrar cinquentenário de falecimento do compositor, em 2009. Neste ano, no Colloque International Hommage à Villa-Lobos na Université de Paris-Sorbonne, apresentei um texto que serviu de base para a presente exposição, devidamente atualizada. Em junho de 2009, a Fundación Cultural Hispano-Brasileña (Madrid) promoveu um ciclo de palestras sobre Villa-Lobos que também tive a honra de proferir em Madrid, Barcelona e Salamanca. A Universidade de Salamanca lançou, em 2011, o I Certame Internacional de Guitarra Villa-Lobos, com prêmios convidativos. O Iberian and Latin American Music Society, realizou o recital The unknown Villa-Lobos, em St James’s Piccadilly, dedicado a obras de câmara de Villa-Lobos. Já não é de hoje que o compositor é alvo de homenagens oficiais pelo mundo afora. Quando Villa-Lobos completou 70 anos de idade, o New York Times publicou um editorial dedicado a ele e um ano após a morte do compositor o prefeito de Nova York decretou o Villa-Lobos’s Day. Em Paris, também, existiram datas comemorativas a Villa-Lobos e placas nos locais onde ele viveu. O Conselho Internacional de Música da UNESCO considerou 1987 (centenário de nascimento), o Ano Villa-Lobos. Estes são apenas alguns exemplos da projeção internacional, especialmente no triângulo Rio de Janeiro-Paris-Nova York, principal cenário da carreira do compositor, em sua época, e que se prolonga até o século XXI. Em novembro de 2009, a Universidade de São Paulo promoveu o Simpósio Internacional Villa-Lobos, com conferências, comunicações e concertos, durante uma semana. 6 Em todo o território nacional, as orquestras brasileiras programaram obras de Villa-Lobos e os recitais foram pródigos de apresentar sua obra camerística. Naquela ocasião, o Museu Villa-Lobos programou 60 eventos para marcar a data, entre mesas redondas, palestras e concertos, inclusive com a apresentação da integral dos Quartetos de Cordas de Villa-Lobos. No ano de comemorações do cinquentenário da morte de Villa-Lobos, o quarteto Radamés Gnattali apresentou, ao vivo, pela primeira vez, a integral dos Quartetos de Cordas do compositor e, três anos mais tarde lançou os 17 Quartetos em DVD e Blue-Ray. A Academia Brasileira de Música (instituição fundada por Villa-Lobos, em 1945) lançou um número especial de sua Revista Brasiliana, dedicada ao ilustre músico carioca, editou algumas de suas obras e lançou a nova edição do Guia Prático, realizado com critério musicológico e pedagógico por Manoel Correia do Lago, Sergio Barboza e Maria Clara Barboza. Esta obra ressurgiu, 50 anos depois da morte de seu autor e um ano após o governo brasileiro ter sancionado a lei 11769 de 18 de agosto de 2008, que tornou obrigatório o ensino e prática da música na escola fundamental. Com o atual governo esta conquista para a Educação brasileira corre o risco de ser revogada, de acordo com a postura retrógrada e positivista que ora comanda o país. O mais importante projeto de Educação Musical realizado no Brasil fora o Canto Orfeônico, criado e coordenado por Villa-Lobos, nos anos 30 a 50. O Guia Prático foi um dos principais instrumentos de trabalho do antigo professor de Canto Orfeônico e, mais tarde, do Professor de Educação Musical. Ele era uma antologia do Cancioneiro Infantil, para uso dos orfeões escolares. Originalmente as canções foram lançadas em fascículos, entre 1932 e 1936, por diferentes editoras, ficando pulverizadas, sem unidade e difíceis de serem exploradas didaticamente. No prefácio da obra chamei a atenção para o fato que “independentemente de possível coloração política que pudesse adquirir mais tarde, depois da proclamação do Estado Novo, em 1937, o Guia Pratico, em novo contexto histórico a partir de 1945, se mostrou inigualável ferramenta de trabalho pedagógico e com nova dimensão simbólica. Em tempos que se procuram cultivar a diversidade e a simultaneidade, acreditamos que, ao lado de outras manifestações da cultura brasileira contemporânea, as canções do Guia Prático ainda representem um poderoso subsídio para a educação musical da criança e do jovem.” Outra obra que a ABM lançou em 2009 foi Villa-Lobos e o Violão, de Humberto Amorim. É uma adaptação de sua Dissertação de Mestrado, em formato de livro, e um dos melhores estudos publicados ultimamente sobre o compositor. Trata-se do levantamento crítico da bibliografia sobre o músico, a história de Villa-Lobos sob a ótica do violão, as condições históricas e sociais da época, além da análise da obra para violão, realçando os 7 recursos instrumentais empregados (o idiomatismo instrumental villalobiano). O autor levanta documentos que desconstroem repetidas afirmativas em textos anteriores. Neste livro o pesquisador soube separar a lenda do documento, o mito da verdade, o empírico do técnico. Várias datas foram corrigidas e manuscritos descobertos recentemente foram devidamente analisados. A Prefeitura da cidade natal de Villa-Lobos, em decreto de 17 de dezembro de 2008, estabeleceu que 2009 seria o Ano Heitor Villa-Lobos, com comemorações em todas as escolas e teatros do município. O Governo do Estado do Rio de Janeiro, também programou um evento na Sala Cecília Meireles, no dia 20 de novembro, com música de Villa-Lobos e encomendou a um compositor brasileiro, obra sinfônica dedicada ao mestre, para ser estreada, neste mesmo dia. Assim surgiu minha obra Biguás que dediquei a Villa-Lobos. Mais uma homenagem a Villa-Lobos foi organizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, que programou uma sessão no dia 11 de novembro com uma palestra do Embaixador Vasco Mariz, também membro daquele Instituto. Para encerrar a parcial cobertura dos eventos que marcaram os 50 anos da morte de Villa-Lobos, o Arquivo Nacional, com apoio do Museu Villa-Lobos e patrocínio do Instituto Votorantim, organizou a maior exposição multimídia sobre Villa-Lobos até então realizada: a exposição Viva Villa! Ela ficou no Rio de Janeiro entre 12 de outubro e 5 de Janeiro e, depois, visitou outras cidades brasileiras. 2-Catálogos Discográficos Disponíveis Atualmente Um levantamento feito há 7 anos, no site CD Universe relacionou 334 CDs, com obras de Villa-Lobos, disponíveis no mercado. Na mesma ocasião, no site amazon.com foram encontradas 1033 ofertas de CD Áudio com obras de Villa-Lobos. À frente de Villa-Lobos, entre os compositores do século XX pós impressionistas, encontramos Prokofiev (2624 ofertas), Shostakovich (2451), Stravinsky (1935), Britten (1591) e Bartok (1539). A posição de Villa-Lobos é invejável uma vez que os países onde os outros compositores viveram sempre foram líderes em lançamentos fonográficos, ao contrário do Brasil. Villa-Lobos, em CDs disponíveis no site referido, está à frente de Copland (952), Hindemith (916) e Schoenberg (896). Sabemos que muitas gravações feitas no Brasil não constam das ofertas do site amazon.com. Em estudo realizado em 1999, o pesquisador Marcelo Rodolfo (Revista 8 Brasiliana nº 3, set/1999) citou 77 gravações com as Bachianas Brasileiras. O pesquisador citou três gravações que apresentam a série completa: a da Orquestra Nacional da Radiodifusão Francesa, regida por Villa-Lobos (EMI); a da Royal Philarmonic Orchestra, regida por Enrique Bátiz (EMI); e a da Orquestra Sinfônica Brasileira, regida por Isaac Karabtchevsky. Acrescentamos a quarta gravação das Bachianas feita por Roberto Minczuk, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (BIS) que já foi realizada no século XXI, portanto, depois do levantamento feito por Marcelo Rodolfo. Citando o mesmo pesquisador, foram registradas 83 gravações dos diferentes Choros de Villa-Lobos às quais acrescentamos a recente gravação da série completa feita pela OSESP, sob a direção de John Neschling. Existe, também, um DVD, com os Choros de câmara, gravados pelo maestro Ricardo Rocha. No texto de Marcelo Rodolfo foram citadas 26 gravações da música sinfônica e 39 gravações de concertos e instrumentos solistas e orquestra. Destas gravações se destacam a dos 5 Concertos para piano e orquestra, por Cristina Ortiz, com a Royal Philharmonic Orchestra, regida por Miguel Gomes-Martinez e as 15 gravações do Concerto para violão e orquestra, dos quais duas foram feitas por Turíbio Santos. Segundo a pesquisa citada, duas pianistas gravaram a integral para piano de VillaLobos: Débora Halász e Anna Stella Schic, que foi membro da ABM. Agora podemos citar a integral feita por Sonia Rubinsky, a partir de 1999, para o selo NAXOS (Villa-Lobos, H.: Piano Music). O último CD da série de 8 álbuns e que foi dedicado a obras do Guia Prático e às Suítes Infantis nos. 1 e 2, foi agraciado com o Grammy Latino. Ao todo foram computadas 157 gravações com a obra para piano de Villa-Lobos, mas que até a presente data já devem passar de 300 gravações. Para violão solo existem, pelo menos, 68 gravações; a integral dos 12 Estudos foi gravada cerca de 21 vezes (a lista de Marcelo Rodolfo não incluiu a excelente gravação de Paulo Pedrassoli que foi realizada posteriormente). Somente Turíbio Santos gravou 3 versões diferentes dos 12 Estudos. A integral dos 5 Prelúdios foi gravada 25 vezes, entre elas, por Turíbio Santos, Fábio Zanon, Marcelo Kayath e Paulo Pedrassoli. Entre os violonistas estrangeiros que gravaram Villa-Lobos se destacam os nomes de Narciso Yepes, Julian Bream e Pepe Romero. Andrés Segóvia figura na relação de Marcelo Rodolfo com os Prelúdios 1 e 3 e os Estudos 1 e 8. Na referida lista discográfica, figuram 14 gravações da Suíte Popular Brasileira. Desta Suíte, Julian Bream gravou a Mazurca-Choro. Ainda na discografia villalobiana são citadas as obras para conjuntos de câmara, com destaque para os Quartetos Bessler-Reis e Amazônia, além de obras para canto, música sacra e coro. Relembremos que todo este levantamento discográfico que citamos se refere apenas até o ano de 1999. Estes números de gravação não param. Num levantamento que fizemos no Museu 9 Villa-Lobos Entre 2004 e 2009, a instituição recebeu 193 novos CDs com a obra de VillaLobos. Outro levantamento, mais recente, dos últimos 5 anos mostra que o Museu VillaLobos recebeu, em sua discoteca, cerca de 300 novos CDs. Resta mencionar o ambicioso projeto de gravação da integral das Sinfonias de Villa-Lobos, conduzido por Isaac Karabchevsky, com a OSESP, para o selo Naxos. Até então existiam gravações isoladas das sinfonias e uma integral feita pela Orquestra Sinfônica da Rádio de Stuttgart, sob a regência do maestro americano Carl St. Clair, no final do século passado. Recentemente o Banco de Partituras da Academia Brasileira de Música celebrou um importante acordo com a editora francesa Éditions Max Eschig, dona de grande parte da obra do compositor. Eram partituras editadas com erros ou péssimas cópias de manuscritos que desestimulavam qualquer orquestra de programar aquele repertório. Trata-se do Projeto Villa-Lobos Digital, em cooperação com a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), com o objetivo de produzir novas edições eletrônicas, depois de devidamente revistas por uma equipe de maestros e musicólogos da ABM e da OSESP. As obras cujo direito autoral pertencia exclusivamente à editora europeia, seriam compartilhadas pela editora internacional para efeito de execução na Europa e nos Estados Unidos e pela ABM, para efeito de execução no Brasil e na América Latina. Este acordo foi benéfico para a Max Eschig e para a ABM que passaram a receber mais renda dos direitos autorais. Além das vantagens pecuniárias para os dois lados, a obra de Villa-Lobos ganhou um novo incremento com as edições modernas. O Maestro Roberto Duarte liderou a equipe editorial da ABM, da qual eu fiz parte. Eu revisei e editei o Choros nº 7, intitulado "Settimino", e o Concerto para Harpa e Orquestra, esta última com a assistência da harpista Wanda Eichbauer. O Choros 7 foi escrito em 1924, teve a primeira audição no ano seguinte, no Instituto Nacional de Música e foi editado em 1928 pela Max Eschig, a detentora dos direitos autorais. Houve uma reedição em 1955. Estas edições apresentavam muitos erros, quando comparadas com o manuscrito. A edição da ABM, em finale, é de 2009 e a oficialmente adotada de agora em diante. A reedição de obras de Villa-Lobos, o acordo com a Max Eschig já se reflete nas vendas e no aluguel de material de orquestra da obra de Villa-Lobos, no Banco de Partituras. Neste Banco a ABM dispõe de apenas 45 obras do compositor, mas, apesar deste número limitado, somente nos últimos 5 anos o Banco alugou 50 vezes o material de orquestra e vendeu 116 partituras. Estes números mostram uma vitalidade muito grande do compositor. Tanto no que se refere a aluguel como a venda existe uma curva ascendente na procura da obra do compositor. 10 OBRAS DE VILLA-LOBOS VENDIDAS E ALUGADAS (POR ANO) NA ABM 2016 2015 2014 2013 2012 TOTAL ALUGUEL 15 14 10 7 4 50 COMPRA 32 11 35 8 30 116 3-Estudos Acadêmicos Atuais Falemos, agora sobre estudos recentes a respeito do compositor. Não pretendemos ser extensivos, mas apenas chamar a atenção para alguns títulos mais representativos. A Bibliografia Musical Brasileira da Academia Brasileira de Música, sobre Villa-Lobos, tem cerca de 500 itens, entre artigos em periódicos, livros, anais de congresso e dissertações e teses acadêmicas. Este número deve ser muito maior. A Bibliografia Musical Brasileira é um banco de dados on line, alimentado pelos autores e pesquisadores estando, permanentemente em processo e nunca sendo completa. Dentre os 500 itens, 103 são livros sobre Villa-Lobos, dos quais 34 foram publicados no exterior. Dos livros lançados ainda no século XX destaco três: o de Vasco Mariz, por ser o pioneiro; o de Gerard Behague, pela sua teoria inovadora afirmando que Villa-Lobos, ao invés de usar um som brasileiro em sua música, inventou um novo som que passou a ser reconhecido como brasileiro; e o de Eero Tarasti, por ser o mais amplo estudo sobre a vida e a obra do compositor, embora apresente certas questões controvertidas. O livro de Vasco Mariz já está na 12ª edição (a última sendo Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música/ Francisco Alves. 2005). Lembremos que este livro foi publicado, em espanhol, em francês, em italiano, em russo e em duas versões em inglês. A produção literária sobre Villa-Lobos, no século XXI continua sendo pródiga. Anaïs Fléchet publicou, em Paris (L’Harmattan, 2004) Villa-Lobos a Paris: un echo musical du Brésil, onde a autora pesquisa a repercussão da obra do compositor em Paris, na década de 20, e como Villa-Lobos administrou a seu favor a ânsia pelo exotismo do público e da imprensa européia. No Brasil, tivemos recentemente a publicação de alguns livros sobre Villa-Lobos entre os quais citaremos alguns. Paulo Renato Guérios é o autor de Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 2003). O autor focaliza Villa-Lobos não sob o 11 ponto de vista da estética de sua linguagem, mas os bastidores de sua carreira e sua relação com o poder político. O livro recebeu uma sua 2ª edição ampliada em 2008. Os instrumentos típicos brasileiros na obra de Villa-Lobos, de Luiz D’Anunciação, edição da Academia Brasileira de Música (2006) é outra obra, neste século, sobre o compositor. Seu objetivo é esclarecer a natureza dos instrumentos de percussão usados por Villa-Lobos em suas partituras sinfônicas o que representa uma importante ferramenta para maestros e músicos que hoje executam a música do compositor. O livro é bilíngüe (português-francês) e tem merecido o interesse de estudiosos e intérpretes de todo o mundo. Gil Jardim, professor de regência da USP, lançou o livro O estilo antropofágico de Heitor Villa-Lobos, Bach e Stravinsky na obra do compositor (Edição Philarmonia Brasileira, 2005). Jardim faz uma análise contextual da vida e da obra do mestre e focaliza as principais influências sofridas pelo compositor. Este livro também foi a extensão de uma pesquisa acadêmica de seu autor, feita no âmbito da USP. Roberto Duarte escreveu um precioso livro onde analisa as dificuldades e os desafios de um revisor diante da obra de Villa-Lobos. Tratase de Villa-Lobos errou? (Algol, Editora, 2009). Analisando detidamente diferentes passagens da música de Villa-Lobos, Roberto Duarte, entre outras coisas, chegou a algumas conclusões bastante originais. Por exemplo, o gesto de algumas marchas harmônicas, tão comum na música sinfônica de Villa-Lobos, não segue a lógica da tonalidade clássica, mas a topografia das notas pretas e brancas do piano e sua relação anatômica com os dedos da mão. Assim Roberto Duarte vai definindo estas e outras constâncias na obra do compositor e que lhe esclarecem as dúvidas de várias passagens dos manuscritos do compositor. Inúmeras dissertações de mestrado e teses de doutorado, focalizando a obra do compositor, foram produzidas pelos centros de pós-graduação. Vamos focalizar apenas algumas que tive a oportunidade de estudar em mais profundidade pelo fato de ter participado das respectivas bancas de defesa, além dos já referidos trabalhos de Gil Jardim e Humberto Amorim que se transformaram em livros. No exterior participei da banca de Gustavo Eurico Nogueira Brandão, com sua Tese de Doutorado na Universidade Nova de Lisboa, em 2007, com o título de Da Ontoestética à Análise Musical da obra para Guitarra de Heitor VillaLobos. Trata-se de uma abordagem filosófica da obra para violão de Villa-Lobos a partir do conceito heideggeriano de Ontologia (Unidade, Bondade e Verdade), integrado com o conceito estético de Beleza. O autor analisa toda a obra para violão de Villa-Lobos. A tese de doutorado de Guilherme Bernstein de 2007, intitulada Sobre Poética e Forma em Villa-Lobos. Primitivismo e Estrutura nos Choros Orquestrais, foi publicada em 12 livro em Curitiba: Editora Prismas, 2014. Neste livro Bernstein procura desvendar quais os parâmetros que definem a forma dos Choros, inventada por Villa-Lobos. Bernstein nos alerta que qualquer generalização se arrisca a simplificar o que, na verdade, é complexo. E não há nada mais complexo que a abordagem da forma e da poética dos Choros. No entanto, ele sente a necessidade de generalizar, não para expressar uma verdade absoluta, mas como uma estratégia de pensamento e compreensão dos fatos. Ainda assim, no intuito de generalizar, ao definir parâmetros que caracterizem os Choros sinfônicos, Bernstein se confronta com uma tarefa quase impossível. Em primeiro lugar ele parte do princípio que existe, pelo menos, dois modi operandi na construção deste conjunto de obras. São eles: a maneira dos choros e a maneira das bachianas, estabelecendo os parâmetros de cada modalidade. A maneira dos choros seria caracterizada pela predominância de ostinati, uso de fragmentos melódicos estruturados numa textura em blocos e camadas superpostas e grande animação rítmica dos elementos musicais. Já a maneira das bachianas privilegia as melodias mais generosas e dentro do âmbito tonal-modal da tradição ou do uso corrente. Bernstein nos revela, com farta exemplificação, estes dois modi. Depois, levanta a problemática questão da datação das obras. Não seriam as datas afixadas nas partituras apenas aquelas em que o compositor as imaginou, para realiza-las efetivamente, mais tarde? O autor retoma uma antiga tese de Peppercorn e adota como critério as datas das estreias e, deste modo, agrupa os Choros sinfônicos em dois conjuntos: aqueles ditos “originais” (os de nº 8 e 10, estreados na década de 20) e os ditos “tardios” (nº 6, 9 e 12), estreados na década de 40). Desta forma, o autor assume que VillaLobos adotou posturas composicionais diferentes, conforme a época em que os Choros teriam sido efetivamente escritos e não apenas concebidos. Em recente artigo publicado na Revista Brasileira de Música (v. 28, n.1, jan/jun, 2015 PPGM-UFRJ) de Manoel Correa do Lago, “Villa-Lobos nos anos 1930 e 1940: transcrições e „work in progress’ “, o autor desenvolve o conceito de “work in progress” para a obra de Villa-Lobos, especialmente aquela dos anos 30 em diante. Este conceito leva a uma “redatação” da obra do compositor, o que já havia sido apresentado por Guilherme Bernstein quando propõe o conceito de composição “a maneira dos choros” ou “a maneira das bachianas”, como comentamos anteriormente. Enquanto a abordagem de Bernstein é predominantemente estilística, a de Correa do Lago dá ênfase à investigação documental, e coloca, com muita precisão, as implicações que existem entre as datas das obras e o reaproveitamento (ou transformações) de outras obras musicais. Em 2009 Paulo de Tarso Salles publicou um interessante livro intitulado VillaLobos: Processos Composicionais, pela Editora Unicamp. É, até agora, o mais completo livro 13 a abordar a estrutura da obra do mestre carioca, muitas das vezes sob óticas metodológicas originais, como questões de Simetrias, Textura, Figuração em dois registros, além de estruturas harmônicas e processos rítmicos. Para encerrar os breves comentários sobre a produção acadêmica do século XXI que focaliza a figura e a obra de Villa-Lobos, informo que o violonista húngaro Vasilios Avraam defendeu uma tese sobre Villa-Lobos e André Segovia, na Academy of Music in Bratislava, Slovakia, em 2007. 4-Ascendência Espanhola Por fim, para completar esta lista de novidades sobre o estado de pesquisas a respeito do compositor, mas sem a pretensão de ser completo, eu citaria a questão que focaliza as origens espanholas de Villa-Lobos. A literatura sobre o compositor, apesar de muito rica, não tinha focalizado a ascendência espanhola de Villa-Lobos. Somente agora, no século XXI alguns estudiosos têm chamado a atenção para este fato e algumas instituições espanholas têm explorado esta relação como foi o caso da Fundación Cultural Hispano-Brasileña e da Universidade de Salamanca, conforme citamos anteriormente. No dia 22 de novembro de 2006, o Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica do Rio de Janeiro e a Academia Brasileira de Música promoveram uma sessão solene para festejar esta ascendência. O orador convidado foi o embaixador, musicólogo e acadêmico Vasco Mariz, o primeiro biógrafo de Villa-Lobos. Vasco Mariz é membro correspondente da Real Academia de História da Espanha e recebeu do governo espanhol a comenda de Grande Oficial da Ordem de Isabel, a Católica. Naquela preciosa comunicação, o embaixador Vasco Mariz revelou suas pesquisas junto a pessoas que conviveram com Villa-Lobos e que confirmaram que ele reconhecia a origem andaluza de sua família que fora para o Brasil na primeira metade do século XIX. Seus antecedentes vinham da aldeia andaluza de Villa-Lobos. O embaixador Jaime Villa-Lobos, sobrinho do compositor, afirmou para seu colega Vasco Mariz que seus antepassados teriam viajado da Espanha para o Caribe, possivelmente Cuba e, de lá, se transferiram, sucessivamente, para o Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. É muito conhecida a relação entre o famoso guitarrista espanhol Andrès Segovia e Villa-Lobos. Villa-Lobos dedicou os doze Estudos e o Concerto para Violão e Orquestra a Segovia. Varias cartas trocadas entre os dois músicos, arquivadas no Museu Villa-Lobos, comprovam esta produtiva amizade. No Museu Villa-Lobos existem programas de concerto 14 que comprovam que Villa-Lobos regeu, em Barcelona, no Palau de la Música Catalana, em 6 de maio de 1949, e no Gran Teatro del Liceo, em 8 de março de 1953. Em Madri, VillaLobos regeu no final de sua vida, em 3 de fevereiro de 1958, no Instituto Nacional de Bellas Artes. Ele viria a falecer menos de dois anos depois. Existem, pelo menos, dois livros sobre Villa-Lobos, editados na Espanha: o de Pedro Machado de Castro (Heitor Villa-Lobos. Madrid: Círculo de Bellas Artes, 1987, p. 112) e o de Eduardo Stormi (Villa-Lobos. Madrid: Editorial Esparsa-Calpe, 1988, p. 168). Portanto, são muito fortes os laços de Villa-Lobos com a Espanha, lembrando que o compositor também escreveu uma ópera, Yerma, baseada na obra de Federico Garcia Lorca. Conclusão Villa-Lobos é um dos raros compositores da América-Latina a ter indiscutível reconhecimento musical, na Europa e fora dela e está entre os grandes compositores, do século XX. Além dos Choros e das Bachianas, ele é o autor da mais importante coleção brasileira de obras para piano. Foi pródigo na produção de Quartetos de cordas, escrevendo um total de 17 Quartetos, dois a mais que Shostakowsky, outro compositor do século XX que privilegiou o gênero. No repertório para violão, Villa-Lobos é um dos mais importantes compositores do século XX. Mais que 50 anos depois da morte do compositor esta obra continua fazendo parte do repertório dos maiores virtuoses do mundo. O compositor inventou uma maneira original de tratar o instrumento, nacionalizando-o como um instrumento brasileiro, ainda que ele fosse de origem européia. Seu opus para piano é um dos mais importantes do repertório brasileiro para este instrumento. Orquestrador de grandes recursos e impacto colorístico, Villa-Lobos usou instrumentos de percussão típicos da tradição popular brasileira e mereceu um especial elogio de Messiaen: “é um grande orquestrador.” Villa-Lobos nos deixou de herança uma obra ciclópica. Ele captou o caráter híbrido da cultura tropical brasileira e, a partir desta premissa, inventou um som brasileiro. Conforme afirmou o estudioso Gerard Behague. Villa-Lobos não se nutria apenas do folclore para construir uma obra nacional, mas o usou como motivação para construir uma obra que, por sua genialidade, passou a ser considerada como uma expressão de um som brasileiro. Villa-Lobos não foi um compositor nacionalista como os outros que o antecederam e que, através de apropriações e citações, usavam temas folclóricos, ritmos tradicionais de dança e escalas modais nacionais típicas com certa fidelidade às fontes originais. Villa-Lobos foi além; partiu daquelas fontes, transfigurando-as, e criou um novo e moderno nacionalismo. Em 15 outras palavras, criou um novo som brasileiro. Esta individualidade inconfundível de VillaLobos não deixou discípulos. E hoje, aqueles que pretendem usá-lo como modelo não passam de epígonos de um gigante que não admite comparações. Apesar da brasilidade latente de sua música, ela é, ao mesmo tempo, universal e o situa entre os maiores compositores do mundo ocidental, do século XX. A obra de Villa-Lobos é numerosa e difícil de ser conhecida em toda sua extensão. Seus estilos são diversificados e, assim, é impossível apontar um único perfil estético. Sua obra é personalíssima e, por isso, inimitável. Sua verve melódica, harmônica e rítmica transcende qualquer esquema acadêmico. A lição que ele nos deixa é que o verdadeiro artista, além de competente em seu métier, deve ser sincero consigo mesmo, para alcançar uma forma de expressão autêntica. O artista genial é aquele que consegue conciliar a competência e a autenticidade pessoal com as necessidades estéticas de sua época. Diante do exposto, se compreende a importância do nome de Heitor Villa-Lobos para a música do século XX, não só do Brasil mas de todo o mundo ocidental e a sua extraordinária permanência no século XXI. Hoje em dia, depois de um certo afastamento histórico, temos uma melhor compreensão da importância e do significado da obra de VillaLobos e sua projeção em nosso século. Os eventos musicais e acadêmicos programados, a sua discografia atual, a bibliografia recente a ele dedicada, enfim o interesse que sua obra ainda desperta no público, na crítica e entre os estudiosos confirmam que a obra de Villa-Lobos continua viva o que é um critério indiscutível do valor de sua obra. 16 Bricolagens Musicais de Villa-Lobos: um nacionalismo brasileiro de inspiração francesa Cesar Maia Buscacio1 Virgínia Buarque2 Resumo: Este artigo visa refletir sobre a produção musical de Heitor Villa-Lobos composta até o término da década de 1920 sob o viés da bricolagem cultural. Sugere-se, como hipótese, que este compositor e intérprete tenha recriado musicalmente a noção de identidade nacional brasileira, ao reconfigurá-la sob um primitivismo simultaneamente romântico e moderno. Em paralelo, buscou-se vincular a noção operatória de bricolagem à particularidade da produção musical. Com isso, espera-se contribuir para um necessário diálogo epistemológico entre a Música e as Ciências Humanas. Palavras-chave: Villa-Lobos, romantismo, modernismo, primitivismo, identidade nacional, bricolagem. Bricolagens Musicals of Villa-Lobos: A Brazilian nationalism of French inspiration Abstract: This article aims to reflect on the musical production of Heitor Villa-Lobos composed until the end of the 1920s under the bias of cultural bricolage. It is suggested, as a hypothesis, that this composer and interpreter has musically recreated the notion of Brazilian national identity, by reconfiguring it under a primitive romanticism simultaneously modern. In parallel, we tried to link the operative notion of bricolage to the particularity of musical production. With this, it is hoped to contribute to a necessary epistemological dialogue between Music and the Human Sciences. Keywords: Villa-Lobos, romanticism, modernism, primitivism, national identity, bricolage. Introdução A formulação desta reflexão foi decorrente do honroso convite para participação no Festival Villa-Lobos, evento acadêmico-musical anualmente promovido pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aproveitamos o ensejo para expressar nossos agradecimentos aos organizadores pela relevante oportunidade que nos foi oferecida para um intercâmbio de pesquisas e diálogos teórico-culturais. A temática que identifica o Festival expressa, efetivamente, a grande instigação deixada pela obra deste compositor e intérprete, associada a uma trajetória biográfica que entrecruza música, cultura e política. E um dos aspectos que mais são ressaltados nesta densa configuração é o perfil nacionalista atribuído à produção musical de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Suas peças, inclusive as produzidas nas décadas de 1910 e 1920 (recorte temporal selecionado para essa interpretação), comportam a inclusão de distintas singularidades socioculturais. Logo, não casualmente, a crítica musical, inclusive 1 Pianista, mestre em Educação Musical, doutor em História. Professor do Departamento de Música e diretor do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Doutora em História. Professora do Departamento de Música da Universidade Federal de Ouro Preto. 17 internacional, configura a obra de Villa-Lobos como demarcada por uma “retórica da alteridade”3 (FLÉCHET, 2004, p. 64). A inspiração revelada por diversas críticas de Boris de Schloezer 4 aparece com destaque nos Choros n. 8 e n. 10, nos quais Villa-Lobos utiliza a inconstância rítmica a fim de criar um “ambiente primitivo” e coloca uma ênfase nos elementos rítmicos em detrimento dos elementos melódicos. Villa-Lobos sempre nega a influência de Stravinski e destaca que sua obra apresenta uma inspiração unicamente oriunda do folclore brasileiro. [...] De fato, a questão do nacional e das influências estrangeiras na obra de Villa-Lobos é objeto de inúmeros debates (Ibidem, p. 79. Tradução dos autores). A proposta dessa interpretação é a de aprofundar as interfaces entre essa “retórica da alteridade”, presente nas composições de Villa-Lobos produzidas nas três primeiras décadas do século XX, e as matrizes culturais francesas, das quais o compositor decididamente apropriou-se. Trata-se de uma articulação que teve sua importância amplamente abordada pela literatura especializada, com vários pesquisadores sustentando a hipótese de que o perfil identitário-nacionalista da música de Villa-Lobos seria parcialmente tributário de sua experiência estético-musical naqueles circuitos, sobretudo no meio parisiense (TRAVASSOS, 2000; GUÉRIOS, 2003; LOQUE ARCANJO, 2013). Assim, de acordo com o musicólogo Paulo Renato Guérios: [...] se a originalidade das obras posteriores do compositor (Villa-Lobos) é indiscutível, também é inegável que, na raiz de seu projeto, se encontram claramente as concepções francesas a respeito do Brasil e de como deveria ser uma música brasileira. Afinal, a representação de Brasil que esse “sociomúsico” foi capaz de sintetizar em suas composições não é qualquer representação, mas aquela do Brasil selvagem, exótico, virgem, o Brasil da natureza, dos índios e dos ritmos primitivos. Em suma, o Brasil imaginário dos parisienses (GUÉRIOS, 2003, p. 99). Daí o primeiro objetivo da análise aqui proposta ser o de refletir como VillaLobos não operou uma mera aplicação pragmática de ideais e padrões estéticos franceses, e sim como procedeu a uma interessante e complexa bricolagem cultural, por meio da qual recriou musicalmente, por assim dizer, a noção de alteridade e, por conseguinte, de identidade nacional. Considera-se que tal estudo seja importante porque, em geral, na musicologia brasileira, a interpretação histórica da produção musical é promovida sob um viés processual, priorizando-se o encadeamento de distintas matrizes estético-culturais em linha sucessiva. Postula-se aqui, pelo contrário, que tais matrizes entremeiam-se nas produções musicais, ao serem acionadas na sua prática composicional, em diálogo com as sociabilidades/escutas do Anaïs Fléchet destaca que a noção “retórica da alteridade” foi desenvolvida por François Hartog no estudo que esse historiador dedicou aos escritos de Heródoto acerca das relações entre gregos e “bárbaros” (FLÉCHET, 2004, p. 64). 4 Boris de Schloezer (1881-1969) foi musicólogo e tradutor de origem russa. Naturalizou-se francês, escreveu diversos artigos para a Revue Musicale em Paris e engajou-se na produção de estudos sobre a trajetória de diversos compositores do século XX. Dentre suas publicações no período abarcado por esta pesquisa, destaca-se o livro intitulado Stravinsky, publicado em 1929 pela Editions Aveline em Paris. 3 18 campo musical e estético-cultural. Essa perspectiva delineia, portanto, um entendimento distinto da historicidade no âmbito da experiência social da música. Por conseguinte, apresenta-se como segundo objetivo deste artigo reconfigurar a noção operatória de bricolagem, vinculando-a à especificidade do fazer musical, por sua vez indissociável das práticas de performance, recepção e produção. Na tentativa de efetivação desse duplo objetivo, o primeiro tópico deste texto aborda o itinerário percorrido por Villa-Lobos em seu trânsito entre os meios musicais cariocas, paulistanos e Paris, enquanto os dois tópicos seguintes, por sua vez, debruçam-se sobre as duas matrizes estético-culturais francesas mais apropriadas por Villa-Lobos, buscando-se delinear suas concepções acerca da alteridade. Por fim, na conclusão, apresentase uma sugestão para teorização de “bricolagem musical”. Dessa maneira, considera-se ser possível, ainda, atingir a um terceiro objetivo, o de contribuir para o esforço epistêmico de um necessário diálogo da música com as ciências humanas, como postulado pelo crítico literário e também musicólogo Edward Said, [...] o mais interessante, valioso e distinto método moderno de escrever sobre música é [...] o que tem a autoconsciência de ser uma “disciplina humanística”. [...] em virtude de a autonomia da música em relação ao mundo social ter sido dada como óbvia por pelo menos um século, e em função também dos requisitos técnicos exigidos pelas análises musicais serem tão distintivos e severos, há uma suposta ou imputada autossuficiência musicológica que é agora muito menos justificável do que jamais o foi [...] o estudo da música pode ser mais, e não menos interessante, se a situarmos, por assim dizer, no cenário social e cultural (SAID, 1991, p. 17- 18). 1. Villa-Lobos na França Nas primeiras décadas do século XX, permanecer alguns anos na França para aprimoramento da formação musical e divulgação da obra até então promovida apresentava-se como propósito bastante almejado por inúmeros músicos brasileiros. Tal anseio acabou por deslocar a Itália da posição prioritária que gozara, durante um período anterior, como expressivo marco cultural no ideário da elite brasileira. Assim, o musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo, ao publicar, em 1951, o artigo Présence de la France dans la Formation de la Culture Musicale au Brésil afirmou que: De fato, nessa época (as primeiras décadas do século XX), uma mudança delineia-se nos hábitos musicais dos brasileiros: se um estudante porventura viesse a se distinguir, ele partiria para a Europa em busca de um verniz artístico, ou talvez à procura de um tesouro escondido sob essa casca. Entretanto, não seria mais à Itália que ele se dirigiria, mas mais frequentemente para a França. As aulas de César Frank, de Charles-Marie Widor, d’Émile Durand, de Jules Massenet, e mais recentemente de Charles Koechlin ou de Nadia Boulanger (sem falar nos compositores), viram desfilar muitos jovens de meu país, dos quais alguns tornaram-se renomados artistas. Pessoalmente, como professor, eu sempre encorajei essa tendência francófila junto à juventude brasileira. Também agrada-me escrever algumas linhas para o Bulletin Officiel des Conservatoires Nationaux de Musique et d’Art Dramatique de France, indicando os benefícios com os quais a cultura francesa preencheu muitas gerações de jovens de meu país. Cultura salutar, sob vários aspectos, para 19 nossa formação. E da qual a experiência comprovou que ele poderia contribuir, eficazmente, para encorajar e fortificar a expressão original de nossa própria cultura nacional (AZEVEDO, 1951, p. 7. Tradução dos autores). Também Villa-Lobos esforçou-se por conseguir sua passagem para Paris, tendo a primeira viagem sido realizada em desdobramento à participação do compositor na Semana de 22. O musicólogo Renato Guérios relata: Após a Semana, os amigos e admiradores de Villa-Lobos começaram a articular sua ida a Paris — um passo tido como esperado para um músico que se tornava célebre no Brasil, caminho já tomado por tantos outros artistas. Ainda em 1922, um decreto federal liberou 40 contos de réis para que ele apresentasse obras suas e de outros compositores brasileiros na Europa. Apenas metade desse dinheiro foi efetivamente liberada a tempo, antes do fim do ano fiscal de 1922; amigos e conhecidos de Villa-Lobos completariam de seus próprios bolsos o necessário para sua viagem. Em junho de 1923, ele embarcou em direção a Paris (GUÉRIOS, 2003, p. 90). Villa-Lobos dirigiu-se à capital francesa com dois objetivos pessoais: promover recitais, nos quais apresentasse suas peças musicais, e editar sua obra em partituras5, uma vez que a indústria do disco ainda estava circunscrita a gravações mecânicas e custos muito elevados. Assim, em entrevista veiculada logo após sua chegada à França, Villa-Lobos afirmou: “Eu não vim aqui para aprender; vim mostrar o que fiz” (apud GUÉRIOS, 2003, p. 90). Mas a primeira estada de Villa-Lobos em Paris não teve, ao menos de início, uma acolhida tão positiva quanto o esperado, por ser associado ao estilo impressionista de Debussy, já considerado anacrônico pela vanguarda musical francesa. Justamente por isso, ainda no ano de 1923, Villa-Lobos alterou aspectos composicionais de suas peças, nelas exibindo elementos considerados “exóticos” pelos meios culturais letrados e artísticos parisienses: É fácil também perceber as mudanças que se deram em suas composições. Villa-Lobos começou enfim a utilizar amplamente em suas composições os ritmos da música popular, com os quais convivia fora dos teatros no Brasil, mas que não tinha incorporado em suas criações devido ao valor negativo atribuído à estética popular pelos músicos eruditos brasileiros — uma das características mais marcantes de suas obras seria a partir de então a riqueza rítmica, pouco utilizada anteriormente (Ibidem, p. 98). Suas obras obtêm, com isso, uma certa divulgação. Contudo, “no verão europeu de 1924, com o fim das temporadas de concerto e carecendo de meios econômicos para poder se manter na capital francesa, pois os meses cobertos pela subvenção oficial haviam terminado, Villa-Lobos retorna ao Rio de Janeiro” (CHERÑAVSKY, 2009, p. 137). 5 Villa-Lobos conseguiu atingir seu objetivo por meio do contato estabelecido com a casa de edição Max Eschig (FLÉCHET, 2004, p. 38). 20 O compositor, contudo, estava longe de desistir de seu intento de tornar conhecida sua música em âmbito internacional. Assim, em 1927, ele retornou à França, tendo residido na “Cidade Luz” por um período de três anos, em um apartamento de propriedade da família Guinle, tendo também a contribuição da soprano brasileira Vera Janacópulos6 que, há algum tempo, residia na capital francesa e veio a tornar-se uma das maiores intérpretes de sua obra.Conforme descrito pela musicóloga Analía Cherñavsky, “[...] imediatamente a sua chegada, o compositor retomou seus antigos contatos nesta cidade. Desta vez, conseguiu penetrar no fechado círculo dos músicos modernos e fazer amizade com importantes nomes do meio artístico internacional” (Ibidem, p. 38). Em desdobramento, a recepção de VillaLobos nos ambientes artísticos franceses foi calorosa: os periódicos Le Guide du Concert, Le Guide Musicale, Le Ménestrel, Le Monde Musicale, La Revue Musicale, Boulletin du Conservatoire e Almanach de la Musique recorrentemente mencionaram sua atuação, bem como variados documentos produzidos e arquivados pelos agentes musicais da época que, posteriormente, vieram a integrar os dossiers “Brésil”7 e Jane Bathori.8 A maioria dos autores que se dedica a estudar a trajetória desse compositor em Paris nos anos 1920 reitera que tal repercussão positiva deveu-se justamente à presença de elementos indígenas e africanos em várias de suas peças musicais, os quais endossariam a expectativa pelas alteridades culturais então vigentes na cultura francesa. Tal leitura é promovida, inclusive, pela musicologia francesa, como expresso no livro de Rémi Jacobs, intitulado Heitor Villa-Lobos e publicado pela editora Bleu Nuit em 20109, ou na obra de Anaïs Fléchet, Villa-Lobos à Paris  Um écho musical du Brésil, publicada pela L'Harmattan em 2004.10 Sugere-se, aqui, porém, que tal reconhecimento obtido por Villa Lobos adveio não somente da transposição de alteridades socioculturais ao plano da sonoridade, em prol da constituição de um “nacionalismo musical brasileiro”, mas pela promoção concomitante de uma bricolagem bem efetuada por ele entre elementos culturais brasileiros e franceses ou, 6 A cantora brasileira Vera Janacópulos (1896-1955), intérprete de várias obras de Villa-Lobos em Paris durante sua estada na capital francesa em 1927, foi também uma das intérpretes preferidas do compositor Manuel de Falla (1896-1946) (Enciclopédia da Música Brasileira, 2003, p. 393). 7 O Dossier Brésil integra uma coleção de documentos inicialmente compilados pela Secretaria de Belas Artes do Ministério da França, incluindo, além de biografias de músicos brasileiros atuantes nos anos de 1920 e 1930, diversos recortes de jornal noticiando concertos e eventos ocorridos no Brasil. 8 Trata-se de uma coletânea de conferências radiofônicas proferidas pela cantora Jane Bathori, realizadas entre os anos de 1940 e 1966. Dentre os textos arquivados, encontram-se referências sobre a música brasileira e demais países latino-americanos. 9 A obra publicada por Rémi Jacobs aborda a trajetória de Villa-Lobos a partir da “herança” deixada pelo compositor brasileiro, em análise perspectivada por um intelectual francês. 10 O trabalho publicado por Anaïs Fléchet propõe um estudo da produção de Villa-Lobos com foco nas “trocas musicais” que conduziram à grande visibilidade da música brasileira na França. 21 mais especificamente, entre distintas matrizes teórico-culturais e estético-musicais brasileiras e francesas, como busca-se indicar a seguir. 2. Matrizes culturais românticas A primeira matriz francesa que Villa-Lobos soube apropriar-se foi a de valorização das alteridades segundo a ótica do pensamento romântico, cuja genealogia passaremos a traçar, devido à sinuosidade de sua composição histórica. Trata-se, efetivamente, de um imaginário complexo e tensional, com o qual Villa-Lobos não deixou de dialogar. A princípio, poderia causar estranhamento o vínculo estabelecido por Villa-Lobos com relação ao romantismo francês, uma vez que tal cultura tornou-se mundialmente conhecida pela proposição de uma racionalidade inata, sob a égide da filosofia das “Luzes” ou do “Iluminismo”, desdobrada no plano político-social pelo ideário da “civilização”. Este termo adquiriu um novo sentido justamente no século XVIII, como indicado no Dicionário Universal de Trévoux, de 1771, pois até então o vocábulo comportava apenas um sentido jurídico, significando “ato de justiça ou julgamento que torna civil um processo criminal”), Nesta obra, civilização era associada a um elogio da religião, tida como uma das “virtudes sociais” ou um elemento da “moral natural”, responsável pelo “abrandamento dos costumes” e propiciador da fraternidade entre os homens. Aos poucos, todavia, a civilização tornou-se uma representação substitutiva da religião, uma obra da razão (STAROBINSKI, 2001). Ora, na passagem do século XVIII para o XIX, em reação aos postulados teóricopolíticos apontados pela ótica iluminista como a versão laicizada do ideal civilizatório, erigiuse uma concepção cultural denominada “romântica”. Afinal, denúncias acerca dos “males da civilização” (como a colonização e a escravidão) começavam a ser vinculadas, embora ainda prevalecesse a perspectiva otimista quando ao devir humano. Esta suspeição da capacidade da razão em ordenar o mundo foi acompanhada pela idealização de um passado perdido, onde supostamente vigoravam costumes e valores capazes de propiciar a felicidade. Tal imaginário já se encontrava presente no campo literário (como na novela inglesa e no Sturm and Drang11 alemão), e também no filosófico, como em parcela da obra de Rousseau (que nem por isto deixava de ser um iluminista). De forma concomitante, iniciava-se um movimento de Sturm und Drang (“Tempestade e impetuosidade”) foi um movimento literário situado entre 1760 e 1780, que estendeu-se a outros setores da cultura alemã. Ele postulava uma criação vigorosa e espontânea, tivesse impacto emocional imediato. 11 22 valorização da natureza e da vida campestre, em resposta à crescente industrialização dos principais centros urbanos. Emergiram também, principalmente no seio da cultura germânica, formulações de conotação político-ideológica mais explícita, que entabulavam uma ativa resistência à Revolução Francesa. As filosofias de Herder, Hegel e Fichte manifestaram, de distintas maneiras, uma crítica ao pensamento liberal e mesmo ao Aufklãrung kantiano. O reconhecimento de uma certa especificidade à cultura alemã já vinha sendo promovido pelos próprios contemporâneos, como registrado na obra De l’Allemagne, de Madame de Stäel. Parcela desta peculiaridade repousava nas dificuldades de apropriação da noção de civilização em língua alemã, na desastrosa estagnação política e econômica sofrida durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), na acentuada fragmentação das unidades políticas germânicas e no distanciamento vigente entre os estamentos aristocráticos que compunham as cortes dirigentes, a cultura local e os grupos universitários (DUARTE, 2004; ELIAS, 1994). Em seus momentos iniciais, todavia, as resistências e reações germânicas portaram, mais do que uma singularidade própria, um caráter reflexo perante o universalismo iluminista. Assim, Herder nomeou seu tratado sobre a história da humanidade (1774) como uma “outra história”, em oposição direta a Voltaire; Goethe escreveu sua Doutrina das Cores como uma refutação da ótica de Newton; a revalorização da obra de Shakespeare empreendida pelos jovens dramaturgos alemães era vista como alternativa ao classicismo francês; a redescoberta do estilo gótico postulava a superação da racionalização das formas, empreendida desde o Renascimento. Logo, porém, a reação romântica iria obter uma identidade própria, mantendo-se em tensão permanente com o ideário da razão. Esta identidade, mais uma vez, mostrou-se indissociável de uma leitura religiosa do mundo, e suas ponderações confluíam, em geral, na noção de “tradição”: tal vocábulo comportava os principais elementos do pensamento cultural e político do romantismo, principalmente as concepções de totalidade e vitalidade, diferença e hierarquia, mutabilidade e pulsão criativa, experiência e compreensão. Mas a reação francesa à proposta romântica germânica não se fez esperar, emergindo, entre outros aspectos, mediante uma renovação da filosofia católica no seio das Luzes. Ela foi favorecida pela conjuntura vivida pela Igreja na França desde o Consulado de Bonaparte (1799-1804), na qual a Concordata (1801) apresentou-se como um momento determinante, emergindo então uma literatura contra-revolucionária animada pela religião (SERRY, 2004). Foi neste contexto que Henri Chateaubriand cunhou a expressão “civilização cristã” em 1802, na obra O Gênio do Cristianismo ou as Belezas da Religião Cristã, que 23 obteve uma grande difusão, inclusive no Brasil (BUARQUE, 2011). Este livro, perpassado por um cunho apologético, afirmava que o ideário das Luzes (com sua explícita valorização da racionalidade universal, definidora do estatuto humano) longe de ser refutado, deveria, pelo contrário, ser reiterado, mas desde que articulado à valorização da sensibilidade estética, com suas muitas nuances e singularidades; esta, por sua vez, necessariamente deveria encontrar-se impregnada pela fé cristã. Com isso, os elementos culturais, já fortemente destacados pelo pensamento germânico, foram inseridos, mas de forma subordinada, ao ideal civilizatório de viés francês. Assim, o que Villa-Lobos traria de uma estética romântica francesa, já considerada anacrônica por seus contemporâneos, seria um elã de cunho político-filosófico: o universal não é alheio ao singular, o civilizatório não é excludente do particular. Essa nova significação já vinha também sendo empreendida no âmbito do campo musical, com melodias inspiradas em tradições locais sendo incorporadas ao repertório canônico de compositores e intérpretes (GIULIANI, 2005). Os compositores da música de concerto continuamente apropriam-se das tradições musicais, mas foi no século XIX que esses „empréstimos’ foram explicitamente reivindicados, paralelamente ao desenvolvimento dos estudos do folclore. De fato, eles „autentificaram’ os elementos das escolas nacionais e avançaram em relação às referências das fontes transcritas por meio de registros sonoros coletados (Ibidem, s. p. Tradução dos autores). Não casualmente, portanto, no ano de 1871, Camille Saint-Saëns e Romain Bussine fundaram a Societé Nationale de Musique,12 em reação à primazia até então conferida à música de ópera e de referência germânica. Paralelamente, a história da música era alçada ao status de disciplina a ser lecionada no Conservatório francês, e em 1893, na Universidade de Paris (NORONHA, 2012, p. 53): procurava-se “[...] conhecer melhor a produção musical com o intuito de estabelecer cânones, selecionar o que interessava e deveria ser resgatado como referência, como modelar na música dos séculos XVI ao XVIII. O objetivo era criar uma nova música francesa conectada com os valores considerados “tradicionais”, “verdadeiramente” franceses” (Ibidem, p. 54). De forma concomitante, no Brasil, quando o compositor Leopoldo Miguez assumiu a direção do Instituto Nacional de Música em 1890, a obra de Saint-Saëns tornou-se a referência de uma estética francesa “moderna”, enquanto Wagner desempenhava papel similar no tocante à música alemã. Em um contexto de advento do regime republicano, Miguez ressaltava uma nítida reação ao “conservadorismo” do canto 12 Tratava-se de uma instituição eclética, que incluía propugnadores de um nacionalismo musical francês, na ótica do romantismo, mas também “defensores da renovação da música francesa com uma postura claramente pró-Wagner”, a exemplo de Vincent D’Indy, cujos estudos foram lidos por Villa-Lobos (NORONHA, 2012, p. 54). 24 lírico italiano predominante no Conservatório dos tempos da monarquia (GUÉRIOS, 2003, p. 84). Ademais, a música de Saint-Saëns era referência marcante nas salas de concerto do Rio de Janeiro sobretudo após a vinda do compositor francês ao Brasil em 1899. A gestão de Miguez junto ao Instituto Nacional de Música encerrou-se em 1902, mas a matriz estéticomusical do romantismo francês estava aí consolidada, sendo apresentada a Villa-Lobos por ocasião de sua curta passagem na instituição. 13 Note-se, em paralelo, que a [...] influência francesa no Rio da belle époque não se fez sentir apenas na arquitetura e no hábito de fumar. A música francesa de finais do século XIX e começo do XX dominava os programas de recitais e concertos das noites cariocas, rivalizando com a eterna preferida: a ópera italiana. Não é à toa que no primeiro período compositivo de Villa-Lobos se destaca essa influência francesa, inclusive porque o músico, trabalhando como instrumentista de orquestras de teatros, cinemas, cafés, etc., certamente tivera contato com essa música muito cedo. Segundo Bruno Kiefer, na época, o primeiro lugar nos programas cariocas era de Saint-Saëns (CHERÑAVSKY, 2009, p. 128). Assim, por exemplo, o clímax da peça Naufrágio de Kleonicos, de 1915, “[...] é um excerto bastante conhecido do repertório do compositor, O Canto do Cisne Negro, claramente inspirado na canção O Cisne, de Camille Saint-Saëns – não apenas o nome, mas a estética romântica, um acompanhamento de arpejos e o instrumento solo, o violoncelo, são os mesmos da canção de Saint-Saëns” (Ibidem, p. 102, nota 4). 3. Matrizes culturais modernas Desde a década de 1910 repercutia em Paris uma ótica modernizante da música, que pensava a alteridade como singularidade diante das tradições e paradigmas musicais vigentes. Emergia a valorização das experiências sonoras inéditas (FLÉCHET, 2004, p. 1112). Villa-Lobos admirou, particularmente a Debussy14 e compôs várias obras permeadas por elementos estético-musicais impressionistas. O específico dessa concepção de modernidade musical era sua articulação com um forte nacionalismo. Todos revindicavam uma atitude moderna, Villa-Lobos também vivenciou os reflexos da „Cidade Luz’. Ele vivenciou a presença musical francesa no Rio de Janeiro e estabeleceu Cf. CHERÑAVSKY, 2009, p. 127-128: “[...] em torno ao ano de 1912, em seu afã por conhecer melhor as técnicas utilizadas pelos grandes compositores da música universal, Villa-Lobos iniciou o estudo das partituras dos clássicos e românticos. Tristão e Isolda, de Wagner, e La Bohème, de Puccini, seriam as suas preferida. Datam dessa mesma época os estudos que o compositor teria realizado do conhecido Cours de Composition Musicale de Vincent d’Indy”. Para NORONHA, 2012, p. 58, “A referência de D’Indy não era apenas Wagner, mas a música instrumental, a sinfonia, que tinha sido relegada a um lugar secundário na França. Beethoven continuava sendo, portanto, um grande modelo da música vista como portadora de valores universais”. 14 FERREIRA, 2011, p. 212: “O Impressionismo na música teve como nome principal o compositor francês Debussy. A sua estética foi uma das responsáveis pela finalização do tonalismo e pelo prenúncio do atonalismo, teorizado em obras como o Tratado Harmonia (1917), do austríaco Arnold Schoenberg. Esse livro é um marco no início da música atonal e propõe o modelo dodecafônico para teorizar a harmonia atonal, que toma visibilidade com compositores como Igor Stravinsky na composição Sagração da Primavera (1913).” 13 25 contato com a obra de Vincent d’Indy e foi seduzido pelos impressionistas franceses. A influência de Claude Debussy sobre o compositor se observa em obras como, dentre outras, o Quarteto para harpa, celesta, saxofone alto e coro feminino, no qual ele acrescenta o subtítulo Quarteto Simbólico, acompanhado de um texto explicativo realçando a influência do impressionismo em sua composição (FLÉCHET, 2004, p. 33. Tradução dos autores). Em seguida, a valorização do exotismo musical e das experiências sonoras inéditas foi protagonizada pelo “Grupo dos Seis”, composto pelos compositores Arthur Honegger, Darius Milhaud, Germaine Tailleferre, Francis Poulenc, Georges Auric e Louis Durey, além da expressiva participação de músicos russos, eslavos e espanhóis no cenário cultural francês da década de 1920. Paris vibra com o ritmo da modernidade musical: Maurice Ravel, Igor Stravinki, Béla Bartók, Manuel de Falla misturam melodias surpreendentes e pesquisas harmônicas. Ao lado de Jean Cocteau, Arthur Honegger, Darius Milhaud, Germaine Tailleferre, Francis Poulenc, Georges Auric e Louis Durey, formam o “Grupo dos Seis” e partem para a pesquisa de novos horizontes musicais. Músicos, intérpretes e amantes da música defendem a música contemporânea nas salas de concerto, nos salões privados e na imprensa especializada. O momento é do exotismo musical e das experiências sonoras inéditas (Ibidem, p. 12. Tradução dos autores). Darius Milhaud, inclusive, viajara para o Brasil em 1917, tendo sensibilizado-se profundamente pela música popular aqui ouvira, o que o levou a adotar, inclusive, elementos do folclore brasileiro em obras como Le Boef sur le Toit. Este músico revela com grande ênfase os encantos vividos no texto intitulado Ma Vie Hereuse: Nós chegamos ao Rio em fevereiro de 1917, em pleno verão, com um calor intenso. Claudel instalou-me com ele, junto à delegação da França ; ele estava magnificamente localizado na rua Paisandu, uma rua bordejada de palmeiras reais [...] Meu contato com o folklore brasileiro foi brutal; eu cheguei ao Rio em pleno Carnaval e eu logo fui atingido, profundamente, pelo vento de loucura que se desfraldava sobre a cidade inteira (MILHAUD, 1973, p. 63 Tradução dos autores). O mesmo Milhaud, em artigo publicado pela Revue Musicale em 1920, destaca ser lamentável que os compositores brasileiros reduzam-se a reflexo da música europeia em diferentes fases (de Brahms a Debussy), bem como que os elementos nacionais não sejam expressos com mais intensidade: É lamentável que todas as composições de compositores brasileiros, desde as obras sinfônicas ou de música de câmara dos srs. [Alberto] Nepomuceno e [Henrique] Oswald até as sonatas impressionistas do sr. [Oswaldo] Guerra ou as obras orquestrais do sr. VillaLobos (um jovem de temperamento robusto, cheio de ousadias), sejam um reflexo das diferentes fases que se sucederam na Europa de Brahms a Debussy e que o elemento nacional não seja expresso de uma maneira mais viva e mais original. A influência do folclore brasileiro, tão rico em ritmos e de uma linha melódica tão particular, se faz sentir raramente nas obras dos compositores cariocas. Quando um tema popular ou o ritmo de uma dança é utilizado em uma obra musical, esse elemento indígena é deformado porque o autor o vê através das lentes de Wagner ou de Saint-Saëns, se ele tem sessenta anos, ou através das de Debussy, se ele tem apenas trinta (Idem, apud GUÉRIOS, 2003, p. 95). O compositor francês, em paralelo, destacava a atuação de músicos populares que priorizavam gêneros como o maxixe, modinhas, sambas em suas produções: “[...] seria 26 desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância de compositores de tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês como Tupynamba ou o genial [Ernesto] Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia indefinidamente renovada, a verve, o ânimo, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa, que se encontram em cada obra desses dois mestres, fazem deles a glória e a alegria da Arte brasileira” (apud Ibidem, p. 95-96). Ora, Villa-Lobos compartilhou cotidianamente a performance musical com vários desses músicos ao longo da década de 1910. Lembremos que sua trajetória é atípica, no sentido de não possuir nenhum diploma de formação erudita, sendo ele também frequentador dos grupos de choro do Rio de Janeiro. Mesmo assim, logo foi reconhecido como um bom violoncelista, compositor e professor de harmonia (GUÉRIOS, 2003) A atuação de Villa-Lobos junto aos “Chorões” nos leva a perceber, inclusive, como a produção musical pode “subverter a ordem social imposta e implícita [...], rompendo com a rigidez que o desenho urbano da cidade propõe e que parece impedir a convivência e a permeabilidade entre grupos sociais”. (LANNA, 2016, p. 12). 4. A bricolagem sob o viés do primitivismo Sugere-se que Villa-Lobos tenha entrecruzado matrizes culturais francesas românticas e modernas sob o viés do primitivismo. Em termos temporais, as “alteridades” ou “exotismos” brasileiros foram por ele associados a um passado mais do que secular: [...] a preferência exótica se duplica por uma atração por certos conteúdos [...] escolhidos ao longo de um eixo que opõe a simplicidade à complexidade, a natureza à arte, a origem ao progresso, a selvageria à civilização, a espontaneidade às Luzes [...] Do exotismo advém o primitivismo. Henri Prunières diz a respeito do homem Villa-Lobos que ele, “ao contato com a natureza e com os indígenas, desenvolveu uma alma de primitivo” [...], enquanto que Adolphe Piriou evoca composições “banhadas na poesia primitiva e bárbara dos temas indígenas” (FLÉCHET, 2004, p. 66. Tradução dos autores). Efetivamente, o primitivismo constitui-se como uma noção temporalizada acerca da alteridade. As tradições, inclusive no âmbito das músicas tidas como “populares”, eram consideradas expressão residual da cultura de tempos longínquos, como menciona Suzane Dearquez: “É o ambiente próprio ao caráter ancestral do seu país que procura sobretudo o compositor” (apud Ibidem, p. 65. Tradução dos autores); de forma concomitante, Florent Schmitt descreve Villa-Lobos como “um sobrevivente da Idade da Pedra” (apud Ibidem, p. 65. Tradução dos autores). As tradições musicais indígenas que Villa-Lobos evoca na sua obra direcionam a crítica ao período pré-colombiano, o que Joseph Baruzi resume nos termos: “com a obra de Villa-Lobos, o que se apresenta diante de nós é a América como poderia ter sido antes que os europeus a descobrissem” (apud Ibidem, p. 65-66. Tradução dos autores). 27 Note-se que, no Brasil, exotismo e primitivismo encontravam-se diretamente associados ao indigenismo desde o advento do romantismo.15 Villa-Lobos assumiu tal estética, incluindo elementos indígenas desde as décadas iniciais do século XX: [...] um desses tópicos recebeu maior atenção de Villa-Lobos do que todos outros, e esse foi o “elemento indígena”, responsável pela consagração de Villa-Lobos como o representante maior da musicalidade brasileira no exterior. O assunto indígena foi o preferido de VillaLobos nas suas estadias na Europa, de 1923 a 1930, haja vista a quantidade de obras compostas que faziam referência ao índio brasileiro: Choros nº 3 (1925), Choros nº 10 (1926), Três Poemas Indígenas (1926) e muitas outras (MOREIRA, 2013, p. 19). Pode-se ainda acrescentar a essa listagem a obra para piano A Prole do Bebê, na qual Villa-Lobos insere, entre os temas das bonequinhas, a “caboclinha”, intitulada pela edição Max Echig La petite indigène du Brésil - La poupée en argile. Essa obra foi apresentada em 1924 na capital francesa, na Sale Érard, pelo pianista espanhol Tomás Téran16 (FLÉCHET, 2004, p. 130). A fim de proceder à criação de algumas dessas peças, Villa-Lobos utilizou fonogramas que consistiam em resultados de pesquisas feitas por Roquette-Pinto, em 1908, entre os índios da região norte do Brasil que foram incorporadas às suas composições, por exemplo, nas Danças características africanas e no Uirapuru, ambas as peças escritas antes de 192317 (LOQUE JÚNIOR, 2013, p. 62). Segundo o musicólogo Gabriel Ferrão Moreira, é possível identificar [...] quatro procedimentos de Villa-Lobos com relação a elaboração de um tema indígena para suas obras: a) o uso das melodias originais transcritas, com pouca ou nenhuma alteração do compositor; b) o uso de fragmentos de uma melodia original como elemento para bricolagem na composição livre (utilizada como recurso principal em composições instrumentais com referências a fontes indígenas, como Choros n. 3 e Introdução aos choros), c) composição com melodia de caráter indígena criada integralmente pelo compositor (com o uso de traços melódicos semelhantes às transcrições); e d) composições nas quais Villa-Lobos cita a fonte, e atribui a si mesmo a coleção da música, mas a literatura atualmente não pode comprovar ou refutar suas declarações, apesar de a opinião geral dos pesquisadores tender a considerar tais coletas feitas por Villa-Lobos fruto da imaginação do compositor (MOREIRA, 2013, p. 21). “O Brasil teve de se pensar como nação após 1822, marco de sua independência política, e se firmar socioculturalmente, mesmo com os traços europeus ainda presos pelos alinhavos da colonização. Aliado ao fator histórico, encontra-se o ideal literário romântico, impregnado de valores singulares e direcionado à afirmação da origem do “ser brasileiro”. Tal aspecto encontrou ressonância na existência do elemento indígena, visto como a possibilidade ímpar de ser um dos componentes constituintes da cultura e da nação enquanto genuinamente brasileiro. [...] A tentativa de se construir uma literatura essencialmente brasileira, alicerçada no indígena como herói e na natureza exuberante, produziu uma realidade artificiosa, ao „traduzir para termos nacionais a temática da Idade Média’, permitindo a escritores como Gonçalves Dias e Alencar reservarem „ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros’ [...]” (SANTOS, 2009, p. 20-21). 16 Tomás Terán (1895-1964), nascido na Espanha, iniciou seus estudos no Conservatório de Madri. Em 1918, já no Rio de Janeiro, conheceu Arthur Rubinstein, por quem teve contato com as obras de Villa-Lobos. Após uma curta estada na Espanha, retornou ao Rio de Janeiro em 1924. Nesse mesmo ano, conheceu Villa-Lobos pessoalmente em Paris, executando algumas de suas peças na capital francesa. Em 1930, a convite de VillaLobos, fixou residência no Rio de Janeiro. Em 1944, naturalizou-se brasileiro (BUSCACIO, 2010, p. 136). 17 Cf. também ALBUQUERQUE, 2013, p. 14: “O compositor também explora temas indígenas, logo após sua volta de Paris em 1924, ouvindo no Museu Nacional os fonogramas gravados por Roquette Pinto durante a expedição Rondon de 1908”. 15 28 Se a temática indigenista pode ser reportada ao romantismo, a técnica musical empregada por Villa-Lobos, por sua vez, dialogava com o modernismo: diversos estudiosos reconhecem na série Choros a influência de Stravinski. Trata-se de peças nas quais, recorrentemente Villa-Lobos, utiliza uma rítmica inconstante a fim de criar um ambiente primitivo em detrimento dos elementos melódicos (FLÉCHET, 2004. p.79). Ademais, também o modernismo retomou o primitivismo anteriormente realçado pelo romantismo, como o fez Mário de Andrade, mas conferindo-lhe faceta cultural própria, distinta da europeia. Assim, Descobrir nosso primitivismo nos anos 20 significava desenterrar as duas heranças rasuradas até então pelo olhar eurocêntrico: a herança indígena e a herança africana. Nosso desterro não se manifestaria só por uma relação genealógica com a Europa; era preciso buscar onde nosso cordão umbilical estava enterrado. E ele estava enterrado em Angola, na Nigéria, nas tabas tupis, nos quilombos. Nossa origem era múltipla. Era preciso aceitar nossa mestiçagem, nosso hibridismo, nossa impureza. As raízes não estavam só na Península Ibérica, como havia destacado Sérgio Buarque de Holanda. Novos mitos fundadores tinham de ser escritos para fugir do espelho europeu que nos desfigurou ao longo de séculos (FIGUEIREDO; GLENADEL, 2009, p. 60-61). Em suas composições, Villa-Lobos dialoga com essa ótica modernista, concomitantemente vigente na estética francesa: A temática do primitivismo dos Seis foi reinventada por Villa-Lobos: ele era a expressão deste primitivismo, sendo apelidado, posteriormente, pelos franceses de o índio de casaca: sua musicalidade expressaria uma cultura musical distante e exótica, ao mesmo tempo em que dominava a linguagem francesa impressionista responsável pela valorização na Europa de seu exotismo e primitivismo (CONTIER apud LOQUE JÚNIOR, 2013, p. 62). Desta maneira, através do viés primitivista, Villa-Lobos procedeu a uma bricolagem entre elementos românticos e modernos, os quais entremeavam-se na cultura francesa dos anos 1920, e também fizeram-se presentes no desdobramento do movimento modernista no Brasil, a partir de 1924: “Ao contrário do primeiro modernismo, que rejeitou em bloco a contribuição romântica, vemos aqui aberto o caminho para a releitura valorizada de alguns aspectos românticos que serão, cada vez mais, apontados como indicadores de caminhos para os modernistas”. (MORAES, 1978, p. 88 apud DIAS, 2014, 771). Conclusão O principal propósito dessa pesquisa foi o de interpretar os entrecruzamentos promovidos por Villa-Lobos entre matrizes estético-culturais francesas e alteridades musicais brasileiras em suas composições musicais. Para isso, recorreu-se ao conceito de bricolagem, entendido como uma prática criativa que rompe parcialmente com dicotomizações e hierarquias; não as elimina, mas, por sua própria operacionalidade, torna-as mais moventes e tensionais. 29 O termo francês bricolage significa um trabalho manual feito de improviso, com recurso a materiais muito diversificados e geralmente reutilizados. No livro O Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss adotou o vocábulo para descrever uma prática espontânea de seleção e síntese no tocante a elementos de uma dada cultura, além de estendê-lo à inclusão de padrões característicos do pensamento mitológico, o qual não obedece ao rigor da lógica científica (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 26. Tradução dos autores). Dessa maneira, o antropólogo francês relaciona “bricolagem” à postura do artista que parte de uma experimentação com base no material que dispõe e não de uma ideia, de um projeto. Por sua vez, relendo Lévi-Strauss, Derrida ressignificou a noção de “bricolagem” no âmbito da teoria literária, utilizando-a como sinônimo de colagem de textos numa dada obra. Em paralelo, Michel de Certeau recorreu a essa concepção para referir-se à composição cultural que, entrecruzando diferentes elementos, cria algo novo (NEIRA; LIPPI, 2012, p. 610). Poderia ter como baliza teórica a construção de frases próprias com um vocabulário e uma sintaxe recebidos. Em linguística, a “performance” não é a “competência”: o ato de falar (e todas as táticas enunciativas que implica) não pode ser reduzido ao conhecimento da língua. Colocando-se na perspectiva da enunciação, [...] privilegia-se o ato de falar: este opera no campo de um sistema linguístico; coloca em jogo uma apropriação, ou uma reapropriação da língua por locutores; instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece um contrato com o outro (o interlocutor), numa rede de lugares e relações. [...] Supõe-se que os usuários [...] “façam uma bricolagem” com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras (DE CERTEAU, 1994, p. 40. Itálicos dos editores). Não casualmente, a bricolagem pode ser associada a uma prática de “transgressão” musical, sendo essa, por sua vez, entendida como “[...] aquela qualidade que tem a música de viajar, de atravessar, ir de lugar em lugar em uma sociedade, ainda que muitas instituições e ortodoxias tenham tentado confiná-la” (SAID, 1992, p. 23). Dessa forma, assevera Edward Said, Nada do que eu disse jamais poderia implicar, portanto, que as filiações entre música e sociedade – o que venho denominando de transgressão – reduzem a música a um papel de reprodução passiva e subordinada. [...] O elemento transgressivo da música é a sua habilidade nômade de se perder, ela própria, e tornar-se parte nas formações sociais, de alterar suas articulações e sua retórica de acordo com a ocasião, e com a audiência, mas as circunstâncias de poder e de determinação sexual nas quais ela ocupa um lugar. [...] Assim, podemos ver os músicos como pertencentes à classe intelectual, mesmo se formando um subgrupo distinto, com seus próprios procedimentos, associações, poderes e valores (Ibidem, p. 119). Em desdobramento, Said considera ser contribuição específica do músico conferir à sociedade uma “[...] identidade retórica, social e infleccional através da composição, da performance, da interpretação, do conhecimento e, por que não dizer, de um tipo de profissionalismo” (Ibidem, p. 119). Assim, mediante um diálogo interdisciplinar entre a 30 música e as ciências humanas, é possível hoje pensar-se uma prática musical que promova novas inscrições da alteridade e subversivas bricolagens: “[...] a música se torna, portanto, uma arte que [...] [é] uma modalidade de pensamento referente ou conjugada à variedade integral de práticas humanas, uma modalidade generosa e não coercitiva e, por que não, utópica, se por utópica queremos dizer mundana, possível, alcançável, cognoscível” (Ibidem, p. 163). Referências ALBUQUERQUE, Joel Miranda Bravo de. Simpósio Internacional Villa-Lobos: novas perspectivas para o contexto de uma obra revisitada. Trabalho de conclusão de curso de pósgraduação em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos. São Paulo: USP-ECA, 2013. AZEVEDO, Luiz Heitor Correa de. Présence de la France dans la formation de la culture musicale au Brésil. Bouletin du Conservatoire, Paris, abr. 1951. BARROS, José D’Assunção de. 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Palavras-chave: Textura, Quarteto de cordas, Villa-Lobos Texture in string quartets of Villa-Lobos: preliminary studies Abstract: This paper aims to introduce the study of String Quartets No. 1, 6:14 Villa-Lobos based on the analysis of textural procedures used by the composer. This is a preliminary presentation of the research being carried out by the author as part of his doctorate. The choice of quartets in focus allows an analysis of works with the same compounds instrumental profile at different periods of the creative life of Villa-Lobos. The main analytical tools were presented, such as the lifting of the density-number, density-compression and relations of interdependence and independence, using as example excerpts of these quartets. Keywords: Texture, String quartet, Villa-Lobos Introdução A produção para quarteto de cordas de Heitor Villa-Lobos é significativa, compreendendo um ciclo de 17 obras escritas durante os anos de 1915 a 1957, portanto durante quarenta e dois anos de sua vida criativa. Destacamos os Quartetos nº 1, nº 6 e nº 14 para a realização deste trabalho, permitindo, dessa forma, introduzir o estudo da textura e de processos decorrentes de sua utilização em um meio instrumental limitado, reduzido a quatro instrumentos de timbre homogêneo, como é o caso do quarteto de cordas. Devemos destacar que, apesar da importância do aspecto referente à busca de elementos que identifiquem uma possível identidade nacional a ser encontrada na obra villalobiana, nossa pesquisa desenvolver-se-á no sentido de apresentar técnicas composicionais, empregadas por Villa-Lobos, que caracterizem o estabelecimento de tramas 1 Professor do Departamento de Composição da Escola de Música da UFRJ. Doutorando em Composição na UNIRIO. Mestrado em Composição na UFRJ. Bacharelado em Composição na UFRJ. É coordenador dos cursos de Composição e Regências da UFRJ. Compositor com diversas premiações, com obras executadas no Brasil e no Exterior. Publicações de artigos nos Anais do 1º Colóquio de Pesquisa da Pós-Graduação da UFRJ e no livro Atualidades da Ópera, vinculado ao Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ. Publicações de composições no Banco de Partituras da Academia Brasileira de Música e no Projeto SESC Partituras. 34 texturais, objeto de estudo que ainda teve pouco destaque nas pesquisas sobre a obra do Maestro. Inicialmente faremos um breve comentário sobre alguns autores que realizaram e realizam estudos sobre processos composicionais encontrados na obra de Villa-Lobos. A seguir nos deteremos sobre aspectos relacionados com a trajetória composicional dos quartetos de cordas, em especial os quartetos 1, 6 e 14, objeto da pesquisa e que representam exemplos dos diversos períodos criativos do compositor. Será realizada uma apresentação das principais ferramentas analíticas, encontradas no nos estudos de Wallace Berry sobre textura, nosso principal referencial teórico, com exemplos retirados de fragmentos dos quartetos 1, 6 e 14. Na última seção faremos nossas considerações finais, indicando os desdobramentos da pesquisa. 1- Comentários preliminares Rodolfo Coelho de Souza chama a atenção ao comentar que “sua contribuição2 tem sido valorizada até agora quase que exclusivamente pelos aspectos que apontam para a construção de uma identidade musical brasileira e muito menos pela originalidade intrínseca de sua técnica composicional” (SOUZA, 2010), alertando para a necessidade de empreenderse um estudo mais aprofundado da contribuição original de Villa-Lobos para a música do século XX. Souza concentra sua pesquisa na análise do “Rudepoema”, escrita para piano solo, identificando formas híbridas, derivadas do uso de transformações motívicas e que ele denomina “sonata-variações”. Já Paulo de Tarso Salles tem realizado importante estudo da obra de Villa-Lobos, a partir de diversas ferramentas analíticas. Em seu livro “Villa-Lobos: processos composicionais”, Salles analisa trechos de inúmeras obras de Villa-Lobos, tais como o “Uirapuru”, “Amazonas”, “Prelúdios”, para violão, a suíte “Prole do Bebê nº 2”, as “Bachianas nº 5 e nº 8”, o “Choros nº 10”, dentre outras. Utiliza-se de procedimentos analíticos diferentes para cada situação: redução da melodia, comparação de acordes para estabelecimento de linguagens harmônicas, extração de conjuntos de alturas, verificação do uso de ostinati rítmico-harmônicos, etc. Nesse mesmo texto, Salles trata da textura musical na obra de Villa-Lobos. Apesar de citar Berry3 (SALLES, 2009, p. 69), Salles não se propõe a empregar 2 3 Referindo-se à Villa-Lobos. Salles cita a definição de textura de Wallace Berry, do livro Structural functions in music, Dover Edition, 1987. 35 consistentemente o arcabouço teórico desse autor, preferindo adaptar algumas de suas ideias para a abordagem do repertório sob o ponto de vista da textura. Sua preocupação, dessa forma, foi estabelecer um critério “para a avaliação das texturas villalobianas” (SALLES, 2009, p. 72), baseado em três aspectos: a) determinação do número de camadas texturais; b) avaliação da densidade de cada componente em particular; c) avaliação geral da textura. Dentre os inúmeros trechos de obras analisadas, Salles apresenta dois momentos do Quarteto de Cordas nº 5, destacando no primeiro exemplo o conteúdo folclórico proveniente de cantigas infantis, apresentados em harmônicos pelos violinos; e, no segundo exemplo, o uso de figurações entre os instrumentos, efeito que sugere uma “espacialização textural” (SALLES, 2009, 99). Ambos foram extraídos do primeiro movimento do quarteto. Salles contribui para o aprofundamento da obra de Villa-Lobos com artigos específicos sobre seus quartetos de cordas. Em “Organização harmônica no movimento final do Quarteto de Cordas nº 15” é realizada uma análise do material harmônico-melódico a partir da Teoria dos Conjuntos4 (SALLES, 2008). Essa teoria novamente é utilizada para a análise comparativa entre o 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 7 e Haydn em artigo mais recente5. O aspecto formal é abordado em seu texto “Quarteto de Cordas nº 2 de Villa-Lobos: diálogo com a forma cíclica de Franck, Debussy e Ravel” (SALLES, 2012A). 2 - Os Quartetos de Cordas nº 1, 6 e 14 De acordo com Tacuchian (TACUCHIAN, 1988) a obra de Villa-Lobos poderia ser classificada em 4 fases. A primeira compreende as obras escritas até 1919, correspondendo ao período de aprendizagem. A segunda fase abarca o período identificado com a linguagem modernista expressa no ciclo dos “Choros” e vai até 1929. A terceira fase inicia-se com a composição da série das “Bachianas Brasileiras”, em 1930, indo até 1945 e a última fase vai de 1945 a 1959, ano de sua morte. Devemos ressaltar que essa classificação serve como delimitação do espaço temporal em que as obras foram escritas, pois em cada período encontramos obras que poderiam ser classificadas em outros, se forem levados em conta aspectos técnicos ou mesmo traços estilísticos. Dificilmente atribuiríamos a uma obra como "O Naufrágio de Kleônicos", escrita em 1916, como realizada por um aprendiz, entretanto ela estaria situada no primeiro período criativo, segundo essa classificação. 4 Teoria apresentada por Allen Forte no livro The structure of atonal music, 1973. Salles, Paulo de Tarso, Haydn, Segundo Villa-Lobos: uma análise do 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 7 de Villa-Lobos, in Per Musi, Belo Horizonte, n.25, p. 27-38, 2012. 5 36 Assim a produção para quarteto de cordas de Villa-Lobos poderia ser agrupada da seguinte forma: 1ª fase   Quarteto nº 1 (1915)  Quarteto nº 3 (1916)  Quarteto nº 2 (1915) Quarteto nº 4 (1917) 2ª fase Não compõe nenhum quarteto. 3ª fase   Quarteto nº 5 (1931)  Quarteto nº 7 (1942)  Quarteto nº 6 (1938)  Quarteto nº 8 (1944) Quarteto nº 9 (1945) 4ª fase   Quarteto nº 10 (1946)  Quarteto nº 12 (1950)  Quarteto nº 14 (1953)  Quarteto nº 16 (1955)  Quarteto nº 11 (1947)  Quarteto nº 13 (1951)  Quarteto nº 15 (1954) Quarteto nº 17 (1957) Nota-se que Villa-Lobos não compõe para a formação de quarteto de cordas no período compreendido entre 1917, ano da composição do quarteto nº 4, e 1931, quando compôs o Quarteto nº 5, chamada de Primeiro Quarteto Brasileiro. Esse período corresponde à sua estadia em Paris e à composição da série de “Choros”, onde obras orquestrais e de câmara com formações inusitadas apontam uma preocupação do autor para experimentos com 37 maior diversidade timbrística, ao invés de utilizar um meio tão tradicional quanto o do quarteto de cordas6. O Quarteto nº 1 foi classificado por Estrella como uma suíte em seis movimentos (ESTRELLA, 1970). Foi composto em 1915 e teve sua primeira apresentação no mesmo ano. São movimentos de pequenas dimensões que já revelam uma preocupação do autor em relação ao uso dos instrumentos na apresentação temática, sendo observadas não apenas texturas homofônicas, mas também momentos polifônicos. Seus movimentos são: 1 - Cantilena - Andante 2 - Brincadeira - Allegretto Scherzando 3 - Canto Lírico - Moderato 4 - Cançoneta - Andantino 5 - Melancolia - Lento 6 - Saltando como um Saci É o único quarteto em que Villa-Lobos não utiliza a estrutura em quatro movimentos, decorrente da tradição estabelecida pelos compositores do classicismo vienense. O Quarteto de Cordas nº 6, escrito em 1938, tendo sua estreia em 1942. Foi estruturado em quatro movimentos e tem caráter nacionalista, apesar de não fazer uso de citações diretas de temas folclóricos, como no Quarteto nº 5. Aqui Villa-Lobos revela todo o seu métier de compositor amadurecido, com amplo uso de tramas contrapontísticas e de efeitos instrumentais. Divide-se em: 1 - Poco animato 2 - Allegretto 3 - Andante quase adagio 4 - Allegro vivace O Quarteto nº 14 foi escrito em 1954. Conhecido pelo nome de “Quarteto das Quartas”, como referência ao intervalo estruturador da obra, também foi concebido em quatro movimentos. Faz parte da obra de Villa-Lobos de cunho mais universalista. Sua escrita contém aspectos instrumentais virtuosísticos, com amplo uso de formas contrapontísticas, bem como ambiente harmônico original, devido às harmonias resultantes das superposições de quartas. O conteúdo melódico também é proveniente desse intervalo e de seus desdobramentos. Seus movimentos são: 6 Na série de "Choros" encontramos formações originais como a do "Choros nº 3", para clarineta, sax alto, fagote, 3 trompas, trombone e coro masculino ou a do "Choros nº 7" para flauta, oboé, clarineta, sax alto, fagote, violino, violoncelo e tam-tam. 38 1 - Allegro 2 - Andante 3 - Scherzo (Vivace) 4 - Molto Allegro 3 - Abordagem analítica textural Percebe-se, nos últimos anos, cada vez mais o surgimento de estudos sobre a Textura Musical, em seus diversos aspectos, apontando ora para discussões relacionadas com a possibilidade de se quantificar os dados obtidos, por meio de gráficos e tabelas, ora para discussões mais subjetivas, criando-se analogias e metáforas para a explicação do fenômeno7. A principal ferramenta analítica utilizada nesta pesquisa é oriunda dos estudos de Wallace Berry sobre textura, encontrados em seu livro Structural functions in music (1987). Apesar da importância do aspecto relacionado com a busca de elementos que identifiquem uma possível identidade nacional na obra villalobiana, o foco aqui apresentado se refere às técnicas composicionais que caracterizem o estabelecimento de tramas texturais. Assim,Textura, de acordo com Berry: ...consiste em seus componentes sonoros; é condicionada em parte pelo número desses componentes soando simultânea ou concorrentemente, suas qualidades sendo determinadas pelas interações, interrelações, e projeções relativas e substâncias das linhas que a compõem ou outros fatores sonoros componentes. (BERRY, 1987, p. 184) Essa definição aborda a textura em seus variados aspectos, demonstrando sua complexidade, oriunda das relações que ocorrem entre os diversos componentes sonoros. Tanto o aspecto quantitativo quanto o qualitativo devem ser analisados para o estabelecimento não só dos tipos texturais, mas também dos fluxos texturais. O aspecto quantitativo está relacionado com a densidade, ou seja, o número de eventos concorrentes; já o aspecto qualitativo envolve a natureza das interações e interrelações destes eventos. 3.1 - Aspecto Quantitativo É representado pelo que Berry denomina de densidade-número e pela densidadecompressão. a) Densidade-número 7 É o caso dos trabalhos de Senna, Textura musical: forma e metáfora (2007) e de Gentil-Nunes, Análise Particional: uma mediação entre composição musical e a Teoria das Partições (2009). 39 É o número de vozes ou partes em simultaneidade em um determinado trecho, é representado relacionando o número de vozes ou partes pelo número de compasso (ou pela subdivisão do compasso) em um plano cartesiano. É importante destacar que o fluxo dos eventos é fundamental, ou seja, o desenrolar dos eventos no tempo. Quanto mais vozes mais vozes ou partes denso é o trecho. 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10111213141516171819 compassos Fig. 1 - Gráfico da Densidade-número do início do Quarteto nº 6, primeiro movimento - Villa-Lobos Fig. 2 - Início da partitura do Quarteto nº 6 de Villa-Lobos Nos dois primeiros compassos do primeiro movimento do Quarteto nº 6 temos 4 vozes. No terceiro ocorre uma rápida rareifação da textura, permanecendo apenas 2 vozes. Do 40 compasso 4 ao compasso 11 temos novamente 4 vozes, havendo uma diminuição para 2 vozes nos dois compassos seguintes. É o momento na partitura em que se percebe o inicio de um processo imitativo que levará a uma maior intensificação textural provocada pelo aumento do número de vozes, chegando ao números de 6 vozes no compasso 19. É possível o aumento no número de vozes mesmo com um número reduzido de 4 instrumentos de cordas, devido ao uso de cordas duplas, como acontece no violoncelo e 2º violino no compasso 19. b) Densidade-compressão: É a razão entre o número de vozes e o espaço vertical que elas ocupam. É representada pela relação entre o número de vozes e o número de semitons existentes entre as extremidades. Berry denomina de textura-espaço ou simplesmente espaço. Comp . . = : . . = : . = 4 :4 Fig. 3 - Densidade-compressão de pontos específicos do primeiro movimento do Quarteto nº 14 de Villa-Lobos Fig. 4 - Início da partitura do Quarteto nº 14 de Villa-Lobos 41 No primeiro tempo do compasso 2 temos o 2º violino e a viola a uma distância de 2 semitons, no segundo tempo essa distância aumenta para 8 semitons, ou seja, ocorre um afastamento entre as vozes. A densidade-compressão diminui, pois duas vozes em relação de 2 semitons ocupam um espaço menor do que duas vozes em 8 semitons. No primeiro tempo do compasso 7 a distância entre a voz mais aguda, 1º violino, e a mais grave, violoncelo, é de 48 semitons, havendo outras duas vozes contribuindo para a densidade compressão. Nota-se aqui, tanto a possibilidade de avaliar o fluxo, como no caso do compasso 2, como um recorte específico no tempo, como no caso do compasso 7. 3.2 - Aspecto Qualitativo O aspecto qualitativo é representado pelo gráfico de Independência e Interdependência. a) Independência e Interdependência Indica o grau de independência ou de interdependência entre as partes. É representado por números dispostos verticalmente, com uma barra separando-os. Ao número 1 é atribuído o maior grau de independência. O número 2 é relacionado com duas vozes ou partes em relação de interdependência, e assim por diante. O aspecto rítmico entre as partes é utilizado como elemento para a definição de independência e interdependência. Aqui o fluxo é muito importante, pois irá definir os momentos de progressão e de recessão textural, ou seja, o caminho percorrido pela música até seus pontos culminantes e seus declínios. Muitas vezes seções e partes das músicas são percebidas por meio do aumento da interdependência entre as vozes. Fig. 5 - Partitura do primeiro movimento do Quarteto nº 1 de Villa-Lobos 42 Fig. 6 - Gráfico das relações de Independência e Interdependência no primeiro movimento do Quarteto nº 1 de Villa-Lobos No primeiro compasso duas vozes estão em relação de independência. No compasso seguinte duas vozes são independentes e duas são interdependente. No compasso 3, todas as quatro vozes estão independentes. Do compasso 1 até esse ponto ocorre uma pequena progressão textural. No compasso 19 ocorre um momento em que todas as vozes estão em relação de interdependência. Nesse ponto percebemos uma finalização de seção, confirmada pelo ponto cadencial observado na partitura. Na segunda seção desse movimento ocorre um único momento de total independência entre as vozes no compasso 35. No compasso 38, novamente observamos o momento de total interdependência coincidindo com o momento cadencial. Nos compassos seguintes ocorre uma coda e finalização do movimento, quando temos uma acentuada recessão da atividade textural. Considerações Finais Nos exemplos apresentados, retirados dos Quartetos de Cordas nº 1, 6 e 14 de Villa-Lobos, observamos como aspectos texturais servem como delineadores de um pensamento composicional de Villa-Lobos. O estudo dos quartetos de cordas permite um olhar aprofundado sobre detalhes da escrita de Villa-Lobos, destacando o cuidado na distribuição das ideias musicais no plano composicional geral. Não apenas o conteúdo temático ou os planos harmônicos, mas também a forma como esse material apresentado, como os jogos de subagrupamentos em camadas sobrepostas ou a abertura de amplos espaços sonoros, mesmo em um meio limitado instrumentalmente, como é o caso do quarteto de cordas. Como desdobramento e continuação da pesquisa será realizado uma análise textural, nos moldes apresentados acima de todos os movimentos dos referidos quartetos de Villa-Lobos. além de outros fatores, tais como:  o aspecto rítmico, visto verticalmente (sincronias ou não entre os ritmos das partes) e horizontalmente (a distância das entradas em texturas imitativas); 43  a direção de movimento das partes (homodirecional, heterodirecional e contradirecional);  a natureza dos intervalos (consonância e dissonância); Além do levantamento desses conteúdos nesses quartetos de cordas de VillaLobos e sua representação gráfica, será visto o aspecto relacionado à textura como fator de delimitação da forma musical. A análise de todos esses elementos possibilitará estabelecer características comuns do pensamento composicional de Villa-Lobos em relação ao uso da textura, assim como possíveis peculiaridades das diversas fases de sua obra para quarteto de cordas. Referências BERRY, Wallace. Structural Functions in Music. New York: Dover Editions, 1987. ESTRELLA, Arnaldo. Os quartetos de cordas de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC – Museu Villa-Lobos, 1970. FORTE, Allen. The structure of atonal music. New Haven: Yale University, 1973. GENTIL-NUNES, Pauxy. Análise Particional: uma mediação entre composição musical e a Teoria das Partições. Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em Composição), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, 2009. HORTA, Luís Paulo. Heitor Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento: Livroarte Editora, 1986. SALLES, Paulo de Tarso. Organização harmônica no movimento final do Quarteto de Cordas nº 15 de Villa-Lobos. Salvador: XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e PósGraduação (ANPPOM), 2008, p. 98 – 103. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora Unicamp, 2009. SALLES, Paulo de Tarso. Quarteto de Cordas nº02 de Villa-Lobos: diálogo com a forma cíclica de Franck, Debussy e Ravel. Goiânia: Revista Música Hodie – V.12, nº 1, 2012, p 2543. SALLES, Paulo de Tarso. Haydn, segundo Villa-Lobos: uma análise do 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 7 de Villa-Lobos. Belo Horizonte: Per Musi nº 25, 2012, p 27-38. SENNA, Caio. Textura musical: forma e metáfora. Tese (Doutorado em Composição). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, 2007. 44 SOUZA, Rodolfo Coelho de. Hibridismo, consistência e processos de significação na música modernista de Villa-Lobos. Salvador: Periódico do PPGMUS da UFBA: Ictus vol. 11 - 2, 2010. TACUCHIAN, Ricardo. “Villa-Lobos e Stravinsky”. In.: Revista do Brasil: edição especial Villa-Lobos. Ano 4, nº.1. Rio de Janeiro: Rioarte, 1988. 45 Heitor Villa-Lobos – Guia Prático para piano n. 1: considerações para uma abordagem pedagógica Francine Alves dos Reis1 UNICAMP reisfrancine@hotmail.com Resumo: Este trabalho tem como objetivo propor uma abordagem pedagógica para a performance das peças que fazem parte do Guia Prático para piano n. 1 (1932), de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). As peças abordadas neste trabalho são: Acordei de madrugada, A maré encheu, A Roseira. O procedimento analítico empregado engloba um levantamento dos aspectos composicionais de Villa-Lobos, exame da estrutura musical e dos aspectos técnico-pianísticos para a performance das mesmas. Os resultados obtidos podem contribuir significativamente para a elaboração da performance do material analisado. Palavras-chave: Heitor Villa-Lobos, Guia Prático, Performance, Pedagogia, Análise. Heitor Villa-Lobos - Practical Guide to Piano n. 1: considerations for a pedagogical approach Abstract: This work aims to propose educacional guidelines for the performance of Guia Prático para piano n. 1 (1932), of Brazilian composer Heitor Villa-Lobos (1887-1959). The pieces that belong in this work are: Acordei de madrugada, A maré encheu, A Roseira. The analytical process chosen for the guidelines, includes a survey of Villa-Lobos compositional procedures, na examination of the musical structure and the pianistic technical aspects required for their performance. The results contributed significantly for the elaboration of the performance of the material analyzed. Keywords: Heitor Villa-Lobos, Guia Prático, Performance, Pedagogy, Analysis. 1-O que olhar quando olhamos: considerações para uma análise A textura da música consiste em seus componentes sonoros; ela depende em parte desses componentes soando em simultaneidade ou concorrência, suas qualidades são determinadas por interações, inter-relações, projeções relativas e substanciais das linhas componentes ou outros fatores sonoros desses componentes. (BERRY, 1987, p. 184) De acordo com Pascoal a música do século XX manifestou-se principalmente através da ampliação e negação do sistema tonal (PASCOAL, 2005), e os compositores passaram a utilizar novos materiais e técnicas para seus trabalhos. A autora comenta a respeito: Observamos como o discurso musical se transformou, por não mais fazer uso de balanço e equilíbrio proporcionado por frases e seções de conteúdo temático; por não haver mais a combinação de sons em acordes que se relacionavam entre si e com um centro; pela variedade de material escalar e pelos aspectos das vozes condutoras (síntese da harmonia e contraponto) que se tornam independentes. (PASCOAL, 2005, p. 95) 1 Bacharel em Letras (PUC). Bacharel em Música (CBM). Licenciatura plena em Música (CBM). Especialização em Educação Infantil (Faculdade São Luís). Especialização em Educação Musical (Faculdade do Noroeste de Minas). Mestre em Música (UNICAMP – Instituto de Artes – área de concentração: performance musical e estudos instrumentais). Projeto de pesquisa aprovado para bolsa FAPESP. 46 A partir dessa transformação da escrita musical do século XX estamos diante do fato de que é necessário que o intérprete, bem como o professor, se voltem para um olhar preparado para buscar os elementos desse discurso e como eles são articulados na estrutura da escrita. Salles (SALLES, 2009) elucida e organiza esta questão na música de Villa-Lobos, destacando entre seus procedimentos composicionais: simetrias, texturas, figurações em ziguezague, estruturas harmônicas, processos rítmicos. O autor fala também de sobreposição e justaposição de camadas autônomas, figurações com ostinato, texturas com ambientações de melodias folclóricas e também material harmônico simples, com elaboração tonal clara. De acordo com Cook (1987), uma análise depende da música, do analista, e principalmente da razão pela qual está sendo feita. As análises propostas neste trabalho constituem possibilidades que não se fecham, estando sujeitas a outras leituras, e foram feitas com a finalidade de revelar o tratamento que o compositor confere às melodias folclóricas nas ambientações2 das peças do Guia Prático. Dos processos composicionais citados por Salles (2009), elencamos para este trabalho o tratamento textural de Villa-Lobos para as melodias folclóricas que fazem parte do Guia Prático, a partir da ideia de que “a melodia villalobiana atua como mais um dos elementos da textura, integrada a um ambiente que lhe confere maior significação” (SALLES, 2009, p. 65). O objetivo final é trabalhar com os dados resultantes de modo a embasar uma pedagogia da performance das peças analisadas. A busca dos movimentos da performance se dará através do que diz a textura: como é a ambiência harmônica? Como a melodia é colocada dentro desse ambiente? Como a movimentação em conjunto com a harmonia é estabelecida ritmicamente? Para analisar as peças buscamos referenciais para a harmonia em Ralph Turek (1996) e Maria Lúcia Pascoal (2005). Para os processos composicionais de Villa-Lobos o referencial utilizado foi o de Paulo de Tarso Salles (2009). E finalmente como técnica de análise, achamos pertinente utilizar uma adaptação do que propões John White (1994), distribuindo os elementos observados em macro análise, média análise e micro análise.3 Paralelamente, através das análises, realizamos um levantamento dos aspectos técnico-pianísticos necessários à execução das peças analisadas, e que podem ser adquiridos a 2 A respeito do termo ambientações, destacamos que ambiência não é o mesmo que harmonização. O conceito de ambiente sonoro envolve um tratamento textural, “abre espaço para outras abordagens que vão além da combinação triádica e seus encadeamentos norteados por regras herdadas do contraponto.” (SALLES, 2009, p. 102) 3 As análises completas podem ser vistas na dissertação de mestrado da autora – Heitor Villa-Lobos – Guia Prático para piano n. 1: abordagem pedagógica e proposta de performance. UNICAMP, 2015. 47 partir do estudo das mesmas. Estes aspectos dispostos ao final de cada análise fundamentamse em Campos (1987). 2-Análises 2.1-Acordei de madrugada Em Acordei de madrugada, o compositor estrutura a peça com uma introdução, seção A, seção B e coda. A ambiência do que será a peça é determinada logo nos quatro compassos da introdução, nos quais são reveladas as camadas de textura contrapontística, o ostinato rítmico melódico e o movimento harmônico. As frases são simétricas dentro do compasso binário simples. A intensidade trabalha com mf e p. Na seção A o compositor trabalha com o centro tonal Fá M, e na seção B com o centro tonal Fá m. Exemplo 1: movimento harmônico e ostinado. Villa-Lobos – Guia Prático para piano 1º Álbum, 1. Acordei de madrugada. Compassos 1 – 4. Há um ostinato no tenor, com uma figuração textural que agrega componentes acima e abaixo do mesmo. A melodia da canção está integrada nas camadas. Exemplo 2: Quatro planos – linha do baixo, ostinato no tenor, melodia da canção no contralto, 4as e 5as sustentadas no soprano. Villa-Lobos – Guia Prático para piano 1º Álbum, 1. Acordei de madrugada. Compassos 5 – 8. O quadro abaixo ilustra os aspectos da escrita villalobiana destacados na análise e os aspectos técnico-pianísticos: 48 Aspectos da escrita destacados na análise Aspectos técnico-pianísticos observados na análise   Presença de um ostinato rítmico melódico. Textura contrapontística com camadas acima e abaixo do ostinato.   Articulação do polegar.  Independência de mãos e de dedos.  rítmica.   Abertura de mão. Domínio de polirritmia/ precisão Controle de pedal. Reconhecimento e controle de sonoridade. 2.2- A maré encheu Em A maré encheu, a organização formal também é estabelecida com introdução, seção A, seção B e coda. A introdução acontece em centro Labm, e seção A, B e coda em centro LabM. A harmonia é simples, porém ricamente ornamentada, conforme consta no quadro com a análise completa. A textura é polifônica. A intensidade trabalha com p, mf e f. Salientamos o tratamento da textura a partir dos acentos que fazem vir à tona as camadas independentes. Na seção A, além da melodia da canção há uma outra em contraponto, o que justifica a colocação dos acentos. O pedal em Lab também indica a escrita em camadas. 49 Exemplo 3: Melodias em contraponto destacadas pelos acentos. Villa-Lobos – Guia Prático para piano 1º Álbum, 2. A maré encheu. Compassos 5 – 12. Na seção B, a rítmica percussiva e com um deslocamento de apoio da parte forte do segundo tempo para a parte fraca do primeiro chama a atenção para as combinações rítmicas complexas. 50 Exemplo 4: Ritmo percussivo com deslocamento de apoio. Villa-Lobos – Guia Prático para piano 1º Álbum, 2. A maré encheu. Compassos 14 – 15. Aspectos da escrita destacados na análise Aspectos técnico-pianísticos observados na análise   Textura polifônica. Processos rítmicos. (destaque para os acentos colocados na parte A e para o deslocamento de apoio na rítmica da parte B).  Reflexos para imediata colocação da  mão em maiores distâncias.  Independência de mãos e dedos.  Domínio de pedal.  Abertura de mão.  Precisão rítmica. Reconhecimento e controle de sonoridade. 2.3 - A Roseira A Roseira acontece com uma introdução, seção única e coda. Revela dois centros tonais simultâneos, um para o ostinato (centro Dó) e outro para a melodia da canção (centro Sol), e apresenta uma irregularidade dentro da regularidade, através da métrica do compasso irregular, que é mantido do início ao fim da peça. A intensidade trabalha com f, mf e p nas camadas independentes. 51 A textura é polifônica. A melodia aparece no contralto enquanto o ostinato movimenta-se no baixo, e um pedal se sol aparece no soprano agregando ressonância na ambiência. Exemplo 5: Centros tonais diferentes na melodia e no ostinato rítmico melódico; fraseado. Villa-Lobos – Guia Prático para piano 1º Álbum, 3. A Roseira. Compassos 5 – 7. Aspectos da escrita destacados na análise Aspectos técnico- pianísticos observados na análise    Dois centros tonais simultâneos.  Textura polifônica.  compassos 7-8, 11 a 17. Pedal tonal no soprano  nos  Independência de mãos e dedos. Precisão rítmica. Reconhecimento e controle de sonoridade. Métrica com compasso irregular (destaque para a colocação do fraseado) 3-Considerações para uma abordagem pedagógica A partir dos aspectos da escrita de Villa-Lobos levantados nas análises apresentadas neste trabalho, consideramos, para a abordagem pedagógica, um conceito de performance: “os performers dão realidade a uma composição preexistente” (SLOBODA, 2009, p. 87); um conceito de gesto enquanto movimento com intenção (ZAGONEL, 1992); e 52 ainda um conceito de programação motora a partir do estudo do movimento e da compreensão de cada partitura como uma ocorrência única (KAPLAN, 1985). A definição de gesto vem da palavra acta, que quer dizer ação. Porém seu significado vai além de sua definição, uma vez que gesto é um movimento com intenção. Uma mímica isenta de qualquer significação não define gesto. O conceito de gesto envolve mais aspectos do que apenas uma movimentação no tempo e no espaço sem nenhum sentido de expressão, pois o “gesto tem um objetivo preciso, de produzir ou simbolizar.” (ZAGONEL, 1992, p. 12) […] O intérprete, a partir da leitura da partitura, imagina o movimento sonoro desejado, e associa o gesto físico necessário à emissão desse som. Conforme a precisão do gesto imaginado enquanto movimento sonoro e o domínio gestual que o instrumentista possui de seu instrumento, se produzirá o som. (ZAGONEL, 1992, p. 17) Entendemos a aprendizagem da performance como um processo que emerge da corporeidade. Aprender a tocar é um processo que acontece a partir da compreensão da escrita musical, que apresenta um desenho com um movimento, e não apenas como um processamento de informações. As etapas deste processo compreendem: a) o exame da partitura a fim de formar uma representação mental e identificar os elementos expressivos da execução; b) o reconhecimento e a busca das variações expressivas adequadas ao texto/obra; c) uma programação motora que realize o que foi analisado/compreendido. A respeito ainda da familiaridade do intérprete com a peça executada Sloboda (2009) afirma: Os agrupamentos métricos que importam cabem nos limites de um compasso. Por outro lado, as progressões tonais podem estender-se por muitos compassos, de modo que a previsão torna-se menos possível e o prognóstico exato passa a ser a única maneira de tomar as decisões expressivas corretas. À medida que o performer vai-se familiarizando com um idioma, os prognósticos vão se tornando cada vez mais possíveis [...] (SLOBODA, 2009, p. 113) Sloboda também traz a questão do movimento na programação motora indicando a necessidade de uma flexibilidade e sobreposição de elementos de uma sequência motora ao mesmo tempo. O autor nos diz: Quando, por exemplo, o pianista executa uma passagem de uma escala, ele já precisa movimentar o segundo dedo em direção à nova posição, antes de soltar o primeiro dedo. Como o grau de sobreposição é variável (e depende, entre outras coisas, da velocidade da execução), o segundo movimento de dedos não pode ser iniciado com base em uma pista do primeiro. (SLOBODA, 2009, p. 115) Assim, na execução pianística, a programação motora é realizada através de movimentos sincronizados, que dependem da programação proposta pelo próprio texto, do início ao fim da peça, passando pela compreensão de como o compositor articula suas ideias. 53 A respeito da natureza da programação motora, entendemos que esta não pode ser rígida e nem estanque (KAPLAN, 1985), uma vez que o performer dará corporeidade ao som no momento da performance; sua programação motora deve estar preparada e flexível o suficiente para acompanhar o movimento da composição. A partir do exposto acima temos uma proposta de pedagogia da performance que se baseie na compreensão do discurso musical da peça a ser executada. Portanto, de acordo com esta abordagem, vemos que é necessário compreender a sintaxe musical, para se chegar ao gestual que traduz e realiza sonoramente o idiomático do compositor, além de comunicar artisticamente o pensamento do intérprete, uma vez que o gesto do pensamento antecede o gesto motor, produto final na tarefa de tocar uma partitura musical. O gesto motor torna concreta a articulação dos elementos do discurso, e mostra “dimensões complementares” (FRANÇA, 2000, p. 52) do desenvolvimento musical de um intérprete: a compreensão: que entra nos elementos do discurso musical e descortina seu significado expressivo; e a técnica: que é a somatória de procedimentos práticos e habilidades sem os quais o discurso musical não se concretiza completamente. Conclusão A partir das análises das peças apresentamos os aspectos composicionais de VillaLobos presentes nas peças que compõem o Guia Prático para piano n. 1, a saber: presença de ostinato rítmico melódico, textura contrapontística com camadas acima e abaixo e um ostinato, processos rítmicos, dois centros tonais simultâneos, pedal tonal e métrica com compasso irregular. Juntamente com as análises, apresentamos os aspectos técnico-pianísticos elencados e pressupostos como necessários para a fluência na execução musical: independência de mãos e dedos, articulação do polegar, reconhecimento e controle de sonoridade, abertura de mão, precisão rítmica e domínio de polirritmia, controle de pedal, reflexos para colocação da mão em maiores distâncias, fortalecimento de dedos e palma de mão, técnica de ataque. Os dados resultantes das análises realizadas neste trabalho, juntamente com os conceitos apresentados na abordagem pedagógica, podem contribuir significativamente para uma construção da pedagogia da performance e da própria performance das peças de VillaLobos constantes no Guia Prático para piano n. 1, através de um olhar coerente e embasado. Pretendemos com este trabalho trazer à tona a possibilidade de utilização do Guia Prático para 54 piano de Villa-Lobos como uma ferramenta para a aquisição de procedimentos técnicopianísticos e também aquisição de familiaridade com a escrita villalobiana. Pretendemos também abrir as discussões para novas pesquisas e colocar à disposição do público elementos significativos para a utilização do material analisado na pedagogia da performance. Referências BERRY, Wallace. Structural functions in music. New York: Dover, 1987. CAMPOS, Lina Pires de. Pedagogia e técnica pianística. São Paulo: Ricordi, 1987. COOK, Nicholas. A Guide to musical analysis. New York: Norton & Company, 1987. KAPLAN, José Alberto. Movimento, 1985. Teoria da aprendizagem pianística. Porto Alegre: Editora LOUREIRO, Francine Alves dos Reis. Heitor Villa-Lobos – Guia Prático para piano n. 1: abordagem pedagógica e proposta de performance. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Música do Instituto de Artes da UNICAMP. Campinas, 2015. PASCOAL, Maria Lúcia. A prole do bebê n. 1 e 2 de Villa-Lobos: estratégias da textura como recurso composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n. 11, p. 95-105, 2005. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp. 2009 a. SLOBODA, John. A mente musical. A psicologia cognitiva da música. Londrina: Eduel, 2008. TUREK, Ralph. The elements of music: concepts and applications. New York: The McGrawHill Companies, Inc., 1996. ZAGONEL, Bernadete. O que é gesto musical. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. ____________________. Estrutura tonal: harmonia. Disponível em www.cultvox.com.br . Acesso em 05 de outubro de 2016. 55 Lendas Brasileiras Rodrigo Cicchelli Velloso1 Universidade Federal do Rio de Janeiro rodcv@acd.ufrj.br Resumo: Neste texto, trato da suíte para flauta e piano denominada Lendas Brasileiras, composta em 2015 em torno de figuras mitológicas oriundas do folclore brasileiro. O contexto em que as peças foram compostas, aspectos de sua poiesis e considerações a respeito de sua relação com o legado da música brasileira nacionalista e de sua posição na contemporaneidade são abordados. Palavras-chave: Folclore. Lendas. Música Brasileira. Brazilian legends Abstract: In this text, I discuss a suite for flute and piano entitled Lendas Brasileiras composed in 2015 around characters of Brazil’s folklore. The context in which the pieces were composed, aspects of their poiesis and considerations regarding their relation to the legacy of Brazil’s musical nationalism are tackled. Keywords: Folklore. Legends. Brazilian Music. Introdução Lendas Brasileiras é uma suíte para flauta e piano composta em 2015 em torno de figuras mitológicas oriundas do folclore brasileiro. Cinco peças perfazem o ciclo: I – Curupira; II – Boto; III – Uirapuru; IV – Iara; e V – Saci. As peças podem, a critério dos intérpretes, ser antecedidas por curtos diálogos que retratam o encontro de uma criança com um adulto, onde é a criança quem ensina ao adulto quem são os personagens. A suíte foi estreada pelo Duo Barrenechea na Festsaal da Universität für Musik und Darstellende Kunst Wien em Viena (Áustria) em 24 de maio de 2016, com apresentação um mês depois no Auditorio Dai Hall do Centro Cultural Peruano Japonês em Lima (Peru) durante o Festival Internacional de Flautistas. Em ambas as ocasiões, os diálogos não foram encenados, executando-se apenas a parte instrumental. Há uma versão midi, antecedida pelos diálogos lidos por mim e por meus sobrinhos em gravação e edição caseiras, servindo de demonstração da composição, que pode ser encontrada em meu perfil no soundcloud: https://soundcloud.com/rodrigo-cicchelli/lendas-brasileiras-i-versao-de-demonstracao 1 Compositor, flautista e Professor Titular do Departamento de Composição da Escola de Música da UFRJ. Graduou-se em Composição Musical e em Flauta Transversa pelo Instituto Villa-Lobos da UNIRIO. Foi também aluno de César Guerra-Peixe e de Hans-Joachim Koellreutter. Pós-graduado na Europa nos anos 1990, realizou Doutorado na University of East Anglia na Inglaterra com bolsa da CAPES e Especialização no IRCAM de Paris como bolsista do governo francês. Sua produção composicional vem sendo premiada no Brasil e no exterior. Além de suas atividades acadêmicas e artísticas, Rodrigo Cicchelli produz e apresenta o programa radiofônico Eletroacústicas, que vai ao ar toda quarta-feira à meia-noite pela MEC FM (99.3 MHz). 56 Contexto As Lendas Brasileiras foram compostas no momento em que passava por um processo de reavaliação criativa, suscitado, entre outras razões, pelo processo de promoção a que me submeti na instituição onde leciono, a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o intuito de alcançar o cargo de Professor Titular. Num certo sentido, foi também um esforço de “acerto de contas” com o legado da música brasileira nacionalista. Ex-aluno de César Guerra-Peixe e admirador de Heitor VillaLobos, vinha da composição de duas peças que revisitaram este universo, também compostas em 2015. Na primeira, Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos (para quinteto de sopros), coloquei em foco as lições aprendidas com o mestre petropolitano, “dialogando”, trinta anos depois, com o Trio (1986), que compusera sob sua orientação. Na segunda, debrucei-me sobre um ciclo coral de Villa-Lobos que cantara também três décadas antes no Coral Pró-Arte sob a regência de Carlos Alberto Figueiredo, a Bendita Sabedoria, sobre o qual escrevi uma série de Variações para quinteto de metais. Esta peça foi objeto de uma comunicação que apresentei no I Simpósio Nacional Villa-Lobos, com título homônimo ao da composição: Variações sobre a Bendita Sabedoria. (VELLOSO, 2015). Naquele texto, discuto a relação ambivalente de minha geração com o legado do nacionalismo musical e da grande admiração que nutríamos por Villa-Lobos e pelos grandes mestres que o sucederam, sequiosos, porém, de maior informação sobre o que ocorria na vanguarda internacional. Em outro texto, o Memorial apresentado em julho de 2016 como requisito parcial do processo de promoção a Professor Titular na Escola de Música da UFRJ, aprofundei esta discussão, rememorando os anos de minha formação em Composição Musical na década de 1980, realizada no Instituto Villa-Lobos da UNIRIO, em aulas com César Guerra-Peixe na Escola de Música Villa-Lobos e em aulas particulares com Hans-Joachim Koellreutter, escrevendo sobre a relação ambivalente que mantinha com o legado da música nacionalista: Quando disse acima que mantinha uma relação ambivalente com o legado da Música Brasileira Nacionalista, isto se devia ao fato de perceber nela e em seus praticantes uma rejeição pelas vanguardas daquele tempo, vanguardas que queria conhecer tanto técnica quanto esteticamente, já que era sensível ao chamado de Reginaldo Carvalho. O acesso à informação no Brasil dos anos 1980, porém, era dificultoso. As temporadas de concertos eram muito conservadoras – viriam a sê-lo ainda mais uma década depois! Os livros que tratavam de música contemporânea podiam ser adquiridos apenas a peso de ouro (“dólar-livro”!) na Livraria Leonardo da Vinci. Poucas gravações desta música estavam disponíveis no mercado e precisavam ser garimpadas dentre os usados de uma loja de discos na Rua São José. Partituras, então, quase nada havia do século XX nas bibliotecas públicas. Na Oscar Arani encontrávamos o repertório clássico/romântico tradicional, com raras extensões para o começo do século XX, que adquiria sempre que algo estava disponível e cujo preço não fosse proibitivo. Recebia uma formação sólida na Unirio, mas o curso tinha um viés tradicional forte. Assim, desconfiava haver um grande descompasso 57 entre o que se fazia na Europa e no Brasil. A permanente crise econômica dos anos 1980 gerava também a sensação de atraso e de fracasso nacional. Havíamos sido bem-sucedidos na restauração da democracia, mas o descalabro inflacionário tornava penoso o dia-a-dia. Além disso, reconheço, dominava-me o típico complexo tupiniquim de subdesenvolvimento, que só viria a vencer muitos anos depois. E minha inquietude, afinal, inquietava-me. (VELLOSO, 2016) O texto do Memorial prossegue relatando como enveredei pelo universo das técnicas de vanguarda e dos recursos eletroacústicos, em que viria a me especializar na Europa dos anos 1990, tendo seguido um doutorado na Inglaterra na University of East Anglia como bolsista da CAPES e uma especialização em Composição e Informática Musical no Cursus do IRCAM em Paris, na época a Meca do modernismo musical, como bolsista do governo francês. Neste sentido, as Lendas Brasileiras são um passo inusitado e surpreendente para um compositor dedicado há mais de duas décadas a questões distantes do universo folclórico brasileiro. As Lendas Brasileiras representam também mais uma peça de minha produção recente que retrata o ambiente infantil. O já mencionado quinteto de sopros Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos é dedicado a meu sobrinho e afilhado Luke, que tinha então seis anos de idade, e foi composto enquanto ele convalescia de uma infecção. Enquanto trabalhava, mostrava-lhe os esboços e dar-me-ia por satisfeito se ele aprovasse o resultado. Foi o que aconteceu. De certa forma, essa experiência significou uma tremenda libertação criativa. O compositor preocupado em pertencer ao cânone modernista elegia agora uma criança de seis anos como o juiz de seus esforços. Por sua vez, as Lendas são dedicadas a outra criança, minha sobrinha Juliana, irmã de Luke. Fora ela quem havia me reapresentado aos temas folclóricos brasileiros, já que estes agora figuram como matéria escolar do Ensino Fundamental. Li os textos que ela lia na escola onde estuda (Escola Parque), acompanhando-a em seus deveres de casa e “surfamos” juntos nos sites dedicados à mitologia brasileira, a que ela recorria para fazer seus trabalhos. https://www.todamateria.com.br/lendas-do-folclore/ Dentre estes, menciono: e http://www.suapesquisa.com/folclorebrasileiro/folclore.htm . Ao começar a compor a suíte, beneficiei-me destas leituras e recorri também a um clássico da literatura folclórica: o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo. (CÂMRA CASCUDO, 2012). Sobre a suíte 58 Conforme destacado anteriormente, as Lendas Brasileiras são compostas por cinco peças para flauta e piano, antecedidas, opcionalmente, pela representação de curtos diálogos, com indicações de movimentação e indumentária, em que uma criança (Juliana) apresenta os personagens a um adulto (Tio Rodrigo). Nesta seção, apresento brevemente cada uma das peças, transcrevendo os diálogos e instruções cênicas, de realização opcional, aspectos pertinentes à poiesis das peças, e a reprodução de suas páginas iniciais. I – Curupira Diálogo: Tio Rodrigo (flautista) – Quem vem lá?! Juju (pianista) – É o Curupira! Aquele menino de cabelos vermelhos que tem os pés para trás. Tio Rodrigo – Ele é bom ou mau? Juju – Depende de você! Montado num porco do mato, ele protege as florestas armado com a sua lança! (Faz o gesto de espetar o flautista.) Tio Rodrigo – Ui! Como retratar um menino (ou anão) de cabelos vermelhos, que tem os pés invertidos (virados para trás) e que, sentado num porco do mato, porta uma lança para proteger as florestas? Assim é descrito o Curupira, personagem folclórico considerado por Câmara Cascudo como “um dos mais espantosos e populares entes fantásticos das matas brasileiras.” O Curupira foi alçado à controvertida honra de guardião das florestas e dos animais por uma lei estadual durante o período da Ditadura Militar, pelo Governador de São Paulo Abreu Sodré, em 1970. (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 246-247) Deixando de lado as apropriações políticas de um período sombrio da história brasileira, recorri à minha experiência de compositor eletroacústico para caracterizar metaforicamente os pés para trás como um som revertido, que simulo entre flauta e piano já no primeiro compasso. A partir do gesto inicial, teço uma elaboração livre, mesclando passagens diatônicas e cromáticas, movidas e lentas, em pares de opostos para sugerir as diferentes ações do menino. 59 Exemplo 1. Página inicial do Curupira. II – Boto Diálogo: Tio Rodrigo – E agora, quem vem lá?! Juju – É o Boto! Ele sai do rio em noite de Lua Cheia para namorar as moças bonitas. Ele as leva para o rio e aí elas ficam grávidas... Tio Rodrigo – Boto safadinho! 60 Botos são golfinhos do Amazonas. A crença popular atribui ao boto a paternidade de todas as crianças que nascem de pai desconhecido. (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 126) Em meu Boto, imagino uma dança de corte e acasalamento sugerindo a imagem de um sedutor amazônico que, saindo da água em noite de lua cheia, engravida as moças bonitas que encontra pelo caminho. Procurei aproximar a peça de estilos populares brasileiros, sem, no entanto, tentar emular qualquer dança em particular, fugindo de uma estilização imitativa. Exemplo 2. Página inicial do Boto. 61 III – Uirapuru Diálogo: Tio Rodrigo – Que canto é esse?! Juju – É do Uirapuru! Ele é um pássaro mágico e quase ninguém o vê, mas quem conseguir vê-lo poderá realizar um desejo! Tio Rodrigo – Cadê você, Uirapuru? (O flautista vai procurar o pássaro atrás do piano e dali deve tocar esta peça, sem que o público possa vê-lo.) Pássaro mágico da Amazônia, o uirapuru foi tema de uma das obras mais emblemáticas do nacionalismo musical brasileiro, o poema sinfônico homônimo de VillaLobos datado de 1917, que ouvi repetidas para evitar qualquer alusão direta! Não há nas peças de minha suíte nenhum tema folclórico sendo harmonizado ou adaptado. Quando há alguma alusão direta a material pré-existente, como no caso deste meu Uirapuru, faço a transcrição e a adaptação de um canto de pássaro real, captado na internet (Ver: https://www.youtube.com/watch?v=1ptgWSpK_RU). Para realizar a transcrição / adaptação não recorri a qualquer programa computacional de extração automática de alturas e durações, elaborando a peça com recursos de permutação ditados por minha fantasia. 62 Exemplo 3. Página inicial do Uirapuru. 63 IV – Iara Diálogo: Tio Rodrigo – (Ainda detrás do piano.)* E agora, que canto é esse?! Juju – Cuidado, é a Iara! Ela é uma linda sereia de cabelos negros, que com seu canto irresistível atrai os homens para o fundo do rio. Tio Rodrigo – E o que acontece com eles? Juju – Eles morrem afogados, ué?! Tio Rodrigo – (Saindo detrás do piano.) Ai meu Pai do Céu, isso daí devia ser chato de fazer... * (Faculta-se ao flautista tocar esta peça com uma peruca de longos cabelos negros, caso ele já nos os tenha naturalmente... Se optar pela peruca, deverá sair detrás do piano já caracterizado.) Iara é o nome convencional e literário da mãe-d’água. (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 344) Em minha Iara crio um canto de sereia que remete, é certo, ao impressionismo francês, mas um impressionismo de sabor villalobiano, com sua melodia angulosa em marcha cromática descendente. Quis descrever musicalmente o encontro da mãe d’água, sereia sedutora, com o pobre diabo por ela seduzido, o embate entre ambos e o movimento de arrastar o iludido para o fundo do rio, com seu consequente afogamento e morte, sem, no entanto, dotar a música de aspectos gráficos grotescos ou assustadores, já que a peça procura refletir o universo infantil. 64 Exemplo 4. Página inicial da Iara. 65 V – Saci Diálogo: Tio Rodrigo – (Tira a peruca negra e joga um monte de papéis para o alto.) Mas que bagunça é essa?! Juju – Só pode ser o Saci que está passando por aqui, tirando tudo do lugar, pulando numa perna só, com seu gorro vermelho e o seu cachimbo! Tio Rodrigo – (Pensativo e irônico) O que será que tem no cachimbo do Saci... (O flautista deve realizar a coreografia prescrita na partitura. É facultado a ele o uso de adereços, tais como gorro vermelho e cachimbo. Recomenda-se, porém, não acendê-lo! Ao menos, enquanto estiverem em cena!) O Saci-Pererê é descrito por Câmara Cascudo como “entidade maléfica em muitas, graciosa e zombeteira noutras oportunidades, comuns nos Estados do Sul”, que se diverte criando “dificuldades domésticas.” (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 626). Para caracterizar meu Saci, imagino um híbrido de valsa raveliana com inflexões melódicas alusivas ao choro carioca. Conforme descrito acima, a partitura contém indicações coreográficas, sobretudo o “tocar sobre uma perna só”, o que pode, porém, ser desgastante e arriscado para o flautista. Neste sentido, trata-se de uma instrução que poderá ser ou não obedecida pelo intérprete. Definitivamente, o caráter gracioso e zombeteiro do personagem prevalece sobre qualquer outra interpretação. 66 Exemplo 5. Página inicial do Saci. 67 Discussão As Lendas Brasileiras representam um esforço de retomada da temática brasileira, fazendo alusão a personagens folclóricos muito conhecidos, abordados despretensiosamente, com um olhar “ingênuo” ou “infantil”. Neste sentido, as peças estão despidas de quaisquer considerações sobre a eventual usurpação política ou ideológica que as personagens possam ter sido objeto ao longo do século XX por governos antidemocráticos. Neste mesmo sentido, tampouco levei em consideração o olhar “politicamente correto” contemporâneo que porventura possa contaminar a percepção destas personagens. Por mais artificial que possa parecer, trata-se de um esforço de lançar um olhar infantil sobre elas, em diálogo com crianças de meu convívio cotidiano. É relevante também observar que as peças foram compostas após minha participação no encontro da Associação Brasileira de Flautistas, realizado em setembro de 2015 na Faculdade de Música do Espírito Santo em Vitória, em que pude aprender com o olhar e a escuta da comunidade de flautistas brasileiros. Testemunhei o desprendimento (e desinteresse) dos intérpretes em relação a dogmas composicionais tão caros aos compositores de vanguarda. Não que, com isso, menosprezem a vanguarda, mas parecem não considerá-la um valor em si. Neste sentido, realizo nas Lendas Brasileiras um esforço de aproximar-me daqueles que vivem e transmitem a música sem preocupações com linguagens contemporâneas hegemônicas, com este ou aquele credo estético em particular, do presente ou do passado. Em minha leitura desta cena, são músicos que estão muito mais interessados na expressividade musical atemporal, do que em dogmas estéticos. Por estas razões, a suíte não procura emular ou impor nenhum estilo ou sistema composicional em particular. Assim, nas peças são empregados livremente recursos composicionais heterogêneos, tais como a reversão de um som, técnica tão cara ao ferramental eletroacústico, mas como uma alusão metafórica às características da personagem de “pés virados para trás”; alusões programáticas norteando a evolução harmônica de uma peça, como no caso da “bemolização” progressiva do ostinato inicial da Iara, que metaforicamente relaciono ao “puxar para baixo” de um sumidouro; a contraposição diatonicismo-cromatismo como mecanismo de criação de contraste; danças e estilos populares ou eruditos (dança de corte, choro, valsa); transcrição de canto de pássaro (uirapuru); música de compositores do passado (Villa-Lobos, Ravel); e mesmo Teatro Musical, de caráter leve e jocoso. Este último aspecto ficando mais evidente quando a execução das peças for precedida pela encenação dos diálogos introdutórios opcionais. 68 Esta abordagem eclética foi não só consciente como necessária ao desenvolvimento das peças, que vejo assim inseridas em contexto de desprendimento pósmoderno. Considerações Finais Como destaca Herman Hesse no belíssimo prólogo do romance Demian em que disserta sobre a singularidade e importância de cada um: “(...) cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam uma só vez e nunca mais.” (HESSE, 2015, p. 10.) Também os cruzamentos de uma cultura em um lugar específico são fenômenos únicos e singularíssimos. Efetuado o esforço de renovação da linguagem, caberá à nossa geração revalorizar estes fenômenos que nos são particulares. Neste sentido, a reaproximação da temática brasileira tem me levado a compor obras que, refletindo sobre o legado da música nacionalista, procuram revalorizar a singularidade de nossa experiência do mundo. Referências CÂMARA CASCUDO, Luís da. 2012. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global Editora. 12ª Edição. HESSE, Herman. 2015. Demian. Rio de Janeiro: Record. 46ª edição VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos. Manuscrito. VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. Lendas Brasileiras. Manuscrito. VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. 1987. Trio (1986). Manuscrito. VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. Variações sobre a Bendita Sabedoria. Manuscrito. VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. 2015. Variações sobre a Bendita Sabedoria. In: AUGUSTO, Antonio José et alii. Anais do I Simpósio Nacional Villa-Lobos: obra, tempo e reflexos. http://www.festivalvillalobos.com.br/2015/wp-content/uploads/2015/09/09RODRIGOVELLOSO.pdf . Acesso em 05 de outubro de 2016. VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. 2016. Memorial. In: https://ufrj.academia.edu/RodrigoVelloso https://www.academia.edu/28971688/Memorial . Acesso em 05 de outubro de 2016. VILLA-LOBOS, Heitor. 1948. Uirapuru. New York: Associated Music Publishers. VILLA-LOBOS, Heitor. 1958. Bendita Sabedoria. Paris: Max Eschig. 69 Crocodilos, caldeirões e canibais: Villa-Lobos e a construção de uma representação na Paris dos anos 1920. Tiago de Souza1 Universidade Federal do Rio de Janeiro tiagosouzamusico@gmail.com Resumo: O presente artigo pretende analisar um pequeno conjunto de práticas que foram empreendidas pelo compositor Heitor Villa-Lobos (1887- 1959) no período que vai de 1923 a 1930, quando ele fez três viagens a Paris. Alguns autores classificam essas práticas como mentiras empreendidas na busca por distinção no cenário artístico parisiense, porém, nosso objetivo é indicar caminhos para que elas sejam entendidas a partir do conceito goffmaniano de fachada. Nossa premissa básica é a de que em solo francês, o compositor implementou uma série de atitudes que aqui serão entendidas como máscaras, ferramentas de uma representação utilizada na busca por legitimação artística. Palavras-chave: Villa-Lobos. Representações. Mentiras. Legitimação artística. Crocodiles, potholes and canibals: Villa-Lobos and the construction of a representation in Paris in the 1920s. Abstract: This article aims to analyze a small set of practices that were undertaken by composer Heitor VillaLobos (1887- 1959) in the period 1923-1930, when he made three trips to Paris. Some authors classify these practices as lies undertaken in the search for distinction in the parisian art scene, however, will point out ways for them to be understood from the goffmanian concept facade. Our basic premise is that on french soil, the composer has implemented a series of actions that will be understood here as masks, tools of representation used in the search for artistic legitimacy. Keywords: Villa-Lobos. Representations. Lies. Artistic Legitimacy. Apresentação Villa-Lobos seria conhecido para além de sua vida como um fabulador inveterado, um mitômano e muitas das histórias que ele propagou sobreviveram através de uma série de relatos, do próprio compositor e de pessoas que conviveram com ele. Essas fábulas2 teriam alcançado grande magnitude no contexto parisiense3, mas podem ser registradas em diversos momentos da vida do compositor: temos relatos dessas diatribes tanto no início da sua carreira quanto na etapa final de sua vida4 e com o passar do tempo as 1 Músico (baterista) e doutorando em Musicologia (UFRJ). Mestre em Musicologia pela UFRJ e Historiador (UERJ). Atua profissionalmente desde 2007, acompanhando artistas e realizando oficinas, workshops e masterclasses. Paralelamente, é professor de música na Starling Academy of Music (RJ) e na rede estadual de ensino do Estado do Rio de Janeiro. Também faz parte do grupo de colunistas da revista Modern Drummer Brasil, a mais tradicional publicação sobre Bateria e Percussão publicada no Brasil, e integra o CASOY, grupo que atualmente realiza shows em todo com um repertório misturando jazz, MPB e rock. 2 A partir desse momento, utilizaremos o termo mentiras sempre que estivermos nos referindo a essas histórias. Acreditamos que, apesar da problematização que faremos, o uso do termo nesse momento tornaria a compreensão mais eficiente e não prejudicaria o entendimento das questões que serão abordadas. 3 Guérios (2003, p. 26) aponta que “suas viagens apenas surgem e são comentadas a partir de 1927, ano que Villa-Lobos vai a Paris pela segunda vez na vida”. 4 Dois exemplos nos parecem ser suficientes: durante um bom tempo não houve um consenso sobre a data de nascimento de Villa-Lobos e ele contribuía para isso informando datas e locais conflitantes: apenas em 1989 chegou-se a data que até hoje acredita-se ser a correta. Em 1950, nove anos antes do falecimento do compositor, 70 interpretações que foram feitas pelos estudiosos de Villa-Lobos seguem por caminhos que desembocam no demérito puro e simples. Toni (1989, p. 44) aponta que “a biografia do compositor em alguns pontos é bastante nebulosa, graças a uma característica do artista: Villa-Lobos era muito mentiroso”. Mariz (1989, p. 40) observa que, apesar de obter muitas das suas informações com o próprio Villa-Lobos, elas “são, por vezes conflitivas. O Villa tinha grande imaginação, inventava fatos e acabava, com o tempo, acreditando neles...”. Flechet (2004) atenta para as dispensáveis trocas de datas de suas obras, feitas para comunicar uma suposta modernidade e reduzir ao mínimo as influências da música de Igor Stravinsky (1882-1971). Guérios (2003, p. 27), ao comentar sobre a construção de um cânone mitológico oficial em torno da figura de Villa-Lobos, observa que De fato, são frequentes as dúvidas acerca da trajetória do compositor, o que causa inúmeros problemas para quem se dispõe a falar a seu respeito. Isso se deve em grande parte às várias histórias (com versões discordantes entre si) que ele espalhava sobre si mesmo. Para Béhague (1994, p. 15), não se deve confiar em muitas das informações dadas pelo compositor: Villa-Lobos parece ter prazer em se cercar de uma aura de mistério e fantasia que de bom grado adiciona perplexidade aos que tentam compreendê-lo e a suas obras. Embora não se possa sempre confiar em suas poucas declarações orais e escritas sobre si mesmo ou suas obras, algumas delas são reproduzidas aqui quando apropriado por causa de seu significado óbvio. A vívida imaginação de Villa-Lobos é evidente em toda parte, na forma como ele conduziu a sua vida, bem como projetou suas capacidades artísticas. Mais e melhor do que qualquer outra pessoa na música brasileira, a personalidade, a carreira de Villa-Lobos e sua produção criativa sugerem certas idiossincrasias do brasileiro, principalmente carioca, e seu temperamento como um todo, tais como altivez, ostentação, capricho ou inconsistência, e extravagância, por um lado, e intuição, espontaneidade, singularidade, charme e sofisticação, por outro5. Não é nosso objetivo problematizar gratuitamente a abordagem desses pesquisadores: sinalizaremos que as mentiras de Villa-Lobos podem ser entendidas como produtos de uma teatralização, pois em suas relações sociais, o indivíduo – que não se a pianista Anna Stella Chic (1925-2008) tinha recebido um convite para uma turnê na U.R.S.S. Villa aconselhoua não aceitar o convite dizendo: “Veja o meu caso: eu acabo de ser convidado pelo próprio Lenin, que me enviou um telegrama para ir a União Soviética. Mas claro, eu não aceitei”. A questão é que naquela época Lenin já estava morto a pelo menos trinta anos (ASSUMPÇÃO, 2014, p. 368). 5 Texto original: “Villa-Lobos seems to have delighted in surrounding himself with an aura of mistery and fantasy and willingly added to the perplexity of others in their attempt to understand him and his works. Although one cannot always rely on his few oral and written statements about himself or his works, some of these are reproduced here when appropriate because of their obvious significance. Villa-Lobos's vivid imagination is everywhere apparent, in the way he led his life as well as projected his artistic capacities. More and better than anyone else in Brazilian music, Villa-Lobos's personality, career and creative output suggest certains idiossyncracies of the Brazilian, particularly carioca, temperament as a whole, such as loftiness, boastfulness, capriciousness or inconsistency, and flamboyance, on the one hand, and intuitiveness, spontaneity, singularity, charm, and sophistication, on the other”. Tradução livre. 71 apresenta da mesma forma nos diversos ambientes em que transita - constrói uma fachada que é representada diante de uma audiência. Acreditamos ser interessante repensar as mentiras de Villa-Lobos a partir de um referencial teórico específico, evitando o julgamento puro e simples de que eram mentiras. É, portanto, discutindo esse termo que iniciaremos nossa investigação. I Podemos dizer que mentira é algo que não é verdade. Examinando a etimologia do verbo mentir, Lafer (1995) aponta que ele é proveniente de mentire que significa mentir, imaginar, inventar e também deriva de mens, mentis que forma a palavra mente. Arendt (2014), ao tratar das implicações políticas da mentira, considerou essa etimologia elucidativa, uma vez que o mentiroso é um homem de ação e a ação requer imaginação. É justamente esse último ponto que nos servirá de referência, a mentira como ação voltada para um objetivo específico, como astúcia, como engenhosidade6. Conseguinte, é necessário identificar o tipo de assunto que é o tema da mentira, a qualidade do dano e do benefício que ela acarreta, a sua duração no tempo, o número de pessoas que é afetado e também quem comete a mentira, para com isso encontrar o que Selva (2013, p. 17) chama de grande mentira “aquela que afeta muitas pessoas, estende-se por muitos anos ou causa dano a muitos, incluindo pessoas próximas ao mentiroso. Ela toca temas dramáticos ou sensíveis para a opinião pública ou que tem uma grande repercussão na mídia”. De acordo com uma interpretação que avaliza Villa-Lobos como um mentiroso, as suas ações podem ser classificadas em dois tipos, as fabuladoras e as mitômanas. Fabuladores seriam pessoas dotadas de habilidades para a dissimulação e podem empreender diversas atitudes desonestas, porém, geralmente são criativos, sofisticados e possuem uma imaginação extremamente ampla. Já as ações do mitômano são caracterizadas por um certo exagero. Quando confrontado com sua mentira, ele cria outra ou então afirma que está dizendo a verdade e é justamente essa característica que dificulta um diagnóstico correto sobre a sua lucidez - nas atitudes de um mitômano, o real e o fictício nem sempre estão bem definidos. Não queremos categorizar de maneira inequívoca a personalidade e a psique de Villa: a utilização dessas categorias deve ser entendida como meramente esquemática, já que 6 Sobre isso, Maquiavel (2015, p. 25) aponta que o príncipe eventualmente pode ser levado a assumir a força do leão e a astúcia da raposa “Sendo, pois, um príncipe obrigado a utilizar-se bem da natureza da besta, deve tirar dela as qualidades da raposa e do leão, visto que este, nenhuma defesa tem contra as redes e a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer as laças e leão, para amedrontar aos lobos. Os que apenas se fizerem de leões não terão êxito”. 72 fábulas e posturas mitômanas acabam se interpenetrando de maneira extremamente implexa. Sobre exemplos que iremos utilizar, a construção do relato de suas viagens pode ser entendida como fábula e certas atitudes que o compositor implementava diante de outras pessoas seriam típicas de um mitômano. Guérios (2004) aponta que, devido ao centenário da Independência, o tema do nacionalismo7 passou a ocupar um lugar de destaque na cena musical da década de 1920 e é nesse momento que Villa passa a incluir com mais ênfase certos elementos da música folclórica. Esse conhecimento teria sido obtido através de uma série de viagens pelo Sul, Nordeste e Norte do Brasil que foram empreendidas por ele entre 1905 a 1915. Os detalhes dessas andanças são extremamente controversos. Alencar (2011, p. 3) aponta que “não é possível afirmar com certeza quais das viagens que Villa-Lobos disse ter feito ele realmente fez” e que, apesar as histórias que ele contou “às vezes beiravam a inverissimilidade”. Apesar de algumas dúvidas sobre as rotas, Alencar aponta que “mesmo que Villa-Lobos não tenha adentrado a pé a floresta amazônica ou lutado contra tribos canibais, é bem provável que ele tenha sim navegado pelos rios amazônicos que ele mesmo menciona”. É na Paris dos anos 1920 que essas histórias irão alcançar um alto nível de elaboração. Uma delas estava em um artigo intitulado Aventuras de um compositor – música de canibais publicado na revista L’Intransegeant e chegou ao público antes da primeira audição dos Choro n. 8, que aconteceu em 24 de outubro de 1927. A autora, a poetisa Lucie Delarue Mardrus (1874-1945) escreveu que: (...) há muito a ser dito sobre Villa-Lobos e seu concerto na Salle Gaveau, realizado na última segunda feira e redigido parcialmente por ele mesmo. Pois este jovem compositor brasileiro, exatamente como o sobrinho do Sr. Stegg, foi capturado por selvagens – dos verdadeiros, com penas na cabeça – e é dos seus dias com os índios que ele traz a sua impressionante música. Que publicidade! Se ele disso quisesse servir. Ter-nos feito desta magnifica musica um presente, ao permitir-nos escutá-la, é o que faz toda a diferença. Pois, enquanto, o seu governo não pagou resgate algum por sua liberação, o prisioneiro ainda teve a presença de espírito de coletar os ritmos e os cantos que escutou durante três dias: sangue frio que nos dá vertigem, quando pensamos que se tratava de Danças da Morte que precediam o seu sacrifício eminente. Enviado em missão com outros artistas para os lados do Paraguai e das florestas virgens para pesquisar o folclore do seu país, Villa-Lobos deu-se conta, na volta, de que seu cão não estava mais ao seu lado. Corajosamente partiu só, em busca do seu fiel amigo... e não mais voltou. Os índios o capturaram. Despido, 7 A idéia do nacional adquiria importância em meados do século XIX, devido a crescente busca pelo fortalecimento de uma representação ampla de um povo, de um conjunto de expressões específicas que seriam oriundas de uma nação e que seriam a marca máxima de um grupo que, obviamente, deveria estar conectado a um certo território. Volpe (2001) aponta a existência de um processo de construção historiográfica que estabeleceu que o período que vai de 1870 até 1920 seria o momento em que teria início o nacionalismo musical no Brasil. Devido a essa postura, Villa passou a ser visto como o primeiro compositor a expressar verdadeira e plenamente a identidade brasileira. O compositor teria organizado um projeto de construção de imagem, buscando legitimar o seu conhecimento da arte popular brasileira, se colocando como um porta voz do seu país. 73 amarrado ao tronco de uma árvore, ele teve, antes de ser comido, as honras de três dias de cerimônias fúnebres. Tentavam aqueles indígenas sublimar o seu canibalismo através de rituais que o impedissem de confundir um ser humano com um frango qualquer? Ou se tratava simplesmente de fazer a presa jejuar antes de assá-la, usando toda aquela cadência e coreografia como aperitivo? O que quer que seja, Villa-Lobos conta que foi, durante aqueles três dias de horror, literalmente incapaz de pensar. E, entretanto, seu cérebro, moldado pela música, registrava tudo o que ouvia ao seu redor. Liberto pelos brancos antes do fim dos três dias, ele nos chega desta assustadora aventura munido de uma bagagem de ritmos e modulações com as quais tem, desde então, nutrido as suas composições (apud ASSUMPÇÃO, 2014, p. 349). Na narrativa, temos a construção de um retrato extremamente positivo de Villa, uma verdadeira apologia: ele seria um dedicado pesquisador do folclore do seu país, um artista consciente e de certa forma um idealista, pois se recusou a fazer publicidade do ocorrido. A música que ele compõe é magnifica, ele empreende heroicamente – e sozinho uma operação de resgate de um simples cão e, diante da morte, o compositor teve uma rara presença de espirito: despido e amarrado a uma árvore, apesar de estar no limite de suas forças, seu cérebro, moldado pela música, registrava tudo8. Os paralelos com a história de Hans Staden (1525-1579) já foram apontados por diversos pesquisadores9, porém, o que nos interessa aqui é identificar o que o enunciador considera bom ou ruim a partir da maneira como o perfil do personagem é construído e isso explicita a preocupação em produzir uma determinada imagem. Com isso, observa-se a busca e formação de um perfil esquemático das práticas e posicionamentos de Villa-Lobos frente a plateia parisiense, conectando-o com os diversos elementos simbólicos presentes no horizonte de expectativas daquele ambiente10. 8 Se nos basearmos no roteiro indicado por Campbell (2007), a história tem uma série de elementos que caracterizam a jornada do herói guerreiro: o chamado à aventura, a presença da floresta como um ponto de passagem por um limiar, a situação limite que caracteriza um momento de provação, a presença do elemento sobrenatural – no caso o cérebro de Villa -, a fuga mágica a partir de um resgate com auxílio externo, a apoteose e o senhorio dos dois mundos pois Villa, a partir das informações obtidas após o momento do limiar, irá compor músicas que, de acordo com a poetisa, seriam impressionantes. 9 A reclamação de Villa-Lobos sobre o extravio de uma caixa que lhe fora enviada de Paris e que continha o mon esclavage entre les sauvages du Brésil de Hans Staden, deu margem para que Mario de Andrade concluísse que a história dos canibais contada por Mardrurs era de autoria de Villa-Lobos, tendo como base a narrativa de Staden (ASSUMPÇÃO, 2014). As conexões entre a obra de Staden e o relato estão presentes na obra de diversos pesquisadores como Guérios (2003), Mariz (1989) e Flecher (2004). 10 Horizonte de expectativas seria o sistema de referências que se constrói “em função de expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre linguagem poética e a linguagem prática”. (JAUSS, 1994, p. 27). No bojo dessa questão, podemos apontar a obra de Koselleck (2006) como um marco para o uso do conceito na teoria da História. Ele aponta a tensão que se estabelece entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas e propõe um sistema conceitual para lidar com as três temporalidades - Passado, Presente, Futuro – onde a experiência pertence ao Passado que se concretiza no Presente, de múltiplas maneiras, seja através da Memória, dos Vestígios, das Permanências e também através das fontes históricas: para ele “a experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” (KOSELLECK, 2006, p. 309-310). 74 Dentre todos os convidados daquela noite o que me causou maior impressão ao entrar na sala foi Heitor Villa-Lobos. A despeito de sua baixa estatura, era bem proporcionado e tinha um porte virial. Sua cabeça vigorosa, coroada com uma floresta selvagem de cabelos rebeldes. Era altiva (...) Seu olhar brilhava com uma centelha tropical que logos e transformou em uma chama, quando ele aderiu a conversa entretida ao redor. Quando terminei minha apresentação, Villa-Lobos aproximou-se e disse-me em tom confidencial: “Também toco violão” – “Maravilhoso!”, respondi. “Você é, então, capaz de compor diretamente para o instrumento” Estendendo as mãos, ele pediu-me o violão. Sentou-se, atravessou o violão nos joelhos e segurou-o firmemente de encontro ao peito, como se temesse que o instrumento fugisse. Olhou severamente para os dedos da mão esquerda, como impondo obediência às crianças, em seguida os dedos da mão direita, como ameaçando-os de castigo por ferirem erroneamente alguma corda. E quando menos se esperava, desferiu um acorde com tal força, que deixei escapar um grito, pensando que o violão tinha se despedaçado. Ele deu uma gargalhada e com uma risada infantil disse-me: “Espere, espere...” Esperei, refreando com dificuldade meu primeiro impulso, que era o de salvar meu pobre instrumento de tão veemente e ameaçador entusiasmo. Após várias tentativas para começar a tocar, ele acabou por desistir. Por falta de exercício diário, algo que o violão perdoa menos do que qualquer outro instrumento, os movimentos de seus dedos haviam se tornado canhestros. Apesar de sua incapacidade para continuar, os poucos compassos que tocou foram suficientes para revelar, primeiro, que aquele mau intérprete era um grande músico, pois os acordes que conseguiu produzir encerravam fascinantes dissonâncias, os fragmentos melódicos possuíam originalidade, os ritmos eram novos e incisivos e até a dedilhação era engenhosa; segundo, que ele era um verdadeiro amante do violão. No calor desse sentimento, nasceu entre nós uma sólida amizade. (apud CARVALHO, 1988, p. 157-159). Este é o relato do violonista Andrés Segovia (1893-1987) de um encontro com Villa-Lobos que aconteceu no salão de Olga de Moraes Sarmento (1881-1948), escritora e militante feminista portuguesa. A pedido de uma amiga, esse sarau foi organizado para apresentar o violonista espanhol às plateias parisienses. Agora, o mesmo encontro nas palavras de Villa: O violinista português Costa perguntou ao Segovia se conhecia o Villa-Lobos, mas sem dizer que eu estava ali. (...) O Segovia falou que achava minhas obras antiviolonisticas e que eu tinha usado uns recursos que não eram do instrumento. O Costa falou: “pois é, Segovia, o Villa-Lobos está aqui”. Eu fui logo me achegando e logo dizendo: “Por que é que você acha as minhas obras antiviolonisticas?” Segovia, meio surpreso – claro que ele nem poderia supor que eu estivesse ali – explicou que, por exemplo, o dedo mínimo direito não era usado no violão clássico. Eu perguntei: “Ah, não se usa? Então corta fora, corta fora”. Segovia ainda tentou rebater, mas eu avancei e pedi: “Me dá aqui seu violão, me dá”. O Segovia não empresta seu violão a ninguém, e fez força. Mas não adiantou. Eu sentei, toquei e acabei com a festa. Segovia depois veio me perguntar onde eu tinha aprendido. Eu lhe disse que não era violonista mas sabia toda a técnica do Carulli, Sor, Aguado e Carcassi, etc. Segovia disfarçou, guardou o violão e – pitchiu – deu o fora. (apud Carvalho, 1963, p. 3-4). Se recortarmos o texto, retirando todas as partes onde as divergências entre eles podem ser encontradas, poderemos obter uma espécie de espinha dorsal do relato. Temos que a) o encontro entre ambos realmente aconteceu, b) Villa Lobos tocou violão, c) sua performance apresentou aspectos interessantes para Segovia e d) em ambos os relatos a figura de Villa-Lobos se apresenta impetuosa. Esse exercício hermenêutico nos dá indícios de como 75 Villa-Lobos buscou se apresentar de acordo com o tipo de imagem que naquele contexto se esperava de um artista genial11. Não se pode identificar as intenções de Villa-Lobos sem indicar o tipo de ambiente que ele irá encontrar em sua estadia em Paris. Entretanto, isso deve ser feito com cautela, pois a busca pelo conhecimento de um determinado contexto sempre se dará de modo incompleto, embora, permita compreender o que à primeira vista parece inexplicável e desconcertante12. Pois bem. Se Henrique IV (1553-1610) disse que Paris bem vale uma missa, podemos dizer que, para Villa-Lobos, Paris bem valia algumas mentiras. II Nietzsche (2008, p. 34) elabora um retrato da Paris do final do século XIX: Como artista, não se tem nenhuma pátria na Europa exceto em Paris; a délicatesse em todos os cinco gostos artísticos, que a arte de Wagner pressupõe, o faro para as nuances, a morbidez psicológica, encontra-se apenas em Paris. Em nenhum outro lado se depara com esta paixão nas questões de forma, esta seriedade na mise en scène – eis a seriedade parisiense par excellence. Na Alemanha, não se tem noção alguma da ambição enorme que vive na alma de um artista parisiense. No momento em que Villa chega na França, os círculos musicais de Paris tinham sido tomados de assalto por um jovem compositor russo, Igor Stravinsky. Em 1910, ele e o empresário russo Serguei Diaghilev (1872-1929) estrearam o balé O pássaro de fogo e, um ano depois, foi a vez de Petruskha. Em 1913 foi a vez de A sagração da primavera. Com essas obras, ele chamou a atenção do público parisiense, que recebeu as suas composições com um misto de furor e admiração. Com o passar do tempo, Stravinsky transformou-se em uma espécie de referencial para diversos compositores, inclusive para Darius Milhaud (18921974), compositor do grupo conhecido como Les Six e que tinha passado uma pequena temporada no Brasil13. 11 Cumpre dizer que a figura do gênio que está sendo performatizada por Villa-Lobos deve ser entendida como a do indivíduo que se destaca das pessoas comuns por ser dotado de “uma vontade poderosa, poder capaz de transformar o desejo no amor mais passional pela virtude e no mais rígido autocontrole” (LINDHOLM, 1993, p. 32). 12 Skinner (2002, p. 144) arremata a questão ao dizer que “se quisermos compreender aquilo que um autor pretendia com a utilização de um determinado conceito ou argumento, devemos, em primeiro lugar, captar a natureza e o tipo de coisas que poderiam, reconhecidamente, ter sido realizadas com esse conceito em particular. Devemos, em suma, ser capazes de adotar como nosso campo de atuação nada mais nada menos aquilo que Cornelius Castoriadis descreveu como o imaginário social, o conjunto de símbolos e representações herdados, os quais constituem a subjetividade de uma época”. Apesar das questões de Castoriadis serem aplicadas a um imaginário muito amplo, queremos destacar que a abordagem skinneriana diz respeito a grupos específicos envolvidos em debates específicos e é trilhando um caminho voltado para o impacto do imaginário nas conclusões de um pequeno grupo – no caso, a plateia de Villa-Lobos – que iremos direcionar nossos esforços. 13 O compositor esteve no Brasil entre 1917 e 1919 e foi nesse período que ele esteve na capital do país e encontrou-se com Villa-Lobos. Entretanto, de acordo com Guérios (2003) esse contato teria sido bastante superficial. 76 Havia um substrato bem mais complexo por trás disso tudo: Paris respirava exotismo e, devido a isso, muito da arte produzida na cidade valorizava o estranho e o pitoresco. A base para esse posicionamento artístico era fundamentada em um imaginário específico cuja construção se estendia por séculos a fio e é a partir dele que temos uma das chaves para o entendimento da imagem que os franceses tinham a respeito do Brasil e também de outras regiões do planeta. Assim como em sua relação com o Oriente14, para os europeus, o Brasil era uma ideia, uma representação dotada de um vocabulário que lhe dava realidade e presença, apresentando um sabor exótico que era saboreado com voracidade pelos europeus. Ao mesmo tempo em que se reverenciava o exótico, Paris buscava o choque: nos anos 1930, ela era a terra do escândalo15. Stravinsky, anos depois, ao comentar os acontecimentos que se seguiram a estreia da Sagração, disse que Diaghilev, satisfeito, teria dito que o tumulto que acompanhou a première da obra já era esperado por ele e que “muito provavelmente já deveria ter pensado na possibilidade de tal escândalo quando lhe toquei a partitura, meses antes, no lado leste do salão térreo do Grand Hotel de Veneza” (STRAVINSKY & CRAFT, 2010, p. 35). Além do tipo de publicidade que era feita para potencializar o alcance da obra e garantir plateias enfurecidas, uma outra tática era implementada pelos artistas: a construção de uma aura de excentricidade e, com isso, se alcançava um certo tipo de distinção. Esse tipo de prática servia para direcionar a recepção de suas plateias na direção de conclusões específicas que estariam baseadas nos traços de personalidade que eram apresentados. Isso não significa que, ao se apresentar como um excêntrico, o artista escondia maquiavelicamente sua verdadeira identidade: esses indivíduos buscaram a todo tempo “transformar sua vida em obra de arte, articulando formas específicas de relação consigo e com os outros”. “O Oriente não é um fato inerte da natureza. Ele não está meramente ali, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas ali. Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram, e estendê-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas – tais lugares, regiões, setores geográficos, como o “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem” (SAID, 2007, p. 31). 15 Num espetáculo de balé que aconteceu no mesmo ano que Villa-Lobos chegou a Paris, assim que o pianista George Antheil (1900-1959) entrou no palco, explodiram tumultos na plateia em um golpe planejado para dar publicidade ao restante do programa. Em 1924, um ano depois da chegada de Villa-Lobos a Paris, Erik Satie (1866-1925) compôs Relâche e o título significa algo como folga da companhia e indicaria um teatro fechado. Um cartaz foi colocado na entrada do teatro, e o público da primeira noite – acostumado as duplicidades dos dadaístas da companhia que iria realizar o espetáculo – achou que o aviso era um golpe publicitário e tentou invadir o teatro vazio. A polícia teve de ser chamada, do mesmo modo como ocorreria na verdadeira noite de abertura (WISERS, 2010). 14 77 Diante de um cenário extremamente competitivo, era necessário entender como funcionava esse jogo para, daí em diante, elaborar suas próprias regras:16 Villa chegou a redatar algumas de suas obras, buscando indicar um certo ineditismo para o público17 e buscou se apropriar do imaginário sobre o Brasil, posicionando-se como um personagem que causava sensações de espanto e também de empatia. Podemos compreender essas práticas como máscaras, pois se por um lado escondem o verdadeiro rosto e camuflam as intenções, por outro, maximalizam a voz e dão uma força que não raro chega ao transbordamento, em uma espécie de encenação de palavras18. Com relação a isso, a noção de teatralização baseada em uma representação, que é oriunda das reflexões de Goffman (2013), pode ser utilizada para compreender essas atitudes19. Representação e fachada são conceitos fundamentais para essa abordagem. O primeiro seria “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência”. O segundo seria “o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação”. (GOFFMAN, 2013, p. 34). Com isso, se deve considerar os relatos e outras atitudes sociais de Villa-Lobos não como deformação nem em um sentido pejorativo de falsificação e degeneração, mas como “reinterpretação e reconstrução da realidade, na tentativa de compreender e atribuir coerência a experiências emocionais, atitudes e percepções utilizando códigos acessíveis e socialmente validados”. (CORALIS, 2014, p. 58)20. Nossa hipótese é a de que o compositor brasileiro teria organizado uma série de posturas visando uma representação, constituída por uma fachada bem organizada, em que 16 Cabe aqui apontar como Bourdieu e Desault (2001) trabalham essa questão: os recém-chegados em um campo buscam recorrer a estratégias de blefe e de enaltecimento, buscando com isso fazer o jogo. O pretendente a certas posições busca exagerar suas atitudes, para com isso superestimar suas próprias habilidades. 17 Os balés Amazonas e Uirapuru são oficialmente datados como 1917, mas acredita-se que eles foram compostos apenas no final dos anos 1920. Villa não fazia questão de mascarar essas redatações, pois dizia que o que importava não era a idade que estava no papel e sim a data em que as obras eram espiritualmente concebidas. Em sua atitude de redefinir a datação de suas obras, Villa empreendia uma espécie de destruição do passado, onde a própria obra cria o seu próprio tempo. 18 Paris seria “uma cidade de palavras”, onde a conversa – seja ela “”brilhante, prosaica, auto-promocional, desprezível ou indiscreta, dependendo de quem falava e do humor reinante” “fornecia a essência dos salões de Paris e o que fazia girar a sua maquinaria política”. (DAVENPORT-HINES, 2007, p. 211). 19 A obra de Goffman, “é fortemente impregnada pela metáfora teatral, com o indivíduo sendo descrito como um “ator” que desempenha “papéis” num mundo que é um “teatro” dotado de regiões de “fachada” e “bastidores” (...) Boa parte da análise goffmaniana das interações sociais é dedicada ao exame das estratégias e dilemas da “representação de si”, ou seja, das formas como o ator social elabora uma imagem de si no curso das interações que estabelece”. (COELHO, 2013, p. 23). 20 Não é nosso objetivo apontar um julgamento total das mentiras de Villa, mas sim indicar um referencial que oriente o entendimento dessas práticas sem discutirmos se essas mentiras eram pequenas, grandes, fabulas ou nobres, etc. 78 discursos e práticas de valorização do seu exotismo eram robustecidos a níveis estratosféricos: para a sua audiência, as atitudes que ele tinha eram tão exóticas e seus procedimentos tão pitorescos21 que no campo que Villa inaugura, o que poderíamos chamar de mentiras propagandísticas dificilmente alguém poderia vencê-lo. O compositor, ao utilizar essas mentiras, dramatizava-se, ampliando e desdobrando a sua visão, ao mesmo tempo que potencializava a sua figura frente aos desafios de Paris. Ele não era mais o Villa-Lobos da antes, ele era o outro que os franceses queriam. Contraditório em suas mentiras, porém verdadeiro com relação aos seus objetivos, ele extraia dos franceses o que queria, manipulando-os no seu teatro particular para, com isso, apresentar-se no grande teatro do mundo. Conclusão A partir dessa representação, a audiência - carregada de conceitos oriundos do imaginário europeu sobre a genialidade e das visões do paraíso que definiam a América – entraria em sintonia com o discurso entabulado por Villa, estabelecendo o consenso de que ele seria um compositor genial e dotado de um exotismo típico dos trópicos. Esse tipo de representação teatralizada se organizou a partir do que Schimidt (2009, p. 158-159), em uma perspectiva kantiana, entende como um “cuidadoso trabalho de si, estetizando sua existência de forma a constituir-se como um ser diferente, original e único e, por isso, digno de ser lembrado”. Podemos apontar que essas posturas seriam formadoras de uma espécie de atuação, onde o indivíduo não apenas gerenciaria “a expressão do que sente, mas também aquilo que sente” (COELHO, 2013, p. 36), ou seja, mesmo sem uma clara necessidade ou situação de urgência, o indivíduo se percebe em um tipo de perigo e, acionando todo o instrumental de distinção, implementa as táticas visando o lucro simbólico. Acreditamos que aí estão as intenções de Villa. Podemos inferir que ao mentir ele estava falando a sua verdade e ela não era fundamentada apenas no tipo de artista que Villa 21 Alejo Carpentier (1904-1980) relata uma cena que mostra como as atitudes de Villa-Lobos eram recepcionadas em certos ambientes parisienses: “Quando Heitor Villa-Lobos acende um charuto e começa a contar histórias do Brasil, há que preparar-se para viver durante um momento no domínio dos mitos. Além disso, os amigos do maestro estão aí para „dar-lhe corda’. Varèse pergunta: -Villa, que comprimento tem em seu país as serpentes? – Sessenta metros! – Responde o grande compositor sem alterar-se. – E os crocodilos? – Os crocodilos? Trinta metros!”. (apud TONI, 1987, p. 48). Esse trecho é primordial para percebermos que Villa não tinha o total controle das interações que eram empreendidas por ele em Paris e também para indicar que os parisienses não eram ingênuos. O que podemos inferir dessa cena é que essas relações se assemelham a um jogo, cujas regras são extremamente complexas e que tanto Villa quanto seus interlocutores seguiam as regras visando nessas práticas um consenso entre as expectativas de todos os jogadores. 79 acreditava ser pois agindo dessa forma ele se posiciona como um duplo: se por um lado ele confirma certas expectativas do público francês por outro ele se apresenta como algo extremamente original. Ao manipular todo um complexo cabedal de elementos presentes no imaginário simbólico europeu e com isso elaborar um intrincado conjunto de fábulas, Villa confirma o entendimento que existia em Paris em torno do exotismo inerente a tudo que viria da América, porém, o faz de maneira extremamente inédita: ele expandiu ao extremo o tipo de visão que o europeu tinha do Brasil. Ao fundir mentiras e verdades, Villa causa um colapso na recepção de sua audiência, dando origem a uma singularidade, cuja força gravitacional era tão grande que impedia o escape de sua influência. Caso raro de uma supernova que, ao invés de apagar e explodir, continua pulsando e, em uma estranha conjunção, atrai certas partículas e repele outras. Ao dar vida a crocodilos gigantes e com o seu condão enfeitiçar canibais e sobreviver a caldeirões, Villa embaçou a si e borrou tudo o que estava ao seu redor. Inclusive os limites entre o que era verdade e o que era mentira. Referências ALENCAR, Gabriel de Souza. 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As viagens à Paris nas décadas de 1920 e 1930, período que engloba o início da composição da série, foi analisado e teve performances de Bach e gravações analisadas de modo compreender a recepção e entendimento da obra de Bach por Villa-Lobos. Palavras-chave: Villa-Lobos. Bach. Hermenêutica. Praticas interpretativas. Tradição. Reinterpretação. Between Modern and Romatic traditions: Villa-Lobos interpretive horizon on Bach in Paris in the years 1920-1930 Abstract: This article intends to be na hermeneutical reflection on the universe of interpretative possibilities by composer Heitor Villa-Lobos (1887-1959) on the Works of Johann Sebastian Bach (1685-1750). Based on the analysis of phonographic evidence, the understanding of historical performance practices plays an important part on the reception of Bach by Villa-Lobos, and, consequently, his possibilities of attributing sesnses and meamimgs in the interpretive act. The visiono of Villa-Lobos and his times on Bach’s Works is of utmost importance for understanding compositions such as the Bachianas Brasileiras. The trips to Paris in the 1920s and 1930s, a period that englobes the beginning of the composition of the Bachianas series, was studied and recordings of performances of Works by Bach were analyzed in such a way as to comprehend the reception and understanding of Bach’s oeuvre by Villa-Lobos. Keywords: Villa-Lobos. Bach. Hemeneutics. Musical interpretation. Tradition. Interpretation. Apresentação A série das Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos possui “referências” à obra e ao estilo do compositor Johann Sebastian Bach. Tais referências ao passado eram comuns no século XX entre os compositores como “estratégia de desenvolvimento de ideias musicais” (DUDEQUE, 2008, p. 132). Na Bachianas elas dão-se nos mais diversos níveis: o substantivo Bachianas, em si presta homenagem ao compositor alemão; homenagem esta que se justifica por estar contido no ciclo técnicas composicionais, elementos estruturantes como formas barrocas, desenvolvimento contrapontístico com os ditames da Fuga, partindo sempre do modelo das suítes orquestrais de Bach. O adjetivo brasileiras, qualifica essa arquitetônica 1 Músico (tenor) e diretor de ópera mestrando em Musicologia (UFRJ). É bacharel em Filosofia pela UFRJ. Tem atuado profissionalmente dirigindo espetáculos como La Traviata de G. Verdi com a Cia. Lírica (2011) no CCJF, Così fan Tutte (2012) na Escola de Música da UFRJ, tendo sido assistente de direção de projetos acadêmicos como Cantatas na Quinta (2011-2013), óperas como Renaud na Sala Celilia Meireles (2015), João e Maria na Escola de Música da UFRJ (2016). 83 musical, sugerindo a presença de elementos nacionais. Esta dupla orientação do ciclo prescrita em seu título, revela os modelos e referências que buscou Villa-Lobos na gestação desta obra. No que se refere à Bach e à música Barroca – objeto de investigação do artigo – as reflexões do brasileiro oriundas dos seus estudos do mestre alemão, revelam também os processos de recepção do repertório dito “antigo”, de natureza textuais (relações de intertextualidades entre as obras) e de natureza interpretativa prática (as referências sonoras interpretativas) oriunda das práticas interpretativas da época. A recepção da obra de Bach por Villa-Lobos, no que tange os processos de intertextualidade que atravessam a Bachianas brasileiras e sua visão pratico-interpretativa de Bach daquele momento histórico, faz com que possamos compreender interações hermenêuticas de Villa-Lobos com o passado e com seu próprio presente. A série das nove Bachianas Brasileiras reflete em muitos aspectos a adoção de referências à música de Bach. Por exemplo, muitas destas obras são estruturadas na forma de suíte, contando entre seus movimentos alusões a danças de suíte barroca (...) A primeira é uma suíte para orquestra em quatro movimentos, contendo Prelúdio, Giga, Tocata e Fuga. A segunda tem como seus movimentos Prelúdio, Ária, Tocata e Fuga. (DUDEQUE, 2008, p.137) Compreender “como” Villa-Lobos fez uso de movimentos em fuga, o trato harmônico da série, tendo preferência por tonalidades tradicionais – em relação à outras obras como a série Choros – associadas ao universo de Bach, a manipulação de temas e seus desenvolvimentos, são reflexos de uma visão que se tinha sobre o mestre alemão. A mitificação da figura de Bach, vinda desde a disseminação pela Europa de seus oratórios por Mendelssohn ainda na primeira metade do século XIX, fora de alguma forma “devorada” e “digerida” como diria Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico por Villa-Lobos tornando-se para este a fonte do folclore “universal” 2, refletindo entre muitas coisas a “função” social, que a música bem ordenada de Bach teria no Brasil daquela época: Para Villa-Lobos, o público brasileiro, “inculto” musicalmente, não estava preparado para compreender um compositor tão “erudito”, “civilizado” e complexo quanto Bach. Desta forma, na sua concepção, a música bachiana poderia ser um instrumento pedagógico que misturado à tradição “primitiva” do Brasil, por meio de “pequenas dosagens” como nas Bachianas Brasileiras, poderia produzir o efeito desejado para uma cultura “em desenvolvimento.” (ARCANHO JR., 2007, p. 69) Além de expressar uma relação eurocêntrica em que a música do compositor germânico simboliza a cultura civilizada, cabe também fazer uma reflexão hermenêutica acerca do que significa ser fonte do folclore universal. O culto a Bach como pai da música “Esta tendencia internacionalista pode ser observada na incorporação que Villa-Lobos faz da mitificação da figura de Bach como fonte folclórica universal.” (DUDEQUE, 2008, pp 135-136) 2 84 alemã e gênio criador da fuga, sendo ele, portanto, exemplar, tido como “a boa referência” ou “o mestre”, explicam a canonização de suas obras enquanto repertório modelar para outros compositores e a disseminação do mesmo nas salas de concerto e teatros. Tal processo de canonização implica, necessariamente, um fenômeno de interpretação e reinterpretação à luz de várias épocas e localidades. Isto é, as referências à Bach que Villa-Lobos insere nas Bachianas Brasileiras não são apenas empregos de técnicas composicionais configurando um pasticcio estrutural; a releitura das características da música de Bach manifesta segundo as próprias convicções composicionais de Villa-Lobos. Os sentidos e significados conseguintes da manipulação do compositor brasileiro das formas barrocas, tais como a suíte, os prelúdios, fugas do Cravo Bem Temperado de Bach, bem como os arranjos para a formação coral do Canto Orfeônico e para a execução da Missa em si menor que Villa-Lobos fez para comemoração dos 250 anos de nascimento de Bach em 1935 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (CHAVES, 1971, p.484), expressam uma visão Romântica de Bach e sua música, cuja a universalidade de seu gênio atravessaria o tempo e espaço configurando-se, segundo Villa-Lobos, um modelo educador e ordenador para o Brasil em nível das artes musicais. Propõe-se, portanto, uma reflexão sobre a(s) imagem(ns) do(s) mito(s) da figura de Bach e sua obra e que interações estéticas predominavam no momento em que Villa-Lobos compôs as Bachianas Brasileiras, período que engloba anos 1930 e 1940. Entretanto é preciso considerar as viagens à Europa (1923 e 1927) como acontecimentos importantes para a recepção de Bach por Villa-Lobos, sobretudo em Paris, em que o brasileiro tinha disponível grandes concertos de performances do mestre de Eisenach em apresentações, bem como contato com compositores e obras do movimento modernista conhecido como Neoclassicismo – que assim como nas Bachianas havia um intuído de operar uma restauração modernizadora do passado. Assim, o presente trabalho pretende-se como investigação da recepção de Bach por Villa-Lobos, através do estudo da história das performances de modo a entender como a realização musical comunicam uma visão de mundo da obra que se está executando. A análise de registros de época, registros fonográficos e programas de concertos, elucidam o modo como ocorriam as práticas interpretativas sobre a obra de Bach. Considerando que estes registros já contêm em si mesmos algumas das camadas de interpretação do objeto executado parecem ser relevantes do ponto de vista da transmissão e circulação das visões que se tinhase sobre a obra do mestre germânico. Valiosos registros de época gravações e programas de concerto franceses testemunham parte da atividade artística parisiense no que se refere a 85 produção de Bach, nos anos 1920, 1930 e 1940, oferecendo um panorama de visões e modos de execução que chegavam para Villa-Lobos em sua estada na Europa. A Historicidade das Interpretações em Bach Pouco antes de terminar o ensaio noturno, os violinos tocavam com suas últimas energias, e [Wilhelm Futwängler] se irritou de tal maneira, que comentou, no momento do recitativo de Jesus: ’Signori, vibrato! Puccini e Bach la stessa cosa!’ [Senhores vibrato! Puccini e Bach são a mesma coisa!]” (Haffner, H. Apud Teatro Colón Buenos Aires Staatsoper Berlín: historia de una pasión lírica. Cecilia Scalisi e Gregorio Cernadas Buenos Aires: el autor, 2008, Scalisi, 2008 pg. 74) A anedota narrada situa-se na seguinte cena dramática: em sua visita a Buenos Aires (1950), o famoso maestro Wilhelm Furtwängler regeria um ciclo de 9 concertos no Teatro Colón, dentre os quais incluía a Paixão Segundo São Matheus de J. S. Bach. O ensaio descrito, pelo jornalista cultural Herbert Haffner, revela-nos o temperamento irascível de Furtwängler com os músicos do Colón. Estes por estarem mais habituados ao repertório operístico italiano e o melodrama pucciniano compreenderiam a comparação Bach-Puccini atendendo as exigências do maestro. A aproximação Bach e Puccini, contudo, não era apenas um recurso retórico, que reflete o destrato do maestro europeu em subestimar os músicos latino americanos, mas tal equiparação em si sugere uma sonoridade similar, ou unívoca para a interpretação de ambos os compositores. Para o concerto da Paixão Segundo São Matheus realizado no Colón de 1950 Furtwängler contava com coro e orquestra do teatro e solistas, habituados a cantar em grandes teatros líricos e salas de concerto, todo tipo de repertório: barroco, passando pelo clássico e romântico, até o moderno. Quatro anos depois o mesmo maestro faria uma gravação comercial do mesmo Bach, nesta ocasião Furtwängler contou com Filarmônica de Viena em peso, os coros da Singakademie e Sängerknaben e solistas que assim como os do Colón cantavam os mais diversos repertórios com sua formação vocal romântica. Não parece coincidência que os meios musicais disponíveis para executar as obras de Bach nos anos 1950 juntamente com a formação ultra-romântica de Furtwängler, gerasse um determinado horizonte de possibilidades interpretativas para a Paixão que fosse aleatório. Os meios de expressão na maneira de cantar e tocar dos músicos e a própria condução e leitura musicais do maestro alemão, encontravam-se distantes dos que dispunha Bach, gerando, assim, o que podemos chamar de reinterpretação da Paixão ou até mesmo uma ressignificação da obra. 86 As ressignificações das obras de Bach deram-se em vários momentos da história das práticas interpretativas na música. Musicólogos e músicos divergem de uma data precisa ou para identificar um agente originário que iniciou a prática de performar nos teatros e salas de concerto um repertório do passado, que em geral eram motivados pela construção de um repertório canônico, de “clássicos” exemplares. Em seu compêndio Authenticity and Early Music [Autenticidade e música antiga] (Oxford University Press, 1989) e Performance Practice [Prática interpretativa] (Londres, 1989), Colin Lawson e Robin Stowell trabalham o conceito de recriação de uma interpretação dita fidedigna, mesmo que o significado deste último se altere-se ao longo do tempo, como constatam ambos, o ponto de partida é o da “recriação”. Ou seja: uma visão construída sobre o objeto artístico, que não está neutra ou isenta de valorações estéticas. Mendelssohn devolveu para sempre a música de Bach ao domínio público, inspirando interpretações em várias cidades alemães nas décadas de 1830 e 1840 e, pouco depois, por toda a Europa. Introduziu cortes reduzindo em um terço a duração da apresentação da obra; optou por re-instrumentar e redistribuir as partes solistas da obra, além de adicionar indicações dinâmicas e de tempo que enfatizavam os contrastes dramáticos e a emotividade por tensões musicais, característica de sua própria época. (LAWSON & STOWELL, 2009, p.20) A celebrada recuperação da Paixão Segundo São Matheus por Mendelssohn em 1829, cuja redescoberta também é fruto de uma divertida anedota, em que o compositor teria encontrado as partituras da Paixão como embrulho de pescados numa peixaria, assinala um momento da história das práticas interpretativas. Momento pioneiro em muitos sentidos, em que há uma tradução do texto antigo para os meios de execução modernos naquela época. Como assinala Ebenezer Prout em 1879, as recriações de Bach por Mendelssohn previam a substituição de instrumentos de época por instrumentos do século XIX, o crescimento exponencial do número de instrumentistas e cantores, para poder executar as Paixões em ambientes públicos e grandes espaços. Estas transformações que corroboraram para o processo de secularização de um repertório originalmente sacro e de festividades religiosas, para que o público contemplasse Bach como, e somente como, obra de arte. As razões para tais deslocamentos de ordem discursiva da Paixão eram para Prout (LAWSON & STOWELL, p. 19) uma diferença da conformidade das orquestras modernas, o tipo de formação dos grupos de instrumentistas que vigorava na época, a concepção de cada músico e a recepção que o público teria da obra que eram muito distantes das do tempo de Bach. O diálogo entre as conformidades estéticas musicais do século XIX com a obra de Bach, parte como qualquer processo interpretativo da arte de uma reflexão hermenêutica. A hermenêutica e a estética da Recepção, tal como concebidas por Hans R. Jauss, Wolfgang Iser 87 e Hans G. Gadamer, buscam uma perspectiva fenomenológica da arte. Esta pode ser traduzida, em última instância, por uma relação entre objeto artístico e público-leitor, isto é, do sujeito em contato com a obra de arte. A estética da recepção propõe uma transposição de um estudo sobre a metafísica da arte e ontologia do objeto artístico – a busca pelas intenções do autor – para o estudo da manifestação da mesma. Nas palavras de Jauss: A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrução da intenção do autor. A experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com seu efeito estético e na compreensão fruidora e na fruição compreensiva. (JAUSS In: Lima, 1979, p. 46) A “compreensão fruidora” como chama Jauss refere-se ao caráter contínuo na assimilação do significado do objeto artístico em detrimento de uma perspectiva estática do mesmo, que respeitaria a figura do autor. A compreensão do que é a arte vem do momento quando em que o público desfruta do objeto artístico e, portanto, fazer história da arte é fazer história da recepção da mesma. É o esforço de circunscrever-se unicamente no caráter fenomênico da produção artística. A reflexão proposta por Jauss e Iser sobre a hermenêutica da arte relacionam-se diretamente com o compêndio de Lawson e Stowell acerca da história das práticas interpretativas do repertório considerado antigo. A cada momento histórico o “horizonte de possibilidades” interpretativas dos sujeitos que interagem com os objetos artísticos mudam. Consequentemente os “horizontes de possibilidades” intrínsecos ao objeto artístico variam, no tempo-espaço (assim como o próprio homem), pois é da combinação entre horizontes que nascem as interpretações. Não há, portanto, nenhuma ingenuidade por parte de Mendelssohn ou de Furtwängler na maneira como propunham recriar as obras de Bach. Alterações, tais como a adição de mais instrumentistas (com instrumentos modernos) e cantores no coro, a escolha dos solistas com formação em escolas românticas são fatos que geram modificações em nível discursivo na obra de Bach: o uso de vibrato, ralentando e acelerando no andamento da música, o uso dos rubati, provocam um deslocamento do universo dos afetos e do temperamento barroco, além de suas articulações retóricas, para uma compreensão frasistica, com tensões harmônicas típicas de um tonalismo cromático destas obras. A reinterpretação e recriação artística não vigoram a ausência de uma interpretação da obra de arte, mas sim interpretação total. Karl Dahlhaus em seu livro Foundations of Music history (Fundamentos da história da música) descreve essa postura interpretativa do século XIX e início do XX, como “tradicionalista”; pois enxerga os repertórios fazendo parte de uma única tradição. Não à toa em uma carta para o maestro Hans von Bülow, Giuseppe Verdi escreve: 88 Todos devem manter o caráter próprio de sua nação, como diz muito bem Wagner. Felizes são vocês que ainda são os filhos de Bach! E nós? Nós, puros, filhos de Palestrina, tivemos um dia... uma grande escola... e nossa! (RICORDI, 1994, p.86) Dahlhaus prossegue em sua análise sobre os horizontes interpretativos românticos sobre a obra de Bach afirmando que o corpus de sua obra era considerado no século XIX como “quinta-essência e paradigma da música absoluta” (DAHLHAUS, p. 28) ou música pela música. A proposição de uma autonomia estética, em conceber estruturas musicais autônomas dos processos históricos e sociais, segundo Dahllhaus enfatizam interpretações do repertório musical mais voltados aos seus possíveis sentidos e significados filosóficos. Deste modo a música de Bach torna-se paradigmática para compositores como Mendelssohn, Brahms, Max Reger, Heitor Villa-Lobos e Leopold Stokowski; sendo sua música o exemplo modelar da arte da fuga, da polifonia de maneira em geral e suas Paixões sendo a expressão de um sentimento de religiosidade protestante. Para a “compreensão fruidora” dos Românticos, portanto, Bach representava o início da tradição musical alemã, exemplar nas técnicas composicionais e expressão máxima do sentimento de religiosidade, da conversação do homem com o espiritual. Entretanto, de 1829 data da recriação da Paixão Segundo São Matheus por Mendelssohn até 1954, data do registro fonográfico de Furtwängler da mesma obra, as condições de possibilidade para a performance modificaram-se muito: as orquestras incharam consideravelmente, os instrumentos sofreram avanços técnicos consideráveis, os novos repertórios exigiam dos cantores uma nova vocalidade diversa daquela passado e a profissão do regente cada vez mais se cristalizava como diretor musical e líder do grupo de músicos, graças a figuras como Richard Wagner, Hans von Bülow, Gustav Mahler, Felix Weingartner, Arturo Toscanini, etc. Este é um dos desafios impostos à interpretação da performance em música, entendida como tradição de um fenômeno. Como apreender fora da performance aquilo que se mantém por conta da tradição e aquilo que está sujeito a se modificar com a mesma? Em outras palavras o que a tradição consegue manter em nível oral, sobre as práticas musicais de um compositor tão emblemático quanto Bach? Ainda mais, como compreender este fenômeno da manutenção das práticas e seus intrínsecos valores estéticos no mundo eurocêntrico o qual o texto escrito é uma das formas mais disseminadas de preservar o conhecimento e a memória? A composição da Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos é possível pela transmissão oral das performances de Bach, pelos processos intertextuais relacionados ao estudo que Villa-Lobos realizou das obras do mesmo, ou seria este um fenômeno misto? Muitos são os registros fonográficos das obras de Bach realizadas nas décadas de 89 1920, 1930, 1940 e 1950, e mesmo com as limitações que os meios de reprodução possuem em relação a apresentação em si mesma, é possível identificar algumas constantes que norteariam para aquilo que Harnoncourt nomeia como “ideal romântico tardio” para a execução do repertório antigo (HARNONCOURT, 1988, p. 18-19): uso de grandes orquestras modernas, grandes massas corais, cortes significativos na partitura (sobretudo nos oratórios), gestos considerados românticos como portamenti, rubati por parte dos cantores solistas e instrumentistas, aproximando o universo sonoro de Bach para o universo tonal de compositores de meados e fins do século XIX. Bach na Paris dos anos 1920 e 1930 A “Renaissanse” do repertório de música antiga e Bach, mesmo sob o argumento da continuidade da tradição e escolas de composição, manifestaram-se em maior ou menor intensidade nos centros culturais europeus. Em Paris os discursos tradicionalistas advindos dos conservatórios de música, instituições estas que se propunham como mantenedoras das formas exemplares do passado já possuíam força no século XIX. O Conservatoire de Paris e a Schola Cantorum nesse cenário imprimiam valores poéticos e estéticos dos compositores de “escola francesa”, sendo também responsáveis por parte significativa da atividade musical da cidade: “a Schola Cantorum se propunha a reviver em seus concertos as obras exemplares do passado, de Monteverdi, Schütz, Bach, Lully, Rameau, Gluck, etc.” (VIDAL, 2014, p. 374). Naturalmente que a perspectiva tradicionalista não impediu consistentes manifestações progressistas, tais como a “febre” de wagnerianismo do último quarto do século XIX, o impressionismo de Debussy, a Sagração da Primavera de Stravinsky e nos anos 1920 com o Groupe des Six. Além dos ciclos mais tradicionais a tendência do neobarroco, oriunda do movimento Neoclássico europeu, adentrou a Paris dos anos 1920 com Igor Stravinsky cujas composições inspiradas em uma linguagem típica obras de Bach promoveram o fenômeno de “retour à Bach”, não podem deixar de serem mencionadas neste universo francês que tanto teve impacto sobre Villa-Lobos: A tendência do neobarroco de Hindemith também era sentida em Paris, onde Stravinsky tornava o slogan “retour à Bach” ouvido em uma afirmação estética. Entre 1923 e 1925, Stravinsky compõe o Octuor (1923), Sonate para piano (1924) e Sérédade en la (1925), obras em que há uma renúncia do caráter nacionalista em favor de um léxico altamente alusivo a Bach: “a fonte de valores musicais universais”. (DUDEQUE, 2008, p. 135) No contexto de um centro musical importante onde tradição e vanguarda constituíam-se em uma eclética atividade musical, o repertório de música dita antiga, mais 90 especificamente a de Bach, era executado no teatro do Champs-Élysées e no L’Opéra Comique 3 geralmente em programas de repertório diversificados, não possuindo caráter temático, sendo executados por interpretes associados às tradições das práticas interpretativas ditas românticas e importantes incidências de traduções francesas da música vocal do mestre germânico serem apresentadas. As buscas nos arquivos online de ambos os teatros acusam um elevado número de performances entre os anos 1920 e 1940, concertos os quais sempre envolviam intérpretes do mais elevado nível e prestigio da época. Só no Champs-Élysées foram encontrados 114 concertos com pelo menos um título de Bach sendo apresentado4. Em parte considerável dos programas e cartazes analisados constavam concertos de programas variados que incluíam peças de Bach. Os concertos do Champs-Élysées de 1920 a 19345, reuniam obras do compositor de Eisenach com autores canônicos dos séculos XVII e XVIII como Monteverdi, Vivaldi, Lully, Mozart e Händel. Era recorrente também que esses compositores de música antiga compusessem programas com peças de Beethoven, Debussy, Faurè, Richard Wagner, Richard Strauss, Lili Boulanger, Manuell de Falla, Mendelssohn, Chopin, etc. Tais programas de caráter de “pout-pourri”, cujo ecletismo abarcava da música europeia de século XVII até o século XX, eram executados por orquestras modernas francesas e estrangeiras ou recitais de solistas franceses e estrangeiros, sobretudo de piano e canto e piano. Os cartazes do Champs-Élysées de concertos sinfônicos executavam majoritariamente peças curtas de Bach: Suites, Toccatas e Concertos (especialmente o concerto Brandenburgo). Quanto aos recitais de piano, piano e canto e de instrumentistas são difíceis de precisar pois a maioria dos cartazes não especificam as obras que foram executadas. Nos que possuem maior descrição as Suítes, Prelúdios, Fugas, Toccatas e arranjos de obras de Bach por outros compositores, como D’Albert, eram recorrentes nos concertos dos mais diversos pianistas como Backhaus, Saeur, Paderewsky, Horowitz, Landowska, Cortot, entre outros. Os recitais de cantores, muito embora também não tenham as especificações das árias, parecem orientar o repertório de Bach pela temática sacra e religiosa, como nos recitais de Marian Anderson (1934) e o de John MacCormack (1928), ou nos cânones dos compositores clássicos como nos recitais de Maria Barrientos e Landowska (1922, 1924), Elisabeth Schumann (1931) e Lotte Lehmann (1929, 1930). Foram investigados dois arquivos online dos referidos teatros Champs-Élysées e L’Opera Comique em setembro de 2016. 4 Esse levantamento é referente ao número de espetáculos levados ao palco, mas não necessariamente responde ao número total de récitas performadas no Champs-Élysées. 5 Os anos de 1934 a 1940 não foram encontrados registros de performances de Bach no Champs-Élysées. 3 91 Apenas quatro concertos foram totalmente dedicados à Bach no Champs-Élysées, três no ano de 1924 e um no de 1929; duas récitas da Paixão Segundo São Matheus com a orquestra Concertgebouw regida por Mengelberg; uma Paixão Segundo São João francesa executada por músicos da Schola Cantorum de Nantes, um recital de piano com Jean Wiener e René Benedetti e, por fim, a Missa em Sì, executada por Paul Le Flemi e os Chanteurs de Saint-Gervais respectivamente. Os oratórios mencionados são paradigmáticos e representativos por possuírem características das tradições românticas de execução de Bach e, também, a performance feita pela Schola Cantorum é representativa do ponto de vista que os músicos franceses interpretavam tais cânones românticos. A Segundo São Matheus regida por Mengelberg contava além da Concertgebow com coro da Toonkunst de Amsterdam composto, segundo o cartaz, por 500 vozes. Nesta tournée de Mengelberg e a Concertgebow previa duas récitas da Paixão de Bach, duas da Nona sinfonia de Beethoven e uma noite de peças variadas de concerto de música francesa e holandesa. O conjunto dirigido por Mengelberg, imenso para executar Bach segundo padrões atuais, apresentariam obras de Beethoven e outros compositores do século XIX e XX, utilizarse de um mesmo grupo de músicos para executar música dita antiga com outros repertórios já indica uma proximidade entre essas práticas musicais. A dimensão da Paixão Segundo São Matheus sob a batuta de Mengelberg possuía proporções e dimensões similares aquela dirigida por Mendelssohn em 1829, para grandes plateias. O maestro holandês contava com a parceria de solistas de prestigio internacional como a soprano Elisabeth Rethberg famosa por suas interpretações wagnerianas e verdianas e o celebrado tenor wagneriano da época Jacques Urlus para a arte do Evangelista, ambos ao que consta cantariam tanto no oratório quanto na sinfonia. O continuo desta Segundo São Matheus foi executado por Wanda Landowska uma das pioneiras sobre as reflexões acerca da autenticidade das práticas, responsável pela disseminação do repertório de Bach em salas de concerto pela Europa e no continente americano e uma interprete engajada nas discussões sobre autenticidade histórica e liberdade de interpretação já que para ela o “interprete não deveria limitar-se permanecer a sombra do autor” (LAWSON & STOWELL, 2005, p. 24).6 6 A pianista e cravista Landowska realizou alguns recitais no teatro Champs-Élysées nos anos 1920. Além do concerto com Mengelberg, Landowska apresentou-se como pianisot e cravista no teatro frances em recitais com a soprano espanhola Maria Barrientos com peças de canto acompanhadas de Bach, Ramaeu, Handel, Gluck, Couperin, Mozart, Haydn, Scarlatti e canções populares nos anos de 1922 e 1924. Há um concerto solo o qual a instrumentista tocou piano e cravo obras de Pachebel, Bach, Couperin, Scarlatti e Mozart no ano de 1923. 92 Existe uma gravação da Segundo São Matheus de 1939 com Mengelberg, a Concertgebouw e o coro Toonkunst em que se pode ter uma noção aproximada das apresentações no Champs-Élysées em 1924. Interpretação de sonoridade monumental por parte da grande orquestra e coro faz com que os andamentos sejam substancialmente mais lentos dos que se costuma fazer atualmente, a variação dos tempos e andamentos, o uso de portamenti por parte dos solistas reflete em um entendimento de frases e períodos musicais mais próximos às práticas musicais do século XIX, os cortes substanciais da obra para que esta melhor se encaixasse na sala de concerto reflete um ato contemplativo da música, dissociada do serviço religioso. A performance da Segundo São João interpretada pela orquestra e coro da Schola Cantorum de Nantes também contava com um número de músicos elevado – o coro somavam 250 vozes. O mais marcante neste concerto e razão de estranhamento para os músicos e público contemporâneo, foi o fato do oratório ser cantado em idioma francês. La Passion selon Saint Jean tinha o texto francês do poeta Maurice Bouchor e o fato do concerto ter sido realizado por músicos do conservatório e organizado por professores do mesmo indica que as práticas pedagógicas musicais e sua execução permitiam um tipo de arranjo que modificava, via o texto “literário”, drasticamente a música concebida por Bach. Não trata-se somente da tradução do uso de instrumentos modernos ao invés dos antigos, ou da supressão de algumas partes da música e do texto cantado, ou ainda, de um arranjo moderno que atenda as exigências dos conjuntos orquestrais e corais do século XX; a versão francesa da Paixão engloba: o uso de um texto literário diverso do original (que respeita o sentido dramático e poético, mas altera o significado das palavras), uma nova escrita rítmica que se adeque a prosódia e os acentos da língua francesa, a construção de frases e períodos literários influi em como os cantores executam suas frases melódicas (realocando pontos possíveis de respiração, início e fim de frase) e as modificações da sonoridade do alemão para a do francês. A prática de traduzir textos literários não se refere somente ao universo dos libretos de ópera, peças de concerto como a Paixão Segundo São João possuíam versões de modo serem executados nos idiomas natais do público e dos interpretes que cantam. Tal prática reflete um patriotismo que visa o entendimento da obra pelo público, no sentido de que valorizam-se as escolas nacionais de canto – considerando que o canto e seu ensino está relacionado com o idioma falado – e, sobretudo, no sentido de que há uma apropriação dos interpretes e suas escolas formadoras e do público quando é representada a tradução. Esta, como dito anteriormente, é uma versão que modifica o ritmo, prosódia, melodia e o 93 significado do texto, contendo outros horizontes de possibilidades interpretativos não previstos pelo compositor. O concerto da Schola Cantorum não é um episódio isolado, o arquivo online do L’Opera Comique indica uma atividade camerística com de traduções francesas de Bach nos anos 1940. Impulsionadas principalmente pela meio-soprano Germaine Cernay cuja a carreira ficou “associada e consagrou interpretações de Bach na França” (KUTSCH & RIEMENS, 1969, p. 77), constam recitais que incluíam árias diversas de Bach (de oratórios e cantatas), ou concertos em que executavam-se cantatas completas em língua francesa. O início do texto da berceuse da noite de natal Dors, mon amour (Schlafe, meine Liebster, geniesse der Ruh’) traduzido por R. Boussine referente ao Oratório de Natal exemplifica as práticas dos concertos de Cernay. Registros fonográficos de época também confirmam a regular incidência do uso de versões francesas para obras de Bach. Grandes nomes da lírica fizeram gravações de árias de Bach; o registro mais antigo é o da soprano Germaine Lubin, de 1929 com a pianista Jeanne Krieger a ária da Cantata BWV 68 Mon âme croyante tressaille et chante (Mein glaubiges Herze); o segundo registro data de 1937 pelo tenor Georges Thill, com a Orchestre de la Garde Republicaine7, as árias da cantata BWV 65 Prend mon couer (Nimm mich dir zu eigen hin) e a cantata BWV 85 Ah! Quel prodige d’amour (Sieht, was die Liebe tut); o último registro encontrado data de 1940, em que Gernaine Cernay, a soprano Martha Angelici e a organista Noëlie Pierront gravaram alguns duetos de cantaras de Bach isolados, por exemplo a ária-dueto da cantata BWV 78 Vers toi, radieuses nous vinmes céans (Wir eilen mit schwachen).8 A existência destes registros fonográficos em língua francesa reflete a atividade musical entre as décadas de 1920 e 1940, da França e sua respectiva recepção das obras de Bach, diferenciada da alemã, por exemplo, no quesito textual. Mesmo que a única cantora desta seleção cuja a carreira associada ao repertório de Bach fosse Germaine Cernay, o fato de Georges Thill e Germaine Lubin serem artistas de grande projeção, ao gravarem árias de 7 A Orquestra da Guarda da República foi criada em 1848, formada por um grupo cujo total somava 120 músicos, com a formação e organização similares aos propagados pelo Conservatoire de Paris. A Orquestra pode funcionar com diferentes formações: a de banda de concerto, orquestra de cordas ou sopros, orquestra sinfônica, quarteto de cordas, etc.; de acordo com os serviços requisitados (protocolos oficiais, comemorações e eventos públicos, concertos em temporadas) realizando os mais diversos tipos de repertório. 8 O registro das gravações constam na revista L’Avant Scène opera decicada ao tenor Georges Thill, cuja compilação fonografica foi feita por Georges Voisin emu ma ampla discografia sobre o cantor (DUAULT, 1984, p. 100-103); no livro A Consise Biographical Dictionary of Singers costa a de Cerney e Angelici (KUTSCH, 1969) e de Lubin consta no site: http://www.marstonrecords.com/collections/frontpage/products/lubin (consultado em Maio de 2016). Todas as gravações mencionadas estão disponibilizadas online no site do youtube.com. 94 Bach, disseminaram as obras do compositor no mercado fonográfico, disponibilizando assim, extratos das cantatas de Bach. Não é difícil crer a circulação dos registros dessas interpretações dada a projeção e prestigio que esses cantores possuíam na França e outros centros musicais europeus, constituindo-se como importantes modelos e referências para este repertório. Tais registros são radicalmente diversos daquilo que os interpretes contemporâneos vem buscado para este repertório e para Bach. Gestos vocais como portamenti, o vibrato, contrastes chiaro-scuro, sonoridades amplas e robustas e tempos mais largos são constantes nessas gravações antigas, a ponto de ao fazer comparações com registros atuais não se reconhecer as respectivas obras – o exemplo mais evidente das práticas musicais produzindo resultados sonoros distintos, revelando a que interpretação do texto musical se altera no tempo e espaço modificando-o por consequência, é a aria Mon âme croyante tressaille et chante por Lubin e Krieger. Se compararmos esses registros fonográficos à árias de óperas de compositores do século XIX, a abordagem dos interpretes são. O uso dos diferentes tipos de registros vocais por Thill, por exemplo, na ária Prend mon couer da gravação, evoca práticas do século XIX oriundas da escola do Bel canto italiano, o qual Thill teve sua formação com um dos seus últimos representantes o tenor Fernando De Lucia (1860-1925) 9 . O uso de mais de um registro vocal, o de peito e o falsettone10, provocam variações na produção sonora da voz, mostrando uma “paleta” de colorido de timbres distintos, bem como ressalta qualidades várias da voz resultando em efeitos musicais de dinâmica (forte e piano), dolcezza dos ataques ou sforzando dos mesmos, a depender. O controle dos diferentes registros vocais utilizados por Thill estão presentes, também, em gravações de árias como Salut demeure chaste et pure da ópera Faust de Charles Gounod e Aux bords lointains (In fernem land) do Lohengrin de Richard Wagner, sugerindo que o trabalho do interprete – no que concerne a registração vocal – abordava o repertório da música antiga segundo seu universo de possibilidades praticointerpretativos. A escuta comparativa entre os registros fonográficos de Thill mostram um uso da voz, seja na sua produção técnico-sonoro quanto musical interpretativo, similar para Nas palavravas de Georges Thill, extraidas de uma entrevista à Angelo Pradier, presente na edição da L’Avant Scène Opéra que homenageia o tenor o seguinte comentário sobre seu mestre de canto: “Eu creio que ele [De Lucia] era um dos últimos depositários da célebre escola do canto italiano do início do século XIX, herdeira da época dos castrati (…) Era um canto ornado, com uma liberdade total para os cantores.” (DUAULT, 1984, p. 20) 10 O Falsettone é um termo italiano que significa um “falsete reforsado”. O uso deste registro vem sendo ao longo de décadas do século passado associado às praticas do canto do século XIX por críticos importantes como Rofolfo Celletti (1989) e musicologos como Marco Beghelli (1996). 9 95 interpretar cantatas de Bach como as óperas de Wagner. A aproximação ou “tradução” dos gestos musicais e expressivos para executar estes repertórios se sustenta pelo argumento da tradição presente na carde de Verdi a von Bülow. Este universo interpretativo presente nas práticas musicais parisienses, cujos vestígios podem ser averiguados em fontes primárias como os programas e cartazes musicais antigos e gravações de época, permeou/modelou a visão que Villa-Lobos tinha do repertório de Bach quando morou em Paris. O “horizonte sonoro de expectativas” de Villa-Lobos vindo de sua experiência como regente e como ouvinte da atividade musical de seu tempo revela mais detalhadamente seu universo interpretativo sobre obras do passado, mesmo que não em sua totalidade. Considerações Finais A existência destes registros fonográficos e o levantamento nos arquivos online do teatro Champs-Élysées e L’Opéra Comique não esgota as possibilidades acerca da recepção de Bach na França do entre guerras. Também não encerra a pluralidade de visões e interpretações advindas das tradições de Escolas nacionais do século XIX, ou idiossincráticas dos artistas. Entretanto, ainda que haja necessidade de realizar mais investigações, aprofundando-se nas fontes primárias dos acervos visitados – sobretudo no L’Opéra Comique – bem como de outras instituições, novos catálogos completos de gravações e nas execuções das obras de Bach e arranjos que Villa-Lobos vez no Brasil, o artigo oferece uma mostra para reflexão da interpretação de Bach na época de Villa-Lobos. Os cartazes e programas mencionados, dão-nos indícios mais clarificados do que era a atividade musical em Paris nas temporadas que o brasileiro lá residiu, enquanto as gravações revelam para o pesquisador e ouvinte da atualidade um registro “pratico” de como as visões de época exerciam no fazer musical resultados sonoros e interpretativos diversos, mesmo que os fonogramas sejam apenas um vestígio das performances. Esta compreensão, ainda que parcial da atividade musical parisiense, revelou que as práticas históricas das apresentações de Bach na França possuíam um lastro em uma visão romântica do compositor vindas de acordo com as reflexões levantadas por Lawson e Stowell da renascença deste repertório com Mendelssohn. A transmissão de valores estéticos, neste contexto, está ligada à ideia de tradição mantidos tanto no registro oral (performance) quanto no escrito (texto musical). A perpetuação de Bach no repertório canônico, nas práticas interpretativas ou nas relações de intertextualidade com obras de outros autores, pode ser compreendida como uma trajetória hermenêutica, que compreende o movimento histórico de 96 forma continua, cujo objetivo é a manutenção das virtudes do compositor como “paradigma da música absoluta”, “pai da escola alemã de composição” e como “gênio de música sacra”. Não devemos tratar a tradição e a restauração como idênticos. Eles diferem, primeiramente, na relação imediata com o passado, e o último uma intermédia e secundário. Tradição pressupõe a continuidade, e é muitas vezes comparado a uma cadeia ininterrupta a este respeito; restauração, por outro lado, é uma tentativa de renovar o contato com uma tradição que foi interrompida ou se atrofiou. (DAHLHAUS, 1997, p. 67) Algumas características, entretanto, desta visão do século XIX de Bach não são universais tanto quanto o discurso da genialidade do compositor germânico. As diversas versões francesas evidenciam que não existe apenas uma tradição romântica, ou uma visão interpretativa possível da transmissão da música de Bach e seus valores estéticos. É possível dizer que houveram tradições românticas, cuja recepção e execução de Bach nos séculos XIX e XX possuíram variantes, muito embora o argumento da tradição torne possível criar analogias comparativas entre as visões e práticas do repertório antigo de Mendelssohn até as últimas execuções de Furtwängler em 1954, pois estão enraizadas no mito do gênio universal de Bach. Tal grandiosidade atravessa o âmbito imaterial dos discursos que sustentam o mito transbordando para a pratica musical, cujas performances eram com grandes orquestras, grandes massas corais e solistas de grandes vozes, recorrentes nas execuções de Mendelssohn, Furtwängler, Kleiber e Villa-Lobos. As tradições românticas e suas visões sobre o repertório suscitam uma pergunta crucial: teria sido a recepção de Villa-Lobos à Bach com valores eminentemente do Romantismo? A visão moderna de Bach e a releitura moderna do passado, não estaria ainda impregnada por cânones e maneiras de se interpretar o repertório barroco vindos do século XIX? Villa-Lobos ao considerar Bach como “fonte do folclore universal” parece dar continuidade à dimensão da genialidade que transcende tempo e espaço, alinhando-se assim com uma ideologia universal da tradição oriunda do Romantismo. As visões românticas acerca da obra de Bach, cujo o lastro calcava-se na transcendentalidade do gênio, se perpetuaram, ainda que com distinções, até o momento histórico de Villa-Lobos e outros compositores ditos modernistas certamente pela manutenção dos cânones interpretativos das práticas musicais performadas. É possível crer que aquilo que ocorria nas salas de concerto permeassem o imaginário de Villa-Lobos ao estudar a obra de Bach. Este fenômeno de rememoração musical, funciona como referencial sonoro da obra estudada, incidindo no olhar de Villa-Lobos ao analisar as tramas composicionais de Bach. Os processos de recriação e reelaboração das técnicas composicionais e estruturas musicais de Villa-Lobos, por partirem de visões historicamente construídas, fazerem usos 97 discursivos “deslocados” e criativos das formas barrocas. A rigor a visão que Villa-Lobos tenha sobre a obra de Bach e a reverberação na sua própria nunca sejam desvendadas. Talvez pouco importe sua visão hermeneuticamente falando, pois segundo Wolgang Iser e outros autores da Estética da Recepção nunca há, em termos absolutos, restituição de um significado prévio do objeto artístico e, sim constante construção deste. A interação entre sujeito e objeto artístico que definem sentido, e por isso repertórios inteiros são relidos à luz de um momento histórico determinado. As visões hegemônicas se instalam e atravessam o tempo e espaço, todavia não estão imunes de serem relidas e reinterpretadas, como é o caso das versões francesas da obra de Bach na Paris do início do século XX. O que está em jogo não é a visão de Villa-Lobos em si mesma, e sim, como esta é fruto de um determinado contexto histórico e cultural, condição de possibilidade para determinadas interpretações dos objetos artísticos. No caso da música a recepção de uma obra subsiste, nas tradições ocidentais, quanto som e quanto texto (Vidal, 2014, p. 107). Portanto, a transmissão de valores estéticos que sustentam uma determinada visão de obra parte da performance juntamente dos estudos textuais. A intercessão e ponto de influência da pratica com a interpretação de texto apresenta um olhar paradoxal de Villa-Lobos sobre Bach. Dudeque comenta que o ato de restauração – apara usar o termo de Dahlhaus – de Bach por Villa-Lobos é ambíguo, por vir de uma construção mítica do compositor alemão mas ao mesmo tempo se colocar como uma “nova” visão sobre este mito (DUDEQUE, 2008, p. 154). Tal paradoxo parece não se dissolver, pois o uso da referência de Bach nas Bachianas indica uma nova interpretação sobre aquele discurso musical, mas ao mesmo tempo não deixa de mencionar o passado, mantendo, assim, tradições iniciadas no século XIX e valores românticos sobre Bach e quem sabe sobre si mesmo. Referências ARCANJO JR. Loque. O ritmo da mistura e o compasso da História: O Modernismo musical das Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos. Dissertação de mestrado – Departamento de História da UFMG, 2007. BEGHELLI, Marco. “Il „Do di Petto’, dissacrazione di un mito.” In: Il Saggiatore musicale, p. 105-149, anno III. Fizenre, 1996. CELLETTI, Rodolfo. 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Acesso em 07 de outubro de 2016. 99 Villa-Lobos e a schottisch: a interpretação musical por classificação genérica Mário Sève1 UNIRIO marioseve@gmail.com Resumo: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre o estilo de interpretação da Schottisch-Choro, segundo movimento da Suíte Popular Brasileira, escrita por Villa-Lobos para violão solo. Procurou-se conhecer como as danças europeias, em especial a schottisch, adaptaram-se a um estilo brasileiro de tocar. Procurou-se também conhecer o uso da notação musical nas práticas dos chorões e a presença do violonista Villa-Lobos nesse universo. No quadro teórico deste texto, recorreu-se a pesquisas de José Ramos Tinhorão, Jairo Severiano, Baptista Siqueira, Nikolaus Harnoncourt e Pedro Aragão, além de ferramentas de análise musical para o choro de Carlos Almada. Supostamente, o compositor omitiu em sua notação algumas informações por julgar estas contidas nas classificações genéricas das peças de sua suíte. Palavras-chave: Villa-Lobos. Choro. Schottisch. Gênero. Notação musical Villa-Lobos and the schottisch: the musical interpretation by a genre classification Abstract: This article aims to think about the interpretation style of Schottisch-Choro, the second movement of Suite Popular Brasileira, written by Villa-Lobos for guitar solo. I tried to find out how the European dances, especially the schottisch, were adapted to a Brazilian style of playing. I also tried to investigate the musical notation in the choro practices and the presence of Villa-Lobos, as guitar player, in this universe. In the theoretical framework of this text, there are researchs by José Ramos Tinhorão, Jairo Severiano, Baptista Siqueira, Nikolaus Harnoncourt and Pedro Aragão, and the choro musical analysis by Carlos Almada. Supposedly, Villa-Lobos has omitted some details in his musical scores because these belonged to the genre classifications of the pieces of his suite. Keywords: Villa-Lobos. Choro. Schottisch. Genre. Musical notation 1- As danças europeias 1 Saxofonista, flautista, compositor e arranjador, é integrante e fundador dos quintetos NÓ EM PINGO D´ÁGUA e AQUARELA CARIOCA , com os quais gravou 12 discos e recebeu muitos prêmios. Integra o grupo de Paulinho da Viola desde 1996, com 5 CDs e 2 DVDs gravados. Mestre em Música pela UNIRIO (2015) com a dissertação FRASEADO DO CHORO: uma análise de estilo por padrões de recorrência. Apresentou O FRASEADO DO CHORO: algumas considerações rítmicas e melódicas no III SIMPOM (2014), CHORO E FRASEADO ? notação , regras e interpretação no IV SIMPOM (menção honrosa, 2016) e CHORO: GÊNERO OU ESTILO? no XXVI Congresso da ANPPOM (2016), artigos já publicados. Em 2015, publicou QUATRO ROSAS: mudanças interpretativas no fraseado de uma valsa brasileira na REVISTA DEBATES N. 14 e apresentou O ENIGMA DE CHOROS Nº 1 DE VILLA-LOBOS no III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS, artigo a ser publicado. Foi Diretor Artístico do CENTRO DE REFERÊNCIA DA MÚSICA CARIOCA (2007 a 2009). Foi curador do mapeamento RUMOS MÚSICA no Itaú Cultural/SP (1996). Escreveu o livro VOCABULÁRIO DO CHORO (1999) e coordenou o SONGBOOK DO CHORO ? vol. 1, 2 e 3 (2007/2011) e o Livro/CD CHORO DUETOS ? ?Pixinguinha e Benedito Lacerda? - vol. 1 e 2, com David Ganc. Gravou os CDs BACH & PIXINGUINHA (2001), com Marcelo Fagerlande, CHOROS, POR QUE SAX? (2004), com Daniela Spielmann, PIXINGUINHA + BENEDITO (2005), com David Ganc, e CASA DE TODO MUNDO (2007), com suas composições e várias participações, e os CD CANCIÓN NECESARIA (2011) e o DVD SAMBA ERRANTE (2015), ambos autorais junto a cantaoutora Cecilia Stanzione, mesclando estilos brasileiros e argentinos. Em 2008, Carol Saboya lançou CD CHÃO ABERTO, exclusivamente com suas canções. Produziu o festival anual RIOCHORO (2000 a 2004), reunindo grandes nomes do gênero. Foi curador e idealizador, dos ciclos MP, A e B ? Argentina e Brasil (2011), ENCONTROS VIRTUAIS (2015) e A PAIXÃO SEGUNDO CATULO ? um olhar sobre a modinha e a canção brasileira, nos CCBBs do Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. Participou, como compositor, do FESTIVAL DA MÚSICA BRASILEIRA (TV Globo - 2000), do FESTIVAL DA CULTURA (TV Cultura - 2005) e do PREMIO VISA (2006). Foi premiado nos festivais de AVARÉ (FAMPOP) e CHORANDO NO RIO. 100 A vinda da Família Real, em 1808, trouxe para o Brasil uma grande onda de transformações. Na música, chegou da Europa uma série de danças, dentre as quais prevaleceram primeiramente a quadrilha2 e a valsa. A quadrilha caiu em desuso nos grandes centros urbanos durante o século XX, adaptando-se, com diferentes nomes, a danças rurais — é muito conhecida no período de festas juninas em várias regiões do Brasil. Já a valsa, em compasso ternário, uma das danças de salão mais apreciadas no mundo ocidental, a primeira em par enlaçados e que ganhou diferentes estilos nos países que a importaram (SEVERIANO, 2009, p. 23), obteve grande popularidade na música urbana brasileira. Ao final dos 1820, começaram aqui a impressão de partituras e a venda de pianos — instrumento que passou a ser presença obrigatória nas salas das famílias mais abastadas. O piano manteve sua hegemonia durante cerca de oitenta anos, de 1850 a 1930, até o violão — um instrumento barato e portátil — ganhar lugar na preferência popular. A valsa, criada no ambiente dos salões burgueses da Europa, cultivada no repertório pianístico de Schumann, Schubert, Liszt e Chopin, teve impulso no Brasil, nos anos 1840, com a chegada das valsas vienenses dos dois Johann Strauss (pai e filho) e de outros compositores. Seu prestígio fez com que chegasse a ser dançada nas festas da coroação do imperador Pedro II. Alguns compositores brasileiros — como Chiquinha Gonzaga (1847–1935), Anacleto de Medeiros (1866–1919), Patápio Silva (1881–1960), entre muitos outros — se dedicaram à composição de valsas, destacando-se, especialmente, o pianista e autor de tangos Ernesto Nazareth (1863– 1934), que as considerava seu gênero nobre. Caracterizada por seu fluxo melódico com pouco ou nenhum uso de figuras sincopadas, a valsa brasileira instrumental, ou valsa-choro, se estabilizou, salvo exceções, na forma rondó com sessões (ou partes) de 32 compassos, divididas em períodos de 16 compassos (como Faceira, Eponina, Turbilhão de beijos e Coração que sente, entre as cerca de 40 valsas que Nazareth compôs). No mês de outubro de 18443, segundo Jairo Severiano, chegou ao Rio de Janeiro a polca. A dança alegre de origem camponesa, também de par enlaçado, composta em compasso binário, nasceu na região da Boêmia por volta de 1830. Sete anos depois, foi introduzida em Praga, espalhando-se para Viena, São Petersburgo, Paris, Londres e Nova York. A polca reforçava a intimidade proporcionada pela valsa, mas trazia a “substituição dos volteios alados em 3/4 pelo puladinho na ponta dos pés” (TINHORÃO, 1991, p. 59) em 2/4. A A quadrilha, de origem francesa, desfrutou de grande prestígio na maior parte do século XIX, declinando com o fim da Monarquia. A dança abria bailes da corte — um costume da realeza europeia que encantou brasileiros. (SEVERIANO, 2009, p. 24). 3 O cavaquinista e pesquisador Henrique Cazes, em seu livro Choro — do quintal ao Municipal, diz que a polca foi dançada aqui pela primeira vez no mês de julho de 1845, no Teatro São Pedro. 2 101 sociedade na época, que demandava uma música a ser desfrutada fora da formalidade dos auditórios, recorreu espontaneamente à “música diversiva”. As próprias óperas, para obterem sucesso aqui, chegavam a apresentar polcas avulsas. O novo gênero era uma reação às antigas danças palacianas (como o minueto da Corte), com a novidade no movimento coreográfico de levantar a perna, despertando a “curiosidade” das pessoas. O músico Cacá Machado descreve o panorama musical carioca na presença da polca: A cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX tinha uma vida musical intensa que abrangia tanto os teatros fechados, como o São Pedro, o Phoenix e mais tarde o Municipal, na chamada belle époque, como o espaço público das ruas, botequins e festas populares ou a intimidade dos salões das casas de família. De um lado, existia uma cultura musical ligada à vida popular da camada média da população, que se dava principalmente nos espaços públicos e, por outro, uma cultura musical de elite, que circulava pelos grandes teatros e pelos salões da sociedade. O que existia em comum entre esses dois universos? A Polca. (...) [Ela foi] o médium cultural (na sua origem latina, o que está no centro, que concilia opostos, mediador) da sociedade do Segundo Império. (MACHADO, 2007, p. 20). A polca entrou nos salões como “criação europeia e civilizada”, um consentimento que o lundu jamais obtivera (TINHORÃO, 1991, p. 56). Sua popularidade tornou-se imediatamente tal que, ao final de 1840, os brasileiros já compunham polcas, não restando dúvidas de que a dança se integrara definitivamente à nossa cultura musical. Na segunda metade do século XIX, fundiu-se ao antigo lundu (ambos em compasso 2/4), este resgatado por compositores brasileiros motivados pela campanha de libertação dos escravos. Outros gêneros também binários, com fórmulas rítmicas semelhantes ao lundu — entre eles, o tango e a habanera (nos anos 1860) — já haviam entrado no Brasil. O historiador José Ramos Tinhorão comenta como se deu a mistura da polca com o lundu: Quando, pois, a partir da segunda metade do século XIX, a polca vence as barreiras da censura familiar e se transforma numa loucura coletiva no âmbito da classe média urbana brasileira (chegou a ser criado o verbo polcar), a semelhança de ritmo com o lundu permite a fusão que poderia às vezes ser apenas nominal, mas que garante ao gênero de dança saído do batuque a possibilidade de ser, afinal admitido livremente nos salões sob o nome mágico de polca-lundu. (TINHORÃO, 1991, p. 56). Na década que vai de 1870 a 1880, a polca-lundu4, com a colaboração do flautista carioca Joaquim Antonio da Silva Callado (1848–1880), surgiu como principal gênero do repertório popular. Sendo música instrumental e de caráter popular, já contribuíra para evitar a “tendência lamentosa” e as subordinações de “ordem prosódica” das modinhas (SIQUEIRA, 1969, p. 111). Ela havia cativado o carioca não apenas pelas melodias, mas também por unir 4 A expansão mundial da polca talvez possa ser explicada por sua força musical estar em um ritmo de marcha simples, binário, capaz de se adaptar facilmente às tradições locais. Na Alemanha, virou Schnellpolka (polcagalope); na Polônia, polca-mazurca; e no Brasil, polca-lundu, polca-tango, polca-maxixe, polca. etc. (MACHADO, 2007, p. 41-42). 102 seus dois instrumentos prediletos — o piano e a flauta5. Joaquim Callado, preferindo a atmosfera violonística, acabou por formar “o mais original agrupamento musical reduzido de nosso país” (SIQUEIRA, 1969, p. 98) — o Choro do Callado —, cuja formação à base de um instrumento solista (a flauta, no caso), dois violões e um cavaquinho estabeleceu o modelo para os conjuntos de choro até os dias de hoje. Nesses grupos, normalmente, só o solista lia música, os demais deveriam ser improvisadores do acompanhamento harmônico (como os violonistas de modinha). O flautista tinha, provavelmente, o maior repertório nos cadernos manuscritos de partituras que circulavam entre os chorões da época6 — entre obras de Candinho (1879–1960), Viriato Figueira (1851–1883), Albertino Pimentel (1872–1929), Anacleto, Chiquinha e outros. Tendo iniciado, aos oito anos de idade, seus estudos com o maestro Henrique Alves de Mesquita (1830–1906), o flautista simboliza o nascimento do choro como um estilo musical de interpretar e recompor danças europeias. Assim como outros gêneros originados de estruturas clássicas, a polca estabeleceu-se aqui na forma rondó em partes, com períodos quadrados e necessariamente regulares, de 16 compassos binários (dependendo da repetição) na maioria das vezes7. A polca brasileira no padrão sincopado, por simples assimilação, passou a ser conhecida como choro e interpretada por agrupamentos musicais como bandas e fanfarras, além dos conjuntos de choro. 2- A schottisch A schottisch chegou ao Brasil pouco depois da polca e, como o gênero originário da Boêmia, foi dançada por bailarinos nos teatros populares. A dança polonesa, chamada pelos ingleses de polca alemã, logo caiu no gosto das elites brasileiras. A nossa versão da dança, a schottisch brasileira, composta na forma adaptada de rondó em três partes, estas por vezes com apenas oito compassos, estabilizou-se como música instrumental principalmente através do mestre de bandas Anacleto de Medeiros, nascido na Ilha de Paquetá no Rio de Janeiro. É ele considerado o “sistematizador do gênero” no Brasil. Em 1896, na função de 5 Henrique Cazes (lembra que, no Brasil, o interesse pela flauta se intensificou primeiro, com vinda da Família Real e, posteriormente, em 1859, com a chegada, a convite de D. Pedro II, do exímio flautista belga MathieuAndré Reichert, que aqui ajudou a introduzir o sistema boehm da flauta transversa moderna. Reichert, se contaminando com música dos chorões, compôs no estilo — como mostra a polca La coquette, incluída no repertório desses músicos com o título As faceiras. 6 Segundo Pedro Aragão, tais cadernos funcionavam como uma espécie de “ambiente paralelo” à indústria editorial, suprindo suas carências e propagando um repertório tocado nas rodas de choro — boa parte deste, aliás, jamais editado. 7 Para Cacá Machado, a polca forneceu a métrica musical (andamento binário e seções de oito e 16 compassos, por exemplo) sob a qual a música popular de sucesso (ou pop) se estruturou, especialmente na forma de canção — ele vê na polca o “protótipo do pop”. (MACHADO, 2007, p. 21). 103 organizar a Banda do Corpo de Bombeiros, arregimentou alguns dos melhores músicos de choro, fazendo com que seu grupo passasse a se destacar pela qualidade de afinação, interpretação e arranjos. Era tradição as bandas se responsabilizarem pela educação musical de seus componentes. Por serem seus mestres chorões, houve um “efeito multiplicador da cultura chorística”, fazendo com que mais músicos dominassem a linguagem (CAZES, 2010, p. 29). Além disso, a presença das bandas em eventos de porte foi importante, em fins do século XX, para a divulgação de polcas, mazurcas e schottisches, além de marchas, dobrados, gavotas e adaptações de trechos de ópera. Esse ecletismo de repertório contribuiu para estruturar, mais tarde, a linguagem orquestral da nossa música popular — Pixinguinha, por exemplo, mostrou forte influência do estilo das bandas em seus arranjos musicais. A schottisch brasileira não alcançou o mesmo sucesso da polca pois, enquanto esta era “coletivizante e em tom maior”, ela, normalmente em tom menor, “afeiçoava o ritmo obtido com o compasso quaternário”, justifica o maestro Baptista Siqueira (1969, p. 168). Embora originalmente fosse escrita em compasso binário, ao adaptar-se a andamentos mais lentos passou gradativamente a ser escrita em compasso quaternário (CAZES, 2010, p. 27). O músico Henrique Cazes sugere a célula rítmica da figura 1 para o acompanhamento da schottisch no cavaquinho. E o violonista Luiz Otávio Braga, escrevendo em 2/2, ilustra sobre os compassos iniciais de Yara, de Anacleto de Medeiros (figura 2), o acompanhamento da dança no seu instrumento. Curiosamente, um padrão rítmico similar é usado pelos chorões no acompanhamento de modinhas e canções seresteiras. Figura 1 — acompanhamento da schottisch no cavaquinho — fonte: Escola moderna de cavaquinho (CAZES, s/d) Figura 2 — acompanhamento da schottisch no violão — fonte: O violão de 7 cordas (BRAGA, 2002, p. 15) Embora o motivo rítmico «colcheia–colcheia» (figura 3.a) esteja presente nas melodias de muitas partituras da schottisch brasileira, sua execução neste gênero musical costuma aproximar-se da célula «colcheia pontuada–semicolcheia» (figura 3.b), ou da célula «colcheia–semicolcheia» em quiálteras (figura 3.c) — um procedimento semelhante ao 104 encontrado na música barroca (notes inégales) e no jazz (swung quavers ou “colcheias swingadas”). Figura 3 — variações „b’ e „c’ para célula rítmica „a’ em melodias da schottisch brasileira Braga afirma que na schottisch brasileira as colcheias devem ser tocadas, cada duas, como colcheia pontuada seguida de semicolcheia. O bandolinista Pedro Aragão, ao analisar um antigo manuscrito de uma composição intitulada Schottisch e Polka (da figura 2, que apresenta motivos com semicolcheias pontuadas e fusas), comenta que “a primeira parte da música é um schottisch, com característica marcante de melodia pontuada, e a segunda parte se transforma em uma polca.” (ARAGÃO, 2013, p. 192). Figura 4 — melodia pontuada na schottisch — fonte: O baú do Animal (ibid.:270) No início do século XX, a introdução de versos por alguns poetas (como Catulo da Paixão Cearense e Hermes Fontes), adaptando-a à forma de canção dramática, fez com que a schottisch brasileira começasse a perder suas características de “música pura” (de caráter estritamente instrumental). Como nas polcas, os contornos melódicos das schottisches adaptaram-se à forma da canção, mas trazendo a vantagem de já possuírem andamento lento — favorável à inclusão de letras — e pulsação quaternária — mais próxima da modinha. A schottisch emprestou ao xote nordestino seu nome e “o uso das figuras pontuadas na melodia.” (CAZES, 2010, p. 27). Contudo, o caráter predominantemente modal, o andamento mais ligeiro e uma marcação rítmica regional estabeleceram diferenças em relação à dança original europeia ou à sua versão chorada. 105 3-Sobre a notação musical A notação musical representa uma tentativa de substituir fatos auditivos por sinais visuais. É uma convenção bastante imprecisa que desenvolveu-se gradualmente por um longo período — da Idade Média ao século XIX — utilizando duas dimensões: a horizontal, que representa a ordem temporal dos eventos; e a vertical, que representa a altura, ou frequência dos sons (agudas acima e graves abaixo). A notação musical, sendo um sistema prescritivo, trabalha através de códigos no esforço de explicar como eventos sonoros devem ser reproduzidos. Esse sistema, mesmo usando aproximadamente os mesmos símbolos, foi modificando seu significado e função em razão de mudanças estilísticas na história da música. A notação não deve ser considerada um método intemporal e internacional para transcrever a música. De forma geral, até cerca de 1800 a música era notada segundo o princípio da obra, possuindo raras indicações de execução. No período barroco, as partituras raramente indicavam dinâmicas ou andamentos (estes, quando notados, em geral estavam associados ao caráter da composição8), e praticamente não traziam indicações de articulação e fraseado. No período clássico, as partituras passaram a trazer ornamentações, dinâmicas, articulações e acentuações como parte integrante da composição. A improvisação (característica da música barroca), assim, tornou-se desnecessária e não desejada na maioria das vezes, salvo em fermatas e cadenzas. Diferentemente dos períodos clássico e posteriores, no período barroco as especializações de compositor e de intérprete eram menos evidentes. Pressupunha-se um maior envolvimento do executante com o pensamento do autor da obra e uma maior liberdade no ato de sua execução — como costuma acontecer, curiosamente, em boa parte de música popular de hoje. Em uma música de caráter popular, notação e conhecimentos estilísticos costumam estar intimamente associados, como nos mostra o seguinte relato do regente austríaco Nikolaus Harnoncourt. Tomemos um exemplo que deve ser claro para todo músico atual: a música de dança vienense do século XIX, uma polca ou uma valsa de Johann Strauss. O compositor tentava integrar a notação no que na sua opinião era indispensável aos músicos de orquestra sentados diante dele, os quais sabiam exatamente o que era uma valsa ou uma polca e como deveriam ser tocadas. Entregue a uma orquestra que não possua este conhecimento, que não conheça estas danças, e cujos músicos toquem exatamente o que está na partitura, a música que disto tudo resulta é outra, totalmente diferente. Não se pode escrever esta música de dança exatamente como deve ser tocada. Frequentemente é necessário atacar uma nota um pouco antes ou depois, ou tocá-la mais longa ou mais curta do que está escrito, etc. Poder-se-ia certamente tocar esta música de maneira exata, metronomicamente exata, mas o resultado não teria absolutamente nada a ver com a obra imaginada pelo compositor. 8 Embora possam tais indicações possam ser entendidas como metáforas retóricas de andamento, o musicólogo Ross W. Duffin diz que Allegro significa “com alegria”, Adagio “de uma maneira tranqüila”, Largo “amplamente”, e Grave significa “com seriedade”. Raramente há indicações de andamentos nestes termos, com exceções para Lento, por exemplo, ou Presto, que significa “rápido”. (DUFFIN, 1995, p. 6). 106 (HARNONCOURT, 1988, p. 37). Na música popular, ao fazer parte do presente, encontram-se vários aspectos da antiga compreensão musical: “a unidade poesia-canto, unidade ouvinte-artista e a unidade música-tempo.” (ibid, p. 25). Na música popular é possível perceber mais facilmente a representação do que significava a música antigamente na vida das pessoas. Mesmo em escritas tão detalhadas, como as de certas músicas eruditas europeias do século XX, é inevitável que ocorram imprecisões em relação às expectativas do compositor. Duração das notas, mudanças graduais de andamento, indicações de dinâmica etc. são praticamente impossíveis de serem notadas com precisão. Cabe ao intérprete não perder a perspectiva de que, atrás dos limites e da inexatidão da notação musical, é possível revelar a intenção do autor, além de contextos e dinâmicas socioculturais sobre os quais se insere a sua criação. A escrita musical não pode, como tal, reviver uma obra musical, mas unicamente fornecer alguns pontos de referência para que isto aconteça. Autêntico, no puro sentido da palavra, é aquele que reconhece nas notas o pensamento do compositor e assim as reproduz. (ibid, p . 63). Assim como o estilo barroco, o jazz, o choro e outros gêneros populares têm suas músicas notadas apenas com indicações essenciais — ritmos melódicos, formas, alturas, tonalidades e sugestões de andamento (fornecidas, muitas vezes, por indicações de gênero nas peças). Detalhes de articulação, de dinâmicas e agógicas raramente são prescritos. Muitos procedimentos interpretativos dos choros encontram-se revelados em um sistema de códigos compartilhados pela tradição oral ou por gravações. Pedro Aragão, ao analisar o livro O choro, de Alexandre Gonçalves Pinto, de 1936, e outros documentos da época, concluiu que nas práticas musicais dos chorões, através da observação direta e da tradição oral, os músicos aprendiam e construíam um “vocabulário de códigos” — estes relacionados à interpretação, a conduções rítmico-harmônicas, contracantos melódicos etc. Certos instrumentistas, como violonistas e cavaquinistas, utilizavam quase que exclusivamente esse processo. Contudo, a leitura e a escrita musical eram também importantes para a transmissão do choro — muitos músicos escreviam álbuns de partituras, copiados uns pelos outros, em uma verdadeira “rede de informação”. Usadas por músicos de escola (como os flautistas9), tais partituras, com melodias e indicações de gênero somente, serviam como “suporte para a memorização da estrutura básica da música, a ser „contemplado’ por outros aspectos não escritos como „colorido’, „improvisação’ etc.” O flautista Joaquim Callado, considerado um dos pioneiros do choro, foi antecessor de Duque Estrada Meyer na cadeira de flauta do Conservatório Imperial (que se transformaria no Instituto Nacional de Música, na República), como lembra Aragão. Sucederam Callado e Meyer, os flautistas Pedro de Assis e Patápio Silva, todos eles relacionados, em maior ou menor intensidades, à prática dos choros. 9 107 (ARAGÃO, 2013, p. 164). Sem notar marcações de articulação, acentuação, ornamentação e aspectos rítmicos relacionados ao fraseado musical (normalmente aprendidos na oralidade), elas serviam como uma espécie de esboço, uma orientação para o instrumentista. A transmissão de choros através de partituras era (e continua sendo) algo que contemplava apenas alguns aspectos do fazer musical — a melodia, o gênero a que a música pertencia etc.; outros aspectos, como a condução rítmico-harmônica e os eventuais contracantos melódicos (quando não escritos) eram transmitidos através da oralidade. Podemos aqui aplicar o conceito de Nettl de que ao lado de “peças” musicais fechadas — no nosso caso “polcas”, “valsas”, “schottischs” etc. —, existe um vocabulário de unidades menores que são transmitidas e recorrentemente recombinadas. (ibid, p. 166). 4-Villa-Lobos, o choro e a Suíte Popular Brasileira A música dos chorões foi grande inspiração na obra do compositor erudito Heitor Villa-Lobos (1887–1959), que chegou a batizar de Choros uma série de 16 obras para as mais diferentes formações — considerada por muitos sua obra-prima. Villa-Lobos, que aos 6 anos iniciara-se no violoncelo sob orientação de seu pai, passou antes de sua juventude a incorporar o violão como seu instrumento. O violão abriu as portas para o ambiente das práticas musicais do choro, permitindo-lhe inicialmente tocar e compor, segundo seu biógrafo Vasco Mariz (1982:34), “valsinhas, schottishes, dobrados, polcas, enfim, música popular sem quaisquer pretensões.” O musicólogo José Maria Neves comenta que quando declarou uma vez a um jornalista francês que tinha se formado no Conservatório de Cascadura — subúrbio da zona norte carioca, onde o choro sempre predominou — talvez ele tivesse querido dizer que seu aprendizado musical se deu no meio de compositores e instrumentistas da música popular do choro. (NEVES, 1981, p. 51). Nosso maestro, em sua vasta obra, não só se inspirou nos choros populares, mas nela homenageou chorões e modinheiros, ao dedicar Choros nº 1 a Ernesto Nazareth, Conversa (ou Fuga, terceiro movimento das Bachianas nº1) a Sátiro Bilhar, e Modinha (Serestas nº 5) a Catulo da Paixão Cearense; ao arranjar Luar do Sertão e Caboca di Caxangá, do violonista João Pernambuco e Catulo, e Tu passaste por este jardim, de Alfredo Dutra e Catulo (as duas últimas para a série Canções típicas brasileiras); ao citar subliminarmente os temas das valsas Sonho de magia, de João Pernambuco, no Prelúdio nº 5, e Dores d’Alma, de Quincas Laranjeiras, em Valse-Choro, ambas para violão; e ao citar explicitamente o cantor e seresteiro Catulo da Paixão Cearense de Rasga o Coração (uma canção sobre a melodia da schottisch Yara, de Anacleto de Medeiros), na segunda metade de Choros nº 10. Sua Suíte Popular Brasileira, para violão solo, reúne cinco peças10 compostas em 10 Com a recém descoberta de Valse-Choro nos arquivos da editora francesa Max-Eschig, a Suíte pode ter a inclusão de mais uma peça. 108 diferentes períodos (supostamente, de 1906 a 1923) e lugares (Rio de Janeiro e Paris) sem o objetivo, supostamente, de pertencer a uma única obra — os dois movimentos iniciais estão entre as primeiras músicas registradas em catálogos de obras de Villa-Lobos. A suíte apresenta padrões rítmicos, melódicos, harmônicos, formais e fraseológicos das músicas dos chorões. Cada uma das peças descreve em seus próprios títulos um gênero específico das práticas musicais desses instrumentistas e compositores — Mazurka-Choro, Scottiisch-Choro, Valsa-Choro, Gavota-Choro e Chorinho —, em uma clara alusão às partituras que circulavam nesses meios, que traziam obrigatoriamente, junto aos nomes das peças, suas classificações genéricas11 — estas contribuíam na orientação do estilo interpretativo a ser utilizado a partir da notação musical. Para o violonista colombiano Octavio Augusto Grajales Hernández a melhor maneira de entender-se o significado dos movimentos da Suíte é descobrir como elas refletem as características das práticas do choro tradicional. Deve-se começar por uma análise harmônica, melódica, rítmica e formal das peças, para saber como elas se relacionam com as características gerais do choro (...). O caráter do conteúdo das peças pode ser entendido através de uma comparação com as características e funções dos vários instrumentos do conjunto de choro: a melodia no registro superior pode se equiparar à flauta, ao bandolim ou qualquer outro instrumento melódico que possa ser usado no choro; o registro médio à sonoridade do cavaquinho e o registro grave aos baixos do violão. Finalmente, a busca do significado final de todos esses recursos deveria ser orientado sob a luz do que VillaLobos expressou sobre choro12. (GRAJALES HERNÁNDEZ, 2010, p. 10). 5-A Schottisch-Choro Schottisch-Choro (manuscrita por Villa-Lobos em 1908) é o nome do segundo movimento da Suíte Popular Brasileira. Como os demais movimentos, está na forma rondó e tem o caráter de melodia acompanhada. Uma análise superficial da peça mostra diversas referências ao estilo dos chorões, visto que: a) Schottisch-Choro tem três seções de 16 compassos cada uma, dispostas na forma A–B–B–A–C–C–A, desenvolvidas em frases de quatro compassos e períodos regulares de oito compassos; Para Grajales Hernández (2010), poder-se-ia interpretar as peças da Suíte popular brasileira como melodias acompanhadas, sobre uma estrutura de padrões rítmicos das danças europeias correspondentes. Contudo, ao meu ver, tais danças devem ser entendidas nos padrões rítmicos e melódicos estabelecidos pelos chorões, um pouco diferente de como aqui chegaram da Europa — é inegável a influencia que sofreram das músicas de origem africana, espanhola e portuguesa. 12 “la manera más adecuada para entender el significado de los movimientos de la Suite, es descubrir cómo reflejan las características de la práctica tradicional del choro. Ello debe partir desde un análisis armónico, melódico, rítmico y formal de las piezas, para encontrar la relación que guardan con las características generales del choro descritas por Garcia y Santos. El carácter de los materiales se puede entender a través de una comparación con las características y las funciones de los diversos instrumentos del ensamble de choro: la melodía en el registro superior se puede equiparar a la flauta, el bandolim o cualquier otro instrumento melódico posiblemente usado en el choro; el registro medio al aporte sonoro del cavaquinho y el registro grave al bajo del violão. Por último, la búsqueda del significado final de todas esas características debería estar orientada bajo la luz de lo que Villa‐Lobos expresó acerca del choro.” 11 109 b) A está em Mi maior, B em Dó# menor (relativo de Mi maior) e C em Lá maior (subdominante de Mi maior); c) A e B têm, basicamente, melodia na região aguda (numa alusão a solos de flauta, clarinete ou bandolim, por exemplo), e fraseologia e harmonia muito próximas dos padrões dos compositores de choro contemporâneos a Villa-Lobos (ALMADA, 2006)13. A parte C, que tem melodia na região média (o que poderia ser uma sugestão de solo em oficleide), transgride harmonicamente o modelo popular, sendo a seção mais contrastante da peça (uma espécie de digressão); e d) A e B têm acompanhamentos que sugerem o desenho da figura 1 — célula rítmica do cavaquinho na schottisch brasileira14, segundo Cazes —, enquanto C tem acompanhamento, na região aguda e em semicolcheias (sugerindo sonoridade de cavaquinho), mais próximo do padrão da polca (ou do gênero choro). Grande parte das características acima mencionadas situam a peça de Villa-Lobos no âmbito do universo composicional dos chorões, evidenciando, assim, o seu caráter de música popular. Com o intuito de ser fiel a esse significado, me parece importante que compreendamos alguns aspectos interpretativos relacionados ao fraseado musical das schottisches brasileiras. A elas, por exemplo, mesmo quando escritas em sucessões de motivos melódicos ritmicamente regulares — em semicolcheias ou colcheias (como é o caso da edição para piano da composição Implorando, de Anacleto de Medeiros, a figura 5) —, podese (ou deve-se) atribuir a execução de notas pontuadas ou inégales. A figura 6 — que apresenta no primeiro sistema acordes cifrados e o padrão de acompanhamento do cavaquinho na schottisch (ilustrado anteriormente na figura 1) — sugere duas possíveis variações para o ritmo da melodia de Implorando (no segundo sistema, usando-se colcheias pontuadas, e no terceiro sistema, usando-se “colcheias swingadas”). Figura 5 — escrita original, para piano, com figuras melódicas regulares, da parte A de Implorando, 13 O músico Carlos Almada (2006), em A estrutura do choro, apresenta análises fraseológicas sobre o estilo de choros compostos até inícios do século XX. 14 Na Schottisch-choro, por ser uma peça para violão solo, esse acompanhamento confunde-se, por vezes, com a melodia. Cabe ao intérprete, com o uso de articulações e acentuações, ao meu ver, deixar clara as duas funções. 110 schottisch de Anacleto de Medeiros — fonte: acervo da Casa do Choro15 Figura 6 — possíveis variações rítmicas na melodia de um fragmento da parte A de Implorando, com cifragem de acordes e ritmo de acompanhamento do cavaquinho — fonte: acervo da Casa do Choro No caso da Schottisch-Choro, analogamente, em que Villa-Lobos optou por escrever o gênero musical em 2/4 (como mostra a figura 7), um grupo de quatro semicolcheias poderia, ser tocado como «semicolcheia pontuada–fusa, semicolcheia pontuada–fusa» (como aparece na peça Schottisch e Polka, do exemplo 2), ou como «colcheia–semicolcheia, colcheia–semicolcheia» em quiálteras. A figura 8 — que apresenta no primeiro sistema acordes cifrados e o padrão rítmico de acompanhamento do cavaquinho — sugere duas variações para o ritmo da melodia (no segundo sistema, usando-se semicolcheias pontuadas, e no terceiro sistema, usando-se, por assim dizer, “semicolcheias swingadas”). Para o compositor, essa informação, supostamente, já estaria na classificação genérica de sua peça. Figura 7 — escrita original em 2/4 de fragmento da parte A da Schottisch-Choro, para violão solo, com figuras melódicas regulares — fonte: acervo do Museu Villa-Lobos 15 O acervo de partituras da Casa do Choro pode ser acessado por http://casadochoro.com.br/acervo/Works . 111 Figura 8 — possíveis variações rítmicas na melodia de um fragmento da parte A da Schottisch-Choro, com cifragem de acordes e ritmo de acompanhamento do cavaquinho Nas práticas musicais do choro, uma vez definido o gênero schottisch, o solista tem por hábito tocar as notas ritmicamente irregulares da maneira acima descrita, mesclandoas ainda com outras variações rítmico-melódicas. Há inúmeros exemplos de gravações nas quais ouve-se tal fraseado. Notar no pentagrama todos os motivos como inégalité (ou com “notas pontuadas”), embora por vezes assim se fizesse (como é ilustrado na edição original, para piano, de Santinha, de Anacleto do Medeiros, na figura 9), pode também não traduzir integralmente o procedimento interpretativo usual dos chorões. Figura 9 — escrita original, para piano, com figuras melódicas irregulares, da parte A de Santinha, schottisch de Anacleto de Medeiros — fonte: acervo da Casa do Choro São notáveis as semelhanças fraseológicas que guardam as partes A de Implorando, de Anacleto de Medeiros (figura 5), e da Schottisch-Choro, de Villa-Lobos (figura 7). Muitas das schottisches de Anacleto — como Implorando, Santinha e Yara — tem suas primeiras partes, ao menos, em oito compassos e formadas por semifrases de dois compassos, estas reproduzidas em sequências (ou reproduções) harmônicas separadas por cortes ou cisuras — uma espécie de padrão de recorrência de estilo do autor. As partes A são obrigatoriamente repetidas no rondó das schottisches brasileiras, resultando em seções de 16 compassos. A Schottisch-Choro apresenta sua parte A (não repetida) já em 16 compassos, mas com cadencias conclusivas a cada oito compassos — preservando, de certa maneira, o mesmo sentido formal. O segundo movimento da Suíte Popular Brasileira mantém a organização de 112 semifrases das schottisches de Anacleto nos seus primeiros oito compassos. Curiosamente ainda, a schottisch de Villa-Lobos, mesmo em modo maior, tem motivos anacrústicos e contornos melódicos que lembram a schottisch Implorando, esta em Ré menor. Implorando — que ficou conhecida como a canção Palma de Martírio ao receber letra de Catulo da Paixão Cearense, este amigo de Villa-Lobos — poderia, hipoteticamente, ter sido uma das referencias usadas pelo nosso compositor erudito, que manipulou com seu estilo único os padrões fraseológicos recorrentes das conhecidas schottisches de Anacleto de Medeiros. 6-Considerações finais Um jovem violoncelista, em fins do século XIX, para integrar-se a chorões, abraçou o violão — na época, um instrumento majoritariamente aprendido na oralidade. Heitor Villa-Lobos não só frequentou esse ambiente, como também deu aí alguns dos mais importantes passos para construir uma obra exuberante. Ele chamou de Choros sua mais grandiosa série, iniciando-a justamente com um solo violonístico — que descreve de forma simples e direta procedimentos composicionais de seu homenageado, o pianista e compositor de polcas, valsas e tangos brasileiros Ernesto Nazareth. Tanto o Choros nº1 quanto a Suíte Popular Brasileira, ambas para violão solo, exibem um Villa-Lobos na “roda de choro”16 — não como um observador, mas como um chorão entre seus pares. Nas rodas de choro que frequentou não era raro o uso de partituras manuscritas pelos próprios instrumentistas participantes. Tais escritos, normalmente, traziam necessárias denominações genéricas de danças europeias, mesmo estas já apresentando indiscutíveis peculiaridades nativas. Tais indicações estabeleciam padrões de acompanhamento e estilos de fraseado — sem o conhecimento dos gêneros musicais dos chorões, e seus significados, a execução musical poderia soar inadequada. Algo sempre me intrigou em relação às interpretações mais conhecidas da Suíte Popular Brasileira. Sabemos que os pentagramas, mesmo nas mais detalhadas notações, não contêm, via de regra, todas as instruções necessárias para uma execução musical. Seja no âmbito da música erudita ou popular, devemos ter consciência que leitura musical e interpretação são coisas distintas — e que esta última deve se completar no conhecimento de peculiaridades históricas e estilísticas. A Suíte Popular Brasileira é composta de cinco movimentos, todos com indicações de gêneros, ou de subgêneros do choro. Villa-Lobos, Supõe-se que a Suíte Popular Brasileira teria sua gênese, ou seus “primeiros rabiscos”, em peças populares compostas por Villa-Lobos para serem tocadas nas rodas de choro. 16 113 mesmo tendo editado-a com uma notação musical detalhada, parece ter usado tais informações para orientar sua interpretação. Comparemos duas distintas interpretações do segundo movimento da obra. Será que na refinada e bela execução da Schottisch-Choro do violonista Julian Bream (álbum Julian Bream plays Villa-Lobos — RCA, 1971), só para citar uma entre tantas, poderíamos identificar os códigos da schottisch compartilhados entre nossos músicos populares? No vocabulário musical dos chorões era sabido que tal dança — muitas vezes escrita em ritmo melódico regular — deveria, como vimos, ter seu fraseado conduzido por figuras melódicas aproximadamente pontuadas, irregulares. Villa-Lobos não pode ter achado desnecessário notar essas figuras por julgar que a denominação schottisch já traria esse conceito? Ao ouvir a gravação do violonista Yamandú Costa, acompanhado pelo baixolão de Guto Wirtti (álbum Bailongo: Yamandú Costa & Guto Wirtti — FUNARTE, 2014), percebemos logo na anacruse inicial alguns significados contidos no título da peça, nos termos da schottisch ou do choro. Yamandú parece desenvolver um fraseado mais próximo à idealização do compositor. Villa-Lobos, ao denominar de Mazurka-Choro, Schottisch-Choro, Valsa-choro, Gavota-Choro, Chorinho as peças de sua “suíte popular”, não estaria informando-nos sobre os procedimentos interpretativos adequados a cada uma delas? Sabe-se, nas práticas do chorões, que as mazurcas apresentam figuras melódicas pontuadas, similares às schottisches, e certos cortes rítmicos no acompanhamento em 3/4; que as valsas flutuam entre rubatos agógicos e melódicos; que os “chorinhos” (ou choros ou polcas-lundus) dos tempos de VillaLobos tem na figura do tresillo «colcheia pontuada–colcheia pontuada–colcheia» a marca da acentuação na quarta semicolcheia do compasso 2/4 — essa característica costuma moldar o acompanhamento e o fraseado melódico do gênero. No momento em que o violão, no âmbito do choro, deixou de depender exclusivamente dos processos da oralidade, não seria o caso de uma releitura “histórica e estilisticamente informada” da Suíte Popular Brasileira? Referências ALMADA, Carlos. A estrutura do choro – com aplicações na improvisação e no arranjo. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2006. ARAGÃO, Pedro. O baú do Animal – Alexandre Gonçalves Pinto e o choro. Rio de Janeiro: Livraria e Edições Folha Seca, 2013. 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São Paulo: Art Editora, 1991. 115 O maxixe excomungado e o “Choros nº 1”: da periferia aos grandes mestres Maristela Rocha1 Universidade Federal de Juiz de Fora maristelarocha.rocha@gmail.com Resumo: Pretendemos ressaltar o maxixe como gênero periférico no final do século XIX e início do século XX no Brasil, com o intuito primordial de ressaltar a importância desse para a música popular, bem como sua transição para gênero da moda. Apontaremos a participação efetiva dos compositores Chiquinha Gonzaga (1847/1935), Julio Reis (1863/1933) e Ernesto Nazareth (1863/1934) para fixação do maxixe como gênero. Inserimos nessa análise a contribuição do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) que, não por acaso, dedicou o “Choros nº 1” a Ernesto Nazareth. Além dessa obra para violão, serão ainda enfatizadas as seguintes peças para piano: “Corta-Jaca” (Chiquinha Gonzaga), “Passo Miúdo” (Julio Reis) e “Dengoso” (Ernesto Nazareth) por representarem legitimamente o gênero na história da música brasileira. Palavras-chave: Maxixe. Chiquinha Gonzaga. Julio Reis. Ernesto Nazareth. Heitor Villa-Lobos. Abstract: We intend to emphasize the Maxixe as a peripheral genre in the late nineteenth and early twentieth centuries in Brazil, with the primary purpose of highlighting the importance of this for popular music, as well as its transition to fashion genre. In addition, we will point out the effective participation of composers Chiquinha Gonzaga (1847/1935), Julio Reis (1863/1933) and Ernesto Nazareth (1863/1934) for fixing the maxixe as a musical genre. We insert in this analysis the contribution of the maestro and composer Heitor Villa-Lobos (18871959) who, not coincidentally, dedicated the “Choros No. 1” to Ernesto Nazareth. In addition to this guitar piece, are also emphasized the following piano pieces: "Corta-Jaca" (Chiquinha Gonzaga), "Passo Miúdo" (Julio Reis) and "Dengoso" (Ernesto Nazareth) by legitimately represent this genre in the history of Brazilian music Keywords: Maxixe. Chiquinha Gonzaga. Julio Reis. Ernesto Nazareth. Heitor Villa-Lobos. Introdução “Nunca na minha vida procurei a sabedoria nos livros, nas doutrinas ortodoxas – o meu livro é o Brasil”. VILLA-LOBOS Para desenvolver este artigo, escolhemos o maxixe como gênero periférico no século XIX e início do século XX. Originalmente, a palavra designava o fruto comestível de uma planta rasteira, mas acabou sendo associada a tudo o que fosse de baixa categoria. Como dança popular, o maxixe veio de encontro aos cânones em voga, mas ganhou repercussão nacional e internacional, sobretudo através da compositora, maestrina e pianista Chiquinha Gonzaga (1847/1935), pioneira em vários aspectos na vida pública e privada2. 1 Doutoranda em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduada em Música Brasileira e Educação Musical pela Universidade Vale do Rio Verde, graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisadora e articulista de música brasileira com atuação também na área de educação musical durante mais de vinte anos. Jornalista com experiência em assessoria de imprensa, rádio e televisão. Como professora universitária, atua em vários cursos em universidades privadas. Experiência como coordenadora de cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Cinema e TV. 2 Primeira grande compositora brasileira, pioneira na música para carnaval de rua “Ó abre alas” (1899), no teatro musicado (em 1880, ela escreve um libreto e tenta musicá-lo, enfrentando adversidades. A estreia só acontece mesmo em 1885, com “A Corte na Roça”), na participação política (Revolta do Vintém, Abolição e Proclamação da República), primeira compositora brasileira a ter projeção em outro país (Portugal, 1908), Fundadora da Sociedade Brasileira de Direitos Autorais (SBAT, 1917). 116 Explorado por Chiquinha no teatro musicado, não há dúvida de que a compositora foi a principal responsável pela fixação do maxixe como gênero musical. Segundo a biógrafa Dalva Lazaroni, a igreja católica fazia apelos contra a dança e os ministros aproveitavam os sermões e as aulas de catecismo para alertar sobre os “perigos do maxixe”: “- O maxixe não é uma dança de família. Ao contrário, deve ser evitada pelas meninas e meninos que querem crescer sadios e sem problemas mentais para o futuro. É uma dança que perverte” (LAZARONI, 1999, p. 446). Não podemos, entretanto, deixar de apontar outros nomes que também foram relevantes para o desenvolvimento de uma música popular urbana. Para este trabalho, escolhemos os cariocas Ernesto Nazareth (1863/1934) e Heitor Villa Lobos (1887/1959), além do paulista Julio Reis (1863/1933). Não obstante, para reconhecer o maxixe como gênero marginal, demanda-se retornar à música do Oitocentos no Brasil. Se fôssemos traçar um estudo da formação musical brasileira, voltaríamos, certamente, a um período anterior a 22 de abril de 1500, entretanto, seguindo o objeto de nosso recorte temporal, aportamos no século XIX, época em que o fado era desenvolvido no país. A ópera era apreciada na corte3, assim como a modinha - canção lírica, sentimental, que mostrava letras adaptadas de árias italianas, bem como as quadras e formas melódicas portuguesas. Apreciada em Lisboa como música aristocrática, a modinha passava a ganhar popularidade no Brasil com as composições de Cândido Inácio da Silva, Padre José Maurício Nunes Garcia, Gabriel Fernandes da Trindade, dentre outros. No Segundo Reinado, as modinhas passaram a incluir letras de poetas como Castro Alves, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias. Iniciava-se a parceria na música popular; diferente do que acontecia até o fim do Primeiro Reinado, quando as modinhas e os lundus se dividiam entre os compostos por músicos de escola para edição em partituras de piano, citando os nomes dos autores, e os compostos por artistas das baixas camadas, que se espalhavam anonimamente. A dominância europeia no cenário musical incorporava-se, lentamente, à nascente música brasileira. No final do Império, a modinha, por exemplo, aumentava a sua penetração na camada popular, atingindo o domínio público, ou seja, a sociedade branca do Rio de Janeiro começava, também, a assimilar a cultura dos afrodescendentes, e o lundu aparecia como a primeira música assimilada pelos brancos: “O lundu, como o batuque ou o samba, também 3 O cerimonial do casamento de Dom Pedro I, em 1843, com Teresa Cristina (irmã de Fernando II, rei das Duas Sicílias) contou com músicos e cantores italianos. Em pouco tempo, a ópera era outra mania nacional. A ópera “Norma”, de Bellini, por exemplo, alcançou sucesso no Segundo Reinado. 117 incluía em sua coreografia uma roda de espectadores, par solista, balanço violento dos quadris e umbigada, com o acompanhamento de violas” (SODRÉ, 1998, p. 30). A cachucha, o fandango, a valsa, a quadrilha, as contradanças, o schottisch eram gêneros executados nos bailes. Em meados de 1840, acontecia o primeiro baile de máscaras, o que inaugurava um corte: de um lado, a festa de rua, popular, ao ar livre; de outro, o carnaval de salão, do agrado da classe média emergente, com entrada paga. Posteriormente, dos salões, os bailes transferiram-se para os teatros, animados pela polca, a quadrilha, a valsa, o cake walk, o charleston e o maxixe, executados por instrumentos (só em 1880 os bailes passavam a incluir coros). Surgiam também os blocos, cordões e ranchos com influência dos rituais religiosos e das festas africanas, legando, inclusive, o hábito de se fantasiar no carnaval. Nesse panorama rico de gêneros e influências4, o maxixe “espúrio, indecente, dança da ralé, resistia e triunfava – era a „coqueluche’ da cidade” (EFEGÊ, 1974, p. 16). Além da repercussão nacional, o maxixe foi um dos primeiros ritmos brasileiros a alcançar sucesso na Europa, em especial pelo trabalho dos dançarinos Gaby e Antonio Lopes de Almeida Dinis, o “Duque”. Apesar de representar um gênero de resistência, podemos afirmar que o mesmo vigorou até as primeiras décadas do século XX no Brasil, influenciando compositores a posteriori, como Heitor Villa-Lobos. Outra referência daquele tempo era “O Choro do Callado”5, constituído de um instrumento solista, dois violões, um cavaquinho e caracterizado pela improvisação dos músicos, característica inerente ao estilo. Os grupos de choro, em geral, animavam festas e bailes populares, principalmente antes do advento do disco no Brasil. Segundo Paulo Renato Guérios, não é possível constatar, realmente, quando Villa-Lobos começou a conviver com os chorões e qual a duração ou a qualidade de seu contato com eles. “Vale recordar, no entanto, que ele ocupava a mesma posição socioeconômica, frequentava os mesmos lugares e trabalhava também como músico na mesma cidade. Certamente, essa convivência teve impacto em sua formação” (GUÉRIOS, 2003, p. 58-9). E foi o contato com a musicalidade do choro que inspirou Villa-Lobos, na criação de uma das mais importantes séries de toda a sua obra: os quatorze “Choros”6, compostos entre 1920 e 1929, conforme abordaremos adiante. 1-A música periférica: o excomungado maxixe 4 Alguns gêneros também foram misturando seus elementos musicais, como ocorreu com a polca-choro e o tango brasileiro (diferente do tango argentino, que misturava a habanera com a polca). 5 Referência ao flautista e compositor carioca Joaquim Antônio da Silva Callado (1848/1880). 6 Composto por Villa-Lobos para as mais diversas formações camerísticas e sinfônicas. Constam dedicatórias a importantes artistas, além de Ernesto Nazareth, como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Arthur Rubinstein e Tomás Terán. 118 O maxixe partia, pois, da periferia para a moda no século XIX. Inicialmente, desencadeou uma repercussão negativa porque “o maxixe acionado pela síncopa e pelo dengo do lundu, sintetizava e amplificava os elementos voluptuosos de outras danças, numa coreografia contagiante de par unido” (SODRÉ, 1998, p. 32). Uma dança cuja coreografia implicava em corpos enroscados como “parafusos” rodopiando. Inserido em uma sociedade colonialista, patriarcal, escravocrata e com predominância de domínios rurais, apontando para espaços urbanos dominados pela influência cultural estrangeira (sobretudo na corte), só poderia mesmo gerar perturbação da ordem. O maxixe tinha um status de dança excomungada, mas, gradativamente, passava a protagonizar um processo de metamorfose, se afrancesando e se “civilizando” à medida que era aceito nos salões da burguesia francesa. A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas... (GOFFMAN e JOY, 2007, p. 9). Ironicamente, o gênero excomungado tornava-se internacional, mas uma exigência ainda vigorava: “O verdadeiro maxixe, o autêntico, tinha que ser isento de chiquismo, fiel à sua origem plebeia, no descompromisso com a elegância do trajar e com os cânones de moral” (EFEGÊ, 1902, p. 62). O primeiro sucesso brasileiro no exterior foi o maxixe “Dengoso”, de Ernesto Nazareth (que não pretendia ser conhecido como um compositor de músicas periféricas), publicado em 1907 pela Casa Vieira Machado. Trata-se do único maxixe na obra do compositor, e não por acaso foi assinado sob um pseudônimo: Renaud. Tornou-se o grande exemplo do maxixe, sendo dançado nos salões da década de 1910. Recebeu desde então pelo menos 90 gravações (inclusive por famosas orquestras americanas), inúmeras reedições, letra em inglês (sob o título de Boogie Woogie Maxixe), e até mesmo algumas paródias. Em algumas edições aparece com o subtítulo de "Parisian Maxixe".7 A única edição histórica brasileira conhecida é a de 1907, e houve três gravações: pela Banda da Casa Edison, em 1907 (78-RPM Odeon 40.461), pela Banda da Casa Faulhaber & Co., em 1911 (78-RPM Favorite Record 1-452.175), e pela Banda Columbia, em 1912 (Columbia Record 12.041)8. O maxixe foi apresentado na capital francesa várias vezes, a partir de 1889, quando foi interpretado por Plácida dos Santos. Derminy e Paule Morly o dançaram no 7 8 ERNESTO NAZARETH – 150 anos http://ernestonazareth150anos.com.br/works/view/52 Ainda segundo informações do site Ernesto Nazareth - 150 anos. 119 Alcazar d'Été, em 1905, e Rieuse e Nichette dançaram o 'maxix' no Teatro Marigny, na Champs Elysées9. Responsáveis, pioneiramente, pela divulgação do gênero, o dançarino baiano Antônio Lopes de Amorim Diniz, autonomeado “Duque”, e sua parceira Maria Lina se apresentaram em Paris, Londres e Berlim entre 1911 e 1912. Vários compositores populares americanos e europeus passaram a publicar peças intituladas maxixes (ou mattchiches) e, à medida que o gênero ganhava repercussão, releituras eram desenvolvidas, embora também causassem polêmicas, como a protagonizada pelo jornalista brasileiro Fernando Mendes de Almeida Júnior (...) é de uma lascívia extrema, e é preciso, para que seja agradável de se ver dançar ou de ser dançada, que todas as suas figuras sejam executadas segundo regras criadas, por assim dizer, pelos gostos, estado de espírito dos pares e cadência da música). Sair disso é lamentável e torna-se então pior que amoral e imoral, torna-se ridículo, grotesco, insuportável (apud EFEGÊ, 1902, p. 57). O maxixe pode ser considerado, então, uma das primeiras danças genuinamente brasileiras, representando uma fusão da polca e do lundu. Pode-se, ainda, apontar uma padronização da síncopa no acompanhamento dos gêneros de dança, durante o século XIX, lembrando que a síncopa brasileira não segue fielmente a quadratura rítmica europeia, que define a forma dos gêneros predominantes como a polca, a mazurca, o schottish. Isso porque os gêneros foram se misturando. Acreditava-se também que a habanera teria influenciado diretamente o maxixe: “Foi da fusão da habanera, pela rítmica, e da polca, pelo andamento, com adaptação da síncopa afro-lusitana, que originou-se o maxixe” (ANDRADE apud MACHADO, 2007, p. 118). Entretanto, diante da dificuldade de classificar, satisfatoriamente, esses gêneros e seus desdobramentos (polca-tango, polca-lundu, tango-habanera, dentre outros), ressaltamos a colocação de Mozart de Araújo. Derivados do mesmo tronco – do tango espanhol, da habanera, da polca e do lundu – não é difícil observar que a dosagem de tango e habanera é bem maior no tango brasileiro do que no maxixe. Neste, em escala inversa e decrescente, a dosagem preponderante é de lundu, polca, habanera e tango (ARAÚJO apud MACHADO, 2007, p. 120). No que se refere aos compositores escolhidos para este trabalho, ressaltamos que Chiquinha Gonzaga, Julio Reis e Ernesto Nazareth apresentam aspectos que os aproximam profissionalmente: desenvolveram, como intérpretes e compositores, música erudita, popular e seus entrelaçamentos; foram considerados pianeiros10; contribuíram para a fixação do maxi9 http://ernestonazareth150anos.com.br/works/view/52 Termo usado originalmente pelo compositor Brasílio Itiberê para descrever os músicos que se apresentavam, ao piano, na sala de espera dos cinemas. 10 120 xe como gênero e deixaram um legado que os perpetuam na história da música brasileira. Há, pois, algumas características em comum com Heitor Villa-Lobos, conforme trataremos adiante. 2-Chiquinha Gonzaga: a pianeira, a pioneira, a maxixeira Cento e dezessete anos após o lançamento de “Ó abre alas”, primeira canção carnavalesca brasileira, não podemos dizer que a compositora, maestrina e pianista Chiquinha Gonzaga (1847/1935) tenha o merecido reconhecimento por parte do grande público no Brasil. Sensível aos acontecimentos do seu tempo, e com atitudes vanguardistas para a sociedade carioca do final do século XIX e início do século seguinte, Chiquinha tornava-se uma das pioneiras na atuação, como mulher e artista, em causas culturais, políticas e sociais. Dos saraus da corte à roda de bambas (do lundu, batuque e outras manifestações de origem africana), ela conseguia transpor a barreira imposta, naquele tempo, entre a música erudita e a música popular (levando em consideração, obviamente, as influências e os elementos musicais em comum), compondo gêneros variados. Não obstante, era escandaloso para aquele contexto social o fato de uma mulher romper os laços familiares e inserir-se na sociedade como uma compositora. Francisca Edwiges, posteriormente conhecida como Francisca e Chiquinha Gonzaga, ansiava por seguir a vanguarda musical e buscava a profissionalização no tempo-espaço de sua trajetória. A partir do sucesso da polca “Atraente”, em 1877, ela traçava novos desafios, e essa ambição desencadeava um trabalho incessante e o lançamento, em seguida, de obras como as valsas “Desalento e Harmonias do coração”, a polca “Não insistas, rapariga!” e o tango “Sedutor”11. Outra barreira rompida pela transgressora Chiquinha Gonzaga pode ser registrada pela repercussão do seu tango “Corta-Jaca” no Catete, executado pela então primeira dama. Durante uma recepção oferecida ao corpo diplomático no Palácio do Catete, onde deveria prevalecer, como habitualmente, a música erudita, Nair de Teffé, esposa do Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, interpretou a música “Corta-Jaca” ao violão (considerado instrumento periférico, sobretudo para execução feminina). Além de expressar o gosto musical, Nair teve, também, o intuito contestador a favor do maxixe, devido à repercussão negativa do gênero na sociedade. O fato suscitou registro de protesto do senador Rui Barbosa no diário do Congresso Nacional: (...) Mas o Corta-Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selva11 Essa última em resposta à polca “Sedutora”, composta para ela por Joaquim Callado. 121 gens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o Corta-Jaca é executado com todas as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria? (BARBOSA apud DINIZ, 1991, p 205). “Gaúcho” foi originalmente representado na cena final da opereta burlesca de costumes nacionais “Zizinha Maxixe”, libreto de José Machado Pinheiro e Costa, no Teatro Éden Lavradio, em agosto de 1895. O ator Machado Careca (José Machado Pinheiro e Costa), autor anônimo da peça, ajudou a popularizá-la, ao colocar versos no “Corta-jaca”. Analisando a partitura, podemos indicar que a peça apresenta 44 compassos e tonalidade de Ré menor. A obra é dividida em três partes: duas seções e uma repetição. A primeira seção é caracterizada pela repetição da ideia introdutória, em que o ritmo do tango brasileiro, na mão esquerda, é salientado pelo acompanhamento dos acordes, na segunda inversão, em Ré menor. A indicação de “Batuque” faz, provavelmente, uma alusão à dança originada do candomblé africano, desenvolvido no período colonial e difundido por várias cidades brasileiras, em especial no norte e nordeste. Pode-se apontar, ainda, uma indicação de toque mais percutido, de performance mais “gingada” na interpretação pianística, característica dos “pianeiros”. No quinto compasso, a autora apresenta, com a indicação “Canto”, a primeira melodia – em quatro compassos obedecendo basicamente à mesma estrutura rítmica do acompanhamento. O tango brasileiro, muito encontrado em peças daquele tempo, aparece, do ponto de vista rítmico, como uma variação do maxixe; às vezes, o termo era utilizado para que as partituras tivessem uma maior aceitação por parte do público. Como o maxixe alcançou repercussão internacional, chegou a causar indignação do clero. Dalva Lazaroni registra que a 122 igreja romana publicou uma bula papal, condenando o maxixe ao inferno e amaldiçoando seus criadores: “Demônio, capeta, maxixe, mulher diabo, eram palavras que, quando ditas, vinham acompanhadas de sinais da cruz (...) De todas essas manifestações do clero, depois de longos debates, chegou-se a uma conclusão: o maxixe era maldito, devia ser excomungado” (LAZARONI, 1999, p. 452)12. Os comentários maledicentes aumentavam na mesma proporção do sucesso da compositora que passava, também, a ser chamada de “Chica Polca”, em um nítido percurso decadente para os cânones em voga. Entretanto, com a burleta de costumes cariocas em 3 atos, “Forrobodó”13 (1912), e seus tipos populares e caricaturados, além do sensual maxixe, Chiquinha se firmava, com sucesso, no teatro de revista. A compositora compôs gêneros diversos e legou cerca de 2000 composições. 3-Julio Reis: da luta na contramão da história aos encantos de “Passo Miúdo” Foram necessários 150 anos para que a obra do compositor paulista Julio Reis fosse rememorada no Brasil, com o lançamento do CD homônimo, de João Bittencourt, e o romance O Inventário de Julio Reis, de Fernando Molica. O compositor nos legou 200 peças, muitas delas arquivadas na Biblioteca Nacional. Segundo Bittencourt, Júlio Reis foi um dos compositores nacionais que mais tiveram obras “no período áureo das casas de pianos e partituras” (BITTENCOURT, 2012)14. As facilidades implicavam, proporcionalmente, no aumento da concorrência: havia mais profissionais no mercado e poucas opções, como lecionar, tocar nos cafés, teatros e participar de espetáculos. Julio Reis não pretendia ser um “pianeiro”. Pressionado, entretanto, pelas exigências do mercado, tornou-se autor de valsas, polcas, mazurcas, habaneras, quadrilhas, schottischs e tangos brasileiros. Apesar das dificuldades financeiras, Julio Reis tentava manter-se no mercado musical do Rio de Janeiro (o compositor nascido em São Paulo, mudou-se, posteriormente, para a capital federal). Crítico de gêneros mais populares, Julio Reis participava de matinês, de concertos gratuitos, aspirando ao público de grandes concertos. Mesmo compondo gêneros mais contemporâneos, Julio Reis deixava claro seu “desprezo pela música fácil, que falava aos instintos mais baixos, os sambas, os maxixes, os batuques” (MOLICA, 2012, p. 22). 12 A mulher a que se refere a citação é a própria Chiquinha Gonzaga. Burleta de costumes cariocas em 3 atos, de Carlos Bettencourt (1890-1941) e Luiz Peixoto (1889-1973), com música original de Francisca Gonzaga. 14 Disponível no encarte do CD Julio Reis. 13 123 Esse sentimento vigorava no espaço-tempo do Brasil, sobretudo até as primeiras décadas do século XX. A fase áurea dos conjuntos de música de choro, por exemplo, se estende até ao período em que a atração do Teatro de Revistas, do disco e do rádio vieram oferecer novas opções de entretenimento, numa linguagem mais atraente para o público, sempre ávido de inovações. Inovações essas que aborreciam, profundamente, Julio Reis. Julio Reis começou a compor aos 13 anos e suas primeiras músicas foram peças religiosas, uma Ave-Maria e uma Marcha triunfal que foi executada em Roma, nas comemorações do jubileu do Papa Leão XIII: “padre Taddei exultara ao saber da notícia. Mas era pouco, não poderia apresentar-me ao Rio de Janeiro, à Capital Federal, apenas como autor de meia dúzia de carolices” (MOLICA, 2012, p. 14). Além de servidor público, tentava sempre aprofundar os estudos musicais, lecionava piano, escrevia para impressos do seu tempo e gostava também de frequentar a boemia (MOLICA, 2012). Julio Reis tornava-se também um severo crítico musical, com publicações em A Notícia, A Cigarra, O Combate, A Folha, Revista Rio Musical, que resultaram nas coletâneas À margem da música, 1918, e Música de Pancadaria, 1920. Como explicar, então, o sucesso de composições de Julio Reis como “Passo Miúdo?” Impossível lutar contra os gêneros da moda. Julio Reis rendia-se ao uso de títulos como estratégias de venda, como seu tango “Cafajeste”, e passava a compor os gêneros mais atrativos para incrementar as aulas de piano e vender partituras. “Passo Miúdo” tornava-se um dos seus maiores sucessos. “E é como polca que a Casa E. Bevilacqua lança em 1913 o alegre maxixe Passo Miúdo. Porém, o título escolhido para a composição entrega a dança de pequenos passos engraçados e sensuais rodopios, o novo minueto dos salões” (BITTENCOURT, 2012). “Passo Miúdo”, intitulado “Polka”, apresenta-se em 66 compassos, em compasso binário, movimento allegreto - “saltitante”, com polirritmia e tonalidade Sol maior, predominantemente. São quatro seções nas tonalidades Sol maior, Mi menor, Sol maior e Dó maior, demonstrando a intenção do compositor de apresentar uma peça mais elaborada, utilizando recursos de variação de tonalidade. 124 Julio Reis demonstra em várias das suas composições o interesse e a admiração pela música de concerto que tanto almejava. Isso fazia com que se tornasse um “excelente autodidata, capaz de aprender técnicas orquestrais tanto através de manuais franceses, quanto pelo estudo de partituras e interpretações das orquestras que se apresentavam no Rio de Janeiro” (BITTENCOURT, 2012). “Valse-Sérénade”, “Lied”, “Serenata de Pierrot”, “IdyllioValsa”, “Meu Sonho, Lágrimas e Preces”15, Vigília d’armas16, bem como as óperas Heliophar e Sóror Mariana17 representam bem essa vertente do compositor. 4-Rei do Tango Brasileiro: a contribuição de Nazareth ao gênero maxixe Reconhecido como um dos maiores compositores brasileiros, Ernesto Júlio de Nazareth compôs valsas, polcas, hinos, marchas e fixou o gênero tango, tornando-se o “Rei do Tango Brasileiro”. Suas peças musicais integravam o repertório de grupos de choro e de bandas, despertando, posteriormente, a atenção de músicos de uma vertente considerada erudita como Francisco Braga (1868/1945) e Henrique Oswald (1852/1931). Nazareth, assim como Chiquinha Gonzaga, Julio Reis e Villa-Lobos, desenvolveu suas composições em um “caldeirão efervescente” de gêneros musicais. Há, pois, proximidade entre o maxixe e o tango brasileiro? Encontramos a resposta na obra de Cacá Machado. O autor explica que, embora tenham certa equivalência e reversibilidade (a síncopa e a forma ABACA aparecem nos dois gêneros), suas representações socioculturais são opostas. O primeiro (maxixe) está associado à cultura periférica da Cidade Nova, tocado, dançado e ouvido pelos pobres; o segundo (o tango brasileiro) terá passaporte livre para transitar pela elite fluminense da belle époque – na sala de espera dos cinemas, nas operetas ou nos saraus particulares, mas no espaço público destinado aos concertos sua entrada será mais problemática (MACHADO, 2007, p.115). Assim como criticava os “pianeiros”, o poeta, escritor, crítico literário, musicólogo, folclorista e ensaísta Mário de Andrade também não poupava o maxixe, afirmando que: “Como toda produção folclórica do mundo, ele tem doenças hereditárias temíveis. A principal 15 Em 1892 houve grande comoção nacional com o naufrágio do couraçado Solimões, navio de guerra brasileiro, na costa do Uruguai, ocasionando a morte de 125 dos 130 tripulantes. Julio Reis participava do movimento em prol das famílias enlutadas dedicando “à Armanda Nacional” a composição “Lágrimas e Preces”, editada naquele mesmo ano pela Casa Buschmann e Guimarães, e cedendo a renda dos seus primeiros 200 exemplares. 16 Sinfonia que integrava o conjunto “Poemas do luar”, “Vigília d’armas” estreava em 1915 no teatro Lyrico. Em entrevista ao jornal Gazeta de Notícias, Julio Reis relacionava a escolha da peça com a guerra que, desde o ano anterior, se desenrolava na Europa (MOLICA, 2012, p.47). A obra conquistou boa receptividade por parte do público e da imprensa. 17 As montagens de Sóror Mariana e de Heliophar tornaram-se um verdadeiro drama na vida de Julio Reis, que não conseguia recursos para a montagem e apresentação das mesmas, segundo emenda ao orçamento do Ministério da Justiça e Negócios Interiores para 1921. Após muitas tentativas burocráticas, o amigo Jeronymo Monteiro faria nova tentativa, apresentando ao Senado uma emenda para o orçamento de 1925, que abria um crédito para o pagamento devido desde 1921. A iniciativa acaba derrubada pela Comissão de Orçamento. Frederico, o filho, também continuaria, em vão, essa luta em prol do pai (MOLICA, 2012). 125 de todas é a banalidade. Uma ausência de originalidade melódica, digo mais, de caracterização melódica, fundamental” (ANDRADE apud EFEGÊ, 1974, p. 42). E aponta, defensivamente, a contribuição do autor de “Brejeiro”, “Ameno Resedá”, “Odeon”, dentre tantos outros tangos: “Porém a culpa não é de Nazareth, mas uma circunstância urbana do maxixe. Os méritos do compositor continuam os mesmos”. E prossegue: Se, analisando, com olhos de ver, a torrente de maxixes impressos com que o Rio mascara o Brasil musical (o Rio primeiro, São Paulo na onda), a gente é quase levada à constatação penosa de que a originalidade do maxixe consiste apenas no jeitinho. No jeitinho de tocar e de cantar (...) (ANDRADE apud EFEGÊ, 1974, p. 43). Ressaltando a conotação preconceituosa empregada ao maxixe, Jacques Boulenger explica que: “O maxixe é também uma dança urbana que no seu país de origem é dançada nas espeluncas, clubes de baixa categoria, cabarés e centros de diversões noturnas”. E faz ainda uma comparação entre Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth: “Chiquinha Gonzaga fez e promoveu maxixe. Nazareth, não!!! Se alguém dançou o “Brejeiro” como maxixe, Nazareth não tem nada a ver com isso (...)” (BOULENGER apud EFEGÊ, 1974, p. 47). Na mesma obra de Efegê, encontramos o relato de João Chagas: “No Carnaval, porém, o machiche agrava-se e atinge proporções epiléticas (...)” (CHAGAS apud EFEGÊ, 1974, p. 51). “Dengoso” possui 59 compassos. A obra é dividida em três partes, com seções em Sib maior; Fá maior; Sib maior; Trio em Mib maior. Obra de simplicidade técnica, embora o compositor explore as variações de tonalidade, dentre o vasto repertório Nazaretiano, o maxixe é bem trabalhado no movimento cromático indeciso da mão direita nos três primeiros compassos da seção 1. Assim como a maioria das peças características do repertório de Ernesto Nazareth, “Dengoso” apresenta três características frequentes: o acompanhamento, a forma rondó ABACABA e a mudança suave entre as seções, ora ritmadas ou melódicas; ora densas ou rarefeitas. Ernesto Nazareth adentrou o século XX compondo peças nos ritmos da moda, como foxtrots, sambas e marchas carnavalescas. Em 1934, falecia o “Rei do Tango”, deixando o legado de 212 peças, em gêneros variados como a valsa. 126 5-Choro para Nazareth. Villa-Lobos e a música urbana. Considerado, ainda em vida, o maior compositor das Américas, Heitor VillaLobos (1887/1959) compôs cerca de 1.000 obras, e foi o compositor brasileiro a alcançar maior reconhecimento internacional na primeira metade do século XX. Apontamos a dificuldade em trazer para este trabalho informações sucintas, atendendo à proposta que nos exige empenho em abordar, de forma simples e resumida, conteúdo tão profícuo. Por outro lado, não poderíamos perder a oportunidade de apontar uma das contribuições de Heitor VillaLobos para o desenvolvimento da música urbana brasileira. Os “Choros” de Villa-Lobos, em especial o primeiro da série, aposta no choro como gênero ou modalidade popular, entretanto, quem atentar para a apreciação da série, “(...) irá se surpreender encontrando uma música extremamente moderna e que elabora materiais folclóricos diversos”, explica José D’Assunção Barros. Ainda segundo o autor, “encontraremos também materiais ameríndios, rurais, regionais de diversas partes do Brasil” (BARROS, s.d., pág. 100). Escolhemos, pois, para este trabalho, o “Choros nº 1”, composto em 1920, dedicado, não por acaso, ao compositor Ernesto Nazareth. O mais importante ciclo de obras do compositor (apesar de menos popular do que as "Bachianas Brasileiras") é o ciclo dos "Choros", para as mais diversas formações (desde o violão e o piano, passando por grupos camerísticos e chegando a grandes massas sinfônicas) e com inspiração direta na música urbana do Rio de Janeiro da virada do século. O "Choros Nº 1", para violão, composto em 192018, dedicado a Ernesto Nazareth, é, como estética, o mais tradicional do ciclo (MUSEU VILLALOBOS). No Choros nº1, Villa-Lobos utiliza a forma Rondó, ABACA, com repetição da célula característica sincopada, e apresenta-se em Mi menor, a segunda parte em Dó maior e a 18 Há varias discussões entre musicólogos sobre a data de publicação da obra. Mais informações podem ser encontradas na obra Heitor Villa-lobos e o Violão (Rio de Janeiro: ABM, 2009). 127 terceira em Mi maior. A baixaria tem papel fundamental na peça, evidenciando respostas aos temas – a peça, por sinal, sugere a exploração de perguntas e respostas, num diálogo em toda a obra. Permite-se trabalhar a rica dinâmica musical e, além disso, explora a “variedade de interesse pelas diferentes regiões do violão” (GOMES, 2010, p. 676) Cada uma das três partes de “Choros No. 1” é facilmente divisível em duas metades, fazendo como que a sessão soe como uma pequena peça autônoma. A parte A, por exemplo, é dividida em dois períodos de dezesseis compassos, sendo que o segundo período (compassos 17 a 32) se inicia com a repetição integral dos compassos 1 a 8. Nos compassos 25 e 26 ocorre uma contração do conteúdo dos compassos 9 a 12, utilizando ritmicamente o primeiro tempo de cada motivo (uma sincopa) e preservando a mesma sequência de acordes, com metade de sua duração original. Os compassos finais (27 a 32) têm caráter evidentemente finalizador, enfatizando primeiramente a região da dominante, e posteriormente a tônica. Procedimentos semelhantes ocorrem na parte B (compassos 33 a 56), enquanto a parte C (compassos 57 a 73) é executada de maneira idêntica nas duas repetições (GOMES, 2010, p. 676). Além das síncopas e dos contratempos em figurações simples, das melodias bem delineadas, ressaltamos, pois, as características que dão especificidade à obra: “... linha melódica límpida e bem definida, com predominância de graus conjuntos e saltos de quarta e terça; uso de marchas harmônicas para desenvolvimentos temáticos” (CARVALHO apud AMORIM, 2009, p. 104). Inserido no legado villalobiano, que confere respeitabilidade ao violão, o “Choros nº 1” se posiciona entre obras de repertório mundial, inclusive como peça de confronto em importantes festivais. Considerações finais Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Heitor Villa-Lobos vêm sendo contemplados com inúmeros estudos, publicações e gravações, ao contrário do compositor Julio Reis, que há pouco tempo foi rememorado para o grande público, através do trabalho do jornalista Fernando Molica e do pianista João Bittencourt. Justamente por isso, tivemos como proposta contribuir para o reconhecimento do seu legado para a música brasileira. A memória de Julio Reis só chega até nós no século XXI, sobretudo por documentos, partituras, manuscritos deixados para o seu filho primogênito, Frederico. O maxixe, como dança urbana, estendeu-se dos forrós e cabarés aos clubes carnavalescos e palcos do teatro de revista, ficando também conhecido como saca-rolha, parafuso, carrapeta. De gênero marginal da Cidade Nova, local de concentração popular desfavorecida economicamente no Rio de Janeiro, no século XIX, passava a fazer parte da moda, apontando uma “articulação” entre as culturas periférica e dominante. Ainda em meados do século XX, o violão era considerado um instrumento periférico (como o maxixe); entretanto, Villa-Lobos 128 compôs várias obras para o instrumento, deixando um legado para o repertório de violão considerado erudito. A dedicatória do “Choros nº 1” a Ernesto Nazareth, nos motivou, ainda mais, a inserir Villa-Lobos nesta análise, junto a compositores responsáveis pela fixação do maxixe. Naquele período rico em influências, estilos e gêneros, destacamos o entrelaçamento, bem como o desdobramento dos mesmos, originando o choro, por exemplo. O escândalo do “Corta-Jaca” no Catete (pelas mãos da Nair de Teffé), também nos remete simbolicamente a Chiquinha Gonzaga e Villa-Lobos (referimo-nos, especificamente, ao violão como instrumento marginal que partia da periferia para a moda). Quanto à análise estrutural realizada no trabalho, não apresentada como proposta central, é possível perceber a proximidade entre as obras analisadas, ambas classificadas como peças características, e, sobretudo, como representantes pontuais de uma etapa histórica da música brasileira, apontando a diferença entre o maxixe e outros gêneros, através da exposição das suas células rítmicas presentes nas partituras; elementos esses também encontrados no “Choros nº 1”. Pudemos, sobretudo, demonstrar como um gênero periférico - marginal, rico em elementos expressivos, comunicativos e corporais, excomungado, desenvolvido em uma sociedade patriarcal, colonizada, escravista, marcada pela dominação estrangeira nos mais variados aspectos (do religioso e econômico ao cultural) - torna-se rico em possibilidades que extrapolam os cânones em voga, partindo da periferia para o alcance de massa. Referências ALMEIDA, L. A. de. Ernesto Nazareth - Vida e Obra. Disponível http://ernestonazareth150anos.com.br/Chapters. Acessos entre 23 e 26.08.2016. em AMORIM, Humberto. Heitor Villa-Lobos e o Violão. Rio de Janeiro: ABM, 2009. BARROS, José D’Assunção. Villa-Lobos: os Choros como retrato musical do Brasil (19201929). Disponível em file:///C:/Users/silvi/Downloads/11300-38463-1-PB%20(1).pdf Acesso em 13.10.2016. DINIZ, E. Chiquinha Gonzaga uma história de vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. EFEGÊ, J. Maxixe, a dança excomungada. Coleção Temas Brasileiros. Rio de Janeiro: Companhia Gráfica Lux, 1974. GOFFMAN, K.e JOY, D. Contracultura através dos tempos. Do Mito de Prometeu à Cultura Digital. Trad. Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 129 GOMES, Vinícius José Spedaletti. Helio Delmiro, Villa Lobos e o Choro: Uma Análise Comparativa entre “Chama” e “Choros nº1”. I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO Rio de Janeiro, 8 a 10 de novembro de 2010. págs. 673-682. GONZAGA, Chiquinha. Gaúcho. O Corta-Jaca de CÁ E LÁ. Partitura. Piano. Disponível em http://www.chiquinhagonzaga.com/acervo/partituras/gaucho_ca-e-la_piano.pdf. Acesso em 14.08.2016. LAZARONI, D. Chiquinha Gonzaga. Sofri e chorei. Tive muito amor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. MACHADO, C. O enigma do homem célebre. Ambição e vocação de Ernesto Nazareth. São Paulo: IMS, 2007. MOLICA, F. O inventário de Julio Reis. São Paulo: Record, 2012. MORAES, J. G. V. de; SALIBA, E. T.(org). História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010. MUSEU VILLA-LOBOS. http://museuvillalobos.org.br/villalob/musica/choro_n1.htm Acesso em 10.09.2016. NAZARETH, Ernesto. ERNESTO NAZARETH 150 anos. Disponível http://ernestonazareth150anos.com.br/chapters/index/15 Acessos entre 18 e 20.08.2016. em NAZARETH, Ernesto. Dengoso. 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Disponível https://musopen.org/pt/sheetmusic/15498/heitor-villa-lobos/choros-no1-w161/ Acesso 10.09.2016 em em 130 A música brasileira em torno da Feira Mundial de Nova York (1939-1940): Villa-Lobos e o pan-americanismo musical Pedro Belchior1 Museu Villa-Lobos/UFF belchior2005@gmail.com Resumo: O artigo discute o programa musical da representação brasileira na Feira Mundial de Nova York (1939-1940), no âmbito da Política de Boa Vizinhança, idealizada e coordenada pelo governo dos EUA. As apresentações musicais no pavilhão do Brasil deram amplo destaque para a obra de Heitor Villa-Lobos, mas também privilegiaram outros compositores, divididos em três classificações: música sinfônica, música popular e canções folclóricas. São analisadas as cartas trocadas entre Villa-Lobos e Armando Vidal, comissário geral do Brasil na Feira, e de personalidades envolvidas com a chamada “cultura do pan-americanismo” (HESS, 2013). Lanço mão, também, de artigos do New York Times sobre o compositor, disponíveis no acervo do Museu VillaLobos, a fim de examinar a recepção crítica do compositor nos EUA e as representações construídas sobre o caráter da música brasileira. Palavras-chave: Política de Boa Vizinhança. Pan-americanismo musical. Feira Mundial de Nova York (19391940). New York Times. Diplomacia cultural. Brazilian music around the New York World's Fair (1939-1940): Villa-Lobos and the musical pan-americanism Abstract: This article discusses the music program of the Brazilian representation at the New York World’s Fair (1939-1940), under the Good Neighbor Policy, designed and coordinated by the U.S. government. Musical performances in Brazil pavilion gave ample emphasis on the work of Heitor Villa-Lobos, but also favored other composers, divided into three classifications: symphonic music, popular music and folk songs. This study will analyze the letters between Villa-Lobos and Armando Vidal (general supervisor of Brazil’s commission at the Fair) and personalities involved in the so-called "Pan-American culture" (HESS, 2013). I also analyze articles in the New York Times, available at the Villa-Lobos Museum, in order to discuss the critical reception of the composer in the U.S. and its representations on the character of Brazilian music. Keywords: Good Neighbor Policy. Musical Panamericanism. New York World’s Fair (1939-1940). New York Times. Cultural diplomacy. Introdução Este artigo é parte de minha pesquisa de doutorado, em andamento, cujo tema central é os caminhos e descaminhos históricos da construção da ideia de uma linguagem musical brasileira a partir de aspectos da trajetória e da obra de Heitor Villa-Lobos (18871959), com enfoque em sua participação nas discussões sobre o pan-americanismo musical e em sua carreira nos EUA, entre as décadas de 1930 e 1950. Ao longo da década de 1930, o compositor construiu redes de sociabilidade que lhe permitiram acessar mercados e públicos musicais na superpotência. A relação entre Villa-Lobos e os EUA oferece um privilegiado caminho para uma história social da música brasileira em meados do século XX. 1 Pesquisador do Museu Villa-Lobos (Instituto Brasileiro de Museus), doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em História pela UFF e bacharel em História pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). É coautor do livro Nova fase da lua: escultores populares de Pernambuco (Recife: Caleidoscópio, 2012). 131 O principal objetivo da tese é discutir de que modo a música serviu à propaganda oficial e à diplomacia ao longo da trajetória de Villa-Lobos. Nesse sentido, a pesquisa desdobra-se em duas frentes. A primeira busca responder de que modo as memórias de e sobre Villa-Lobos, construídas ao longo de décadas, ajudaram a constituir uma relação direta e unívoca entre sua obra – considerada o “retrato sonoro” do Brasil – e a nação. O processo de construção de memórias consolidou uma narrativa hegemônica sobre Villa-Lobos que, de tão ecoada, passou a constituir boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre o tema. A segunda frente busca responder se e como Villa-Lobos teria se tornado uma espécie de diplomata musical brasileiro, e como essa atividade diplomática tangenciou interesses do Estado (em especial o Itamaraty) e da república musical brasileira (PEREIRA, 2007), além, é claro, dos interesses pragmáticos do próprio compositor, cioso de conquistar o amplo e promissor mercado musical estadunidense. Os objetivos de pesquisa articulam-se a um tema central: Villa-Lobos construiu para si a autoimagem de missionário, uma espécie de catequizador capaz de converter, por meio da música, uma massa inculta em uma nação civilizada e moderna. A linguagem musical serviria, nessa perspectiva, como instrumento para o progresso material e intelectual da nação. A partir da década de 1930, intensifica-se a política de aproximação entre os EUA e os países latino-americanos. O pan-americanismo, doutrina surgida no século XIX, no bojo dos processos de independência na América Latina, foi a tentativa de construção simbólica sobre uma suposta unidade social e cultural do continente, a despeito das diferenças políticas e dos conflitos diplomáticos dominantes até então. A Política da Boa Vizinhança (19331945), do presidente Franklin Roosevelt, foi a concretização, com boa dose de pragmatismo político, desse ideário. Criou-se, então, um processo de aproximação cultural continental sem precedentes, e a música, instrumentalizada para fins de propaganda política e diplomática, foi um elemento importante nesse jogo. Na Feira Mundial de Nova York (1939-1940), a ditadura varguista procurou mostrar ao mundo a imagem de uma nação ao mesmo tempo moderna e tradicional, industrial e agrária, no qual a suposta “democracia racial” e a “cordialidade” do povo brasileiro serviriam de lição aos EUA (TOTA, 2000). A música de Villa-Lobos e seus contemporâneos fez parte da estratégia de exposição de um país moderno, cuja produção musical estaria em sintonia com as tendências estéticas do mundo desenvolvido, mas sem perder de vista a apropriação do folclore brasileiro, tido como a essência da identidade nacional (HESS, 2013). 132 Este artigo trata sobre a participação brasileira na Feira de Nova York, com enfoque na programação apresentada no pavilhão do Brasil e nas articulações do governo brasileiro, com ativa participação de Villa-Lobos, então à frente da Superintendência de Educação Musical e Artística. Para tanto, é analisado um conjunto de cartas trocadas entre o compositor e personalidades e instituições envolvidas nas relações culturais entre Brasil e EUA. Para além do músico, sobressai aqui a figura do diplomata cultural Villa-Lobos, artífice das relações culturais entre o Brasil e os EUA e, em menor dimensão, das relações com a Europa. Se uma das finalidades dos concertos de Villa-Lobos nos EUA era mostrar ao mundo a força musical de um país periférico, ao qual o senso comum reservou papel de pouca importância nos fluxos transnacionais, o meio elegido para tanto foi a diplomacia musical, conceito ao qual a historiografia tem voltado a atenção apenas em tempos recentes (GIENOW-HECHT, 2009; FLÉCHET, 2011; MARÈS & FLÉCHET, 2013; DUMONT & FLÉCHET, 2014, entre outros). Essa chave interpretativa parece ser fundamental para a compreensão do lugar da música e dos músicos na configuração das relações internacionais no período da Segunda Guerra Mundial e nos anos posteriores. Trata-se de uma via de mão dupla na qual a música é instrumentalizada a serviço de interesses nacionais e em que os interesses nacionais servem de pano de fundo para a construção e o alargamento do campo musical brasileiro no exterior. É importante observar que a coleção de cartas de Villa-Lobos, organizada principalmente por sua segunda mulher, Arminda, e hoje salvaguardada no Museu VillaLobos, raramente apresenta cópia ou minuta das cartas endereçadas pelo maestro àquelas instituições. Desse modo, o conteúdo das cartas de Villa-Lobos pode ser apreendido, na maioria dos casos, apenas de forma indireta, nas respostas de seus destinatários. Ainda assim, é possível, por meio da coleção, estabelecer uma narrativa sobre Villa-Lobos e a questão do pan-americanismo musical. Sua carreira nos EUA resultou de uma longa articulação social e política. 1 – A Feira de Nova York e a Política de Boa Vizinhança A Feira Mundial de Nova York ocorreu entre abril de 1939 e o início de 1940, e seus pavilhões, representativos de diversos países, foram construídos no terreno de um antigo lixão, no bairro do Queens. Tudo ocorreu sob a coordenação de empresários estadunidenses, O principal objetivo, Segundo Tota (2009, p. 60), era “criar uma imagem otimista do futuro e novas possibilidades para o progresso material”. Um dos símbolos da Feira foi o pavilhão 133 Futurama, onde ocorreram simulações de voo e de viagens por vias expressas de alta velocidade. O slogan da Feira, “The world of tomorrow”, demonstra a inequívoca intenção de promover a ideia de um capitalismo baseado no consumismo e na produção industrial em larga escala. Vários dos eventos foram transmitidos por rádio, e a abertura, em 30 de abril de 1939, foi televisionada. A Feira apresentou ao mundo uma visão de modernidade baseada, principalmente, em um imaginário otimista sobre a sociedade do consumo. Os gadgets (aparelhos de barbear, máquinas de lavar, televisões da primeira geração, robôs) fascinaram o público pelas facilidades que ofereciam, e, segundo Tota (ibid, p. 60), promoveram, junto às elites, a ideia de que a modernização brasileira deveria seguir o modelo estadunidense. Em uma via de mão dupla, o público estadunidense que visitou a Feira deparou-se com uma imagem positiva do Brasil. A Feira cumpria um dos principais objetivos da política externa dos EUA: promover uma boa imagem da América Latina junto aos estadunidenses e garantir a hegemonia política e cultural sobre o continente. O pavilhão do Brasil foi projetado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Em 16 de abril de 1939, data do lançamento da pedra inaugural, o ministro da Indústria, Comércio e Trabalho do Estado Novo, Waldemar Falcão, discursou para o público estadunidense por meio de uma transmissão enviada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Falcão louvou a Política da Boa Vizinhança e disse que a Feira de Nova York serviria para fomentar a amizade entre “as duas mais importantes democracias da América” – uma visão claramente equivocada do conceito de democracia, em plena vigência do Estado Novo no Brasil. Após o discurso, foi apresentada a obra O descobrimento do Brasil, composta por Villa-Lobos e sob sua regência.2 A 7 de setembro do mesmo ano, um almoço especial inaugurou o pavilhão, com a presença de empresários, políticos e personalidades do mundo cultural. A imagem do Brasil, produzida pelo próprio governo brasileiro para a Feira de Nova York, privilegiou a propaganda do café, tido como de alta qualidade, e das jazidas minerais, da castanha-do-Pará e produtos artesanais indígenas (TOTA, 2009, p. 61). A tão celebrada natureza do Brasil, representada por seus rios e a misteriosa floresta amazônica, também esteve presente. A livraria apresentava obras de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Gilberto Freire, Rocha Pombo e a Nova política do Brasil, de Getúlio Vargas. O comissariado brasileiro da Feira buscou promover uma imagem do país que conciliava bens simbólicos da modernidade 2 A obra foi escrita para o filme homônimo, de 1936, dirigido por Humberto Mauro. 134 artística e a face mais tradicional da identidade nacional, em que a exuberância florestal, as commodities e obras de vanguarda buscaram formular uma agenda positiva para o país, no contexto da Política de Boa Vizinhança. De acordo com Tota (2000, p. 119), Era o que tínhamos para oferecer. Os americanos, o futuro, e nós, o presente, nu e cru, sem nenhum complexo de inferioridade. No grande show que foi a Feira Internacional de Nova York, mostrávamos, como coristas metafóricas, não as pernas, mas as riquezas de nossas entranhas. As potencialidades brasileiras manifestavam-se não só em bens materiais, mas também na produção intelectual e, principalmente, na música. Sem dúvida, o Brasil foi representado na feira como uma nação musical. As cartas entre Villa-Lobos e o comissariado brasileiro na Feira de Nova York demonstram as ideias e estratégias articuladas pelas autoridades para o sucesso da programação. A correspondência, salvaguardada pelo Museu Villa-Lobos, abrange o período entre 1939 e 1943 – a Feira termina em 1940, mas o órgão estatal continua incumbido de promover nos EUA os interesses brasileiros. As missivas do comissariado são assinadas pelo coordenador geral, Armando Vidal, um dos maiores divulgadores da obra de Villa-Lobos nos EUA. No entanto, a primeira carta desse conjunto documental, de 19 de janeiro de 1939, destinada a Vidal, é assinada pelo maestro e compositor Walter Burle Marx (1902-1990), diretor musical do comissariado. A carta de Burle Marx é um interessante registro da estratégia de promoção da música brasileira naquele país. O fato de uma cópia ter sido enviada a Villa-Lobos indica o poder e a influência de Villa-Lobos, músico oficial do Estado Novo, na promoção cultural do país. Há anotações de próprio punho do compositor à margem da carta datilografada, sugerindo que cada detalhe foi submetido à sua anuência. As tratativas entre Burle Marx e Armando Vidal aparentemente tiveram, em última instância, o aval de Villa-Lobos. Por conta da riqueza de detalhes, vale a pena nos determos no documento. Encarregado da organização da programação musical, Burle Marx celebrou a oportunidade, gerada pela Feira, “para a divulgação da nossa capacidade artística e musical”, permitindo “a introdução das nossas músicas no meio americano e no das outras nações que se farão representar”. Segue a análise do maestro: Atualmente, quando todas as vistas se acham voltadas para a América do Sul, o Brasil está em condições altamente vantajosas para tomar a liderança artística e realizar grandes feitos. É necessário, portanto, ser calculada para a representação artística musical uma importância que permita levar o Brasil à altura de seu valor em relação ao seu merecimento, não ficando em condições inferiores aos outros países.3 Fica clara a intenção de demonstrar a “superioridade” da música brasileira, em um evento no qual muitos outros países se fariam representados. 3 Carta de Walter Burle Marx para Armando Vidal, Nova York, 19 jan. 1939. Museu Villa-Lobos, Acervo Correspondência, pasta: MARX, Walter Burle. 135 A concepção sobre a música brasileira, proposta por Burle Marx, é subdividida em três vertentes: “música sinfônica”, “música popular brasileira” e “canção popular”. Quanto às últimas duas categorias, tratava-se de distinguir a música produzida nas cidades e veiculada no rádio, com ampla capilaridade social, e o cancioneiro do folclore, idealizado por intelectuais da época como a “raiz” da “autêntica” cultura nacional. Quanto à divulgação da música de concerto, a estratégia de Burle Marx previa os seguintes pontos: A inclusão da música sinfônica clássica universal tem por fim atrair o público e prepará-lo para ouvir músicas inteiramente novas, com ritmos diferentes e harmonias bizarras, criando um ambiente descansado para permitir maior apreciação. Além disso as músicas clássicas, por fazerem parte dos repertórios das orquestras, não precisarão quase de ensaios, sobrando tempo para aperfeiçoar a música brasileira, a fim de se obter uma execução bastante perfeita. Burle Marx argumenta, com base em sua experiência como regente internacional, que repertórios exclusivamente dedicados à música moderna nacional são algo “contraproducente”: “A apresentação de músicas novas em qualquer ambiente culto é sempre feita com certa reserva, a fim de facilitar a sua compreensão e provocar um interesse que não existiria se fosse feita em grande escala”. A solução apontada por Burle Marx é que, “colocando as músicas nacionais em boa vizinhança, os seus ritmos terão maior realce e, consequentemente, obteremos maior interesse dos ouvintes e especialmente dos críticos musicais”. A mescla entre composições “universais” e nacionalistas visava, sobretudo, a não sobrecarregar o espectador da Feira com obras modernas, talvez por acreditar que fossem de difícil assimilação. Além disso, ao confrontar estilos musicais diferentes, colocados “em boa vizinhança”, seria possível dar mais realce à estética da música nacionalista brasileira, o principal objetivo de Burle Marx. O regente continua a descrever sua estratégia. A ideia era contratar a Escola Cantorum de Nova York, prestigiada entre críticos e popular nos EUA, e a escolha de solistas brasileiras com grande aceitação, como Bidu Sayão e Guiomar Novaes. O ponto alto do repertório, na visão dele, é a obra Choros n. 10, escrita por Villa-Lobos em 1926, em estilo grandiloquente e com um imenso coral. O ponto referente a Bidu e Guiomar recebeu um “sim” de Villa-Lobos, enquanto a sugestão de Choros n. 10 foi indicada com um “não”. Por fim, Burle Marx sugere que o repertório dos concertos consista em “uma ou duas peças de autores nacionais mais modernos, um solista brasileiro de renome que poderá executar um concerto de compositor brasileiro, ou clássico, e o restante será preenchido por composições clássicas universais”. 136 No que se refere à dita “música popular brasileira”, Burle Marx critica o nível supostamente ruim das orquestrações feitas nesse ramo. Sugere que as partituras enviadas do Rio de Janeiro passem pelo crivo de revisores nos EUA, e propõe o pagamento semanal de 40 dólares por revisor, cujo valor seria pago, metade pela organização da Feira de Nova York, metade pela Feira de San Francisco (ocorrida no mesmo período). “Para maior divulgação da música popular brasileira na sua maior extensão seria interessante adaptar para o inglês letra das referidas músicas, tendo em vista glorificar o Brasil e popularizá-lo.” Esse trecho possui a seguinte observação de Villa-Lobos: “de acordo”. Burle Marx defende também a importância da transmissão dos eventos por empresas de radiodifusão dos EUA e do Canadá, “o que não será difícil conseguir com as estações de rádio, muitas das quais já estão bastante interessadas com o estado atual do desenvolvimento artístico dos países sul-americanos”. Sugere que os artistas brasileiros permitam a redução ou, mesmo, a isenção do pagamento de direitos autorais para as gravadoras, de modo a incentivar a circulação de discos com música brasileira nos EUA. Para ele, o governo brasileiro deveria distribuir, “para maior propaganda, por diversas bibliotecas dos EUA, vários exemplares das nossas músicas, convenientemente selecionadas, entre 10 e 30 peças diferentes para cada biblioteca”. Essa observação recebeu um “X” em caneta vermelha de Villa-Lobos, que contraargumentou, em carta de 9 de fevereiro para Armando Vidal, que se deveria obter “o maior número possível de exemplares de obras impressas (escolhidas) de autores brasileiros”. Ele mesmo poderia incumbir-se disso, “selecionando, sem demora, as obras impressas que poderão servir, enviando-vos o orçamento”. Além de ser incisivo a respeito da ampla divulgação da música brasileira, Villa-Lobos atribuiu a si próprio o papel de seleção do tipo de obra a ser divulgado. Ele era uma espécie de árbitro da música considerada boa ou ruim, e cuja divulgação seria de interesse (ou não) do país. Por fim, o regente sugere maciço investimento em anúncios para que os concertos tenham ampla publicidade, “a fim de despertar nos círculos artísticos o interesse pela nossa música de forma eficiente e geral. Por esses anúncios os interessados poderão dirigir-se ao escritório ou à sede da Exposição, onde receberão informações detalhadas sobre as nossas músicas e autores”. No item “Canções populares”, Walter Burle Marx (ainda na carta de janeiro de 1939) defende que a “canção brasileira” poderá ser representada “por cantores nacionais especializados em música regional”. Segue o maestro: 137 (...) pelo contato que tenho mantido com a comissão americana da Feira de Nova York, verifiquei que há grande interesse por esse tipo de música, principalmente aplicada nas várias diversões no recinto da Feira. Os artistas que cantam músicas regionais atualmente em Nova York poderão ser utilizados oportunamente para exibições características brasileiras em contratos especiais. No dia 22 de janeiro, Armando Vidal escreve a Villa-Lobos, solicitando autorização para a produção de um resumo do relatório de 1937, assinado por Villa-Lobos, sobre o programa de educação musical brasileiro. O relatório foi publicado em livro com o título Ensino popular de música no Brasil, e é essencial para a compreensão do canto orfeônico na política cultural do Estado novo. Vidal solicita “fotografia em bom tamanho e perfeito trabalho fotográfico” de alguma grande concentração orfeônica promovida pela SEMA. É interessante observar a importância atribuída por Armando Vidal à divulgação, nos EUA, do programa de educação musical chefiado por Villa-Lobos. Essa questão permeia diversas discussões no campo musical do continente americano. Está presente nos textos do musicólogo teuto-uruguaio Francisco Curt Lange (BUSCACIO, 2010), nas cartas de Charles Seeger para Villa-Lobos, nas pesquisas da educadora musical estadunidense Vanett Lawler, outra interlocutora de Villa-Lobos... As demais cartas entre Villa-Lobos e o comissariado do Brasil na Feira de Nova York tratam sobre pedidos de aquisição de partituras, direitos autorais, gravações das apresentações e estratégias de difusão da música brasileira. Em carta do dia 6 de maio de 1939, Vidal afirma que é crescente o interesse de orquestras estadunidenses pela obra villalobiana, e recomenda ao compositor que “obtivesse do Governo tratar aí mais uns discos para coros e orquestra, pois já estou em entendimento com todas as estações de rádio para a distribuição de nossa discoteca”. Além de demonstrar a forte vinculação do campo musical ao governo Vargas, a carta indica também a constante atuação de Armando Vidal e do comissariado no sentido de divulgar nos EUA a obra de Villa-Lobos, tida como a mais representativa da música brasileira. A política do pan-americanismo era fundamental para isso. Em carta de 30 de maio, endereçada ao escritório do comissariado no Rio de Janeiro e com cópia para VillaLobos, Vidal solicita urgência na autorização para obtenção de cópias de obras orquestrais do compositor, para execução em concertos promovidos pela União Pan-Americana. Vidal afirma que o compositor Francisco Mignone (1897-1986) já o autorizara em relação às obras dele, e que “tais concertos constituem boa propaganda, não só para nossa música como para os próprios autores”. A divisão de música da União Pan-Americana, chefiada pelo compositor 138 e musicólogo estadunidense Charles Seeger (1886-1979), foi uma das instituições que mais concorreram para a promoção da música de concerto do continente. Os concertos produzidos pela União criaram um importante espaço de sociabilidade para músicos americanos e ajudaram a promover a ideia de uma música continental. Por fim, mais um indício da forte atuação da diplomacia cultural brasileira em torno da obra de Villa-Lobos: em carta para Villa-Lobos, de 10 de agosto, Vidal relata ter recebido uma carta do professor William Berrien, da seção de música e cultura da América Latina na Universidade de Michigan. A carta, segundo Vidal, descrevia “o interesse que vem despertando a música brasileira nos estudantes da Universidade”. Berrien recebeu de Vidal uma coleção de discos de música de concerto brasileira, e enviou-lhe seu testemunho sobre os dois concertos realizados na universidade: Os concertos haviam sido anunciados nos jornais aqui e várias pessoas se interessaram em ouvir as obras dos compositores brasileiros de que falei em uma palestra oferecida há duas semanas. No início da semana, quatro dos discos foram reproduzidos aqui por rádio, para ilustrar palestra sobre obras musicais atuais do Brasil e dos Estados Unidos. A ideia de se comparar as obras musicais dos dois países provou ser uma experiência interessante. 4 É possível articular o relato de Berrien com o desenvolvimento daquilo que Hess (2013) denomina “cultura pan-americanista”, cujo apogeu ocorreu entre o fim da década de 1930 e a primeira metade da década de 1940. As universidades tiveram papel de peso na formulação e na disseminação do ideário pan-americanista, juntamente com a diplomacia oficial, orquestras, conjuntos de câmara, corais, imprensa e outros meios. Outro aspecto interessante é a preocupação do professor de Michigan em comparar as músicas atuais do Brasil e dos EUA. É o continente americano sob uma perspectiva comparativista, com a produção de semelhanças e diferenças, de modo a se pensar os limites e as possibilidades de uma identidade comum. As articulações político-diplomáticas foram o pano de fundo do relativo sucesso das apresentações de música nacional na Feira de Nova York. A principal atração do pavilhão brasileiro era o restaurante, onde havia concertos de música popular e erudita. A programação privilegiou obras de compositores como Ernesto Nazareth, Carlos Gomes, Francisco Mignone e Camargo Guarnieri. No campo da música popular, a Feira ajudou a promover nos EUA a Tradução minha. No texto original: “The concerts had been announced in the newspapers here and a number of people here had become interested to hear the works of the Brazilian composers of whom I spoken in a lecture given two weeks ago. Earlier in the week, four of the records were played over the radio here, to illustrate lecture on present-day musical works of Brazil and the United States; the idea of comparing the musical works of the two countries proved an interesting experiment”. 4 139 imagem de Carmen Miranda, que nas décadas seguintes se tornaria extremamente popular naquele país. Aliás, a música em torno da Feira de Nova York explicitou as diferenças entre duas cantoras brasileiras que se tornaram conhecidas nos EUA naquela ocasião: Carmen Miranda (1909-1955) e Elsie Houston (1902-1943). A primeira representava estereótipos de sensualidade da mulher latino-americana, enquanto Houston “pode ser interpretada como tendo uma sensualidade mais erudita” (TOTA, 2009, p. 63). Nascida no Brasil e com traços corporais de “latinidade”, Elsie Houston ajudou a disseminar nos EUA o mito da democracia racial. Para ela, o Brasil era mais avançado do que os EUA em termos musicais e raciais: Nós [brasileiros] estamos abertos a qualquer forma de influência. A ausência absoluta de preconceito de cor facilitou a assimilação das influências africanas e indígenas. (...) Estou convencida de que a música brasileira está contribuindo muito para a música em todos os lugares, misturando a tradição clássica com a estrutura dos ritmos primitivos da velha África e do ritual indígena.5 O conjunto de cartas trocadas entre Elsie Houston e Villa-Lobos demonstra o protagonismo da cantora na difusão da obra de Villa-Lobos nos EUA, com especial empenho, junto a pessoas e instituições, para a promoção de suas obras para canto e orquestra. Nos esforços da Política de Boa Vizinhança, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA, sigla em inglês) também teve imensa importância na difusão da música brasileira. O museu era presidido, à época, por Nelson Rockefeller, de uma família de magnatas do petróleo. Rockefeller, não por acaso, era o dirigente do Office of the Coordinator of the Inter-American Affairs (OCIAA), agência do governo estadunidense responsável por promover a aproximação política, econômica e cultural com os países latino-americanos. Em outubro de 1940, o MoMA organizou o Festival de Música Brasileira. Foram cinco dias de programação e vários artistas brasileiros envolvidos, com direito a transmissão ao vivo pela NBC Radio, nos EUA, e pela WCBX, no Brasil, com retransmissão pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Elsie Houston e Walter Burle Marx foram os mais destacados participantes do festival (TOTA, 2009, p. 63). A programação envolveu músicas classificadas como eruditas, folclóricas e populares. Arthur Rubinstein, um dos mais prestigiados pianistas do século XX, apresentou trecho da Prole do Bebê de Villa-Lobos. “We [Brazilians] were open to any form of influence. The absolute absence of color prejudice made the assimilation of black/African and Indian influences easy. Who here [in the United States], except George Gershwin, has shown in his work sensitivity for a real music? I am convinced that Brazilian music is contributing a great deal to music everywhere by mixing the classic tradition with the structure of the primitive rhythms of old Africa and Indian ritual”. (Daily Worker, 17 out. 1940, apud TOTA, 2009, p. 63). 5 140 Além de Carmen Miranda, Elsie Houston e Burle Marx, outros artistas brasileiros conquistaram espaço na vida cultural dos EUA sob os auspícios da Política da Boa Vizinhança. É o caso de Ary Barroso (cuja Aquarela do Brasil arrebatou os espectadores das rádios), do pianista Arnaldo Estrella, da cantora e violonista Olga Praguer Coelho e dos compositores Francisco Mignone e Camargo Guarnieri. 2 – Recepção crítica da obra de Villa-Lobos e representações sobre a música brasileira Numa linha muito parecida com o discurso de Elsie Houston sobre a música brasileira, citado anteriormente, Burle Marx produz uma síntese sobre o mito das três raças, veiculado pelo Estado Novo, e as ditas fontes da música popular do Brasil, que para ele são “o português e o africano. A contribuição portuguesa é limitada à esfera melódica, linguística e cultural, enquanto o africano contribui com um ritmo primitivo. A tudo isso temos que acrescentar a contribuição dos nativos” (apud TOTA, 2009, p. 63). A questão das origens musicais do Brasil e a busca por uma autenticidade também permeou a recepção crítica da obra de Villa-Lobos nos EUA. O Festival de Música Brasileira (MoMA) rendeu um olhar positivo por parte de Howard Taubman, do New York Times.6 Mas, no âmbito da imprensa, quem mais ajudou a promover a obra de Villa-Lobos nos EUA foi, sem dúvida, Olin Downes (1886-1955). Com 50 anos de carreira como crítico musical, 30 dos quais dedicados ao New York Times, ele era um dos conselheiros da comissão musical do Departamento de Estado. Além disso, foi o diretor musical da Feira Mundial de Nova York. Segundo Hess (2013, p. 7), muitos compositores e críticos, ainda que não fizessem parte do aparato burocrático da diplomacia cultural de seus países, responderam calorosamente aos esforços de aproximação cultural do pan-americanismo. No caso de Downes, tal esforço também foi além do apoio pela imprensa, e manifestou-se na articulação institucional. Em uma carta para Villa-Lobos, por exemplo, ele diz ter encontrado Charles Seeger (chefe da divisão musical da União Pan-Americana) em uma reunião em Washington, na qual reforçou a articulação pela ida de Villa-Lobos aos EUA – que só ocorreria em novembro de 1944. As críticas de Downes sobre Villa-Lobos apresentam duas vertentes de análise: em muitos casos, apontam a suposta falta de preocupação do compositor com aspectos formais, manifestada em músicas de desenvolvimento elíptico e longas em demasia – 6 Ver, a esse respeito, duas críticas de Howard Taubman sobre o festival de música brasileira do MoMA, uma de 19 de outubro de 1940 e outra de 4 de maio de 1941 (quando do lançamento do disco do festival). Ambas estão disponíveis em formato digital, no Museu Villa-Lobos, com os códigos ProQuest_94006450-1 e ProQuest_85488691-1. 141 argumento repetido em vários de seus textos ao longo dos anos; por outro lado, Downes demonstra profundo interesse por temas nacionais na obra de Villa-Lobos, em textos que possuem estreita relação com a abordagem modernista (ANDRADE, 1975 [1928]) sobre a música brasileira. No dia 13 de fevereiro de 1945, época da primeira turnê de Villa-Lobos nos EUA, Olin Downes fez as seguintes observações sobre Uirapuru, apresentada dias antes em concerto no City Center, em que o próprio Villa regeu a convite de Leopold Stokowski: O programa é suficiente para o compositor retratar a natureza brasileira e suas cores e sons; para intercalar essas passagens com a música de danças selvagens, os chamados da flauta ao inimigo do Uirapuru e explosões de canção sensual. Há páginas soberbas, páginas não apenas fotográficas, ou ventrílocas, mas de um impressionismo genuíno e altamente individual. (...) Pode-se dizer da escrita de Villa-Lobos que em alguns lugares é possível sentir o aroma e ouvir a floresta, ver seu jogo de luz, estar ciente da noite tropical e seu estranho encanto.7 A ideia de uma música que “representa a natureza brasileira e suas cores e sons”, além dos “ritmos selvagens”, está presente em um texto publicado no dia 9 de fevereiro, dessa vez sobre a Bachianas Brasileiras n. 7: Há uma certa ingenuidade nessa música. Tem suas desproporções; os idiomas são os da música folclórica brasileira e latino-americana. O contraponto rítmico também é linear. Alguns dos movimentos são muito longos; alguns são surpreendentemente populares para a ideia de Bach. Todos eles são reais, vivos, sinceros e produzidos por impulsão de dentro.8 Hess (2013, p. 125), que estudou a recepção da obra de Villa-Lobos nos principais jornais e revistas dos EUA, afirma que Olin Downes talvez tenha sido o primeiro crítico estadunidense a atentar para a possibilidade de se comparar as obras de Villa e Bach. O compositor alemão tornou-se um sucesso estrondoso nos EUA nos anos 1930, e foi apropriado pela crítica como símbolo do universalismo cultural, da união dos povos e da ideia de transcendência coletiva (HESS, op. cit., p. 99). A série das Bachianas Brasileiras, composta entre 1930 e 1945, promoveu a junção entre o defendido cosmopolitismo de Bach e elementos do folclore do Brasil. Downes conclamou os leitores a apreciar a música de VillaLobos como uma ponte entre o classicismo de Bach e o elemento nacional. “The program is enough for the composer to portray Brazilian nature and its colors and sounds; to intersperse these passages with the music of savage dances, the flute-calls of the Uirapuru’s enemy, and outbursts of sensuous song. There are superb pages, pages not merely photographic, or ventriloquist, but of a genuine and highly individual impressionism. It was once said of Rimsky-Korsakoff’s orchestration that his coloring was so sensuous that one not heard, but tasted the instrumental tone. It may be said of Villa-Lobos’s scoring that in places one scents as well as hears the forest, sees the play of light, is aware of the tropical night and its strange enchantment” [grifos meus]. 8 “There is a certain naïveté in this music. It has its disproportions; the idioms are those of Brazilian and LatinAmerican folk-music. The counterpoint of rhythmic as well as linear. Some of the movements are too long; some of them astonishingly popular for the Bach idea. All of them are real, living, sincere and produced by impulsion from within”. Ver, no acervo do Museu Villa-Lobos, arquivo em formato digital com o código ProQuest_88193222. 7 142 O interesse do crítico pelo nacionalismo de Villa-Lobos é muito nítido nas cartas enviadas por ele, que compreendem o período entre maio de 1939 (durante a Feira de Nova York) e 1954. Ao longo de anos, ele negociou com Villa-Lobos a possibilidade de estudar in loco a música e o folclore brasileiros: “E um dos meus sonhos seria cumprimentá-lo pessoalmente no Brasil, um país que eu tenho muito e muito desejo de ver, e que eu sinto em sua música”.9 Em 1943, Downes recebeu convite oficial de Villa-Lobos para residir no Brasil por alguns meses, às expensas do governo federal, mas teve que recusar o convite devido a compromissos já firmados nos EUA. Sucessivos convites da parte de Villa-Lobos foram reiterados nos três anos seguinte, todos recusados por Downes devido, segundo ele, a compromissos firmados nos EUA. O trecho a seguir demonstra como Downes via a possibilidade de viajar ao Brasil: “Uma vida inteira poderia sem dúvida ser dedicada a essa pesquisa. Mas, se você puder me mostrar a via direta para a essência da música brasileira, e ao menos a parte da essência da vida brasileira, eu me sentirei muito feliz e grato”.10 Em outro trecho importante, o crítico reforça o interesse em uma “visita prospectiva” ao Brasil: É um prazer muito grande ler sua resposta, e ainda um maior prazer e honra para mim que você se interesse tanto em minha visita prospectiva ao Brasil. Vocês estão certos quando afirmam que tenho o maior desejo de visitar seu país e ouvir música em certo sentido, através de seus ouvidos, já que sei que seu ouvido está "no chão", que eu acredito que é a base de todos os artistas. E, além disso, sei que, com um músico tão grande e sincero como você, serei capaz de ouvir a verdadeira música do Brasil e não apenas o elegante artigo importado.11 O trecho a seguir também diz muito sobre a visão de Downes: “O principal é ter uma experiência real de música brasileira real e vida real brasileira – duas coisas que, na minha filosofia, são inseparáveis umas das outras”.12 Uma experiência real do Brasil real: Olin Downes não parece comungar uma certa visão sobre nacional-popular proposta pelo “And one of my dreams would be to shake both your hands in Brazil, a country which I have long and greatly desire to see, and which I feel in your music”. Carta de Olin Downes para Heitor Villa-Lobos, Nova York, 8 de maio de 1939. Acervo Museu Villa-Lobos. 10 “A whole lifetime could no doubt be devoted to this research. But if you can show me a direct road to the essence of Brazilian music and to at least some of the essence of the Brazilian land and Brazilian life, then I will be happy and grateful indeed”. Carta de Olin Downes a Heitor Villa-Lobos, Nova York, 2 de outubro de 1945. Acervo Museu Villa-Lobos. 11 “It is a very great pleasure to hear from you, and still a greater pleasure and honor to me that you take such a interest in my prospective visit to Brazil. You are certainly right when you assume that I have the greatest wish to visit your country and to hear music – in one sense through your ears, since I know that your ear is „to the ground’, which I believe the basis of all national art. And furthermore I know that with such a great and sincere musician as yourself, I shall be enabled to hear the real music of Brazil and not only the fashionable imported article”. Ibid. 12 “The principal thing is to get a real experience of real Brazilian music and real Brazilian life – two things which, in my philosophy, are inseparable from each other”. Ibid. 9 143 modernismo? Onde estão, aqui, os princípios musicais universalistas? Será possível falar sobre uma cultura modernista germinada no continente americano e disseminada no campo musical? Em carta de 27 de fevereiro de 1947, ao tentar convencer Villa-Lobos a refazer o convite, Downes explicita como seria a visita. Ele estudaria a música brasileira e faria conferências aqui. Lamenta não ter podido aceitar o convite nos anos anteriores, devido a imprevistos, mas diz que, dessa vez, ele teria feito as articulações necessárias junto ao New York Times. A permissão estaria condicionada ao envio de reportagens para o Times sobre a vida musical do Brasil. “Gostaria de sentir que tal visita por minha parte seria útil no estabelecimento de relações culturais mais estreitas entre as nossas duas nações”.13 A “cultura pan-americanista” estaria, portanto, no horizonte da viagem de Downes, que acabou não acontecendo. Na última carta enviada a Villa-Lobos, em 15 de maio de 1954, Downes acusa o recebimento da partitura da Sinfonia n. 8, dedicada a ele. O crítico faleceu no ano seguinte. Considerações finais A primeira viagem de Villa aos EUA ocorreu em novembro de 1944, no período final da guerra. Os EUA são fundamentais para a consolidação da carreira de Villa-Lobos e sua inserção em um mercado de música vigoroso. Desde que pisou pela primeira vez o solo estadunidense, até a última visita a Nova York, em 1959, Villa-Lobos viajou quase anualmente aos EUA. Regeu um grande número de orquestras, elaborou trilhas sonoras para uma opereta da Broadway e um filme de aventura de Hollywood, foi entrevistado em talk shows e recebeu homenagens e títulos por parte de universidades e do governo. Em toda a correspondência de Villa-Lobos, salta aos olhos a grande quantidade de correspondentes estadunidenses, que engloba músicos, agentes, produtores, roteiristas de musicais da Broadway, críticos de música, musicólogos e admiradores. Nesta fase da pesquisa, tenho buscado mapear as redes de sociabilidade do compositor, de modo a reconstituir sua estratégia de inserção nos EUA e as instituições e pessoas mobilizadas para isso. A Feira de Nova York foi, sem dúvida, um elemento importante para a consolidação da imagem de Villa-Lobos na superpotência, garantindo-lhe crítica favorável e divulgação em estações de rádio e salas de concertos. Por outro lado, a boa imagem do “I would like to feel that such a visit on my part would be of service in the establishment of closer cultural relations between the our two nations”. Ibid. 13 144 compositor foi, de algum modo, importante para a consolidação do ideário pan-americanista no continente. Referências ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. 2ª ed. São Paulo; Brasília: INL, 1975. BUSCACIO, Cesar Maia. Americanismo e nacionalismo musicais na correspondência de Curt Lange e Camargo Guarnieri (1934-1956). Ouro Preto, MG: Ed. UFOP, 2010. DUMONT, Juliete e FLÉCHET, Anaïs. “Pelo que é nosso!”: a diplomacia cultural brasileira no século XX. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 67, p. 203-221, 2014. EGG, André Acastro. Fazer-se compositor: Camargo Guarnieri 1923-1945. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. FLÉCHET, Anaïs. As partituras da identidade: o Itamaraty e a música brasileira no século XX. Escritos, Rio de Janeiro, ano 5, v. 5, p. 277-256, 2011 GIENOW-HECHT, Jessica. Sound diplomacy: music and emotions in transatlantic relations, 1850-1920. Chicago: The University of Chicago Press, 2009. GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense: convertendose em um músico brasileiro. Mana, Rio de Janeiro, n. 9, vol. 1, p. 81-108, 2003. HESS, Carol A. Representing the good neighbor: music, difference, and the Pan American dream. New York: Oxford University Press, 2013. MARÈS, Antoine & FLÉCHET, Anaïs. Introduction. Relations internationales, Paris, n. 155, p. 3-9, mar. 2013. PEREIRA, Avelino Romero. Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a república musical. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007. TACUCHIAN, Maria de Fátima Granja. Panamericanismo, propaganda e música erudita: Estados Unidos e Brasil (1939-1948). Tese de Doutoramento, FFLCH-USP, 1998. TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. _______________. The seduction of Brazil: the Americanization of Brazil during the World War II. 1a ed. Traduzido do português por Lorena B. Ellis; prefácio de Daniel J. Greenberg. Austin (EUA): University of Texas Press, 2009. 145 Análise do discurso musical de Heitor Villa-Lobos: uma dialética entre referencialismo e formalismo Joel Albuquerque1 joeltrompa@hotmail.com Resumo: Este trabalho se propõe a fazer um levantamento do conteúdo discursivo recorrente na música e na fala de Heitor Villa-Lobos, apontando para uma suposta dialética existente entre referencialismo empírico e formalismo racionalizado. Consideramos que o compositor defendeu frequentemente um discurso subjetivo de apropriação da cultura brasileira como face importante de suas músicas e, consequentemente, grande parte dos críticos mais antigos que trataram do assunto não foram além de uma análise estética do conjunto de menções à música popular e folclórica aparentes na camada superficial das obras. Por outro lado, recentemente um conjunto de pesquisas vêm identificando no interior de diversas obras uma suposta segunda camada de caráter densamente estruturalista, que serviria de grade de sustentação para a constelação de fragmentos reconhecíveis colocados no plano mais aparente para o ouvinte. Palavras-chaves: Villa-Lobos. Análise de Discurso. Formalismo. Referencialismo. Analysis of musical discourse of Heitor Villa-Lobos: a dialectic between referentiality and formalism Abstract: This paper make an investigation of discursive content in music and speech of Heitor Villa-Lobos, pointing to a supposed dialectical between empirical referentiality and rationalized formalism. We believe that the composer often advocated a subjective discourse of appropriation of Brazilian culture as important facet of his music, and consequently, most of the older critics who have dealt with the matter did not go beyond an aesthetic analysis of the set of references to popular and folk music apparent in the surface layer of his works. On the other hand, recently researches are identifying a supposed structuralist second layer in various Villa-Lobos’s works, which would be a grid to support the constellation of suitable fragments placed in more apparent plan for the listener. Keywords: Villa-Lobos. Discourse Analysis. Formalism. Referentiality. O início do século XX europeu foi um momento em que surgiram diversas propostas estéticas musicais decorrentes de um anseio por alternativas que pudessem suprir a lacuna deixada com o esgotamento do sistema tonal. Reconhecemos que parte destas propostas se alinharam de certo modo, considerando similaridades entre as diversas linguagens que apareceram na época, em torno de dois eixos estéticos: a escola modernista franco-russa, representada essencialmente pelo perfil das obras de Debussy e posteriormente Stravinsky, e a escola expressionista alemã alinhada em torno de Schoenberg e seus dois discípulos Berg e Webern, conhecida como Segunda Escola de Viena. Esta segunda vertente 1 Doutorando (Musicologia) e Mestre em Música (Processos de Criação Musical) pelo Programa de Pósgraduação em Música da Escola de Comunicações e Artes - PPGMUS/ECA/USP (SP) em 2014, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo de Tarso Salles. Possui Bacharelado em Música (Trompa) pela Faculdade Mozarteum de São Paulo (2010) e Pós-graduação em “Gestão e Elaboração de Projetos Culturais” (2013) pelo CELACC/ECA/USP (SP). Atualmente é professor trompa e teoria musical da Organização Assistência Social, Educação e Cultura Santa Marcelina, da Escola de Música ACARTE da Universidade Adventista (UNASP/SP) e Orientador de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) da Faculdade Mozerteum de São Paulo (FAMOSP). 146 de vanguarda propunha uma renovação integral e total substituição do sistema tonal por uma proposta composicional completamente inédita2, sem deixar espaço para sombras de gestos ou procedimentos que lembrassem ou fizessem menção ao sistema decadente da prática comum. É uma proposta que evita contornos melódicos que façam referência a contextos externos reconhecíveis e acredita na arte musical estritamente veiculada à extensiva formulação racional e objetiva dos itens sonoros, provavelmente um desdobramento do discurso promovido por Hanslick junto ao conservador segmento musical romântico que gravitava em torno de Brahms, grupo de compositores que acreditavam em uma música absoluta e independente no campo artístico. A música consta de séries sonoras, de formas sonoras, que não têm nenhum outro conteúdo a não ser elas próprias. Lembramos, mais uma vez, a arquitetura e a dança, que nos contrapõem igualmente sem um conteúdo determinado. Poderá cada um, segundo a sua individualidade, avaliar e nomear o efeito de uma peça individual, mas o seu conteúdo consiste tão-só nas formas sonoras ouvidas, porque a música não fala apenas mediante sons, ela expressa também apenas sons. (HANSLICK, 2011 [1854], p. 112) Hanslick defendia a ideia de “música pela música”, um conceito que trouxe uma proposta de música como arte autônoma, com sentido semântico e sintático pleno inerentes em torno apenas de seus elementos sonoros, prescindindo de uma relação com outros universos artísticos não-musicais, essencialmente rompendo com uma anterior submissão da música ao texto escrito em um vínculo representativo. Este crítico propõe uma lógica de música calcada apenas na disposição dos sons entre si ao longo da obra, uma abordagem técnica com inclinação a um caráter mais científico de analisar o universo sonoro a partir de estruturas e formas, longe da concepção empírica de música como “expressão dos sentimentos”, este até então um senso comum da época (VIDEIRA, 2005, p. 44). O exame da questão acerca do conteúdo [Inhalt] em música é um dos temas mais importantes do ensaio Do Belo Musical. Diferentemente do que ocorre nas demais artes, na música o conteúdo é interno (e não externo) e está indissoluvelmente ligado à forma. O autor afirma que a obra de arte corporifica uma ideia determinada como o belo em aparição sensível, e assinala a unidade existente entre forma e ideia. Notese, porém, que o compositor expõe ideias puramente musicais (VIDEIRA, 2007, p. 153). Este pensamento trouxe uma intensa discussão no período romântico a respeito da semântica musical e da qualidade representativa que a música poderia ou não ter, mas principalmente estabeleceu as bases para a legitimação de uma linguagem independente sem o apoio de mecanismos idiomáticos de outras manifestações artísticas. Além disso, foi uma Identificamos na proposta modernista alemã aquilo que Compagnon (2010) chamou de “paradoxo” da modernidade estética, uma busca incessante em “criar o novo”, uma “tradição da ruptura”, “contraditória e autodestrutiva”. 2 147 proposta que deu força para a consolidação do gênero instrumental sinfônico e ao movimento formalista, vertentes que assumiriam posição importante dentro do universo da música de concerto desde então. A proposta modernista alemã surge no início do século XX como uma extensão ao formalismo romântico apresentando obras em um nível elevado de elaboração, das quais a máquina estrutural surge de forma explícita em primeiro plano, racionalismo extremo que justificaria a legitimidade artística destas músicas e comprovaria a plena habilidade técnica do compositor. Por outro lado, estas criações musicais se mostravam afastadas do gosto e assimilação do público comum, revelando um propositivo distanciamento entre a obra expressionista e o ouvinte não especializado. Como principal idealizador desta vertente modernista, Schoenberg deixa transparecer a complexidade empregada na construção de suas músicas, buscando com interesse e satisfação pela incompreensão do ouvinte inexperiente e, consequentemente, pelo desinteresse do público comum pelo repertório de vanguarda alemão. O compositor chega a duvidar da qualidade de suas obras após estas terem sido aclamadas pelo grande público, logo após o fim da Primeira Guerra, opinião expressa em trecho recortado de Style and Idea (1975) e sublinhado por Susan McClary em seu artigo “Terminal Prestige: The Case of Avant-Garde Music Composition” (1989). Mas assim que a guerra acabou, veio outra onda que obteve para mim uma popularidade inigualável desde então. Minhas obras foram tocadas em todos os lugares e aclamado de tal maneira que eu comecei a duvidar do valor da minha música. Isto pode parecer uma piada, mas, é claro, há alguma verdade nisso. Se anteriormente minha música tinha sido difícil de entender por conta das peculiaridades da minha ideia e da maneira em que eu lhes expressei, como poderia acontecer que agora, de repente, todo mundo poderia seguir as minhas ideias e como eles? Ou a música ou o público não valia nada (SCHOENBERG, 1975, p. 71 apud McCLARY, 1989, p. 58). Seguindo por outro caminho, a escola franco-russa de Debussy e Stravinsky acreditava no resgate de recursos composicionais emblemáticos da tonalidade e da prática comum, essencialmente os conceitos de “escala” e “acorde”, readequados ao novo universo pós-tonal que era inaugurado, em suma, o reconhecimento de uma “tonalidade expandida” e a possibilidade de continuidade e aprimoramento de procedimentos oriundos da música tonal (TYMOCZKO, 2004; STRAUS, 1990). Esta proposta franco-russa, ao contrário da outra, incorpora o referencialismo empírico na concepção estética da obra, se inspirando em práticas de compositores mais progressistas do romantismo musical que não se alinharam ao discurso prioritariamente formalista defendido por Hanslick e Brahms, entre os quais destacamos Liszt, Berlioz e Wagner, e pós-românticos como Richard Strauss e Gustav Mahler, todos estes ao nosso ver adeptos a um estilo composicional mais inclinado a uma obra representativa e em 148 diálogo estreito com as demais artes e com a cultura cotidiana, em particular favoráveis pela complementação entre texto e música, encontrando na música programática e na narrativa musical um campo fértil para a elaboração de obras artísticas carregadas de alusões extramusicais. A escola franco-russa esteve mais aberta a diminuir o caminho entre ouvinte e a obra de vanguarda, um fator que favoreceu a predileção do grande público por esta vertente modernista em relação às estruturações complexas das composições da Segunda Escola de Viena, estas contempladas por um grupo menor, especializado e restrito. 1- Villa-Lobos e o modernismo musical brasileiro Villa-Lobos surge em meio a este contexto dialético polarizado por estes encontros e cruzamentos entre discursos sobre subjetividade e racionalidade musical, e, desde o início de sua carreira, abre um extenso diálogo com estas duas bandeiras que protagonizavam e conduziam os caminhos estéticos composicionais proeminentes no campo da música de concerto internacional. Porém, um fator incidia desfavorecendo o compositor nesta busca pelo reconhecimento e legitimação de suas obras: ser brasileiro, ou seja, não estar na Europa, mas à margem do centro hegemônico onde eram promovidas estas discussões sobre novos caminhos artísticos musicais que se destacariam. Apesar deste contexto desfavorável, Villa-Lobos conquista seu almejado reconhecimento entre a crítica musical europeia durante suas incursões pelo velho mundo na década de 1920, tornando-se após este período um expoente da música de concerto da primeira metade do século XX. Colocamos então uma questão: como ocorreu esta ascensão do compositor para sua consolidação como figura representativa entre seus pares da época? Estudos recentes vêm trazendo um novo olhar sobre a obra de Villa-Lobos, mostrando um compositor diferente do músico “intuitivo” e “impulsivo” figurado em textos mais antigos calcados em esboços superficiais e de caráter diletante. O que está sendo constatado é que, ao contrário do que se especulou durante muito tempo, Villa-Lobos foi um compositor preocupado com minúcias estruturais, muito inclinado ao uso de procedimentos composicionais de caráter racionalista, com destaque para o uso recorrente de proporções simétricas em todas as esferas de suas obras: blocos harmônicos com padrões intervalares proporcionais, palíndromos melódicos e estruturas rítmicas espelhadas, são alguns exemplos (ALBUQUERQUE, 2014. VISCONTI, 2015. SALLES, 2009. NERY, 2012). Ou seja, Villa-Lobos se tornou reconhecido não por este perfil formalista que vários estudiosos estão descobrindo em estudos recentes, mas pelas múltiplas camadas referenciais onde se sobrepõem ambientações de paisagens sonoras tropicais idealizadas e citações de gestos da música folclórica e popular urbana colocadas em relevo na 149 superfície de suas obras. Soma-se a isso ainda o fato do compositor assumir este perfil de compositor empírico e emotivo, aspecto corroborado por críticos e autores de sua época que legitimaram a construção desta imagem de Villa-Lobos atrelada à romântica “estética do sentimento”, uma subjetividade legada do Romantismo e desabonada por Hanslick em seu ensaio Do Belo Musical (2011 [1854]). Textos que fizeram menção a algum uso de procedimentos estéticos racionalizados nas obras de Villa-Lobos foram raros até recentemente, como este sobre o uso de “milimetrização” na Sinfonia nº6 (1944): Esta Sinfonia é baseada na linha melódica das montanhas do Brasil, extraída do seu contorno, pelo processo criativo por Villa-Lobos por intermédio do gráfico da escala milimetrada. A finalidade desse gráfico é obter o desenho melódico da fotografia de uma montanha, paisagem ou colina, cujo perfil se reproduziu em uma folha quadriculada e, por meio de um pantógrafo, posto na escala de 1 x 1000. Escreve-se à margem, verticalmente, de baixo para cima, a sucessão cromática de 85 notas do sistema temperado, isto é, do lá 1 ao lá 6. Marcam-se, em seguida, os pontos principais, ângulos ou sinuosidades do contorno cuja melodia se deseja conhecer. Estes pontos correspondentes, sentido horizontal, às notas que se vão obter e que pertencerão, à escolha, ao modo maior ou menor. Há de corresponder ao nível do mar, ou base da montanha. Anotados os sons na pauta comum, determinam-se os seus valores e, por último, o compasso. Verticalmente, cada linha corresponde a um valor que representa a unidade do movimento e que, a critério, pode variar entre a semicolcheia e a semínima. Quantas forem as linhas que medeiam as notas, tantas unidades se acharão englobadas em cada uma. O ritmo é determinado pela observação da maneira pela qual se agruparam os valores (VillaLobos, sua obra, 1972, p. 242). Partimos então para a análise de alguns destes diversos fatores que compõem o discurso “sentimental” assumido por Villa-Lobos em suas locuções, apontando para as confluências e divergências com o discurso musical pertinente em sua obra. Norteando este nosso propósito exposto, buscamos algumas ferramentas do campo do pós-estruturalismo filosófico de Foucault e Pêcheux, refletindo sobre algumas diretrizes para uma análise do discurso proposta por Foucault em seu livro Arqueologia do Saber (2008 [1969]). Este autor esclarece: A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte? (FOUCAUT, 2008 [1969], p. 31) 150 Qual seria esta “singularidade” do discurso de Villa-Lobos que o legitimou como ícone no universo da música de concerto em sua época, embora apenas recentemente tenham surgido estudos mais profundos que começam a esclarecer sobre uma suposta engenharia empregada pelo compositor como pano de fundo de suas obras? De fato, não é nosso propósito responder a esta questão de forma conclusiva, mas destacar como Villa-Lobos utilizou do mesmo racionalismo estruturalista recorrente no expressionismo alemão, mas sem se valer da aplicação deste procedimento composicional como um discurso para fundamentar e agregar valor estético às suas obras. Pelo contrário, Villa-Lobos trabalhou para ocultar a complexa máquina estrutural presente em suas músicas sob uma camada espessa de referências, ideias e valores extramusicais, artifício que, concatenado ao seu controverso discurso público e sua postura pessoal “excêntrica”, lhe valeu a conquista da posição de destaque tão almejada perante a crítica especializada, mas também o interesse do grande público. O compositor combinou em suas obras simultaneamente uma base composicional consistente apoiada em uma complexidade formalista apurada, recoberta de estratos de citações que traziam impressões e contornos oriundos da música popular urbana e folclórica brasileira, atravessadas eventualmente por ambientações texturais empíricas que sugerem atmosferas florestais, rurais e interioranas, somados ainda à postura singular de um compositor inusitado que instigava o interesse e curiosidade de especialistas e do público para além do conteúdo musical implícito em suas obras, tornando a própria vida cotidiana do compositor mais um componente do seu discurso artístico. O próprio Villa-Lobos justifica seu propósito estético mais “sentimental” do que racionalista: Pelo sofrimento, os povos acabarão por compreender que têm necessidade da alma, que nunca poderão ser satisfeitos com a música-papel acadêmica. E pedirão uma nota do coração que seja a expressão sincera da humanidade. Então, talvez venha uma reação salutar contra esse “modernismo” de mau gosto e feios sons, e o mundo torne a ouvir música que é bela porque soa belamente (VILLA-LOBOS, 1966b, p. 105) Em outro trecho do mesmo texto, o compositor defende a posição do artista como interlocutor da sociedade a qual faz parte, reivindicando o dever do músico como conhecedor e apropriador da herança cultural e histórica acumulada em seu lugar de origem, parâmetro não contemplado pelo movimento modernista alemão. Na realidade, há três espécies de compositores: os que escrevem música-papel, segundo as regras ou modas; os que escrevem para ser “originais” e realizar algo que outros não realizaram, e, finalmente, os que escrevem música porque não podem viver sem ela. Só a terceira categoria tem valor. Esses compositores trabalham por 151 um ideal, e nunca por um objetivo prático. E a consciência artística, que é um prérequisito da liberdade artística, lhes impõe o dever de se esforçarem por encontrar uma expressão sincera, tanto de si mesmos como da humanidade. Para chegar a tal expressão, o compositor sério deverá estudar a herança musical do seu país, a geografia e etnografia da sua e de outras terras, o folclore de seu país, quer sob o aspecto literário, poético e político, que musical. Só dessa maneira pode ele compreender a alma do povo (da alma folclórica) (VILLA-LOBOS, 1966b, p. 105). Por outro lado, Villa-Lobos não se manifesta totalmente contra a herança estética cosmopolita, permitindo uma reflexão nossa sobre a recente especulação sobre um provável uso de procedimentos estruturalistas na obra do compositor. “Nunca me rebelei contra o classicismo, mas também nunca pude admitir o classicismo dentro das normas do pensamento de hoje” (VILLA-LOBOS, 1966ª, p. 95). Em outro momento, o compositor reconhece a importância dos escritos de Hanslick em comparação com as críticas musicais de sua época. “Além disso, a crítica musical perdeu muito de sua importância passada. Já terminaram os tempos em que um Hanslick destruía uma partitura de uma penada...” (VILLA-LOBOS, 1953 apud CARPENTIER, 1991, p. 52). Villa-Lobos revela que conhecia a proposta modernista alemã, chega a declarar Alban Berg como “compositor tão revolucionário como Wagner ou Debussy” (VILLALOBOS, 1953 apud CARPENTIER, 1991, p. 58). Em outro momento, em uma entrevista concedida a Alejo Carpentier em 1954, o compositor brasileiro expressa grande admiração pela obra do discípulo de Schoenberg: Se Alban Berg não tivesse morrido quando se iniciava o melhor período de sua criação (afirma o maestro), ocuparia hoje, na música universal, um lugar tão importante como o que ocupou Richard Wagner em seu tempo. Tudo o que ele nos deixou é magnífico. Não há obra sua carente de qualidade ou de interesse. Quando a Wozzeck, sua tragédia lírica, eu a considero uma das criações capitais de nossa época (VILLA-LOBOS, 1954 apud CARPENTIER, 1991, p. 65). Interessante que, um pouco mais à frente na mesma conversa, Villa-Lobos parece se contradizer ao retomar sua opinião contrária ao pensamento alemão, não admitindo o uso desta proposta racionalista em obras de um compositor latino. Compreendo que um compositor alemão seja cerebral (afirma). O que eu não admito é a criação cerebral em um latino. Daí que eu situe tão alto, no panorama da música de nosso continente, a figura do compositor uruguaio Tossar. Há nele uma originalidade fundamental de pensamento, mais válida do que todas as fórmulas usadas, atualmente, por demasiados compositores que pretendem ser “modernos” a todo custo (VILLA-LOBOS, 1954 apud CARPENTIER, 1991, p. 65). Em suma, nos parece evidente que Villa-Lobos construiu pelo menos dois discursos distintos em torno de suas músicas: por um lado o compositor se declara contrário ao extensivo racionalismo recorrente no modernismo alemão, preferindo e promovendo um 152 perfil mais referencialista e subjetivista para obras de compositores latinos; por outro lado, Villa-Lobos admite em alguns momentos pontuais sua admiração e interesse pela estética estruturalista da Segunda Escola de Viena, com uma particular aspiração pela linguagem de Alban Berg (ao nosso ver um compositor com uma proposta menos extremista que Schoenberg e Weber), coincidindo com as apresentações das recentes pesquisas que vêm revelando a presença recorrente de procedimentos envolvendo o uso extensivo de proporções simétricas entre grupos de alturas na obra de Villa-Lobos. *** No contexto artístico modernista brasileiro, outra oposição entre duas propostas estéticas estava em debate na primeira metade do século XX: de um lado temos o idealismo hegeliano de Graça Aranha e Renato Almeida e de outro temos o materialismo historicista inspirado em Marx, proposta colocada por Mario de Andrade (MARTINS, 2009). Ambas as propostas mantinham em comum a busca por um processo de “modernização” das correntes artísticas em torno de uma ideia de essência nacional, uma proposta de autonomia que levasse em conta a cultura brasileira em suas raízes e resistisse ao assédio do influente universalismo hegemônico que chegava da Europa. A diferença entre as duas propostas estava nesta construção da ideia de “nacional” e de onde deveriam vir os materiais “autenticamente” brasileiros que serviriam para serem utilizados pelos artistas na elaboração de suas obras. Ambas as correntes acreditavam que a essência desta ideia de nação deveria estar na cultura popular, no entanto, havia uma evidente diferença no modo de apropriação dos materiais oriundos desta fonte. A proposta idealista ganha seus contornos em torno da obra Estética da Vida (1921) de Graça Aranha e tem desdobramentos no campo da música na primeira edição3 de História da Música Brasileira (1926) de Renato de Almeida. Segundo Martins (2009), são textos pautados pelas questões da apreciação, emoção, intuição, escritos em estilo ensaísta, trazendo uma proposta de interpretação subjetiva do nacional a partir das impressões do próprio artista, de uma experiência cultural que este tenha acumulado e que a síntese desta vivência pudesse ser catalisada e transmitida através de suas manifestações artísticas. Temos aqui também a síntese do dualismo hegeliano que interpreta o homem (músico/artista) e sua interação com o cosmos (natureza/cultura), enfrentamento que gera o conteúdo para suas proposições (criações musicais/artísticas). 3 Renato Almeida revê sua posição e abandona a concepção filosófica de Graça Aranha para aderir ao projeto musical de Mario de Andrade, pautado pela pesquisa e coleta do folclore brasileiro (MARTINS, 2009). Em reflexo a este novo interesse, o autor publicou uma segunda edição de seu livro em 1946 com profundas alterações, trazendo um perfil mais científico em seu trabalho. 153 Em oposição, temos a proposta materialista historicista de Mario de Andrade, pautada pela lógica e ação prática, uma vertente de cunho realista, cientificista, empirista, regido pelo interesse na pesquisa e na coleta de materiais que pudessem comprovar a existência de um folclore que certificasse a autenticidade estética de uma identidade brasileira. Temos aqui uma proposta de construção da ideia de nação, não a partir de uma experiência e impressão subjetiva do próprio artista em interação com seu meio cotidiano como é apresentado na vertente idealista, mas baseado no acúmulo e análise de materiais coletados em pesquisas extensivas, uma busca por fatores invariantes que permeassem a cultura brasileira como um todo e permitissem identificar uma essência de nacionalidade comprovada por amostragens seguras e objetivas. Martins (2009) destaca as divergências entre estas duas propostas concorrentes: Dessa forma, a análise mais detida da correspondência permite-nos afirmar que estas últimas polêmicas, ocorridas no interior do movimento modernista, acabam por polarizá-lo, principalmente, em duas grandes frentes: uma mais “analítica”, que valoriza a pesquisa empírica e entende que é preciso “conhecer” a realidade como ela nos aparece – que seguia a orientação de Mário de Andrade –, e outra, de cunho mais “idealista”, que entendia que a realidade somente poderia ser acessada por vias emocionais, de modo intuitivo – que era liderada por Graça Aranha – , a qual Renato Almeida estava ligado. (MARTINS, 2009, p. 61) Martins ainda complementa mais à frente sobre as diferenças entre estas duas vertentes nacionalistas dentro do campo da música modernista brasileira: Com a explicitação das posições dos autores no interior do movimento modernista, fica-nos claro a existência de dois modos de se compreender a história da música brasileira, bem como duas formas de nacionalizá-la. A primeira, sob a orientação de Mário de Andrade, entendia que ainda não havia música artística brasileira devido, principalmente, à não valorização da música popular, como aparece na citação colocada anteriormente. A outra, defendida por Renato Almeida, entendia e valorizava os esforços dos compositores do “passado”; porém, diferentemente de Andrade, não considerava que a pesquisa da música popular poderia converter a música artística em nacional; mas, sim, a compreensão, por parte dos compositores, de que era preciso desfazer a dualidade existente na arte produzida no Brasil, por meio da integração do indivíduo-natureza. (MARTINS, 2009, p. 67) Em outro trecho, o autor retoma as características desta oposição em relação à importância da música popular neste projeto de busca pela “essência” do nacional: Enquanto para Mário de Andrade a ênfase deveria ser dada à música popular e aos seus compositores – pois compreendia que era neles que estava a “essência” do nacional –, cobrando, para isso, a necessidade do historiador da música de ir às fontes, pesquisar empiricamente as manifestações populares; para Renato Almeida, de outro modo, era imprescindível a valorização dos compositores eruditos e de suas composições, sobretudo naquilo que eles tinham de proximidade com a natureza brasileira. (MARTINS, 2009, p. 68) Por outro lado, estas duas propostas de “nacionalismo” acabaram se encontrando em pontos de convergências. Uma destas incidências aconteceu na busca por uma definição 154 da “cultura brasileira”, um lugar comum que pudesse ser a síntese de toda uma cultura. Outro ponto em comum era a busca por um rompimento com a dependência e submissão passiva à cultura cosmopolita importada da Europa, isto a partir da procura pela musicalidade brasileira expressa na manifestação popular, e que ainda não encontrava meios para se expressar como identidade nacional (MARTINS, 2009). Percebemos que Villa-Lobos transita por estas duas vertentes ao longo de suas obras, mas a proposta de um nacionalismo mais inclinado ao idealismo hegeliano de Graça Aranha e Renato Almeida parece ter se destacado mais nas colocações expostas em comentários do compositor, com expressões emblemáticas como “o folclore sou eu”. Afirmações como esta mostram que Villa-Lobos prega um discurso idealista de busca por uma apropriação do folclore em suas obras a partir de impressões vivenciadas pelo próprio compositor, mais do que baseado em extensas pesquisas de campo para coleta e seleção de materiais que serviriam de base para a elaboração das músicas de cunho nacionalista, como propunha o materialismo historicista de Mario de Andrade. Essa preferência pela apresentação de referências a manifestações populares a partir de uma suposição calcada na memória e imaginação estereotipada do próprio artista pode ser verificada em obras como a série Choros, um conjunto de músicas que faz alusão ao gênero popular de mesmo nome, mas sem se tornar dependente de uma exposição de um recorte fiel ao contexto original de onde o material foi extraído. Por outro lado, em trabalhos como o Guia Prático, manual apresentado pelo compositor na década de 1930 com arranjos de diversas melodias folclóricas coletadas, temos uma aproximação de Villa-Lobos à proposta de catalogação de canções feita por Mario de Andrade. No entanto, estes momentos são pontuais e a utilização feita pelo compositor destes materiais aconteceu predominantemente de forma desprendida de um compromisso em manter o conteúdo original em suas apresentações ao longo das obras em que foram recorrentes. Contudo, chamou nossa atenção o rigor técnico utilizado na recorrência à procedimentos harmônicos destacadamente elaborados, seguindo frequentemente padrões simétricos aplicados à organização estrutural de suas músicas, desde pequenos grupos de alturas distribuídos em palíndromos e se estendendo à construção proporcional de grandes seções, trabalhando na totalidade formal das obras. Isso nos mostra que o materialismo historicista proposto por Mario de Andrade não foi aplicado por Villa-Lobos no âmbito da coleta, catalogação, organização e apropriação de contornos folclóricos que seriam replicados posteriormente no desenvolvimento de obras musicais de caráter nacionalista, como 155 prescrevia o escritor aos compositores da época. Por outro lado, este pensamento de inclinação mais cientificista proposto por Mario de Andrade foi trabalhado por Villa-Lobos na esfera estrutural de suas obras, organizando racionalmente parâmetros estritamente musicais, ficando a distribuição de recortes superficiais que remetessem ao âmbito popular e folclórico regidos pelas impressões pessoais do próprio compositor, seguindo a reflexos subjetivos como sugeria a proposta idealista de Graça Aranha e Renato Almeida. Referências ALBUQUERQUE, Joel Miranda Bravo de. “Simetria intervalar e rede de coleções: análise estrutural dos Choros nº 4 e Choros nº 7 de Heitor Villa-Lobos”. 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Da mesma forma, contextualiza a produção da Trilogia Amazônica, o ballet Uirapuru, suas montagens realizadas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, bem como, uma entrevista concedida pela coreógrafa da proposta encenada em 2016. Palavras-chave: Técnica composicional. Estudo comparativo. Processos de estruturação musical. Bailado brasileiro. Mitos Nacionais. Trilogia amazônica. Uirapuru: the legend of the enchanted bird, by Heitor Villa-Lobos Abstract: The purpose of this article is to bring out, first, autograph manuscripts by Brazilian composer Heitor Villa-Lobos (1887-1959) utilized in Uirapuru ballet. This study intends to be a briefing about programmatic creation processes, legends and myths from cultural background of the composers Villa-Lobos, Igor Stravinsky and Jean Sibelius. For that, the analysis will be grounded on the interpretation of the symphonic poems Uirapurú, L’oiseau de Feu and Tapiola, respectively. The article, also contextualizes the production of the Amazon Trilogy, the Uirapuru ballet, their productions held by the staff of the Municipal Theatro of Rio de Janeiro, as well as an interview given by the choreographer of the 2016 performance proposal. Keywords: Compositional Technique. Comparative studies. Brazilian ballet. National Myths. Amazon trilogy. 1 (n. 1977), Pesquisador pós-doc em musicologia pela Universidade de São Paulo e pesquisador visitante da Faculdade de Artes da Universidade de Helsinque, sob a supervisão dos Professores Paulo de Tarso Salles e Eero Tarasti, respectivamente. É PhD – em processos de criação musical – obtido na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP, 2014), com a tese sobre o “Estudo Interpretativo da Técnica Composicional Melodia das Montanhas, utilizada nas peças orquestrais: New York Sky-Line Melody e Sinfonia No. 6 de Heitor Villa-Lobos” – orientador Professor Gil Jardim. Rodrigo é mestre em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP, 2007) com a dissertação “Paisagem Sonora do Espaço Migrante” – orientador Heinz Dieter Heidemann. Ele é bacharel em regência obtido na Faculdade Santa Marcelina (FASM, 2008) sob a supervisão do maestro Lutero Rodrigues. Também é bacharel em Geografia (FFLCH-USP, 2003). Nascido em São Paulo, começou sua educação musical na Waldorf – Escola Rudolf Steiner de São Paulo. Possui experiência no campo da pesquisa, coro e orquestra, com atividades vinculadas a educação musical no Instituto Acaia (ONG), Orquestra Antunes Câmara (OAC) e Coral da Universidade de São Paulo (Coralusp, 1998-2008). Ao longo dos últimos anos, Rodrigo tem participado de diversos Master Classes e Festivais de Música em diversos países (Estados Unidos, República Tcheca e Brasil), sob as direções dos maestros Kirk Trevor, Donald Schleicher, Kenneth Kieslier, Lanfranco Marcellette, Maurice Peress e Kurt Masur. Durante o período de 2012-2014, Rodrigo foi membro do conselho da Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo (OSUSP). Em 2016, Rodrigo iniciou estudo e aperfeiçoamento em Regência sob a orientação do maestro Roberto Duarte (UFRJ e ABM). 158 Anda, caminha, voa.vento e folhagem cheiro molhado, melodia de luzes teias verdes entre céu e terra Baila baila verde trança nas gotas vivas som entre montanhas e rios pequenino corpo no contra luz assobia minha alma posta entre oceano de costas diversas olho frontal de alma partida. Por Elisa Bracher Introdução O presente artigo está fundamentado a partir do viés metodológico em semiótica, que referenda a metodologia adequada, associada às pesquisas desenvolvidas sobre a relação mito e música – resguardada a epistemologia da semiótica. O objeto de estudo desta pesquisa está relacionado à intertextualidade dos discursos musicais concebidos a partir do tema mito da natureza, inspirado nos folclores, brasileiro, russo e finlandês. Este estudo aborda a obra Uirapuru (o passarinho encantado) bailado brasileiro de Villa-Lobos, comparando o seu processo de criação com o das obras relacionadas. A intenção é a de identificar os códigos estruturantes, que representam os elementos temáticos convergentes apresentados por Villa-Lobos, Stravinsky e Sibelius, como elementos simbólicos de suas respectivas tradições culturais, difundidas na primeira metade do século XX. Inicialmente, as perguntas que destacamos a respeito deste tema são: 1. Existiria alguma possibilidade de Igor Stravinsky influenciar a composição do bailado brasileiro Uirapuru de Villa-Lobos? 2. Que tipo de correspondência existe entre as obras Uirapuru, L’oiseau de Feu e Tapiola? 3. Qual o melhor método para analisá-las? 4. Que mitos nacionais e lendas foram utilizados por estes compositores nas obras relacionadas? 5. Qual a origem temática destas obras? O poema sinfônico Tapiola, de Jean Sibelius, foi estruturado com forte apelo ao mito nacional da floresta na Finlândia; neste caso, influenciado pelo Kalevala, um poema épico compilado por Elias Lönnrot e que representa um patrimônio imaterial essencial para compreendermos a memória e a identidade cultural da nação finlandesa. Com estas imagens míticas da natureza, estudaremos as correntes de signos que dão identidade a estas obras e que motivaram estes compositores. Para tanto, faz-se necessário identificarmos os “arquétipos” associados ao tema do mito particular de cada uma dessas tradições culturais. Northrop Frye apresenta o conceito de “arquétipo”, que significa um complexo de símbolos, além disso, forma uma temática de redes de significados que definem o autor e sua 159 relação pessoal com o mito. Isso caracteriza as relações míticas e seus símbolos arraigados às obras em análise. Em última análise, ao pesquisar mitos no campo da arte, verifica-se a essência oculta do processo criativo e dos processos psicológicos do artista (FRYE, 1957, p. 51; In TARASTI, 1979, p. 22). O modelo de “arquétipo” de Northrop Frye introduz em nossa análise uma leitura sobre o conceito de símbolo, usualmente uma imagem que regularmente provém da literatura para ser reconhecida como um elemento principal que traz uma conotação de experiência de totalidade. Em nosso caso, o conceito de “arquétipo” será utilizado na narrativa musical do mito da natureza. A aplicabilidade deste conceito permitirá analisar, comparativamente, os traços que delineiam este “arquétipo” utilizado nas peças de Stravinsky, Sibelius e VillaLobos. Este conceito permite a construção de um modelo de comparação para a análise das obras citadas. As ideias “arquetípicas”, reveladas neste estudo, permitirão utilizar uma ferramenta de análise que está implícita ou explicita à temática do mito na música. A análise interpretativa destes processos de criação busca destacar as influências estéticas destas obras, embasadas no método de pesquisa da semiótica na música, quanto à análise do mito. O discurso musical destas obras será verificado pelo método de “sistema de códigos” e seus “significantes”, de acordo com a teoria epistemológica difundida por Eero Tarasti (1979, 1994, 2015). Os temas das obras citadas trazem, à luz da análise formal, a busca da identificação de padrões estruturantes que conferem identidade singular às composições musicais relacionadas aos mitos e lendas dos respectivos folclores. Eero Tarasti apresenta suas contribuições aos estudos relativos às teorias do mito na música nos seguintes livros: Myth and Music (1979), A Theory of Musical Semiotics (1994), Sein um Schein (2015). Da mesma forma, Northrop Frye contextualiza esta problemática em Anatomy of criticism: four essays (1957), assim como a referência à tradição da antropologia estruturalista de Claude Lévi-Strauss em Anthropologie Struturale, dá sustentação à escola da semiótica. Yuri Lotman e Boris Uspenski em Mythe, nom et Culture, an essay in Ecole de Tartu e Jean-Jaques Nattiez, em Fondements d’une Semiologie de la Musique, também são parâmetros para estabelecermos as relações sobre o uso do mito da natureza e suas lendas para o estudo musical de um sistema de criação. A diversidade geográfica no pensamento musical, combinada à herança cultural imaterial destas nações contextualizam três diferentes mitos da natureza que inspiraram os 160 compositores Villa-Lobos, Stravinsky e Sibelius, revelando três sistemas de signos, símbolos e significantes. Neste estudo, o conceito de signo constrói uma analogia à imagem pássaro, que representa por meio de suas mitologias e lendas locais, as essências etnográficas originárias das culturas brasileira, russa e finlandesa. Estas passam a ser reinterpretadas nas obras em destaque, a partir do olhar e do pensamento musical idealizados por estes compositores. Segundo os apontamentos de Martine Joly: O símbolo é entendido como a complementaridade verbal de uma imagem pode ser apenas essa forma de revezamento. Consiste em conferir à imagem uma significação que parte dela, sem com isso ser-lhe intrínseca. Trata-se, então, de uma interpretação que excede a imagem, desencadeia palavras, um pensamento, um discurso interior, partindo da imagem que é seu suporte, mas que simultaneamente dela se desprende (JOLY, 2009, p. 120). Charles Sanders Peirce (1839-1914), precursor dos estudos da semiótica, conceitua que: “um Símbolo é um signo naturalmente adequado a declarar que o conjunto de objetos que é denotado por qualquer conjunto de índices que possa, sob certos aspectos, a ele estar ligado, é representado por um ícone com ele associado”. De acordo com Peirce, “Signo, é qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente ad infinitum”. O embasamento epistemológico, da análise em semiótica, será a ferramenta adequada para a pesquisa dos padrões musicais espontâneos e dos “arquétipos”, observados nas análises de Uirapuru, L’oiseau de Feu e Tapiola. O mito da natureza, inspirado nas lendas compreende uma trajetória no tempo e espaço, estabelecida a partir da relação do discurso musical, onde são identificados três sistemas de códigos independentes, nos quais os compositores desenvolveram suas criações, transformadas em temas musicais. A hipótese lançada envolve a correspondência dos processos de criação destas obras. Procura-se identificar qual a estrutura singular que pode ser observada e relacionada como padrão no agrupamento de cada discurso musical. Existe algum método de pesquisa para analisar a similaridade entre os elementos temáticos destas composições? Qual o sistema de código em semiótica que pode ser representado como comportamento estruturante do texto musical dessas obras? Que “arquétipo” pode ser identificado, combinado e analisado, tendo como padrão o mito da natureza? O embasamento metodológico desta pesquisa em semiótica apresenta as considerações de Roland Barthes (1972), para quem o mito é observado envolto por um 161 “sistema de códigos” independentes de qualquer conteúdo externo. Cada texto musical contém um sistema próprio, que pode ser identificado nas obras em análise. Observamos no artigo produzido por Paulo de Tarso Salles, um estudo comparativo das seções temáticas da obra Tédio de Alvorada (1916) e o uso de material temático reintroduzido e ampliado ao longo das seções do poema sinfônico Uirapuru. De acordo com as colocações de Paulo de Tarso Salles: Devido ao longo intervalo entre a composição de Tédio de Alvorada e a estreia de Uirapuru, a suposição mais lógica é que Villa-Lobos tenha concebido Uirapuru ao longo da década de 1920, muito provavelmente adotando novas técnicas de composição ao entrar em contato com o ambiente musical parisiense. Assim, uma análise comparativa entre as duas partituras pode revelar muito dos processos composicionais de Villa-Lobos e mesmo ajudar a estabelecer em quais aspectos específicos se pode falar da influência stravinskyana em sua obra (SALLES, 2005, p. 3). Neste artigo, o autor observa que a obra Tédio de Alvorada constitui um documento importante para entendermos o desenvolvimento da escrita sinfônica de VillaLobos, antes do compositor realizar sua primeira viagem a Paris, em 1923. Desta forma, o uso das seções da obra Tédio de Alvorada encontrada em Uirapuru, evidencia uma escrita transitória, uma vez que os elementos temáticos desenvolvidos nesta obra são anteriores à influência sofrida pelo compositor, que esteve em contato direto com o meio artístico parisiense a partir de 1923. Lisa Peppercorn (1996:100), por outro lado, relata em seu livro The World of Villa-Lobos in Pictures and Documents, que a lenda do Uirapuru foi inspirada a partir de estudos que Villa-Lobos realizou sobre lendas brasileiras. Segundo Lisa Peppercorn, o livro de Gustavo Dodt Barroso - Mythes, Contes et Légends des Indiens. Folklores Brésilien - foi uma das referências utilizadas para o estudo do assunto desenvolvido por Villa-Lobos durante o processo criativo realizado para a concepção do bailado brasileiro Uirapuru. Lisa Peppercorn, também contextualiza que, em julho de 1917, Villa-Lobos teve o seu primeiro contato com a música de Stravinsky e Ravel pois, na ocasião, as companhias dos ballets russos foram promovidas por Sergei Diaghilev no Rio de Janeiro. Outra influência identificada nesta obra, o acorde de Tristão e Isolda, pode estar associada à motivação que Villa-Lobos teve ao assistir a apresentação de Alexander Smallens, que regeu Tristão e Isolda, no mês de setembro, no Rio de janeiro. Em 17 de novembro desse mesmo ano, VillaLobos organizou o seu terceiro concerto autoral. Concomitantemente a estas ocorrências em 1917, Villa-Lobos compõe Amazonas, Uirapuru e Naufrágio de Kleônicos (PEPPERCORN, 1994, p. 184). 162 Ao observarmos os manuscritos autógrafos do compositor: documentos [Uirapurú MVL 1990-21-0173], [Uirapurú MVL 1990-21-0176] e [Uirapurú MVL 1990-21-0172], identificamos duas reduções para piano e uma partitura de orquestra. Nestes manuscritos constatamos que existem diferentes marcações alternadas por lápis de cor e caneta. A datação das partituras autografadas pelo compositor são de 1917. Contudo, aferimos que a composição desta obra sofreu um processo de sobreposição de camadas melódicas em contraponto. O documento [Uirapurú MVL 1990-21-0173] nos revela, dentre os autógrafos consultados, que este manuscrito apresenta a maior manipulação dos materiais melódicos feitos pelo compositor durante a produção desta obra. Dessa forma, observamos a existência de um material musicológico histórico que facilita empreender um estudo analítico dos elementos estruturantes identificados nesta obra. Maria Alice Volpe, no artigo “O manuscrito P38.11 e a “tabela prática” de VillaLobos”, identifica o uso e a sobreposição da escala cromática com a escala de tons inteiros, para o reaproveitamento dos elementos melódicos da obra Tédio de Alvorada em Uirapuru. Neste artigo, realiza uma crítica textual do manuscrito P38.11 e da “tabela prática”, contextualizando um conjunto documental que dá ensejo para a crítica analítica. De acordo com autora, a melodia do Índio Feio (Ed. AMP, c. 19-24), apresenta um elemento que aponta para a transformação melódica sofrida, após a aplicação da “tabela prática” de Villa-Lobos à melodia apresentada em Tédio de Alvorada. A pesquisadora destaca a “convergência de elementos da sistematização, expressa na “tabela prática” de Villa-Lobos, com elementos estruturantes da nova lógica da tonalidade não funcional, proposta pela corrente analítica a que se filia Antokoletz”. Tal aferição evidencia que o estudo da crítica textual e das anotações preliminares de Villa-Lobos são de importância fundamental para os estudos da teoria analítica e para a sistematização dos estudos da música tonal não funcional. Por outro lado, as seções de Uirapuru que não constam em Tédio de Alvorada, possivelmente seriam aquelas em que o compositor poderia estar sob a influência da estética vanguardista de seu tempo na Europa. As alterações no material temático original da obra Tédio de Alvorada trazem evidências das adaptações e ampliações propostas pelo compositor, posteriormente à sua estada em Paris. Paulo de Tarso Salles destaca que “a comparação entre as partituras de Tédio de Alvorada e Uirapuru revelam o cruzamento de influências da juventude de Villa-Lobos com técnicas “modernas” dos anos 1920”. No entanto, entendemos que a comparação com outras obras stravinskyanas como, por exemplo, L’oiseau de Feu (1910), podem apresentar, ou 163 contextualizar ainda mais, as influências “modernas” utilizadas pelo compositor brasileiro. Da mesma forma, a comparação entre estas duas obras pode oferecer uma dimensão da proposta villa-lobiana, sob os aspectos da montagem do ballet Uirapuru e seu contexto histórico, emblemático para a primeira metade do século XX. Gil Jardim contextualiza, no capítulo Imagens Sonoras de seu livro O Estilo Antropofágico de Heitor Villa-Lobos, parte das influências históricas em que Igor Stravinsky foi inspiração ao compositor brasileiro. Neste capítulo, Gil Jardim enfatiza as relações entre Villa-Lobos e Igor Stravinsky. Podemos verificar a potencialidade latente das relações entre os ballets de Stravinsky e Villa-Lobos. Sem dúvida observamos um rico material para pesquisa e análise dessas obras em questão. Eero Tarasti (1995, p. 363), em seu livro Heitor Villa-Lobos. The Life and Works, 1887-1959, tece referências às matrizes de inspiração em que o compositor se fundamentou para conceber o Uirapuru, no que se refere à abordagem da temática da natureza brasileira e do índio. Tarasti apresenta as fontes reveladas nos estudos do folclore brasileiro a partir do dicionário de Luiz Câmara Cascudo, citando, também, as obras de José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) – O Selvagem (1876) e Richard Spruce em seu livro Notes of a Botanist on the Amazon and Andes, Londres, 1908. Estas fontes bibliográficas citadas por Eero Tarasti são de extrema relevância para a análise do processo criativo desenvolvido por Villa-Lobos na obra Uirapuru. Estas fontes formam parte da pedra fundamental em que Villa-Lobos se apoiou para conceber o bailado. Contudo, Gastão Cruls, médico e romancista carioca, possivelmente foi outra referência em que Villa-Lobos se baseou para escrever o Uirapuru. Gastão Cruls (1888-1959), em seus livros Amazônia Misteriosa (1925) e Amazônia que eu vi (1930), traz elementos que indicam uma relação muito próxima aos temas que Villa-Lobos descreve e cita em seu bailado, tanto em termos da lenda indígena como em temas musicais desenvolvidos e variados ao longo das seções musicais desta obra. No livro A Amazônia que eu vi (1925:75), verificou-se a apresentação do tema do pássaro Uirapuru registrado por Spruce nas imediações da cachoeira do Breu na Amazônia. No romance Amazônia Misteriosa, Gastão Cruls introduz um conto de Uirapuru, no qual encontramos fortes indícios para esta arguição. Eero Tarasti (1995, p. 363) estabelece ainda uma aproximação dos motivos ilustrados pela flauta de osso, tocada pelo Índio Feio. De acordo com Tarasti, esta figuração tem certa combinação com Vogels as Prophet de Robert Schumann e Syrinx de Claude Debussy. A entrada das jovens Índias e a expulsão do Índio Feio assemelham-se, em termos 164 musicais, ao primitivismo de seu tempo. Os acordes dissonantes e enérgicos tocados pelo arco do naipe das cordas, reforçados pelo sincopado dos trombones, é uma alusão direta à seção rítmica de Sacre du Printemps de Stravinsky. De acordo com Tarasti é difícil imaginar que os comentários precisos tocados pelos trombones não foram emprestados dos gestos musicais encontrados em Sacre du Printemps ou que a seção rítmica dos violinos e das madeiras, não fazem alusão ao L’oiseau de Feu de Stravinsky. 1-Estreia do ballet A estreia do ballet Uirapuru se deu em 25 de maio de 1935, no Teatro Colón em Buenos Aires, em função de gala em honra do Presidente Getúlio Vargas à Argentina. A primeira execução esteve ao encargo da Orquestra e Corpo de Baile do Teatro Colón, sob a regência do próprio compositor. A coreografia foi concebida por R. Nemanoff; com cenografia de Hector Balsadúa, e a performance de Michel Borovsky e Dora del Grande, como bailarinos principais do bailado brasileiro proposto por Villa-Lobos. De acordo com o documento [Uirapurú MVL 1990-21-0172 Texto 01] autógrafo do compositor, o ballet Uirapuru foi constituído para 35 bailarinos, havendo três personagens principais, Índio Bonito, Índia Caçadora e Índio Feio, além de 32 Índias. O assunto escrito por Villa-Lobos para este bailado brasileiro foi transcrito a seguir, a partir do documento autógrafo do compositor [Uirapurú MVL 1990-21-0172 Texto 01]. UIRAPURÚ (“Le petit oiseau enchenté”) (Lenda do Pássaro Encantado) Bailado brasileiro Conta uma lenda que a magia do canto noturno do Uirapuru era tão atraente que as índias à noite se reuniam, à procura do trovador mágico das florestas brasileiras, porque os feiticeiros lhes contaram que o Uirapuru era o mais belo cacique que existia sobre a Terra e era o rei do amor. Noite tropical e enluarada. Numa floresta, calma e silenciosa, aparece um índio feio, tocando uma flauta de osso pelo nariz, querendo desafiar o pássaro encantado da floresta, que, com o seu canto mágico, atraí as jovens índias. Ao ouvirem o som da flauta, surgem em grupo alegre as mais belas selvícolas da região do Pará. Decepcionam-se, porém ao descobrirem aquele índio feio e, indignadas, enxotam-no brutalmente com pancadas, empurrões e pontapés. Ansiosas procuram, pelas folhagens das árvores o Uirapurú, certas de que encontrem um lindo jovem. São testemunhas desta ansiedade os vagalumes, os grilos, as corujas, os bacuraus, os sapos-intanhas, os morcegos e toda a fauna noturna. De quando em vez, ouvem-se de longe alguns trilos suaves, que, anunciando o Uirapuru, irradiam o contentamento de todo aquele ambiente. Seduzida pelo mavioso canto do Uirapuru, surge uma linda e robusta índia de flecha e bodoque em punho, com uma adestrada caçadora de pássaros noturnos. Ao ver o 165 pássaro encantado, lança-lhe a flecha, prostrando-o por terra. Surpreende-se, porém, ao vê-lo transformado num belo indígena. E ele disputado por todas as índias, que também ansiosas o esperavam, saindo vitoriosas, no entanto, a caçadora que o ferira. No auge da disputa, ouve-se o toque fanhoso agourento da flauta de osso do índio feio. Temendo uma vingança do índio feio e mau, as índias procuram esconder o belo índio, que é ainda surpreendido pelo temido índio, que, feroz e vingativo, atiralhe uma flecha, ferindo-o mortalmente. Pressurosas, as índias carregam-no em seus braços à beira de um poço, onde ele, subitamente se transforma num pássaro invisível, deixando-as tristes e apaixonadas ouvindo apenas o seu canto maravilhoso, que vai sumindo no silêncio da floresta. 2-Uirapuru no Theatro Municipal do Rio de Janeiro De acordo com consulta realizada junto ao acervo do Centro de Documentação do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a coordenadora Fátima Gonçalves (2016) informa a seguinte nota sobre as montagens deste ballet: Em 19 de maio de 1943, oito anos depois da apresentação no Teatro Colón, Uirapuru teve sua estreia no Brasil, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com coreografia de Vaslav Veltchek, regência de Edoardo De Guarnieri e a bailarina Eros Volusia no papel principal. Uirapuru foi reapresentado em 03 de novembro de 1946, com coreografia de Yuco Lindberg, regência de Henrique Spedini e a bailarina Leda Yuqui como “Ìndia Caçadora”. A terceira apresentação de Uirapuru no Municipal foi em 1955, com coreografia de Vaslav Veltchek, regência de Nino Stinco e os bailarinos Tatiana Leskova e Dennis Gray nos papeis principais. Em 2016, no espetáculo Trilogia Amazônica, o Theatro Municipal homenageou o compositor reunindo suas principais composições para bailados com temática sobre a natureza: Uirapuru, Erosão, Alvorada na Floresta Tropical e Amazonas (Fátima Gonçalves, 2016) Na temporada de 2016, a montagem da Trilogia Amazônica foi realizada pelo Ballet e Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a regência do maestro Tobias Volkmann. No programa constaram: Uirapuru – O Pássaro da Floresta (Canto III de Floresta do Amazonas, 1958), Uirapuru (1917) com coreografia de Daniela Cardim. Erosão – Erosão, a origem do Rio Amazonas com coreografia de Luiz Fernando Bongiovanni. Alvorecer – Alvorada na Floresta Tropical (1953) e Amazonas (1917) com coreografia de Marcelo Gomes. A cenografia esteve ao encargo de Gringo Cardia, os figurinos foram concebidos por Renê Salazar e a Iluminação foi de Manéco Quinderé. A direção artística do Ballet do TMRJ foi assinada por Ana Botafogo e Cecília Kerche. De acordo com a concepção desta trilogia a direção do Corpo de Baile da Fundação do Theatro Municipal do Rio de Janeiro externou: 166 Sob o olhar contemporâneo destes três coreógrafos para as vibrantes músicas de Villa-Lobos, fica o alerta para a preservação da Amazônia, onde diferentes povos indígenas, com distintos grupos linguísticos, habitam a floresta que possui uma das maiores biodiversidades do planeta. Uirapuru, Erosão e Alvorecer, dançados pela companhia clássica mais tradicional do Brasil, deixa uma mensagem: Cuidemos da maior floresta tropical da Terra, de todos que nela vivem e da riqueza de sua cultura (BOTAFOGO, KERCHE, 2016). No programa de concerto, o musicólogo Manoel Corrêa do Lago contextualiza Villa-Lobos e o ballet do século XX. 3-Entrevista com a coreógrafa Daniela Cardim Em entrevista com a coreógrafa Daniela Cardim, pudemos compreender melhor o processo de montagem do bailado brasileiro Uirapuru, em sua versão 2016, assinada pela autora e apresentada pelo Ballet e Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (TMRJ). Apresentaremos alguns pontos importantes, comentados pela coreógrafa sobre o processo de montagem deste bailado. Segundo Daniela Cardim, inicialmente, foi feito um convite pela direção artística do TMRJ para a realização da montagem do bailado Uirapuru, com liberdade para desenvolver o processo criativo. Como não seria possível buscar algo abstrato, ela pesquisou as lendas do Uirapuru. De acordo com a coreógrafa, o ponto de partida foi à música. “Ouvi muito a música e procurei compreender o que esta música me comunicava, pois não queria realizar um ballet descritivo. Tinha a intenção de propor uma versão contemporânea. Não tinha a intenção de desenvolver um ballet narrativo com figurino descritivo”. Dessa maneira, a intenção da coreógrafa foi a de realizar uma versão contemporânea da obra. Para tanto, certos símbolos eram inerentes à esta proposta de realização da montagem. Segundo a autora, havia três importantes aspectos a serem revelados: “a índia, o amor e o mistério”. Em suma, a procura que a índia fazia em busca do pássaro. Dessa forma, Daniela Cardim retratou parte da estória de amor, bem como a transformação do índio em pássaro. A autora destaca que, “parte da estória coreografada trata da estória de amor e da procura. O canto do pássaro e o mistério revelado, a partir da busca da personagem índia”. A coreógrafa escreveu para a concretização da proposta desta performance um storyboard: um documento que divide a música em partes, para a elaboração das cenas do espetáculo. Foi desta forma que Daniela Cardim criou as cenas do ballet. 167 Após a conclusão deste storyboard, a autora encaminhou este documento, para o figurinista e o cenógrafo, para que eles pudessem realizar suas próprias criações a partir desta proposta da performance de síntese do bailado. Tendo estas cenas como base. Daniela Cardim foi para o estúdio com a equipe de bailarinos, já orientada pela estrutura do ballet concebido em seções. Em seguida, a coreógrafa propôs uma série de workshops com os bailarinos, visando trabalhar a improvisação e, da mesma forma, conhecer o movimento dos bailarinos. Parte da coreografia foi criada a partir de movimentos derivados de exercícios de improvisação, onde os bailarinos eram guiados com tarefas indicadas. A autora buscou encontrar os movimentos que condiziam com a coreografia almejada. Algumas partes do poema sinfônico já haviam sido determinadas previamente. De mesma forma, outros movimentos foram criados e transmitidos junto com os bailarinos. Excepcionalmente, em algumas seções musicais, onde a música apresenta um andamento mais enérgico e dramático, o improviso foi suspenso para a criação de uma coreografia previamente determinada. O mapa da coreografia – o spacing do ballet foi utilizado para a marcação da localização de determinado bailarino na cena musical, um método de marcação das formações dos bailarinos em formas dispostas no tablado. Os desafios encontrados ao longo do processo de criação desta montagem: a grande questão estava em achar o ponto de equilíbrio entre a narrativa e a abstração do assunto deste ballet. O desafio encontrado pela coreógrafa foi estabelecer o equilíbrio entre a narração da estória e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de abstração do enredo para que o público pudesse soltar a sua imaginação ao longo da apresentação. A busca por um ajuste fino entre estes dois opostos foi a meta da coreógrafa. Outro objetivo alcançado foi o de construir, na etapa final de concepção da montagem, a cenografia, o figurino e a coreografia propostos. A concatenação de todos esses elementos apresentados pela coreógrafa culminou em grande êxito. O fato de ter havido uma pesquisa e um diálogo aberto com os seus pares durante o processo de montagem deste espetáculo foi decisivo. Considerações finais Neste artigo, inicialmente, propomos a investigação de aspectos históricos, na busca por documentos musicológicos que reconstituam informações inerentes ao processo de criação e ao período em que foi realizada a primeira montagem deste ballet. Num segundo 168 momento, destacamos a viagem do compositor Villa-Lobos à França em 1923 para estabelecermos comparações com a montagem do ballet L’oiseau de Feu de Igor Stravinsky e Tapiola de Jean Sibelius. E finalmente uma entrevista concedida pela coreógrafa responsável pela montagem do bailado brasileiro na temporada de 2016. Referências BARTHES, Roland. 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