POR UMA MILITÂNCIA ATIVA DA PALAVRA:
ANTOLOGIAS, MOSTRAS, ENCONTROS E
CRÍTICA SOBRE LITERATURA NEGRA, ANOS 1980
For the activism of the words: anthologies,
exhibitions, meetings and critics about the AfricanBrazilian literature in the 1980s
Mário Augusto Medeiros da Silva*
RESUMO
O interesse do artigo é discutir eventos, obras e debates na
conjuntura da década de 1980, em São Paulo, em que intelectuais
negros e não negros, nacionais e estrangeiros, trataram da ideia de
Literatura Negra e a história política e cultural negra no Brasil e
no exterior. Desta maneira, abordam-se a produção de antologias
e obras críticas sobre a Literatura Negra Brasileira (como
Reflexões sobre a literatura afro-brasileira e Criação Crioula,
Nu Elefante Branco) e os encontros promovidos por intelectuais
negros ou pelo poder público paulistano e associações privadas (o
I Perfil da Literatura Negra – Mostra Internacional de São Paulo e
os debates sobre literatura negra na III Bienal Nestlé de
Literatura).
Palavras-Chave: Intelectuais
Pensamento Social.
Negros,
Literatura
Negra,
* Sociólogo, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Este artigo foi elaborado a partir de minha tese de
doutoramento, defendida em 2011 e apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo [FAPESP]. A tese foi publicada homonimamente como A descoberta do insólito: literatura
negra e literatura periférica no Brasil (1960-2000), Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. Agradeço a
Petrônio Domingues e Flávio Gomes pelo convite à publicação do artigo. Contato:
mariomed@unicamp.br
História: Questões & Debates, Curitiba, volume 63, n.2, p. 161-194, jul./dez. 2015. Editora UFPR
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ABSTRACT
The interest of the article is to discuss events, works and debates
in the 1980s the situation in São Paulo, in intellectual blacks and
non-blacks, national and foreigners, treated the idea of Black
Literature and the political and cultural history and black in
Brazil abroad. In this way, approach to producing anthologies and
critical works on the Black Brazilian Literature (Reflexões sobre
a literatura afro-brasileira and Criação Crioula, Nu Elefante
Branco) and meetings hosted by black intellectuals or the São
Paulo government and private associations (the First Profile of
Black Literature – International Exhibition of São Paulo and the
debates about black literature on Third Biennial Nestlé of
Literature).
Keywords: Black Intellectuals, Black Literature, Social Thinking.
Introdução
Para o estudo do associativismo político e cultural negro
desde o final dos anos 1970, eventos ocorridos na década de 19801
podem figurar como momentos importantes de reconfiguração de
ideias, bem como de atuação no espaço público de um conjunto de
intelectuais e ativistas negros, críticos de literatura defensores de uma
estética e ética criativa que atende pelo nome de Literatura Negra ou
Literatura afrobrasileira. Também se trataram de circunstâncias
importantes para tentar estabelecer trocas de conhecimento sobre as
realidades brasileira e africana, além de chamar à atenção o poder
público sobre a história literária e social negra brasileira, cobrandolhe um posicionamento.
Intenta-se aqui discutir alguns desses encontros e eventos
ocorridos em São Paulo, utilizando-se como fontes notícias de jornais,
publicações de escritores e entrevistas com alguns dos participantes.
1 Algo que também sugerido nos trabalhos de: ALBERTI, Verena e PEREIRA,
Amílcar (orgs.). Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC, Rio de Janeiro:
Pallas /CPDOC-FGV, 2007; PEREIRA, Amílcar Araújo. O mundo negro: relações raciais e a
constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil, Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
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A capital paulista se impõe como local privilegiado por ter ocorrido
ali, encontros de escritores negros brasileiros ao longo dos anos 1980.
Auto-organizados (como aqueles que geraram os livros Reflexões ou
Criação Crioula); ou ainda, estimulados externamente, como o Perfil
de Literatura Negra – Mostra Internacional de São Paulo, em
1985 e, em 1986, a III Bienal Nestlé de Literatura. Além disso, é o
espaço base do coletivo de escritores e intelectuais criadores da série
Cadernos Negros, que edita, desde 1978, anualmente contos e
poemas de autores negros, constituindo-se numa publicação distintiva
e defensora de um projeto de literatura negra brasileira. Ademais,
escritores que participavam centralmente ou orbitavam os Cadernos
Negros [que tem, a partir de 1982, o grupo Quilombhoje como
responsável por sua fatura] têm um papel que merece discussão:
participando ou criticando, refletindo posteriormente sobre aqueles
fatos.
Como ponto de partida, deve-se ter em mente que há uma
história das condições sociais de existência do associativismo político
e cultural negro paulistano que levam à possibilidade de congregação
de um grupo de escritores negros em 1978. Isso se deve a uma
trajetória que passa, para se restringir ao século XX após a Abolição,
por jornais que compõem a história da Imprensa Negra Paulista 2, bem
como associações como a Frente Negra Brasileira [1931-1937]3 ou à
Associação Cultural do Negro [1954-1976]4. É possível identificar a
2 Ver: BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros, São Paulo: Perspectiva, 1973;
FERRARA, Miriam N. A imprensa negra paulista (1915-1963), São Paulo: FFLCH/USP, 1986;
PINTO, Ana Flávia M. Imprensa negra no Brasil do século XIX, São Paulo: Selo Negro, 2010.
3 Cf. BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes raciais de pretos e brancos em São Paulo,
São Paulo: Sociologia e Política, 2010[ tese de 1945]; FERNANDES, Florestan. A integração do
negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era, São Paulo: Ática, vol. 2,
3a.ed.,1978[1965]; PINTO, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo. Tese[Doutorado].
São Paulo: FFLCH/USP, 1993; ANDREWS, George R. Brancos e negros em São Paulo (18881988), Bauru: Edusc, 1998; DOMINGUES, Petrônio. A insurgência de ébano:a história da Frente
Negra Brasileira (1931-1937). Tese [Doutorado]. São Paulo: FFLCH/USP, 2005.
4 Esta associação é mencionada por Florestan Fernandes (Op. Cit. 1978[1965]), Clóvis
Moura (Organizações Negras In: BRANT, Vinícius C., SINGER, Paulo (orgs.) São Paulo: o povo
em movimento, São Paulo: Cebrap/Vozes, 1980), Miriam Ferrara (Op. Cit. 1986), sendo que esses
autores discutem rapidamente aspectos da organização e/ou utilizam os depoimentos de seus
membros e jornais como fontes. Mereceu ainda menção em estudo de George Reid Andrews (Op.
Cit. 1998), uma apresentação em congresso, por Petrônio Domingues ( Associação Cultural do
Negro (1954-1976): um esboço histórico, Comunicação apresentada no XXIV Simpósio Nacional
de História, São Leopoldo, UNISINOS, 2007.), um capítulo de minha tese e livro (Op. Cit. 2011,
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participação de ativistas e intelectuais negros especialmente dessas
duas últimas associações, como José Benedito Correia Leite (19001989) e Oswaldo de Camargo (1936-), em colaboração eventual ou
ativa com os novos escritores e intelectuais negros emergidos à cena
pública dos anos 1970, especialmente após 1978.
Os intelectuais negros mais velhos e sua experiência em
associações mais antigas funcionam como elo, estabelecendo a
conexão com uma memória coletiva negra do passado, permeada
pelas lutas sociais e reivindicações daquele grupo. Da mesma forma,
explicita-se, nesses contatos, que a literatura negra possui uma
história e esforços de autodefinição, que passam pela existência de
autores e obras, debate e experiências5, pouco conhecidos daqueles
jovens nascidos nos anos 1950. Os debates e esforços da década de
1980 podem ser entendidos, desta maneira, como uma continuidade
de uma trajetória perene de ativismo político e cultural, além de luta
social por direitos do grupo negro literário em São Paulo.
2013) e um artigo em meu (SILVA, Mário A. M. da. Fazer história, fazer sentido: Associação
Cultural do Negro (1954-1964). Lua Nova, São Paulo: CEDEC, n.85, pp. 227-273, 2012). Algumas
vezes é referida equivocadamente, como em Regina Pahim Pinto (Op. Cit. 1993) e em SILVA,
Joana Maria F. da. Centro de Cultura e Arte Negra: Trajetória e Consciência Étnica, Dissertação
[Mestrado em Sociologia] PUC-SP, 1994.
5
Ver: CUTI & LEITE, José C. ...E disse o velho militante José Correia Leite, São
Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. Correia Leite fez o prefácio do terceiro volume da
série Cadernos Negros, em 1980. Além disso, ver: “Na verdade, o que acontece hoje – eu acredito
muito – é muito fruto daqueles anos. Muito fruto daqueles anos todos. Os que plantaram são esses
daí. Depois eu vou passar isso aqui prá quem? Para a turma do Quilombhoje, para o Cuti, para o
Paulo Colina, para o Márcio Barbosa. Eles não têm livros: eu empresto. Eu tiro cópias para eles. O
poema Protesto, do Carlos Assumpção, ninguém tinha. Eu tenho o poema.”. Entrevista com
Oswaldo de Camargo concedida a Mário Augusto M. da Silva, São Paulo, 29 de julho de 2007. E
ainda: “Uma coisa importante para mim foi encontrar um livro do Oswaldo de Camargo, chamado
O Carro do êxito. É um livro de contos, mas foi o primeiro livro de literatura que eu comprei, numa
livraria comum na praia de Santos, que falava das entidades negras de São Paulo. E também tinha
uma coisa fundamental: ele escreve muito em primeira pessoa, a primeira pessoa de um negro. Aí
eu vi a foto do autor e falei: “Puxa!” Foi um deslumbre para mim[...] O Oswaldo foi uma pessoa
importantíssima como um elo de gerações. Sabia muito! Ele conheceu o Correia Leite quando ainda
era novo. Então, para mim, esse livro foi um deslumbre, assim como o livro do Abdias, O negro
revoltado, que eu também comprei em Santos. Foi também um grande deslumbre saber que já tinha
havido congressos, jornais, Teatro Experimental do Negro e tantas outras coisas. Essas duas obras
nortearam bem a minha vida nesse período.” Entrevista com Cuti, concedida a Verena Alberti e
Amílcar Pereira. Disponível Histórias do movimento negro no Brasil. Op. Cit. p. 92.
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Encontros e antologias de escritores negros
Importante recordar que os jornais da imprensa negra, desde
a década de 19106 traziam em suas páginas poemas e pequenos textos
em prosa de autores dos grupos negros organizados em associações
ou orbitando em torno delas e, ainda, consagrados no âmbito de uma
Literatura Brasileira mais ampla (Cruz e Souza, Luiz Gama, algumas
referências a Lima Barreto etc.). Essa prática se consolida, para além
das publicações individuais, na burla à invisibilidade crítica e social
da produção literária negra, que foi em diferentes momentos entre os
anos 1960 e 80, efetivada pelas antologias poéticas, além dos jornais
de associações do grupo negro, ou os Cadernos Negros, em São
Paulo.
Entretanto, no que diz respeito ao ato literário e ideológico de
juntar autores, prefaciá-los, organizar uma biobibliografia crítica
sobre os mesmos, tendo como intuito oferecer uma amostragem de
um certo tipo de produção, as antologias de Literatura Negra no
Brasil encontram, em 1967, com Léon Gontram Damas, um ponto
interessantíssimo, por ao menos três razões: 1)o organizador da
Nouvelle Somme de Poésie du Monde Noir [Nova Reunião de Poesia
do Mundo Negro] era, junto com Aimé Césaire e Leopold Sedar
Senghor, um dos criadores do movimento estético da Negritude, em
Paris, década de 1930; 2) e aquela antologia reunia poetas negros de
diferentes partes do mundo, editados pela revista Présence Africaine;
3)tendo inclusa nela, autores negros brasileiros como Oswaldo de
Camargo, Luiz Paiva de Castro, Natanael Dantas e Eduardo de
Oliveira, entre outros, que são traduzidos e publicados nessa edição,
conferindo-lhes (e à Literatura Negra no Brasil) um certo grau
temporário de legitimação.7
6 Cf. MOURA, Clóvis & Ferrara, Miriam N. Imprensa Negra, São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2002 [1 ª ed. 1984].
7 De acordo com Oswaldo de Camargo, o contato de Damas com os escritores
brasileiros se deu através da Associação Cultural do Negro. “Ele veio ao Brasil, Léon Damas veio
ao Brasil e fez uma coletânea, uma antologia, de poetas[...]Quer saber onde estão os poetas?[...] Vá
à Associação[...] A Associação era o grande tambor que repercutia tudo. Era muito respeitada!
Nenhum estudioso de questões negras deixava de ir à Associação. Nenhum! “Quer saber onde...?”
Era lá. Basta dizer o seguinte. Não é muito difícil entender não. [José] Correia Leite estava lá.
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Dez anos mais tarde, a editora Civilização Brasileira publica
Ebulição da Escrivatura: Treze Poetas Impossíveis, autores cariocas
negros, dentre os quais Éle Semog, atrelada ao Grupo Garra
Suburbana. Em 1976, a editora Cooperativa de Escritores publica em
São Paulo a antologia Ventonovo, com trabalhos de Arnaldo Xavier e
Aristides Klafke, no esteio da literatura marginal da década de 1970.
No lançamento da página “AfroLatinoAmérica”, Oswaldo de
Camargo edita para o jornal Versus um “Pequeno Mapa da Poesia
Negra”, onde arrola e discute o papel de diferentes escritores negros
ao longo da história brasileira no século XX 8. E ao longo dos anos
1980, a Literatura Negra não cessaria de se refletir e ser repensada por
estudiosos9.
Em agosto de 1982, a Global Editora lança uma publicação
premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte [APCA], como
melhor livro de poesias do ano. “Fato inédito para antologias”10,
assinalou Oswaldo de Camargo ao tratar de Axé: Antologia
Contemporânea da Poesia Negra Brasileira, organizada pelo escritor
paulista Paulo Colina.
Propósito semelhante encontra-se no trabalho, como
antologista, de Oswaldo de Camargo. Em A Razão da Chama e O
Negro Escrito existe a preocupação com as ideias de continuidade e
contemporaneidade do labor artístico negro. Como se afirma no
Correia Leite era uma espécie de guru. Era um pedaço de história. Naquele tempo já era.” Entrevista
com Oswaldo de Camargo, concedida a Mário Augusto M. Da Silva, em São Paulo, 29 de julho de
2007. Colchetes meus.
8 “Onde está a Poesia Negra? Onde Lino Guedes? Os poetas da Imprensa Negra e das
associações? Onde os continuadores dos anseios de Gervásio de Morais e de Cumba Júnior? E de
Carlos Assumpção, que iniciou em 1958, o verdadeiro protesto negro na nossa poesia?[...] Eis que
se inicia a fase de nos descobrirmos. Traçar o mapa, marcar o território de nossa herança poética,
desconhecida e esparsa. Tentar fazer o que jamais se fará oficialmente: a coleta de nossa produção
literária, o nosso clamor espalhado em jornais da imprensa negra marginal, nas revistas negras,
recolher os inéditos, trazê-los, enfim, à tona. Tarefa prolongada e dura, quanto urgente e necessária.
Nossa tarefa”. Cf. Camargo, Oswaldo, “Pequeno Mapa da Poesia Negra”, Versus, vol. 12,
julho/agosto, 1977, p. 32. Sobre a seção Afro Latino América e a literatura negra do período, ver:
Silva, Mário A. M. da. A Descoberta do Insólito. Op. Cit. pp. 441-482
9 BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira, Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983; BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina, Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1987; Idem. Introdução à literatura negra, São Paulo: Brasiliense, 1988; CAMARGO,
Oswaldo de. O Negro Escrito: apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira,
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987, entre outros.
10 CAMARGO, Oswaldo de. O Negro Escrito, Op. Cit. p. 100.
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prefácio da primeira coletânea: “Esta antologia[...] acaba revelando
que o negro que escreve não é tão somente Luís Gama e Cruz e
Souza. É – queremos aqui demonstrar – prosseguimento deles[...]”11
Cobre-se, então, desde o século XVIII até os últimos quartéis do XX
para comprovar, como afirma Paulo Colina, que “Se não maior, o
negro sempre foi um dos grandes temas da literatura brasileira. Sem
ele, não teríamos, com certeza, a ficção que temos.”12
Os anos 1980 e 90 apresentam conjuntura favorável a uma
visibilidade da Literatura Negra, especialmente no âmbito da Poesia.
Além das edições regulares dos Cadernos Negros, os trabalhos
avaliativos como Reflexões e Criação Crioula, ou as antologias de
Camargo e Colina, existe ainda um movimento de circulação
internacional e legitimação crítica nacional dessa produção marginal.
A crítica literária Moema Parente Augel e o tradutor Johannes Augel
serão os responsáveis, em 1988, pela edição da antologia bilíngue
Schwarze Poesie/ Poesia Negra, em alemão/português13 (mais tarde,
editam Schwarze Prosa/Prosa Negra). No mesmo ano, Júlia Duboc
publica Pau de Sebo: coletânea de poesia negra14. Quatro anos mais
tarde, Zilá Bernd organiza Poesia Negra Brasileira: antologia15. Em
1995, a colaboradora dos Cadernos Negros Miriam Alves e Carolyn
R. Durham editam Finally Us [Enfim nós], nos EUA, coletânea de
textos de escritoras negras brasileiras em edição bilíngue portuguêsinglês, junto a uma longa análise crítica sobre o assunto, de sua
autoria16. No mesmo ano, o projeto bilíngue editado e organizado por
Charles Rowell, da revista norte-americana de artes e letras afroamericanas e africanas Callaloo, da Universidade John Hopkins,
publica um número especial sobre Literatura Afro-Brasileira e traz
entrevistas, textos, desenhos e estudos de autores como Arnaldo
11 CAMARGO, Oswaldo de. A Razão da Chama, São Paulo: GRD, 1986, p. X.
12 COLINA, Paulo. “Prefácio” In: CAMARGO, Oswaldo de. O Negro Escrito, Op.
Cit., p.11
13 AUGEL, Moema Parente(org.). Schwarze Poesie/ Poesia Negra, St. Gallen/Köln:
Edition Diá, 1988. Schwarze Prosa/ Prosa Negra é publicada em 1993.
14 DUBOC, Júlia(org.). Pau de Sebo: coletânea de poesia negra, Brodowski: Projeto
Memória da Cidade, 1988.
15 BERND, Zilá(org.). Poesia Negra Brasileira: antologia, Porto Alegre:
AGE/IEL/IGEL, 1992.
16 ALVES, Miriam & DURHAM, Carolyn R. Finally Us. Contemporary Black
Brazilian Women Writers, Colorado: Three Continent Press, 1995.
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Xavier, Cuti, Miriam Alves, Paulo Colina, Abdias do Nascimento,
Leda Martins, Ele Semog e outros17. São esforços engendrados ainda
no final dos anos 1980, ganhando concretude na década seguinte.
Discutindo a si mesmos
No plano da autoanálise, em 1985, o Conselho de
Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de São
Paulo18 publica o livro Reflexões: sobre a literatura afro-brasileira,
de autoria do coletivo Quilombhoje. A origem do livro está na “Noite
da Literatura Afro-Brasileira”, realizada durante o III Congresso de
Cultura Negra das Américas, em 1982, na PUC-SP. Ali foi lançada
uma antologia pequena de textos, com 80 exemplares, de forma
apostilada. O Conselho da Comunidade Negra, afirmava na
apresentação do livro, que a publicação era uma forma de
reconhecimento do Quilombhoje no campo literário, bem como uma
forma do movimento negro se manifestar de maneira livre e
independente.
Reflexões traz elementos que seriam marcas registradas do
Quilombhoje: na capa, aparece o desenho de Márcio Barbosa, que se
tornaria o símbolo do grupo. Três máscaras negras diferentes,
dispostas de forma triangular, irmanadas por um livro. A outra marca,
que perdurou durante muito tempo na série dos Cadernos Negros, são
as fotografias dos autores presentes nos livros, na contracapa. Por fim,
a discussão do coletivo face ao que se falava sobre o negro e a
Literatura Negra.
17 ROWELL, Charles (org.). Callaloo. Baltimore, Maryland: The John Hopkins
University Press, vol. 18, n. 03, 1995.
18 Órgão criado junto ao poder estadual, ligado ao PMDB e ao movimento negro,
durante a vigência do governo de André Franco Montoro. Sobre o conselho, checar o livro de Ivair
Augusto Alves dos Santos, baseado em sua dissertação de mestrado defendida na Unicamp, em
2001: O Movimento Negro e o Estado (1983-1987): o caso do Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra no Governo de São Paulo, São Paulo: Prefeitura Municipal
de São Paulo/ Coordenadoria dos Assuntos da População Negra, 2007.
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[...] Quando o Quilombhoje foi criado, sua atuação não
tinha sido delineada. A experiência com as discussões,
Rodas de Poemas e outras atividades, a saída e entrada de
pessoas, deu-nos uma perspectiva mais nítida. Resultado
desse caminhar, este livro não se propõe a ser começo
nem fim. É parte de uma luta que nos transcende, pois
teve início muito antes e vai continuar depois de nós. Isso
enquanto persistirem as pressões que fazem da nossa vida
uma sub-vida. Portanto, não vamos escamotear a questão
ideológica ligada à literatura nem tampouco reduzir esta
19
àquela.
Um texto apresentado por Cuti em seminário do Centro de
Estudos Afro Asiáticos é republicado, dois anos depois, sem
alterações: “Literatura Negra Brasileira: Notas a respeito de
condicionamentos”, trabalho que visa passar em revista autores
modernistas (adeptos do Negrismo) e autores negros contemporâneos
ao Modernismo para pensar o papel do negro em ambos. Escritores
sincrônicos ao autor do artigo, negros ou não, também são
rapidamente analisados (Ferreira Gullar, Ruy Dias, Oswaldo de
Camargo, Solano Trindade etc.) Condicionamento, portanto, no
sentido do artigo, deve ser compreendido como regulagem, controle,
imposição. Sejam as impostas pela sociedade brasileira ou as autoimpostas pelo criador negro, com quais este, se quiser ou puder, terá
de lidar. De acordo com Cuti:
Blitz no sentimento negro é uma constante. Acusado de
rancor, resta a alternativa de viver acuado em si mesmo,
enquanto aprende as regras da vista grossa e do
escamoteamento da expressão. Na pauta do permitido
todos devem se esforçar para o sustento de todas as notas
da hipocrisia nas relações raciais. [...] Hoje há um dado
considerável na transformação, a presença dos
descendentes, mais visíveis dos escravos. O texto escrito
começa a trazer a marca de uma experiência de vida
19 Cf. QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit. pp. 13-14.
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distinta do estabelecido. A emoção – inimiga dos
pretensos intelectuais neutros – entra em campo,
arrastando dores antigas e desatando silêncios
enferrujados. É a poesia feita pelo negro brasileiro
20
consciente.
Este negro brasileiro consciente, enquanto escritor, de que
fala o autor é um ser em crescendo, cuja oscilação histórica é patente
no percurso da Literatura[Negra] Brasileira21. Ele se iniciaria com
Cruz e Souza e Lima Barreto e de expressões atomizadas, culminando
num projeto coletivo. Projeto esse que, enquanto questão ideológica
pareceria estar bem resolvido; no âmbito do plano estético,
entretanto, apresentava rusgas significativas. O debate se dá em torno
da qualidade da produção literária negra. Como apresenta
rapidamente o autor:
20 CUTI. “Literatura Negra Brasileira: Notas a respeito de condicionamentos” In:
QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit. p. 16.
21 “Lino Guedes, um dos primeiros poetas negros a revelar em seus trabalhos a busca
de uma identidade em nosso século, abriu e se manteve com freqüência na linha do lamento,
extravasados em versos aproximados do cordel. O flagelo da escravidão ocupou lugar predominante
em sua obra.[...] Mostra ainda comportamentos perante a temática da escravidão e suas
conseqüências que são presentes, com as naturais marcas de época, na poesia negra hoje. [...]A
visão fatalista da história, além de ser um ensinamento propalado pelo branco durante muito tempo,
situa o criador fora da zona crítica, reveladora das reais causas da espoliação. A constatação do
flagelo por si só, pouco avança o processo de conscientização, e acaba por estar conforme ao
paternalismo das elites. [...]Também a presença do movimento apelativo à religião, tanto para
explicar quanto para amenizar as amarguras , continua hoje marcando os textos. Achar que Deus
nos esqueceu é um desencanto que a religiosidade, católica, sobretudo, nos legou diante da
exploração do homem sobre o homem. [Crítica ao livro de estréia de Oswaldo de Camargo, 1959,
Um homem tenta ser anjo] [...] Uma outra característica da obra de Lino Guedes, insistente em
nossos dias, é o cuidado de não revelar-se em profundidade, juntamente com a consciência de uma
identidade grupal. Tanto Oswaldo de Camargo[...] quanto de Eduardo de Oliveira[...] estreavam
com livros onde suas vivências de negros estão submersas em queixumes. Evoluíram, sem
dúvida[...] Solano Trindade, a figura mais conhecida da poesia negro-brasileira, antecedeu os dois
autores citados. A obra de Solano, com Poemas de uma vida simples e Cantares ao meu povo deu o
grande salto político-poético, apesar do reduzido alcance psicológico de seu trabalho.[...]É de 1956,
o surgimento, no meio das reuniões de debate da questão racial, do poema “Protesto”, de Carlos
Assumpção, marcando assim um dos grandes lances de contundência na poesia negra que muitos
ainda hoje estranham e evitam. “Piedade não é o que eu quero”... “Eu quero coisa melhor/ Eu não
quero mais viver/ No porão da sociedade...” [...] Este poema[...] marca uma ruptura ou propõe que
ela seja feita – tendo em vista a pertinência de condicionamentos que ainda confundem o literato
negro.” Idem, Ibidem, pp. 20-22,.
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Em 1978 surgiram os “Cadernos Negros”, primeira
tentativa de agrupamento, de literatos e aspirantes, em
torno de uma publicação coletiva, já em seu quinto
número alternado poesia e prosa. Os nomes aumentam e
a aproximação se efetua, e com ela, os debates. Surge a
questão da qualidade: conflito! É o momento da busca
dramática do reconhecimento público que compense
tantos sacrifícios (o rompimento com a autocensura, o
custeio das edições ou peregrinações às editoras, e
22
também venda dos livros).
A discussão sobre a qualidade, que aparece de maneira
elegante no trecho acima, foi bastante agressiva em meio a esse
coletivo de escritores. O suficiente para 1)quatro anos após a criação
da série Cadernos Negros, três de seus membros, inclusive um
fundador, a deixassem (Abelardo Rodrigues, Paulo Colina e Oswaldo
de Camargo, denominados, doravante por um certo tempo,
pejorativamente como O Triunvirato); 2) esse debate se estendesse
para mais outra produção reflexiva (Criação Crioula, que se discutirá
na sequência), com tintas mais fortes e da qual o Triunvirato não
participaria; 3)retornasse num livro situacional da Literatura Negra no
contexto brasileiro (O Negro Escrito, de Oswaldo Camargo); 4) fosse
apontada como um fator limitante pela crítica literária à eficácia
produtiva da Literatura Negra23; 5)e, por, fim, continuasse viva, de
certa forma, nos dias atuais24.
22 Idem, Ibidem, p.22
23 “[...]Alguns autores, como Cuti e Jamu Minka, seus fundadores, participam desde a
primeira edição, enquanto outros, como Míriam Alves, Ele Semog e Carlos Limeira, colaboraram
em várias edições, além de publicarem outras obras isoladamente. Eduardo de Oliveira e Oswaldo
de Camargo, representantes da velha guarda, produziram para os números 1 e 3, desistindo depois
por não concordarem com o sistema de seleção dos textos a serem incluídos nas antologias. Outros
dois poetas que contribuíram nos primeiros Cadernos e que posteriormente preferiram ir para a
publicação individual foram Oliveira Silveira e Paulo Colina. [...]Estas antologias, sobretudo nos
últimos anos, têm revelado uma importância mais social e cultural do que propriamente artística.
O que efetivamente tem ocorrido é que o critério editorial parece estar sendo o de dar
oportunidade a jovens poetas inéditos que mantêm a poesia muito próxima dos referentes
imediatamente reconhecíveis sem a mediação da linguagem simbólica, sem a qual não há poesia,
mas um mero extravasar de sentimentos. O tom de panfleto, dominante em muitos trabalhos, sufoca
a linguagem poética que, construindo-se com uma intencionalidade ideológica muito precisa,
acaba configurando-se como repetitiva e redundante. O que foi o ato criador nos primeiros poetas
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Entrementes, em 1982, quando aquele texto foi escrito, a
discussão estava relativamente situada em torno das articulações da
Literatura Negra com os movimentos sociais e à lida do escritor com
os entraves do condicionamento. Segue-se ao texto de Cuti uma
tentativa de pensar a necessidade de uma produção literária negra
infantojuvenil25; uma nova discussão sobre a questão dos
condicionamentos, com uma crítica ao livro de David Brookshaw 26;
uma apresentação de série de poemas de autores negros, explicitando
a característica do protesto e da consciência crítica 27 ; e também
algumas “Questões sobre a Literatura Negra”, por Márcio Barbosa.
Nesse texto em particular, Barbosa usa aspectos do
pensamento de Frantz Fanon com a intenção de demonstrar que: 1) a
Literatura Negra existe em larga razão de haver sua contraparte
branca, o que retoma a famosa expressão daquele pensador
martinicano de que o foi o branco que criou o negro; 2) criada numa
posição subalterna e oprimida, à Literatura Negra resta o
desenvolvimento de uma autoconsciência, fundada no desenrolar da
28
luta histórica do grupo negro contra sua condição de oprimido.
do grupo Quilombhoje torna-se ritual; o que foi sacrílego se banaliza” Cf. BERND, Zilá. Negritude
e Literatura na América Latina, Op. Cit., pp. 129-30. Grifos meus.
24 “[...]Foi um lance muito bom. Foi um lance que obrigou as pessoas a escreverem, a
se olharem de novo como escritores. Os mais velhos, sem dúvida, eram o Eduardo de Oliveira e
eu.[...]Mas eu sempre tive uma crítica muito forte, aos Cadernos, no começo. Os Cadernos
surgiram para colocar textos. Tudo bem. Mas textos sem passar pelo crivo de nada. Punha texto
quem pagasse. No começo, era mais ou menos assim. Pagava, punha. E eu achava que na altura que
nós estávamos já, depois... bons autores negros, autores com certa tarimba, era necessário educar
esse pessoal, que pega um poema da gaveta e fala: “Eu também sou poeta!” O que era necessário,
era fazer um Caderno que contemplasse, sobretudo, as pessoas que estavam iniciando. Mas, eu fui
vencido. Fui vencido e saí dos Cadernos. Não comecei a publicar mais.[...]Não havia discussão de
textos, não havia nada. Eu estava sempre pedindo isso, que nós fizéssemos alguma coisa... Que
podia ser, ao mesmo tempo, uma espécie de escola.[...]até que o Quilombhoje acordou, os Cadernos
acordaram e começaram a fazer a triagem também. Aquilo que eu propunha, depois de tanto tempo,
eles perceberam que era necessário, de fato. Daí começaram a fazer. Hoje em dia é triado; hoje em
dia, os Cadernos têm, passam por leituras, não sei o quê...” Entrevista de Oswaldo de Camargo,
concedida a Mário Augusto M. Da Silva, em 29/07/2007, em São Paulo.
25 RIBEIRO, Esmeralda. “Literatura Infanto-Juvenil” In:QUILOMBHOJE. Reflexões,
Op. Cit.
26 FERREIRA, José Abílio. “Considerações à cerca de um aspecto do fazer literário ou
de como um escritor negro sofre noites de insônia” In: QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit.
27 MINKA, Jamu. “Literatura e Consciência” In: QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit.
28 BARBOSA, Márcio. “Questões sobre a Literatura Negra” In: QUILOMBHOJE.
Reflexões, Op. Cit., p. 50. Grifos meus.
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A questão de Barbosa pode remeter imediatamente à
discussão de Zilá Bernd: em que momento surge uma Literatura
Negra? Tanto para aquela crítica literária como para esse escritor, o
grau zero da produção negra é a consciência social do ser negro,
desembocando na ideia de negritude. Em Barbosa, o argumento se
sofistica, alcançando a espinhosa discussão da dupla consciência do
escritor negro – desenvolvido do repertório fanoniano sobre a dupla
consciência do intelectual colonizado.
O corolário dessa afirmação é que o caminho para o escritor
negro ser um agente social de mudança é reconhecer a sua condição.
Todavia, no texto de Barbosa, há uma aposta muito grande, neste
momento, que é dada quase como fato consumado: o reconhecimento
dessa condição social garantiria um conteúdo revolucionário, mesmo
que a forma criadora não se alterasse. A consciência do escritor negro
é para este autor, portanto, precede os problemas de sua forma de
expressão, em seu campo de atuação.
Ainda em Reflexões, Míriam Alves, poeta paulistana,
continua o debate de Barbosa e Cuti, mas fixando-se na concretude de
poemas contemporâneos29. Oubi Inaê Kibuko, por sua vez, perfaz um
itinerário pessoal de sua origem familiar até conhecer o coletivo
Quilombhoje. Seu texto objetiva mostrar o nascimento de sua
conscientização como militante e escritor negro 30. O tema é
retrabalhado no último e mais curto texto da coletânea, de Sônia F.
Conceição, com uma discussão interessante, mas não aprofundada,
sobre os significados de ser negro31.
Se Reflexões é uma obra coletiva do Quilombhoje, com uma
base discursiva relativamente homogênea e distribuída entre debates
teóricos e depoimentos de um quotidiano do [escritor] negro, a
próxima coletânea de texto a ser analisada é um exemplo de
multiplicidade de visões, por vezes conflitantes, sobre a confecção
literária negra. Parte-se, no entanto, do princípio que ela exista – e há
muito tempo – expressa pela concretude de sua produção. Não à toa, a
29 ALVES, Míriam. “Axé Ogum” In: QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit.
30 KIBUKO, Oubi Inaê. “1955-1978: 23 anos de Inconsciência” In: In:
QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit.
31 CONCEIÇÃO, Sônia F. “Ser Negro, Povo, Gente: Situação de Urgência” In:
QUILOMBHOJE. Reflexões, Op. Cit.
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capa de Criação Crioula, Nu Elefante Branco é a disposição aleatória
de vários livros de poetas e prosadores negros, iniciando-se com
autores do século XIX até a contemporaneidade de 1985.
Criação Crioula é o resultado do I Encontro Nacional de
Poetas e Ficcionistas Negros. Publicado pela Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, em 1987, durante a vigência do governo de
André Franco Montoro e realizado entre 06 e 08 de setembro de 1985,
na Faculdade do Ipiranga, na capital paulista. As motivações para o
encontro, segundo sua Comissão Organizadora, seriam as seguintes:
É de 1983/84 a ideia de realização de um encontro de
escritores Negros de âmbito nacional. Era necessidade de
se fazer uma avaliação profunda da Produção Literária
Negra recente e seu redimensionamento com a produção
do passado – Luiz Gama, Cruz e Sousa, Machado de
Assis, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e
outros. Pretendia-se também a revisão crítica do caráter
etnocêntrico da indústria cultural traduzida em “bloqueio
editorial” ou em solidariedade “negrófila”. Outro
objetivo era o de situar essa mesma produção dentro dos
espaços explosivos dos movimentos políticos Negros de
hoje no Brasil. Estas foram algumas das principais
motivações do Encontro. As articulações datam
precisamente de 1984, quando os grupos Quilombhoje
(São Paulo) e Negrícia (Rio de Janeiro) aventaram a
possibilidade de se reunirem para discussão de propostas
e perspectivas da Literatura Negra no Brasil. [...] Na
ocasião do evento intitulado Perfil da Literatura Negra:
Mostra Internacional, em São Paulo, no mês de
abril/1985, houve uma reunião/almoço na qual estavam
presentes 17 escritores dos estados de São Paulo
(Arnaldo Xavier, Míriam Alves, Cuti, Zenaide, Valdir
Floriano, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo,
Oubi Inaê Kibuko e Roseli Nascimento), Rio de Janeiro
(Selma Maria da Silva, Éle Semog e Hermógenes
Almeida S. Filho), Bahia (Jônatas C. Da Silva e Edu
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Omo Oguiam) e Rio Grande do Sul (Oliveira Silveira e
32
Paulo Ricardo de Moraes).
A edição é composta de 20 textos e uma sessão parcialmente
transcrita de debates, de que reproduzem-se excertos nas notas de
rodapés seguintes, entre pelo menos 15 participantes. É
particularmente interessante atentar aos tópicos principais dessa
discussão: 1)o problema da editoração e do escritor; 2)Literatura
Negra e analfabetismo; 3)partidos e revolução; 4) Literatura Negra e
Estado; 5)Literatura Negra e sua produção marginal. Aliás, este
último, junto com as possibilidades e reticências de relacionamento
com o Estado ocupam vários momentos de preocupação transcrita dos
escritores, àquela ocasião, como pode ser sintetizado no último
momento do debate a seguir:
[Márcio Barbosa]: O Cuti falou “sonho do escritor em
ser empresário”. É um conflito. Nós estamos dentro dele.
É um conflito que, se não existir a solução a curto prazo,
desconfio que não iremos chegar nos dez anos, previsto
pelo [Éle] Semog, para a explosão da Literatura Negra.
Despendemos muita energia para fazer isto. Se não
houver resultado a curto prazo, não sei se esta energia
não irá se esgotar e não teremos mais escritor negro para
o público que está pintando.[…] Aí entra uma coisa
interessante: o nosso relacionamento com o Estado que o
Arnaldo [Xavier] fala, talvez possamos ir por aí. Há um
medo de se relacionar com o Estado, que é extremamente
justificado. O Estado visa o interesse do Estado. Nem
32 I Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros(org.). “Simplesmente
Histórico” In: Criação Crioula, Nu Elefante Branco, São Paulo: Imesp, 1987, p. 05. A Comissão
ainda lembra que “Num clima de bastante discussão, ficou de consenso a escolha de dois temas
básicos: 1)Intervenção dos Poetas e Ficcionistas Negros no Processo de Participação Política;
2)Avaliação Crítica da Produção Literária dos Últimos Dez Anos [...] Igualmente, de maneira
polêmica, definiu-se o caráter político e ideológico do Encontro, o qual deveria ser efetuado de
forma autônoma e independente, isto é, sem verbas oriundas do poder público ou privado (aspecto
este que também serviu para explicar a dissidência anteriormente citada)” (p. 06, grifos meus) A
dissidência a que se refere a Comissão é a de um escritor, Abelardo Rodrigues, que não concordava
com os termos do encontro.
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sempre está a nosso favor. Mas acho que podemos
estabelecer um certo relacionamento, sem perder nossa
autonomia. O Arnaldo falou “que não estamos aqui para
pedir reconhecimento”. Gostaria de refutar: nós estamos
querendo o reconhecimento sim, queremos o
33
reconhecimento pelo menos da nossa comunidade.”
Dada a multiplicidade de temas e autores em Criação
Crioula, é necessário resumir aqui três elementos sempre articulados,
mais frequentes e melhor desenvolvidos em todos eles: 1)o problema
da marginalidade da Literatura Negra; 2)o relacionamento com o
Estado; 3)e a questão da qualidade. Todos os textos, com maior ou
menor empenho, farão uma recuperação de prosadores e poetas
negros ao longo da história literária, ressaltando-lhes ou denunciandolhes aspectos positivos e negativos. O momento político da Nova
República e a situação de diferentes movimentos negros neste
contexto também é algo que não escapa à maioria das reflexões.
No entanto, vale atentar que os acontecimentos políticos
sintetizados em 1984 – as Diretas Já, as campanhas pela
redemocratização e o voto direto paras as eleições presidenciais – não
sofrem uma análise mais detida por parte desses escritores. Teria,
como explicita o debate de Abílio Ferreira, abaixo, o negro estado
ausente (ou se ausentado) deste momento também? Ou o vivenciado
sob uma ótica particular?
Ademais, tudo o que se lê sobre a década de 60 faz crer
que a questão racial não existiu naquele período. Relatos
e análises apaixonadas sobre o CPC e a UNE, sobre o
PCB, sobre o período 45-64, a respeito do qual já se disse
que foi um tempo em que o país estava
irreconhecidamente [sic] inteligente, quando havia uma
“política externa independente”, “reformas estruturais”,
“libertação nacional” e “combate ao imperialismo e
latifúndio” não tocam na questão racial; a movimentação
33 I Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros(org.). “Palavras “Jongadas”
de Boca em boca (gravação dos debates)” In: Criação Crioula, Nu Elefante Branco, Op. Cit., p. 29
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operária, começada em 1950 e que recrudescia
paulatinamente,
não
incluía
os
negros
em
especial.[...]Ocorre que há uma insistência em manter a
questão racial, como a de outras minorias menos
numerosas, diluída no gigantesco espectro da luta de
classes. Um exemplo: em maio deste ano, por ocasião da
Mostra Internacional de Literatura Negra, realizada no
Centro Cultural São Paulo, o senhor Secretário de
Cultura, Gianfrancesco Guarnieri, um dos expoentes do
famoso Teatro de Arena[...] afirmou para o auditório
abarrotado algo como “a partir do momento em que
estiver solucionada a questão sócio-econômica, a racial
também o será automaticamente.34
O trabalho de Ferreira traz muitos outros pontos interessantes
para discussão. Por exemplo, a perspicaz observação que faz o autor
sobre a Literatura Negra em descompasso com a vanguarda35. Ou
sobre a invisibilidade, para a crítica especializada, da experiência
negra em momentos recentes da história cultural e política brasileira,
em particular nos anos 1970, reafirmando, mais uma vez, sua
36
marginalidade.
34 FERREIRA, J. Abílio. “A Formação de um conceito nacional” In: I Encontro de
Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros (org.). Criação Crioula, Nu Elefante Branco, Op. Cit., p.
75. A expressão de um “Brasil irreconhecivelmente inteligente” está presente no ensaio clássico de
Roberto Schwarz, “Cultura e Política: 1964-1969”, em O Pai de Família e outros ensaios, São
Paulo: Paz & Terra, 1974.
35 “Certo é que a produção artística e cultural negra esteve sempre em descompasso
com as estéticas que costumam dar o tom das épocas. E isto é significativo. Enquanto os
modernistas estavam buscando dados populares a fim de contrapor, na forma e no conteúdo, os
rigores parnasianos, os escritores negros estavam fazem sonetos. Enquanto os concretistas
propunham uma adaptação da poesia com os novos tempos e sintonizavam-se com os tropicalistas
da MPB, os escritores negros, no mínimo, nem se deram conta da discussão em torno do
comportamento artístico 50/60 em face da afirmação cada vez mais veemente do processo de
industrialização. Os escritores negros, como artistas em geral, estava, tratando de questões mais
prementes que só a eles interessava.” Cf. FERREIRA, J. Abílio. “A Formação de um conceito
nacional” Op. Cit., pp. 74-75.
36 Idem, Ibidem, pp. 76-77. Há fundamento na crítica, uma vez que um livro referencial
sobre Imprensa Alternativa dos anos 1970, de Bernardo Kucinski, não registra, nem mesmo em sua
última edição revista e ampliada algo sobre a Imprensa Negra do período, de jornais como Jornegro
ou Árvore das Palavras. Mencionará apenas a seção Afro-América-Latina do jornal Versus. Cf.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários nos tempos da imprensa alternativa, São
Paulo: EDUSP, 2003
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Essa invisibilidade histórica é retomada por Míriam Alves,
poetisa e colaboradora assídua dos Cadernos Negros/ Quilombhoje. A
crítica recai sobre um aspecto da esquerda política, momento de
clandestinidade, exílio e produções marginais também para o grupo
negro. Para a historiografia da esquerda do período, no entanto, a
experiência negra é ausente desse processo, ou subsumida na de
cunho mais geral. A Literatura, o Teatro, a Imprensa Negra, então,
seriam atos políticos de memória, para a autora, face às injustiças
históricas. Em seus dizeres:
Ressalto nesta produção o ato político. Falo em atitude
política não para designar passeatas de ficcionistas e
poetas negros, exigindo seus direitos à publicação e
circulação, exigindo a criação livre, permeada por sua
vontade e inspiração, ou ainda exigindo reconhecimento
dos órgãos públicos (secretaria disto ou daquilo), ou
ainda reclamando suas entradas nos bares acadêmicos
fechados (livrarias e editoras), onde somos literalmente
barrados e discriminados por trás de discursos de má
qualidade, subliteratura e desinteresse dos leitores. Não é
deste ato político, que não fizemos, que falo. Falo do ato
político que praticamos, escrevendo-nos em nossa visão
de mundo.[...] Nos tempos não tão idos assim, todos nós
brasileiros criadores de artes éramos obrigados a
esconder nossa criação na gaveta e nos tornarmos artistas
gaveteiros, ou desengavetar e tornarmo-nos exilados.
Neste tempo, a nossa produção de negros artistas
engavetou-se. Mais tarde, desengavetou-se na forma de
livrinhos mimeografados, distribuídos nos botecos da
vida, onde a esquerda tramava a revolução cultural. Aí
nossos livrinhos foram recusados várias vezes (a
esquerda nos olhava com seus olhos canhestros).”37
37 ALVES, Míriam. “O Discurso Temerário” In: I Encontro de Poetas e Ficcionistas
Negros Brasileiros (org.). Criação Crioula, Nu Elefante Branco, Op. Cit., p. 84.
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Subjaz a problemática do reconhecimento social e literário,
como forma estratégica de sobrevivência de um projeto a longo prazo.
Nas palavras de Éle Semog [Luiz Carlos Amaral Gomes], então
membro do coletivo Negrícia:
A necessidade de nos agregarmos em grupos como o
Quilombhoje,
Palmares,
Capoeirando,
Negrícia,
respondeu por um período pelos livros coletivos, pelas
antologias. Esta prática tem que evoluir, porque o
discurso do Estado mudou. É inconcebível que os
trabalhos coordenados pelo Quilombhoje sejam
financiados pelos próprios autores, após oito persistentes
anos de prática e produção literária. É um despropósito
da cultura nacional e para o povo brasileiro que a
República Popular de Angola reconheça e financie o
trabalho de 50 poetas brasileiros (livro Tetos de Aurora
nos Punhos), de diversos Estados do Brasil, dentre os
quais Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, Cuti,
Paulo Colina, José Carlos Limeira, Delei de Acari,
Míriam Alves. Embora com grossura da omissão do
nome de outros escritores, são nomes que sem dúvida
alguma deveriam constar no planejamento anual dos
senhores editores[...] Ora, estamos no Primeiro Encontro
de Escritores Negros, em São Paulo, somos os próprios, e
daqui teremos que arrancar soluções diferentes de nossa
prática de militantes do Movimento Negro e das
entidades negras. Nesse encontro temos que criar uma
entidade de atuação nacional e internacional que não seja
menor que um Centro Brasileiro de Literatura Negra, ou
um 'instituto', ou uma 'união'. Esta entidade deve agregar
os escritores negros, financiar e distribuir as suas obras,
resguardados, evidentemente, alguns princípios inerentes
à literatura universal e à dignidade dos povos.[...] Se por
um lado carecemos de um Centro, um Instituto, por
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outro, mais urgente, carecemos também de uma editora e
de uma gráfica.38
Mostra e Perfil da Literatura Negra
Os balanços efetuados pelos escritores negros e defensores da
ideia de uma literatura negra são sinais de uma reflexão à quente
sobre o estado de sua arte em compasso com o momento vivido. Isso
implicou não apenas referenciar nessas obras de debate mas, também,
participar de eventos como os ocorridos em 1985 e 1986, que se
tornaram particularmente notáveis para a produção literária negra,
pelo fato de que foram capazes de alçar um público diferente da
produção endógena do grupo: a Mostra Internacional de São Paulo
– Perfil da Literatura Negra (1985, sediada no Centro Cultural de
São Paulo) e a III Bienal Nestlé de Literatura (1986, no Centro de
Convenções Rebouças).
Ambos promoveram o encontro dos escritores negros com
seus críticos, além de um público leitor mais amplo. É possível medir
seus alcances pelas matérias de periódicos, tanto do Jornal do
Conselho da Comunidade Negra de São Paulo como O Estado de São
Paulo, Folha de São Paulo e Jornal da Tarde, no período. Uma das
primeiras notícias sobre a Mostra Internacional de São Paulo – Perfil
da Literatura Negra foi publicada no caderno Ilustrada da Folha de
São Paulo, semelhante a um evento de coluna social, conferindo um
caráter oficioso ao fato: “MÁRIO COVAS e o secretário municipal de
Cultura Gianfrancesco Guarnieri convidam para o coq de abertura
da Mostra Internacional de São Paulo – Perfil da Literatura Negra,
dia 20 de maio, no Centro Cultural São Paulo.”39. Dois dias depois, o
evento é tratado de maneira mais substancial no mesmo jornal:
38 SEMOG, Éle. “A Intervenção de Poetas e Ficcionistas Negros no Processo de
Participação Política” I Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros (org.). Criação
Crioula, Nu Elefante Branco, Op. Cit., pp. 142-143 e 145.
39 MIRANDA, Tavares de. Folha de São Paulo, Ilustrada, 17 de maio de 1985, p. 38.
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Durante a semana inteira, será a vez da intelectualidade
negra do Brasil, Estados Unidos, África e América
Central botar o preto no branco. De amanhã até o
próximo domingo, o Centro Cultural São Paulo[…] será
o palco dos debates do ciclo “O Perfil da Literatura
Negra”, uma iniciativa da Secretaria Municipal de
Cultura. Entre os debatedores, uma estrela: o romancista
norte-americano James Baldwin, 61, autor de
“Giovanni”. Mas estarão presentes também o herói
angolano José Luandino Vieira, 50,[…] o moçambicano
José Bernardo Honwana, 43,[…] e o senegalês Sembène
Ousmane[sic], 62, […] – todos lançados no Brasil pela
Editora Ática.[…] O fórum será aberto amanhã pelo
prefeito Mário Covas, com a presença do secretário
Gianfrancesco Guarnieri e diversos embaixadores de
países africanos, mas o debate promete esquentar mesmo
é a partir de terça-feira, com a discussão de temas como
“A Literatura Negra como forma de resistência”, a partir
de 20h30; “A recodificação do Mundo pelo Negro na
Diáspora Através da Literatura” (quarta, mesmo horário);
“O Estereótipo do Negro nos Meios de Comunicação”
(quinta, a partir das 19horas); “Negritude, Conceitos e
Caminhos” (sábado, começando às 10 horas da manhã) e
“O Personagem Negro na Literatura” (às 15h30); e
fechando o ciclo, “A Literatura Africana PósIndependência” (domingo, 10h da manhã).40
A reportagem mensura o evento como algo de proporção
grande e dá maior destaque aos escritores estrangeiros. Além de
Baldwin, traduzido ao longo dos anos 1960 e 80 no Brasil, os
lusófonos (Vieira e Honwana) e o senegalês Sembène, publicados na
40 Em debate a Literatura Negra. Folha de São Paulo, Ilustrada, 19 de maio de 1985, p.
75. Baldwin foi traduzido no Brasil com os romances Numa terra estranha [Another Country], em
1965 pela editora Globo e Giovanni [Giovanni´s Room], em 1981, pela Abril. Luandino Vieira
inaugurou a coleção Autores Africanos com A vida verdadeira de Domingos Xavier [1979], da qual
participam Honwana [Nós matamos o cão tinhoso, 1980] e Sembène [A ordem de pagamento,
1984]. Honwana foi alto funcionário do governo de Moçambique e Sembène é considerado o pai do
cinema africano, a partir do filme La noire de [1966]. Todos os três últimos lutaram pela
independência de seus países, além de Baldwin ter sido um notório ativista antirracista
estadunidense.
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Coleção Autores Africanos da Editora Ática, a partir de 1979.
Todavia, em se tratando de um debate sobre literatura negra
brasileira, onde estariam os escritores negros nacionais para discutir o
assunto? O autor do texto na Folha parece não se importar com isso,
mas não deixa de notar algo que julga singularmente importante:
Nem todos os debatedores, pelo menos entre os
brasileiros, são negros, casos de professores como
Antônio Cândido, Leo Gilson Ribeiro, Otávio Iam ni e
outros. Guarnieri, também um dos debatedores, considera
a “realidade multi-racial brasileira” ideal para um ciclo
de debates.[…] Espera-se que sim, embora os temas
propostos pareçam sugerir muito mais uma série de
quiproquós acadêmicos, a serem tratados com o habitual
sociologuês. Se isto se confirmar, a discussão sobre “o
papel do negro”continuará em branco. […] A esperança
está na experiência dos escritores africanos
convidados[...]41
Parte daquela esperança frustrou-se, dado o não
comparecimento de James Baldwin e Luandino Vieira ao evento, em
função de outros compromissos em seus países 42. E nada mais foi
escrito, no jornal, sobre Sembène ou Honwana, apesar da importância
de ambos. Contudo, os debates se deram no primeiro dia,
especialmente entre angolanos (Manoel Rui e Adriano Botelho), o
crítico inglês David Brookshaw, o poeta negro estadunidense Haki
Madhubuti e o escritor brasileiro Adão Ventura. De acordo com a
reportagem, na entrevista coletiva, todos debatendo a tentativa de uma
definição da ideia de Literatura Negra, o seu papel antirracista, a
tarefa do escritor defensor dessa estética (luta contra a estrutura
racista e a favor de um processo global de descolonização) ou, ainda,
sobre as considerações em torno de Machado de Assis como autor
negro de literatura negra (papel que lhe é negado na fala de
41 Idem, Ibidem.
42 A Literatura Negra define seu papel. Folha de São Paulo, Ilustrada, 21 de maio de
1985, p.34.
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Brookshaw). O jornal O Estado de São Paulo, reportando o evento
consegue fornecer mais informações sobre a presença dos escritores –
especialmente os estrangeiros – e algo dos debates em que se
envolveram:
Com o auditório lotado, o secretário municipal de
Cultura, Gianfrancesco Guarnieri, instalou no Centro
Cultural São Paulo o Perfil da Literatura Negra – Mostra
Internacional de São Paulo.[...]Hoje os intelectuais
brasileiros e estrangeiros convidados para participar do
congresso discutem “Literatura e identidade”. Integra a
mesa o escritor, poeta e ministro da Cultura da Costa do
Marfim, Bernard Dadié, um dos precursores dos
movimentos negros junto com outros dois intelectuais
igualmente importantes, Leopold Sedar Senghor e Aimé
Césaire. Além dele, participam o escritor caboverdiano
Manuel Faustino, os brasileiros Muniz Sodré e Maria
Aparecida Santilli, o norte-americano Michael Michel e o
moçambicano Rui Nogar. Numa segunda etapa, o mesmo
tema reunirá, entre outros, o angolano Manuel Rui
Monteiro, o venezuelano José Marcial Ramos Guedez,
Simone Scharwarbart (de Guadalupe), Alex La Guma (da
África do Sul) e os brasileiros Helena Theodoro e
Wanderley José Maria.43
As críticas e desconfianças dos escritores negros brasileiros,
com relação à sua invisibilidade e tratamento da política cultural do
Estado, apontadas especialmente em Criação Crioula se justificam
com os fatos selecionados pelas matéria de jornal. Não menos
importante que o investimento para trazer escritores estrangeiros –
construindo assim uma importante perspectiva da diáspora africana
pelo mundo44 – e situar o debate sobre a produção literária negra –
43 A Literatura Negra e a resistência dos povos. O Estado de São Paulo, 22 de maio de
1985, p. 13.
44 “[...]O embaixador de Togo no Brasil, Djababou Nana, disse que o evento falava ao
coração de todos os companheiros e que a vinda desses irmãos era uma conquista para um mundo
melhor.[…] estão expostas obras literárias como Chão de Exílio, de Antonio Cardoso (escritor
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por negros e não-negros – seria fazer representar e ouvir os escritores
negros brasileiros sobre o assunto. Embora o programa do evento
tenha sido elaborado pela intelectual negra Thereza Santos 45, poucas
vezes isso é mencionado (cedendo lugar aos nomes oficiais do
secretário de Cultura, Guarnieri, do governador do Estado, Franco
Montoro ou mesmo do prefeito Covas). Isso fica patente em outra
matéria do jornal, onde há o fornecimento de mais informações sobre
a participação brasileira.
[…]A brasileira Teresa Santos, organizadora principal do
evento, abriu a coletiva falando da importância desta
mostra internacional, especialmente para os escritores
negros brasileiros que não conseguem publicar suas
obras a não ser no âmbito da publicação independente.
Teresa Santos afirmou ainda que não adianta esconder, a
discriminação no Brasil convencionou que “o negro não
pensa”. E sendo assim sua produção literária não
interessa às editoras. Citou apenas alguns escritores
negros que conseguiram furar este “cerco”, como Adão
Ventura e Paulo Colina. Mas reconheceu que o panorama
começa a mudar, com o interesse que a editora Roswitha
Kempf vem mostrando pela produção negra e que a
editora Ática já provou, editando no Brasil inúmeros
romances africanos. [...]Teresa Santos, em seguida,
apresentou os escritores presentes: os brasileiros Adão
Ventura, Paulo Moraes, Jônatas Conceição da Silva (de
Salvador) e Oliveira Silveira (de Porto Alegre); José
Marcial Ramos Guedes, da Venezuela; Maximilian
angolano), Black Gods and Kings, do nigeriano Robert Farris Thompson e uma seleção de textos
sobre o período pós independência de São Tomé e Príncipe, de 1975 a 1977[...]”. Cf. Literatura
Negra: aberta a discussão. O Estado de São Paulo, 21 de maio de 1985, s/p.
45 “Na Secretaria Municipal de Cultura, na gestão de Gianfrancesco Guarnieri,
consegui realizar alguns projetos voltados para a periferia da cidade, e dois deles foram muito
importantes para mim: “O I Perfil da Literatura Negra – Mostra Internacional de São Paulo”, em
1985, com a participação de escritores de Moçambique, Angola, Nigéria, Cabo Verde, Venezuela,
Inglaterra, Uruguai, América do Norte e Portugal. Este projeto deu um panorama do que era
produzido na literatura com temática negra, feita por brancos ou negros. A frequência em oito dias
de palestras e debates foi muito boa, com uma média de 200 pessoas por debates.[...]” Ver:
SANTOS, Thereza. Malunga Thereza Santos: a história de vida de uma guerreira. São Carlos:
Edufscar, 2008, pp.100-101.
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Laroshe [sic], do Haiti; Manoel Ruy Monteiro e Adriano
Botelho de Vasconcellos, de Angola; e o americano Don
Lee, que assina Haki R. Madhubuti. Presentes também,
como convidados do congresso, o professor inglês David
Brookshaw e a professora gaúcha Zilah Bernd.[...] 46
Desta maneira, a carta enviada a O Estado de São Paulo por
um leitor e talvez escritor negro ganhasse concretude prática no
trecho que se reproduz: “[...]Esperamos que a partir deste evento os
meios de comunicação compreendam que não mais é possível
continuar distorcendo uma realidade – a existência de uma História,
de uma Cultura Negra no Mundo e particularmente em nosso país.”47
Na cobertura final do evento, o jornal publicaria ainda duas
matérias. A primeira, relatando o debate entre dois críticos literários
estrangeiros, Manuel Zapata (Colômbia) e Maximilien Laroche
(Haiti, radicado no Canadá, como professor na Universidade do
Quebec), em que ambos, participantes da Mostra, tecem
considerações comparativas sobre a realidade brasileira, a de seus
países e da diáspora africana nas Américas 48. A segunda, avaliava os
resultados dos debates da semana, na opinião de Maria Aparecida
Santilli e Octavio Ianni49. Ambos julgaram ser a experiência
extremamente valorosa, apesar de eventuais problemas de
organização, ausência de escritores ou os debates terem, por vezes,
fugido do tema. Seria mais importante a adesão do público e a
experiência democrática do debate sendo exercitada, após muitos
anos de interdição.
É importante registrar a maneira como o Perfil da Literatura
Negra foi noticiado pelo Jornal do Conselho da Comunidade Negra
de São Paulo. Este periódico enfatizou a presença dos escritores
negros nacionais com algum protagonismo, o que pode ser
46 Idem, Ibidem.
47 O perfil da literatura negra. O Estado de São Paulo, Dos Leitores, 24 de maio de
1985, p. 02. Carta de Alberto Melo.
48 Literatura Negra, tema de reflexão. O Estado de São Paulo, 25 de maio de 1985, p.
19
49 Literatura negra, perfil deixa um saldo positivo. O Estado de São Paulo, 28 de maio
de 1985, p. 16.
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depreendido pela missão a que se propunha, dando menos destaque
que as outras matérias aos escritores estrangeiros ou pesquisadores da
história social e literária do negro no Brasil. Figuram, nesse lugar, os
nomes de Abdias Nascimento, Thereza Santos, Oliveira Silveira,
Oswaldo de Camargo, Domício Proença Filho e Éle Semog como
exemplos de intelectuais negros refletindo sobre o seu labor artístico e
as questões do seu grupo social:
O papel da Literatura tem sua especificidade no processo
histórico. Ela realiza aquele diálogo mais íntimo junto ao
ouvido, olhos e espírito do leitor ou público. Por ser arte
de palavras tem um jeito peculiar de dialogar e propor
visão de mundo, espalhando um humus muito especial
que pode contribuir muito como fertilizante da
recodificação. E ela tem sido uma das principais
expressões do movimento negro, não só na atualidade
mas também na sua história antiga. Este foi um trecho do
trabalho apresentado pelo poeta e escritor gaúcho
Oliveira Silveira, intitulado “A Recodificação do Mundo
pelo Negro na Diáspora Através da Literatura”,
apresentado dentro do Perfil da Literatura Negra, Mostra
Internacional de São Paulo que aconteceu de 20 a 26 de
maio, no Centro Cultural São Paulo. [...]A exemplo do
texto citado acima e muitos outros de excelente
qualidade, o evento foi sem dúvida alguma o mais
importante acontecimento cultural, ligado à literatura,
dos últimos 20 anos. Patrocinado pela Secretaria
Municipal de Cultura, tendo a frente desses trabalhos a
teatróloga Thereza Santos, que com uma equipe de
profissionais competentíssimos, conseguiu um fato quase
que inédito: lotar as salas do Centro Cultural por uma
semana inteira, atraindo as atenções do público da
Capital e do Interior, interessados em saber dos caminhos
percorridos por escritores negros e brancos, através de
seus trabalhos com relação à recodificação do mundo
pelas palavras. Participaram especialistas renomados
tanto do território nacional e internacional como Abdias
do Nascimento, Gianfrancesco Guarnieri (Secretário de
Cultura do Município), Domício Proença, Ele Semog,
Oswaldo de Camargo, Dom Lee e Michael Mitchel, dos
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Estados Unidos, Maximiliem Larosche, do Haiti, entre
outros. Não resta a menor dúvida que um grande passo
foi dado, façamos votos que eventos dessa natureza não
sejam atrações de 10 em 10 anos, mas que possam
ocorrer pelo menos a cada dois anos, a fim de que o
exercício da troca de experiências em todos os setores
das atividades literárias contribuam para o
enriquecimento e fortalecimento da atitude crítica perante
a vida e o mundo.50
A esperança do texto sobre a Mostra não prosperou. O evento
não se repetiu, nem com a mesma amplitude ou participação, a não
ser no ano seguinte, durante a programação da III Bienal Nestlé de
Literatura. É possível rastrear o anúncio de um II Perfil da Literatura
Negra em 1987, através de duas matérias publicadas no jornal O
Estado de São Paulo, mas que não evidenciam o mesmo vigor de
cobertura da programação demonstrado para a primeira edição do
evento:
Começa amanhã e vai até o dia 22, no Centro Cultural
São Paulo[…] o II Perfil da Literatura Negra – Mostra
Internacional, que reunirá escritores brasileiros de mais
de 15 países, todos negros para discutir a problemática do
negro na arte e na cultura. O escritor Oswaldo de
Camargo lançará durante o encontro o livro O Negro
Escrito, que faz um apanhado da participação do negro
na literatura desde 1650. O encontro é patrocinado pelo
governo do estado de São Paulo, por intermédio da
Secretaria de Estado da Cultura.51
Octávio Ianni, Diva Damato, Fernando A. Mourão, Paulo
Colina (Brasil), David Brookshaw (Inglaterra), Manuel
Zapata Olivella (Colômbia), Mazizi Kunene (África do
Sul), Buschi Emecheta (Nigéria) e Rui Duarte (Angola)
50 Mostra Internacional de Literatura. Jornal do Conselho da Comunidade Negra, São
Paulo, ano I, n. 03, ago/set. 1985, p. 08.
51 Negros discutem a sua cultura. O Estado de São Paulo, Caderno 2, 15 de novembro
de 1987, p. 05
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são alguns dos nomes que estão hoje debatendo “A
literatura como forma de resistência” dentro do programa
do II Perfil da Literatura Negra. Os debates começam às
10h, na Sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural São
Paulo[...]52
Sem saber qual foi a programação completa do II Perfil 53, é
difícil evidenciar cabalmente a secundarização, nas matérias d´O
Estado de São Paulo, a presença dos escritores negros brasileiros
nele. Por outro lado, pode-se afirmar que o destaque dado à presença
estrangeira é visível, especialmente na segunda nota. Na primeira, o
anúncio do livro de Oswaldo de Camargo pode ser entendido também
como um dado interno, uma vez que o escritor era revisor e jornalista
do Grupo Estado desde meados dos anos 1950 (Oswaldo atuava, à
ocasião, na redação do Jornal da Tarde). Curioso que esta nota é
intitulada como “Negros discutem a sua cultura”. O que antes, em
1985, era algo amplo e que foi louvado por ter tido como uma ampla
adesão pública, a um ano dos debates sobre o Centenário da Abolição
é caracterizado como algo endógeno, como se a literatura negra e sua
história devessem interessar, tão somente, aos negros e seus
defensores. Nada mais é noticiado sobre a segunda edição do Perfil,
apesar ser suscitado ter ocorrido ao longo de cinco dias úteis.
E aquilo que foi uma semana de debates em 1985 converteuse, em 1986, em um dia específico, durante a III Bienal Nestlé de
Literatura, ocorrida no Centro de Convenções Rebouças na capital
paulista. A Bienal, dedicada a revelar e premiar novos talentos
literários, além de promover debates, entre os dias 07 e 11 de julho de
1986, abrigou o Seminário de Literatura Brasileira. As seções
dedicadas a “O Negro na Literatura Brasileira” ocorreram ao longo do
dia 09 de julho. Na parte da manhã, o expositor foi o jornalista e
52 Literatura Negra. O Estado de São Paulo, Caderno 2, 21 de novembro de 1987, p. 6.
53 Thereza Santos menciona muito rapidamente o segundo evento em sua memórias:
“Foram 14 projetos dentro do “Consciência e Liberdade”, de novembro de 1987 a novembro de
1988. Começamos com o “II Perfil da Literatura Negra – Mostra Internacional de São Paulo”, com
a maioria dos participantes da primeira edição e outros escritores e intelectuais nacionais e
internacionais, como os brasilianistas Michael Michel e Ângela Guillian”. SANTOS, Thereza. Op.
Cit. p. 101.
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crítico de literatura Leo Gilson Ribeiro. O coordenador da mesa foi
Duílio Gomes e os debatedores eram o escritor negro Abelardo
Rodrigues e os cientistas sociais Clóvis Moura, Joel Rufino dos
Santos e Octávio Ianni. Na seção da tarde, criou-se o espaço para os
“Depoentes”, para o qual foram convidados os escritores Adão
Ventura, Audálio Dantas, Éle Semog, Oliveira Silveira, Oswaldo de
Camargo, Paulo Colina e Ruth Guimarães. 54 Necessário dizer que
Dantas nunca se afirmou como um escritor negro mas como o
descobridor de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e organizador
das notas que se tornariam o Quarto de Despejo: diário de uma
favelada(1960). Ruth Guimarães (1920-1914) foi uma escritora negra
que jamais defendeu a estética negra como uma ética criativa
denominada Literatura Negra, o que não significou descaso, de sua
parte, com a pesquisa sobre temas e defesa das questões negras. Os
outros escritores, na seção de Depoentes, todos eram ativistas da
Literatura Negra Brasileira. A reunião desses nomes provocou
discussões, pelo menos na primeira seção, como se pode observar do
relato abaixo:
Existe racismo na literatura brasileira e todo o monopólio
cultural está nas mãos dos brancos[…] O autor do
raciocínio é o escritor, ensaísta e sociólogo Clóvis Moura
que participou ontem de manhã, do terceiro debate (O
Negro na Literatura Brasileira)[…] Na plateia alguns dos
mais ativos escritores negros do país, como Arnaldo
Xavier, Paulo Colina, Adão Ventura e Oswaldo de
Camargo, observavam o debate que, para eles, não
interfere na má vontade em analisar a literatura que
produzem. “No todo, não achei o debate bom. Os
debatedores brancos sempre tentam atuar como
conselheiros culturais para a gente e, por maior
solidariedade que exista com a nossa causa, sempre
54 Propaganda da III Bienal Nestlé de Literatura em O Estado de São Paulo, Caderno
2, 08 de junho de 1986, p. 8.
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existe um filtro
Xavier.[...]55
étnico
racista”,
disse
Arnaldo
No tocante a Bienal Nestlé, a matéria publicada no Jornal do
Conselho da Comunidade Negra de São Paulo traz sutilmente as
divergências sobre um ponto já apresentado neste artigo e discutido
pelos escritores negros no livro Criação Crioula, Nu Elefante Branco:
o desencontro programático de autores e críticos em torno daquela
ideia, permanentemente em debate56. O excerto da matéria é longo,
mas sua reprodução é válida:
A importância e o caráter específico da literatura negra
fizeram-na merecer um dia de debates e estudos na 3 ª
Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, realizada em julho,
no Centro de Convenções Rebouças, com a participação
de alguns dos mais importantes escritores brasileiros do
momento.[...]Os trabalhos começaram pela manhã, com
uma mesa composta por Leo Gilson Ribeiro, Clóvis
Moura, Abelardo Rodrigues e Otávio Ianni (sic). Ribeiro,
crítico literário do Jornal da Tarde, falou da tentativa de
branqueamento da sociedade brasileira iniciada no
começo do século, o que levou a um abafamento da
cultura negra, com reflexos na literatura brasileira. Nessa
mesma linha de raciocínio, o escritor, poeta e sociólogo
Clóvis Moura declarou que o negro nunca é visto como
herói, na literatura oficial. E o professor e escritor Otávio
Ianni ressaltou que o escritor negro precisa resgatar a
verdadeira história brasileira, apresentada até agora,
sempre do ponto de vista da cultura da classe dominante.
[...]À tarde, o numeroso e interessado público voltou a
lotar o auditório do Centro de Convenções Rebouças,
para ouvir os depoimentos de escritores negros.
Sentaram-se à mesa Audálio Dantas, Adão Ventura, Ele
55 SOARES, Ricardo. Páginas negras da literatura. O Estado de São Paulo, Caderno 2,
10 de julho de 1986, p. 7.
56 Literatura Negra na 3 ª Bienal Nestlé.” Jornal do Conselho da Comunidade Negra,
São Paulo, ano II, n.6, junho/julho 1986, p, 12.
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Semog, Oswaldo de Camargo, Oliveira Silveira, Paulo
Colina e Ruth Guimarães. À exceção de Dantas, que
falou sobre a escritora negra Carolina Maria de Jesus,
autora de Quarto de Despejo, descoberta por ele há vinte
anos na favela do Canindé (sic), em São Paulo, os
escritores falaram de suas obras e de suas experiências
literárias. Poetas de produção independente, e que se
envolvem em todos os momentos da feitura do livro,
desde a impressão até a divulgação, eis a característica
comum a esses escritores. Paulo Colina, poeta e tradutor,
organizador da antologia AXÉ, de poetas negros, disse
que gostaria de ver mais prosadores negros. Entretanto,
ele mesmo, a princípio um ficcionista, aderiu à poesia
por sentir que há coisas que só se pode dizer através dela.
[...]Para Oliveira Silveira, poeta gaúcho, com sete livros
publicados, a literatura negra é a que está comprometida
com a veiculação de dados culturais referentes ao negro.
Já Paulo Colina prefere falar de uma literatura afrobrasileira, que diga o que somos e o que não queremos
ser. Oswaldo de Camargo, paulista de Bragança, poeta e
jornalista, um dos decanos dos escritores negros atuais, é
de opinião que a literatura negra é uma tentativa de
prosseguirmos sendo nós mesmos. Ruth Guimarães, que
ressaltou ser professora, estabeleceu a diferença entre a
literatura do negro, onde o mesmo é sujeito, e a literatura
sobre o negro, onde é objeto das ações. Para o carioca
Ele Semog, a literatura negra é a que apresenta a
oralidade, a ginga e a resistência próprias do negro. É a
que visa ao aperfeiçoamento da cultura negra,
independente de quem a faz.[...]As intervenções mais
marcantes da tarde foram as de Ruth Guimarães e Ele
Semog. Ruth, que se definiu mulher, negra e caipira, deu
depoimento altamente otimista, embora marcado pelo
realismo. Depois de dizer que a máquina de escrever é a
sua arma, afirmou que é totalmente livre, e que
conquistou cada centímetro de seu espaço. Disse ainda
que seus personagens negros são feitos de pedra e de aço,
e que por meio de sua literatura ou mesmo falando a
platéias como aquela, pregava sempre o orgulho: Nós
estamos aqui. Queiram ou não. Só falta sermos o povo
brasileiro. Para Ruth, lugar de negro é em todos os
lugares, principalmente a escola. E indagou: sem escola,
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sem orgulho e sem um livro nas mãos, o que nos resta?
Ele Semog lembrou que os coletivos de escritores negros
ainda não estão reunindo como devia, e que ainda há
muito que lutar contra os capitães de mato da criação.
Ressalvou, porém, que o livro acima de ser um
instrumento ideológico, deve ser uma obra de arte. E que
o grupo a que pertence, no Rio de Janeiro, o NEGRICIA,
pretende estabelecer, acima de tudo, uma estética
desgarrada do eurocentrismo.[...] Apesar da reclamada
ausência de outras escritoras negras e de pelo menos um
representante do grupo Quilombhoje, uma das mais
importantes experiências no gênero, no Brasil, o dia de
debates sobre literatura negra, dentro da 3 ª Bienal Nestlé
de Literatura Brasileira, foi dos mais produtivos. Esperase que outras iniciativas nesse sentido sejam tomadas,
bem como que haja continuidade deste trabalho.
Em ambos os eventos, as ausências dos escritores do
Quilombhoje, como coletivo [Cuti, Abílio Ferreira, Esmeralda
Ribeiro, Oubi Inaê Kibuko, Míriam Alves, Esmeralda Ribeiro,
Márcio Barbosa e Sônia Conceição] foi perceptível. Pode-se
argumentar que, pelo tamanho do grupo, seria difícil inseri-los como
um todo. Mas ao menos um ou dois membros seriam possíveis. Tratase do terreno de disputas de legitimidade discursiva sobre os sentidos
da literatura negra, estabelecido nos anos 1980, entre escritores (mais
velhos e jovens ativistas), críticos literários e membros da política
cultural. Pouco mais de vinte anos após os fatos, os atuais
coordenadores do Quilombhoje [Barbosa e Ribeiro57] rememoram
57 Esmeralda Ribeiro: “[...]o “Perfil” foi a Tereza, né? Tereza Santos. Ela só fez
porque tinha uma produção, tinha autores pra mostrar. Eu acho que foi muito rico. Pra nós foi
riquíssimo. Um período muito bom, no sentido da divulgação, da discussão, de trazer também mais
acadêmicos, críticos, a academia, na verdade.” Márcio Barbosa: “[...]Eu acho que foi uma coisa de
você colocar caminhos, eu tinha uma concepção, a Esmeralda tinha outra, o Oswaldo tinha outra, o
Cuti tinha outra, e foram mil ideias que fervilhavam. Foi legal, porque a gente começou a ditar
algumas coisas aí. E o “Perfil”, cara, eu acho que surgiu um pouco dessas discussões todas, dessa
agitação toda. Por outro lado, a gente não foi convidado pro “Perfil”, pra participar como
palestrante, pra estar falando na mesa. A gente ficou um pouco, o Quilombhoje ficou meio que à
parte desse processo. Tanto que a gente ficou até admirado, né? Pô, um Perfil internacional... Teve
escritores angolanos, moçambicanos e tal. E foi bacana, a gente participou lá, estivemos todos os
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aqueles eventos com saldo muito positivo, mesmo com os
desencontros, disputas e percalços. O debate e a visibilidade sobre a
literatura, os intelectuais e o grupo social negros estava acima disso
tudo.
Conclusão
Pelo que tentou demostrar ao longo do artigo, houve uma
ambiência intelectual e política extremamente favorável ao debate e
circulação de ideias sobre o grupo social negro e acerca de sua
literatura. Isso congregou intelectuais, negros e não-negros, que por
vezes estabeleceram alianças políticas e culturais, seja para
organização de eventos, publicação de livros ou debates públicos.
Num cenário de progressiva abertura política, tais fatos, obras e ideias
colocam em evidência a vitalidade do associativismo político e
intelectual negro, bem como a importância da questão racial no
Brasil, em meio à última ditadura civil-militar (1964-1985).
Caso isso não seja levado em consideração, fica difícil
explicar como os sujeitos sociais, os eventos narrados e as
publicações citadas foram possíveis, apesar de frequentemente
ignorados pela historiografia que se ocupa do período ditatorial, da
produção da literatura marginal dos anos 1970 ou mesmo do debate
sobre a questão racial. O ano de 1978 é considerado um marco do
ressurgimento do movimento negro no Brasil – por assumir a
ressignificação simbólica do 20 de novembro como data de luta do
grupo negro, pela fundação do Movimento Negro Unificado ou pela
criação de coletivos como os Cadernos Negros. Todavia, as ideias
possuem força social e devem ser rastreadas em seus percursos. As
décadas pregressas não foram estéreis ou desertificadas, mesmo
apesar do golpe de 1964, que desmobilizou associações como a
Associação Cultural do Negro. E tal força social das ideias também
dias...” Entrevistas com Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, concedidas a Mário Augusto M. Da
Silva e Vinebaldo Aleixo de Souza Filho, em 26/02/2010.
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devem ser debatidas enquanto consequências. A confluência de
militantes velhos e novos, as circunstâncias em torno de 1978 podem
ser explicativas para o desenrolar da década de 1980. Desta maneira,
por mais extraordinário que possa se aparentar, o período em tela não
é exatamente excepcional, mas sim a resultante de uma longa
discussão e atuação de diferentes sujeitos na história do
associativismo político cultural negro, especialmente em São Paulo.
Outro destaque é a importância do Perfil da Literatura Negra
e dos debates na III Bienal Nestlé. Mesmo com os problemas
apontados, não se pode ignorar a importância de se reunir os
intelectuais e escritores enfocados, para discutir, num primeiro plano,
a perspectiva diaspórica da presença africana e negra em outros
continentes, extraindo daí um saldo em termos de literatura e política.
De outro ângulo, a possibilidade de se debater a história social e
literária negra e também ouvir seus intelectuais deve ser interpretado
como algo de valor. Tratava-se de uma conjuntura de recém saída de
mais um período de abuso de poder institucional.
Dada a história brasileira, assumir e/ou colocar em discussão
a existência de racismo, preconceito, discriminação racial; ou mesmo
respeitar a fala do negro como intelectual não faz parte de um
repertório convencional. Esse debate é tão somente suscitado neste
artigo. Pesquisas mais profundas sobre esse momento e aqueles
eventos necessitam ser mais e melhor elaboradas, especialmente se
valendo do uso de fontes e metodologia de História Oral, uma vez que
os documentos ou jornais à disposição são escassos e os eventos
aniversariam já algo em torno de três décadas de acontecimento, com
o falecimento de alguns de seus protagonistas (Adão Ventura,
Thereza Santos, Arnaldo Xavier, Jônatas Conceição, Paulo Colina,
Oliveira Silveira, Ruth Guimarães, Octávio Ianni, Gianfrancesco
Guarnieri, Leo Gilson Ribeiro entre outros).
RECEBIDO EM: 02/01/2016
APROVADO EM: 19/04/2016
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