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n° 27 - 2002 Editores: J08.0 Jose Reis, Renato da Silveira e Valdemir Zamparoni Artigos \JA), (L:FBa), UA). Identidade e a miragem da etnicidade A jornada de Mahommah Gardo Baquaqua para as Americas Paul E. Lovcjo,v FRJ). Antonio A comunidade brasileira de Vida e os ultimos anos do trafico atlantico de escravos, 1850-66 UFRJ), Iris IV). Robin Law I, A dinamica das rela<;oes de genero e parentesco num contexto comercial: um balan<;o comparativo da produ<;ao hist6rica sobre a regiao da Guine-Bissau seculos XVII e XIX ;sP). esiELA). ). ョセャゥ@ 9 41 セ@ Nos tumbeiros mais uma vez? o comercio interprovincial de escravos no Brasil e seus autores. ia dos cdiLOrc:, 'r). Assinatura :rseas ). Richard Gmhllm 121 A estabilidade das familias em um plante] de escravos de Apiai (SP) Jose Flavio l'vjotta e Agnllldo Valentin 161 "Atos dignos de louvor": Imprcnsa, alforrias e aboli<;ao no sui do Espirito Santo, 1885-1888 Robson L. M. Martins 193 Gilberto Freyre, historiador da Cultura Geraldo Antonio Soares 223 Da Africa ao afro: uso e abuso da Africa entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante 0 seculo XX Livio Sansone 249 ... __ __ __ _ - - - - - .. .. .. ARTIGOS Centro de Estudos Afro-Orientais-CEAO Faculdade de Filsofia e Ciências Humanas-FFCH Universidade Federal da Bahia-UFBa Reitor da UFBa Heonir Rocha Diretora da FFCH Antonio Fernando Guerreiro de Freitas Diretor do CEAO Ubiratan Castro de Araújo Editores João José Reis Renato da Silveira Valdemir Zamparoni (interino) Conselho editorial Michel Agier (ORSTROM/França), George Reid Andrews (U. de Pittsburg, EUA), Ubiratan Castro de Araújo (UFBa), Marion Aubrée (CNRS-França), Júlio Braga (UFBa), Marcus Joaquim M. de Carvalho (UFPe), Anani Dzidzienyo (U. de Brown/EUA), Paulo F. de Moraes Farias (U. de Birmingham/Inglaterra), Flávio dos Santos Gomes (UFRJ), Antônio Sérgio A. Guimarães (USP), Carlos A. Hasenbalg (CEAA/RJ), Silvia H. Lara (UNICAMP), Vivaldo da Costa Lima (UFBa), Yvonne Maggie (UFRJ), J. Lorand Matory (U. de Harvard/EUA), Kátia M. de Queirós Mattoso (U. de Paris IV), Elikia M’Bokolo (EHESS/França), Maria Inês Côrtes de Oliveira (UFBa), Angelina Pollak-Eltz (U. Católica Andrés Bello/Caracas), Reginaldo Prandi (USP), Rebecca Scott (U. de Michigan/EUA), Edward E. Telles (U. da Califórnia-Los Angeles/EUA), Olabiyi Babalola Yai (U. da Flórida/EUA), Valdemir Zamparoni (UFBA). Patrocínio Cultural Fundação Clemente Mariani COPENE Realização Mestrado em História - UFBa Os conceitos emitidos nos textos aqui publicados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Não é permitida a reprodução desses textos, sob qualquer forma, sem permissão prévia dos editores e desde que citada a fonte original. Assinatura/Subscription: Cada exemplar/single copies R$25 (Brasil); R$35 (exterior). Assinatura anual/annual subscription (dois números/two issues) R$50 (Brasil); R$70 (overseas). Solicitamos troca de publicações. We ask for exchange. ISSN 0002-0591 Toda correspondência deve ser enviada para o seguinte endereço: Mestrado em História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal da Bahia Estrada de São Lázaro, 197, 40210-630, Salvador, Bahia, Brasil Tel/Fax: (071) 237-7574 E-mail: afroasia@ufba.br Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 161 IDENTIDADE E A MIRAGEM DA ETNICIDADE A JORNADA DE MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA PARAAS AMÉRICAS1 Paul E. Lovejoy* R eferências a etnicidade são freqüentes no estudo dos africanos escravizados nas Américas, mas a forma como o conceito de etnicidade é compreendido tem sido objeto de consideráveis debates e divergências. Eu defendo que reconstruções de conceituações de etnicidade oferecem a possibilidade de preencher uma lacuna metodológica no estudo da escravidão. A lacuna consiste na ausência de dados sobre o que aqueles escra* 1 Professor de História da Diáspora Africana, Universidade de York, Canadá. Vide Robin Law e Paul Lovejoy, The Biography of Muhammad Gardo Baquaqua (Princeton, 2001). A pesquisa teve o apoio do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanidades do Canadá, e é parte do projeto UNESCO/York University “Nigerian” Hinterland Project. Eu gostaria de agradecer, além de a Robin Law e sua parceria neste projeto, a diversas pessoas pela ajuda que prestaram: Cheryl I. Lemaitre por fazer a busca de referências jornalísticas e por seus comentários sobre os primeiros esboços; Catherine Hanchett pelo generoso auxílio relativamente à história do Central College, e por permitir-me consultar a sua obra, ainda não publicada, sobre o Colégio e os anos que Baquaqua’s passou lá; Catherine Barber, historiadora de Cortland County, por referências jornalísticas; Silvia Hunold Lara, por compartilhar sua pesquisa preliminar e pelo empréstimo dos negativos de duas gravuras de Baquaqua; Manolo Florentino, Alberto da Costa e Silva e Tufy Cairus, por seu auxílio no Rio de Janeiro, e no Brasil em geral, e a João Reis e Marcus Carvalho, pelas informações sobre Pernambuco. Ibrahim Hamza deu sugestões muito úteis com relação às culturas hauçá e muçulmana. Allan Austin foi quem primeiro me chamou a atenção para Baquaqua: vide Allan Austin (ed.), African Muslims in Ante-Bellum America: A Sourcebook (New York e Londres, 1984), 585-654 (doravante, Austin, African Muslims: Sourcebook). Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas no Departamento de História da Universidade do Texas, em 11 de fevereiro de 2000, no Centro Gilder Lerhman para o Estudo da Escravidão, Resistência e Abolição, Universidade de Yale, 16 de fevereiro de 2000, no Centro de Estudos Africanos, Universidade de Rutgers, 24 de fevereiro de 2000; e na conferência “Liberté, identité, integration et servitude,” Universidade de Al Akhawayn, Ifrane, Marrocos, 29-30 de junho de 2000. Tradução: Raul Oliveira. Revisão da tradução: Valdemir Zamparoni. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 9 vos pensavam e em que eles acreditavam. Por esta razão, a “interessante narrativa” de Mahommah Gardo Baquaqua reveste-se de especial importância, tendo em vista a sua odisséia incomum, de alguém escravizado na África ocidental, aparentemente entre o início e meados dos anos 1840, e transportado para o Brasil por volta de 1845, alcançando sua liberdade na cidade de Nova Iorque em 1847.2 A biografia de Baquaqua foi originalmente publicada em 1854, em Detroit, Michigan (EUA), e consiste em 65 páginas impressas, com o poema “Prece dos Oprimidos” (do poeta afro-americano James Whitfield) como apêndice.3 É quase certo que o poema de Whitfield tenha sido escolhido porque captava os pensamentos de Baquaqua: “quando o radiante sol da liberdade / brilhar sobre todo país despótico, E toda a humanidade, livre da escravidão, adorar as maravilhas de vossa mão.” A busca de Baquaqua por “liberdade”, a primeira palavra que ele diz ter aprendido em inglês, conduz-nos por um caminho de múltiplas identidades, no qual a etnicidade informa a discussão sobre a situação de Baquaqua, mas, apesar disto, não explica a progressiva individualização de sua identidade, e a correspondente alienação que isto implica. A etnicidade revela-se como uma série de chapéus, cujo uso lhe é prescrito. Como um mecanismo de auto-identificação, a etnicidade surge como uma miragem, a disfarçar o indivíduo que está sob os chapéus. Baquaqua não diz nada, explicitamente, sobre a forma como ele se identificava a si mesmo em termos étnicos ou em relação ao seu lugar de origem. Não obstante, materiais biográficos implicitamente dão pistas sobre o indivíduo, dizendo-nos, assim, em teoria, como cada pessoa interagia na esfera social e, por conseguinte, como cada um era identificado e como cada um percebia-se a si mesmo em diferentes situações. Portanto, para mim, a etnicidade não é importante em si, ou por si só, mas sim porque ela fornece uma chave metodológica para a reconstru2 3 Samuel Moore, Biography of Mahommah G. Baquaqua. A Native of Zoogoo, in the Interior of Africa (A Convert to Christianity,) with a Description of that Part of the World; including the Manners and Customs of the Inhabitants (Detroit: Geo. E. Pomeroy & Co., 1854). Doravante, far-se-á referência ao livro como a Biografia de Baquaqua. James Whitfield, America, and Other Poems (Buffalo, 1853), 61-63. Sobre a contribuição de Whitfield para a literatura afro-americana, vide Joan R. Sherman, “James M. Whitfield: Poet and Emigrationist: A Voice of Protest and Despair,” Journal of Negro History, 56, 1972, 173. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 10 Foto 1 Mahommah G. Baquaqua (1850), frontispício, A. T. Foss and Edward Mathews, Facts for Baptist Churches, Utica, 1850. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 11 ção de padrões mais gerais de história, do que permite a história isolada de uma pessoa. Quando seu livro foi publicado, Baquaqua tinha, possivelmente, trinta anos, um homem ainda jovem, com uma diversidade de experiências incomum para a maioria das pessoas em qualquer época, porém indicativa das situações possíveis com que se defrontavam os africanos escravizados que haviam sido conduzidos à força ao longo das rotas que levavam ao mundo desconhecido da escravidão racializada nas Américas. É quase inimaginável que um homem de trinta anos, que tinha experimentado a escravização e a migração forçada para as Américas, tenha deixado um relato autobiográfico tão vívido. Baquaqua foi, primeiro, para o Brasil, antes de buscar a liberdade em Nova Iorque, e depois refúgio no Haiti, onde permaneceria por dois anos. Ele converteu-se ao cristianismo em 1848. Durante quase três anos (1850-53), freqüentou o Central College, em McGrawville, Estado de Nova Iorque, onde, depois de mudar-se para o Canadá Oeste (Ontário), ele tomou as providências visando a publicação de sua história, em Detroit, em 1854. Viajou para Liverpool em janeiro de 1855, e a última notícia que temos dele data de 1857, na Grã-Bretanha, aguardando os resultados dos esforços de seus amigos missionários para levantar fundos, a fim de mandá-lo de volta para a África. O que restou de sua correspondência, assim como a sua biografia, reflete o seu firme propósito de retornar à sua “terra natal”.4 Ele tentou juntar-se à Missão Mendi, em Serra Leoa em 1853-54, e, em 1857, ainda estava contatando a Missão Livre Batista Americana, em busca de auxílio. O registro diz: “Mahommah, o africano educado neste país [Estados Unidos], agora na Inglaterra, expressando o seu desejo de retornar e trabalhar entre seus compatriotas”, mas a decisão de estabelecer a missão foi adiada por um ano e, aparentemente, tal missão nunca foi enviada.5 Baquaqua some de vista depois disto. 4 5 Baquaqua para George Whipple, McGrawville, 8 de outubro de 1853 (Arquivos da Associação Missionária Americana American, Nº 81362, Centro de Pesquisas Amistad, Universidade de Tulane, New Orleans). Eu gostaria de agradecer a Kwabena Akurang-Parry por sua ajuda em localizar esta correspondência, que está publicada em Law e Lovejoy, Biography of Baquaqua, apêndice 3. [Nova Iorque] Free Mission Record, fevereiro de 1857, 13, que discute a reunião do Conselho da Sociedade da Missão Livre Batista Americana. Eu gostaria de agradecer a Silvia Hunold Lara por esta referência. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 12 Mapa 1 Rota de Baquaqua da África para as Américas e Inglaterra Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 13 O relato de Baquaqua serve como exemplo de como uma biografia pode informar a nossa compreensão da diáspora africana, e de como indivíduos encaixavam-se na história da escravidão transatlântica.6 Neste ensaio, eu investigo identidade ao longo da rota escravista, da África para as Américas, usando o perfil pessoal de Baquaqua como um meio de penetrar no, freqüentemente impenetrável, silêncio dos escravizados. Os detalhes da biografia abrem a possibilidade de submeter os estereótipos étnicos, os signos atribuídos de identidade e o historicismo da tradição e da memória ao escrutínio de uma rigorosa metodologia. Até que ponto a etnicidade era essencialista, existindo independentemente dos indivíduos e resistindo às mudanças de circunstância e de situação? Qual era a relação entre o indivíduo e a coletividade, sob o jugo da escravidão racializada? Conduzir uma tal pesquisa biográfica é difícil, porque os dados normalmente encontram-se muito dispersos, mas, no caso de Baquaqua, existe uma quantidade considerável de informações disponíveis. Ao examinar questões de etnicidade, e da maneira como elas se refletiram na vida de Mahommah Gardo Baquaqua, fica claro que sua identidade esteve entrelaçada com os detalhes pessoais de sua vida, mas também que a etnicidade era pouco mais do que uma “miragem”, que disfarçava os fatores que haviam conduzido à sua escravização e venda. A história de vida de Baquaqua revela muito sobre a maneira como, pelo menos a este homem em particular, foi atribuída uma série de identidades que tinham relação com seu status, no curso de sua vida. No espaço de uma década, ele conseguiu cair na escravidão em Borgu, sobreviver à marcha forçada em direção à costa e à terrível Passagem do Meio, experimentar um brutal encarceramento em Pernambuco e um duro tratamento no mar, mas ele sobreviveu. Mesmo o isolamento do período passado no Haiti e o racismo do Estado de Nova Iorque não conseguiram quebrantá-lo. Não pode haver uma evidência mais forte de que este homem manteve uma imagem de si mesmo que pôde resistir à violência, à humilhação e aos esforços de desenraizamento. Sua identidade, no contexto da escravidão, manteve-se em transformação, apresentando o ho6 Paul E. Lovejoy, “Biography as Source Material: Towards a Biographical Archive of Enslaved Africans,” in Robin Law (ed.), Source Material for Studying the Slave Trade and the African Diaspora (Stirling, 1997), 119-40. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 14 mem em diferentes aspectos para diferentes situações. Em seu nome e em sua memória, contudo, existem traços de um indivíduo que conservou uma forte identificação com a África e com a sua terra natal. As contradições e lutas que são reveladas em sua história são características de muitos daqueles que foram escravizados, especialmente porque Baquaqua não conseguiu estabelecer conexões com uma comunidade de escravos nas Américas, e só alcançou a condição de membro de uma comunidade quando se associou aos abolicionistas norte-americanos, especificamente os da Sociedade da Missão Libre Batista Americana, com a sua rede no Estado de Nova Iorque, na Pensilvânia e no Canadá Oeste. Muitas das narrativas de escravizados dessa era provêm de escravos do sexo masculino, e o relato de Baquaqua não constitui uma exceção. Na verdade, havia uma predominância de homens entre os escravos, especialmente entre os muçulmanos escravizados.7 Embora Baquaqua não esteja incluído na compilação de depoimentos da era escravista feita por Philip Curtin, sua história harmoniza-se com o tema dominante na coletânea de Curtin, a qual é inteiramente masculina e predominantemente muçulmana.8 De forma similar, o material biográfico de Allan Austin sobre escravos muçulmanos na América consiste, inteiramente, de dados sobre indivíduos do sexo masculino.9 Michael Gomez discute exemplos de mulheres muçulmanas na América do Norte, mas também observa que quase todos os muçulmanos escravizados eram homens.10 Também Sylviane Diouf observou que os africanos escravizados procedentes de áreas muçulmanas eram, em sua maioria, 7 8 9 10 Sobre a composição de gênero e faixa etária na população escrava deportada no século XIX, vide David Eltis e Stanley Engerman, “Fluctuations in Sex and Age Ratios in the Transatlantic Slave Trade, 1663-1864”, Economic History Review, 46 (1993), 308-23; e a análise atualizada de David Eltis, Stephen D. Behrendt, David Richardson e Herbert S. Klein, The Trans-Atlantic Slave Trade: A Database on CD-ROM (Nova Iorque, 1999). Todas as dez biografias na publicação de Curtin (Africa Remembered: Narratives by West Africans from the Era of the Slave Trade [Madison, 1967]) são de homens; a metade é muçulmana, um deles era livre. Logicamente, a compilação não se pretende representativa do tráfico de escravos. Contudo, esta coletânea é representativa da predominância de homens nos relatos que se conservaram. De mais a mais, os muçulmanos estão representados desproporcionalmente à sua real quantidade. Austin, African Muslims: Sourcebook. Michael Gomez, Exchanging Our Country Marks: The Transformation of African Identities in the Colonial and Antebellum South (Chapel Hill, 1998), 59-87. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 15 homens.11 Esses estudos confirmam a minha própria conclusão, de que a maioria esmagadora dos africanos escravizados do Sudão central, incluindo Borgu, eram homens, a maioria dos quais foi para a Bahia no início do século XIX.12 A jornada de Baquaqua encaixava-se neste padrão mais amplo, embora ele tenha ido para Pernambuco, e não para a Bahia, e tenha seguido uma rota para a costa que o conduziu muito mais para oeste do que a maioria dos muçulmanos escravizados do Sudão central que acabaram chegando ao Brasil. A rota mais comum era através de Oyo, para Porto Novo ou Lagos.13 Reconhecidamente, a odisséia de Baquaqua foi incomum, levando-o de Borgu, no interior da África ocidental, através do Daomé, para Pernambuco, Rio de Janeiro, Cidade de Nova Iorque, Haiti, Estado de Nova Iorque, Canadá Oeste e Inglaterra. Não foram muitos os africanos escravizados que alcançaram a América, partindo de Borgu, e a rota seguida por Baquaqua, na direção sul, para o Daomé, não era muito percorrida, nem mesmo pelos relativamente poucos que, efetivamente, se viram a bordo de navios rumo às Américas. O que ressalta de uma investigação da vida de Baquaqua é uma imagem de etnicidade que tinha pouca importância para ele, em sua auto-identificação, ou, pelo menos, em sua experiência pessoal, embora um sentido de origem étnica tenha permanecido, quase que certamente, fixado em sua memória. Suas convicções religiosas parecem ter ficado toldadas, como é sugerido em sua conversão ao cristianismo, exceto pela conservação do seu nome muçulmano. Não há nada de incompatível com o estabelecimento e a manutenção de uma dupla personalidade em matéria de religião, e Baquaqua havia, anteriormente, demonstrado não apreciar os requisitos da ortodoxia. Ele não havia sido um bom aluno, não apenas porque teve de estudar sob o severo controle de seu irmão mais velho, mas também porque gostava de beber, o que veio a ser a causa de sua queda e escravização. 11 12 13 Sylviane A. Diouf utiliza dados da vida de Baquaqua em seu estudo dos muçulmanos escravizados nas Américas; vide: Servants of Allah: African Muslims Enslaved in the Americas (New York, 1998), 42-45, 53, 203. Lovejoy, “Jihad e Escravidão: As Origens dos Escravos Muçulmanos de Bahia,” Topoi, 1 (2000), que atualiza “Background to Rebellion: The Origins of Muslim Slaves in Bahia,” in Paul E. Lovejoy e Nicholas Rogers (eds.), Unfree Labour in the Development of the Atlantic World (Londres, 1994), 151-82. Robin Law and Paul E. Lovejoy, “Borgu and the Slave Trade,” African Economic History, 28 (2000). Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 16 A vida de Baquaqua Baquaqua nasceu em Djougou, ao que tudo indica em meados dos anos 1820, em uma família muçulmana de proeminência local. A data do seu nascimento não é conhecida, mas ele certamente nasceu antes de 1830, possivelmente em 1824.14 Quando criança, em Djougou, ele freqüentou a escola alcorânica, começando muito jovem. Menino ainda, ele foi aprendiz de seu tio na manufatura de agulhas, e também parece ter sido preparado para a vida no comércio. Adolescente, ele, aparentemente, viajou para a vizinha Dagomba, à época uma província sob o domínio axanti. No final dos anos 1820 e nos anos 1830, quando Baquaqua estava crescendo, Djougou era uma das cidades mais importantes entre o território axanti e o Califado de Sokoto, e a sua narrativa confirma o papel por ela desempenhado. Durante a longa estação da seca, grandes caravanas, com 1.000 ou mais mercadores e carregadores, e um número equivalente de jumentos, passavam por Djougou, freqüentemente permanecendo lá por um curto período. Eles transportavam nozes de obi e ouro dos axantis, e produtos importados da Europa, indo da Costa do Ouro em direção a leste, e retornavam com sal, natrão, têxteis, especiarias, produtos de couro, gado, escravos, e outras mercadorias.15 A família de Baquaqua tinha grande envolvimento com este comércio. O irmão de sua mãe tinha propriedades em Salaga, o mais importante mercado do norte do território axanti.16 Os detalhes sobre o comércio, a geografia e a sociedade islâmica 14 15 16 159) Allan Austin conclui que Baquaqua nasceu em 1830; vide African Muslims in Antebellum America: Transatlantic Stories and Spiritual Struggles (New York, 1997) (doravante, Austin, African Muslims: Transatlantic Stories). Austin aparentemente baseia-se em A.T. Foss e E. Mathews, Facts for Baptist Churches (Utica, 1850), 392. Em 1854, Samuel Moore estimou que Baquaqua tinha cerca de 30 anos, o que parece mais consistente com os detalhes de sua narrativa; vide Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, 9. A rota era uma das mais importantes na África ocidental no século XIX; vide Paul E. Lovejoy, Caravans of Kola: The Hausa Kola Trade, 1700-1900 (Zaria, 1980); Lovejoy, “Polanyi’s ‘Ports of Trade’: Salaga and Kano in the Nineteenth Century,” Canadian Journal of African Studies, 16 (1982), 245-78; e Denise Brégand, Commerce caravanier et relations sociales au Bénin: Les Wangara du Borgou (Paris, 1998). Eu não utilizei o relato de Baquaqua em meu estudo sobre o comércio de obi, e nem Brégand o utilizou em seu estudo sobre os mercadores Wangara de Borgu. Para uma discussão sobre os shurfa (hauçá: sharifai) e outros mercadores norte-africanos em Borgu e no território dos hauçás no final do século XVIII e início do século XIX, vide Lovejoy: Caravans of Kola, 58-59, 68-69, 70-71, 73 e seguintes. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 17 Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 18 Mapa 2 Rotas de comércio no interior do golfo do Benin, mostrando o trajeto de Baquaqua para a costa. são críveis. A família de Baquaqua pode ser identificada com a comunidade muçulmana de Djougou.17 O pai de Baquaqua era de “Bergu”, o que, quase certamente, refere-se a Nikki, a cidade mais importante em Borgu, cujo rei era reconhecido por várias outras cidades, inclusive Djougou, como a capital de uma confederação frouxamente centralizada. Ele era “de linhagem árabe” e havia sido um próspero mercador. Portanto, deve ter-se identificado com a comunidade muçulmana de Borgu, que era conhecida como Wangara e, por vezes, Dendi, falando, como primeira língua, o dialeto dendi de Songhay, mas também sendo capaz de falar, em muitos casos, o hauçá, a principal língua comercial ao longo das rotas de caravanas entre o Sudão central e a bacia do médio Volta, que, nesta época, eram dominadas pelos mercadores hauçás de Kano, Katsina e de outras partes do Califado de Sokoto. A mãe de Mahommah era de Katsina, um centro comercial de importância considerável à época. O irmão dela era um próspero ferreiro, na verdade o ferreiro do rei de Djougou, e possuía uma casa em Salaga, a mais importante cidade mercantil no norte do território axanti, onde mercadores e produtores axantis vendiam nozes de obi às caravanas hauçás. Como eu demonstrei em outra ocasião, o comércio de obi entre o território axanti e o Califado de Sokoto constituía uma das mais importantes redes comerciais da África ocidental no século XIX.18 Os parentes de Mahommah, pelo lado materno, tinham, muito provavelmente, ligações com uma das importantes casas comerciais de Katsina e, como Heinrich Barth registrou nos anos 1850, a maioria dessas famílias 17 18 A conclusão de Austin, de que Djougou era uma “comunidade pré-mesquitas” parece injustificada (African Muslims: Sourcebook, 646 nº 10; African Muslims: Transatlantic Stories, 162). É improvável que não tenha havido mesquitas em Djougou, e o próprio Baquaqua refere-se a mesquitas, quando fala em educação islâmica, e usa a palavra dendi que significa “mesquita” para descrever a área de orações fora de Djougou, onde era celebrado o final do Ramadã. Em sua discussão do Ramadã e da prática religiosa muçulmana, Baquaqua fazia referência a um lugar de culto que era “um pátio grande e aprazível, pertencente ao meu avô, meu tio era o sacerdote oficiante” (Biography, 598). Não fica claro se se trata ou não de uma referência a um terreno privado, destinado às orações, ou à mesquita central, mas teria havido outros lugares como este em Djougou à época. É possível que o avô de Baquaqua, que “possuía” o “pátio aprazível,” fosse um dos imãs constantes de um lista fornecida por Zakari Dramani-Issifou, mas, infelizmente, a biografia não fornece os nomes de seu pai, seu tio ou seu avô. Lovejoy, Caravans of Kola. Vide também Brégand, Wangara du Borgou. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 19 era Wangarawa.19 Foi relatado que Baquaqua “fala muito da África e... Sonha, freqüentemente, que está visitando Kachna [Katsina], acompanhado de um bom homem branco, como ele chama os missionários, e sendo gentilmente recebido por sua mãe”.20 A família e suas ligações matrimoniais com uma família igualmente proeminente de mercadores de Nikki e Djougou revelam, sob novos aspectos, a história desta importante rota comercial. A probabilidade de que sua mãe fosse de uma família Wangarawa é reforçada por causa da conexão com a produção de embarcações, o fato de que o seu tio tinha uma casa em Salaga, e a aliança matrimonial com uma família dotada de fortes credenciais islâmicas.21 Quando era um adolescente, aparentemente no início dos anos 1840, ele se juntou a um grupo de carregadores, transportando grãos para a frente de batalha, perto de Daboya, no Gonja central, a oeste de Djougou. Baquaqua seguiu o seu irmão mais velho para Daboya, onde estava a base da facção leal a Kongwura Sa’id Nyantaki, na prolongada disputa sucessória. Seu irmão estava servindo como adivinho para o “rei” em Daboya, — uma referência, talvez, a Nyantaki, que estava contestando a soberania. Baquaqua e “muitos outros”, que haviam trazido grãos para o front, foram capturados, no que parece ter sido um ataque do exército axanti, confirmado por referências à importância das armas de fogo no combate. Felizmente para Baquaqua, seu irmão conseguiu resgatá-lo.22 19 Heinrich Barth, Travels and Discoveries in North and Central Africa (Londres e Nova Iorque, 1859), A ligação matrimonial tem paralelo com a de Abu Bakr al-Siddiq, de Timbuktu e Buna; vide Ivor Wilks (ed.), “Abu Bakr al-Siddiq of Timbuktu,” in Curtin, Africa Remembered, 159-60. 20 Do Christian Contributor and Free Missionary, citado em Austin, African Muslims: Sourcebook, 50-51. 21 Para a derivação e o uso do termo Wangara, vide Brégard, Wangara du Borgu, 18-20; Paul E. Lovejoy, “The Role of the Wangara in the Economic Transformation of the Central Sudan in the Fifteenth and Sixteenth Centuries,” Journal of African History, 19 (1978), 173-93; Robin Law, “‘Central, and Eastern Wangara:’ An Indigenous West African Perception of the Political and Economic Geography of the Slave Coast as Recorded by Joseph Dupuis in Kumasi, 1820,” History in Africa, 22 (1995), 281-305; e Ivor Wilks, “Consul Dupuis and Wangara: A Window on Islam in Early NineteenthCentury Asante,” Sudanic Africa, 6 (1995), 55-72. 22 Nyantakyi tinha se tornado o yagbum com a morte de Tuluwewura Kali no início da década de 1830, mas uma aliança de Gbuipe, Bole e Wa desafiou sua pretensão. Nyantakyi foi forçado a retirar-se para Daboya, que ele usou como base até a sua morte em 1844. Num esforço para resolver a disputa, 1841, os axantis enviaram um exército para o Gonja central, mas sem resultados. Outras expedições foram enviadas em 1842-44. Nos estágios finais da disputa, a resistência em Daboya assumiu as características de uma revolta anti-axanti, mas Nyantakyi foi capturado e executado pelo exército axanti em 1844. Para maiores detalhes, vide Ivor Wilks, Asante in the Nineteenth Century (Cambridge, 1975), Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 276. 20 De volta a Djougou, ele entrou para o serviço de um funcionário local, aparentemente o chefe de Soubroukou, localizado a alguns quilômetros de Djougou, na rota de caravanas a oeste, para o Volta.23 Ele era um serviçal do palácio (tkiriku), uma posição normalmente reservada a escravos e, por vezes, a criminosos que buscavam proteção.24 A identificação de Baquaqua com este termo levanta questões acerca do seu status à época. Na verdade, no mais antigo relato sobre sua origem, é mencionado que ele tinha sido um escravo, o que pode ser uma referência a este período de sua vida. O relato diz que Baquaqua fora “clandestinamente capturado e reduzido à escravidão” em uma “tenra idade”, e que, “por algum tempo, ele foi mantido nesta condição na África ocidental”, antes de ser transportado para o Brasil.25 Talvez isto possa ser entendido como uma versão deturpada da verdade; afinal de contas, ele tinha sido “capturado” em Daboya, embora, na ocasião, tenha sido resgatado, e se os tkiriku tinham, tecnicamente, um status servil — mesmo que não fossem, necessariamente, escravos em sua origem — ele havia, realmente, passado “algum tempo” na escravidão. Baquaqua, aparentemente, foi escravizado em Yarakeou (Zaracho), uma aldeia a oeste de Soubroukou, por razões que — ele mesmo o confessa — foram a sua própria imprudência, ao furtar de camponeses locais, e o seu gosto pela bebida.26 Diversamente de sua experiência anterior em Gonja, desta vez ele não foi resgatado mas, em vez disto, foi traficado para o sul, ao longo de uma rota obscura, para o Daomé e o seu porto, Uidá (Whydah). Baquaqua diz que viajou em direção ao sul durante a estação da seca, permanecendo no Daomé por um curto período, o que sugere que ele pode ter atingido a costa no final de janeiro, ou no início de fevereiro.27 O bloqueio britânico anti-tráfico tornava impossível embarcar escravos em Uidá, e assim eles foram transportados ao 23 24 25 26 27 O título do chefe do Soubroukou é massasawa. Baquaqua refere-se ao “massa-sa-ba” como o termo comum para reis, mas, na verdade, este era um título específico; daí, a nossa identificação da corte onde Baquaqua serviu como guarda-costas, e perto da qual ele foi logrado e escravizado. Nós devemos esta informação a Alfa Houssanni Djarra e Sani Alaza de Djougou; vide Law e Lovejoy, “Introduction.” Vide a discussão em Law e Lovejoy, “Introduction”. Foss and Mathews, Facts for Baptist Churches, 392. Law and Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, 35. Ibid, 36-37. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 21 longo das lagunas, ou para leste, para Porto Novo ou Badagry, ou para oeste, para Agoué, onde as lagunas se abrem para o mar.28 É provável que Baquaqua tenha sido embarcado para oeste, através de Agoué, porque a laguna a leste de Uidá não era, normalmente, navegável durante a estação da seca, e Baquaqua afirma que viajou por água. Segundo Duncan, escrevendo sobre o comércio em Uidá, em 4 de março de 1845, provavelmente apenas uma semana ou duas depois de Baquaqua ter sido embarcado lá, Pode ser interessante, para aqueles pouco familiarizados com o embarque de escravos, saber alguma coisa sobre a maneira como isto é feito. Quando um embarque de escravos está prestes a acontecer, os escravos são trazidos para fora, como na sua saída costumeira para tomar ar, talvez de dez a vinte numa corrente, que é presa ao pescoço de cada indivíduo, a uma distância de cerca de uma jarda um do outro. Desta maneira, eles são postos em marcha numa fila única, em direção à praia, sem fazer idéia do seu destino, sobre o qual eles, de resto, parecem um tanto indiferentes, mesmo quando vêm a sabê-lo. Todas as canoas são requisitadas. A pequena peça de tecido de algodão, atada às ilhargas do escravo, é retirada, e o grupo em cada corrente é conduzido, um após o outro, até uma fogueira previamente acesa na praia. Aqui, ferros de marcar são aquecidos, e, quando um ferro está suficientemente quente, ele é mergulhado rapidamente em azeite de dendê, para impedir que fique grudado [sic] à carne. Ele, então, é aplicado às costelas ou às ancas, e às vezes até mesmo ao peito. Cada traficante de escravos usa a sua própria marca, de modo que, quando o navio chega ao seu destino, pode-se facilmente verificar a quem pertenciam aqueles que morreram. Eles, então, são empurrados para dentro de uma canoa, e obrigados a sentar-se no fundo, onde são arrumados da 28 Robin Law, “The Port of Ouidah in the Atlantic Community, 17th to 19th Centuries” (History of the Atlantic System, 1580-1830, Hamburg, August 1999); e Law, “The Evolution of the Brazilian Community in Ouidah,” Slavery and Abolition (a ser publicado). Segundo Forbes, “através das lagunas, os escravos podem ser embarcados, ou em Porto Novo, &c., para o leste, ou Popoe, &c., para oeste, com muito maior segurança;” vide British Parliamentary Papers, Correspondence relating to the Slave Trade 184950, Class B, inclosure 10 in no.9: Lieutenant Forbes, 5 de novembro 1849. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 22 forma mais compacta possível, até que a canoa chegue ao navio. Então, eles são levados a bordo, e novamente postos na corrente, até alcançarem seu destino, onde são entregues aos seus futuros senhores ou aos agentes destes.29 Duncan acompanhou os embarques de escravos ao longo da laguna, de Ouindé a Agoué, lá chegando em 5 de março de 1845. Em Agoué, “tudo era azáfama e agitação entre os traficantes de escravos. Eles haviam, bem tarde, na noite anterior, embarcado quinhentos escravos no curto espaço de uma hora, embora a arrebentação seja sempre muito forte na costa. Infelizmente, dois dos escravos se afogaram durante o embarque. A intenção tinha sido a de embarcar seiscentos escravos....”30 Neste caso, entretanto, o vapor Hydra, da Marinha Real, chegou e capturou o navio negreiro, levando os escravos libertados para Serra Leoa. Este bem poderia ter sido o destino de Baquaqua, se sua transferência para a costa tivesse sido adiada uma semana ou duas, em algum ponto da rota. Ele tinha estado em “Efau” por várias semanas, e, se ele estava no único navio conhecido que partiu do Golfo do Benim rumo a Pernambuco naquele ano, ele teria deixado Agoué no final de fevereiro, para chegar ao Brasil em 30 de março.31 29 30 31 É até mesmo possível que ele estivesse em uma das canoas observadas por John Duncan em 18 de fevereiro de 1845, e, se não foi este o caso, o relato de Duncan certamente descreve as condições sob as quais Baquaqua teria viajado, quase que simultaneamente; vide Duncan, Travels in Western Africa (Londres, 1847), vol. I, 142-43. Para uma discussão, vide, vide Law e Lovejoy, “Introduction.” Duncan, Travels in Western Africa, vol. I, 143. A identificação do navio de Baquaqua com aquele que chegou a Macaro, Pernambuco, em 30 de março de 1845, é hipotética, já que foi feita por eliminação. Este é o único desembarque registrado neste período, para o qual a proveniência africana não é informada, sendo todos os demais especificados como oriundos de Angola ou de outros locais. Além disto, a identificação depende da presunção de que não houve outros desembarques, não registrados. Contudo, há um detalhe corroborativo: Baquaqua diz que ele foi levado para uma fazenda; e isto é consistente com o relatório consular, que registra que, como o navio tinha chegado inesperadamente, os escravos foram, inicialmente, “escondidos nos engenhos adjacentes”. Vide Cônsul H. Augustus Cowper para o Conde de Abderdeen, Pernambuco, 2 de março de 1846, in Correspondence on the Slave Trade with Foreign Powers (Class B), 1 January - 31 December 1845 (1846) 290; anexo, 293. O navio consta da base de dados de Du Bois (No. 3592), listado na categoria “não especificado”, não do Golfo do Benim (Eltis et al., Atlantic Slave Trade Database. Duncan também registrou a partida de um navio de Agoué em 4 de março de 1845, mas este não pode ter sido o navio de Baquaqua, porque foi capturado pelos britânicos; vide Travels in Western Africa, I, 142. O problema com esta interpretação é que o relato de Baquaqua sugere que o local de desembarque era mais perto de Recife do que Macaro, localizado bem mais ao norte. Para uma discussão, vide Law e Lovejoy, “Introduction.” Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 23 Foto 2 - New York City Hall, onde Baquaqua se apresentou na Corte. Ilustração de 1838, in Pheleps Stokes Collection, N.Y. Public Library, also in Charles Lockwood, Manhattan moves uptown: an illustrated history, Boston, 1976, 2. No Brasil, ele foi, inicialmente, vendido para um padeiro que vivia fora do Recife, aparentemente em Olinda. Segundo seu próprio depoimento, Baquaqua viveu sob condições muito duras por quase dois anos. Ele tentou o suicídio, jogando-se no rio, observando a condição da maré, estabelecendo, com isto, a localização da cidade na costa, aparentemente próxima ao Recife. Por causa de embriaguez, absenteísmo e, pelo menos, uma tentativa de fuga, ele foi, finalmente, vendido para fora de Pernambuco, para o Rio de Janeiro, algo não incomum, em se tratando de um escravo com seus antecedentes. Finalmente, ele foi vendido para Clemente José da Costa, um capitão de navio e co-proprietário do navio Lembrança.32 32 Para o relato de Baquaqua sobre sua vida em Pernambuco e no Rio de Janeiro nos anos 1840, vide Biography, 44-51. Vide também Mary C. Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850 (Princeton, 1987); Marcus J.M. de Carvalho, “Os Caminhos do Rio: Negros Canoeiros no Recife na Primeira Metade do Século XIX”, Afro-Ásia, 19-20 (1997), 75-93; e Carvalho, Liberdade: Rotinas e Rupturas do Escravismo, Recife, 1822-1850 (Recife, 1998). Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 24 Baquaqua passou, então, a servir a bordo do navio, juntamente com outro escravo, José da Rocha, que pertencia ao sócio do Capitão Costa, Antonio José Rocha Pereira,33 em duas viagens para o sul do Brasil, embarcando carne seca para transportar para o Rio de Janeiro. Essas viagens, aparentemente, datam do final de 1846 e início de 1847. A viagem seguinte de Baquaqua foi a sua passagem para a liberdade. Em 24 de abril, o Lembrança, levando um carregamento de café, zarpou para Nova Iorque, lá chegando 66 dias depois, em 27 de junho.34 Incitado por abolicionistas locais, e açulado por severos castigos físicos, Baquaqua, junto com seu compatriota, pulou do navio, em busca da “liberdade”, que ele descreve de maneira tão tocante em seu relato autobiográfico. O caso dos dois homens, agora identificados como “brasileiros”, atraiu a atenção da imprensa local em Nova Iorque. Um terceiro escravo, Maria da Costa, que cuidava da esposa do capitão e do bebê desta, foi inicialmente envolvida pela oferta de liberdade, mas decidiu voltar ao navio, ou por espontânea vontade, ou sob intimidação para retornar. Baquaqua e Rocha foram postos na prisão; não lhes seria fácil conservar sua liberdade.35 Seus amigos abolicionistas preencheram um mandado de habeas corpus e, em 22 de julho, o caso foi submetido ao Juiz Charles P. Daly, da Corte Distrital de Nova Iorque. Infelizmente, para os dois homens, Daly decretou que eles eram membros da tripulação do navio e, por conseguinte, deveriam retornar, nos termos do tratado de reciprocidade entre o Brasil e os Estados Unidos, concernente à 33 34 35 Clemente José da Costa é um nome comum, e ele, até agora, não foi identificado, embora o Lembrança fosse, provavelmente, registrado no porto de Rio Grande (comunicação pessoal, Alberto da Costa e Silva). Antonio José da Rocha Pereira foi identificado através de um inventário aberto em 1871. Ao morrer, Antonio José tinha libertado três de seus escravos, que tinham atingido cinqüenta anos de idade. Ele deixou o restante de seus escravos para suas três filhas, o que foi contestado por sua esposa, Maria Rosa Leite Pereira, e seu filho, José Maria Fernandes. (Gostaria de agradecer a Manolo Florentino por esta referência.) Um anúncio para passageiros foi publicado no Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), em 17 de abril de 1847, instruindo os interessados a buscarem informações no primeiro andar do nº 93 da Rua Direita. Eu gostaria de agradecer a Manolo Florentino por ter encontrado esta referência ao Lembrança. O navio chegou a Nova Iorque, aparentemente, em 27 de junho, após uma viagem de 66 dias, de acordo com o New York Daily Tribune, 28 de junho de 1847. Em Nova Iorque, a J.L. Phipps and Co. negociou com o carregamento de café. National Anti-Slavery Standard, 29 de julho 1847. Vide, também, o relato do próprio Baquaqua (Biography, 52-56). Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 25 deserção de tripulações de navios.36 O seu status de escravos não foi um fator que pesou na decisão. Sua identificação como tripulação foi confirmada em uma segunda decisão judicial.37 Na opinião do Juiz Henry P. Edwards, Daly estava correto em seu julgamento, e ele, por conseguinte, deliberou por devolver os dois homens à custódia do capitão do navio. Esta decisão, por sua vez, seria objeto de apelação, mas, antes que um outro juiz pudesse ocupar-se do caso, Baquaqua e Rocha desapareceram milagrosamente da prisão na Eldridge Street, na noite de 9 de agosto. O carcereiro admitiu que havia caído no sono e deixado as chaves da cela sobre sua escrivaninha.38 Não se sabe se o carcereiro compadeceu-se ou não de Baquaqua e de seu companheiro de fuga, mas o fato é que os dois homens conseguiram chegar a Boston, passando por Springfield. Quatro semanas depois, Baquaqua e Rocha partiram para o Haiti, o país onde os negros eram “livres”.39 José da Rocha, posteriormente, adotou o nome de David, mas Baquaqua recuperou o seu nome africano.40 Considerando que Baquaqua não falava o crioulo haitiano, ele não pôde encontrar muitas pessoas com quem conversar em Porto Príncipe.41 Portanto, ele experimentou alguma dificuldade em se manter, trabalhando, por algum tempo, para um afro-americano que não o tratava 36 37 38 39 40 41 42 National Anti-Slavery Standard, 15 de julho de 1847. Para a sentença de Daly, no sentido de que os fugitivos deveriam retornar ao navio, vide ibid., 22 de julho de 1847. Posteriormente, um segundo juiz, John W. Edmonds, e depois um terceiro, Henry P. Edwards, envolveram-se com o caso. Em 8 de agosto, Edwards reafirmou a decisão anterior, de que os fugitivos eram membros da tripulação do Lembrança e, portanto, estavam sujeitos à convenção Brasil-Estados Unidos que obrigava os marinheiros a retornar aos seus navios. National Anti-Slavery Standard, 29 de julho 1847. New York Daily Tribune, 10 de agosto de 1847, e National Anti-Slavery Standard, 12 de agosto de 1847. O New York Daily Tribune, 23 de agosto de 1847, citando a Gazette de Springfield, Mass., informa que os homens haviam “chegado à cidade alguns dias depois, pela ‘estrada de ferro subterrânea’, e prosseguiram na mesma rota, na manhã seguinte, em seu caminho rumo à terra da liberdade.” O mistério de como eles haviam escapado foi explicado pela alegação de que “essa estrada passa diretamente por sob a prisão em Nova Iorque, e que os próprios escravos passaram para baixo, através de um alçapão de pedra, embarcando em um dos peculiares carros que transitam regularmente por esta misteriosa estrada.” Baquaqua faz referência a um companheiro de infortúnio, antes de ser admitido na Missão Batista; vide Biography, 58. Ibid, 57-58. Sobre o período no Haiti, vide Foss e Mathews, Facts for Baptist Churches, 389-93; e Baquaqua, Biography, 57-60, e a discussão em Law e Lovejoy, “Introduction.” Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 26 muito bem, ou, pelo menos, Baquaqua pensava assim.42 Baquaqua, mais uma vez, entregou-se à bebida, pelo menos até que o Reverendo William L. Judd, da Sociedade da Missão Livre Batista Americana, interessouse por ele. Ele se mudou para a residência de Judd, e rapidamente ganhou o afeto deste, de sua esposa, da irmã desta, e dos outros missionários. Em 1848, Baquaqua converteu-se e foi batizado.43 A situação política do Haiti, enquanto Baquaqua lá esteve, era muito instável; Faustin Soulouque subiu ao poder em 1847, esmagou a oposição, em 1848, com muito derramamento de sangue, invadiu o território espanhol vizinho na ilha de Hispaniola, reivindicando ser um libertador, declarou-se imperador em 1849, e contava com um contingente de polícia secreta para governar o país.44 Havia um risco considerável de que Baquaqua, sendo um homem jovem, fosse recrutado para o exército haitiano, e por isto, no final de 1849, ele retornou a Nova Iorque com a esposa de Judd e a irmã desta, acompanhando-as para o norte do Estado, primeiro para Albany, depois para Milford, a cidade natal das duas irmãs. De lá, ele visitou Meredeth, no Condado de Delaware, “em meio às Missões Livres, para ver se elas iriam assumir a tarefa de educar-me, quando elas, ao mesmo tempo, concordaram em fazê-lo”, estabelecendo contato para ele no New York Central College, em MacGrawville. Ele também visitou outras cidades, onde abolicionistas eram cidadãos proeminentes. A viagem de Baquaqua pela rede batista da Livre Vontade apresentou-o a abolicionistas em Syracuse, Utica, e várias pequenas ci43 44 45 A conversão de Baquaqua é descrita pelo Reverendo Judd no Christian Contributor and Free Missionary, citado em Baquaqua, Biography, 50-51; e Foss e Mathews, Facts for Baptist Churches, 393. A Sociedade da Missão Livre Batista Americana era um produto do Movimento Batista da Livre Vontade, que rompera com a Igreja Batista principal por causa da questão da abolição, somente voltando a unir-se à organização de origem em 1870. De acordo com a Review of the Operations of the American Baptist Free Mission Society (Bristol, 1851), publicada por Edward Mathews, um presbítero na Sociedade, que tinha sido impelido a deixar o Kentucky e havia se refugiado em Bristol, Inglaterra, a Sociedade da Missão Livre Batista Americana fora fundada em 1843 e, subseqüentemente, fundou sua missão no Haiti, e iniciou um trabalho missionário entre escravos fugitivos no Canadá, tendo, também, fundado o New York Central College. A Sociedade contava com o apoio de várias igrejas abolicionistas, mas, de uma maneira especial, dos Batistas da Livre Vontade. James G. Leyburn, The Haitian People (New Haven, 1966), 91-93. Para detalhes sobre as viagens de Baquaqua no Estado de Nova Iorque, vide Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, 59-65. Observe que as cidades visitadas por Baquaqua podem ser encontradas em qualquer mapa rodoviário do Estado de Nova Iorque. McGrawville mudou seu nome para McGraw nos anos 1890, quando a cidade de McGraw separou-se da municipalidade circundante. (Eu gostaria de agradecer a Donald Wright por esta informação). Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 27 Foto 3 - New York Central College, McGrawville, N.Y. (1848-61). New York Central College Collection, Cortland County Historical Society, Cortland, N.Y. dades. Ele permaneceu no Estado de Nova Iorque durante quatro anos.45 No Central College,46 Baquaqua matriculou-se no departamento primário, mas estava destinado a uma carreira de missionário na África. Enquanto ele esteve lá, o Central College cresceu até abrigar 200 estudantes, metade dos quais eram mulheres. Havia pelo menos dez negros, incluindo Baquaqua, alguém com o sobrenome de “Senegal”, e Joseph 46 47 O Central College fechou suas portas em 1861, primordialmente porque seu benfeitor foi à falência, situação a que a instituição acadêmica não pôde sobreviver. Para uma história do Central College, vide Seymour B. Dunn, “The Early Academies of Cortland County,” Cortland County Chronicles, I (1957), 71-76; Albert Hazen Wright (ed.), “Cornell’s Three Precursors: I. New York Central College” (Studies in History No. 23, Pre-Cornell and Early Cornell VIII, Ithaca, 1960); e Catherine M. Hanchett, “‘Dedicated to Equality and Brotherhood’: New York Central College, C.P. Grosvenor, and Gerrit Smith” (trabalho apresentado na Madison County Historical Society, Oneida, NY, 16 de fevereiro de 1989). Para referências aos estudantes que frequentaram o Central College, vide C. M. Hanchett, “New York Central College Students” (Cortland County Historical Society, 1997). Vide, também, Catherine Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 28 Purvis, Robert Purvis e James Forten, filhos de famílias negras proeminentes da Filadélfia.47 No final de janeiro de 1854, ele deixou McGrawville indo para o Canadá Oeste, embora não se saiba exatamente onde.48 Não obstante, ele tirou documentos de naturalização, tornando-se, com isto, um súdito britânico, e, de algum modo, conseguiu fazer contato com Samuel Downing Moore, em Detroit, encomendou uma gravura, feita por J. G. Darby a partir de um daguerreótipo de Sutton, e publicou o livro em agosto. O livro foi registrado no cartório do escrivão da Corte Distrital, Distrito de Michigan (EUA), em 21 de agosto de 1854.49 Baquaqua tinha uma ambição preponderante de retornar à sua “terra natal”, e tentou repetidamente encontrar meios de realizá-la. Ele recorreu à Missão Mendi, que havia levado os membros sobreviventes do Amistad de volta para Serra Leoa em 1841.50 A combatente missão, um produto da Associação Missionária Americana, teve seu contingente reforçado no início dos anos 1850, mas, aparentemente, não incluiu Baquaqua.51 Ele recorreu à Sociedade da Missão Livre Batista Americana, em 1857, mas, aparentemente, nenhuma missão foi aprovada, por carência de fundos.52 Não sabemos o que aconteceu com Baquaqua depois de 1857. Sabemos que ele esteve na Inglaterra, talvez em visita ao 48 49 50 51 52 M. Hanchett, “After McGrawville: The Later Careers of Some African American Students from New York Central College” (trabalho apresentado à Cortland County Historical Society, 26 de fevereiro de 1992); Para uma discussão sobre a conexão canadense, vide “Slavery and Memory in an Islamic Society: Whose Audience? Which Audience?” trabalho de minha autoria, apresentado na conferência “Historians and their Audiences: Mobilizing History for the Millenium,” York University, Toronto, 13-15 de abril de 2000. Moore era um unitarista da Irlanda, que se estabeleceu em Ypsilanti, Michigan; vide “The Unitarian Ministers of Ireland and American Slavery,” The Liberator, 12 de maio de 1848; Samuel Moore, “A Protest,” in The Liberator, 29 de fevereiro de 1856; e Samuel Moore para William Lloyd Garrison, The Liberator, 4 de dezembro de 1857. O escrivão era W. David King. Esta informação está contida na cópia da biografia que me foi mostrada por Silvia Hunold Lara, e que está depositada na Biblioteca Pública de Detroit. A informação está escrita à mão na capa, como se pode ver na ilustração em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua. Baquaqua para George Whipple, McGrawville, 8 de outubro de 1853, e Baquaqua para Thomson, McGrawville, 26 de outubro de 1853 e 29 de janeiro de 1854 (Amistad Collection, Arquivos da Associação Missionária Americana, Universidade de Tulane, New Orleans), reproduzido em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apêndice 3. Christopher Fyfe, A History of Sierra Leone (London, 1962), 222-23, 246, 285. O Conselho Diretivo da Sociedade da Missão Livre Batista Americana decidiu, em fevereiro de 1857 que era “aconselhável esperar até o próximo encontro de aniversário, antes de dar início ao trabalho;” vide [New York] Free Mission Record, fevereiro de 1857, 13. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 29 Professor Allen e sua esposa. Sua preocupação principal foi sempre sua liberdade, o que cada vez mais se refletia em sentimentos abolicionistas. Ele foi para o Haiti porque se tratava de um país onde os negros eram livres. O que restou de sua correspondência revela uma obsessão pelo retorno à África, embora ele, realisticamente, observe que poderia não conseguir chegar lá, e que poderia ter de permanecer no Canadá ou na Grã-Bretanha, mas, certamente, não nos Estados Unidos. Em 1854, depois de ter deixado os Estados Unidos, ele, não obstante, publicou seu relato autobiográfico em Detroit, adquirindo, com isto, mais uma identidade como autor abolicionista, um homem de letras canadenses, que, até agora, não havia logrado reconhecimento. Mas como sabemos que Baquaqua veio de Djougou, e que os eventos por ele narrados realmente aconteceram?53 Robin Law e eu fomos para Djougou, levando a biografia, que era desconhecida lá, a fim de examinar termos, identificar lugares e também para compreender as várias descrições, contidas no relato de Baquaqua, da vida na África ocidental. Com o auxílio de várias autoridades locais, incluindo Albarka Soulleymane, Alfa Houssane Djarra e Sani Alaza, nós identificamos vários distritos de Djougou, a aldeia onde Baquaqua provavelmente trabalhou como serviçal do palácio, e vários termos e lugares em Dendi, que são mencionados no texto.54 Talvez a mais poderosa peça de informação seja o significado do nome do meio de Baquaqua, Gardo, ou, mais exatamente, tanto em dendi quanto em hauçá, Gado, que é o nome dado à criança nascida logo em seguida a gêmeos. Sem explicar o significado do nome, Baquaqua, de fato, afirma ter nascido depois de sua mãe ter dado à luz gêmeos, que morreram na infância.55 A conservação desse nome revela a importância do parentesco na história de vida de Baquaqua, confirmando a memória de relacionamentos que um dia existiram. Assim como seu primeiro nome revela sua progressiva associação com a memória de sua educação islâmica, seu segundo nome conecta-o à sua família, e especialmente à 53 54 55 Richard Brent Turner, por exemplo, conclui erroneamente que Baquaqua nasceu no norte de Gana; vide Islam in the African-American Experience (Bloomington, 1997), 41. Entrevistas feitas em 7 de abril de 1999. “Mahommah foi o que nasceu em seguida a gêmeos” (Biography, 26). Gostaríamos de agradecer a Obare Bagodo pela informação sobre o uso do termo Gado como nome em Borgu. Sobre seu uso em hauçá, vide G. P. Bargery, A Hausa-English Dictionary and English-Hausa Vocabulary (Londres, 1934), 341. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 30 sua mãe, que é mencionada por diversas vezes, em afetuosa lembrança. Seu sobrenome, contudo, é um mistério. Como Baquaqua registra em seu vocabulário, ba- é um prefixo comum em Borgu, como no título Ba-Parakpe, um funcionário em Djougou e Parakou, pelo menos, que servia de intermediário entre as cortes e essas cidades e a comunidade de Wangara. Havia também um título de Borgu, ‘yan kwakwa, que era o funcionário responsável pela supervisão dos caravançarais, e esta pode ser uma derivação possível, mas não se sabe se este título era usado em Djougou.56 O nome que ele dá para seu título em Soubroukou é o de “Che-re-coo”, ou seja, tkiriku, que era, normalmente, uma posição servil em Borgu, mas também podia incluir criminosos tentando escapar da justiça, alistando-se, para isto, como serviçais do palácio.57 Portanto, se Baquaqua era, realmente, um tkiriku, isto provavelmente significa, ou que ele foi escravizado e deixou de explicar tal condição em seu texto, ou então que ele foi admitido no serviço por outros motivos, que também não foram explicados. De qualquer maneira, o uso do termo não parece estar de acordo com a sua alegação de ser um homem livre e, certamente, levanta a possibilidade de que existam outros detalhes que ele optou por suprimir. O nome Baquaqua também soa como hauçá, a língua de sua mãe e de seu tio. O prefixo ba- é comum nas formas singulares de muitos termos que denotam lugar de origem, tais como Bakano, Bakatsini, Bazazzau ou Bazamfara (alguém de Kano, Katsina, Zaria ou Zamfara, respectivamente), ou etnia, tais como Bahaushe, Bayaraba ou Ba’agali (para hauçá, iorubá ou agalawa), mas “kwakwa” ou “k’wak’wa” não se refere a nenhum lugar, nem a uma designação étnica conhecida. Permanece um significado oculto no nome de Baquaqua, o que, por si só, é indicativo da dificuldade em se avaliar identidades. Consideremos a identidade que é revelada na biografia. Primeiro, o vocabulário fornecido por Baquaqua, em seu livro, é dendi, que era 56 57 Kuba, Wasangari und Wangara, 336; e Musa Baba Idris, “The Role of the Wangara in the Formation of the Trading Diaspora in Borgu,” Conference on Manding Studies, SOAS, Londres, 1972. Jacques Lombard, Structures de type ‘feodal’ en Afrique noire. Etude des dynamismes internes et des relations sociales chez les Bariba du Dahomey (Paris, 1965), 112; Yves Person, ‘Zugu, ville musulmane’, Fonds Person, Bibliothèque de Centre du Recherches Africaines, Paris. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 31 a língua da comunidade Wangara de Borgu, mas ele também teria conhecido a língua do campesinato, o gurma, talvez também o baatonu, a língua local no Borgu central.58 Apesar de não ter sido um bom aluno quando criança, ele, evidentemente, aprendeu algo do árabe, embora não muito bem, se as três palavras em uma de suas cartas remanescentes servirem como prova de sua fluência. As palavras não foram escritas por uma mão treinada. Baquaqua, aparentemente, estava tentando escrever “bismi’llah al-rahman”, mas só conseguiu um truncado “bismi’llah alra[hman]”, com a parte entre colchetes omitida.59 Não obstante, ele tinha alguma facilidade para línguas, tendo até mesmo aprendido algum fon (“efau”) no Daomé, e começado a aprender o português a bordo do navio. O que teria sido de Baquaqua se ele não tivesse sido resgatado em Daboya, quando jovem? Neste caso, é quase certo que a escravização teria implicado em sua ida para o território axanti. É improvável que ele tivesse sido vendido para o tráfico atlântico, embora, no final dos anos 1840, alguns escravos do sexo masculino tenham sido comprados na Costa do Ouro pelos holandeses, para recrutamento no exército colonial na Indonésia.60 Se Baquaqua não tivesse sido resgatado, o exército conquistador axanti, provavelmente, o teria levado para o território axanti, onde ele teria sido identificado como um ndonko, um escravo originário do norte, em território axanti e na sociedade acã, mais ampla, distinto de um escravo de origem acã.61 Porque Baquaqua foi resgatado, evitou-se esse destino, o qual, era, contudo, uma possibilidade real. Sua escravização fora de Djougou redefiniu, novamente, a sua identidade. No sul, ele teria sido chamado de “bariba”, um termo comum 58 59 60 61 Baatonu (pl. baatombu) é o nome nativo para o povo de Borgu, embora, estritamente falando, Djougou estivesse a oeste das possessões Borgu, mas, não obstante, pagando tributo a Nikki. Bargawa (povo de Borgu) é o nome hauçá para o povo e a região, enquanto Bariba é o termo ioruba e daomeano; para um sumário desses termos, vide Law e Lovejoy, “Borgu and the Atlantic Slave Trade.” Cartas datadas, McGrawville, 28 de outubro de 1853; e 29 de janeiro de 1854 (Arquivos AMA, Centro de Pesquisas Amistad, Tulane); e reproduzidas em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apêndice 3. Entre 1836 e 1842, os holandeses compraram 2.035 homens jovens, dos quais 1.985 foram enviados para as Índias Orientais, e 50 para as Índias Ocidentais, para serem treinados como soldados. Outros 455 escravos foram comprados entre 1858 e 1862, para serem embarcados para a Ásia. Vide Joseph R. La Torre, “Wealth Surpasses Everything: An Economic History of Asante” (Tese de Ph.D., University of California at Berkeley, 1978), 415. Sobre escravidão axanti, vide Akosua Adoma Perbi, A History of Indigenous Slavery in Ghana from the 15th to the 19th Centuries (Tese de Ph.D., University of Ghana, 1997). Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 32 entre os iorubas e no Daomé, aplicável ao povo de Borgu. Parece claro, a partir de sua descrição, que havia alguma intenção de mantê-lo no Daomé, como um dos seus compatriotas, Woru, havia sido mantido em Uidá. De mais a mais, havia outros muçulmanos escravizados no Daomé, tais como aqueles recrutados pelo forte francês em Uidá.62 Os muçulmanos desta região eram chamados de “malês” e, se a religião de Baquaqua fosse reconhecida, ele poderia também ter sido descrito por este termo.63 Tais escravos eram comuns na Bahia, o destino mais freqüente para as pessoas do Golfo do Benim no século XIX. Entretanto, desde a Revolta dos Malês na Bahia, em 1835, escravos muçulmanos não eram mais desejados,64 e talvez tenha sido esta a razão por que o navio de Baquaqua foi para Pernambuco, em vez de ir para a Bahia, embora não seja possível determinar se havia outros muçulmanos a bordo. Contudo, ser reconhecido como malê ainda não era desejável, e assim, a identidade muçulmana de Baquaqua pode muito bem ter sido suprimida.65 No Rio de Janeiro, a identidade de Baquaqua ficou ligada à do seu senhor. Seu nome, José da Costa, fornecia uma tal ligação, como acontecia com Maria da Costa e José da Rocha, cujos nomes, de forma similar, indicavam os seus respectivos donos, Clemente José da Costa e seu sócio Antonio José da Rocha Pereira. Baquaqua tinha começado a aprender o português durante a travessia do Atlântico, e certamente aprendeu a falar a língua fluentemente durante os seus difíceis dias em Pernambuco. Um entendimento, pelo menos nominal, do catolicismo tinha sido imposto a esses escravos, o que também está implicado nos nomes que foram atribuídos a esses indivíduos. Na época, Baquaqua era tanto um escravo pertencente ao capitão do navio, como também um membro da tripulação, e assim, ele foi identificado, em Nova Iorque, como “brasileiro”.66 Ele, provavelmente, pensava em si mesmo como um muçulmano, a despeito da 62 63 64 65 66 Law e Lovejoy, “Borgu and the Atlantic Slave Trade.” Para uma discussão sobre os malês, vide Pierre Verger, Trade Relations between the Bight of Benin and Bahia 17th – 19th Century (Ibadan, 1976). João José Reis, Slave Rebellion in Brazil: The Muslim Uprising of 1835 in Bahia (Baltimore, trad. Arthur Brakel, 1993). Sobre a subseqüente repressão aos muçulmanos, vide Rosemairie Quiring-Zoche, “Glaubenskampf oder Machtkampf? Der Aufstand der Malé von Bahia nach einer islamischen Quelle,” Sudanic Africa, 6 (1995), 115-24. National Anti-Slavery Standard, 2 de setembro de 1847. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 33 introdução à fé cristã. Como o seu relato deixa claro, a Baquaqua foram atribuídas outras identidades após a sua fuga da prisão em Nova Iorque. Como um fugitivo, ele desapareceu misteriosamente, indo para o Haiti, mas, nos tempos difíceis que passou lá, ele era claramente um forasteiro, alguém que não conseguia entender o crioulo haitiano. Ele viveu no Haiti por dois anos, convertendo-se ao cristianismo, e então voltou para os Estados Unidos, para tornar-se um estudante e um abolicionista.67 Ele foi registrado pelo censo de 1850, nos Estados Unidos, como um estudante de vinte anos de idade, do Central College.68 Embora ele confessasse que “a língua inglesa, para mim, tem sido muito difícil de entender e de falar”, ele dominava o inglês num grau considerável, como sugerem as suas cartas.69 A biografia pertence, claramente, ao gênero abolicionista e tem um foco missionário, mas não se sabe se Baquaqua era suficientemente convincente, para seus benfeitores, com um candidato adequado ao trabalho missionário. Ele não parece ter atingido a África através de canais missionários, pelo menos não em 1857.70 Ele não aparece em nenhuma das missões na África ocidental, no final dos anos 1850 e início dos anos 1860. A história de vida de Baquaqua fornece elementos acerca do impacto psicológico da jornada ao longo das rotas escravistas sobre um jovem homem adulto, cuja consciência — que vai se modificando — de sua própria situação está documentada num nível que é raro se encontrar. O sentido que Baquaqua tem de si mesmo, enquanto pessoa, e a sua relação com uma comunidade mais ampla podem, também, ser decifrados até certo ponto, como o podem as visões que os outros tinham dele. Neste caso particular, os detalhes fáticos tornam possível situar a identificação étnica num contexto histórico específico. A identidade de Baquaqua era, na verdade, situacional e particular. Enquanto fatores 67 68 69 70 Ele também afirma, na biografia, que não era cristão antes de sua conversão no Haiti, mas isto pode refletir a atitude de muitos protestantes radicais, de que o catolicismo não é o “real” cristianismo. Certamente, em Pernambuco, ele tinha de comparecer a preces regulares, conduzidas por seu amo, e também foi exposto aos rudimentos do catolicismo. Ele foi registrado em Cortlandville, que incluía McGrawville. Carta de 8 de outubro de 1853 (Arquivos AMA, Centro de Pesquisas Amistad, Tulane), reproduzida em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apêndice 3. [New York] Free Mission Record, fevereiro de 1857, 13. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 34 étnicos, religiosos e outros influenciaram o seu sentido de identidade e o seu relacionamento com sua comunidade, ele também veio a se identificar com a diáspora e com a busca do retorno à sua terra natal. Esta biografia mostra que a identificação étnica e religiosa só faz sentido num contexto histórico, e não em forma isolada e essencialística. Metodologicamente, a abordagem biográfica revelada na história de vida de Mahommah Gardo Baquaqua sugere que informações isoladas e dispersas podem vir a ser reunidas, formando a carne sobre os ossos nus das identidades das vítimas da escravidão.71 A história de vida de Baquaqua revela muitas camadas de identificação, que ficam se deslocando ao serem reinterpretadas em diferentes contextos. Em um nível, estão as línguas que ele conhecia, começando com o dendi, o árabe, provavelmente o hauçá e o pila-pila (a língua do campesinato local), e um conhecimento superficial do fon. Ele certamente identificava-se como muçulmano e como um habitante de Borgu, na verdade, especificamente de Djougou. Mas ele também pensava em Katsina como um lugar de origem, porque sua mãe e a família desta eram de lá. Suas conexões mercantis, com sua estrutura corporativa e suas implicações de classe, refletiram-se na sua educação precoce, ainda que fracassada, e nas oportunidades que lhe foram oferecidas através das ligações de seus pais. Sua identidade, como revelada nas fontes disponíveis, estava ligada à sua idade, ocupação, gênero, família, classe, religião e língua. Sua redução ao status de escravo não alterou, inicialmente, a sua identidade, embora, como indica o seu primeiro cativeiro, os indivíduos possam ocultar suas identidades na esperança de alcançar a liberdade, como fez Baquaqua quando seu irmão fingiu não o conhecer, mas, não obstante, arranjou o seu resgate. Quando Baquaqua foi escravizado uma segunda vez, ele não tinha motivos para acreditar que não seria, mais uma vez, resgatado. Sua narrativa nos possibilita acompanhar a transformação da visão que ele tinha de sua situação e, com isto, do seu sentido de identidade. Ele registra o momento em que desistiu da esperança de vir a ser resgatado. Menciona o último compatriota que reconheceu. Nós o seguimos de um dono para outro, ao longo das rotas escravistas da África, através do Atlânti71 Lovejoy, “Biography as Source Material.” Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 35 co, e do nordeste do Brasil para o Rio de Janeiro. Durante esta triste jornada, nós o vemos despido de sua identidade como um ser social, nas formas que foram enfatizadas por Orlando Patterson.72 Ainda em Pernambuco, ele fazia parte de uma minoria entre os escravos que haviam sido trazidos da África, porque a maioria deles tinha vindo de Angola, e não do Golfo do Benin. Sob este aspecto, Pernambuco era diferente da Bahia, que tirava quase todos os seus escravos recém-importados do Golfo do Benin, e onde os muçulmanos, tais como Baquaqua, eram conhecidos como malês, mas cuja atratividade havia desaparecido com a Revolta de 1835.73 No caso de Baquaqua não seria incomum que ele pudesse ter sido identificado como “mina”, ou mesmo “jeje”, considerando a sua chegada, vindo do Golfo do Benin e, embora os minas constituíssem uma minoria distinta em Pernambuco, e, na verdade, também em Salvador e no Rio de Janeiro, minas eram encontrados em quantidades desproporcionais entre os escravos envolvidos com o comércio de rua, especialmente o de gêneros alimentícios. Baquaqua pode ter sido posto a serviço de um padeiro por causa dos estereótipos sobre a perícia comercial dos escravos procedentes do Golfo do Benim. De qualquer modo, Baquaqua foi posto a vender pão a varejo, uma vez que ele sabia contar até cem, em português, podendo, assim, trocar o dinheiro. Baquaqua sofreu uma transformação que refletia a condição dos escravos nas Américas, na qual a auto-identificação e a identificação pela classe dominante dos senhores de escravos fica, com freqüência, obscurecida nas fontes. Por conseguinte, nem sempre é fácil distinguir entre estereótipos, autopercepção e falhas de comunicação. Embora as designações “Borgu”, “Bariba” e “Barba” fossem conhecidas nas Américas, este não era um rótulo étnico comum, e é mais provável que ele tivesse sido identificado como mina, pelas razões acima indicadas. Na época em que estava no Rio, o principal distintivo que ele usava era o de seu senhor, que lhe forneceu um verniz nominal português, e, de fato, católico, como José da Costa, embora ele, mais tarde, diga que, nessa época, ele não era um cristão. Ele, provavelmente, já tinha o nome de José, mas não o sobrenome da Costa, e quase certamente não era conhe72 73 Orlando Patterson, Slavery and Social Death: A Comparative Study (Cambridge, Mass., 1982). Reis, Muslim Uprising; Lovejoy, “Jihad e Escravidão.” Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 36 cido pelo nome de Mahommah Gardo Baquaqua, que revelava suas origens muçulmana e africana. Como o seu nome português indica, José da Costa tinha sido exposto ao cristianismo, mas alega ter se convertido apenas em 1848. Ele abandonou o seu nome brasileiro no Haiti, se não antes, em Nova Iorque, mas é certo que as primeiras referências a ele, feitas em cartas do Reverendo Judd, da sua esposa e da irmã desta, mencionam apenas o seu nome muçulmano, Mahommah. A partir de outubro de 1847, pelo menos, ele passou a ser conhecido como Mahommah Gardo Baquaqua, mesmo quando se apresentava como cristão, assinando suas cartas com um “seu irmão em Cristo.”74 Quando chegou, pela primeira vez, a McGrawville, ele estava vestido como um muçulmano, de acordo com uma notícia na Gazette local.75 Esta fascinante história de um homem jovem, suportando os horrores das rotas escravistas para as Américas, e, no entanto escapando da escravidão, como um fugitivo nos Estados Unidos e no Haiti, levanta questões acerca dos estudos de identidade e etnicidade. Enquanto as várias identificações, que inevitavelmente surgiram, podem, por vezes, ser conceituadas como formas de etnicidade, a impressão preponderante que se tem a partir das experiências de Baquaqua é a do seu emergente individualismo. Rótulos étnicos, distinções de classe, convicções religiosas, e outros meios de auto-identificação e de identificação grupal tinham importância, mas talvez importem mais para os historiadores, como pistas na reconstrução da história, do que para indivíduos como Baquaqua, enredados na escravidão racializada nas Américas. Nos dez anos que transcorreram, desde sua escravização em uma aldeia fora de Djougou, em 1845, no coração da África ocidental, até sua emigração para o Canadá Oeste e a publicação do seu relato em 1854, este notável jovem emerge como um indivíduo distinto, na verdade único, com uma perso74 75 Mahommah G. Baquaqua, McGrawville, N.Y., 26 de outubro de 1853 (Arquivos do AMA, Amistad Research Center, Tulane University), reproduzida em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apêndice 3. De acordo com o McGrawville Express (28 de março de 1850), Baquaqua trajava uma túnica branca e foi considerado como um “africano de língua árabe” que tinha vindo do Egito; citado em Catherine M. Hanchett, “Charles Lewis Reason, 1818-1893: The Nation’s First Black Professor” (trabalho apresentado na Unitarian-Universalist Church, Cortland, 19 de janeiro de 1986). Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 37 nalidade que sobreviveu à experiência da escravidão transatlântica através da perseverança e de uma considerável parcela de sorte. Conclusão: a miragem da identidade Em seu contexto histórico e cultural mais amplo, o relato de Baquaqua nos capacita a uma apreciação mais plena da “morte social” e do novo despertar espiritual que os escravizados podiam experimentar no curso de sua migração transatlântica. O seu nome muçulmano, que Baquaqua conservou enquanto cristão, reconfirmou a sua consciência de seus antecedentes religiosos e sociais, e sua insistência em conservar o seu uso pode ter contribuído para o seu fracasso em convencer os círculos missionários a incluí-lo nos planos de evangelização da África. Seu segundo nome, Gardo, ou, mais propriamente, Gado, e a relação com seus irmãos, refletiam uma identidade não aparente para os outros, mas que, não obstante, ligava-o à memória de sua família, e assim mantinha o seu sentido de identidade em termos de parentesco. Contudo, parece haver muita coisa oculta no relato de Baquaqua, inclusive outros detalhes sobre sua escravização, ou a busca por proteção, como sugere a descrição que ele faz, de si mesmo, como tkiriku, e o status servil que o uso deste título implica. Tratou-se de um mal-entendido, ou de alguma outra confusão? De que forma Baquaqua conciliou a sua situação instável sob o jugo da escravidão e a busca da liberdade? O que pode ser aprendido, a partir da diversidade de fontes, incluindo sua autobiografia publicada, sobre a imagem que ele tinha de si mesmo, e como esta se transformou? Sua determinação em retornar à África, onde sua identidade parece ter estado centrada, é evidente. Se ele tivesse ido para Serra Leoa, teria permanecido lá? Não está excluída a possibilidade que ele enxergasse uma missão para Serra Leoa como um degrau intermediário. A possibilidade levanta a questão de quão provável teria sido que Baquaqua soubesse que, entre a população de refugiados de Serra Leoa, havia uma substancial comunidade muçulmana de escravos libertos, alguns dos quais eram realmente de Borgu, e muitos da terra dos hauçás, até mesmo de Katsina, a terra natal de sua mãe. Eu sugeriria que isto seria possível, e até mesmo provável, considerando a rede missionária e o fluxo de inforAfro-Ásia, 27 (2002), 9-39 38 mações dentro dos seus circuitos. A sua identidade muçulmana é ainda ambivalente, mas a conservação de seu nome, o seu desejo de voltar para casa, e, na verdade, a sua história, por si só, demonstram uma determinação em preservar a memória de tradições sociais, culturais e religiosas, mesmo na ausência de uma comunidade na qual elas pudessem encontrar esteio. Em uma das cartas que se conservaram, ele escreveu uma única frase em árabe, o bismi’llah, no que parece ter sido um grito solitário, revelando, talvez, uma identidade que confundia a sua salvação da escravidão com o cristianismo e seus mentores, mesmo que ele conservasse ambíguas ligações com a sua formação muçulmana. Não se sabe se ele foi capaz de resolver esta aparente contradição entre sua herança cultural e religiosa e a afiliação a uma comunidade, por um lado, e a progressiva individualização que lhe foi imposta no ambiente “crioulo” das Américas, por outro. Baquaqua desaparece dos registros históricos em 1857 e, a não ser que pesquisas adicionais consigam trazer à luz mais informações sobre a sua interessante estada, pode não ser possível penetrar mais fundo nas várias identidades reveladas pela odisséia deste homem singular. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 39 A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OS ÚLTIMOS ANOS DO TRÁFICO ATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-66. Robin Law* A despeito da proibição legal do tráfico atlântico de escravos no início do século dezenove, o tráfico ilegal floresceu no Golfo do Benim entre as décadas de 1820 e 1840. Inicialmente, este tráfico ilegal foi dirigido majoritariamente para o Brasil, principalmente para a província da Bahia; mas as exportações para Cuba também cresceram substancialmente neste período e, por volta dos anos 1830, eram provavelmente maiores do que aquelas para o Brasil. Uidá, o principal “porto” costeiro do reino do Daomé, que historicamente tinha sido o principal local de embarque de escravos nesta região, continuou como um importante centro deste tráfico ilegal, embora sua predominância comercial tenha sido erodida pela crescente importância de Lagos, a leste, que, por volta do final dos anos 1830, tinha substituído Uidá como o principal porto na região. Embora a proibição legal do tráfico tenha tido, inicialmente, pouco impacto no volume de exportações de escravos por Uidá, ela ocasionou mudanças significativas no modo pelo qual o comércio era realizado: a mais óbvia foi o abandono dos fortes que tinham sido mantidos na * Professor da Universidade de Stirling, Escócia. Comunicação originalmente apresentada na conferência “Aguda: Aspects of Afro-Brazilian heritage in the Bight of Benin”, Porto-Novo, Benim, 26-30 de novembro de 2001. Agradeço a Silke Strickrodt por sua ajuda para encontrar e verificar as referências. Tradução: Valdemir Zamparoni. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 41 cidade pelas três principais nações européias envolvidas no tráfico: o francês, o inglês e o português. Ao mesmo tempo — em parte para assumir as funções anteriormente desempenhadas por esses fortes, de organizar o suprimento de escravos e de prover serviços aos traficantes visitantes — o período de comércio ilegal de escravos foi marcado pelo crescimento de uma significativa comunidade brasileira residente em Uidá.1 Em suas origens, ela esteve associada ao traficante de escravos brasileiro Francisco Félix de Souza (†1849), que originalmente tinha chegado a Uidá como funcionário do forte português local (c.1803), mas depois se estabeleceu como comerciante independente; após um período de residência em Pequeno Popó (Aného) no oeste, ele retornou a Uidá para servir como agente comercial para o Rei Gezo do Daomé (com o título de “Chachá”) provavelmente em 1820.2 Em Uidá, Souza fundou um novo bairro no sudoeste da cidade, depois chamado de “Brasil [Blézin]”, habitado por sua numerosa família, escravos e clientes livres. O bairro “brasileiro” em Uidá foi também reforçado pelo estabelecimento de libertos de origem africana (principalmente iorubá), que retornaram do Brasil para se fixarem em Uidá a partir de 1835, criando, sob a patronagem de Souza, o bairro chamado Maro, adjacente, a oeste, ao bairro “Brasil”.3 O presente artigo trata da experiência desta comunidade durante os últimos anos do trafico atlântico de escravos; e, mais particularmente, dos efeitos que teve sobre ela o término do comércio de escravos para o Brasil em 1850-2. Deve ser enfatizado que a referência usual a esta comunidade como “brasileira” constitui uma simplificação exagerada, uma vez que ela in1 2 3 Robin Law, “The evolution of the Brazilian community in Ouidah”, Slavery & Abolition, 22 (2001), 22-41. Vide especialmente David Ross, “The first Chachá of Whydah: Francisco Félix de Souza”, Odu, new series, 2 (1969), 19-28; vide também tradições familiares, em Simone de Souza, La Famille de Souza du Bénin-Togo (Cotonou, 1992). Para algumas revisões, cf. Robin Law, “Francisco Félix de Souza in West Africa, 1800-1849”, apresentada na conferência “Enslaving Connections: Africa and Brazil during the era of the Slave Trade”, York University, Toronto, outubro de 2000. Sobre tradições das famílias do bairro Maro, vide “Ouidah: organisation du commandement [memorandum do administrador colonial francês Reynier, 1917]”, Mémoire du Bénin, 2 (1993), 44-5. Sobre o estabelecimento dos ex-escravos brasileiros na região, vide especialmente Jerry Michael Turner, “Les Brésiliens: the impact of former Brazilian slaves upon Dahomey” (Ph.D. thesis, Boston University, 1975); Milton Guran, Agudás: os “brasileiros” do Benim (Rio de Janeiro, 1999). Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 42 cluía pessoas oriundas de outros territórios portugueses em torno do Atlântico, tais como Ilha da Madeira, São Tomé e Angola; além disso, ela também incorporou alguns espanhóis, notadamente Juan José Zangronis (†1843), um traficante de escravos de Cuba que se estabeleceu na cidade nos anos 1830 e exerceu o comércio em associação com Souza. Após a independência do Brasil, em 1822, a comunidade também ficou dividida em sua fidelidade política; e mesmo alguns daqueles que eram originários do Brasil continuaram a se identificar como portugueses, incluindo, surpreendentemente, o próprio Souza. A ligação com Portugal, em oposição ao Brasil, foi fortalecida em 1844 quando o então abandonado forte português foi reocupado por um governador e uma guarnição, enviados de São Tomé. Durante a maior parte do século dezenove, muitas das famílias de Uidá, que atualmente se identificam como “brasileiras”, eram mais comumente descritas, nos relatos da época, como “portuguesas”, e este costume provavelmente reflete a autoidentificação dos envolvidos. Do mesmo modo, o termo nativo, “Agudá” significava “portugueses” (incluindo brasileiros), e não “brasileiros” (como distintos dos portugueses).4 A comunidade “brasileira” definia-se, claramente, menos pela identificação com o Brasil do que pelo uso da língua portuguesa, e também por sua fidelidade à Igreja Católica Romana. Um fator crítico na integração da comunidade em Uidá foi a reocupação do forte português em 1844, uma vez que o contingente enviado de São Tomé incluía um capelão para a capela católica do forte, que manteve serviços religiosos regulares a partir de então. O batismo, em particular, tornou-se um distintivo importante da identidade “brasileira”. Apenas uma minoria dentre os exescravos do Brasil que se estabeleceram em Uidá era composta por muçulmanos — e eles construíram a primeira mesquita da cidade, no bairro Maro —, mas, mesmo eles, freqüentemente batizavam seus filhos.5 Inicialmente, um fator de coesão da comunidade foi, também, a influência suprema de Francisco Félix de Souza, ao qual praticamente todos os 4 5 Como observou Richard Burton, A Mission to Gelele, King of Dahomé (London, 1864), i, 65 n. Como o missionário católico francês observou nos anos 1860: Francesco Borghero, “Relation sur l’établissement des missions dans le Vicariat Apostolique de Dahomé” (3 de dezembro de 1863), em Journal de Francesco Borghero, premier missionnaire du Dahomey, 1861-1865, ed. Renzo Mandirola &Yves Morel (Paris, 1997), 285. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 43 membros estavam ligados por laços de parentesco, parceria comercial ou clientelismo. Isto, entretanto, tinha mudado por volta do final da década de 1840, quando a comunidade brasileira de Uidá tornou-se fragmentada devido ao estabelecimento de comerciantes rivais, negociando em concorrência com os Souza. A comunidade brasileira no início dos anos 1850 A entrada de novos negociantes no comércio de escravos em Uidá, na década de 1840, foi em parte o simples resultado de um desgaste natural, à medida que os membros da velha geração iam morrendo ou passando à inatividade. Das duas principais figuras dos anos 1830, Zangronis morreu em 1843; enquanto Souza, embora tenha vivido até 1849, já não estava mais na ativa. A liderança efetiva da família Souza estava passando para a segunda geração. Em 1849, após a morte do fundador, três de seus filhos, em particular, eram tidos como “ricos e comerciantes de escravos”: seu filho mais velho Isidoro (nascido em 1802); Ignácio (nascido em 1812); e Antônio, chamado “Kokou”, (nascido em 1814).6 A tradição da família indica que estes e outros filhos de Souza, nos anos 1840, comerciavam “cada um por conta própria”, e não coletivamente, iniciando-se, assim, a fragmentação da família em segmentos competidores.7 Um segundo fator que afetou a organização da comunidade mercantil de Uidá nesta época foi a crescente dispersão do embarque de escravos desta cidade para outros portos vizinhos, para os quais os escravos eram enviados em canoas através da laguna costeira: especialmente Grande Popó, Agoué e Pequeno Popó, no oeste, e Godomey, Cotonou e Porto-Novo, no leste. Esta tática foi adotada como um meio de evitar a captura pelos barcos do esquadrão antiescravista da marinha britânica, cuja eficácia tinha aumentado substancialmente graças ao Equipment Act de 1839, que autorizou a apreensão de navios portugue6 7 UK Parliamentary Papers [doravante PP], Correspondence relating to the Slave Trade 1849-50, Class B, incluído no no 9, Lieutenant Forbes, 5 de novembro de 1849. Norberto Francisco de Souza, “Contribution à l”histoire de la famille de Souza”, Etudes dahoméennes, 1st series, 13 (1955), 20. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 44 ses mesmo que, no momento, eles não tivessem escravos a bordo. O pioneiro neste processo de dispersão foi Isidoro de Souza, que restabeleceu a feitoria em Pequeno Popó, ocupada por seu pai em 1840. De forma crescente, a partir de então, os principais traficantes de escravos da região, mesmo quando obtinham seus suprimentos de escravos em Uidá, tendiam a ter suas bases principais em algum outro lugar na costa. Entretanto, outros fatores foram responsáveis pelo declínio de Souza, além do seu afastamento, devido à idade avançada, ou a descentralização geográfica do comércio de escravos, necessária diante da pressão naval britânica. Nos anos 1840 suas operações comerciais tinham entrado numa fase difícil, resultante da combinação das perdas decorrentes da captura de navios pela marinha britânica e de sua própria má administração, na velhice. Ele acumulou débitos substanciais junto a comerciantes no Brasil e em Cuba; e após reclamações de seus credores, o Rei Gezo interveio, restringindo seus privilégios em Uidá e, em particular, decretando que outros “agentes de Havana e do Brasil poderiam estabelecer-se em Uidá”.8 Um dos novos traficantes de escravos que puderam estabelecer negócios em Uidá, sob estas novas condições, foi o brasileiro José Francisco dos Santos (†1871), cujas atividades estão documentadas em sua própria correspondência, que se conservou relativamente aos anos 18447 e 1862-71.9 Entre 1844 e 1847, ele forneceu escravos para o Brasil, principalmente para a Bahia, mas também para o Rio de Janeiro (embora não para Cuba), embarcando-os, às vezes, em Agoué e Pequeno Popó a oeste, assim como na própria Uidá. De acordo com a tradição, Santos, originalmente veio para Uidá a serviço da família Souza e, de fato, casou-se com Francisca, a filha mais velha de Francisco Félix de Souza.10 Isto, entretanto, deve ter ocorrido num período anterior a 1844, uma vez que sua correspondência não contém nenhum indicativo de qualquer relacionamento próximo com a família Souza, e sugere que seus negócios eram, essencialmente, tocados de maneira independente. Em suas opera8 9 10 PP, Papers relative to the Reduction of Lagos (1852), incl. no no 8, Thomas Hutton, Cape Coast, 7 de agosto de 1850. Publicado na tradução francesa por Pierre Verger, em Les Afro-américains (Dakar, 1952), 53-100. Simone de Souza, La Famille de Souza, 51-3. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 45 ções ao longo da laguna, para oeste, ele cooperou, ao menos ocasionalmente, com Isidoro de Souza em Pequeno Popó; e na própria Uidá, ele comprou escravos de Antonio “Kokou” de Souza, mas também diretamente do Rei. Duas outras pessoas indicadas, em 1849, entre “os muitos negociantes brasileiros e portugueses” em Uidá, estavam “Jacinto” e “Jozé Joaquim”, o primeiro descrito como um nativo da Ilha da Madeira, e o último como um antigo soldado no Brasil.11 O primeiro pode ser identificado como sendo Jacinto Joaquim Rodrigues (†1882).12 O próprio Rodrigues afirmou, mais tarde, que tinha vindo para a África em 1844.13 De acordo com a tradição, ele também se estabeleceu, originalmente, em Uidá “com o apoio” do primeiro Souza;14 mas também se tornou, claramente, um operador independente. Como Santos, Rodrigues tinha conexões para além de Uidá, ao longo da laguna, mas, no seu caso, para leste e não para oeste de Uidá: de seus dois filhos, um nasceu em Lagos (Américo, 1847) e outro em Porto-Novo (Cândido, 1850).15 A segunda pessoa indicada é menos facilmente identificável; mas um candidato provável é José Joaquim das Neves, um dos ex-escravos do Brasil, nascidos na África, que se estabeleceram no bairro Maro de Uidá.16 Mais importante do que qualquer um destes, todavia, foi Joaquim d’Almeida (†1857), que era, originalmente, também um escravo liberto da Bahia, que retornou para a África Ocidental como traficante de escravos.17 A tradição local associa a quebra do “monopólio” de Souza em Uidá à entrada, no negócio, deste Almeida, para o qual o Rei Gezo fornecia escravos através do comerciante nativo Azanmado Houénou (Quénum), e não através de Souza.18 A principal residência de Almeida, no fim da vida, era na realidade em Agoué e não em Uidá. A tradição em 11 12 13 14 15 16 17 18 PP, Slave Trade 1849-50, Class B, incl.10 no n o 9, Forbes, 5 de novembro de 1849. Turner, “Les Brésiliens”, 128-9; Reynier, “Ouidah”, 45.. Wesleyan Methodist Missionary Society Archives, School of Oriental & African Studies, University of London [hereafter WMMS], William West, Cape Coast, 6 de junho de 1859. Reynier, “Ouidah”, 45. Turner, “Les Brésiliens”, 129. Reynier, “Ouidah”, 45. Pierre Verger, Os libertos: sete caminhos na liberdade escravos da Bahia no século XIX, (Salvador, Bahia, 1992), 43-8. Edouard Foà, Le Dahomey (Paris, 1895), 23; Reynier, “Ouidah”, p. 63. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 46 Agoué afirma que ele se estabeleceu lá em 1835, mas isto é duvidoso; certamente ele se fixou definitivamente na África, após retornar ao Brasil, somente em torno do começo de 1845.19 É possível que ele tenha se fixado inicialmente em Uidá e não em Agoué; certamente, ele estabeleceu negócios em Uidá em torno de 1847, quando se envolveu, juntamente com Santos, numa disputa com as autoridades daomeanas acerca do pagamento de direitos alfandegários.20 Em 1849, ele era descrito como o “mais rico residente de Uidá”.21 Ainda mais importante, entre a nova geração de comerciantes de escravos, era José Martins, apelidado de “Domingo Martinez” (†1864).22 Martins tinha feito fortuna com o tráfico de escravos em Lagos, mas quando retornou para a África, após um breve retorno à sua Bahia natal, no começo de 1846, ele se fixou em Porto-Novo, de onde comprava escravos do Rei Gezo.23 Martins foi o mais importante traficante neste período, descrito, em 1849, como o “mais rico comerciante das Baías”. Embora sua principal base tenha permanecido em Porto-Novo, ele também fazia negócios em Uidá, e por volta de 1849, tinha também nesta última um estabelecimento.24 Francisco Félix de Souza faleceu em 8 de maio de 1849. Embora sua influência em Uidá tenha se reduzido durante os seus últimos anos de vida, a sucessão de seu cargo de Chachá permaneceu um assunto importante. Na ausência de Isidoro — seu filho mais velho, residente em Pequeno Popó — a liderança interina da família parece ter recaído sobre o filho seguinte, Ignácio; em setembro de 1849, foi ele que se encarregou das cerimônias fúnebres do pai.25 A suposição inicial, em Uidá, era de que ele também sucederia ao pai na posição de Chachá.26 Na realidade, 19 20 21 22 23 24 25 26 Ele fez seu testamento na Bahia, antes de embarcar para se estabelecer na África em dezembro de 1844: texto em Verger, Os libertos, 116-21. Santos correspondence, no 52 [19 fev. de 1847]. PP, Slave Trade 1849-50, Class B, incl. 10 no 9, Forbes, 5 nov. de 1849. Vide especialmente David Ross, “The career of Domingo Martinez in the Bight of Benin, 183364”, Journal of African History, 6 (1965), 79-90. Public Record Office, London [doravante PRO], CO96/12, Thomas Hutton, Cape Coast, 17 março de 1847. PP, Slave Trade 1849-50, Class B, incl.10 em no 9, Forbes, 5 nov. de 1849. PP, Slave Trade 1840-50, Class B, no 7, Vice-Cônsul Duncan, Ouidah, 22 set. de 1849. PP, Slave Trade 1849-50, Class B, no 6, Duncan, 22 set. de 1849 (referindo-se ao “segundo filho”, não identificado). Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 47 entretanto, o Rei Gezo primeiro ofereceu o posto ao então principal negociante, Domingos Martins, mas este não desejava mudar-se de Porto-Novo para Uidá.27 Além disso, o filho mais velho, Isidoro de Souza, também estava, agora, reclamando o título, decisão que talvez tenha sido motivada pela destruição, pelo fogo, de sua propriedade de Pequeno Popó em maio de 1849, logo após a morte de seu pai.28 Em outubro de 1849, Isidoro tinha se mudado de Pequeno Popó, de volta para Uidá; e a crença geral, nesta cidade, era de que, diante da recusa de Martins, o posto deveria ir para ele.29 No início de 1850, Isidoro parece, de fato, ter sido reconhecido localmente em Uidá, como Chachá.30 Mas a indicação não tinha ainda recebido a confirmação real oficial. Em março de 1850, Gezo convocou a família Souza a Abomé, para escolher o novo Chachá. Embora Isidoro fosse o mais rico dos três irmãos, Ignácio era apoiado por Martins, e Antônio era o “favorito do rei”; portanto, a questão estava em aberto; na ocasião, Isidoro foi confirmado como Chachá, enquanto Ignácio foi feito “caboceer [chefe]”, e Antônio ganhou o título honorífico de “amigo-delRey”. Foi acertado que os três deveriam pagar, separadamente, um “tributo” ao rei (isto é, um imposto sobre a renda), formalizando-se, assim, a dissolução da família Souza em segmentos autônomos.31 De fato, de acordo com tradição posterior, as propriedades dos Souza em Uidá foram também divididas entre os três irmãos; Isidoro ocupando a casa principal em “Singbome”, enquanto Ignácio tomou o prédio vizinho de Kendji, e Antônio ocupou a propriedade de Zomayi, no lado oeste de Uidá.32 O cargo para o qual Isidoro tinha ascendido gozava, é claro, consideravelmente de menos prestígio e poder do que o seu pai tinha desfrutado em seu apogeu. O novo Chachá continuou a usufruir os privilégios oriundos de sua posição como agente comercial do rei, incluindo os di27 28 29 30 31 32 PP, Slave Trade 1840-50, Class B, no 7, Vice-Cônsul Duncan, Ouidah, 22 de setembro de 1849. Registrado no Grand Livre Lolamè (em posse da família Lawson de Aného), Lawson a Marmon, 10 maio de 1849. Este incêndio é também relembrado na tradição da família Souza: Foà, Le Dahomey, 27; Simone de Souza, La Famille de Souza, 43. F.E. Forbes, Dahomey & the Dahomans (London, 1851), i, 52 [11 out. de 1849]; PP, Slave Trade 1849-50, Class B, incl. 10 em no 9, Forbes, 5 nov. de 1849. Cf. Forbes, Dahomey, i, 106 [8 março de 1850], referindo-se a ele como “o novo Chachá” Forbes, Dahomey , i, 125; ii, 3. Foà, Le Dahomey , 26-7; “Note historique sur Ouidah par l’Administrateur Gavoy (1913)”, Etudes dahoméennes, 13 (1955), 68-9. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 48 reitos reais da precedência na compra, pelo menos em Uidá; como foi mencionado em 1850, ele permaneceu sendo “o principal agente do rei em todos os assuntos relativos ao comércio; e a ele deviam ser submetidos todos os negócios, fossem com escravos, fossem com azeite de dendê, nos quais ele poderia exercer o direito de opção”.33 Mas Gezo já não negociava somente através do Chachá. Em 1850, ele mencionava quatro pessoas, além do Chachá, que estavam servindo como seus agentes: seus irmãos Ignácio e Antônio de Souza; Domingos Martins em Porto-Novo; e um comerciante espanhol chamado Joaquim Antônio, que estava estabelecido em Grande Popó, a oeste.34 Uma ausência notável nesta lista dos agentes de Gezo é a de Joaquim d’Almeida. Isto provavelmente reflete o fato de que ele, recentemente, tinha se mudado de Uidá; em abril de 1850 foi relatado que d’Almeida estava “agora” residindo em Agoué.35 Ele permaneceu em Agoué, desde então, até sua morte em 1857. A razão para este deslocamento não foi registrada; mas parece provável que estivesse ligada à mudança de Isidoro para Uidá. Embora a mudança de d’Almeida para Agoué tendesse a fortalecer a posição de Isidoro de Souza em Uidá, ela foi, por outro lado, minada quando Domingos Martins, logo a seguir, transferiu o foco principal de suas atividades de Porto-Novo para Uidá. Em agosto de 1851, foi relatado que a hostilidade do rei de Porto-Novo tinha obrigado Martins a abandonar seu estabelecimento, e que ele, logo depois, “foi feito caboceer, de seu próprio lugar, em Uidá”.36 Esta expulsão de Martins de PortoNovo foi, aparentemente, apenas temporária, uma vez que ele é novamente mencionado negociando por lá no final dos anos 1850. Todavia, o centro de gravidade de suas operações parece, então, ter-se deslocado definitivamente para Uidá. A composição da comunidade mercantil em Uidá foi também indiretamente afetada pela intervenção britânica em Lagos no final de 1851, a qual pôs fim ao tráfico de escravos naquele porto e o transformou quase que num protetorado da Grã-Bretanha. Isto forçou a transferência 33 34 35 36 Forbes, Dahomey, i, 111. PP, Slave Trade 1850-1, Class A, incl. 2 no no 220, Journal of Forbes, 4 de julho de 1850. PP, Slave Trade 1850-1, Class A, incl. 3 no no 198, Forbes, 6 de abril de 1850. PRO, FO84/886, Louis Frazer, cópia das notas de rascunho do Journal, 2 & 14 de agosto de 1851. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 49 de vários traficantes de escravos brasileiros anteriormente lá residentes, alguns dos quais acabaram em Uidá. O mais importante destes foi Carlos José de Souza Nobre, um dos principais traficantes de Lagos, que se antecipou ao ataque britânico na cidade, retirando-se para Uidá, inicialmente na esperança de assegurar uma contra-intervenção da França ou dos Estados Unidos.37 Ele permaneceu em Uidá daí em diante, até a sua morte em 1858.38 Nestas circunstâncias, a relativa riqueza e a posição dos Souza continuaram a declinar durante os anos 1850. Em 1852, ainda era mencionado que, embora o comércio em Uidá estivesse aberto para todos, em Godomey e Cotonou, a leste, ele era monopolizado por dois dos irmãos Souza, na primeira por Isidoro e na segunda por Antônio.39 Por volta de 1856, no entanto, as feitorias em Godomey e Cotonou tinham passado para a posse de Nobre e Martins, respectivamente.40 Após a morte de Nobre em 1858, Godomey passou para o controle de Jacinto Rodrigues, que tinha uma casa lá por volta de 1859.41 Cotonou, por outro lado, continuou como um monopólio de Martins até pouco antes de sua morte em 1864, quando o Rei Glele autorizou lá um estabelecimento francês.42 Deve-se ter em mente esse caráter altamente fragmentado da comunidade brasileira no início dos anos 1850, ao se considerar a reação desta comunidade ao término do tráfico de escravos brasileiro; tendo em vista as rivalidades comerciais e pessoais dentro dela, assim como a heterogeneidade de origens, não era provável que houvesse qualquer unanimidade de propósitos ou política. O fim do tráfico de escravos brasileiro, 1850-52 No final de 1851, frustrada pela continuidade do tráfico de escravos de Uidá e outros portos na região, a marinha britânica impôs um bloqueio 37 38 39 40 41 42 Pierre Verger, Flux et reflux de la traite des nègres entre le Golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos du XVIIe au XIXe siècle (Paris, 1968), 578. Burton, Mission to Gelele, i, 111. PRO, FO2/27, Louis Frazer, Commercial Report, encl. to Frazer, 15 de maio de 1852. WMMS, T.B. Freeman, “West Africa” (manuscritos para o livro), cap. XXXIV. WMMS, William West, Cape Coast, 6 de junho de 1859. Burton, Mission, i, 73. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 50 de toda a costa do Golfo do Benim. Sob tal pressão, Gezo aceitou firmar um tratado para a abolição do tráfico de escravos em 13 de janeiro de 1852. Na verdade, em relação ao tráfico especificamente para o Brasil, o bloqueio de 1851-2 e o conseqüente tratado Anglo-Daomeano eram, em grande medida, irrelevantes, exceto como símbolos, uma vez que, àquela altura, o tráfico para o Brasil já tinha, efetivamente, chegado ao fim. Os desdobramentos mais graves já tinham ocorrido no próprio Brasil, e não na África, com a adoção, pela marinha britânica, de uma política mais agressiva de perseguição e captura dos navios negreiros em águas territoriais brasileiras a partir de junho de 1850: sob tal pressão, o governo brasileiro finalmente pôs em vigor uma legislação efetiva para a supressão do tráfico de escravos em setembro de 1850.43 Os efeitos logo se tornaram evidentes na própria África. Em fevereiro de 1851, um oficial naval britânico em visita a Uidá, ouviu que “o comércio de escravos tinha se reduzido enormemente, não havendo nenhum embarque já há muitos meses”, e que “os traficantes de escravos, vendo frustrados todos os esforços para exportar escravos” estavam, em vez disto, comerciando com azeite de dendê. Ao vice-cônsul britânico em Uidá, em agosto de 1851, foi igualmente asseverado, que durante aquele ano os portugueses “não tinham comprado um escravo sequer”.44 Esta falta de demanda evidentemente produziu um certo excesso na oferta de escravos no Daomé, que se refletiu numa queda de preços. Enquanto, na década de 1840, o preço dos escravos em Uidá era de $80 por cabeça, em 1851 eles eram vendidos por apenas $40; em Porto-Novo no começo do mesmo ano dizia-se que escravos haviam sido oferecidos a Domingos Martins por somente $7-8.45 A reação da comunidade brasileira de Uidá à pressão britânica pela abolição do tráfico de escravos é controversa. A análise de John 43 44 45 Ver Leslie M. Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-1869 (Cambridge, 1970), cap. 12. PP, Lagos, incl. 2 no no 35: Lieutenant Drew, 27 fev. de 1851; PRO, FO84/886, Frazer, Journal, 22 de agosto de 1851. Jean-Claude Nardin, “La reprise des relations franco-dahoméennes au XIXe siècle: A Mission d’Auguste Bouet à la cour d’Abomey”, Cahiers d’Etudes Africaines, 7/25 (1967), 118; PP, Lagos, incl. 4 no n o 35, Captain Adams, 24 de março de 1851. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 51 Yoder, focada principalmente nas negociações Anglo-Daomeanas de 1850, afirma que os “comerciantes crioulos brasileiros” eram “os mais intransigentes inimigos dos britânicos”, desejando não só continuar o tráfico de escravos, mas também evitar o desenvolvimento de qualquer comércio alternativo.46 Mas na verdade, como se verá mais adiante neste artigo, os principais comerciantes brasileiros já estavam, por volta de 1850, extensivamente engajados no comércio “legítimo” de azeite de dendê, bem como no tráfico de escravos; e sua atitude diante da iminente abolição, tal como documentado em afirmações registradas por observadores britânicos, era pragmaticamente flexível, ao invés de dogmaticamente contrária. Em 1850, antes do colapso final das negociações, Domingos Martins disse à missão britânica que, se a Grã-Bretanha lhe pagasse compensações para cobrir o custo de seus impostos para com o rei, “ele pararia com o Comércio de Escravos nas Baías; e iria também incrementar o comércio de azeite de dendê, para torná-lo indispensável ao Rei”; no começo de 1851, foi informado que ele tinha se recusado a comprar escravos em Porto-Novo, embora eles lhe tivessem sido oferecidos a preços muito baixos, e havia declarado que “tinha tomado a decisão de não ter mais nada a ver com eles, devido às dificuldades da travessia para o Brasil”.47 Em julho de 1851, o vice-cônsul britânico em Uidá informou que Martins tinha outra vez se mostrado “bastante disposto a assinar um tratado, por iniciativa própria, contra o tráfico de escravos e também auxiliar o governo inglês a acabar com ele”; ao passo que Antônio de Souza disse que, se os britânicos lhe permitissem um embarque final de 2.000 escravos, “ele de boa vontade daria garantias de nunca mais ajudar ou instigar o mesmo tráfico, e daria toda a ajuda que estivesse ao seu alcance para suprimi-lo”.48 Embora estas afirmações representassem, claramente, mais um reconhecimento da realidade do que uma conversão moral, isto implicava que a comunidade mercantil de Uidá podia vislumbrar um futuro viável para si após o fim do tráfico de escravos, e via-o 46 47 48 John C. Yoder, “Fly and Elephant Parties: political polarization in dahomey, 18401870”, Journal of African History, 15 (1974), 417-32. PP, Slave Trade 1850-1, Class A, incl. 3 no no 198, Lieutenant Forbes, 6 abril de 1850; Lagos, incl.4 no no 35, Captain Adams, 24 de março de 1851. PRO, FO84/886, Frazer, Journal, 22 de julho de 1851. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 52 com resignação, como algo inevitável, ainda que indesejável, a ocorrer num futuro próximo. Quando o bloqueio naval britânico foi implantado, em dezembro de 1851, os principais comerciantes brasileiros estavam intimamente envolvidos nas negociações em curso, como conselheiros e intérpretes do Rei Gezo; todos os irmãos Souza, Isidoro, Antônio e Ignácio, foram testemunhas no tratado, assinado em janeiro de 1852. O vice-cônsul britânico soube que os principais comerciantes de Uidá queriam muito que o Rei atendesse às exigências britânicas, mas também tinham medo de provocar represálias por parte das autoridades daomeanas. Ele afirmou, genericamente, que “os brancos” de Uidá estavam “apavorados, eles, individualmente e em conjunto, querem levar o Rei a fazer um tratado incondicional, mas não há um só dentre eles, corajoso o suficiente para lhe dizer isto”, embora Martins tenha de fato “prometido persuadir o Rei a assinar o tratado”. Falando com Antônio de Souza e Jacinto Rodrigues, ele teve a impressão de que ambos estavam “apavorados e temiam que os nativos pudessem matá-los”. O Chachá Isidoro também admitiu que “teme dizer ao rei o que pensa deste bloqueio, como ele diz, pois se tudo correr bem, o Rei irá chamá-lo de ‘querido amigo’; mas se ocorrer o inverso ele irá tirar sua vida”.49 Novamente, tais posições provavelmente refletiam um desejo de pôr fim ao bloqueio, que era ruinoso para os interesses comerciais brasileiros, mais do qualquer oposição de princípio ao tráfico de escravos. Mas também implicava que os brasileiros estavam dispostos a se adaptar ao fim do tráfico. A continuidade do comércio para o Brasil Diante do fim do tráfico de escravos para o Brasil, de que estratégias de acomodação dispunham, realmente, os comerciantes brasileiros de Uidá? Primeiro, deve ser enfatizado que o término do tráfico brasileiro não acarretou o encerramento total das ligações comerciais com o Brasil. A demanda por mercadorias brasileiras, especialmente tabaco e ca49 PRO, Frazer, 23 de dezembro de 1851; fragmentos do memorando diário, 26 de dezembro de 1851. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 53 chaça, permaneceu alta na costa africana; em 1856, foi mencionado que “grandes quantidades” das duas mercadorias ainda estavam sendo importadas do Brasil para o Golfo do Benim, principalmente em navios sardos e portugueses. Embora algumas destas mercadorias brasileiras estivessem sendo levadas para a costa africana por comerciantes europeus, a maior parte permanecia nas mãos dos brasileiros: em 1854 foi estimado que pelo menos 80% do tabaco e da aguardente embarcados na Bahia eram consignados ou comprados por Martins.50 Naturalmente, esta importação de mercadorias brasileiras já não podia mais ser paga diretamente com o suprimento de escravos. Havia, entretanto, também alguma oportunidade de fornecer mercadorias africanas para o mercado brasileiro. A longa história do tráfico de escravos, e o conseqüente crescimento, no Brasil, de uma população de origem ou ascendência africana, tinha criado uma demanda por produtos da África Ocidental, incluindo tecidos africanos, azeite de dendê e nozes de cola (principalmente iorubás). Alguns dos brasileiros na África Ocidental puderam, assim, continuar comerciando com o Brasil, ainda que não mais com escravos. A correspondência de José Francisco dos Santos que se conservou, relativa ao segundo período, 1862-71, mostra-o ainda comerciando com a Bahia, mas agora embarcando azeite de dendê e nozes de cola, em vez de escravos. Mais tarde, outro dos proeminentes membros da segunda geração da família Souza, Julião Félix de Souza, antes de assumir o título de Chachá em 1883, é lembrado como tendo vendido azeite de dendê para o Brasil, e mesmo feito várias viagens para lá, relacionadas com seus negócios.51 Todavia, o tamanho do mercado brasileiro para produtos africanos era, evidentemente, limitado e insuficiente para cobrir o custo da contínua importação de mercadorias brasileiras para a África Ocidental. Na verdade, as importações brasileiras eram provavelmente pagas principalmente em espécie (dólares de prata e dobrões de ouro), e este numerário tinha de ser obtido no comércio com outras regiões, tanto com escravos para Cuba como com produtos “legítimos” para a Europa. 50 51 PP, Slave Trade 1856-7, Class B, incl. no no 43, Consul Campbell, Lagos, Report on the Trade of the Bight of Benin for the year 1856; Simone de Souza, La Famille de Souza, 55. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 54 O tráfico de escravos para Cuba, 1852-66 Com o fim do tráfico de escravos para o Brasil, a alternativa óbvia era o tráfico para Cuba, onde as autoridades espanholas ainda estavam resistindo às pressões britânicas para a abolição efetiva. Embora alguns dos comerciantes de Uidá (tal como Santos) pareçam ter tido conexões mercantis somente com o Brasil, outros (incluindo Souza e Martins) tinham fornecido escravos para Cuba, bem como para o Brasil. Brasileiros estabelecidos na costa estavam, então, bem situados para explorar a continuação das oportunidades oferecidas pelo mercado cubano. Ainda que o comércio cubano de escravos também tenha sido interrompido pelo bloqueio de 1851-2, ele reviveu logo depois. E mais, a posição de Uidá em relação ao comércio cubano se fortaleceu com o estabelecimento da influência britânica em Lagos, a qual efetivamente impediu o embarque de escravos a partir deste porto. O tratado que o Rei Gezo havia assinado em 1852 aplicava-se, evidentemente, a todas as exportações de escravos, incluindo aquelas para Cuba, como também para o Brasil; mas permaneceu incerto se ele poderia ou seria efetivamente cumprido. Durante 1853, embora não tenham sido noticiados embarques de escravos a partir da própria Uidá, alguns foram feitos nas proximidades de Agoué, a oeste; o cônsul britânico em Lagos soube que, embora o Rei Gezo tivesse “proibido estritamente” o embarque de escravos da própria Uidá, os traficantes de escravos de lá estavam simplesmente enviando seus escravos ao longo da laguna para efetuar o embarque mais a oeste.52 Em 1854, entretanto, alguns embarques foram feitos da própria Uidá: em maio, três navios foram de lá despachados, com um total de cerca de 1.700 escravos;53 e mais tarde, neste mesmo ano, um brigue francês chamado Caesar foi comprado em conjunto pelos fornecedores de escravos de Uidá e Agoué, com a finalidade de embarcar escravos de Uidá para Cuba; embora os britânicos tenham considerado este ato como “uma aventura imprudente”, uma vez que o barco estava “sem condições de navegabilidade e num estado perigoso”.54 Todavia, todas estas 52 53 54 PP, Slave Trade 1853-4, Class B, n o 47, Campbell, 31 de outubro de 1853. PP, Slave Trade 1854-5, Class B, no 6, Campbell, 30 maio de 1854; Class A, no 109, Commander Miller, 3 de junho de 1854. PP, Slave Trade 1854-5, Class B, nos 17, 26, Campbell, 12 de agosto & 1º de dezembro de 1854. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 55 quatro embarcações foram posteriormente capturadas pelas autoridades em Cuba, três delas antes de desembarcarem os escravos.55 Outras tentativas de embarcar escravos em 1855 e 1856, foram frustradas pelo esquadrão antitráfico britânico: em agosto de 1855 um navio espanhol, o Fernando Pó, tencionava, supostamente, abastecer-se de escravos em Uidá, mas foi capturado pelos britânicos antes de lá chegar; e em janeiro de 1856 outro suspeito tumbeiro, o Chatsworth, de Nova Iorque, foi levado à terra e destruído em Cotonou (“Appi Vista”), a leste de Uidá.56 Até que ponto os comerciantes brasileiros estabelecidos, tais como Domingos Martins, estavam envolvidos nestas aventuras é algo incerto. Embora os britânicos soubessem que Martins estava entre aqueles que tinham comprado e embarcado escravos no Caesar em 1854, havia, por outro lado, pouca evidência circunstancial a sustentar suas alegações de que ele continuava envolvido no tráfico de escravos. Na verdade, parece que o tráfico para Cuba foi predominantemente conduzido, ao menos em meados dos anos 1850, pelos recém chegados no comércio.57 Estes eram geralmente portugueses ou espanhóis, e não brasileiros, e tinham negócios e vínculos pessoais com Cuba e Estados Unidos, e não com a Bahia; e muitos deles tinham suas bases principais em Agoué e outros portos a oeste, e não na própria Uidá. Vários dos navios enviados ao Golfo do Benim para comprar escravos para Cuba em 1855-6 foram despachados por João Antonio Machado, um comerciante português residente em Nova Iorque, que era naturalizado cidadão norte-americano.58 Na própria costa africana, a principal figura no tráfico de escravos fora de Uidá, em 18546, era um espanhol chamado Domingo Mustich, cujos estabelecimentos principais ficavam em Agoué e Pequeno Popó, a oeste;59 em 1854, ele 55 56 57 58 59 PP, Slave Trade 1855-6, Class B, no 25, Campbell, 2 de junho de 1855. PP, Slave Trade 1855-6, Class B, nos 9, 28, Campbell, 28 de agosto de 1855, 6 de janeiro de 1856. Cf. Ross, “Career of Domingo Martinez”, 87. PP, Slave Trade 1855-6, Class B, no 30, 31, 46, Campbell, 1 fev. & 18 de agosto de 1856, 4 de fevereiro de 1857. Mustich esteve engajado no tráfico ilegal em Popo já nos anos 1840, mas não anteriormente em Uidá: Silke Strickrodt, “Afro-Brazilians on the western Slave Coast”, apresentado na conferência “Enslaving Connections: Africa and Brazil during the era of the Slave Trade”, York University, Toronto, out. de 2000. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 56 viajou como comissário comercial do Caesar para Cuba, e foi de lá para Barcelona, a fim de organizar o despacho de outros navios (incluindo o Fernando Pó), antes de retornar para Uidá por volta do início de 1856.60 Em todo caso, as perdas sofridas, de navios e cargas, rapidamente minaram o entusiasmo pela tentativa de continuar com o tráfico. No final de 1854, registrou-se que os fornecedores de escravos em Uidá tinham “ficado alarmados” diante destes reveses e estavam “agora retomando o comércio de azeite de dendê”; e no ano seguinte que eles estavam “em estado de grande desânimo” diante da perda do Fernando Pó.61 Embora tenha havido rumores de embarques subseqüentes, estes não estão documentados, e o comandante do esquadrão antiescravista britânico, em maio de 1857, afirmou “não crer que qualquer escravo tivesse sido embarcado a barlavento [oeste] de Lagos nos últimos dois anos”.62 O colapso da exportação de escravos por esta época é confirmado pela evidência relacionada aos preços, que permaneceram em baixa; quando a França negociou com o Rei Gezo o suprimento de escravos (sob a aparência de “emigrantes livres”) em 1857, o preço acertado foi de somente $50 por cabeça.63 Entretanto, o tráfico de escravos em Uidá experimentou uma revitalização a partir de 1857. Por volta de março de 1857, notícias chegaram ao cônsul britânico em Lagos, a leste, de que “fornecedores de escravos em Uidá tinham começado a comprar escravos em larga escala e estavam pagando um preço cada vez mais alto por eles”; dizia-se até mesmo que escravos estavam sendo enviados de Lagos para Porto-Novo, para serem vendidos para Uidá.64 Os britânicos, inicialmente, acreditaram que o principal fator para este novo impulso ao tráfico fosse o projeto francês para o suposto recrutamento de “emigrantes livres” na África, a fim de serem enviados para as Índias Ocidentais Francesas através da firma Régis, o que era, na realidade, o renascimento do tráfico sob um 60 61 62 63 64 PP, Slave Trade, 1854-5, Class B, no 17, Campbell, 12 ago. de 1854; 1855-6, Class B. nos 9, 30, id., 28 de agosto de 1855, 1º de fevereiro de 1856. PP, Slave Trade 1854-5, Class B, no 26, Campbell, 1º de dezembro de 1854; 1855-6, Class B, no 9, id., 28 de agosto de 1855. PP, Slave Trade 1857-8, Class A, no 155, Commander Hope, 25 de maio de 1857. PP, Slave Trade 1857-8, Class B, no 25, Campbell, 10 de agosto de 1857. PP, Slave Trade 1857-8, Class B, no 26, Campbell, 31 de agosto de 1857. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 57 falso pretexto legal, que apresentava a compra dos escravos como o seu “resgate” para a liberdade, antes que ingressassem nos supostamente voluntários contratos de trabalho. Mas, no caso, os efeitos práticos deste esquema, no que tange especificamente a Uidá, foram insignificantes, uma vez que ele foi rapidamente suplantado pela revitalização do tráfico para Cuba, que empurrou os preços dos escravos para níveis com os quais os agentes de Régis não podiam competir. Quando um vapor pertencente à Régis chegou à costa, em agosto de 1857, ele na verdade só comprou entre 40 e 50 escravos em Uidá, e preferiu seguir para o Congo, onde os escravos podiam ser adquiridos a preços mais baixos. Em março de 1858, o cônsul britânico informou que “a tentativa de comprar escravos em Uidá como se fossem emigrantes livres não tinha ainda sido retomada por M. Régis e, enquanto o valor corrente dos escravos entre os nativos desta parte da África continuarem altos como estão, não é provável que isto aconteça”.65 O tráfico para Cuba, revigorado a partir de 1857, estava, por outro lado, associado, não aos comerciantes brasileiros estabelecidos na costa, como Martins, mas a uma nova companhia formada em Havana, chamada “Expedición por África”, cujos barcos eram equipados nos Estados Unidos e navegavam sob as cores norte-americanas.66 Ao longo de 1857, esta companhia mandou cinco navios para o Golfo do Benim para buscar escravos. No entanto, o primeiro a chegar, o Adams Gray, em abril de 1857, fracassou na tentativa de obter de escravos tanto em Cotonou (“Appi Vista”) quando em Uidá, e por esta razão foi para o Congo, mas foi capturado pela marinha britânica antes que pudesse embarcar qualquer escravo. A reação dos comerciantes estabelecidos no Daomé não foi, evidentemente nem um pouco entusiástica. Em Cotonou, Martins negou-se a fazer negócio com o Adams Gray, aconselhando-o a tentar em outros lugares, pois “o Golfo do Benim estava agora sendo fiscalizado de forma muito rígida”. O fracasso dos comerciantes de Uidá em fornecer escravos para este navio é explicado, em diferentes informes, como sendo devido à esperança que nutriam de fazer o carregamen65 66 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, nos 25, 35, Campbell, 10 de agosto & 12 de outubro de 1857; 1858-9, Class B, no 5, id., 8 de março de 1858. PP Slave Trade 1858-9, Class A, no 142, Rear-Admiral Sir F. Grey, 11 de fevereiro de 1858. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 58 to por sua própria conta, para obter maiores lucros, ou mais simplesmente porque eles “não estavam prontos”.67 Mas um fator mais crítico pode ter sido a dúvida sobre a lucratividade do comércio de escravos: dois antigos traficantes de escravos, não identificados, que estavam visitando Lagos nesta época, opinaram que, dado que o Adams Gray estava oferecendo somente $60-70 por escravo, “tal comércio... não merece sua atenção: o comércio de azeite de dendê é infinitamente melhor”.68 Entretanto, navios da mesma companhia, que vieram em seguida, tiveram sucesso na obtenção de escravos: em junho de 1857, o Jupiter embarcou escravos em “Praya Nova”, um novo ponto de embarque, recém aberto, cinco milhas a oeste de Uidá, mas conseguiu embarcar somente 70 escravos antes de ser capturado pela marinha britânica; e, no final de agosto, o Abbot Devereux embarcou entre 250 e 270 escravos na praia de Uidá, mas foi também capturado pelos britânicos.69 Outros embarques de Uidá foram relatados em setembro de 1857, por navios aparentemente sem conexão com a companhia de Havana: 109 escravos numa escuna espanhola e 300 na escuna norte-americana James Buchanan, tendo as duas, aparentemente, conseguido escapar da captura.70 Em 1858, foi relatado que um navio norte-americano, o Lydia Gibbs, tinha desembarcado $25.000 em espécie em Agoué como pré-pagamento por uma carga de escravos, mas foi capturado em maio antes que pudesse colocar qualquer escravo a bordo.71 Em janeiro de 1859, um navio destinado a embarcar escravos em Uidá foi capturado pela marinha britânica; mas outro, o brigue norte-americano Tyrant, conseguiu embarcar 400 escravos, sendo 200 de Agoué e 200 de Uidá.72 Em setembro do mesmo ano, três diferentes embarques, totalizando de 1.300 a 1.400 escravos, foram feitos em Agoué e Porto67 68 69 70 71 72 73 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, no 8, Campbell, 11 de maio de 1857; Class A, incl.2 em no 166, Commander Burgess, 12 de agosto de 1857. PP, Slave Trade 1857-8, Class B, no 9, Campbell, 11 de maio de 1857. PP, Slave Trade 1857-8, Class A, incl.1 no no 159, Lieutenant Pike, 2 julho de 1857; incl.2 no no 166, Burgess, 12 ago. de 1857; Class B, no 22, Campbell, 5 de agosto de 1857. PP, Slave Trade 1857-8, Class B no 44, Campbell, 3 de novembro de 1857. PP, Slave Trade 1858-9, Class A. no 133, Wise, 6 de agosto de 1858. PP, Slave Trade 1859-60, Class A, incl. no no 4, Extrato do West African Herald, 10 de fevereiro de 1859 ; nos 95, 110, Wise, 15 de março & 16 de maio de 1859. PP, Slave Trade 1859-60, no 150, Wise, 23 de novembro de 1859. Os navios eram o Cygnet (USA), setembro, com 400 escravos, de Agoué e mais a leste (capturado); Glória (português), setembro, 400 de Agoué; navio não identificado, setembro, 400-500 de Porto-Seguro. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 59 Seguro, embora um destes tenha sido capturado pelos britânicos.73 Em 1860, registraram-se quatro embarques de escravos feitos em Uidá, num total de mais de 2.500 escravos; um desses embarques, em agosto, representou uma significativa inovação técnica no tráfico ilegal: o emprego de um navio a vapor, o qual embarcou nada menos que 1.300 escravos numa única carga.74 Nos primeiros dez meses de 1861, somente um único embarque de escravos foi registrado, a oeste de Keta;75 mas houve, depois, outros embarques, em dezembro de 1861 e fevereiro de 1862, este último diretamente de Uidá.76 Embora muitos destes embarques tenham tido lugar em portos a oeste de Uidá, muitos, senão todos os escravos eram considerados como sendo oriundos de lá: como o cônsul britânico em Lagos observou, no começo de 1862, “somente Uidá deve agora ser vista como um ponto de exportação de escravos: embarques podem ocasionalmente ser feitos em outros lugares, mas os escravos, na maioria dos casos, foram coletados lá.”77 O reingresso de Uidá e do Daomé no tráfico de escravos não reflete simplesmente o retorno dos navios, que chegavam em busca de escravos, mas também o fato de que esta demanda revigorada teve o efeito de elevar os preços a níveis que tornaram o tráfico novamente atrativo: em agosto de 1857, escravos estavam novamente sendo vendidos em Uidá a $80 por cabeça, um preço com o qual os agentes da firma Régis, que queriam comprar “emigrantes livres”, não podiam competir.78 Contudo, não parece que estes preços fossem suficientes para tentar os antigos comerciantes, como Domingos Martins, a retornarem ao tráfico. Embora Martins fosse, de tempos em tempos, acusado pelos bri74 75 76 77 78 PP, Slave Trade 1860, Class A, no 23, Acting Consul Hand, Lagos, 10 de setembro de 1853; no 57, Commodore Edmonstone, 2 de outubro de 1860; Class B, no 24, Hand, 9 de outubro de 1860. Os navios eram: um barco espanhol (mas sob bandeira francesa), 9 ou 10 de abril (com 570 escravos); uma escuna sob bandeira norte-americana, 11 de maio (101 escravos); um “grande vapor”, agosto (1.300 escravos); o barco norte-americano Buck Eye, setembro (450 escravos). O comandante do esquadrão naval britânico afirmou, mais tarde, que “nada menos que 2.500 escravos tinham sido embarcados somente em Uidá num curto período de seis semanas [talvez um erro para 6 meses]”: PP, Slave Trade 1861, Class A, no 62, Edmonstone, 4 de janeiro de 1861. PP, Slave Trade, 1862, Class A, incl.1 no no 82, Edmonstone, 7 de novembro de 1861: the African. PP, Slave Trade 1862, Class A, no 93, incl. no no 93, Commander Bedingfield, 12 de março de 1862: the Thomas Acorn e the Seamiew. PP, Slave Trade 1862, Class B, no 7, Acting Consul McCoskry, Lagos, 7 de janeiro de 1862. PP, Slave Trade 1857-8, Class B, no 25, Campbell, 10 de agosto de 1857. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 60 tânicos de envolvimento no revitalizado tráfico de escravos, e sua morte, em janeiro de 1864, tenha sido vista como “um severo golpe [...] nos interesses escravistas de Uidá”,79 nunca foi citada nenhuma evidência clara a este respeito; o próprio Martins insistiu, em 1862, que “tinha abandonado o tráfico de escravos”.80 Como se depreende de registros detalhados, as figuras dominantes no revigorado tráfico de escravos, a partir de 1857, parecem ter sido, mais uma vez, aquelas recém chegadas à costa, ou que, pelo menos, não haviam se destacado anteriormente no tráfico em Uidá. Em 1857, a principal figura, descrita como “agente geral para o tráfico de escravos em Uidá e portos de embarque adjacentes”, era Samuel da Costa Soares, que, embora descrito como “um dos [...] antigos traficantes de escravos”, até então não tinha tido importância suficiente para ser mencionado nos documentos; ele era oriundo da metrópole portuguesa, e não do Brasil, tinha vínculos com comerciantes portugueses residentes em Nova Iorque, e era, ele próprio, naturalizado cidadão norte-americano; sua base principal era Agoué, e não Uidá.81 Em 1859, navios negreiros enviados para Uidá foram considerados como sendo consignados a “J.M. Carvalho” e “Mr. Baeta”.82 O primeiro deles é, presumivelmente, “M. D. Joaquim Carvalho”, chamado de “Breca”, cuja morte na costa foi relatada por volta do começo de 1864;83 e que tinha tido sua base em Grande-Popó anteriormente, nos anos 1850.84 O segundo era João Gonzalves Baeta, de comprovado envolvimento no tráfico ilegal de escravos em Agoué já no início da mesma década; ele parece ter se retirado do negócio depois e retornado para a Bahia, onde foi um dos correspondentes de José Francisco dos Santos a partir de 1862.85 No final de 1859, Agoué foi apontada como sendo a base de dois 79 80 81 82 83 84 85 86 PP, Slave Trade 1864, Class B, n o 19, Consul Burton, Bonny River, 23 de março de 1864. PP, Slave Trade 1863, Class A, no 91, Commodore Wilmot, nov. de 1862. PP Slave Trade 1857-8, Class B, no 19, Campbell, 27 de julho de 1857; cf. também Turner, “Les Brésiliens”, 125-6. PP, Slave Trade 1859-60, Class B, incl. no no 4, Extrato do West African Herald, 10 de fevereiro de 1859; Class A, nos 95, 115, Wise, 15 de março & 9 de junho de 1859. PP, Slave Trade 1864, Class B, no 19, Burton, 23 de março de 1864. Strickrodt, “Afro-Brazilians”. Mas havia um outro Carvalho ativo neste período, Manoel Joaquim de Carvalho, cujas atividade estavam principalmente centradas em Porto-Novo. Strickrodt, “Afro-Brazilians”. PP, Slave Trade 1859-60, Class A, no 158, Elphinstone, 21 Jan. 1860, with inclosure, Commander Bowen, 21 de novembro de 1859. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 61 traficantes de escravos chamados “Maderes” e “Swarey”.86 O primeiro deles era Francisco José de Medeiros, que também tinha nacionalidade portuguesa, sendo originário da Ilha da Madeira, mas tendo residido por vários anos em Cuba; nos anos 1840 ele tinha comandado o comércio ilegal com navios negreiros em Uidá, mas sua presença não é confirmada em Agoué antes de 1859.87 O segundo, aparentemente, não é o Samuel da Costa Soares de 1857, mas uma outra pessoa, João Pereira Soares. Este Soares tinha bases em Uidá assim como em Agoué; foi descrito, em 1864, como “o principal fornecedor [de escravos] de Uidá”.88 Em 1867, depois que o tráfico de escravos para Cuba tinha chegado ao fim, Soares Pereira e Medeiros foram descritos como “os últimos dos ricos fornecedores de escravos”.89 O renascimento do tráfico de escravos para Cuba, entretanto, teve vida curta. As patrulhas navais britânicas tiveram uma certa participação em sua extinção, especialmente depois que a eficácia de suas ações foi fortalecida pelo tratado Anglo-Americano de 1862, o qual finalmente concedeu o direito de busca em navios norte-americanos, pondo fim, desta forma, ao uso abusivo de sua bandeira por navios negreiros ilegais.90 Uidá mereceu uma atenção especial, tendo o comandante naval britânico local emitido instruções, em 1863, para que ela “nunca deixasse de ser vigiada”.91 Mas, como no caso do término do tráfico brasileiro, ocorrido anteriormente, o fator decisivo foi o fechamento do mercado cubano. Isto deveu-se, em parte, a uma questão puramente econômica, pois o declínio do preço dos escravos em Cuba, nos anos 1860, fez com que a importação da África deixasse de ser lucrativa; qualquer perspectiva de um revigoramento posterior do tráfico foi eliminada pela tardia edição, por parte das autoridades espanholas em Cuba 87 88 89 90 91 92 Sobre Medeiros, ver Turner, “Les Brésiliens”, 126-7; Reynier, “Ouidah”, 67. Ele comandou o navio Fortuna de Havana, chegando à Baía de Benin em março de 1842: PP, Slave Trade 1842, Class A, no 54, caso do Fortuna. Cf. Burton, Mission, i, 74-5 n.; PP, Slave Trade 1864; PP, 1864, Class A, no 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864. PP, Slave Trade 1867, Class A, no 65, Commodore Hornby, 7 de junho de 1867. A importância do tratado de 1862 é questionada por David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transaantic Slave Trade (New York, 1987), 210, que afirma, que na verdade, nenhum navio foi condenado com base neste acordo; todavia, ele presumivelmente funcionou como um fator desencorajador. PP, Slave Trade 1864, Class A, no 119, Wilmot, 31 de dezembro de 1863. Sobre o argumento de que o comércio cubano “foi vitimado por uma morte mercadológica”, e que a legislação de 1867 teve importância somente como “símbolo”: vide Eltis, Economic Growth, 218-19. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 62 em 1867,92 de uma legislação mais efetiva para prevenir as importações ilegais. Provavelmente, o último embarque transatlântico de escravos diretamente da praia de Uidá ocorreu em 25 de março de 1862, quando o vapor espanhol Noc d’Acqui, segundo informações, partiu para Cuba com 1.600 escravos.93 Em outubro de 1862, o mesmo navio voltou para a costa, e recolheu uma carga de cerca de 1.000 escravos; mas encontrou Uidá tão estritamente vigiada pela marinha britânica que foi impossível embarcar escravos lá e, por isso, os escravos foram enviados ao longo da laguna para embarque em Agoué.94 Em seguida a uma missão britânica para o Daomé no começo de 1863, o Rei Glele novamente emitiu instruções de que “escravos, tanto comprados dele quanto de outros, não deveriam ser embarcados na costa de seu território”; mas, como acontecera nos anos 1850, isto, evidentemente, não impediu o envio de escravos de Uidá, ao longo da laguna, para serem embarcados alhures.95 A última exportação de escravos para um mercado transatlântico no qual Uidá esteve envolvida ocorreu em 10 de outubro de 1863, quando outro vapor espanhol, o Ciceron, embarcou, em Godomey, uma carga de 960 escravos, embora esta tenha sido confiscada pelas autoridades espanholas após sua entrega em Cuba.96 Os escravos destinados a este embarque tinham marchado por terra de Uidá para Godomey; sua passagem em direção a leste, sob guarda armada, foi testemunhada pelo missionário católico francês Francesco Borghero, que casualmente estava vindo em direção oposta, de uma visita a Lagos e Badagry.97 De acordo com o cônsul britânico Richard Burton, que chegou a Uidá algumas semanas depois, o embarque bem sucedido foi comemorado pelos responsáveis pelo carregamento com um banquete que durou dez horas, ao qual compareceram os comerciantes “legítimos”, assim como os traficantes de escravos, que se juntaram em “brindes pró-escravidão” junto com os escravistas.98 93 94 95 96 97 98 PP, Slave Trade 1862, Class B, no 14, Consul Freeman, Lagos, 9 de maio de 1862; WMMS, Henry Wharton, Cape Coast, 14 de abril de 1862. PP, Slave Trade 1862, Class B, no 25, Freeman, 29 de outubro de 1862; também apontado por Borghero, Journal, 116-17 [20-21 de outubro de 1862]. PP, Slave Trade 1864, Class A, no 119, Wilmot, 31 de dezembro de 1863. Idem, ibidem. Borghero, Journal, 139 [9 de outubro de 1863]. Burton, Mission, i, 115. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 63 Na verdade, esta celebração terminou sendo o canto do cisne do tráfico de escravos em Uidá, uma vez que este, aparentemente, foi o último embarque de escravos para Cuba de todo o Golfo do Benim. Embora o Rei Glele, em negociações com os britânicos em 1863-4, ainda insistisse que continuaria a vender escravos, sua determinação foi irrelevante, na ausência de navios aos quais vender. Nos anos 1864, o comandante naval britânico informou que, no Golfo do Benim, “até onde eu sei, não houve um único embarque este ano”, fato que ele sustentava ser “inteiramente atribuível ao estrito bloqueio que foi estabelecido”; embora o vapor Ciceron tivesse reaparecido na costa oeste de Uidá, perto de Porto-Seguro, em maio, e uma carga de 2.000 escravos tivesse sido preparada, foi impossível embarcá-la.99 No ano seguinte, 1865, o comandante novamente informou que o tráfico de escravos nas Baías, “em razão do estrito bloqueio estabelecido e mantido, está virtualmente no fim. Não houve embarques de escravos desde o ano passado”; e outro observador relatou que “os comerciantes de escravos que os tinham reunido para embarque estavam agora os vendendo-os de volta para os nativos, para trabalharem em suas plantações”.100 Os traficantes de escravos locais talvez ainda não tivessem perdido a esperança, pois, em julho de 1864, João Soares Pereira viajou de Uidá para Londres, pelo serviço de vapor de Lagos, a fim de comprar navios, e, se não obtivesse sucesso lá, tencionava prosseguir até Nova Iorque com o mesmo propósito; os britânicos souberam (ou supuseram) que estes navios tinham como objetivo o seu emprego no tráfico de escravos.101 Presumivelmente como resultado desta missão, no ano seguinte, um navio chamado Dahomey, de propriedade de Pereira e Medeiros, navegou de Nova Iorque, via Lisboa, para a África Ocidental, chegando em Uidá em dezembro de 1865. Após alguns meses negociando entre Uidá e localidades a oeste, este navio foi capturado pela marinha britânica em Agoué em março de 1866; mas embora os britânicos tenham alegado que mais de 600 escra99 100 101 102 PP, Slave Trade 1864, Class A, n o 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864. PP, Slave Trade 1865, Class A, no 83, Wilmot, 19 de dezembro de 1865; African Times, 23 de setembro de 1865, carta datada de Grande Popó, 29 de julho de 1865. PP, Slave Trade 1864, Class A, no 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864. PP, Slave Trade 1866, Class A, nos 37, 39, 43, case of the Dahomey; also no 60, Hornby, 11 de março de 1866; 1867, Class A, no 48, id., 12 de fevereiro de 1867. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 64 vos haviam sido reunidos em Agoué para embarque no Dahomey, não havia evidências conclusivas desta intenção, e o navio foi, afinal, liberado.102 Depois disto, as esperanças locais de um renascimento do tráfico evidentemente se evaporaram. No ano seguinte, 1867, o comandante naval britânico local informou que a “demanda por escravos por parte de Cuba aparentemente cessou”; desde a dispersão dos escravos supostamente reunidos para embarque no Dahomey no ano anterior, “nenhuma carga, até onde sabemos, foi preparada para embarque naquela parte da costa”. Soares Pereira e Medeiros começaram a desmontar seu estabelecimento em Agoué, e transferiram seus negócios para leste da costa; como Medeiros explicou para um capitão naval britânico, “agora, o tráfico de escravos está encerrado, então eu estou indo para o comércio legal; seus cruzadores não o impediram, mas não há demanda por parte de Cuba”.103 Medeiros mudou-se para Uidá, onde morreu em 1875.104 Os brasileiros e o crescimento do comércio “legítimo” para a Europa Uma estratégia alternativa de adaptação ao término do tráfico de escravos para o Brasil foi o desenvolvimento de formas “legítimas” de comércio, isto é, com mercadorias outras que não escravos, o que, no Golfo do Benim, significava principalmente azeite de dendê e, a partir de meados da década de 1860, também a castanha do coco do dendezeiro. De mais a mais, bem mais tarde, quando o tráfico de escravos para Cuba também chegasse ao fim, este seria o único recurso para os comerciantes brasileiros de Uidá, se quisessem evitar a marginalização comercial. Embora, como apontado acima, algum comércio tenha sido feito com azeite de dendê para o Brasil, os principais mercados para este produto estavam na Europa Ocidental, principalmente Inglaterra e Fran103 104 PP, Slave Trade 1867, Class A, no 65, Hornby, 7 de junho de 1867. Reynier, “Ouidah”, 67. Este relato afirma que Medeiros se mudou para Uidá em 1863, mas segundo as fontes contemporâneas isto deve se ter dado alguns anos mais tarde. Um relatório de 1871 apontou sua presença em Uidá, onde estava construindo uma casa: J.A. Skertchly, Dahomey As It Is (London, 1874), 67. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 65 ça. A opção por concentrar os negócios no azeite de dendê implicou numa reorientação comercial em direção à Europa. Isto não era algo inteiramente novo, uma vez que os brasileiros de Uidá tinham começado a vender azeite de dendê para comerciantes europeus numa escala considerável antes mesmo do fim do tráfico de escravos para o Brasil. O comerciante britânico que iniciou o comércio de azeite de dendê na região, Thomas Hutton, em 1846, comentou com surpresa que o próprio Souza tinha entrado no comércio legítimo, tendo carregado cinco navios com azeite de dendê no curso de um ano; e no ano seguinte ele chegou a reclamar da competição que “os portugueses” estavam oferecendo no comércio de azeite. 105 Brasileiros, tal como os mercadores nativos daomeanos, também entraram na produção de azeite de dendê, empregando trabalho escravo nas fazendas perto de Uidá. Os comerciantes brasileiros inicialmente tomaram o comércio de azeite mais como um suplemento ao tráfico de escravos do que como um substituto a este: como foi mencionado em 1849, “no momento, ninguém é comerciante de escravos em Uidá, mas trabalha com os dois comércios”.106 Domingos Martins, em particular, estava profundamente envolvido no comércio de azeite, dizendo ter obtido, com ele, nada menos que $80.000 durante o ano 1849-50; em 1851, seu secretário em Uidá sustentava que seus negócios com azeite de dendê tinham ultrapassado o montante de $200.000 (a preços correntes, cerca de 2.000 toneladas) anuais.107 Estes comerciantes foram para o comércio de azeite, em parte a fim de se garantir contra a crescente incerteza no tráfico de escravos; mas eles também usaram o comércio de azeite para apoiar suas atividades escravistas. Um dos problemas centrais para os traficantes no comércio ilegal era a obtenção das mercadorias que seriam utilizadas para a compra de escravos. Embora tivessem fácil acesso ao tabaco e aguardente brasileiros, também precisavam de um suprimento maior de mercadorias manufaturadas, especialmente britânicas. Anteriormente, eles tinham dependido da compra de bens britânicos na África Ocidental, com pagamento em dinheiro, mas agora tinham considerado mais conve105 106 107 108 PRO, CO96/12, Hutton, 7 de dezembro de 1846, 17 de março de 1847. PP, Slave Trade 1849-50, Class B, incl. 10 no 9, Forbes, 5 de novembro de 1849. Forbes, Dahomey , ii, 85; PRO, FO84/886, Frazer, Journal, 22 de julho de 1851. PRO, CO96/12, Hutton, 17 de março de 1847; Forbes, Dahomey , ii, 85. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 66 niente obter estes bens vendendo azeite de dendê; como Hutton explicitamente apontou, em 1847, “eles praticam o comércio de azeite para induzir navios a trazer-lhes carregamentos”; e como Martins explicou em 1850, “os comércios de escravos e de azeite ajudam-se um ao outro”.108 Parte da reação do Daomé ao término do tráfico de escravos brasileiro foi o incremento das exportações de azeite de dendê: uma missão francesa, que visitou o Daomé em 1856, afirmou que “as exportações de azeite de dendê estão crescendo a cada ano”; e um missionário inglês, naquele mesmo ano, teve, igualmente, a impressão de que “uma grande mudança comercial está atingindo todo o Daomé, a manufatura do azeite de dendê está crescendo enormemente”.109 Os comerciantes brasileiros claramente desempenharam um papel proeminente nesta expansão do comércio do azeite: em 1856, por exemplo, foi apontado que Nobre e Martins, com suas fábricas em Godomey e Cotonou, eram “grandes comerciantes de azeite”.110 Neste período, na verdade, os brasileiros foram muito bem sucedidos em inserir-se como intermediários entre os produtores africanos e os compradores europeus de azeite de dendê. Um capitão britânico que comerciou em Uidá e Badagry entre 1851 e 1863, observou que a principal mudança na operação do comércio durante este período foi que “em vez de comerciar com os nativos, nós freqüentemente temos de comerciar com os portugueses estabelecidos no negócio do azeite, agora que o tráfico de escravos está à beira da ruína”.111 Esta mudança para o azeite de dendê, todavia, acabou por enfrentar dificuldades, devido à queda dos lucros. O preço do azeite de dendê no Reino Unido atingiu um pico de £48 por tonelada em 1854, mas depois declinou, girando, em média, em torno, de £43 durante o restante dos anos 1850, e caindo abaixo das £40 nos anos 1860.112 Os 109 110 111 112 A. Vallon, “Le royaume de Dahomey”, Revue Maritime et Coloniale, 1 (1860), 357; WMMS, T.B. Freeman, Porto-Novo, 2 de abril de 1856. WMMS, Freeman, 2 de abril de 1856. PP, Select Committee on the State of the British Settlements on the Western Coast of Africa (1865), Minutes of Evidence, 5449-50 (Captain James Croft). Martin Lynn, Commerce & Economic Change: the palm oil trade in the nineteenth century (Cambridge, 1997), 29, 112 (Tables 1.9, 5.2). Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 67 preços na costa da África Ocidental não seguiram o mesmo padrão, mas, no geral, também caíram. A expansão das exportações de azeite de dendê de Uidá no final dos anos 1840 tinha sido estimulada por uma alta nos preços, de $4 por medida (18 galões), em 1844, para $7 por medida, em 1850, e £8 por medida ($133 por tonelada) em 1851; e em janeiro de 1852, em seguida à sua aceitação do tratado para a abolição das exportações de escravos, o Rei Gezo decretou um aumento do preço para $12 por medida ($200 por tonelada).113 Mas este nível artificial (que era, na verdade, mais alto do que os preços correntes na Inglaterra) era obviamente insustentável. Em 1854, o preço tinha caído de volta para $6 por medida ($100 por tonelada).114 Deve se presumir que esta queda de preços minou a lucratividade do comércio para os negociantes de Uidá e para a monarquia daomeana; além disso, os ganhos dos primeiros foram ainda mais reduzidos pelo acréscimo na taxação do comércio de azeite de dendê que a monarquia instituiu nos anos 1850 para compensar sua perda da renda oriunda do tráfico de escravos. A redução na lucratividade do comércio do azeite talvez explique as informações de que, por volta de 1859, o principal comerciante de Uidá, Domingos Martins, estava “a beira da bancarrota”.115 A longo prazo, na verdade, os comerciantes brasileiros não foram capazes de competir efetivamente com as firmas européias e francesas, que dispunham de maiores recursos de capital, e sobreviveram somente tornando-se agentes destas. Um dos primeiros exemplos foi Manoel Joaquim de Carvalho, que estava servindo como agente da firma francesa Régis, em Porto-Novo em 1862-3, quando desempenhou um importante papel na negociação do primeiro protetorado francês sobre Porto-Novo — que teria vida curta.116 Na própria Uidá, o brasileiro J. C. Muniz 113 114 115 116 117 PP, Slave Trade 1850-1, Class A, incl.3 no no 198, Forbes, 6 de abril de 1850; PRO, FO2/7, Frazer, Commercial Report, 1852; FO84/886, Louis Frazer, Occurrences, gossip &c. at Whydah, 20 Jan. 1852. Em 1854, Martins prometeu fornecer azeite aos britânicos ao preço de 4½ galões por dólar (i.e. $4 por medida de 18 galões), mas então subiu o preço para 3 galões por dólar ($6 por medida): PP, Slave Trade 1854-5, Class B, no 32, Campbell, 7 de dezembro de 1854. PP, Slave Trade 1858-9, Class B, no 17, Campbell, 7 de fevereiro de 1859. C.W. Newbury, The Western Slave Coast & its Rulers (Oxford, 1961), 64. Correspondência de Santos, no 88 [31 Jan. 1863]; também nos 97, 103 [26 de julho de 1863, 3 de maio de 1864, endereçada a Lartigue]. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 68 formou, claramente, uma parceria similar com o agente local da Régis, Jules Lartigue; quando este retornou para a França, deixou Muniz para tocar seus negócios — ainda assim, quando Muniz morreu, em fevereiro de 1863, deixando seus negócios numa confusão, José Francisco dos Santos, que era um de seus credores, teve de escrever para Lartigue, na França, para garantir o recebimento do que lhe era devido.117 Na geração seguinte, os filhos dos principais comerciantes brasileiros serão encontrados, não mais como negociantes independentes, mas como agentes subordinados de firmas européias. Nos anos 1870, por exemplo, o filho de Santos, Jacinto da Costa Santos, estava atuando como agente da firma inglesa Swanzy.118 Mais tarde, nos anos 1880, após esta firma ter se retirado do comércio de Uidá e vendido suas propriedades de lá para a firma alemã Goedelt, de Hamburgo, um filho de Medeiros, Julio Medeiros, serviu, igualmente, como agente desta última.119 Estes processos de ajustes comerciais também interagiram com o contexto político em transformação, tanto em termos da política africana local — especialmente com as relações cada vez mais problemáticas da comunidade brasileira em Uidá com a monarquia daomeana — quanto em termos da diplomacia internacional, com o crescimento da intervenção imperialista da Grã-Bretanha, França e Portugal. Política local: os brasileiros e a monarquia daomeana Embora tenha sido, inicialmente, uma reação a mudanças de oportunidades no mercado, quando da reaparecimento da demanda por parte de Cuba, a revitalização do tráfico de escravos no final dos anos 1850 também refletia divisões políticas internas ao Daomé, mais abertamente expressas na disputa pela sucessão real, que se seguiu à morte do Rei Gezo em 1858. A promoção do comércio de azeite de dendê por parte de Gezo, nos anos 1850, tinha sido acompanhada por uma consciente minimização 118 Foà, Le Dahomey , 33. Turner, “Les Brésiliens”, 303. 120 Robin Law, “The politics of commercial transition: factional conflict in Dahomey in the context of the ending of the Atlantic slave trade”, Journal of African History, 38 (1997), 213-33. 119 Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 69 da importância do tradicional militarismo daomeano, o que tinha provocado a oposição dos elementos tradicionalistas da elite dirigente, com a qual o herdeiro presuntivo Badahun (que subiu ao trono como rei Glele em 1858) estava associado.120 Esta interpretação da divisão faccionária no Daomé foi recentemente questionada por Edna Bay, que afirma que o conflito sobre a acessão de Badahun/Glele refletiu uma luta interna pelo poder, e não divergências sobre a política comercial ou externa.121 Mas estas interpretações não são contraditórias, na medida em que diferenças políticas iriam inevitavelmente tender a se cristalizar em torno de pontos da tensão estrutural da classe dirigente. Até que ponto os brasileiros, ou de forma mais ampla, a comunidade mercantil de Uidá, estava envolvida nestas divisões faccionárias é algo que permanece incerto. Não há evidências explícitas de que os brasileiros ou os comerciantes nativos tenham desempenhado qualquer papel direto na disputa pela sucessão de 1858. Todavia, há evidências do descontentamento em Uidá nos primeiros anos do reinado de Glele. Em 1860, por exemplo, o cônsul britânico em Lagos informou que o novo rei do Daomé era “malquisto em Uidá, seu governo sendo mais intolerável que o de seu pai”, e chegou a sugerir que “no presente momento, pouco estaria faltando para uma revolta contra a autoridade de Guelele”. Embora tal afirmação possa ter sido a expressão do desejo do próprio cônsul, ela tem suporte no próximo testemunho. A Missão Metodista inglesa em Uidá, em 1861, também achava que Glele estava “agora se tornando odioso para muitos de seu povo”, por isso “inúmeros deles estão deixando seu território na costa marítima”. Da mesma maneira, o cônsul Burton, em 1863-4, informou que: “O povo de Uidá está cansado de guerras e impostos, e muitos estão fugindo, com suas esposas e suas famílias, para as províncias adjacentes”; ele se referia, especificamente, a quarenta famílias que tinham, recentemente, fugido de Uidá para Por121 122 Edna G. Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahomey (Charlottesville, 1998), 263-73. Bay rejeita as informações contemporâneas de uma ruptura entre Gezo e Badahun, e argumenta que a oposição à acessão deste último refletiu a luta pelo controle da sucessão real no seio da família real e principalmente na organização feminina palaciana. PP, Slave Trade 1860, Class B, no 8: Consul Brand, Lagos, 18 de abril de 1860; WMMS, Henry Wharton, Cape Coast, 13 de agosto de 1861; PP, Slave Trade 1864, Class B, no 19: Burton, 23 de março de 1864; Burton, Mission, ii, 85, n. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 70 to-Novo, a leste, colocado, há pouco, sob protetorado francês, “como uma terra de liberdade”.122 O êxodo de Uidá, relatado nestas fontes, envolveu, em parte, escravos empregados localmente, que agora temiam ser vendidos para exportação para Cuba (e também, talvez, capturados para sacrifício nas cerimônias fúnebres para o falecido Rei Gezo). Mas o descontentamento em Uidá estendia-se, claramente, para além dela, incluindo a população, de forma mais geral, e, certamente, a rica classe mercantil em particular. Na verdade, a acessão de Glele foi marcada por um espetacular rompimento com uma das principais famílias mercantis de Uidá, os Souza. O segundo Chachá, Isidoro de Souza, havia morrido em 1858, pouco antes do próprio Rei Gezo. Gezo, inicialmente, tinha indicado um dos irmãos mais novos de Isidoro, Antônio “Kokou”, para sucedê-lo, mas Antônio provocou o descontentamento real. De acordo com o registro feito por Burton alguns anos depois, Antônio era “um homem dissoluto, rico, esbanjador, intolerante; possuía milhares de escravos armados e treinados; construíra um palacete misturando aguardente, e não água, na argamassa, desejando imitar o Rei, que, para tal finalidade, usa sangue, e ameaçava compelir Gezo tornar-se cristão a força”; a tradição familiar também relembra este rompimento com a autoridade real, recordando que ele empregou seus servidores armados para defender os membros da família contra a expropriação e aprisionamento pelos agentes do rei.123 Burton comenta que “sua carreira foi curta”; isto, provavelmente, significa que ele foi demitido, e não assassinado, uma vez que a tradição familiar insiste em que, ao contrário de muitos de seus irmãos, ele morreu de causas naturais. Todavia, é certo que ele faleceu logo em seguida.124 O título de Chachá foi, então, conferido ao terceiro dos filhos proeminentes de Souza, Ignácio, mas ele também não durou muito: de acordo com Burton, por volta de 1859-60 (portanto, após a acessão de 123 124 125 Burton, Mission, i 105-6; evidência oral, Balbina de Souza, vila residencial Antônio Kokou de Souza, Ouidah, 12 de dezembro de 2001. Simone de Souza, La Famille de Souza, 60, sugere que Antônio Kokou viveu até cerca de 1883; mas não há referências claras a ele nas fontes da época, após os anos 1850. Burton, Mission, i, 91-2 (datando de “quatro anos atrás”). A tradição familiar informa a data de morte de Ignácio como sendo 1860: Simone de Souza, La Famille de Souza, 150. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 71 Glele) ele foi acusado de fornecer informações para o esquadrão antitráfico britânico, e “desapareceu misteriosamente”; sua propriedade de Kendji em Uidá foi “invadida”; Burton a viu, em 1864, ainda em ruínas.125 A maneira precisa como a remoção de Antônio e o assassinato de Ignácio de Souza possam estar conectados com as disputas, na capital, acerca da reativação do tráfico de escravos, é algo que permanece obscuro. A acusação contra Antônio sugere um desafio direto à autoridade real, uma reivindicação de independência, e não divergências acerca de política. Todavia, a acusação contra Ignácio, identificando-o com a campanha antiescravista britânica, quer tenha sido isto uma verdade factual, quer não, é algo que o liga efetivamente, por implicação a esta luta política mais ampla. De acordo com um relato posterior, na crise que se seguiu à morte de Isidoro, o Rei Glele indicou, inicialmente, outro dos irmãos Souza, um segundo Antônio, este apelidado “Agbakoun”, para o cargo de Chachá, mas a indicação foi anulada após protestos de outros comerciantes de Uidá;126 presumivelmente esta indicação fracassada seguiu-se à derrocada de Antônio e Ignácio. Ao contrário deste último, no entanto, Antônio “Agbakoun” não foi assassinado, mas viveu até os anos 1880.127 O título de Chachá foi, finalmente, concedido a outro irmão, que tinha o mesmo nome do pai, Francisco, mas distinguia-se pelo apelido de “Chico”. Ele não tinha se destacado anteriormente em Uidá, e consta que vivera como comerciante em Agoué, a oeste, antes de sua indicação.128 A família Souza, naquele momento, estava, evidentemente, atravessando uma fase de considerável desordem interna. Um membro mais jovem da família, Jerônimo Félix de Souza, que, em 1861 se apresentou 126 127 128 129 130 Foà, Le Dahomey , 30-1. Ele morreu, segundo se afirmou, envenenado, logo depois da prisão e assassinato de seu irmão, o Chachá Julião de Souza, em 1887: Foà, Le Dahomey, 44. Foà, Le Dahomey , 31. Larry Yarak, “New sources for the study of Akan slavery and slave trade: Dutch military recruitment in the Gold Coast and Asante, 1831-72”, in Robin Law (ed.), Source Material for Studying the Slave Trade and the African Diaspora (Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1997), 59, no 70. PP, Slave Trade 1860, Class B, no 8, Brand, 18 de abril de 1860; Burton, Mission, i, 106. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 72 em Elmina, o quartel general holandês na Costa do Ouro, para se alistar a serviço do exército colonial holandês em Java, explicou que fez isto para escapar de “maus-tratos” por parte de sua própria família, após a morte de seus pais.129 Presumivelmente, este Jerônimo era filho de Isidoro, Antônio ou Ignácio. Embora o posto de Chachá tivesse sobrevivido, era agora de pouca importância política ou comercial, significando nada mais que a liderança da família Souza: em 1860, dizia-se que o cargo significava “pouco mais que um nome”, e, em 1864, que o Chachá tinha “pouco poder”.130 Por esta mesma época, de fato, o posto de Chachá tinha, efetivamente, sido suplantado como cabeça da hierarquia comercial em Uidá, com a indicação de um comerciante nativo, Azanmado Houénou, um inimigo figadal dos Souza, como “chefe dos comerciantes”.131 Outros importantes comerciantes brasileiros de Uidá abandonaram a cidade neste período; o mais proeminente deles foi Jacinto José Rodrigues, que deixou Uidá nos anos 1860 e foi para Porto-Novo a leste, onde veio a falecer em 1882.132 Um outro, Pedro Félix d’Almeida, fugiu para Pequeno Popó a oeste, depois da disputa sobre o pagamento de taxas.133 Provavelmente, a principal razão para o descontentamento em Uidá, nos anos 1860, como sugere o caso de Pedro Félix d’Almeida, foi indignação com a taxação, que aumentara sensivelmente nesta época. A comunidade mercantil de Uidá também sofreu com a rigorosa aplicação do imposto real sobre a herança. Entre os principais comerciantes brasileiros, por exemplo, a propriedade de Martins foi confiscada para o rei quando da sua morte em janeiro de 1864, sendo a chave de sua casa apropriada pelas autoridades locais. 134 Quando Francisco José de Medeiros morreu, em 1875, a tradição da família relembra, igualmente, 131 132 133 134 135 136 Para maiores detalhes e contexto, ver Robin Law, “The origins and evolution of the merchant communiy in Ouidah”, em Robin Law & Silke Strickrodt (eds), Ports of the Slave Trade (Bights of Benin and Biafra) (Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1999), 55-70. Reynier, “Ouidah”, 45: este informa como data de sua mudança para Porto-Novo 1862, mas Burton, em 1864, ainda o considerava como residente em Uidá e Porto-Novo. Turner, “Les Brésiliens”, 109-10. Este D’Almeida não era “brasileiro” de nascimento, mas um africano nativo (de Pequeno Popó), trazido para a casa dos Souza. Burton, Mission, i, 73. Idem, ibidem. Fleuriot de Langle, 7 de outubro de 1866, citado em Bernard Schnapper, La politique et le commerce français dans le Golfe de Guinée de 1838 à 1871 (Paris, 1961), 192, n.1. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 73 que sua propriedade foi “saqueada pelos daomeanos”.135 O incremento na taxação, na década de 1860, foi, provavelmente, em parte uma conseqüência do custo das cerimônias fúnebres para o Rei Gezo, e também das expedições militares de Glele. Mas elas também refletiam as dificuldades financeiras causadas à monarquia pela transição do tráfico de escravos para o comércio de azeite de dendê. Um observador francês em 1866 tornou a conexão explícita: “O rei está se tornando cada dia mais pobre desde o término do tráfico de escravos; ele considera aceitáveis quaisquer métodos para obter dinheiro”.136 Além destes aspectos fiscais, também há evidências de que o revigoramento do tráfico de escravos e do militarismo daomeano, a partir de 1857, teve como efeito a desestruturação do comércio de azeite de dendê, uma vez que a mobilização da população para o serviço militar drenava força de trabalho necessária para a produção agrícola. Em 1862, por exemplo, foi relatado que “no Reino do Daomé, a agricultura está paralisada e o comércio legítimo próximo do nada”, porque “a população das aldeias está [...] sujeita a ser convocada a qualquer momento para partir em alguma expedição de caça a escravos”. E, novamente em 1866, foi dito que “o atual rei, devido às suas guerras e contínuas cerimônias, está irritando as pessoas, que estão sendo obrigadas a passar grande parte do ano na capital, arruinando o comércio ao tornar a exploração das palmeiras quase impossível”.137 Embora relatado em termos gerais, parece que estas reclamações refletem, principalmente, a opinião da comunidade mercantil de Uidá, incluindo aqueles brasileiros que tinham passado a se dedicar ao comércio de azeite de dendê. Essas dificuldades, com que se deparavam os comerciantes “legítimos” nos primeiros anos do reinado de Glele, são ilustradas pelo que se conservou da correspondência de José Francisco dos Santos. No final de 1864, o Rei Glele proibiu a venda de azeite de dendê para europeus, uma proibição mantida por pelo menos 50 dias, a fim de que ele próprio pudesse comprar todo o azeite (presumivelmente, a preços baixos), a fim de financiar o resgate de guerreiros capturados numa recente derrota do 137 138 PP, Slave Trade 1862, Class B, no 21, Freeman, 1 de julho de 1862; M. Béraud, “Note sur le Dahomé”, Bulletin de la Sociéte de la Géographie, 5th series, 12 (1866), 375-6. Correspondência de Santos, no 105 [19 Jan. 1865]. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 74 exército daomeano em Agbeokuta. Santos também reclamou, de forma mais genérica, da incapacidade do rei em honrar seus débitos: “o Rei do Daomé também está se revelando um ladrão! Ele compra e não paga”; ele devia a Santos pelo tabaco de três diferentes embarques, e também alguns milhares de dólares”, correspondentes aos búzios que ele tinha emprestado ao rei para resgatar os prisioneiros “e que agora ele se recusa a me pagar”.138 De fato, parece claro que o término do tráfico de escravos tendeu a multiplicar as tensões entre os comerciantes brasileiros e a monarquia daomeana.139 Enquanto que no tráfico de escravos havia uma essencial complementaridade de interesses entre ambos — com a monarquia suprindo escravos que os brasileiros vendiam —, no comércio de azeite de dendê, a monarquia e os brasileiros se tornaram competidores, uma vez que tanto a primeira quanto os segundos podiam e entraram na produção do azeite para exportação, como indicado acima. Esse antagonismo foi acentuado pelo aumento das exigências fiscais sobre a comunidade mercantil de Uidá, o que também refletia as dificuldades financeiras causadas à monarquia pela transição comercial. Política internacional: os brasileiros e o proto-imperialismo europeu A era da transição comercial, com a supressão do tráfico de escravos brasileiro e cubano, foi também marcada pelo começo da intervenção imperialista nos assuntos daomeanos. A reação dos brasileiros de Uidá ao declínio do tráfico de escravos também deve ser relacionada com as ameaças e as oportunidades que esta crescente intromissão européia trazia consigo. A posição de liderança, neste proto-imperialismo, foi assumida pela Grã-Bretanha, no curso de sua campanha para suprimir o tráfico atlântico de escravos. A pressão britânica sobre o Daomé para a assinatura de um tratado antitráfico de escravos culminou, como já foi visto, 139 140 Cf. Bay, Wives of the Leopard, 280-1. Para um relato completo, ver Robin Law, “An African response to Abolition: Anglo-Dahomian negotiations on ending the Slave Trade, 1838-77”, Slavery & Abolition, 16 (1995), 281-310. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 75 no bloqueio naval de 1851-2 e também incluiu a permanência de um vice-consulado em Uidá, instalado no antigo forte britânico, entre 1849 e 1852.140 O confronto da Grã-Bretanha com o Daomé pareceu, num primeiro momento, oferecer aos brasileiros a possibilidade de uma aliança externa alternativa. Quando o bloqueio naval foi imposto, em dezembro de 1851, pelo menos alguns membros da comunidade brasileira pensaram que, na disputa, poderiam optar por ficar do lado dos britânicos. O vice-cônsul britânico informou que Antônio de Souza “deseja colocarse sob a proteção britânica” e também que “os libertos da Bahia” o tinham abordado para pedir “proteção britânica”. Todavia, isto não deu em nada, pois o vice-cônsul não se sentiu capaz de estender sua proteção a cidadãos não-britânicos.141 E, após 1852, os interesses britânicos no Daomé minguaram, tendo o vice-consulado sido abandonado e transferido, naquele ano, para Lagos. Das outras duas potências européias com interesses no Daomé, a França, embora viesse, mais tarde, a se tornar um conquistador colonialista, estava, de fato, pouco engajada nos assuntos daomeanos antes dos anos 1860, e mesmo depois, sua atenção foi dirigida principalmente para Porto-Novo e não para o Daomé. Para a comunidade brasileira nos anos 1860, a mais importante conexão européia alternativa era com os portugueses. Os Souza, em particular, tinham sempre conservado sua nacionalidade portuguesa, ao invés da brasileira; e no contexto do fim do tráfico de escravos para o Brasil, esta aliança portuguesa ofereceu as bases para uma identidade alternativa e orientação externa. Em outubro de 1851, o segundo Chachá, Isidoro de Souza, contatou o governador português de São Tomé, assegurando para si a indicação formal como comandante do forte português e, em abril de 1852, o governador visitou pessoalmente Uidá para confirmar a indicação.142 Na crise interna da família Souza, que se seguiu à morte de Isidoro em 1858, a reivindicação para comandar o forte português parece ter desaparecido. 141 142 143 PRO, FO84/886, Frazer, Occurrences, 27 de dezembro de 1851. Carlos Eugenio Corrêa da Silva, Uma viagem ao estabelecimento portuguez S. João Baptista de Ajudá da Costa da Mina em 1865 (Lisbon, 1865), 81, 130. Corrêa da Silva, Viagem. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 76 Em 1861, a ocupação do forte foi usurpada pelos missionários da Sociedade Francesa das Missões Africanas, tendo sido expulso, no processo, o padre português de São Tomé, que eles encontraram ocupando o local. Mas, em 1865, o Chachá Francisco “Chico” restabeleceu a conexão, recebendo novamente o governador de São Tomé em Uidá, e garantindo sua indicação como comandante do forte português, do qual os missionários franceses foram, então, despejados.143 Esta política foi também seguida por seu sucessor, Julião de Souza, através de sua malfadada promoção de um protetorado português sobre o Daomé em 1885-7. A conexão portuguesa pode ter sido buscada pelos Souza, em parte como um contrapeso à ameaça da influência britânica (e, mais tarde, francesa): em 1851-2, Isidoro certamente tentou usar seu recém adquirido status oficial para desafiar o bloqueio britânico sobre Uidá, embora suas credenciais tenham sido desconsideradas pelo vice-cônsul britânico.144 No entanto, tendo em vista o relacionamento cada vez mais desgastado da comunidade brasileira com a monarquia daomeana a partir dos anos 1850, parece provável que, nesta busca por reconhecimento e suporte externo, houvesse um elemento de busca de proteção contra a autoridade nativa. A médio prazo, contudo, como o destino de Julião de Souza veio provar, esta foi uma estratégia inútil; uma vez que, a não ser no caso de uma real conquista militar, a monarquia daomeana não era sensível a pressões externas. 144 PRO, FO84/886, Isidoro de Souza to Frazer, 22 de dezembro de 1851; also Frazer, Occurrences, 15, 25 & 27 de dezembro de 1851. Afro-Ásia, 27 (2002), 41-77 77 A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: UM BALANÇO COMPARATIVO DA PRODUÇÃO HISTÓRICA SOBRE A REGIÃO DA GUINÉ-BISSAU SÉCULOS XVII E XIX. Philip J. Havik* C omo alguns estudiosos afirmaram, com pertinência, os conceitos de parentesco e gênero não podem estar separados quando se estudam relações sociais.1 Eles são mutuamente construídos e fundados numa visão específica — andro e viricêntrica —, da sociedade, assim como na reprodução biológica. Gênero e parentesco não podem ser considerados como algo apartado dos conceitos de cultura e de mudança histórica e das desigualdades existentes na sociedade.2 Esta observação é de particular importância para um entendimento das representações das interações interculturais entre diferentes sociedades e de sua evolução histórica. Ao assumir que gênero e parentesco são socialmente construídos, queremos demonstrar a natureza dinâmica de tais categorias, para além das divisões geográficas e culturais, e ao longo do tempo. As noções de diferença e de desigualdade social variam através das * Professor da Universidade de Leiden, Holanda e do Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, Portugal. Versão modificada de comunicação apresentada no 43º Annual Meeting of the African Studies Association, Nashville, 16-19 de novembro de 2000. Tradução: Valdemir Zamparoni. 1 Jane F. Collier & Sylvia J. Yaganisako, “Toward a unified analysis of gender and kinship”, in: Collier & Yganisako (orgs), Gender and Kinship: essays toward a unified analysis (Stanford, Stanford University Press, 1987), pp. 14-50. 2 Idem, ibidem, pp. 39-48. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 79 fronteiras naturais e políticas. Quando observamos diferentes sociedades, e os seus membros individualmente considerados, ao longo dos séculos, verificamos que as fontes suscitam algumas questões importantes. Entender relações conjugais e de descendência torna-se um exercício problemático, uma vez que as fontes escritas contêm inúmeras lacunas e preconceitos. Ao tratar do passado distante, o uso de relatos de viagem e de documentação de arquivo é essencial, a fim de que se possa obter informações acerca das tradições e práticas das sociedades em questão. Entretanto, a maioria dessas fontes primárias escritas foi produzida com o objetivo de satisfazer as ambições e compromissos de seus autores. Elas expressam uma relação triangular entre o autor, o receptor e o sujeito, mediada pelo primeiro. Portanto, ao usar este tipo de informação como a fonte principal para o estudo sobre relações de parentesco e gênero, deve ser sempre levada em conta a importância dos relacionamentos hierárquicos que determinaram as concepções presentes. Quando o assunto tratado encontra-se além do horizonte cultural do autor da fonte, emerge a questão da alteridade, do relacionamento entre o escritor e o “outro”. A necessidade da desconstrução das categorias e referentes torna-se, então, imperativa. Quando estudadas num contexto comparativo, as relações de gênero e de parentesco revelam o papel desempenhado pelos fatores temporais na configuração das representações, sobretudo se considerarmos que a maioria das fontes escritas foi produzida por homens de determinadas camadas sociais, que davam importância fundamental às linhas consangüíneas patrilineares e aos ideais de honra masculina e subserviência feminina. Neste paradigma transcultural, as descrições retóricas da África e dos africanos são associadas ao corpo feminino e a noções de feminilidade. Uma vez que foram combinados com ideais de “embranquecimento”, essas representações relacionaram diferença e desordem com um gênero feminino africano imaginado.3 No caso da África Ocidental, essas idéias preconcebidas chocaram-se com as práticas 3 Kim F. Hall, Things of Darkness: economies of race and gender in early modern England, Ithaca, Cornell University Press, 1995, pp. 25-61. Para um olhar sobre o outro lado do Atlântico, vide Mary Del Priore, Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia, Rio de Janeiro, José Olympio Ed., 1993. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 80 matrilineares e matrifocais, que foram vistas como desviantes da norma patriarcal. A confusão de categorias e o desnorteamento dos forasteiros com relação ao “outro”, culturalmente diferente, foram intensificados por processos de miscigenação, de casamentos mistos, de coabitação. Esses modos de interação social foram eufemisticamente resumidos no conceito lusófono de convivência.4 Devido à sua natureza sensível, a descrição — e posterior reconstrução — das relações interculturais tornou-se um tema altamente controverso, tanto na antropologia quanto na história portuguesa, sobretudo durante o Estado Novo (1926-1974).5 Temas afins, tais como gênero, foram também abordados no que diz respeito ao “império” português, mas somente de maneira incidental e por poucos autores.6 Assim, permaneceu uma separação artificial das disciplinas acadêmicas, que barrou o caminho para um entendimento interdisciplinar dos processos históricos de mudança social. O foco, entretanto, voltou-se inexoravelmente para o estudo do impacto do colonialismo nas representações. Entretanto, a emergência da literatura preocupada com a dissecação das noções androcêntricas da África centrou-se, sobretudo, nos “impérios” britânico e francês.7 Como conseqüência, alguns estudiosos começaram a defender uma completa revisão da apreciação das mudanças culturais por meio da migração e da miscigenação. Eles contestaram as idéias de pureza profundamente incrustadas no pensamento etnológico, fortemente influenciado pelo contexto do colonialismo e pela combinação de noções eugênicas e genealógicas de parentesco.8 Tão logo o trabalho de campo levou ao desmantelamento de tais preconceitos formulados nos gabinetes, as pesquisas realizadas nas 4 5 6 7 8 A. J. R. Russel-Wood, The Portuguese Empire, 1415-1808: a world on the move, Baltimore, John Hopkins Press, 1998, p. xxi Vide V. Magalhães Godinho, História Económica e Social da Expansão Portuguesa, Lisboa, Ed. Terra, 1947; Ralph C. Boxer, Relações Raciais no Império Colonial Português, 14151825. Porto, Afrontamento, 1977. Alfredo Margarido “Algumas Formas da Hegemonia Africana nas Relações com os Europeus”, in: Relações Europa-África no 3º Quartel do século XIX (Seminário do Instituto de Ciência Tropical, Lisboa, 1989), pp. 383-406; Ralph C. Boxer, A Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica - 1415 -1815. Lisboa, Livros Horizonte, 1977. Philip D.Curtin, Image of Africa, Madison, University of Wisconsin Press, 1964; Christopher L.Miller, Blank Darkness; Africanist discourse in French, Chicago, University of Chicago Press, 1985. Jean-Loup Amselle, Mestizo Logics: anthropology of identity in Africa and Elsewhere, Stanford, Stanford University Press, 1998, pp. 5-24. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 81 últimas décadas com fontes escritas também contribuíram para desafiar os conceitos de diferença cultural, até então profundamente arraigados. Recentes exemplos, no caso português, buscam desconstruir certos conceitos “modernos” tais como abolicionismo e eugenia.9 O reconhecimento da existência da pluralidade de culturas muito contribuiu para a compreensão do significado daqueles indivíduos que alguns, inadequadamente, chamavam de “intermediários” e que, no passado, tinham servido como informantes para os estrangeiros.10 Ao se centrar nessas categorias sociais híbridas, que desafiavam a dicotomia negro-branco, foram reveladas tanto a tensão entre expansão e aculturação, quanto a importância da reciprocidade cultural. Na verdade, os próprios autores das fontes, em sua maioria administradores, missionários ou comerciantes, eram então identificados com as comunidades que emergiram no contexto da interação e comércio afro-atlântico e, ao mesmo tempo, pejorativamente descritos como uma “casta difícil”, dominada por lealdades divididas, que se colocava no caminho da expansão e da conversão. Na África, as invectivas eram, sobretudo, dirigidas às “mulheres más” que juntamente com os “homens desajustados”, supostamente minavam os interesses europeus no continente. Na África pré-colonial atlântica, os forasteiros foram obrigados a se adequar aos valores locais, do casamento à escravidão doméstica. Os avanços da ciência e da exploração, no século XVIII, e a transição do comércio de escravos para o de produtos agrícolas, no XIX, assinalaram a mudança na ênfase da aculturação dos africanos nas plantações distantes de suas terras para um foco nas suas sociedades na África. O medo que a libertação dos escravos instilou nos círculos atlânticos, que tinham controlado o “Atlântico negro”, deu alento às teorias socialdarwinistas que dividiram os povos consoante linhas eugênicas. Mas, uma vez que o controle sobre o continente ainda lhes escapava, tinham de contar com os tais “grupos intermediários” que, anteriormente, tinham sido condenados por sua ambivalência. Sob esta nova ótica, as 9 10 João Pedro Marques, Os Sons do Silêncio: o Portugal de oitocentos e a abolição do tráfico de escravos, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1999; Ricardo Roque, Antropologia e Império: Fonseca Cardoso e a expedição à Índia em 1895, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2001. Adam Jones & Beatrix Heintze, “Introduction”, in: Heintze & Jones (orgs.) “European Sources for Sub-Saharan Africa before 1900: use and abuse”, Paideuma, 33, 1987, 1-17. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 82 ligações interculturais seriam bem vindas somente se contribuíssem para a consolidação dos objetivos nacionais, isto é, se facilitassem o acesso à terra e à força de trabalho. A mudança na valoração das relações de parentesco e gênero é patente na emergência das “grandes mulheres” e “grandes homens”, terminologia que foi empregada para as sociedades da África Ocidental no século XIX.11 Rainhas — isto é, rainhas-mães — comerciantes ou nobres, estas mulheres e homens têm, desde então, servido como paradigmas para distintos conceitos de poder e autoridade.12 Uma perspectiva patriarcal foi, então, dada às parcerias entre mulheres africanas e homens atlânticos responsáveis por extensas redes, que incluíam chefes africanos (régulos) e casas comerciais européias. Como a corrida para a África parecia anunciar a sua iminente colonização, a ocupação, e não o comércio, era vista como a portadora da civilização e o meio para, finalmente, explorar as riquezas africanas. Diante disso, a miscigenação e o casamento misto ficaram, mais uma vez, sob a suspeição de um estado colonial determinado a regular a desordem e a impor a diferença. A existência de um padrão binário de idéias culturalmente definidas, sempre sujeitas a mudanças baseadas na expansão política e econômica, de um lado, e em processos de imersão social e cultural, de outro, é aqui assumido como meio para analisar o impacto sobre as representações acerca das comunidades afro-atlânticas e os seus representantes durante um período de dois séculos. A área que tem sido chamada de “Guiné de Cabo Verde” ou “Costa da Alta Guiné”, que se estendia do Senegal ao rio Sherbro (atualmente Serra Leoa), fornece numerosos exemplos de como os relacionamentos entre mulheres locais e homens “atlânticos” foram vistos de forma diferente ao longo do tempo. No caso da região da Guiné-Bissau13, muitos dos empreendedores locais tinham an11 12 13 Vide um balanço da literatura em Frances E. White, “Women in West and West-Central Africa”, in Frances E. White & Íris Berger, Women in Sub-Saharan Africa; restoring women to history, (Bloomington, Indiana University Press, 1999), pp. 63-129. Vide Flora Edouwaye Kaplan, Queens, Queen Mothers Priestesses and Power: case studies in African gender, New York, The New York Academy of Sciences, 1997, e também Edna G. Bay Wives of Leopard: gender, politics and culture in the Kingdom of Dahomey, Charlottesville, University of Virginia Press, 1998. A região da Guiné-Bissau é aqui definida como a área entre a Gâmbia e o Rio Nunez na África Ocidental. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 83 tepassados guineenses e cabo-verdianos, mas foram todos agrupados como “portugueses”, moradores ou cristãos. Baseados em entrepostos comerciais, mas demonstrando uma notável mobilidade espacial e social num ambiente extremamente competitivo, sua atividade, altamente competente, impressionou os visitantes europeus e os anfitriões africanos. Os estudos de caso apresentados a seguir, que examinam algumas destas parcerias entre mulheres e homens, são baseados em dados extraídos de fontes documentais de diferentes períodos, e ilustram a osmose entre contexto e representação. O primeiro exemplo é do século XVII, quando um grupo de poderosos comerciantes locais desafiou, com sucesso, a política da Coroa Portuguesa numa área em que o tráfico de escravos constituía uma importante fonte de renda. O segundo situa-se no século XIX, quando o tráfico de escravos foi dando lugar às exportações de produtos agrícolas, e quando os clãs mercantis locais passaram a negociar o usufruto da terra para o cultivo de exportação. Estes períodos têm sido objeto de inúmeras publicações de especialistas, incluindo Walter Rodney, Avelino Teixeira da Mota, António Carreira, Jean Boulègue e George Brooks.14 Todavia, a despeito de seus esforços e do escrutínio das evidências documentais, ainda persistem muitas lacunas que requerem esclarecimento. Por meio de uma perspectiva comparativa, a discussão dos casos aqui apresentados tem a intenção de demonstrar a natureza dinâmica das representações. A ação feminina e masculina nos espaços afro-atlânticos foram classificadas — por homens, uma vez que todas as fontes foram exclusivamente por eles produzidas, agindo como oficiais militares, comerciantes e missionários — de diferentes formas, de acordo com os recursos empregados e os interesses envolvidos. Em ambos os casos, as fontes são portuguesas, e o contexto é o da rivalidade e da competição — intra-européia e afro-atlântica — pelo espólio do comércio. A lista de 14 Walter Rodney, A History of the Upper Guinea Coast, 1545 to 1800, Oxford, The Clarendon Press, 1970; Avelino Teixeira da Mota, “Contactos Culturais Luso-Africanos na Guiné do Cabo Verde”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, nos 11-12, 1951, pp. 5-13; António Carreira, Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900), Lisboa, ed. do autor, 1984; Jean Boulègue, Les Luso-Africains de Sénégambie, XVIeXIXe siècles, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989; George E. Brooks, “Historical Perspectives on the Guinea Bissau region, fifteenth to nineteenth centuries”, in: Vice-Almirante Teixeira da Mota, In Memoriam, vol. I, Lisboa, Academia da Marinha, 1984: 277-304. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 84 Detalhe da região da Guiné. Baseado em Antonio Carreira, “A Etnonimia dos povos de entre o Gâmbia e o Estuário do Geba”, in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. XIX, 75, pp. 233-75. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 85 atores em questão inclui desde os descendentes das linhagens nativas dirigentes até os comerciantes relacionados aos gan — do kriol, ou crioulo, da Guiné: povoado ou clã — mercantis operando nos entrepostos da região. Ao centrar o estudo nas parcerias empresariais, queremos sublinhar o papel central que o gênero e o parentesco desempenharam ao nível das práticas e representações do comércio e da interação afro-atlântica, numa região que quase não tem sido explorada em termos de estudo e pesquisa.15 Ña Bibiana e Ambrósio Vaz Fortes imagens emanam dos documentos do século XVII sobre uma mulher comerciante chamada Bibiana Vaz de França, coloquialmente conhecida como Ña Bibiana (Ña no crioulo da Guiné, e também de Cabo Verde: senhora). Guineense de nascimento e membro de uma influente gan mercantil, estabelecida num desses entrepostos “portugueses” de comércio costeiro, ela ocupa um lugar especial nos escritos do último quarto do século XVII. Cacheu, situada numa posição estratégica na foz do rio do mesmo nome, naquela que hoje é chamada de Guiné-Bissau, mas que, então, era conhecida como “Guiné de Cabo Verde”, era, então, um importante porto de atração para traficantes de escravos, do qual estima-se que três mil escravos eram exportados anualmente. O lugar, onde anteriormente existia uma tabanka, ou seja, uma aldeia no território controlado pelos Pepel matrilineares, foi fortificado, nos anos 1580, por comerciantes privados, os chamados lançados com os negros e tangomaos ou tangomas. Eles geralmente tinham um ancestral caboverdiano na linha masculina, mas eram guineenses pela linha feminina, embora alguns tivessem ascendência portuguesa. A permissão para a fixação foi dada pelos Pepel, dunus di tchon em kriol (derivado do por- 15 O autor discutiu estas e outras parcerias em várias publicações, por exemplo: Philip J. Havik, “Comerciantes e Concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico na Costa da Guiné”, in: Fernando Albuquerque Mourão (org.) A Dimensão Atlântica de África, (Actas da II Reunião Internacional de História de África, São Paulo, CEA-USP/ SDG-Marinha/CAPES, 1997), pp. 161-179, e Philip J. Havik, “Matronas e Mandonas: parentesco e poder no feminino nos Rios de Guiné (século XVII)”, in: Selma Pantoja, Entre Africas e Brasis, (Brasília, Ed. Paralelo 15, 2001), pp. 13-34. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 86 tuguês “donos do chão”), aos ditos tangomaos, que viram a construção de uma fortificação como uma medida de proteção.16 Os dunus di tchon da comunidade Bañun, noutro lugar ao longo do Rio Cacheu, supostamente os tinham tratado mal e, além disso, eles também precisavam se proteger contra os ataques dos competidores rivais europeus. Os produtores locais forneciam gêneros alimentícios, tais como arroz, milhete, milho, carne, laticínios e sal para o sustento de seus habitantes. Após receber o “direito de cidade” da Coroa portuguesa (em 1605) e ter se convertido numa “capitania”, Cacheu logo se tornou o principal entreposto “português” para o tráfico de escravos, mas também exportava cera de abelha, marfim, panos de algodão e peles animais. Todavia, durante séculos, o reconhecimento do valor deste distrito militar (capitania) e fortaleza (presídio), por parte da monarquia portuguesa foi dificultado devido à objeção desta à presença de comerciantes privados que negociavam com nações européias rivais e deixavam de pagar impostos. Isto se deu precisamente devido ao controle que os tangomaos e seus descendentes, muitos com raízes sefaraditas e perseguidos pela Inquisição e pela Coroa, exerceram sobre grande parte das trocas comerciais na região, o que contrariava os interesses dos portugueses estabelecidos, que reclamavam direitos de monopólio sobre tal comércio. 17 A administração dessas cidades-fortalezas esteve, alternadamente, nas mãos de oficiais portugueses e africanos, geralmente recrutados no arquipélago de Cabo Verde e nos gan mercantis locais. Ao mesmo tempo, comunidades de africanos batizados, os então chamados “cristãos por ceremónia” ou kriston que incluíam uma população heterogênea, desde escravos domésticos até profissionais e comerciantes livres que tinham se estabelecido em áreas localizadas em torno da cidade fortificada, tinham seu próprio governo independente, dirigido pelos “juízes do povo”. No início do século XVII, Cacheu possuía vinte ou trinta “vizinhos” mas, nas últimas décadas do mesmo século, estimou-se 16 17 Os Pepel desempenharam um importante papel na história das relações afro-atlânticas, uma vez que o seu território sediava os dois mais importantes presídios da região, ou seja, Cacheu e Bissau, que ficava um pouco mais ao sul, no Rio Geba. Por séculos, eles resistiriam à penetração Atlântica, até que a ocupação militar de 1915 pôs fim à sua autonomia. Philip J. Havik, “Missionários e Moradores: na Costa da Guiné: os padres da Companhia de Jesus e os ‘portugueses’ no princípio do século XVII”, Studia, 56/57 (2000), pp. 223-262. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 87 um total de 400 a 500 “vizinhos”, um estatuto limitado aos que viviam como “portugueses livres”, isto é, que excluía os escravos.18 Documentos contemporâneos, entretanto, não deixam dúvidas sobre o seu alegado estado pecuniário lastimável, sugerindo que os habitantes ricos eram aqueles que viviam e comerciavam no interior.19 A presença de brancos residentes, nascidos na Europa, era ainda mais ínfima, indicando que os que se intitulavam “brancos” eram nascidos localmente, e simulavam sua brancura calçando sapatos.20 A taxa de mortalidade entre os residentes era apontada como sendo alta, de tal modo que, no início do segundo quartel do século XVIII só seis “moradores” estavam ainda registrados.21 Realçavam-se, assim, os problemas de aclimatização e das doenças tropicais, numa zona desprovida de qualquer apoio médico exterior.22 Essa camada social afro-atlântica, direcionada para a troca mercantil e a administração política, efetivamente ganhou o controle do comércio regional costeiro e fluvial entre o final do século XVI e o início do XVII. Nas primeiras décadas do século XVII, as autoridades caboverdianas protestaram contra a presença de “muita gente da nação”, isto é, judeus sefaraditas, que negociavam com os holandeses, ingleses e franceses, e tinham o seus próprios exércitos de escravos.23 Na época, a concorrência entre as nações européias, incluindo Portugal, França, GrãBretanha e Holanda, pelos lucros do tráfico foi ainda mais intensa, após quase um século e meio no qual traficantes “portugueses” exerceram o monopólio Atlântico. As redes de tangomaos eram baseadas no parentesco e coabitação com as linhagens governantes que controlavam os recursos humanos e materiais entre os grupos litorâneos, permitindo18 19 20 21 22 23 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 2, 26-9-1670. O termo “vizinhos”, mais do que simplesmente designar aqueles que vivem próximo um do outro, traz o significado de fogos ou unidades familiares. Nos estudos demográficos estes dados geralmente tem sido multiplicados por quatro quando se trata de Portugal, embora, para os padrões africanos, isto deveria resultar numa população entre 1600 e 2000 habitantes. AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 2, 30-6-1671; 24-4-1673; 18-6-1674 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 5, 10-6-1728 AHU, Cx. 5, Guiné, 10-5-1727 Estas questões, geralmente abafadas na correspondência oficial, só começam de ser abordadas no século XVIII, com os avanços da medicina; vide Curtin The Image of Africa, pp. 58-87. “Requerimento da Câmara de Santiago”, 1614, in: António Brásio, Monumenta Missionária Africana, IV, África Ocidental (1600-1622), 2ª série (Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1968), p. 563. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 88 lhes monopolizar o comércio fluvial com acesso baseado na terra. Cronistas contemporâneos associaram os “portugueses” à camada de mulatos que garantiam grande parte da renda do comércio regional.24 Por volta da segunda metade do século XVII, tinham emergido alguns gan que combinavam o acesso às rotas para o comércio Atlântico com vínculos certos com os fornecedores africanos locais. Os mais poderosos gan de Cacheu foram o Gomes, com origens sefaraditas, e o Vaz de França, relacionado aos grupos matrilineares Bañun e Pepel. Este último controlava as áreas ribeirinhas do Rio Cacheu e tinha em Farim sua principal fonte de comércio. Farim encontrava-se no limite das marés, no perímetro ocidental da confederação de Kaabú. Estando nas mãos dos Soninké, esta se desvinculou do império do Mali no século XVI, e exerceu um domínio incontestado sobre as rotas comerciais com a região do Alto Níger, no interior, até o século XIX.25 Redes comerciais marítimas eram, sobretudo, articuladas para a compra de noz de cola na região de Serra Leoa, mais ao sul, e a sua troca, com barras de ferro e sal, por escravos e ouro na área de Farim.26 A criação, por decreto real, mas com fundos privados, da Companhia de Cacheu, em 1676, tinha como intenção tomar conta deste lucrativo comércio. Protestos de várias partes de Cabo Verde e da Guiné já sugeriam que a companhia não era particularmente bem vinda pelos interesses afro-atlânticos locais.27 O principal obstáculo foi a proibição, por parte da companhia, aos “moradores” de Cabo Verde e das terras firmes, de comerciarem com os estrangeiros.28 Isto, a despeito dos apelos dos comerciantes de Cacheu no sentido de que o rei, D. João IV, deveria se “lembrar deste povo” e garantir-lhe a liberdade para participar do comércio transatlântico, como faziam os seus congêneres em Cabo Verde. Por fim, afirmaram que “como o nosso comércio é somente o resgate de escravos e senão tivermos saída para elles pela mesma via será impossível 24 25 26 27 28 29 D.O. Dapper, Description de l’Afrique, Amsterdam, Boom & Van Someren, 1686, pp. 228-245. Carlos Lopes, Kaabunké: espaço, território e poder na Guiné Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais, Lisboa, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1999. George E. Brooks, Kola Trade and State Building, Upper Guinea coast and Senegambia, 15th to 17th centuries, Boston, African Studies Center Working Papers, 1980. Daniel A. Pereira, “A Formação da Companhia de Cacheu (1671-1676)”, comunicação, Cacheu, Colóquio Cacheu, Cidade Antiga, 1988. Idem, ibidem, p. XXXVIII AHU, Guiné, Cx. 1, 19/5/1655. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 89 senhor podermos sustentar as nossas famílias”.29 Uma das pessoas mencionadas no decreto de criação da Companhia foi Ambrózio Gomes, marido de Ña Bibiana, um rico traficante de escravos, com raízes africanas e sefaraditas, que já tinha ocupado o posto de capitão-mor e era visto como um futuro diretor da companhia.30 Nascido em Cacheu em 1621, as suas raízes paternas apontam para a vila de Arroiolos, no Alentejo, onde passou uma parte da sua infância numa família de origem sefaradita. Sua mãe era originária das Ilhas Bijagó, situadas defronte à costa da atual Guiné-Bissau, que durante séculos foram importantes fontes de escravos.31 Ele era tido como alguém capaz de inspirar mais medo e respeito do que o então governador de Cacheu, um morgado — proprietário de terras — em Cabo Verde que estava encarregado da companhia. Desde os anos 1640, Ambrózio Gomes regularmente fez ouvir sua voz em Lisboa, reclamando do tratamento desigual dispensado aos comerciantes guineenses, em comparação com os cabo-verdianos. Uma fonte francesa descreveu-o, a ele e a seu filho Lourenço, como “negros, mas civilizados e respeitados em seu país”.32 Embora os dados biográficos sobre a vida de Bibiana sejam muito sumários, sabemos que ela nasceu no início do século XVII. As primeiras referências ao apelido Vaz, de origem cabo-verdiana, remontam ao século XVI e sempre estiveram associadas ao rio Gâmbia, conforme atesta uma menção ao primo de Ña Bibiana, Francisco Vaz de França em carta ao Rei escrita pelo então capitão-mor de Cacheu em 1647.33 Muito pouco se sabe de Ña Bibiana antes da morte do seu marido Ambrozio Go- 30 31 32 33 34 Pereira, “A Formação da Companhia”, p. XL. Veja, ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 2079 (1668), contra Crispina Peres de Cacheu. O pai de Ambrozio pode ter sido Manuel Gomes da Costa, natural de Lisboa, que tinha 36 anos em 1622, e comerciava escravos nas Ilhas Bijagó, enquanto “Teodosia Gomes que nunca casou, hé mãe do capitão Ambrozio Gomes (..) e hé negra Bujagó, bautizada e moradora na povoação de Cacheu”. Nize Isabel de Moraes, “La Campgane de Sto. António das Almas (1670)”, Bulletin de L’Institut Fondamentale de l’Afrique Noire, 40, 4 (1978), pp. 708-17. Veja a menção a Francisco Vaz, um alfaiate, que tinha um escravo chamado Gaspar Vaz no porto de Cassão (Kassan) no rio Gambia, em André Donelha, Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1625), (coord. de A.Teixeira da Mota e P.E.H. Hair), Lisboa, Junta de Investigações Científicas de Ultramar, 1977, p. 148. Veja ainda AHU, Guiné, 1a secção, Cx. 1, carta de Gonçalo Gamboa de Ayala ao Rei, Cacheu, 25-2-1647. Veja ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 2079 (1668) contra Crispina Peres de Cacheu. O réu refere-se ao “Ambrózio Gomes, capitão da terra cazada com Bibiana Vaz”. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 90 mes, além do fato de já estar casada nos anos sessenta.34 Embora faltem dados conclusivos acerca do seu casamento com Ambrózio Gomes, a aliança entre os dois gan foi significativa. Logo após a morte de seu marido, em 1679, uma disputa com o recém-indicado comandante militar de Cacheu, José de Oliveira, catapultou-a, já em idade avançada, para os livros de história. Ao fazer cumprir a “regra da exclusão”, que proibia todo comércio com os “estrangeiros” — holandeses, ingleses e franceses —, ignorando, assim, a recusa da comunidade mercantil local em reconhecer o contrato da companhia, o comandante precipitou a sua própria queda. Bibiana, seu irmão Ambrósio Vaz e seu primo Francisco armaram uma emboscada e o fizeram prisioneiro em 25 de março de 1684, assim que saiu da missa celebrada no hospício católico local. Ele foi algemado como um escravo e humilhado diante da comunidade de Cacheu, quando Bibiana declarou-o, publicamente, culpado de abuso de poder. A seguir foi mandado rio acima, para Farim, onde foi mantido por mais de um ano no apertado e escuro corredor de uma casa que Bibiana tinha lá. Pouco antes do “golpe”, os comerciantes de Cacheu tinham feito uma petição acusando-o de “injustiças, deshonras, tiranias, roubos e aleivosias” além de deslealdade e furto.35 Relatos posteriores claramente identificam Bibiana como a dirigente que estava por trás da conspiração. Foi dito que todos os encontros dos rebeldes tiveram lugar em sua casa, em Cacheu, e que foi ela que, efetivamente, recebeu os assessores do comandante após sua prisão. Apesar disso, a declaração que se seguiu à prisão, num tom marcadamente “republicano”, trazia a assinatura de seu irmão, na época um dos mais ricos comerciantes afro-atlânticos da região. Em vez de ser uma chefe nominal, Ña Bibiana foi a mais respeitada anciã do clã, mas não exerceu nenhuma função administrativa e não sabia escrever o português. Em vez de ser uma figura secundária, que permaneceu nos bastidores como muitas de suas congêneres, ela, por causa de sua extensa clientela, que tanto era atlântica quanto africana, desempenhou um papel-chave nos acontecimentos. Os eventos que se seguiram demonstram o estreito relacionamento entre ela, seu irmão e seu sobrinho, que apoiaram seus atos. 35 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 3, 20-3-1684 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 91 Uma vez que o eminente prisioneiro não era somente o comandante militar, mas também o diretor local do monopólio da coroa portuguesa representado pela companhia comercial, a revolta revelou o profundo e enraizado conflito entre os interesses portugueses na região e os dos gan mercantis locais. Ao reclamar poder político, os revoltosos declararam: 1. não admitir capitão desse Reino, nem destas Ilhas [de Cabo Verde], sem primeiro dar conta a Vossa Majestade, e esperar que saia ‘resolução’; 2. nenhum Português negociará com os gentios, mas só com os moradores da praça com pena do perdimento das fazendas; 3. não queriam nem haviam de aceitar como não aceitaram o contrato da Companhia, instituído por especiais ordens da VM, nem tão pouco admitir na praça, nem ainda como particulares, os administradores della.36 No dia seguinte aos eventos acima narrados, Ambrósio, junto com outros notáveis de Cacheu, assumiu o poder sob a forma de triunvirato, apreendendo todos os bens do comandante e a propriedade da Companhia. A “república de Cacheu” tinha sido declarada, segundo os termos usados na sindicância feita depois. Apesar disto, os rebeldes não esqueceram, ao menos formalmente, de reiterar sua fidelidade ao rei. Apesar do fato de que uma multidão, incluindo escravos, tinha tomado parte na prisão do comandante, a sindicância afirmou que “o povo”, em nome do qual decerto tinha sido elaborada, não tinha tomado parte nem tinha apoiado genuinamente a revolta e, supostamente, tinha sido conduzido pelo medo e pela ignorância. Quando a notícia chegou a Lisboa, a situação causou grande embaraço e preocupação às autoridades portuguesas, temerosas de perder o seu principal porto continental na costa da Alta Guiné. O conflito deve ser visto como um reflexo da situação de fato, do acentuado declínio dos negócios portugueses, sobre o qual conselheiros e funcionários bem informados vinham alertando desde o final do século XVI. Desde então, a crescente competição por parte de outras nações européias, tais como a França, a Holanda e a Inglaterra, tinha enfraquecido o monopólio afro36 AHU, 1ª secção, Cabo Verde, Cx.7-A, 18-8-1691 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 92 atlântico português. O fato de que os rebeldes de Cacheu estavam negociando com comerciantes ingleses e franceses, que eram vistos como inimigos, sublinha o contexto euro-atlântico do conflito. O “golpe” de Cacheu, se tivesse sucesso, implicaria no abandono de qualquer esperança portuguesa de competir com os rivais europeus, além de acarretar a perda do lucrativo comércio com o Kaabú, no interior. E o fato de que, dentre todas as pessoas, uma mulher, e ainda por cima africana e idosa, estava frustrando os planos portugueses na região, era outra grande cruz a ser carregada pelos estrategistas políticos de Lisboa. A curta vida da Companhia, que foi seguida de outros esforços monopolistas igualmente fracassados nos anos 1690, só serviu para acentuar esta situação. Intervindo, as autoridades portuguesas provaram, sem sombra de dúvida, que os operadores afro-atlânticos, incluindo os crioulos, kriston e fornecedores africanos, estavam claramente em vantagem, e assim permaneceriam pelos próximos duzentos anos. A parceria entre Ña Bibiana, viúva, e seu irmão, então com seus cinqüenta e tantos anos, é crucial para a compreensão do espaço social no qual os conflitos tiveram lugar. Seus fortes laços colaterais, estabelecidos por meio da coabitação e dos casamentos mistos com linhagens africanas governantes, reproduziram um padrão de interação afro-atlântica que facilitou a tessitura das redes interculturais altamente fluidas, pelas quais a região era conhecida. Estas encarnavam a efetiva combinação entre mobilidade geográfica e social, que lhes permitiu assumir o controle do comércio regional. Seus “descendentes mestiços” representavam a essência do parentesco bilateral num contexto matrilinear característico dos gan mercantis da região. Foi precisamente esta configuração que deu a mulheres como Bibiana uma base de poder sócio-cultural que elas transformaram em riqueza econômica e influência política. Seu controle partilhado sobre os recursos e o apoio recebido dos dignitários africanos locais também ilustra a existência de uma flexível divisão de responsabilidades, que provou ser um fator decisivo em sua capacidade de iludir as autoridades portuguesas. Inúmeros eventos servem para elucidar o contexto local, por exemplo, a petição de Lourenço Gomes, filho do casamento anterior de Ambrózio Gomes, para obter a herança do pai; a sindicância entre os moradores de Cacheu acerca do papel de Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 93 Bibiana no “golpe”; a localização de sua propriedade e as suas relações com as linhagens dirigentes Bañun; sua ida a Cabo Verde e a questão de seu analfabetismo. Os documentos mostram que Lourenço Matos Gomes tentou, em vão, obter a herança a que ele, pela lei patriarcal portuguesa, teria direito. Ele endereçou uma petição ao rei português, afirmando que, imediatamente após a morte de seu pai, tinha tentado fazer uma distribuição eqüitativa (ou que ele via como tal) do espólio com sua madrasta, o que resultara em fracasso. Isto é revelador, e particularmente ilustrativo, das tradições de parentesco bilateral da costa. Na petição, afirmou que por morte do seu Pay, Ambrosio Gomez, capitão mor que foi daquelle praça, ficara elle supplente habilitado por seu herdeiro de muyta quantidade de fazenda, e em razão ‘o ditto seu Pay estar cazado com Viviana Vás, se metera de posse della como Cabeça de Cazal, fazendose tão poderosa com dadivas e que desde o anno de 1679 em que seu Pay falecera athe o prezente, elle não fora possivel fazer lhe fazer inventario, e partilha que hia decipando, e consumindo de maneira que não viria elle depois a herdar couza alguma.37 E acrescentou, significativamente, que “a falta de justiça que mal naquellas partes, sem poder, se podia administrar, ou por razão de muito que grangear a indústria de quem sabia negociar em terras tão faltas de letrados que só vencia as couzas, que melhor com a intelligencia propria as meneiava”.38 A despeito de suas repetidas tentativas e do apoio de Lisboa, ele nunca conseguiu obter o que pedira. A sindicância sobre a revolta entre os moradores de Cacheu (ocorrida em 1687) demonstra o quanto Bibiana foi aviltada e acusada de comerciar livremente com os africanos e outros europeus, como os ingleses, especialmente na calada da noite, sem recolher qualquer imposto aos cofres de Cacheu. Usando estes argumentos como pretexto — porque, afinal de contas, todos negociavam com os comerciantes rivais operando na região e que pagavam mais —, pedia que “aquela mulher” — 37 38 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 3, 2-9-1682 Ibidem. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 94 algumas vezes também mencionada como “a viúva” — fosse mantida sob custódia e submetida a julgamento, e que fosse feito um inventário de suas posses. Os sindicantes acrescentaram que seria também aconselhável colocar o seu irmão e o seu primo por trás das grades, pois, do contrário, eles poderiam esconder a riqueza da família obtida ilegalmente. Enfatizaram que ela deveria ser julgada em Cabo Verde, não só sugerindo que o então comandante não tinha nenhuma influência significativa sobre a administração, mas que queriam remover o gan Vaz do poder.39 Quando Bibiana foi, finalmente, feita prisioneira, ela se beneficiou da hospitalidade de um chefe linhageiro Bañun, ou udjagar (djagra em kriol), em cuja casa ficou. O relato de sua captura dá-nos alguma idéia dos problemas encontrados por aqueles enviados para realizar esta tarefa: Grandemente me fez Deos em me livrar de Guiné sem que me enchessem a barriga de pssonha, que foy la muito mal aceito no interior, mas como eu me vir dessa banda com o favor de Deos fallarey, e tudo ha de ser verdade; o que direy athé he que se a minha lealdade não fora tanta ficara Bibiana Vas em Guiné metida no gentio porque atirei de caza de hum Rey para onde fugio, fazendo a vir a praça com minhas industrias.40 O oficial foi obrigado a investir largas somas de seus próprios recursos em presentes, a fim de convencer os parentes e anfitriões a entregá-la. Mas pouco ele conseguiu ter de volta, uma vez que as posses de Ña Bibiana não puderam ser encontradas pois os “os bens desta mulher estão todos em terras de gentios, e por isso se lhe não achou quasi nada no sequestro que se lhe fez”.41 Embora seu primo Francisco (Vaz de França) estivesse fora, negociando na costa, não seria possível persegui-lo “porque os que andam ausentes, não é fácil acolhelos a mão”, demonstrando mais uma vez a debilidade portuguesa na região. O oficial ainda acrescentou que “de Gambia sahiam dois navios a esperarme na barra de Cacheu” — o que conseguiu evitar — para “tirarme a Bibiana 39 40 41 42 AHU, 1ª secção, Cabo Verde, Cx. 7-A, 18-8-1791 AHU, 1ª secção, Cabo Verde, Cx. 7A, 17-6-1687 Ibidem Ibidem Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 95 Vaz, e neste caso é certo havia de pelejar até morrer”.42 Na verdade, durante a ausência de Ña Bibiana, toda a sua riqueza foi guardada por seu primo, convenientemente ausente. Portanto, só seus escravos poderiam ser confiscados, porém todas as tentativas de fazê-lo levaram-nos, imediatamente, a fugir para o “gentio”. Numa petição feita por Bibiana quando estava detida em Cabo Verde, ela afirmou que levá-la para Portugal, para ser julgada, não só a mataria, velha e doente como estava, atacada pela malária, mas que sua contínua ausência da Guiné poderia levá-la a perder, para seus rivais, todas as suas posses.43 Neste meio tempo, ela obteve o apoio dos mais ricos e influentes comerciantes cabo-verdianos, que garantiram sua segurança e sustento enquanto esteve no arquipélago. Isto demonstra a dimensão Atlântica de seu status africano no contexto regional, sua influência e autoridade. Quando a Ña Bibiana, finalmente, foi concedido o perdão real, após ter pagado uma soma simbólica como indenização pelas perdas sofridas pela Coroa, ela retornou à Guiné e moveu uma vigorosa campanha para libertar seu irmão que, afinal de contas, fora o seu principal parceiro nos eventos. No fim, tanto seu irmão quanto seu primo foram perdoados. A lógica por trás desta mudança de procedimento é significativa. Nem o fato de que o pagamento de indenização por parte do primo tenha se mostrado impossível de ser efetuado, nem o perdão ao primo e irmão, por cuja soltura ela tinha insistentemente lutado, aconselhavam a ser imprudente: se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz e aos mais outros maiores subsidios, creio que tudo se perderá; porque nem as pessoas se hão de colher para o castigo, nem se lhes hão de achar os bens para satisfação das penas pecuniarias, e com as suas ausencias e emnisios se inquietara a paz da praça, como experimentei no tempo em que alguns deles passaram aos gentios com o receio de serem prezos.44 O mesmo sindicante admitiu que “todo aquelle povo está reduzido 43 44 45 AHU; 1ª secção, Cabo Verde, Cx. 7-A, 12-6-1687 AHU, Cabo Verde, Cx. 7-A, 18-8-1691 Ibidem Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 96 a excessiva pobreza, assim por occazião do comércio com os extrangeiros, que lhe esgotarão o mais preciozo, como pela esterilidade do negócio com os Portuguezes, e remeças destas Ilhas [de Cabo Verde]”.45 Esta sua crítica estava claramente dirigida aos comerciantes portugueses em geral, às autoridades em Cabo Verde e, sobretudo, ao governador que, obsessivamente, tinha perseguido Ña Bibiana.46 A fim de resolver este impasse sem perder completamente a influência na região, os sindicantes decidiram obter uma declaração escrita, uma promessa e obrigação, mas que não foi assinada diretamente por ela, já que se declarou “analfabeta”.47 Este documento formalizou o acordo entre a coroa portuguesa e Bibiana, que prometeu construir um fortaleza de pedra em Bolor, defronte a Cacheu, na barra do mesmo rio, numa posição estratégica que controlava o acesso ao rio. Mas ela somente o faria em troca da soltura e do perdão ao seu irmão e primo. Entretanto, afirmou, com certa ironia, que, por ser mulher, não poderia levar a cabo a construção do forte. Além disto, na região não havia pedra considerada boa para construção, a qual teria de ser trazida de Cabo Verde. Todavia, ela se declarou pronta para, “voluntária e livremente”, pagar pela construção. Levando-se em conta a perda de bens sofrida durante e devido à sua ausência — ela disse que tinha sido deixada somente com a posse de alguns escravos — e o fato de que seu primo estava na posse de todos os seus bens, ela teve de contar consigo própria para honrar o pagamento. A primeira parcela, com a metade do valor, deveria ser paga quando seu primo chegasse a Cacheu, para o que não foi fixada uma data, e a segunda deveria ser efetuada um ano depois. Ela acrescentou que se devia “mandar-lhe restituição ao dito seu irmão a esta praça soltandose da prizão em que está porque com a sua pessoa continuara o negocio que não se pode perder por ser molher”.48 E, como forma de assegurar o cumprimento de seu lado na barganha, ela deu em garantia “todos os seus bens materiais”. Depois de tudo o que foi dito e feito, pode-se imaginar o que, na prática, realmente significava esta garantia, já que nenhum desses bens podia ser acessado por estrangeiros. 46 47 48 “Como pelo falecimento do governador Diogo Ramires Esquivel se dilatava o ajuste com Bebianna Vaz”, Ibidem. Idem, 20-4-1691 Ibidem. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 97 Depois de soltos, seu irmão Ambrósio e seu primo Francisco tornaramse alvos das autoridades de Lisboa, Cabo Verde e Guiné. Francisco, referido como “primo de Bibiana”, foi acusado de crueldades, tais como ter matado brutalmente alguns de seus escravos e “causado terror a todos e ao gentio” na área do Rio Nunez mais ao sul.49 Um inquérito foi ordenado para que se pudesse dar-lhe um “exemplar castigo”.50 Ambrósio tornar-se-ia um dos críticos mais abertos das políticas e do apoio — ou da falta de ambos — de Lisboa, durante os trinta anos seguintes, incluindo a falta de ajuda para lidar com as ameaças dos africanos. Quase todas as petições formuladas pelos comerciantes de Cacheu, nesse período, traziam sua assinatura. Nada foi mencionado sobre Bibiana nos documentos após 1694, o que não surpreende, levando-se em conta a sua idade já avançada e o seu estado de saúde. Rosa de Carvalho Alvarenga e Honório Pereira Barreto A história de outra parceria, desta vez entre mãe e filho, serve para analisar o empreendimento afro-atlântico numa perspectiva comparativa e cronológica. Claras distinções entre a condição e a iniciativa feminina e masculina podem ser feitas no seio dos gan mercantis de Cacheu e de Ziguinchor — ao norte, localizado na região de Casamance, no rio do mesmo nome — do século XIX. Também neste caso, sabemos mais sobre o homem do que sobre a mulher aqui referidos, mas há pouca dúvida sobre a autoridade de um e de outra. Tal como ocorreu com sua ilustre antecessora, Ña Bibiana, os dados biográficos são poucos e esparsos: enquanto muito se sabe sobre seu marido e filho, nenhum dado concreto sobre seu nascimento e morte foi encontrado. Presumimos que ela tenha nascido em algum momento do último quartel do século XVIII, e falecido em meados dos anos 1850. Em termos de status social, Dona Rosa de Carvalho Alvarenga, também chamada de Dona Rosa de Cacheu ou, mais afetuosamente, de Ña Rosa, descende do mais preeminente gan do presídio de Ziguinchor. O uso do termo “dona”, nas fontes portuguesas, indica sua inclusão na classe dos “notáveis” locais, 49 50 AHU, 1ª secção, Guiné, 22-6-1694 AHU, 1ª secção, Guiné, 30-10-1694 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 98 intimamente associados com a administração e o comércio. A povoação tinha sido erigida em meados do século XVII, por uma administração desejosa de estender o seu raio de ação para o lucrativo comércio do rio Casamance, a norte de Cacheu. O clã Alvarenga, originário das ilhas de Cabo Verde pela linha masculina, controlava, praticamente, a administração da cidade militar desde meados do século XVIII. Seu pai, Manuel de Carvalho Alvarenga, era o comandante de Ziguinchor na virada para o século XVIII. Tal como todos os altos funcionários, ele também atuava no comércio de escravos, cera de abelha, arroz, sal e marfim, que eram trocados por ferro, armas, pólvora e aguardente. Na linha feminina, a autoridade do clã estava baseada em laços de parentesco e clientelismo com as comunidades Bañum/Kasanga e Felupe/Djola, que habitavam a região de Casamance. Estes eram, respectivamente, os principais fornecedores de escravos, cera de abelha e arroz da região. Junto com os escravos obtidos dos Soninké/Mandinga, no interior, e dos Bijagó, nas ilhas da costa, o gan Alvarenga tinha acumulado considerável experiência, influência e riqueza. Nascida no final do século XVIII, Ña Rosa ficou viúva em 1829. Seu falecido marido, João Pereira Barreto, tinha sido um oficial militar cabo-verdiano. Filho de um padre cabo-verdiano e uma escrava guineense, possivelmente de origem Felupe, tinha comandado postos nas administrações de Ziguinchor e Cacheu, e estabeleceu uma rede de relações de patronagem com as comunidades africanas vizinhas, incluindo os Felupe/ Djola e Pepel. Em 1814, ele liderou uma revolta contra o então comandante de Cacheu, que foi deposto em nome do povo deste lugar sob a acusação de insanidade.51 O “golpe”, que colocou um triunvirato no controle da cidade, foi, ao contrário da intervenção de Bibiana, posteriormente justificado numa investigação oficial. Os relatórios oficiais reconhecem a sua autoridade, que era “bem merecida e [que tinha] hereditária influência com as nações gentias”.52 Na época, ele era o rico proprietário da maior casa comercial de Cacheu. Quando viajou para as ilhas de Cabo Verde por razões de saúde, foi acompanhado por “sua 51 52 53 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 21, 22-10-1814 AHU, Guiné, Cx. 22, 4-5-1819 AHN, CV, Secretaria Geral do Governo, A6/4, 24-1-1824 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 99 mulher, a família constante de trezentos pessoas”, a maioria das quais eram escravos e serviçais domésticos.53 Ao morrer, deixou terras na Guiné, Cabo Verde e Brasil, além de uma casa em Lisboa para sua esposa, que veio a se tornar a mais poderosa comerciante das regiões de Cacheu e Ziguinchor. Sua irmã, Josefina, nascida em Cabo Verde, casou-se duas vezes, em ambas com oficiais militares que detinham postos chaves na Fazenda Real.54 O filho de Ña Rosa, Honório Pereira Barreto, nasceu em Cacheu em 1813 e, quando da morte do pai, foi chamado de volta à Guiné, de Portugal onde estava estudando, a fim de tomar o lugar daquele nos negócios da família. Juntos, mãe e filho determinaram o destino da companhia comercial criada pelo marido e pai, e desempenharam um papel dominante nos assuntos administrativos da região. Tal como no século XVII, o controle do governador português estabelecido em Cabo Verde, cuja jurisdição incluía as cidades e guarnições guineenses, era fraco ou quase inexistente. Assim, a combinação entre a fama inquestionável de Ña Rosa, baseada numa sólida associação de parentesco e empreendimento, e o papel de seu filho na débil administração guineense, emergiu com força na primeira metade do século XIX. Elementos centrais para indicar o estado das relações de poder na época são o envolvimento de Ña Rosa na produção agrícola para exportação na Guiné e Cabo Verde; a sua influência sobre os governantes africanos e comunidades kriston; a sua ação como mediadora de conflitos; o seu pedido para obter a custódia legal de seus dois filhos; a meteórica carreira de seu filho na administração do entreposto e, finalmente, o envolvimento de seu filho, e dela própria, no tráfico de escravos. As fontes deixam claro que as operações comerciais de Ña Rosa incluíam uma plantação, então chamada ponta, a primeira deste tipo na região, onde escravos eram empregados no cultivo de arroz: “A fazenda de D. Rosa de Cacheu, no Poilão de Leão, é a única que existe no limite da Guiné Portuguesa”.55 A importância do arroz pode ser ilustrada pelo fato de que Cacheu, 54 55 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 22, ant. a 31-10-1823. José Conrad Carlos de Chelmicki & Francisco Adolfo de Varnhagen, Corografia Cabo Verdiana ou Descripção Geographica Histórica da Provincia das Ilhas de Cabo e Verde e Guiné, 2 vols, Lisboa e Cunha, 1841; op cit, vol I, p. 184. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 100 assim como Ziguinchor, dependiam inteiramente da importação deste produto da região circunvizinha, e que Gâmbia (isto é Bathurst), recém tornada um estabelecimento britânico, estava, entrementes, atraindo o grosso do comércio da região, criando, assim, novos mercados e incentivando o cultivo do arroz como cultura de renda. Embora sua localização seja conhecida, pouca informação é fornecida sobre a própria ponta. Informações baseadas em rumores dão conta de que era uma “uma grande fazenda que diziam estar bem cultivada”.56 A área era conhecida pela existência de “habitações e campos de arroz” de comerciantes de Cacheu.57 Muitas fontes falam da localização e sobre a produtividade da plantação de Ña Rosa, embora ninguém, aparentemente, tenha-a visitado pessoalmente. Há, na verdade, boas pistas neste silêncio. O fato de que a dita ponta, que ela presumivelmente “comprara” dos Bañun, estava localizada num riacho (o Saral) que liga os rios Cacheu e Casamance, numa área que escapava ao controle da administração portuguesa, e que era insistentemente rotulada como uma rota de contrabando, ilustra sua importância estratégica. A mesma área tinha, na verdade, sido o lugar de povoamentos comerciais como o de São Felipe e Buguendo, importantes centros do comércio afro-atlântico nos séculos XVI e XVII. Localizada em território Bañum, seus trilhados caminhos eram bem conhecidos de muitos comerciantes baseados em Cacheu, tais como Ña Bibiana. No século XIX, a reputação da área revela a importância das relações de parentesco com as comunidades locais, que controlavam o acesso à mesma. Como pontuou um contemporâneo, “apesar de ser este caminho mais comum e cômodo, por ser mais perto, não se pode ir sem algum perigo das perseguições dos pretos, de modo que é preciso pagar-lhes para atravessar as suas terras, como também para carregarem as fazendas, fato e tudo o que qualquer quer levar”.58 Significativamente, o acordo era feito com os Bañun cujo poder e controle territorial estavam, na época, muito reduzidos, já que o seu auge tinha ocorrido em época anterior ao contato afro-atlântico. O pai de Ña 56 57 58 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a Estatística das Ilhas de Cabo Verde no Mar Atlântico e suas Dependências na Guiné Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844, p. 95. Bertrand Bocandé, “Sur La Guinée Portugaise ou Sénégambie Meridionale”, Bulletin de la Societé de Geographie de Paris, 3e serie, T.II (1849), p. 315. Chelmicki, Corografia, I, p. 109 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 101 Rosa mantivera excelentes relações com o “rei” Bañun de Jame (ou Jami), situado num riacho que vinha de Ziguinchor, e que era então, assim como no tempo de Ña Bibiana, uma importante fonte de escravos e cera de abelha na região, onde Bibiana chegou a morar. Os paralelos com os episódios do passado são, certamente, notáveis, também em relação aos freqüentes casamentos mistos entre oficiais-comerciantes vindos de fora e mulheres de descendência Bañun. Tais laços ofereciam vantagens para ambos os lados, assegurando um fluxo contínuo de mercadorias baseado no acesso privilegiado às provisões, e reforçando a confiança e as obrigações mútuas que determinavam o sucesso comercial. Mobilidade social e espacial eram importantes na região, que era conhecida por sua duvidosa segurança, por causa dos ataques dos nativos, ou gentios, sobre as embarcações, raptando as tripulações. Devido aos avanços franceses sobre a região na tentativa de estabelecer uma posição segura e tomar parte no comércio, estas alianças eram, então, encaradas pelas autoridades portuguesas numa perspectiva nacional: “A conservação d’este ponto se deve realmente ao Sr. Honório e a sua mãe D. Rosa, senhora muito rica, natural d’aqui, que exerce grande influência sobre os pretos” .59 Por “pretos”, esta fonte entendia não somente os governantes africanos, mas também as comunidades kriston vivendo no povoamento e ao seu redor, que formavam a espinha dorsal do comércio litorâneo e conduziam as transações com o interior. A comunidade de Cacheu era vista como sendo mais bem comportada do que sua contraparte mais rebelde, a cidade comercial de Bissau, e relações pacíficas eram mantidas com os Pepel, em cujos tchon Cacheu estava localizada, tudo isto graças à presença de Ña Rosa. Como resultado disto, ela e seu filho, Honório Pereira Barreto, capturaram a imaginação dos cronistas e historiadores portugueses e cabo-verdianos, em busca de ícones dos centenários e míticos elos “luso-africanos” para reforçar as reivindicações territoriais portuguesas. Este aspecto foi, mais tarde, explorado durante a ditadura nacionalista do Estado Novo (19261974), quando alguns começaram a descrevê-la como a chefe do gan Alvarenga: “A preponderância dos Alvarenga transmitia-se de tal modo, 59 60 Chelmicki, Corografia, I, p.107 Jaime Walter, Honório Pereira Barreto, Bissau, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1947, p. 12. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 102 que Rosa de Carvalho era conhecida pela designação de Rosa de Cacheu, e cegamente acatada a sua autoridade pelos indígenas”.60 Imbuído de fortes tons nacionalistas, seu grande prestígio entre os africanos, tanto “gentios” como “cristãos”, foi exaltado, sendo ela, ainda, descrita como uma “senhora de cor, de grandes virtudes” com “qualidades de honradês”. Suas ações e as de seu filho foram sistematicamente colocadas numa perspectiva “lusocêntrica”, a fim de contrastar com as investidas francesas e inglesas na região da Senegâmbia na época. Curiosamente, estes elogios emularam aqueles contidos no enciclopédico estudo publicado pelo historiador cabo-verdiano Senna Barcelos, escrito na virada para o século XX, quando se desenrolavam as campanhas militares portuguesas que levariam à criação do estado colonial na Guiné, conforme demonstra o trecho: “Esta senhora, de côr, dominava as tribus da Guiné, os régulos eram seus vassalos e por isso nos nossos domínios de Cacheu, Zeguinchor e Farim os gentios prestavam a mais cega obediência às autoridades”.61 Isto demonstra claramente a mudança de atitude em relação a gênero, parentesco e cor, impelida pela necessidade de aliados e pelo crescente sentido de nacionalidade. Suas operações comerciais iam além da Guiné e se estendiam para a ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, que, afinal de contas, era a terra natal da linha masculina de sua ascendência, que lá possuía “morgadios”. Pedidos de passaporte para viajar às ilhas de Cabo Verde, feitos ao governador português baseado no arquipélago, eram imediatamente atendidos, sem hesitação. Suas afinidades com as ilhas assoladas pela fome são, também, evocadas quando subscreve, junto com outros membros do gan Barreto, um pedido de auxílio em meados dos anos 1850.62 Ña Rosa negociava diretamente com escravos, arroz e cera de abelha, mas também com importantes mercadorias de troca, tais como os panos de algodão, chamados “bandas”, produzidos nas ilhas, além de tabaco e pólvora, que circulavam como moeda de troca local. Sua influência estendia-se para o universo político em razão das posições administrativas ocupadas por seu marido 61 62 Cristiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, 5 vols., Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1899-1913, II, Parte 3, p. 159. Boletim Oficial de Cabo Verde, no 2, 23-3-1855. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 103 e seu filho, mas também como decorrência dos laços que mantinha com as comunidades estrategicamente localizadas no litoral, tais como os Bañun/Kasanga, Felupe/Djola e Pepel. Ela foi chamada muitas vezes, tanto pelas autoridades portuguesas quanto guineenses, para mediar conflitos nas praças de Ziguinchor, Cacheu e Farim, e não hesitou, sempre que necessário, em usar o seu exército de escravos. Um dos exemplos desta ação de Ña Rosa foi a sua mediação entre as aldeias Pepel da área de Cacheu e as autoridades da cidade, a pedido destas, em 1825 .63 Ao eliminar os impedimentos ao livre exercício do comércio na região ela, naturalmente, era uma das principais beneficiárias de tais apaziguamentos. Que sua influência política era sentida através da região norte da Guiné-Bissau e Senegâmbia, incluindo Casamance, é algo que também fica patente nas fontes francesas.64 Mas, notavelmente, a prioridade é dada à carreira meteórica de seu filho, Honório Pereira Barreto, que Ña Rosa promoveu de forma determinada. Ele pôde gozar largamente da influência de sua linhagem paterna, mas sobretudo da materna; pois a própria posição proeminente de sua mãe como comerciante afro-atlântica foi decisiva para o sucesso de suas aventuras comerciais. Ao mesmo tempo, os serviços prestados por seu pai na administração local muito o ajudaram em sua carreira política No que tange ao universo privado, os dados também indicam a ocorrência de mudanças nas percepções e práticas. Com a morte de seu marido, Ña Rosa submeteu um pedido formal a Lisboa para obter a guarda de seus dois filhos, Honório e Maria, que foi provisoriamente garantida. Os documentos incluem testemunhos de moradores de Cacheu, acerca da sua capacidade para educar os filhos. Aqueles que atestaram sua responsabilidade moral e civil declararam, inequivocamente, “pela a conhecer ha muitos anos, ser ela muito capaz e suficiente para a boa e fiel administração dos bens de seus filhos, porquanto é assas público e notório a actividade, zelo e intelligência com que tem portado negócios dos seu cazal e na boa educação dos seus filhos” .65 Inquirida sobre o 63 64 65 Ibidem, p.348 Veja Christian Roche, “Ziguinchor et son passé (1645-1920)”, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, XXVIII, 109 (1973), pp.35-59. AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 23, 18-12-1828 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 104 assunto, Ña Rosa declarou que ela não só renunciava a todos os direitos e privilégios que a viuvez podia assegurar pela lei portuguesa, mas “que obrigava todos os seus bens presentes e futuros pela boa e zelosa administração dos seus filhos, e para que hipotecava os seus mesmos bens” (ibidem). Este foi um dos primeiros casos nos quais tais direitos foram formalmente garantidos para um cidadão nascido na Guiné, e é particularmente significativo o recurso à lei portuguesa por uma viúva, como meio para assegurar direitos paternais, não só demonstrando o seu controle sobre os negócios da família como a extensão dos seus recursos materiais. A parceria estratégica entre mãe e filho, no âmbito comercial e político, permitiu a Ña Rosa e aos seus sucessores obterem contratoschave da administração. Um dos grandes prêmios foi o contrato para “arrematação” das alfândegas de Cacheu, Bissau e Bolama em 1845. O citado contrato tinha sido, previamente, entregue a uma das principais casas comerciais guineenses, dirigida por uma sociedade rival, estabelecida em Bissau, formada por Aurélia Correia e Caetano José Nozolini. Todavia, este último tinha oferecido “condições inaceitáveis” a uma proposta alternativa. A doação que Honório Pereira Barreto tinha feito, no mês anterior, à coroa portuguesa, dos contratos para o direito de estabelecimento que ele tinha celebrado com vários chefes africanos no rio Casamance, provavelmente também teve influência na decisão da coroa de outorgar-lhes a mencionada “arrematação”. No contrato, Ña Rosa e seu filho são designados como “moradores proprietários” de casa comercial baseada em Cacheu. Nas fontes contemporâneas, são elogiadas as habilidades de barganha que seu filho empregava nas negociações com vários chefes locais, de diversas comunidades nativas da região, bem como a sua capacidade para atrair investidores estrangeiros. É indicativo de seu status o fato de que comerciantes ingleses, belgas e franceses tenham-no escolhido “como o único árbitro em todas as questões que podiam surgir com o governador geral de Cabo Verde”, isto é, com Joaquim Pereira Marinho, com o qual ele mantinha relações cordi66 É interessante notar, nesse contexto, que o mesmo governador Marinho teve uma postura muito dura acerca do casamento misto e da miscigenação entre “pretos e mulatos”, sublinhando a necessidade de “branquear” a população de Cabo Verde, a fim de evitar que “as famílias desta Província retrogradem para a raça Africana”. AHU, CV, Pasta 3, 11-12-1838. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 105 ais.66 Os tratados assinados com as tabankas (kriol: aldeia ou perímetro cercado) Bañun do rio Casamance, perto de Ziguinchor, e com os régulos Pepel na vizinhança de Cacheu assim como os negociados com os Biafada e Bijagós, mostram o quanto a rede de parentesco e clientelismo que ele cultivou devia-se à sua ascendência materna e educação, como era então reconhecido: “Este senhor, um filho do país, exerce sobre os povos gentios uma extraordinária influência conhecendo os seus usos e costumes, e até a própria linguagem, acatando diplomaticamente os seus prejuízos. Distribuindo com largueza seus haveres, e estudando com extrema finura seus caprichos e interesses pode, ao seu bel prazer, entre aqueles povos atear a guerra, ou conseguir a paz”.67 Sua reputação de “patriota português”, que ele mesmo, “um escuro e obscuro Africano”, cultivou, era, todavia, acompanhada por uma dura atitude crítica acerca da estreiteza de visão da política portuguesa diante da expansão francesa na região.68 Obviamente, a opinião franca de um comerciante guineense em relação aos seus superiores em Cabo Verde e Lisboa, que reclamavam a soberania sobre a região, provocou reações díspares. Visto como “a pessoa mais instruída de toda a nossa Guiné”69 , ele foi o primeiro governador a publicar suas opiniões e queixas num ensaio muito citado. É uma devastadora acusação, feita por um guineense que enxerga a lastimável condição das poucas “possessões portuguesas” em meados do século XIX: “Desgraçadamente, se pode dizer que nestas possessões há um governador, e comandante, mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até o último, ignoram quais são seus deveres; só tratam de seus negócios, pois são negociantes”.70 Embora ele, claramente, reconheça as relações desiguais de poder na região, mostra pouco respeito pelo modo de vida de seus moradores: 67 68 69 70 Januário Correia de Almeida, Um Mez na Guiné, Lisboa, Typ. Universal, 1859, p. 23 As suas críticas faziam eco àquelas feitas pelo então deputado Alexandre Herculano nas Cortes poucos anos antes; vide Luciano Cordeiro, “A Questão da Guiné num discurso de Alexandre Herculano”, in Obras de Luciano Cordeiro, I, Questões Coloniais, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934: pp. 633-662. AHU, 2ª secção, Cabo Verde, Pasta 3, 5-4-1837 Barreto, Memória, p. 9 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 106 Os estabelecimentos são cercados por gentios mais ou menos insolentes, mas que geralmente dominam os Portugueses (..) Dos gentios vizinhos aos nossos estabelecimentos vem os sustentos (..) Os habitantes, à excepção dos poucos notáveis, seguem os costumes dos gentios, de que descendem (..) São preguiçosos, indolentes, inertes, e a nada se querem aplicar; podendo, se queizessem, levar a grande escala a agricultura, pois o terreno é fecundo (..) Não tem idéia alguma de moral, nem de virtude sociais; mamam o leite da devassidão, vivem brutalmente e morrem quase sempre cheios de moléstias venéreas.71 Quanto mais fala do papel de Lisboa, mais claro o documento se torna: “Nomeado um governador, não por suas virtudes e talentos, mas pelo partido que segue, é logo julgado infallível e santo (..) o governador é agraciado, antes de exercer seu cargo pelos serviços que há de fazer, e é agraciado depois pela participações que deu, sem o governo procurar saber se são ou não verídicas” e vai além, ao afirmar que a “má qualidade de gente que da Europa vem para estas Possessões, é uma das causas do atraso da civilisação delas. Degradados por crimes infames, e homens da mais baixa classe do povo, e que apenas aqui chegados passam a ser notáveis e até oficiais, não podem introduzir bons costumes; antes, pelo contrário, adoptam os de cá, porque favorecem a sua immoralidade.”72 Apesar disto, as fontes portuguesas o elogiam por seu alegado patriotismo e filantropismo. Honório Pereira Barreto, segundo elas, era dono de “uma das casas comerciais desta província; a que possui talvez mais numerário e a que tem mais crédito nas suas transacções e que o mesmo coronel é o único cidadão desta província que faz sacrifícios pecuniários ao governo sem interesse algum próprio”.73 Outros elogiavam sua “real inteligência e patriotismo”,74 assim como seu “acrisolado patriotismo [ao qual] se deve a conservação de alguns dos nossos estabe- 71 72 73 74 75 A despeito de sua origem, ele sempre aconselhou Lisboa a nunca indicar um residente local, pois isto poderia facilitar abusos: “todos, sem excepcçao são negociantes; e de tal lugar só servirá para o exercerem em seu proveito”. Idem, Ibidem, pp. 47-8. Ibidem, pp. 37-8 e 41-2 AHU, 2ª secção, Cabo Verde, Pasta 3, 11-3-1838 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 21, 11-5-1856 Almeida, Um Mez na Guiné, p. 24 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 107 lecimentos da Guiné”.75 As razões para tais elogios são patentes: sem nenhum controle efetivo sobre a região, a coroa portuguesa tinha de confiar na iniciativa daqueles que estavam preparados para ocupar postos na administração local e podiam reivindicar certa autoridade diante das populações locais. Honório Pereira Barreto atribui, enfaticamente, a um preconceito de cor o fato de que seus repetidos apelos não eram levados a sério em Lisboa. Amargamente, reclamava que “parece que a minha cor tem sido o único motivo de não serem atendidos minhas participações, com quanto eu julgue que a verdade e o patriotismo não tem cor”.76 Negociando intensivamente com dignitários africanos acerca de direitos de terra e tratados de paz, ele criticava aqueles que condenavam essa sua política, pois “julgam que o negro é igual ao macaco”.77 A despeito do fato de que os habitantes da região estavam sendo seduzidos por nações rivais, os portugueses só os viam como “pretos”.78 Em seus prolíficos escritos como oficial militar ele fez algumas referências diretas à sua mãe, que respeitosamente chamava de “Dona Rosa Carvalho d’Alvarenga”.79 Nestes escritos, mostrou grande admiração por ela e pelo gan Alvarenga: “Pela Guiné hei sacrificado minha fortuna, minha saúde, e o que mais é o bem estar da minha família, que idolatro”.80 Mas alguns dos aspectos menos palatáveis — por exemplo, aqueles associados ao tráfico de escravos, que era regulado nos tratados entre as nações européias da época da Conferência de Viena — foram convenientemente omitidos pela historiografia oficial. Os acordos de mãe e filho como comerciantes (de escravos) privados foram completamente obscurecidos por sua carreira política. A evidência de que eram traficantes está contida nos relatórios da comissão anglo-portuguesa encarregada de supervisionar o cumprimento dos tratados que visavam abolir a 76 77 78 79 80 81 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 23, 27-2-1857 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 23, 5-5-1857 AHU, 2ª secção, CV; Pasta 23, 27-2-1857 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 22, 28-7-1856 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 23, 29-5-1857. É possível que o tom amargo, que se torna habitual na segunda metade dos anos cinqüenta, esteja associado à morte da sua mãe. ANTT, Fundo do Ministério de Negócios Estrangeiros , Cx. 224, Comissão Mista de Serra Leoa (1819-1857), Comissão de Cabo Verde, Of. 12, Boa Vista, 17-2-1844. . Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 108 exportação de escravos da África Ocidental. Eles demonstraram que, a despeito de Honório Pereira Barreto, no final de sua carreira, ter tomado medidas favorecendo a alforria e abolição do tráfico de escravos, ele e a sua mãe tinham traficado escravos em Cacheu nos anos 1830 e ainda na década seguinte.81 Documentos mostram que a escuna capturada pelas autoridades inglesas, que transportava escravos para as Bahamas, era de propriedade de Ña Rosa, e que a maioria dos escravos estava registrada em seu nome e em nome de seu filho.82 Na verdade, ela tinha deixado instruções escritas para o comandante do navio sobre do que fazer com sua carga. Uma vez que os escravos foram embarcados na calada da noite, e consignados a um traficante privado (norte-americano) operando na costa, a tentativa de enganar os oficiais britânicos tornou-se clara. Por isso, a correspondência britânica sobre o assunto afirma que o estabelecimento-sede da empresa comercial da família em Cacheu “tem sido freqüentemente indicado (...) como um bem notório mercado de escravos”. 83 A despeito do declínio de Cacheu como entreposto de escravos durante a primeira metade do século XIX, a casa comercial Alvarenga-Barreto era, de longe, a maior proprietária de escravos da área na década de 1850. Na ocasião do primeiro censo de escravos, realizado em 1857, a casa comercial possuía 147 escravos, sendo 77 mulheres e 70 homens. O clã Alvarenga tinha 290 escravos em Cacheu e Ziguinchor, o que representava mais de um quarto de todos os escravos registrados (1085) destas localidades.84 Honório Pereira Barreto possuía 61 escravos (47 mulheres e 14 homens), enquanto seus parentes pela linha paterna (os Barreto) tinham 19 escravos. As82 83 84 85 Public Records Office (PRO), London, PRO/FO, 84/117. Dados gentilmente fornecidos por João Pedro Marques. Para uma perspectiva histórica da abolição no contexto português, vide Marques, Os Sons do Silêncio, op. cit. Ibidem. AHU, Fundo do Governo da Guiné, Livro 35 Os Alvarengas baseados na ilha de Santiago, em Cabo Verde, também possuíam escravos, embora em número muito menor; vide os dados do censo de escravos de 1856 em António Carreira, Cabo Verde; formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878), Bissau, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, pp. 512-20. Honório Pereira Barreto também possuía dois escravos na ilha de Santiago (Carreira “Cabo Verde”, p. 519), e parentes dos dois “gan” possuíam cerca de trinta escravos. Na época, o maior proprietário de escravos do arquipélago tinha pouco mais de 50 escravos, enquanto os ricos comerciantes da Guiné podiam possuir centenas de escravos. O número total de escravos registrados no arquipélago era de 5.182, três quartos dos quais em Santiago e Fogo. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 109 sim, juntos, eles detinham catorze por cento da população cativa. Os dois clãs controlavam mais de um terço de todos os escravos de Ziguinchor e Cacheu.85 Enquanto isto, a criação de um conselho municipal em Cacheu em 1850 tinha, finalmente, implementado um decreto real que datava de 1605, e que lhe conferia os direitos de “cidade” e, portanto, uma aura de “respeitabilidade” após ter servido por mais de três séculos como porto de escravos. Em contraste com a sua mãe, não há evidências de que Honório Pereira Barreto tenha se casado,86 uma circunstância interessante, convenientemente ignorada por seus biógrafos, que se abstêm de qualquer referência à sua vida privada.87 Uma fonte chega a admitir que “ele morreu solteiro, mas deixou descendência”.88 Após o seu desaparecimento de cena, a influência e autoridade que tinha acumulado junto às sociedades africanas, e que conduziam até a mater familias Ña Rosa, foram aparentemente ignoradas pelas autoridades de Lisboa e Cabo Verde, durante a “corrida para a África”, como reconhece um autor: “Por morte de Dona Rosa passou esse grande prestígio para o filho e depois para os descendentes. O que teem perdido, por culpa das autoridades locais, que decidiram resolver os conflitos à força de balas, de preferência à intervenção diplomática dessa família, o que seria muito mais útil à prosperidade da colônia para o aumento do comércio e desenvolvimento da agricultura”.89 Conclusões 86 87 88 89 Sobre a origem dos gan guineenses, veja George E. Brooks, “Notas Genealógicas de Proeminentes Familias Luso-Africanas no Século XIX na Guiné”, Soronda, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), Bissau, 9 (1990), pp. 53-71. O fato de que só os filhos de sua irmã, Maria Pereira Barreto, casada com o funcionário e comerciante guineense Cleto José da Costa, foram considerados como seus únicos sucessores legais poderia confirmar isto. Arquivo Histórico Nacional, Praia, Cabo Verde, Secretaria Geral do Governo, A6/9, Guiné: 21-8-1878. Barreto, História da Guiné, p. 241. Seus descendentes diretos, embora “ilegítimos”, (todos homens), foram Rufino António Barreto, Pedro Pereira Barreto, Ludgero Pereira Barreto, Ernesto Pereira Barreto e Heitor Pereira Barreto; eram caixeiros e “nenhum deles possuía qualquer meio de riqueza” AHU, Lisboa, Cabo Verde, Pasta 51, 30-9-1871. Senna Barcellos, Subsídios para a História, II, 3ª parte, p. 159 Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 110 Um das mais complexas tarefas com que se defronta o pesquisador que tenta reconstruir o impacto do comércio afro-atlântico sobre as sociedades pré-coloniais é, precisamente, a desconstrução de categorias, com base na diferença e desordem onipresentes nas fontes disponíveis. O que se torna claro, após consultar pilhas de documentos tirados de prateleiras empoeiradas, é que tanto as práticas quanto as representações sofreram mudanças marcantes ao longo dos três séculos do contato afro-atlântico. O fato de que a interação social, num sentido intercultural, esteve sempre entranhada nas transações comerciais, sublinha seu caráter negociado. Na ausência de um controle externo, processos contínuos de negociação eram fatores-chave na construção de redes de parentesco e clientelismo e no estabelecimento de direitos e obrigações recíprocas. Ao mesmo tempo, o comércio era uma fonte de profunda desordem e conflitos resultantes do tráfico atlântico de escravos. Ainda que a troca comercial, sempre em parceria com a conversão religiosa, tenha se tornado o padrão para julgar o “outro” no contexto afro-atlântico, aqueles a ele associados eram vistos diferentemente, em consonância com a cambiante configuração das relações afro-atlânticas. Os comerciantes tanto podiam ser vistos depreciativamente, como inferiores, pela camada aristocrática da Europa pré-industrial, quanto, dos fins do século XVIII em diante, como agentes civilizadores dos povos africanos. Estas variadas visões estavam diretamente relacionadas a mudanças nos padrões de comércio e interação. Embora fossem a mercadoria mais importante da conexão afro-atlântica até o século XIX, os escravos e a escravidão já eram partes integrantes das sociedades ibéricas e do mundo mediterrânico mais amplo antes da “descoberta” do comércio transatlântico no século XV.90 O contraponto entre diferentes culturas, tais como 90 91 92 Isabel M.R. Mendes Drumond Braga, Mouriscos e Cristãos no Portugal Quinhentista: duas culturas, duas concepções religiosas em choque, Lisboa, Hugin, 1999; I.O. Hunwick, “Black Slaves in the Mediterrenean World: introduction to a neglected aspect of the African diaspora”, in: Elizabeth Savage The Human Commodity: perspectives on the Trans-Saharan Slave Trade, London, Frank Cass, 1992, pp. 5-38. A.C. de C.M de Saunders, Escravos e Libertos Negros em Portugal (1441-1555), Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994; e também José Ramos Tinhorão, Os Negros em Portugal: uma presença silenciosa, Porto, Ed. Caminho, 1997. Boxer, Relações Raciais no Império Colonial Português; vide também John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680, Cambridge, Cambridge University Press, 1992. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 111 o Islã e a cristandade, que abraçaram a escravidão e o tráfico de escravos, foi o ponto de partida e serviu como justificativa para a expansão levada a cabo por Portugal e Castela. A presença de africanos na Europa era silenciada ou demonizada, por exemplo, em Portugal, especialmente após a contra-reforma.91 Eles também eram os meios pelos quais as relações de poder eram estruturadas no mundo Atlântico, tanto na Europa quanto fora dela.92 Conflitos engendrados no contexto afro-atlântico iriam estimular fortemente o comércio triangular, o que aumentaria a estratificação baseada no gênero, parentesco, cor, raça e religião, por meio dos laços constituídos em torno do casamento, concubinato, sujeição por dívida, adoção temporária, rapto e incursões para capturar escravos.93 Enquanto os homens atlânticos atuavam como fornecedores de mercadorias tais como ferro, pólvora e álcool, as mulheres africanas eram, sobretudo, vistas como mercadorias que foram integradas nos agregados dos comerciantes como escravas e concubinas. Por isto, não é coincidência que aquelas mulheres africanas que obtiveram notoriedade e fama fossem todas beneficiárias do status de livre, agissem como cabeça da família, possuíssem e dirigissem casas comerciais e não estivessem inibidas por obrigações conjugais. Conseqüentemente, elas não tinham de se encaixar nas vigentes noções patriarcais de empreendimento, nem precisavam se adequar aos padrões de relações hierárquicas baseadas na escravidão. Ainda que inseridas num espaço africano amplo, elas, quando viúvas, por estarem no contexto específico das povoações afro-atlânticas, conseguiram escapar ao levirato e escolher os seus parceiros, ou constituir a sua própria linhagem, sem intervenção dos seus pares. Atuando como comerciantes e indivíduos por seu próprio direito, e extraindo grande autoridade de suas relações de parentesco com linhagens governantes, elas emergem das fontes como poderosas atrizes num mundo aparentemente dominado pelos homens. Tidas, primeiramente, como ameaça aos poderes instalados, as ñara, com o tempo, passaram a ser vistas como uma benção. No momento em que os produtos agrícolas apresentaram-se como uma alternativa viável aos escravos, a situação mudou: as mulheres africanas comerciantes tinham, agora, acesso à terra e ao seu usufruto, exercendo, então, elas próprias, o controle sobre a produção, e ganhando 93 White, Women in West and West-Central Africa, p. 70. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 112 “legitimidade” no processo. O fato de que tenham se aliado a influentes homens atlânticos estrangeiros foi crucial para a sua recém adquirida “respeitabilidade” e a de seus filhos, então também em função das noções raciais. Claramente, os nacionalismos emergentes no contexto colonial — note-se a patente conotação feminina de nacionalidade, em contraste com a ideologia masculina construída em torno da noção de cidadania — ampliaram a importância da conexão “luso-africana”, a ponto de, nesta, serem aceitos grupos sociais e indivíduos que, até então, tinham sido excluídos. O pouco que tem sido escrito sobre as relações interculturais na região joga alguma luz sobre as diferentes valorações acerca das parcerias acima descritas e sobre o seu significado para a história social da interação e troca afro-atlântica. As abordagens extrapoladas a partir das fontes escritas diferem, claramente, entre si, de acordo com o período considerado: enquanto Bibiana e seu irmão foram acusados de auxiliar a expansão de interesses não-portugueses na região, Ña Rosa e seu filho foram elogiados por fazerem exatamente o inverso. Enquanto a oposição à interação entre governantes africanos e comerciantes atlânticos marca fortemente as fontes do século XVII, a cooperação entre as duas partes foi advogada no século XVIII. Enquanto as ações de Ña Bibiana e seus parentes foram vistas como fomentadoras da disrupção, a atuação de Ña Rosa e seu filho foi tida como preventiva e pacificadora de rebeliões, além de mediadora de conflitos. Enquanto o tráfico do gan Vaz foi condenado, o do Alvarenga foi tolerado, ou simplesmente ignorado. Enquanto as propriedades de Ña Bibiana, que ficavam fora do alcance das autoridades portuguesas, levaram estas a vê-las com grande suspeita, a fazenda pertencente a Ña Rosa, localizada numa rota de contrabando, foi tida como um empreendimento elogiável. Enquanto o papel de Ña Bibiana, considerada uma madrasta ruim, foi vituperado, a reputação maternal de Ña Rosa foi positivamente avaliada. Enquanto a longa carreira administrativa e comercial (bem sucedida desde os anos 1730) de Ambrósio, irmão de Ña Bibiana, recebeu escassas menções devido à sua atitude crítica às políticas portuguesa, a de Honório Pereira Barreto, filho de Ña Rosa, foi saudada como um grande exercício patriótico, a despeito de ele ter, publicamente, denunciado a séria falência de tais Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 113 políticas. Todavia, num outro nível da análise, certos denominadores comuns também aparecem. O perdão que as autoridades portuguesas estenderam a Ña Bibiana, seu irmão e seu primo evidencia um senso de “força maior” frente às relações de poder na região, da mesma forma que os seus esforços para reconhecer e valorizar os contatos de Ña Rosa e seu filho. O reconhecimento implícito do poder e da influência do gan Vaz, que estava bem entranhado nas comunidades africanas, tornou-se explícito no reconhecimento da autoridade derivada da descendência africana por parte do gan Alvarenga, e sobretudo a de Ña Rosa e seu filho. Em ambos os casos, fatores externos ditaram as atitudes. Ao mesmo tempo, as tradições orais da região sugerem que, entre as comunidades kriston, estas mulheres eram veneradas como “mindjeres garandis” (kriol: mulheres grandes) e matriarcas de um poder hegemônico no passado. A crescente influência de outras nações européias na região, no século XVII, que pôs fim ao efetivo monopólio de Portugal sobre o comércio de mercadorias e escravos no âmbito regional e Atlântico, e a sua renovada penetração no século XIX, foram determinantes para a aquiescência mostrada diante dos clãs locais e de seus negócios. A confusão política e econômica que afetou Portugal após o período da dominação de Castela (1580-1640), a independência do Brasil e a revolução liberal nas primeiras décadas do século XIX também desempenharam um papel importante na definição de atitudes e políticas. As intervenções e visões contidas nas fontes localmente produzidas, tais como os relatórios de governadores e as petições das comunidades mercantis, ilustram claramente esta ambivalência, que caracterizou as representações no período pré-colonial. A despeito de lacunas na produção histórica sobre a região, as atividades do que tem sido chamada de camada “luso-africana” e as suas relações com as sociedades africanas têm produzido, nas últimas décadas, uma crescente literatura sobre as áreas de presença lusófona na África. Estes grupos, usualmente vistos 94 Peter Mark, “Constructing Identity: sixteenth and seventeenth century architecture in the Gambia-Geba region and the articulation of Luso-African identity”, History in Africa, 22 (1995), pp. 307-27, e também do mesmo autor “The Evolution of Portuguese Identity: Luso-Africans on the Upper Guinea coast from the sixteenth to the nineteenth century”, Journal of African History, 40 (1999), pp. 173-91. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 114 como híbridos e intermediários, foram objeto de considerável confusão por parte dos observadores atlânticos, e mesmo os escritos históricos mostram dificuldades em lidar com eles. O fato de que viviam em casas retangulares avarandadas, muitas vezes pintadas com cal (feito com conchas de ostras), construídas junto às margens dos rios, enquanto seus vizinhos moravam em cabanas circulares feitas de barro, tem sido tomado como um indicador de sua identidade enquanto grupo.94 A categoria “luso-africano” foi, também, extrapolada das fontes dos viajantes a fim de dar-lhes uma aura de “etnicidade” que transcendia as categorias culturais existentes até então: português ou africano.95 Outros, entretanto, deram grande ênfase à sua eficiente mobilidade espacial e social, movendo-se entre rios e riachos, e entre diferentes camadas sociais, assim como sua diversidade cultural e social.96 Do mesmo modo que muitos outros agentes operando no solo africano, eles foram descritos como “hóspedes”, residindo em lugares indicados para este propósito pelos senhores da terra, isto é, pelas linhagens governantes, às quais eles deviam fidelidade em troca de proteção. A este respeito, a afirmação de sua condição liminar no contexto Atlântico foi a precondição para o seu sucesso comercial em costas africanas.97 A necessidade de assentar sua presença e suas atividades nas comunidades africanas das quais estas mulheres emergiam, e em cujo tchon (chão, território) com elas coabitavam, é ainda mais importante. O fato de que eram comerciantes, e não agricultores, uma circunstância que, muitas vezes, tem sido negligenciada, é fundamental. Tal como qualquer outro comerciante local, eles tinham de pagar um tributo, ou daxa, aos seus anfitriões e parentes por cada transação e travessia em território indígena. Eram obrigados a receber e a servir aos seus anfitriões e parentela, caso os 95 96 97 José da Silva Horta, “Evidence for a Luso-African Indentity in Portuguese Accounts on Guinea of Cape Verde (sixteenth to seventeenth centuries)”, History in Africa, 27 (2000), pp. 99-130. George E. Brooks, Perspectives on Luso-African Trade and Settlement in the Gambia and the Guinea Bissau region, 16th to 19th centuries, Boston, African Studies Center Working Papers, 1980 e do mesmo autor “Historical Perspectives on the Guinea Bissau region, fifteenth to nineteenth centuries”, in: Avelino Teixeira da Mota: In Memoriam, Lisboa, Academia da Marinha (1987), pp. 277-304; vide também Jean Boulègue, “Les Luso-Africains de Sénégambie”, op. cit. Carlos Alberto Zerón, “Pombeiros e Tangomãos: intermediários de escravos na África”, in: Rui Manuel Loureiro & Serge Gruzinski, Passar as Fronteiras, (Centro de Estudo Gil Eanes, Lagos, 1999), pp. 15-38. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 115 primeiros assim o quisessem. Embora se beneficiassem da proteção, também ao nível espiritual, fornecida pelas linhagens dirigentes, estavam sujeitos às mesmas leis aplicadas a outros hóspedes e camadas profissionais. Laços entre eles e seus vizinhos e clientes eram reforçados pela kriason, ou seja a adoção temporária para criar e educar filhos alheios, e a kuñadundadi ou relações entre parentes colaterais. Menos do que integrar uma categoria “luso-africana” abstrata, eles pertenciam às comunidades kriston, que constituíam o verdadeiro núcleo dos estabelecimentos afroatlânticos. Diferentemente do principal escol dos gan, que falava crioulo cabo-verdiano, a sua linguagem nativa era o kriol, ou crioulo guineense. Era usada como a “língua franca” das transações comerciais, embora eles também tivessem controle sobre uma linguagem “étnica”, a qual evocava as suas raízes sociais e culturais externas aos povoamentos comerciais: um membro da comunidade kriston de Cacheu podia ter ancestrais Pepel, e um seu equivalente de Ziguinchor podia, invariavelmente, reclamar seu parentesco com os Bañun. Dependendo de suas relações com as linhagens que detinham direitos ancestrais sobre a área do assentamento, eles podiam reivindicar propriedades e posições, obtendo influência em relação a seus pares e clientes. O fato de que os padrões de descendência das comunidades africanas com as quais estavam relacionados eram predominantemente matrilineares, e de que eles próprios aderiram a práticas bilaterais, implicou em contradições com as tradições patrilineares comuns no Atlântico norte. Um dos principais obstáculos à interação afro-atlântica foi, precisamente, a questão do controle sobre a exploração do comércio e, sobretudo, os privilégios concedidos ao parentesco colateral matrilinear, em detrimento da linhagem patrilinear. A duradoura ambivalência no tocante às relações de parentesco e gênero em um contexto intercultural assume um significado claramente definido, quando ancorado em relações de poder locais. O fato de que a transferência e o controle dos recursos deu-se 98 99 Um autor, Wilson Trajano Filho, situa esta mudança nos anos sessenta do século XIX; vide Wilson Trajano Filho ‘Polymorphic Creoledom: the ‘creole society of Guinea Bissau’, tese de doutoramento, não publicada, University of Pennsylvania, 1998. As subscrições para o auxílio aos habitantes de Cabo Verde, em que Trajano Filho se apóia como indicadores para o crescente entrelaçamento e homogeneidade dos gan, ilustram claramente esta kambansa (Kriol: viragem) e reorientação para o exterior. Só um século mais tarde, os gan se viram obrigados a reatar os laços com as sociedades guineenses no litoral durante a campanha de mobilização e a luta pela libertação, liderada pelo PAIGC (Partido de Independência de Guiné e Cabo Verde). Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 116 segundo o padrão matrilinear no caso de Ña Bibiana, embora aparentemente em conformidade com o costume patrilinear no caso de Ña Rosa, é fundamental para compreender o tratamento diferenciado dado a cada uma delas nos documentos escritos. No século XIX, os gan gradualmente evoluíram para unidades crescentemente autônomas, aparentemente auto-suficientes, embora fortemente entrelaçadas entre si.98 Como conseqüência da imigração cabo-verdiana, os novos gan, que cresceram, sobretudo, em Bissau, privilegiaram os laços com o arquipélago à custa de suas raízes entre os povos do litoral.99 As suas estratégias de acumulação, aceleradas pelo crescimento das pontas, também contribuíram para isso, devido ao grau de endividamento, ficando eles, deste modo, à mercê de capitais europeus, nomeadamente franceses. As grandes mudanças ocorridas a partir dos anos trinta do século XIX provocaram fluxos migratórios entre as comunidades africanas, dentre as quais a Balanta, Fula, Manjaku e Mankañe, especializadas em culturas de exportação: mankara ou amendoim, coconote ou caroço de palmeira, algadon ou algodão, e buracha ou borracha, e também arus ou arroz. Porém, as comunidades que tinham estado profundamente envolvidas no tráfico de escravos, tais como a Bañun, Biafada e Mandinga, perderam terreno. Como conseqüência, os padrões de aliança e os arranjos de parentesco transformaram-se durante o século XIX, visto que os dois povos mais numerosos, isto é, os Balanta e os Fula, eram patrilineares.100 A ocupação da região da África Ocidental pela ação militar européia reforçou ainda mais a redefinição das relações entre os gan, os kriston e os povos do litoral. Em vez de mediação, os poderes europeus confiaram na força armada para criar estados coloniais. Esta estratégia teve o efeito de quebrar a autonomia não só das sociedades africanas, mas também dos gan e dos kriston das praças. As medidas baseadas na segregação segundo linhas raciais e na nacionalização, ou “lusitanização”, do comércio, visavam reduzir ou excluir estes grupos das receitas geradas pela economia de extração e plantação. A crise econômica provocada pelos conflitos armados na região e pelo quase desa100 No caso dos Fula, eram os Fula-Djiábe, cativos originários dos Soninké e Biafada, que, progressivamente islamizados pelos Futa-Fula ou Fula-Ríbe vindos do Futa Djallon, adotaram tradições partilineares; vide Joye Bowman, Ominous Transition: commerce and colonial expansion in the Senegambia and Guinea, 1857-1919, Alderhsot, Averbury, 1997. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 117 parecimento das pontas, nos anos oitenta do século XIX, que deixou o tecido empresarial muito enfraquecido, facilitou grandemente esta tarefa. Os inúmeros impedimentos à mobilidade espacial e social — a “marca registrada” das comunidades afro-atlânticas — que daí resultaram tiveram um forte impacto sobre as relações de gênero. A imposição de conceitos racistas e patriarcais na legislação marginalizou, efetivamente, as mulheres africanas, limitando as suas opções a estratégias de sobrevivência, e pondo fim às parcerias de acumulação como aquelas acima referidas. Mas estas mudanças vão além do escopo deste ensaio. Hierarquias de poder e autoridade desempenharam um papelchave em termos de discurso. Além de gênero e parentesco, a questão da cor e da raça também é muito importante na formulação de representações. Enquanto os dignitários africanos aparecem como atores estratégicos nas representações, o mesmo não ocorre com os seus súditos. Enquanto os representantes do estado e da igreja, eles próprios autores da maioria das fontes, são destacados, a maioria dos habitantes dos povoamentos comerciais, ou seja, os escravos, é geralmente ignorada. Como conseqüência, viúvas vivazes e aventureiros astutos parecem dominar a cena, quer como “bodes expiatórios”, quer como aliados, dependendo da época.101 A população escrava e servil foi, geralmente, ignorada, pois era vista como mercadoria e não como pessoas. E, ao contrário, aqueles que possuíam escravos, ou seja, os comerciantes, funcionários e clérigos, garantiram o seu lugar na historiografia afro-atlântica. Enquanto as fontes do século XVII identificam todos os atores, incluindo o marido de Ña Bibiana, como “pretos”, Ña Rosa, seu marido e seu filho são, todos, descritos como “de cor” ou “mestiços”. Com o tempo, a “paleta de cores” usada para descrever o “outro” torna-se cada vez mais diversificada. O significado do padrão de miscigenação iria mudar nos séculos XVIII e XIX, como resultado da classificação biológica e dos conceitos eugênicos. Além disto, o “outro”, aqui 101 102 Philip J. Havik, “Merry Widows and Wily Traders: negotiating gender and kinship in the Afro-Atlantic connection”, inédito apresentado na conferência “Negotiating Moralities: changing state, changing securities”, 15-17/06/1998, Centre of African., Asian and American Studies (CNWS), Leiden. Fausto Duarte, “Os Caboverdianos na Colonização da Guiné”, Boletim Geral das Colônias, 295,1950, pp. 209-11; vide também António Carreira, “A Guiné e as Ilhas de Cabo Verde: a sua unidade histórica e populacional”, Ultramar, ano VIII, vol. XIII, 4, 1968, pp. 70-98. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 118 formado pela camada de crioulos ou mulatos vindos de Cabo Verde, tinha passado a ocupar posições de poder político, capacitando-se, conseqüentemente, a produzir, também, fontes “oficiais”. O “outro”, do ponto de vista Atlântico, muda consoante os tempos. O constante vai-e-vem entre Cabo Verde e as terras continentais guineenses — e não o influxo, sempre mínimo, de europeus, nem mesmo o de africanos, em sua maioria cativos — é que foi tomado como referência fundamental para a historiografia dos povoamentos comerciais. Só assim pode se explicar a tese de que os impulsos de mudança vinham exclusivamente do exterior, sobretudo de Cabo Verde.102 Como vimos, questões de gênero, parentesco e classe estão intimamente relacionadas a isto: o fato de que os parceiros dessas mulheres se originavam ou localizavam sua ascendência em Cabo Verde, e de que eles detinham importantes postos administrativos no governo local refletiu-se na força e fama atribuídas a estas mulheres. E se a própria mulher, como foi o caso de Ña Rosa, podia ligar sua estirpe ao arquipélago e, portanto, a distantes antepassados portugueses, sua “respeitabilidade” nunca seria posta em dúvida. As parcerias discutidas acima ilustram as variadas configurações destas relações, que tinham implicações, tanto no âmbito do empreendimento mercantil, quanto pessoais. Elas abrangiam desde relações de parentesco com as linhagens matrilineares dirigentes até alianças bilaterais entre gan ou clãs mercantis. Esses laços interculturais incluíam extensas redes de clientelismo, que garantiam a acumulação de riqueza e influência política. Aqueles sem acesso a estes privilégios estavam, claramente, em desvantagem; na verdade, a maioria deles nunca chegou às fontes escritas. Aqui, então repousa, provavelmente, a mais importante distinção entre os membros dos gan Vaz e Alvarenga, de um lado, e a maioria dos habitantes dos povoamentos mercantis e aldeias africanas, de outro, ou seja, os primeiros controlavam uma parte significativa do comércio afro-atlântico e obtiveram uma mobilidade espacial e social que era inatingível para a maioria de seus compatriotas africanos. O fato de que os líderes dos clãs em questão tenham sido mulheres e viúvas foi outro 103 Ver Selma Pantoja, “O Atlântico no Feminino”, Cultura de Sociedade, Ed Paralelo 15, Brasília (no prelo). Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 119 elemento que demonstrou a direta correlação entre descendência matrilinear, famílias matrifocais e o comércio afro-atlântico. Ao desafiar as vigentes concepções androcêntricas acerca de relações sociais, tais mulheres contribuíram decisivamente para a existência de um “Atlântico no feminino” na historiografia sobre a região.103 Finalmente, em termos demográficos, os povoamentos comerciais foram sempre caracterizados por ampla predominância feminina, mesmo que este fenômeno só se tenha comprovado no século XVIII, devido aos avanços da estatística. Isto, não obstante ter sido somente após a morte de seus maridos que tais mulheres emergiram da sombra para obterem evidência na cena Atlântica, e assim assumir um papel autônomo nas fontes escritas. A fim de entender as mudanças acima discutidas, é imperativo que a história social de tais encontros afro-atlânticos seja estudada com mais detalhes. Para suprimir lacunas nos escritos históricos, a documentação dos arquivos e os relatos de viagem têm de ser relidos e recuperados. Além disso, tais fontes devem ser analisadas a partir de uma perspectiva interdisciplinar, que combine as tradições históricas e antropológicas. Só então, os vetores da expansão política e econômica, que governaram as fontes, poderão ser contrabalançados por processos de socialização e aculturação. Os dois estudos de caso discutidos acima mostram que, com certos limites impostos pela natureza das fontes materiais, tal abordagem pode alterar de maneira significativa as configurações economicistas associadas à historiografia Atlântica e ir além dos localismos restritos da antropologia, ao esboçar uma dinâmica intercultural até então desconsiderada ou ignorada. Afro-Ásia, 27 (2002), 79-120 120 NOS TUMBEIROS MAIS UMA VEZ? O COMÉRCIO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS NO BRASIL Richard Graham* O Brasil importou mais escravos da África que qualquer outro país, e a escravidão persistiu ali até 1888, isto é, muito tempo depois de ter sido abolida no resto da América.1 Sua experiência diferiu da de outros países escravocratas em vários aspectos e certamente nos rumos de seu tráfico interno de escravos. Pode ser útil neste momento sumarizar o que sabemos deste tráfico no Brasil, extraindo dados das obras de outros historiadores, mesmo daqueles que não focalizaram suas atenções no comércio interno de escravos. Na primeira parte deste artigo examino quantos escravos estiveram envolvidos no tráfico brasileiro, quem foi traficado, de onde vieram e para onde foram. Tal abordagem é útil na medida em que pode sugerir padrões não necessariamente visíveis na época. Mas, creio que devemos também responder a uma questão verdadeiramente importante: o que o tráfico significou para os seres humanos que foram traficados? A resposta não pode ser uma simples generaliza- * Professor Emérito da Universidade do Texas. 1 Agradeço aos membros do Seminário de Santa Fé pelos comentários que fizeram em relação a uma versão muito preliminar deste artigo, e especialmente Sandra Lauderdale Graham. Barbara Sommer me fez valiosas sugestões bibliográficas sobre o lugar dos índios no tráfico interno de escravos. Também agradeço os participantes do “Congresso sobre o Estudo Comparativo do Tráfico Interno de Escravos na América”, realizado no Centro Gilder Lehrman da Universidade de Yale. Aproveitei também excelentes sugestões posteriores feitas por João José Reis. Tradução: Valdemir Zamparoni, revisão final: Richard Graham. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 121 ção diante da enorme variedade que os caracterizou, e é esta variedade da experiência humana o que torna a história mais elucidativa. Assim, tomo indivíduos particulares e considero as realidades do tráfico de escravos para cada um deles. Da justaposição destes dois tipos de material — quantitativo e qualitativo, geral e específico — tiro a conclusão de que o tráfico interno de escravos contribuiu fortemente para acelerar a abolição da escravidão no Brasil. Este raciocínio se baseia no papel particularmente importante dos próprios escravos: o crescimento da resistência daqueles escravos que tinham sido arrancados de seus contextos familiares e antigos laços sociais minou a autoridade dos senhores e encorajou-os a forçar sua própria libertação através da ação direta. Antes de 1850 Quando os especialistas falam de tráfico interno de escravos no Brasil, usualmente se referem à mudança dos escravos — muitos deles nascidos na África — das antigas regiões açucareiras do Nordeste para as recém prósperas áreas cafeeiras do Sudeste, após o fim do tráfico transatlântico de escravos, em 1850. Mas o movimento de escravos entre as regiões tem precedentes muito anteriores. Pelo menos desde o início do século dezessete, traficantes embarcavam escravos indígenas para as ricas áreas produtoras de açúcar da Bahia e Pernambuco a partir de diferentes portos brasileiros, principalmente da região amazônica, incluindo o Maranhão, e, numa extensão menor, de São Paulo. Numa única expedição para o oeste, em 1628-30, os índios escravizados pelos paulistas, de acordo com informações, atingiram números entre 30 e 60 mil, e alguns deles (as fontes não especificam quantos) foram mandados para os engenhos de açúcar, ao norte. Mesmo antes, como John Monteiro demonstrou, escravos indígenas capturados perto de Patos no extremo sul do Brasil foram embarcados para o norte ao longo da costa até o Rio de Janeiro.2 Embora saibamos que alguns escravos indígenas marcharam por terra do Maranhão para Pernambuco, a prática mais comum era o envio por barcos. Em junho de 1636 uma sociedade de Belém, seguindo 2 John Manuel Monteiro, Negros da terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 64, 65, 74, 76-79. 122 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 o que parece ter sido uma prática bem estabelecida, embarcou 900 indígenas para o sul em dois navios. Durante o período em que a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais governou Pernambuco (1630-54) um influente holandês a instigou a expandir seu controle sobre o Maranhão precisamente a fim de monopolizar o tráfico de escravos indígenas. E quando os holandeses ocuparam Angola de 1641 a 1647, cortando o suprimento normal de escravos da África para a Bahia, a demanda baiana por escravos indígenas cresceu vertiginosamente.3 Os fazendeiros geralmente preferiam os escravos africanos aos indígenas por muitas razões. A mais importante é que eles eram mais resistentes às doenças do Velho Mundo e, portanto, deles se podia esperar que rendessem mais anos de trabalho. Além disso, os africanos eram menos propensos a fugir para o interior na primeira oportunidade, mais familiarizados com o trabalho agrícola num local fixo (especialmente os homens), e possivelmente mais acostumados à noção de servidão pessoal. Contudo, a escravidão indígena continuou sendo uma realidade no Brasil mesmo após sua proibição formal. Chamados de administrados e não de escravos, os índios eram, contudo, comprados e vendidos como mercadoria, herdados e caçados quando escapavam, mesmo no século dezenove.4 O seu comércio de longa distância, entretanto, parece ter se extinguido quase completamente em meados do século dezessete com a importação massiva de africanos. Como Fernando Novais aponta, não havia uma comunidade mercantil estabelecida dedicada a alimentar o tráfico de indígenas tal como houve para o tráfico africano, ao que Luiz Felipe de Alencastro acrescenta o argumento preciso de que o comércio 3 4 João Capistrano de Abreu, Chapters of Brazil’s Colonial History, Nova Iorque, Oxford University Press, 1997, pp. 102, 105; David Graham Sweet, “A Rich Realm of Nature Destroyed: The Middle Amazon Valley, 1640-1750”, Ph. D. diss. University of Wisconsin, 1974 p. 171, nota 19; Bailey W. Diffie, A History of Colonial Brazil, 1500-1792, Malbar, Krieger, 1987, p. 258. Alida C. Metcalf, Family and Frontier in Colonial Brazil: Santana de Parnaíba, 1580-1822, Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1992, pp. 49-54, 66-67, 69, 78; Monteiro, Negros da terra, pp. 147-52, 209-20; Marcus J. M. de Carvalho, “Negros da terra e negros da Guiné: Os termos de uma troca, 1535-1630”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 408 (2000), pp. 329-42. Sobre o abandono do uso de escravos indígenas e sua substituição pelos africanos no século XVI, veja Stuart B. Schwartz, “Indian Labor and New World Plantations: European Demands and Indian Responses in Northeastern Brazil”, American Historical Review, 83, 1 (1978), pp. 43-79. O trabalho forçado de índios, de um modo ou outro, era muito comum na América espanhola, e a captura dos índios Yaqui do noroeste mexicano e sua venda para as fazendas de Yucatán e os engenhos em Cuba ocorreu até a década de 1890. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 123 de escravos, tal como qualquer outro, requeria mercadorias em troca, mercadorias que podiam, mais facilmente, serem fornecidas à África pelos comerciantes portugueses, aos quais a coroa tinha garantido o monopólio do comércio marítimo, do que aos índios pelos bandeirantes. Alencastro também nota que entre os indígenas não havia a noção de capturar membros de outras tribos para vender aos portugueses, em forte contraste com a situação na África.5 O enorme número de africanos transportados forçadamente para o Brasil tem sido minuciosamente calculado alhures, especialmente por Philip Curtin e David Eltis. É estimado que cerca de quatro milhões chegaram no curso de três séculos. Comparados com cerca de 560 mil transportados para a América do Norte britânica, o tráfico para o Brasil representa quase 40% de todos escravos remetidos da África. Os engenhos de açúcar da Bahia e Pernambuco permaneceram como o principal destino dos escravos até 1700, mas alguns foram para outros lugares.6 Na verdade, o fluxo de escravos no Brasil mudou de curso quando os africanos substituíram os indígenas: de Salvador, o grande entreposto, os escravos africanos eram reembarcados para o norte, para o Maranhão e Pará; de onde os comerciantes os enviavam pelo Rio Amazonas e seus tributários até as longínquas minas de Mato Grosso. Uma conseqüência foi a distribuição dos escravos e o costume de os possuir por toda a colônia e depois nação. Contudo, os números desta migração interna eram relativamente pequenos: aqueles indo para o Pará foram estimados em não mais que 500 por ano durante o século dezoito.7 As descobertas, no final do século dezessete e começo do dezoito, de ouro e diamantes nas remotas florestas do centro-sul do Brasil atraíram 5 6 7 Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), São Paulo, HUCITEC, 1979, pp. 104-105; Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: A formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, pp. 117-119, 126. Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison, University of Wisconsin Press, 1969, pp. 47-49, 88-89; Herbert S. Klein, The Atlantic Slave Trade, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 1999, p. 211. Para uma discussão mais detalhada destes dados, veja Paul E. Lovejoy, “The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis”, Journal of African History, 23, 4 (1982), pp. 473-501, e David Eltis, “The Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade: An Annual Time Series of Imports Into the Americas Broken Down by Region”, Hispanic American Historical Review, 67, 1 (1987), pp. 109-38. Vicente Salles, O negro no Pará sob o regime da escravidão, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas e Universidade Federal do Pará , 1971, pp. 32, 37, 42-43, 50-51. 124 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 uma corrida de pessoas para Minas Gerais. Alguns senhores de engenho do Nordeste abandonaram suas velhas fazendas e se mudaram para a região das minas levando com eles seus escravos,8 mas os escravos de lá chegaram a Minas Gerais principalmente através dos traficantes. Em alguns casos estes traficantes fizeram suas propriedades humanas marcharem por terra, distâncias de cerca de mil quilômetros, a despeito do perigo dos ataques indígenas. Ainda mais numerosos entre os escravos enviados para as minas estavam aqueles que chegavam da África no Rio de Janeiro e eram depois vendidos a intermediários que os levavam em comboios a pé para o interior. Entre 1695 e 1735 Minas Gerais foi transformada, de uma zona habitada quase inteiramente por índios nômades, numa área onde mais de 96 mil escravos negros trabalhavam em muitas tarefas mas, principalmente, no garimpo. Quase 90% destes eram africanos de nascimento.9 Em resumo, escravos vinham, há muito, sendo comercializados internamente no Brasil, alguns atravessando longas distâncias, tivessem eles primeiro sido transportados do ultramar ou não. A mais importante consideração do mercado era sempre o custo do escravo e, enquanto estes puderam ser comprados na África por pequeno preço, o incentivo para movimentar os escravos que já estavam fixados num lugar no Brasil permaneceu relativamente pequeno.10 Mas esta situação finalmente chegou ao fim. Em 1831, como resultado de compromissos firmados anteriormente com a Grã-Bretanha, a fim de assegurar o reconhecimento da independência do Brasil, o Congresso brasileiro aprovou uma lei libertando qualquer escravo que fosse trazido para o país após aquela data e impôs várias penalidades aos envolvidos no 8 9 10 C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695-1750: Growing Pains of a Colonial Society, Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1964, p. 42. Laird W. Bergad, Slavery and the Demographic and Economic History of Minas Gerais, Brazil, 1720-1888, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 1999, p. 84; Kathleen J. Higgins, “Licentious Liberty” in a Brazilian Gold-Mining Region: Slavery, Gender, and Social Control in Eighteenth-Century Sabará, Minas Gerais, University Park, Pennsylvania State University Press, 1999, p. 74. Ver também Kathleen J. Higgins, “The Slave Society in Eighteenth-Century Sabará: A Community Study in Colonial Brazil”, Ph.D., Yale University, 1987, pp. 73, 97. Claro que alguns escravos foram assim vendidos e alguns exemplos aparecem nas páginas seguintes. Mariza de Carvalho Soares crê, que, já no século XVIII, alguns escravos vindos da Costa da Mina na África, foram primeiro a Salvador e depois para o Rio de Janeiro. Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, pp. 19-20. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 125 tráfico. Os juízes de paz eleitos, porém, eram relutantes em investigar e formular autos de culpa e os júris, invariavelmente, se recusavam a condenar ou aceitar como válidas as evidências apresentadas pelos promotores; de modo que então o governo abandonou qualquer esforço para aplicar a lei.11 Em 1850, entretanto, parcialmente como uma reação à avalanche de escravos recém chegados e o conseqüente medo de agitação escrava, parcialmente como um esforço para suprimir os débitos assumidos pelos fazendeiros junto aos traficantes de escravos na compra de escravos ilegalmente importados, e principalmente porque a Grã-Bretanha ameaçava a soberania nacional do Brasil ao apresar navios brasileiros, mesmo em águas brasileiras, caso fossem suspeitos de estar engajados no nefando negócio, o governo brasileiro tomou medidas para efetivamente por fim ao tráfico transatlântico. Foi emitida uma nova lei colocando a responsabilidade da execução nas mãos da Marinha e retirando o direito de julgamento por júris dos acusados de traficar escravos. A lei também impunha maiores penalidades aos transgressores e deportava estrangeiros — leia-se, portugueses — engajados no tráfico, assim os impedindo de cobrar seus débitos.12 No começo, alguns navios ainda atracaram clandestinamente na costa descarregando suas lúgubres cargas, que eram, nas palavras de um contemporâneo, “por caminhos impérvios e atalhos desconhecidos levados ao interior do paiz”.13 Mas o governo manteve firme sua resolução e, como classe, os fazendeiros — muitos dos quais eram membros do Congresso ou do Ministério — não fizeram oposição organizada. Padrões de tráfico Uma vez que o governo efetivamente tinha suprimido o tráfico ultramarino no começo dos anos 1850, o único tráfico de escravos que restava era o interno. Inevitavelmente, devido ao enorme número de africanos no país, muitos dos que foram transferidos de uma província para outra já 11 12 13 Arquivo Nacional, Seção do Poder Executivo, Justiça, IJ1707, do Presidente da Província da Bahia ao Ministro de Justiça, Salvador, 26/06, 24/07 e 22/09/1834; 14/02 e 07/11/1835. A historiografia sobre este assunto é bem ampla, e foi sintetizada e ampliada por Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-1869, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 1970. José Thomas Nabuco de Araújo, citado em Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, 3a ed. [1a, 1898-99], Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1975, p. 197. 126 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 tinham sofrido o tráfico transatlântico. Vinte e oito por cento daqueles chegando no Rio de Janeiro, vindos do Nordeste do Brasil, e registrados por alguns meses num documento de 1852, tinham nascido na África e pode se supor que alguns daqueles registrados como nascidos no Brasil eram na verdade africanos, importados após 1831, quando tais importações tinham se tornado ilegais. Com o tempo, a proporção de crioulos (escravos nascidos no Brasil) no tráfico cresceu e, finalmente, como os africanos envelheciam, os primeiros eram quase os únicos escravos sendo enviados de província a província.14 Pela metade do século dezenove, a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro crescia de maneira explosiva, logo seguida por São Paulo, e foi principalmente para estas áreas que os escravos foram transferidos. Naturalmente, o fato de haver vários produtos agrícolas de exportação no Brasil e de sua lucratividade não crescer nem decrescer simultaneamente provocou variações neste fluxo de escravos de uma região para outra. Todavia, eles foram transferidos da menos lucrativa produção açucareira nordestina — fonte predominante — ou do Rio Grande do Sul onde a atividade do charque estava em declínio, e foram canalizados para os portos do Rio de Janeiro e Santos. Devido à falta de boas estradas interiores, a principal rota para o tráfico permaneceu sendo a costeira; prolongando para os africanos alguns dos traumas de sua primeira travessia através do Atlântico. Os registros policiais existentes acerca da chegada de escravos na cidade do Rio de Janeiro, em 1852, mostram que três quartos dos navios que os carregavam vinham de portos a norte do Rio, e 83% dos escravos brasileiros, cujos registros informam a província de nascimento, tinham nascido no Nordeste.15 Evidências de períodos posteriores confirmam esta região como a fonte da maioria dos escravos enviados para o Rio de Janeiro de todas as partes do 14 15 Herbert S. Klein, “The Internal Slave Trade in Nineteenth-Century Brazil: A Study of Slave Importations into Rio de Janeiro in 1852”, Hispanic American Historical Review, 51, 4 (1971), p. 571; este artigo depois entrou como capítulo em Herbert S. Klein, The Middle Passage: Comparative Studies in the Atlantic Slave Trade, Princeton, Princeton University Press, 1978. Quando, na década de 1840, as condições econômicas pioraram no Maranhão enquanto o Pará prosperava,, escravos foram vendidos daquela a esta província; alguns podiam ser africanos, mas muitos eram crioulos. Em 1851, quando o tráfico através do Atlântico estava apenas terminando, o autor de uma carta anônima endereçada a um jornal já se identificava como sendo um senhor de engenho no Pará cujos escravos eram todos “crioulos do Ceará”, Salles, O negro no Pará, p. 53. Klein, “Internal Slave Trade, 1852,” pp. 577, 579. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 127 Brasil embora, em proporção aos escravos existentes, o Rio Grande do Sul tenha exportado mais que o Nordeste.16 Minas Gerais foi outro destino para o qual os escravos foram levados. Tem havido considerável divergência entre os historiadores acerca da amplitude deste tráfico, especialmente no período de pico dos anos 1870, e argumentos contrários têm sido levantados por Robert Slenes, Roberto Borges Martins, Douglas Cole Libby e Laird W. Bergad, todos com algum vínculo com a tradição cliométrica norte-americana.17 É se16 17 Dos escravos existentes no Rio Grande do Sul em 1874, 14,53% foram exportados da província até 1884, enquanto o dado equivalente para o Nordeste como um todo seria só 6,43%. Claro que algumas províncias nordestinas com relativamente poucos escravos exportaram uma percentagem maior, mas entre a províncias exportadoras de escravos o Rio Grande do Sul era a terceira maior em plantel, em 1874. Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery, Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1972, p. 284 combinada com p. 290. É inegável que nos primeiros tempos da expansão dos cafezais no Rio de Janeiro e São Paulo (isto é, entre 1820 e 1860) alguns escravos foram removidos de Minas Gerais para essas províncias junto com seus donos. Alguns historiadores notaram este fato sem dar-lhe muita atenção. Aí, Roberto Borges Martins criou um grande caso para negar a validade desta afirmação, a despeito de confessar que as provas que falam sobre este período são “indiretas, fragmentárias, e muitas vezes contraditórias.” Ele concluiu que, longe de exportar escravos, Minas Gerais importou, seja da África ou das outras províncias, bem mais de 400.000 escravos durante o período de 1800-1873 (as fontes não nos deixam distingüir aqueles importados para esta província depois do fim do tráfico transatlântico em 1850). Para o período que começa em 1873 com o primeiro censo nacional, Martins inverte sua conclusão: ainda insistindo que Minas exportava só poucos escravos, ele argumenta que também importava poucos, de modo que o saldo de importações sobre exportações seria de uns 7.000 para o período de 1873 a 1881. Robert Slenes tinha anteriormente sustentado que Minas Gerais durante estes anos importou quase 24.000 de outras províncias, mas Martins manteve que Slenes havia subestimado o número de escravos já existentes na província em 1873, Roberto Borges Martins, “Growing in Silence: The Slave Economy of Nineteenth-Century Minas Gerais, Brazil”, Ph. D., Vanderbilt University, 1980, pp. 169, 178, 184 (citado), 212-13, 218-20; e Robert W. Slenes, “The Demography and Economics of Brazilian Slavery, 1850-1888”, Ph.D., Stanford University, 1975, p. 616. Um resumo do argumento de Martins foi publicado em Amilcar Martins Filho e Roberto B. Martins, “Slavery in a Nonexport Economy: Nineteenth-Century Minas Gerais Revisited”, Hispanic American Historical Review, 63, 3 (1983), pp. 537-68. Para a réplica de Slenes veja Robert W. Slenes, “Comments on ‘Slavery in a Nonexport Economy’”, Hispanic American Historical Review, 63, 3 (1983), pp. 569, 577, e Robert W. Slenes, “Os múltiplos de porcos e diamantes: A economia escrava de Minas Gerais no século XIX”, Estudos Econômicos, 18, 3 (1988), pp. 449-95. Mesmo que Martins ocasionalmente pareça se contradizer, Douglas Cole Libby algumas vezes distorce o sentido das palavras deste para criticá-lo, Douglas Cole Libby, Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX, São Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 19-21, 40. Uma visão geral do debate é apresentada por Douglas Cole Libby, “Historiografia e a formação social escravista mineira”, Acervo: Revista do Arquivo Nacional, 3, 1 (1988), pp. 13-16. Laird Bergad, auxiliado por uma grande equipe de pesquisadores, examinou mais de 10.000 inventários post-mortem e vários censos locais para concluir que não houve grande importação de escravos para a província antes de 1873 (a data em que termina seu estudo, apesar do título de seu livro), Bergad, Slavery and the Demographic and Economic History of Minas. Algumas falhas no argumento de Bergad são apontadas na breve resenha de seu livro publicado no American Historical Review, 107, 1 (2002), pp. 258-9. 128 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 guro concluir que naquela década os traficantes de escravos introduziram milhares de escravos na região. Dados quantitativos sobre o conjunto do tráfico interno pós-1850, quando aparecem, são notoriamente imprecisos, mas seu volume é inegavelmente menor do que o do anterior tráfico transatlântico. Um estatístico contemporâneo calculou o número médio de escravos traficados anualmente do Nordeste para o Rio de Janeiro nos anos 1850 como sendo de 3.439, e estimava em mais ou menos outros 1.500, os que chegaram com seus proprietários ou vieram da região sul do país.18 O historiador Herbert Klein concluiu que estas cifras são plausíveis e que, se forem somados os embarques de escravos para o porto de Santos é possível que, nas décadas de 1850 e 1860, o número de escravos vindos do Nordeste chegasse em média a 5, 6 mil por ano, comparados com os 24 mil por ano trazidos da África para todos os portos do Brasil durante as duas décadas precedentes. O número dos envolvidos no tráfico interno de escravos declinou um pouco nos anos 1860 porque a Guerra Civil nos Estados Unidos encorajou a produção de algodão para compensar a escassez das exportações americanas para a Inglaterra, e os produtores do Nordeste por esta razão, uma vez mais, puseram alto preço nos seus escravos. Entretanto, o tráfico de escravos interprovincial se tornou muito mais intenso nos anos 1870, quando os preços internacionais do algodão e do açúcar declinaram precipitadamente enquanto que o do café disparou. Robert Slenes estimou em 10 mil por ano o número de escravos comercializados nesta década, isto é, quase o dobro do nível anterior. Ele concluiu que cerca de 200 mil escravos foram comprados e vendidos de uma província a outra após 1850. Além disso, nas províncias, ocorreu uma grande transferência de escravos das cidades, das áreas de policultura e das minas de ouro e diamante (onde os veios tinham se esgotado) para as plantações voltadas à exportação. Robert Conrad supõe que, se este tráfico intraprovincial também fosse tabulado, os números do tráfico interno poderiam ser o dobro dos acima estimados. Tão grande movimento de pessoas deve ter tido um impacto significativo na configuração demográfica e cultural do país.19 18 19 Sebastião Ferreira Soares, Notas estatísticas sobre a produção agricola e a carestia dos generos alimenticios no império do Brazil, Rio de Janeiro, Villeneuve, 1860, p. 135. Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, pp. 568, 583; Slenes, “Demography of Slavery”, pp. 124, 135-39, 169 nota 39; Robert W. Slenes, “Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 129 Tem sido calculado que a chance que um escravo tinha de ser empurrado para o tráfico interprovincial brasileiro, num ano das décadas de 1850 e 1860, era de 0,4%,20 mas esta chance aparentemente se tornou muito maior na década de 1870. Não temos estudos para o Brasil tais como o feito por Michael Tadman para o Velho Sul dos Estados Unidos (nem poderia ser feito por falta de dados censitários comparáveis) que mostra que a chance de ser separado da esposa em algum momento na vida era de 10 ou 11% para aqueles escravos que chegavam à idade de 45-54 anos.21 O número absoluto daqueles que foram deslocados de um estado para outro nos Estados Unidos — 742 mil — obscurece, de forma impressionante, os números para o Brasil, algo em torno de 200 mil.22 Os escravos enviados do Nordeste para o Sul não vinham das plantações de cana de açúcar. Pelo fato de que a exportação nordestina de açúcar não estava mais em expansão, há a falsa convicção de que eram os senhores de engenho que vendiam seus escravos para o Sul, mas 20 21 22 economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888”, in Iraci del Nero da Costa (org.), Brasil: História econômica e demográfica (São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas), 1986, pp. 110-33; Robert Edgar Conrad, World of Sorrow: The African Slave Trade to Brazil, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1986, pp. 179, 181. O efeito demográfico de tão grande migração deve ter sido muito visível, veja Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 285, e Peter L. Eisenberg, “Abolishing Slavery: The Process on Pernambuco’s Sugar Plantations”, Hispanic American Historical Review, 52, 4 (1972), p. 595. O impacto cultural deste tráfico interno só pode ser estimado, mas é geralmente aceito, que, primeiro, durante o século XVIII e começo do século XIX os escravos africanos que chegavam à Bahia (e ao nordeste em geral) vinham principalmente da área circundada pelo Golfo do Benin e da Costa da Guiné onde predominavam as línguas Iorubá e Fon, junto com os que falavam Haussá, enquanto no segundo quartel do século XIX os que aportavam no Sudeste geralmente falavam línguas da família Bantu, e, segundo, que uma grande migração de escravos do Nordeste ao Sudeste depois de 1850 logicamente implicaria mudanças nos rituais religiosos, práticas familiares, e padrões lingüísticos no Sudeste, com efeitos presentes até hoje. Veja, por exemplo, Eduardo Silva, Prince of the People: The Life and Times of a Brazilian Free Man of Colour, Londres, Verso, 1993, pp. 4849. Sobre uma mudança igual em Minas Gerais setecentista, veja Elizabeth W. Kiddy, “Congados, Calunga, Candombe: Our Lady of the Rosary in Minas Gerais, Brazil”, Luso-Brazilian Review, 37, 1, (2000), pp. 52-53. Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, p. 579, notas. Michael Tadman, Speculators and Slaves: Masters, Traders, and Slaves in the Old South, Madison, University of Wisconsin Press, 1989, p. 297. Veja também pp. 169-170. Slenes, “Demography of Slavery”, p. 145; Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, p. 569, notas. O fato que a maioria dos escravos no Sul dos Estados Unidos eram crioulos (i.e., não importados da África e, portanto, já aclimatizados) e se reproduziam com relativa facilidade num país onde quase não se conhecia a prática da alforria, fez com que a população de escravos lá chegasse a ser maior do que a do Brasil. Por outro lado, a população de afro-brasileiros livres e libertos crescia geometricamente. 130 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 não foi usualmente este o caso. A mais importante fonte, a longo prazo, para o novo tráfico de escravos foram as pequenas e médias propriedades agrícolas. O cônsul britânico informou em 1860 que agentes vasculhavam o interior comprando escravos de pequenos proprietários endividados. Na década seguinte, um observador brasileiro reclamou que “os agentes, os intermediários, são exatamente os que fazem o comércio; aqueles vão do sul para as províncias do norte, e percorrendo-as em todos os sentidos, cometem o que (...) se denominava prear, arrebanhar cativos“. O historiador Stanley Stein entrevistou um ex-escravo na província do Rio de Janeiro que relatou como, no começo dos anos 1880, ele tinha vindo de uma roça de rícino e algodão no Maranhão.23 Da mesma maneira uma significativa mudança na concentração da população escrava ocorreu em Minas Gerais acompanhando a expansão das plantações de café na região sul da província, a partir do final dos anos 1860 até os anos 1880; as áreas agrícolas e de criação e os distritos mineiros da província (isto é, todas as regiões não produtoras de café) perderam escravos, enquanto as áreas cafeeiras incrementaram sua participação na população escrava provincial de 24% a 31% entre 1873 e 1886.24 Portanto, não foram, em primeiro lugar, os senhores de engenho que enfrentaram dificuldades com a diminuição da força de trabalho escrava. É verdade, todavia, que no final dos anos 1870 uma terrível seca assolou o interior de algumas províncias nordestinas, produzindo tanto uma avalanche de imigrantes livres para a zona açucareira costeira em busca de emprego quanto uma verdadeira liquidação no preço dos escravos das regiões secas. A província do Ceará, fora da zona açucareira, foi uma das mais devastadas pela seca; ela enviou milhares de escravos para o sul, e durante a década de 1870, enviou mais que qualquer outra 23 24 Consul britânico citado por J. H. Galloway, “The Last Years of Slavery on the Sugar Plantations of Northeastern Brazil”, Hispanic American Historical Review, 51, 4 (1971), p. 589; Agostinho Marques Perdigão Malheiro, Discurso, 03/07/1877, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1877, 2, p. 23; Stanley J. Stein, Vassouras: A Brazilian Coffee County, 1850-1900, Cambridge (MA), Harvard University Press, 1958, p. 72. Martins, “Growing in Silence”, p. 243 e veja pp. 217 e 234. Cf. Bergad, Slavery and the Demographic and Economic History of Minas, p. 118, que usa uma definição de “áreas cafeeiras” menos restrita para asseverar que já em 1872 [1873] estas teriam 31% dos escravos da província. Martins tenta argumentar que o tráfico intraprovincial não foi tão numeroso como outros autores dizem, mas não nega a direção deste movimento. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 131 província exceto o Rio Grande do Sul. Como resultado da seca, os senhores de engenho de Pernambuco aparentemente diminuíram sua confiança nos trabalhadores escravos, voltando-se especialmente para os moradores, isto é, pessoas livres ou libertas, para as quais garantiam o uso de alguma terra disponível em troca de serviços ocasionais, especialmente na época da colheita. Estes não representavam qualquer peso quando os negócios desaceleravam.25 Mais pesquisas precisam ser feitas para explorar as dimensões deste fenômeno e descobrir se, de fato, nesta província e nesta época, os grandes senhores de engenho venderam seus escravos. Na Bahia, no entanto, sabemos que os fazendeiros prósperos conseguiram manter por muito tempo o número de escravos em suas terras, comprando escravos das cidades, de pequenos roceiros e de fazendeiros menos afortunados. O que dificultou a vida para estes últimos foi a rápida subida dos preços, de modo que alguns não podiam comprar escravos dos traficantes que faziam melhores negócios vendendo-os para o Sul.26 Hebe Maria Mattos de Castro mostra que um resultado do aumento dos preços foi a concentração dos escravos em mãos de um número menor de proprietários, com os menos aquinhoados vendendo seus escravos para os mais ricos. Outro estudo mostra que o preço dos escravos no oeste paulista era mais que o dobro do pago no interior da Bahia. Desta forma, o tráfico alterou um pouco o padrão de ampla distribuição que datava dos tempos coloniais. Outra conseqüência foi a diminuição da proporção dos escravos nas cidades.27 Na medida em que a proprie25 26 27 Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 174-76; Conrad, World of Sorrow, p. 182; Galloway, “The Last Years of Slavery”, pp. 601-602; B. J. Barickman, “Persistence and Decline: Slave Labour and Sugar Production in the Bahian Recôncavo, 1850-1888”, Journal of Latin American Studies, 28, 3 (1996), pp. 614-16, 630; Martins, “Growing in Silence”, p. 209. Barickman, “Persistence and Decline”, p. 595; Slenes, “Demography of Slavery”, pp. 208-13. Hebe Maria Mattos de Castro, Das cores do silêncio: Os significados da liberdade no sudeste escravista—Brasil, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, pp. 104-06, 121; Erivaldo Fagundes Neves, “Sampauleiros traficantes: Comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista”, Afro-Ásia, 24 (2000) pp. 110-11. Cf. a posse muito difundida de escravos em tempos mais remotos descrita em Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 1985, p. 459. Claro que muitos escravos ainda pertenciam a pessoas relativamente pobres, e.g., Sandra Lauderdale Graham, “Slavery’s Impasse: Slave Prostitutes, Small-Time Mistresses, and the Brazilian Law of 1871”, Comparative Studies in Society and History, 33, 4 (1991), pp. 669-94. Este artigo foi publicado em português com o título “O impasse da escravatura: Prostitutas escravas, suas senhoras e a lei brasileira de 1871”, Acervo: Revista do Arquivo Nacional, 9, 1-2 (1996), pp. 31-68. 132 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 dade de escravos se concentrava em mãos menos numerosas e nas áreas rurais e não nos centros urbanos, o número de defensores entusiásticos com o qual a instituição da escravidão podia contar diminuia. Os deputados provinciais da Bahia tentaram ajudar os fazendeiros ao adotarem várias medidas para encorajar os proprietários urbanos de escravos a deles se desfazerem tornando-os disponíveis para os primeiros. Muitas vezes tais medidas eram disfarçadas nos discursos como sendo passos rumo ao progresso e humanitarismo, como ocorreu em Salvador. Em 1848, a Câmara Municipal de Salvador impôs uma taxa a todos os escravos engajados como remadores nos saveiros usados na carga e descarga do ativo porto da cidade, e em 1850, os proibiu totalmente de realizar tal tarefa. Alguns anos depois, estes também foram vedados de trabalhar como estivadores.28 As motivações por trás destas ações são complexas. O presidente da província explicou que tais medidas podiam não só canalizar os escravos para o trabalho nos engenhos de açúcar, mas também impedir que se concentrassem na capital. Sem dúvida ele ainda se lembrava dos eventos que tinham ocorrido quando tinha sido chefe de polícia da província, no tempo da famosa revolta dos africanos “malês” de 1835.29 Os moradores da cidade se gabavam que esta medida ajudaria os trabalhadores livres a encontrar emprego, um passo para o futuro.30 O efeito, todavia, foi mesmo a transferência dos escravos urbanos para o trabalho rural. Podemos supor que os proprietários urbanos de escravos venderiam seus escravos tanto para os senho28 29 30 Arquivo Municipal de Salvador, 111.11 - Ofícios ao Governo, 1841-52, da Câmara ao Presidente da Província, Salvador, 21/02/1850, fol. 320v; Lei no 374, 12/11/1849, art. 27-28, e Lei no 607, 19/12/1856, art. 2, in Bahia, Colleção das leis e resoluções da Assembléia Legislativa e regulamentos do governo da província da Bahia; Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta a África, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 96; Kátia M. de Queirós Mattoso, Bahia: A cidade de Salvador e seu mercado no século XIX, São Paulo e Salvador, HUCITEC e Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978, p. 279, notas. Cunha, Negros, estrangeiros, p. 97; Dale T. Graden, “An Act ‘Even of Public Security’: Slave Resistance, Social Tensions, and the End of the International Slave Trade to Brazil, 1835-1856”, Hispanic American Historical Review, 76, 2 (1996), p. 269. Sobre aquela revolta anterior consultar João José Reis, Slave Rebellion in Brazil: The Muslim Uprising of 1835 in Bahia, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1993. Arquivo Público do Estado da Bahia, M. 3118, do Secretário da Polícia ao Presidente da Província, Salvador, 03/11/1853 (devo esta referência à Sandra Lauderdale Graham); Arquivo Público do Estado da Bahia, M. 1570, Agentes dos remadores de saveiros ao Presidente da Província, Salvador, 20/10/1857, e Arquivo Público do Estado da Bahia, M. 1570, Comissão encarregada do festejo dos remadores ao Presidente da Província, Salvador, 09/10/1879. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 133 res de engenho das áreas vizinhas, quanto para os traficantes de escravos de longa distância, dependendo inteiramente do preço que por eles eram oferecidos. Nos primeiros anos do novo tráfico, a venda de escravos urbanos para o tráfico interprovincial ultrapassou aquela feita pelas áreas agrícolas. Alguns dados da província da Bahia, relativos a 1854, por exemplo, demonstram que 60% dos escravos exportados desta província vinham das vilas e cidades. É sugestivo que, ao menos nos anos logo após 1850, 23% fossem trabalhadores com qualificações urbanas.31 Pode ser que neste primeiro momento ainda houvesse uma forte demanda por tais escravos na próspera cidade do Rio de Janeiro. Um anúncio típico colocado num jornal do Rio de Janeiro em 1854 falava de “Escravos (...) chegados a pouco do Norte, bonitos e moços, entre eles (...) um oficial de ourives, uma bonita crioula, uma parda de 18 a 20 anos com habilidades, um preto padeiro e forneiro, um bonito pardo de 17 anos ótimo para pagem, e mais pretos e moleques”.32 Também da cidade do Rio de Janeiro, como de Salvador, escravos foram finalmente vendidos em grande quantidade para os municípios rurais vizinhos. Entre 1864 e 1874, o número de escravos na cidade do Rio de Janeiro declinou cerca de 53%, enquanto o seu número na província do Rio de Janeiro permaneceu praticamente o mesmo de antes, a despeito das mortes e alforrias. Durante os dez anos seguintes, a província também perdeu escravos, mas o declínio de 14% em seu número foi muito menor do que a perda de 32% na cidade.33 Enquanto isto, escravos do Nordeste continuaram a fluir através da cidade do Rio de Janeiro para as zonas rurais em números mais altos do que nas décadas anteriores, e deste universo é impossível distinguir aqueles que tinham sido empregados ao menos por algum tempo na cidade daqueles que eram imediatamente comprados pelos fazendeiros dos vários traficantes urbanos em seus grandes ou pequenos armazéns e quintais. Dados acerca dos 31 32 33 Slenes, “Demography of Slavery”, p. 207; Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, pp. 574-75. Jornal do comércio, 1854, citado em Robert W. Slenes, “Senhores e subalternos no Oeste paulista,” in Fernando A. Novais (org.) História da vida privada no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1997), Vol. 2, p. 251. Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 285. 134 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 escravos vendidos em dois municípios produtores de café no vale do Paraíba mostram um forte crescimento no número dos originários do Nordeste.34 Em 1879, o presidente da província pediu aos juízes de todos os municípios que inspecionassem os registros para preparar informações sobre o número de escravos em cada um e as razões do aumento ou diminuição a partir do ano-base de 1872-73. Embora alguns tenham perdido escravos porque estes tinham sido enviados para fora (distinto da diminuição devida à morte ou manumissão), e outros tenham ganhado, entretanto, se tomados todos os municípios em conjunto, os dados mostram um aumento líquido na migração de 16.016 escravos.35 Não sabemos a relação entre os sexos dentre aqueles vendidos das cidades para o campo, mas provavelmente mais homens que mulheres foram enviados para as plantações. As mulheres estiveram presentes no tráfico transatlântico de escravos parcialmente em razão de decisões tomadas na África por outros africanos,36 mas é notável que mesmo entre os escravos nascidos no Brasil e embarcados para o Rio de Janeiro de outras partes do país, a maioria era de homens. É possível que a grande proporção de mulheres nos trabalhos domésticos pode ter levado os vendedores a preferir se desfazer dos homens, mas a demanda por trabalhadores agrícolas no Sul é uma explicação mais provável. Num exemplo examinado por Klein, entre os 978 escravos que chegaram no Rio em 1852, a relação entre homens e mulheres era de 182 para 100, e Conrad cita um informe consular britânico preparado em Pernambuco acerca da exportação de 606 escravos (provavelmente tanto africanos como crioulos) na qual a taxa era ainda mais desequilibrada: 209 para 100. Em 1884, a população escrava total do país era 53% masculina, mas neste mesmo ano os homens nas províncias produtoras de café chegavam a 34 35 36 José Flávio Motta e Renato Leite Marcondes, “O comércio de escravos no vale do Paraíba paulista: Guaratinguetá e Silveiras na década de 1870”, Estudos Econômicos, 30, 2 (2000), pp. 282-90. Cálculos baseados no “Quadro estatistico da população escrava matriculada até o dia 31 de dezembro de 1878 com as alterações occorridas até aquella data”, in Rio de Janeiro (província), Presidente, Relatorio, 08/09/1879, Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1879, apêndice. O registro de escravos de 1872/73 estava quase completo já no fim de 1872 porque depois desta data os donos teriam que pagar uma taxa extra para fazê-lo (e queriam registrar seus escravos para proteger seus direitos de propriedade), Robert Slenes, carta particular, 14/07/2000. David Eltis, The Rise of African Slavery in the Americas, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 2000, pp. 105-113. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 135 55%, enquanto que nas províncias exportadoras do Nordeste, sua percentagem era apenas 49%.37 Em resumo, as mulheres ficavam para trás enquanto os homens eram enviados para o Sul. Todavia, este execrando tráfico incluiu muitas mulheres. Se a proporção atingida em 1852 continuou a ser mantida (35% feminina), isto significa que 3.500 mulheres escravas estavam chegando anualmente no Rio de Janeiro por volta dos anos 1870. Destas, muitas, talvez a maioria, terminaram como domésticas, enquanto outras se destinavam à prostituição. Sandra Lauderdale Graham notou que pelo menos um importador no Rio de Janeiro chegou a se especializar no suprimento de bordéis. Nestes casos as mulheres iam para as madames quase imediatamente após a chegada no Rio de Janeiro, embora outras definhassem no estabelecimento do fornecedor por semanas ou meses até que este lhes arranjasse algum lugar, às vezes nas mãos de uma proprietária pobre que dependia da renda de uma única prostituta escrava para aumentar o parco orçamento. Os compradores, sem dúvida, avaliavam e inspecionavam tais mulheres com muito mais cuidado e com diferentes critérios do que o usual para outras compras de escravos que pudessem fazer. Os importadores normalmente indicavam as ocupações destas mulheres como sendo serviçais domésticas, mas em 1871 a polícia encontrou muitas mulheres escravas “postas à janela a jornal”; aquelas que foram alforriadas como resultado do escândalo do momento eram jovens mulatas, quase todas vindas das províncias nordestinas.38 A maioria dos escravos envolvidos no tráfico interno, fossem homens ou mulheres, estavam na idade de trabalhar. Os exemplos de Klein e de Conrad mostram que entre 84 e 86% tinham idades entre os 10 e 40 anos. O exemplo de Klein mostra uma clara concentração (38%) de escravos na faixa dos vinte anos, e, no exemplo de Conrad eles são ainda mais jovens, com 57% deles entre os 11 e 20 anos e outros 14% entre 5 e 10 anos.39 Dados coletados por Erivaldo Fagundes Neves acerca das 37 38 39 Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, p. 571; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 61, 286. Também consultar Conrad, World of Sorrow, p. 175. Sandra Lauderdale Graham, “Slavery’s Impasse”, pp. 671-72, 680 (citado), 681. Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, p. 572; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 61, notas Veja também Warren Dean, Rio Claro: A Brazilian Plantation System, 1820-1920, Stanford, Stanford University Press, 1976, pp. 57-58. 136 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 vendas para o tráfico interprovincial do interior da Bahia, entre 1874 e 1884, mostram que dois terços de tais escravos tinham entre 11 e 30 anos.40 É possível que as crianças freqüentemente não fossem contadas ou fossem subcontadas, mas é mais provável que os baixos preços obtidos por crianças muito novas não compensassem o custo de seu transporte.41 Se este foi o caso, isto significou uma maior probabilidade de separações dolorosas, já demasiadamente comuns. O fato de que os escravos eram tratados como propriedade diante da lei significa que regras comerciais governavam o tráfico de escravos e sua venda era sujeita a impostos, calculados na metade da taxa cobrada sobre as vendas de imóveis (a meia sisa). Uma vez que o escravo envolvido no tráfico passava de mão em mão — por exemplo, do vendedor para o traficante de escravos em Salvador, para o capitão do navio rumando para o Rio de Janeiro, aqui para outro traficante, depois para alguém levando os escravos para uma cidade do interior, e finalmente para o fazendeiro de café necessitado de trabalhadores —, tal taxa teria sido proibitiva se cobrada em cada transação. Em vez disso, o vendedor, em troca de uma compensação adequada, passava uma procuração para o primeiro traficante dando a ele o direito de vender o escravo ou de transmitir os mesmos poderes a outros. Este instrumento legal podia então ser passado adiante até chegar ao comprador final. Somente então este pagava o imposto.42 Restrições ao tráfico Em contraste com o esforço governamental para encorajar o tráfico das cidades para as regiões rurais vizinhas, tentativas de restringir a venda de escravos através das fronteiras provinciais tiveram uma longa histó40 41 42 Neves, “Sampauleiros traficantes”, p. 102. Cf. os dados sobre os E.U.A. em Tadman, Speculators and Slaves, p. 171. Slenes, “Demography of Slavery”, pp. 155-57, e Slenes, “Grandeza ou decadência”, pp. 117-19 e 146 nota 40. Slenes mostra que o imposto provincial tinha sido uma porcentagem do valor da venda, mas passou a ser uma quantia fixa a partir de 1859. O imposto no âmbito nacional parece que ainda ficou sendo uma percentagem, de acordo com Candido Mendes de Almeida (org.), Codigo Philippino; ou, Ordenações e leis do reino de Portugal recopiladas por mandado d’el rei D. Philippe I..., Rio de Janeiro, Instituto Philomathico, 1870, Liv. I, Tit. 18, par. 9, nº 1 e Apêndice, p. 1387. Este imposto data de 1809 no regime do Príncipe Regente (depois D. João VI). Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 137 ria no Brasil, começando em 1700 quando, temendo o declínio da produção de açúcar, a coroa proibiu os senhores de engenho de venderem seus escravos para os garimpeiros de Minas Gerais. Tal lei se mostrou inexeqüível, como um governador logo percebeu, e a coroa a revogou em 1709.43 No século dezenove, quando as elites políticas e econômicas do Nordeste temeram que os proprietários urbanos de escravos pudessem vender todos seus escravos para as prósperas fazendas de café do Rio de Janeiro ou São Paulo e não para os senhores de engenho locais, elas tentaram medidas similares e, então, muitas destas províncias nordestinas impuseram taxas sobre as exportações de escravos. Na Bahia, as pessoas que deixassem a província com seus próprios escravos como servidores pessoais tinham que depositar uma caução que só poderia ser levantada se dentro de quarenta dias apresentassem uma certidão do chefe de polícia da outra província atestando que os ditos escravos estavam empregados “a serviço” da pessoa que os tinha levado.44 Como estes impostos de exportação provinciais tinham tido efeito insignificante, João Maurício Wanderley (depois Barão de Cotegipe), proprietário de um importante engenho na Bahia e uma força política em ascensão, tendo sido eleito para o Congresso Nacional, propôs um projeto em 1854 para também aplicar o tratado antitráfico de 1850, com todas suas cláusulas punitivas, ao tráfico de escravos interprovincial. A proposta provocou vigoroso debate e foi derrotada, mas seu propósito era claro: bloquear o fluxo de escravos do Nordeste para o Sudeste.45 Finalmente, os próprios fazendeiros do Sudeste ficaram preocupados com o acelerado fluxo de escravos para suas províncias. Já em 1871 um legislador provincial de São Paulo propôs impor uma pesada taxa sobre sua importação. Embora na ocasião o projeto não tenha ido adiante, no final da década, a maioria dos deputados o aprovou. O presidente da província primeiramente o vetou, mas mudou de opinião quando os principais fazendeiros do rico distrito cafeeiro de Campinas defenderam sua aprovação. A medida mais que dobrou o preço dos escravos. 43 44 45 De João de Lencastre (Governador-Geral) à Câmara, Salvador, 30/09/1700, in Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentos Históricos, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 192860, vol. 87 (1950), pp. 34-35; Higgins, “Licentious Liberty”, pp. 32-36. Jornal da Bahia, 04/02/1854, p. 3. Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 66. 138 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 A motivação por trás desta sua aparentemente enigmática atuação é tema de certa controvérsia, e os debates na legislatura paulista fornecem abundante munição para todas as partes nela envolvidas. Paula Beiguelman situa a decisão no contexto de uma crescente demanda por trabalhadores nas mais novas regiões cafeeiras da província de São Paulo, onde, acredita ela, os futuros cafeicultores anteviram que somente o fornecimento de imigrantes europeus poderia ser suficiente para satisfazer suas necessidades. Uma vez que sabiam que tais imigrantes eram relutantes em se transferir para o Brasil se tivessem que trabalhar ao lado de escravos, estes proprietários de terra apoiaram o incipiente movimento abolicionista e buscaram, como primeira medida, restringir o fluxo de escravos do Nordeste para sua região. Encontraram aliados entre os fazendeiros da área cafeeira mais antiga da província (bem supridos de escravos), os quais desejavam aumentar o preço dos escravos e com isto de seu “patrimônio”. Isto, diz ela, explica a imposição de impostos proibitivos sobre a importação de escravos para a província.46 Robert Conrad, ao contrário, argúi que o real propósito destas ações era evitar que o Nordeste ficasse livre de escravos e então pressionasse o Sudeste a abolir a escravatura. Desconsiderando aqueles discursos ocasionais dos deputados que apoiaram a lei denunciando a escravidão, Conrad insiste que o propósito da lei era, pelo contrário, preservá-la.47 Célia Maria Marinho de Azevedo se centra naqueles discursos que expressavam o medo de que uma avalanche de escravos poderia dominar os seus senhores pela superioridade numérica. Ela acredita que quando um deputado argumentou que o imposto iria diminuir “essa lepra que de todas as províncias do norte (...) vem para a nossa,” ele não estava se referindo à instituição da escravatura, mas aos próprios escravos e às supostas características de negros. O medo de rebeliões levou os representantes dos senhores de escravos a por fim à importação de mais escravos, a despeito da sua necessidade de trabalhadores numa economia em franca expansão.48 Seus dados e outras evidências discutidas abaixo 46 47 48 Paula Beiguelman, A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos, 2a. ed., São Paulo, Pioneira, 1977, pp. 33-38. Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 170-71. Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 112-13. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 139 me levam a concordar com este último argumento. Eu acrescentaria, entretanto, que os senhores de escravos sabiam que o tráfico de escravos expunha à opinião pública a verdadeira natureza desumanizante da escravatura, negando suas tentativas de pintá-la (para os outros e para si próprios) como uma mera forma de trabalho com muitas compensações, caracterizada pelo benevolente paternalismo no qual a punição só era aplicada como um corretivo útil e como último recurso. Era impossível manter tal mito diante dos escravos acorrentados nos navios, ruas, mercados de escravos ou marchando para o interior e, como um movimento abolicionista estava sendo organizado nas cidades pela primeira vez, manter o mito era mais importante que nunca. Em todo caso, no final de 1880 e começo de 1881, as províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro criaram impostos de tal monta que virtualmente proibiam a importação de escravos de outras províncias, assim pondo fim ao tráfico interprovincial de seres humanos.49 No âmbito nacional alguns deputados também tomaram medidas para proibir o tráfico interprovincial de escravos, retornando às idéias contidas na proposta feita por Cotegipe em 1854. Em 1877, um bem conhecido jurista, Agostinho Marques Perdigão Malheiro, discursou no parlamento para defender que comerciar escravos — comprar a fim de revender, agindo como intermediário —, tanto entre as províncias como em cada uma delas, deveria ser ilegal. O abolicionista Joaquim Nabuco em 1880 advogou que os transportados de uma província a outra por terra, fossem declarados livres e que todos os traficantes de escravos fossem pesadamente taxados, “para fechar de uma vez para sempre esses mercados de carne humana (...) esses focos de corrupção”. Como se pode conjecturar, estes dois oradores se opunham à escravidão, Nabuco como um radical, Perdigão Malheiro como um moderado. Mas um projeto similar foi proposto na mesma época por Antônio Moreira Barros, que pertencia a uma das mais importantes famílias de cafeicultores e era 49 Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, São Paulo, Difel, 1966, pp. 208-210; Slenes, “Demography of Slavery”, p. 161, nota 18; Martins, “Growing in Silence”, pp. 212, 230n. Slenes e Martins, que escreveram suas teses antes de ser publicado o livro de Célia Maria Marinho de Azevedo, aceitam a argumentação de Conrad, enquanto Emília Viotti da Costa já em 1966 era mais perspicaz e abrangente em explicar esta legislação. 140 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 ele próprio conhecido por sua estridente oposição à abolição.50 Finalmente, em 1885 uma lei foi aprovada libertando todos os escravos transferidos de uma província para outra. Uma vez que as mais importantes províncias importadoras já tinham inviabilizado o tráfico interno de escravos, a medida teve somente um pequeno efeito sobre o grosso do tráfico. Mas o ministro Conservador encarregado de implementar esta lei, para espanto da oposição e satisfação de muitos cafeicultores, declarou que para seus efeitos o Município Neutro (uma espécie de distrito federal desde 1834) deveria ser considerado parte da província do Rio de Janeiro, onde estava localizado. A cidade perdeu uma grande proporção de seus escravos entre 1885 e 1887, provavelmente por causa das vendas realizadas para as plantações.51 O tráfico como experiência As experiências dos escravos envolvidos no tráfico interno nunca foram boas. Muitos caminharam grandes distâncias rumo aos portos nordestinos para embarque para o sul e novamente do Rio de Janeiro ou Santos para as fazendas de café, sempre sob o olhar atento de um feitor. Outros, porém, fizeram todo o caminho por terra.52 Os escravos desconheciam seu destino, ainda mais que passavam de mão em mão e não do proprietário original diretamente para o novo, o que deveria ser bastante ruim. O ex-escravo entrevistado por Stein contou como, na década de 1880, ele tinha sido comprado por um traficante itinerante no Maranhão que o levou à cidade de São Luiz; ali foi vendido para um comerciante para ser transportado por mar para o Rio, onde foi guardado até que um fazendeiro de café do planalto o comprou e o enviou de trem até a sede do 50 51 52 Perdigão Malheiro, Discurso, 03/07/1877, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1877, 2, p. 26; Joaquim Nabuco, Discurso, 04/09/1880, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1880, 5, p. 36; Moreira de Barros, Discurso, 12/08/1880, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1880, 4, p. 194. Sobre Moreira de Barros ver Robert Brent Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil, Nova Iorque, Atheneum, 1972, pp. 60, 188, 233, e Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 170-171. Slenes, “Demography of Slavery”, p. 123; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 224, 234, 292. Conrad, World of Sorrow, pp. 178, 180, 183; Martins, “Growing in Silence”, pp. 211-12. Erivaldo Fagundes Neves acha que os 500 e tantos escravos vendidos de Caitité para São Paulo provavelmente foram levados a pé, o que me parece razoável. Neves, “Sampauleiros traficantes”, p. 108. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 141 município de onde ele foi levado para a fazenda.53 Ele teve mais sorte que a maioria: somente os mais ricos fazendeiros vinham ao Rio para fazer suas compras, pois os outros confiavam em intermediários do planalto que tinham contatos com outros comerciantes do Rio ou em condutores de tropas de mulas que entregavam o café na cidade e levavam de volta escravos, tomados em consignação, para venda. Em tais casos, o futuro do escravo permanecia numa agonizante dúvida, com uma sucessão de estranhos tomando posse dele ou dela. Tudo isto deve ter sido especialmente assustador para todos aqueles africanos que mais uma vez enfrentavam o transporte marítimo para portos distantes. Em 1852, os escravos eram geralmente embarcados de porto a porto no Brasil em pequenos grupos, muitas vezes em lotes de cerca de quatro, isto é, presumivelmente junto com outras cargas comerciais e não em navios negreiros. Em 1854, um jornal de Salvador, anunciou a partida para o Rio de Janeiro de um barco que tinha “muitos bons commodos tanto para passageiros como para escravos” e uma escuna que recebia “alguma carga miúda, e escravos a frete”. Por volta dos anos 1870, todavia, um maior número de escravos passou a viajar junto nos navios. Slenes encontrou exemplos de 51, 78 e mesmo 232 escravos transportados num único navio no tráfico interprovincial. Mas, em 1880, um passageiro reclamou que “não se pode viajar nos paquetes [a vapor] da Companhia Brasileira sem ser acompanhado desta carga humana destinada a ser vendida no Sul”. Portanto, navios exclusivamente destinados a transportar escravos parecem não ter sido comuns.54 Uma viagem por mar da Bahia para o Rio durava aproximadamente quatro dias num vapor (o meio de transporte preferido na década de 1870), muito menos que as cerca de seis semanas requeridas pelo tráfico da África, embora os escravos talvez ainda fossem acorrentados. E como um autor do século dezenove severamente lembrou aos seus leitores, uma grande proporção dos transportados através do Atlântico tinha morrido no processo de aclimatação e de adaptação à sua nova situação; ele supôs que isto não ocorria no mesmo grau entre aqueles transportados no Brasil, onde as 53 54 Stein, Vassouras, pp. 72-73. Klein, “Internal Slave Trade, 1852”, pp. 578-79; Jornal da Bahia, 22/02/1854, p. 4, col. 6; Slenes, “Demography of Slavery”, pp. 150, 174-75; Joaquim Nabuco, Discurso, 04/09/1880, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1880, 5, p. 35. 142 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 doenças eram praticamente as mesmas e a barreira da linguagem virtualmente ausente.55 Ainda assim, já na década de 1850, o tráfico foi descrito pelo futuro Barão de Cotegipe como um negócio repugnante. Ele disse que era um horror “ver crianças arrancadas das mães, maridos separados das mulheres, os pais dos filhos! Ide à a rua Direita, esse novo Valongo, e ficareis indignados e compungidos com o espetáculo de tantas misérias!”56 Uma vez que os escravos chegavam no Rio de Janeiro, o negociante a quem eles tinham sido consignados geralmente os tratava bastante mal. Um funcionário do governo descreveu como o maior fornecedor, Antonio Gonçales [sic] Guimarães, os amontoava num pequeno espaço, fazendo com que muitos ficassem doentes, e concluiu que, embora seu empreendimento fosse um dos melhores da redondeza, ele ainda “deixava muito a desejar”. Outro fornecedor, um sócio na firma comercial Duarte, Fonseca e Companhia, que recebia escravos de muitas províncias nordestinas e nortistas afirmava que eles “eram vestidos, alimentados, alojados e tratados do melhor modo possível,” e que os doentes eram enviados ao hospital. Contudo, dos 38 escravos que ele recebeu numa remessa da província do Ceará em 1879, 22 morreram quando estavam sob sua guarda.57 Como foi dito acima, dos portos do Rio de Janeiro e Santos os escravos eram forçados a andar longas distâncias para as fazendas do interior de São Paulo, Minas Gerais ou na própria província do Rio de Janeiro. Sidney Chalhoub conta como uma transação de venda de escravos ocorrida em 1870 não deu certo e acabou no tribunal. De sua história podemos vislumbrar algo do negócio. José Moreira Veludo formou uma parceria temporária com Francisco Queiroz para transportar escravos da cidade do Rio de Janeiro para Minas Gerais e lá os vender. Ambos eram portugueses; Veludo forneceu o capital e os escravos e Queiroz, cuja ocupação normal era caixeiro de comércio, entrou no acordo fornecendo o trabalho. Queiroz deixou o Rio com 24 escravos, homens e mulheres, três mulas, uma muda de roupa para os escravos, mantas, 55 56 57 Conrad, World of Sorrow, pp. 171-79; Soares, Notas estatísticas, p. 135. Cotegipe, Discurso, 01/09/1854, citado por Nabuco, Um estadista do Império, p. 209. Citado em Sandra Lauderdale Graham, Proteção e obediência: Criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 33. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 143 esteiras de dormir, um caldeirão para cozinhar, xícaras, pratos, café, açúcar e outros gêneros alimentícios (provavelmente farinha de mandioca e carne seca). Ele saiu em maio e voltou em agosto, tendo vendido vinte escravos e retornado com quatro sem vender. Alguns dos compradores depois reclamaram que eles tinham comprado mercadoria defeituosa, tal como um escravo que sofria de gota e que disse que tinha sido tratado disso nos últimos cinco anos.58 Com gota ou não, ele e seus companheiros tinham andado a pé uma distância de cerca de 200 quilômetros, sobre uma escarpa que subia do nível do mar a 800 metros. Queiroz, sem dúvida, tinha viajado montado numa das mulas e os escravos tinham provavelmente sido forçados a carregar parte de sua comida e equipamento. É razoável supor que a maior parte dos escravos que não ficavam nas cidades se mudavam desta forma para as terras que seriam sua nova casa, mesmo se em períodos posteriores algum trecho da viagem fosse feito por trem. Uma maneira produtiva de se pensar acerca do significado da experiência dos escravos no tráfico é considerar alguns casos individuais, relembrando que isto não quer dizer que sejam indivíduos “típicos”. As histórias que emergem dos registros judiciais do Rio, usados primeiramente por Sandra Lauderdale Graham, depois por Sidney Chalhoub, e subseqüentemente por muitos outros historiadores, podem sem dúvida ser multiplicadas não só naquela cidade, mas em outros lugares, incluindo as cidadezinhas onde os registros cartoriais são muitas vezes mais acessíveis do que os historiadores anteriormente pensavam. Quando uma quantidade suficiente destas histórias tiver sido recolhida, poderemos começar a tirar conclusões gerais, sendo cautelosos, todavia, em focar não numa imaginada média sociológica mas nos limites do possível. Enquanto isso, é útil analisar vários indivíduos que foram enredados no tráfico interprovincial de escravos. Cypriano, um africano falante Ioruba, foi envolvido no tráfico interno de escravos antes de 1850. De acordo com o testemunho de seu senhor, ele chegou em Salvador trazido da África em 1827 e foi batizado dois anos depois. Primeiramente foi colocado como aprendiz de um bar58 Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na corte, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 44-45. 144 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 beiro, aparentemente sem sucesso, e depois seu senhor o colocou para trabalhar como caixeiro num armazém. Cypriano, disse seu proprietário, “se fez tolo quando o quiz aplicar a caixeiro”; então em 1834 seu senhor o consignou para venda a um capitão de navio que se dirigia para a província do Rio Grande do Sul. Nesta província, entretanto, zelosos oficiais o apreenderam sob suspeita de ter sido mandado da África “depois da prohibição do tráfico de escravos” em 1831. Cypriano testemunhou que ele havia chegado a “nove luas” antes de ser enviado ao Rio Grande do Sul, que ele nunca tinha sido batizado, embora um colega seu escravo no armazém o tenha ensinado a rezar, e que, antes de ser enviado para o sul, suas únicas tarefas tinham sido trabalhar como carregador de lenha e de outras mercadorias pelas ruas de Salvador, isto é, não como aprendiz, em íntima proximidade com seu mestre. Testemunhas atestaram a veracidade das declarações do proprietário, mas ninguém, além do próprio Cypriano, falou a seu favor. O júri preferiu acreditar na história do proprietário e Cypriano voltou à escravidão, embora não esteja claro se no Rio Grande do Sul ou de volta a Salvador.59 Suas esperanças, surgidas com a ação estatal, foram destruídas pelos oficiais do mesmo estado. Luiz Gama teve uma experiência muito diferente. Sua mãe era uma mulher africana, já liberta na época de seu nascimento em Salvador. Implicada na preparação de uma revolta, ela foi forçada a abandonar a cidade, deixando Luiz para trás. Quando seu pai português enfrentou tempos difíceis, ele ilegalmente vendeu Gama como escravo com a idade de 8 anos, e o garoto foi levado para o Rio de Janeiro, depois para Santos e finalmente, a pé para a cidade de São Paulo, onde trabalhou como criado doméstico numa pensão. Ajudado por um hóspede, ele aprendeu a ler e escrever. Com dezessete anos fugiu, se alistou no exército, rebelouse diante da disciplina — que o fazia lembrar a escravidão — e foi desligado com desonra. Ele então encontrou emprego como compositor gráfico e logo começou a escrever artigos, assinando sua coluna “Afro”. Finalmente se tornou editor de jornal, poeta e se juntou às fileiras abolicionistas. Provou na justiça que tinha nascido livre e ao fazer isto 59 Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Auto Crime, 04/128/3 (M. 3175, nº 3), Autuação da petição de Joaquim de Almeida, 1834, fls. 7, v., 10, 35v.-36v., e Acareação e inquirição ad perpetuam (incluído no mesmo, mas com paginação em separado), fls. 4-4v., 6v. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 145 aprendeu os elementos da advocacia, conhecimento que o levou a trabalhar para outros afro-brasileiros, assegurando a liberdade a numerosos escravos no final dos anos 1870, levando os tribunais a reconhecerem que aqueles importados após 1831 eram legalmente livres assim como seus descendentes. Gama claramente se identificou com outros, cujas dificuldades eram semelhantes às suas.60 Honorata foi trazida por sua senhora, uma lavadeira, da Bahia no início da década de 1860 e foi forçada à prostituição com 12 anos. Quando tinha cerca de 19 anos, por vezes, teve que se virar por conta própria, pagando semanalmente uma determinada soma para sua senhora, providenciando sua própria casa, roupas, comida e encontrando seus clientes. O auto-sustento foi uma prática comum para escravos com profissão, homens ou mulheres, permitindo às vezes algum ganho extra para eventualmente comprar a própria liberdade. Quando Honorata contraiu uma doença pulmonar, talvez tuberculose, e buscou a ajuda de sua proprietária, esta em vez de providenciar cuidados médicos, mandou lhe bater. Como todas as prostitutas, ela era particularmente vulnerável a doenças venéreas e seguramente envelheceria prematuramente. Por outro lado, Honorata pôde contar com um cocheiro para lhe emprestar ou dar o dinheiro para satisfazer as demandas de sua senhora quando ela não ganhava os recursos necessários, e com seus clientes para a apoiar num eventual esforço para conseguir a liberdade legal. “Respeitáveis” proprietários de escravos viam a prostituição destes como uma ameaça à instituição e, por vezes, atacavam as pequenas “madames” que forçavam suas escravas a tal prática.61 Corina, uma mulata, foi vendida para o tráfico na Bahia com 20 anos, em março de 1867, e foi logo a seguir comprada, de um fornecedor na cidade do Rio de Janeiro, por uma mulher negra de meia-idade, proprietária de bordel, muito conhecida por sua coleção de “belíssimas (...) mulatinhas escravas (...) todas elas mais ou menos claras (...) todas moças, quase implumes”. Corina não continuou jovem por muito tempo. Quan60 61 Sud Menucci, O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama), São Paulo, Editora Nacional, 1938; Elciene Azevedo, Orfeu de carapinha: A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo, Campinas, Editora Unicamp e Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. Lauderdale Graham, “Slavery’s Impasse”, pp. 669-83. 146 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 do deu à luz, sua criança com alguns dias lhe foi tirada e entregue como enjeitada na Santa Casa, para que ela pudesse continuar a “prestar os seus serviços”. Corina foi tratada de muitas feridas sifilíticas que surgiram em suas pernas e virilhas, de uma inflamação nas glândulas linfáticas no lado de seu pescoço e de muitas erupções na pele. Quando ainda era atraente, e seus dias se estendiam do fim da manhã até as duas ou três da madrugada, foi capaz de juntar pelo menos três quartos de seu preço de venda num esforço para comprar sua liberdade.62 O tipo de liberdade que ela teria tido, devido à sua doença, só podemos imaginar. Do mesmo modo, não sabemos quantas das 3.500 mulheres embarcadas anualmente do Nordeste partilharam o destino de Corina, mas sabemos que ela não foi a única. O desejo de voltar para o norte, para os seus antigos e familiares lugares, emergiu como um tema comum entre os escravos no Rio de Janeiro e seus arredores. Um jovem escravo crioulo enviado de Salvador no começo dos anos 1870 e depois vendido para um fazendeiro de café, tentou sem sucesso retraçar sua trajetória. Bráulio, filho da escrava Severina, tinha sido uma criança tão turbulenta que feriu outro garoto e depois foi considerado “[que] procedesse (tão) mal”, que a certa altura a polícia foi chamada para puní-lo. Chalhoub descreve como seu destino piorou com a morte de seu senhor. Este “pardo escuro” foi colocado nas mãos de uma firma traficante de escravos em Salvador junto com sua mãe e irmão, mas enquanto estes foram mandados para o longínquo Rio Grande do Sul, Bráulio foi embarcado para a cidade do Rio e depois transferido para o município cafeeiro de Valença na província do Rio de Janeiro. De forma nada surpreendente, ele não agradou seu novo senhor, que o colocou mais uma vez à venda. Após ter sido propriedade de muitos outros, ele voltou ao Rio de Janeiro, onde se fez passar por livre, tomando ofício de carpinteiro. As cicatrizes em seus tornozelos feitas 62 Idem, ibidem, pp. 672-5, com informação adicional sobre o local da venda inicial gentilmente providenciada por Sandra Lauderdale Graham e tiradas dos autos no Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), Seção Judiciária, Caixa 1624, no 2781, Juízo de Direito da 2ª Vara Civel, Libello de Liberdade pela escrava Corina por seu curador, ré: Anna Valentina da Silva, Rio de Janeiro, 1869. A descrição do prostíbulo aparece num relatório de 1906, cheio de reminiscências, preparado por Dr. José Ricardo Pires de Almeida e citado em Luiz Carlos Soares, Rameiras, ilhoas, polacas...; A prostituição no Rio de Janeiro no século XIX, São Paulo, Ática, 1992, p. 44. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 147 por um tronco de ferro o traíram e a polícia o prendeu sob suspeita de ser escravo. Quando seu proprietário visitou o Rio foi à cadeia para ver se havia algum fugitivo e facilmente retirou Bráulio de uma fila. Todas estas mudanças de um lado para outro, ocorreram antes que ele tivesse vinte e um anos. Na primeira oportunidade que teve após ter retornado para seu senhor, Bráulio enfiou uma lima — usada para fazer palitos de dente de ossos — no peito do mesmo, admitindo que pretendia matá-lo porque seu proprietário era extremamente violento e já tinha matado dois escravos que o tinham desobedecido. Bráulio afirmou que preferia a pena de morte a continuar a estar sujeito a este homem.63 Por tais ações Bráulio desafiou não só seu senhor mas a escravatura e as instituições destinadas a protegê-la. Para ele, e sem dúvida para outros, a morte não poderia ser pior que a escravidão. Uma vez que esta decisão fosse tomada, o sistema estava desdentado. Em 1878, com 27 anos, o escravo Serafim, nascido de um casal africano em Alagoas, foi embarcado para o sul num navio a vapor junto com outros seis escravos. Dois traficantes, um em Alagoas e outro no Rio de Janeiro, acertaram a transferência. Enquanto os outros escravos logo encontraram compradores, Serafim deu um jeito para mostrar sua inabilidade para qualquer emprego, insistindo em ser mandado de volta a Alagoas. Finalmente adoeceu e teve que ser tratado no hospital. Depois atacou um colega escravo e o traficante chamou a polícia; foi preciso dois policiais para o submeter e levá-lo dali. Por fim, outro traficante o encaminhou para Minas Gerais e o vendeu a Domingos Pedro Robert, filho de francês, para trabalhar na lavoura de café. Serafim logo fugiu de volta para o Rio de Janeiro, viajando à noite a pé, e sendo alimentado por escravos de outras fazendas que devem ter apoiado sua empreitada. Em 1884, Serafim foi preso no Rio por ter lutado com um cocheiro e um policial. Ele prontamente declarou que era escravo de Robert, mas este preferiu abandoná-lo — libertando-o — do que gastar a soma necessária para recuperá-lo e enviálo para Minas Gerais o que, julgou Robert, excedia o valor de Serafim.64 Na verdade Robert tinha sido derrotado; quantos outros senhores tinham percebido a futilidade de seu esforço em manter a autoridade? 63 64 Chalhoub, Visões da liberdade, pp. 54-56. Idem, ibidem, pp. 59-65. 148 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 A venda, na maioria das vezes, era um momento de separação e dor. Como um reformista afirmou, o “que se fazia com os índios, faz-se hoje com os escravos, assim deshumana e barbaramente arrancados ao lugar do seu nascimento, de suas affeições, e às famílias”.65 Os transferidos se viam isolados de seus contatos humanos costumeiros. A estranheza do novo ambiente que encontravam certamente aumentava seu desânimo. Mães, irmãs, companheiras e crianças deixadas para trás devem ter sido devastadas pelo vazio deixado por aqueles mandados para longe. Um caso extremo é relatado por Hebe Maria Mattos de Castro: a escrava Justina além de cuidar de seus três filhos, também cuidava da criança de outra mulher que tinha sido vendida para o tráfico, deixando seu filho para trás; quando Justina acreditou que o mesmo destino estava para acontecer com ela, afogou seus filhos e tentou o suicídio.66 Também ela, devido ao tráfico interno de escravos, terminou por lançar uma intolerável luz na horrível realidade da própria escravatura. Hoje em dia não é preciso mais repetir que os escravos davam grande valor aos laços familiares. Como um ex-escravo afirmou em 1835, ele tinha “uma casa, filho, e tudo aquilo que conta na vida”, e não esperava ser, pela força, removido da Bahia.67 Uma evidência de tais compromissos com a família é que, uma vez libertos, os membros da família faziam tenazes esforços para restabelecer os vínculos com aqueles dos quais tinham sido separados pela venda. Isto era particularmente difícil de ser feito se os escravos fossem vendidos não para uma fazenda vizinha, onde existia a possibilidade de contatos contínuos ou ao menos de se receber notícias, mas para um traficante que os enviaria através do tráfico interprovincial para uma região distante. Maria Ana de Souza do Bomfim, uma mãe que tinha sido alforriada na Bahia, foi para o Rio de Janeiro em 1868 procurar sua filha Felicidade, que para lá tinha sido vendida muito antes. Lauderdale Graham mostra que, quando Maria Ana chegou ao Rio, sua filha já tinha sido entregue a um comprador em Minas Gerais. A mãe então contratou um fornecedor de escravos do Rio, 65 66 67 Agostinho Marques Perdigão Malheiro, Discurso, 03/07/1877, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1877, 2, p. 23. Mattos de Castro, Das cores do silêncio, pp. 124-27. Felipe Francisco Serra citado em Reis, Slave Rebellion, p. 226. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 149 pagando-o para ir a Minas Gerais procurar a sua Felicidade, comprá-la e trazê-la com ele para o Rio onde Maria Ana iria pagar sua alforria em prestações. Este plano deu certo, até que a mãe deixou de fazer dois pagamentos e houve uma batalha judicial acerca do estatuto jurídico de Felicidade. Sua mãe finalmente conseguiu que Felicidade fosse considerada coartada, isto é, libertada condicionalmente com a obrigação de fazer pagamentos até completar seu preço de venda, e o tribunal decidiu que tais pagamentos podiam ser convertidos na obrigação das duas, mãe e filha, prestarem serviços por um período de três anos. O senhor de Felicidade concordou com esta solução, disse ele, por causa do “espírito de insubordinação de que é natural estar possuída”.68 A busca e perseverança de Maria Ana foi finalmente recompensada, e a insubordinação de Felicidade, reconhecida como “natural”, só podia significar um questionamento da viabilidade do sistema. Na década de 1820, Maria Lourindo e seu marido Casemiro tinham sido escravos de um senhor de engenho de importante família pernambucana. Isto não os impediu de serem separados de sua filha Victoriana; um traficante embarcou mãe e pai para o Rio Grande do Sul, mas o destino de sua filha permaneceu um mistério. Trinta anos depois a mãe enviuvada, agora liberta, colocou um anúncio num jornal pernambucano, esperando encontrar Victoriana ou seus filhos, se ela tivesse tido algum.69 Não sabemos se teve sucesso em localizar sua filha, mas seu esforço fala do devastador efeito do tráfico interno de escravos e da persistente afeição materna. Devido à importância de tais ligações familiares, quebrá-las trazia sérias conseqüências pessoais e sociais. Ser vendido para ser levado da cidade para uma plantação no interior ou de uma cidade ou fazenda para outra província era visto, pelo escravo e senhor, como uma punição. Não se fazia irrefletidamente. A única ocasião, antes de 1850, que escravos foram embarcados da Bahia para o Rio de Janeiro em número relativamente grande foi logo após a famosa revolta “malê” dos escravos africanos e libertos, ocorrida em Salvador em 1835. Carlos Eugênio Líbano Soares mostra que 98 de tais escravos — só dois nascidos no Brasil — chegaram ao Rio de Janeiro vin68 69 Lauderdale Graham, Proteção e obediência, pp. 81-82; Chalhoub, Visões da liberdade, p. 51. Idem, ibidem, pp. 97, 186 nota 76. 150 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 dos da Bahia num navio, e João José Reis contou mais de 380 escravos vendidos para fora da Bahia em abril daquele ano.70 É verdade que, como Sílvia Hunold Lara, Sidney Chalhoub e Flávio Santos Gomes mostram, freqüentemente os escravos desejavam ser vendidos para outro senhor para escapar do controle daqueles extremamente duros; alguns chegavam até mesmo a indicar uma pessoa específica a quem desejavam ser transferidos.71 Mas não encontrei evidência de nenhum escravo pedindo para ser vendido para o impessoal tráfico interno. Pelo contrário, descobri o caso de um escravo que ficou tão enraivecido quando sua senhora lhe disse que ele seria vendido que ele a atacou e tentou matá-la. João Reis conta que um grupo inteiro de escravos que se rebelou, sem sucesso, quando seu senhor anunciou a decisão de vendê-los para o tráfico interprovincial.72 Alguns escravos se mudaram de uma região para outra na companhia de seus senhores e presumivelmente com a maioria dos outros escravos com quem eles tinham trabalhado, como parte de uma unidade familiar completa, incluindo suas mulheres e filhos. Vimos que alguns destes movimentos ocorreram no século dezoito entre as regiões produtoras de açúcar do Nordeste e as áreas de mineração de Minas Gerais e alguns senhores de escravos desta última se mudaram para províncias do Rio de Janeiro e São Paulo no começo do século dezenove para plantar café. É bem sabido que muitos fazendeiros de café — ou seus filhos — se mudaram das exauridas terras de café do vale do Rio Paraíba do Sul na província de São Paulo para a recém aberta área do centro-oeste paulista nos anos 1870, levando seus escravos com eles.73 Foi dito acima, entretanto, que isto ocorreu no Brasil muito menos que nos Estados Unidos, sugerindo que o trauma da venda foi mais comum para os escra70 71 72 73 Carlos Eugênio Líbano Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas, Ed. Unicamp, 2001, pp. 358 e 418 nota 58; Reis, Slave Rebellion, p. 222. Sobre o medo no Rio de Janeiro, provocado pela chegada de escravos da Bahia após a revolta dos malês, veja Flávio dos Santos Gomes, Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, pp. 256-259. Silvia Hunold Lara, Campos da violência: Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 69-70, 158-63; Chalhoub, Visões da liberdade, pp. 68-73, 76-78; Gomes, Histórias de quilombolas, pp. 346-349. Reis, Slave Rebellion, p. 223. Costa, Da senzala à colônia, pp. 60-62; Pierre Monbeig, Pionniers et planteurs de São Paulo, Paris, Colin, 1952. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 151 vos do tráfico interno no Brasil. E mesmo para aqueles que se mudaram com seus proprietários, se pode afirmar que alguns dos familiares e amigos dos escravos foram deixados para trás, tanto porque pertenciam a outra fazenda, quanto porque o proprietário em mudança podia se desfazer dos escravos menos úteis, numa espécie de “venda por motivo de mudança”, para comprar outros novos, no auge da idade de trabalho, para levar. Assim, como o caso de Honorata demonstra, mudar com o proprietário não significava necessariamente ter melhor sorte. Deve ser lembrado que os escravos sempre foram vendidos de uma fazenda para outra; se perto o suficiente de sua antiga localidade, um escravo podia visitar seu cônjuge, amante, filhos ou pais num dia de folga, ou aproveitar o tempo de descanso para caminhar quilômetros à noite para fazer isto. As condições de trabalho em tais casos podiam ser similares em ambas as propriedades. Ou, se um escravo era transferido, como pode ter ocorrido nas províncias do Rio de Janeiro ou Minas Gerais, de um engenho de açúcar ou mina para uma fazenda de café relativamente próxima, o trabalho poderia, até mesmo, tornar-se mais leve. Embora o choque pessoal causado por tal tráfico não possa ser questionado, ele pode ter sido menor do que as experiências de esgarçamento vividas por aqueles enviados para lugares distantes e desconhecidos. Quando o tráfico representou uma mudança do pequeno proprietário para a grande plantação, como foi particularmente característico no tráfico interprovincial de escravos, o relacionamento entre escravo e senhor foi profundamente alterado, como Hebe Maria Mattos de Castro demonstrou.74 O escravo, ou a escrava, dificilmente poderia esperar que seu novo senhor soubesse o nome de uma centena ou mais de escravos e, em todo caso, eram entregues a um capataz ou feitor, intermediários desconhecidos numa pequena propriedade. As normas de comportamento e as expectativas dos escravos diante do que seria a posição apropriada do senhor tinham agora que ser reaprendidas e provavelmente questionadas. O significado do tráfico interno para aqueles 200 mil ou mais escravos que, só no período pós-1850, foram arrancados dos ambientes familiares, separados dos que amavam, transportados por grandes dis74 Mattos de Castro, Das cores do silêncio, pp. 129-33. 152 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 tâncias e coagidos a trabalhar em tarefas estranhas por senhores ou capatazes que não conheciam, não pode ser plenamente deslindado com as fontes que temos; mas podemos tentar. Um tráfico perigoso Relativamente jovens, desentranhados da vida social de uma comunidade, violentamente impedidos de manter contatos com a família e amigos — o que poderia ter exercido uma influência moderadora no comportamento —, os homens assim transportados provavelmente estavam irados, ressentidos, ansiosos, menos constrangidos por expectativas sociais e certamente prontos a explodir. Homens sozinhos sempre tiveram menos a perder por sua resistência ativa. Muitos observadores notaram que os escravos recém transferidos eram mais rebeldes que os outros, sendo uma fonte, como disse o abolicionista Joaquim Nabuco, de “desordem e perturbação” na província de São Paulo, ameaçando seu desenvolvimento, que tinha sido tão promissor, disse ele, quando ela tinha confiado predominantemente no trabalho livre.75 Em 1854 os fazendeiros de café do vale do Rio Paraíba do Sul formaram uma comissão para assegurar que todos estariam preparados para qualquer eventual insurreição de escravos de suas fazendas, uma vez que o perigo tinha aumentado, acreditavam eles, “hoje que as fazendas estão se abastecendo com escravos vindos do Norte”.76 Um historiador do Pará, trabalhando junto às fontes, descreve os escravos crioulos comprados de outras partes do Brasil no século dezenove como sendo mais “turbulentos” do que os da África.77 É lógico concluir que aqueles que tinham sido arrancados de seu lugar tenderiam a culpar o próprio sistema escravista, pois sua experiência não só os colocou numa situação de hostilidade face a seus novos proprietários, mas indicou a eles que os arranjos implicitamente negociados com os 75 76 77 Joaquim Nabuco, Discurso, 04/09/1880, Brazil, in Câmara dos Deputados, Anais, 1880, 5, p. 35. O fluxo de escravos vindo da Bahia depois da revolta dos malês em 1835 também foi culpado, na época, pelo aumento de rebeldia entre os escravos e libertos, Soares, Capoeira escrava, pp. 355-91, esp. p. 390. Instrucções para a commissão permanente nomeada pelos fazendeiros do municipio de Vassouras, Rio de Janeiro: Typ Episcopal de Guimarães, 1854. Sandra Lauderdale Graham me mostrou esta fonte. Salles, O negro no Pará, p. 52. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 153 antigos proprietários tinham sido um mero exercício de tapeação. Os senhores que compravam tais escravos sentiam a inquietação entre eles. Os senhores de escravos, capatazes e feitores precisavam conhecer e ter alguma compreensão sobre os escravos e estes precisavam conhecer aqueles que lhes davam ordens, e isto já não ocorria. A verdade é que o controle sempre tinha sido problemático e era o resultado de uma intrincada negociação silenciosa, contingente a situações específicas e sempre contestado. Tudo isto agora estava sendo questionado, como mostram muitos autores, e a resistência escrava se tornava mais clara que nunca. Um deputado paulista reclamou que estes escravos traziam “com eles vício, imoralidade, insubordinação (...) Aqueles fazendeiros que compravam escravos de fora” abrigavam “assassinos (...) em suas casas”. Outro disse que a “situação crítica e lamentável que atravessa a nossa província, recebendo diariamente dos portos do norte, não braços que venham aumentar as suas rendas e, conseguintemente, concorrer para a sua prosperidade, mas, em regra geral, ladrões e assassinos que vêm perturbar a paz do lar doméstico e conservar em constante alarma e sobressalto as famílias e, finalmente, as pequenas povoações“. O presidente da província do Rio de Janeiro declarou que os escravos trazidos para o sul pelo tráfico interno “não trazem a resignação e contentamento de sua sorte, que são essenciais à boa ordem delas,” e esperava que restringindo o tráfico poderia ajudar a manter “a ordem e tranqüilidade dos estabelecimentos rurais”.78 Um estudo realizado por Robert Slenes sobre Campinas, uma cidade predominantemente cafeeira, mostra que a comparação entre propriedades vizinhas aponta para uma maior inquietação naquelas com mais escravos recém chegados, pela via do tráfico interno, do que naquelas com um plantel mais estabelecido.79 Em resumo, os atos de resistência individual provocada pelo trauma do tráfico interno de escravos fez elevar o custo de supervisão e segurança para os senhores e minou a própria instituição da escravatura. Tanto os senhores quanto seus críticos estavam conscientes de quão precária a velha ordem estava se tornando. 78 79 Citados, respectivamente, em Dean, Rio Claro, p. 137; Azevedo, Onda negra, medo branco, p. 117; e Lana Lage da Gama Lima, Rebeldia negra e abolição, Rio de Janeiro, Achiamé, 1981, p. 98; a última citação também aparece em Stein, Vassouras, p. 67n. Slenes, “Grandeza ou decadência”, 136. 154 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 A abolição final da escravatura no Brasil em 1888 resultou de inúmeros fatores, mas um dos mais importantes foi a ação dos próprios escravos. Dois principais aspectos deste seu papel, um geral outro específico, merecem ser destacados aqui. Como acabo de mencionar, sua resistência cotidiana, durante muitos anos, corroeu a autoridade da classe senhorial. Warren Dean nota que a agitação dos escravos cresceu após 1850, situação que atribui à declinante esperança de manumissão causada pela crescente dificuldade dos senhores em obter novos escravos após o fim do tráfico transatlântico e a conseqüente relutância em alforriar os que já possuiam. Mas também é verdade, como mostra Célia Maria Marinho de Azevedo, que tal como uma vez se pensara, que os africanos eram mais propensos à revolta que os crioulos, os contemporâneos notaram que os crioulos que tinham sido enviados de uma província para outra ou da cidade para o campo eram mais inclinados à violência ou à fuga do que aqueles criados na fazenda.80 Como os índios referidos no início deste artigo, os escravos transportados pelo tráfico interno estiveram particularmente dispostos a resistir abertamente à sua situação angustiante e, a despeito de terem sido mudados, conheciam, como os índios, o suficente sobre a paisagem — mais sobre a social que a física, e mais sobre as cidades e campos cultivados que sobre as florestas — para subverter as regras da escravidão. Certamente, tal como Maria Helena Machado, Célia Marinho de Azevedo e Flávio Gomes argumentam, as últimas décadas da escravidão viram muita agitação e inúmeros assassinatos de senhores e capatazes, embora não esteja plenamente assente se estes incidentes tenham ou não ocorrido mais do que anteriormente. Afinal de contas, todos sempre dizem que as coisas estão pior agora do que antes, e os três autores confiaram em testemunhos, não em dados quantitativos, e nem mesmo estudaram sistematicamente a forte evidência da violência escrava anterior e o medo então criado.81 Deve 80 81 Dean, Rio Claro, pp. 60, 127; Azevedo, Onda negra, medo branco, pp. 188, 190. Sobre o incremento de rebeldia escrava ver Maria Helena Machado, O plano e o pânico: Os movimentos sociais na década da abolição, São Paulo, Editora UFRJ/EDUSP, 1994; Azevedo, Onda negra, medo branco, pp. 116-18, 180-99; Gomes, Histórias de quilombolas, pp. 329334. Não estou sugerindo que somente dados quantitativos iriam servir, como faz Ciro Cardoso em Ciro Flamarion Santana Cardoso, Hebe Maria Mattos de Castro, João Luís Ribeiro Fragoso, e Ronaldo Vainflas, Escravidão e abolição no Brasil: Novas perspectivas, Rio de Janeiro, Zahar, 1988, pp. 85-89. Como já apontei acima, depois da revolta dos malês, houve um pânico não só em Salvador, mas também no Rio e provavelmente em outros lugares. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 155 também ser levado em conta que, se a venda para um traficante era uma forma reconhecida de se livrar de um escravo problemático, isto é, que era mais difícil de ser disciplinado, então seguramente a proporção de tais escravos entre os traficados era mais alta do que entre os escravos em geral. Muito antes dos preços dos escravos começarem a subir, não era incomum encontrar casos como o de João, um escravo angolano vendido na Bahia, em 1847, com a condição de ser enviado para fora da província pois era “argüido de ter parte no assassinato de seu senhor” ou dos diversos escravos rebeldes entregues a um comissário “para os vender para o Maranhão”, isto antes de 1806.82 Por todas estas razões os senhores de escravos ficaram crescentemente preocupados com a disciplina e cada vez mais temerosos diante do comportamento dos escravos. Então, em 1887 e começo de 1888, os escravos contribuíram ainda mais específica e decisivamente para a extinção final da escravatura no Brasil. Uma fuga massiva de escravos das fazendas para as cidades tomou as autoridades de surpresa, inviabilizando, por seu elevado número, qualquer esforço para estancar tal fluxo. Nesta altura, muitos residentes urbanos incluindo operários e administradores das ferrovias, juízes, profissionais liberais, burocratas e soldados, tinham perdido a fé na escravidão como solução para o problema da mão de obra e se recusaram a cooperar em sua sustentação e talvez isto tenha ocorrido porque tenham testemunhado demasiadas cenas repugnantes de escravos acorrentados a caminho das fazendas do planalto como parte do tráfico interno de escravos; sendo que alguns ativistas das cidades chegaram a encorajar ativamente a fuga de escravos. No começo, os escravos fugiam secretamente à noite, mas logo fizeram isto abertamente, algumas vezes confrontando as autoridades equipadas com armas de fogo. Fazendeiros de café, desesperados para fazer a colheita, chegaram a contratar escravos fugitivos de outras fazendas, como já tinha ocorrido em outros momentos da história do Brasil.83 Quando o exército foi convoca82 83 Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, 04/1473/1942/05, Inventário e testamento de Joaquim Teixeira de Carvalho, 1841-47, fols. 56, 58 (citado); Stuart B. Schwartz, “Resistance and Accomodation in Eighteenth-Century Brazil: The Slaves’ View of Slavery”, Hispanic American Historical Review, 57, 1 (1977), p. 79. Sobre esta prática veja, por exemplo, Flávio dos Santos Gomes, “Jogando a rede, revendo as malhas: Fugas e fugitivos no Brasil escravista”, Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, 1 (1996), pp. 89-90. 156 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 do para manter a ordem, seus líderes desdenhosamente declararam que não desejavam ser encarregados “da captura de pobres negros que fogem à escravidão”.84 Diante deste fait accompli, quando a Câmara dos Deputados se reuniu em maio de 1888, seus membros apressadamente aprovaram a lei abolindo a escravatura. Como um deputado depois explicou, a lei “era ato que as circumstâncias impunham, ditado ao governo pelos (...) próprios lavradores, que não podendo conter a indisciplina nas fazendas nem os escravos que se insubordinavam, iam adiante da propaganda [abolicionista], concedendo ampla e plena liberdade aos seus escravos desde que o abolicionismo lhe tocava às portas”.85 Um ex-primeiro ministro e defensor da escravatura exclamava com asco: “Para que Lei de Abolição? De fato está feita — e revolucionariamente”.86 A despeito da posterior construção do mito que deu o principal crédito deste ato à generosidade da Princesa Isabel e à benevolência dos fazendeiros, a história do ativismo escravo foi claramente contada por Evaristo de Morais em 1924 e chamei a atenção internacional a esta versão em 1966. Neste mesmo ano Emília Viotti da Costa também descreveu estes eventos em seu magistral livro Da senzala à colônia.87 Nós três, entretanto, ainda tendíamos a colocar pouca ênfase no papel dos próprios escravos, desconsiderando sua autoconsciência e seu conhecimento do sistema geral. Evaristo de Morais e eu enfatizamos o papel do movimento abolicionista na definição das atitudes dos grupos urbanos, para que pudessem ser receptivos à fuga massiva de escravos, e Emília Viotti centrou seu estudo no quadro teórico que trata da mudança de uma sociedade senhorial para uma sociedade empresarial em São Paulo, de acordo com o qual os fazendeiros se desencantaram com o trabalho es84 85 86 87 Moção do Clube Militar, 26/10/1887, citado em Evaristo de Moraes, A campanha abolicionista (1879-1888), Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, 1924, p. 313. Joaquim Mattoso Duque Estrada Câmara (Mattoso Câmara), Discurso, 17/07/1888, in Brazil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1888, 3, p. 183. De Barão de Cotegipe ao Francisco Ignacio de Carvalho Moreira, barão do Penedo, Petrópolis, 08/04/1888, citado em Renato Mendonça, Um diplomata na côrte da Inglaterra: o barão do Penedo e sua época, São Paulo, Editôra Nacional, 1942, p. 397. Moraes, Campanha abolicionista, pp. 304-315; Richard Graham, “Causes for the Abolition of Negro Slavery in Brazil: An Interpretive Essay”, Hispanic American Historical Review, 46, nota 2 (1966), pp. 123-37, traduzido e publicado sob o título “As causas da abolição da escravidão no Brasil”, in Richard Graham, Escravidão, reforma e imperialismo (São Paulo, Perspectiva, 1979), pp. 59-78; Costa, Da senzala à colônia, pp. 300-329, esp. pp. 321-329. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 157 cravo, preferindo uma força de trabalho assalariada. Cleveland Donald, em sua tese doutoral de 1973, argumentou a favor de uma inversão na ênfase e sepultou definitivamente a visão de que os escravos somente entraram em ação quando persuadidos por brancos (como ele também fez num artigo sobre o Quilombo do Travessão, próximo à cidade de Campos, onde acentuou a intensa consciência política dos quilombolas).88 Em 1981, Lana Lage Lima ampliou seu trabalho sobre Campos, traçando especificamente o relacionamento entre escravos rebeldes e abolicionistas brancos.89 O principal passo à frente no estudo do papel dos escravos na provocação do fim da escravatura foi dado por Célia Maria Marinho de Azevedo que em 1987 focou seu estudo no medo da agitação escrava por parte das elites brancas em São Paulo.90 Maria Helena Machado levou o assunto ainda mais adiante em seu estudo, ricamente pesquisado, sobre os relatórios secretos da polícia, mostrando que, longe de ter sido um movimento que emergiu abruptamente em 1887, os escravos estavam ativa e deliberadamente lutando contra a instituição por toda a década de 1880.91 E estes autores são somente os mais proeminentes dos que começaram a destacar a iniciativa dos próprios escravos na configuração dos eventos. Bem é verdade que não temos evidências seguras de que os escravos que participaram das dramáticas fugas massivas de 1887-88, aos milhares, indicando com os pés a sua escolha, eram os mesmos envolvidos no tráfico interno de escravos. Mas a principal área de tais ações foi a província de São Paulo, província que tinha sido a mais importante na importação de escravos de outras regiões. Outro lugar que testemunhou a ação direta — e mais espetacular, pois ali os escravos queimaram os canaviais — foi o município canavieiro de Campos na província do Rio de Janeiro, descrito por Lana Lage Lima; esta foi uma das poucas áreas não cafeeiras da província a ter experimentado um crescimento no número de escravos entre 1873 e 1882. Tais fugas em massa ou sabotagem generalizada não ocorreram nos engenhos do Nordeste nos quais os es88 89 90 91 Cleveland Donald Jr., “Slavery and Abolition in Campos, Brazil: 1830-1888”, Ph. D. Diss., Cornell University, 1973; Cleveland Donald Jr., “Slave Resistance and Abolitionism in Brazil: The Campista Case, 1879-1888”, Luso-Brazilian Review, 13, 2 (1976), pp. 182-93. Lima, Rebeldia negra, esp. pp. 77-151. Azevedo, Onda negra, medo branco, pp. 203-214. Também ver Dean, Rio Claro, p. 144. Machado, O plano e o pânico. A historiografia sobre a abolição é traçada por João José Reis, “Abolicionismo e resistência escrava”, Revista da Bahia, 14 (1989), pp. 16-20. 158 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 cravos tinham crescido e onde estavam mais firmemente ligados à sociedade e cultura locais.92 Concluo que a deslocação provocada pelo tráfico interno de escravos contribuiu de forma poderosa para tais ações. Obviamente outros aspectos foram também importantes, e um dentre eles foi o momento. Por volta dos anos 1880 o mundo tinha mudado sua atitude frente à escravidão e o Brasil permanecia quase o único país escravocrata das Américas. Uma longa lista de leis tinha desfigurado a escravatura tal como ela tinha sido conhecida. O fim do tráfico transatlântico de escravos, a libertação das crianças nascidas de mães escravas após 1871, e a contínua (ainda que restrita) prática da alforria privada, combinada com a morte de milhares, tinha reduzido o número de escravos de 1,5 milhões em 1874 para 723 mil em 1887.93 A concentração da propriedade de escravos provocada pelo tráfico interno tinha diminuído de maneira significativa o número daqueles que, especialmente entre a crescente classe média, seriam negativamente afetados pela abolição. Ainda assim, a constante pressão, através de atos pequenos ou grandes, dos escravos contra o sistema, combinada com os dramáticos eventos de 1887-1888, deve ser considerada crucial.94 92 93 94 Lima, Rebeldia negra, pp. 98, 111-13, 126, 131, 137-139; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 294; Eisenberg, “Abolishing Slavery”, p. 587. Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 285. Um ponto de vista contrário é apresentado em Conrad, Destruction of Brazilian Slavery. Conrad argumenta que o tráfico interno, ao tirar escravos do Nordeste, levou os representantes desta região no Congresso a aderir ao abolicionismo. Mas estes legisladores, que legalmente nem precisavam ter ligações com as províncias que os elegeram, muito menos nelas residir, eram muito mais obedientes aos presidentes do conselho (i.e., aos primeiros ministros) do que aos votantes que os elegeram. Uma análise dos votos na Câmara em torno da proposta que acabou sendo a Lei do Ventre Livre de 1871, mostra que os mesmos indivíduos votavam a favor e contra medidas emancipadoras, dependendo inteiramente de quem chefiava o Ministério. Mas mesmo se os deputados fossem obrigados a obedecer aos senhores de engenho no Nordeste, há poucos indícios de que estes potentados locais, mesmo se indiferentes à causa abolicionista, pressionassem alguma vez seus representantes na Câmara a apoiar medidas abolicionistas, e muito menos impô-las ao Ministério e aos seus colegas __ um ato que, em todo o caso, seria improvável dada a diminuição do poder de sua região. A campanha abolicionista tinha seu centro nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, não no Nordeste. Em lugar nenhum do Brasil __ nem no Norte nem no Sul __ houve um esforço organizado em 1888 para mobilizar a opinião contra a adoção da Lei Áurea ou mesmo para revogá-la. O que os antigos donos de escravos reivindicavam era a compensação por suas perdas. Sobre o sistema eleitoral veja Richard Graham, Patronage and Politics in Nineteenth-Century Brazil, Stanford, Stanford University Press, 1990, esp. pp. 7198; sobre os votos na Câmara em 1871 consulte Guo-Ping Mao, “Homens e Cousas in the Age of Reform, Brazil, 1868-1889”, Ph. D. diss., University of Texas at Austin, 1997, p. 250; o esforço em prol da compensação é evidente nos debates na Câmara durante o segundo semestre de 1888, e.g., Brazil, Congresso, Câmara de Deputados, Anais, 1888, 3:129 e 4:441. Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 159 O progressivo medo entre os fazendeiros, especialmente entre aqueles das antigas áreas escravistas das províncias do sudeste, para quem a abolição representava somente o primeiro passo rumo a uma mais perigosa reforma agrária, encorajou a expansão de um Partido Republicano e abriu caminho para a aquiescência de muitos proprietários de terras à derrocada militar do Império no final de 1889.95 Outras questões também estiveram aqui envolvidas, naturalmente, mas se uma relação de causa e efeito pode ser estabelecida entre o tráfico interno que levou ao descontentamento dos escravos e este conduziu ao abandono das fazendas que, por sua vez, levou à abolição da escravatura que, por fim, conduziu à proclamação da República — então, tal como eu vejo, a importância política do tráfico interno foi transcendente. Estes resultados dificilmente teriam sido previstos em 1850, quando chegou ao fim o tráfico africano, mas eles fluíram das ações posteriores de incontáveis senhores e traficantes que arrancaram os escravos dos lugares e relacionamentos aos quais estavam acostumados no Brasil. Devido às progressivas dúvidas e fissuras na comunidade dos homens livres acerca da própria instituição, o tráfico interno de escravos representou uma virada perigosa para o sistema escravista. Cypriano, Luiz Gama, Honorata, Corina, Bráulio, Serafim, Maria Anna, Felicidade, Maria Lourindo e Victoriana, cada um a seu modo, sofreu e reagiu. Quer os escravos tenham vindo da cidade, roça ou engenho, quer tenham sido levados para longe ou relativamente perto, por mar ou terra, as normalmente horríveis condições da escravatura se tornaram mais claras tanto para os escravos quanto para os livres por meio desta nova travessia. 95 Richard Graham, “Escravocratas, latifundiários, e o fim do Império,” in Graham, Escravidão, reforma e imperialismo, pp. 179-195 (que reproduz um artigo publicado em 1970). 160 Afro-Ásia, 27 (2002), 121-160 A ESTABILIDADE DAS FAMÍLIAS EM UM PLANTEL DE ESCRAVOS DE APIAÍ (SP) José Flávio Motta Agnaldo Valentin* N ascida na primeira metade da década de 1750, Dona Anna de Oliveira Roza veio a falecer em fins de 1818 ou início de 1819. Da lista nominativa dos habitantes da Vila de Santo Antonio de Apiaí referente ao ano de 1817, último desses recenseamentos em que Dona Anna é arrolada, consta a informação de que essa viúva tinha 65 anos de idade. Encabeçando o rol de moradores de seu domicílio, ela era a única pessoa branca, vivendo cercada por outros 171 indivíduos entre homens e mulheres, pardos e negros, escravos e agregados forros, adultos e crianças, muitas crianças. De fato, do total de habitantes daquele fogo, cerca de dois quintos (40,1%) tinham menos de 15 anos de idade. O inventário de Dona Anna é datado de 11 de maio de 1819. Aos autos do processo encontra-se juntado o testamento, de 12 de novembro do ano anterior. Observando o orçamento demonstrativo dos bens da herança inventariada, ficamos sabendo que as avaliações resultaram num monte-mor de pouco mais de quinze contos de réis (Rs.15:059$695); e que pouco menos de dois terços (63,5%) dessa cifra correspondia ao * J. F. Motta é professor da FEA/USP e do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP e A. Valentin é mestre em História Econômica pela FFLCH/ USP. Os autores agradecem os comentários que receberam dos demais integrantes do N.E.H.D. – Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/USP, em particular os do Prof. Dr. Iraci del Nero da Costa, assim como as sugestões do parecerista da AfroÁsia. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 161 valor da escravaria possuída.1 Eram 97 cativos, mais da metade dos quais (49, isto é, 50,5%) com idades inferiores a 15 anos. Deduzidos do monte-mor alguns itens — por exemplo as custas do inventário, as despesas do funeral etc. — obteve-se o montante partível (Rs.12:090$256) que, a menos de determinados legados decorrentes das disposições testamentárias, foi partilhado entre 19 herdeiros. O principal dentre eles era Lourenço Dias Baptista, inventariante e sobrinho da falecida. Em seu testamento Dona Anna escreveu: “Declaro que sou natural desta villa de Apiahi filha legítima de Manuel da Roza Luiz e D. Maria da Anunciação, já falecidos e fui cazada com Mathias Leite Penteado já falecido (...) e que tive um filho de nome Joaquim, também já falecido”. O objeto de nosso estudo neste artigo é o conjunto formado pelas várias dezenas de cativos possuídos por essa longeva escravista apiaiense. Mais especificamente, nossa atenção está centrada nas relações familiares estabelecidas entre os membros desse grande plantel, e na estabilidade possível a caracterizar aquelas relações. Como fontes documentais utilizamos as acima mencionadas — as listas nominativas dos habitantes da localidade paulista de Apiaí,2 o inventário de Dona Anna de Oliveira Roza e seu testamento, transcrito no processo do inventário —, bem como os inventários de dois dos irmãos da viúva, Escolástica e José de Oliveira Roza,3 além dos registros de casamentos de escravos entre 1780 e 1818. 4 Procedemos ao acompanhamento, pois, da aludida escravaria, desde 1798 e, com maior minúcia, a partir de 1816, alguns anos antes do falecimento de Dona Anna, até os anos de 1820 a 1824, quando parte dos escravos analisados encontravam-se em domicílios nos quais residiam algumas das pessoas que figuraram entre as quase duas dezenas de beneficiários da partilha dos bens listados no seu inventário. Procuramos sopesar o efetivo impacto dessa partilha em termos da destruição/preservação das famílias escravas do plantel em tela. 1 2 3 4 Além da escravaria, destacamos do conjunto de bens inventariados: 196 cabeças de gado bovino, 31 eqüinos, 551 ovinos, 150 varas, 2 lavras, 2 conjuntos de casas e um engenho com 2 alambiques. As listas nominativas compõem o conjunto de documentos conhecidos como Maços de População, preservados no Arquivo do Estado de São Paulo, doravante denominado por AESP. Os inventários post-mortem mencionados estão depositados no arquivo do Fórum da Comarca de Apiaí. Os livros eclesiásticos de Apiaí encontram-se sob a custódia da Diocese de Itapeva, São Paulo. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 162 A Vila de Apiaí 5 A origem da vila de Apiaí vincula-se ao movimento de colonização da região sul da capitania de São Paulo. De um lado, a descoberta de ouro nas proximidades de Cananéia e Iguape logo após a ocupação da colônia no início da década de 1530 e, de outro, os novos veios que passaram a ser explorados próximo à vila de Sorocaba — mais precisamente no arraial de Nossa Senhora da Conceição de Paranapanema, já em princípios do século XVIII — são marcos referenciais para a formação da localidade em foco. Do primeiro desses dois eventos decorreu o trânsito de aventureiros em busca de novas rotas que pudessem atingir a parte espanhola da América. Como resultado dessa movimentação, encontramos referências à atividade mineratória em um local conhecido como Piahy pelo menos desde 1655, como revela o precioso levantamento feito por Ernesto Young nos arquivos da cidade de Iguape.6 No que respeita ao segundo dos eventos aludidos, desta feita pelo lado do planalto, a descoberta das minas de ouro situadas em local próximo ao rio Paranapanema atraiu, por volta de 1720, dezenas de mineradores em busca de riqueza semelhante àquela alardeada pelas minas das Gerais e de Goiás. Tais descobertas devem ter tido curta existência, fazendo com que parcela desta população se deslocasse em direção a Apiaí, região que vivenciou seu primeiro grande surto minerador em meados de 1730. A instalação da freguesia, denominada Santo Antonio de Apiahy, deu-se aos 2 de julho de 1736, na paragem conhecida hoje como Vila Velha do Pião. Segundo Luz, essa é a data da primeira missa, e também do primeiro assento de batismo, de uma criança escrava chamada “(...) Antonia, filha legítima de um casal de escravos do Capitão Mayor Francisco Xavier da Rocha, servindo como padrinhos, Crispim, escravo do mesmo Capitão e Rosa, escrava de Francisco Pedroso, todos residentes na freguesia”.7 No 5 6 7 Sobre a história de Apiaí, ver o estudo de Agnaldo Valentin, Nem Minas nem São Paulo: economia e demografia na localidade paulista de Apiaí (1732 – 1835), FFLCH/USP, dissertação de mestrado, 2001. Cf. Ernesto G. Young, “Esboço histórico da fundação da cidade de Iguape”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. II (1898), pp. 49-153. Rubens C. Luz, Santo Antonio das Minas de Apiahy, Itapetininga, Gráfica Regional, 1996, p. 200. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 163 início da década de 1750 a freguesia passou a ser denominada Santo Antonio das Minas de Apiahy. O período subseqüente parece ser marcado por um arrefecimento da extração de ouro. Em 1765, a freguesia aparece, no primeiro censo efetuado no governo do Morgado de Mateus, como integrante da vila de Sorocaba. Àquela data, Apiaí era composta por 43 fogos onde moravam 123 pessoas livres. Num desses domicílios, chefiado por Manoel da Roza Luiz, de 52 anos de idade, habitavam também sua esposa, Maria da Anunciação (32 anos) e os filhos do casal: Anna (13), Rita (12), Rafael (7), Bárbara (5), Rosa (4) e Escolástica (1). Desnecessário dizer que a mais velha dentre as crianças presentes no fogo em questão é a D. Anna, cujos escravos são o objeto de nosso estudo neste artigo. Ainda com relação a este mesmo domicílio, consta do arrolamento nominativo a informação de que a riqueza de Manoel igualava-se a um conto de réis. Em verdade, na capitania de São Paulo em 1765, a riqueza média por domicílio calculada para essa pequena freguesia (Rs.264$604) só era menor do que a concernente à vila de São Paulo (Rs.296$154) e era bem mais elevada que a computada para a capitania como um todo (Rs.106$699).8 Ao tomarmos, de outra parte, o total dos valores anotados a título de riqueza, observamos que ele atingia pouco mais de 11 contos de réis em Apiaí, cifra que só não era superada pela atinente à vila de Jacareí. Por fim, vale ainda referir que a riqueza média por pessoa em Apiaí, correspondente a Rs.92$504, era cerca de quatro vezes maior do que a verificada para o conjunto da capitania (Rs.24$233); era também superior à de todas as vilas então existentes consideradas isoladamente (em Santos foi calculado o maior valor, igual a Rs.83$592). Em 1771 a freguesia foi elevada à condição de vila. O recenseamento de 1776 indicou a presença de 161 pessoas livres e 273 escravos. Tal predomínio de cativos sugere a retomada das atividades mineratórias, estimuladas pela descoberta do “Morro do Ouro”, jazida que foi objeto de 8 Para os dados informados nesse parágrafo, exceto os atinentes a Apiaí, ver o clássico artigo de Alice P. Canabrava, “Uma economia de decadência: os níveis de riqueza na capitania de São Paulo, 1765/67”, Revista Brasileira de Economia, 26-4 (1972), p. 101. Os informes de Apiaí não são explicitamente referidos nos cálculos realizados por essa autora porque, como visto, tal freguesia, à época do recenseamento em foco, integrava a Vila de Sorocaba. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 164 intenso interesse por parte do Capitão-General da capitania durante o período 1775-1782, Martim Lopes Lobo de Saldanha. O impacto demográfico desse evento pode ser percebido pelo exame da lista nominativa de 1784: nesse ano, a população total de Apiaí alçou-se a 819 pessoas, sendo 325 livres (39,7%), 466 escravos (56,9%) e ainda 28 indivíduos forros (3,4%). Dessa forma, verificamos que o aumento populacional no período 1776-1784 foi de 88,7%, sendo de 101,8% entre os livres (ou 119,3%, se considerarmos conjuntamente livres e forros) e de 70,7% no caso dos escravos. Vale dizer, a população total cresceu a uma taxa geométrica de 8,2% ao ano, o conjunto formado pelas pessoas livres ou forras aumentou à taxa de 10,3% ao ano e o contingente escravo à taxa de 6,9% ao ano. Reconhece-se nesse período o segundo e último surto mineratório vivenciado pela localidade. Não há informes sobre o volume de ouro produzido nessa época; porém, um ofício da Câmara de Apiaí, dirigido ao governador da capitania em 5 de agosto de 1791, indica claramente a decadência das catas: “Ilmo. Sr. A estrada que vem do campo para estas minas está com tal ruína que quase impede o comércio, que V. Exa. tanto favorece em comum benefício dos povos desta Capitania como a Câmara destas Minas não tem ouro com que se [ilegível] nem ainda a esperança de o ter por se terem enfraquecidos as Minas e pela mesma razão ter enfraquecido as rendas da dita Câmara quase à metade (...)”. 9 Os sinais da perda de importância da mineração também estão presentes no recenseamento de 1798: apenas 25 dos 123 chefes de domicílios existentes na vila foram anotados como mineradores. A produção total de ouro informada nesse documento atingia a modesta quantia de 1.156 oitavas. Em resposta a este esgotamento das faisqueiras, alguns indivíduos procuraram diversificar suas atividades, seja através do cultivo de gêneros agrícolas em geral, seja optando pela lavoura de canade-açúcar e/ou pela produção de aguardente, ou ainda alugando seus escravos. Entretanto, destaca-se o elevado número de fogos cujos habitantes viviam como pobres (44 domicílios, 35,8% do total). Ademais, em 1798, o número de pessoas livres passou a superar o de cativos (474 versus 420), tendência que se manteve e mesmo se intensificou nos anos 9 AESP, ordem 239, caixa 52, pasta 1, Ordenanças. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 165 GRÁFICO 1 População total de Apiaí segundo condição social (Lista nominativa de habitantes; anos selecionados) População 1000 800 600 400 200 0 1720 1740 1760 1780 1800 1820 1840 Anos Livres Escravos subseqüentes (Gráfico 1). A lista de habitantes do ano de 1809, além de confirmar a perda do dinamismo econômico através da redução do número de escravos, também revela a definitiva mudança do perfil produtivo das unidades domiciliares: apenas dois domicílios apresentavam-se como mineradores e o mesmo número mesclava essa atividade com práticas agrícolas, sendo um deles o fogo onde residia D. Anna. Por outro lado, 61 domicílios (50% do total) dedicavam-se ao cultivo da terra e/ou à criação de animais. Não se percebe ainda a “febre” da cana, pois apenas em 4 (3,6%) fogos eram anotados o cultivo de cana e/ou o fabrico de aguardente como atividades principais.10 Ressalte-se ainda a presença de 24 domicílios classificados como pobres (19,7%, isto é, um peso relativo menor do que o verificado em 1798). No ano de 1816, as atividades agrícolas sem especificação eram 10 Sobre o cultivo da cana na Capitania de São Paulo no século XVIII, ver, por exemplo, os estudos de Maria Tereza Schorer Petrone, A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765-1851), São Paulo, Difusão Européia do Livro (1968) e Suely Robles Reis de Queiroz, “Algumas notas sobre a lavoura de açúcar em São Paulo no período colonial”, Anais do Museu Paulista, 21 (1967), pp. 109-277. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 166 realizadas em 92 fogos (56,8%); em 73 deles não havia escravos. Parece-nos bastante plausível sugerir que muitos dentre tais domicílios estivessem dedicados ao cultivo de subsistência, eventualmente com vistas apenas ao autoconsumo. No ano em tela eram já 21 aqueles envolvidos na plantação de cana-de-açúcar e/ou na produção de aguardente; praticamente metade desses fogos (10 unidades) utilizava seis décimos da mão-de-obra escrava (302 cativos, correspondentes a 60,8% da escravaria) que, segundo os dados compulsados, somava 497 almas. Não havia nenhum domicílio cuja atividade arrolada tivesse qualquer ligação com a extração de ouro. Na população livre, a redução da participação relativa de pessoas de cor branca era contínua: em 1809, esse contingente somava 188 pessoas (32,2%) versus 331 pardos (56,7%) e 65 pretos (11,1%). Em 1816, tais cifras passaram a ser, respectivamente, 240 (26,7%), 500 (55,6%) e 159 (17,7%). Isto equivale a uma taxa geométrica de crescimento de 7,6% ao ano para o conjunto formado por pardos e pretos e de apenas 3,5% ao ano no caso dos brancos. Esses informes que vimos apresentando permitem estabelecer um quadro geral do evolver da vila de Apiaí até alguns anos antes do falecimento de D. Anna. Com origem estritamente ligada à exploração do ouro, apesar da quantidade produzida mostrar-se inexpressiva quando comparada com os arraiais das Minas Gerais, Apiaí floresceu como uma localidade tipicamente escravista, atingindo seu auge por volta do início da década de 1780.11 Essa data marca o esgotamento definitivo dos veios auríferos e tem reflexos profundos no comportamento demográfico e econômico da vila. A força de trabalho escrava estabilizou-se nas duas primeiras décadas do século XIX, percebendo-se um declínio a partir de 1824. Concomitantemente, nos diversos domicílios apiaienses, contemplam-se atividades produtivas outras que não a mineração. Por um lado, os escravistas passam a privilegiar o cultivo e processamento da cana-de-açúcar, seguindo a tendência já observada na capitania paulista desde fins do século XVIII. Por outro, tem-se a maio11 Uma comparação da dinâmica observada em Apiaí com diversas localidades mineiras é feita por Agnaldo Valentin, “Ouro paulista: estrutura domiciliar e posse de escravos em Apiaí (1732 a 1798)”, Estudos Econômicos, 31-3 (2001), pp. 551-585. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 167 ria dos fogos, predominantemente não escravistas, vivendo às custas da agricultura de subsistência (autoconsumo ou trocas no mercado local). Adicionalmente, era significativa a parcela daqueles que nada possuíam, os quais, no decurso das duas primeiras décadas do Oitocentos, representavam de 15% a 20% das unidades domiciliares. Mudanças importantes também são percebidas na composição da população livre. Apesar de a população branca nunca predominar, pelo menos desde 1798, a redução de sua participação, de 37,4% no referido ano para 26,7% em 1816, aliada às taxas de crescimento anteriormente referidas, indica um aumento inequívoco de indivíduos pretos e mulatos entre os livres a tal ponto que, em 1816, 36,9% dos domicílios escravistas e 72,4% dos fogos não escravistas eram chefiados por essas pessoas. A lista nominativa de 1824, apesar de indicar uma redução sensível tanto no segmento livre (70% do total de habitantes) quanto entre os cativos (30%), como podemos observar no Gráfico 1, evidencia que se acentuam algumas das tendências antes apontadas. Assim, por exemplo, dos 133 domicílios registrados nesse ano, apenas 33 possuíam escravos (24,8%), vinculados principalmente à agricultura, acompanhada ou não da criação de animais (23 fogos). Percebemos também que a lavoura de cana-de-açúcar não vingou na vila, pois apenas cinco propriedades escravistas tinham como atividade principal o cultivo e/ou o processamento de cana, não obstante congregarem um terço (121 indivíduos) dos escravos presentes em Apiaí. Sobre os não proprietários de cativos, estes também estavam envolvidos com atividades agrícolas (51 dos 100 fogos nessa condição), decerto centrados na garantia da própria subsistência e, eventualmente, negociando algum excedente produzido. Ainda em 1824, os fogos que nada possuíam (ou pobres) atingiram quase um quarto do total (24,1%, ou seja, 32 domicílios), proporção um pouco superior àquelas observadas em anos anteriores. A composição da população livre apiaiense não sofreu alterações significativas, em que pese a perda populacional observada. Os brancos representavam pouco mais de um quarto (27,2%), enquanto mulatos e pretos respondiam por, respectivamente, 53,4% e 19,4%. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 168 As famílias escravas do plantel de D. Anna, 1816–1819: da estabilidade à ruptura Em 1816, no domicílio chefiado por D. Anna de Oliveira Roza viviam 198 pessoas. Além da viúva, havia 43 agregados e 154 escravos. Eram propriedade dos agregados dez dentre esses cativos e D. Anna possuía os 144 restantes. Os escravos dos agregados ilustram já com justeza a importância que as relações familiares poderiam assumir no seio da população cativa, seja da perspectiva dos escravos, seja da perspectiva dos proprietários.12 De fato, para muitos dos escravistas com menores recursos, numa região cuja economia, nas décadas iniciais do século XIX, decerto não se distinguia pelo dinamismo, a reprodução natural de seus cativos poderia ser a melhor ou mesmo a única maneira de obter um aumento do tamanho do plantel possuído. O arrolamento daquela dezena de escravos iniciava-se com Leandro, de 25 anos, solteiro e preto; a ele se seguia Guelemencia, de 27 anos, casada e também preta, e os quatro filhos desta (Marcelina, 7 anos; Escolástica, 4; José, 3; e Felipe, 2, os quatro de cor preta). Fechava a listagem outra família matrifocal: Vicência, solteira de 30 anos, parda, e seus filhos Manoel (8), Beatriz (5) e Floriana (3), todos pardos. Portanto, dos dez escravos, pelo menos nove integravam as duas unidades familiares presentes; e sete eram crianças com menos de 10 anos de idade. No conjunto formado pela escravaria da chefe do domicílio, com 144 cativos, eram 45 (31,3%) as crianças com menos de nove anos de idade. Todas elas pertenciam a famílias com ao menos um dos genitores presentes. Mais de oito décimos dos integrantes do plantel (81,9%, isto é, 118 escravos) compunham as 24 famílias por nós identificadas (Tabela 1), em apenas uma das quais não havia prole presente (o casal Francisco, de 45 anos, e sua mulher Joanna, de 42). O número médio de filhos igualouse a 3,3, sendo mais freqüentes os casos com dois (sete famílias), três (6 famílias) e quatro filhos (cinco famílias). Do total de 24 famílias, 14 eram 12 As listas nominativas de Apiaí nos anos de 1809 e 1816 indicam que os escravos com vínculos familiares representavam, respectivamente, 41,8% e 45,5% do contingente cativo presente na localidade (cf. Valentin, Nem Minas, nem São Paulo, p. 201). A sua vez, a participação de escravos casados e viúvos na escravaria com idade igual ou superior a 15 anos atingiu 38,4% em 1809, e 38,7% em 1816. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 169 compostas por casais escravos, 8 eram chefiadas por mães solteiras, uma por mulher casada e a restante por uma cativa viúva. A idade média dos cônjuges que formavam os casais escravos era de 42 anos para os homens e de 37,7 anos para as mulheres. A idade média das mães solteiras igualou-se a 32,1 anos. A cativa casada cujo cônjuge não foi identificado tinha 44 anos e, por fim, a viúva, arrolada com dois filhos presentes, tinha 36 anos em 1816. Tais valores das idades médias, bem como do número de filhos, apontam para vínculos familiares que se haviam estabelecido já há vários anos, e cuja duração denota a estabilidade daquelas relações. De fato, dentre os 80 filhos pertencentes àquelas 24 famílias, presentes e identificados na lista nominativa atinente àquele ano, quase a metade (35 deles) tinha 10 ou mais anos, e pouco menos de um quarto (18 cativos) tinha mais de 14 anos de idade. Tabela 1 Distribuição das famílias escravas e de seus integrantes de acordo com o número de filhos presentes (Domicílio chefiado por D. Anna, 1816) Número de filhos Número de famílias Número de escravos Total 24 118 0 1 2 1 1 2 2 7 25 3 6 28 4 5 27 5 2 13 7 1 9 10 1 12 A grande maioria desses 118 cativos integrantes das 24 famílias de 1816 foi identificada no inventário de 1819, a maior parte deles sendo partilhada entre os herdeiros de Dona Anna ou sendo por ela legados no seu testamento; outros, também por disposição testamentária, sendo beneficiados com a concessão de alforrias. Fornecemos, em Apêndice, um arrolamento das famílias em tela, feito a partir da lista nominativa de 1816, do testamento e do inventário. Encontramos, em 1819, 24 famílias, 22 das quais também presentes, com diversas alterações, em 1816; dois “novos” grupamentos familiares (números 23 e 24 no Apêndice) foram anotados com base no inventário. Três dos grupamentos de 1819 Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 170 eram constituídos por conjuntos de irmãos; nos 21 restantes, eram 67 os filhos, ou seja, uma média de 3,2 filhos por família. Em apenas uma dessas 21 famílias não havia prole presente: os dois filhos (Benedito, de 15 anos, e Vicência, de 13) do casal Antonio e Emerenciana (ambos com 50 anos de idade) que foram arrolados em 1816, deixaram de constar no inventário de 1819.13 O levantamento que realizamos dos registros paroquiais de casamentos corrobora a estabilidade vivenciada pelas famílias escravas em questão. Dessa forma, dos 16 grupamentos familiares, descritos no Apêndice e chefiados por casais (12), mulheres casadas (2) ou por viúvas (2), foi-nos possível identificar os assentos para 13 casos (81,3%), só não sendo localizados os lançamentos concernentes aos casamentos de três dos doze casais. Os enlaces pertinentes ocorreram entre novembro de 1780 e fevereiro de 1818 (por exemplo, em 26 de outubro de 1794, a escrava Marcela — família 19 no Apêndice — casava-se com Francisco Leite, indivíduo forro, de Sorocaba). Alguns dos matrimônios examinados, cabe salientar, diziam respeito a famílias nas quais um ou mais dentre os filhos presentes com maior idade haviam nascido anteriormente à legitimação das uniões entre seus pais.14 Como se vê pelo exemplo do matrimônio de Marcela, acima citado, os registros paroquiais permitiram-nos não apenas corroborar a estabilidade das famílias cativas, mas igualmente evidenciaram vínculos que as demais fontes compulsadas não revelavam. Dessa forma, o cruzamento desses informes com os levantados mediante o acompanhamento das listas nominativas acarretou a ampliação do conjunto das relações familiares identificadas entre os escravos de Dona Anna. 13 14 No cálculo da média de 3,2 filhos por família não computamos as duas crianças que eram netas de casais que encabeçam as famílias de números 5 e 12 no Apêndice; de outra parte, consideramos, para a família número 1, um total de 4 filhos, incluindo entre eles Romão, arrolado com um mês de idade no inventário, que não constou da partilha pelo fato de ter falecido. Corroborando-se o verificado em um estudo sobre Campinas, no qual se propugna ser prática relativamente comum a das mães cativas casadas ou viúvas iniciarem sua vida reprodutiva quando solteiras, em ligações consensuais que mais tarde seriam transformadas em casamentos legítimos (cf. Robert W. Slenes, “Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX)”, Estudos Econômicos, 17-2 (1987), pp. 217-227). Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 171 QUADRO 1 Ligações familiares entre os escravos de Anna de Oliveira Roza - I 20/11/1785 Micaela ? Antonio Miguel Crespim Rosaura 24/11/1801 Sebastião Ananias Claudiano Policarpo Januária José Francisco Roque Casemiro Eufrásia Antonia Antonio Emerenciana Benedito Vicência 12/01/1811 Adriano Antonio Leocadia Valentim ? Felicíssimo Obs.: as datas assinaladas correspondem aos assentos de casamentos. Consideremos as ligações familiares representadas no Quadro 1, as quais envolvem quatro gerações de cativos integrantes do plantel examinado. Percebemos o relacionamento existente entre as famílias de Antonio e Emerenciana, de um lado, e de Miguel e Vicência, de outro (respectivamente, famílias 16 e 4 no Apêndice). Na lista nominativa de 1816, no arrolamento dos escravos de D. Anna, aparecem em seqüência o primeiro casal, seus filhos Benedito (15 anos) e Valentim (13),15 e o segundo casal, com suas crianças Adriano (2) e Antonio (1). Comprovamos, pelo assento do casamento, que a união de Vicência com Miguel ocorreu em 12 de janeiro de 1811. Vale dizer, Antonio e Emerenciana eram avós maternos de Adriano e Antonio, bem como de Leocádia, esta última arrolada no inventário, mas ainda não nascida quando a lista nominativa de 1816 foi elaborada. Ainda no que respeita ao Quadro 1, merece destaque, pela prole numerosa, a família de Sebastião e Rosaura — respectivamente, cunhado e irmã de Miguel —: eram dez os filhos do casal, e suas idades, em 1819, variavam de 4 a 26 anos.16 15 16 De fato, nessa lista de 1816, aparentemente o recenseador confundiu os nomes, repetindo o de Vicência no lugar de Valentim, presente nas listas anteriores. Referir-nos-emos novamente a esta família, mais adiante, quando voltarmos nossa atenção para a partilha dos cativos inventariados entre os herdeiros de D. Anna de Oliveira Roza. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 172 QUADRO 2 Ligações familiares entre os escravos de Anna de Oliveira Roza - II 06/02/1785 Amaro Genoveva Manoel (viúvo) ? 04/02/1795 Clemente Matildes Daniel ? Florêncio Maria Josefa Delfina Romana Sepriano Patronilha Romão Antonio Felizardo Maria Antonia José Silvana Felizardo Felipa Obs.: as datas assinaladas correspondem aos assentos de casamentos. O Quadro 2, por sua vez, apresenta situação semelhante, evidenciando as relações entre dois troncos familiares relativamente antigos dentro do plantel considerado. Nesse quadro, estão dois dos casamentos cujos registros localizamos, ambos ocorridos em fins do Setecentos. É possível que a união de Daniel e Maria tenha sido sacramentada já no século XIX, uma vez que a filha mais velha identificada do casal, Delfina, tinha apenas 4 anos de idade em 1819.17 Ademais, a pequena genealogia apresentada aponta, ao que parece, para a aventada ocorrência da legitimação de algumas uniões apenas posteriormente à geração de filhos. De fato, se a prole de Amaro e Genoveva houvesse nascido após seu casamento (datado de 1785), sua filha Matildes teria tão-somente cerca de 10 anos quando se uniu em matrimônio com Clemente; todavia, considerando como correta a idade de Matildes — 39 anos — registrada no inventário de D. Anna, dita escrava teria, de fato, 15 ou 16 anos em 1795.18 Sobre o casal Antonia e José, também indicado no Quadro 2, respectivamente filha e genro do viúvo Manoel, cabe um comentário adicional. Antonia aparecia como solteira nos documentos consultados até a 17 18 Nada garante, vale ressalvar, que Delfina fosse a primogênita do casal. Lembremos que a sugestão avançada está assentada no cômputo da idade de Matildes e, como sabido, não há maior precisão, quanto a esse informe, nas fontes primárias dos tipos que fundamentam este artigo; ver, por exemplo, Nelson Nozoe & Iraci del Nero da Costa, “Sobre a questão das idades em alguns documentos dos séculos XVIII e XIX”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 34 (1992), pp. 175-182. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 173 morte de D. Anna (ver a família 2 do Apêndice). Sua união com José foi identificada no inventário do irmão de D. Anna, José de Oliveira Roza, aberto em 25 de agosto de 1829. Sabemos que, no inventário de D. Anna, Antonia e seus filhos foram legados para uma irmã da falecida, D. Escolástica; mais ainda, no inventário dessa irmã (de 8 de fevereiro de 1821), encontramos Antonia, ainda solteira, e seus três filhos, donde se infere que o casamento com José foi sacramentado após essa data. Infelizmente, não nos foi possível determinar se José estava entre os cativos seja da primeira seja da segunda das irmãs a falecer; da mesma forma, não podemos afirmar se os filhos de Antonia (todos ou algum deles) foram frutos de uma ligação consensual com José. Não obstante, não podemos igualmente descartar a possibilidade de o sacramento, muito embora ocorrido após os impactos de duas partilhas, ter sido um elemento a sedimentar uma união, apesar de tudo, estável e duradoura.19 O Quadro 3 revela uma rede de parentesco mais complexa, envolvendo 11 famílias completas originadas de três casais que, possivelmente, estabeleceram relações na segunda metade do século XVIII. Além de ressaltar o elevado número de filhos presentes — média igual a 3,7 calculada para o conjunto das 11 famílias —, destacamos o casal Reginalda e Alexandre como caso especial, cujas características é oportuno descrever. Alexandre era o segundo marido de Reginalda, sendo seu casamento registrado aos 30 de novembro de 1801. Na lista nominativa de 1798, dita escrava consta como viúva, aparecendo Ambrósio e Sepriana como os prováveis frutos dessa primeira união. Com Alexandre, Reginalda teve mais quatro filhos, todos listados no Quadro 3. Até a morte de D. Anna esta família aparecia assim registrada nas sucessivas listas por nós consultadas. No testamento anexo ao inventá19 Tal sugestão, bem como, de resto, o próprio enfoque por nós perfilhado sobre o tema da família escrava, são claramente caudatários das características do evolver, nos últimos 25 anos, da historiografia dedicada ao aludido tema em nosso país; ver, entre outros: Hebe Maria M. de Castro, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista __ Brasil, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional (1995); José Flávio Motta, Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801 – 1829), São Paulo, FAPESP/Annablume (1999); Manolo Florentino & José Roberto Góes, A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira (1997); e Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira (1999). Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 174 QUADRO 3 Ligações familiares entre os escravos de Anna de Oliveira Roza - III Elias Cecília 03/11/1780 Ventura Inácio Verônica Geremias Pantaleão ? 14/02/1809 Ângelo Tereza Eusébio Silvéria Eustáquia Esméria 30/11/1801 ? Reginalda Ambrósio Sepriana Dionísia Cândida Antonio Francisca Madalena José Ana 24/04/1818 Martinha Antonio (livre) Joaquim José Maria 03/03/1815 Francisco Anastácio Honorato Alexandre Apolinário Bonifácio Joaquina 04/06/1805 Rita Vicente 04/02/1818 Jacinta Romana Candido Constantina Maria Raquel Amaro Manoel Antonio Luzia Francisco Justo Inácio Inocêncio Obs.: as datas assinaladas correspondem aos assentos de casamentos. rio, a escravista manifestou seu desejo de emancipar o casal. O inventário registra, além dos dois cônjuges com a indicação de alforria, apenas parte da prole (Ambrózio, Sepriana e Cândida; família 17 do Apêndice). Na lista nominativa de 1820, Alexandre e Reginalda aparecem compondo um fogo juntamente com os filhos Antonio (8 anos), Francisca (7), Maria (6), Luiza (5), Januário (3) e Faustino (2), estes dois últimos decerto nascidos já fora do cativeiro.20 Portanto, Ambrózio, Sepriana e Cândida não tiveram o mesmo destino dos filhos mais novos, sendo legados aos herdeiros de D. Anna. Este caso é ilustrativo do impacto sofrido, por ocasião do falecimento daquela escravista, pelos vínculos familiares paulatinamente construídos entre seus cativos. Consideremos mais alguns exemplos dentre o conjunto listado no Apêndice. Tomemos as famílias de Gonçalo e Custódia (casal cujo matrimônio ocorreu em 20 de fevereiro de 1804) e de Sebastião e Rozaura (casados aos 24 de novembro de 1801, como visto no Quadro 1), famílias estas das quais os integrantes — seus nomes, idades em 1819 e destino no inventário ou testamento — são por nós dispostos, respectivamente, nos Quadros 4 e 5 a seguir. 20 Nada sabemos sobre a filha Dionizia, eventualmente falecida antes da partilha. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 175 Quadro 4 Família de Gonçalo e Custódia (Inventário de D. Anna, 1819) Nomes dos escravos Idades Gonçalo 50 Custódia, mulher de Gonçalo 45 Apolônia, filha 6 Mécio, filho 4 Engrácia, filha 1 Eleutéria 16 Silvina, filha de Eleutéria 4 meses Roza, filha de Gonçalo 5 Jozé, filho de Gonçalo 2 Destinos (alforriado no testamento) herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Cap. Ignácio Dias herdeiro Cap. Ignácio Dias herdeiro José da Silveira Gomes herdeiro Salvador Quadro 5 Família de Sebastião e Rozaura (Inventário de D. Anna, 1819) Nomes dos escravos Idades Sebastião (casado) 50 Rozaura (casada) 40 Januária 20 Felicíssimo, filho de Januária 7 meses Jozé, filho de Rozaura 16 Claudiano 24 Roque 10 Eufrásia 6 Francisco, filho de Rozaura 15 Casemiro 8 Antonia, filha de Rozaura 4 Policarpo 22 Ananias 26 Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 Destinos (alforriado no testamento) (alforriada no testamento) herdeira D. Ângela herdeira D. Ângela herdeiro Francisco Barbosa herdeiro Cap. Jozé de Moraes herdeiro Cap. Jozé de Moraes herdeiro Cap. Jozé de Moraes herdeiro João Paulo Dias herdeiro Anacleto Dias Baptista herdeiro Antonio Dias Baptista herdeira D. Escolástica herdeiro Jozé Antonio 176 Observando estas duas famílias notamos que seus chefes, Gonçalo e Sebastião, bem como a esposa deste último, Rozaura, foram os três, à semelhança de Alexandre e Reginalda, alforriados no testamento de Dona Anna. Não é, pois, de surpreender o fato de haver 144 escravos no plantel em questão na lista de 1816, porém existirem apenas 97 cativos inventariados em 1819 e outros 15 legados no referido testamento. Fazia anos que Dona Anna vinha alforriando seus escravos, muitos dos quais permaneciam como agregados em seu domicílio. No testamento, sem dúvida um momento de ápice na concessão de alforrias, informa-se serem 23 os cativos que obtiveram sua liberdade. Somandose os libertos aos 97 escravos inventariados e aos 15 legados, obtemos um total de 135 indivíduos, dos quais 108 (exatos oito décimos) compunham as famílias identificadas em 1819 (e listadas no Apêndice). Voltando aos casos apresentados nos Quadros 4 e 5, verificamos, uma vez mais, que os laços familiares eram inequivocamente duradouros. As duas famílias em foco já atingiam a terceira geração. Assim, Silvina, de 4 meses, era filha de Eleutéria, de 16 anos, a mais velha dentre os filhos presentes de Gonçalo e Custódia. Também Januária, com 20 anos de idade, a quarta dos dez filhos de Sebastião e Rozaura, era mãe de Felicíssimo, bebê de 7 meses. O irmão mais velho de Januária era Ananias, com 26 anos; e a irmã caçula era Antonia, com 4 anos. É evidente que a estabilidade possível destas famílias não implica a inexistência de vicissitudes por elas enfrentadas. Assim, a própria irregularidade nos intervalos entre as idades dos filhos pode ser resultado de falecimentos e/ou vendas de outros integrantes da prole ou, mesmo, decorrer da existência de segundos casamentos, todos fenômenos que não pudemos observar a partir das fontes compulsadas. Também nada sabemos acerca do pai de Silvina e tampouco sobre o de Felicíssimo, sendo que tanto Januária como Eleutéria constavam como solteiras na lista nominativa de 1818.21 Por outro lado, poder-se-ia logicamente sugerir que a estabilidade detectada para esse conjunto de famílias escravas relacionava-se com a 21 Embora tenhamos __ e com resultados bastante profícuos, como visto anteriormente __, consultado os registros paroquiais de casamentos, infelizmente não pudemos localizar os livros de assentos de batismos atinentes a Apiaí. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 177 própria longevidade de Dona Anna.22 E, de fato, a última coluna dos Quadros 4 e 5, ao que tudo indica, corrobora tal relação. Assim, uma vez falecida a proprietária, várias dentre as famílias existentes em seu plantel parecem esfacelar-se. Observemos a família de Gonçalo e Custódia. Ele é alforriado no testamento da escravista. Ela, bem como três dos filhos do casal — Apolônia, com 6 anos de idade, Mécio, com 4 e Engrácia, com 1 — são herdados por Joaquim Prestes. Eleutéria e sua filha Silvina, neta de Gonçalo e Custódia, compõem o formal de partilha do Capitão Ignácio Dias. Por fim, os dois filhos restantes do casal, Roza (5 anos) e Jozé (2), são alocados, respectivamente, aos herdeiros José da Silveira Gomes e Salvador. O impacto da morte de Dona Anna sobre a família de Sebastião e Rozaura é similar. Ambos são alforriados no testamento; todavia, seus dez filhos e o neto Felicíssimo são distribuídos por sete dentre os dezenove herdeiros arrolados no inventário. Cinco dentre os sete herdeiros mencionados recebem apenas um dos membros da família em tela, o Capitão Jozé de Moraes recebe três deles e D. Ângela os dois restantes, justamente Felicíssimo e sua mãe, Januária. Neste último caso, os tão-somente 7 meses de vida da criança teriam decerto sido um obstáculo para quaisquer tentativas de separação entre mãe e filho. A ruptura dos laços familiares identificados, que é, ao menos em uma primeira aproximação, flagrante nos dois casos acima explicitados, não se verifica para todas as famílias escravas possuídas por Dona Anna. Selecionamos outros dois exemplos que vão dispostos nos Quadros 6 e 7 a seguir. No primeiro deles, Francisco e sua esposa Raquel, casados aos 13 de março de 1815, bem como seu filho Honorato, são os três herdados por Anacleto Dias Baptista. Outros dois filhos do casal, presentes na lista nominativa de 1816, não são arrolados no inventário ou no testamento, razão pela qual não dispomos de informações sobre seu destino (alforria, venda, morte?). Já Antonia (Quadro 7), cativa solteira de 36 anos de idade, é herdada, juntamente com seus três filhos, por Dona Escolástica, conforme citado anteriormente. 22 Era, ademais, uma escravaria cuja formação devera-se, em boa medida, ao marido de Dona Anna, Mathias Leite Penteado, morador em Apiaí pelo menos desde 1781. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 178 Das 24 famílias presentes no plantel de Dona Anna por ocasião do inventário, há nove casos em que todos os membros presentes integravam o formal de partilha de um único herdeiro (tais como aqueles mostrados nos Quadros 6 e 7). Para a maior parte das famílias (14 dentre elas), não se observa um destino único para todos os seus componentes: ou elas foram repartidas por mais de um herdeiro (2 casos), ou alguns membros foram alforriados e outros alocados a um só herdeiro (4 casos),23 ou a alforria aliou-se à multiplicidade de herdeiros (7 casos, entre eles os apresentados nos Quadros 4 e 5). Por fim, restam: a família formada pelo casal Antonio e Emerenciana, já referida anteriormente, tendo sido ambos alforriados por disposição testamentária; e a família de Daniel e Maria (número 1 do Apêndice), da qual quatro membros são herdados por Lourenço Dias Baptista e os outros dois não são alocados a nenhum dos herdeiros (um deles o recém-nascido Romão, morto, ao qual também já fizemos menção). Quadro 6 Família de Francisco e Raquel (Inventário de D. Anna, 1819) Nomes dos escravos Idades Destinos Francisco casado 25 herdeiro Anacleto Dias Baptista Raquel mulher 29 herdeiro Anacleto Dias Baptista Honorato filho 3 herdeiro Anacleto Dias Baptista (em 1816, achavam-se p resentes também os filhos Ap olinário, com 5 anos, e Bonifácio, com 3; nenhum dos dois foi identificado no inventário) Quadro 7 Família de Antonia, Solteira (Inventário de D. Anna, 1819) Nomes dos es cravos A ntonia solteira Idades Destinos 36 herdeira D. Escolástica Felizardo filho 6 herdeira D. Escolástica Silvana filha 5 herdeira D. Escolástica Felipa filha 4 herdeira D. Escolástica 23 Entre estes quatro casos, estão os dois em que a alforria alia-se não a qualquer formal de partilha, mas sim a um legado estabelecido no testamento (famílias 21 e 22 do Apêndice). Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 179 As famílias escravas do plantel de D. Anna, 1819–1824: ruptura de fato? Na historiografia dedicada ao estudo das famílias escravas, no que respeita ao tema da estabilidade dos vínculos familiares, encontramos o entendimento de que, muitas vezes, tais famílias viam-se preservadas, seja nas situações de venda de cativos, seja nos momentos de partilhas de heranças. Neste último caso, por exemplo, trabalhando com inventários de Paraíba do Sul, na província do Rio de Janeiro, João Fragoso e Manolo Florentino fornecem exemplos que ilustram esse entendimento:24 José Agostinho Castelo Branco, plantador e traficante de negros, era possuidor, em 1839, de 112 escravos em Paraíba do Sul e de 26 em Luanda. De seus cativos no Brasil, 24,1% estavam organizados em famílias. Sua mulher, a inventariante, solicitou ao juiz de órfãos da comarca que não permitisse a separação dos escravos na hora da partilha da herança, ‘pois seria manifesta injustiça dividirem-se pais para uma parte e mães e filhos para outra’. Exemplo também importante nos é dado pelo inventário do Comendador Ignácio Pereira Nunes, de 1857. Dos 418 escravos que deveriam ser repartidos entre 14 herdeiros, 100 (23,9%) se encontravam organizados em 37 famílias. Destas, 21 (63,6%) foram preservadas e reuniam 56 indivíduos, 4 famílias foram certamente desmembradas e conformavam 11 pessoas, não havendo informações sobre o destino das 13 famílias restantes. Por fim, temos o caso do inventário de Porcina de Paula Dias (1873), 24 No que tange ao comércio de escravos, esses autores, com base em 8 das maiores fazendas de Paraíba do Sul, sugerem: “Dos 1.171 escravos comprados até 1872, nada menos que 33,6% estavam unidos por laços de parentesco de primeiro grau (casais com filhos e mães solteiras e seus rebentos), dado que aponta na direção da existência de um mercado de famílias na região” (João L. R. Fragoso & Manolo G. Florentino, “Marcelino, filho de Inocência Crioula, neto de Joana Cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872)”, Estudos Econômicos, 17-2 (1987), p. 164). Para uma crítica dessa sugestão aventada por Fragoso e Florentino ver, por exemplo, Rômulo Andrade, “Havia um mercado de famílias escravas? (A propósito de uma hipótese recente na historiografia da escravidão)”, Locus: Revista de História, 4-1 (1998), pp. 93-104. Esse último autor, que estuda dois municípios cafeeiros da Zona da Mata de Minas Gerais (Juiz de Fora e Muriaé), baseia-se em escrituras de compra e venda de cativos. Também com fundamento nessas escrituras, porém adotando um posicionamento diferente de Andrade, ver José Flávio Motta & Renato L. Marcondes, “O comércio de escravos no Vale do Paraíba paulista: Guaratinguetá e Silveiras na década de 1870”, Estudos Econômicos, 30-2 (2000) pp. 267-299. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 180 cujos 102 escravos deveriam ser divididos entre 7 herdeiros. Existiam 15 famílias somando 46 pessoas (45,1% do plantel), das quais 10 (66,7%) foram preservadas, reunindo 30 (65,2%) indivíduos. Apenas duas famílias foram desmembradas. Observe-se que tanto no caso de Pereira Nunes como no de Paula Dias consideramos como famílias desmembradas aquelas que perderam pelo menos um dos seus membros, o que não significa que a família necessariamente tenha sido esfacelada.25 Vimos na seção anterior que nove (37,5%) das famílias escravas constantes do inventário de Dona Anna de Oliveira Roza não foram, ao que tudo indica, desmembradas por conta da partilha dos bens da falecida. Nessas famílias preservadas havia 26 indivíduos, correspondentes a aproximadamente um quarto (24,1%) do total de integrantes do conjunto das 24 famílias. Os porcentuais por nós calculados são, pois, significativamente distintos — e menores — do que os calculados por Fragoso e Florentino para Paraíba do Sul,26 muito embora no caso apiaiense fosse muito maior a participação dos cativos organizados em grupamentos familiares. No plantel de Dona Anna, em Apiaí, pouco menos de três quintos das famílias (58,3%) sofreram algum desmembramento, e para quase três décimos delas (29,2%) — as sete em que houve alforria(s) aliada(s) à partilha por mais de um herdeiro — teria havido, “à primeira vista”, efetivo esfacelamento. A nosso ver — e por conta disso utilizamos entre aspas o termo “à primeira vista” acima — é bem possível que tais desmembramentos e esfacelamentos das famílias escravas presentes no plantel de Dona Anna, sugeridos pelas informações constantes de seu inventário, tenham sido mais aparentes do que efetivos. São duas as ordens de considerações que conformam nossa argumentação. De um lado, um conjunto de características que poderiam ser assumidas pelas partilhas de heranças, e que o foram, cremos nós, na divisão dos bens de Dona Anna; de outro, os 25 26 Fragoso & Florentino, “Marcelino, filho de Inocência Crioula”, p. 166. Disparidade substancial, mesmo levando-se em conta a observação seguinte dos autores em questão: “Tudo o que foi dito (...), apesar de indicar uma alta freqüência de preservação de famílias cativas, não significa, no entanto, que tal fato constituísse a regra geral do mercado e da partilha de heranças. A intenção aqui é de apenas alertar para a importância da preservação das famílias” (Fragoso & Florentino, “Marcelino, filho de Inocência Crioula”, p. 166). Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 181 condicionantes decorrentes do pano de fundo dado pela sociedade escravista apiaiense, em especial o contexto econômico da vila nas décadas iniciais do século dezenove, passados já vários lustros desde o boom mineratório e sedimentada uma situação em grande medida marasmática assentada numa produção agrícola essencialmente de subsistência.27 No que respeita à primeira das ordens de considerações acima aludidas, talvez uma boa analogia para ilustrar o nosso raciocínio possa ser feita com base nas escrituras de compra e venda de cativos. Nessas transações há, muitas vezes, casos em que são comercializadas partes de escravos (“uma parte que [o vendedor] tem no escravo Fulano”, metade, um terço etc). Assim como, em tais situações, o que ocorre em verdade são vendas de partes “ideais” dos cativos, também nas partilhas é plausível supor que, muitas vezes, estejamos nos defrontando com repartições “ideais”. Este parece ser o caso no inventário de Dona Anna, e a existência de uma multiplicidade de casos semelhantes não seria, cremos nós, nada surpreendente. Isto não significa, deixemos de imediato bem claro, que todas as destruições de família escravas sugeridas em um processo de inventário devam ser, a priori, negadas sob o argumento de que são rupturas apenas aparentes; mas algumas realmente podem sê-lo.28 Duas características do caso por nós estudado parecem convergir no sentido de explicar as disparidades verificadas em comparação aos exemplos citados de Paraíba do Sul. Uma dessas características é a elevada parcela de cativos integrados a famílias naquele plantel de Apiaí; a outra, o também elevado número de herdeiros de Dona Anna. Dessa forma, cada um dos dezenove herdeiros recebeu exatamente o correspondente a Rs.612$104, à exceção do sobrinho Lourenço Dias Baptista, 27 28 Há que acrescentar aqui, além desses componentes de nossa argumentação que serão desenvolvidos nos parágrafos que se seguem, um comentário, ainda que breve, sobre o papel das alforrias, presentes, como visto, nos sete casos em que teria havido, numa primeira aproximação, o esfacelamento das famílias escravas. A nosso ver, muito embora as manumissões integrassem a multiplicidade de destinações dadas aos cativos de tais famílias, é plausível sugerir que os indivíduos libertos pudessem se manter próximos aos familiares ainda escravizados, sendo, a própria obtenção da alforria, um objetivo estratégico buscado pelas famílias cativas. Essa sugestão, de resto, encontra-se inserida, também, na segunda ordem de considerações mencionada nesse parágrafo. Cabe, é claro, igualmente atentar que, de forma análoga, famílias preservadas na partilha de heranças podem ter sido mantidas tão-somente na aparência, possibilidade que se veria fortalecida a partir de fins da década de 1860, quando passou a vigorar legislação proibitiva da separação entre cônjuges escravos e entre pais e filhos menores. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 182 que recebeu a mais Rs.460$280. No formal de cada um dos dezenove beneficiados na partilha, chega-se àquele total de pouco mais de 600 mil-réis somando-se inúmeros itens: animais (“um macho pangaré estrela”; “carneiros 20 machos e 11 fêmeas”), dívidas ativas e/ou passivas (“da dívida de José Xavier”; “dívida a Francisco Barbosa”), utensílios diversos (“uma farda com dragona”; “um penico com asa”) e, com valores variáveis, exatamente cinco escravos para cada um.29 Com tantos herdeiros e uma quantidade igual de escravos para todos eles, não haveria como não “romper” relações familiares, ainda mais participando de tais relações a grande maioria dos escravos partilhados. Não obstante, nas listas nominativas dos habitantes de Apiaí atinentes a 1820 e 1824, encontramos indicações de que, ao menos em alguns casos, os ajustes estabelecidos na partilha — se é que tiveram impacto sobre a real distribuição física dos cativos — viam-se alterados com bastante rapidez, podendo ser tais alterações, algumas vezes, conducentes à reorganização de famílias escravas. O principal movimento detectado é o de cativos que haviam sido alocados na partilha para herdeiros distintos e que se faziam presentes, nas aludidas listas nominativas, no plantel de Lourenço Dias Baptista. Por exemplo, compunham este plantel, no início da década de 1820, o casal Francisco e Raquel, bem como seu filho Honorato (família 18 no Apêndice), os três integrantes do formal de partilha de Anacleto Dias Baptista. Se essa família nuclear, encabeçada por Francisco, não teve seus integrantes, afinal, separados por ocasião da partilha, um outro exemplo do aludido “reajustamento” dos plantéis pós-inventário talvez esteja a apontar para uma reorganização familiar.30 Assim, as escravas Romana (casada aos 4 de fevereiro de 1818 e com 20 anos de idade em 1819) e sua filha Maria (com dois meses de vida no inventário), ambas herdadas por Jozé Antonio, em 1824 pertenciam a Lourenço Dias Baptista, tal 29 30 Cinco cativos para cada um de 19 herdeiros totalizam 95 escravos. A diferença com relação ao total de indivíduos inventariados corresponde aos dois filhos de Daniel e Maria: Antonio, de 3 anos de idade, cujo destino não identificamos, e Romão, com um mês de vida, morto (cf. Apêndice, família número 1). Um terceiro exemplo é o da família número 4 no Apêndice. Os quatro membros cativos daquela família (a esposa do alforriado Miguel e os três filhos do casal), todos herdados por Francisco Barbosa, faziam parte do plantel de Lourenço Dias Baptista na primeira metade da década de 1820. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 183 como o marido de Romana, Cândido, de 28 anos de idade neste último ano. Essa ilustração de uma reorganização familiar assume contornos ainda mais interessantes à medida que observemos ser esse Cândido, provavelmente, o mesmo que, com 26 anos, Dona Anna havia legado por disposição testamentária a uma certa Caetana. O caso de Caetana talvez forneça um significativo exemplo do esforço dos próprios escravos no sentido da obtenção da liberdade e preservação dos laços de família. Em 1816, no plantel de Dona Anna vivia a escrava Clara, mãe solteira de 50 anos de idade, e seus quatro filhos: Antonio (25 anos), Bento (16), Felipe (14) e Caetana (12). No testamento de 1818, Felipe é alforriado e são deixados para Caetana 8 cativos, entre eles seus outros dois irmãos — ou meio-irmãos — Antonio e Bento. Em 1820, esta família distribuía-se por dois domicílios. Num deles, Clara de Oliveira, solteira, preta, “pobre e liberta há pouco tempo”, vivia com seu filho Felipe, de 16 anos, igualmente solteiro e preto. No outro encontramos Caetana, agora com 16 anos e casada com João Manoel Correia (25 anos), ambos pardos.31 O casal tinha um filho — Antonio, com 6 meses — e detinha a propriedade de 9 escravos. Daqueles 8 cativos deixados em legado por Dona Anna, faltava Cândido que, como vimos, ao que tudo indica, juntara-se às suas mulher e filha, passando a pertencer a Lourenço Dias Baptista; de outra parte, dois novos cativos (Maria, 2 anos, e Custódio, 2 meses) foram adicionados ao plantel. Interessante observar que os dois irmãos, Antonio e Bento, ambos pretos, continuavam como escravos da irmã.32 31 32 Na lista nominativa de 1824 não pudemos identificar o domicílio de João Correia e Caetana. Nem tampouco localizamos Clara. Contudo, está lá Felipe de Oliveira, “pobre”, pardo, 21 anos, casado com Maria, também parda, 18 anos e com um filho de nome João, de 1 ano. Felipe manteve-se em Apiaí pelo menos até 1835 quando, com 30 anos, continuava casado com Maria, agora com 5 filhos: João (12 anos), Caetana (9), Tomasia (8), Rosa (7) e Rita (2). Só podemos conjecturar __ e por isso o “talvez” no início desse parágrafo __ acerca da natureza das relações entre Caetana e seus dois irmãos-escravos, bem como entre Caetana e os demais cativos de seu plantel, ou ainda entre Antonio e Bento e os demais escravos do domicílio. Como sabido, na vigência da escravidão, foram vários os forros escravistas, e houve igualmente casos de cativos proprietários de escravos; ver, por exemplo, Francisco V. Luna & Iraci del Nero da Costa, “A presença do elemento forro no conjunto de proprietários de escravos”, Ciência e Cultura, 32-7 (1980), pp. 836-841, e Mieko Nishida, “As alforrias e o papel da etnia na escravidão urbana: Salvador, Brasil, 1808-1888”, Estudos Econômicos, 23-2 (1993), pp. 227-265. Todavia, não nos parece ser a alternativa mais profícua interpretar o relacionamento entre Caetana e seus irmãos como meramente reprodução dos valores da sociedade escravista inclusiva. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 184 Também identificamos — o que não nos deve surpreender — situações nas quais famílias escravas desmembradas por conta da partilha mantiveram-se desmembradas nos anos subseqüentes. Um exemplo de tais situações é fornecido pelo casal Antonio Tatu e Bernarda que, em 1816, respectivamente com 48 e 50 anos de idade, viviam com seus filhos Benedito (6 anos) e Geraldo (1) no plantel de Dona Anna. Verificamos que, em seu testamento, esta escravista apiaiense alforriou o casal; ademais, no inventário, encontramos o filho Benedito compondo o formal de partilha do Capitão Ignácio Dias. Pois bem, em 1820, localizamos na lista nominativa um domicílio chefiado por Antonio da Rocha, 50 anos, preto, “liberto há pouco tempo”, casado com Bernarda da Roza, 50 anos, também preta, que viviam com quatro filhos: Candida (8 anos), João (6), Francisca (4) e Geraldo (2).33 Essa família esteve presente em Apiaí ao menos até 1835; todavia, Benedito nunca integrou o fogo chefiado por seu pai. Esse último exemplo conduz-nos à segunda ordem de considerações à qual nos referimos anteriormente. Vale dizer, até que ponto seria de fato razoável entender um desmembramento familiar tal como esse — a separação do filho Benedito — como implicando uma ruptura efetiva num contexto como o de Apiaí nas décadas iniciais do Oitocentos? Em uma comunidade pequena, que vivenciara sim um certo apogeu no século anterior, com fundamento na extração aurífera, mas que empobrecera e estagnara numa produção de subsistência, a qual provavelmente não avançava muito além do autoconsumo, faria sentido pensarmos os distintos plantéis, os inúmeros agregados forros, os múltiplos domicílios chefiados por ex-escravos, os variados fogos habitados por indivíduos livres, amiúde pobres ou possuidores de modestos recursos, enfim, esses diversos microcosmos como conformando universos estanques?34 No exemplo em tela, ainda que seja plausível supor que o domicílio chefiado por Antonio não pudesse contar com a mão-de-obra de seu filho Benedi- 33 34 Cabe notar que havia, na lista nominativa de 1816, entre os agregados arrolados no fogo chefiado por D. Anna, duas crianças aparentemente isoladas, de nomes Cândida (3 anos) e João (2), que talvez fossem filhos já libertos de Antonio e Bernarda. Ver a nota 27. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 185 to, a suposta ruptura familiar iria efetivamente além dessa faceta mais estritamente econômica?35 Considerações finais Refletimos, neste artigo, sobre a estabilidade das famílias escravas. Isto é feito mediante o acompanhamento das possibilidades de preservação e/ ou das ocorrências de rupturas verificadas no que concerne às famílias que compunham o plantel de Dona Anna de Oliveira Roza por ocasião da morte e partilha dos bens desta escravista. Tais famílias, até onde nos foi possível rastreá-las, formaram-se ao longo do último quarto do século XVIII e primeiro do XIX. Vale dizer, formaram-se e puderam sedimentar-se na etapa de decadência econômica que se seguiu ao segundo surto mineratório ocorrido em Apiaí. Assim como a longevidade de D. Anna, esse contexto econômico foi de inequívoca importância para as possibilidades de desenvolvimento e de estabilidade das relações familiares entre os cativos objeto deste estudo. De início, lançamos mão de todo o conjunto de fontes documentais por nós compulsadas (listas nominativas de habitantes, registros de casamentos de escravos, alguns inventários post-mortem, entre os quais o de D. Anna, bem como seu testamento) com vistas a patentear a extensão e a durabilidade e, por conseguinte, a profundidade dos laços familiares estabelecidos entre os cativos integrantes dessa posse escrava. A partir daí, a reflexão, embasada no aludido acompanhamento, é por nós encaminhada segundo dois planos distintos e inter-relacionados. No primeiro, trabalhamos a idéia de que os desmembramentos, e mesmo os eventuais esfacelamentos sofridos pelas famílias escravas, em alguns casos, poderiam assumir uma natureza meramente “ideal”, ou 35 Quando menos, no caso analisado da partilha dos bens de Dona Anna, os dezenove plantéis dos herdeiros ligavam-se pelos laços familiares entre seus proprietários. Assim, lemos no testamento daquela escravista: Declaro que deixo meus legítimos herdeiros os meus irmãos e irmãs que são o Capitão Jozé de Oliveira Roza, o sargento mor Antonio de Oliveira Roza, D. Escolástica de Oliveira Roza, o capitão Jozé Cunha cabeça de casal da minha irmã D. Margarida de Oliveira Roza, D. Maria de Oliveira Roza, D. Ângela de Oliveira Roza, os meus sobrinhos Ignácio Dias, Lourenço Dias, Anacleto Dias, Antonio Dias, Jozé Antonio, Manoel Duarte, Giordano Dias Baptista, todos esses herdarão dos bens que possuo igualmente”. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 186 pouco mais que isso, havendo em seguida à partilha reajustamentos quase imediatos entre os herdeiros, no que tange à alocação dos cativos. No segundo, argumentamos que, ainda nas situações nas quais as separações entre os membros das famílias escravas fossem “reais”, tais rupturas eventualmente fossem matizadas num pano de fundo como o da sociedade escravista de Apiaí, uma pequena e empobrecida comunidade rural, com uma economia calcada na produção agrícola de subsistência. Por fim, uma ressalva que deveria ser desnecessária, mas que o debate historiográfico recente tem mostrado que não o é, ainda. Com a reflexão que aqui avançamos, em nenhum momento apontamos, ou pretendemos apontar, para qualquer retomada de uma noção de “democracia racial” em nossa sociedade escravista pretérita. Tampouco dessa reflexão entendemos que decorra qualquer ligeira indicação de que perfilhamos uma pretensa negação da violência do escravismo, violência esta que, de resto, entendemos inerente ao instituto da escravidão e das demais sociedades calcadas na existência de classes sociais. Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 187 Apêndice Fornecemos neste Apêndice a lista das famílias escravas vinculadas ao plantel de D. Anna de Oliveira Roza, identificadas com base na seguinte documentação: — Inventário de D. Anna, de 1819. Os informes extraídos desse processo foram provenientes: — da lista de escravos no arrolamento de bens que compõe o inventário; — das listas de escravos que integram os formais de partilha; — do rol de escravos alforriados no testamento, juntado ao inventário. — Recenseamento dos moradores do domicílio chefiado por D. Anna, constante da lista nominativa dos habitantes da Vila de Santo Antonio das Minas de Apiaí, de 1816. Para as famílias numeradas de 1 a 25, a data de referência é 1819; já as duas últimas foram identificadas apenas em 1816. A data fornecida em alguns casos [entre colchetes] é proveniente dos registros paroquiais de casamentos. Família 1 Daniel Maria mulher Delfina filha Romana filha Romão Antonio Cor Preto Preta Preta s. inf. s. inf preto Idades 25 30 4 1 mês 1 mês 3 Situação herdeiro Lourenço Dias Baptista herdeiro Lourenço Dias Baptista herdeiro Lourenço Dias Baptista herdeiro Lourenço Dias Baptista morto (destino não identificado) Família 2 Antonia solteira Silvana filha Felizardo filho Felipa filha preto preto preto preto 36 5 6 4 herdeira D. Escolástica herdeira D. Escolástica herdeira D. Escolástica herdeira D. Escolástica Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 188 Família 3 [14/02/1809] Ângelo Maria mulher de Ângelo Tereza filha Euzébio filho Silvéria Germana Magdalena Eustáquio Esméria pardo preta preta preto preta preta preta preto preta 40 41 15 2 16 5 8 7 6 (alforriado no testamento) herdeira D. Ângela herdeira D. Ângela herdeira D. Ângela herdeiro Jozé Antonio herdeiro Jozé Antonio herdeiro Guarda-mor Manoel Bento herdeiro Manoel Duarte herdeiro Manoel Duarte Família 4 [12/01/1811] Miguel Vicência mulher de Miguel Adriano filho Antonio filho Leocádia filha preto preta preto preto s. inf. 41 25 7 3 3 (alforriado no testamento) herdeiro Francisco Barbosa herdeiro Francisco Barbosa herdeiro Francisco Barbosa herdeiro Francisco Barbosa Família 5 [24/11/1801] Sebastião (casado) Rozaura (casada) Januária Felicíssimo filho de Januária Jozé filho de Rozaura Claudiano Roque Eufrásia Francisco filho de Rozaura Casemiro Antonia filha de Rozaura Policarpo Ananias pardo preta parda s. inf. pardo pardo pardo pardo pardo preto parda preto preto 50 40 20 7 meses 16 24 10 6 15 8 4 22 26 (alforriado no testamento) (alforriada no testamento) herdeira D. Ângela herdeira D. Ângela herdeiro Francisco Barbosa herdeiro Cap. Jozé de Moraes herdeiro Cap. Jozé de Moraes herdeiro Cap. Jozé de Moraes herdeiro João Paulo Dias herdeiro Anacleto Dias Baptista herdeiro Antonio Dias Baptista herdeira D. Escolástica herdeiro Jozé Antonio Família 6 [09/06/1801] Vitorino (casado) Bernarda (casada) Josefa filha de Vitorino Ignácia filha do mesmo Carlos filho de Vitorino preto preta preta preta preto 42 40 14 6 5 (alforriado no testamento) (alforriada no testamento) herdeiro Capitão-mor herdeiro Capitão-mor herdeiro Gordiano Dias Baptista Família 7 Francisca solteira Crescêncio filho Mariana filha Paulo filho parda preto preta s. inf. 28 4 6 <3 herdeiro Cap. Manoel Coelho herdeiro Cap. Manoel Coelho herdeiro Cap. Manoel Coelho herdeiro Cap. Manoel Coelho Família 8 Josefa solteira Florêncio filho parda pardo 23 3 herdeiro João Paulo Dias herdeiro João Paulo Dias Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 189 Família 9 [22/11/1801] Brígida viúva (de Luís 51-1816) parda 42 herdeiro Manoel Duarte Eulália filha preta 6 herdeiro Manoel Duarte Leonor filha de Brígida preta 6 herdeiro Guarda-mor Manoel Bento Petronilha preta 20 herdeiro João Paulo Dias Jozé filho de Brígida preto 4 herdeiro José da Silveira Gomes (em 1816, a filha Eulália não foi identificada na lista nominativa) Família 10 Úrsula solteira preta 25 Ermengildo filho preto 5 (em 1816, filha Florinda, 5, não identificada no inventário) herdeiro Guarda-mor Manoel Bento herdeiro Guarda-mor Manoel Bento Família 11 Gervásia solteira preta 30 herdeiro Gordiano Dias Baptista Brás filho preto 4 herdeiro Gordiano Dias Baptista Tomazia filha s. inf. 2 herdeiro Gordiano Dias Baptista (em 1816, filhos Serafina, 5, e Antonio, 3, não identificados no inventário) Família 12 [20/02/1804] Gonçalo Custódia mulher de Gonçalo Apolônia filha Mécio filho Engrácia filha Eleutéria Silvina filha de Eleutéria Roza filha de Gonçalo Jozé filho de Gonçalo pardo parda preta preto preto preto s. inf. parda preto 50 45 6 4 1 16 4 meses 5 2 (alforriado no testamento) herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Joaquim Prestes herdeiro Cap. Ignácio Dias herdeiro Cap. Ignácio Dias herdeiro José da Silveira Gomes herdeiro Salvador Família 13 Antonio Tatu (casado) Bernarda (casada) Benedito filho do Tatu pardo parda preto 51 53 10 (alforriado no testamento) (alforriada no testamento) herdeiro Cap. Ignácio Dias Família 14 Severina parda 36 herdeiro Salvador Nicolao filho pardo 6 herdeiro Salvador Saturnino filho preto 3 herdeiro Salvador Generoza pardo 10 herdeiro Salvador (em 1816, filha Felicidade, 11, não identificada no inventário) Família 15 Mécia solteira Felipa filha de Mécia Thomé Geremias Custódia Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 preta preta preto preto preta 53 15 13 7 19 (alforriada no testamento) herdeiro Manoel Duarte (alforriado no testamento) herdeiro Capitão-mor herdeiro José da Silveira Gomes 190 Família 16 [20/11/1785] Antonio (casado) pardo 50 (alforriado no testamento) Emerenciana (casada) parda 50 (alforriada no testamento) (em 1816, filhos Benedito, 15, e Vicência, 13, não identificados no inventário) Família 17 [30/11/1801] Alexandre (casado) Reginalda (casada) Ambrózio Sepriana Cândida pardo parda pardo parda parda 45 40 23 20 14 (alforriado no testamento) (alforriada no testamento) herdeiro Cap. Manoel Coelho herdeiro Lourenço Dias Baptista herdeiro Cap. Ignácio Dias Família 18 [13/03/1815] Francisco casado preto 25 herdeiro Anacleto Dias Baptista Raquel mulher preto 29 herdeiro Anacleto Dias Baptista Honorato filho preto 3 herdeiro Anacleto Dias Baptista (em 1816, filhos Apolinário, 5, e Bonifácio, 3, não identificados no inventário) Família 19 [26/10/1794] Marcela casada (Francisco Leite, forro) Pedro Justo João Maria Domingos preta preto preto preto preta preto 47 23 20 16 13 15 (alforriada no testamento) herdeiro Sgto-mor Antonio O. Roza herdeiro Sgto-mor Antonio O. Roza herdeiro Sgto-mor Antonio O. Roza herdeiro Sgto-mor Antonio O. Roza herdeiro Antonio Dias Baptista Família 20 [04/02/1795] Matildes viúva (de Clemente) Sepriano Joanna parda pardo parda 39 23 20 herdeiro João Paulo Dias herdeiro Guarda-mor Manoel Bento herdeiro Anacleto Dias Baptista Família 21 Jacinta parda 22 (alforriada no testamento) Vicente preto 30 legado para Caetana (testamento) Balduíno pardo 19 legado para Caetana (testamento) (em 1816, filhos de José, 57, e de Joaquina, 47, não identificados no inventário) Família 22 (em 1816, filhos de Clara solteira, 50, não identificada no inventário) Felipe pardo 17 (alforriado no testamento) Antonio preto 28 legado para Caetana (testamento) Bento preto 19 legado para Caetana (testamento) (em 1816, mais uma filha de Clara, de nome Caetana,12, não identificada como escrava ou alforriada no inventário; ao que tudo indica é a beneficiária referida no testamento) Família 23 (não identificada na lista nominativa de 1816) Geremias (Zacarias) filho do véio preto 7 Pantaleão filho do mesmo s. inf. 1 Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 herdeiro Antonio Dias Baptista herdeiro Antonio Dias Baptista 191 Família 24 (não identificada na lista nominativa de 1816) [04/02/1818] Romana casada preta 20 herdeiro Jozé Antonio Maria filha s. inf. 2 meses herdeiro Jozé Antonio Família 25 (de 1816, não identificada no inventário) [04/06/1805] Manoel preto 33 Rita mulher preta 38 Inocêncio filho preto 15 Antonio filho preto 5 Luzia filha preto 2 Francisca filha preto 1 Família 26 (de 1816, não identificada no inventário) Francisco preto 45 Joanna parda 42 Afro-Ásia, 27 (2002), 161-192 192 “ATOS DIGNOS DE LOUVOR”: IMPRENSA, ALFORRIAS E ABOLIÇÃO NO SUL DO ESPÍRITO SANTO, 1885-1888 Robson L. M. Martins* A té meados do século XIX, a província do Espírito Santo teve sua economia baseada na cultura da cana-de-açúcar, de longa tradição colonial, tendo a região sul como um dos centros produtores deste produto. O café fora introduzido na região desde o início do referido século e, por sua característica de melhor cotação no mercado internacional, acabará por impor-se à economia do Espírito Santo em substituição à cultura da cana-de-açúcar.1 O desenvolvimento da produção do café na província está intimamente relacionado com o crescimento da população livre e escrava e com sua distribuição desigual entre as regiões norte, centro e sul do Espírito Santo, na segunda metade do século XIX. Quanto à população escrava, em 1856 as comarcas cafeeiras da Capital (centro) e de Itapemirim (sul), apresentavam-se com um número de escravos equivalente: 4.923 e 4.381. O mesmo não ocorria em 1872, quando em Itapemirim a população escrava passava para 11.722, crescendo numa proporção de 168% e, na Capital, as cifras registravam 6.919 escravos, num crescimento percentual muito inferior, isto é, de 40%. * Aluno do curso de Doutorado, em História Social do Trabalho na UNICAMP. 1 Vilma Paraíso Ferreira de Almada, Escravismo e transição: o Espírito Santo 1850-1888, Rio de Janeiro, Graal, 1984, pp. 57-60. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 193 No norte, a comarca de São Matheus, tradicionalmente dedicada à produção e exportação de farinha de mandioca, contava em 1856 com 18% dos escravos da província, caindo esta porcentagem para 12% em 1872. Não incentivada pelo surto cafeeiro, a sua economia se manteve estacionária, quer dizer, com o mesmo número de escravos — 2.213 em 1856, para 2.813 em 1872 — e produzia o mesmo número de alqueires de farinha exportada: 173.520 em 1856, para 183.865 em 1872. 2 Nesse contexto, Cachoeiro de Itapemirim localizado no sul, de pequena povoação pertencente à vila de Itapemirim, torna-se freguesia em 1856 e em 1872 já é um Município que tem sob sua jurisdição as seguintes freguesias: São Pedro d’Alcântara do Rio Pardo, São Miguel do Veado, São Pedro do Itabapoana, São José do Calçado, Nossa Senhora da Conceição do Aldeamento Affonsinho e Nossa Senhora da Penha do Alegre. Em 1885 essas freguesias foram responsáveis por 57, 4% de todo o café exportado pela província, seguida pela Capital que exportou 31,4%; Benevente 6,1% e a região norte que exportou 5,1%.3 Face à propaganda abolicionista e às fugas de escravos, na década de 80 do século XIX, os senhores de escravos do Município de Cachoeiro de Itapemirim puseram em prática o seu próprio projeto de emancipação lenta e gradual, através da concessão de alforrias, seguindo o exemplo das províncias de São Paulo e Rio de Janeiro.4 Para a historiadora Vilma Almada os senhores de escravos capixabas, em especial os da região cafeeira de Cachoeiro de Itapemirim, situavam-se numa posição intermediária entre a total intransigência dos fazendeiros do Vale do Paraíba fluminense e o abolicionismo dos paulistas, que libertavam seus escravos sob a condição de prestarem serviços por tempo limitado. Os capixabas “não os libertavam”. No presente artigo pretendemos verificar até que ponto são procedentes as observações da autora sobre esse assunto.5 2 3 4 5 Almada, Escravismo e transição, p. 70. Dinâmica cafeeira e a constituição da indústria no Espírito Santo 1850-1930, Vitória, NEP (Núcleo de Estudos e Pesquisas) - Departamento de Economia/UFES, (agosto de 1983), p. 26. Sobre estes assuntos ver: Martins, Os Caminhos da liberdade, Capítulos I e II. Almada, Escravismo e transição, p. 56. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 194 No Espírito Santo, a reação dos senhores ao movimento abolicionista foi tênue, devido ao caráter pacífico e sem radicalismo deste, se comparado ao verificado nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nesta última província, devido ao extremismo dos abolicionistas e sobretudo nas áreas onde o trabalho dos caifazes de Antônio Bento era intenso, os fazendeiros se reuniram, em dezembro de 1885, e deliberaram organizar uma associação de auxílio mútuo para “a defesa de seus direitos e legítimos interesses continuamente ameaçados, nestes últimos tempos, por uma horda de verdadeiros bandidos, que em nome da generosa idéia da libertação dos escravos está acometendo, nesta província, toda sorte de depredações nas propriedades agrícolas”.6 De acordo com Ronaldo Marcos dos Santos, em novembro de 1885, alguns senhores de escravos da província de São Paulo formaram uma sociedade com capital de “20:000$000, que deveriam ser empregados na manutenção de uma polícia que vigiasse os ladrões de escravos — os abolicionistas”.7 Na província do Rio de Janeiro, especificamente no Município de Campos, onde a campanha abolicionista também se manifestou de forma radical, uma conferência abolicionista, organizada em fevereiro de 1887 por Carlos de Lacerda e pelo grupo de pessoas que se congregava na tipografia do periódico Vinte e Cinco de Março, à qual assistiam mais de mil pessoas, foi violentamente interrompida por um grupo de capangas dos fazendeiros locais que invadiu o teatro onde ela se realizava, disparando tiros de revólver e garrucha, ferindo gravemente muitos cidadãos.8 É bem provável que os habitantes do sul do Espírito Santo tivessem tomado conhecimento dos acontecimentos em Campos, através das “folhas interioranas” que circulavam em ambas regiões. Acreditamos na hipótese de que os fatos violentos verificados em Campos teriam tido alguma influência no comportamento dos fazendeiros capixabas. Entretanto, devido ao 6 7 8 Correio Paulistano, 11 de novembro de 1885, “Editorial”, citado por Ronaldo Marcos dos Santos, Resistência e superação do escravismo na Província de São Paulo 18851888, São Paulo, IPE/USP, (Ensaios Econômicos 5), 1980, p. 96. O termo caifazes designa o grupo de abolicionistas liderados por Antônio Bento que, na década de 80 do século XIX, ajudava negros fugidos e os abrigava no Quilombo do Jabaquara, em São Paulo, conforme Santos, p. 83. Santos, Resistência e superação, p. 96. Província de São Paulo, 1º de fevereiro de 1887, “Distúrbios em Campos”, citado por Santos, Resistência e superação, p. 98. Para uma análise crítica dos conflitos verificados em Campos, ver Lana Lage da Gama Lima, Rebeldia negra e abolicionismo, Rio de Janeiro, Achiamé, 1981. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 195 caráter pacífico e apenas filantrópico do abolicionismo no Espírito Santo, a reação a esse movimento não se deu de forma tão violenta como em outras províncias. Enquanto os abolicionistas das províncias de São Paulo e Rio de Janeiro desafiavam as autoridades em suas investidas a favor dos escravos, os do Espírito Santo limitaram-se a promover grandes festas, com muita música e entretenimento, com o fim de angariar fundos para alforriar alguns poucos escravos. Por isto, não foram reprimidos tenazmente, quando muito, orientados para que fossem garantidos os propósitos dos escravistas, visando manter o controle sobre a força de trabalho. A partir dos anos 80, os males da escravidão e as suas injustiças passaram a ser insistentemente denunciados pelos órgãos de imprensa na província do Espírito Santo, sem que, com isto, se mostrassem favoráveis a uma emancipação imediata.9 Dos dois únicos jornais que circulavam em Cachoeiro de Itapemirim, O Constitucional e O Cachoeirano, apenas o último costumava publicar notícias sobre os males do trabalho escravo para a sociedade. O primeiro trazia como subtítulo “órgão conservador” e o segundo “órgão do partido liberal”. É importante ressaltarmos que, de acordo com Alfredo Bosi, as idéias liberais no Brasil não se constituíram historicamente fazendo críticas à contradição básica — senhores x escravos — que caracterizava a sociedade brasileira no século XIX.10 Entretanto, foi O Cachoeirano quem passou a dar mais publicidade às alforrias concedidas pelos senhores a seus escravos, a partir de 1885, na região sul da província. Para nós, a intensa divulgação das alforrias através da imprensa nos últimos anos da escravidão tinha duas finalidades: a primeira era incentivar outros senhores a seguirem o exemplo e também alforriarem seus escravos e, a segunda, era mostrar que o Estado não deveria intervir na tentativa de resolver o problema do “elemento servil”, porque os senhores, através de sua “boa vontade”, já estavam encontrando a solução, via alforrias particulares que, aliás, já eram praticadas no Brasil desde o período colonial, tendo o Estado atuado mais diretamente nesta questão só a partir de 1871.11 9 10 11 Almada, Escravismo e transição, p. 196. Remeto o leitor ao capítulo “A escravidão entre dois liberalismos”, in Alfredo Bosi, A Dialética da Colonização, São Paulo, Cia. das Letras, 1992, pp. 194-242. Sobre este assunto, ver “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX”, in Manuela Carneiro da Cunha, Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade, São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 123-144. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 196 As notícias de alforrias veiculadas pela imprensa eram de três tipos: a alforria gratuita ou incondicional, isto é, aquela em que o senhor declarava que, “por bons serviços prestados”, alforriava seu escravo sem ônus algum; a alforria por intervenção de terceiros, na qual escravos, libertos ou homens livres concorriam com quantias para a compra da liberdade de um escravo. A maioria das alforrias deste tipo envolvia homens livres que pagavam o valor do escravo a seu senhor para que o mesmo passasse a lhe prestar serviços. Em alguns casos essas intenções foram explicitadas, como veremos mais adiante. O último tipo de alforria era através das liberdades condicionais, em que os próprios senhores libertavam seus escravos sob condição de prestação de serviço por três ou quatro anos, sendo que só a partir da data estabelecida poderiam os mesmos viver em plena liberdade. Se os senhores pouco ou quase nada fizeram contra a ação dos abolicionistas, eles enfrentaram o desafio de sua época, através da distribuição de alforrias gratuitas, para que os escravos, reconhecendo suas boas ações, não os abandonassem. Isto foi possível verificar através da imprensa na região de maior concentração de população escrava no Espírito Santo, na década de 1880. As alforrias gratuitas e por intervenção de terceiros No dia 19 de julho de 1885, O Cachoeirano comunicava a seus leitores que, em virtude de bons serviços prestados, foram libertos, sem condição alguma, os escravos Caetana, Angélica, Rita, Ignácia, Joanna e Manoel, pelos herdeiros do finado Luiz Francisco de Carvalho; Maria, pelo senhor Francisco Ourique de Aguiar; Catarina, pelo senhor João de Aguiar Vallim; Ricarda, pela senhora D. Ana Rosa do Prado Vieira; Januária, Sebastiana e Mathilde, pelos herdeiros do finado capitão Pedro Dias do Prado e sua mulher. Todos estes escravos eram residentes em fazendas situadas no Município de Cachoeiro de Itapemirim.12 Os senhores Francisco Ourique de Aguiar e seu irmão João de Aguiar Vallim eram primos do abastado fazendeiro Manoel de Aguiar Vallim, dono de numerosa escravaria e influente personagem político na região de Bananal, em São Paulo. Ao que tudo indica, seus dois primos, residentes na 12 O Cachoeirano, 19 de julho de 1885. “Liberdades”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 197 Vila de São Miguel do Veado, instalaram-se em Cachoeiro com seus escravos e cabedais, atraídos pela abundância de terras virgens e propícias ao cultivo do café.13 De janeiro de 1885 a maio de 1888, foi-nos possível acompanhar, através d’O Cachoeirano, um grande número de anúncios que terminavam sempre com a expressão: “é digno de todo o louvor e que este ato seja imitado”. Para o jornal, o ato de alforriar deveria servir de exemplo para que os senhores não vissem as suas fazendas despovoadas e não permitissem que o governo legislasse com a finalidade de promover a emancipação imediata, quebrando a autoridade moral que exerciam sobre seus trabalhadores. Uma notícia de 25 de dezembro de 1887 permitenos vislumbrar a importância atribuída à declaração pública do ato de alforria: Recebemos do Sr. Tenente-Coronel Archanjo José de Souza, agricultor em Itapemirim, a comunicação que temos o maior prazer em inserir neste logar: Ilmo. Sr. Redator Tendo eu dado liberdade a alguns dos escravos que possuía, deixei de dar notícia disto a imprensa. Agora porém, por circunstancias que VExcia bem compreenderá, resolvi dizerlhe para que noticie pelo seu conceituado Cachoeirano, ter eu libertado ano passado os escravos: Severiano, Isabel e Victoria sem condição alguma.14 Se os escravos tinham a percepção do momento em que viviam e por isto fugiam, os senhores também eram perspicazes e, por sua vez, alforriavam alguns. Estas eram as circunstâncias a que se referia o senhor Archanjo. Por outro lado, o ano de 1885 foi marcado por duro golpe no poder que os senhores exerciam sobre seus escravos. Em 28 de setembro deste mesmo ano, o governo aprovou uma lei dando liberdade aos escravos maiores de 65 anos. Apesar da lei conter uma série de me13 Para uma análise biográfica de Manoel de Aguiar Vallim, ver Hebe Maria Mattos de Castro e Eduardo Schnoor (Orgs.), Resgate: uma janela para o oitocentos, Rio de Janeiro, Topbooks, 1995. 14 O Cachoeirano, 25 de dezembro de 1887. “Manumissão”. Grifo nosso. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 198 didas que cerceavam a liberdade plena dos escravos contemplados, ela incluía em seu Art. 3°, parágrafo 9°, a seguinte frase: “é permitida a intervenção direta de terceiro para a alforria do escravo, uma vez que exiba o preço deste”.15 Este direito já havia sido garantido com a aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, que dava aos escravos o direito de conseguir alforria, mediante indenização de seu preço. Para tanto, era permitido que terceiros concorressem com quantias para a alforria do escravo, em troca de contratos de serviços com os cativos beneficiados, que por lei não poderiam exceder sete anos.16 Contudo, um decreto do governo, de 1872, proibia esta prática, afirmando que a alforria mediante pecúlio só seria permitida se fosse por iniciativa do próprio escravo.17 Esta medida visava limitar a ação de terceiros na relação que o senhor tinha com o seu escravo, mas esta situação veio a se alterar profundamente com a aprovação da lei de 28 de setembro de 1885. Para Joselí Mendonça, a possibilidade da intervenção de terceiros rompeu com o domínio que os senhores queriam manter sobre seus escravos.18 Na ocasião em que se discutia, na Câmara dos Deputados, o projeto que resultou na lei de 1885, um grupo de fazendeiros pertencentes à Liga da Lavoura do Município de Itabapoana, no Espírito Santo, expressou sob a forma de uma representação, proposta pelo deputado Costa Pereira, suas opiniões quanto à intervenção do Estado na “questão servil”: “O que a nação e com ela nós desejamos é transformar diretamente, com a menor intervenção possível dos poderes públicos, o trabalho servil em livre, de modo gradual, que mantenha e não ocasione o decaimento da produção agrícola e do valor da propriedade territorial”.19 Em síntese, o que os proprietários de escravos queriam era que o Estado não interviesse na questão servil. Por isto, eles faziam questão de tornar 15 16 17 18 19 Joselí Maria Nunes Mendonça, A Lei de 1885 e os Caminhos da liberdade, Campinas, SP, Dissertação de Mestrado, UNICAMP-IFCH, História, 1995, pp. 256-263. Biblioteca Nacional (BN) Rio de Janeiro - Coleção de Leis do Império. Artigo 4º, par. 2º da Lei 2040 de 28 de setembro de 1871. Sobre este assunto, ver Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte, São Paulo, Cia. das Letras, 1990, pp. 157-158. Artigo 57, § 1º do Decreto nº 5135 de 13 de novembro de 1872, citado por Mendonça, A Lei de 1885, p. 207. Mendonça, A Lei de 1885, p. 213. Idem. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 199 público, através dos jornais, que estavam alforriando os seus escravos “por conta das circunstâncias que VExcia bem compreenderá,” pois, o seu poder cada vez mais enfraquecia, ainda mais após a aprovação da Lei de 16 de outubro de 1886, que proibia o açoite. Eram essas as circunstâncias que o redator de O Cachoeirano deveria compreender. De início, os anúncios nos sugerem que os senhores, com os seus atos “humanitários”, estavam contribuindo para a nobre causa da emancipação dos escravos. No entanto, eles realmente procuravam proteger os seus interesses porque, naquela época, a escravidão já estava desmoralizada e, por conta disso, os escravistas também queriam dar satisfação à sociedade livre para não permanecerem tão desmoralizados diante dela. Os motivos variavam de acordo com a ocasião: aniversários, casamentos, nascimentos de filhos, comemorações natalinas ou, até mesmo, falecimentos justificavam a concessão de alforrias. Esta era uma das poucas estratégias que os senhores ainda dispunham para preservar algum domínio sobre seu ex-escravo. Em janeiro de 1886, a senhora Cristina Theodora Moreira, por ocasião de seu casamento com o senhor Antônio Vicente de Almeida, tornava público que havia dado liberdade à sua mucama Maria dos Passos, “em demonstração de regozijo e pelos bons serviços prestados pela liberta”.20 Mas não era só em ocasiões especiais que os senhores alforriavam os seus escravos. Em novembro de 1885, o Sr. Capitão Joaquim Nunes, fazendeiro residente em São José do Calçado, comunicava que havia dado liberdade plena ao seu casal de escravos Luiz e Porcina, pelos bons serviços prestados.21 Ato semelhante também praticou o senhor José Domingos de Carvalho, residente em São Miguel do Veado, ao conceder liberdade plena, em fevereiro de 1887, a seus escravos Angelo, de 46 anos, Inocência, sua mulher, de 48 anos, e Perpétua, de 25 anos, casada com Benedito, escravo de outro senhor.22 A afirmativa “bons serviços prestados”, aparentemente, indica que os escravos de bom comportamento teriam sido preferidos nas alforrias concedidas incondicionalmente por seus senhores, como de fato observou o deputado Paula Souza, no debate da Câmara, na sessão de 24 de julho de 20 21 22 O Cachoeirano, 31 de janeiro de 1886. “Manumissão”. O Cachoeirano, 29 de novembro de 1885. “liberdade”. O Cachoeirano, 27 de fevereiro de 1887. “liberdade”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 200 1884: “o liberto pela liberalidade do seu senhor é quase sempre ou sempre um homem que faz jus a esta liberdade pelo seu bom procedimento e aptidão para o trabalho”.23 No ano seguinte, outro parlamentar, Andrade Figueira, tecia considerações sobre as alforrias concedidas gratuitamente pelos senhores. Dizia ele: “... a liberalidade dos senhores, recai sobre escravos de bom comportamento, de alguma idade e que tem razões particulares de afeição”. Nestas circunstâncias, até por gratidão à “liberalidade” recebida, estes libertos tenderiam a continuar sob o domínio de seus antigos senhores, vivendo em sua companhia e para eles trabalhando.24 Esses eram os limites da ação “generosa” dos senhores, traduzidos das observações do parlamentar que provavelmente entendia da matéria sobre a qual comentara, pois muitos parlamentares eram possuidores de numerosa escravaria e, portanto, refletiam sobre o assunto com um certo conhecimento de causa. No entanto, o que eles realmente tentavam com essas observações era limitar ao máximo a ação do governo imperial no processo de emancipação. Por conta das maiores possibilidades abertas pelas mudanças na legislação, escravos que conseguiam a alforria mediante a indenização de seu preço concorriam com quantias para libertar seus familiares, para que os laços com eles fossem fortalecidos. Ignacio, ex-escravo do senhor Agostinho Prates, havia conquistado sua liberdade em 1881, ao pagar a seu antigo senhor a quantia de 600$000. Em fevereiro de 1887, libertou a sua parceira Luiza, escrava do mesmo Prates, mediante a apresentação da quantia de 641$250. O senhor Gabriel Ferreira da Silva, residente em Itabapoana, também em fevereiro de 1887, dispensou os serviços do ingênuo Romão, de 13 anos, mediante a quantia de 300$000, apresentada pelo liberto Antônio João, seu pai.25 Atos desse tipo passaram a ser apresentados pela imprensa com a intenção de que fossem imitados, porque esta apoiava esse tipo de emancipação que não alterava a ordem pública: “É digno de louvor o procedimento do liberto Ignacio, que depois de livre não se esqueceu de seus irmãos de cativeiro; a custa de seu labor, e de inúmeras privações vem hoje apresentar à santa causa da 23 24 25 Mendonça, A Lei de 1885, p.190. Idem. O Cachoeirano, 27 de fevereiro de 1887. “Manumissão”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 201 redenção, a magnanimidade de sua alma”.26 Se por um lado o jornal elogia a atitude do liberto por outro não esboça qualquer crítica ao senhor, quando muito, apresenta os fatos de forma bem objetiva. Os libertos que praticavam tais ações eram apontados pelos redatores como promotores da “santa causa da redenção”. O historiador, contudo, não precisa atribuir esse mesmo sentido às suas ações. Na verdade, tanto os libertos quanto os cativos estavam usando as armas disponíveis. Fugindo, planejando insurreições ou agindo dentro da ordem, eles interferiram ativamente no processo de emancipação na província do Espírito Santo. E não eram só libertos que se esforçavam para abreviar o cativeiro de seus familiares. Os próprios escravos concorriam com quantias para ver a sua família emancipada. Cypriano, escravo do Sr. Antônio de Souza Lima, obteve do Sr. José de Souza Lima, a liberdade da escrava Ovídia, na parte a este pertencente, mediante a quantia de 300$000 e bem assim a desistência do direito aos serviços dos ingênuos Philomena, Manoel, Thereza e José. Em virtude da Lei, foi dada baixa na matrícula da ex-escrava Ovídia, que terá de indenizar a D. Ignácia Rosa de Lima, da metade do seu valor total a esta pertencente.27 Esta notícia termina com a expressão: “é digno de todo o elogio o generoso procedimento do escravo Cypriano”. Ovídia não estava totalmente livre por ter de indenizar a outra parte do seu valor a D. Ignácia. No entanto, graças à atitude de Cypriano, com quem possivelmente mantinha um relacionamento íntimo, a sua condição mudara. Apenas em parte, mas mudara. Não há muitos registros sobre a campanha abolicionista no sul da província do Espírito Santo, entretanto as ações de um de seus membros não deixaram de ser noticiadas pela imprensa. No início de setembro de 1885, O Cachoeirano tornou público que o João Paulo F. Rios, defensor do abolicionismo na região sul, havia conseguido a liberdade dos escra- 26 27 O Cachoeirano, 5 de fevereiro de 1887. “liberdade”. O Cachoeirano, 13 de junho de 1886. “liberdade”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 202 vos Maximiano, Rosa, Joaquim e Manoel, por requerimento passado ao Juiz de Órfãos da Comarca de Cachoeiro, na condição de curador dos escravos do finado Antônio de Souza Barros.28 Por atenção aos serviços prestados à causa da liberdade, ele ganhou um diploma de sócio honorário da Confederação Abolicionista da Corte, no início de 1887.29 Em outro requerimento ao Juiz de Direito, em junho desse mesmo ano, o Rios conseguiu que Leopoldina, propriedade do senhor Emyglio José Martins, passasse a viver em liberdade, alegando que a mesma era filha da africana Genoveva, já liberta por ter sido introduzida no Império depois da Lei de 7 de novembro de 1831.30 Em novembro, ofereceu 600$000 para a libertação de Alexandre, de 22 anos, pertencente ao senhor Albino Penna Caiado e, na mesma ocasião, depositou em juízo 900$000, valor máximo estabelecido por lei, a favor da liberdade do escravo Antônio, pertencente à viúva Barros.31 É bem provável que o dinheiro empregado por Rios nas alforrias tenha sido oriundo de fundos privados pois, na prática, o movimento abolicionista no Espírito Santo não ultrapassou a fase filantrópica, na qual, clubes, associações e sociedades abolicionistas promoviam festas e organizavam campanhas para recolhê-los. Isto foi o que verificamos nas ações da Sociedade Abolicionista do Espírito Santo (a primeira fundada na província, em 1869), na Associação Emancipadora Primeiro de Janeiro e na Sociedade Libertadora Domingos Martins, todas localizadas em Vitória.32 Rios não foi o único a despender recursos para a alforria de escravos. Antônio José Alves e Silva, em junho do mesmo ano, conseguiu que fosse liberta Eugenia, mediante a apresentação de 675$000 ao senhor da escrava, valor máximo estabelecido por lei, e pela mesma quantia, Francisco Gonçalves Ferreira conseguiu libertar Jacinta Luiza, propriedade de Ananias Ferreira de Almeida.33 Se, por um lado, a intervenção de terceiros na alforria de escravos rompia os laços que estes mantinham com seu antigo senhor, por outro, 28 29 30 31 32 33 O Cachoeirano, 02 de setembro de 1885. “Manumissão”. O Cachoeirano, 27 de março de 1887. “Libertas, decus etc”. O Cachoeirano, 26 de junho de 1887. “liberdade”. O Cachoeirano, 6 de novembro de 1887. “liberdade”. Martins, Os Caminhos da liberdade, pp. 24-26. O Cachoeirano, 11 de março de 1887. “liberdade”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 203 afora nos casos movidos por libertos e até homens livres bem intencionados, haveria a possibilidade dos escravos terem de contrair serviços e obrigações com as pessoas que pagavam por sua alforria. De fato, “buscar ajuda de terceiros para obter a liberdade nem sempre foi uma situação da qual decorressem para os escravos somente vantagens”.34 No dia 20 de novembro de 1887, O Cachoeirano noticiou que Luiz Curvacho libertou, com a condição de prestar-lhe serviços por três anos, a escrava Laurinda, de 41 anos de idade, mediante a quantia de 400$000 apresentada ao seu proprietário, o senhor Moreira Gomes, que ainda teria feito um abatimento no preço. Luiz Curvacho, de acordo com a notícia, abertamente expôs o motivo pelo qual contribuiu para a liberdade de Laurinda, mas nem todos agiam desta forma revelando os motivos que os haviam levado a alforriar escravos de outros senhores.35 Na prática, a alforria por intervenção de terceiros poderia disfarçar uma mera compra e venda de serviços. Isto pode ter levado alguns escravos a não concordarem com a transação e, no momento de conclusão da mesma, aproveitarem uma brecha e escapar, já que legalmente estavam livres, como nos evidencia o seguinte caso: O abaixo assinado declara que mediante a quantia de 600$000, conseguiu que Vicente de Aguiar Paiva, residente no Alegre, alforriasse o seu escravo Luiz, cuja carta de liberdade está registrada no livro de notas do escrivão Fernando José de Araújo. Declarando o dito Paiva que Luiz se evadira da casa de sua residência na Vila do Espírito Santo, ao amanhecer do dia em que foi libertado, e não tendo se apresentado até agora a seu protetor por ignorar que está livre, pede às autoridades do norte e do sul da província, especialmente as de Itapemirim, Cachoeiro, Alegre e Veado e a todos os moradores destes lugares que protejam e acolham o referido Luiz, comunicando-me o que souberem a respeito dele, a fim de ser restituído à sua mãe. Luiz pode ter 15 a 16 anos de idade e tem no rosto um sinal bem pronunciado. 34 35 Mendonça, A Lei de 1885, pp. 215-216. O Cachoeirano, 20 de novembro de 1887. “liberdade”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 204 Cidade da Victória, 19 de março de 1886. Adolpho José de Siqueira.36 Apesar de liberto, Luiz estava sendo procurado como um fugitivo. Nesta notícia percebem-se duas visões distintas de liberdade: a primeira, a do ex-senhor de Luiz, para quem a liberdade do seu ex-escravo significava procurar seu protetor para viver em sua companhia, possivelmente prestando-lhe serviços, e a do próprio Luiz, para quem a liberdade significava ir embora. A notícia é até contraditória. Se o escravo havia fugido na manhã em que seria libertado, como poderia ele “ignorar que está livre”? Desconfia-se que por trás da intervenção de algumas pessoas na obtenção da alforria de escravos de outros senhores estava o interesse no controle da mão-de-obra, como Luiz pode ter interpretado sua situação. Em outro caso semelhante, não há dúvida; o que se pretendia era uma simples transferência de domínio. Em outubro de 1887, O Cachoeirano participava ao público que o fotógrafo Joaquim Ayres havia dado liberdade “sem condição alguma” à escrava Angélica, de propriedade do capitão Felippe de Mello Pereira, e ainda complementava: “ações destas são dignas de todo o louvor”.37 Temos razões para acreditar que nem tanto. Poucos dias depois, nesse mesmo jornal, foi publicada uma carta indignada do filho do capitão Felippe de Mello Pereira, desvendando o ocorrido na ação em que Angélica foi libertada, pelo senhor Ayres. A carta é por demais esclarecedora sobre a hipótese que defendemos quanto à contribuição de algumas pessoas para a alforria de escravos. Ilm. Sr. redator do Cachoeirano S. Feliz, 2 de novembro de 1887. Só agora pude ler o n° 43 de sua folha e na gazetilha deparei com o subtítulo “liberdade” em que vossa senhoria noticia ter o Sr. Joaquim Ayres libertado Angélica, então escrava do meu pai, sem condição alguma; desta notícia depreende-se primeiro — que o Sr. Ayres concorreu com todo o valor de Angélica para a liberdade da mesma; segundo — que o Sr. Ayres praticando tal ato o fez tendo só em vista um ato humanitário, não exigindo de Angélica que prestasse serviço algum. 36 37 O Cachoeirano, 28 de março de 1886. “Atenção”. O Cachoeirano, 23 de outubro de 1887. “liberdade”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 205 Vou historiar-lhe o ocorrido para que Vossa Senhoria e o público fiquem bem cientes de como os fatos se passaram. Angélica é casada com Odorico que é escravo do meu pai; Odorico tinha na coletoria desta vila como pecúlio seu a quantia de 100$000 réis, cedeu este pecúlio em favor de Angélica, que com esta quantia e mais 96$000 réis que tinha ela e 4$ que lhe foi oferecido por um cavalheiro para sua liberdade, e ainda o produto de oito sacos de milho que entregou ao Sr. Ayres; combinou com este em fornecer-lhe o valor legal dela para que a libertasse sob a condição de prestar-lhe três anos de serviço. Sendo meu pai sabedor deste conchavo entre Angélica e o Sr. Ayres e avisado do que se passava declarou que libertava Angélica com a condição de três anos de prestação de serviços sem dela receber indenização alguma; Ayres sabe disto e soube também que neste caso o senhor seria preferido, declarou então que daria a quantia que faltasse sem condição alguma. Entrou realmente o Sr. Ayres com a quantia de 421$500 para completar 661$500, segundo a nota que me foi fornecida, mas sou informado de que a própria Angélica declarou em casa de meu pai que ali não poderia mais ficar porque tinha feito um contrato de serviço em casa do Sr. Ayres para pagamento do dinheiro que ele adiantou para a sua liberdade. Os fatos posteriores comprovam este dito de Angélica, porque antes mesmo do meu pai receber a quantia [o senhor Ayres] declarou algumas vezes que fazia aquilo porque precisava de uma pessoa para o serviço de sua casa. Esta é que é a verdade, peço o obséquio de fazer conhecer o público. Felippe de Mello Pereira Filho.38 Todos ficaram sabendo da má fé do senhor Ayres que não se retratou através da imprensa. A carta nos revela também as intenções que possivelmente teriam movido muitas pessoas livres a despenderem quantias em favor da alforria de escravos de outros proprietários: libertá-los para “escravizá-los”, aparentemente numa mera transferência de posse, porque o liberto viveria em sua companhia devendo prestar serviços a quem o libertou, como nos ilustra mais este exemplo: no dia 6 de maio de 38 O Cachoeirano, 6 de novembro de 1887. “A Liberta Angélica”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 206 1887, o senhor José Ferreira de Souza libertou Antonia, solteira, parda, após ter sido indenizado com a quantia de 500$000, pagos por Manoel Gonçalves Lima da Cruz, com quem a liberta firmou contrato de serviço por espaço de 4 anos para lhe restituir o valor pago a seu favor, contrato este registrado em cartório: “Escritura de Locação de Serviços que faz Antonia ex-escrava de José Ferreira de Souza a Manoel Gonçalves Lima da Cruz pela quantia de 500$000, por espaço de 4 anos”.39 Em síntese, a alforria por indenização de seu preço, feita por terceiros ao senhor, representou para muitos escravos uma transferência de prestação de serviços, legalmente, como no caso acima citado, ou não, como mostramos nos outros exemplos. As alforrias condicionais Na Lei de 28 de setembro de 1871, ficou estabelecido que os filhos da mulher escrava que nascessem no Império, desde aquela data, seriam considerados de condição livre, porém, o senhor deveria criá-los até a idade de 8 anos, podendo optar entre receber uma indenização do Estado, no valor de 600$000, ou utilizar-se do serviço do menor (ingênuo) até a idade de 21 anos.40 De acordo com essa lei, a escravidão estava com seus dias contados. No entanto, para os fazendeiros isto não aconteceria em curto prazo. Foi somente nos primeiros anos da década de 1880 que as mudanças no ambiente político da escravidão (principalmente o fortalecimento do movimento abolicionista) começaram a dar sinais de que o fim do trabalho escravo se aproximava. Conseqüentemente, houve uma queda drástica no valor dos escravos com relação ao valor dos seus serviços. A partir de 1883, os senhores de escravos começaram a se conscientizar de que a escravidão estaria extinta já por volta de 1890.41 39 40 41 Cartório do 2o Ofício de Vitória - Carta de liberdade e Escritura de Locação de Serviços, Livro de Notas nº 64, pp. 37-38. Este documento também se encontra citado em Almada, Escravismo e transição, p. 197. (BN) Rio de Janeiro - Coleção de Leis do Império, § 1º do Art. 1º da Lei 2040, de 28 de setembro de 1871. Pedro Carvalho de Mello e Robert W. Slenes, “Análise econômica da escravidão”, in Paulo Neuhaus, (org.), Economia brasileira: uma visão histórica (Rio de Janeiro, Campus, 1980), pp. 103-117. Ver também: Robert W. Slenes, “Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da Província do Rio de Janeiro, 1850-1888”, in Iraci del Nero Costa (org.), Brasil: História econômica e demográfica (São Paulo, IPE/USP, 1986). Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 207 Por esta razão, aqueles senhores que, nos anos 80, resistiam em libertar incondicionalmente os seus escravos, viam na possibilidade de libertálos, sob prestação de serviços até o ano de 1890, a solução para por fim ao trabalho escravo em suas fazendas. No dia 31 de julho de 1887, Paulino José Alves e sua esposa D. Paulina Alves Ferreira anunciaram no jornal que: “por documento que haviam passado no dia 20 do mesmo mês declararam que a partir de 7 de setembro de 1890 ficariam livres todos os escravos que possuíam em sua fazenda São João da Barra, do rio Muquí, no Município de Cachoeiro, e isentos também os ingênuos da prestação de serviços”.42 A imprensa procurava sensibilizar os senhores de escravos da província do Espírito Santo, ao dar publicidade a esse tipo de alforria, também praticado em outras províncias do Império porque “...quando muito, o discurso da imprensa, um discurso político que se pretende formador da opinião do segmento a que se dirige, procura apontar aos senhores, por meio de seus editoriais e noticiários, aquela que seria a via mais segura de transformação do trabalho”.43 Em agosto de 1887, O Cachoeirano publicou uma notícia através da qual informava que muitos fazendeiros do Município de Jacarehy, em São Paulo, haviam se reunido e deliberaram libertar todos os seus escravos, com a condição de servi-los até 28 de setembro de 1890, excetuando os já evadidos ou que se evadissem.44 É interessante ressaltarmos que, no segundo semestre de 1887, ocorreram várias reuniões de fazendeiros no interior de São Paulo para discutir sobre o fim do trabalho escravo, entretanto, os acordos sempre tendiam para uma abolição com prestação de serviços por alguns anos.45 Para Robert Conrad esta foi a única saída encontrada pelos fazendeiros daquela província face às desordens promovidas pelos próprios escravos que, à força, antecipavam a data da abolição.46 Os jornais do Espírito 42 43 44 45 46 O Cachoeirano, 31 de julho de 1887. “liberdade” - Cartório do 2o Ofício de Notas de Cachoeiro de Itapemirim - Carta de liberdade, 11 de outubro de 1887. Livro nº 16 pp. 72-73. Jefferson Cano, “Escravidão, alforrias e projetos políticos na imprensa de Campinas 1870-1889”, Campinas, UNICAMP- IFCH, Dissertação de Mestrado, 1993, pp. 153-154. O Cachoeirano, 7 de Agosto de 1887. “Elemento Servil”. Santos, Resistência e superação, p. 103. Robert Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, pp. 301-313. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 208 Santo mantinham silêncio sobre os confrontos violentos verificados em São Paulo entre escravos fugitivos, abolicionistas e a força policial. Isto não é de se estranhar. Hebe de Castro também observou que as “folhas interioranas” do Rio e de Minas, igualmente, não chegaram a dar grande destaque às fugas de 1887 e à radicalização do movimento abolicionista em São Paulo.47 O interessante é notar que a imprensa capixaba nem mesmo dava publicidade aos conflitos que ocorriam em regiões muito próximas à província, como era o caso do município de Campos, no norte fluminense.48 Em pesquisa realizada em Campinas, município de São Paulo, Jefferson Cano ressaltou que dos 1487 alforriados noticiados em 1887, na Gazeta — periódico que circulava no município — apenas 54 significavam uma libertação imediata e incondicional; do restante, a maioria trazia um prazo de prestação de serviços de três a quatro anos, “apresentado de maneira entusiástica pelo jornal como a iniciativa de senhores progressistas que tomavam a dianteira na resolução de um problema para o qual o governo mostrava-se incapaz”. Ou melhor, no qual não deveria se intrometer. 49 Na realidade, esses senhores estavam tentando se antecipar às atitudes de seus escravos que, justamente naquele período, estavam provocando desordens e deixando despovoadas as suas fazendas.50 O autor argumenta ainda que os senhores, ao concederem alforrias condicionais, afirmavam que esta seria a única forma de efetuarem uma transição para o trabalho livre de forma pacífica, porque, segundo eles, o escravo era despreparado para a vida em liberdade e nestes três ou quatro anos, trabalhando na companhia do seu ex-senhor, aprenderia os princípios da “lei” e da “moral”, de que havia sido privado por ter permanecido muito tempo de sua vida nas “trevas da escravidão”. Na realidade estes argumentos nos revelam que os senhores queriam manter, sob controle, não só a sua força de trabalho, como também o processo de emancipação. 47 48 49 50 Hebe Maria M. de Castro, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1993, p. 245. Sobre este assunto ver Lima, Rebeldia negra. Cano, “Escravidão, alforrias e projetos políticos”, p. 158. Célia M. Marinho de Azevedo, Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 209 Com o progressivo declínio do regime de trabalho escravo, verificado em outras províncias do sudeste, alguns dos maiores possuidores de escravos do sul do Espírito Santo se reuniram, na noite de 29 de dezembro de 1887, em meio às comemorações natalinas, na casa do Tenente-Coronel Ildefonso Vianna, para tratar de pôr um fim à “questão servil” em seus estabelecimentos, pois, seguindo o exemplo dos fazendeiros paulistas, era chegada a vez dos capixabas tomarem alguma medida, como nos sugere o título da notícia sobre a reunião, publicada pela imprensa, no início de janeiro de 1888 — “A Nossa Vez”.51 Compareceram: Lourenço Bernardes de Souza, representante de João Bernardes & Filhos, Antônio e Luiz Carlos de Miranda Jordão, Octavio Werneck, Pedro Vieira Machado da Cunha, João C. Borges de Athaide, Diogo Amorim e Mariano Coelho Filho. Por comparecer à reunião um número muito pequeno de lavradores, não houve um acordo sobre que medida tomar, pois, para eles, qualquer decisão que fosse tomada deveria ser bastante discutida para não pôr em risco a sorte de suas economias e prejudicar as rendas do Município de Cachoeiro de Itapemirim. Porém, os senhores Lourenço Bernardes & Filhos, João C. Borges e o anfitrião, Ildefonso Vianna, aproveitaram a ocasião para declarar que todos os seus escravos estariam libertos em 31 de dezembro de 1890; a esta declaração aderiu o doutor Luiz Siqueira da Silva Lima.52 A noite se passou e, no dia seguinte, os nobres senhores parecem ter acordado mais dispostos a tirarem uma posição frente ao problema. As discussões tomaram todo o dia 30 e o resultado foi a produção de um manifesto, assinado por alguns dos presentes na reunião, porque nem todos concordaram com o documento alegando que ainda precisavam refletir mais sobre a questão com um número maior de fazendeiros: Nós abaixo assinados agricultores estabelecidos na parochia de S. Pedro do Cachoeiro, do Município de Cachoeiro de Itapemirim, atendendo a que é urgente para a grande lavoura Itapemiriense providenciar sobre o modo de preparar-se para a solução do grave problema – elemento servil – de sorte a evitar 51 52 O Cachoeirano, 15 de janeiro de 1888. “A Nossa Vez”. Idem. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 210 os inconvenientes da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, e oferecer aos atuais escravos vantagens e garantias tendentes a coloca-los para continuarem a trabalhar nos mesmos estabelecimentos de lavoura em que se acham, tendo diante de si um futuro breve e a efetividade da liberdade plena. Considerando que os estabelecimentos agrícolas por eles custeados não podem desde já prescindir deste elemento tradicional do trabalho, nem deve arriscar-se a vê-lo desaparecer de um momento para o outro, sem que o proprietário do estabelecimento possa substituí-lo, nem mesmo dentro de um curto prazo, pelo trabalhador livre. Considerando que o trabalhador escravo, mal educado no regime do trabalho forçado, em geral improdutivo para si, não pode passar rapidamente para o estado livre, de modo a auferir deste estado, vantagens para si e para a sociedade e comunhão da qual será parte. Deliberamos fixar o dia 31 de dezembro de 1890 para então em diante gozarem todos os nossos escravos da liberdade plena, a qual pelo presente documento, que será transcrito em livros de notas de alguns dos tabeliães da Villa do Cachoeiro de Itapemirim, lhes ficam inteiramente garantidas, por ser, como é, a nossa deliberação irrectratável. Outrossim, declaramos que da mesma data em diante ficarão dispensados os ingênuos do serviço obrigatório, prescrito pela Lei de 28 de setembro de 1871. Cachoeiro de Itapemirim, 31 de dezembro de 1887. João Bernardes de Souza, Ildefonso da Silva Vianna, João Cândido Borges de Athaide, Lourenço Bernardes da Cunha e Souza, e Luiz Siqueira da Silva Lima.53 O que na realidade se pretendia, a pretexto da preparação do escravo para a vida em liberdade, por ter sido “mal educado no regime de trabalho forçado”, era evitar o abandono de suas fazendas, isto é, “evitar os inconvenientes da transição do trabalho escravo para o trabalho livre”. A propósito deste assunto, A Gazeta de Campinas publicou uma 53 Idem. Grifo nosso. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 211 notícia de alforria, em junho de 1886, sob as mesmas condições, na qual o senhor utilizava os mesmos argumentos para justificar a sua atitude.54 Em uma província como o Espírito Santo, onde o abolicionismo foi inexpressivo, os responsáveis pela disseminação de tais idéias foram alguns homens que defendiam o regime republicano.55 No sul da província, seu porta-voz foi o farmacêutico Bernardo Horta de Araújo, eleitor e redator de O Cachoeirano, que, em janeiro, ao saber das decisões daquele grupo de fazendeiros reunido em meio às comemorações natalinas com o fim de fixarem um prazo para a libertação dos seus escravos, descreveu emocionado a sua reação: “Há muito que aconselho e insisto aos fazendeiros deste Município, onde existem ainda mais de 7.000 escravos, para que não esperem medidas legislativas sobre o assunto de que me ocupo e as tomem por si, de acordo com os seus legítimos interesses e com a idéia já vencedora da abolição da escravidão dentro de breve prazo”.56 Em uma viagem que fizera, no início daquele mês de janeiro, ao interior de Cachoeiro de Itapemirim, Bernardo Horta de Araújo pôde observar que, em diversas localidades, a maior parte dos fazendeiros com quem conversou estava convencida de que a escravidão estaria extinta dentro de no máximo três anos, e que entre eles havia percebido um certo receio em tomar qualquer medida sem prévio acordo do maior número possível de interessados. Em março, os ventos que sopravam de outros municípios traziam notícias de que ao passo que as alforrias iam ocorrendo eles ficavam praticamente livres do trabalho escravo. Sobre Campos publicou-se que no dia 25 deveria ser proclamada a libertação geral no município, pois até aquela data as libertações por iniciativas particulares já atingiam mais de 4.000.57 Por conta disto, O Cachoeirano, através de seus edito- 54 55 56 57 Cano, “Escravidão, alforrias...”, p.157. Rebecca B. Begstresser, ressaltou que a adesão do Partido Republicano paulista à causa da abolição só se deu em 1887. Isto evidencia que nem sempre ser republicano significava ser favorável a uma abolição imediata, in “The movement for abolition slavery in Rio de Janeiro, Brazil, 1880-1889”, Stanford University, Tese Ph.D., 1973, p. 168. Sobre este assunto ver também Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia. São Paulo, Difel, 1966 e Conrad, Os últimos anos da escravatura. O Cachoeirano, 22 de janeiro de 1888. “Elemento Servil”. O Cachoeirano, 18 de março de 1888. “Município de Campos”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 212 riais, procurava orientar os fazendeiros de Cachoeiro de Itapemirim para que seguissem o exemplo do que se passava no município vizinho: “Os lavradores do Município meditem sobre o que se está dando em Campos, resolvam antes de serem obrigados a resolver; congreguem-se, não para resistir, mas para achar a melhor solução; resistir já o dissemos será o aniquilamento”.58 Os lavradores de outros municípios da vizinha província do Rio de Janeiro também se empenhavam em fazer o mesmo59 e, com base nestes exemplos, seria mais prudente que os de Cachoeiro se empenhassem cada vez mais em libertar os seus escravos, antes que isto acontecesse por força da lei: “É melhor a espontaneidade do senhor do que de um dia para o outro verem as suas fazendas abandonadas”.60 Nesta altura as desordens já eram uma realidade em várias províncias do Império, inclusive no Espírito Santo. Em 13 de fevereiro de 1888, o delegado de polícia de Nova Almeida, em comunicação com o chefe de polícia da província, nos revela sua apreensão quanto à possível inquietação dos escravos daquele lugar. Aqui chegou o Alferes Cruz comandando praças vindas pelo Vapor Mathilde desembarcar em Santa Cruz porque o delegado dali entendeu distribuir as praças por dois dias a fim de manter a ordem na Fazenda das Palmas propriedade do Sr. Guaraná, em virtude de ter se dado na dita fazenda um conflito, envolvendo vários escravos.[...] Aproveito porém a boa ocasião para requisitar de VExcia um destacamento para esta Vila cujo número de praças ponho ao arbítrio de VExcia porque me parece que continuará de vez em quando aparecer no distrito de minha jurisdição matéria para não poder de forma alguma prescindir de um destacamento. Confiando porém na costumada justiça de que VExcia atenderá a minha aclamação aliás tão necessária como mesmo poderá informar ao Sr. o Alferes Cruz.61 58 59 60 61 O Cachoeirano, 25 de março de 1888. “Transformação do trabalho”. Stanley J. Stein, Vassouras: um município brasileiro do café 1850-1900, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. O Cachoeirano, 25 de março de 1888. “Transformação do Trabalho”. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), Vitória - Ofício do Delegado de Polícia de Nova Almeida ao Chefe de Polícia da Província, Cx: 85, Livro 324. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 213 O delegado não informou maiores detalhes sobre o ocorrido, porém, sua preocupação em tentar manter a ordem, em meio à inquietação dos escravos, nos sugere o porquê da estratégia senhorial de conceder alforrias e, além disso, evidencia a percepção dos escravos ante o momento de definhamento da escravidão na província. De fato, os cativos reivindicavam melhores condições de trabalho quando o sol da liberdade já podia ser avistado no horizonte, como indica o incidente ocorrido na fazenda Palmas, narrado pela historiadora Vilma Almada: Após sair em viagem a caminho da Corte, o Sr. Aristides Guaraná deixou a direção de sua Fazenda Palmas sob os cuidados de novo administrador; após sua saída retiraram-se todos os seus escravos pacificamente e sem armas. Era um protesto em busca da liberdade e melhor tratamento. Decorridos três dias, voltaram e declararam ao administrador José de Barros que estavam dispostos ao trabalho mesmo penoso; jamais suportariam, porém, a bárbara disciplina do tronco e do vergalho. Receberam ordem de fazer um roçado morro acima, íngreme e pedregoso. Finalizando o trabalho receberam ordem de prosseguir morro abaixo, um escravo reclamou que era impossível, o administrador mandou que outro escravo o castigasse com o vergalho. Todos se recusaram a fazê-lo. O administrador acompanhado de capangas, vendo-se desautorizado, ameaçou-os de morte quando formados dirigiam-se para o trabalho. Debandaram espavoridos. Foram porém perseguidos a tiros, ‘cacetadas’, ‘facadas’, conforme o relato do escravo Manoel que ferido a tiros fora ouvido na Delegacia de Polícia. Os sobreviventes foram metidos no tronco.62 Cabe-nos ressaltar que toda essa confusão ocorrera no dia 7 de fevereiro, tudo por conta da imprudência de um feitor que, ante os novos tempos, não quis se render às exigências dos escravos. Seymour Drescher argumentou que na fase final da emancipação no Brasil (1880-1888), quando os escravos se engajaram na violência, parecem ter dirigido seus ataques aos feitores e apenas ocasionalmente aos senhores.63 62 63 Almada, Escravismo e transição, p. 202. Seymour Drescher, “A Abolição Brasileira em Perspectiva Comparativa”, História Social, nº 2, (1995), p. 152. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 214 Face a essa realidade, a alforria incondicional mostrava-se uma estratégia fundamental para que os senhores mantivessem o controle do processo de emancipação e impedissem a insubordinação das senzalas. A rebeldia, aliás, não se resumia às deserções em massa, que com a concessão da liberdade se pretendia evitar.64 No dia 1º de abril de 1888 foi divulgada uma carta particular, enviada à redação do periódico O Paiz, de circulação na Corte, na qual se informava a todos que o laborioso agricultor de Itabopoana, no Espírito Santo, Sr. Henrique Bochat, reunido no dia 15 de março com todos os seus escravos, declarou-lhes que daquela data em diante lhes concedia liberdade plena e incondicional e que quem quisesse poderia sair de sua fazenda ou continuar em sua companhia; receberiam ordenado conforme já recebiam os seus outros empregados. Imitaram-no, libertando também seus escravos, os senhores Nestor Bochat, Francisco Bochat, Eugênio Bochat e o senhor João Pedro Lengruber. Afora o último, é bem provável que os outros três fossem irmãos ou parentes muito próximos do Sr. Henrique Bochat.65 Quase dez dias depois chegava ao conhecimento de todos que já se encontravam completamente livres do trabalho escravo os municípios de Macahé, São Fidélis e São João da Barra, no Rio de Janeiro e, de acordo com a crescente onda de libertações, em breve a escravidão também estaria extinta em Magdalena e outros municípios onde, segundo alguns, “ainda predominava um resto da idéia condenada”.66 De acordo com uma notícia publicada em O Cacheirano (17 de abril de 1887), a população escrava matriculada nas coletorias da província, até 30 de março daquele ano, encontrava-se assim distribuída: Cachoeiro de Itapemirim - 6.965, cidade de São Matheus - 1.146, Capital (Vitória) - 1.127, Itapemirim 1.078, Serra e Nova Almeida - 728, Santa Cruz e Linhares - 560, Santa Leopoldina - 544, Vianna - 399, Benevente - 388, Guarapary - 252, Barra de São Matheus - 215, total - 12.402. Levando em consideração que no censo de 1872 foram matriculados 6.980 escravos entre pardos e pretos, pudemos observar que apesar das evidências até aqui apontadas, as alforrias tiveram um papel pouco significativo, no período compreen64 65 66 Castro, Das Cores do Silêncio, pp. 255-256. O Cachoeirano, 1 de abril de 1888. “liberdade”. O Cachoeirano, 8 de abril de 1888. “Enquanto é Tempo”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 215 dido entre 1872 e 1887, para o fim da escravidão em Cachoeiro, porque havia praticamente o mesmo número de escravos no início de 1887, no município. Quem realmente perdeu trabalhadores foi o Município de Itapemirim, no litoral, onde, no início de 1887, havia 10% a menos de escravos em relação aos matriculados em 1872, o que, provavelmente, se deu por conta da transferência dos mesmos para as frentes de expansão das lavouras de café, no interior da região sul. Face ao que se passava a sua volta, os fazendeiros de Cachoeiro não ficaram de braços cruzados, esperando o grande dia chegar e, a partir de março de 1888, passaram a encurtar o prazo das alforrias condicionais, assim como, a oferecer “vantagens” para que os libertos permanecessem em suas fazendas. Podendo-se concluir, tal qual já havia afirmado Vilma Almada, que “enquanto os fazendeiros paulistas foram abolicionistas de última hora, os capixabas o foram só depois de soada a hora da libertação”.67 Luiz Siqueira da Silva Lima, que havia participado da reunião no Castelo, em casa de Ildefonso Vianna, no final de dezembro de 1887, na qual tinha prometido libertar os seus escravos no prazo de dois anos, agora, em abril de 1888, junto com seus correligionários, declarou que a partir de 31 de dezembro do mesmo ano todos estariam no pleno gozo da liberdade. Declarou também que, de janeiro de 1889 em diante, forneceria aos que quisessem permanecer no estabelecimento, casa para moradia, lavouras de café ou cana e terras para trabalharem, e que os próprios escravos escolheriam o sistema de trabalho de parceria ou de empreitada, conforme achassem melhor. Não pararam por aí as “vantagens” oferecidas por Luiz Siqueira da Silva. Adiantou também a seus trabalhadores que, durante a safra e colheita de 1888, já os gratificaria com um salário módico mensal e, nos dias santificados, pagaria 200 réis por cada 50 litros de café aos que quisessem colher. 68 Os senhores José Carlos de Azevedo Lima, Eduardo de Carvalho, Carlos Mayer, Antônio Cândido dos Santos, Olympio R. de Castro, Leopoldino Castanheira, Manuel Antunes Ramalho e a senhora D. Amé67 68 Almada, Escravismo e transição, p. 200. O Cachoeirano, 8 de abril de 1888. “Manumissões”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 216 rica Azevedo, todos fazendeiros de São Pedro de Itabapoana, concordaram em dar liberdade aos seus escravos com a condição de fazerem a colheita de 1888. Enquanto isto, mais outros 50 lavradores, reunidos no dia 31 de março sob a presidência de Cezário de Miranda Monteiro de Barros, acordaram em dar liberdade aos seus escravos com a promessa de que estes os serviriam somente até o dia 31 de dezembro de 1888.69 No mês seguinte foi divulgada a notícia de que a Freguesia de São Pedro de Itabapoana já não possuía escravos.70 Foi noticiado também que, em Conceição do Muquí, pertencente a esta freguesia, Domingos José de Almeida deu plena liberdade aos seus escravos, estabelecendo com eles o trabalho de parceria.71 Decerto, nos editoriais publicados nos primeiros meses de 1888, com o título “Transformação do Trabalho”, a redação de O Cachoeirano procurava orientar os fazendeiros quanto ao tipo de relação de trabalho que deveriam manter com seus libertos. Para tanto, duas saídas eram apontadas: a primeira partia do princípio de que, onde a terra fosse fértil, seria prudente que o trabalho fosse bem remunerado, porque haveria de perdurar ainda por algum tempo, talvez, o padrão do salário. A segunda levava em consideração o princípio de que, onde a terra fosse menos produtiva, seria prudente que o padrão de trabalho fosse o das empreitadas e parcerias, estabelecendo-se virtualmente o sistema da cultura itinerante.72 No mesmo passo, os anúncios de conversão do tipo de alforria também prosseguiam. No mesmo mês de abril foi noticiado que a senhora Maria Alves Rocha, residente no município de Itapemirim, que havia libertado todos os seus escravos sob a condição de prestação de serviços por um certo prazo de tempo, a pedido de seu filho Antônio José Alves Silva, declarou que retirava esta condição, ficando os mesmos escravos desde então no gozo de plena liberdade.73 Nesta conjuntura, destaca-se uma carta de um conhecido fazendeiro e político conservador paulista, já citado neste artigo, extraída do Diário de Notícias, da Corte, que também fora publicada em O Paíz e 69 70 71 72 73 Idem. O Cachoeirano, 29 de abril de 1888. “liberdade”. O Cachoeirano, 15 de abril de 1888. “Libertações”. O Cachoeirano, 22 de abril de 1888. “Transformação do trabalho”. Idem. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 217 em várias outras “folhas interioranas”, como Gazeta Sul-Mineira, O Monitor Campista, O Monitor Sul-Mineiro,74 e por nós encontrada no periódico O Constitucional, que circulava em Cachoeiro de Itapemirim. A carta procurava reforçar a idéia da concessão da alforria incondicional e, por isto, foi apresentada pelo órgão conservador com a seguinte observação: “pedimos pois toda a atenção dos nossos leitores para a seguinte carta”.75 A mesma havia sido escrita, no dia 13 de março, pelo político e fazendeiro paulista Paula Souza ao também político e fazendeiro baiano César Zama. Ela aponta para vários dos componentes da estratégia senhorial para evitar a ameaça da desordem e a evasão de suas unidades produtivas pelos trabalhadores. Para tanto, havia apenas dois fatores capazes de conservá-los na própria fazenda após a libertação.76 O primeiro deles consistiria no fato de que, de acordo com a experiência do fazendeiro Paula Souza, “recém-convertido à causa da liberdade”, os cativos só permaneceriam nas fazendas se possuíssem relações afetivas e familiares estáveis no local do antigo cativeiro. O segundo, que a liberdade deveria ser concedida incondicionalmente pelo senhor, antes que a sua fazenda tivesse sido tomada pela indisciplina e pelas fugas em massa.77 O mês de fevereiro, segundo Paula Souza, foi de conflito e terror na província de São Paulo, onde reinou a total desorganização do trabalho e conflitos violentos entre os pretos fugitivos e as autoridades. Foi com base neste ambiente que ele procurava alertar seus correligionários para que se antecipassem à iniciativa de seus escravos. Na noite de 26 de janeiro, em Santa Rita do Passa Quatro mais de cem pretos foram ao alto da vila, armaram arcos de bambus e folhagens, hastearam bandeiras encarnadas, acenderam fogueiras ao estourar dos foguetes e rufos de caixa, e gritando: “Viva a república! Viva a liberdade! bem como outros vivas e morras. O fato atemorizou a população e as famílias, indo algumas pernoitar no mato, segundo o chefe de polícia interino Dr. Salvador A. Muniz Barreto de Aragão.78 74 75 76 77 78 Castro, Das cores do silêncio, p. 250. O Constitucional, 29 de abril de 1888. “Trabalho Livre”. Castro, Das cores do silêncio, p. 249. Idem. Azevedo, Onda negra medo branco, pp. 211-212. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 218 Eram fatos como este que se pretendia evitar ao darem publicidade à carta do Sr. Paula Souza em todas as províncias do sudeste, segundo o pensamento senhorial às vésperas da abolição. De acordo com a marcha dos acontecimentos, que era verificada através das notícias divulgadas pela imprensa, é bem provável que todos já soubessem que a escravidão não passaria além de junho de 1888. Por isto, os fazendeiros de todas as freguesias pertencentes ao município de Cachoeiro se antecipavam em alforriar seus escravos, incondicionalmente. Na Freguesia de São Miguel do Veado, o fazendeiro Francisco Ourique de Aguiar declarou, no dia 4 de abril, que libertava seus escravos, em número muito superior a 100, sem condição alguma.79 Outros fazendeiros da mesma freguesia também resolveram seguir o exemplo de Francisco Ourique e, no dia 8 do mesmo mês, dois “distintos cavalheiros” comunicaram à redação de O Cachoeirano que, à exceção de uns dois ou três retrógrados, todos os que possuíam escravos os haviam libertado: alguns com a condição de prestação de serviços por um curto espaço de tempo e outros, a maior parte, incondicionalmente.80 A ninguém restava dúvidas de que este resultado só fora possível por conta do exemplo dado por Francisco Ourique que, sozinho, libertara cerca dos seus 200 escravos. Com esses resultados, a Freguesia do Veado era forte candidata a ser considerada a primeira a ter libertado todos os seus escravizados.81 De acordo com os redatores de O Cachoeirano esta freguesia e a de Itabapoana, “que eram as mais aferradas ao trabalho escravo”, já nos primeiros dias do mês de maio de 1888 estavam totalmente livres, faltando apenas algumas outras, cujo número de escravos era muito pequeno.82 Aos moradores da Vila do Veado a mudança foi atribuída à luz que vinha de São Paulo, pois alguns dos fundadores e maiores lavradores daquela vila eram paulistas e de tradição em Bananal, pertencentes à família Vallim, como já mencionamos anteriormente. 79 80 81 82 O Cachoeirano, 15 de abril de 1888. “Manumissão”. Idem. O Cachoeirano, 22 de abril de 1888. “A freguesia do Veado”. O Cachoeirano, 6 de maio de 1888. “Eleição de 30”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 219 Conclusão Na fala do trono com que a Princesa Imperial Regente, em nome de S.M. o Imperador, abriu a 3ª sessão da 20ª Legislatura da Assembléia Geral, no dia 3 de maio de 1888, ela declarou: A extinção do elemento servil, pelo impulso do sentimento nacional e das liberdades particulares, em honra do Brasil, adeantouse pacificamente, de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiráveis exemplos de obrigação da parte dos proprietários. Augustos e digníssimos senhores representantes da nação, muito elevada é a missão que as circunstâncias atuais nos assinalam. Tenho fé que correspondereis ao que o Brazil espera de vós. Está aberta a sessão. Izabel, Princeza Imperial Regente.83 No dia 8 de maio foi apresentada na Câmara dos Deputados, pelo Ministro da Agricultura, a proposta de lei relativa à abolição da escravidão no Brasil. No dia 9, o projeto havia passado em uma 2ª discussão e, no dia 13, foi convertido em Lei: Lei nº. 3353 de 13 de maio de 1888. Art. 1° - É declarada extinta desde a data d’esta lei a escravidão no Brazil. Art. 2° - Revogam-se as disposições em contrário.84 Quando esta Lei foi aprovada ninguém foi pego de surpresa porque, nos anos 80, já estava bastante difundida a idéia da abolição da escravidão no Império e, por outro lado, o protesto dos escravos, não só no Espírito Santo como também em outras províncias do sudeste, dava sinais de que medidas sérias deveriam ser tomadas, pois, diante do desgaste da instituição e da falência moral de policiais e feitores, restara aos senhores o único recurso de conceder alforria a seus escravos antes que eles mesmos o fizessem através da força, pois isto muitos se mostraram dispostos. 83 84 O Cachoeirano, 13 de maio de 1888. Editorial, “Fala do Trono com que a Princesa Imperial regente abriu a 3º sessão da 20º Legislatura D’ Assembléia Geral, no dia 3 de maio de 1888”. O Cachoeirano, 20 de maio de 1888. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 220 Extinta a escravidão só restou a todos festejar e comemorar o grande dia, porém, para os senhores, a batalha pelo controle da força de trabalho teve de ser intensificada, pois eles ainda queriam que os libertos ficassem “inclinados” ao trabalho por turmas, nas grandes fazendas, como nos tempos da escravidão. Para eles, quem iria cuidar das lavouras, se o braço do trabalhador imigrante europeu, até aquela época, se apresentava insuficiente apesar dos vários esforços de muitos e até do próprio governo provincial? Foi sugerido por parte de alguns ex-senhores de escravos um conjunto de medidas, leis repressivas, capazes de fazer com que o liberto supostamente não se entregasse de todo ao ócio e à vadiagem, expressando a visão de liberdade que o ex-senhor tinha sobre a nova condição do seu antigo trabalhador. O que a classe senhorial chamava de ócio e vadiagem era a opção dos libertos por trabalho intermitente, pela lavoura de subsistência, pela coleta, pela caça e pesca. Contudo, muitas mudanças já haviam sido experimentadas por vários fazendeiros antes da aprovação da Lei Áurea, fato reconhecido pelos redatores de O Cachoeirano: [...] muitos dos agricultores, que avivadamente se anteciparam à decretação da necessária reforma e que estavam trabalhando com os escravos emancipados, de alheio ou de seu próprio antigo domínio, ostentavam a superioridade do trabalho livre e davam testemunho da ‘boa vontade’ com que os atuais ‘operários’ se afeiçoavam ao novo regime.85 Os redatores do jornal só não destacaram que, para os senhores obterem de seus “atuais operários” “boa vontade” na execução dos serviços de suas fazendas, era preciso que lhes concedessem “vantagens”, traduzidas em controle do seu próprio tempo de trabalho, uma parcela de terra para que pudessem cultivar seus próprios alimentos e víveres destinados à sua subsistência, enfim, elementos capazes de marcar sua autonomia em relação aos seus antigos senhores, o que de fato muitos até conseguiram. Mas este é um assunto o qual discutiremos em outro momento. 85 O Cachoeirano, 22 de abril de 1888. “Transformação do trabalho”. Afro-Ásia, 27 (2002), 193-221 221 GILBERTO FREYRE, HISTORIADOR DA CULTURA. Geraldo Antonio Soares* J á no prefácio à primeira edição de Casa-grande e senzala (1933), Gilberto Freyre nos dá uma boa idéia de sua visão a respeito da formação brasileira em seus aspectos culturais, citando um viajante estrangeiro que por aqui passou e cujas impressões foram publicadas em Paris em 1867. Trata-se de Adolphe d’Assier quando aquele se refere a um assunto aparentemente dos mais prosaicos: a domesticação de animais. D’Assier observou no Brasil o fenômeno curioso dos macacos tomarem benção aos moleques do mesmo modo que estes aos negros velhos e os negros velhos aos senhores brancos. Gilberto Freyre vê aí um dos exemplos mais expressivos do que considerava como uma domesticação patriarcal de animais, onde se evidencia “a hierarquia das casas-grandes estendendo-se aos papagaios e aos macacos”.1 Aqui já observamos algumas idéias centrais desta grande obra de Gilberto Freyre, idéias estas relacionadas com a família, o patriarcalismo, a escravidão. Podemos também constatar o quanto a questão da cultura é importante nesta obra maior de Gilberto Freyre e o quanto esta importância se revela na própria forma como ele escreveu Casa-grande e senzala, ou seja em seu estilo. * Doutor em História pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - EHESS – Paris; Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo. 1 Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 25ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1987, p. LXXIII. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 223 Ainda no mesmo prefácio à primeira edição de Casa-grande e senzala, Gilberto Freyre nos brinda com o que consideramos como algumas das mais belas palavras a respeito da forma como devemos tratar a história, forma esta que o aproxima muito da tradição historiográfica francesa da chamada Escola dos Annales e, particularmente, de um dos seus precursores, Lucien Febvre, que também considerava que não é pela história política e militar que se percebe a verdadeira história de um povo, e sim pelo seu cotidiano ou pela sua rotina de vida. Para Gilberto Freyre é exatamente nesta rotina de vida que se nota a continuidade social, o próprio caráter de um povo e sua história mais íntima. Nesta sua forma de precisar o que seria o objeto da história, Freyre usa praticamente os mesmos termos que Lucien Febvre e Marc Bloch utilizavam quando lançavam seus manifestos do que deveria ser uma nova história, nos primeiros números da Revista dos Annales, no final da década de 1920, época em que coincidentemente Gilberto Freyre estava escrevendo Casa-grande e senzala. Lucien Febvre considerava que era fundamental que o historiador se preocupasse com o que chamava de sensibilidade coletiva de um povo em uma determinada época, ou nos termos de Gilberto Freyre, se deter no estudo de sua história mais íntima. As afirmações de Gilberto Freyre que citamos abaixo revelam o quanto ele também era revolucionário aqui nos trópicos: “Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio de nos sentirmos nos outros — nos que vieram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos”.2 A importância atribuída por Freyre ao estudo de nossa formação cultural tríplice, mesclando a influência portuguesa, indígena e africana, com grande realce para esta última, é digna de nota. Quando trata da permanência de termos de origem africana em nossa língua, tais como batuque, tanga, cachimbo, etc., e o uso preferencial de “catinga” ao invés de “mau cheiro”, de “muleque” ao invés de “garoto”, dentre outros usos de termos de origem africana, conclui que estas “são palavras que 2 Freyre, Casa-grande e senzala, p. LXXV. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 224 correspondem melhor que as portuguesas à nossa experiência, ao nosso paladar, aos nossos sentidos, às nossas emoções”.3 Aqui novamente Gilberto Freyre se revela um historiador da cultura e daquilo que Lucien Febvre chamava de sensibilidades coletivas. O palavreado da senzala subia desta à casa-grande porque era das mucamas que o filho do senhor de engenho ouvia as cantigas de ninar e as histórias de bicho papão; era com elas que as sinhás, em sua vida quase de reclusão, e há que se notar, de reclusão ociosa, e sob a autoridade onipresente do marido, conversavam diariamente. Por mais que esta influência africana não fosse desejada, ela não tinha como ser evitada. O conceito de cultura que adotamos aqui segue Clifford Geertz, que por sua vez parte de Max Weber quando aquele diz que “o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu”.4 De acordo com Geertz, não existe o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura seriam monstruosidades incontroláveis, verdadeiros casos psiquiátricos. Somos todos animais incompletos e inacabados, que nos completamos e acabamos através da cultura, mas não da cultura em geral, e sim através de formas altamente particulares de cultura: dobuana e javanesa, Hopi e italiana, de classe alta e classe baixa, acadêmica e comercial.5 O homem é um artefato cultural porque “nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais — na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e não obstante, manufaturados”.6 Com o exemplo da catedral de Chartres, na França, Geertz estabelece uma analogia com a forma como somos criados: Chartres é feita de pedra e vidro, mas ela também é uma catedral, e uma catedral particular, construída em uma época particular, por certos membros de uma sociedade particular; para compreendermos o que isso significa, precisamos compreender bem mais do que é comum à todas as catedrais, precisamos compreender “os conceitos 3 4 5 6 Idem, ibidem, pp. 333-334. Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1989, p. 15. Idem, ibidem, p. 61. Idem, ibidem, p. 62. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 225 específicos das relações entre Deus, o homem e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram a sua criação. Não é diferente com os homens: eles também, até o último deles, são artefatos culturais”.7 Gilberto Freyre, ao tratar das influências culturais positivas recebidas dos negros africanos, foi revolucionário para sua época, uma época ainda marcada por um pensamento pseudocientífico do século XIX que pregava a pureza, o aperfeiçoamento, o branqueamento, ou, em suma, a europeização da raça, como a única possibilidade de um porvir grandioso para o país, como a única possibilidade de até mesmo se constituir uma nacionalidade brasileira. Este era um debate sempre presente, por exemplo, em todo o discurso imigrantista do final do século. Gilberto Freyre foi o primeiro a escrever com todas as letras que a nossa miscigenação racial e cultural era um trunfo que tínhamos. Já naqueles contatos entre as amas-de-leite e os nhonhôs brancos, contatos nos quais, segundo Freyre, havia ternura e uma relação quase de mãe para filho, também havia um começo de influência do negro sobre o branco. Gilberto Freyre é enfático em dizer que um dos seus objetivos é retificar a idéia de que através da ama-de-leite o menino da casa-grande só tivesse recebido da senzala influências ruins, como doenças e superstições africanas. Para Freyre, “os germes de doenças, recebeu-os muitas vezes; e outras os transmitiu; mas recebeu também nos afagos da mucama a revelação de uma bondade porventura maior que a dos brancos; de uma ternura como não a conhecem igual os europeus; o contágio de um misticismo quente, voluptuoso, de que se tem enriquecido a sensibilidade, a imaginação, a religiosidade dos brasileiros”.8 Nas afirmações acima há uma interessante e inusitada inversão: o europeu aparece sendo humanizado pelo escravo africano, que é mais bondoso e mais terno que seu senhor e o enriquece com seu contato. Esta é uma passagem central para a compreensão do pensamento de Gilberto Freyre. Ele de fato acreditava que o branco recebeu e muito do negro na formação do que poderíamos considerar como sendo a sua subjetividade, além é claro de ter recebido em termos econômicos. Na relação se7 8 Idem, ibidem, p. 63. Freyre, Casa-grande e senzala, pp. 354-355. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 226 nhor-escravo ambos se humanizam também devido à própria miscigenação. Tudo isso está muito distante de qualquer tipo de eurocentrismo. Trata-se sem dúvida de um pensamento revolucionário. No início do quarto capítulo de Casa-grande e senzala, o que trata do escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro, Gilberto Freyre afirma logo no primeiro parágrafo algo que dificilmente poderíamos negar: que todo brasileiro traz no corpo, “a sombra, ou pelo menos a pinta”, do indígena e do negro. Mas ele vai além e diz que este algo, principalmente do negro africano, os brasileiros trazem também na alma. Para Freyre, “na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra”.9 Nestas passagens, Freyre chama atenção para algo que é recorrente em sua obra: a caracterização dos brasileiros como um resultado muito interessante e positivo da miscigenação cultural entre europeus, indígenas e africanos. Vale notar que ele considera aquilo que é genuinamente brasileiro como o próprio resultado desta miscigenação. A nosso ver, não é outro o sentido do que considera como expressão sincera de vida entre os brasileiros. Mas em alguns momentos, quando discute a influência do negro como escravo, e insiste que esta condição de escravo nunca deve ser esquecida; quando do exame da contribuição do negro para a formação brasileira, ele faz uma avaliação bastante diferente e mesmo contraditória em relação à avaliação positiva que prevalece ao longo de sua obra. Para Freyre, o negro no Brasil, nas suas relações com o tipo de cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da História social e econômica. Da Antropologia cultural. Daí ser impossível — insistamos neste ponto — separá-lo da condição degradante de escravo, dentro da qual abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e normais para acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se, assim, o africano um decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade de raça”, gritam então os sociólogos arianistas. 9 Idem, ibidem, p. 283. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 227 Mas contra seus gritos se levantam as evidências históricas — as circunstâncias de cultura e principalmente econômicas — dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema criado por outros.10 Mas onde ficam as expressões sinceras de vida a que se referia Gilberto Freyre? Seriam elas resultado de algo patogênico? A resposta mais simples é de que ele está se referindo concretamente às influências negativas da escravidão ou, como diz, do negro enquanto escravo. Mas este tipo de resposta é insuficiente porque quais seriam as outras possibilidades de influência do negro que não fosse na condição de escravo, até o século XIX, que é o período a que se refere Gilberto Freyre? Em outros termos, é exatamente porque não podemos dissociar a influência do negro na formação brasileira de sua condição de escravo, que temos que examinar esta influência nos limites de uma sociedade escravista. Certamente que Freyre estava consciente disso. Esta dicotomia que Freyre condena — a do negro enquanto tal, ou enquanto africano, e a do negro enquanto escravo —, aparece em alguns momentos em Casa-grande e senzala, mas não constitui de forma alguma o cerne de sua análise. Gilberto Freyre porém vai além ao afirmar que, “na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus poderoso, em senhores e escravos [...]”.11 Esta introdução do sistema econômico como um demiurgo causador de todos os nossos males é inteiramente extemporânea ao plano de análise de Gilberto Freyre. Não há como entendermos o porque dela aparecer quase como à guisa de conclusão do capítulo 4 de Casa-grande e senzala. Mas isto é bem próprio de Freyre: quando esperamos dele uma conclusão ele nos vem com afirmações como esta, que nos dão a sensação de estarmos voltando à estaca zero. O que nos parece no caso é que ele estaria nos advertindo de que ainda não é o momento de concluir, de que não devemos ser apressados, 10 11 Idem, ibidem, p. 321. Idem, ibidem, p. 379. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 228 de que maiores reflexões se fazem necessárias, mesmo que a nosso contragosto. Gilberto Freyre possui o inegável mérito de procurar sempre romper com o discurso racista de autores como Oliveira Vianna, que considera como “o maior místico do arianismo que ainda surgiu entre nós”12 , mas, numa espécie de tensão sempre presente em seu texto, muitas das vezes não consegue fazê-lo, como quando contesta as teses de Oliveira Vianna sobre a superioridade racial dos negros que foram para a América do Norte. Se alongando numa discussão que não o leva a lugar algum, até mesmo porque Gilberto Freyre nunca foi um adepto de qualquer teoria de superioridade racial, cultural ou de civilizações, acaba por concluir pela superioridade do negro que veio para o Brasil em relação aos que foram destinados à América do Norte,13 o que não deixa de ser uma legitimação do discurso do próprio Oliveira Vianna. Seria uma leviandade acusar Gilberto Freyre de racismo ou de preconceito em relação aos negros. O problema a nosso ver é que ele procura construir sua crítica explorando os argumentos, ou no mesmo campo de seus adversários, e aí sua tarefa se complica. Isto pode ser constatado, por exemplo, quando Freyre trata, de forma não moralista e desprovida de preconceito, das ligações amorosas entre padres e mulheres de cor, escravas ou ex-escravas. Para afirmar que de tais ligações resultaram pessoas notáveis, que se destacaram nas letras, na política, etc., Freyre diz literalmente que à “... formação brasileira não faltou o concurso genético de um elemento superior, recrutado dentre as melhores famílias e capaz de transmitir à prole as maiores vantagens do ponto de vista eugênico e de herança social”.14 As contradições não param aí. Se referindo ao sistema escravocrata de organização agrária do Brasil, criado pela colonização portuguesa, Gilberto Freyre fala em divisão da sociedade em senhores todo-poderosos e escravos passivos.15 Como podemos considerar passivos os escravos com a enorme herança cultural que eles nos legaram e para a qual Gilberto Freyre a todo momento chama a atenção? O próprio Gilberto Freyre nos apresenta uma possibilidade de resposta que também a nosso 12 13 14 15 Idem, ibidem, p. 305. Idem, ibidem, p. 304. Idem, ibidem, p. 444. Idem, ibidem, p. 321. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 229 ver oferece uma chave de interpretação importante para Casa-grande e senzala. Segundo Freyre, trazemos influência negra, da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da camade-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.16 A riqueza, a beleza, e diríamos mesmo, a poesia que existe no que Freyre nos diz acima, não podem ofuscar os problemas que também aí aparecem. Gilberto Freyre usa nestas passagens sempre a primeira pessoa do plural: nos embalou, nos deu de mamar, nos deu de comer, nos iniciou no amor físico. Sabemos que escrever dessa forma é uma boa maneira de envolver o leitor, fazendo com que ele se sinta participante da narrativa, mas não se trata disso neste caso. Gilberto Freyre começa falando de escrava e termina se referindo a um companheiro de brinquedo, que em outras passagens da obra ele precisa melhor como sendo o muleque-leva-pancadas, uma espécie de brinquedo e de objeto vivo do nhonhô, o filho do senhor de escravos, e não são todos os brasileiros que tiveram essas pessoas como companheiros na infância. Muitos outros estavam do outro lado e é esta a chave interpretativa a que nos referíamos anteriormente: em Casa-grande e senzala. Gilberto Freyre não trata exatamente da casa-grande e da senzala; ele trata de um universo centrado na casa-grande, da formação de uma sociedade patriarcal em torno da casa-grande. É como se da varanda da casa-grande contemplássemos o que nos cerca. O problema é que não nascemos todos ali. Não somos todos filhos da casa-grande, embora uma parte de nós tenha subido à casa-grande e ao fazermos isso, modificamos a forma como ali se vivia, como sempre realça Freyre. Trata-se uma forma peculiar de ver essa sociedade, explorando ao mesmo tempo o que nos une e o que nos separa, como a intimidade e a violência. 16 Idem, ibidem, p. 283. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 230 Em Casa-grande e senzala, inúmeras são as passagens em que se aponta que os problemas básicos do Brasil vêm de uma colonização baseada na monocultura latifundiária e escravocrata, e não de qualquer problema de ordem racial. Mas não deixa de soar estranho que mesmo tendo sempre isto em mente, e de também insistir em que qualquer avaliação negativa a respeito da herança negra na formação brasileira tenha que considerar o negro em sua condição de escravo, Gilberto Freyre diga coisas como o que se segue e de forma tão incisiva: “... tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo”.17 São posições de cunho inegavelmente conservador. Não ver alternativas à colonização escravocrata e latifundiária é algo de muito sério e não podemos alegar em defesa do autor a objetividade da história, a história como de fato ocorreu e não do que poderia ter sido, porque ele examinava exatamente isto, a possibilidade, ou melhor, a impossibilidade de um outro passado para o país. Quando refuta as teses de Varnhagen a respeito de uma colonização alternativa baseada em pequenas doações e conclui com o que citamos acima, Freyre sequer chega a imaginar que o negro poderia também ter vindo como colono ou assalariado, talvez simplesmente porque este teria de ser “disciplinado na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão”, em substituição ao indígena, que se revelara “molengo e inconstante”.18 O certo é que o olhar de Freyre para o negro africano é diferente do seu olhar para o português branco. Jamais é um olhar de desprezo, mas é um olhar carregado de ambigüidades. A valorização da colonização portuguesa no Brasil é algo sempre presente em Casa-grande e senzala. O português nos é apresentado desde o início como o primeiro europeu a produzir uma obra de colonização bem sucedida nos trópicos. Foi ele, “um povo ralo e miúdo”, que com seu espírito mercantil e cosmopolita, com sua plasticidade, produziu uma verdadeira obra de colonização em uma terra inóspita onde nada era fácil. Foi a 17 18 Idem, ibidem, p. 244. Idem, ibidem, pp. 242-243. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 231 mobilidade deste povo que teve o mérito, segundo Freyre, de deslocar para um novo continente os africanos indispensáveis para a lavoura. Foi este povo que, constatando que a nova terra não possuía riquezas significativas imediatamente exploráveis se prontificou para a agricultura, contrariando sua vocação mercantil. Foi também o português que, em uma colonização quase sem mulher branca, com sua plasticidade, prontamente se misturou com as índias e com as africanas, produzindo uma grande obra de colonização pela iniciativa individual e pela organização familiar. Gilberto Freyre rompe com toda uma tradição de avaliação negativa de nossa herança portuguesa, com um certo complexo de inferioridade por não termos sido colonizados seja pelos holandeses, pelos franceses ou pelos ingleses. É como se ele nos dissesse que se fosse possível ter orgulho de ser colonizado, seria este o sentimento que deveríamos ter em relação aos portugueses. Quando compara a colonização portuguesa com a de outros Europeus na América, Freyre sempre conclui pelas vantagens da colonização portuguesa. Superior à colonização espanhola por não ter trazido para cá as divisões políticas e o “catolicismo dramático” daquele país. Superior à colonização norte-americana por não se ter introduzido aqui as divisões religiosas e o próprio ascetismo puritano. Em Casa-grande e senzala também não aparece qualquer dicotomia simplista da colonização de povoamento versus de exploração. Aliás, nestes termos, a colonização brasileira seria mais de povoamento que de exploração. Uma colônia onde o rei de Portugal “quase que reina sem governar”19, governando o poder patriarcal do senhor de , engenho, um poder muito peculiar e que influenciou em muito a sociedade que aqui se formou. Nessa valorização do português como colonizador, Gilberto Freyre também associa a este povo uma característica controversa, que seria o bom trato que dispensava aos escravos, cuja origem já estaria na proximidade de Portugal em relação ao continente africano, e numa indecisão étnica e cultural daquele país entre África e Europa. A amplitude da influência africana, e também moura, sobre Portugal é caraterizada por Freyre nos seguintes termos: 19 Idem, ibidem, p. 19. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 232 [...] o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África.20 Em diferentes momentos de Casa-grande e senzala o colonizador português aparece como alguém que dispensava um bom tratamento a seus escravos. Uma certa doçura nesse trato, que fazia com que os escravos pudessem ser considerados mais gente de casa que besta de trabalho, se deveria especificamente à influência moura. O colonizador português, embora tenha sido o escravocrata terrível que transportou para a América uma quantidade enorme de negros, teria sido “o menos cruel nas relações com os escravos”.21 Mas Gilberto Freyre também vê a relação senhor-escravo como sendo marcada por extrema violência. No último parágrafo de Casagrande e senzala, ressalva que foram muitos os escravos que se suicidaram, enforcando-se, comendo terra ou utilizando-se de outros meios. O curioso é que Freyre conclui seu livro fazendo esta ressalva, a de que “não foi toda de alegria a vida dos negros escravos”, isto depois de se alongar nas diferentes formas de maus tratos de seus donos. Conhecidas são as passagens onde ele descreve a que ponto chegavam as mulheres dos senhores de escravos, muitas das vezes cruéis nos castigo de escravas das quais suspeitavam ter ligações íntimas com seus maridos. Mulheres “que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco” ou outras que “espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas”.22 Além do mais, se os escravos domésticos chegavam a ser tratados desta forma, os escravos do eito, aos quais Gilberto Freyre praticamente não faz referência alguma, certamente não eram melhor tratados. 20 21 22 Idem, ibidem, p. 5. Idem, ibidem, p. 189. Idem, ibidem, p. 337. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 233 Muitas das críticas endereçadas a Gilberto Freyre se prendem à idéia de que a sociedade colonial caracterizada por ele seria uma espécie de paraíso tropical, onde as relações entre senhores e escravos seriam muito mais de aproximação que de antagonismo, ou ainda, mais de confraternização que de confronto. Não se trata de negar que esta aproximação fosse uma de suas idéias centrais. A miscigenação racial e principalmente cultural, tão importantes em sua análise, a pressupõe. Muito menos se trata de afirmar que Freyre ignorasse, ou desconsiderasse a violência da escravidão. O que para ele não era suficiente era se limitar à afirmação da violência da escravidão, o que seria aliás, afirmar o óbvio. Concluir que a visão de Freyre sobre a nossa formação colonial seja pura e simplesmente a afirmação de que viveríamos num paraíso tropical é, como bem lembra Ricardo Benzaquen de Araújo, “concluir por uma meia verdade em seu sentido mais literal”.23 Vale lembrar que aqueles que entram no universo da escravidão pela via de mão única da violência acabam por chegar a resultados que inicialmente não previam, que é a negação do escravo enquanto sujeito nestas sociedades. O escravo só aparece em explosões de violência, nos momentos de rebelião, porque em seu cotidiano ele já foi aniquilado enquanto pessoa. No caso, se conclui de antemão que a violência o reduz a coisa, seu estatuto jurídico, ou então a animal. No seu cotidiano o escravo se afirma como pessoa, e no caso da obra de Freyre, para tanto ele não necessariamente precisa se afastar da casa-grande. Um momento de afirmação do negro e de sua cultura, dentre outros, é aquele em que exerce sua influência em nossa formação lingüística, “amaciando” a língua portuguesa com sons africanos, modificando e criando palavras “que só faltam desmanchar-se na boca”.24 Esta influência se dá já na infância porque é da ama-de-leite que se ouve as primeiras histórias de ninar, de fantasmas e de mal-assombrado, e é com o filho da escrava que o sinhozinho brinca, apesar de nesses momentos ele também estar sendo preparado para ser senhor, para exercer, e às vezes com requintes de sadismo, a sua autoridade. Esta influência das senzalas sobe 23 24 Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994, p. 48. Freyre, Casa-grande e senzala, p. 331. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 234 à casa-grande também na juventude das sinhás-moças, as quais tem nas mucamas as suas companheiras de confidências. Para estas jovens e para suas mães, que formavam com o senhor de escravos uma aristocracia quase que analfabeta, não haveria como evitar a influência negra na língua, nas crenças e nos costumes. E olhe que, como observa Freyre, os padres e capelães bem que tentaram evitar essa influência, mas não conseguiram. Esses momentos em que Gilberto Freyre descreve a aproximação entre senhores e escravos pela língua (e é claro que não se trata da ortografia ou do idioma em suas formalidades, e sim enquanto veículo e expressão de cultura) são de um lirismo tal que podem nos levar ao esquecimento de que eram estas mesmas sinhazinhas que também chegavam a mandar arrancar os olhos das mucamas favoritas de seus maridos. Mas se, como Freyre, não nos esquecermos disso, podemos concluir que os momentos de aproximação deixaram raízes, e nos atreveríamos a dizer que, dessa forma e nesse momento, se opera quase que uma inversão da dominação. A língua e a cultura dos negros é que dominam os senhores. Seria a língua no caso mais forte que o açoite? Responder que sim seria uma leviandade; não, seria uma resposta mais simples e cômoda. O tronco e as crenças africanas deixaram suas marcas e elas não podem ser tratadas como se fossem mutuamente excludentes, e é isso que Gilberto Freyre se recusa corajosamente a fazer. Não podemos negar que muitas vezes Gilberto é contraditório, ambíguo e via de regra não conclusivo. Este é um ponto que merece uma melhor análise porque o que num exame superficial pode nos parecer um ponto fraco de sua obra — o seu caráter contraditório e não conclusivo — um exame mais detido nos revela ser uma de suas virtudes, qual seja, o elogio da complexidade. A começar pela variedade dos temas que aborda: a criança, a mulher, o patriarcalismo, a religião, a língua, a raça, o índio, o europeu, o africano, a economia, a família, a cultura. Além do mais, Gilberto Freyre procura dar um tratamento original, e mesmo revolucionário para sua época a cada um desses diversos temas, procurando romper com preconceitos e lugares comuns sobre os mesmos. Ele também procura construir uma abordagem nova, aliando os rigores da erudição e da pesquisa de base científica com uma linguagem acessível Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 235 ao grande público, uma linguagem próxima de um estilo literário do qual é difícil encontrar quem não goste, numa espécie de obra de transposição de uma realidade que o autor procura captar em sua totalidade, sem simplificações e reducionismos. Logo no início de Casa-grande e senzala, tratando da nossa herança cultural tríplice — ameríndia, européia e africana — Gilberto Freyre afirma: “... tomando-se em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização no Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos”.25 Estes dualismos de cultura, quando em ação, produzem resultados positivos, uma cultura recebendo da outra elementos que a enriquecem. Não se trata de equilíbrio no sentido de estabilidade e sim da idéia de uma cultura nova em formação, uma cultura que não é inferior nem superior às culturas que lhe deram origem, mas é sem dúvida uma cultura mais apropriada ao povo brasileiro na medida que foi uma criação sua e não uma mera fusão de culturas importadas. Como bem assinala Ricardo Benzaquen de Araújo, há nessa visão a respeito de nossa formação uma proposta política de Gilberto Freyre, uma proposta para o presente a partir da análise do passado, que seria exatamente a aproximação destes antagonismos enquanto necessidade histórica, tarefa para a qual Freyre se apresentava como colaborador, quando procurava desempenhar o seu papel de intelectual ligado a seu tempo e com uma dada história de vida, valorizando as tradições em que fora criado mas não abandonando suas idéias a respeito da modernidade, que também prezava muito. A proposta política embutida na visão de Gilberto Freyre, quando realça o equilíbrio de antagonismos na nossa formação, é também a de produzir um certo equilíbrio de antagonismos no presente, aproximando os de cima dos de baixo, os dos sobrados aos dos mocambos, da mesma forma que teriam se aproximado os da senzala aos da casa-grande, valorizando a cultura popular e afirmando a necessidade de contatos com 25 Idem, ibidem, p. 8. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 236 ela, da mesma forma que valorizara a miscigenação cultural entre portugueses, indígenas e africanos. Benzaquen de Araújo resgata, numa passagem de Gilberto Freyre em Tempo morto e outros tempos, esta forma de compromisso defendida por Freyre: “‘requintados’ (como eu estou sempre a chamar os intelectuais distantes do cotidiano e da plebe) [que desprezam] esse meu desejo de impregnar-me de vida brasileira como ela é mais intensamente vivida, que é pela gente do povo, pela pequena gente média, pela negralhada: essa negralhada de que [eles] falam como se pertencessem a outro mundo”.26 Sem dúvida que esta maneira de pensar influenciou em muito a forma como Gilberto Freyre escreveu toda sua obra, se traduzindo em um estilo próprio que alguns chegaram a considerar como vulgar. Existe em Casa-grande e senzala uma forma de escrever que não só prima pelo fácil acesso, como também por se constituir enquanto uma forma quase literária. Freyre se solta como escritor de uma forma tal que este seu livro se lê como um romance. O livro também é escrito numa linguagem que se distancia da retórica e do formato acadêmico, a ponto de um de seus críticos iniciais ter dito que Gilberto Freyre poderia ter procurado evitar certas expressões cruas que poderiam chocar ouvidos mais castos.27 Uma das críticas mais incisivas ao estilo empregado em Casa-grande e senzala foi a de Afonso Arinos de Melo Franco. Como um dos primeiros comentadores do livro (sua apreciação do mesmo data de 1934, da mesma forma que a de Agripino Grieco), Afonso Arinos diz que a linguagem empregada por Gilberto Freyre deveria ter um pouco mais de dignidade. O curioso é que logo a seguir prossegue em comentários elogiosos sobre o estilo pantagruélico, que localiza em vários momentos da obra. Mas é justamente esta linguagem que condena em Gilberto Freyre que o aproxima de Rabelais, já que um estilo rabelaisiano não admite, a nosso ver, outro tipo de linguagem que não seja justamente aquele que Gilberto Freyre emprega.28 26 27 28 Araújo, Guerra e paz, p. 176. Agripino Grieco, “Obra vigorosa de ciência e arte”, in Edson N. Fonseca (org.), Casa-grande e senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944 (Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 1985), p. 67. Cf. Afonso Arinos de Melo Franco, “Uma obra rabelaisiana”, in Edson N. Fonseca (org.), Casagrande e senzala e a crítica brasileira. pp. 84-85. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 237 Embora não seja nosso propósito neste trabalho desenvolver qualquer comparação entre as obras de Rabelais e de Freyre, acreditamos que semelhanças existam e elas não se limitam aos estilos de um e de outro. Conforme nota Benzaquen de Araújo, essas semelhanças estão na maneira de ver a aristocracia portuguesa que aqui se instalou, de certa forma vulgarizando-a, tratando-a como se trata o povo, procurando ver nela hábitos muito distantes dos hábitos de contenção e distanciamento que caraterizam o modelo de aristocracia a que estamos habituados; estão também na forma como Freyre trata o corpo, se distanciando da noção grega de harmonia, realce e perfeição, e de qualquer arianismo, e centrando-se naquilo que constitui suas partes mais expostas e de maior realce, como por exemplo, o corpo quase que deformado pela vida sedentária dos senhores.29 A semelhança maior e a que mais nos interessa no contexto deste trabalho entre Freyre, Rabelais, e também um dos maiores especialistas sobre este último, o russo Mikhail Bakhtin, está na forma como tratam a cultura popular, contrastando uma cultura oficial baseada na seriedade, na hierarquia e em aristocráticas separações, com uma cultura popular baseada na familiaridade, na liberdade e no humor, uma cultura onde predomina o uso freqüente de um vocabulário de praça pública e de grosserias. Não é nosso o mérito de ter percebido de forma tão clara estas proximidades e sim novamente de Ricardo Benzaquen de Araújo, que conclui, igualmente de forma precisa, que quando Bakhtin nos recorda “que essa grosseira linguagem de praça pública, como tudo aquilo que degrada, pode também servir para regenerar, promovendo uma franqueza e uma intimidade completamente impossíveis naquela polida cultura oficial”.30 Certamente que Gilberto Freyre estava muito mais preocupado em ser franco e em promover esta intimidade que com o quanto pudesse vir a “chocar ouvidos mais castos”. Este estilo franco e que valoriza a cultura popular é visível quando trata de um tema tabu para a época em que escreveu seu livro, que é o da sexualidade. Para Gilberto Freyre, havia por parte do colonizador português uma predisposição para a miscigenação, principalmente com a mulata, e 29 30 Araújo, Guerra e paz, pp. 68-70. Idem, ibidem, pp. 70-71. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 238 mesmo uma preferência sexual por este tipo de mulher. Freyre também descreve as práticas de magia sexual de origem portuguesa e afro-brasileiras como a que chama de “café mandingueiro”, que nada mais seria que um café bem forte, com muito açúcar e sangue ou fluxo menstrual de mulata. Uma outra prática seria coar-se o café na fralda de uma camisa com que tenha dormido a mulher pelo menos duas noites consecutivas, café que deveria ser bebido pelo menos duas vezes, uma no almoço, outra no jantar. Nessas práticas mágicas que Freyre recolhe nas crenças populares, ou nessas mandingas de amor, utilizava-se também coisas como pêlos de sovaco ou das partes genitais, suor, lágrimas, saliva, apara de unhas e esperma.31 Ao se preocupar com estes aspectos da cultura popular, Gilberto Freyre revela seu interesse por um tema que certamente não era nobre na época, um tema que para muitos não era digno de nota, mas que ele considerava importante e o tratou de forma aberta e direta, num estilo que poderia ser classificado como bem rabelaisiano. Seguramente que a intenção de Freyre não era simplesmente chocar seus leitores bem comportados, e sim recolher, nas manifestações mais prosaicas do cotidiano de homens e mulheres comuns, traços de cultura a serem resgatados e valorizados. Segundo Gilberto Freyre, “o ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual [sendo que,] o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado senão atolavam o pé em carne”.32 Outra imagem que utiliza é a de que o português foi “misturando-se gostosamente com as mulheres de cor logo ao primeiro contato”.33 Tais imagens e descrições tem contribuído para alimentar certas críticas a Gilberto Freyre no sentido de que ao exagerar na descrição deste ambiente quase que orgíaco, ele, que freqüentemente também é acusado de construir uma imagem de paraíso tropical para o Brasil, estaria construindo uma interpretação excessivamente sensual da paisagem brasileira, o que seria uma outra forma de construir a imagem do referido paraíso. Em outros termos, Gilberto Freyre seria uma espécie de Jorge Amado da sociologia brasileira. 31 32 33 Freyre, Casa-grande e senzala, p. 326. Idem, ibidem, p. 93. Idem, ibidem, p. 9. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 239 É bem verdade que Gilberto Freyre às vezes carrega em suas imagens e também é verdade que, principalmente na sua análise a respeito da aproximação entre senhores e mucamas, há um certo propósito de construir um ambiente de harmonia social pela via da atração e aproximação sexual. Mas ele também trata da violência dessas relações: “O que houve no Brasil — cumpre mais uma vez acentuar com relação às negras e mulatas, ainda com maior ênfase do que em relação às índias e mamelucas — foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada. Esta desde o princípio reduziu os indígenas ao cativeiro e à prostituição. Entre brancos e mulheres de cor estabeleceram-se relações de vencedores com vencidos — sempre perigosas para a moralidade sexual”.34 No caso das relações entre europeus e índias no início da colonização, o próprio Freyre faz a crítica da documentação que utiliza ao dizer que se tratava de narrativas de viajantes europeus que possuíam outra moral sexual, ou de padres que não poderiam produzir outro julgamento sobre esta questão que não fosse de ordem moral. Mesmo os documentos inquisitoriais, que largamente utiliza para um período posterior, nunca são usados de forma superficial ou ingênua. De qualquer modo, consideramos que dizer que Gilberto Freyre tenha propositadamente construído uma imagem excessivamente sexual da vida social brasileira não é justa. O que talvez ele tenha em comum com Jorge Amado é ter tido a coragem de resgatar a sensualidade da escrava, uma forma sem dúvida de superação de sua coisificação, coragem que o romancista também teve ao colocar no centro de sua narrativa figuras como a da prostituta. A miscigenação racial, que na colônia se produziu já a partir dos primeiros contatos, não resultou em um tipo físico inferior, nem de uma moral também inferior, para os quais o único remédio seria o branqueamento ou europeização, como insistia um tipo de racismo, que se pretendia científico, do século XIX. Numa discussão sobre o tipo de português que emigrou no início da colonização, se eram criminosos, degredados ou indivíduos devassos, Gilberto Freyre começa por lembrar que o que a jurisprudência criminal considerava crime em Portugal à época era completamente diferente daquilo que consideramos hoje. Delitos que tendemos a considerar graves hoje em dia, como o crime de morte e o de 34 Idem, ibidem, p. 426. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 240 estupro, muitas das vezes não eram considerados tão graves quanto o de dirigir injúrias aos santos ou praticar feitiçaria amorosa. Pouco importa portanto se os portugueses que para aqui vieram estavam vindo degredados ou não. O que importa é que as ligações destes europeus, muitos ainda jovens e com saúde, com mulheres da terra, também jovens e sãs, produziu algo de bom, na medida em que, “de semelhante intercurso sexual só podem ter resultado bons animais, ainda que maus cristãos ou mesmo más pessoas”.35 Esta avaliação positiva da miscigenação, uma avaliação que se distancia de qualquer julgamento moral, é uma constante em Casa-grande e senzala, da mesma forma que a preocupação com o distanciamento das teses racistas que procuravam avaliar a miscigenação pelo resultado que esta teria produzido em termos de tipo físico. Embora Freyre fale em bons animais como resultado, o que ele pretende nesse caso é afirmar a própria insignificância da questão quando posta nesses termos, da mesma forma que para ele é irrelevante avaliar se a miscigenação produziu bons ou maus cristãos ou boas ou más pessoas. Mais central que a miscigenação racial na obra de Freyre é a miscigenação cultural, e um aspecto importante desta última, é a forma como ele via um tema que hoje é de grande atualidade, qual seja o encontro de civilizações que aqui se deu. A parte de seu livro que mais trata de civilização, ou antes de civilizações, é o capítulo 2, o que trata da contribuição do indígena na formação brasileira. Logo de início Freyre diz que o que chama de intrusão européia desorganizou a vida social e política e desfez o equilíbrio nas relações do homem com o meio, e assim “principia a degradação da raça atrasada ao contato da adiantada”,36 ou ainda, “a colonização européia vem surpreender nesta parte da América quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semicivilizações americanas”.37 35 36 37 Idem, ibidem, p. 20. Idem, ibidem, p. 89. Idem, ibidem, p. 90. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 241 Nestes termos, o que podemos constatar é que Gilberto Freyre parte de uma dada classificação de civilizações em diferentes níveis, uma mais adiantada — a européia, outras nem tanto, mas que já se encontram na adolescência — a dos incas, maias e astecas, e finalmente outras ainda na infância, que seria o caso da de nossos indígenas, o que é, diga-se de passagem, uma forma bem convencional de tratar essa questão. Mas este tipo de tratamento é inusitado porque muitas das vezes são visões de corte racista, ou no mínimo eurocentrista, que se utilizam dessas tipologias para justamente afirmar a superioridade de uma raça, o que estava longe dos propósitos de Freyre. Acreditamos que aqui ocorre algo parecido com certos momentos em que Freyre, procurando negar e se afastar de um discurso de cunho racista, não o consegue completamente, conforme já assinalamos. Também neste caso do tratamento que dá às diferentes civilizações que aqui se encontraram, ele não consegue se afastar inteiramente de um discurso eurocentrista, embora a nosso ver, este fosse seu propósito. Gilberto Freyre via a miscigenação cultural como uma das grandes virtudes da formação brasileira e acreditamos que na forma como aborda esses contatos entre diferentes culturas, o nível em que cada uma se encontrava era irrelevante perante o enriquecimento que ocorria no próprio contato entre essas culturas. Quando trata da dificuldade de se aproveitar o indígena nas plantações de cana, devido às dificuldades em sua sedentarização, e na necessidade do aproveitamento do negro africano, mais adaptado ao esforço físico continuado na agricultura, Gilberto Freyre afirma que o africano viria de um estágio cultural superior ao indígena.38 Nessa confrontação que faz da cultura africana com a indígena, a superioridade de cultura é vista de modo muito elementar, qual seja, em termos dos estágios de coleta e a seguir de produção agrícola, o que constitui, neste caso, dos males o menor. As diferenças culturais não devem ser vistas em Freyre numa dada escala onde umas seriam superiores a outras, e sim na diversidade e riqueza de seus particularismos. Estamos convencidos de que para Freyre as culturas eram diferentes na sua diversidade e todas são igualmente ricas exatamente por esta razão. A crítica de Gilberto Freyre às teses eurocentristas é patente quando afirma que o imperialismo português, o religioso dos padres e o econô38 Idem, ibidem, p. 158. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 242 mico dos colonos, apesar de ferir de morte a cultura indígena, não a abateu de repente como na América do Norte, dando-lhe “tempo de perpetuar-se em várias sobrevivências úteis”. Acrescenta ainda que “nossas instituições sociais tanto quanto nossa cultura material deixaram-se alagar de influência ameríndia, como mais tarde africana” e conclui, valorizando a hibridização cultural brasileira: “A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se observa noutros países da América e da África de recente colonização européia, a cultura primitiva — tanto a ameríndia como a africana — não se vem isolando em bolões duros, secos, indigestos, inassimiláveis ao sistema social do europeu. Muito menos estratificando-se em arcaísmos e curiosidades etnográficas. Faz-se sentir na presença viva, útil, ativa, e não apenas pitoresca, de elementos com atuação criadora no desenvolvimento nacional”.39 A nosso ver Gilberto Freyre utiliza o termo civilização com mesmo objetivo de Lucien Febvre, quando este grande historiador francês introduz esse termo, no plural, no próprio título da revista dos Annales, em 1946, qual seja, destacar o seu caráter amplo, unindo o material e o espiritual, como assinala Jacques Le Goff.40 O uso deste conceito portanto, tem uma finalidade metodológica que é a de realçar a diversidade cultural, e não construir qualquer tipologia de culturas para o Brasil. A miscigenação cultural, resultando em uma cultura nova, plena de originalidade, pode ser percebida no tratamento que Gilberto Freyre dá à religiosidade na formação brasileira, um tratamento onde se destaca a religião como manifestação de cultura. Nossa religiosidade tem uma de suas origens na herança portuguesa de uma religião que não se constituía em um sistema duro e rígido, como a dos povos protestantes do norte, e nem em um catolicismo dramático como o de Castela, segundo Gilberto Freyre. O nosso catolicismo se constituiu como “uma liturgia antes social que religiosa, um doce cristianismo lírico, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs”, e Freyre prossegue com uma descrição fascinante desse cristianismo lírico brasileiro: 39 40 Idem, ibidem, pp. 159-160. Jacques Le Goff, “La histoire nouvelle”, in Jacques Le Goff (org.), La nouvelle histoire (Bruxelas, Complexe, 1988), p. 42. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 243 os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo; os bois entrando pelas igrejas para [serem] benzidos pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de São Gonçalo do Amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os “rochedos dos cornudos” e as moças casadouras os “rochedos do casamento”; Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe.41 A religião é tratada por Freyre como uma forma de sociabilidade. É vista também de uma forma que a distancia do ascetismo e da seriedade da igreja estabelecida. A igreja, por sua vez, é vista como um local de encontro para que as pessoas se relacionem e pratiquem suas crenças, que nem sempre se pautam por aquilo que os padres esperam. Em 1726, uma pastoral do Bispo de Olinda, Dom Frei José Fialho, proibia, dentre outras coisas, representações e bailes dentro de igrejas, capelas e em seus adros, mas entre 1816-1818 Tollenare constatou que ainda se dançava na igreja de São Gonçalo de Olinda.42 Sem sair da religião, Gilberto Freyre passa a um de seus temas favoritos, que é a culinária e em particular aquela que se relaciona com a arte de se fazer bolos e doces. Segundo ele, na culinária colonial brasileira constatamos igualmente estímulos ao amor e à fecundidade, que podem ser observados nos nomes de doces e bolos de convento, nomes impregnados de sugestões afrodisíacas e de toques obscenos confundindo-se com toques místicos. Nomes tais como suspiros-de-freira, toucinhodo-céu, barriga-de-freira, manjar-do-céu, papos-de-anjo, beijinhos, desmamados, levanta-velho, língua-de-moça, casadinhos e mimos-de-amor, que muitas das vezes eram as próprias freiras que criavam para suas guloseimas.43 Foi necessário que a igreja católica no Brasil se moldasse às exigências da sociedade que aqui se formava, seja porque guardava uma 41 42 43 Freyre, Casa-grande e senzala, pp. 21-22. Idem, ibidem, pp. 247-248. Idem, ibidem, p. 250. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 244 estreita relação com o sistema patriarcal da casa-grande, como também porque de alguma forma ela teve de levar em conta as crenças originais africanas dos escravos. Não há como negar que não houvesse por parte da Igreja a intenção de impor a sua religião, como também não há como negar a resistência negra. Neste contexto, o que prevaleceu foi uma religiosidade mais flexível combinando elementos da diversidade cultural existente na colônia; uma religiosidade que alguns já consideraram como caracterizada pelo sincretismo, termo que consideramos inadequado por sugerir uma certa mistura de elementos em princípio inconciliáveis, justamente o que não se verificou na formação brasileira. A sociedade que se formou na colônia deve ser definida com cuidado porque, segundo Freyre, pode-se afirmar que, “nas áreas mais características o sistema da grande plantação foi, desde os primeiros anos da colonização, misto: pré-capitalista e capitalista, feudal e comercial. E também: criador de valores ao mesmo tempo que devastador de solos e dos homens”.44 Não se tratava também de uma sociedade de ricos senhores de engenhos, de uma elite que se destacasse por sua riqueza, já que o comum era os senhores estarem sempre endividados e adotarem no interior da casa-grande hábitos franciscanos. Se Gilberto Freyre dá uma importante contribuição para desmitificar a idéia de que no Brasil colonial haveria uma sociedade dual, onde num extremo estariam ricos senhores de escravos e em outro uma massa escravizada, por outro lado ele não toma na devida conta aquela parcela da população que no início do século XIX já era a maioria da população aqui residente, os que não eram senhores nem escravos, a população de homens pobres livres, uma população que, segundo Freyre, nada mais era que “uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre extremos antagônicos”.45 A análise desenvolvida em Casa-grande e senzala se centra em uma sociedade por definição escravista e em certos momentos do livro aparecem descrições minuciosas do quanto as elites que compunham aquela sociedade constituíam uma classe ociosa. Uma elite que também nada tinha de costumes aristocráticos e que é descrita por Freyre num estilo rabelaisiano, levando uma vida que chama de vida de rede: 44 45 Idem, ibidem, p. 78. Idem, ibidem, p. LX. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 245 Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos — sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo — palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas mulequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando por vício; outros por doença venérea ou da pele.46 Descrição rabelaisiana que Freyre completa explorando o sentido da expressão de Antonil de que os escravos seriam os pés e mãos dos senhores. Além de desempenhar todas as atividades de trabalho no engenho e nas plantações, os escravos se tornaram literalmente os pés dos senhores quando andavam por eles, carregando-os de rede ou de palanquim. Foram suas mãos para os senhores se vestirem, se calçarem, se abotoarem, se limparem, tirarem os bichos de pés, a ponto de contarse a tradição de um senhor de engenho pernambucano que não dispensava a mão de um negro nem para os detalhes mais íntimos da toalete.47 O que soa estranho em Gilberto Freyre é que, possuindo ele uma visão tão clara do quanto estes senhores de escravos constituíam uma classe ociosa e parasitária, ainda assim considere que a fragilidade da população em relação à anemia palúdica, ao beribéri e às verminoses tenha aumentado muito depois do que considera o “descalabro da Abolição estendida com igual intensidade aos negros e pardos já agora desamparados da assistência patriarcal das casas-grandes e privados do regime alimentar das senzalas”.48 Mas, como em outros momentos em que Freyre incorre em certas contradições, esta crença meio que dogmática no que considera como liberal patriarcalismo das casas-grandes não diminui o valor de seu livro. 46 47 48 Idem, ibidem, p. 429. Idem, ibidem, p. 428. Idem, ibidem, p. 46. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 246 O texto de Casa-grande e senzala se mostra em vários momentos inconclusivo e em alguns casos contraditório e, como assinala Ricardo Benzaquen de Araújo, essa ênfase na incompletude e na indefinição não deve nos levar a concluir que este “inacabamento” seja uma opção pela indefinição, já que “o que está em questão aqui, vale a pena frisar, não é a simples ausência de um desfecho, de uma síntese final capaz de alinhavar e resumir o que foi discutido anteriormente. Ao contrário, trata-se de uma espécie de inacabamento essencial, que se instala na argumentação desde o seu princípio, como o seu princípio, impedindo que o ensaio possa aceitar uma forma definida, estável [...].49 O próprio Freyre declara sua preferência por esta forma de escrever em uma passagem de Tempo morto e outros tempos, citada por Benzaquen de Araújo: “Na verdade, não me atraem os livros completos ou perfeitos, que não se prolongam em sugestões capazes de provocar reações da parte do leitor; e de torná-lo um quase colaborador do autor”.50 Caráter não conclusivo para o qual Lucien Febvre chama a atenção, no prefácio da edição francesa de 1952 de Casa-grande e senzala, ao afirmar que felizmente não se encontra no livro, “sob a forma de três parágrafos de cinco linhas, bem esquematizados”, tudo aquilo que o leitor deveria saber sobre o Brasil, como uma espécie de chave única e mágica “dessas fechaduras que guardam apenas vento”.51 Para concluirmos, voltamos a Febvre e sua apreciação de Casagrande e senzala: a sociedade que se formava entre o equador e o trópico de capricórnio, “oferecia aos olhos uma paleta de tons dégradés, do vermelho acobreado ao branco rosado. Nuanças de pele? Mais que isso: nuanças de alma”.52 Esses novos tons de alma se formavam a partir de “cacos de crenças e de nacos de concepções de mundo e de vida” que se mesclavam e frutificavam e daí novos “modos de ser, sentir e pensar nasciam”.53 As coisas sobre as quais escreve, e sobretudo a forma como Gilberto Freyre as descreve, nos levam a um envolvimento com seu texto 49 50 51 52 53 Araújo, Guerra e paz, p. 203. Idem, ibidem, p. 203. Lucien Febvre, “Brasil, terra de história”, Novos Estudos CEBRAP, 56 (2000), p. 16. Idem, ibidem, p. 20. Idem, ibidem, p. 21. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 247 que nos torna inevitavelmente leitores parciais do mesmo. A sua descrição quase que literária dos fenômenos e ao mesmo tempo com muitas demonstrações de rigor analítico, o seu estilo solto e ao mesmo tempo ligado e próximo daquilo que descreve, as ambigüidades do texto que, se em certos momentos nos levam ao desejo de afastarmo-nos dele, logo nos trazem de volta pela ausência de dogmatismos, pela densidade do que escreve, pelos momentos de franqueza e às vezes de um realismo poético; tudo isto produz em nós uma cumplicidade com o autor, que acreditamos que estava em seus propósitos, e faz de Casa-grande e senzala um livro único e indispensável, que cativa quem o lê. Mas não se trata apenas do prazer do texto e sim também de uma certa satisfação em ver sentido em ser e em se sentir brasileiro. Afro-Ásia, 27 (2002), 223-248 248 DA ÁFRICA AO AFRO: USO E ABUSO DA ÁFRICA ENTRE OS INTELECTUAIS E NA CULTURA POPULAR BRASILEIRA DURANTE O SÉCULO XX Livio Sansone* D urante o intercâmbio transatlântico que levou à criação tanto da cultura negra tradicional quanto da moderna, a África tem sido incessantemente recriada e desconstruída. A África tem sido um ícone contestado, tem sido usada e abusada, tanto pela intelectualidade, quanto pela cultura de massas; tanto pelo discurso da elite quanto pelo discurso popular sobre a nação e os povos que supostamente criaram e se misturaram no Novo Mundo; e, por último, tanto pela política conservadora como pela progressista. Na América Latina, na verdade, a África tem sido não só parte da construção da cultura negra, da cultura popular e de um novo sistema religioso sincrético, mas também do imaginário associado à nação moderna e, em geral, à modernidade e ao Modernismo.1 Imagens, evocações e (ab)usos da África têm sido, portanto, resultado de uma interação e de um conflito entre intelectuais brancos e lideranças negras, entre as culturas popular e de elite, e entre idéias políticas desenvolvidas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos e suas reinterpretações na América Latina. Ou seja, a África, no Brasil, tem sido em grande medida o resultado do sistema de relações raciais, muito mais do que da capaci- * Diretor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes. Tradução: Patrícia Farias. 1 Willian Rowe and Vivian Schelling, “Memory and Modernity”, Popular Culture in Latin American, London, Verso, 1991. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 249 dade de preservar o que Herskovits2 chamou de africanismos. Se aceite este ponto de vista, não há surpresas, portanto, em constatar que tanto o conformismo quanto o protesto se relacionaram e criaram sua própria África. Ao focalizar o Brasil, especialmente a cidade de Salvador da Bahia e sua região, este texto tenta explorar estas práticas durante o século XX, na cultura intelectualizada e no discurso oficial sobre a nacionalidade, assim como nas suas versões populares. Ele também descreve como a África, ou seja, as interpretações de objetos e traços considerados como sendo de origem africana, têm sido peças-chave no processo de mercantilização das culturas negras — ou seja, na produção do que podemos chamar de “objetos negros”. Falando de forma geral, no Brasil, e talvez em toda a América Latina, os discursos da elite e dos intelectuais, e o discurso popular sobre a origem africana da sociedade e da cultura, raramente têm sido comparados. A maioria dos relatos se baseia, na verdade, exclusivamente no primeiro. Embora eu vá tentar aqui fazer um esboço dos desenvolvimentos históricos de tal processo desde as vésperas da Abolição da Escravatura, em 1888, até hoje, minha ênfase será no período que se inicia no final dos anos 1970 — na redemocratização do Brasil. Deixe-me primeiro dar uma definição de cultura(s) negra(s) adequada ao objetivo deste texto. A cultura negra pode ser definida como a específica subcultura de pessoas de origem africana dentro de um sistema social que enfatiza a cor, ou a descendência a partir da cor, como um importante critério de diferenciação ou de segregação das pessoas. Como todas as subculturas, por exemplo, a cultura operária, a cultura negra não 2 3 Melville Herskovits, The Myth of the Negro Past, New York, Harper & Bros, 1941. Pesquisa histórica recente nos lembra que “culturas negras” começaram ser formadas já na África antes do início maciço do tráfico de escravos, como resultado de contatos com missionários e os primeiros colonizadores portugueses, ou na costa onde os deportados muitas vezes tinham que esperar anos antes de cruzar o oceano, ou ainda graças ao surgimento de novas etnias transnacionais que se beneficiaram de nichos oferecidos pelas políticas dos colonizadores de fortalecer alguns grupos contra outros. Este processo de criação de culturas negras na própria África tem sido documentado com relação à invenção de uma nação iorubá em torno do final do século XIX, que logo inspirou grupos de descendentes de africanos em Cuba e no Brasil (Lorand Matory, “The English professors of Brazil: on the diasporic roots of the Yoruba nation”, Comparative Studies in Society and History 41 (1999) pp. 72-103), e no que diz respeito à África Sub-Equatorial certamente se beneficiou da proximidade entre línguas do grupo Bantu (John Thornton, Africa and the Africans in the Making of the Atlantic World: 1400-1680, Cambridge, Cambridge University Press, 1988; Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 250 é algo fixo, nem um todo abrangente, porque é por definição sincrética3 e fruto de relações sociais, neste caso, entre grupos racialmente definidos como “brancos” e “negros”. Isto quer dizer, que, por definição, nem todas as pessoas identificáveis como negras se reconhecem ou participam na cultura negra, o tempo inteiro. Isto significa também que qualquer tentativa de definir de forma estreita o que é uma cultura negra, estabelecendo uma pretensa essência universal, funciona como um cobertor curto — deixa insatisfeitos uns e outros. Neste sentido o termo “cultura negra”, de forma parecida com outros termos de cunho etno-racial, como o próprio termo “raça”, deve ser utilizado mais como uma categoria nativa do que como um instrumento analítico. Culturas negras existem em diferentes contextos: elas diferem em sociedades que são predominantemente brancas e em sociedades nas quais a maioria de sua população é definida como não-branca, mas uma norma somática que prevalece é a que coloca os indivíduos, com traços definidos como africanos ou negróides, na base da hierarquia social, ou próximos a esta base.4 As populações definidas como negras, no Novo Mundo e na Europa — sobretudo, na Grã Bretanha, França e Holanda — têm produzido uma variedade de culturas negras e de identidades que se relacionam, de um lado, ao sistema local de relações raciais e, de outro, às históricas similaridades internacionais, que derivam de uma experiência comum como escravos, e a fenômenos mais recentes, internacionalizantes, que resultam do movimento em direção à globalização das culturas e das etnicidades. Uma força central específica da cultura negra é o sentimento de ter um passado em comum como escravos e desprivilegiados. A África é utilizada como um banco do qual são retirados símbolos de uma forma criativa.5 Ao mesmo tempo, a cultura negra é também, em alto grau, interdependente da cultura urbana ocidental. Na verdade, como Paul Gilroy sugeriu, a cultura e a identidade negras são criadas e 4 5 Robert Slenes, “Malungu, Ngoma vem! África encoberta e descoberta no Brasil”, Cadernos Museu da Escravatura 2, Ministério da Cultura, Luanda, 1995; Luis Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000). Norman Whitten and John Szwed, “Introduction”, in Norman Whitten and John Szwed (orgs.), Afro-American Anthropology, New York, The Free Press, 1970, pp. 23-62. Sidney Mintz and Richard Price, An Anthropological Approach to the Afro-American Past: An Anthropological Perspective, Philadelphia, Institute for the Study of Human Issues, 1977. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 251 redefinidas através de uma troca triangular de símbolos e idéias entre a África, o Novo Mundo e a diáspora negra na Europa. Por exemplo, as idéias de negritude e de pan-africanismo, criadas no Novo Mundo, sem dúvida foram inspiradas tanto por intelectuais africanos e suas lutas pela independência, como por imagens de que sociedades africanas eram prioritárias para a colonização européia. Este processo de construção das culturas negras tem criado os contornos de uma área cultural transnacional, multilingüística e multi-religiosa — o Atlântico Negro.6 No entanto, este processo também deu às culturas e às etnicidades negras um status especial no mundo das relações interétnicas. Por um lado, esta origem multiétnica e transnacional das culturas negras no Novo Mundo têm, de várias formas, antecipado a nova etnicidade característica da última fase da modernidade — e mostra que nem tudo nas novas etnicidades é realmente novo! Por outro lado, num mundo onde o “valor” das culturas e identidades étnicas é sua diferença em relação à cultura urbana ocidental, as culturas negras não gozam do reconhecimento oficial das “culturas étnicas estabelecidas” (por exemplo, no caso da cultura de algumas minorias imigrantes nos países industrializados, como os turcos e os marroquinos na Alemanha e França) e as pessoas negras têm maiores problemas, do que grande parte das outras minorias étnicas, em se definirem como uma comunidade cultural ou politicamente distinta. A razão para a recusa, por parte das sociedades dominantes, em legitimar a cultura negra faz parte do processo de utilização histórica de marcadores raciais para manter a hierarquia dentro de específicas economias e sistemas políticos nacionais. Desta forma, estou bem mais preocupado com a criatividade da produção cultural negra do que com a preservação de possíveis “africanismos”, com a maneira pela qual a África é reinventada por razões políticas do que com a capacidade de preservar a cultura africana através de séculos de opressão. O Brasil foi o país que recebeu o maior número de escravos vindos da África. As estimativas vão de três a 15 milhões de africanos deportados para a costa brasileira.7 O comércio de escravos começou mais cedo e 6 7 Paul Gilroy, Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Editora 34, 2000. Herbert Klein, The Atlantic Slave Trade (New Approaches to the Americas), Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1999. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 252 terminou mais tarde que em qualquer outro país do Novo Mundo. As terríveis condições de vida, os baixos custos dos escravos em certos momentos da história e a relativa proximidade em relação à África, são três razões-chave para o fato de África e Brasil terem tido um contato muito maior do que o intercâmbio que ocorreu entre a África e a outra grande sociedade escravagista — os Estados Unidos. Aqui não há tempo nem espaço para expandir o argumento; deixe-me apenas dizer que tudo isto fez com que o Brasil tivesse, em pouco tempo, a maior concentração de descendentes de africanos fora da África. Com relação à origem dos escravos no Brasil, em geral, se aceita que eles vieram, em sua maioria, da região em torno do rio Congo e do Golfo da Guiné.8 Os escravos eram postos para trabalhar em várias atividades; em primeiro lugar, nas plantações de cana de açúcar, depois nas minas, nas plantações de café e na criação de gado. Certamente, uma parte dos escravos trabalhou em serviços domésticos, enquanto outros ainda se engajaram numa série de atividades, da pesca ao comércio ambulante. Alguns escravos conseguiram desenvolver suas próprias atividades econômicas e ganharam dinheiro em seu tempo livre. Este dinheiro era freqüentemente utilizado para comprar a alforria, que, embora fosse difícil de ser conseguida, no Brasil era, em geral, mais facilmente alcançada que nos Estados Unidos. O Estado da Bahia sempre teve um papel central na construção da África no Brasil. No passado, este estado e a região do Recôncavo, que fica em torno de sua capital, Salvador, mesmo que fosse apenas pelo grande número de sua população negra, atraiu a atenção de viajantes que a retrataram em seus relatos como a “Roma Negra” — o maior conglomerado do que eram considerados traços e tradições culturais africanas fora da África. Depois, a partir da virada do século, a Bahia teve um lugar central na pré-história da etnografia da cultura afro-brasileira, através do trabalho de Nina Rodrigues, Manuel Querino e Manuel Bonfim. A partir dos anos 1930 ela também teve posição de fulcro na formação 8 9 Maria Inês Côrtes de Oliveira, “Quem eram os ´Negros da Guiné´? A origem dos africanos na Bahia”, Afro-Ásia 19-20 (1997) pp. 37-14; Joseph Miller, “O atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos”, Afro-Ásia 19-20 (1997) pp. 9-36. Arthur Ramos, The Negro in Brazil, Washington DC, Associated Publishers, 1939; Franklin Frazier, “The Negro family in Bahia, Brazil”, American Sociological Review, n. 4 VII (1942) pp. 465-478; Melville Herskovits, “The Negro in Bahia, Brazil: a problem in method”, American Sociological Review, n. 8, VII (1943) pp. 394-404. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 253 da moderna antropologia afro-americana.9 Inspirados pela busca de “africanismos” no Novo Mundo, vários antropólogos e sociólogos consideraram o Brasil, e em especial o litoral do Estado da Bahia e o Recôncavo, como uma das áreas nas quais a cultura negra manteve os traços africanos num grau maior do que em qualquer outro lugar.10 Não é à toa que foi em solo baiano que o debate, entre sociólogos e antropólogos, sobre a origem da cultura negra se iniciou nos anos 1930 — será que a cultura negra contemporânea é uma sobrevivência africana ou uma adaptação criativa à opressão e ao racismo? Na verdade, a Bahia tem sido historicamente central não só nos discursos dos intelectuais, mas também nas construções populares sobre a África e os “africanismos” no Brasil. Nos tempos atuais, por razões analíticas, três períodos podem ser identificados nas relações raciais brasileiras, cada um deles correspondendo a diferentes níveis de desenvolvimento econômico e de integração das populações negras no mercado de trabalho. Entre o fim da escravidão, em 1888, e os anos 1920, o emprego no setor industrial foi mínimo e, também por conta da imigração massiva vinda da Europa, que na verdade, pelo menos no Sudeste, veio também para substituir os antigos escravos, de forma geral, o mercado de trabalho permitia pouca mobilidade social para os negros. As relações raciais eram determinadas por uma sociedade que era altamente hierárquica, em termos tanto de cor, como de classe.11 Os indivíduos negros, que eram em sua maioria pertencentes às classes mais baixas, “sabiam o seu lugar” e a elite, que era quase inteiramente branca, podia manter suas posições facilmente, sem se sentir ameaçada.12 O segundo período vai da ditadura populista de Getúlio Vargas, nos anos 1930, até o fim do regime militar de direita, no final dos anos 1970. Nos anos 30, pela primeira vez se abriram oportunidades em larga escala para a população negra na área formal do mercado de trabalho, principalmente no setor público. O regime autoritário e populista de 10 11 12 Donald Pierson, Negroes in Brazil: A Study of Race Contact in Bahia, Chicago, University of Chicago Press, 1942; Herskovits, The Myth of the Negro Past; Roger Bastide, Les Ameriques Noires, Paris, Payot, 1967; Pierre Verger, Notes Sur les Cultes des Orisa et Vodun, Dakar, IFAN, 1957; Pierre Verger, Flux et reflux de la traite de les négres entre le golf du Benin et Bahia de Todos os Santos, Paris, Mouton, 1968. Jeferson Bacelar, Etnicidade: A Luta na liberdade. Os negros em Salvador na primeira metade deste século, Manuscrito, 1993. Thales de Azevedo, Cultura e situação racial no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 254 Getúlio Vargas limitou a imigração e favoreceu a força de trabalho “nacional”, como parte de seu projeto de modernização. Um segundo impulso importante para a integração da população negra, veio no período entre a metade dos anos 50 e meados dos anos 70. Um período caracterizado por um governo populista e, depois do golpe militar de 1964, um regime autoritário que estimulou um crescimento econômico promovido pelo Estado, através de uma economia de substituição de importações. Agora também os empregos do setor industrial estavam abertos aos negros. Nunca tantos negros haviam conseguido um emprego formal com chances de mobilidade social. De 1964 a 1983, o Brasil foi governado por uma Junta Militar que reprimiu os direitos civis e desencorajou a organização dos negros. Apesar disso, a década que vai do início dos anos 70 até o início dos 80, que correspondeu a um afrouxamento do poder militar, foi um período de crescimento e de criatividade para as organizações negras e a cultura negra. Os novos trabalhadores negros demonstraram interesse na questão do orgulho negro e nas organizações negras.13 Há três razões para isso. Primeiro, através de sua mobilidade social ascendente, uma nova geração de trabalhadores negros se defrontou com barreiras de cor que não havia percebido antes. Segundo, estes trabalhadores negros tinham mais dinheiro e tempo para despender organizando a comunidade e usufruindo atividades de lazer. Novos movimentos negros e associações carnavalescas exclusivamente negras se formaram. A cultura e a religião negras adquiriram maior reconhecimento oficial. Em particular, novas formas de cultura negra baiana foram criadas. A mídia rotulou este processo de “reafricanização da Bahia”.14 Terceiro, durante os últimos anos da ditadura, houve um crescimento da vida associativa em geral, que criou condições mais favoráveis para as organizações negras. O terceiro período vai da redemocratização, no início dos anos 13 14 Michel Agier, “Espaço urbano, família e status social: O novo operariado baiano nos seus bairros” Cadernos CRH 13 (1990) pp. 39-62; “Ethnopolitique – Racisme, Status et Mouvement Noir à Bahia”, Cahiers d´Études Africaines, EHESS, XXXII 1 (1992) pp. 1-24; Anthropologie du carnaval, Marseille, Parentéses, 2000. Agier, “Espaço urbano, família e status social. O novo operariado baiano nos seus bairros”, pp 39-62; “Ethnopolitique – Racisme, status et mouvement noir à Bahia”, pp. 1-24; Anthropologie du carnaval, Marseille, Parentéses, 2000; Jeferson Bacelar, Etnicidade: Ser Negro em Salvador, Salvador, Yanamá, 1989; Livio Sansone, “Pai preto, filho negro. Trabalho, cor e diferença geracionais”, Estudos Afro-Asiáticos 25 (1993) pp. 73-98. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 255 1980, até hoje e está associado com um novo conjunto de fatores. Durante estes anos, a recessão, combinada com a democratização e uma rápida “modernização”, levaram a um misto de novos sonhos e frustrações. Muitos dos canais de mobilidade social, que haviam sido importantes para a geração anterior, não eram mais relevantes para a geração mais jovem. Por exemplo, as oportunidades em antigos trabalhos manuais, mas também na indústria pesada e mesmo em alguns setores do emprego público diminuíram, e o valor dos salários baixou, contribuindo para diminuir o anterior status destes empregos, que era relativamente alto. Além disso, novas formas de segregação — normalmente sutis e nunca explicitamente baseadas na cor — emergiram em alguns dos novos setores do mercado de trabalho, tais como as indústrias de tecnologia mais avançada, onde não mais se precisa de trabalhadores pouco escolarizados e onde se espera dos novos técnicos um reconhecimento completo na cultura da empresa e em seus rituais, ou os shopping centers mais luxuosos, onde os requisitos de “boa aparência” e de “boas maneiras” para o emprego, tendem a discriminar os candidatos mais escuros.15 Neste meio tempo, outras mudanças levaram a um aumento de expectativas quanto ao nível de vida. No Brasil, assim como em muitos outros países do Terceiro Mundo, a escolaridade em massa, juntamente com a mídia, contribuíram para uma revolução nas esperanças das populações. Outro importante fator é a abertura do país às mercadorias, idéias, sons e culturas internacionais. Após séculos nos quais apenas uma pequena elite tinha acesso aos bens estrangeiros, o Brasil está passando do isolamento à participação, entrando na economia mundial como um importante “mercado emergente”, tal como esta ampla economia do Terceiro Mundo agora é freqüentemente chamada. Antes, por conta das falhas da política de substituição de importações, muitas mercadorias não estavam disponíveis; agora, as mercadorias importadas, sem dúvida, estão à venda, mas são muito difíceis e caras para a grande maioria dos brasileiros negros. Novos sonhos também resultaram da crescente 15 Antônio Sérgio Guimarães, “Operários e mobilidades social na Bahia: análise de uma trajetória individual”, Revista Brasileira de Ciências Sociais 22 (1993) pp. 81-97; Paula Cristina da Silva, Negros à luz dos fornos, representaçöes de trabalho e da cor entre metalúrgicos da moderna indústria baiana, Salvador, EDUFBA, 1996. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 256 aceitação das expressões culturais negras por parte do Estado e da cultura oficial. A indústria do lazer também está mais interessada do que nunca na cultura negra. Mais do que nunca, a cultura negra é predominante nas imagens e discursos de brasilidade oficial e comercial e, na Bahia, da baianidade. Frente a estas novas oportunidades para a manifestação da negritude no espaço público, está uma crise das formas tradicionais de protesto político e da vida associativa. A estrutura do sistema de relações raciais e a terminologia racial, assim como o tipo de racismo e de etnicidade negra, muda durante estes períodos. Cada período corresponde a uma diferente estratégia do Estado e de outras agências, tais como a mídia, diante dos afro-brasileiros, assim como a diferentes ênfases nos discursos nacional e intelectual sobre a textura racial da nação. Não é preciso dizer que cada um dos três períodos também corresponde a diferentes usos da África. Daqui para frente analisarei o papel e os discursos de um conjunto de agentes e agências, os intelectuais, o Estado, a liderança negra e a cultura negra popular. Antes da Abolição, as imagens da escravidão — dominadas por uma combinação de brutalidade e miscigenação que parece ter caracterizado o sistema escravista brasileiro — impressionaram uma longa série de viajantes estrangeiros, que descreveram esta sociedade tropical com um misto de desdém e fascínio. A origem africana de tantos escravos e exescravos é muitas vezes relatada, assim como a “atmosfera africana” que, aos olhos das testemunhas, dominava nos mercados públicos, nos portos, na música e na dança, nos hábitos culinários e em outros aspectos da vida diária. No entanto, pode-se argumentar que, no Brasil, a presença de pessoas e traços culturais de origem africana se torna um “problema” para o Estado e seus agentes apenas após a abolição da escravidão. Durante a escravidão, a condição escrava era até mais importante que a aparência física, e a população de origem africana era dividida em escravos, alforriados, nascidos livres e mulatos. Também importante era a divisão entre os nascidos na África e os nascidos no Brasil (crioulos) — aos primeiros eram dadas normalmente as tarefas mais pesadas. Com a abolição da escravidão, as coisas mudaram. Após a escravidão, o Brasil nunca conheceu uma segregação racial legal: a aparência física, mais do que a Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 257 origem africana ou a condição de escravo, passou a determinar o status. Quem definia o que era africano na sociedade brasileira, e construía uma população “negra”, não eram mais os viajantes estrangeiros, mas um grupo relativamente novo de ensaístas — pensadores pré-científicos, comprometidos com a construção da Nova Nação que se seguiu ao golpe que havia instalado a República, em 1889. Como lidar com a África no Brasil, era uma questão chave. A modernidade era uma necessidade e tinha de ser alcançada tanto através do branqueamento da população, por via de uma massiva imigração de brancos da Europa, como a partir da melhoria geral das condições de saúde da população nativa. Acabou sendo um pouco dos dois, pois nenhuma das duas abordagens conseguiu a hegemonia.16 No entanto, apesar do debate sobre o lugar dos descendentes de africanos na nova nação, tanto o “racismo científico” quanto os sonhos de incorporação da população negra, visavam a engenharia biológica: a construção de uma nova “raça” brasileira. Os traços africanos deviam ser removidos da vida, das ruas e do mercado público. As cidades brasileiras tinham de parecer “européias” — não importa que a mortalidade fosse muitas vezes pior que na África. As campanhas de saúde, como, por exemplo, contra a febre amarela, foram seguidas de uma “limpeza” das “regiões insalubres” — freqüentemente aquelas associadas a grandes concentrações de descendentes de africanos. As atividades econômicas informais, também associadas aos primeiros africanos livres, tinham de ser banidas dos centros das cidades. A prática do batuque e das religiões sincréticas brasileiras também foi varrida ou limitada — apenas nos anos 1970 a obrigação de registrar os terreiros de candomblé na polícia, foi suspensa.17 Entretanto, ironicamente, é precisamente quando a população nascida na África chega a ser uma pequena percentagem do total da população, que os negros brasileiros começam a celebrar sua “África”, de uma forma aberta e organizada — agora um ícone poderoso a ser utilizado 16 17 18 Trata-se de uma questão ainda bastante controversa. Ver para um conjunto de opiniões, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz, 1996; Jeffrey Lesser, Negotiation National Identities, Londres, Duke University Press, 1999. Julio Braga, A gamela do feticho, Salvador, EdUfba, 1999. Kim Butler, Freedoms Given, Freedoms Won, Afro-Brazilians in Post-Abolition São Paulo and Salvador, New Brunswick, Rutgers University Press, 1998. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 258 para adquirir status no contexto brasileiro.18 A partir da década de 1880, a coroação de reis e rainhas africanos, tradicionalmente uma forma de celebrar um passado suntuoso e a “civilização” africana em face da presente opressão em vários momentos durante a escravidão, se torna o centro dos cortejos carnavalescos. Marginalizados nas celebrações oficiais do carnaval, por seu comportamento supostamente desordeiro — ou seja, pelo fato de tocarem alto, os seus tambores — no Rio e em Salvador, os cidadãos negros formam associações graças às quais podem negociar um lugar valioso com os brancos “donos” do carnaval.19 Em Salvador, as duas principais associações carnavalescas que enfatizaram a grandeza da África foram a Embaixada Africana e os Pândegos da África. Para estes negros, a “África” no carnaval não era desordem, mas justamente o oposto: uma emocionante e ordeira exibição de mágica e de grandeza dos míticos reinados africanos.20 A última década do século XIX e a primeira década do século XX, também foram períodos nos quais alguns poucos líderes espirituais do candomblé começam a estabelecer contato com a própria África. Eles se beneficiaram do contínuo fluxo de contatos que sempre uniu a Bahia à África Ocidental durante e, em menor extensão, depois do tráfico negreiro. Os núcleos dos antigos escravos brasileiros, que ficavam nas cidades portuárias do Daomé (agora Benin) e da Nigéria21 , apoiaram este intercâmbio transoceânico. Tabaco e licor eram trocados por sementes de cola, imagens sagradas e artesanato. Naquelas décadas, o culto aos orixás se tornou um sistema religioso mais completo e sofisticado. Uma contribuição chave neste sentido veio da cultura iorubá, embora outras culturas africanas, como a fon, também foram importantes. De acordo com Matory22 foi, precisamente por volta da virada do século XIX para o XX, que a grandeza do povo iorubá começou a ser celebrado internacionalmente, como sendo um povo culto e orgulhoso, que resistiu às 19 20 21 22 Ana Luiza Martins-Costa, Sérgio Carrara e Peter Fry, “Negros e brancos no Carnaval Velha República, in João Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 232; Jefferson Bacelar, Etnicidade. Ser Negro em Salvador, Salvador, Yanamá, 1989. Manuel Quirino, A Raça Africana, Salvador, Progresso, 1955. Manuela Carneiro da Costa, Negros e estrangeiro, São Paulo, Brasiliense, 1985; Pierre Verger, Flux et Reflux de la Traite de lês Négres Entre lê Golfe du Benin et Bahia de todos os Santos, Paris, Mouton, 1968. Lorand Matory, op. cit. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 259 pressões do colonialismo e tinha uma sofisticada religião própria. Tal idéia de grandeza logo reverberou em todo o mundo afro-latino e, como veremos depois, aparentemente se tornou uma bandeira para aqueles que afirmavam o valor da pureza africana nas culturas negras do Novo Mundo. Se o expurgo de traços africanos da cultura brasileira e da “raça brasileira”, foi a questão central para o primeiro período, o segundo período é caracterizado por um processo que combinou a incorporação de certos aspectos da cultura negra na auto-imagem nacional, com sua mercantilização e comercialização. Isto ocorreu ao mesmo tempo em que emergiam quatro tendências inter-relacionadas: a) a adoção de um mito de origem da população brasileira, como parte do discurso oficial sobre a nação. O “mito das três raças” (o índio, o africano e o português) que se misturaram, para criar uma raça nova, potencialmente sem cor, tem sido celebrado durante as últimas décadas na poesia e na arte, de forma geral. Agora ele se torna parte das políticas culturais oficiais e da liturgia do Estado23; b) a emergência de uma organização política negra que tentava se estabelecer nacionalmente, a Frente Negra, e que enfatizava a necessidade de medidas em favor dos “brasileiros de cor” e o populismo nacionalista (“em primeiro lugar estão os brasileiros natos”) e minimizava a diferença cultural da população negra — para este objetivo, o passado recente do Brasil era muito mais relevante que um distante passado africano, um continente que estes ativistas negros muitas vezes descreviam como “primitivo”; c) a chamada reafricanização da cultura afro-brasileira; d) o apagamento do estigma sobre a cultura negra na área urbana da Bahia, a ponto desta se tornar parte da imagem pública do Estado da Bahia. Para os últimos dois pontos contribuíram o Estado, os cientistas sociais — ambos em situação mais poderosa do que no primeiro período — e brasileiros e estrangeiros. Estes agentes operaram através da identificação, dentro da complexidade de traços da cultura afro-brasileira, daqueles aspectos considerados “puros”, que supostamente expressassem a contribuição mais sofisticada das nobres culturas africanas para a cultura e a nação brasi23 Roberto Da Matta, Relativizando. Uma introdução à antropologia brasileira, Rio de Janeiro, Rocco, 1987. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 260 leiras. A estes traços “puros” foram contrapostos os traços supostamente “menos nobres” e “impuros”, que representavam tanto as culturas africanas menos sofisticadas como aspectos que haviam sido corrompidos por um sincretismo exagerado e se identificavam com uma série de “forças negativas” na cultura brasileira, tais como a mentalidade do “malandro”, a mágica dos índios “civilizados”, o catolicismo popular e, por último, a magia negra africana e não-africana. Nesta dicotomia de influências africanas, o lado bom era associado com o que era alternativamente definido como culturas “mina”, “nagô”, “sudanesa” e até mesmo “iorubá”, vindas dos escravos deportados da África Ocidental sub-saariana. De acordo com uma longa linhagem de intelectuais, começando no final do século XIX,24 os escravos desta “sofisticada” parte da África, acima do Equador, seriam a grande maioria dos africanos na Bahia e em outras partes do Brasil, onde as formas “mais puras” do candomblé emergiram, tais como o Maranhão. Onde o sistema religioso africano se tornou, como se dizia, abastardado, isto tinha a ver com a suposta origem “bantu” dos africanos. Os “bantus” eram freqüentemente descritos como rudes e sem nenhuma habilidade particular, se comparados aos “iorubá”. Ou seja, eles eram mais fáceis tanto de se submeterem aos senhores de escravos, como para combatê-los através da malfadada magia negra. A pesquisa histórica mostra que a idéia de que os “mina” eram mais civilizados, mas também mais passíveis de se revoltarem, estava presente na opinião pública e entre os donos de escravos em fins do século XIX. A rebelião dos malês, em 1835, em Salvador, que foi encarada como uma conspiração liderada por escravos islâmicos,25 certamente, contribuiu para esta reputação. No entanto, foi apenas depois que viajantes estrangeiros relataram o orgulho “iorubá”, e seus finos traços, em seus escritos, que muitas vezes foram best sellers no Brasil, que tal estereótipo popular ganhou status e se tornou parte da auto-imagem da nova nação. A pesquisa moderna sobre a origem africana da cultura afro-brasileira começou com uma série de importantes antropólogos e historia24 25 Raymundo Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, São Paulo, Editora Nacional, 1932. João Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história dos levantes dos malês (1835), São Paulo, Brasiliense, 1986. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 261 dores de primeira linha, tais como Ramos, Freyre, Tannenbaum, Carneiro, Herskovits, Pierson, Elkins, Verger e Bastide. Em suas análises, eles normalmente retiravam impressões dos relatos de viajantes pelo Brasil e da iconografia (pinturas e gravuras) produzida por eles, e de um número limitado de descrições etnográficas reunidas por volta da virada do século XIX para o XX, em sua maioria por Nina Rodrigues e Manuela Querino. Hoje sabemos que, tanto os viajantes estrangeiros, quanto tais etnógrafos da pré-história da antropologia brasileira, eram bastante impressionistas em seus relatos.26 Essa preferência declarada pela cultura iorubá, identificada como representação do vrai negre (negro verdadeiro), dentre tantas outras culturas africanas possíveis, como a mais vibrante de todas na África ocidental, assim como nas culturas negras no Novo Mundo, contribui muito para que ela tenha um papel de destaque nos sistemas religiosos Afro-Americanos. Essa dominância iorubá na Bahia e, sob outro nome, Lucumi, em Cuba, não depende somente do relativo alto número de escravos originários destas regiões da África, no último período da trata oceânica, como muitos ainda pensam, mas de um processo de etnogênese, por meio do qual diferentes grupos e culturas originários de regiões da Costa da Mina foram, digamos assim, unificados sob uma única etiqueta — iorubá. Esta etnogênese se alimentou também dos relatos coloniais acerca do golfo de Benin, como por exemplo, na descrição do famoso coronel inglês Ellis, a respeito dos falantes da língua Ewé, como representando a cultura mais avançada da África ocidental, que em sua época tiveram grande difusão. Estas descrições coloniais, por sua vez, começaram a fazer parte dos discursos de grupos de missionários protestantes africanos que operavam internacionalmente numa rede — possibilitada também pela Sociedade Bíblica Britânica — que une a Serra Leoa, a Nigéria e a Grã Bretanha.27 Tantos as descrições destes colonizadores brancos como os discursos des26 27 Carlos Vogt e Peter Fry, A África no Brasil - Cafundó, São Paulo, Companhia das Letras, 1996; Robert Slenes, “Malungu, Ngoma vem! África encoberta e descoberta no Brasil”, Cadernos Museu da Escravatura 2, Ministério da Cultura, Luanda, 1995. J.D.Y. Peel, “The cultural work of Yoruba ethnogenesis”, ASA Monographs 27, Londres, Routledge, 1989; Lamin Sanneh, Abolitionists Abroad. American blacks and the making of modern West Africa, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1999; ver também Paul Gilroy, op. cit. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 262 tes missionários africanos, na verdade, foram influenciadas por antigas e novas versões da hipótese hamítica, a qual postula, baseada em uma interpretação da Bíblia, que as civilizações da África negra eram influenciadas por populações vindas do Mediterrâneo, Egito ou até Israel.28 A sofisticação da cultura material iorubá — especialmente sua poesia, sistema de adivinhações, esculturas e jóias em metal — foi, entretanto, “explicada” como resultado dessa influência hamítica. É, em grande parte, em função dessa hierarquia colonial racializada dos africanos e suas culturas, resultado da operação colonial na África, que a superioridade da cultura iorubá foi proclamada através do Atlântico. Uma critica a essa criação de uma dicotomia entre traços considerados “puros” ou de origem “iorubá”, em oposição àqueles traços ditos “impuros”, em função de sua suposta origem “bantu”, foi iniciada por alguns autores,29 mas necessita ser mais bem desenvolvida, aprofundando a relação com a historiografia da África e com a história da antropologia. É claro, por exemplo, que a preferência pela “pureza” nas culturas (exóticas) tem estado presente como um padrão básico na antropologia inspirada pelo relativismo cultural de Franz Boas e nos lembra a preferência de Ruth Benedict pelo povo apolíneo Puebla, em relação ao povo Kwakiutl, mais dionisíaco. Ironicamente, naqueles dias, a ênfase nos “iorubá” e a minimização dos “bantu”, faziam também parte de um ávido esforço, por parte de grupos de intelectuais “brancos” progressistas, para fornecer uma imagem positiva do Brasil negro e, particularmente, da Afro-Bahia, ao resto do mundo. Na verdade, como muitas vezes acontece no caso da escrita acadêmica sobre fenômenos relacionados à etnicidade e ao nacionalismo,30 os cientistas sociais e seus informantes étnicos, através de diferentes embora convergentes agendas, tendem a fornecer uma imagem similar e igualmente simpática do grupo ou comunidade em questão. Este grupo ou comunidade é, então, descrito como sendo mais coeso, homogêneo e integrado do que seria o caso se a agenda do observador fosse 28 29 30 Stephen Howe, Afrocentrism. Mythical pasts and Imagined Homes, London, Verso, 1998. Entre outros, Beatriz Góis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco. Uso e abuso da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1993. Richard Handler, Nationalism and Politics of culture in Quebec, Madison, University of Wisconsin Press, 1988. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 263 diferente. Além disso, também as agências governamentais federais e locais — com o Ministério da Cultura do Estado Novo, na vanguarda — contribuíram para este processo de conferir um status intelectual e a primazia aos “iorubá”, expurgando tanto quanto possível o que elas consideravam elementos “impuros” e promovendo os outros aspectos da cultura negra que acreditavam ser “mais puros”, dignos e civilizados. É possível imaginar que tais construções polares, relacionadas à presença africana no Brasil, respondiam a uma polaridade interna que é típica de todas as versões de cultura negra no mundo afro-latino e afrocatólico de que tenho notícia31 — aquela polaridade entre pureza/resistência e manipulação/subjugação, dois extremos entre os quais os indivíduos negros têm tradicionalmente construído suas estratégias de sobrevivência, assim como os discursos sobre elas. Desde o início dos anos 60 do século XX, os contatos com a África aumentaram bastante. No auge da descolonização, o governo brasileiro — mesmo a ditadura militar que começou em 1964 — passou a desenvolver uma política de presença na África.32 Mesmo que o Brasil não tivesse tomado parte no movimento dos países não-alinhados, ele queria desenvolver um intercâmbio Sul-Sul, quanto mais não fosse como forma de adquirir uma aceitação internacional maior, como grande nação. Foi neste contexto que dois institutos de pesquisa receberam financiamento do governo — pareça ou não um pouco estranho. Primeiro, o Centro de Estudos Africanos e Orientais da Universidade Federal da Bahia — que, também através de seu periódico Afro-Ásia, tinha se tornado uma importante referência institucional na reconstrução científica da África, na Bahia e no Brasil. Depois, em 1974, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da universidade privada Cândido Mendes, que também publica uma revista, a Estudos Afro-Asiáticos, e tem estimulado o contato com a África, majoritariamente no campo da pesquisa e do treinamento econômicos e sócio-antro31 32 Também no Haiti a cultura negra e o panteão das divindades vodu têm se articulados ao longo de uma polaridade Guiné – puro e digno – versus Congo – impuro e indigno, que nos lembra muito da polaridade “iorubá” – “bantu” no Brasil e Cuba, ver Guerin Montilus, “Guinean versus Congo lands: aspects of the collective memory in Haiti”, in Joseph Harris (org.) Global Dimensions of the African Diaspora, (Washington DC, Howard University Press, 1993), pp.159-166. Jocélio Teles dos Santos, A cultura no poder e o poder da cultura. A construção da disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil, Tese de doutorado em Antropologia, São Paulo, USP, 2000. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 264 pológicos, especialmente com as antigas colônias portuguesas. A redemocratização do Brasil, que começa no início dos anos 1980, abriu caminho para o desenvolvimento das políticas de identidade, inclusive de cunho etno-racial, dentro de uma sociedade que, por muito tempo, tem conhecido uma poderosa tradição universalista. Uma tradição associada à falta de cidadania para a maioria, organizada e defendida pelo aparato do Estado, mas também celebrada na arte e na cultura populares, através de incontáveis reinterpretações do “mito das três raças”. Agora os agentes do processo são diferentes. O Governo Federal, afetado por cortes nos gastos públicos e pelas memórias negativas de suas políticas culturais centralizadas e censoras, vai perdendo o poder. Os governos locais, por outro lado, ganham mais espaço, fortalecidos pela descentralização do poder e pela nova legislação. O Estado da Bahia inclui em sua Constituição de 1988, o ensino da História Africana na educação secundária e políticas de promoção de uma imagem multiétnica na propaganda dos órgãos governamentais. Tais novas medidas multiculturalistas criam novas demandas por informação e por símbolos africanos, apesar deles serem muitas vezes peças e pedaços préfabricados, essencializados, das culturas africanas e generalizações superficiais sobre o caráter do “povo africano” — tais ocorrências são comuns nas experiências multiculturalistas nas escolas de alguns países europeus, mas se tornam mais agudas num país onde a educação pública está em crise. Neste mesmo período, a mídia e o turismo se tornam mais importantes na construção de uma cultura negra moderna. O turismo de massa, e as impressões que os turistas deixam para trás e aquelas que levam consigo para seu lugar de origem, toma, aos poucos, o papel que já foi das impressões mais sofisticadas, mas também mais elitistas, dos viajantes. Os cientistas sociais são muito mais numerosos do que no segundo período, e começa a haver um certo número de pesquisadores negros (em sua maioria, ainda jovens), mas, por conta da popularização das ciências sociais, como indivíduos e profissionais, os cientistas sociais nacionais e estrangeiros são menos politicamente influentes perante a política e o governo baiano do que já foram nos anos 40 e 50. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 265 A situação cultural também mudou. Por um lado, certamente, é mais fácil e mais lucrativo “ser negro” e mostrar o próprio interesse na África do que há 30 anos atrás, se não for por mais nada, ao menos por conta da aceitação de estilos jovens alternativos, que aumentou sensivelmente33 — por exemplo, me disseram que há apenas uma geração atrás, os cabelos dos rastas ou dreadlocks teriam sido quase considerados sinais de maluquice. A mídia também — depois de um longo tempo — começou a aceitar o fato de que o Brasil tem uma imensa população preta e parda. Em certos setores da sociedade se percebe, até mesmo, uma certa nova negrofilia, que cria um novo espaço para certas formas de negritude estetizada. Desta vez, porém, ela não está confinada às vanguardas artísticas e aos intelectuais, como na Paris de antes da Segunda Guerra,34 mas, sim, expressa uma inquietação popular pelo exótico e pelo sensual, associados aos indivíduos negros, produzida dentro de uma sociedade na periferia do Ocidente que quer ser cada vez mais racional. Por outro lado, este período tem assistido a emergência de um novo movimento negro que encara, como sua maior tarefa, acabar com a idéia de que o Brasil é uma democracia racial. Para estes ativistas, o Brasil que conhece um sistema racial baseado no contínuo de cor, deve ser reinterpretado a partir de uma radical divisão de linhas de cor (negros versus brancos). Além disso, a polaridade “iorubá/bantu”, mencionada antes, é agora considerada verdadeira, pela maioria dos militantes negros, um grande grupo de intelectuais e — na Bahia — acadêmicos, e mesmo pela ala progressista da Igreja Católica que tenta incorporar a mensagem do orgulho negro agregando, em sua liturgia, símbolos associados a um grande “passado africano”. É, neste território de transição, que uma parte dos militantes negros e dos líderes espirituais do candomblé tem lutado para dessincretizar o sistema religioso afro-brasileiro — expurgando qualquer referência ao catolicismo popular, ao kardecismo e à “magia negra”. A “África” tem sido central na afirmação de pureza de um terreiro de candomblé em particular, diante de seus terreiros rivais, 33 34 Osmundo Araújo Pinho, “A Bahia no fundamental: notas para uma interpretação do discurso ideológico da baianidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais 13 (1998) pp. 109-120. Ben Gendron, “Fetishes and motocars: Negrophilia in French Modernism”, Cultural Studies 4 (1990) pp.141-155; Petrine Archer-Straw, Negrophilia. Avant-Garde Paris and Black Culture in the 1920s, New York, Thames and Hudson, 2000. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 266 que comumente são descritos como sendo menos “africanizados”. Para alguns terreiros, muitas vezes aqueles mais visitados por intelectuais e antropólogos; as viagens regulares à África, assim como a demonstração pública de objetos (mágicos) trazidos da África, tem se tornado uma parte essencial de seu status no altamente competitivo mercado religioso no qual operam.35 Concluindo, através dos três períodos mencionados antes, observa-se que a determinação do que é “africano”, na maioria dos casos, é impressionista. Nisso tem contribuído uma variedade de agentes, com agendas diferentes, tanto “brancos” como “negros”, e tanto “de fora” como “de dentro”. Os objetos, a língua e o ritmo musical são definidos como africanos, não através de uma pesquisa cuidadosa, que ainda é rara, e sim, muitas vezes, por uma associação superficial, por semelhança ou por observação. “Parecer africano” ou “soar como africano” é, na verdade, o que torna algo “africano” — assim, um grupo de corpulentos homens negros, trabalhando na feira central de Salvador (S.Joaquim) torna-a “africana”, segundo comentários de muitos livros de fotos à venda para turistas e para antropólogos em viagem.36 A África, pois, é representada como o continente onde a cultura, substancialmente, repete a si mesma — um grande freezer cultural, onde os artistas estão reduzidos à tarefa de artesões que reproduzem a cultura material — em lugar de uma região onde a inovação e a invenção também estão presentes.37 Para esta representação singular, mas substancialmente estática da África no Brasil, contribuem, pelo menos, dois fatores. Primeiro, um específico olhar de fora contribuiu, certamente, para a construção de um tipo particular de África no Brasil. Nisso alguns estrangeiros têm tido uma função chave. Um bom exemplo foi a forma através da qual Melville Herskovits identificou que certos traços cultu35 36 37 38 Reginaldo Prandi, Os Candomblés de São Paulo, São Paulo, Hucitec, 1991; Stefania Capone, “Le Voyage “initiatique”: déplacement spatial et accumulation de prestige”, Cahiers du Brésil Contemporain, 35-36 (1998) pp. 137-156; Vagner Gonçalves da Silva, op. cit. Em Salvador, estes livros de fotos são tão procurados pelos turistas que eles são mais caros lá do que no Rio ou em São Paulo. Valentine Y. Mudimbe, The Invention of Africa, Bloomington, Indiana UP, 1988. Para um relato em tom de celebração da filosofia de vida e do olhar de Pierre Verger, ver Jérôme Souty, “Comme um seul homme”, L´Homme 147, (1998) pp.221-236. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 267 rais ou hábitos sociais continham graus do que ele chamou de africanismos, e, em tempos mais recentes, a tendência favorável às coisas iorubá do fotógrafo e etnógrafo francês radicado na Bahia, Pierre Verger.38 Mas, também, uma série de importantes brasileiros vem trilhando caminhos parecidos. Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro e outros, criaram um quadro de referência sobre a África no Brasil, ao qual, gerações de pesquisadores que se seguiram, tiveram, e ainda têm, que se referir. Outro fator importante, na compreensão dos fluxos culturais entre África e o Brasil, é a própria localização geopolítica da Bahia que é caracterizada por uma peculiar forma de subalternidade. Além de ser uma atração turística, um dos lugares onde (fortes) emoções tropicais emanam, é um lugar que produz imagens e sons que repercutem, por exemplo, no circuito da assim dita música mundial (world music). No entanto, é marginal no que diz respeito à comercialização e “enlatamento” da cultura negra global — isso se deve em boa parte ao fato da língua portuguesa ser pouco globalizante se comparada à inglesa, mas também à falta de recursos, dinheiro e saber tecnológico (know how). Na verdade, a “globalização negra” tem tido efeitos diferenciados em diferentes regiões, a depender da estrutura e oportunidades locais e da posição geral da região no fluxo cultural global. Geralmente este processo cria novas oportunidades, mas, também produz novas contradições: há barreiras que estão desaparecendo, mas há outras surgindo, como aquelas entre os que têm os recursos para se permitir um estilo de vida e de consumo “global” (que inclui a necessidade de algum conhecimento da língua inglesa) e aqueles que são obrigados a serem espectadores da globalização das culturas negras. Isto leva a questionar se a globalização negra enfraquece ou fortalece a condição colonizada do pensamento e como esta afeta o relacionamento entre o centro e a periferia dentro do Atlântico Negro. O caso do Brasil e dos transatlânticos fluxes et refluxes das pessoas, mercadorias, símbolos e idéias, que unem a América do Sul com a do Norte, a Europa e África, formando o Atlântico Negro, é uma evidência de que não obstante tenha ícones que se tornaram genuinamente globalizados, os significados coletivos que são dados a estes ícones variAfro-Ásia, 27 (2002), 249-269 268 am bastante a depender do contexto local. O que também demonstra de que tem havido forças “locais” mais poderosas, nas formas como as coisas africanas têm sido classificadas e posicionadas. O sistema mundo, certamente, provoca a internacionalização do racismo, bem como do anti-racismo. No entanto, importantes graus de variâncias nacionais e locais ainda podem ser detectados. Quase sempre é apenas uma questão de se procurar e estas serão encontradas. As “Nações”, concebidas como uma configuração particular e contingente das regras e símbolos étnicos, experimentam o racismo de diferentes formas, embora os ícones étnicos e raciais, como aqueles relacionados às noções de “negro” e “branco”, sejam, na verdade, crescentemente globais. No próximo futuro certamente haverá mudanças devido ao fato de que hoje, mais que nunca, instâncias locais, como aquela ligadas às culturas e identidades negras na Bahia, têm elos globais que podem superar o estado nação. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 269 Aos colaboradores de Afro-Ásia Afro-Ásia é uma publicação semestral do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBa), dedicada à divulgação de estudos relativos às populações africanas, asiáticas e seus descendentes no Brasil e alhures. Aceitamos textos inéditos, que serão publicados na ordem de recebimento se aprovados por pareceres de membros do Conselho Editorial ou de outros especialistas designados pela editoria. Aos que desejam enviar seus textos, solicitamos que sigam as seguintes regras editoriais: 1. O texto não deve ultrapassar 35 páginas em formato A4, espaço entrelinhas de 1,5, em fonte times new roman 12 em formato eletrônico (e-mail ou disquete), em Winword 7.0 ou posterior. 2. As citações de trechos de obras e documentos devem obedecer ao seguinte critério: se forem menores que três linhas devem ser incorporadas ao texto entre aspas e se forem maiores devem vir separadas do texto principal e com um recuo em relação à margem esquerda de 3 cm e à direita de 1 cm com o espaçamento simples entre as linhas e sem aspas no começo e no fim. Em ambos os casos, não use itálicas. 3. Para evitar misturas de dados, as tabelas devem ser formatadas usando-se o estilo “tabelas” do Word. Os quadros e tabelas devem ter seus títulos incorporados ao mesmo. 4. As fotos (em preto e branco) devem ser digitalizadas, com resolução mínima de 300 dpi, em formato TIFF e enviadas em arquivos separados numerados seqüencialmente. No texto deve vir indicado o local onde cada foto deve ser inserida. 5. As notas devem vir em rodapé, com todas as referências a fontes de praxe, seguindo as seguintes regras: a) Nas referências a fontes primárias indicar, com precisão, sua origem em documentos escritos, orais, iconográficos e outros. Fontes devem indicar na ordem, a instituição, o fundo, o documento e data em formato dd/mm/aaaa (este formato é válido para todas as indicações de datas) . Exemplo: AHM-ACM, Secção A, Diversos Confidenciais, cx. 07, Maço 07, Nota Confidencial no 42,do Gov. Geral de Moçambique, Freire de Andrade ao Ministro da Marinha e Ultramar de 06/11/1909. Citações seguintes: AHM-ACM, Nota Confidencial no 42, op. cit. b) Citação de artigo em revista: nome por extenso do(s) autor(es), [vírgula], título entre aspas [vírgula], nome da revista em itálicas [vírgula], volume e/ou número da revista (ano da publicação entre parênteses) [vírgula], paginação [p. ou pp.]. Nas citações seguintes da mesma obra basta o último sobrenome, ou regra consagrada culturalmente (por exemplo, nos casos de autores de países hispânicos os dois últimos sobrenomes), e parte do título da obra. Exemplos: primeira citação: Thomas Holt, “‘A essência do contrato’: a articulação de raça, gênero e economia na política de emancipação britânica (1838-1866)”, Estudos Afro-Asiáticos, 28 (1995), p. 11. Citações seguintes: Holt, “‘A essência do contrato”’, p. 9. c) Citação de capítulo em livro coletivo: nome por extenso do(s) autor(es) [vírgula], título entre aspas [vírgula], in nome(s) do(s) organizador(es) do livro acompanhado(s) de (org.) ou (orgs.) [vírgula], título do livro em itálicas (local, editora e ano entre parênteses), paginação. Nas citações seguintes da mesma obra, mesma regra para artigo. Exemplos: primeira citação: Yvan Debbasch, “Le Maniel: Further Notes”, in Richard Price (org.), Maroon Societies (Garden City, Anchor Books, 1973), p. 145. Citações seguintes: Debbasch, “Le Maniel”, p. 144. d) Citação de livro: nome por extenso do autor [vírgula], título e subtítulo do livro em itálicas [vírgula], local [vírgula], editora [vírgula], data [vírgula], paginação. Nas citações seguintes, sobrenome e parte do título da obra. Exemplo: primeira citação: Emilia Viotti da Costa, Crowns of Glory, Tears of Blood: The Demerara Slave Rebellion of 1823, Nova Iorque, Oxford University Press, 1994, p. 217. Citações seguintes: Costa, Crown of Glory, pp. 203-204. Os textos devem ser enviados para: Afro-Ásia – Mestrado em História – FFCH – UFBA Estrada de São Lázaro, 197 – Federação Cep.: 40210-630 – Salvador – Bahia – Brasil E-mail: afroasia@ufba.br Não serão considerados textos remetidos fora destes padrões. Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 272 Afro-Ásia, 27 (2002), 249-269 273 Afro-Ásia no 27 Revisão: Raul Oliveira e Tatiana Vieira Editoração eletrônica: Bete Capinan/Tiago Capinan Capa e projeto gráfico: Renato da Silveira Impressão e acabamento: xxxxx