DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872018v38n3cap04
O
efeitO
AleijAdinhO:
ensAiO
de
AntrOpOlOgiA dA expertise
Lilian Alves Gomes
Universidade Cândido Mendes – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
O Museu de Arte de São Paulo (MASP) dedicou o ano de 2018 às “histórias
afro-atlânticas”. Uma das exposições que inauguraram a programação foi “Imagens
do Aleijadinho”, aberta ao público entre março e junho do referido ano. Na apreciação de Jorge Coli, professor titular em História da Arte e História da Cultura
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a reunião de obras prestou
“um desserviço à obra do Aleijadinho e ao público”, pois “não é preciso ser grande
especialista para perceber imediatamente que, nessa mostra, nem todas as esculturas
podem vir da mesma mão ou do mesmo ateliê”. Em outro trecho, temos: “Algumas
[esculturas] são sublimes e de atribuição segura, outras nem tanto”1.
A análise de Coli sobre a recente exposição “monográfica” realizada no MASP
evidencia que não é preciso ser grande especialista para perceber que algumas obras
não foram feitas por “uma mesma mão”, mas que a atribuição de autoria para outras
é contestável. O fato de a autoria de algumas esculturas não ser autoevidente para
todas as pessoas nos remete ao célebre texto de Walter Benjamin (1994) sobre a obra
de arte na era da reprodutibilidade técnica. O autor conceitua a presença que ultrapassa
a concretude do objeto em termos de “aura”. A ideia de aura diz sobre a aparição
única de uma coisa distante. Como uma centelha, é algo que ilumina uma presença
singular e evoca um suposto halo luminoso que só os iniciados veem.
Na argumentação que desenvolvo adiante, aciono as incertezas em torno do
corpus de obras do escultor, entalhador, arquiteto e carpinteiro Antônio Francisco
Lisboa (1738-1814), o Aleijadinho, com vistas a sublinhar como argumentos sobre
expertise são acionados em elaborações acerca da atribuição de autoria. Para tanto,
Gomes: O efeito Aleijadinho
91
analiso documentos, laudos, catálogos, reportagens e estudos que, alinhavados, dão
a ver como os debates atributivos são bons para pensar. Quais são as centelhas que
dão notícia que uma obra foi feita por Aleijadinho? E quais pessoas estão aptas a
vislumbrá-las?
Inicialmente, apresento Aleijadinho e como o referencial da antropologia da
admiração (Heinich 1991) é profícuo para entender os efeitos da mitificação da trajetória do escultor e a importância conferida às suas obras no campo da arte brasileira.
Em seguida, mostro como tais obras e outras imagens são vinculadas a noções de
autoria, de estilo e de originalidade, destrinchando, assim, os meandros da identificação e atribuição de autoria. Discuto a apreciação de obras de arte como atividade
que envolve tanto treinamento quanto visão da aura da obra que se apresenta difusa
para outras miradas. Descortino uma série de afinidades entre domínios artísticos e
mágico/religiosos que vêm a lume por meio da análise de operações de identificação
e atribuição de autoria.
Grande parte da produção de Aleijadinho foi de figuras bíblicas, como os profetas, e imagens de santo, ou seja, representações plásticas de divindades do panteão
católico. O uso do termo imagem ou santo no texto que segue remete, na maioria dos
casos, a essa última acepção. Destaco que o exercício de pensar o corpo de divindades
em si (formato, materiais, técnicas, disposição em relação a outras coisas, etc.) e as
relações que mobilizam em contextos específicos, ao invés de tomá-los apenas como
símbolos religiosos que remetem a outras coisas, se conecta ao esforço de autores na
dissolução da noção de arte alicerçada em critérios ocidentais de beleza e complexidade técnica. A problemática das imagens religiosas enquanto obras que portaram
múltiplos significados mesmo antes da consolidação da atual acepção de “arte” (mais
ligada à visualidade e abarcadora de uma matriz de relações sociais que começa a
se delinear com o Renascimento) é inclusive um fértil terreno para reflexões sobre
outros tipos de imagens, obras de arte e objetos contemporâneos que mobilizam valores não só estéticos. A interlocução com os trabalhos de Schmitt (2007), Belting
(2011), Gell (1998, 2001, 2005) e, em especial, com o olhar de Heinich (1991) para
a fortuna crítica de Van Gogh evidenciam que a presente análise não se restringe a
um estudo linear no qual objetos religiosos se secularizam e se tornam obras de arte.
Em vista disso, espera-se que a discussão sobre autoria de trabalhos de Aleijadinho
também ilumine debates sobre atribuição de um espectro de obras mais amplo do que
as imagens de santo.
Antropologia da admiração
Em minha tese de doutorado (Gomes 2017), analisei as relações engendradas
por imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção em situações nas quais
estes são mobilizados para outros fins que não o culto religioso2. Apesar de não ter
estabelecido os santos barrocos como objetos privilegiados de pesquisa, frequente-
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Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(3): 90-112, 2018
mente as obras com as quais travei contato durante o trabalho de campo resvalaram
nas qualidades intrinsecamente atribuídas a eles. Realizei observação participante
em museus, órgãos estatais de proteção do patrimônio histórico e, em especial, junto
a um colecionador de arte popular e religiosa3. Além disso, analisei diversos livros e
catálogos de coleções e exposições.
Um dos referidos catálogos foi produzido por ocasião da mostra “Casa dos
Milagres – Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques”. A certa altura da
apresentação dos objetos expostos, lê-se: “A nave central da capela […] é presidida
por uma imagem de Cristo de Ambrósio Córdula, esculpida em madeira, que de tão
bonito lembra uma obra expressiva de Aleijadinho” (Carvalho Jr. 2013:17). No universo da arte popular, a semelhança com as peças de Aleijadinho e os santos barrocos
não raro é tida como um ponto alto do desenvolvimento do trabalho escultórico de
santeiros. Nesses casos, esculpir “como o” ou “inspirado em” Aleijadinho é um horizonte de trabalho, e são frequentes os relatos de artistas populares que apontam a
comparação elogiosa com “o mestre” como uma clivagem em suas biografias. A título
de ilustração, transcrevo o relato de Mestre Dezinho, considerado precursor da arte
santeira no Piauí, hoje movimentada por dezenas de artistas: “Fiquei aliviado quando
ele [o padre] me cumprimentou dizendo que eu era um escultor. Eu quis saber o que
era um escultor. Ele disse que era um artista que fazia as semelhanças de uma pessoa
em madeira ou pedra; e que se eu continuasse assim, ia ser um segundo Aleijadinho”
(Dezinho 1999 apud Lima 2010:8).
A comparação e aproximação com a obra de Aleijadinho também está presente em leituras do trabalho “genial” de artistas e arquitetos modernistas, tais como
Portinari e, principalmente, Oscar Niemeyer4.
No imaginário daqueles que apreciam as imagens de santo brasileiras enquanto
obras de arte, as peças barrocas ocupam o lugar de apogeu do virtuosismo técnico.
Nessa direção, o barroco não é delimitado precisamente em termos estilísticos ou
de suas respectivas periodicidades e variações dentro e fora do Brasil. Trata-se de
referenciais diversos mobilizados de modo recorrente na relação com as obras que
extrapolam sua concepção como um período histórico e artístico determinado, avultando-se como pervasivos na criação e na circulação de certas imagens. Não se trata
de afirmar que todas as imagens sejam barrocas5, mas de explorar como elas, de certo
modo, subsumem outras imagens de santos e o trabalho das pessoas que lhes dão
forma. Essa subsunção é capitaneada pela figura de Aleijadinho.
Segundo Guiomar de Grammont (2008), numerosos discursos biográficos e
da História da Arte edificaram Aleijadinho como um “mito” que, como tal, confere
unidade a uma trajetória ao mascarar uma miríade de fragmentos, anacronismos,
contradições e versões. O alicerce de tal construção foi a primeira biografia do artista
– escrita em 1858 por Rodrigo José Ferreira Bretas para um concurso instituído pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Bretas teria composto a biografia
inspirado na história de Quasímodo, personagem de O Corcunda de Notre Dame.
Gomes: O efeito Aleijadinho
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Assim como o personagem de Victor Hugo, Aleijadinho, como indica sua alcunha, tinha o corpo deformado6. Uma enfermidade atrofiou e semiparalisou seus
membros a partir dos 30 anos. Devido a isso, o escultor amarrava as ferramentas de
trabalho aos braços. Segundo Bretas (1984:14), a dor nos poucos dedos que sobraram foi ceifada com o próprio instrumento de trabalho de Aleijadinho: “colocava
convenientemente o formão sobre o dedo que tinha de cortar e ordenava a um de
seus escravos, que eram oficiais ou aprendizes de talha, que sobre ele desse uma forte
panca de macete”.
Guiomar de Grammont (2008) explorou ainda como a construção do mito
ganhou feições nacionalistas variadas. Segundo a autora, Bretas teria falado de um
pai branco para que o Quasímodo tropical fosse melhor aceito na época do segundo
reinado brasileiro, tornando-o mestiço. A figura do artista “mulato” – autor de obras
originais e não meras cópias de estilos europeus – é recuperada pelos modernistas
nos anos 1920, no seio do movimento que se propunha justamente a pensar o Brasil
mestiço. Nas palavras de Mario de Andrade, a obra de Aleijadinho “contém algumas
das constâncias mais íntimas, mais arraigadas e mais étnicas da psicologia nacional”
(Andrade 1965:34). Nos termos de Grammont (2008:33, grifo nosso): “Esta não é
a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e
outra. […] Aleijadinhos há muitos, não apenas nos museus e nas casas dos colecionadores,
mas também na morada de uma nacionalidade constituída de imaginários diversos ao
longo dos últimos dois séculos.”
Escavar as camadas de interpretações que recobrem a excepcionalidade do
artista escapa aos objetivos deste artigo. Sublinho, entretanto, a pertinência de observar a multiplicação de “Aleijadinhos” nos museus e nas casas dos colecionadores
aventada acima. É interessante perceber como o discurso totalizador característico
das grandes narrativas nacionais que institui o trabalho de Aleijadinho como a verdadeira encarnação da estética barroca brasileira acaba por fazer proliferar as obras
atreladas ao escultor.
Roger Bastide (1941:13) salientou o tom hagiográfico que permeia as narrativas sobre Aleijadinho: “assim como em torno do santo, flutua em torno do artista
uma auréola de legenda”. Para o autor, o “mito” sobre o escultor compõe um conjunto de representações coletivas em torno dos grandes mestres das artes no Ocidente
pautado no modelo do herói, do ser que “escapa à condição humana porque é um
mensageiro dos deuses”, perseguido pela “Fatalidade” (Bastide 1941:15).
Ao discutir o “efeito Van Gogh”, Natalie Heinich (1991) argumenta que a
glorificação do pintor holandês pode ser tomada como uma espécie de paradigma
do artista moderno, ao passo que se tornou normal a associação intrínseca entre
experiência de vida e criatividade do artista. Assim, a partir de Van Gogh, o reconhecimento de um conjunto de obras originais passa pelo engrandecimento de biografias
e vice-versa. Vidas fora do comum, como as dos santos, deixam de ser exceção no
domínio das artes (até então aplicável apenas aos grandes mestres, como na citação
Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(3): 90-112, 2018
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de Bastide). A autora sublinha que a utilização do termo legenda ou hagiografia não
é metafórico, pois a celebração biográfica do artista recupera as principais características das vidas dos santos, abarcando tópicos de dimensão sacrificial e heroísmo, por
exemplo.
Heinich não trata a trajetória mitificada de Van Gogh como mera ilusão ou
ideologia a ser denunciada em termos de deformação da realidade. A descrição da
diferença entre a imagem idealizada e a realidade vivida caberia à sociologia e sua conhecida aversão pela singularidade, pelos temas carregados de afetividade e pretensamente pré-construídos pelo senso comum. A antropologia, por sua vez, ficaria a cargo
da especificidade da admiração e de como suas dimensões incitam práticas sociais.
Diferentemente de desconstruir, trata-se de entender seu funcionamento ordinário e
como ele mobiliza tanto especialistas quanto outros envolvidos na admiração.
A partir desse referencial, o “efeito Aleijadinho” diz respeito em menor medida ao deslocamento para o domínio das biografias de artistas de formas de vida
consagradas como santificadoras; mas, sobretudo, e indo além dos textos, ao modo
como a canonização em questão envolve formas e particularidades autorais capazes
de nos colocar na presença de entidades e de especialistas reputados como hábeis
para identificá-las.
Dissecando o efeito
Em meu primeiro encontro com um colecionador e comerciante de arte, ouvi
que se eu quisesse explorar um “campo novo” relacionado a imagens de santos eu
precisaria me afastar da arte erudita e oficial produzida por Aleijadinho, consagrada
na História da Arte e conservada nos museus de arte sacra. A despeito dessa colocação e de o colecionador em questão, chamado Antônio Marques, afirmar não ter
peças “representativas” do período barroco, não raro a obra de Aleijadinho foi citada
como parâmetro, seja pela sua talha “inconfundível”, seja pelo posto de destaque sem
igual no rol de artistas que deram corpo a imagens sagradas no Brasil. Trago a lume
um significativo extrato de nossa conversa:
Então isso é um campo que eu acho que já foi muito estudado, não sei
se vale a pena você ir por aí, por que como é que você vai fazer uma tese
hoje sobre Aleijadinho? É possível fazer? É, mas já tem tanta tese sobre
o Aleijadinho que se você quer explorar um campo novo… a não ser que
você pegue uma imagem dele, duas, três e vá dissecar até a alma da estátua.
Talvez seria até interessante, mas já têm estudos (entrevista com Antônio Marques, 15/02/2012).
A imagem da dissecação de uma obra até sua alma não parece metafórica
nos laboratórios do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis
Gomes: O efeito Aleijadinho
95
(CECOR), vinculado à Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG). O processo de restauração busca devolver a estabilidade física e
estética dos santos. Para tanto, as imagens passam por processos de desinfestação,
limpeza, remoção de repinturas e reintegração de camadas, que podem demandar o
esquadrinhamento das peças por meio de exames de prospecção estratigráfica, raio-x,
tomografia, endoscopia, etc.
Conversei a respeito desse trabalho com Beatriz Coelho, uma das idealizadoras
do CECOR. A restauradora-autora de obras de referência sobre escultura devocional
é, atualmente, presidente do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (CEIB)7,
fundado por ela juntamente com a historiadora da arte Myriam Ribeiro de Oliveira,
que se notabilizou como especialista em barroco e na obra de Aleijadinho. De acordo com Beatriz8, a figura do escultor é tão paradigmática que “embaça” o estudo de
outros bons artistas eruditos: “Tudo que é bom se pensa que é do Aleijadinho, mas
tivemos outros, que não foram tão gênios quanto ele, mas existiram, e o CEIB existe
justamente para mostrar que há outros com trabalho de alta qualidade. Não são populares, são eruditos desconhecidos”. Resumindo uma longa discussão para começar
a tateá-la, nas palavras de Beatriz, dizer que um artista é erudito significa “Que ele
produziu de acordo com o estilo e as técnicas de um período”.
A “dissecação” de um santo, nesse sentido, busca revelar técnicas construtivas,
possível local de origem da fatura e o período cronológico de produção. A operação
tem o potencial de trazer à tona dados e informações que ajudam a atribuir a autores
obras não documentadas. Os autores das imagens são desconhecidos porque não eram
vistos como artistas quando produziram os objetos que nos interessam, tampouco as
peças que lavravam eram assinadas como obras de arte.
Os santos eram feitos por meio do trabalho de pessoas atentas a necessidades
devocionais que passavam ao largo dos conceitos modernos de autoria, de estilo e de
originalidade. A construção de vínculos das imagens com essas noções passou a ser
feita posteriormente, quando começam a ser atribuídas a autorias específicas. Um
dos caminhos para tanto é o cruzamento de suas características físicas com contratos,
recibos, livros de tombo ou outras formas de documentação das irmandades, ordens
terceiras e das igrejas que encomendaram as peças no passado.
Na falta dessas “comprovações”, as imagens são relacionadas a autores por
meio da identificação de um estilo, das marcas pessoais que o artista imprimiu nas
peças e que acabam por funcionar como sua assinatura. Nesse processo, o artista
pode sair do anonimato sem que necessariamente tenha se descoberto seu nome
próprio. A alcunha, em muitos desses casos, relaciona-se diretamente ao local onde
as imagens presumivelmente feitas pela mesma pessoa – devido ao fato de reunirem
um certo número de características peculiares – são encontradas.
É o caso de Mestre Piranga que, como ressaltam muitos profissionais, deveria
ser chamado de Mestre de Piranga, assim como se passa com o Mestre de Barão de
Cocais e com o Mestre de Jacuí. A inclusão da partícula “de”, nessa direção, deixaria
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nítido que Piranga não designa uma pessoa e sim a localidade no entorno da qual
o artista teria atuado mais significativamente. Outra forma comum de nominação
é inspirada pelas marcas impressivas que mais se destacam nas séries de imagens.
A partir dessa lógica, o colecionador José Alberto Nemer (2008) nos apresenta os
artistas “Mestre do Cabelo Longo”, “Mestre do Leque”, “Mestre do Estilo Delicado”,
“Mestre da Cara Larga”, “Mestre da Cara Simples” e outros.
Os nomes dos artistas são então produzidos pela associação dos traços formais
de suas imagens ou da ligação com espaços regionais de produção. Tem-se, então, um
princípio de identificação que ultrapassa a singularidade de cada obra para alcançar
a particularidade do conjunto do trabalho de um artista. Este, quando identificado,
passa a se fazer presente nas imagens que, nesse sentido, envolvem mais que a evocação de uma divindade do panteão católico.
Nesses termos, “um São Jorge” passa a ser “um São Jorge do artista tal”. Em
linhas gerais, isso quer dizer que uma imagem específica foi atrelada a um repertório
autoral mais amplo, no qual se verifica a recorrência de certas características. No
caso de uma peça feita por aquele que é considerado o maior artista colonial brasileiro, um São Jorge pode ser chamado “simplesmente” de “um Aleijadinho”9.
Se visto de relance, esse modo de tratamento parece não incidir na singularização da imagem, pois reduz a quantidade de informações sobre ela. Nesse contexto,
entretanto, não dizer o nome do santo visa endossar uma autoria excepcional. Vejamos que a singularização, por conseguinte, se pauta em uma forma de personalização
específica. Quem olha para um santo e percebe “um Aleijadinho” destaca que o artista imprimiu na imagem não só os elementos iconográficos que concorrem para dar
a ver uma invocação específica, mas principalmente um conjunto de características
formais que nos colocam na presença de seu trabalho notável:
[…] panejamentos angulosos, esculpidos em largos planos cortados por
arestas vivas, os cabelos e barbas com deliberado efeito ornamental, os
olhos amendoados com acentuação dos lacrimais, as sobrancelhas altas
e ligadas visualmente ao nariz, os lábios de desenho sinuoso, os bigodes
em linha contínua com o septo nasal, a articulação em V do pescoço e
estrutura robusta dos corpos, com musculatura e veias evidentes (Oliveira 2002:24).
A especialista que elencou esses traços como típicos do estilo pessoal de Aleijadinho arrolou ainda outros – “o canon baixo das esculturas, a implantação paralela
do polegar e os pés dispostos em ângulo reto” (Oliveira 2002:23) – como pertencentes a um repertório mais geral de gosto e estilo de época, que, apesar disso, rotineiramente é associado apenas ao famoso escultor. Além disso, certas especificidades
– “como a barba bipartida deixando a parte central do queixo aparente, as barbas
frisadas em rolos, as mechas em vírgula na testa, os malares salientes […]” (Oliveira
Gomes: O efeito Aleijadinho
97
2002:24) – a despeito de se referirem, sobretudo, aos personagens de uma obra específica do escultor, os Passos da Paixão, são procuradas a todo custo em imagens que
não fazem parte desse conjunto.
Vulgarmente, para um São Jorge ser “um Aleijadinho”, portanto, não basta
possuir lança, armadura de soldado, etc., é preciso também conter a presença dos
elementos diacríticos mencionados acima. Muitos deles se relacionam, entretanto, a
imagens, como as dos Passos, feitas para atuarem em uma localização bastante específica. O conjunto dos Passos integra o adro da igreja para o qual foi esculpido entre
1800 e 1805, a Matriz de Matosinhos da cidade de Congonhas/MG. Essa integração
é fundamental para compreender a gestualidade das imagens, exacerbada, feita para
ser vista à distância e “incompreensível” se desligada do seu contexto. Não há comunicação direta com o observador: as relações se fazem entre os próprios personagens
do grupo, subordinados à ação dramática da cena representada, a martirização de
Cristo, comumente chamada de “Paixão”.
O santuário que abriga o conjunto em questão, considerado a obra-prima de
Aleijadinho, foi tombado pelo então recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) em 1938 e declarado Patrimônio da
Humanidade pela Unesco em 1985. Como observou Márcia Chuva (2009), o rosto
de um dos profetas de Congonhas compunha a logomarca do SPHAN nos anos 1940
e podia ser encontrado impresso no papel oficial utilizado pelo órgão, o que ressalta a proeminência da produção mineira colonial e, em especial, das produções de
Aleijadinho como espécie de totem do patrimônio nacional. É válido lembrar que o
primeiro presidente do SPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, era bisneto de
Rodrigo José Bretas, o primeiro biógrafo de Aleijadinho (Aguiar 2016).
As características das imagens do conjunto dos Passos frequentemente são generalizadas para todo o conjunto de obras de Aleijadinho, como se fossem detectáveis em qualquer peça do escultor, inclusive em imagens feitas para outras finalidades
e contextos. Primeiramente, é preciso considerar a especificidade da localização dos
Passos, da cena ali representada e também por que tais obras são representativas,
ainda de acordo com Oliveira (2002), da fase mais madura da trajetória do artista,
caracterizada por uma maior estilização em contraposição ao naturalismo de quando
estava formando seu próprio estilo10.
A partir de comparação com os problemas de autoria colocados por obras literárias, Guiomar de Grammont (2008) critica o estabelecimento de convenções nas
Artes Plásticas que levam à anacrônica construção de uma individualidade autoral.
A autora discute ainda como as características do que seria o estilo Aleijadinho acabam por dificultar o trabalho das próprias pessoas que as alçaram ao caráter de “padrão”. Grammont cita o exemplo de Germain Bazin, historiador da arte e ex-curador
do Museu do Louvre que visitou igrejas brasileiras a convite de Rodrigo Melo Franco
de Andrade. Bazin foi um dos primeiros especialistas a estabelecer alguns dos parâmetros que se tornaram praticamente cânones para o reconhecimento das imagens
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do artista. Ao defrontar-se com uma imagem de Cristo Flagelado que inicialmente
havia atribuído ao escultor, hesitou por encontrar na peça a falta do furo no queixo
e barba sem a famosa repartição que seria característica de qualquer “Aleijadinho”.
Os chamados estilemas autorais não se faziam presentes na imagem, mas o autor sim.
Afinal, como uma peça tão extraordinária não seria obra da persona artística mais
extraordinária de que se tinha notícia em termos de esculturas de santos coloniais?
À luz dessas questões, Grammont argumenta que a construção da singularidade de Aleijadinho foi feita à custa de “um efeito de uniformização e empobrecimento
do fundo, ou seja, dos outros artífices que viviam no período” (Grammont 2008:208).
Esse efeito impede que o trabalho de outros artífices venha a lume e esfumaça o horizonte de possibilidades das obras do próprio escultor celebrado, pois tem como guia
mental uma obra-padrão que diz respeito à produção estereotipada de um artífice e
ao modo como certos lugares comuns sobre essa produção se constituíram como um
dos alicerces da edificação do mito Aleijadinho.
A problematização da atribuição de autoria como empreitada anacrônica, uma
vez que envolve noções – como as de artista e originalidade – estranhas aos sujeitos
históricos envolvidos na produção de imagens, não deixa de ser válida, mas não recobre todas as questões suscitadas pela personalização e atual circulação de imagens
de santos enquanto obras de arte. Como me disse Beatriz Coelho, a restauradora com
quem dialogo no início desta sessão: “Todo mundo quer ter um Aleijadinho. Porque
se for um museu, o museu cresce, o acervo do museu fica melhor. Se for um comerciante, algo que vale dez, se for do Aleijadinho vale cem. Ele teria que ter vivido três
vidas para produzir tudo que dizem que é dele.”
A pretensa vastidão da obra do artista (e aqui não o chamar de artífice é uma
forma de me aproximar dos meus principais interlocutores em campo) coloca em
relevo uma série de aspectos. As imagens que fogem da tipologia esperada para uma
peça do escultor contrariam especialistas ao passo que revelam outros. Exemplo ilustrativo é o do colecionador Renato Whitaker, que foi processado por ter afirmado que
um Cristo de Aleijadinho pertencente a outro colecionador seria “ruim e bixiguento”11. A apreciação negativa foi feita por ocasião da exposição na mostra “Brasil Barroco – entre o céu e a terra”, apresentada no Petit Palais de Paris em 1999. De acordo
com o proprietário da imagem, o comentário fez um potencial comprador desistir da
aquisição da obra, apesar do Cristo em questão ter sido atribuído a Aleijadinho, no
passado, por Germain Bazin.
O próprio colecionador, autor do diagnóstico fatal para a comercialização da
peça, teve a autoria de vários Aleijadinhos de sua coleção contestada por especialistas na publicação O Aleijadinho e sua oficina - Catálogo das Esculturas Devocionais.
Nesta obra, Myriam Ribeiro de Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Batista dos Santos (2002), profissionais de longa atuação no IPHAN e
reputados como grandes conhecedores da obra de Aleijadinho, afirmam que a maioria das peças atribuídas ao artista teriam sido feitas, na verdade, por seus aprendizes e
Gomes: O efeito Aleijadinho
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auxiliares, tendo em vista que a confecção das imagens era realizada em oficinas que
congregava artífices com diferentes ocupações e níveis de habilidades. O livro chegou
a ser recolhido pela justiça a pedido de Whitaker, que alegou não ter autorizado o uso
de fotografias de cinco obras da sua coleção e que, ainda assim, a editora as utilizou.
Apesar de o colecionador negar que sua motivação tenha sido o fato de o estudo
desqualificar as atribuições de obras de sua propriedade, uma delas inclusive feita por
Rodrigo Mello Franco de Andrade, a ação nitidamente soou como cerceamento ao
trabalho dos autores12.
Nessa perspectiva, o objetivo da apreensão foi barrar a circulação da argumentação de que um conjunto de peças relacionadas a Aleijadinho – posto que apresenta
as características da obra do escultor e em função de seu nome constar em recibos –
provavelmente foi uma criação de várias pessoas sob graus variados de sua influência.
Desse modo, o catálogo apresenta peças de “Aleijadinho”, de “Aleijadinho e oficina”
e da “oficina do Aleijadinho” (Oliveira, Santos Filho e Santos 2002).
Essa classificação e a periodização da obra do artista remetem tanto a elementos
objetivos, mensuráveis e comparáveis, tais como o cabelo, os olhos e as narinas características e relativas ao aprimoramento paulatino do trabalho do “mestre”; quanto
à “força da obra aleijadiana” e às “peças de grande presença e força”. Execuções “canhestras”, “sem o apuro do mestre”, “sem o vigor e força inerentes à obra aleijadiana”,
que “não impressionam o espectador”, “inexpressivas” e com “marcas de imperícia” são
relegadas aos auxiliares do artista, confirmando sua genialidade “indiscutível”.
Vejamos um extrato da descrição de uma imagem (um Busto de Santo Franciscano):
A figura apresenta características formais da obra do Aleijadinho, como
o tratamento dos cabelos, a conformação óssea do rosto muito saliente,
o desenho das sobrancelhas, os olhos, o nariz, a boca e os lábios recortados, assim como os bigodes saindo das narinas, as barbas contornando
o maxilar inferior e as rugas na fronte. Apesar dessas características, não
tem a força da obra do mestre. O desenho um tanto canhestro das nuvens
da base do busto, os concheados regulares e miúdos na parte inferior, e
a expressão apática da figura fazem com que seja atribuída à oficina do
Aleijadinho (Oliveira, Santos Filho e Santos 2002:288, grifo nosso).
A referência à “força” também pode ser encontrada em outro documento
(Coelho, Quites e Queiroz 2003) no qual analistas explanam os caminhos que justificam sua conclusão pela “confirmação de atribuição” de autoria a Aleijadinho:
As características formais e estilísticas, tanto da anatomia, quanto da
indumentária, correspondem às conhecidas como do Aleijadinho. […]
Encontramos, entretanto, um detalhe diferente: antes da restauração, a
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100
barba contornava o rosto, sem nenhuma separação, não terminando em
duas espirais separadas, como em outros rostos masculinos do Aleijadinho. Durante a restauração foi verificado que a barba era unida por um
acréscimo feito em gesso pintado. Essa peça foi retirada, tendo ficado o
rosto do Cristo com todas as características do mestre Aleijadinho.
Mas o que mais impressiona a quem estuda a Nossa Senhora da Piedade de
Felixlândia é a força de expressão que emana dessa escultura, o que nenhum
discípulo ou falsificador seria capaz de conseguir (Coelho, Quites e Queiroz
2003:46-47, grifo nosso).
O trecho acima foi retirado de uma publicação produzida no âmbito do CEIB,
laboratório mencionado no início desse tópico como lócus de esquadrinhamento de imagens por meio de procedimentos técnicos diversos. Nota-se, entretanto, que a presença
do artista-entidade se sobrepõe à visão de seu trabalho detectada em imagens obtidas a
partir de raio-x, tomografia ou da lente de um microscópio. Ela “emana” da obra.
Como visto, ao simular as condições de execução da peça e entrever sua lógica
de construção plástica, o especialista pode especular sobre a complementaridade da
matéria e das técnicas empregadas, e, ao mesmo tempo, termina por ratificar que a
imagem é um feito fora do comum, que discípulo ou falsificador nenhum seria capaz
de copiar. A identificação traveste-se, nesses termos, do caráter de quase comunhão
com a força transcendente de um gênio artístico. A captura dessa força constrói
ainda a excepcionalidade de quem pode percebê-la. A atividade de identificação de
autoria é, nesse sentido, também uma experiência visionária em que o observador de
uma imagem não é um espectador passivo de algo inerte.
“Ter olho”
A despeito de todo o aparato tecnológico envolvido atualmente na confirmação da atribuição de uma obra, ouvi reiteradas vezes em campo que a palavra final é a
de quem sabidamente “tem olho”. Esse olho que nem todo mundo tem é tratado por
muitos apreciadores como “olho bom”, capaz de ver mais, aptidão marcada por aspectos não intelectivos, como intuição e sensibilidade. Nesse sentido, a avaliação de uma
imagem de santo como “ruim e bixiguento” pode soar como imprecação de colecionador invejoso, mas também como alerta de quem tem um conhecimento específico
de causa. O olho bom é tanto acionado quanto visto com desconfiança pelos próprios
colecionadores, posto que enxergaria além em causa própria, atribuindo peças de
suas próprias coleções particulares a grandes artistas. Nesses casos, o olho bom não
passaria, portanto, de “olho grande”, que quem tem, obviamente, é sempre o outro.
Por isso mesmo, de modo geral, o ponto de vista de historiadores da arte, restauradores e outros profissionais do campo do patrimônio cultural baseia-se em um
olho adjetivado de uma maneira que gera menos suspeita. Ao invés do olho sagaz
Gomes: O efeito Aleijadinho
101
que uma pessoa é afortunada por ter, é aquele que pode vir a sê-lo: o “olho treinado”.
Trata-se do olho que foi exercitado, que se tornou apto a ver, ou seja, é o olho da experiência, que recorre a um estoque de imagens mentais construído ao longo de anos.
O exercício da inteligência do olhar, nessa perspectiva, requer longa frequentação
das obras e sua observação arguta em diferentes níveis: visão global; impressão do
conjunto; exame dos detalhes; das técnicas e dos materiais empregados; do contexto
sócio-histórico de fabricação, de uso e de comercialização das peças, etc.
O olho bom, mais do que exercitado, é o olho de alguém com capacidade
acentuada de discriminar estímulos sensoriais. O elogio dessa acuidade é propalado
e faz parte do ethos dos colecionadores, mas é pertinente explorar que tal capacidade
não é acionada textualmente sem maiores constrangimentos pelos profissionais do
campo do patrimônio mencionados acima. Como me disse um historiador da arte,
“um especialista na obra de Aleijadinho nunca vai colocar isso em um laudo, mas,
para nós, fala coisas do tipo: é obra dele porque eu sinto isso”.
Se a força criativa do artista sobre-humano arrebata, mensurá-la é uma habilidade
que envolve alguma iluminação, uma sorte de esclarecimento sobre a fascinação. Assim,
podemos concluir que quando especialistas – sejam eles colecionadores, historiadores
da arte, sejam restauradores – reconhecem o artista na imagem de santo, generalizam
a noção romântica do artista como individualidade criadora expressiva e, além disso,
incutem sua lavra pessoal na obra, pois seus olhos enxergam parte da aura da obra que
se apresenta difusa para outras miradas. A imagem configura-se assim como artefato
hermético que deve ser decifrado por um olhar particular, vocacionado e hábil.
A noção de “olho da época” do historiador da arte Michael Baxandall (1991)
relaciona a leitura do significado cultural das imagens com a especificidade de certas
formas. Desse modo, o caráter de convenção destas não é tratado como sintoma ou
reflexo estático da sociedade. A visualidade imiscui-se na teia cultural de modo a
também configurá-la. O que enxergamos, portanto, age sobre nossa percepção de
mundo, não sendo apenas um mero produto dela13.
De acordo com Carlo Ginzburg (1989), o reconhecimento da autoria de uma
obra de arte inscreve-se em um modelo cognitivo que possui diversas manifestações e
remonta a modos de saber muito antigos. O autor aborda desde sua forma venatória,
passando pela medicina hipocrática, pela filologia, pela invenção da impressão digital,
até sua configuração oitocentista. O modelo cognitivo em questão não é evolutivo ou
dicotômico. Ao descrevê-lo, Ginzburg não opõe religião/magia e ciência, tampouco
objetividade e subjetividade. Segundo o historiador, o método “emergiu no final do
século XIX – mais precisamente, na década de 1870-80 – e começou a se firmar nas ciências humanas como um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica. Mas
as suas raízes eram muito antigas” (Ginzburg 1989:151). E, conforme argumenta, são
[…] formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que […]
suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém apren-
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de o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em
prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento, entram em
jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição (Ginzburg 1989:179).
A ideia de connoisseurship, um conhecimento de alto nível adquirido por conhecedores de arte que, dentre outras astúcias, distinguem originais das cópias, funda-se nos “fulminantes diagnósticos” de médicos que, com rápidos olhares, detectam a doença. Nesse quadro de referência, o olho do conhecedor é olho clínico que
enxerga na realidade opaca “zonas privilegiadas”, acessadas por meio da atenção a
certos sinais. As pistas a serem seguidas, no caso de Sigmund Freud, são sintomas;
no caso de Sherlock Holmes, indícios; e signos pictóricos no caso do crítico de arte
italiano Giovanni Morelli. A trama de saberes indiciários é deslindada por Ginzburg
(1989:151) através de suas raízes na semiótica médica: “Freud era um médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico.”
Foi seguindo pistas infinitesimais que Morelli identificou os verdadeiros autores
de quadros que tinham sido atribuídos a autores errados e outros tantos falsificados.
Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros… Pelo contrário, é necessário examinar
os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as
unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Dessa maneira, Morelli
descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de orelha própria de
Botticelli, a de Cosme Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas cópias (Ginzburg 1989:144).
Um catálogo de formato de orelhas, nesse sentido, pode ser mais precioso para
captar a realidade mais profunda do conjunto da obra de um autor do que suas marcas impressivas mais evidentes. A atenção aos “vícios” e “cacoetes” dos artistas desmistificava falsários e corrigia atribuições errôneas, porque os pormenores em questão
eram negligenciados, mas… E quando a obra de um artista já foi tão estudada que até
o formato que ele dava às unhas das estátuas que esculpia é conhecido?
Nesse caso, pode-se pensar no esquadrinhamento de autoria como uma fonte de
informação que tanto facilita a revelação de golpes, quanto promove a possibilidade de
reproduções fiéis à integridade do conjunto de características particulares de um autor.
Contudo, como já foi exposto, conhecer a fórmula não é necessariamente saber fazer. Se
a obra é considerada um feito extraordinário, para simulá-la com precisão é preciso mais
do que expertise. O manipulador precisa também ser um pouco mágico e conseguir se
comunicar com um gênio artístico difícil de ser alcançado por qualquer um.
Gomes: O efeito Aleijadinho
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Ter olho para certas astúcias técnicas não significa ser capaz de produzir como
gênios artísticos. É nessa decalagem, segundo Gell (2005), que reside o “encanto da
tecnologia”. Quando os espectadores de uma obra se indagam sobre os procedimentos empregados para produção de efeito (de vida, movimento, etc.) e, mesmo assim,
não conseguem reconstruí-la mentalmente, o artista alcançou um ideal mágico. A
maestria reside, assim, na habilidade de produzir imagens que maravilham a ponto de
personificarem os processos técnicos que lhe dão forma, dispensando a necessidade
de explicação sobre eles e certos tipos de perícia.
Técnicas, falsificações e atestados
O fato de especialistas concluírem que a “força de expressão” da escultura de
Aleijadinho não poderia ser conseguida por um discípulo do artista ou falsificador
nos aproxima da problemática da autoria não só das obras em tese produzidas
na oficina do artista, ou seja, aquelas concebidas pelo escultor, porém realizadas
fisicamente por auxiliares diretos, mas também daquelas relacionadas ao seu
trabalho por meio de fraude. Se, como já foi mencionado, “todo mundo quer ter um
Aleijadinho” e as peças realizadas pelo artista são altamente valiosas14, é presumível
que a grande demanda por essas mercadorias caras tenha estimulado a produção
de Aleijadinhos.
É sabido que catálogos sobre a obra de Aleijadinho são inflados por peças relacionadas a ele e que não resistem a um exame mais minucioso de pessoas reputadas
como especialistas, mas também ouvi em campo que algumas imagens, entretanto,
quase mereceriam a atribuição, de tão bem artificiosamente fabricadas. Nessa direção, um restaurador já falecido e cuja astúcia é considerada incomparável por colecionadores, comerciantes de arte e profissionais do patrimônio era conhecido como
“Aleijadinho do Mal”. A alcunha torna explícita a relação entre poder da técnica
e fabricação de malefício. Ao modificar imagens de modo a torná-las identificáveis
como Aleijadinhos, o restaurador em questão tinha o poder não só de incutir os
“cacoetes” já inventariados do escultor colonial nas obras, mas também a “força”
característica do artista emulado.
De acordo com Bruno Latour (2008), a identificação da mão humana na construção de objetos é tabu, porque dessacraliza a imagem e anula a transcendência
característica das divindades. Por isso, os ícones acheiropoiète, aqueles não feitos pela
mão do homem – faces de Cristo, retratos da Virgem, o véu de Verônica –, são celebrados e cultuados como verdadeiras imagens divinas, produzidas sem a intermediação humana. Se pensarmos a essência da imagem brasileira a partir do que caracterizei como efeito Aleijadinho, temos obras que foram produzidas por mãos estropiadas
e, (também) por isso, sobre-humanas. Sendo assim, a licença para a realização de
manipulações em Aleijadinhos pode ser concedida se o produto final homenagear e
enaltecer a autoria em questão (ao invés de tentar se passar por ela).
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São muitos os artistas que produzem santos como “o mestre”, mas deixam claro que o trabalho é uma “inspiração” e não uma fraude deliberada, tanto que assinam
suas obras. Em 2014, o escultor Elias Layon requisitou a autoria de duas imagens
que constavam em um “Catálogo Geral da Obra” de Aleijadinho. O artista inclusive
apontou que as peças originais nas quais teria se inspirado também constavam na publicação. Quem realizou as adulterações para criar a ilusão de tempo transcorrido se
valeu de recursos tais como a raspagem da assinatura do artista da base das imagens;
alteração da policromia; a amputação de um braço e a introdução de um olho de
vidro no globo ocular de uma delas (Bortoloti 2014).
O autor do referido catálogo geral, Márcio Jardim, já expediu “laudos de autenticidade” que ratificam a autoria de Aleijadinho a um número bem maior de obras
em relação às atribuídas ao escultor por outros especialistas. À denúncia de Layon,
somou-se a de Márcio Bernardes, que identificou uma peça de sua autoria arrolada
como obra do artista colonial em um catálogo de uma exposição realizada na Caixa
Cultural de Brasília. Myriam Oliveira chegou a afirmar que tal exposição não contava
com nenhuma obra de Aleijadinho.
A questão é que a participação na mostra e, consequentemente, em catálogos
e outras formas de divulgação não deixa de ser uma instância (de consagração, diria
Bourdieu) que ratifica a autoria controversa. Nos casos em que a dúvida sobre a autoria e a procedência das obras ganha a esfera judicial, com frequência, o Estado recorre
a centros de pesquisa e seus arsenais para análise de pigmentos e de suportes, datação
isotópica e outras ferramentas que podem auxiliar no consenso sobre a “idade” do
material utilizado em uma obra. Contudo, a “paternidade” do trabalho escultórico
permanece como empreitada de especialistas que decifram traços expressivos particulares. Afinal, como aponta Latour (2008:139-140, grifo nosso):
A cascata de imagens é ainda mais impressionante quando se olha para
a série reunida sob o rótulo de ciência. Uma imagem científica isolada
não tem significado algum, não prova coisa alguma, não diz nada, não
mostra nada, não tem referente. Por quê? Por que uma imagem científica,
até mais do que uma imagem religiosa cristã, é um conjunto de instruções
para alcançar outra mais além. Uma tabela de números leva a um gráfico
que leva a uma fotografia que irá levar a um diagrama que irá levar a
um parágrafo que irá levar a uma afirmação. A série como um todo tem
um significado, mas nenhum de seus elementos tem qualquer sentido.
A ideia de “cascata de imagens” é interessante para perceber como a tentativa
de enxugar o número de obras atribuído a Aleijadinho acaba por pluralizar Aleijadinhos por catálogos, processos, exames, reportagens, laudos, pareceres, etc. Não cabe
aqui explorar as complexas redes sociotécnicas em que se imiscuem as aventadas
controvérsias. As contendas entre historiadores da arte, técnicos do patrimônio, an-
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tiquários, restauradores e colecionadores tornam evidente que a obra do artista em
questão não contém apenas elementos “inconfundíveis”. A alegada excepcionalidade
de formas precisa ser validada em laboratórios de físico-química, ultrassonografia,
etc., comprovada por documentação histórica, chancelada por especialistas e, muitas
vezes, ratificada em tribunais.
Os episódios de escultores que reivindicaram obras catalogadas como Aleijadinhos narrados acima motivaram a formação de uma comissão do IPHAN e do
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) com vistas à elaboração de uma lista oficial
– uma espécie de catálogo raisonné15 – do que teria sido de fato esculpido por Aleijadinho. A comissão, formada em 2014 por “voluntários”, conta com a consultoria
da historiadora Myriam Ribeiro, o restaurador Antônio Fernandes, ambos já citados
anteriormente, e ainda com a técnica Lucienne Elias e o promotor Marcos Paulo de
Miranda para assessoria jurídica. Lucienne estudou as obras de Aleijadinho tanto no
mestrado quanto no doutorado em Artes recém-concluído na UFMG, além de ter
atuado em projetos de restauração delas em Congonhas. Marcos Paulo de Miranda é
coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico
do Ministério Público de Minas Gerais e conhecido por ações em torno da restituição de bens culturais mineiros que foram deslocados de seus locais de origem. Nessa
“missão quase obsessiva [visando] a recuperação de imagens que sumiram de igrejas
barrocas” (Martí 2014:não paginado), uma das complicadas tarefas do promotor é
comprovar a autoria e também a proveniência mineira das peças consideradas patrimônio nacional.
A dificuldade de se encontrar um árbitro neutro entre os especialistas para
compor uma listagem arrazoada de obras de um autor explica a complexidade envolvida na empreitada do Estado quando ele toma para si a palavra final que estabelece
o que é ou não é um Aleijadinho.
Quem atesta a validade do atestado? Aquele que assinou o título que
licencia para atestar. Mas quem deu licença a este? Somos levados a
uma regressão ao infinito, ao final da qual “é preciso parar” e podemos,
como os teólogos, escolher atribuir o nome de Estado ao último (ou ao
primeiro) anel da longa cadeia dos atos oficiais de consagração. […]
Ao enunciar, com autoridade, que um ser, coisa ou pessoa, existe em
verdade (veredicto) em sua definição social legítima, isto é, é o que
está autorizado a ser, o que tem direito a ser, o ser social que ele tem o
direito de reivindicar, de professar, de exercer (por oposição ao exercício
ilegal), o Estado exerce um verdadeiro poder criador, quase divino (Bourdieu
1996:113-114, grifo nosso).
Se pensarmos a burocracia patrimonial em termos weberianos, podemos afirmar que a comissão de especialistas formada com vistas à catalogação “oficial” da
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obra de Aleijadinho conta com profissionais que tiveram seu carisma rotinizado. Não
é pautada, portanto, no fervor da devoção, mas não deixa de se valer do resfriamento
dela, pois recorre à expertise de pessoas dotadas de um olho agraciado. O caráter racional, abstrato e impessoal da justiça e da administração conjuga-se à pessoalidade
específica de profissionais que, mais do que atuar como peritos autênticos, podem
fazer revelações, pois possuem um dom não acessível a todos.
Segundo Natalie Heinich (1991), não é a ausência de qualidade artística que
coloca o falso em descrédito, mas a falta de autenticidade. Por isso, a questão dos
falsos é por excelência reveladora da presença de pessoas por meio de objetos e da
conexão entre disposições de domínios religiosos e o mundo artístico. Não se trata de
dizer que o amor pela arte é ilusão que mistifica sua natureza religiosa. Na opinião da
autora, é preciso cuidado para não “jogar fora o bebê da veneração junto com a água
do banho da religião” (Heinich 1991:221, tradução nossa). Cumpre, portanto, compreender quais são as afinidades entre os domínios artístico e religioso, suas formas
particulares – institucionais ou não – de consagração, veneração, etc.
A categoria de autenticidade traz em seu bojo a de falsificação (Heinich 2010).
Essas categorias são operativas não só no campo da arte, mas também se estendem
a outros seres e representam valiosos indicadores dos domínios de atividade em que
aparecem. Um grupo de coisas, obras de arte ou pessoas autênticas necessariamente
tem como correspondente um de falsas. Assim, só existe autenticidade se há procedimentos de autenticação, e só pode haver falsificação se um suposto autor goza de
status valorizado e singularizado em um tempo.
A análise dos procedimentos de autenticação nos permite detectar nas obras
de arte modos de operatividade próprios das relíquias, objetos sagrados que contêm
partes dos corpos dos santos ou de coisas que estiveram em contato com eles (as chamadas relíquias de contato), tidos como formas de presença das próprias divindades.
Por seu caráter singular, as relíquias circulavam como mercadorias de prestígio, ou
seja, eram extremamente valorizadas e muito frequentemente roubadas. As relíquias
obtidas por meio de roubo ou furto eram consideradas como mais poderosas em relação àquelas ganhadas ou compradas, pois se entendia que o próprio santo havia
autorizado a subtração bem-sucedida. Na lógica do Furta Sacra, as coisas difíceis de
encontrar, mas que se deixam apanhar, são aquelas que de alguma forma entraram em
comunicação com os autores da façanha e não ofereceram resistência, atribuindo-se
poder ao próprio objeto e ao modo de obtê-lo (Geary 1990, 2008). É, portanto, o
funcionamento do objeto em relação a certas pessoas que ratifica sua autenticidade.
A magia da expertise
Meu objetivo ao pensar o efeito Aleijadinho não foi reiterar o esforço de colocar em evidência o fato de o artista ter trabalhado sobre pouquíssimas imagens dentre
o grande número que é atribuído à sua mão maculada. Atentei-me às consequências
Gomes: O efeito Aleijadinho
107
da admiração que torna sua obra uma espécie de essência presente nas imagens brasileiras. O escultor “participa” dos corpos dos santos ao modo teorizado por Lucien
Lévy-Bruhl (2002 [1938-1939]), ou seja, de acordo com princípios de simultaneidade
e consubstancialidade entre seres e coisas. Essa possibilidade de associação é importante para não excluir o entendimento da natureza de elementos aparentemente
opostos.
Tal caminho analítico leva ao domínio da magia, no qual os seres, no presente
caso, obra(s) e artista, não se distinguem substantivamente entre si. Imagino que o
enveredamento por essa seara não seja uma surpresa para o leitor, uma vez que abordei objetos que têm a “força de expressão” característica de um artista como fator
constituinte de sua excepcionalidade enquanto obra de arte.
A percepção da “força de expressão” em questão dota também as pessoas de
capacidades excepcionais. Podemos aproximar as características da visão do apreciador com o poder do olhar do mágico de que falam Mauss e Hubert (2003). Os autores
lembram que as pessoas com inteligência considerada anormal são especialmente
propensas a serem vistas como mágicas e, em geral, têm um “olhar vivo, nervoso,
pisco e falso” (Mauss e Hubert 2003:64). Estes olhos diferenciados concretizam sentimentos abstratos e enxergam além e, por serem particulares, podem evitar o infortúnio (como a compra de uma peça falsa ou a atribuição de autoria equivocada).
Em vista do exposto, sublinho a rentabilidade de pensar não apenas os empréstimos da arte ao repertório da religião, mas lembrar como este abarca práticas
estudadas pela ótica da magia. Como afirmaram Mauss e Hubert (2003), no imaginário que a humanidade formou sobre a magia, as ações tendem para o malefício, são
feitas às escondidas e são potentes na geração de efeitos físicos negativos. Os autores
ressaltam, entretanto, que é preciso relativizar a distinção entre as práticas mágicas
e religiosas, uma vez que a diferenciação entre elas tem fundo mais teológico do que
socioantropológico.
Nesse sentido, destaco que a magia é potente para iluminar não apenas a reflexão sobre a criação artística, mas também a análise a respeito dos processos de
identificação e atribuição de autoria. Pensar a dimensão mágica destes não significa
tomá-los como falsos ou enganosos, e sim como constitutivos de ações sociais complexas que relacionam entidades e pessoas aptas a vê-las. Afinal, a hagiografização
da biografia de Aleijadinho pode até ter tornado vulgar sua legenda de sofrimentos
físicos, mas as centelhas que dão notícia da presença do artista em certas obras não
são autoevidentes, e a visão delas é requerida enquanto competência de especialistas.
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em: http://istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847. Acesso
em: 12/2016.
MARTÍ, Silas. (2014), “Ministério Público move ações para devolver peças de Aleijadinho a MG”. Folha
de São Paulo, 13 out. 2014. Disponível em https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/10/1531426-ministerio-publico-move-acoes-para-devolver-pecas-de-aleijadinho-a-mg.shtml. Acesso em: 12/2016.
Site consultado
COLI, Jorge. (2018), “Os falsos Aleijadinhos do MASP”. Amável Leitor: Arte e Cultura, 30 maio 2018.
Disponível em: http://amavelleitor.blogspot.com/2018/05/os-falsos-aleijadinhos-do-masp.html.
Acesso em: 06/2018.
Entrevistas
Entrevista com Antônio Marques, Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas, Natal/RN, 15 de fevereiro de 2012.
Entrevista com Beatriz Coelho, EBA/UFMG, 19 de fevereiro de 2015.
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Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(3): 90-112, 2018
Notas
1 “Os falsos Aleijadinhos do MASP”, no blog Amável Leitor: Arte e Cultura. Disponível em: http://amavelleitor.
blogspot.com/2018/05/os-falsos-aleijadinhos-do-masp.html. Acesso em: 06/2018.
2 As primeiras elaborações das reflexões articuladas neste artigo estão presentes, sobretudo, no segundo e no
terceiro capítulo da tese.
3 As pesquisas de campo foram realizadas entre 2012 e 2014, em Natal e outras cidades do Rio Grande do Norte e
em Belo Horizonte.
4 Paola Oliveira (2018) explora como a construção dessa conexão foi efetiva na sacralização, via patrimônio
histórico, da Igrejinha da Pampulha, em Belo Horizonte.
5 A imaginária religiosa erudita produzida no Brasil é enquadrada em três períodos estilísticos distintos: “uma fase
maneirista, durante todo o século XVII, quando predominavam as oficinas conventuais; um período barroco
propriamente dito, entre 1720 e 1770, e, finalmente, uma fase rococó, nas três décadas finais do século XVIII,
com prolongamento no século XIX em algumas regiões” (Coelho e Quites 2014:34).
6 As desfigurações de monumentos, símbolos e corpos, como nos lembra Michael Taussig (1999), são particularmente
reveladoras, uma vez que atraem ao passo que revelam interioridade.
7 Associação científica vinculada ao CECOR/EBA/UFMG.
8 Para fins de distinção entre informações obtidas via entrevista (em 19/02/2015, na EBA/UFMG) e dados
pesquisados em obras publicadas da restauradora, abordo as primeiras informando o primeiro nome de Beatriz e
as segundas de acordo com as normas de citação, ou seja, como Coelho (2005); Coelho e Quites (2014); Coelho,
Quites e Queiroz (2003).
9 Como se pode ver, por exemplo, nas seguintes manchetes: “Quanto vale um Aleijadinho” e “O homem que
esculpiu um Aleijadinho - O artista abaixo não sabia, mas uma obra sua apareceu num museu como se fosse
de Aleijadinho – o escultor colonial favorito dos falsários e golpistas”; respectivamente disponíveis em http://
istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847 e http://epoca.globo.com/vida/
noticia/2014/07/o-homem-que-besculpiu-um-aleijadinhob.html. Acesso em: 12/2016.
10 Segundo Oliveira (2002), o caminho de Aleijadinho do naturalismo à estilização compreendeu três fases: Primeira
fase (Formação do estilo - c. 1760-1774); Segunda fase (A realidade idealizada - c. 1774-1790); Terceira fase (A
espiritualidade sublimada - c. 1790-1812).
11 “Aleijadinho, beleza & polêmica: Exposição reúne em São Paulo imagens comoventes do mestre do barroco
mineiro e levanta a questão sobre a autoria de esculturas atribuídas a ele”. Revista Istoé, 25/07/2007. Disponível
em: https://istoe.com.br/427_ALEIJADINHO+BELEZA+POLEMICA/. Acesso em: 12/2016.
12 “A proibição do Aleijadinho”. Estadão, 08/05/2003. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/
geral,a-proibicao-do-aleijadinho,20030508p3582. Acesso em: 08/2017.
13 A afirmação de que alguns afortunados têm olho também é discutida por autores que abordam o colecionamento
de arte primitiva, seja em termos de gosto (De L’Estoile 2007:366-368), paixão (Derlon e Jeudy-Ballini 2008), seja
evidenciando “a mística do connoisseurship” (Price 1989:7-22). Tais pesquisas problematizam como práticas em
torno de objetos – utilizados, sobretudo, para colocar em relevo os limites entre “nós” e “eles” – reforçam certos
estereótipos sobre os “outros”, mas também participam da recusa de aspectos da civilização ocidental, invocando,
por exemplo, formas de relacionamento com as coisas atravessadas por aspectos mágico-rituais.
14 O lance mínimo para arrematar um lote de sete peças atribuídas ao escultor colocado a leilão no Rio de Janeiro em
2003 foi estimado em R$ 2,05 milhões, segundo a matéria “Quanto vale um Aleijadinho”, 06/08/2003, disponível
em http://istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847. Acesso em: 12/2016.
15 “Expressão francesa utilizada internacionalmente para designar o catálogo completo da produção de determinado
artista, com indicações, como origem, medidas, técnica, natureza do suporte, detalhes de assinatura e datação,
bibliografia e ainda outros dados que caracterizem perfeitamente cada obra, da qual é também fornecida uma
ilustração fotográfica” (Leite 1988:115).
Submetido em: 30/06/2018
Aceito em: 31/12/2018
Gomes: O efeito Aleijadinho
Lilian Alves Gomes (lilianallves@gmail.com)
Pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Cândido Mendes (CESAP/UCAM), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Integrante do Núcleo
de Documentação, História e Memória (NUMEM/UNIRIO), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil; Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ), Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
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Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(3): 90-112, 2018
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Resumo:
O efeito Aleijadinho: ensaio de antropologia da expertise
Neste artigo, analiso as incertezas em torno das obras de Aleijadinho, com vistas a
sublinhar como argumentos sobre expertise são acionados em elaborações acerca da
atribuição de autoria. Inicialmente, apresento o artífice/artista e como o referencial
da antropologia da admiração (Heinich 1991) é profícuo para entender os efeitos da
mitificação de sua trajetória e a importância conferida às suas obras no campo da arte
brasileira. Em seguida, mostro como tais obras e outras imagens são vinculadas a noções de autoria, de estilo e de originalidade. Destaco, por fim, que imagens de santos
e outras obras de arte podem se configurar como artefatos que devem ser decifrados por um olhar particular e revelador de afinidades entre domínios artísticos e
mágico-religiosos.
Palavras-chave: Aleijadinho, expertise, arte sacra, atribuição de autoria, connoisseurship
Abstract:
The Aleijadinho effect: anthropology essay on the expertise
In this paper, I analyze the uncertainties around the Aleijadinho’s works, with a view
to emphasizing how arguments about expertise are triggered in elaborations about the
attribution of authorship. I initially present the artificer/artist and how the reference
of the anthropology of admiration (Heinich 1991) is useful to understand the effects
of the mythification of his trajectory and the importance given to his works in the field
of Brazilian art. Then, I show how such works and other images are linked to notions
of authorship, style and originality. I point out, finally, that images of saints and other
works of art can be configured as artifacts that must be deciphered by a particular look,
that reveals affinities between artistic and magico-religious domains.
Keywords: Aleijadinho, expertise, sacred art, attribution of authorship, connoisseurship
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