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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE HISTÓRIA MATHEUS MATOS MAGRO O PÉRIPLO DO MAR ERITREU O IMAGINÁRIO ROMANO DO ORIENTE SÃO PAULO 2019 MATHEUS MATOS MAGRO O PÉRIPLO DO MAR ERITREU: O IMAGINÁRIO ROMANO DO ORIENTE Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de bacharel no Curso de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientador: Professor Dr. Alvaro Hashizume Allegrette SÃO PAULO 2019 1 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiro aos meus pais, à minha mãe Nelbia e seu sempre bem-vindo interesse nos rumos da minha pesquisa e da minha formação nestes quatro anos de graduação. Ao meu pai Saulo, seu genuíno orgulho da minha escolha pela História e a ajuda fornecida para a realização deste trabalho. À minha irmã Mariana pelos momentos e conversas que fizeram com que os prazos para a entrega desta pesquisa parecessem sempre distantes. Ao meu cachorro Simba, meu fiel companheiro nas tardes gastas escrevendo estas páginas. Aos meus amigos e amigas que suportaram por pelo menos dois anos a minha incessante conversa sobre esta pesquisa e que forneceram, conforme o possível, dicas, críticas e correções sobre a pesquisa. À Letícia de Souza Lima, pela companhia aos sábados de manhã, por todo o apoio a esta pesquisa e por ler todas as versões desta e que mesmo sem tempo ajudou, com críticas e sugestões, com que ela chegasse em sua forma final aqui apresentada. A Lucas Borghi Gennari e Pedro Augusto Menna Barreto Magalhães Gomes, por me fornecerem a oportunidade do estudo do grego, pela amizade formada e os momentos compartilhados, além da ajuda para a realização dessa pesquisa, εὐχαριστία. Ao Professor Dr. Alvaro Hashizume Allegrette, pelo apoio a esta pesquisa desde o princípio, a ajuda com o material para realizá-la, suas palavras de compreensão e amizade nos momentos estressantes e sua indispensável orientação para este trabalho. À Ana Beatriz Cotait, Beatriz Coelho, Bruno Del Gesso Húngaro, Bruna Lapawa, Giovanni Scarpelli, Gustavo Abdala, Isabelle Ramos, Luiz Felipe de Oliveira e Taís Abrão pelo apoio moral e emocional durante toda a graduação. À equipe de estagiários do Acervo Histórico da ALESP, cujo apoio e amizade considero essenciais, e que mesmo depois de minha saída se mantiveram interessados nos rumos desta pesquisa. Agradeço também aqueles que porventura não foram mencionados mas que de alguma forma contribuíram para a realização desta pesquisa. 2 La mer est tout! Elle couvre les sept dixièmes du globe terrestre. Son souffle est pur et sain. C'est l'immense désert où l'homme n'est jamais seul, car il sent frémir la vie à ses côtés. La mer n'est que le véhicule d'une surnaturelle et prodigieuse existence; elle n'est que mouvement et amour. (Vingt mille lieues sous les mers, Partie I, Ch. X. Jules Verne​.1) 1 “O mar é tudo! Abrange sete décimos do globo. Sua respiração é pura e saudável. É o imenso deserto onde o homem nunca está sozinho, pois sente a vida tremendo ao seu lado. O mar é apenas o veículo de uma existência sobrenatural e prodigiosa; É apenas movimento e amor.” 3 RESUMO O artigo aqui apresentado tem como objetivo uma análise do Imaginário Romano do Oriente no século I E.C.. Pretende-se fazê-la a partir de trechos retirados do texto anônimo intitulado “O Périplo do Mar Eritreu”, o qual narra portos, cidades e povos descritos pelo autor como parte da jornada realizada através desse universo plural que, em sua época, englobava a Costa Leste da África, a Península Arábica e a Índia. Palavras-chave​: Périplo do Mar Eritreu, Roma, Oriente, Viagem, Imaginário. ABSTRACT The article presented here aims at an analysis of the Roman Imaginary of the East in the first century CE. It intends to do so from chapters taken from the anonymous text entitled “​The ​Periplus of the Erythraean Sea​”, which narrates ports, cities and peoples described by the author presented as part of his journey through this plural universe that in his time encompassed the East Coast of Africa, the Arabian Peninsula and India. Keywords​: Periplus of the Erythraean Sea, Rome, East, Voyage, Imaginary. 4 LISTA DE MAPAS MAPA 1 - PRIMEIRA ROTA DO PÉRIPLO DO MAR ERITREU……………………..42 MAPA 2 - SEGUNDA ROTA DO PÉRIPLO DO MAR ERITREU……………………..43 MAPA 3 - MAPA COMPLETO DO PÉRIPLO DO MAR ERITREU…………………...44 5 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO​…………………………………………………...………………….7 2 O ORIENTE​………………………………………………………………...………..8 2.1 O ORIENTE NA ANTIGUIDADE…………………………………………………. 8 2.2 DE HOMERO A ALEXANDRE………………………………………………….... 9 2.3 A REVOLUÇÃO ALEXANDRINA………………………………………………...12 3 CARACTERIZAÇÃO DA FONTE​………………………………………………..14 3.1 AUTORIA……………………………………………………………………………14 3.2 DATAÇÃO……....…………………………………………..………………………15 3.3 MANUSCRITOS E TRADUÇÕES………………………………………………..16 4 O PÉRIPLO DO MAR ERITREU​………………………………………………...17 4.1 PROBLEMATIZAÇÃO DO TEXTO………...…………………………………….17 4.2 OS LIMITES DO MUNDO…………………………………………………………21 4.3 O SOBRENATURAL……………………………………………………………….23 4.4 PODER, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO…………………………………………...27 4.5 SOB A SOMBRA DE ALEXANDRE………...…………………………………...33 4.6 ALÉM DOS LIMITES CONHECIDOS……………………………………………37 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS​………………………………………………………40 MAPAS​……………………………………………………………………………...44 BIBLIOGRAFIA​…………………...……………………………………………….47 6 1 - INTRODUÇÃO A inspiração para este trabalho vêm a partir de uma necessidade de se expor alguns fatos que nem sempre se encontram claros para o estudante de História, mais ainda ao de História Antiga. Primeiro, o estudo de Roma, seja ela a republicana ou a imperial, parece estabelecer um bloco fixo do mundo. É passado ao estudante um sobressalto da morte de Alexandre o Grande em 323 A.E.C.2 diretamente para Roma sem nunca retornarmos ao Oriente e ao Império deixado por Alexandre antes das conquistas romanas da Grécia em meados do século II A.E.C. e da Anatólia e do Levante no século I A.E.C. Assim, o destino do Oriente parece ser ignorado e um muro sob a extensão do Império Romano é construído, onde não parece haver mais conexões tanto comerciais quanto diplomáticas entre o Mediterrâneo e o Oriente que uma vez fizera parte dos domínios gregos. Assim este trabalho têm a intenção de não só mostrar que esse bloco impregnável de Roma não é concreto como também que as conexões entre o Mediterrâneo e o Oriente existiram para além das conexões econômicas, mas também pela formação de uma mentalidade greco-romana sobre este Oriente. Mostrando assim que o debate sobre o Oriente estava presente em Roma, que em sua volta um imaginário foi criado, tratados inteiros escritos sobre o que estava além do Tigre e do Eufrates levavam a uma discussão acalorada sobre a importância desse Oriente, quebrando-se assim com uma tradição que narra a existência de Roma como alheia aquilo que acontece no mundo a sua volta. O presente trabalho pretende, portanto, analisar a existência, e as condições para tal, de um imaginário em relação a um Oriente proveniente da mentalidade greco-romana. Assim para sua realização optamos pelo uso do texto anônimo intitulado “O Périplo do Mar Eritreu”3, que narra através de 66 capítulos os portos e cidades de interesse do autor durante o duplo trajeto do texto, do porto de Berenice 2 Optamos pelo uso da nomenclatura Era Comum (E.C.) por desvincular a história de um foco puramente cristão, como o Antes de Cristo (a.C.). 3 Περίπλους Τής Ερυθράς Θάλασσας, no grego original. 7 no Egito às proximidades de Zanzibar4, na costa leste da África5 e novamente de Berenice até o Rio Ganges, atual Bangladesh6. Estruturalmente este texto foi dividido no seguinte formato, inicialmente uma discussão sobre o Oriente será realizada, sua concepção para os antigos, e o avanço na geografia que nos leva até o tempo de escrita do Périplo. Realizaremos então uma breve caracterização da fonte, o período em que foi escrita, o autor, os manuscritos e as traduções existentes e utilizadas. Entraremos então na análise da fonte, dividida em seis seções, a primeira introdutória, que mergulha na fonte de maneira a explicá-la ao leitor, as demais divididas em temáticas que englobam de maneira breve trechos que deixam evidentes a existência de um imaginário no Périplo, culminando na conclusão onde, discute-se as implicações da análise para o objetivo deste trabalho. 2 - O ORIENTE 2.1 - O ORIENTE NA ANTIGUIDADE A formação da ideia de Oriente na antiguidade segue alguns princípios que devem ser conceituados antes de realizarmos uma análise histórica do processo de conhecimento sobre o Oriente pelos gregos. O primeiro critério é o de reconhecer que quando falamos do Oriente, apesar de aglomerar um grande número de povos, não falamos de uma única civilização oriental, ou mesmo de uma unidade cultural7. Segundo, um critério mitológico que está em torno da compreensão do Oriente para os antigos, mais a frente veremos o início do Oriente na Anatólia desde Homero, no entanto antes dele mesmo, quando Hele e Frixo fugiram da Grécia, montados num carneiro cujo velocino era dourado, rumo ao Oriente e Hele caiu no oceano, onde os gregos chamariam de Helesponto, o atual estreito de Dardanelos, o local de ponte entre a Europa e Ásia, entre Ocidente e Oriente: Casson discute, (CASSON, 1989, p. 141), a posição do porto de Rhapta, último da costa leste africana pelo qual o autor passou, como sendo Pemba, Zanzibar ou Dar es Salaam, adotamos a segunda por ser central em relação aos outros dois portos. 5 Ver mapa 4. 6 Ver mapa 5. 7 SPROVIERO, 1998, p. 1. 4 8 “(...) Nefele agarrou-o [Frixo] junto com sua filha Hele, e deu a eles um carneiro com um velocino dourado o qual ela havia recebido de Hermes. Carregados pelo céu por esse carneiro, eles passaram tanto por terra quanto por mar; mas quando estavam sob o pedaço de mar entre Sigeia e Chersonese, Hele escorregou para a água, e o mar onde morreu foi nomeado Helesponto, em sua homenagem.”8 Etimologicamente, diz-nos Sproviero, Ocidente e Oriente antes de qualquer coisa servem como direções baseadas no Sol9, ​Oriens sendo latim para “o sol nascente” e ​Occidens​, latim para “sol poente”. Sproviero adiciona aos significados etimológicos, ainda, que a analogia que pode ser retirada do Sol nascer no Oriente e se por no Ocidente que “assim também, a cultura nasce no Oriente e morre no Ocidente.”10. Ademais é necessário também, justificar a ausência de referências a Edward Said em nosso trabalho, tal fato ocorre pela análise de Said focar na formação e criação de um imaginário sobre o Oriente a partir da modernidade, entendendo-se o Orientalismo, portanto, como advindo de uma lógica moderna e não antiga. Nosso trabalho por estar delimitado à antiguidade foge do período analisado por Said. Compreendendo então que o Oriente já possuía forma física bem estabelecida desde tempos mitológicos (além do Helesponto) na mente dos antigos, daremos início a uma discussão da formação dessa espacialidade na mentalidade greco-romana a partir de Homero, passando-se pelos geógrafos antigos que dão forma localidade para este Oriente, e mais tarde as consequências para nossa concepção de Oriente depois das campanhas de Alexandre Magno. 2.2 - DE HOMERO A ALEXANDRE A proposta de Oriente como pensada pelo trabalho é a de uma fronteira em constante movimento, que se estende e se reduz ao bel-prazer do narrador. Ultrapassando-se o Oriente de Homero, que se inicia em Tróia: E logo que a manhã pinta o céu oriental, APOLLODORUS, 2008, p. 43. (Tradução Nossa) SPROVIERO, 1998, p. 2. 10 SPROVIERO, 1998, p. 2. 8 9 9 A visão é concedida aos teus olhos ansiosos.11 Os antigos pré-alexandrinos possuíam sua própria maneira de perceber o mundo a sua volta, um mundo mentalmente conquistado pelos gregos12, se o horizonte do conhecido antes do período clássico termina na Anatólia, como pudemos verificar na citação anterior retirada da Ilíada, de Homero, a partir do século VI A.E.C. as mentes gregas haviam viajado pelo mundo, abrigando-se principalmente no Oriente, nas cortes Persas e Egípcias, um mapa do mundo começou a ser formado na mentalidade grega. O primeiro a tentar fazer com que esse mapa mental fosse colocado no papel foi o jônio Anaximandro de Mileto, em seu mapa, a terra toma forma, tamanho, a Jônia e a Grécia recebem centralidade, finalmente entende-se o mundo que estava em sua volta. Posteriormente no final do século VI A.E.C. e início do V A.E.C., seu aluno Hecateu, também de Mileto, completou sua representação e “(...) adicionou numerosos nomes empiricamente identificados. Dessa maneira, ele colocou mares, montanhas, rios, tribos e mais em uma ordem geográfica.”13 A geografia, enquanto parte integrante daquilo que os gregos chamavam de “história”, seguiu seu curso. Mais do que contar os feitos dos homens no tempo, a história na antiguidade é também a história destes homens, e mulheres, num espaço, que precisa ser definido, explicado e localizado no mapa, e conforme o tempo foi se modificando, havia um real interesse dos autores em descrever, localizar e marcar as regiões do mundo habitado e desabitado. Dessa forma a Terra ganhou sua esfericidade, expedições realizadas traziam mais informações sobre o mundo e sua descrição alimentava a mente grega. O mapa de Heródoto, por exemplo, já expande o de Hecateu, encontra o rio Indo, e reconhece uma continuidade maior do mundo que vai além das fronteiras da Pérsia, a Bactria é reconhecida, a Índia se torna levemente maior e um espaço entre o “Mar do Norte” e a Índia aparece. Executada a caminhada necessária para estabelecer-se uma tradição do tamanho da Terra, aqueles que à habitam, onde é habitada e onde não é, as HOMER, 1909, p. 443. (Tradução nossa). GERHKE, 2016, p. 79. 13 GERHKE, 2016, p. 79. (Tradução Nossa). 11 12 10 cidades e Estados dispostos por sua extensão territorial, mesmo que de maneira empírica baseada em relatos, deparamo-nos com a Revolução realizada por Alexandre Magno e suas campanhas, como veremos à seguir. 2.3 - A REVOLUÇÃO ALEXANDRINA As concepções de Oriente estabelecidas após aquilo que Hans-Joachim Gehrke chamará de Revolução Alexandrina14, causada pelas campanhas de Alexandre Magno, as quais “(...) viraram o mundo de ponta cabeça e revolucionaram as visões e concepções do mundo pelos gregos.”15. Alexandre tornou perceptível e concreto para os Gregos suposições já postuladas por seus antepassados, localizações abstratas baseadas em pontos de referências descritos por diários de navegação, o périplo16, obtiveram um chão, uma forma e uma localização concreta, Alexandre portanto, conseguiu conectar teoria à prática17. Por consequência, Alexandre e suas campanhas deram forma ao Oriente, que não se baseava apenas em descrições adquiridas de navegadores, mas na presença constante de estudiosos que escreveram tudo que viram, passaram e experienciaram durantes as campanhas, além da necessidade dos generais tornados reis de identificar, compreender e saber das regiões as quais iriam governar. Dessa forma o Oriente após as campanhas de Alexandre compreenderá tudo aquilo após os Montes Taurus e o Cáucaso como fazendo parte da Ásia, que é então dividida em quatro partes, a maior sendo a Índia e a menor o trecho entre o Rio Eufrates e o Mar Mediterrâneo: “Quem organizar a posição da Ásia de tal maneira que seja dividido pelo Taurus e pelo Cáucaso, do vento oeste ao vento leste, descobrirá que essas duas grandes divisões são feitas pelo próprio Taurus, uma das quais inclinada para o vento sul e ao sul, e o outro em direção ao vento norte e ao norte. O sul da Ásia novamente pode ser dividido em quatro partes, das quais Eratóstenes e Megástenes tornam a Índia a maior. O último autor viveu com Sibírtio, o vice-rei da Arachosia, e diz que frequentemente visitava GEHRKE, 2016, p. 78. GEHRKE, 2016, p. 78. (Tradução nossa). 16 Périplo, do grego Περίπλους (Periplus), significa “descrição de costas”. 17 GEHRKE, 2016, p. 97. 14 15 11 Chandragupta18, rei dos indianos. Esses autores dizem que a menor das quatro partes é aquela que é delimitada pelo rio Eufrates e se estende ao nosso mar interior. Os outros dois situados entre os rios Eufrates e Indus dificilmente podem ser comparados com a Índia mesmo se forem unidos.”19 É nesse Oriente expandido que se deslocou de Homero a Alexandre que reside as concepções do autor do Périplo. Ainda, o autor não reconhece o Egito como parte integrante deste Oriente, suas referências ao Egito sempre estabelecem uma relação de “nós e os outros” aproxima este outro mundo ao qual adentra a partir de semelhanças entre árvores dos locais aos quais visita, mas se detém a isto. Segundo a Professora Dra. Cíntia Gama Rolland20, nesse contexto a identificação do Egito, entre oriental, ocidental, mediterrâneo ou africano deve ser realizada a partir daquele que nos escreve, dessa forma podemos identificar que nosso autor considera o Egito como pertencente à uma lógica mediterrânea, e não oriental. Assim, o Egito se torna a porta de entrada para um universo plural considerado geograficamente uno na entidade do Mar Eritreu21, que irá se estender pela costa leste da África, a Península Arábica, o Golfo Pérsico, toda a costa de Índia, Bangladesh e, ultrapassando a fronteira marítima, nos leva até mesmo através dos Himalaias para a China. 3 - CARACTERIZAÇÃO DA FONTE 3.1 - AUTORIA Este autor permanece anônimo, o que se conhece sobre ele nos possibilitou a formação de um perfil básico em relação a sua pessoa. Sabe-se que se tratava de um egípcio-grego22 pelas constantes referências ao Egito por todo o texto, Chandragupta Máuria, fundador do Império Máuria. ARRIAN. Cit. in MAJUMDAR, 1960, p. 26. (Tradução nossa)​. 20 Em comunicação pessoal em 08 de outubro de 2019. 21 Utilizaremos o termo Mar Eritreu e não sua tradução direta, Mar Vermelho, para evitar uma proximidade com o atual Mar Vermelho, que se estende do Sinai ao Golfo de Áden. 22 CASSON, 1989, p.7. 18 19 12 adicionado a isto a natureza de seu relato revela experiência pessoal com a rota traçada, ela é direta e detalhada, desde o primeiro trajeto (Berenice à Rhapta) e a segunda parte (Berenice ao Ganges) onde ao final, passado o Cabo de Comorim (ponta sul da Índia) sua narrativa começa a se tornar menos detalhada, contendo histórias e suposições locais23. Tratar nosso autor como um egípcio-grego é importante para este trabalho pois nos ajuda a entender certos aspectos da dinâmica sociopolítica sub-contextualizada no Périplo. Primeiramente diferenciar nosso autor como um egípcio-grego ao invés de somente egípcio ou somente grego nos ajuda a compreender o contexto ao qual observamos. Falamos de um Egito que conta com uma clara divisão étnica em relação aos imigrantes provenientes da Grécia, cujo tráfego intensificou nos anos subsequentes à conquista de Alexandre Magno do Egito e o estabelecimento do reino Ptolomaico após a morte de Alexandre. Dessa forma identificar nosso autor como egípcio-grego revela uma aceitação por parte dos especialistas24 que narrativas escritas na língua grega, provenientes das fronteiras estabelecidas por Alexandre provém de uma ancestralidade grega. São descartadas algumas possibilidades que tornariam o debate em torno do autor mais intenso, por exemplo, Schoff escreve sobre o autor: “Que ele não era um homem altamente instruído é evidente por sua confusão frequente de palavras gregas e latinas e suas construções desajeitadas e às vezes não gramaticais”25 E mesmo assim exclui um debate sobre um autor educado no grego mas que no entanto, não o possui como língua materna e por isso os erros, enquanto a confusão com o latim pode ser relacionada ao se adaptar com a língua de seus soberanos e uma chegada do interesse romano na região. Linguisticamente, termos na língua latina quando lidas por um romano serão rapidamente assimiladas e compreendidas, podendo fazer com que parceiros comerciais romanos surjam na região enquanto o poderio grego diminuirá. A discussão sobre o último trecho navegado será retomada mais à frente no trabalho. Tanto Casson quanto Schoff aceitam a ideia de que o autor é um egípcio-grego. 25 SCHOFF, 1912, p. 16.(Tradução nossa). 23 24 13 Vale ainda anotar que a tendência historiográfica que exclui essa possibilidade trabalha com a ideia de que o texto, por ter sido escrito em grego, parte das mãos de um grego no entanto há de se abrir a possibilidade para que o nosso autor fosse letrado em mais de uma língua, visto a extensão da viagem realizada e a falta da menção de um guia ou tradutor pelo nosso autor. Se o mesmo não necessitou da constante presença de tradutores não é distante da razão pensar em seu possível poliglotismo. 3.2 - DATAÇÃO A data de escrita do Périplo, diferente de seu autor, possui certo consenso em sua volta, um longo debate em torno do tema colocava o texto como datado desde 30 E.C. até 230 E.C.. A teoria mais aceita se baseia no capítulo 19, onde o Périplo faz menção a um rei nabateu chamado Malichus26 e G. Bowersock27 identificou a sequência de reis Nabateus2829 desde 168 A.E.C. até seu último rei em 106 E.C.. Em meio aos nomes da lista existe um Málico II, que reinou de 40 E.C. até 70 E.C. e pode ser selecionado como aquele a quem o autor faz referência, pois Málico I teria reinado de 56 A.E.C. até aproximadamente 31 A.E.C. um período onde o Egito ainda não estava sob controle romano e portanto, colocando a data de escrita do Périplo entre 40 E.C. e 70 E.C.30 A teoria que desloca o Périplo para meados do século III o faz ignorando a menção a Málico, argumentando que o texto seria um compilado de informações não necessariamente datando do mesmo período31. 3.3 - MANUSCRITOS E TRADUÇÕES CASSON, 1989, p. 61. BOWERSOCK, 1972, p. 6. 28 Povo que habitou a parte norte da Arábia e sul do Levante. 29 A lista dos reis nabateus dada por Bowersock segue na seguinte ordem:​ ​Aretas I, Rabel I, Aretas II, Obodas I, Aretas Ill, Málico I, Obodas II, Aretas IV, Málico II e por fim Rabel II. 30 A teoria encaixa na suposição de Schoff (1912, p. 15). 31 CASSON, 1989, p.7. 26 27 14 Existem dois manuscritos preservados do texto, o primeiro sendo o Codex Palatinus Graecus 398, fols. 40v - 54v, na Biblioteca da Universidade de Heidelberg, datando do início do século X. O segundo, presente no Museu Britânico, é o manuscrito Add. MS. 19.391, fols. 9r - 12r, datando entre os séculos XIV e XV. Casson32 desconsidera o segundo, considerando-o apenas uma cópia do primeiro, com os mesmos erros e formato, Schoff o coloca como manuscrito compositor da Bibliografia do Périplo33 mesmo concordando que trata-se de uma cópia do manuscrito de Heidelberg ou que havia um manuscrito original aos dois. Ambos os manuscritos estão disponíveis online. Neste trabalho utilizaremos de ambos como manuscritos pois visando uma análise crítica das traduções ambos servirão de auxílio para referências ao texto original34. As traduções escolhidas para este trabalho foram aquelas realizadas por William Schoff em 1912 e a de Lionel Casson de 1989. A segunda será a principal, visto que é a única bilíngue (Grego-Inglês) e facilita uma análise daquilo que é traduzido em contraponto ao texto original35. Ainda, o uso de duas traduções com setenta e sete anos de distância uma da outra nos permite observar mudanças e permanências nas tradições tradutórias em torno do Périplo. Entre as duas, a grande mudança que deve ser sinalizada é a existência de floreios que estão presentes no texto de Schoff, enquanto o texto de Casson restringe-os à passagens já bem sedimentadas na tradição do Périplo. Além disso, a versão de Casson atualiza as explicações fornecidas ao fim do Périplo. A partir disto, se identifica nas explicações fornecidas por Schoff e Casson que o primeiro considera que a importância do texto está no econômico, fato que pode ter sido influenciado pela posição de Schoff de Secretário do ​Philadelphia Commercial Museum​, justificando sua análise mais focada na economia. Casson, apesar de não possuir vínculos com entidades às quais o foco era o comércio não pretende digredir do foco do qual o Périplo havia sido analisado desde CASSON, 1989, p. 5. SCHOFF, 1912, p. 17. 34 Apesar da versão de Casson ser bilíngue ainda existem trechos que são incompreensíveis, os manuscritos disponíveis online podem ser de auxílio ao tentar se compreender essas eventualidades. 35 Como demonstrado anteriormente o texto original de Casson reproduz o manuscrito de Heidelberg. 32 33 15 o século XIX, no entanto nos apresenta mais informações sobre povos e outras partes do texto, sem quebrar com a tradição. O texto abrange três regiões diferentes, a África, a Índia e a China, onde a segunda toma a sua maior parte36. Para evitar uma análise pautada em pontos geográficos, nosso trabalho foi feito pensando um formato temático, que busca discutir a composição do imaginário quando relacionado a um tema específico. 4 - O PÉRIPLO DO MAR ERITREU 4.1 - PROBLEMATIZAÇÃO DO TEXTO Em sua concepção morfológica original, Périplo, palavra latinizada37 do grego Περίπλους, é formado pela união da palavra Περί, que significa “ao redor”38 com Πλου, significado de “navegação”39. Desta forma o termo quando analisado por completo significa navegar ao redor, pretendendo descrever ao leitor uma navegação ao redor de um trajeto, no nosso caso, o Mar Eritreu, mais especificamente o trajeto de Berenice, na costa do Mar Vermelho, no Egito e Rhapta, na costa leste africana, na atual Tanzânia. E novamente de Berenice até o Ganges. Saber que o texto trata de uma narrativa da navegação em torno do Mar Eritreu oferece informações importantes sobre seu propósito. Primeiramente, não é um texto de propaganda política. Seus comentários sobre política externa e interna do Império Romano e de outros reinos e cidades é quase inexistente, salva-se a menção a César e o saque da “Arábia Próspera”4041, e as aparições do fantasma de Alexandre Magno em alguns capítulos, que serão tratados posteriormente. Reis e Capítulos 38 ao 64, considerando-se o início da Índia a partir do rio Indo. Em latim a palavra é escrita como é dita no grego, “Periplus”. 38 PEREIRA, 1976, p. 447. 39 PEREIRA, 1976, p. 464. 40 CASSON, 1989, p. 65. 41 CASSON, 1989. p. 65. Casson traduz "Ευδαίμων Αραβία” para “prosperous Arabia”, a palavra Ευδαίμων de acordo com o dicionário grego-português de Isidro Pereira significa “rico” (1976, p. 235), optamos por “Próspera” por não fugir ao significado e manter uma proximidade com a tradução de Casson. 36 37 16 chefes, quando aparecem na narrativa, são analisados a partir das concepções do tempo e cultura do narrador sem que sejam ativamente exaltados. No entanto demonstra também outra informação importante, o texto foi escrito, portanto existe importância no trajeto realizado. Se não pretende-se vangloriar-se uma figura histórica e nem seu próprio autor o texto há de ter sido escrito por outros interesses. Para Schoff esses interesses são puramente econômicos, compreendendo todo o mérito do texto: “O valor de seu trabalho consiste não em seus méritos literários, mas em sua fidedigna narrativa do comércio no Oceano Índico e os assentamentos em torno de sua costa (...)”42 Casson, apesar de se mais abrangente em sua análise, também reconhece a finalidade comercial e econômica presente no texto, as informações fora dos temas economia e comércio são digressões advindas da vívida curiosidade que guia nosso autor para outros campos43. Este trabalho não pretende realizar uma nova visão sobre o objetivo do autor em escrever o Périplo, mas reconhecer que há mais do que economia e comércio no objetivo de sua escrita é necessário. As informações fora da linha presentes no texto em momento algum aparecem como notas, ou deslocadas da forma do texto, elas foram escritas de forma consciente pelo autor, portanto para o mesmo não poderia haver uma narrativa do comércio no Mar Eritreu que fosse desvinculada da história e da antropologia. Sem o panorama histórico fornecido pelo autor sua obra deixa de existir, portanto é errôneo tratar o Périplo apenas como um texto pragmático informacional sobre o comércio no Mar Eritreu. Parece mais justo admitir apenas que o real objetivo do texto não pode ser desvinculado da maneira como ele é apresentado, tratar a narrativa histórica apresentada pelo autor como algo a parte retira do capítulo, qualquer que ele seja, seu significado, pois já não é mais a intenção do autor. Ainda sobre os objetivos do texto, estão presentes nele momentos de mudança de tom do nosso narrador, Schoff, numa passagem apresentada 42 43 SCHOFF, 1912, p. 16.(Tradução nossa). CASSON, 1989, p. 9. 17 anteriormente, os reduz a uma confusão do latim e do grego e para além disso construções não-gramaticais: “​Que ele não era um homem altamente educado é evidente por sua confusão frequente de palavras gregas e latinas e por suas construções desajeitadas e às vezes não gramaticais.”44 Casson, no entanto, consegue reconhecer as qualidades destas mudanças como tentativas de alcançar-se outro nível de escrita: “Ainda assim consegue, quando quer, subir a outro nível. Sua descrição45 das poderosas correntes ao longo da costa noroeste da Índia transmite excitação, suas palavras tem unidade e cor. E ali e aqui ele tenta fugir do estilo simples do comerciante deliberadamente evitando repetições ou por uma consciente elegância literária.”46 A constante mudança na escrita do Périplo é outro indício de que pretendia-se alcançar algo a mais do que uma análise puramente econômica, ou como apresentado anteriormente, não existe no texto duas narrativas, uma econômica e outra semi histórico-antropológica, mas sim uma única narrativa que inexiste desmembrada. Em sua jornada, o autor do Périplo do Mar Eritreu nos narra uma sucessão de portos de comércio existentes no universo mergulhado pelo nosso autor, e adicionados a esses portos estão outras informações, como a distância47 do último porto aquele que foi alcançado, os produtos que podem ser vendidos naquele porto SCHOFF, 1912, p. 16.(Tradução Nossa). CASSON, 1989, p. 79. ​“Assim, a navegação de navios dentro e fora é perigosa para aqueles que são inexperientes e estão entrando neste porto comercial pela primeira vez. Pois, uma vez que a maré de inundação está em andamento, as âncoras de retenção não permanecem no lugar. Consequentemente, os navios, transportados por sua força e empurrados de lado pela rapidez da corrente, encalham nos bancos de areia e quebram, enquanto embarcações menores até viram. Mesmo nos canais, algumas embarcações, se não apoiadas, se inclinam de lado durante o fluxo e, quando a enchente retorna repentinamente, são inundadas pela primeira onda do fluxo. Tanta energia é gerada na onda do mar, mesmo durante a escuridão da lua, especialmente se a inundação chega à noite, que quando a maré está começando a entrar e o mar ainda está em repouso, é transportada dela para as pessoas na boca algo como o barulho de um exército ouvido de longe, e depois de um tempo o próprio mar corre sobre os bancos de areia com um assobio.” (Tradução Nossa) 46 CASSON, 1989, p. 10. (Tradução Nossa). 47 O texto utiliza a medida “Estádio” do latim Stadium, que por sua vez vêm do original grego Σταδίων. Para facilitar a compreensão do leitor utilizaremos o estádio como um (1) estádio sendo equivalente a 176 metros, baseando-nos no estádio Olímpico, suas variações aumentariam a distância, no máximo, em cerca de 30 metros. 44 45 18 e os produtos que podem ser comprados. Esta descrição vem acompanhada muitas vezes de uma breve análise dos povos e dos costumes locais, quem são os moradores da região, como vivem, quem são e onde estão suas autoridades, inclusive em alguns momentos nos dando nomes e descrições de caráter e personalidade. Menciona ainda eventos históricos que ajudam o leitor a se localizar empiricamente, por exemplo, um súdito romano a par da história recente de Roma, apesar de não ter conhecimento da localização exata da Arábia Próspera saberia da cidade portuária que César48 saqueou quando na península. É dentro dessa narrativa comentada pelo autor que pretendemos analisar o imaginário romano do Oriente, identificando-se traços no discurso que demonstrem uma mentalidade, onde o real e o imaginado se confundem à verdade de toda uma época. Para esse objetivo dividimos os capítulos analisados em cinco partes, que trabalham nominalmente, o mundo experienciado pelo nosso narrador; sua visão daquilo que não consegue explicar; seu tratamento das pessoas e povos os quais menciona; a presença de Alexandre Magno na narrativa; e por fim aquilo que existe além do mundo narrado. 4.2 - OS LIMITES DO MUNDO “18. “Estes são os últimos portos de comércio na costa da Azânia, à direita de Berenice. Pois, além desta área, encontra-se um oceano inexplorado que se curva para o oeste e, estendendo-se ao sul ao longo das partes da Etiópia, Líbia e África que se afastam, se junta ao mar ocidental.”49 “64. Além desta região, agora no ponto mais ao norte, onde o mar termina em algum ponto da orla externa, existe uma cidade interiorana muito grande chamada Thina, da qual seda crua, em fios e em tecidos são enviados por terra via Bactria para Barygaza e via o rio Ganges de volta a Limyrikê. Não é fácil chegar a essa Thina; pois raramente as pessoas vêm dela, e apenas algumas. A área fica sob a Ursa Menor e, diz-se, é contígua às partes do Pontus e do Mar Cáspio, onde essas partes se desligam, perto do lago Maeotis, que fica paralelo, juntamente com [sc. o Cáspio] e deságua no oceano.”50 Aqui César se refere ao título e não ao nome do Ditador romano Júlio César. CASSON, 1989, p. 61. (Tradução Nossa). 50 CASSON, 1989, p. 91. (Tradução Nossa). 48 49 19 Os capítulos traduzidos acima iniciam o debate sobre aquilo que os antigos acreditavam ser os limites do mundo ao qual pertenciam, e também sobre a própria extensão do Mar Eritreu. Estas concepções, por meio de uma tradição oral e escrita, se mantiveram por séculos antes de nosso autor e influenciaram a maneira como ele passa suas visitas para o papel. O capítulo 18 narra o fim do primeiro trecho da viagem51, aquela entre os portos de Berenice no Egito e Rhapta, na atual Tanzânia. Ao fim de sua passagem por Rhapta somos avisados de um fim abrupto da costa, “Pois, além desta área, encontra-se um oceano inexplorado que se curva para o oeste (...)”52 excluindo assim uma parte considerável do continente africano. Mais ainda, na mentalidade de nosso autor a África é formada pelo grupo Etiópia, Líbia e África (aqui lê-se o Norte da África), cortando-a pela metade. Esta crença, se fundamenta numa tradição greco-romana que já apontava, erroneamente, para um curto continente africano. Como vimos anteriormente53 a mentalidade antiga colocava o fim da África com o fim do Nilo, portanto a costa leste africana termina nas redondezas da Etiópia, o que se segue então é uma linha quase reta entre a Etiópia e os Pilares de Hércules, o atual estreito de Gibraltar. Esse pensamento, no entanto, era o resultado de centenas de anos de coleta de experiências empíricas atestadas pelos maiores pensadores do mundo em sua época. Nosso autor, portanto, apesar de ter ultrapassado a Etiópia, propaga a mentalidade já existente de sua época e ainda acredita no fim abrupto do continente e sua chegada rápida ao Mar Ocidental. Se o capítulo 18 trata do fim da fronteira sul do mundo, a partir de Berenice, o capítulo 66 tratará dos limites à leste do globo. Novamente o fim abrupto do continente aparece, dessa forma falhando em reconhecer todo o leste asiático, como explicitado no trecho, é inexplorado aquilo que se segue à costa a partir do Ganges. Imediatamente para nosso autor além deste território está a cidade de Thina, que será tratada mais à frente, e sua localização sob a Ursa Menor e Ver mapa 4. CASSON, 1989, p. 61. (Tradução Nossa). 53 Vide mapas 1, 2 e 3. 51 52 20 adjacente de territórios já conhecidos pelos antigos, como o Lago Maeotis (Atual Mar de Azov) e o Mar Cáspio. A região da Thina, na realidade, trata-se da própria China, entendida pelo autor como uma única região que se estende do além Ganges, através dos Himalaias até o Mar Cáspio, no entanto para que as áreas fossem paralelas como o proposto pelo autor, sua China, na época governada pela dinastia Han54, deveria começar da Mongólia, e não dos Himalaias. Ao cortar todo leste asiático o autor corta também um grande parte do território asiático que está a leste dos Himalaias, as concepções dos antigos da China e suas presenças no Périplo serão trabalhadas mais adiante. Aqui é importante compreender que nosso autor navegava num mundo com muito menos terra firme do que aquele que nós reconhecemos hoje, uma tradição antiga no universo greco-romano, já presente no texto Sob o Céu, de Aristóteles, que apesar de calcular a circunferência da terra em um número em torno de 65.000 km (quando na realidade seriam cerca de 40.000 km) aceitavam que a maior parte dessa Terra era inabitada, sendo preenchida por água, por esse motivo ainda, Aristóteles dizia ser possível atingir-se a Índia a partir dos Pilares de Hércules, ideia que perdurou até a viagem de Colombo em 1492: “Aristóteles estimou a circunferência total da terra como sendo 400.000 estádios (65.000 km). Um número muito alto, sendo o número real em torno de 40.000 km, mas que “em relação às outras estrelas” não é muito. Menor o volume da terra e mais amplamente a ​oikoumene55 se estendesse entre Leste e o Oeste, menor seria a distância marítima restante entre os dois limites, eles sendo a Índia e a Espanha: Aristóteles acreditava ser provável que “a região em torno dos Pilares de Héracles era conectada com aquela de Héracles (= Índia)” por mar, e em ambos seus finais viviam elefantes, podendo-se concluir que esse mar não era muito grande. Implicando na possibilidade de cruzá-lo por navio e viajar de um fim da ​oikoumene para o outro. 56 4.3 - O SOBRENATURAL 32. “(...) Numa colina que ali fica desprotegida, graças aos poderes dos deuses que zelam por aquele lugar. Pois, nem secretamente ou abertamente o incenso pode ser carregado a bordo de um navio sem permissão Real; se Dinastia que controlou a China entre os século III A.E.C. e III E.C. Οικουμένη, “A terra habitada”. 56 JASPERT, 2018, p. 97. (Tradução Nossa). 54 55 21 até mesmo um grão é colocado a bordo, o navio não consegue zarpar, pois é contra a vontade dos deuses.”57 38. “Uma indicação de que aqueles vindos do mar de que estão se aproximando da terra entorno do rio [o Indo] são as cobras que emergem das profundezas para encontrá-los.”58 45. “(...) por causa da irrupção na maré cheia de uma massa concentrada de água do mar, são forçados [os navios] rio acima contra a direção natural de sua corrente por muitos estádios.”59 62. “(...) e os cara-de-cavalo, que dizem serem canibais.”60 66. “O que está além dessa área, por causa de tempestades extremas, muito frio, e terreno difícil e também por causa de algum poder divino dos deuses, ainda não foi explorado.”61 O que o trabalho pretende tratar como o sobrenatural no Périplo do Mar Eritreu não são apenas trechos onde o divino é mencionado, mas também onde os acontecimentos narrados nos são apresentados com aspectos que subvertem uma ordem natural assumida pela contemporaneidade. Primeiro, no capítulo 32 nosso narrador chega ao porto de Moscha62, na costa do atual Omã, e ao nos contar do incenso depositado ao topo de uma colina, a qual ficava desprotegida e, por mais que tentassem carregar o incenso a bordo, era impossível que este navio saísse do porto. Sua justificativa para o evento é o divino, os deuses que zelam pelo local não permitem que o incenso deixe a região sem permissão real. A primeira conclusão que pode ser retirada do trecho antes de sua análise é que o nosso autor pressupõe uma conexão direta entre o poder Real e os deuses, como o próprio diz, “nem secretamente ou abertamente o incenso pode ser carregado a bordo de um navio sem permissão Real’63 e mesmo quando feito, os deuses não permitem que deixe o porto. A relação que o trecho implica é de que os deuses protegem o interesse Real, o incenso com a devida permissão pode ser CASSON, 1989, p. 71. (Tradução Nossa). CASSON, 1989, p. 73. (Tradução Nossa). 59 CASSON, 1989, p. 79. (Tradução Nossa). 60 CASSON 1989, p.89. (Tradução Nossa). 61 CASSON, 1989, p. 93 (Tradução Nossa). 62 CASSON, 1989, p. 69. O nome dado à cidade portuária no grego é Μόσχα λιμην, Casson traduz para Moscha Harbor. 63 CASSON, 1989, p. 71. (Tradução Nossa). 57 58 22 carregado e exportado, ou seja, os deuses executam sua força ao bel-prazer das autoridades locais. Adentramos então numa questão sobre o Périplo que é justamente sobre a origem dos relatos presentes no texto, aqui lê-se que o apresentado pode não ter sido observado, mas escutado. Que nosso autor viu a colina com o incenso é provável, o que se discute aqui é se o autor também viu navios impedidos de sair do porto. Se nosso autor estabeleceu conexões no porto de Moscha então não é errôneo pensar na explicação divina para o impedimento da saída dos navios possa ter vindo de conversas com mercadores locais, que ligavam o motivo pelo qual os navios não saiam à imagem de poder local e sua conexão divina, ligação a qual nosso autor pode não ter compreendido. O caso no capítulo 38 é diferente, não trata necessariamente de um fato sobrenatural, mas da maneira como a informação nos é apresentada que possui algo de fantástico. O capítulo descreve a chegada de nosso autor ao delta do Indo, no atual Paquistão, onde o mesmo avisa aqueles que recorrerem ao seu texto que a chegada pode ser identificada por “(...) cobras que emergem das profundezas para encontrá-los.”64 O trecho abre duas questões, uma de tradução e outra de escrita propriamente dita, onde existe um limite entre o que está sendo dito pelo autor e aquilo que é traduzido, o que significa questionar se as cobras que emergem das profundezas para nos encontrar é uma visão de nossos tradutores ou de nosso autor. A versão de Schoff é pouco diferente daquela de Casson: “Agora como um sinal de aproximação à região para aqueles vindos do mar, existem serpentes saindo das profundezas para lhe encontrar.”65 O trecho em questão no original grego traz os termos ​προαπαντωντες οφεις, o qual o significado pode ser entendido como “cobras que saem ao encontro [do navio]”6667, as traduções em si não fogem muito de seu sentido original, ainda está CASSON, 1989, p. 73. (Tradução Nossa). SCHOFF, 1912, p. 37. (Tradução Nossa). 66 PEREIRA, 1976, p.479. Pereira identifica o termo προαπαντωντες como “sair ao encontro do primeiro”. 67 PEREIRA, 1976, p. 47. 64 65 23 presente nele o ato de as cobras, aparentemente de forma proposital, irem de encontro ao navio. O que nos leva então à questão da escrita, aqui o autor deliberadamente escolher quais termos quer utilizar e o que quer que o leitor enxergue. Quando analisamos o trecho de maneira cética conseguimos entender que, provavelmente, a corrente por ser muito forte puxa as cobras que nadam pela beirada do delta para o mar aberto, ainda perto do delta, e dessa forma navios ao chegarem na região se deparam com elas. No entanto existe uma distância entre o provável significado do observado e aquilo narrado. Podemos notar então, um floreio consciente do observado pelo narrador. Tratar o encontro das cobras com o navio como uma atividade das cobras deixa este encontro com um tom de maravilha e fantasia. Este tom está diretamente associado aos termos utilizados, e mesmo assim, não podemos dizer que o narrado não foi aquilo que foi visto. Identificar o que realmente foi visto é um trabalho de suposições que ajudam a esclarecer nossa concepção dos eventos. Falar que o narrado é uma mentira, porém, é anacronismo e coloca a fonte em nossa análise e não nossa análise na fonte. Aos olhos de nosso narrador, já dotados de um imaginário sobre o Oriente, o encontro das cobras com os navios é consciente e ativamente buscado pelas mesmas. Nossa concepção de que o fato pode não ocorrer da maneira como é narrado nos revela as marcas do imaginário na mentalidade de nosso narrador. O capítulo 45 demonstra como o nosso narrador pode ser objetivo e, quando o quer, quase científico ao se deparar com situações inusitadas. Ao redor de Barygaza, atual Bharuch na Índia, próxima a foz do rio Narmada, as fortes correntes advindas do mar forçam os navios aportados no rio a subi-lo, mesmo contra seu curso natural. Nosso autor toma o tempo necessário para descrever-nos o evento, sua explicação e subsequente no capítulo 4668 como ancorar de forma segura. Nosso autor enxerga o acontecido como alguém com experiência no mar e, talvez querendo mostrar-se também hábil no mar, discute-o como se não passasse de uma trivialidade, uma mero jogo de forças entre as correntes do rio e do mar. Apresenta-nos uma causa e uma solução, encara de forma crítica um evento que 68 CASSON, 1989, p. 79. Para a tradução do capítulo, ver nota 39. 24 poderia ser facilmente compreendido como sobrenatural, transformando-o assim em natural. O trecho do capítulo 62 que nos interessa e menciona um grupo de pessoas com cara-de-cavalos que seriam canibais foi escolhido para compor a seleção desse grupo por ser uma das mais claras presenças do sobrenatural no texto, nem tanto pelo suposto canibalismo, mas mais pela designação do povo. Neste trecho o autor reconhece que a informação que nos é dada é suposta, ele fala do interior do subcontinente indiano, com o qual não teve contato. No entanto esse povo está presente no folclore dos Santal69 que fala de “uma raça de caras-de-cavalo ou narizes-de-cavalo que produzem sua própria moeda para comprar humanos para comer.”70 Quanto ao canibalismo, o imaginário em torno do termo e da prática na mentalidade greco-romana existe desde Heródoto, no parágrafo 99 do terceiro livro de suas Histórias, ele nos diz: “Outros indianos, morando a leste destes, são nômades e comem carne crua; eles são chamados Padaeans. Eles, é dito, tem os seguintes costumes. Quando alguém na comunidade está doente, se um homem, os homens mais próximos dele o matam, alegando que se fosse morto pela doença sua carne seria estragada; mas se ele negar que está doente, eles, sem concordar, o matam e se deleitam com ele. E se uma mulher que estiver doente, de maneira similar as mulheres mais próximas a ela fazem o mesmo que os homens. E quem quer que atinja a velhice, eles sacrificam e deleitam-se com ele; mas, poucos dentre eles atingem este estado, pois antes disso eles matam qualquer um que adoeça.”71 Aqui podemos ver a permanência do imaginário através dos séculos na mentalidade greco-romana. Nosso autor não questiona as informações que recebe em nenhum momento, pois para ele as informações confirmavam um pensamento já estabelecido no universo ao qual fazia parte. Fica evidente, portanto, que a separação entre mito e história ainda não havia sido realizada por completo, a história, como realizada pela antiguidade, permitia ao mito e o real conviverem numa verdade única, indistinguíveis uma da outra. O povo Santal se espalha pelo norte da Índia, Bangladesh e Nepal, sua maior presença é no estado de Jharkhand. 70 CASSON, 1989, p. 234. (Tradução Nossa). 71 HERODOTUS, 2003, p. 215. (Tradução Nossa) 69 25 O capítulo 66, último do Périplo, retorna ao tema do divino, novamente o insuperável, assim como os navios que não zarpavam de Moscha, é a resposta mais clara para os limites do mundo conhecido. Aqui o texto implica que, os motivos pelos quais nosso autor não passa deste ponto, as tempestades, frio e terreno difícil só podem ser superados por uma força quase divina, pois os deuses mesmos impediram o avanço. Portanto, o divino está presente naquilo que se estabelece para além da capacidade de nosso narrador, parece aqui um dos únicos momentos onde existe uma leve valorização de si mesmo, o homem que conseguir passar daquela região, por certo, será alguém de mérito divino, pois o próprio autor não realizou o feito. 4.4 - PODER, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO “2. À direita destes lugares, imediatamente após Berenice, vêm o país dos Barbaroi, a área costeira é habitada pelos Ichthyophagoi [comedores de peixes] que vivem em tendas construídas em áreas apertadas, por isso são em grupos esparsos, enquanto o interior é habitado pelos Barbaroi e os povos além deles, agriophagoi [comedores de animais selvagens] e os Moschophagoi [comedores de bezerros], organizados em chefias. No interior após eles, nas partes ao oeste está a [metrópole chamada Meroe].”72 “5. Após aproximadamente 800 estádios vêm outra baía, muito profunda, próxima a qual, em sua boca, pela direita, uma grande quantidade de areia se acumulou; embaixo dela, enterrado no fundo, pode-se encontrar obsidiana, criada naturalmente somente naquele local. O Senhor dessas regiões, dos Moschophagoi ao resto da Barbária, é Zoscálo, rigoroso sob suas possessões e sempre procurando adquirir mais, mas em outros respeitos uma boa pessoa e bem versada na leitura e escrita do grego.”73 “6. (...) um pouco de dinheiro romano para os estrangeiros residentes.”74 “23. Nove dias terra adentro está Saphar, a metropolis, residência de Caribael, rei legítimo das duas nações, dos Homeritas e a outra, logo após ela, chamada Sabá; ele é amigo dos Imperadores, graças à embaixadas e presentes.”75 “26. Após Okêlis, com as águas novamente abrindo-se para o leste e de pouco em pouco revelando o mar aberto, após aproximadamente 1.200 estádios de distância está a Arábia Próspera, um vilarejo na costa pertencendo ao mesmo reino de Caribael. Têm bons portos e fontes d’água mais doce do que as de Okêlis. Ela fica no começo de um golfo formado por CASSON, 1989, p. 51. (Tradução Nossa). CASSON, 1989, p. 53. (Tradução Nossa). 74 CASSON, 1989, p. 53. (Tradução Nossa). 75 CASSON, 1989, p. 63. (Tradução Nossa). 72 73 26 um recesso da costa. A Arábia Próspera, uma cidade por direito em dias anteriores, foi chamada Próspera quando, já que as embarcações vindas da Índia não subiam ao Egito e aquelas vindas do Egito não se atreviam a avançar mais além, mas somente até ali, recebia a carga de ambos, assim como Alexandria recebe cargas do exterior e do próprio Egito. E agora, não muito antes de nosso tempo, César a saqueou.”76 “57. Toda a rota costeira acima descrita, de Kanê e da Arábia Próspera, homens comumente navegavam com navios menores, seguindo as curvas das baías. O Capitão Hipalo, traçando a localização dos portos de comércio e a configuração do mar, foi o primeiro a descobrir a rota por mar aberto… Nesse local os ventos que chamamos “etésios” sopram sazonalmente na direção do oceano e assim um [vento] sudoeste aparece no mar Indiano, mas é chamado a partir do nome do primeiro a descobrir o caminho. Por essa razão, até o presente, alguns saem diretamente de Kanê e alguns do Promontório das Especiarias, e qualquer um a caminho de Limyrikê se mantém com o vento pela maior parte do caminho, mas aqueles a caminho de Barygaza e aqueles para a Skythia somente por três dias e não mais, e, carregados ao longo do caminho (?) pelo seu próprio curso, longe da costa no mar aberto, sob o oceano longe da terra, eles passam direto pelas baías mencionadas.”77 62. Ao redor desta área fica a região de Masalia, estendendo-se profundamente terra adentro; muitos vestuários de algodão são produzidos lá. Se você continuar a leste de lá através da baía que fica ao lado, você chegará na região de Dêsarênê, o habitat de um tipo de elefante chamado Bôsarê. Além dela, com o curso agora para o norte, estão numerosos povos bárbaros, entre os quais estão os Kirradai, uma raça de homens selvagens com narizes chatos, e outro povo, os Bargysoi, e os cara-de-cavalo, que dizem serem canibais.”78 A proposta desta seção do trabalho é tratar de como o autor enxergava e traduzia o mundo ao qual visitava, por quais características das pessoas e dos povos se interessou por onde passou, quais histórias julgou válido colocar em seu texto. Ainda, como este mundo é compreendido pelo autor, ou seja, como enxergava as dinâmicas de poder das regiões a quais visitou, e também, os representantes do poder local e a maneira como foram analisados pelo autor. Se adiciona a isso, também, uma breve análise sobre dinheiro na antiguidade e a implicação da maneira como aparece no texto segundo os tradutores. No segundo capítulo do Périplo nos deparamos com o primeiro encontro com “outros”79, imediatamente após Berenice, no país dos Barbaroi, junto aos quais aparecem três outros povos, os Ichthyophagoi, comedores de peixes, os CASSON, 1989, p. 65. (Tradução Nossa). CASSON, 1989, p. 87. (Tradução Nossa). 78 CASSON, 1989, p. 89. (Tradução Nossa). 79 Aqui entenda-se “outros” como pessoas e povos alheios à cultura e às práticas de nosso autor, portanto seguindo a hipótese de um autor egípcio-grego, as egípcias, gregas e romanas. 76 77 27 Agriophagoi, comedores de animais selvagens, e os Moschophagoi, comedores de bezerros. O interessante a se analisar neste capítulo é que nosso autor, aparentemente, não teve muito contato com esse povo, mas que os nomeou baseado em concepções as quais, observou, escutou ou inferiu. Dessa forma o segmento destes três grupos aparecem de acordo com uma característica específica, aqueles na costa se alimentam de peixes, por isso Ichthyphagoi, do grego Ιχθυοφάγος80, “que se alimenta de peixes”; os Agriophagoi abrem um debate tradutório interessante sobre o termo, Casson os traduz para “comedores de animais selvagens”81, a tradução de Schoff é próxima da de Casson, traduzindo o termo para “comedores de carne selvagem”82, no entanto a palavra agrios, do grego αγριος significa “aquele que vive nos campos”83, a tradução mais direta, portanto, seria “aqueles que se alimentam do campo”. Aqui cabe apontar que existe uma distância entre “comedores de animais selvagens” e “aqueles que se alimentam do campo”. A decisão dos autores durante a tradução se deve à uma manutenção da tradição tradutória do Périplo, pois podemos notar que não há uma mudança significativa entre o termo empregado por Schoff e aquele de Casson, quando ambas traduções se separam por um período de setenta e sete anos. Se justifica também a escolha do termo quando aceito que o povo da região da Barbária não possuía agricultura, e, sendo os Moschophagoi pastores, pois comem bezerros, há de se supor que aqueles ao meio, os Agriophagoi, se alimentavam da caça. É interessante notar, ainda, que o autor realizada uma caminhada à civilização. Dos povos da Barbária, cujo o nome já implica ao barbarismo, sem agricultura, rudes, que vivem somente para subsistência passamos por etapas, do litoral ao interior, aqueles que se alimentam de peixe e moram em cabanas, aqueles que se alimentam da própria terra (mas ainda sem agricultura) e aqueles que criam sua própria comida, até que cheguemos à metrópole de Méroe84, já na época PEREIRA, 1976, p. 283. O termo no grego original no texto aparece verbalizado como Ιχθυοφάγων (CASSON, 1989, p. 50). 81 CASSON, 1989, p. 51. 82 SCHOFF, 1912, p. 22. 83 PEREIRA, 1976, p. 7. 84 A cidade de Méroe está localizada no Sudão, serviu como local central para o comércio entre a África Central e o Egito, sua importância diminui no século IV E.C. (CASSON, 1989, p. 100.) 80 28 (século I E.C.) um centro populacional e comercial importante na região; Méroe se encaixava na noção greco-romana de civilização, possuía agricultura, escrita, seus líderes eram versados no grego e mantinham relações comerciais e diplomáticas constantes Nilo acima. O quinto capítulo do Périplo traz a primeira menção à um indivíduo, este sendo Zoscálo, não recebemos nenhuma informação física do homem, mas sim outras informações que nosso autor parece achar relevante, Zoscálo aparece-nos como um homem rigoroso, com as possessões já sob seu controle, e ambicioso, querendo sempre mais. Aqui podemos ver que cria-se uma face negativa de Zoscálo, supõe-se que pela ambição como justificativa da expansão, podemos, com a devida proporção trabalhar com a existência de uma certa húbris85 em Zoscálo. Posteriormente os valores são invertidos, a face negativa de Zoscálo como alguém que busca sempre mais é substituída pela do Senhor civilizado, pois é “em outros respeitos uma boa pessoa e bem versada na leitura e escrita do grego”86 dessa forma a suposta “civilidade” de Zoscálo aparece em sua compreensão do grego, bem como a forma como a sentença está construída, primeiro o negativo então o positivo, implica num perdão à húbris de Zoscálo por possuir conhecimento do grego. O capítulo 6 está presente nesta seção por compreender uma visão do autor de seu mundo que se relaciona diretamente com a maneira com a qual lida com o mundo no qual está inserido. Assim, a necessidade de dinheiro romano para os estrangeiros implica, primeiro, que existe uma comunidade ativa de estrangeiros mediterrâneos na região, nosso autor não é o único a realizar o trajeto, existem outros que o realizam, dessa forma o Mar Eritreu está repleto de residentes mediterrâneos por toda sua extensão. A única questão que deve ser problematizada presente no sexto capítulo é justamento o uso do termo “moeda romana”, Casson utiliza “roman money” quando o termo utilizado pelo autor do Périplo é “δηνάριον”, em português, “denário”. Problematizamos o termo por implicar, primeiro, que são moedas romanas para cidadãos romanos, que, no entanto, são egípcios-gregos, assim levantando o 85 86 Húbris pode ser traduzida como o “Excesso; orgulho; impetuosidade” (PEREIRA, 1976, p. 586). CASSON, 1989, p. 53. 29 denário como reconhecido por uma economia-mundo como moeda forte de um mediterrâneo unificado sob o seio de Roma. Segundo, nosso autor, apesar de uma egípcio-grego, estaria representando interesses romanos na região, e por esse motivo utilizaria denários, e não dracmas87 gregos ou moedas alexandrinas88, no entanto além das menções da atividade militar e diplomática romana na região do Mar Eritreu, não é mencionado contatos comerciais diretos com Roma ou mesmo que a realização da viagem tem alguma relação com Roma. Não obstante a própria escolha de tratar o denário como moeda franca do Império Romano ainda demonstra uma tradição da historiografia em associar o mundo romano a um império centralizado sob a égide de Roma, onde as províncias não exerciam suas próprias mecânicas de poder e relações e interesses econômicos. O capítulo 23 nos evidencia as constantes relações diplomáticas entre Roma e o Oriente, o autor não entra em detalhes sobre Caribael, por falta de informação ou interesse, no entanto acha necessário escrever que o Rei é amigo dos Imperadores, aqui não entra em detalhes sobre os Imperadores, mas nos dá a certeza de que em seu tempo haviam, pelo menos, dois Imperadores em Roma. O autor não nos diz, também, sobre a natureza dos presentes enviados para Roma, Casson levanta somente uma informação fornecida por Plínio, e sugere que mirra faria parte destes presentes: “Uma passagem em Plínio (12.57) faz referência a tais embaixadas e fornece uma pista sobre a natureza dos presentes. Discutindo quão pouco é conhecido sobre a árvore do incenso, ele observa que “as embaixadas que vieram da Arábia durante meu tempo de vida” e segue com uma menção de “galhos de incenso que vieram até nós,” claramente implicando uma conexão entre os dois, que o incenso havia sido levado pelas embaixadas. Plínio não menciona a mirra, já que não era relevante ao tema; Caribael, Senhor da área onde a mirra crescia (ver em 24:8.9)89, sem dúvida haveria mandado mirra.”90 O dracma foi utilizado pelas cidades helênicas e posteriormente pela maior parte dos territórios conquistados por Alexandre Magno, ainda era utilizada durante o Império Romano, equivalente a cerca de ¾ de um denário. 88 Alexandria cunhou moedas próprias que eram usadas por todo o Egito desde os Faraós Ptolomaicos até 296 E.C. quando o Imperador Diocleciano reformou o sistema monetário de todo o Império. 89 Uma referência dentro do Périplo, para se localizar no texto as referências são dadas pelo número do capítulo (24), o número da página e linha na edição de Frisk (8.9), que serve de base para todas as edições recentes. 90 CASSON, 1989, p. 151. 87 30 O capítulo 26 nos leva ao já mencionado saque da Arábia Próspera por César, sua aparição no Périplo vêm ausente de muitas informações, não nos traz data ou motivos, não podemos nem mesmo ter certeza sobre qual César foi responsável sobre o ataque e sua veracidade. A única expedição romana para a região foi executada por Élio Galo em 24 A.E.C. sob ordens de Augusto. Casson trabalha com três opiniões variantes, a primeira, onde diversos autores simplesmente cortam a menção a César, substituindo-a por outros91. A segunda, de que baseados em Plínio, algum Imperador haveria de ter enviado uma expedição à região, com os nomes variando de Augusto até Septímio Severo. A terceira, trabalha com a ideia de que as memórias referentes à invasão haviam se confundido, portanto o Périplo estaria nos falando da expedição de Galo, confundindo-o com César (novamente, não se sabe com qual César o autor se confundiu) ocorrida quase um século antes de sua escrita, e, que mesmo assim, não temos confirmação de um ataque contra a cidade de mesmo nome da região92. O capítulo 57 nos apresenta à Hipalo, dado no Périplo como o primeiro navegante ocidental à utilizar o vento de monções para cruzar do Mar Vermelho para a Índia. Existe já na época de nosso autor uma tradição em torno da imagem de Hipalo, ela é compartilhada por diversos autores antigos anteriores e posteriores ao autor, como Plínio, o Velho. Neste capítulo é interessante notar o interesse do autor não somente em nos fornecer a informação necessária para cruzar o oceano através dos ventos, mas também de reconhecer que o feito é constantemente realizado, tendo sido feito primeiro por Hipalo, assim dando veracidade à sua narrativa. O capítulo 62 nos leva ao final do percurso do Périplo, onde o autor nos fala de duas tribos bárbaras, uma delas já analisada no capítulo anterior93 e os Kirradai. Novamente como no capítulo 294 o autor se interessa somente na informação de que as pessoas desse povo possuem narizes chatos, repetindo seu processo de CASSON, 1989, p. 169. Casson cita Müller e Fabricius, que trabalham com o nome Elisar e Schoff, que trabalha com o nome Caribael (1912, p. 32.). 92 O autor do Périplo nos traz uma cidade com o nome de Arábia Próspera, no entanto os romanos também utilizavam o nome para toda a região do Golfo de Áden. 93 Ver p. 23. 94 Ver p. 26. 91 31 localizar, nos povos os quais encontra ou escuta falar sobre, sua característica mais comum, aqui no entanto o nome não provém do grego, como no caso dos Ichtyphagoi, Agriphagoi e Moschophagoi, mas sim no nome dado pelos próprios habitantes da região95, mas evidencia a forma como o autor constrói o seu pensamento dos povos das regiões pelas quais passa. 4.5 - SOB A SOMBRA DE ALEXANDRE “​41. Imediatamente após o Golfo de Barake está o Golfo de Barygaza e a costa da região de Ariake, está o começo de ambos o reino de Manbano e de toda a Índia. O interior, que faz fronteira com a Skythia, é chamado de Aberia, a parte ao longo da costa de Syrastrene. A região, muito fértil, produz grãos, arroz, óleo de gergelim, ​ghee96, algodão, e tecido indiano produzido com ele, aqueles de qualidade comum. Existem muitos rebanhos de gado, e os homens são grandes e sua pele escura. A metrópole da região é Minnagara, da qual grandes quantidades de tecido são levados para Barygaza. Nesta área ainda estão preservados até hoje sinais da expedição de Alexandre, altares antigos e as bases de acampamentos e grandes poços. A viagem ao longo da costa desta região, de Barbarikon até o promontório perto de Astakapra em frente à Barygaza chamado Papike, é de 3.000 estádios.”97 “47. No interior atrás de Barygaza existem numerosos povos: os Aratrioi, Arachusioi, Gandaraioi, e o povo Proklais, em cuja a área está localizada Bukephalos Alexandreia. E além deles está um povo muito guerreiro, os Bactrios, sob um rei ...98. Alexandre, partindo destas partes, penetrou tão longe quanto o Ganges mas não chegou à Limyrike e o sul da Índia. Por causa disto, pode-se encontrar no mercado em Barygaza ainda hoje dracmas antigos gravados com inscrições, em letras gregas, de Apolodotos99 e Menandro100, Senhores que vieram após Alexandre.”101 Nesta seção pretendemos discutir o imaginário em torno da figura de Alexandre Magno presente no Périplo, o objetivo de seu aparecimento, o que sobre Alexandre nos é dito pelo autor, e por consequência o que a presença no texto do fantasma de Alexandre implica para os capítulos analisados. Em suma, por que CASSON, 1989, p. 234. Ptolomeu identifica (7.2.16) a região como Kirradia, logo, seus habitantes, os Kirradai. 96 Tipo de manteiga tradicional da Índia. 97 CASSON, 1989, p. 77. (Tradução Nossa). 98 Os pontos significam um trecho ilegível do Périplo. 99 Rei do reino Indo-Grego entre 180 e 160 A.E.C. 100 Rei do reino Indo-Grego entre 160 e 130 A.E.C. 101 CASSON, 1989, p. 81. 95 32 menciona-lo, a importância, se existe, do autor se referenciar às suas campanhas e o que elas significaram para o imaginário romano do Oriente. No capítulo 41, ao chegar no porto de Barygaza, o qual nosso autor reconhece como o início da Índia, portanto colocando-o na fronteira com o rio Indo, nos descreve os produtos que lá podemos encontrar, a região com a qual faz fronteira, neste caso a região da Cítia, que se estendia, para os antigos, desde a Sarmatia na Criméia, toda a Ásia Central, do Mar Cáspio ao Tibete e adentrava no subcontinente indiano. E a grande metrópole e provavelmente capital da região, Minnagara102. Na região, diz-nos o autor, ainda é possível encontrar “(...) preservados até hoje sinais da expedição de Alexandre (...)” e assim entramos na discussão proposta pela seção, a cidade de Barygaza se localiza no rio Narmada, já em pleno continente indiano, Alexandre Magno, no entanto, jamais ultrapassou as fronteiras do rio Hyphasis, no norte da Índia, próximo a atual Caxemira, e foi no local que seu exército se recusou a segui-lo: “Foi reportado que a terra além do rio Hyphasis era fértil, e que os homens eram bons agricultores, e bravos na guerra; e que conduziam seus interesses políticos de maneira regular e constitucional. Pois eram governados por uma aristocracia, que governavam em nenhuma maneira contrários às leis da moderação. Fora falado que os homens daquele distrito possuíam muito mais elefantes que os outros indianos, e que eram homens de grandes estaturas, e que se destacavam em bravura. Estes relatórios excitaram em Alexandre um desejo ardente de avançar além; mas o espírito dos macedônios agora começava a cair, quando viram o Rei ordenar trabalho atrás de trabalho, e incorrer um perigo atrás de perigo. Conferências foram realizadas por todo o campo, nas quais aqueles mais moderados falaram sua opinião, enquanto outros resolutamente declararam que não iriam seguir Alexandre mais distante, nem mesmo se o próprio liderasse o caminho.”103 Isso demonstra que ao homem letrado, mas não um erudito, existe uma memória da extensão do Império de Alexandre que ultrapassa as fronteiras as quais fixou. É possível se identificar, portanto, um forte imaginário no homem greco-romano da extensão das conquistas de Alexandre, o autor não demonstra nenhuma dúvida de que aquelas estruturas eram dessa época. 102 103 CASSON, 1989, p. 199. ARRIAN. Cit. in. MAJUMDAR, 1960, p. 52. (Tradução Nossa). 33 Apesar disso, é necessário notar que William Tarn104 reconhece que os sinais encontrados pelo nosso autor em Barygaza apesar de gregos, eram na realidade restos da expedição que Apolodotos lançou na região em meados do século II A.E.C.. Casson nos traz sua análise e adiciona o que parece ser sua própria compreensão do trecho: “Também é possível que os restos tenham pouca ou nenhuma relação com Apolodotos e Alexandre, que talvez seriam, como outros casos similares, manufaturados por guias locais para agradar turistas do Ocidente.”105 A questão levantada a partir disso, apesar das sugestões de Tarn e Casson, realizadas fora do tempo de nosso autor, que considera os restos alexandrinos e originais, é a de que a região da Índia conquistada por Alexandre se expande na mentalidade greco-romana, posterior às campanhas de Alexandre, como cobrindo grande parte da Índia real quando na verdade Alexandre não avançou muito além do atual Paquistão deixando mais ⅘ da região que chamamos de Índia de fora. Criando-se assim um imaginário tanto da imagem de Alexandre, de suas conquistas e da real extensão territorial do Império mas também dos limites da penetração ocidental neste Oriente até então desconhecido. O capítulo 47 explicita o discutido no capítulo 41, aqui as fronteiras do Império de Alexandre são esticadas e confundidas, primeiro o autor confunde a cidade de Proklais com uma região106, na qual situa erroneamente a cidade helênica de Bukephalos Alexandria fundada por Alexandre em homenagem a seu cavalo Bucéfalo, que faleceu após uma batalha no Hydaspes: “Alexandre fundou duas cidades, uma onde a batalha tomou conta, e a outra no local onde iniciou a cruzar o rio Hydaspes; a primeira ele nomeou Nicaea, em homenagem a sua vitória contra os indianos, e a outra Buceph​ala, em memória de seu cavalo Bucéfalo, que lá morreu, não por ter sido ferido por alguém, mas dos efeitos do esforço e da idade; pois ele tinha trinta anos de vida, e bastante desgastado com a fadiga. Esse Bucéfalo havia compartilhado muitas dificuldades e perigos com Alexandre durante muitos anos, sendo montado por ninguém além do Rei, pois rejeitava todos os outros cavaleiros.”107 TARN, 1922, p. 148. CASSON, 1989, p. 200. (Tradução Nossa). 106 CASSON, 1989, p. 204. 107 ARRIAN. Cit. in. MAJUMDAR, 1960, p. 43. (Tradução Nossa) 104 105 34 ​Para o autor, também, Alexandre haveria chego em seu último desejo antes de seus soldados decidirem pelo fim da campanha, o autor afirma que “Alexandre, partindo destas partes, penetrou tão longe quanto o Ganges”108 e, como já trabalhado anteriormente, as fronteiras do Império de Alexandre não ultrapassaram o rio Hyphasis109. Casson identifica que a crença de que Alexandre havia chego ao Ganges não é invenção de nosso autor, há uma carta citada por Estrabão110, supostamente escrita por Crátero111 que fala da chegada ao rio e uma breve descrição: “Circula uma carta de Crátero a sua mãe Aristopatra, que contém muitas outras circunstâncias singulares e difere de todos os outros escritores, particularmente ao dizer que Alexandre avançou até o Ganges. Craterus diz que ele próprio viu o rio e fala do que viu e de sua magnitude, largura e profundidade, excede em muito, e não aproxima, a probabilidade. Porque o Ganges é o maior dos rios conhecidos nos três continentes, é geralmente aceito; próximo a ele é o Indus; e, terceiro, o Danúbio; e, quarto, o Nilo. Mas diferentes autores diferem em sua descrição, alguns atribuindo 30, outros 3 estádios, como a menor amplitude.”112 A teoria de Tarn de que os autor estaria confundindo Alexandre com Apolodotos parece se confirmar no capítulo 47, pois aqui o autor menciona que encontram-se dracmas marcados com o nome de Apolodotos e de Menandro. A suposição, se certa ou errada, não interfere com a proposta do trabalho, pois pretendemos analisar a verdade do autor, e para todos os casos o autor considera os sinais encontrados como deixados pelas campanhas de Alexandre, portanto assim devemos considerá-los. Assim podemos notar que existe uma tradição escrita que desafia a realidade das fronteiras demarcadas pelas campanhas de Alexandre Magno, a qual encontra em nosso autor alguém que à propague, e demonstra que enquanto os eruditos, como Estrabão, detinham um conhecimento maior da realidade das expedições de CASSON, 1989, p. 81. Por motivos de ilustração, a distância entre Jalandhar (nas redondezas do rio Hyphasis) e Baruch (nome atual de Barygaza) é de aproximadamente 1380 Km. E a de Jalandhar até Haridwar (próxima à nascente do Ganges) é de aproximadamente 340 Km. 110 CASSON, 1989, p. 205. 111 Crátero foi um dos generais de Alexandre Magno e um dos diádocos, sendo apontado por Alexandre como regente da Macedônia, faleceu em 321 A.E.C. 112 STRABO, 1903, 15.1.35. (Tradução Nossa) 108 109 35 Alexandre, ao simples comerciante a dimensão dessas expedições se confundem, as fronteiras se esticam e, como resultado, o fantasma de Alexandre Magno propaga uma grande sombra sobre todo o subcontinente indiano. 4.6 - ALÉM DOS LIMITES CONHECIDOS “39. Embarcações atracam em Barbarikon, mas toda a carga é levada rio acima para o Rei na metrópole113. Neste porto de comércio existe um mercado para: roupas, sem adornos em boa quantidade, com adornos em quantidade limitada; tecidos multicoloridos; peridoto; coral; storax114; incenso; artigos de vidro; prataria; dinheiro; vinho, quantidade limitada. Em retorno oferece: costus115; bdélio; ​lykion116; nardo; turquesa; lapis lazuli; peles, tecidos e fios chineses; índigo. Aqueles que navegam com os Indianos [os ventos] o fazem perto de julho, isto é, Epeiph117. Atravessar com eles é difícil, mas absolutamente favorável e curto.”118 64. “Além desta região, agora no ponto mais ao norte, onde o mar termina em algum ponto da orla externa, existe uma cidade interiorana muito grande chamada Thina, da qual seda crua, em fios e em tecidos são enviados por terra via Bactria para Barygaza e via o rio Ganges de volta a Limyrikê. Não é fácil chegar a essa Thina; pois raramente as pessoas vêm dela, e apenas algumas. A área fica sob a Ursa Menor e, diz-se, é contígua às partes do Pontus e do Mar Cáspio, onde essas partes se desligam, perto do lago Maeotis, que fica paralelo, juntamente com [sc. o Cáspio] e deságua no oceano.119 O objetivo desta seção é trabalhar com trechos do Périplo que tocam em um único tema, a China, analisando dessa forma a sua presença no mundo do Mar Eritreu e no imaginário greco-romano. O nosso autor não a visita, só nos transmite aquilo que lhe é contado e do que já digeriu da tradição greco-romana. O capítulo 39 foi selecionado por ser o primeiro a nos trazer informações sobre a China, dela fluem peles e seda. No entanto o termo utilizado pelo nosso autor, o qual Casson traduz como China, é a Serica120. O nome faz parte de uma antiga tradição greco-romana, Pausânias o dá como justificativa do nome dado ao bicho da seda: Minnagar. Um tipo de bálsamo. 115 A raíz perfumada da ​Saussurea lappa.​ 116 Um tipo de droga nativa da Lícia, neste caso o autor usa o termo para uma variedade indiana. 117 O décimo primeiro mês do calendário egípcio antigo. 118 CASSON, 1989, p. 75(tradução Nossa). 119 CASSON, 1989, p. 91. (Tradução Nossa). 120 O termo no texto aparece no grego Σερικα δέρματα, ou seja, peles (PEREIRA, 1976, p. 124) Sericas. 113 114 36 “(...) Existe na terra dos Seres um inseto que os gregos chamam de ​ser,​ embora os Seres lhe dêem outro nome.”121 Apesar desta noção, a qual outros autores clássicos não possuíam, muitos supondo que a seda provinha de certas árvores, Pausânias coloca a localização da Serica como um recesso do Mar Eritreu122, nosso autor não parece envolver a Serica como parte integrante do Mar Eritreu, mas integrante em sua dinâmica comercial. Plínio em sua História Natural têm uma melhor noção da localização da Serica como era pensada, uma região correspondente ao norte da China: “Depois de atravessarmos o Mar Cáspio e o Oceano Cita, nosso curso toma uma direção leste, como a virada aqui pela linha da costa. A primeira parte dessas margens, depois de passarmos pelo promontório cita, é totalmente inabitável, devido à neve, e as regiões adjacentes não são cultivadas, em conseqüência do estado selvagem das nações que ali habitam. Aqui estão as moradas dos antropófagos citas, que se alimentam de carne humana. Por isso, tudo o que os rodeia consiste em vastos desertos, habitados por multidões de animais selvagens, que permanecem sempre à espera, prontos para cair sobre os seres humanos tão selvagens quanto eles. Depois de abandoná-los, chegamos novamente a uma nação dos citas, e depois novamente à áreas desertas arrendadas por animais selvagens, até chegarmos a uma cadeia de montanhas que sobe ao mar e leva o nome de Tabis. no entanto, antes de atravessarmos quase metade da costa que olha para o nordeste, achamos que ela é ocupada por habitantes. As primeiras pessoas conhecidas aqui são os Seres (...)”123 Como o capítulo 39, o capítulo 64, já no final da jornada narrada no Périplo, nos fala da China, mas para a mentalidade de nosso autor se trata de duas coisas diferentes, dessa forma o autor falha em perceber que as peles encontradas em Barbarikon e as peles encontradas no Ganges provêm da mesma região, sabe que a seda flui para Barbarikon por meios terrestres, descendo-se pela Bactria até o subcontinente indiano, enquanto flui para o Ganges por meio do rio. No entanto mesmo sabendo desta relação, ainda considera as peles e as sedas localizadas em Barbarikon como Sericas, e não provenientes da Thina. PAUSANIAS, 1918, 6.26.6. (Tradução Nossa) PAUSANIAS, 1918, 6.26.8. 123 PLINY, 1855, 6.20. 121 122 37 Casson124 infere que o nome dado pelo nosso autor, Thina125, seria uma inflexão do termo Sinae utilizado por Ptolomeu126, sendo apenas outra nomenclatura para o país acessível por meios fluviais, em contraponto a Serica, alcançada por meios terrestres. Portanto, podemos notar que ​o autor parece falhar em notar que está falando do mesmo local por uma tradição presente que separa a China em norte e sul​: “A Sinae se limita ao norte pela parte acessível da Serica a leste pelo meridiano que marca a terra desconhecida; a oeste pela Índia, além do Ganges, ao longo da fronteira indicada até a Grande Baía (Sinus Magnus), e da Grande Baía e das partes adjacentes à terra dos animais selvagens e por essa parte da Sinae em que os etíopes comedores de peixes habitam ao lado do que descrevemos.”127 5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS O proposto por este trabalho, de se trabalhar duas traduções, para uma análise do imaginário romano do Oriente permitiu que fosse identificada uma tradição de tradução que varia pouco de um autor para o outro. Claro, como se espera da mudança das épocas, a linguagem é atualizada, dessa forma ao leitor com menor familiaridade ao inglês terá mais dificuldade ao ler o texto de Schoff do que o texto de Casson, e apesar disto, as informações passadas por eles é. se não as mesmas, muito similares. Existem ainda momentos nos quais as traduções trazem mais questões para o texto do que aquilo expresso na própria fonte, como é o caso de nossa digressão sobre o significado de denário como moeda romana128, as implicações do uso do termo pelos tradutores adiciona muito mais à discussão do que traria se dependêssemos somente do texto de nosso autor. Portanto, as traduções serviram seu propósito, tornaram o texto compreensível sem que fosse necessário um eterno retorno ao original grego. Casson consegue tornar a tradução mais dinâmica e atual do que a de Schoff e nos CASSON, 1989, p. 238. Do grego Θινα. 126 CASSON, 1989, p. 238. 127 PTOLEMY, 1991, p. 157. 128 Vide p. 31. 124 125 38 apresenta um texto muito mais sóbrio do que o de Schoff, não faz suposições longas sobre as possibilidades em torno dos locais e pessoas descritas pelo Périplo, nos traz apenas as mais recentes e mais prováveis relações. Além disso, algo que deve ser notado é que Casson reduz as referências aos textos clássicos, quando necessário os coloca, e também com referências atuais Casson não pretende uma discussão, nos passa a suposição mais provável e é bem claro que não pretende defender ou criticar, nos dá as referências para trabalhos que discutem a suposição feita, diferente de Schoff que toma seu tempo para fazer o máximo possível de referências a textos clássicos e trabalhos recentes de sua época, sejam eles necessários ou não. O Périplo do Mar Eritreu se apresenta como peça essencial para a compreensão de uma mentalidade ocidental sobre o Oriente, primeiro porque não é um tratado, aqui nosso autor coloca o que vê e o que pensa sem a preocupação de defender sua posição, suas afirmações estão protegidas por uma antiga tradição que atesta aquilo que é escrito. Assim, se o estudo do imaginário, da mentalidade e da representação deve ser, como proposto por este trabalho, também realizado pela História Antiga. Poucos textos podem ser tão importantes para esta realização do que um texto que não questiona, ou procura defender, aquilo que está escrito nele, pois demonstra que a veracidade do escrito pelo autor não está numa suposição, mas se ergue sob um pilar fundamental de ideias e verdades já estabelecidas. Podemos concluir, portanto, que o Périplo do Mar Eritreu, além de nos apresentar um panorama da economia e do comércio no Mar Eritreu do século I E.C., é um texto dotado de muito mais informações, além das econômicas. A intenção do autor em nos trazer uma análise antropológica e histórica dos lugares os quais visita demonstra uma forte vontade de tornar o que é narrado sensível ao leitor. E justamente nestas análises que traços claros de um imaginário, enraizado numa tradição escrita e oral do mundo greco-romano, podem ser encontrados. Diferente das análises de Casson e Schoff este trabalho não procurou demonstrar o erro e corrigi-lo, mas sim tratar o trabalhado pelo autor como verdade, a verdade de 39 seu tempo, e identificando o percurso da tradição greco-romana que permitiu ao nosso autor escrever seu texto à maneira que o fez. Assim, identificamos que os limites do mundo conhecidos pelo autor não são frutos de sua imaginação, nem das suposições de um navegador errante, mas sim uma verdade evidenciada no próprio Aristóteles129. Não é relevante ao trabalho tratar o assumido pelo autor como mentira pois o texto só se torna completo se admitirmos que para a mentalidade do autor, que ultrapassa os limites dos geógrafos antigos, é inviável argumentar contra uma tradição já estabelecida. Tão forte é a necessidade do autor de basear os fatos narrados em uma tradição pré estabelecida que, ao se deparar com o sobrenatural, muitas vezes sua análise parece-nos incompleta, apesar de nos dar certeza dos canibais no subcontinente indiano, ideia já mencionada por Heródoto, o autor não analisa profundamente aquilo que não conhece. Evidência disto é o fato dos deuses serem mencionados em somente dois capítulos (32 e 66) dos 66 capítulos do Périplo. No entanto a maneira como o autor analisa os povos e pessoas com os quais se depara em sua viagem é dotada de uma mentalidade que é conscientemente aplicada no texto. O autor menciona o nome do povo, ou líder, avança para suas características mais evidentes, ou interessantes, e, principalmente com pessoas, suas qualidades quando comparadas à um ideal grego de civilização e barbárie. Por toda a viagem pelo continente indiano, e as eventuais entradas no subcontinente, somos acompanhados pelo fantasma de Alexandro Magno, que deixa evidente que o Ocidente do qual nosso autor partiu ainda não superou a queda deste Império, dessa forma o autor se agarra em qualquer coisa que possa dar a entender a presença alexandrina pelas regiões às quais passou. Aquilo que reside além dos limites conhecidos deixa claro que nosso autor não pretende ir contra a tradição greco-romana quando deparado com ela, o autor reproduz a tradição ao manter uma separação, que em seu texto se confunde e se dispersa, entre a Serica e a Thina (Sinae), onde aparenta saber que fala da mesma região, mas ao mesmo tempo, regiões que se diferem uma da outra. Assim o trabalho suporta, em sua análise dos indícios de um imaginário no Périplo do Mar Eritreu que, esse imaginário não pode ser excluído do corpo do 129 ARISTOTLE, 1930, p. 918. 40 texto, fazendo com que se perca a total intenção do autor, e que entender o que nos é narrado não deve ser analisado como falácias técnicas escritas por um homem semi-letrado sem interesse com a verdade, mas sim como a reprodução de uma tradição escrita e oral que somente quando aceita como a verdade da época pode nos permitir uma análise completa do texto. Conclui-se portanto que o objetivo inicial deste trabalho, “de analisar a existência​, e as condições para tal, de um imaginário em relação a um Oriente proveniente da mentalidade greco-romana.”, foi, de maneira breve, realizada. Dessa forma o Périplo se mostra um texto muito mais rico para nossa compreensão da mentalidade ocidental em relação ao Oriente do que os diversos autores pelos quais ele passou pela análise deixam evidente. Permite-nos também trazer a tona que o conhecimento do mundo antigo não está restrito a escribas e aos estudiosos ricos e privilegiados como uma tradição estereotipada da Antiguidade estabelecerá, mas também que esse conhecimento permeia os diversos níveis da sociedade, nosso mercador é dotado de conhecimento, e, estando ou não as obras clássicas da literatura e filosofia greco-romana presentes em seu repertório, ignorar este conhecimento como algo alheio a uma análise econômica é dar as costas à mentalidade de toda uma época. 41 MAPAS Mapa 1: Primeira rota: Berenice à Rhapta (Zanzibar). 42 Mapa 2: Segunda rota: Berenice ao Ganges. 43 Mapa 3: Mapa completo do Périplo do Mar Eritreu. 44 BIBLIOGRAFIA APOLLODORUS. ​The Library of Greek Mythology. ​3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2008. 291 p. ARISTOTLE. ​Aristotle Organon And Other Works. ​Oxford: Clarendon Press, 1908-1924. 3354 p. BEARD, Mary. ​SPQR: ​A History of Ancient Rome. 2. ed. Londres: Profile Books, 2016. 606 p. 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