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PARA LIBERTAR O MEU FILHO: ESTRATÉGIAS UTILIZADAS POR FORRAS E ESCRAVAS AO ALFORRIAREM NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII EM MINAS GERAIS25 To free my son: strategies used by liners and slaves as they freed in the second half os the XVIII Century in Minas Gerais Carlo Guimarães Monti Professor da FAHIST/ICH e do Mestrado Profissional em História, Profhistoria da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). E-mail: carlogmonti@unifesspa.edu.br RESUMO A alforria não foi uma ação isolada de um escravo e suas artimanhas, nem esteve somente apoiado em pagamentos. Os cativos tiveram que cumprir com uma série de obrigações e expectativas definidas pelo senhor e realizá-las. Em alguns casos a família escrava constituiu uma rede de ajuda para auxiliá-los no pagamento. Mais do que demonstrar que tinha expediente, o cativo demonstrou que era capaz de receber um empréstimo, capaz de pagar um grande valor. Tais demonstrações de confiança foram criadas ainda enquanto escravo, seguindo premissas existentes. Em grande parte dos casos, a experiência escrava foi saber caminhar pelos espaços consentidos. O grupo familiar teve papel relevante dentro do processo da alforria ao acompanhar e apoiar seus membros na transição de escravo a liberto, várias estratégias foram utilizadas por mães, pais, avós, padrinhos e fiadores que constituíram uma rede familiar que possibilitou a concretização de várias liberdades na segunda metade do século XVIII em Mariana. Palavras-chaves Alforrias. Família escrava. Minas Gerais. ABSTRACT Manumission was not an isolated action of a slave and his wiles, nor was he only supported by payments. The captives had to fulfill a series of obligations and expectations defined by you and carry them out. In some 25 A pesquisa para a elaboração deste artigo contou com o apoio da FAPESP (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo). VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 27 cases the slave family has formed a network of help to assist them in payment. More than demonstrating that he had an expedient, the captive demonstrated that he was capable of receiving a loan, capable of paying great value. Such demonstrations of trust were still created as a slave, following existing premises. The slave experience was knowing how to walk through the spaces consented. The family group played an important role in the process of manumission by accompanying and supporting its members in the transition from slave to freed, several strategies were used by mothers, fathers, grandparents, godparents and guarantors who constituted a family network that enabled the realization of several freedoms in the second half of the eighteenth century in Mariana. Keywords Manumission. Slave Family. Minas Gerais. MARIANA E SEU TERMO As alforrias foram pesquisadas para Mariana e seu termo na segunda metade do século XVIII: “originalmente Arraial do Carmo até o ano de 1711, quando el-rei D. João V lhe deu foral, e o nome de Vila Real do Carmo, criada cidade episcopal em 1745” (CASAL, 1976, p. 31). Foi a primeira cidade da Capitania de Minas Gerais elevada a tal para poder tornar-se sede de bispado ainda no auge da exploração aurífera. A cidade de Mariana está junto à margem direita do Ribeirão do Carmo, que foi inicialmente ocupado em 1696 pelas bandeiras de Miguel Garcia e do Coronel Salvador Furtado (FONSECA, 1995). A total ocupação do Ribeirão do Carmo, somente se operou em 1700, “[...] numa extensão de duas léguas, pelas barrancas do mesmo, prosseguindo, depois, os descobrimentos rio abaixo, que de acordo com as esperanças, deu boas pintas” (LIMA JR, 1962, p. 31). Com os novos descobrimentos a jurisdição da cidade foi em muito aumentada, abrangendo os sertões dos rios Pomba, Muriaé e Doce. Cercada por vários arraiais criados no território administrativamente dependente da sede do município, esses compunham o termo de Mariana, que do ponto de vista eclesiástico era composto por 12 freguesias, 53% delas pertencendo à zona da mata e só desmembradas a partir dos anos trinta do século XIX (ALMEIDA, 1994). Quando da criação da Capitania de Minas Gerais em 1721, a coroa optou por fixar a sede em Vila Rica, que foi elevada a cabeça da comarca e passou a ter importância administrativa e política. Mariana tinha a Câmara como provedora de renda e o fato de ser um centro administrativo regional lhe dava importância. Para VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 28 esta cidade afluíam pessoas com os mais diversos interesses, fazendo dela uma das três principais da Capitania que pelo comércio e riquezas pesavam nas arrecadações reais. Com Vila Rica e Sabará formava os núcleos urbanos mais importantes de Minas Gerais. Em 1750 ocorreu a instalação do Seminário da Boa Morte transformando assim a cidade em centro educacional. O Senado da Câmara reunia os poderes legislativos e executivos, praticando também o judiciário das “comunas”. Os seus membros passavam por eleições anuais para ocupar as três cadeiras de vereadores, o cargo de dois juízes e o de um procurador. Funcionava a Câmara de duas maneiras, pelas vereações/sessões e pelas correições/diligências (POLITO, 1998). As alforrias pesquisadas nesse trabalho foram concedidas por moradores de arraiais e freguesias do termo de Mariana e, também por moradores de outras partes da comarca e de outras comarcas, que registraram nos cartórios da cidade as liberdades, pois tinham algum tipo de ligação com o centro urbano. Os senhores dos alforriados residiam em 46 arraiais, pertencentes ao termo de Mariana e são esses os representantes do espaço estudado por nós. Alforrias e vínculos familiares No Brasil a legalidade do ato da alforria remonta às Ordenações Filipinas de 1603. Já em 1684 temos cartas registrada (SCHWARTZ, 1974). Do ponto de vista jurídico, a alforria seria o ato do senhor em “demitir de si o domínio e poder que tinha (contra direito) sobre o escravo, restringindo-o ao seu estado natural de livre, em que todos os homens nascem” (MALHEIRO, 1974, p 136) resultado seria uma mudança de status que o cativo teria, passando a ser um forro: aquele que tem alforria; liberto; livre; desobrigado; escravo forro. Se um senhor manumitisse “e não revogasse esse ato em vida”, ninguém poderia fazê-lo (MALHEIRO, 1974, p 240). No período colonial só ao senhor cabia libertar e reescravizar o liberto. O controle privado da alforria tinha um significado fundamental na manutenção da sujeição entre os escravos. Contudo, em alguns casos, o escravo podia por via legal obter, independentemente da vontade do senhor, a liberdade, extinguindo a relação senhor/escravo (RUSSELL-WOOD, 1995, pp. 115-122). Apelos aos governadores eram feitos por cativos que conseguiam ter acesso à justiça, com a ajuda de outras pessoas, em boa medida brancos instruídos nas letras. Estes deveriam ser arrebanhados a partir das relações cotidianas com os cativos para servirem como intermediários na disputa judicial que visava a liberdade do cativo (SILVA, 1999). Conflitos sérios, maus tratos e sevícias constituíam na maior parte das vezes os motivos que levavam os escravos a opor-se aos seus VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 29 senhores, tendo em vista, que esse tipo de atitude poderia acarretar sérias retaliações dos senhores para com seus cativos. Com o total dos 811 registros coletados tivemos 982 escravos alforriados, dos quais 26,8% foram manumitidos por alforrias em conjunto que representaram 9,4% dos registros, uma média de 3 escravos para cada uma dessas cartas. Durante todo o período em estudo a variável sexo constou nas cartas de alforria, demonstrando o mesmo padrão encontrado para as outras regiões que tiveram as liberdades estudadas, ou seja, o sexo feminino predominou na amostra. Se levarmos em conta somente os adultos a porcentagem de mulheres sobe para 60% em Mariana. Quanto a idade dos manumitidos tivemos as crianças representando 17,9% dos libertos, entre as quais as meninas somaram 52%. De qualquer forma, pessoas do sexo masculino tiveram mais chances de chegarem à liberdade enquanto crianças, do que em idade adulta. As alforrias condicionais indicaram um aumento em Mariana e seu termo, de 7,8% para 13% entre 1750-1779. Um leque de 57 possibilidades foi indicado como motivo pelos senhores alforriarem. Na verdade o que ocorre são junções entre 8 motivos principais: “por amor a deus, por amor ao escravo, cria da casa, bons serviços da mães, bons serviços (do escravo), bons serviços (de outro), esmolas e outro motivos debaixo do qual colocamos uma gama de outros trinta motivos dispersos. Também era comum a indicação de motivos ao alforriar, mais de um motivo ao mesmo tempo era indicado, as motivações “cria da casa” e “pelos bons serviços da mãe” seguiram em proporção menor do que os motivos religiosos. O meninos crioulo, reuniram dois tipos de motivação: “por amor a Deus” e “cria da casa”, enquanto as meninas eram mais libertas por serem “crias da casa”, aos mulatos foi dado a benevolência inspirada por fatores divinos, a as meninas de pele mais escura, tiveram como motivo indicado os serviços das mães. Alforrias em conjunto registravam frequentemente famílias escravas, comumente representadas por irmãos(as) e mães com filhos. Também escravos não aparentados estiveram presentes nessa modalidade de registro. Assim como pesquisamos dados para 160 senhores somando 222 documentos, entre testamentos e inventários, podendo nos aproximar com mais fidelidade do perfil dos privilegiados pelas alforrias. As crianças estavam juntas as mães em 23,1% dos casos, as mães eram forras em 6% e cativas em 17,1%. Muitas dessas cativas pertenciam ao mesmo senhor que concedeu a liberdade aos filhos. O pai também estava junto à mãe somente em 6 dos casos. Em um desses o casal era forro, enquanto em todos os outros VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 30 eram escravos dos mesmos senhores de seus filhos. A liberdade dos filhos pode ter sido utilizada para fomentar o bom trabalho da família escrava em Mariana. O que ocorreu de forma repetida nas alforrias patrocinadas pela família escrava em Mariana foi a presença de um membro que participou de forma determinante na concessão das liberdades. Na grande maioria das vezes eram as mães, e em alguns casos padrinhos 26. Assim as crianças tiveram algum contato com pelo menos um parente que estava acompanhando a sua vida, ou mesmo estando distante patrocinou a liberdade. Ambos os casos somaram 86% das alforrias dos infantes, apontando um alto índice de relações familiares, mesmo que possibilitada por um único membro da família escrava. O reconhecimento da paternidade chegou a 2%, demonstrando ser esse um alto índice em especial ao compararmos com o de outros estudos sobre as alforrias, que em geral constataram 1%. Notamos que muitos desses pais, mesmo não querendo reconhecer a paternidade dos filhos, o fizeram frente às pressões da prole já adulta, que cobrava uma atitude do possível pai. Em muitos desses casos de liberdade em que o senhor era também o pai, a expressão “por se dizer meu filho” esteve evidente como justificativa para a liberdade. As crianças foram mais reconhecidas pelo pai não proprietário do que por aqueles que eram também seus senhores. Estes representavam apenas 6% do total. O pai não proprietário não só reconhecia o rebento como também o adquiria, pagando o seu valor ao então senhor do filho para posteriormente o alforriar de forma gratuita. A condição de forro foi instável e complicada. Conseguir uma nova condição jurídica não significava, necessariamente, acesso a uma nova condição social. “Empurrados para as fímbrias do sistema que os criava e os deixava sem espaço próprio, os mestiços e os forros foram com frequência equiparados a quilombolas” (SOUZA, 1990, p. 107). Realidades de vida eram construídas também segundo essa inserção do ainda cativo junto à economia local, o que podia possibilitar o estabelecimento de uma relação mais apartada dos senhores após a alforria. Vamos indicar alguns casos que começamos a acompanhar com as cartas de alforria e depois continuamos a acompanhar as alforrias concedidas por meio dos inventários e ou dos testamentos deixados pelos senhores que alforriaram. 26 -Os padrinhos foram considerados como parentes na nossa pesquisa, representaram 11% de todas as alforrias de crianças. Não fizemos diferenciações entre parentesco por afinidade e por consanguinidade, pois visamos reconstituir as relações escravas. VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 31 As coartações, alforrias pagas em vezes, marcadas, em sua maior parte, pelo lucro, podem ser encaradas como um tipo de alforria em que o cativo conseguia se desvencilhar do antigo senhor, sem a formação de vínculos contínuos. No entanto, com o estudo dos testamentos de alguns forros que foram coartados, podemos ainda verificar a permanência de elos entre esses e seus senhores, o que pode indicar um alto grau de comprometimento de qualquer tipo de liberdade, demonstrando o caráter de controle continuado que envolveu grande parte das alforrias. Como o caso da coartada Maria Helena, que continuou a se relacionar com sua ex-senhora, a ponto de lhe deixar 6$000 em testamento que poderiam ser dados à ex-senhora ou a um herdeiro dela (CÓDICE 51, p. 283, 1º OFÍCIO). Por encontrarem um espaço arredio fora da relação que os permitiu chegar à liberdade, muitos deles acabaram aceitando as relações vinculantes, mesmo quando se libertavam através das onerosas. Em boa medida, os coartados, através de cartas de liberdade, também estiveram suscetíveis a um tipo de controle que deu continuidade ao contato entre senhores e escravos. Em algumas alforrias onerosas, o que podemos perceber é que uma dupla exploração era levada a cabo. Além do pagamento, às vezes era reclamada a permanência do forro junto ao ex-senhor, porém, numa proporção menor do que no caso das gratuitas, tendo em vista que era possível ao coartado recorrer à justiça para provar o seu estado intermediário - nem escravo nem forro, somente coartado que tinha que cumprir com um acordo, o qual, inicialmente, passava pelo pagamento devido, que era acertado no momento da redação da carta de corte. O inventário deixado pelo forro Diogo de Souza Coelho, no qual foi transcrito o seu testamento (CÓDICE 103, AUTO 2141, 1774). Ele era morador no Mansus, uma área da cidade de Mariana muito habitada por forros como ele, tinha uma filha casada com o preto João de Souza, testamenteiro do sogro. Essa região da cidade, assim como o arraial de Passagem, concentrou forros que reuniram no decorrer da vida algum cabedal e constituíram família. Ao que parece, também buscaram conviver próximos um dos outros. É em época da morte de Diogo Coelho, em 1774, que uma de suas coartadas, Ana “courana”, encerra o pagamento de sua liberdade, que fora iniciada em 1769, época em que deu ao senhor 48 oitavas, das 140 em que foi acertado o valor de sua liberdade. O restante deveria ser pago em 4 anos, respeitando valores iguais de 23 oitavas para cada pagamento anual. No ano da morte do senhor, três dias antes do falecimento, a coartada deu o último valor devido. O pagamento de todas as parcelas foi realizado por João Dias Batista, um procurador utilizado por ela, na busca de obter maiores garantias no andamento da coartação. Tanto a presença VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 32 de um procurador quanto a realização do último pagamento pouco antes da morte do senhor são indícios das pressões sofridas por Ana “courana”. No mesmo testamento, há também o translado de coartamento de outros três cativos. Todos receberam a carta de corte, que foi posteriormente transcrita no testamento, na mesma data em que Ana fez o seu último pagamento. Com a morte do senhor, novamente, encontramos os três coartados em busca do Dr. Manoel da Guerra Leal, advogado naquele auditório, o qual passou a representá-los, tendo em vista que tiveram a sua liberdade embargada, em função do “termo de data” realizado pelo advogado do testamenteiro. O advogado dos coartados fez “termo de vista”, alegando que além do corte ter um preço justo, também tinha sido assinado pelo embargante, que não podia alegar ignorância sobre o fato. O resultado foi que não entraram na partilha de bens e os 15 meses que ficaram embargados prestando serviços para o testamenteiro tiveram que ser abatidos nos cortes. O testamenteiro, que também era genro do ex-senhor, quis aproveitar-se dos coartados, uma vez que suas cartas tinham algumas condições. Dois deles eram marido e mulher e “não podiam ir a parte alguma sem sua permissão”. Se não pagassem no tempo estipulado, seriam vendidos. O outro coartado era filho do casal e trabalhava como guia do senhor, que era cego. Tinha como condição pagar tudo em 4 anos ou seria vendido em praça pública; caso ficasse doente, “serviria ao testamenteiro e não poderia ir a parte alguma sem o beneplácito dele” (CÓDICE 103, AUTO 2141, 1774). Os coartados estavam pagando um valor por suas liberdades acima do que aquele em que foram avaliados, mesmo assim, o genro e testamenteiro do senhor quis impor a eles o seu querer. Nem mesmo levou em consideração uma clausula testamentária deixada por seu sogro: “se os mais escravos ou escravas tiverem agilidade para se libertarem meu testamenteiro os coartará no preço que for justo pelo tempo que lhe parecer” (CÓDICE 66, AUTO 1457, 1769). Nesse caso, os testamenteiros do senhor que também eram seus filhos, escrevem um codicilo de última hora instituindo uma condição ao corte dado em testamento, que era servir a um dos filhos do senhor, por um ano além de não poder sair da freguesia enquanto não terminasse de pagar. Também recorrem acerca da divisão dos bens alegando que o cativo pertencia aos bens do pai, não conseguiram reverter o corte, graças a ação do Dr. Manoel da Guerra Leal, um homem branco que mais uma vez apareceu como um defensor dos forros, que sofriam ameaça de seus proprietários filhos de um forro. Mais do que uma possível estratégia da família de escravos, que aproveitou o período final de vida do senhor para conseguir as coartações, há o papel do testamenteiro que, mesmo tendo assinado o papel de corte, VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 33 posteriormente, tenta continuar a usufruir dos serviços prestados, numa tentativa de mantê-los sobre a sua completa tutela, pouco importando se estavam pagando pelas liberdades um valor acima do de mercado. O registro final desses cortes não foram encontrados. Ainda assim, servem para indicar a maior possibilidade de atuação de um escravo coartado, pois, no início da manumissão, uma carta de corte lhes foi entregue, possibilitando comprovar o processo de liberdade nas demandas judiciais, coisa essa impossível ao escravo que recebia a liberdade gratuita. Vale salientar que a carta de corte não encerrava o processo de liberdade. Quando o pagamento estivesse quitado, uma carta ou escritura de liberdade era redigida, ou mesmo a carta de corte podia ser copiada como escritura, assim encerrando o processo. Junto à prestação de contas feita por outro testamenteiro, o de Bento A. Braga, podemos acompanhar o desenrolar de mais coartações. Ele viúvo oriundo de Portugal, residia no arraial de Pinheiros e declarou no testamento um monte total de 1.705$000, do qual faziam parte 12 escravos, que representavam a maior parcela de seus bens. Deixou os objetos de casa para uma forra que residia em sua roça e que tinha sido sua escrava, mesmo assim, no documento ainda a tratava como “sua negra”, e tinha sido alforriada dois anos antes do sr. falecer (CÓDICE 82, p. 89, 1761). Bento Braga deu a possibilidade de todos os seus escravos serem coartados. Lara “mina” foi a única que tinha que pagar 50 oitavas, já todos os outros deveriam pagar 128 oitavas (148$800), a serem pagas em seis anos, de seis em seis meses. Entretanto, todos os que pretendessem ter a coartação deveriam dar fiador. Para o ano de 1768, encontramos os primeiros recibos de pagamento de umas das coartações. Eram da “crioula” Luzia de Araújo, que dava 29 oitavas ao testamenteiro; um mês depois deu 2 oitavas; quase um ano se passou e outras duas foram dadas. Passados 4 anos após o começo do pagamento, veio ela a pagar 4 oitavas; no ano seguinte, 1773, 8 oitavas foram dadas em duas épocas diferentes. Sempre os valores eram dados ao testamenteiro. Durante dois anos nada foi pago, justamente quando o testamenteiro ficou doente. A escrava deve ter acreditado que, com uma possível morte dele, ela ficaria livre dos pagamentos devidos, mas o sr não morreu. Para o ano de 1774, três recibos são encontrados: um no valor de 20 oitavas pagos pelo irmão da coartada; outro de 4 oitavas, pagos pela irmã; e um outro crédito no valor de 26 oitavas, pagos em parte por um forro a um credor do testamenteiro. O restante que faltava a ser honrado deveria o ser em seis meses. Para tal, apresentava como fiador para esse período o senhor José Antônio Lima, morador na cidade. O relato das etapas de pagamento serve para percebermos com que frequência e em que intensidade era possível a um coartado realizar os seus pagamentos, tendo em vista que Luísa, ao perceber que o testamenteiro ia falecer, pode se articular em busca da sua liberdade. Os pagamentos feitos por seus familiares VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 34 revelam a estrutura que possibilitava arcar com o compromisso. Não era somente Luísa que estava em busca de ouro na época de sua coartação, mas também todo o grupo familiar, assim como outros membros de sua relação cotidiana. Aliciar um grupo de pessoas que iriam ajudar a promover a liberdade, mesmo sendo eles parentes na maior parte, não parece ter sido tarefa fácil, pois seu ex-senhor faleceu em 1761 e somente em 1768 ela consegue começar a pagar pela liberdade, que foi terminada em 1774. A necessidade dos cativos apresentarem fiadores foi outro ponto que emperrava a possibilidade de alforria. Caso um fiador não fosse dado, então a decisão ficava por conta do testamenteiro “para que esse escolhesse se queria ou não dar essas coartações o que deveria usar para tal era a sua intuição” (CÓDICE 82, p. 140, 1761). Ao que parece, a intuição do testamenteiro de Bento A. Braga não foi favorável aos cativos, já que, dos doze escravos que podiam ser manumitidos, somente 10 iniciaram o processo da liberdade - todos deram fiador. Um cativo se estruturar em busca da realização de um pagamento de tão grande monta não era coisa fácil. Nem todos os que tiveram chance iniciaram a liberdade. No caso de Luísa, o fator família parece ter sido primordial ao acesso à carta de corte, pois foi seu irmão quem se prestou a ser o seu primeiro fiador. O fiador tinha grandes chances de ter que assumir os pagamentos. Além da família, uma rede de relações estruturada também podia garantir a presença de um fiador, assim como um acordo de prestação de serviço ao fiador, o que estimulava a concessão do aval. Em 1773, nove anos após a morte do senhor dos escravos e cinco anos depois de iniciado o corte de Luísa, começam a surgir problemas entre o testamenteiro e os coartados. O representante do senhor, querendo fechar as contas do testamento, dá início a ações, com o intuito de reduzir ao cativeiro aqueles que ainda não tinham terminado de pagar o valor devido. Dos dez que começaram o corte, fica claro que pelo menos cinco ainda não tinham encerrado o pagamento, a ponto de um deles só ter pago 27 oitavas de 128 devidas. Uma mãe e seu filho ainda nada tinham pago. Dois dos devedores vão à Justiça, alegando que o senhor deu em testamento a possibilidade de mais tempo, se fosse necessário. Com isso, novamente os coartados iam prestar fiança para os três anos que estavam pedindo a mais. Necessitavam disso em função da pobreza em que viviam. O pedido é aceito pelo testamenteiro que tira a ação. A busca da Justiça pelos cortados demonstra que além de estarem cientes de seus deveres, também sabiam de seus direitos, e ainda tiveram ciência de como utilizá-los para dar continuidade à coartação. O não pagamento pode ter sido uma tentativa de intervir no valor estipulado inicialmente. VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 35 No caso de Luísa, a saída foi outra. Ajudada pelo advogado, Dr. Manoel da Guerra Leal, que produz um recibo, no qual demonstra que boa parte do que tinha que ter sido pago por ela o fora, e que um novo fiador estava sendo providenciado, tendo em vista que ela só tinha 6 meses para acabar de pagar e tinha sobre si uma ação de redução ao cativeiro. Foi em função dessa ação que os pagamentos feitos por seu irmão, sua irmã e um preto forro foram realizados dois meses antes da produção do recibo feito pelo Dr. Guerra Leal. Ou seja, montou-se uma estratégia de defesa da liberdade de Luísa, para que ela não fosse novamente reduzida ao cativeiro. Uma estratégia da qual participou a família, um possível amigo forro, um novo fiador e um advogado, que em vários momentos lutou pela liberdade dos escravos. Um defensor das alforrias em Mariana. O processo da alforria não foi um ação isolada de um escravo e suas artimanhas, nem esteve somente apoiado nos pagamentos. Os cativos tiveram que cumprir com uma série de obrigações e expectativas definidas pelo senhor, realizá-las sem escapatória, depois tiveram que convencer outrem a ser seu fiador. Muitas vezes construíram um rede de ajuda para auxilia-los no pagamento, emprestando-lhes dinheiro ou dando-lhes serviços. Mais do que demonstrar que tinha expediente, o cativo demonstrou que era capaz de receber um empréstimo, capaz de pagar um grande valor. Tais demonstrações de confiança foram criadas ainda enquanto escravo, seguindo premissas existentes. Entretanto, ao deixar de honrar o pagamento, teve que se unir aos homens brancos que aceitavam ajudar. O papel do escravo foi decisivo e importante. Em muitos casos, os cativos tinham que utilizar espaços que o homem branco consentia. Ainda que a historiografia tenha durante muito tempo enfatizado mais as formas explícitas de resistência, como a formação de quilombos e o assassinato de senhores, a experiência escrava também se constituiu por formas outras de atuação. Muitas vezes mais presentes no cotidiano da maior parte dos que vivenciavam a condição de escravo. Incontáveis mulheres e homens cativos efetuaram a busca pela liberdade caminhando pelos espaços que lhe eram consentidos, a partir das condições de possibilidade presentes naquele contexto. O fator família e as relações de amizade foram os elementos que possibilitavam intervir de forma ativa dentro desse processo A ação movida pelo testamenteiro de Bento Braga pode ser compreendida como uma resposta a não aceitação de contas que ele tentou fazer em data anterior e acabou arrumando problemas junto a provedoria dos ausentes, que por 1.200$000 não aceitou as contas, pois tinham algumas missas e as coartações dos escravos ainda não acertadas. O promotor que cuidou do caso salientou que o tempo de pagamento dos cortes já tinha esgotado e esses deveriam ser reescravizados; muitos anos já tinham se passado e os escravos acabaram perdendo valor. Sendo assim, o testamenteiro entrou com as ações. Ainda, o responsável pelo caso salientava que, se as VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 36 mulheres não pagassem o que era devido, os seus filhos poderiam ser escravizados. Maria, uma das coartadas que não pagou o valor devido, teve dois filhos indicados ao cativeiro, enquanto Luísa Araújo teve os seus 4 filhos ameaçados. Já que elas não cumpriram com o acordo, a forma de pressão e controle usado foi não só a possibilidade de escravização, mas também a possibilidade de seus filhos serem reduzidos ao cativeiro. Como os homens não tinham nada mais importante a perder do que a própria liberdade, a eles foi reservado exclusivamente a volta ao cativeiro; no caso das mulheres, a pressão foi dupla. Quando o Dr. Guerra Leal fez o recibo no qual espelhava os recentes e significativos pagamentos feitos pelos familiares de Luísa, salientando a existência de um novo fiador, agora um homem branco não estava somente garantindo a condição dela, mas de sua prole também. Os filhos foram transformados em massa de manobra para controlar um coartado. Levantamos a data de nascimento de dois filhos de Luisa através dos registros de batismo. Como os filhos foram tidos após a redação da carta de corte, a autoridade que analisava o caso acabou definindo que “os filhos não seriam escravizados por nascerem no momento em que as mães gozavam de liberdade” (CÓDICE 82, p. 100-143, 1761). Sendo assim, a oportunidade de um novo contrato entre as coartadas e o testamenteiro foi permitida e a prestação de contas foi prorrogada. O promotor da provedoria dos ausentes desistiu de pressionar o testamenteiro que, como vimos, abdicou da ação, prorrogando os prazos. Acompanhamos diversos casos em que os senhores tentaram reduzir ao cativeiro os filhos nascidos em meio à coartação das mães. Contrariamente à vontade dos reclamantes, as crianças foram, na grande maioria das vezes, consideradas livres. Com a redação da carta de corte, o coartado já tinha um novo status, não precisando, como nas outras formas de liberdade, esperar o registro final da alforria em cartório. O fato de no início da coartação um pagamento normalmente ser feito, dava condições ao coartado de reter a carta de corte, tendo em vista que para ele ganhar ouro para a sua liberdade era necessário ter mobilidade e, portanto, provar o seu estado. Outro fator de mudança no andamento das alforrias eram os testamenteiros. Estes mudavam o tipo de liberdade ou mesmo consentiam uma manumissão sem que o senhor tivesse expressado tal vontade em testamento. Ao que parece, quando as contas estavam sendo fechadas, havia a possibilidade de o testamenteiro aceitar um pagamento ao invés de ter que vender o escravo e ter mais trabalho com isto. Todavia, como já vimos, vários fatores influenciavam nessa decisão. Para conseguir a oportunidade de pagar pela liberdade, o escravo tinha que se mostrar capaz, ter algum dinheiro já acumulado para dar de entrada, arranjar um fiador, VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 37 cumprir um prazo e, acima de tudo, ser confiável para não gerar problema futuros. Ser confiável tanto no pagamento quanto na sua conduta de vida, pois, interromper o corte não era coisa fácil, demandando muito cuidado na escolha de quem seria favorecido. Luís Pacheco Ferreira seguiu o mesmo caminho que muitos outros ao alforriar. Ensinou os cativos a labutarem e depois os presenteou. Constituiu vínculos ao libertar dois escravos que manumitiu gratuitamente (CÓDICE 46, p. 80v, 1º OFÍCIO). Já para os que pagaram pela liberdade, foi permitido um legado, mesmo que de forma condicional. Um que foi coartado recebeu um tacho para “melhor adquirir e pagar o senhor”. Outros dois que trabalhavam junto com o senhor, em sua tenda de ferreiro, deveriam ficar com ele enquanto estivessem pagando pela liberdade. Caso tivessem ouro no final do pagamento da coartação, poderiam adquirir o negócio do ex-senhor27 (CÓDICE 171, auto. 3445, 1º OFÍCIO). Se não pagassem a coartação voltariam ao cativeiro e o que tinha sido dado ficaria para os jornais, mas, em qualquer hipótese, não poderiam sair daquele continente, da América. O senhor desses escravos acabou compondo uma relação de negócio com eles, a qual foi acordada através da coartação. Tentando dar mais firmeza ao pagamento das parcelas, acena com a possibilidade de novas conquistas após a conclusão do primeiro acordo representado pela coartação. Com esse estímulo empregado aos subalternos, Luís Pacheco garantiu a sua velhice sem ter que se preocupar com o andamento dos negócios e nem com o pagamento das coartações. Muito menos teve que usar o chicote para continuar controlando aqueles que um dia foram seus escravos, os quais continuaram vinculados ao antigo senhor, desenvolvendo as mesmas atividades, agora com mais empenho, pois poderiam se tornar os proprietários da tenda de ferreiro. Esses escravos saíram da condição de cativos para a condição de libertos e proprietários de um comércio, fazendo da sua liberdade boa e plena. Para além da alforria conseguiram um emprego que os iria manter na nova fase da vida. As forras, ao contrário do que encontramos nas cartas de liberdade, tiveram uma quantidade mais expressiva de testamentos encontrados. Foram delas os mais completos, e que vieram com histórias de vida pacientemente contadas e esclarecidas. Se não tinham tantos bens a declarar, compensaram expondo suas vidas em detalhes. Como Joana de Oliveira, natural da Guiné e moradora em Minas, na Passagem do Barreiro, que, ao indicar o seu estado de casada, informou que somente após a alforria é que se casou com Domingos 27 -O senhor lhe dá oportunidade de comprar a tenda de ferreiro assim como a casa na qual ela funcionava. VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 38 Lopes de Barros, um forro que, segundo ela, não tinha contribuído para adquirir os bens conseguidos ainda enquanto escrava (CÓDICE 52, 1º Ofício). A liberdade do tipo corte fora alcançada graças à “proteção dos ditos senhores” com quem viveu; esses eram o Reverendo Pedro Domingos de Araújo e seus dois irmãos, que acompanharam, um após a morte do outro, a continuação do pagamento da coartação de Joana. Já Rosa Maria de Carvalho, moradora no Mansus, onde era vizinha de um lado com Maria preta forra e de outro com a ponte do bairro (CÓDICE 69, 1º Ofício), deixa claro que sua casa e 4 dos escravos foram adquiridos após o casamento, mas que outros 6 cativos, ela já os tinha há muito; são dois desses que encontramos alforriados em 1773, de forma gratuita, por serem crias da casa. Quando faleceu, em 1762, definiu que, para a Irmandade do Rosário, só deixaria esmolas se esta acompanhasse o seu enterro, já que participava da Irmandade de São Francisco dos Pardos. Também em época determinou as manumissões, cumpridas em definitivo mais de dez anos depois, em 1773. Encontramos em grande quantidade informações que, em muitos casos, remontam desde o local de origem das forras, passando pelo processo de alforria vivido e chegando à família constituída no Brasil, ponto este sempre significativo na reconstrução da história de vida das mulheres de cor do século XVIII. Desde os enlaces, a geração de filhos, o desenvolvimento da vida, até as suas relações com as mães, sempre foi pausadamente comentado. Ainda para o ano de 1773, encontramos a alforria da crioula Feliciana que, de forma gratuita, através da prestação de serviços, conseguiu o registro da manumissão consentida em 1768 pela forra Helena Moreira da Silva (CÓDICE 92, 1773). Essa, ao mandar escrever o seu testamento, demonstra a extensão dos elos familiares praticados por boa parte das manumissoras forras (CÓDICE 51, 1º OFÍCIO). Ela resgatou seu sobrinho da escravidão em Congonhas, onde sua irmã morava, e deu, como forma de pagamento do dito, um crédito de um negro que alforriou. Posteriormente, o sobrinho veio a ser o seu testamenteiro. Os contratos de Helena com os membros de sua família não se limitavam ao seu sobrinho. Além dele, que fora resgatado do cativeiro, ela também sabia onde se encontravam seus irmãos, assim como, os filhos desses, apesar de serem todos escravos de nação, vivendo forçados em outro país” (CÓDICE 51, 1º OFÍCIO). Helena conseguiu centrar informações precisas acerca de seus familiares. Posteriormente, mudou a realidade de alguns deles antes e depois da morte, tendo em vista que quase a totalidade de seus bens ficaram sob a tutela do sobrinho, que pode utilizá-los para alforriar outros membros da família. Além de revelar um contato específico com seus parentes, Helena da Silva demonstrou a constituição de elos junto à comunidade forra de Passagem, onde vivia naquela ocasião: VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 39 [...] deixo a Maria filha de Manoel Fernandes crioulo morador neste arraial coatro oitavas de ouro somente por uma vez (...) declaro que fui fiadora de um coartamento de um preto por nome Francisco Gonçalves morador que foi no Padre Faria (o qual) foi casado com Thereza Moniz moradora no dito Padre Faria por cujo coartamento e fiança fui executada na cidade de Mariana pelo Senhor do dito negro de que satisfiz o resto do dito coartamento e custas que importaram 16 oitavas e meia, pouco mais ou menos, cuja quantia haverá o meu testamenteiro pelos bens do casal do dito meu fiador ( códice 51, p. 283. 1º Ofício). Temos na citação acima o esclarecimento de como se dava a constituição de fiadores junto à comunidade cativa de Mariana. Uma forra, residente numa vila em que muitos eram forros, por possuir uma quantidade aceitável de bens e não ter herdeiros diretos, veio a ser procurada por um cativo morador em outra paragem para ser sua fiadora, consentindo em tal responsabilidade, mesmo que isso, como foi o caso, acabasse lhe trazendo certos transtornos. Qual foi a vantagem conseguida por Helena ao aceitar a responsabilidade de ser uma fiadora? Será que tinha algum tipo de negócio com o escravo coartado? Ou será que, através da participação em uma rede de favores entre cativos e forros, ela conseguiu ter notícias sobre seus familiares? As forras não só procederam a gerar mudanças a outros sem nada solicitarem em troca, como também, em boa medida, buscaram compensação às suas boas ações. Algum tipo de exigência de cunho normativo podia ser apontado. Assim Rosa dos Santos declarou-se: [...] deixo por esmola a Gonçalo dos Santos preto forro (que) vive comigo (um escravo) por nome José mina assim mais lhe deixo a metade da casa em que vive da parte de cima dessa. Também deixo trastes miúdos e assim deixo a mais uma minha afilhada parda chamada Maria filha de Quitéria Pinta preta forra moradora no morro do Padre de Vila Rica uma negra por nome Mariana mina para ajuda de seu dote sendo que a dita mude de estado e se case dentro de 2 anos e sendo coisa que o dote a perder dentro no dito tempo o meu testamenteiro tornará a queixar a dita escrava para o monte dos meus bens (Códice 50, p. 65v. 1º Ofício). A forra Rosa, ao contrário das outras que apresentamos, mostrou-se condescendente com o seu companheiro, ao lhe permitir ficar com parte de seus bens. Entretanto, quis uma postura por parte de sua afilhada, salientando que a escrava dada deveria ser utilizada para promover uma melhoria de vida, aos moldes do que ela achava correto. Já outra forra: Thereza Maria de Jesus, demonstrou-se sentida com o marido que a deixou diversas vezes e há tempos não a procurava. Ela possuía 2 escravas que o marido levou junto quando se foi, mágoa esta lembrada no final de vida (CÓDICE 122, AUTO 2541. 1º OFÍCIO). O testamento demonstrou ser para as forras o momento de reflexão e pontuação das coisas boas e ruins vividas, meio pelo que esboçaram os últimos quereres. Talvez por terem sido as experiências de vida dessas mulheres sempre pautadas na simbologia do certo e o errado, que compunha a possibilidade de mudar de condição de vida, de tal forma que mudaram de vida: de escrava passaram a manumissoras. VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 40 Experiência de vida que também deve ter levado as senhoras livres a deixarem poucos testamentos e inventários, pois, em boa medida, ao não encontrarmos esses documentos em nome delas, pudemos achar alguns junto aos feitos por seus maridos. A mulher livre casada, na maior parte das vezes branca, ao se expressar através dos testamentos e inventários, obteve um espaço não tão amplo quanto as oriundas do mundo cativo. Submetidas ao controle de seus maridos, em muitos casos nem mesmo conseguiram dar vazão às suas práticas de vida, que foram filtradas pelos companheiros. As ex-escravas, ao confeccionarem tais documentos, foram muito mais contundentes em demonstrar uma vida construída junto a uma gama de adversidades, onde até a figura do companheiro era questionada, quando não descartada. A experiência vivida pelas senhoras foi ampla; seus cativos serviram como instrumento de concretização de seus quereres. No caso das mulheres casadas libertas, com elos de parentesco com o mundo anterior à alforria, estas acabaram por vivenciar uma situação ainda de transição, já que nem só os preceitos do universo dos livres casados eram seguidos, nem tão somente os dos forros. Por exemplo, Suzana Maria dos Santos, natural das Minas, filha de Domingos Monteiro e sua mulher. A forra Suzana Maria dos Santos, acabou por sofrer ao ter uma conduta entre a ação entre um mundo e outro. Ao percorrer as duas opções, teve de arcar com isso (CÓDICE 52, P. 40V. 1º OFÍCIO). Ela, que havia alforriado João crioulo quando criança, em 1759, por prestação de serviços, até 1774 o tinha ainda em sua companhia, ocasião em que a mãe dele estava sendo alforriada e um irmão passava ao domínio de uma das filhas da senhora. Suzana Maria concedeu isso visando proteger três filhas naturais e um filho adulterino, os quais, em época de falecimento de seu marido, foram descaracterizados do rol de herdeiros. Além disso, o cônjuge não privilegiou a companheira com alguma herança. O seu ex-marido somente garantiu bens para as três filhas tidas com Suzana, que deixou de conseguir algum tipo de herança por ter sido casada e por não ter dado continuidade a esse padrão de comportamento, quebrado ao ter filhos ilegítimos. Ela entrou no modelo de casamento dos brancos e não compactuou plenamente com esse sistema, acabou por sofrer represálias. Mesmo assim, conseguiu garantir a seus filhos ilegítimos alguns bens. Outra forra manumissora indicou ter passado por uma sequência de acontecimentos próximos. Teresa de Jesus de Vasconcelos, também natural das Minas, mãe de três filhas, sendo a primeira filha ilegítima. As outras foram tidas com seu marido, em época já falecido (CÓDICE 87, AUTO. 1887. 1º OFÍCIO). A senhora sobrevivia da venda de pães pelas ruas da cidade de Marina e, para tal, utilizava alguns escravos. Na época de sua morte, a encontramos negociando um garoto com a filha natural, com o intuito de aumentar o número de seus vendedores de rua. Os rendimentos proporcionados pelo garoto deveriam ser VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 41 revertidos para o pagamento do funeral da senhora. Um negro padeiro e suas ferramentas seriam dados em troca do garoto, após a sua morte. Então, a filha natural estava entrando para o rol dos bens da mãe com um garoto e receberia, três anos depois, época da morte da mãe, um negro com ofício de padeiro e suas ferramentas de trabalho. Era como se a mãe deixasse o seu negócio para a filha ilegítima, possibilitando a garantia de bens que, na ausência de um pai, foram inibidos. As alforrias em Mariana demonstraram-se influenciadas por vários tipos de socialização em que os vínculos e a família escrava aparecem com maior frequência. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas Unidades Produtivas Mineiras: Mariana 1750-1850. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da UFF, 1994. CASAL, Manuel Aires de. Corografia Brasílica. Belo Horizonte: Ed. 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Códices 74 e 75. Códices 77 ao 98. 2o- Ofício. Códice 33. II - Livros Diversos: Códice 11. VOLUME 9, Nº 1, JAN/JUN 2018 43