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“A ópera de um mito: Orfeu e Eurídice na obra de Monteverdi e Gluck”, in Virgínia Soares Pereira e Ana Lúcia Curado (eds.), A Antiguidade Clássica e nós: Herança e Identidade Cultural, Braga, Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos (2006), pp. 447-458. A ópera de um mito: Orfeu e Eurídice na obra de Monteverdi e Gluck Pedro Braga Falcão Universidade Católica Portuguesa/CEC Quando Orfeu chora a sua tristeza pela m ão do poeta Ovídio, quantos de nós não esperamos ouvir a sua música, deixarmo-nos comover pela sua amaviosa voz, pelo tanger de sua lira, quantos de nós não terão imaginado e associado u m a melodia aos versos do poeta latino? As letras destituídas de som são pouco quando consideramos que Orfeu é músico, e que suas palavras são cantadas. Talvez por isso mesmo os sentidos - em particular o ouvido da nossa emoção - estejam famintamente expostos ao prazer quando finalmente ouvimos o nosso Orfeu interpretado por um tenor da escola italiana. E aqui reside uma força particular do mito: no momento em que é encenado o mito ganha a vida do seu tempo, ou melhor, do seu xaipóç - o Orfeu de Gluck é u m herói definitivamente do seu tempo, u m herói resolutamente de 1762. Neste texto estudaremos pois duas óperas cujos libretti se inspiraram no mito de Orfeu: LOrfeo de Monteverdi, e Orfeo ed Euridice de Gluck. Escolhemos estas duas óperas de u m vasto repertório que se estende desde o início da ópera até aos dias de hoje; de facto, talvez nenhum outro mito tenha conhecido igual fortuna no mundo operático. As razões para esta selecção prendem-se com o facto de estas óperas representarem duas leituras distintas do mito clássico, como veremos, surgindo igualmente em momentos decisivos na História da Música. Seria impossível analisarmos no contexto deste pequeno estudo o extenso e complexo corpus musical em que se insere a presente temática: para termos uma ideia da riqueza e da dimensão deste acervo, propomos a seguinte tabela que contempla o mito de Orfeu na Música, de 1599 a 1986': Título Orfeo (intermezzo) L'Euridice L'Euridice Eumelio La favola d'Orfeo Pianto d'Orfeo La Morte d'Orfeo Compositor p J. Peri G. Caccini Agazzari C. Monteverdi D. Belli St. Landi Libretista Schiaffnati 0 . Rinuccini Rinuccini De Cupis e Tirletti A. Striggio Chiabrera St. Landi Ano 1599 1600 1602 1606 1607 1616 1619 Local Milão Florença Florença Roma Mântua Florença Roma 1 Esta nossa tabela inspira-se nas investigações de H. F. Redlich (1962: 415-419) e nas tabelas apresentadas por E. W. Sternfield (1995: 2 e 128). Ainda assim, esta lista não está completa, uma vez que decidimos deixar de parte as operetas e alguns baileis que foram produzidos tendo como inspiração o mito de Orfeu. 448 Título El divino Orfeo Orpheus (ballet) La descente d'Orphée L Orfeo (ed Euridice) Orpheus aus Thracien Orfeo ed Euridice Orpheus (masque) La lira d'Orfeo La descente d'Orphée Orphée Orpheus (masque) Orpheus Orfeo ed Euridice I lamenti â'Orfeo A ópera de um mito: Orfeu e Euridice na obra de Monteverdi e Gluck Compositor Hidalgo H. Schütz p Libretista Calderón Buchner Chapoton F Buti Braunschweig A. Aurelij Settle N. Minato p Orfeo ed Euridice Orfeo ed Euridice Orpheus og Euridice Orpheus Lanima dei filosofo Der Tod des Orpheus Orpheus und Euridice Orpheus Mort d'Orphée (cantata) Orpheus (poema sinfónico) Orphée aux Enfers (opereta) L. Rossi J. J. Loewe A. Sartorio Locke A. Draghi M. Charpentier L. Lullv Duboullav p Goodson e Weldon F. Bressand v. R. Keiser J. J. Fux R Pariati B. Pasquini G. Chr. Wagenseil L. di Villati C. H. Graun R. de'Calzabigi Chr. W. Gluck p A. Tozzi C. D. Biehl J. G. Naumann p F. W. H. Benda J. Havdn Badini G. Bachmann v. J. G. Jacobi F Aspelmavr v. J. G. Landes p K. Cannabich Berlioz — — F. Liszt H. Crémieux e L. H a l é w J. Offenbach VOrfeide (tríptico) G. F. Malipiero G. F. Malipiero Les Malheurs d'Orphée Orpheus und Eurvdice Orphée Der Tod des Orpheus Orpheus (ballet) Syringa (cantata) Mask of Time (oratória) Mask of Orpheus D. Milhaud E. Krenek R. Ducasse H. Chr. Wolff I. Stravinskv Cárter Tippett Birtwistle A. Lunel O. Koloschka R. Ducasse H. Chr. Wolff Balanchine Ashberry R. M. v. Rilke Zinovieff LOrfeo Ano 1634 1638 1640 1647 1659 1672 1673 1683 1685 1690 1697 1698 1715 1750 1752 1762 1775 1786 1785 1791 1798 ?(c. 1800) c l 800 1827 1854 1858 1925 (completo) 1924 1926 1926 1948 1948 1978 1984 1986 Local Madrid Dresden Paris Paris Wolfenbüttel Veneza Londres Viena Paris Paris Oxford Brunswik Viena Viena Berlim Viena Munique Copenhaga Berlim Londres Braunschweig p Munique Paris Weimar Paris Paris, Düsseldorf Bruxelas Kassel Paris Haia Nova Iorque Nova Iorque Boston Londres Nesta tabela podemos ler quarenta e três títulos; entre os compositores que se debruçaram sobre o mito, contamos com nomes emblemáticos da História da Música, como Monteverdi, Belli, Schütz, Locke, Charpentier, Gluck, Haydn, Berlioz, Liszt, Offenbach, Milhaud ou Stravinsky. Repare-se igualmente que cerca de metade dos títulos foram compostos no século XVII, precisamente na altura em que a ópera surgia definitivamente no panorama musical do Ocidente. Porque terá sido chamado Orfeu aos palcos n u m a altura embrionária deste género musical? A resposta está, parece-nos, em tomar Orfeu como o núncio, o embaixador da música do mundo clássico na Europa setecentista, ávida por recuperar as concepções da tragédia clássica, onde música e palavra viviam n u m mesmo palco. Foi aliás assim que nasceu a ópera, no contexto da «Camerata Florentina», espécie de tertúlia científica e literária reunida à volta do literato Giovanni Bardi, por volta de 1570. Nesta Camerata eram bem conhecidas as investigações de Girolamo Mei, erudito PEDRO BRAGA FALCãO 449 florentino que defendia «o ponto de vista de que todo o texto das tragédias gregas seria cantado, incluindo as falas dos actores» (Grout/Palisca, 2001: 318). Foi portanto na tentativa de reencontrar o espaço musical na acção dramática, simulando aquilo que se julgava ser a essência da tragédia antiga, que surge em 1587 o drama Dafne, composto por Peri e Corsi, com libreto de Rinuccini, obra que serviu de ensaio aos dois primeiros textos dramáticos inteiramente cantados da História da Música, ambos de 1600: La rappresentatione di anima et di corpo, peça musical sacra da autoria de Emilio de Cavalieri, e LEuridice, projecto ambicioso da autoria de Peri e Caccini, com libreto de Rinuccini. Vemos pois como o mito de Orfeu e Eurídice foi utilizado na própria altura em que a ópera surgia no Ocidente: como dizíamos, o amor do músico grego por excelência esteve na origem de u m a das primeiras óperas conhecidas. Mas de que forma foi este mito utilizado pelos libretistas e pelos compositores, ao longo da História da Música, em particular por Monteverdi e Striggio, e por Gluck e Calzabigi? Para respondermos a esta pergunta, teremos necessariamente de estabelecer u m ponto de referência, a partir do qual possamos comparar as óperas que aqui abordamos. Neste particular, é comummente aceite que os principais textos para o episódio da descida de Orfeu aos infernos são a quarta geórgica de Vergílio (w. 453-527) e o décimo livro das Metamorfoses (w. 1-85) de Ovídio. Há aspectos que diferem entre as duas versões. Por exemplo, em Vergílio, Eurídice é mordida por uma serpente porque fugia de Aristeu, enquanto em Ovídio se diz simplesmente que a ninfa pisou o venéfico réptil. Por outro lado, o poeta mantuano vai dar um especial relevo às almas dos mortos que ouvem atentamente a voz de Orfeu, umbrae tênues (v. 472) a quem vai dedicar dez versos (w. 471-480), enquanto Ovídio apenas dedica dois versos às exsangues animae (w. 40-41). Também na altura em que Eurídice morre pela segunda vez há discrepâncias: em Vergílio, Eurídice consegue ainda falar alguns versos ao seu esposo, queixando-se do destino que lhe faz fenecer de novo, e suspirando um supremo adeus (iamque uale, v. 497); na versão ovidiana Eurídice só tem tempo de dizer u m derradeiro «uale» (v. 62). Quanto ao desfecho do mito, Vergílio narra que durante sete meses Orfeu cantou o seu desgosto perto de Estrímon, o que provocou o despeito das desprezadas mulheres trácias, que assassinaram o herói: e mesmo assim a sua cabeça cortada continuava a suspirar por Eurídice (w. 523-527); em Ovídio, pelo contrário, Orfeu tenta de novo descer ao Hades, sem sucesso, para depois se retirar durante três anos no Ródope, evitando todas as investidas femininas; é aqui que acaba a narração do poeta latino. Estas são, de u m a forma geral, as principais diferenças entre as duas versões, o que, como vemos, em nada altera os alicerces do mito. Aliás, esta versatilidade dos mitos em muito contribuiu para o seu sucesso também na ópera, pois o libretista, legitimado pela própria tradição clássica, sentia-se não só no direito, como também no dever de pôr o seu cunho pessoal na acção dramática, de forma a adaptar o mito à sua época, ao seu tempo, e às suas próprias convicções. 29 450 A ópera de um mito: Orfeu e Eurídice na obra de Monteverdi e Gluck VOrfeo Mais do que um revolucionário, Monteverdi (1567-1643) soube utilizar os estilos e formas já existentes e desenvolvê-las ao máximo. Juntamente com a sua obra dramática, os seus madrigais são u m contributo essencial para o desenvolvimento da música tonal: e nesse sentido, uma das suas grandes obras-primas é mesmo a primeira ópera escrita pelo compositor, VOrfeo, estreada em Mântua, a pátria de Vergílio, a 24 de Fevereiro de 1607, provavelmente no Palazzo Ducale, com u m libretto em verso escrito por Alessandro Striggio. Embora seja inegável que a ópera VEuridice de Peri, aliás uma das primeiras óperas a ser escrita, tenha exercido uma decisiva influência no compositor, ainda assim VOrfeo apresenta características únicas, que a afastam de u m a simples pastoreia, em direcção a u m a verdadeira ópera séria, que se estende em cinco actos, e que exige pelo menos três mudanças de cenário. A complexidade da encenação, quer dada à extensão da própria ópera, quer devido ao grande número de personagens (La Musica, Orfeo, Euridice, Messaggiera, Sperariza, Caronte, Prosérpina, Plutone, Apollo, Ninfa, Eco, Pastores & Espíritus), aliada à qualidade musical quer das árias quer dos recitativos, fizeram desta ópera u m a das principais do repertório moderno. Mas de que modo exploraram Monteverdi e o seu libretista, Striggio, os textos de Vergílio e Ovídio? De que forma interpretaram o mito, e como deu voz o compositor ao seu Orfeu? O que nos parece notável nesta ópera e neste libreto é o esforço de fazer subir ao palco toda uma mundividência clássica que há muito se perdera. Este zelo de um Renascimento tardio espelha-se bem no facto de quase nunca o leitor atento se aperceber de alguma incoerência ou anacronismo no texto de Striggio, quando comparado com o seu referente clássico: tirando, obviamente, o facto de tudo ser cantado em italiano, numa métrica que nada tem de clássica, n u m a linguagem tonal já plenamente madura, definitivamente longe da monódia grega ou romana. Foi no denodo aliás, como já dissemos, de fazer renascer a tragédia clássica que nasceu a ópera; a própria ideia de recitativo, de ter u m a personagem que canta, e cujas inflexões da voz são suportadas por u m conjunto instrumental, é profundamente helénica. Como dizíamos, a ópera de Monteverdi respira os textos de Ovídio e de Vergílio, mas, simultânea e não contraditoriamente, vive um Renascimento musical consumado em árias de um virtuosismo extremo, cora relações tónicas complexas, e com afectação de determinados tons a determinados estados de espírito - ideia aliás presente na teoria musical grega 2 , plenamente explorada pelo compositor nas tonalidades maioritariamente menores da peça. A ópera começa com uma fanfarra militar, solene, u m a captado beneuolentiae que antecede o prólogo entoado pela própria Música, que canta o seu 2 Segundo os preceitos dos antigos, a cada modo correspondia um r|0oç definido; o modo mixolídio, por exemplo era mais adaptado à tragédia, pelo seu carácter TtaxriTixrj; enquanto o modo dório transmitia grandeza e dignidade, fortificando o espírito dos homens temperados, em canções para Ares ou Atenas (cf. Ps-Plutarco, De musica, 1136 B). PEDRO BRAGA FALCãO 451 próprio poder enquanto despoletadora de paixões, a potestade da cetera dor sobre os mortais. No primeiro acto, tal como em Ovídio, o deus Himeneu surge, mas desta feita não traz maus presságios; o m a u agouro é dado nas entrelinhas pela mã o de Striggio, que acentua a longa condição infeliz de Orfeu, que até bem pouco tempo plangia pela sua Eurídice, que o não queria. Aliás, mesmo o ritornello que inicia Acto I, n u m exemplo claro de ring composition, apesar de aparentemente alegre, tem em si as sementes que lhe possibilitam ser a peça escolhida para finalizar o Acto II, que acaba n u m clima de desolação, dado o decesso da Ninfa. Aliás, Monteverdi consegue espelhar na sua música aquilo que é a grande ambição dos primeiros dois actos: criar u m a ambiência de festa, de cântico, mas também de subtis sinais de que algo de errado se vai passar: Vi ricorda ò boschi ombrosi, de' miei lunghi aspri t o r m e n t i , q u a n d o i sassi ai miei l a m e n t i r i s p o n d e a n fatti pietosi? Dite, allhor n o n vi s e m b r a i p i ü d o g n i altro sconsolato? (Orfeu, Acto I) A felicidade presente de Orfeu é ensombrada pelos aspri tormenti que o poeta viveu à espera de Eurídice. E m nenhuma das tradições clássicas, quer a de Ovídio, quer a de Vergílio, se fala do desespero de Orfeu antes das núpcias com Eurídice; dir-se-ia que Striggio quis acentuar a ventura de Orfeu, colocando-a n u m curto espaço de tempo, entre a sua angústia de não ser correspondido e a dor pela morte da Ninfa 3 . Mas como dizíamos, a forma como Monteverdi constrói u m a atmosfera leda e bucólica, plena de danças rápidas e efusivas, de cânticos de alegria e de graças, do canto ditoso dos pastores que acompanham Orfeu, tem, julgamos nós, u m propósito bem definido: tornar ainda mais brusco e súbito o falecimento de sua noiva. Depois de quase acto e meio de palavras de júbilo, de sons curtos e vivos, o exício sucede - e bem ao gosto da tragédia antiga, vai ser u m a mensageira, Sílvia, companheira de Eurídice, quem vai narrar os acontecimentos que levaram ao fenecimento da beldade. A forma como o compositor vai desenhar musicalmente esta morte é surpreendente. Quando Sílvia chega, as últimas palavras que se ouviram foram as de u m pastor, que trina: «Dopo 7 duol vi è piü contento, / dopò'l mal vi è piü felice», acentuando u m a vez mais a desdita de u m passado próximo em comparação com o extremo contentamento do presente. Alegria ex abrupto delida pelas palavras de Sílvia, que narra n u m 3 Parece-nos que é o amor de Orfeu por Eurídice que alimenta toda a ópera monteverdiana, e não o amor de Eurídice por Orfeu; aliás, as poucas declarações de amor da Ninfa são extremamente retóricas, bem longe das constantes e fogosas exortações amorosas de Orfeu, e ainda mais longe da obstinada e apaixonada Eurídice de Gluck, como veremos. Citemos, a este exemplo, as poucas palavras de Eurídice no final do Acto I: Eurídice: «Io non dirò qual sai I nel tuo gioir, Orfeo, la gioia mia, I che non hò meço il core, I ma teco stassi in compagnia d'Amore. I Chiedilo dunque à lui s'intender brami Iquanto lieta gioisca, e. quanto fanii,» / 452 A ópera de um mito: Orfeu e Eurídice na obra de Monteverdi e Gluck pungente recitativo menor a desgraça que sucedeu a Eurídice: tal como em Ovídio, a ninfa passeava por entre as ervas colhendo flores, quando «Vangue insidioso» a mordeu. Como culminar deste efeito patético, Orfeu é o último a cantar: são os pastores que lançam os primeiros gritos de luto, acentuando u m doloroso silêncio do bardo, que enfim grita: «Tu se' morta, mia vita, ed io respiro?». Deste ulo de raiva nasce a decisão de descer aos infernos, confiando apenas no poder dos versos e da música; não nos esqueçamos que na versão clássica do mito, em ambas aliás, só depois de ter chorado o suficiente Orfeu decide descer ao Hades: em Ovídio, o herói trácio confessa mesmo a Plutão e a Prosérpina: «posse pati uolui nec me temptasse negabo: I Vicit Amor» (X, 25-26). Este efeito, como dizíamos, patético e trágico de fazer entrar a morte bruscamente no palco, quando era a vida e o amor que se celebrava, dá azo a u m coro com u m a reminiscência indubitavelmente trágica, cantando aquela que é, afinal, «a moral da história» deste acto: não se fie o homem na frágil felicidade, que esta logo foge: Non si fidi huom mortale di ben caduco e frale che tosto fugge, e spesso a gran salita il precipizio è presso (final do Acto II). No esforço de retomar a concepção helénica de tragédia, Striggio vai muitas vezes pôr na voz do coro o comentário à própria acção, aspecto acentuado pela música de Monteverdi, que cria para o coro das Ninfas e dos Pastores u m a melodia e u m a agógica próprias, que permite separar a voz do coro das outras vozes que alternadamente cantam a desgraça de Orfeu. O segundo acto acaba n u m clima de completa desolação, Orfeu desaparece depois do seu grito de dor e ficam os pastores e as ninfas, que juntos procuram o cadáver de Eurídice para o lamentarem. E quão simbólico é o facto de Monteverdi fazer acabar este segundo acto precisamente com a música com que iniciou o primeiro, dando u m exemplo máximo de como as emoções que a mesma lira despoleta podem ser radicalmente diferentes no momento em que o sujeito as experimenta; por outras palavras, u m a música de luz n u m contexto sombrio transforma-se em trevas, e u m a música pesarosa e triste pode ganhar esperança n u m contexto luminoso. O terceiro acto inicia-se já nos infernos; mas mais uma vez se nota o zelo do Renascimento tardio por preservar intacto o contexto clássico: muito dificilmente encontramos na descrição dos infernos elementos cristãos, e a ambiência que se vive neste terceiro e quarto acto faz-nos estar bem próximos da cultura clássica, não fosse, como já dissemos, a polifonia e a língua desta favola in musica. A partir deste momento, Striggio, embora pelo que dissemos se possa concluir que este tem bem presente a versão vergiliana e ovidiana, acrescenta elementos ao mito: Orfeu entra nos infernos escoltado pela Esperança, «único bene I de gV afflitti mortali». Mas ao contrário da Sibila, que na Eneida acompanha Eneias na anábase, desta feita a deusa não pode entrar com Orfeu no reino dos mortos: o herói fica entregue a PEDRO BRAGA FALCãO 453 si próprio, e o seu único expediente é precisamente a música. O primeiro obstáculo do herói é Caronte, que também não surge na versão clássica do mito: Orfeu tenta demovê-lo, n u m clímax musical de virtuosidade. Neste momento surge a ária que do ponto de vista de execução mais exige em termos técnicos - Monteverdi compõe u m lamento que, embora sendo u m andamento vagoroso e lento, dá espaço a autênticos malabarismos vocais, soberbamente interpretados pelo tenor Furio Zanasi naquela que é uma execução de referência desta ópera, a versão de Jordi Saval 4 . Retoricamente, Orfeu contradiz as primeiras palavras que pronunciou aquando da morte de Eurídice: «Tu se morta, mia vita, ed io respiro?»; agora o poeta canta: Non vivo io nò, che poi di vita è priva mia cara sposa, il cor non è piü meço, e senza cor com'esser può ch'io viva? Porém, Caronte mostra-se inflexível: ao contrário das Euménides, de Plutão, de Prosérpina, dos espíritos dos Mortos, de Ixíon, de Tântalo, de Sísifo, na tradição de Vergílio e Ovídio, Caronte não se deixa comover pelo canto de Orfeu, e recusa, numa voz tenebrosa, n u m registo muito grave, acompanhado em recitativo por instrumentos que conferem uma cor ainda mais lúgubre às palavras do barqueiro dos infernos. Apesar de não se sentir persuadido, o poder da música é tal que Caronte adormece, e Orfeu aproveita o momento para atravessar o rio do esquecimento. No entanto, o herói trácio não sabe que no preciso momento em que cantava para o barqueiro, já todas as profundezas o ouviam, e já o coração de Prosérpina se deixava tocar pelo canto de Orfeu. E assim começa o quarto acto, surgindo em cena Plutão e sua esposa. É esta última, mais uma vez fugindo à tradição de Ovídio e Vergílio, quem persuade Plutão a libertar Eurídice; os argumentos que usa, esses, são ovidianos: tal como Orfeu em Ovídio relembra a Plutão e a sua esposa os laços de afeição que os unem, consolidados no episódio do rapto de Prosérpina a Ceres (w. 27-29), Prosérpina vê no amor que une o poeta à sua Ninfa o seu próprio. Plutão, comovido, deixa-se persuadir sem grande dificuldade. E os dois entoam aquele que é, estranhamente, o mais longo e profundo dueto de amor da peça, mais ainda do que o dueto curto do primeiro acto, entre Orfeu e Eurídice. A música de Monteverdi põe em evidência algo fundamental para o tema e para o propósito da ópera L'Orfeo: mais do que o canto de Orfeu, mais do que a sua dilecção pela sua bela consorte, mais do que tudo, o que enternece o rei e a rainha dos infernos é revisitarem na música de Orfeu o seu próprio amor: o poder da música está não em lermos nos outros as emoções dos outros, mas em ouvir nos sons que nos comovem a nossa própria dor, o nosso próprio contentamento. Talvez seja por esta razão que no libretto de Striggio desaparecem por completo aqueles que vivem as torturas no Hades: Ixíon, Tântalo, Sísifo não estão presentes na ópera de Monteverdi, ficando 4 Cf. Discografia. 454 A ópera de um mito: Otfeu e Eurídice na obra de Monteverdi e Gluck unicamente os spiriti infernali, a quem Vergílio dedicou dez versos (471-480) na sua versão do mito; assim, Striggio e Monteverdi logram algo que com certeza é propositado da sua parte: dar todo o protagonismo ao amor de Prosérpina e Plutão. O coro resume aquele que nos parece ser o sentimento que percorre todo este quarto acto: «Pietade oggi et Amore I trionfan ne 1'inferno». Ao contrário da versão de Vergílio, é Plutão, e não Prosérpina, quem impõe a famigerada lei - que Orfeu não olhe para trás: Ma pria che trag'il piè da questi abissi n o n m a i volga ver lei gli avidi lumi, che di p e r d i t a eterna gli sia certa cagion u n solo s g u a r d o (Acto IV) Neste momento da obra é a primeira vez, desde que Eurídice morre, que a música assume u m carácter mais vivo; embora radicalmente diferente do canto bucólico e das danças pastoris do início, a melodia que Orfeu entoa quando sabe que sua Ninfa lhe é restituída é u m [léXoç definitivamente florente, mas também ensombrado pela dúvida: será que ela lhe segue? Neste momento, irrompendo u m estrondo em palco, Orfeu não resiste e olha: «cio che vieta Pluton comanda Amore». E assim perde Eurídice, tal como em Ovídio e Vergílio, atraiçoado pelo seu próprio amor; a própria esposa o diz: «cosi per troppo amor dunque mi perdi». Quanto ao desfecho da ópera, o final clássico do mito não parece ter convencido nem Striggio nem Monteverdi. Orfeu ficar para sempre privado de sua Eurídice, depois de tanto ter padecido, ou morrer dilacerado pelas mulheres da Trácia, segundo a versão de Vergílio, não foi o desfecho escolhido para LOrfeo: antes, também ao gosto da tragédia clássica, surge Apolo ex machina, dizendo aquela que é a lição retirada do mito clássico pelo libretista: o homem não deve ser escravo das paixões 5 , e que na vida nenhum prazer perdura. Como tal, Apolo convida-o para o céu, onde poderá de novo abraçar Eurídice no sol e nas estrelas. E assim acaba a ópera, n u m a dança agitada e frenética: o coro canta as glórias do céu, visto não de u m ponto de vista cristão, parece-nos, mas sempre com a preocupação de respeitar a Cultura Clássica: Deus nem sequer é invocado neste último coro, mas sim um misterioso nume eterno. À maneira da filosofia evemerista, Orfeu será, diz o coro, cultuado para sempre n u m altar com incenso e votos. A apoteose de Orfeu é a resposta encontrada pelo libretista e pelo compositor para dar um final feliz ao mito clássico, embora não desvirtuando a mundividência predominantemente clássica do texto. Orfeo ed Eurídice Um processo bastante diferente vai acontecer no Orfeo ed Eurídice, composto por Gluck, compositor alemão nascido em 1714, com libretto de Raniero Lição que nos parece aliás retirada dos Estóicos (cf. Séneca, De ira I, I, 7). PEDRO BRAGA FALCãO 455 de'Calzabigi. Estes dois homens das artes empenharam-se por efectuar u m a reforma na ópera da segunda metade do século XVIII, procurando fazer com que, ao contrário do que acontecia na época, a música e os cantores estivessem mais comprometidos com a acção dramática, não embarcando assim no coevo virtuosismo vocal que muitas vezes deixava em segundo plano o próprio enredo 6 . Como resultado desta nova abordagem da ópera e do lugar do libreto na sua orgânica, surge, em 1762, em Viena, a ópera Orfeo ed Eurídice. Ao contrário da ópera monteverdiana que aqui analisámos, o mito clássico, tal como é narrado pela mão de Vergílio ou Ovídio, é profundamente alterado, e muitas vezes resumido, sem que nunca no entanto se percam as suas linhas gerais: a morte de Eurídice, a descida aos infernos, e a segunda morte da Ninfa. Desta feita, o libretto de Calzabigi inicia-se in medias res, já Eurídice se apresenta sobre o túmulo, chorada e pranteada pelo coro e Orfeu. Quanto à causa do luto, nem uma palavra: não há qualquer referência à funesta serpente. Um aspecto não muito c o m u m na ópera torna-se evidente quando Orfeu começa a cantar: o personagem masculino canta numa voz de tecitura feminina, embora na sua estreia tenha sido cantado pelo famoso castrato alto Gaetano Guadagni, e recentemente ter sido representando na Royal Opera House pelo «contratenor» (embora o artista recuse este rótulo) Jochen Kowalski 7 . Dir-se-ia que Gluck quis que a voz de Orfeu e Eurídice estivessem mais próximas, metaforizando o seu próprio amor no registo semelhante de suas vozes, além de conferir u m a cor diferente à linha melódica de Orfeu, que assim resulta u m pouco mais brilhante e presente. De qualquer forma, desde o princípio se percebe que o mito é «apenas» u m pretexto para o cantar de uma paixão exacerbada: Orfeu procura em vão sua Eurídice n u m a ária cujo texto tem u m sabor fortemente romântico, radicalmente diferente do preocupado renascimento de Striggio: Orfeo: C h i a m o il m i o b e n cosi Q u a n d o si m o s t r a il di, Q u a n d o s'asconde. Ma, o h vano m i o dolor! L'idolo dei m i o cor N o n mi risponde. Euridice! Euridice! (...) Este ambiente melancólico vai ser interrompido no primeiro acto por u m recitativo em que Orfeu expressa toda a sua raiva: «barbari numi» - u m grito de desespero perante o inexorável poder da morte, de onde resulta a 6 «His [Glucks] reform was a reflection, in one sphere, of an aesthetic movement that affected the whole of European culture, and that was variously expressed in Winckelmanns advocacy of a purified classical antiquity. Voltaires humanist philosophy, Rousseau's return to nature, the Enlightenment associated with Diderot, d'Alembert and the Encyclopédie, and numerous treatises dealing with the theatre (...)», Croll/Dean, 1980, p. 466. 7 Cf. Discografia. 456 A ópera de um mito: Orfeu e Euridice na obra de Monteverdi e Gluck firme resolução de descer aos infernos. Mas desta feita, em vez da ajuda da Esperança, Orfeu conta com o próprio Amor, que desce à terra oferecendo o seu arrimo. Aliás, fugindo claramente à versão clássica do mito, vai ser o deus a impor-lhe a condição de não olhar para trás. Já no inferno, também a versão de Ovídio ou de Vergílio vai ser completamente menoscabada na leitura de Calzabigi: nem uma referência aos tormentos vividos no Hades, enquanto Prosérpina e Plutão, fundamentais para o desenlace do episódio mitológico, vão ser completamente olvidados. Quem tem o poder nos infernos não é Plutão, na ópera de Gluck, mas as almas dos mortos: assim começa o Acto II, com o poeta trácio suplicando que lhe devolvam Euridice, ao que o coro, irado e forte, responde simplesmente: «Não!». A forma aliás como Gluck desenha u m a progressiva empatia do coro, inicialmente intrépido, com o protagonista está especialmente bem conseguida: musicalmente, o coro vai passando de acordes súbitos e fortes para uma agógica cada vez mais débil, desenhada n u m piano que permite ao ouvinte adivinhar o desfecho - Orfeu pode passar pelos portões do Tártaro, pois na versão de Calzabigi não há Letes, nem Caronte, apenas uma simbólica porta para o reino dos infernos. E onde vai Orfeu requestar a sua Euridice? Ao contrário da versão antiga, ou mesmo da de Striggio, Orfeu vai procurar a sua ninfa nos Campos Elísios, algo que dá ensejo ao compositor de traduzir musicalmente a calma e a paz do sítio dos bem-aventurados, por oposição aos sentimentos procelosos que atormentam Orfeu. Finalmente, no Acto III, Euridice é restituída a Orfeu. Mas neste momento outra radical alteração vai ser feita ao mito: é a própria Ninfa que convence Orfeu a olhar para ela, pois não compreende o motivo da recusa deste em contemplá-la, agora que o bom destino os reuniu: Euridice: Ah! infido! E queste Son le accoglienze tue! Tal dai, crudele, A tanto amor mercê? Barbara sorte! Perche dlmen far riviver le faci, Quando mi nieghi i sospirati baci? Orfeu bem resiste, mas sob a ameaça de u m a obstinada Euridice de se ir embora e morrer u m a segunda vez, consumido pela paixão e incapaz de resistir, o trácio olha e logo Euridice lhe morre nos braços. O poeta desespera, n u m misto de dor e fúria, até que o Amor surge ex machina, tal como Apolo no libreto de Striggio, mas desta feita não oferece a Orfeu uma apoteose e u m a simbólica reunião com a sua amada esposa nos céus, antes restitui-lha de novo e sem reservas. A infeliz Ninfa acaba por viver três vezes na ópera de Gluck, n u m óbvio atropelo ao mito clássico, dando desta forma à ópera u m final mais adequado à mundividência quase romântica do libreto de Calzabigi: Coro: Trionfi Amore, E il mondo intero Serva all'impero Delia beltà (final Acto III). PEDRO BRAGA FALCãO 457 Nestas duas óperas encontram-se traduzidas duas atitudes radicalmente opostas por parte dos seus libretistas. O esforço de Striggio em acompanhar e captar a concepção clássica do m u n d o é substituído em Calzabigi por u m aparente desrespeito pela literalidade do mito. Dir-se-ia que enquanto na ópera de Monteverdi o libretista considera e adapta o texto de Ovídio a u m a ópera que se pretende trágica, em Gluck o mito é u m pretexto, que permite a Calzabigi explorar a paixão, mais do que o amor, e os seus efeitos, sem a mínima preocupação com o contexto clássico do mito. Enquanto em Monteverdi a atenção do público se distribui não só pela figura do poeta trácio, mas também pelas diversas personagens que surgem em palco, os pastores, as ninfas, Plutão e Prosérpina, na versão de Gluck a atenção é completamente centrada no Amor, sentimento comprovado na determinação de Orfeu e na teimosia de Eurídice em que o seu marido a olhe. Amor que surge mesmo como personagem independente, e que sozinho toma a decisão de restituir a amada ninfa ao seu músico. Mas mais do que tudo, importa aqui sublinhar que, ao ser actualizado ou reencenado, toda a força do mito permanece intacta - e h á aspectos simbólicos da figura de Orfeu que n e n h u m a das obras vai ignorar: em momentos fulcrais da acção dramática, a harpa, o instrumento do barroco e do período clássico mais próximo da lira grega, acompanha o poeta trácio - e é precisamente o poder da lira, quer vista enquanto o instrumento dos sons quer do amor, aquele que é celebrado em Ovídio e em Vergílio. Vimos aqui a forma como duas óperas exploram de forma completamente distinta u m mesmo episódio mitológico, e como as opções que os libretistas t o m a m em relação à versão clássica do mito, estabelecida por Ovídio e Vergílio, reflectem não só as tendências e as preocupações da sua época, mas também a sua própria sensibilidade e cultura. O mito nasce e morre a cada época que passa, cada vez que u m poeta, u m compositor, u m dramaturgo, u m pintor encena o mito, actualiza-o e da mesma forma encerra-o na sua época. Porém, aquilo que dá vida a este mito, aquilo o que anima, quedar-se-á para sempre no desejo que também nós temos de desafortunadamente olharmos para trás, na alma esperança que o amor reine para sempre sobre os feros desígnios da nossa condição. Bibliografia ARNOLD, D.; ARNOLD, E. M. (1980), «Monteverdi, Francesco» in S. SADIE (ed.) (1980), The New Grove Dictionary ofMusic and Musicians, L o n d o n , vol. 12, p p . 414-534. CROLL, G.; DEAN, W. (1980), «Gluck, C h r i s t o p h Willibald» in S. SADIE (ed.) (1980), The New Grove Dictionary of Music and Musicians, L o n d o n, vol. 7, p p . 455-475. GROUT, D. J.; PALISCA, C. V. (2001 2 ), História Faria, Lisboa, Gradiva. da Música Ocidental, t r a d u ç ã o de Ana Luísa 458 A ópera de um mito: Orfeu e Euridice na obra de Monteverdi e Gluck REDLICH, H. F. (1962), «Orpheus: B. Orpheus ais Opernthema» in F. BLUME (ed.) (1962), Die Musik in Geschichte und Gegenwart, Basel-London-New York, Bárenreiter Kassel, Band 10, pp. 415-419. STERNFIELD, E. W. (1995), The Birth of Opera, Oxford, Clarendon Press. Discografia Cláudio Monteverdi: VOrfeo, Le Concert des Nations (dir. Jordi Savall), La Capella Reial de Catalunya, com Montserrat Figueras, Furio Zanasi, Arianna Savall, Sara Mingardo et alii; ópera encenada por Gilbert Deflo no Gran Teatre dei Liceu de Barcelona em 2002, editada em DVD em 2002 pela BBC - Opus Arte. Christoph Willibald Gluck: Orfeo ed Euridice, The Orchestra of the Royal Opera House, The Royal Opera Choras (dir. Harmut Haechen), com Jochen Kowalski, Gillian Webster e Jeremy Budd; ópera encenada por Harry Kupfer no Royal Opera House, Convent Garden, em 1991, editada em DVD em 1991 pela Arthaus Musik e Royal Opera House.