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Tradutor, Traidor1 Mais do que um reconhecimento do trabalho do tradutor, parece que no século passado se espalhou o desejo de diminuir definitivamente a função da mediação cognitiva. A famosa fórmula tradutor/traidor – que remonta ao espirituoso e meticuloso Vittorio Imbriani, que a usa pela primeira vez em 1869, referindo-se a Andrea Ma ei, tradutor de Goethe, Schiller e Gessner, bem como de Milton e Shakespeare – agora faz parte do senso comum. Na verdade, não há ocasião cotidiana ou erudita, em que não seja repetida com conclusividade apodíctica, em detrimento dos tradutores, acusados a posteriori não só de errar, o que aliás já se sabia a priori, mas também de traiçoeiramente trair, ou perseguir um plano perverso em plena consciência, por desconhecimento da língua estrangeira ou incompetência na própria língua. Não tenho dificuldade em admitir que a definição tradutor/traidor é uma afirmação de eficácia indubitável e enganosa, porque sugere, em sua formulação muito breve e simétrica, um caráter intrínseco de verdade que, em uma inspeção mais minuciosa, é no entanto muito menos convincente do que à primeira vista. A fórmula do tradutor/traidor ultrapassou as fronteiras da língua italiana e também é usada em outros contextos linguístico-culturais, quando se deseja sublinhar erros, omissões ou imprecisões em uma tradução de qualquer tipo ou apenas para apontar o caráter necessariamente redutor de qualquer transposição linguística em relação ao original. A impossibilidade teórica de uma tradução é definida como uma traição prática da mensagem. No caso da tradução de poemas, haveria até uma dupla traição: em detrimento da linguagem e em detrimento do próprio poema. Como a fórmula tradutor/traidor é realmente muito simplista, ela poderia ser substituída, se você realmente deseja uma combinação sentenciosa, pelo casal tradutor/intérprete. Haveria as condições para uma revisão neste sentido, visto que existe em italiano além da definição de tradutor, sagrado e santo, proposta por Garzoni em 1585, também a definição concisa de intérprete, tanto como exegeta e crítico, quanto como tradutor: Se a tradução pura dos setenta intérpretes, e como foi traduzida para o grego por eles, fosse, [...] em vão você me provocaria que os livros hebraicos me trariam sermão em latim. Adaptação e tradução livre de BATTAFARANO, Italo Michele. Dell’arte di tradur poesia. Berna: Peter Lang, 2006. Página 16. 1 Em plena consciência, duvido que tal solução tenha sucesso, porque os clichês, mesmo os mais proibidos e ilógicos, são tão reconfortantes quanto a sabedoria mesquinha dos provérbios. Eles efetivamente garantem a preservação do existente e a salvação da tradição, seja ela qual for. Continuaremos, portanto, a dizer tradutor/traidor por preguiça intelectual, pensando em causar uma boa impressão com uma fórmula clara e concisa. Aqui bastava ter levantado o problema, começando por Garzoni, sem pretender chegar de imediato a um consenso geral. A rigor, e mesmo que pareça um paradoxo, pode-se afirmar a título preliminar que nenhuma tradução está errada em si mesma. Nenhuma trai realmente o original, mas todas, ao invés, o interpretam de forma mais ou menos aguda, em um momento histórico muito específico, não muito diferente do que o erudito literário faz, mais ou menos bem, ao analisar um poema. Mesmo as interpretações são ultrapassadas pelo tempo, poucas permanecem atuais. No entanto, ninguém sonharia em considerar uma interpretação dos poemas de Petrarca ou de Campanella uma traição ao original, apenas porque se trata de uma análise que já não é inteiramente convincente à luz de novas aquisições filológicas ou de diferentes premissas metodológicas. Essa benevolência que relativiza e historiciza os juízos de valor, quando se trata de interpretações críticas, parece não estar prevista para o trabalho de um tradutor, como se seu trabalho com palavras e imagens fosse meta-histórico, quantitativo e não qualitativo, também condicionado por fatores historicamente definidos. Embora as críticas ao trabalho de tradução sejam mais do que elogios desde a antiguidade, ainda são poucas as análises concretas do trabalho de tradução, a partir das escolhas linguísticas feitas em um determinado contexto literário. Sem essa imersão no labirinto do laboratório linguístico do tradutor individual, a fim de compreender melhor o motivo de uma escolha de tradução em vez de outra, toda afirmação sobre a impotência e miséria da tradução parece um pouco fora do lugar: ignora a complexidade do problema e se safa com uma piada contundente. Prof. Guilherme Gonçalves Alcântara.