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Sobre a temporalidade do som para audiovisual Gerson Rios Leme1 Músico e professor dos cursos de cinema do Centro de Artes da UFPel Doutorando em Educação pela UFPel Resumo: O presente texto problematiza a questão da temporalidade do som em audiovisual e objetiva a relexão acerca do uso desta variável na construção do discurso fílmico, de modo a potencializar seu emprego para além da relação básica e direta entre som e imagem. Para isso, aproxima relexões de Andrei Tarkovski relativas à montagem e edição fílmica do livro Esculpir o Tempo com conceitos utilizados na música e possibilidades do som para audiovisual. Introdução O audiovisual trabalha com a inevitabilidade do dimensionamento temporal como elemento básico na constituição do seu discurso. Um produto fílmico é mensurado, basicamente, em quadros por segundo. Tal divisão refere-se ao número de imagens que um dispositivo registra, processa ou exibe por unidade de tempo e varia, comumente, entre 15, 24, 30 ou 60 quadros por segundo. Há, no entanto, a classiicação dos ilmes relativa ao seu tempo total de duração em minutos, dividindo-os em curta, média e longa metragem2. Contudo, a questão do tempo vai além da relação matemática de frames per second ou da divisão em fatias de minutos; inclui questões não sistematicamente calculáveis como a sensibilidade da montagem e efeito expressivo desejado para cada peça audiovisual. Basta pensar que o tempo pode ser medido, variar e ser inluenciado por pensamentos e emoções. 1 griosleme@gmail.com 2 Deinido pela ANCINE: curta metragem: igual ou inferior a 15 minutos; média metragem: superior a 15 minutos e igual ou inferior a 70 minutos; longa metragem: superior a 70 minutos, porém há lexibilidade nesta classiicação dependendo do país e normas estabelecidas em concursos e instituições de ensino. Andrei Arsenyevich Tarkovski. Fonte: http://www.jotdown.es/ 44 45 Quanto tempo então um ilme, uma cena, um plano ou um som deve durar para contemplar a necessidade narrativa que exige uma história? No campo da sétima arte, o talentoso cineasta russo Andrei Tarkovski3 (1932 – 1986) argumenta o assunto de forma interessante no seu livro, inteligentemente chamado Esculpir o Tempo (TARKOVSKI, 1998), a partir das suas experiências e inquietações com o cinema, à procura do aprofundamento de sua própria linguagem, trazendo à luz relexões pertinentes sobre tempo, ritmo e montagem, entre outras. O autor produziu ilmes como A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo,1962), Solaris (Solyaris, 1972), O Espelho (Zerkalo, 1974), Stalker (Stalker, 1979), Nostalgia (Nostalghia, 1983), O Sacrifício (Offret – Sacriicatio, 1986) e foi também escritor, editor, teórico e fotógrafo, além de diretor de teatro e ópera. Dentre as alternativas de comportamento temporal do som em relação à imagem, é comum fazer referência a termos como sincronia, velocidade, ritmo e tempo, por exemplo. Mas a quê referem-se, de fato, tais termos? E qual a sua aplicação na construção de produtos audiovisuais? A fórmula que origina um produto audiovisual é composta e regulada pelo equilíbrio das variáveis elencadas para compor o discurso fílmico em relação à intenção criativa que o gera, habilidade técnica aliada à imaginação, mediadas pela realização prática. Porém, conforme pontua Tarkovski: Considerando que os conceitos e ponderações a seguir sugerem que se pense o tempo do som desde a pré-produção de um ilme, que a concepção do discurso audiovisual pode surgir a partir de elementos e variáveis relativas ao som, espera-se que sejam incorporados como gatilhos criativos rotineiros. Nenhum dos componentes de um ilme pode ter qualquer signiicado autônomo: o que constitui a obra de arte é o ilme. E só podemos falar de seus componentes de forma muito arbitrária, decompondo-o artiicialmente para facilitar a discussão teórica. (TARKOVSKI, 1998, p.135) O presente texto é focado, portanto, na camada de som para audiovisual, que é composta por voz, efeitos sonoros e música (LEME, 2008, 2011), mais especiicamente, na questão do tempo referente ao uso do som no discurso fílmico. A problematização do tempo do som em audiovisual é pontual objetivando a sensibilização a este componente especíico para que possa ser potencializado na produção audiovisual. Não tem por objetivo o juízo de valor, apenas, procura apresentar possibilidades diferentes das mais comumente utilizadas na relação temporal som + imagem. Vai além, portanto, da natureza de cada som ou da composição da paleta de sons que constituem o universo sonoro de um produto audiovisual. das possIbIlIdades de tempo para o som sIncronIa Basicamente, a utilização deste conceito tem duas possibilidades práticas: o som síncrono e o assíncrono, ou seja, aquele que “casa” com a imagem e aquele que não corresponde ao que é mostrado. Algumas considerações servem para deinir e aprofundar a questão, a saber: Som síncrono: de modo simplista, a este é atribuído realismo, pois reforça pontualmente a sua fonte sonora de origem e, por isso, não incomoda ou destoa do caráter comum de consequência do som, tratando assim, o visual como causal do som. Há a relação direta de som advindo da imagem que é exibida, ligando o que é visto com o que é ouvido. Portanto, o som síncrono tem a função de dar credibilidade ao que se vê, pois ele é o que se vê. Sua aplicação adequada tecnicamente e esteticamente, mesmo que seja dublado ou receba qualquer tipo de tratamento, reduz-se à associação direta de causa/efeito relacionada à imagem. 3 Pode ser grafado também como Tarkovsky ou Tarkovskiaei, devido a adaptação para tradução do alfabeto russo. 46 47 Som assíncrono: Equivocadamente, este tipo de tratamento em relação à imagem é considerado inadequado ou mesmo errado. Isso se deve ao fato de sua ligação com a imagem ser diferenciada e permitir variações que não são engessadas conforme o som síncrono, como antecipação e atraso, além de mudanças durante a construção das cenas, conforme planejamento e intenção técnica e estética. Um som pode antecipar a imagem, por exemplo, pode estar em discordância intencional com a temporalidade do que se vê para fortalecer a dramaticidade narrativa, ou mesmo para brincar com as possibilidades que combinações inusitadas e inesperadas proporcionam, ressaltando ou retardando expectativas desejadas. Tratar o som de modo síncrono ou assíncrono com as variações que são possíveis é uma opção que não deve ser descartada na construção do discurso fílmico, porém, ainda é notória a aplicação predominante do som síncrono no audiovisual. tipo de andamento mudança de andamento grave – em geral muito vagaroso accelerando – aumentando a velocidade lento – lento stringendo – apressando largo – muito vagaroso allargando – alarg ando larghetto – não tão vagaroso rallentando – afrouxando adagio – calmo, bastante vagaroso ritardando – atrasando andante – andando tranquilo ritenuto – retardando, em geral, subitamente andantino – menos vagaroso que o andante meno mosso – mais devagar moderato – moderadamente più mosso – mais depressa alegretto – não tão depressa quanto allegro a tempo ou tempo primo – retoma o andamento original allegro – depressa, animado vivace – com vivacidade presto – muito depressa prestíssimo – o mais depressa possível VelocIdade Um conceito que vem da música é o de andamento, que nada mais é do que a velocidade do discurso musical, marcada por um instrumento denominado metrônomo, que tem a função de produzir pulsos de duração regular, tendo como unidade básica de tempo o minuto4. É uma guia e traz, portanto, maior exatidão durante estudos de conteúdos especíicos ou peças musicais. Historicamente, o primeiro compositor a indicar andamento preciso de metrônomo em suas obras musicais foi Ludwig van Beethoven, por volta de 1817. (HOWARD, 1991). Entretanto, antes da sistematização do tempo musical pelo metrônomo, este conceito era mais amplo e instruía a intenção de velocidade desejada, bem como a variação da mesma nas peças musicais, assumindo diversas nuances que vinham apontadas na partitura por termos em italiano, a saber, conforme tabela abaixo (BENNETT, 1993): 4 Pode-se programar o metrônomo para dividir 120 batidas por minuto, por exemplo. O que resultaria em duas batidas por segundo. 48 Isso evidencia que a música incorpora há muito tempo o controle sistemático da velocidade em seu conteúdo como probabilidade ativa na construção do seu discurso, operando de modo funcional uma das dimensões atribuídas ao tempo sonoro. Esta gama de velocidades, mensurada precisamente ou indicada de modo geral, pode enriquecer as variações da relação entre som e imagem, ampliando a criatividade audiovisual. rItmo e tempo Conforme destaca o Tarkovski, “o fator dominante e todo-poderoso da imagem cinematográica é o ritmo, que expressa o luxo do tempo no interior do fotograma” (TARKOVSKI, 1998, p. 134), ou seja, deine o início, meio e im da obra e suas partes internas, o seu luxo. Além disso, o autor destaca que “É impossível conceber uma obra cinematográica sem a sensação do tempo luindo através das tomadas, mas pode-se facilmente imaginar um ilme sem atores, música, cenário e até mesmo montagem.” (idem, p.134). 49 Assim, podemos entender que elementos como o roteiro, a qualidade de resolução da imagem, a riqueza do igurino, a composição musical original, as particularidades da atuação, o requinte de cenários e locações, por exemplo, são partes componentes e determinantes do resultado inal de um ilme, porém, se o tempo de cada elemento não for o adequado à narrativa desejada, se perderão em um produto “vazio”. No campo da música, o ritmo pode ser entendido como a organização do material sonoro, sua presença – notas e ruídos – e sua ausência – silêncio. Esta distribuição é feita respeitando padrão de repetição ou não, porém é sistematizada em função da construção de trechos musicais expressivos, pensando na quantidade de som e silêncio em cada pedaço da música. (HOWARD, 1991; BENNETT, 1993) Na composição musical é comum decompor uma frase musical em fragmentos menores para trabalhar variações que aproveitem ao máximo o material criativo. Resumidamente, funciona do seguinte modo: após a concepção de uma ideia, que tem uma duração temporal deinida, as opções de sequência que seguem são repetição ou mudança, que são decisões técnicas, porém, vale lembrar que qualquer conteúdo sonoro ou visual lançado à apreciação, ao seu início, cria expectativas e intenções pela organização e apresentação do seu material. Portanto, estar atento a estas possibilidades traz mais controle para o discurso a ser criado. A repetição nada mais é do que a reprodução exata do que foi apresentado, sem nenhuma variação. É útil para que se estabeleça padrão e, pode ser trabalhada de modo a criar uma sensação de previsibilidade e constância, uma vez que, estabelecido um padrão, espera-se que ele seja mantido e, quanto mais tempo for mantido, maior a sensação de que não será alterado. Já a mudança é constituída de qualquer alteração possível, que desestruture levemente ou bruscamente o conteúdo primeiramente apresentado. Não obrigatoriamente funciona como contraste, pois pode partir de mudanças pouco perceptíveis, como um leve aumento ou diminuição de tempo, por exemplo, aplicando alterações que serão identiicadas apenas quando feita a comparação entre o material original e o modiicado. Isso pode trazer uma sensação de 50 movimento ou construção/desconstrução. Porém, se utilizada com exageros a mudança pode criar a expectativa de que sempre serão apresentadas alterações, ou seja, a mudança vira um padrão. O ritmo também é considerado na forma de estilo musical, composto respeitando critérios especíicos de estrutura e distribuição sonora, funcionando como assinatura que constitui o jazz, rock, blues, samba, MPB ou música erudita barroca, entre outros. A respeito do ritmo do ilme, Tarkovski discorre que é anterior à fase da montagem: Embora a junção das tomadas seja responsável pela estrutura do ilme, ela não cria seu ritmo, como se costuma pensar. O tempo especíico que lui através das tomadas cria o ritmo do ilme, e o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo que passa através delas. A montagem não pode determinar o ritmo (neste aspecto, ela só pode ser uma característica do estilo); na verdade, o luxo do tempo num ilme dá-se muito mais apesar da montagem do que por causa dela. O luxo do tempo, registrado no fotograma, é o que o diretor precisa captar nas peças que tem diante de si na moviola. O tempo, impresso no fotograma, é quem dita o critério de montagem, e as peças que “não se montam” – que não podem ser coladas adequadamente – são aquelas em que está registrada uma espécie radicalmente diferente de tempo. Não se pode, colocar juntos o tempo real e o tempo conceitual, da mesma maneira como é impossível encaixar tubos de água de diferentes diâmetros. (TARKOVSKI, 1998, p.139) Seguindo, o autor explica que a pressão do tempo é a “consistência do tempo que corre através do plano, sua intensidade ou 'densidade'” e que a montagem “pode ser vista como a união de peças feita com base na pressão do tempo existente em seu interior.” (idem, p.139). Deste modo, compreender este ritmo é essencial para a consolidação do produto inal. Ainda em relação ao tempo e ritmo, comparando o cinema com o balé e a música, o autor destaca que no cinema o tempo ganha forma real e visí- 51 vel depois de registrado na película, tonando-se dado e imutável, mesmo quando assume caráter subjetivo. Então o cineasta atribui para si a criação de um luxo temporal pessoal: Vejo, então, que minha tarefa proissional é criar meu luxo de tempo pessoal, e transmitir na tomada a percepção que tenho do seu movimento – do movimento arrastado e sonolento ao rápido e tempestuoso –, que cada pessoa sentirá a seu modo. Juntar, fazer a montagem é algo que perturba a passagem do tempo, interrompe-a e, simultaneamente, dá-lhe algo de novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de lhe dar expressão rítmica. Esculpir o tempo! (TARKOVSKI, 1998, p. 144). O autor ressalta ainda a importância da montagem cinematográica na relação com o tempo e ritmo: Montar consiste em combinar peças maiores e menores, cada uma das quais é portadora de um tempo diverso. A união dessas peças gera uma nova consciência da existência deste tempo, emergindo em decorrência dos intervalos, daquilo que é cortado, arrancado ao longo do processo; contudo, como dissemos anteriormente, o caráter distintivo da união que se realiza durante a montagem já está presente nos segmentos. A montagem não gera nem recria uma nova qualidade; o que ela faz é evidenciar uma qualidade já inerente aos quadros que ela une. A montagem é prevista durante a ilmagem, é pressuposta no caráter daquilo que se ilma, está programada desde o início. (TARKOVSKI, 1998, p. 141). A montagem retrata um tempo pessoal de quem a executa e pode ser comparada ao timing musical, que pode ser considerado de duas maneiras, conforme Howard: 52 1) Que comprimento você deve dar a uma sessão da música? Isso é importante e depende de um número de coisas, inclusive da posição que tem a seção dentro da estrutura global e de como você gostaria que ela fosse, se mais comprida ou menor que as outras seções. 2) Até que ponto a música deve ser imprevisível? É importante que aquilo que se mostra como alvo musical não seja atingido exatamente no momento esperado. Você, por exemplo, pode levar sua melodia num movimento ascendente e, antes que a nota mais alta seja atingida, retardá-la com um brevíssimo movimento descendente. Saiba esticar e comprimir as coisas. A música tem seus efeitos psicológicos. Ela deve prender o ouvinte. Enquanto estiver compondo, você também tem de pôr-se, de vez em quando, na posição de ouvinte; escute a música, saiba avaliar a oportunidade de seus efeitos. (HOWARD, 1991, p.23) Pode-se considerar a criação de um ilme como a composição musical, pois parte-se da escolha de materiais para integrar e construir um discurso com algum objetivo especíico. conclusão O emprego metódico de técnicas leva à ampliação do repertório, que emerge no ato artístico criativo e relete-se no resultado inal da produção cinematográica. A aproximação de conteúdos especíicos de áreas diferentes, porém, convergentes como cinema e música incrementa o entendimento de tópicos pertinentes de modo a desenvolver o emprego dos mesmos em ambos os campos. É certo que há diferença contextual dos termos sincronia, velocidade, ritmo e tempo, quando focados em música ou em cinema, contudo, a apropriação das suas características intrínsecas cria novas abordagens práticas e teóricas e dá sustentação à experimentação sistemática com a consideração de elementos inéditos agregados pela relação entre as áreas. 53 Problematizar o tema da temporalidade e aproximar as relações entre cinema e música, no que se refere ao emprego do som, visa qualiicar o seu uso originando situações que o considerem como causa criativa e não apenas resultado direto da imagem. Num contexto em que há a expansão da produção e da problematização de temas relacionados ao audiovisual, a área do som apresenta muito fôlego de pesquisa e aplicação prática de resultados diferenciados possíveis para enriquecer o discurso fílmico. A temporalidade é apenas um dos temas que podem ser aprofundados! referêncIas BENNETT, Roy. Elementos Básicos da Música. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1993. HOWARD, John. Aprendendo a compor. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1991. LEME, Gerson Rios. Escutando o cinema. Revista Universitária do Audiovisual – RUA, Universidade Federal de São Carlos. Disponível em: <http://www.rua. ufscar.br/site/?p=145>. Acesso em: 08/10/2013. . Pensando a trilha sonora para audiovisual. Revista ORSON, Universidade Federal de Pelotas. Disponível em: <http://orson.ufpel.edu.br/content/01/artigos/ primeiro_olhar/88-95.pdf> Acesso em: 08/10/2013. TARKOVSKI, Andreai Arsensevich. Esculpir o Tempo / Tarkovski; [tradução Jefferson Luiz Camargo]. – 2ªed. – São Paulo : Martins Fontes, 1998. 54 55