UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
GUILHERME CELESTINO SOUZA SANTOS
ESCUTA E FORMAÇÃO DO CARÁTER EM ARISTÓTELES
GUILHERME CELESTINO SOUZA SANTOS
ESCUTA E FORMAÇÃO DO CARÁTER EM ARISTÓTELES
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira
Rio de
2012
C392e
Celestino-Santos, Guilherme Souza
Escuta e formação do caráter em Aristóteles / Guilherme Celestino Souza
Santos - 2012.
121 f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia, PPGF, Rio de Janeiro, 2012.
Orientador: Fernando Santoro.
1. Ética 2. Virtude 3.Caráter 4. Paideia 5. Filosofia Analítica 6.
Hermenêutica 8. Estética da existência. Educação I. Santoro, Fernando (Orient.)
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia III. Título
CDD: 170
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ESCUTA E FORMAÇÃO DO CARÁTER EM ARISTÓTELES
Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós Graduação em Filosofia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando José
de Santoro Moreira, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre.
Aprovada em 31 de maio de 2012
Prof. Dr. Fernando José de Santoro Moreira – UFRJ – Orientador
Prof. Dra. Luisa Severo Buarque de Holanda – PUC-Rio
Prof. Dr. Francisco José Dias de Moraes – UFRRJ
Profa. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues – UFRJ – Suplente
Prof. Dr. Rafael Haddock Lobo – UFRJ – Suplente
Rio de Janeiro
2012
Dedico esta dissertação a minha filha,
Giovanna.
E também a Lara, Leon e Maria Rosa
Terra fértil.
Aos que deram incomensurável ajuda
Ali Celestino, Luiza Miriam R. Martins, Carlos Lemos,
Fernando Fagundes Ribeiro e Fernando Santoro.
Aos que fizeram pontuações importantes
Flavio Brito, Rafael Laman, Gabriel Zagury, Gilson Iannini, Francisco Moraes,
Rômulo Pizzolante, Mariana Katona, Samuel Tavares, Arquimedes Celestino,
Edmundo Dias, Maria Lúcia R. Martins, Fernando Rodrigues, Rodrigo Guerizoli,
Luisa Severo, Daniel Pretti, Felipe Pinto, Rafael Barbosa, Eduardo Sampaio
Martins, Carla Francalanci, Natael Santana, Eduardo Rostein, Barbara Cassin,
Rafael Haddock-Lobo, Alexandre Mendonça e Luiz Felipe Bellintani.
Aos que participaram ativamente da minha formação
Maurício Rocha, Guilherme Castelo Branco, Fernando F. Ribeiro e Fernando Santoro,
que mostraram as principais vias de acesso; Raul Landim, Guido de Almeida e
Marco Zingano, que apresentaram com vitalidade a tradição analítica; Emanuel
Carneiro-Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Calvalcanti, cujo "poetar-pensante" trouxe à
língua pátria a presença da hermenêutica; Bernardo Oliveira, Rafael Haddock-Lobo,
Ivan Maia pelas múltiplas faces de Nietzsche; Edmundo Dias, Zulmira Hardman,
Tamaia Moraes que trouxeram o aprendizado de cuidados com o corpo segundo uma
arte do "uso de si"; Elisa Lucinda, Marcio Libar, Ferreira Gullar que estimularam a
sensibilidade estética; Íris Rodrigues de Oliveira, Maria Lúcia Martins,
e Luiza Miriam R. Martins que ensinaram a ensinar.
Em memória de Clauze Abreu e Kátia Maria da Conceição, mestres da escuta.
A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
João Cabral de Melo Neto
RESUMO
CELESTINO SANTOS, GUILHERME SOUZA. Escuta e Formação do Caráter em
Aristóteles. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação de Mestrado em Filosofia – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2012.
Nossa hipótese de trabalho é a de que o problema da formação do caráter em Aristóteles
faz parte da questão grega da Paideia. Ao solucionar a questão pela fundamentação dos
valores éticos no bem humano, o autor entende que as virtudes da ação humana são
como uma espécie de “escuta”, respondendo de modo original a célebre questão grega
“as virtudes podem ser ensinadas?”. O ensino da virtude é um problema para os gregos
desde Homero, e praticamente, todo grande pensador e criador da cultura grega se
dedicou com afinco à questão. A filosofia que trata das coisas humanas nasce com
esse debate, Sócrates e Platão de um lado, sofistas de outro. Nosso trabalho ao
assumir uma perspectiva histórica visa mostrar a posição aristotélica acerca do
problema da educação do homem para as virtudes, e como esta se propõe a
responder e suplantar tanto a posição socrático-platônica, como a sofística. Por outro
lado, ao abordar o problema da formação do caráter do ponto de vista estritamente
filosófico, nos deparamos com interpretações contemporâneas que divergem na
compreensão do texto aristotélico acerca da questão da "escuta" do lógos. Há a
tradição analítica que interpreta a questão, como que se tratando de um
desenvolvimento ou aperfeiçoamento moral, centrado no "saber" de natureza prática.
Há a tradição hermenêutica que remete a questão à dimensão existencial, situando a
"escuta" na própria dinâmica de aparição do ser. E por fim, há a estilística, que pensa a
formação pela escuta, a partir de práticas subjetivas que se estruturam segundo uma
estética da existência.
Palavras-chave: Paideia, escuta, virtude ética, caráter, Aristóteles.
ABSTRACT
CELESTINO SANTOS, GUILHERME SOUZA. Escuta e Formação do Caráter em
Aristóteles. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação de Mestrado em Filosofia – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2012.
Our working hypothesis is that the problem of character formation in Aristotle is part of
the issue of Greek Paideia. When solving the issue by grounds of ethical values in the
good for the men Aristotle understands the virtues of human action are a kind of
"listening", so answering the famous Greek question "can the virtues be taught?". The
teaching of virtue is a problem for the Greeks since Homer, and almost every great
thinker and creator of Greek culture was dedicated to this hard question. The philosophy
that deals with human things is born with this debate, Socrates on the one hand, on the
other hand sophists. Our work by a historical standpoint aims to show the Aristotelian
position on the problem of man's education by the virtues and how it proposes to
respond and to supplant both the Socratic-Platonic position, as the sophistical one.
Moreover, in addressing the problem of character formation in strictly philosophical
point of view, we are faced with contemporary interpretations that differ in Aristotelian
understanding on the issue of "listening" the logos. There is the analytic tradition that
interprets the question, as if it was dealing with a development or moral improvement,
focusing on "knowledge" of a practical nature. There is the hermeneutic tradition which
refers the matter to the existential dimension, placing the "listening" in the dynamics of
appearance of being. And finally there's the stylistic, what is the training of listening,
from subjective practices that are structured according to an aesthetics of existence.
Keywords: Paideia, listening, virtue ethics, character, Aristotle.
Sumário
Preâmbulo...................................................................................................12
I – Introdução ..............................................................................................22
II – Paideia: o problema da educação ..........................................................21
1) Paideia Grega.................................................................................... 31
O problema da formação .....................................................................32
Lugar de destaque dos gregos ..............................................................35
Limites metodológicos ...........................................................................41
2) O ensino da virtude..................................................................................46
Significação ...........................................................................................46
Cronologia .............................................................................................48
A Paideia como “capacitação” ...............................................................53
A Paideia segundo os tipos ideais...........................................................57
3) Discussão filosófica: as posições clássicas .......................................... 59
Batalha filosófica: A virtude pode ser ensinada? ...................................59
O intelectualismo socrático-platônico ..................................................62
O convencionalismo sofístico...............................................................66
4) Paideia Aristotélica: recusa a Platão e aos Sofistas ............................71
Modelo “etho-prático” ..........................................................................72
Rejeição do Bem como Ideia................................................................73
Rejeição do convencionalismo da Sofística ..........................................75
III – O problema da formação do caráter .....................................................81
1) A questão da “escuta”....................................................................... 82
2) A visada analítica da questão ............................................................ 88
Desenvolvimento moral: amadurecimento do senso valorativo ............88
Esquema geral da solução analítica .....................................................90
3) A solução hermenêutica.......................................................................92
Heiddegger ..........................................................................................93
Superação da analítica .........................................................................93
Torna-te quem tu és: círculo existencial ...............................................94
Esquema geral da hermenêutica ..........................................................96
4) Solução estilística ................................................................................97
Estética da existência ...........................................................................99
Estilística do caráter ............................................................................101
Esquema geral da estilística ................................................................103
Diapasão foucaultiano..........................................................................104
IV – Considerações finais .............................................................................107
1) Por uma doutrina estilística da hexis ..................................................107
2) Esboço de uma "lógica do caráter" ................................................. 108
3) Conclusão........................................................................................ 109
V – Referências ..........................................................................................111
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Preâmbulo:
Escuta como educação do desejo,
e a recepção contemporânea
O problema da escuta na ética aristotélica
Burnyeat, em seu artigo “Aristotle on learning to be good”, apresenta a ética
aristotélica a partir de uma questão que serve de orientação ao presente trabalho. Neste
artigo, podemos ver como a acuidade e a profundidade podem estar aliadas à análise
filológica e filosófica de um tema antigo, onde encontramos, de modo excepcionalmente
claro, a colocação do problema da formação do caráter na ética aristotélica. Os ingleses,
com a maneira de dizer as coisas de modo simples e direto, tornam mais fácil enxergar
como a abstração filosófica pode estar intimamente ligada às situações concretas. Desde
o título, Burnyeat aponta para o que há de mais fundamental, indo direto à questão
mesma de “como nos tornamos melhores”. Esse é certamente o maior problema da ética,
e sem dúvida é também o problema que inicia o pensamento ocidental acerca do assunto.
Encontramos em Gosta Gronroos em “Listening to reason in Aristotle‟s Moral
Psycology” uma abordagem similar à de Burnyeat, que sintetiza o que está em questão na
formação ética segundo a ética aristotélica: fazer as emoções “escutarem” a racionalidade
do lógos, o que para ele significa se tornar “emotionally sound”. A língua inglesa se vale
de um formidável adjetivo, “sound”, que em seu vernáculo traz uma polissemia que pode
pretender dar conta de toda a dificuldade do que seja “escutar” como formar o caráter em
sentido ético. O adjetivo "sound" tanto remete ao que é propriamente sonoro, como ao
que está em boa condição ou é saudável (Considering his age, his body is quite sound),
como algo que é confiável, que demonstra bom juízo (Government bonds are sound
investment), como ainda o que é inteiro, completo ou sólido em um sentido abstrato
(How sound is her knowledge of the subject?), ainda na Lógica "sound arguments" são
aqueles argumentos que além de válidos, têm suas premissas como verdadeiras.
Com efeito, Aristóteles indica vários aspectos, (que parecem estar na expressão
“emotionally sound” condensados) de como a parte desejante da alma é capaz de seguir
(akolouthîen) de modo adequado o lógos: por ter uma participação (metékhein lógou);
12
por ser persuadido (peíthesthai); por ser obediente (épipeithés, peitharkhein); e por fim,
por escuta (katéhkoon). (Cf. EN I 13, 1202b 13-14; I 7,1018a 4; I 13, 1102 b26, 33).
Privilegiamos a palavra “escuta” para uma tal síntese em nossa língua, na medida
em que permite uma condensação similar, desde que associamos no mesmo semantema
além dos sentidos de “seguir”, “obedecer”, e “ouvir”, o da “perfeição”, de modo que
associemos o que “soa” com que é “são”. Para a felicidade desta pesquisa podemos
encontrar na nossa língua uma construção poética que pode tratar da formação ética em
torno do campo semântico da escuta, basta escutarmos atentamente o disco de canções
de Gilberto Gil chamado “Gil Luminoso”, e lá encontrar a música “O Som da Pessoa”:
A primeira pessoa soa como eu sou
A segunda pessoa soa como tu és
A terceira pessoa soa como ele
e ela também
Qualquer pessoa soa
toda pessoa
boa
soa
bem.
A letra da canção diz bem, toda e qualquer pessoa “soa” isto é, possui o lógos, é
capaz de com ele pensar, produzir discursos e ser tocada por eles. Porém só naqueles em
que lógos é capaz de estar por toda parte da alma, desejo, corpo e emoções, ele “ressoa”.
Somente na pessoa que detém virtude, excelência de caráter o lógos não apenas soa, mas
também ressoa, significa que na “pessoa boa”, ele não apenas “soa”, mas “soa bem”.
(In)atualidade da Escuta
Hoje a impressão é que nossa cultura não sabe colocar uma questão como essa. A
educação atual (se consideramos seu modelo como definido pelo sistema escolar)
quando se propõe a fazer com que uma pessoa se torne melhor, recorre ao moderno
paradigma da capacitação tecnicista, ou ao velho modelo humanista. O problema
implícito é o do que se entende por “tornar alguém melhor”. A sociedade e seus
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educadores (e por que não seus formadores de opinião) parecem ter uma resposta
coerente para isso.
O que será que realmente nos faz prosperar na vida? Segundo as soluções
consolidadas no mundo contemporâneo, ou bem se busca uma capacitação técnica para
profissionalização, como se o bem último das capacidades humanas fosse “ter uma
profissão”; ou bem se investe na cultura letrada ao máximo possível, como se isso fosse
um bem em si. Ou, ainda, muito pior, coloca-se todo peso na capacitação científica,
supondo que esta atinge o extremo humano, e que todo bem humano poderia, em última
análise, ser algo redutível à objetividade e/ou reconhecível cientificamente.
Mas será que alguém se torna “melhor”, por frequentar teatros e museus, e estar
sensibilizado pela arte de modo geral? Ou então por ser capaz de escrever uma
dissertação da área de humanidades? Ou seria melhor a vida daqueles que passam por
uma capacitação tecnológica ou profissionalizante? Ou, será como quer certa tecnocracia,
que a compreensão dos números e estatísticas faz alguém tomar melhores decisões? Ou,
ainda, ter acesso a tais informações é o que faz um bom governo, e, portanto, melhora a
vida dos governados? Tais asserções fazem parte da moeda corrente dos debates e
crenças atuais, e talvez a maior contribuição que possamos dar, não seja a de remetê-las a
assertivas, mas a de pontuá-las com a devida interrogação.
Investimos nessas questões, acentuando a dimensão problemática do que nelas está
em jogo, se nos propusermos a fazer determinada leitura de Aristóteles, de sua ética. O
recuo a Aristóteles é algo que nos permite retirar da formação o peso tão grande dado ao
“intelectualismo”, “tecnicismo” e “eruditismo” que hegemonizam as práticas e teorias
atuais. Este trabalho busca apreender que compreensão é essa, não evitando suas
dificuldades.
Não é ingênua a distinção dicotômica que fizemos para mostrar as forças que
animam o sistema escolar atual, quando dele se extrai a semelhança com os paradigmas
sofísticos e platônicos na antiguidade, na oposição que há nestes entre intelectualismo
epistêmico e convencionalismo epistêmico na discussão sobre a educação do caráter.
Aristóteles oferece uma alternativa que parece fugir dos paradoxos paralisantes da
antiguidade ao valorizar uma terceira via, a da “escuta”. Mas é preciso interromper a
analogia num ponto. Há um sentido ético da educação que não está presente na
14
discussão moderna da organização escolar. Há, todavia, na própria estruturação do
sistema escolar moderno, a conjugação de um modelo que ora resvala na capacitação
técnica, e ora na erudição humanista, não surpreende que a noção de “cidadania” que se
busca formar nos jovens indivíduos esteja tão cheia de ambiguidades insolúveis. Que
cidadão se quer formar? Um sujeito que melhor se integre na produção, ou um agente
participativo de instituições e governos?
Porém, para o grego a cidadania não se confunde de forma alguma com a
adequação do indivíduo à sociedade – seja pela integração acrítica ao mercado de
trabalho, seja pela incorporação crítica às instituições ou governos. A cidadania como
ideal da formação política, anda de mãos dadas com a formação ética em sentido estrito,
sua realização só é devida pela realização máxima das potências do indivíduo que se
efetiva na sua condição política. O grego vê na ação virtuosa o fim de toda educação,
independente dela ser economicamente lucrativa, ou socialmente útil. Apenas por uma
caricatura poderíamos aproximar a posição platônica e sofística do intelectualismo
cientificista e tecnicista e do eruditismo acadêmico ou humanista, nesse ponto, moralistas
gregos jamais poderiam ser tão reacionários quanto os educadores modernos.
Tomando o sistema escolar como um todo, e o paradigma único da educação das
sociedades modernas, alguns contrastes decisivos serão necessários para atinarmos o
modelo grego da Paideia. A educação (escolar) é voltada para a reprodução sociológica
dos valores da cultura, enquanto a Paideia visa uma apropriação individualizada dos
valores culturais. Sintoma disso são as compreensões liberais e psicológicas da educação
que fazem do aluno tábula rasa do conhecimento ensinado, chamada por Paulo Freire de
"educação bancária". A sabedoria grega, em geral, seja ela de matriz socrática ou não,
está mais voltada para a criação do que para a reprodução. A Paideia instrui para a
criação, e por isso tem seu modelo na educação técnica, que para os gregos seria algo da
nossa moderna visão tecnicista da educação. Tekné envolve poiesis, do sapateiro ao
legislador, são feitas atividades produtivas, que envolvem não apenas a utilidade daquilo
que é feito, mas também de certa forma, em seu sentido final, não revelam apenas a
marca do trabalho humano sobre a matéria, mas a realização desse próprio humano
enquanto trabalha. Para mirarmos a distância que afasta o paradigma tecnicista moderno
da concepção antiga de técnica, teríamos de ir lá à questão da alienação do trabalhador
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moderno de Marx, e à concepção moderna de técnica segundo o anti-humanismo
heideggeriano, o que excede em muito esse trabalho.
Temos que os objetivos finalísticos da educação moderna: cidadania, profissão,
coesão social e nacional, apontam para a quase total ausência de um tema fundamental
para educação grega: o prazer. As fontes que se buscava operar no aluno pela educação,
o prazer, a corpo, o desejo, são poucas vezes intencionadas na educação moderna
encerrada na escola; por conseguinte, os objetivos últimos da educação não aparecem
também como seu tema associado: a virtude, a vida plena de sentido, a excelência moral,
a amizade. A cultura ensinada na escola capacita o sujeito a se empregar socialmente, se
tornar profissional, cidadão, chefe executivo, e em certos casos governante – sem ela o
sujeito fica à margem da sociedade, com ela no máximo é capaz de ser útil. Existe uma
noção autárquica de transcendência ética que se perde, que estava presente no ideal
grego de educação tanto nos sofistas como em Platão e Aristóteles.
O objetivo deste trabalho não é nem de nostalgia, nem de utopia, não se trata de
buscar cultuar ou copiar a Paideia grega. Mas de observa-lhe a distância, de considera-la
como parâmetro crítico para o presente, talvez para aperfeiçoar os limites ideológicos
estreitos que a filosofia da educação pode determinar. Se a base ética de toda educação
fica obliterada pelos interesses ideológicos da escola moderna, encontramos no esforço
mesmo dos pensadores da educação grega a tarefa de distinguir os valores finalísticos
necessários em toda educação. A dificuldade grega antiga poderia ser formulada
modernamente na questão de como pensar o sujeito ético como um criador e não como
um reprodutor de valores.
A Paideia como Educação do Desejo
Educar para um grego é educar o desejo. Filósofos e sofistas estruturam um debate
de como deve ser a educação de um cidadão da polis, de quais métodos devem ser
empregados, dos modelos de virtude a serem buscados, especialmente em como o
prazer, e a vida emocional como um todo, podem ser cultivados segundo uma norma ou
orientação geral. O problema não está somente em pensar o papel do caráter (ethos) que
se quer formar nos indivíduos, mas, sobretudo está em situar o papel que a linguagem
16
(lógos, entendido como pura razão no caso platônico, ou como convenção no caso
sofístico) exerce em relação à emoção (páthos). Pode-se destacar o extremo
intelectualismo de Platão, que vê no objetivo da formação o domínio racional das
emoções, e o extremo convencionalismo sofístico que objetiva a extravasão potente das
emoções, e entre esses extremos encontra-se a posição aristotélica que defende uma
"escuta" das emoções pela razão individual. Aristóteles defende uma posição onde se
busca desenvolver uma dinâmica de subordinação entre as partes da alma que não se
confunde com uma relação de simples comando ou controle de uma parte por outra.
Gabriele Cornelli (em “A paixão Política de Platão: Sobre Cercas Filosóficas e sua
Permeabilidade”. Archai: revista de estudos sobre as origens do pensamento ocidental,
Brasília, Volume 0, Número 2, abril de 2010. Disponível no endereço eletrônico:
<http://seer.bce.unb.br/index.php/archai/article/view/315/170>) trazendo essa discussão
pelo viés da educação política, enfatizando a solução entronizada por Platão que aponta
para a fonte de toda educação: o trabalho quase impossível de se ordenar o desejo.
Situando especificamente no desejo de prevaricação, chamado de pleonexia pelo
vernáculo grego, o lugar onde a educação política pode ser bem ou mal sucedida. Para
ele “O impulso pleonéctico é o desejo ilimitado de „ter mais‟: mais poder, mais riqueza,
mais reconhecimento social. Trata-se no fundo da versão grega da célebre Lei de
Gerson”.
O importante para nós é ver como se situa em uma educação do desejo o princípio
de toda educação possível para os gregos. Que em textos clássicos como o Banquete,
República, Mênon e Leis de Platão, ou as Políticas e as Éticas de Aristóteles e ainda os
fragmentos de Górgias, Protágoras, Hípias e dos Anônimos sofísticos poderíamos dividir
em três esferas: o da educação da comoção estética, o da educação da vida e sedução
erótica e o da educação da persuasão retórica.
O tema da contenção/adequação da vontade de oprimir os outros explicitado por
Cornelli aparece mais claramente na discussão sobre o papel da persuasão retórica na
educação. E o tomando como referência encontraremos três diferentes modelos de
educação do desejo: um platônico, voltado para o controle das emoções pela
racionalidade epistêmica; outro, sofístico, da realização plena das emoções pela sua
expressão linguística ou cultural; mas em Aristóteles encontramos um modelo que não é
17
nem o do controle, nem o da soltura, mas o da “escuta”, onde a emoção se torna
expressão da racionalidade.
Vale a pena retomar o artigo de Burnyeat citado acima, especialmente em suas
considerações: a de notar certa inadequação da posição do intelectualismo, proposta por
Sócrates, via Platão, como sendo do tipo de realização da “busca pelo cálice sagrado”,
onde ético é o sábio que conquista uma ideia clara e perfeita do bem humano, e
consegue talvez por isso refrear todos seus instintos e inclinações. Por outro, de apontar
para o convencionalismo como fonte de relativismo ético, que parece voltar a fazer fortuna
hoje na filosofia contemporânea nas tendências pós-modernistas. O problema da
formação do caráter em Aristóteles faz parte da questão grega da Paideia. Ao solucionar a
questão pela fundamentação dos valores éticos no bem humano, (a fundamentação da
felicidade), Aristóteles entende que as virtudes da ação humana são como uma espécie de
“escuta”, respondendo de modo original a célebre questão grega: “as virtudes podem ser
ensinadas?”.
O ensino da virtude é um problema para os gregos, desde Homero, praticamente
todo grande pensador e criador da cultura grega se dedicaram com afinco à questão. A
filosofia que trata das coisas humanas nasce com o debate: Sócrates de um lado, sofistas
de outro. A posição aristotélica acerca do problema da educação para as virtudes, e como
esta se propõe a responder e suplantar tanto a posição socrático-platônica, como a
sofística.
A formação do caráter segundo a recepção contemporânea
Consagrou-se, no último século, uma reapropriação do pensamento clássico a título
de um "retorno a Aristóteles". No campo da Ontologia a visada aristotélica aparece como
alternativa à crise da razão e aos impasses em que a metafísica ocidental caiu.
Especialmente no campo da ética, a filosofia aristotélica reaparece trazendo alternativa aos
modelos normativos centrados no "dever" ou na "utilidade". Todavia, ainda que a ética
aristotélica seja uma fonte claramente discernível no pensamento contemporâneo, as
abordagens tomam rumos diferentes ao sabor das tendências atuais: filosofia analítica,
hermenêutica existencial ou pós-estruturalismo.
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Este trabalho se propõe a avaliar tais perspectivas a partir do problema da formação
ética segundo Aristóteles – tomar o ethos e toda valoração ética como fundados na
educação, o que significa avaliar o processo de formação do próprio ethos, segundo essas
três variantes. Poderemos com isso constatar como sobre o texto aristotélico se apoiam
alguns eixos da reflexão contemporânea: o sentido da liberdade e a definição de um
critério de inteligibilidade para a ação. Assim se confirmam três paradigmas filosóficos
distintos: o analítico apoiado em critérios normativos, enxergando, sobretudo um sentido
"negativo" na liberdade; o existencialista com critério hermenêutico-fenomenológico
situando a base da condição humana na "questão ontológica"; e por fim o pósestruturalista cujos critérios "estéticos" ou "estilísticos" conferem à liberdade humana o
caráter de "criação".
A autonomia através da escuta
Em Aristóteles, a questão da liberdade se decide pela maneira como a “escuta”
define a formação ética a partir de um certo tipo de aprendizagem que se consuma na
autonomia. Miles Burnyeat no artigo supracitado descreve o processo de formação
compreendido na ética aristotélica como uma “aprendizagem em confiança”, o que
significa confiar a um mestre o encaminhamento de suas próprias decisões até que seja
possível tomar decisões baseadas em seu próprio discernimento. Em um caso temos a
interação entre as instâncias motivacionais humanas que seja capaz de qualificar o caráter
de um agente como “excelente” ou “virtuoso”, na medida em que determinada parte se
coloca em conformidade com a outra, i.e., se afirme pela “escuta”. Noutro ponto temos
como a escuta se instancia em uma relação propriamente pedagógica. Podemos tomar
essa duas situações de escuta em Aristóteles como formas na quais se situa a liberdade
em sua ética.
A questão da liberdade aparece em Aristóteles não como um princípio, mas como
uma conquista, individual por um lado, social por outro. A problemática da escuta aparece
com destaque no livro I da Ética à Nicômaco como implicação direta do “argumento do
ergon” onde se busca fundamentar uma noção de Bem consistente tanto com a aspiração
do homem comum à felicidade, como com o rigor que encadeia toda a filosofia
aristotélica da práxis. A questão do Bem aparece na busca pelo valor que orienta as ações
19
e qualifica os agentes – nos bens humanos e no valor último de toda uma vida – o sumo
bem.
De um lado, as ações excelentes, do outro, uma vida plena e feliz, e entre essas duas
o caráter do agente, que devido às suas disposições e hábitos é origem justamente de
ações excelentes que direcionam a vida para uma organização própria à felicidade. Mas o
que define o “bem” na ação excelente e na vida plena? Evitando a metafísica da Ideia (de
Bem), Aristóteles responde a isso com o argumento do ergon, isto é, da “tarefa” ou
“função” propriamente humana. Designamos como “virtuoso” o desempenho de algo ou
alguém, e para isso temos de lhe supor uma função constitutiva. Uma faca é excelente
quando corta bem. No caso qual é então a função humana? Aristóteles responde que só
cabe ao homem a posse e o domínio do lógos, portanto a função própria do homem é o
exercício do lógos – i.e., nos tornamos excelentes no ponto de vista ético na medida em
que praticamos o exercício do lógos. Porém a alma possui várias partes, e aí começa o
problema da escuta, pois uma parte possui o lógos, e sua excelência corresponde ao
exercício intelectual virtuoso: pelas técnicas artísticas, prudência e sabedoria; mas há outra
parte da alma, a “desejante”, que é tal “como se escutasse e obedecesse” o lógos.
Temos então dois tipos de excelência que podem compor o caráter humano, um
tipo que não interessará aqui, que corresponde ao que desde Aristóteles passamos a
chamar de teoria; e outro que diz respeito à excelência do caráter que se forma devido a
uma aprendizagem ética, o que se dá na realização da escuta.
Ao retomarmos a célebre pergunta no livro I da Ética que interroga se “devemos nos
basear em princípios e partir em busca deles?”, podemos acompanhar a conclusão de
Burnyeat com o procedimento argumentativo aristotélico de como proceder na
investigação ética corresponde de certo modo a como avançamos na aprendizagem ética,
ela mesma: trata-se de partir de noções esquemáticas imprecisas que já temos para a
conquista de um princípio ordenador que ainda não temos. O neófito da formação ética
precisa predispor de uma certa percepção do que seja o bem, ele tem de ser capaz de
reconhecer que “isso é justo”, mesmo sem saber porque isso é justo.
O processo de aprendizagem ética está na passagem do quê ao porquê, se consuma
na conquista de um princípio que serve para orientação autônoma. São fundamentais
duas coisas para que se dê início ao processo de formação: de um lado, uma determinada
20
sensibilidade no aprendiz que o “predispõe à virtude”, que permite enxergar para além dos
argumentos discursivos com quem está a razão numa determinada disputa ética. Por
outro lado, é também necessário que o aprendiz tenha referência, um mestre, que exerça
o princípio ético de modo autônomo, e que permita ao aprendiz também exercê-lo, só que
de modo heterônomo.
O sentido da formação ética segundo a “aprendizagem em confiança”, está portanto
na passagem do exercício de uma “obediência”, que deriva sua excelência ao lógos de um
outro que lhe serve de mestre; para o exercício de uma autonomia onde o lógos da
mestria está no próprio indivíduo.
O Conflito das interpretações
A questão aristotélica da escuta mobiliza alguns dos principais temas da filosofia
contemporânea: a definição de um critério de inteligibilidade da ação; a significação da
liberdade; o papel do mestre na aprendizagem. Interessante notar como as divergências
nesses tópicos formam posicionamentos muito divergentes no debate. Esta dissertação
objetiva esclarecer o posicionamento ético da filosofia contemporânea nas escolas
analítica, hermenêutica e da estética da existência, na medida em que cada uma oferece
uma interpretação própria à questão da escuta.
21
I – Introdução
Aristóteles escreve sua Ética a Nicômaco para entender como a filosofia
pode servir à vida prática, inaugurando pela via textual o que hoje chamamos de ética.
O tipo de conhecimento que se busca neste caminho de investigação diz respeito à
ação, às emoções, ao convívio, às nossas escolhas, enfim a tudo que é propriamente
humano. Decerto que outros pensadores vieram antes de Aristóteles para dissertar
sobre o que é do campo ético, Sócrates em sua dialética, Platão nos seus diálogos,
Górgias nos seus discursos. Mas não foram capazes, como Aristóteles, de isolar o
campo ético, definindo-lhe um setor exclusivo na filosofia, e imprimindo um estilo
próprio a essa escrita.
Não sabemos muito bem porque essa ética seria relativa à Nicômaco, e uma
hipótese aventada é de que seria assim por tê-la dedicado ao filho com o mesmo nome.
O que é coerente com uma intenção, explícita em algumas passagens, de fazer desse
texto, um artefato da educação. Nem todos comentadores concordariam com tais
hipóteses, mas a maioria certamente aceita que haja uma finalidade prática na própria
investigação, proposta por suas linhas1.
Em Aristóteles há um entrelaçamento entre ética e educação, de tal modo
que nem sempre fica fácil saber onde termina uma e começa a outra. O objetivo deste
trabalho é investigar alguns aspectos dessa trama, deixando claro em que sentido uma
coisa implica a outra. Mas como entender que ética e educação coimplicam-se
mutuamente no ponto de vista da sua fundamentação? Partiremos aqui da hipótese de
leitura que podemos reconhecer na Ética à Nicômaco, que a ética funda a educação e
a educação funda a ética.
Por um lado, a educação funda a ética, e podemos afirmar como, de maneira
geral, a situação concreta no debate histórico define uma posição teórica. No
Porém nem todos concordariam que embora haja alguma “finalidade prática” no escrito, tampouco que
essa seja exatamente a educação; muitos afirmam que a natureza teórica da investigação, remete
exclusivamente a um interesse teórico estrito. Nossa interpretação tende a ver que a finalidade prática da
investigação de algum modo está implicada em um comprometimento “pragmático”, o que faz com que
a concatenação de seus argumentos não seja propriamente dedutiva ou científica, e talvez o máximo de
consistência que atinja, tenha que ser enquadrado em algum tipo de dialética.
1
22
caso, o debate grego acerca da educação faz ver como Aristóteles, ao se posicionar
nele, define os fundamentos de sua ética. Por outro lado, a ética funda a educação e, no
caso específico de Aristóteles, pelo menos, para quem o bem humano consiste em algo
que se aprende e se desenvolve por certo tipo de educação. Nesse sentido, podemos
derivar da ética os princípios de toda educação.
O tema deste trabalho é, portanto, o da educação, tal como ele se apresenta
no contexto da ética aristotélica. Assim, educação traduz o termo grego Paideia2,
ganhando um sentido mais amplo do que estamos habituados, ultrapassando em muito
o sentido costumeiro que diz respeito ao ensino e aprendizado, do tipo que ocorre no
interior de uma sala de aula, oficina de trabalho ou universidade. Diz respeito, antes, no
contexto que nos interessa aqui, à definição dos parâmetros que contribuem para a
realização de uma vida plena e feliz, tanto do ponto de vista do indivíduo como da
coletividade3. Todavia, considerar a educação a partir de um sentido tão amplo e diverso
nos remete a muitas dificuldades. Algo que pode ficar explícito devido à falta de acordo
daqueles que abordam esses temas. O diagnóstico que Aristóteles faz disso é preciso:
Há controvérsias a esse respeito. A humanidade não é unânime no que diz
respeito aos conteúdos a serem ensinados [no contexto da Paideia], se devem
servir à virtude ou à vida perfeita. As práticas vigentes nos deixam perplexos;
ninguém sabe exatamente que princípios seguir – se os da utilidade, se os da
2
Paideia, como os termos que designam noções fundamentais na história do pensamento, possui em
sua língua de origem, o grego antigo, uma polissemia intraduzível. Jaeger explicita isso ao explicar qual
seria o tema de sua obra intitulada Paideia – a formação do homem grego: “Paideia, a palavra que serve
de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico
nela estudado. Este tema é de fato, difícil de definir: como outros conceitos de grande amplitude (por
exemplo os de filosofia, ou cultura), resiste a deixar-se encerrar em uma fórmula abstrata. (...) Não se
pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura, ou
educação; nenhuma delas coincide realmente com que os Gregos entendiam por Paideia. Cada um
daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total
do conceito grego, teríamos que empregá-los todos de uma só vez.” (JAEGER, 2006, p. 1)
Haverá todo tipo de “anacronismo” se quisermos transpor essa forma de investigação antiga, algo que
pode ser percebido na relação entre Ética e Política: o que o pensamento antigo enxerga como uma
continuidade entre as duas, a modernidade só pode ver como descontinuidade (Cf. “A política como
vocação”, WEBER, 1993). No mundo antigo, ética e política se entrelaçam, algo estranho ao pensamento
moderno. Outra dificuldade que se pode colocar hoje, filosoficamente, é de como ideias como “perfeição”,
“vida plena”, “felicidade” podem servir de sustentação à ética. Essas noções que seriam um ponto pacífico
no pensamento antigo, quando o homem compreendia a si como fazendo parte de um cosmo ordenado,
integrando em si suma alma individual e, portanto, exigindo uma unidade para o todo da sua vida,
harmonizando ações, volições e desejos. Já no mundo moderno o mais característico é a divisão e
parcialidade das relações que o homem entretém com o mundo, consigo e com outros homens (Cf.
KOYRÉ, 1986).
3
23
virtude, ou se os do conhecimento máximo deveriam orientar os estudos; essas
três opiniões já foram dominantes em algum momento. Mas não há consenso
quando se discute os meios; com efeito, pessoas diferentes, que partem de
diferentes conceitos de virtude, naturalmente discordam a respeito de sua
prática. (Política, 1379a20-30)
Seguindo as considerações acima, percebemos como a educação referida
nesse contexto nos remete a perplexidades diversas, não apenas quanto aos conteúdos
que devem ser ensinados, mas, sobretudo, ao princípio que deve norteá-la. Aristóteles
considera como três as principais respostas a isso, uma primeira que vê na “utilidade” o
fundamento de toda educação, algo que poderia ser compreendido como uma
habilitação técnico-pragmática; outra que vê no “conhecimento máximo” a fonte dos
valores fundamentais da formação, e que podemos entender como a educação que é
voltada para a pedagogia e para a teoria; e há uma posição intermediária que privilegia
as virtudes, que valoriza a dimensão prática do homem sem reduzi-la ao campo da
técnica (tekhné).
Grosso modo, vemos assim delineadas as três principais posições quanto à
Paideia, que se formaram no contexto da antiguidade clássica grega. Há os sofistas, que
privilegiam o desenvolvimento de certas capacidades técnicas na formação, acentuando
o caráter utilitário destas. Há o socratismo-platônico, que enxerga no conhecimento a
fonte de toda valoração humana. Por fim, há uma posição intermediária, que isola o
campo da práxis, sem subordiná-lo ao da teoria nem ao da técnica artística. Acreditamos
ser precisamente essa última, a posição de Aristóteles, e o presente trabalho busca
demonstrá-lo.
Nosso objetivo é acompanhar o autor na sua trajetória em relação à questão
da formação do caráter, tema que envolve, por um lado, uma compreensão do que seja
a ética desde os seus fundamentos, e, por outro, como a educação participa do campo
assim descrito. Quando entramos no reino da ética, estamos no reino das imprecisões.
Aristóteles, ciente disso, relembra diversas vezes como se trata de um tema que
essencialmente “admite muitas variações”4 e só pode ser explicitado de um modo
“assaz esquemático e geral”, e que o estabelecimento das “verdades” nesse campo é
relativo a convenções humanas, e não a naturezas subsistentes. Portanto, não seria
4
EN, I,2.
24
possível uma “ciência do bem” para Aristóteles. Mas, então, deveríamos aceitar que
quanto a isso, “tudo é relativo”? E que toda pretensão de verdade é necessariamente
dogmática e/ou autoritária?
Como veremos, Aristóteles acolhe com seriedade as questões relativas à
educação, aceitando a natureza controversa do tema. Considera que as discordâncias a
respeito não se dão por acaso, mas porque há uma “imprecisão” própria aos temas da
ética. Contudo, não crê ser necessário recair em um ceticismo ou relativismo5. Sua
doutrina ética irá tentar responder positivamente aos problemas da educação, que
indivíduo e comunidade colocam para si, mutuamente.
Temos assim traçadas duas metas, que desdobraremos nos capítulos
subsequentes. A primeira mostra como a compreensão aristotélica do que seja a
educação implica no traçado fundamental de sua ética. Para isso, temos de remeter seu
pensamento ao seu devido contexto histórico-filosófico, onde poderemos situá-lo no
interior do debate acerca da Paideia. Em segundo momento, pela via reversa, veremos
como a questão acerca das virtudes éticas implica um processo educacional, visando
reconhecer os princípios que norteiam e prescrevem esse processo, tendo em vista a
articulação de suas teses, considerando as dificuldades próprias de sua filosofia.
Dividimos assim o trabalho em duas etapas, uma primeira “histórica” e uma segunda
“doutrinal”, por assim dizer. Iremos, ainda neste capítulo, apresentar um pouco mais o
conteúdo dessas etapas.
***
As questões a respeito da educação, levantadas no contexto da filosofia
antiga, nos remetem imediatamente à “querela da Paideia” que envolveu filósofos e
moralistas na antiguidade clássica. Em seguida, no capítulo II desta dissertação,
focaremos o posicionamento aristotélico no cenário desse intenso debate, observando
nisso o que está implicado em sua doutrina ética que, como veremos, compreenderá a
formação ética como formação do caráter a partir de hábitos. Aprofundaremos a ideia
O tema da “inexatidão” é muito bem analisado por Irwin, no artigo “A Ética como uma Ciência Inexata
– As ambições de Aristóteles para a teoria moral”, mostrando como as teses aristotélicas são irredutíveis
ao “relativismo” e ao “particularismo”, embora mereçam ressalvas quanto à defesa forte que faz do
“universalismo” (IRWIN, 1996). Cf. também o artigo subsequente na mesma revista (ZINGANO, 1996).
5
25
que concatena essa duas noções: hábito (héxis) e caráter (éthos), que ele usa para
abordar as questões gregas acerca da virtude (areté) e felicidade (eudaimonía)
divergindo das soluções de Platão e dos sofistas.
Por um lado, mostramos como o Estagirita rompe com o mestre Platão, ao
refutar uma noção intelectualista de Bem, fundamental para o socratismo platônico. Por
outro, interessa ver como sua posição leva em conta as considerações sofísticas acerca
das convenções (nómos), porém refutando o “convencionalismo sofístico” em geral.
De modo esquemático, não seria errôneo dizer que todo o pensamento
antigo concorda que o sentido de uma vida é a “Felicidade” (eudaimonía), e que nela
deve estar o fundamento das nossas escolhas e volições. Por isso, o fundamento ético
buscado pelos mais diversos sistemas filosóficos e compreensões intelectuais no
contexto antigo é sempre a Felicidade. Porém, se todos concordam que seja a
Felicidade o objetivo de uma vida bem realizada, jamais concordariam sobre qual seria
o seu caminho em termos práticos, a não ser em uma única coisa, a “virtude” (areté).
Todo debate filosófico acerca da educação gira em torno da significação desses dois
termos. O que é a felicidade, ou seja, o bem humano? E como se aprendem as
virtudes? Como se faz para atingir o bem humano?
Nosso trabalho se concentrará mais na busca pelas diferentes compreensões
da virtude, relevantes para a colocação do problema feito por Aristóteles. Até porque
compreender o que é a virtude, como ela pode ser aprendida, já é responder acerca do
que seja o bem humano em geral.
Historicamente, o pensamento grego passa por três fases principais na
compreensão do que seja a virtude. Podemos descrever essas três formas que norteiam
as práticas das ações virtuosas ao longo da história grega, a partir de três tipos
considerados como valorosos6 subsequentemente. O primeiro é o herói, entronizado
pela poesia épica, especialmente por Homero, que representa os valores ápices de uma
sociedade de clãs e tribos, voltada sobretudo para a guerra. O segundo é o trabalhador,
coroado na poesia de Hesíodo, que é aquele que realiza a si mesmo ao realizar suas
Veremos adiante em II,2 como a definição de um “tipo” é decisivo para constituição de um modelo
ético.
6
27
tarefas mundanas, está muito ligado ao desenvolvimento da vida rural, e laboral de
modo geral, onde a tenacidade e persistência se tornam vitais para o desenvolvimento
daquela sociedade. E por fim, com o surgimento da pólis, encontramos um novo tipo,
não mais glorificado pela poesia, como os dois anteriores, mas ressaltado e valorizado
por aqueles intelectuais e filósofos que surgem no espaço da pólis, trata-se do cidadão7.
Este último modelo será o mais importante para nós, porque o debate que iremos
reconstruir depende dele diretamente, e as posições não passam de variações na
compreensão da virtude enquanto exercício da vida na pólis.
Os agentes que escolhemos em nossa análise para o debate da Paideia –
Aristóteles, Platão, Sócrates e alguns sofistas – estão de acordo com diversas coisas.
Todos defendem uma ética eudaimonista, e encontram a realização das virtudes de
algum modo no interior da cidade e das suas leis. Porém irão seriamente discordar no
que define o conteúdo das práticas efetivas das virtudes.
Nessa discussão antiga sobre qual deve ser o sentido primeiro da educação,
entendemos que Aristóteles é aquele que destaca a formação ética, em detrimento da
técnico-artística e da cientifico-teórica, o que o distancia ao mesmo tempo da sofística e
do platonismo. A doutrina aristotélica se posiciona de maneira intermediária, justamente
por entender a prática das virtudes que levam à vida feliz a partir da noção de hábito
(hexis).
Para Aristóteles, o caráter (éthos) é por assim dizer, o aspecto da alma que
qualifica moralmente o agente, ele mesmo constituído por hábitos, ou disposições éticas,
que podem ser avaliadas boas ou ruins, chamadas de vícios ou virtudes, dependendo se
contribuem ou atrapalham a realização do Sumo Bem (felicidade). As considerações de
ética, segundo a visada aristotélica, têm de ser capazes de considerar a dinâmica dos
hábitos, reconhecer o que faz de um, uma virtude, e de outro, um vício. O que faz do
hábito uma virtude? Contribuir para a Felicidade. E que é a Felicidade? Na resposta a esta
última pergunta encontramos as principais dificuldades da filosofia aristotélica. Sua
solução passa pela noção que determina e define a condição humana: o lógos.
7
Não abordaremos isso aqui, mas há sérias imbricações entre a ética aristocrática e a laboral, com a
ética do cidadão da pólis.
28
O homem é feliz quando exerce plenamente a parte da alma que possui o
lógos, temos com isso a dimensão intelectual da felicidade, e/ou quando exerce aquela
parte da alma, que não possui o lógos, mas executa suas funções subordinando-se a
ela, a parte volitiva ou desejante, onde encontramos a dimensão prática da felicidade.
Não optamos por traduzir o termo lógos por “racionalidade”, embora seja a tradução
mais comum. Tal tradução nos compromete com uma via interpretativa que talvez não
seja a mais adequada. Deixaremos em suspenso a tradução desse termo, apontando,
em geral, para as escolhas dos comentadores como critério de interpretação filosófica.
Aristóteles afirma que é no lógos, em sua maior ou menor presença na ação,
que encontramos o critério ético por excelência, que permite observar e destacar quais
os hábitos que constituem as virtudes. Assim, hábitos intelectuais que exercem um
lógos pela via direta constituem as virtudes dianoéticas; hábitos práticos que exercem o
lógos pela via indireta constituem as virtudes éticas.
Nossa questão acerca de como ética implica educação se coloca ao
considerarmos outros tipos de virtude, as relativas ao caráter, e por isso chamadas de
éticas. Interessa-nos mostrar que as realizações das disposições éticas decisivas para a
virtude e felicidade implicam, de algum modo, uma educação, uma relação mestrealuno. Deixaremos de lado as questões relativas às virtudes intelectuais, por remeterem
a um campo que transcende ao da práxis, deixando em aberto a questão se há ou não
relação, e se há ou não uma subordinação entre a esfera prática e a intelectual.
O problema que enfrentaremos no capítulo III está na compreensão do texto
aristotélico da Ética à Nicômaco, considerando três distintas interpretações que se
consagram ao mesmo problema. A questão é entender a realização humana no ponto de
vista prático, segundo Aristóteles, porém palavras empregadas como intelecto (noûs),
emoção
(pâthos), felicidade
(eudaimonía), e
sobretudo
lógos, admitem
uma
multiplicidade de sentidos válidos. Essa flutuação semântica em torno dos mesmos
termos tem como consequência histórica, leituras diversas, e por vezes antagônicas, entre
tantos intérpretes da mesma obra. Portanto, “aristotelismo” seria uma rubrica tão vasta
quanto imprecisa, e no seu interior podemos observar pensadores e doutrinas que
assentem na utilização dos mesmos termos, sem, contudo, concordarem sempre quanto
ao significado destes, e raramente quanto à concatenação da ideia a que se referem.
29
Esse problema é percebido pelo próprio Aristóteles ao tratar do significado
de Felicidade (eudaimonía)8. Ele se deu conta que para cada uma das alternativas
consagradas (a felicidade é a riqueza; a felicidade é a honra; a felicidade é a sabedoria),
cada definição remete mais para aquele que faz a definição, refletindo o modo de vida
que levara até então. Sua solução foi apoiar-se em um argumento que pudesse dar
conteúdo mais objetivo9 à “felicidade” e, para isso, ele se vale daquilo que observa de
exclusivo no homem, do termo “lógos”. Nosso objetivo aqui será dizer como o lógos faz
parte da ação e vida humanas de maneira a constituir uma educação.
Em resumo, trata-se de pensar a educação como uma formação ética
segundo o aristotelismo. Isso depende de decidirmos qual é o sentido que deve ser
estabelecido para “lógos”, problema que se coloca em dois âmbitos: o exegético e o
semântico. Por um lado, temos de entender sua função na economia do texto aristotélico.
Por outro, confrontar os exegetas em prol de uma melhor compreensão. Parece que de
modo decisivo e incongruente pode-se entender o termo a partir das leituras destacadas,
assim concluímos que lógos tanto pode ser entendido por “racionalidade”, “sentido”, ou
“produção de sentido” conforme a linha interpretativa adotada.
Em III, abordaremos o problema da formação do caráter pela via
interpretativa segundo diferentes tradições. Nele, veremos, com Burnyeat, a formação
do
caráter
como
encaminhamento
problema
de
uma
geral
solução
do
aristotelismo,
para
e
compreender
também veremos
a
formação
o
como
“aperfeiçoamento moral”, no sentido de um “amadurecimento do senso valorativo”.
Com Burnyeat (1980), nos aproximaremos de um posicionamento analítico da questão.
Uma visão que se complementa pela questão do princípio moral, em Irwin (1988); da
mediação do ímpeto (thumós) para a formação, definido como órgão da “escuta”, com
Grooenroos (2007); e da fixação disposicional para Zingano (1996). Essas visões
coadunam com o que se chama tradição analítica, que tem em comum considerar o
lógos como razão cognitiva.
8
EN I, 4.
Cf. mais adiante em II,4, como essa “objetividade” não está ancorada em alguma realidade subsistente,
mas também no indivíduo, em um determinado indivíduo, cuja excelência serve de medida para os
demais. Sobre o aparente círculo, cf. “escolha dos meios e tó auteiraton” (ZINGANO, 2004)
9
30
Outra solução propõe Heidegger (2007). Ao considerar que o projeto de
uma ontologia fundamental deve ter como base a análise das noções existenciais da
vida humana, ele encontra justamente na ética aristotélica, na medida em que ela
apresenta “hermenêutica da práxis”, os elementos de tal projeto. O que se contrasta e
confronta com a interpretação analítica, que baseia toda análise nos parâmetros
ontológicos dos seres intramundanos, isto é, daquilo que se apresenta como objeto e
objetividade no mundo. A principal consequência para a formação ética, da crítica e
análise heideggerianas, é que Heidegger não aceitará que esta seja um desenvolvimento
linear (como na compreensão analítica), mas sim uma “conquista ontológica”, que se
dá em uma “temporalidade própria” ligada à noção aristotélica de kairós. Marcio Paixão
explicitará mais essa perspectiva, ao remeter ao imperativo de Píndaro, para quem
formar o caráter é uma questão de “tornar-se quem se é”, algo que é fortalecido com a
visão do Aubenque, do “movimento extático” na Metafísica aristotélica. Esta é uma
interpretação que está comprometida com uma leitura fenomenológica de Aristóteles,
onde lógos é o que permite a aparição do sentido, e em última instância, do próprio ser.
A última solução analisada que analisaremos é a que chamaremos de
“Estilística do caráter”, que aborda o problema ético em geral com uma análise dos
modos de vida, destacando aqueles que produzem e exibem “beleza”. Pierre Hadot
(1995) entenderá a formação do caráter presente nas análises filosóficas como vinculada
a uma maneira de colocar-se no mundo: o modo estilístico, segundo o qual o sujeito é
capaz de responsabilizar-se pela sua existência. Foucault retomará essa análise para
mostrar que o éthos se forma por um processo de subjetivação, onde os critérios
lógicos ou ontológicos não são determinantes, mas sim os de caráter estético e
estilístico. Na sua análise da Dietética grega (História da Sexualidade 2, 2006), ele
retomará o tema de Hadot abrangendo a vida do homem comum, não apenas a do
filósofo. E ainda trazendo à tona o tema do cuidado de si, podemos entender como a
ética grega pode estar baseada em uma “estilização da vida” antes que de um
“conhecimento de si”. Lógos será entendido como algo que produz sentido, situado no
campo da pura invenção e inventividade humanas.
31
II – Paideia: o problema da educação
1)
Paideia Grega
A educação é uma prática humana comum aos mais diversos povos, mas
em nenhuma sociedade encontramos uma valorização explícita tão acentuada e
marcante como na dos gregos da antiguidade. Eles desenvolveram um espírito quanto
ao problema da educação, intenso e diversificado, que pode ser identificado em quase
todos seus períodos históricos da antiguidade. Um autor que percebeu e retratou isso
segundo uma rigorosa preocupação histórica, a partir da questão filosófica da educação,
foi Werner Jaeger, em sua obra Paideia – a formação do homem grego.
Nessa obra podemos encontrar a tentativa da reconstrução das principais
ideias morais que nortearam a história grega. Ele busca apreender as noções que
comandaram as práticas individuais e institucionais gregas, a partir dos autores: poetas,
legisladores, filósofos, cuja expressão literária nos
serve não
apenas
como
representação da vida ordinária, mas dos princípios éticos que a constituíam. Sua
hipótese é de que a questão da educação é o que há de mais próprio no grego, de
como eles próprios se pensaram, de como hoje podemos vir a pensar neles.
Jaeger está convencido que a via da “Paideia” é o melhor método, senão o
único realmente adequado de aproximação com a história do pensamento grego.
A ideia de educação representava para ele o sentido de todo esforço humano.
Era a justificação última da comunidade e individualidade humanas. O
conhecimento próprio, a inteligência clara do Grego encontravam-se no topo
do seu desenvolvimento. Não há qualquer razão para pensarmos que
entenderíamos melhor por algum gênero de consideração psicológica, histórica,
ou social. Mesmo os imponentes monumentos da Grécia são perfeitamente
inteligíveis a essa luz, pois foram criados no mesmo espírito. E foi sob a
forma de Paideia, de “cultura” que os Gregos consideraram a totalidade de sua
obra criadora em relação aos outros povos da antiguidade de que foram
herdeiros. (JAEGER, 1986, p. 5-6)
Seguiremos a intuição historiográfica de Jaeger, e na presente seção iremos
reconstruir sua compreensão do problema da educação, seu solo grego, a questão
geral do ensino, seus três momentos históricos, para daí, termos elementos para
reconstruir o cenário do debate filosófico acerca da Paideia onde destacaremos a
posição aristotélica.
32
Porém, o método de Jaeger (especialmente na caracterização grega da
questão) não será de todo aceito em nossa pesquisa, e ainda no final desta seção (em
1.3) teremos de fazer algumas ressalvas importantes quanto ao seu “humanismo”, e
também quanto ao forte “platonismo”10 de várias de suas asserções. Algo que por um
lado atrela o processo histórico a uma ideia de “desenvolvimento” da essência humana,
que mesmo rechaçando o positivismo, e também muito do classicismo ou helenismo
ingênuo, trabalha com noções expedientes muito complicadas e indesejáveis para nossa
pesquisa, como, por exemplo, a de apontar várias vezes para a teleologia na história,
algo de que preferimos abrir mão. Por outro lado, se formos aderir completamente às
teses de Jaeger, não encontraremos espaço para a hipótese desse trabalho, de que
Aristóteles defende uma posição diferenciada quanto à questão da formação humana,
pois Jaeger não enxerga no aristotelismo senão uma posição derivada e “esmaecida”11
do platonismo.
O problema da formação
Para Jaeger, a educação consiste no “princípio por meio do qual a
comunidade humana conserva e transmite sua peculiaridade física e espiritual” (p. 3).
De uma ou de outra forma, todos os povos desenvolvem algum tipo de educação,
porém povo algum foi tão longe na valorização consciente dos processos educacionais
quanto os gregos. Consideraremos então como Jaeger entende o problema da
formação, para ver em quais pontos os gregos merecem destaque, segunde ele,
Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que
rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe de uma
profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico, ou
um Estado. (...) A estabilidade das normas válidas corresponde à solidez dos
fundamentos da educação da dissolução delas advém a debilidade, a falta de
segurança e até a impossibilidade absoluta de qualquer ação educativa. (op.
cit, p. 4, grifo nosso)
“Não podemos fugir à convicção de que a ideia platônica, produto único e específico do espirito grego,
nos dá a chave para interpretar a mentalidade grega.” (op. cit p. 9)
10
“Em Aristóteles, porém, mestre dos sábios, a concepção de Paideia sofre uma notável diminuição da
sua intensidade, o que torna difícil situar esta figura ao lado da de Platão, o verdadeiro filósofo da
Paideia.” (op. cit p. 331)
11
33
Duas coisas possibilitam à educação a existência de normas estáveis,
reconhecíveis em algum relacionamento humano, e, posteriormente, a consciência
destas. Assim, no domínio de uma arte ou técnica de fabricação qualquer, é preciso que
haja certa quantidade de práticas e rotinas estabelecidas, para que elas sejam
percebidas, destacadas, assumidas de maneira abstrata, para que então haja de fato daí
algum processo educativo que conscientemente as transmita12. Portanto, o estágio da
educação só surge em um momento maduro de um fazer ou dinâmica existencial.
A educação consiste, precisamente, na transmissão de conteúdos normativos
ou orientações prescritivas que conduzem alguma atividade humana. Por isso, ser
capaz de instruir alguém acerca do modo de como fazer algo não envolve apenas a
capacidade de realizar determinada ação, como também a de exercer uma reflexão
sobre ela e depreender os princípios que a constituem. Donde a distinção entre realizar
algo, e ensinar alguém a realizar algo, de modo que essas coisas não resultem
necessariamente uma na outra. Fica claro, no exemplo do perito em uma habilidade,
ofício ou arte qualquer, que é excelente no que faz, e nem por isso se torna um bom
instrutor, professor ou educador daquilo. Não podemos desconsiderar que há em toda
arte ou técnica (tekhné), procedimentos, compreensões que se aprendem no improviso,
ou em experiências inesperadas etc., e que ninguém é capaz de “ensinar”.
A educação, na definição de Jaeger, depende da consciência da norma, a
que rege uma atividade, arte ou instituição. Trata-se de uma consciência reflexiva que
permite que uma atividade seja repetida, aprimorada, e transmitida para outrem. Aquilo
que é passível de ser transmitido pela via da educação tem de ser redutível a uma forma
abstrata, sustentada por uma racionalidade acessível a uma consciência individual, e
comunicável sob certas condições.
Nessa visada acerca da educação, podemos destacar que toda educação
implica uma “compreensão”, sendo que esta última condiciona e possibilita todo
“Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza (...), os que a princípio foram mais naturalmente
propensos para tais coisas pouco a pouco deram origem à poesia procedendo desde os mais toscos
improvisos.” (Poética, IV, 1448 b 20-22). Para além do caso da poesia onde um aprendizado técnico
formal se forma a partir de “toscos improvisos”, podemos levar em consideração a questão geral do
advento do “estágio educacional”, no passo cognitivo que há na passagem de uma empiria para uma
tekhné, descrito no livro I da Metafísica.
12
34
processo educacional. Algo que está implícito na definição de Jaeger, que aparece
como suposto, e que ao longo da argumentação aparece tematizado de modo explícito,
quando vai diferenciar conteúdo “interno” e “externo” da educação.13 O conteúdo
externo é aquele que se apresenta no exercício daquilo que é aprendido, “tocar flauta”;
o interno diz respeito às modificações necessárias para tanto, “tornar-se um flautista”.
Trata-se de uma “compreensão”, portanto, que, por um lado, intenciona um resultado
acerca daquele que aprende e do conteúdo que se aprende; e, por outro, vislumbra
naquele que aprende as capacidades que estão envolvidas no aprendizado, que devem
ser, por sua via, melhor exercitadas e estimuladas. Um professor de música sabe bem a
música que se deve aprender a executar, mas não apenas isso, ele sabe que para sua
boa execução, ele tem de exercitar suas capacidades musicais como um todo; o que se
aprende pela percepção do ritmo, da harmonia e melodia. Antes de se aprender a tocar
um instrumento, a educação musical enfoca as condições para tanto: a escuta.
Essa digressão serve para destacar que ainda entendendo educação como
condicionada pela “consciência normativa”, podemos distinguir a compreensão da
norma no nível do que é feito, do nível daquilo que faculta o feito. Algo que nos será útil
reter para mais adiante, mesmo já adiantando que a noção de “norma” na ética
aristotélica envolve uma complexidade, de modo que ela nem pode ser entendida como
prescrição nem como interdição pura e simples. Interessa-nos tomar a “norma” como o
que orienta o processo de “internalização” operado pela educação. Veremos ainda
nesse capítulo (em II. 2) que no ensino das virtudes será necessário distinguir entre o
“tipo” (o ideal, a norma) almejado pela formação, e as capacidades individuais que se
supõe serem necessárias para se atingir tal objetivo.
Temos aqui uma definição geral de educação, “transmissão de algum
conteúdo físico ou espiritual”, mas Jaeger, sendo um pouco mais específico, distingue
dois tipos de educação14, destacando aquela que é voltada para o comportamento
moral, daquela que é voltada para o comportamento utilitário; somente a primeira é que
13
Op. cit, p. 17-18.
14
Op. cit, p. 17.
35
deve ser chamada mais propriamente de formação.15 Essa distinção é importante porque
Paideia ele entende como “formação do homem”. E somente ela “manifesta a forma
integral do homem: na sua conduta e comportamento exterior; e na sua atitude interior
fruto de uma disciplina consciente.” (p.18)
O problema da formação é o de fazer com que uma norma oriente a
educação no sentido ético. As Paideias divergem quanto à orientação que deve conduzir
a formação, por exemplo, a Paideia homérica é voltada para a formação do guerreiro, e
a aristotélica para a do homem prudente.
A educação no sentido da formação do homem se volta para a transmissão
de conteúdos que determinem o modo de viver (pensar, agir, sentir) de cada indivíduo,
baseia-se na norma que se crê coordenar o próprio ser humano em sua conduta
ordinária.16 A formação se volta para o indivíduo, o cuidado da espécie. O problema
será definir no homem aquilo que o faz viver melhor, tornando regra isso, entendendo
que deve haver um modo de atingi-lo pela via da educação. Algo que ficará mais claro
quando estivermos discutindo a noção de kalón, “ideal normativo”. O problema da
formação está em definir uma condição geral humana de modo normativo, segundo
uma consciência que atente para o conteúdo “externo” e “interno” que é intencionado.
Sua solução depende assim de encontrar a norma que faz o homem ser um homem
melhor (não diria perfeito, porque nem sempre o grego trabalha com ideais de
perfeição), definindo qual seja o “tipo” humano que se deseja criar, e quais as
“capacidades internas” que ele tem de desenvolver para tanto.
Lugar de destaque dos gregos
Vimos o que envolve a educação no sentido de uma formação. Podemos
creditar aos gregos uma maneira tal de entender a questão, de vincular de modo
necessário uma educação à construção de uma vida plena, a do exercício máximo das
capacidades humanas. O modo próprio como entendiam e articulavam as coisas, fez
15
16
O autor faz interessantes ressonâncias do termo com sua tradução alemã, Bildung.
A maneira como ser e dever ser considerados de modo indissociável é uma característica geral da ética
antiga, o eudaimonismo.
36
com que os gregos enxergassem na educação não apenas um assunto, mas o tema
fundamental da cultura. Entender melhor sua valorização da questão tornará claro seus
parâmetros. O que significa dizer que um povo coloca uma questão? O que significa
dizer que a educação comanda o desenvolvimento histórico grego?
Aos gregos, devemos dar destaque porque colocaram com clareza tal
problema para si mesmos, e hoje ou em qualquer outro momento histórico, a
discussão acerca da educação envolve as coordenadas e modos inventados pelos
gregos. Mesmo considerando a “origem grega” da questão algo dispensável, ainda
mais levando em conta a expressão como aparece com a carga humanista e
platonizante em Jaeger, ter em mente o solo histórico grego da questão ajuda a
entender o que está envolvido nela. Podemos aproveitar a situação histórica para
encontrar maior esclarecimento das teses filosóficas em jogo. Não haveria dúvida que
educação é tema chave da ética platônica, o que precisamos entender é porque o
seria da ética grega como um todo. Acompanharemos o desenvolvimento principal de
Jaeger, que vincula intimamente a história grega com a questão filosófica da educação.
Todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente
inclinado à prática da educação. (Op. cit, p.3)
É evidente que qualquer povo altamente organizado tem um sistema educativo.
Mas a “Lei e os Profetas” dos Hebreus, o sistema confuncionista dos Chineses,
o “dharma” hindu, são, na sua essência e sua estrutura espiritual, algo
fundamentalmente distinto do ideal grego de formação humana. (p. 6)
Não é possível descrever em poucas palavras a posição revolucionária e solitária
da Grécia na história da educação humana. (...) Nos estádios primitivos do seu
crescimento, não teve a ideia clara dessa vontade; mas à medida em que
avançava no seu caminho, ia-se gravando na sua consciência, a finalidade
sempre presente em que sua vida assentava: a formação de um tipo elevado
de homem. A ideia de educação representava para ele o sentido de todo
esforço humano. Era a justificativa última de toda a comunidade e
individualidades humanas. (Op. cit, p. 5)
Paideia, Cultura, é uma noção exclusivamente grega, de como os gregos
consideram a totalidade de sua obra criadora. Hoje em dia, o conceito de “cultura”
assume um campo muito mais vasto ("A palavra converteu-se num simples conceito
antropológico descritivo"). Podemos assim falar de uma cultura hindu, babilônica etc.
Porém nenhum desses povos tinha uma noção equivalente à Paideia. ("É evidente que
qualquer povo altamente organizado tem um sistema educativo".) O ideal grego de
37
formação é algo fundamentalmente distinto. Em consideração a ele, devemos dar
destaque aos gregos na história do problema da educação.
O destaque grego é ressaltado por Jaeger por alguns motivos, mais ou
menos interrelacionados, que iremos investigar na sequência. O primeiro e o mais
fundamental é o da “vocação às formas”, maneira como concebe o fenômeno grego de
modo geral e a origem (grega) da filosofia, e que se trata de algo que os gregos não
herdaram da cultura oriental. Onde importa marcar a descontinuidade histórica que o
povo grego introduz no cenário dos povos da antiguidade, (aquilo que alguns
historiadores de modo bastante ufanista chamaram de “milagre”). Outro, e derivado
deste, seria o “sentimento antropocêntrico”, a tendência grega de trazer sempre o
homem, a figura humana para o foco da cena. E ainda é relevante considerar o “espírito
comunitário”, que valoriza as ações individuais tomadas no interesse do coletivo. Por
exemplo, o valor de um poeta depende de como ele “serve” à sua comunidade, e como
toma como motivação da sua obra, servi-la.
Essa tendência ou "vocação à forma" pode ser observada nas mais diferentes
áreas da cultura, na estatuária, na arquitetura, na literatura, na maneira como organizam
suas cidades etc. E surge nos tempos mais arcaicos. Começa nas artes visuais,
especialmente na representação do corpo humano (onde o que mais interessa é a
"estrutura"); chega às artes escritas, à oratória (onde o que é emulado das artes visuais
não é a figuração estética, mas a ideia de que toda obra pode remeter a uma forma
geral do discurso17). E, por fim, essa tendência recebe seu coroamento na filosofia,
onde o pensamento se volta para as estruturas a partir da sua mais alta abstração.
Quando esse povo atinge consciência de si próprio, descobre pelo caminho do
espírito as leis e normas objetivas cujo conhecimento dá ao pensamento e
ação uma segurança desconhecida. (Op. cit, p. 8)
Os gregos tiveram o senso inato do que significa “natureza”. O conceito de
natureza elaborado por eles, em primeira mão, tem indubitável origem na sua
constituição espiritual. (...) A tendência do espírito grego para a clara apreensão
das leis do real, tendência patente em todas as esferas da vida – pensamento,
linguagem e ação, e todas as formas de arte radica-se nessa concepção de ser
como estrutura natural, amadurecida e orgânica. (Op. cit, p. 8)
Não se trata do “caráter plástico ou arquitetônico de um poema ou obra em prosa. Ao falarmos assim
não estamos falando de valores formais imitados das artes plásticas, mas antes em normas análogas da
linguagem humana e da sua estrutura.” (Op. cit, p. 8)
17
38
Essa tendência faz com que o problema da educação apareça aos gregos
tendo em vista a formação do homem segundo um ideal que compreende a essência
humana. Deste modo, o espírito grego nasce voltado para a busca das estruturas
essenciais das coisas e da vida humana e, na filosofia, podemos encontrar esse mesmo
espírito em sua forma mais consolidada.
Essa tendência grega à forma, a apreensão das estruturas que regem todas
as coisas desde seu íntimo, a compreensão da natureza como um funcionamento
sistemático animado por regras, da unidade orgânica das partes em relação ao todo
etc. é uma característica muito ressaltada e valorizada pelos historiadores e filósofos,
como sendo algo originado na cultura grega. A Filosofia, que é, sem dúvida, a obra
cultural mais bem acabada desse espírito de clareza, é um fruto tardio dessa tendência,
que se manifesta desde a cultura arcaica nos próprios mitos, na poesia épica, na
arquitetura, na matemática, na invenção do dinheiro, no surgimento da pólis, e assim
por diante.
[Na Filosofia] se manifesta de maneira mais evidente a força que se encontra
na raiz do pensamento e da arte grega, a percepção clara da ordem permanente
que está no fundo de todos os acontecimentos e mudanças na natureza e vida
humana. (Op. cit, p. 9)
Para Jaeger não só a filosofia é uma criação grega, mas “o povo grego desde
sempre é o povo filosófico por excelência”. O que o faz merecer o lugar de destaque na
questão da educação, é a consideração de que para o grego “a consciência clara dos
princípios que regem suas forças corporais e espirituais tinha adquirido a mais alta
importância” (op cit., p. 9). Com essa tendência, os gregos criaram os conhecimentos
necessários para sua mais importante obra “a criação do homem vivo”. Sua principal
tarefa consistiu, portanto, em tomar posse das leis que constituem o humano, para
direcionar a educação.
O problema da formação tem profundo enraizamento na cultura grega, o
que ocorre “sempre que o espírito humano abandona a ideia de adestramento em
função de fins exteriores e reflete a essência própria da educação.” Na compreensão do
autor acerca da educação, ele atribui a consciência das normas válidas no interior do
convívio e das façanhas humanas, como o que possibilita o desenvolvimento da
educação.
39
Não faria sentido dizer que os gregos inventaram a educação, pois todos os
povos, de um modo ou de outro, sempre a desenvolveram. Mas algo de originário eles
desenvolveram, justamente por aliar a sua “vocação à forma”, à necessária
conscientização das normas que regem a vida humana constitutiva da educação. Em
tudo que eles “colocaram a mão”, extraíram daí regulações internas dos processos,
levaram a consciência às normas estruturais, permitindo formar um saber claro que
pudesse ser transmitido mais facilmente. As artes são exemplares nesses quesitos, a
arquitetura, a escultura e a música atingiram um grau de formalização tal que um
mestre de ofícios passa a transmitir a seus aprendizes não apenas procedimentos
imitáveis, mas princípios gerais que servem a infindas utilizações. O exemplo da notação
musical é cabal, pois antes a música ficava restrita à espontaneidade de seus intérpretes,
e com a invenção de uma escrita que descreve as notas, a música passa a constituir
um saber em grande parte transmissível.
Essa tendência consagra os gregos quanto à questão da educação, porque
desde sempre eles estão engajados em apreender e na estrutura de funcionamento das
coisas. Algo que se evidencia na maneira como as artes e os ofícios gregos se
desenvolveram e foram capazes de se institucionalizar pela via educativa. Mas, além
disso, essa tendência se expressa pela busca e definição de formas e compreensões
acerca do que seja a vida humana.
Os gregos se destacam por terem desenvolvido uma grande fortuna de
compreensões acerca do homem, que por sua vez estavam quase sempre engajadas
em uma formulação específica de como desenvolver a educação dos indivíduos
humanos.
Outros dois aspectos que Jaeger gosta de salientar é o “sentimento
antropocêntrico” manifestado pela tendência grega de colocar o homem no centro das
suas representações e instituições. Isso, para deixar claro que o diferencial histórico do
grego não é o “surgimento da individualidade”, mas sua visada geral do homem. Tomar
a questão da individualidade como chave interpretativa seria cometer um forte
anacronismo. E também o do “solo comunitário” que toda criação grega
necessariamente remete. “O homem que se revela nas obras gregas é o homem
político.”
40
Para Jaeger, o espírito grego é tal, que melhor o caracterizaríamos se o
pensamos a partir da Paideia. Podemos entender um determinado momento da sua
história a partir da leitura de seus principais autores que nos chegaram, não pelo que
poderíamos entrever de sua didática de comportamentos "exteriores" que essa encerra;
mas precisamente observando como o problema da formação se configura em cada
situação: como a compreensão geral do humano elege certos tipos ideais, e encaminha
o desenvolvimento de certas capacidades concretas no indivíduo.
Seu método se esforça por resgatar os pensadores e artistas gregos, seus
poetas épicos, líricos e trágicos, seus legisladores, oradores, retóricos e moralistas, seus
filósofos e sofistas, e ver como em cada um deles se forma um projeto de Paideia.
Todos engajados em compreender o humano, e depreender disso a formação do
indivíduo; e das diferentes compreensões, muitos conflitos. Iremos reter desse método
aquilo que consideramos essencial para pensar o debate filosófico acerca do princípio
ético da educação: que a questão paidêutica é por um lado fonte da valoração grega
em geral; e que a formulação teórica desta por um determinado autor não representa
um determinado setor ou classe predominante da sociedade grega em determinado
momento, mas antes é esse próprio destacamento social em sua forma sublimada.
Concordaremos plenamente quando ele diz que
nenhuma filosofia vive da pura razão. É apenas a forma conceitual e sublimada
da cultura e da civilização, tais como se desenrolaram na história. Em qualquer
dos casos, isto é verdadeiro para a filosofia de Platão e Aristóteles. Não podem
ser compreendidas sem a cultura grega, nem a cultura grega sem elas. (Op.
cit, p. 95)
41
Limites metodológicos
Uma interdição serve para imitar a ordem da natureza. (...)
Mas se eu acredito em uma interdição como se ela fosse natural,
não existe crescimento possível nunca mais, porque é preciso variar,
há momentos de exigência de variação.18
O interesse na abordagem de Jaeger é de observar como posições
significativas do desenvolvimento histórico do povo grego se organizam em torno da
eleição de um ideal de cultura segundo a Paideia. A partir dele, podemos observar na
tomada de posição que um “intelectual” grego assume, não como algo que representa
um dado lado do conflito, mas como a própria força que anima esse conflito em seu grau
de autoconsciência. Assim podemos observar em um poeta como Teognis ou Píndaro,
vozes da aristocracia, ou em Eurípedes, um levante do espírito democrático etc.
Porém, essa extraordinária leitura, que percorre em seus muitos capítulos o
principal da cultura grega do sec. V e IV antes de Cristo, está comprometida com uma
tese humanista (e bastante platônica) que não iremos abarcar. A de que há uma
essência humana trans-histórica, e que os Gregos seriam os mais fieis portadores da
consciência que a transpassa.
Todas nossas ressalvas que levantaremos se concentram no critério que
Jaeger ressalta para mostrar porque dar destaque aos gregos, que ele entende como a
“comunidade de destino” entre os gregos antigos e a “nossa civilização”19. Trata-se de
ver nos gregos a origem de aspectos da vida atual, como compartilhamos com os
gregos certas estruturas culturais e espirituais. Com isso Jaeger assume uma visão
18
MD Magno, Revirão: A Topologia da Banda de Moebius. Disponível em <http://www.youtube.com/
watch?v=MaAP-WE5CZ0> consultado em 20/02/2012.
19
É preciso lembrar de que, quem está nos enunciando se situa na Alemanha dos anos 1920. Distanciarnos-emos de tal afirmação não só pelo que ela se afasta de nós no tempo e no espaço. Temos de
reconhecer que tipo de estratégia discursiva sustenta esse enunciado. Lembrar como ela remete a um
problema que surgia naquele tempo, e que hoje vive aguda crise – a da definição de uma identidade
europeia. Ironicamente hoje, com a crise na Europa, a Grécia não cumpre uma função de sutura para a
construção dessa identidade, mas aponta para o sintoma de sua fratura.
42
humanista, de que, com os gregos, a essência do Homem foi sendo gradativamente
descoberta e legada, e também certa concepção teleológica de história e ainda deixa de
lado o caráter “inventivo” da história da ética grega.20
Mas seria bom precisar melhor o tipo de humanismo que professa Jaeger,
pois “esse ideal de homem, segundo o qual se devia formar o indivíduo, não é um
esquema vazio, independente do espaço e do tempo. (...) Seria um erro fatal ver na
ânsia de forma dos gregos uma norma rígida e definitiva.” (p. 11) Assim ele critica um
tipo de classicismo e humanismo, cujo
pressuposto de ambos é um conceito abstrato e anti-histórico, que considera o
espírito de uma região de verdade e de beleza eternas, acima dos destino e das
vicissitudes dos povos (...) Atualmente, com o perigo inverso de um historicismo
sem limite e sem fim, nesta noite em que todos os gatos são pardos, voltamos
aos valores permanentes da Antiguidade, não podemos considerá-los de novo
como ídolos intemporais. (grifo nosso, idem)
Ele procura evitar o equívoco de certo classicismo humanista, que por imitar
diretamente os gregos, acaba produzindo “formas culturais vazias”. Para isso ele aponta
o caráter único de cada realização, de modo que não podemos separar o espírito de sua
realização no tempo. Ainda assim, ele ressalta a importância grega por, de alguma
forma, levar ao extremo nossa condição humana. Sua análise não convida a uma mera
repetição, mas, de alguma forma, a um culto ao homem.
Mas, e se radicalizássemos ainda mais no sentido histórico? E se deixássemos
de lado o compromisso com a essência humana, o que nos restaria ao olhar a
diversidade, o rolar dos ideais gregos de cultura segundo a educação individual do
homem? Será que a história não nos guardaria surpresas e linhas de fuga impensadas?
Uma de nossas estratégias aqui é a de compreender a Paideia como a
referência a uma compreensão do humano que norteia de modo consciente a
20
A questão da inventividade na história da ética é homóloga à questão similar no campo da linguagem.
Há os que defendem que a linguagem é fundamentalmente o recurso ao código e a um saber prévio no
seu manejo, e os que apontam para a criação de sentido como o que há de mais fundamental. Para esse
último grupo, fenômenos como o chiste, o piropo, os atos falhos não são apenas “desvios” da norma,
mas a própria constituição da linguagem que se dá segundo as próprias figuras de estilo, em especial a
metáfora e a metonímia. Cf. "O piropo: psicanálise e linguagem" (MILLER, 1987), "Sobre a verdade e
mentira em um sentido extramoral" (NIETZSCHE, 2004), e "A mitologia Branca" (DERRIDA, 1986).
43
educação. Todavia, isso não implica necessariamente que o humano seja pensado
pelos pressupostos humanistas de "natureza humana"21. O que faz o homem ser
homem não precisa ser pensado a partir de um “conteúdo quididativo”, o que evitamos
se pretendemos apreender a generalidade humana pela via “existencial”.
Para ficarmos em um exemplo relevante e decisivo para a nossa discussão
acerca da aplicação de critérios distintos na apreensão da generalidade humana,
tomamos o caso da definição do bem humano por Aristóteles. Nesse caso há uma
disputa acerca do argumento da "função própria do homem"22, que já se decide quando
traduzimos "ergon", função própria que define uma espécie, simplesmente por "função"
ou por "tarefa". No primeiro caso, podemos traduzir a essência humana por uma
quididade pura e simples. Homem, assim como cadeira, remete a uma categoria lógica
e ontológica definida pela diferença específica; porém, quando traduzimos por "tarefa",
o que define a humanidade do homem não se reduz ao seu conceito, mas remete a um
projeto ou tensão existencial, que não pode ser totalizado pura e simplesmente por uma
categoria ontológica, pelo contrário, é o próprio sentido de uma ontologia que se define
a partir dessa tensão.
Não podemos deixar de considerar que Jaeger não se deixa aderir a nenhum
classicismo do tipo que eterniza os gregos. O que o torna um historiador arguto. O que
ele eterniza é a forma humana. Não deixando de apontar para a contingência histórica –
mas tendo a preocupação de submeter a contingência à forma, nunca o contrário.
A visão teleológica da história se manifesta em Jaeger de maneira mais
implícita. Como historiador, está interessado na diacronia, como crítico do positivismo,
visa refutar uma ideia de progresso na história, porém não se furta de buscar intuir as
leis gerais que governariam a história. E no caso da Paideia, os gregos aparecem num
A busca pelo “melhor tipo de homem” que o humanismo de Jaeger propõe para qualificar a Paideia
grega pode ser alvo de críticas ainda mais contundentes. Se aceitarmos as provocações de Nodari e
(também de Ludeña), esse humanismo que deseja “melhorar o homem” constitui o dispositivo da
“antropotecnia”, que podemos remontar à pastoral cristã e em última análise á fundamentação platônica
da “eugenia”, algo que atravessa a história da “zoopolítica” ocidental. (Ver NODARI, Alexandre “Fabricar o
humano” – resenha de La Comunidad de los espectros. I. Antropotecnia de Fabián J. Ludueña Romandini.
Buenos Aires: Mino y D‟Avila editores, 2010. Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/
sopro/resenhas/espectros.html>, consultado em 25/05/2012).
21
22
EN, I, 7, 1097b25-1098a22.
44
lugar de destaque na história de um problema, não talvez por suas soluções, mas pela
maior insistência na recolocação do problema. De todo modo, nunca sabemos tudo o
que estamos "comprando" de um autor quando nos apoiamos em algumas de suas
teses conhecidas, e desconhecemos tantas outras. E espero que esse "receio
metodológico" cure o afã de supor em algum momento que se sabe o suficiente acerca
do que é educação e de como daqui por diante deveríamos educar nossos mais jovens.
É algo que parece estar vinculado a um projeto político, como parece Jaeger estar.
Cabe notar, que a partir de algum lugar, nos afastamos de algumas
premissas do autor alemão. O compromisso com uma noção universalista de "natureza
humana", seu explícito humanismo; sua compreensão de devir histórico, seu
hegelianismo implícito; enfim sua própria tomada de partido na discussão, seu
platonismo.23 De todo modo, cabe desvincularmo-nos de um interesse humanista na
Paideia grega, de uma vontade universalisante de encontrar o real da educação. Mas,
como então ser capaz de atingir o real em questão, sem recair na tendência metafísica
inerente ao próprio tipo de questão?
***
No final das contas, o problema da educação é o de como se dá a "formação
humana". É preciso para isso que aquele que transmite os valores, não somente tenha
claro o que quer transmitir, mas também as condições gerais da vida humana que
possibilitam, condicionam essa transmissão.
Quer-se uma transmissão de valores, dos valores morais. Porém de modo
geral não é preciso uma Paideia para isso, valores sempre estão sendo transmitidos. A
colocação grega da questão envolve uma compreensão da forma essencial do homem24,
a educação no sentido forte parte de uma compreensão das normas que presidem a
generalidade humana, de como essas normas se singularizam em um
23
Não iremos nos preocupar com uma refutação acurada dessas posições. Mas valeria a pena,
retomarmos isso em outra ocasião, nos questionando o porquê do fracasso teórico e prático do Neohumanismo alemão, professado por Jaeger.
“Forma essencial do homem”, preferimos chamar assim a condição geral do homem, para não nos
comprometermos com a noção de Forma pura e simples, uma vez, que não apenas Platão nos interessa
aqui para pensar a condição humana. Tampouco chamaremos de “natureza humana”, como Jaeger faz
repetidas vezes, para não nos comprometermos com o humanismo.
24
45
processo de formação individual para então assumir a tarefa da transmissão de certos
valores. Assim, as prescrições assumidas pela tarefa educacional têm um sentido, de
aproximar o indivíduo do máximo de sua capacidade em direção ao próprio extremo
humano determinado por uma compreensão.
Essa é a colocação da questão. Que, como veremos aqui, recebe diferentes
caminhos, por um lado não serão iguais as compreensões do que define a forma
essencial humana – nossos extremos; por outro, há a "singularização" dos valores
morais, que podem ser encaminhados no sentido de uma "estilização" ou de uma
"obediência estrita".25
A primeira parte da questão foi muito bem mapeada por Jaeger, que enfatiza
como a consciência normativa dos gregos propiciou o enorme avanço na questão da
educação. Mas ele coloca todo o peso na consciência da norma, o que revela certo
compromisso moral com a obediência. O problema é que muito da vitalidade da cultura
advém da transgressão. Como diria o poeta Ivan Maia: "Toda tradição que não se renova
é uma traição". Poderíamos pensar que muito do poderio grego em termos de Paideia
vem de sua "inventividade moral" também. Para isso, serão de nosso auxílio noções
foucaultianas como "diferenciação ética", e "estilização do caráter". Os gregos foram
longe no discernimento das formas, mas foram geniais em inventarem a si mesmos.
Percebe-se neste ponto que autores como Heidegger, Nietzsche e Foucault
são também importantes para o nosso trabalho, justamente por desmontar a tradição
ocidental, no que esta pretende fazer do homem uma criação a partir do que o
transcende. São importantes não apenas na crítica ao humanismo em geral, mas
também por desmistificar um pouco os gregos, ao mesmo tempo sem lhes retirar o
lugar de destaque. De ver na Grécia não o momento sublime de quando a razão tomou
as rédeas da cultura; mas de como a cultura pode ser fonte de criações infinitas, cujo
maior exemplo, os gregos.
Talvez para o autor alemão, não esteja claro a distinção entre "difusão
moral" e "formação ética", de modo a assimilar as dinâmicas de obediência e as de
25
Cf. Foucault. História da Sexualidade Vol. II – O uso dos prazeres.
46
singularização. Deixaremos para outra ocasião a discussão desse ponto, de modo geral,
e o veremos de maneira mais detida, de modo específico à ética aristotélica, no capítulo
III, quando tratarmos da questão da "escuta".
O que seria bom reter por hora é que: a disputa acerca de qual seja a Paideia
adequada, no fundo é a querela filosófica acerca do que constitui a vida humana. Se,
por um lado, os gregos se voltaram com máxima consciência para as “leis que
governam a estrutura” daquilo que constitui o homem, – suas ações, emoção e
linguagem; por outro lado, não são unânimes quando abordam a questão. Na
divergência sobre aquilo que faz o homem, homem, diferentes projetos educacionais se
esboçam.
2) O ensino da virtude
Antes de entrarmos na discussão filosófica acerca da Paideia, veremos como
ela esteve ligada, de modo geral, ao “ensino das virtudes” necessárias para a “felicidade”,
e quais são as três etapas que antecedem e condicionam esse debate. A educação
ganha seu sentido pleno para os gregos quando ela diz qual ou quais são as virtudes
(areté) que se deve aprender para se ter uma vida plenamente realizada (eudaimonía).
Por isso, a cada vez que se consolida um modelo de virtude, podemos a partir deste
esboçar toda uma Paideia, um projeto educacional que envolve uma compreensão do
homem.
Significação
Areté e Eudaimonía, dois termos fundamentais para se entender a ética
antiga, e dois termos difíceis de serem traduzidos. Virtude é um termo que traduz o
vocábulo grego “areté”, e tem usos na língua grega muito diferentes dos de conotação
“moral” que estamos acostumados em nossa língua. Antes, virtude é entendida por um
critério de eficácia funcional de um objeto qualquer, por exemplo, uma boa faca, é a
que exerce bem sua função, portanto, se corta bem, é uma faca virtuosa. Tal critério é
transposto para a ação humana, supondo que a eficácia de determinadas atividades
define o caráter virtuoso de determinados agentes. O êxito prático é a fonte de valor na
47
ação para os gregos, e não a obediência a Deus, ou sentimento de dever. Precisamos
evitar conotações alheias ao termo virtude quando o estivermos aqui utilizando,
deixando-o situado exclusivamente no pensamento antigo. Do mesmo modo, temos de
ter precauções ao traduzir o termo eudaimonía por „felicidade‟, como as que Maura
Iglesias faz na sua tradução do Mênon:
Foi conservada a tradução tradicional para a palavra grega areté, embora
alguns comentadores atuais prefiram às vezes outros termos, como
“excelência”, pelo comprometimento com a noção atual corrente de “virtude”
impregnada de valores cristãos e outros, alheios ao espírito grego. Para o
grego, areté não é, basicamente, valor “moral”, ligado à noção de dever. A
areté, se não é a própria “eudaimonía”, é, no mínimo, a condição indispensável
da vida eudaimônica, que poderíamos talvez entender, mais do que como a
“vida feliz” (com nossas próprias conotações de “felicidade”), como “vida
plenamente realizada”. A areté é, assim, sempre sumamente desejável algo que
seria impensável para um grego afirmar que não deseja ou que não está
buscando, embora as qualidades associadas a essa condição da vida plena e
realizada variem conforme a época, e que não seja absolutamente clara.”
(Maura Iglesias em nota no Mênon, p. 113)
Assim, a ética antiga, de maneira geral, concorda que a virtude seja algo
sumamente desejável, discordando acerca de quais são especificamente as atividades
que merecem ser destacadas por desempenharem maximamente a função humana.
Podemos observar como as compreensões da tarefa humana, se assumem através de
ideais de “felicidade” que se pretendem realizar pela educação dos indivíduos voltada
para o desenvolvimento de “virtudes”. Podemos concentrar nisso nossa pesquisa,
justamente porque o “tema essencial da história da formação grega é antes o conceito
de areté que remonta aos tempos mais antigos.”
Dizer que a ética antiga grega é voltada para a felicidade situa o pensamento
grego na rubrica do “eudaimonismo” que tem uma série de características que fazem a
ética antiga destacar-se da medieval, da moderna e da contemporânea. Um aspecto é
o da relação de integração entre homem, comunidade política e cosmos26, outro é a
própria dimensão normativa que na antiguidade não possui a mesma importância que
esta passa a ter com o pensamento cristão e se consolida nos modelos normativos da
modernidade (deontologia e consenquencialismo). Algo que, por exemplo, se
observa no homem que se quer
Sobre a “desintegração do Cosmos” com o advento da modernidade, Cf. KOYRÉ, “O Cosmos
desaparecido”, 1992.
26
48
formar pela educação e que não se reduz ao tipo ideal que devemos nos tornar, mas
diz também respeito ao que já se é.
O eudaimonismo produz um modelo que não se reduz a nenhuma
prescrição, nem se confundiria com uma deontologia, tampouco a uma “metafísica
descritiva”. Não temos aí um “modelo normativo” no sentido moderno27, algo que
transparece na noção de kalón (belo-nobre-digno), que não possui equivalente em tais
modelos. O que veremos a seguir se estrutura com a ética cavalheiresca do herói
homérico.
Cronologia
A beleza funda seu domínio no crepúsculo das virtudes heroicas.
(Friedrich Schiller)
A primeira concepção de virtude, oriunda da Grécia arcaica, se encontra nos
ideais aristocráticos da educação guerreira, cantada por Homero. Encontramos na ética
do heroísmo épico não apenas o começo da reflexão grega acerca do ensino das
virtudes, como também a forma que estrutura a ética grega de modo geral. Trata-se de
um enraizamento tanto histórico
como estrutural, observado
nas
sucessivas
modificações no modelo heroico, que de algum modo conserva um lugar para heroísmo
mesmo quando se desfaz de toda verve guerreira.
Em todo caso, a aristocracia guerreira nos mostra como o ensino das virtudes
se torna o tema mais importante da ética grega, sobretudo por deixar claro como o
“ideal” opera em toda determinação do conteúdo externo e interno da educação.
Da educação, neste distingue-se a formação do homem por meio da criação
de um tipo ideal intimamente coerente e claramente definido. Esta formação
não é possível sem oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele
deve ser. A utilidade lhe é indiferente ou, pelo menos, não essencial. O que é
fundamental nela é kalón, isto é, a beleza no sentido normativo da imagem
desejada, do ideal. (JAEGER, 1986, p.17)
Para uma habilitação do modelo eudaimonista no contexto moderno segundo uma “ética das virtudes”
ver MACINTYRE, 2007.
27
49
A educação tal como aparece na nobreza cavalheiresca é voltada para a
virtude, seu principal recurso é o de imprimir um ideal no coração de seus pupilos.
Nada melhor que o “herói” para estabelecer uma imagem perene e pregnante da
virtude. O heroísmo assim aparece como principal valor a se poder aspirar numa
vida, algo restrito à classe dominante dos nobres. A virtude é buscada na medida em
que pode ser exibida, em que pode demonstrar uma vida como digna de ser
apreciada, lembrada, deleitada esteticamente. Na base desta valoração está a “honra”
(aidós), noção que orienta a compreensão nobre da virtude, como veremos mais
adiante, não será totalmente descartada ou irrelevante para a compreensão clássica.
Jaeger faz questão de remarcar quão restritas, entretanto, estavam as práticas
educativas nesta fase guerreira, pois “A formação é um privilégio da classe nobre, na
Grécia arcaica.” (Op. cit, p.18), e com o “alargamento” posterior podemos afirmar
como “A formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais
espiritualizada de uma nação.” (ibidem)28. É preciso pensar a virtude dos tempos
posteriores com esse mesmo destacamento, essa diferenciação, assim como o herói é
aquele que consegue por força de uma formação e de boas aptidões atingir grandes
feitos, o virtuoso é alguém que atinge um extremo, que exibe em seus “discursos e
feitos” algo de extraordinário.
Na ética nobre, as aptidões para a virtude são consideradas como restritas
àqueles que descendem de uma linhagem nobre, por exemplo, se há um escravo que
descende da nobreza, este é considerado como inapto para a excelência, pois ao se
tornar escravo “Zeus lhe retira metade da areté”.
28
Nietzsche em Genealogia da moral irá também colocar o heroísmo épico na base da valoração ética
grega, mas num sentido diverso do Jaeger, na medida em que o interesse genealógico transborda ao
estritamente histórico. Para o filósofo, essa distinção recobre a antiguidade, e finda com o cristianismo
que inicia outro tipo de valoração que a grega (Uma análise nesse sentido é a de Foucault que distingue o
grego como possuindo uma valoração voltada para a constituição ética de si, e o cristão, para a
obediência do código), mas diz respeito à própria dinâmica da vida que se organiza segundo forças ativas e
reativas. Sendo assim, a valoração ética presente no heroísmo épico diz respeito não apenas a um
momento histórico, mas a uma das fontes dos valores éticos, a que realiza a afirmação das forças ativas
da vida. Portanto, toda vez que um indivíduo ou povo é capaz de desenvolver valores a partir de uma
"afirmação da vida", estaremos às voltas com a mesma estrutura valorativa dos guerreiros homéricos, isto
é, a construção de uma beleza (kalón), exibida através da "honra".
50
Podemos encontrar em Homero o documento mais importante desse tipo
de valoração ética, que ao mesmo tempo serve para pensar a organização do mundo
da nobreza que a gestou, e de maneira matricial, todo o debate acerca da virtude na
ética antiga.
[Homero] é ao mesmo tempo fonte histórica da vida daqueles dias e a
expressão poética imutável dos seus ideais. (...) Inquirir como o ideal de homem
ganha forma nos poemas homéricos e com sua esfera de validade originária se
alarga e se converte em força de formação de muito maior amplitude. (...) É às
concepções fundamentais da nobreza cavalheiresca que remonta sua raiz, na
sua forma mais pura, é no conceito de areté que se concentra o ideal de
educação dessa época. (Op. cit, p. 18)
A ética vindoura deriva de alguns elementos pontuais, outros estruturais
como ressalta Jaeger:
O código de nobreza cavalheiresca tem assim uma dupla influência na
educação grega. Dela herdou a ética posterior da cidade, como uma das altas
virtudes, a exigência de coragem, cuja designação posterior – virilidade –
recorda claramente a identificação homérica da coragem com a areté varonil.
Por outro lado os mais altos preceitos de uma conduta distinta dimanam
daquela fonte. Como tais valem muito menos determinadas obrigações no
sentido da moral burguesa, que uma liberalidade aberta a todos e a grandeza
no estilo total da vida. (Op. cit, p. 20)
O ideal do herói funciona para a nobreza, como guia para a formação
individual, na medida em que as aspirações são conduzidas segundo sua norma, que
por sua vez encontra expressão na imagem da beleza aspirada. O critério normativo do
kalón se enraíza na busca pela beleza, e não no senso de obrigação moral, o que talvez
soe estranho ao pensamento moderno. O que vemos na maneira como se coloca o
sentido de dever – aidos, algo que pode ser traduzido por sentimento de vergonha ou
de pudor, a capacidade de recalcitrar diante da censura do outro; e de violação,
nemesis.
Não seria exagero dizer que a virtude heroica se funda na honra, quando o
valor ético “era inseparável da habilidade e do mérito”. E isso tem importância mesmo
quando o valor ético começa a ser aspirado de modo independente ao reconhecimento
social, como se colocam os ideais de kalokagathia de Platão e Aristóteles. (Algo que
veremos mais adiante.)
Enquanto que o pensamento filosófico posterior situa a medida na intimidade
de cada um e ensina a encarar a honra como reflexo do valor interno no
espelho da estima social, o homem homérico só adquire consciência do seu
valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence. Ele é produto de sua
classe e mede a areté própria pelo prestígio que disputa entre os seus
51
semelhantes. O homem filosófico dos tempos seguintes pode prescindir do
reconhecimento externo, embora, (...) segundo Aristóteles, não lhe possa ser
totalmente indiferente. (Op. cit, p. 22)
Um segundo momento da Paideia Grega se define quando o heroísmo grego
dá lugar à valorização do trabalho. Podemos encontrar esse “momento” na obra de
Hesíodo. Porém, como afirmamos, nela também encontraremos a estrutura do
heroísmo que
... não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e
os seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a
terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina,
qualidades de valor eterno para a formação do Homem.29 (Op., cit, p. 59)
Há ainda em Hesíodo uma noção de direito que se coloca como legitimando as
disputas, distinguindo entre a “boa” e “má” disputa (eris). Tendo em mente disputas
comerciais, concorrências nos negócios etc., onde a ambição desenfreada costuma
aparecer. Porém contenda que se ganha, respeitando o adversário e os limites da
legalidade é que se deve buscar, pois “o trabalho é, de fato, uma necessidade dura para o
Homem, mas uma necessidade. E quem por meio dele provê sua modesta subsistência
recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça injustamente os bens alheios.” (p. 64)30
E há também um terceiro momento com o surgimento da pólis, quando o
valor ético se dissocia da produção e da arte da guerra (nunca completamente) e passa
a ser centralizado nas relações que o indivíduo entretém com a lei estabelecida pelo
Estado. A excelência individual pautada na capacidade de equilibrar com maior ou
menor justiça os interesses individuais e os da comunidade. Neste cenário se forma o
chamado pensamento “clássico” da antiguidade, e nele encontraremos o debate
propriamente filosófico acerca da Paideia. Os contendedores discutem o problema do
ensino das virtudes no contexto da cidadania política.
De modo geral, na era clássica a discussão gira em torno da virtude no
contexto da vida na pólis. A questão é como educar o cidadão e o estadista. Suas
questões giram em torno do como e do porquê se deve obedecer às Leis, e de como
29
Vemos aí mais um forte sintoma de tentativa de Jaeger ancorar a valoração ética na humanidade transhistórica revelada pelos gregos.
30
Deixaremos por hora um aprofundamento na ética laboral. Cf. o estudo crítico que Luiz Otávio
Mantoveneli faz d‟ Os Trabalhos e os Dias (HESÍODO, 2011).
52
produzir melhores leis – o problema de governar a si e aos outros. Considerando, é
claro, que no pensamento grego, de maneira geral, uma coisa sempre está ligada à
outra, só pode governar o outro, aquele que governa a si primeiro. Em torno disso se
forma um debate. Qual será a virtude própria daqueles que irão exercer a cidadania, as
práticas deliberativas e judiciárias que isso implica, e de que forma irão se portar diante
da lei e das necessidades do Estado? E qual será a virtude própria do estadista, do
legislador e do governante, em que medida sua excelência depende de uma formação,
e de que forma o bom governo proporciona a educação?
No período clássico se forma uma valorização ímpar, como diz Jaeger:
Em tempo algum o Estado se identificou tanto com a dignidade e o valor do
Homem. Aristóteles designa o Homem como ser político e, assim, distingue-o
do animal pela sua qualidade de cidadão. Esta identificação da humanitas, do
ser-homem com o Estado, compreende-se apenas na estrutura vital da antiga
cultura da pólis grega, para a qual a vida em comum é a súmula da vida mais
elevada e adquire até uma qualidade divina. (Op. cit, p. 100)
Não é à toa que com a dissolução da autonomia política da pólis, essas
questões acerca da Paideia deixem de ser levadas tão em conta. No momento que o
modelo de cidadania grego empregado para se pensar as virtudes éticas deixa de existir,
simplesmente por não ter como se remeter a mais nada de efetivo nas práticas políticas
e institucionais gregas, teremos também uma profunda transformação na maneira de se
pensar a virtude ética e o problema da sua aquisição.
Importa reter, que nesse momento, as noções chaves da Paideia são reordenadas, e os valores aspirados passam a ser a beleza (kalón) e a equidade (diké).
Algo que diz tanto respeito aos feitos realizados pela comunidade, onde é preciso
distribuir de modo equânime ou proporcional os bens, os méritos, os castigos etc.;
quanto também diz respeito à ordenação da vida individual, à beleza de uma existência
que só pode ser alcançada com justiça – é preciso equilibrar os desejos, os interesses;
dar vazão a uns, conter outros; buscar mais determinados prazeres que outros; e assim
desenvolver certas capacidades da alma buscando sempre um certo equilíbrio entre
elas. Porém, como veremos, a compreensão desse equilíbrio varia conforme o projeto
de Paideia que se deseja.
De todo modo, podemos ter, desde já, o contexto em que Platão e
Aristóteles se situam quando defendem a kalokagathia, isto é de “uma vida boa e bela”;
53
e, de modo similar, os Sofistas que buscam desenvolver a politropia e a polimatia, que
é o poder individual exercido pela capacidade de dar a resposta adequada de modo
variado e múltiplo aos variados desafios da vida. Todos eles estão com isso decidindo
os rumos da sociedade, na consolidação de um determinado tipo de educação do
indivíduo, que por sua vez projeta uma concepção de Estado.
Iremos nesse trabalho passar ao largo da dimensão propriamente política do
assunto. Mas não podemos esquecer como, no caso grego, em especial no debate
clássico, a organização política e a ética individual estão intimamente ligadas, e ao falar de
uma coisa estamos de um modo ou de outro falando da outra. Como é o caso de Platão
que entende a organização das funções da alma de maneira homóloga à das classes da
sociedade, ou de Aristóteles que define o próprio homem como “animal político”, ou
ainda de um sofista como Antifonte na valorização da “concórdia”. Concentrar-nos-emos
aqui no indivíduo, e nesse momento no desenvolvimento de suas capacidades.
É pela compreensão de Paideia, de que a formação do indivíduo depende do
ensino/aprendizagem da virtude, que poderemos entender como se esboçam três
formas completamente diversas de entrar nesse debate. Iremos enfocar essa
diferenciação pelos dois eixos que envolvem a educação: o da capacitação individual e o
da educação para um tipo ideal aspirado, assim podermos ter um esquema histórico e
filosófico do que separa a formação intelectualista da formação geral, e estas duas da
formação do caráter.
A Paideia como “capacitação”
O primeiro ponto de análise que destacaremos no debate clássico é o da
capacitação envolvida no ensino das virtudes. Sabemos que o que está em disputa é o
entendimento do que seja a virtude do cidadão, portanto de como se deve educar
alguém para participar ativamente da comunidade política. Heroísmo e honra se
redefinem, passando a dizer respeito à realização individual através do exercício máximo
de certas capacidades que se harmonizam com justiça (dikaiosine) aos fins próprios da
comunidade organizada pelo Estado.
Quando chegamos ao cenário clássico (que pode ser situado historicamente
no século de transição do V ao IV antes de Cristo) encontramos concordância e
54
discordância, pois se todos estão a favor da educação, o problema é definir qual.
Podemos observar a querela histórica entre filosofia e sofística, onde a filosofia afirma
seu pensamento ético rejeitando e refutando as posições dos sofistas. Platão descreve
em muitos diálogos a discordância que não é apenas pontual entre Sócrates e aqueles
que professavam a virtude no ambiente da pólis ateniense, e que se chamavam sofistas.
Sócrates aparece na obra platônica demarcando um novo modelo educacional diferente
das experiências correntes.
Os sofistas ensinavam os saberes, a música, a gramática, a retórica, visando
dar melhores condições àqueles que iriam governar. O Sócrates platônico pretende
expor as falhas e as inconsistências nesse modelo sofístico de educação, notando que
não há um verdadeiro princípio que comande e hierarquize esses saberes ensinados,
não oferecendo critério outro para ética que o da força, e da realização da ganância pelo
poder. Veremos mais adiante a posição platônica com um pouco mais de detalhe, e
também como a posição sofística não deve ser encerrada na desqualificação platônica.
Mas ainda neste tópico, abordaremos uma terceira posição, que não é nem a
que direciona a educação para um saber acerca do que é transcendente e organizaria,
por isso, a vida concreta do intelectualismo socrático; nem a que se volta para a
aprendizagem de múltiplas capacidades técnico-práticas, a posição sofística, que como
veremos mais tarde, defende um “convencionalismo”. Seria a de Aristóteles que defende
um campo próprio da formação ética, voltando-se à aprendizagem ligada ao caráter
(ethos), que no seu caso não pode ser reduzida ao campo da pura intelectualidade, nem
ao da tekhné, por reivindicar à práxis um campo existencial autônomo31.
A práxis (que pode ser entendida como sinônimo de “ação”) não é o
conhecimento científico porque este lida com “coisas universais e necessárias”, e ela
versa sobre o que é particular e variável. E ainda não se confunde com a arte (tekhné),
embora ambas lidem com que é variável e particular, porque uma ação (prágma) é algo
diferente da uma produção (poíesis), pois “o produzir tem uma finalidade diferente de si
mesmo, isso não acontece com o agir, pois que a boa ação é o seu próprio fim”.
31
Cf. EN,VI, 1140a-1141a8.
55
(1140b6-7). Baseando-nos nessa distinção, podemos entrever que o caráter se educa
de modo diverso ao da educação que visa ao conhecimento científico ou ao
desenvolvimento de habilidades técnico-artísticas.
No campo dos saberes técnicos, é evidente que o ensino desempenha um
papel de formação – por exemplo, músicos autodidatas podem até existir, mas é
inegável que os resultados de treinamento sob orientação garantem algum nível de
aprendizagem na arte de tocar um instrumento musical. Mesmo assim, ter o melhor
flautista da cidade como professor não será o único fator para adquirir excelência ou se
tornar um virtuose.32
No campo dos saberes, que de maneira muito vaga poderíamos chamar de
científicos, também fica claro que o papel desempenhado pelo ensino é decisivo.33
Todavia, independente de toda vinculação institucional, e de todas as
nuances que abandonamos com esse tipo de análise, podemos dizer que na
matemática temos o paradigma da formação científica, ou até, considerando de um
modo ainda mais geral, de toda formação cognitiva. Isso é um padrão que se
consolida na antiguidade clássica, e ainda hoje, com algumas mudanças substantivas,
ainda o será.
O motivo para tanto é o do saber matemático se instituir, por assim dizer, a
partir de uma “lógica didática”, tendo todos os seus elementos complexos como
compostos pelos simples que os antecedem. Mesmo que isso não corresponda à ordem
das descobertas e falsificações, do proceder propriamente científico, é plausível que seja
por isso que Aristóteles caracteriza, de modo geral, toda racionalidade científica pelo
atributo de “ser ensinável”34. A ideia é que toda compreensão científica pode ser
decomposta em elementos simples, que uma vez destacados podem ser aprendidos por
qualquer um que, seguindo as regras de correção, chegará ao mesmo resultado.
32
A arte retórica talvez seja paradigmática para isso. Sobre a formação técnica em confronto com a ética,
ver BERSNIER, 1996, p. 122-163.
33
Não é à toa que desde o começo da organização da cidade antiga vem se reservando um espaço
institucional para esse tipo de ensino, na academia, nos liceus etc., o que se consagra na modernidade,
no que podemos constatar na instituição da Universidade. Mesmo os grandes inventores do ocidente
terão de ter de se haver com a instituição de uma forma ou de outra.
34
Didaskalia, EN,II,1.
56
Todavia, na formação ética podemos ver outros tipos de problemas. Talvez
os problemas mais decisivos, de todo modo, sejam sua própria possibilidade de serem
tomados como questão. Como poderíamos decompor o caráter em elementos, tais que
pudessem ser transmitidos didaticamente, como parece ser possível no ensino de
técnicas artísticas e das ciências?
Podemos chegar a dizer que basicamente são questões sobre a sua
possibilidade e as condições de uma formação ética que inauguram a filosofia no seu
domínio ético.35
Não que também não sejam gerados diversos e dificultosos problemas à
reflexão filosófica nas questões ligadas à formação teórica ou científica36, por um lado, e
à técnico-artística, por outro37.
Na dimensão prática, surgem questões que a dimensão cognitiva ou técnica
não parecem entrever. Quanto ao caráter prático, para começar, é a própria questão
que tem de ser constantemente problematizada.
No caso da ciência e da arte, entrevemos que nelas está presente algum tipo
de saber e formação no sentido de aprendizagem, e isso não é nunca posto em dúvida,
tanto que podemos intuitivamente encontrar seu local de ensino nas cidades, onde um
saber técnico ou científico é praticado, e quando queremos aprender uma técnica
artística ou produtiva, não é difícil achar um professor.
Para a formação teórica e artística não é questão se elas são devidas a algum
aprendizado, a questão é sobre qual seria esse aprendizado, e como seria possível
35
Embora modernamente a discussão ética se concentre estritamente no aspecto normativo, oscilando
em posições deontológicas ou consenquencialistas, a questão sobre o caráter e sua formação perde
muito a importância, por não dizer respeito de modo imediato às questões sobre reconhecimento e
aplicação de normas. (Cf. “Virtue Ethics”, CRISP. In Enciclp. Routhledge, 1998, 2010)
36
No caso das ciências, o problema está na demonstração (apodexis) do saber, e no seu caráter
demonstrativo, de modo a assegurar que se possa dizer que quem sabe é capaz de demonstrar e,
portanto ensinar (desde que seja capaz também de refazer dialeticamente o caminho até os primeiros
princípios, e pelo diálogo com as crenças de um aluno chegar ao ponto onde a demonstração se torna
autoevidente). A formação científica para Aristóteles tem inúmeras nuances voluntariamente aqui
desprezadas, o que passa por uma intricada solução do paradoxo do Menon.
37
A filosofia se presta a uma pedagogia quando aborda a educação cognitiva, uma poética, quanto a
artística; restando à ética uma abordagem sobre o que pode ser entendido como poética do caráter.
57
efetivá-lo. No caso da formação ética, o problema é que não podemos afirmar de
antemão nada sobre seu ensino, tampouco sobre o saber que a constitui, muito menos
identificar seus doutores. Quem nos ensina a agir de modo a nos tornarmos excelentes?
Quem é o mestre, e quem é o aluno no plano ético das ações? O que sabe aquele que
age bem? O que aprendeu, e como se deu isso? Por que indivíduos sabidamente
excelentes são incapazes de educar seus filhos? Filósofos até hoje se perguntam: “a
virtude pode ser ensinada?”38
Essa questão se torna sem dúvida mais problemática no período clássico
quando o ideal normativo remete a uma tipologia social mais abstrata – Na Paideia
homérica se quer formar o guerreiro, na de Hesíodo, o trabalhador, mas na clássica
trata-se do “cidadão”, um tipo que não é representado por uma classe social específica
e portanto admite várias concepções socialmente válidas.
Se de alguma forma podemos entender que a virtude é coisa que se aprende,
em nenhum dos casos isso seria fácil. Para uns, mesmo ela sendo “ensinável” como o
são as matemáticas, ela teria de ser fruto de uma dedicação e meditação constante só
atingida na maturidade; noutro, ela seria fruto de muito treino e articulação sóciopolítica; e, por fim, para aqueles que enxergam na práxis uma dimensão própria, a
virtude se aprenderia sim, mas por uma via “não-didática” por assim dizer.
A Paideia segundo os tipos ideais
Em resumo, temos três visões em termos de capacitação no período clássico:
a que é voltada ao conhecimento intelectual, que encontramos em Platão; a que é
voltada para a capacitação técnico-artística no sentido de uma “formação geral”; e a
aristotélica, que é voltada para o desenvolvimento do caráter a partir da práxis. Por
conseguinte, podemos daí entrever três distintos tipos humanos que são buscados pela
formação. Num caso quer se educar o homem do conhecimento, que tem de ser então
38
Todas essas questões aparecem ao longo do Mênon, pelo tom que elas estão lá formuladas, alguns
comentadores chegam à conclusão de se tratar de „lugares comuns‟ das discussões em Atenas no sec. V
e IV ac. (Ver KOYRÉ, 1988).
58
um filósofo ou educador, que Platão em geral representa pela figura de Sócrates, e na
República na polêmica figura do rei-filósofo. Noutro, quer se formar o homem que é
capaz de múltiplas habilidades, e sabe também ser múltiplo, respondendo aos desafios
da vida com precisão e arte, algo que costumeiramente os sofistas representavam pelos
heróis da mitologia, em especial Ulisses e Hércules. E por fim, no caso de Aristóteles, o
que se quer é formar o “homem prático”, que desenvolveu virtudes da ação e
deliberação, que ele representa na figura do legislador democrático que busca reformar
a sociedade pela via constitucional, valendo-se da personagem histórica de Péricles.
Colocando em contraste essas figuras destacadas, temos condições de
esboçar a Paideia que cada uma das posições filosóficas no debate clássico busca
empreender. Em Platão encontramos a valorização do próprio filósofo educador
encarnada na figura de Sócrates. A formação ética é entendida pela busca daquele que
se dedica à investigação de conceitos e tenta de algum modo transmitir seu aprendizado
aos mais jovens, nem que seja pela via negativa da refutação (elénkhòs).
No caso dos sofistas encontramos os ideais da “polimatia” e “politropia”,
capacidade tanto de fazer várias coisas, como de fazer uma mesma coisa de vários
modos. Ninguém melhor para sustentar esse ideal que Ulisses, o polítropo por
excelência. Aquele que aprendeu a mostrar seu valor por “discursos e feitos”,
apresentando a incrível capacidade de variar de desempenho de acordo com as
situações. Como do enfrentamento do ciclope, gigante de um olho só, onde altera seu
próprio nome, gerando um artifício que o tornou capaz de vencer o terrível monstro.
Já Aristóteles, ao eleger o phronimós como ápice da virtude, explicado na
figura de Péricles, defende que a excelência no caráter não estaria no filósofo
conhecedor das realidades imutáveis, nem apenas no indivíduo dotado de habilidades.
O “homem prático” aristotélico manifesta um tipo de sabedoria que só pode ser
derivada da experiência, e que é capaz de manifestar agudeza e perspicácia na
capacidade de deliberar tanto no foro íntimo com no coletivo.
59
3)
Discussão filosófica: as posições clássicas
Adentraremos nas posições clássicas do debate fillosófico acerca da Paideia.
Concentrar-nos-emos nas compreensões de virtude que cada uma das posições define,
o que nos abre para três eixos de análise que serão abordados em relação a cada uma
delas. Uma é a questão das emoções, se a virtude se conquista pelo domínio, controle,
supressão dos afetos, ou a partir de alguma outra forma.
Outra questão é a relativa ao tipo de princípio que orienta e organiza a virtude,
se ele é transcendente ou imanente, se ele é convencional ou “natural”. E ainda temos de
considerar o tipo de unidade que constitui a virtude, se há uma unidade entre todo tipo de
virtude ou se o que há é uma multiplicidade irredutível a algo único ou unitário.
Batalha filosófica: A virtude pode ser ensinada?
Pensando a história em um arco maior, a ética grega se distancia em bloco
da ética cristã, por exemplo. Poderíamos apontar para diferenças filosóficas, históricas e
genealógicas. Mas, o sentido geral da ética antiga pode ser pensado nesse impulso à
felicidade, que não se confunde com a realização de uma obrigação ou obediência a
Deus, ou à própria norma geral do homem, mas a realização de uma vida dotada de
caracteres apreciáveis esteticamente, segundo o que chamam de kalokagathia. Antes,
mesmo a própria obediência às leis do Estado não constituíam uma virtude por si, pela
mera observância à Lei, mas para o homem “fazer sua beleza”.
A diferença que encontraremos no pensamento clássico, por exemplo, entre
Platão e Aristóteles, está no que diferem na compreensão disso que “faz a beleza” de
cada um resplandecer. Platão aposta em critério transcendente, calcado no
“conhecimento” do que é essencial e apreendido a muito custo pela dialética que
suplanta as contradições de toda opinião. Sócrates (personagem literário de Platão)
exibe uma vida bela, nem sempre por dispor de critérios válidos para a ação, mas por
sempre estar disposto a buscar conhecê-los, abrindo mão de seus preconceitos e
opiniões, e apostando numa via “educacional”. Aristóteles já encontrará não no filósofo
o modelo de virtude, mas no próprio homem de Estado (Platão quer fundir a figura do
filósofo e do estadista na República), que ele exemplifica algumas vezes em Péricles.
60
Mas esses filósofos se nutrem do “otimismo pedagógico” professado pelos
sofistas, pelo menos em algum grau. A visão aristocrática restringe a aprendizagem da
virtude aos nobres de nascença, enquanto os sofistas trazem para o debate a
possibilidade de qualquer um aprender as virtudes, desde que tenha acesso aos
professores adequados. O modelo de ensino é, em geral, o das artes e ofícios, onde o
pupilo prestando atenção a certos princípios e dedicando algum treino se torna capaz
de desempenhar uma determinada habilidade técnico-artística.
Plutarco atribui aos sofistas o tripé pedagógico, que reflete esse otimismo, e
traz também uma importante fonte de como os sofistas relacionam a natureza (physis),
como aquilo que se conquista pela educação (nómos).
O problema da possibilidade de educar a natureza humana é um caso particular
das relações entre a natureza e a arte em geral. Muito instrutiva para esse
aspecto é a contribuição de Plutarco no seu livro A Educação da Juventude
[...]. O autor declara na introdução que conhece e utiliza a literatura antiga
referente à educação [...] no que trata dos três fatores fundamentais de toda
educação: natureza, ensino e hábito. [...] É através do exemplo da agricultura,
encarada como caso fundamental do cultivo da natureza pela arte humana, que
Plutarco explica a relação entre os três elementos da educação. Uma boa
agricultura em primeiro lugar requer uma terra fértil, um lavrador competente e
uma semente de boa qualidade. Para educação o terreno é a natureza do
Homem; o lavrador é o educador; a semente são as doutrinas e os preceitos
transmitidos pela viva voz. Quando as três condições se realizam com perfeição,
o resultado é extraordinariamente bom. Quando uma natureza escassamente
dotada recebe, pelo conhecimento e pelo hábito, os cuidados adequados,
podem ser em parte compensadas as suas deficiências. Em contrapartida, até
uma natureza exuberante decai e se perde, quando é deixada ao abandono. É
isso que torna indispensável a arte da educação. O que se obtém da natureza
com esforço torna-se estéril se não for cultivado. (Jaeger,
1986: 251-252)39
Por um lado, temos um esquema geral de toda educação, em especial a que
visa às virtudes. Algo que encontraremos em Platão, onde a natureza a ser “cultivada”
são as paixões, através da semeadura dialética do lógos, em um cultivo que estabelece
uma relação de controle. E também em Aristóteles, só que de outra forma. Por outro
lado, o modelo sofístico da relação physis-nómos está demarcando algo que será
questionado, e de certo modo “sofisticado” pelo socratismo platônico. O que veremos
mais adiante no estabelecimento dessas posições.
39
Cf. O uso do modelo “agrícola” para tratar da formação ética em Aristóteles. (EN, X, 9, 1179b22-30)
61
A questão acerca da possibilidade do ensino das virtudes (tal como aparece
no Mênon de Platão e nos Dissoi Logoi atribuído a Protágoras) parece ocupar com
insistência a mente de certa intelectualidade ateniense no século V e IV AC. Se o modelo
aristocrático aparece como ultrapassado, não está claro o que vai garantir o êxito de
uma vida plena e realizada no contexto conturbado da democracia ateniense. Surge a
necessidade de pensar que educação deve conduzir o homem na vida política que se
apresenta. Os sofistas não apenas aparecem de diferentes formas, ensinando diferentes
disciplinas, mas defendem, de maneira geral, um modelo “múltiplo” de virtude: virtuoso
é quem consegue fazer várias coisas de diferentes maneiras; quem adequa os diferentes
discursos às diferentes situações etc. O modelo socrático é “unitarista”, todas as
“diferentes” virtudes remetem a uma só – do conhecimento que comanda a ação e
ordena a vida como um todo.
A provocação socrática está em buscar um critério fundamental no ensino
da sofística, e mostrar ou que não há, ou que esse suposto, no fundo, é inconsistente.
Se a virtude pode ser ensinada, Sócrates pergunta sobre como se dá tal aprendizagem,
e verifica que as respostas dos sofistas e do senso comum vão na direção de uma “má”
concepção de virtude. Porém não podemos crer que ele refute cabalmente todos os
sofistas, ele aponta para a falta de critério de alguns, mas no caso específico de
Protágoras, pelo menos, o que vemos no diálogo platônico homônimo, é que ele
conduz seu adversário a contradições verbais apenas, porém o que fica mais claro é que
os dois possuem modelos educacionais incongruentes. E, claro, no reino de sua própria
dialética, o seu próprio modelo é o que mais resiste às objeções e por isso pode melhor
suplantar os rivais. Iremos, na sequência, não apenas ver como os sofistas têm um
modelo positivo de Paideia, mas como somente considerar os dois em oposição não
basta.
Vemos a Paideia em discussão na disputa que a filosofia platônica empreende
contra a sofística, que poderia se traduzir pela questão acerca de qual deve ser a
formação do homem, tomado como indivíduo, que governa a si, ou considerado
enquanto cidadão ou estadista, que tem um papel no governo dos outros. Ficaremos
somente com a primeira parte da questão, a que aborda exclusivamente o indivíduo
enquanto tal, deixando de lado toda a problemática política de como se deve formar o
indivíduo no ponto de vista da cidadania.
62
A problemática sobre qual deve ser a formação do indivíduo entrelaça as
principais questões da ética no pensamento antigo. Qual a natureza das virtudes, se elas
podem ser ensinadas, quais são seus mestres. Interessa pensar a Paideia segundo as
questões acerca da formação ética. Todos, de algum modo, defendem a formação
ética, desde que compartilhem do “otimismo pedagógico”. Tomaremos aqui, de modo
sumário, três posições, que já foram primariamente demarcadas nas sessões anteriores
segundo os tipos de “capacitação e aprendizagem” e os “tipos” idealizados por estas.
Nesse quadro, Aristóteles é aquele que compreende a formação ética como pertencendo
a uma esfera autônoma, enquanto seus interlocutores defendem ou que esta deve estar
compreendida no campo inteligível, e esses são os “intelectualistas” Platão e Sócrates;
ou defendem um convencionalismo de tipo sofístico, que submete o campo ético ao da
formação de um somatório das mais diversas capacidades técnico- artísticas. Veremos
melhor agora essas duas últimas posições, como são defendidas, e como Aristóteles as
refuta, para então focarmos a compreensão aristotélica da formação ética propriamente
dita.
O intelectualismo socrático-platônico
Platão aposta que a formação deve se basear em algum princípio que
transcenda ao da formação geral. Seu paradigma não pode ser o da tekhné, mas antes
o da matemática. A formação atinge seu ápice em uma "ciência do bem". Os sofistas
buscam na educação algo mais que o critério externalista utilitário, buscam formar as
capacidades do espírito por meio desta. Por mais que haja saberes ou aprendizagem
consideradas como prioritárias frente às outras, isso diferenciará bastante os sofistas,
como por exemplo, a valorização das artes liberais, dos estudos sociais, ou da retórica
marca profundas diferenças entre um Hippias, Protágoras e Górgias. A primazia que a
preferência por uma aprendizagem específica dá a uma determinada capacidade
humana, feita pelos sofistas, remete sempre a uma compreensão que, para além do
solo das convenções humanas, não há nada. O homem é a única medida. O sofista
enraíza o paradigma da tekhné.
Para Platão, há algo que transcende qualquer educação básica, qualquer
conteúdo ou arte que possam ser ensinados, mesmo buscando uma "tekhné
63
política" (como o faz no diálogo Górgias), esta depende de um critério moral externo a
uma arte qualquer. O aprendizado no manejo de uma arte não garante que se vai usála com justiça, assim é para a retórica ou para qualquer outra arte. Sócrates evidencia
isso em alguns diálogos, expondo a fraqueza de seus adversários sofistas na
explicitação do critério moral em jogo naquilo que ensinam. Em última análise,
consideram "boa" a formação geral que professam, por propiciarem o "êxito" daqueles
que a desenvolvem. Aprender a falar bem, fazer cálculos, reconhecer as leis e os
costumes pode ajudar bastante um indivíduo nos desafios presentes naquela
sociedade. Mas isso é pouco aos olhos de Sócrates. Observando bem, os sofistas
comungam com a multidão um vago hedonismo, onde a realização na vida nada mais
é que a obtenção de prazer. Interessa para Sócrates, especialmente nos diálogos
Protágoras e Górgias, desmontar esse hedonismo aceitando seus pressupostos.
Mostrar a seus defensores sua incoerência e arbitrariedade. Como podemos observar
no diálogo Protágoras pela busca de uma “arte da medida”.
Para termos maior clareza da posição socrática esboçada por Platão nesses
diálogos, teremos que ter uma visada sobre seu paradoxo "Ninguém faz o mal
voluntariamente". Algo que ele demonstra a partir da famosa discussão acerca da
fraqueza da vontade. De modo que ele deixa claro que virtude implica saber, em seguida
ao difícil tema da unidade das virtudes. Algo que gera especial incômodo e espanto aos
sofistas e ao senso comum da sua época, que viam as diferentes virtudes de maneira
pluralista. Nessa visada, a virtude é considerada como uma ciência dos valores, algo bem
complexo que exige maturidade. Algo que Platão formula de modo consolidado na
República, a partir de várias modificações na "visão socrática"40 explicitada no Protágoras.
A chamada visão socrática é a consequência do paradoxo socrático. Dizer
que “só se faz o mal por ignorância” significa afirmar que só pratica o bem aquele que o
conhece. A posição platônica se consolida como aquela que entende a virtude como
conhecimento, situando a formação ética no mesmo eixo da investigação filosófica.
Alguém só se torna realmente capaz de praticar atos justos, se sabe o que está fazendo
e conhece a essência dos atos justos que é a própria ideia de Justiça.
40
Socratic view. Cf. "Virtue as knowledge: Socrates and Plato", CARR, 1991, p. 23-41.
64
A discussão acerca da fraqueza da vontade no final do diálogo Protágoras
(352d-360d) evidencia o caráter intelectualista da visão socrática, quando há a defesa
de uma “arte da medida”. Uma discussão que poderia ser reunida em seis momentos:
1- Sócrates admite com seus interlocutores que o bem é o prazer. Para concluir
então que um prazer maior deve ser um bem maior.
2- Sócrates analisa o caso da acrasia, fraqueza da vontade, onde alguém se encontra
numa situação onde é “arrastado pelo prazer”, ou seja, diante da escolha de fazer
ou deixar de fazer algo, o indivíduo acaba optando (ou tendo sua escolha
“arrastada”) por algo que sabe ser pernicioso, mas apresenta prazer imediato.
3- Sócrates interroga até que ponto alguém que escolhe um prazer “sabe” haver
bem maior que esse. Lançando dúvidas se é o caso de um saber legítimo acerca
do que é um bem.
4- Sendo o bem aqui identificado com o prazer, a tendência é de sempre escolher o
maior dos bens, porque se sabe que nele se encontrará mais prazer. O contrário
seria um contrassenso, uma escolha que visa obter menos prazer. Ocorre que se
eu digo saber de algo melhor e não o busco, na verdade não sei
verdadeiramente que isso é melhor, porque assim não o sinto. Posso dizer “eu
quero” e isso não implica em querer. Quando as pessoas julgam querer fazer
algo e não conseguem, no fundo é porque elas não conhecem as razões para
querer isso. Na realidade ninguém pode ser arrastado, senão pela sua própria
ignorância acerca do bem e de seu próprio querer. Para a visão socrática não há
fraqueza da vontade, mas só autoengano.
5- Sócrates postula uma arte que “mede” os prazeres e permite optar pela sua
máxima realização. Entretanto essa não seria uma arte como outra qualquer,
porque guiaria o homem para a felicidade, o bem último. Embora lide com os
prazeres, sua base é inteiramente intelectual, capaz de esquadrinhá-los
racionalmente, reparti-los em proporções, de impor-lhes sua medida.
6- A tese intelectualista é que desejos podem e devem, pelo menos em grande
parte, ser controlados pelas decisões racionais. Em última análise, a razão
65
mesma pode ser fonte de desejos.41 Se sabemos que algo é bom então o
desejamos. A virtude está no discernimento42, algo que se obtém na laboriosa
busca pelo conceito. A formação ética só pode então ser orientada pelo
verdadeiro filósofo.
Com isso temos a doutrina intelectualista da ética antiga, que é expressa na
maneira como
Sócrates traça uma fina distinção entre o que ocorre aos homens como uma
questão de desejo, ou do querer, o que tende a ser ditado pelos seus instintos
naturais, paixões ou apetites e aquilo que os homens devem desejar ou que
está nos interesses do querer que só pode ser estabelecido através de uma
reflexão racional madura sobre a natureza do bem humano em geral." (CARR,
1991, p. 28)
Platão (e seu personagem Sócrates) traz uma visão acerca da natureza da
virtude que a compreende como essencialmente um tipo de conhecimento ou
entendimento. O que podemos observar no diálogo Górgias, onde a intelecção do Bem
se impõe como algo superior ao regime das opiniões, e o seu cultivo é a única forma de
superar às pseudoartes ou artes do simulacro defendidas pelos sofistas. Ou então pelo
Mênon, onde a discussão acerca da natureza da virtude nos leva ao seu famoso
paradoxo acerca do conhecimento, e evidencia sua proximidade com o modelo
cognitivo da matemática. Nesses, quem mais se aproxima das virtudes máximas é o
educador-filósofo, por estar na busca pelo conhecimento do Bem. Porém, nos diálogos
chamados socráticos, em momento algum o filósofo afirma ter atingido um tal
conhecimento. Na República, um diálogo considerado da maturidade de Platão, a
função do educador é assimilada à do governante que é alguém que se supõe ter esse
conhecimento máximo.
A principal consequência do intelectualismo é que desejos têm de estar
submetidos ao controle de um princípio racional, assim como na cidade bem governada
uma classe dos mais sábios e mais esclarecidos acerca do que é o bem geral deve
governar a maioria. A ideia é que o desejo escraviza porque ele não tem limite,
Cf. “Razões normativas e razões motivadoras: uma análise das propostas cognitivistas e não cognitivistas
de Michael Smith e Simon Blackburn”, MARIM, Caroline, 2008, p. 28-35.
41
42
Como aparece na discussão acerca da coragem no diálogo Laques.
66
nem fim, e precisa ser disciplinado pelo autocontrole e fins propriamente racionais. Na
visão de Platão, a virtude só se exibe plenamente em circunstâncias nas quais os cegos
e turbulentos apetites são estritamente governados pela razão correta. Em todo caso, o
que sustenta a virtude é uma ciência do bem, seja ela inacabada no educador socrático,
ou efetiva no rei-filósofo.
O convencionalismo sofístico
A desqualificação da sofística é uma das estratégias primeiras de Platão na
fundamentação de sua ontologia e ética. Muito da imagem desses intelectuais que
protagonizaram um “movimento iluminista” na Grécia clássica, ficou perenizada sob a
caricatura de Platão. Nos últimos anos, vêm surgindo importantes trabalhos que buscam
reconstruir uma imagem outra dos sofistas, sem recair necessariamente nas
generalizações de Platão.43
Para Platão, sob o ideal democrático dos Sofistas, no fundo traveste-se o
mesmo ímpeto dos tiranos, o de exercer poder de vida e morte sobre os outros. Ele não
vê como o modelo de virtude dos sofistas pudesse aspirar algo de legítimo na formação
humana, pois só poderia ser fonte ilegítima de poder. O único poder merecido seria
daquele que realmente investiga e conhece o bem, o que significa que o bom estadista
teria de ser filósofo. Os sofistas por se aferrarem à imanência das convenções ficariam
restritos a uma perpetuação conservadora dos valores, ou pior, na defesa argumentada
ou dissimulada da realização do ímpeto humano pelo poder.
Platão não percebe que nem toda vontade de poder precisa redundar em
tirania, e que tal noção pouco sublime acerca do próprio homem talvez possa servir de
fundamento ético. Os sofistas, afirmando aquilo que é demasiado humano, são capazes
de apontar para o nível da criação que está para além de toda violência. Platão quer o
princípio que transcenda o impulso dominador do humano, algo que aspira pela
kaloikagathia, a partir de uma pura intelectualidade, livre dos instintos baixos, uma
43
Entre os quais se destacam os trabalhos de Bárbara Cassin, Maria Cecília Coelho, Luiz Felipe Belintani,
Casertano, Carmen Paes, Kernferd, Guthrie, Carlos Lemos, todos citados no nosso capítulo de
Referências.
67
visão onde o ímpeto de dominação é sublimado, e as partes menos sábias consentem
gentilmente em serem governadas pelas mais sábias. Acaba por enxergar nos sofistas
nada mais que uma sofisticação hipócrita e cínica da disputa desigual, disfarce para a
legitimação da violência e injustiça.
Porém, os ideais sofísticos da politropia e da polimatia operam uma
compreensão do humano, que embora descarte toda transcendência, respalda-se no
exercício virtuoso do poder na cidade e na linguagem, a partir não do acaso, mas da
própria habilidade. Talvez seja preciso discordar de Platão e ver que a rejeição de toda
transcendência não precisa redundar no hedonismo vulgar, no relativismo, ou ceticismo
moral. E que, por outro lado, grande parte das tiranias se estabelece e se justifica na
base do conhecimento e dos saberes. A busca por um modelo ético que parece
embalar a crise do mundo clássico coloca problemas similares aos de agora. Hoje em
dia, em compensação, temos toda uma série de experiências sérias de pensamento que
dispensam a transcendência como fundamento, e não nos soa tão “frágil” a posição
sofística.
Todavia temos que considerar que a afirmação de poder como fundamento
da condição humana pode resultar em posições niilistas, dominadas pela “pleonexia”44,
como vemos em Cálicles e Trasímaco; ou pode ser relacionada à condição criativa,
metaforizante da experiência humana. Platão não leva em conta a distinção entre forças
ativa e reativas – e que portanto possa haver uma ética na imanência, para além de todo
princípio de bem, fundada na afirmação e no exercício de forças ativas, seja pela via de
uma ética da vontade de potência, seja pela ética da afirmação do desejo.
Forte (virtuoso, valoroso) é aquele que é capaz de dar vazão ao seu próprio
instinto. Esta tese, que parece atravessar a sofística, faz Platão enxergar o sofista como
alguém que reproduz o senso comum através de um hedonismo pouco esclarecido.
Porém, o problema sofístico não é exatamente o de dar vazão, mas o de capacitar
alguém a dar vazão aos seus desejos, o que se concretiza, muitas vezes, em uma
democracia na carreira política e isso caracteriza os sofistas como educadores de outra
Sobre a pleonexia e as tentativas filosóficas de superação desta pela “paixão política” ver “A paixão
política de Platão: sobre cercas filosóficas e sua permeabilidade”, CORNELI, 2010.
44
68
estirpe que não Sócrates. Não seria exagero dizer que a sofística fundamenta suas
práticas e teorias em grande medida na realização de uma vontade de poder.
O principal sofista de que temos registro é Protágoras, que funda educação
no estudo do funcionamento social, é o que Jaeger chama de “fundamentação
sociológica da educação”:
Nas intervenções em que [Protágoras] responde a Sócrates detidamente, Platão
nos apresenta com a mão de um mestre um adversário nada desprezível. Teria
sido um mau representante da época pedagógica, se não tivesse tomado
posição diante daquele problema fundamental de toda a educação ou não
estivesse em condição de lutar por ela. A dúvida suscitada sobre a possibilidade
de educar o homem partia de experiências individuais contra as quais não havia
nada a alegar. É por isso que Protágoras desloca habilmente o ponto de partida
e examina o problema sob o ponto de vista dos seus novos conhecimentos
sociológicos, procurando provar, pela análise da vida social humana, das suas
instituições e necessidades, que, sem aceitar como premissa a possibilidade de
educar a natureza humana, todas estas instituições, que de fato existiam,
perderiam o sentido e a razão de ser. Assim considerada, a educação apareceria
como um postulado social e político intangível, sobretudo em uma democracia
antiga onde tão importantes eram o espírito coletivo do indivíduo e sua
participação ativa no Estado. (Paideia, 434-435)
Se tratarmos a questão do controle dos afetos, talvez possamos nuançar
melhor esse debate. A Paideia intelectualista defende que virtude se dá quando as
emoções estão sob as rédeas do intelecto. Um modelo que, muitas vezes, em prol de
um pensamento "puro", defende a extirpação das emoções, senão, pelo menos, uma
contenção. O modelo convencionalista é mais variado e complexo, e de maneira geral
enxerga virtude na vazão com o máximo de força das emoções em prol de uma vontade
de poder. Desta caracterização podemos destacar duas vias: o modelo sociológicoutilitário; e o da ampliação da existência, modelo linguístico-psicagógico que
explicaremos a seguir.
Em todo caso, a questão da capacitação utilitária aparece como a que dá
condições materiais, sociais, políticas e/ou espirituais, para se vivenciar um afeto. A
emoção aparece como um alvo desejado, sustentado pela condição humana
fundamental, o nómos. Num caso, as convenções sociais, noutro, as linguísticas. Mas é
preciso diferenciar a busca de poder possibilitada por uma “crematística”45 de Antifonte,
Trata-se da “boa crematística”, da arte de bem lidar com dinheiro e coisas materiais. Ver discussão
acerca da “tékhne alypías” de Antifonte levantada por Bellintani Ribeiro em ANTIFONTE, 2008.
45
68
69
artes liberais defendidas por Hippias, ou "sociologia" de Protágoras, daquela operada
pelos sofistas da segunda geração como Trasímaco e Cálicles que assumem na vontade
de poder, o desejo de tirania, algo que buscam concretamente no exercício da
democracia ateniense, gerando um dos paradoxos mais pungentes da democracia de
todos os tempos, tão bem diagnosticado por Platão.46
Górgias é um caso à parte, poderia ser lido também nessa chave. Mas outra
leitura47 pode aqui ser proposta, interpretando que nómos, no caso de Górgias, é
Linguagem, discurso, supondo uma fundamentação linguística da Paideia. É entender
que não apenas o homem faz linguagem, mas que a linguagem faz o homem48. Nesse
caso, as emoções aparecem no dispositivo de captura, (violento, divino, persuasivo e
erótico – do jeito que se operou a captura de Helena) que é a própria linguagem. A alma é
passiva, sua passionalidade tem um nómos, a liberdade humana está em saber submeterse ou resistir a ele. A busca é ética, e não apenas de erudição, formar o espírito é
encontrar as palavras, os discursos (Górgias elenca os discursos de seu tempo: medicina,
filosofia natural, oratória; como fazendo parte do lógos benéfico para a alma).
46
Tal diferença recobre a distinção nietzschiana de vontade de poder reativa, condição humana daquilo
que se volta para a dominação destrutiva; e vontade de poder ativa ou criativa, voltada para ampliação e
recriação da própria vida. Algo manifesto no "esteticismo" dos sofistas, que não apenas buscam aproximar
a Arte e beleza do conteúdo vital, mas fazer da própria vida objeto de beleza e fascínio. Cf. “primeira
dissertação” da Genealogia da Moral, NIETSZCHE.
47
Mais afinada com a interpretação de M. Cecília Coelho em “As afecções do corpo e da alma: a analogia
gorgiana entre pharmakon e logos”. Cf. COELHO, 2009, p. 67-86.
48
Uma polêmica recente agitou a opinião pública brasileira acerca do ensino da língua pátria. A discussão
girou em torno da defesa do ensino estrito da norma culta, que parecia para alguns ter sido vilipendiado
em um livro didático intitulado "Para uma vida melhor" sancionado pelo Ministério da Educação. Do outro
lado há os defensores do uso das variantes regionais e sociais no registro oral, fazendo denúncia do
"preconceito linguístico", apontando para aqueles que defendem a norma culta de maneira tão aguerrida,
como estando no fundo a reafirmar a divisão de classes. Wisnik, de maneira bastante gorginiana, situa a
questão em um ponto onde as posições "normativistas" e "pragmatistas" aparecem como superadas: "O
horizonte do pragmatismo é o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC o domínio da norma
culta é justificado, nele, para que o falante tenha „mais uma variedade‟ linguística à sua disposição, para
que não sofra preconceito, para que se desincumba em situações formais que assim o exigem. É muito
pouco. A norma culta não é nem um mero adereço de classe nem apenas uma variedade à disposição do
aluno para ele usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos. A educação pela língua não
pode ser pensada apenas como um instrumento de adaptação às contingências. A escrita é um
equipamento universal de apuro lógico, que está embutido na estrutura de uma língua dada. Mergulhar
nela e nas exigências que lhe são inerentes é um processo de autoconsciência e um salto mental de
grandes consequências. Não se pode fazer por menos. Além de „Para uma vida melhor‟, tem que ser
também „Para uma vida maior‟." Cf. WISNIK, JOSÉ MIGUEL. “Dona Norma”. Publicado originalmente em
O Globo de 21/05/2011. Disponível em <http://sergyovitro.blogspot.com.br/2011/05/dona-norma-josemiguel-wisnik.html>. Consultado em 25/05/2011.
70
Em linhas gerais, eis a doutrina do pharmakon de Górgias, que é a sua
psicagogia, teoria que indica que a alma é plasmada pela linguagem, sustentada por
sua vez por uma epistemologia "cética" quanto às pretensões de verdade da linguagem
ordinária.49
Podemos dizer que, para ele, poeticamente o homem habita (Hölderlin),
conquistando seu poder de habitar, nas casas que ele mesmo constrói com sua
linguagem, ele faz sua própria vida. Retira de si os materiais com que tece seu mundo, a
natureza lhe empresta o lugar.
Górgias concordaria com Aristóteles em situar o lógos como o todo do
homem. Porém se ele é cético quanto ao poder cognitivo desse lógos, entretanto não
duvida nem um pouco do seu poder de conquista. A palavra impõe ao espírito uma
dominação que é de certo modo ao mesmo tempo, tirânica e divina, remédio e veneno,
violência e cura. A virtude está mais em aceitar sua captura, uma excelência maior na
passividade e escuta, do que talvez da atitude altiva de querer para si os poderes de sua
conquista. O poder do lógos de alguma forma pode ser aprendido, porém aceitando
sua ambiguidade fundamental, aceitando que a qualquer momento ele pode salvar, e
pode matar.
Tem que se aprender a falar, a calar, a escutar, a persuadir e a ser
persuadido. Há muito que se instruir, nos discursos benfazejos, e muito que se evitar as
capturas semânticas doentias.
O convencionalismo situa a virtude naquilo que o próprio homem fabrica, é por
potencializar sua capacidade de fabricação que ele encontra excelência. Fazer e desfazer
contratos, discursar pela oratória, falar com gramática, reconhecer os costumes etc., são as
capacidades desejáveis a quem quer se conduzir bem na vida. É preciso polimatia, saber de
tudo um pouco, e também politropia, adequar cada saber a um uso oportuno.
49
Isso claramente ressoa familiar ao pensamento contemporâneo do pós-estruturalismo francês, que
defende a "metaforicidade" ou uma "ética do desejo" sustentada pela "lógica do significante" esvaziado de
todo significado. A psicanálise e em grande parte o pós-estruturalismo francês compreende que em
grande parte de sua vida, senão em toda ela, o sujeito está subordinado a algum discurso ou dispositivo
discursivo, onde toda ética possível está, sim, em assumir o poder de transformar em alguma medida a
trama discursiva onde está inserido, e assim se tornar responsável pela sua própria vida. (Cf. DERRIDA,
1986, e MILLER, 1987)
71
O modelo ético da sofística é o da multiplicidade de virtudes, não existiria
então uma única que desse conta da variabilidade dos desafios da vida. E nesse
modelo, a dimensão passional não é vista como algo a ser controlado, mas a ser
exercido com arte. Os sofistas não buscam a arte que silenciará os imperativos
incontornáveis do desejo, mas sim as variadas artes capazes de dar expressão legítima a
esses desejos.
De certo modo, a formação ética nesses pensadores se confunde com a
formação geral, na medida em que esta capacita às práticas que exigem determinadas
habilidades e permitem êxito não apenas da vida social, mas da própria vida como um
todo, capacitando assim o indivíduo à ampliação de suas possiblidades de existência.
***
Considerando as duas posições até aqui apresentadas, a de Platão e a dos
sofistas, percebemos que Aristóteles defende uma visão moderada. Aquela que busca
dar vazão às emoções, mas segundo uma medida. Por sua vez, o que define essa
medida não é algo de ordem estritamente intelectual, embora envolva uma racionalidade
própria à práxis.
A Paideia aristotélica é a de capacitar o homem a viver seus afetos da
maneira mais intensa possível, o que só é possível através do lógos; não no sentido da
imanência sofística onde a linguagem constitui o afeto; mas assumindo uma hierarquia
onde o desejo "escuta" a razão. Essa questão da escuta será discutida no nosso cap III.
Por ora, buscaremos uma caracterização geral de tal Paideia, nos apoiaremos nos
argumentos de Aristóteles que ele produz quando quer refutar as outras duas.
4)
Paideia Aristotélica: recusa a Platão e aos Sofistas
A partir dos pontos já assinalados neste capítulo podemos demarcar a Paideia
aristotélica vendo como ela se diferencia das outras duas. Como, por exemplo, na questão
do controle emocional, ele defende a realização de uma “medida”, que não se dá nem pelo
modelo da “contenção” e austeridade socrático-platônica, nem pelo da “vazão” dos
sofistas. Ele acaba defendendo uma espécie de pluralismo das virtudes, porém definindo
hierarquias. Defende uma formação ética que não se dá nem no nómos, nem na episteme.
72
Podemos dizer que a Paideia platônica se desenvolve no eixo lógos-pathos
(lógos entendido aqui como conhecimento científico), sua questão principal se torna de
como a razão domina o desejo, e como tal dominação pode se fortalecer pela
investigação. E que a Paideia sofística se encontra no eixo nómos-physis, onde a
questão principal é como uma convenção que se afirma sobre o que é natural, de como
essa afirmação pode ser exercida com arte. Por sua vez, a Paideia aristotélica se situa no
eixo ethos-práxis, tendo como questão como o caráter pode se desenvolver por uma
“escuta”, de como isso se enraíza na dimensão da práxis.
Modelo “etho-prático”
Aristóteles, para falar da excelência humana no âmbito prático, irá introduzir
um termo decisivo, o hábito (hexis). Concordando com os sofistas e com a tradição
platônico-socrática, o estagirita irá ver na formação a possibilidade de toda virtude. Mas
se ela é um saber, não poderá advir senão pelo hábito, e se for algo transmissível não o
será da maneira como se ensina matemática, e ainda que envolva mestres, esses não se
autorizam por um saber-fazer.
Algo que intrigou muita gente é: se a virtude é algo ensinável, porque
homens sabidamente excelentes tiveram filhos medíocres? Por que eles sabendo algo
que os faziam virtuosos, não se dedicaram a educar seus filhos segundo tal saber?
Interessante notar que é quase unânime nos textos antigos, falar de Péricles como
exemplo inegável de excelência, porém, em relação a seus filhos, que não foram os
mais virtuosos, se evidencia que a transmissão de pai para filho é no mínimo muito
problemática, senão impossível.
Aristóteles é um autor privilegiado para a investigação desse problema,
porque busca evitar, reduzir o campo ético-prático, ao técnico (como intencionaram os
sofistas), ou ao científico (como quis Platão). Se ele afasta a práxis do paradigma
científico, por outro lado, ele irá valorizar o máximo o papel da formação na sua
constituição; e embora ele aproxime a formação do caráter daquela oriunda das artes
produtivas, em muitos pontos, ainda assim essas últimas jamais visam o que transcende
toda consideração utilitária, o Bem.
73
O bem, no ver de Aristóteles, tem um caráter “objetivo” que se define pela
própria existência ou natureza humana e, para compreender tal passo temos de
reconstruir o argumento do érgon (EN I, 4). Esse argumento, por alicerçar toda teoria
aristotélica, será o objeto das controvérsias apresentadas aqui no próximo capítulo.
Temos que entender como sua noção de bem é tal que não pode ser passível de
ciência, tampouco pode ser redutível a uma convenção.
Rejeição do Bem como Ideia
O mantra socrático “só se faz o mal por ignorância” receberá o corolário
platônico “virtude é conhecimento.” A resposta aristotélica é que não há ciência do
Bem, pois para ele o bem não é de ordem inteligível, mas reside na dimensão própria
da práxis.
Aristóteles coloca a ideia de Bem como algo central em sua ética, é o que
define o conteúdo de uma vida feliz, é a orientação da sua “kalokagathia”. Porém não
existe “o bem”, existem os mais variados “bens”; uma ação representa um bem de
várias formas, segundo o tempo, quantidade etc. Aristóteles precisa refutar Platão que
“substancializa” o bem humano, subordinando-o à Ideia Divina. Sua objeção consiste
em quatro argumentos básicos (EN I, 6, 1196a11-1197a14): (i) Não há uma “ideia” de
bem, porque ele se predica tanto nos modos essenciais como nos acidentais; (ii) O
bem se diz de muitos modos (como o ser), portanto ele não pode ser qualquer coisa de
comum, de geral, ou de uno; (iii) Não há ciência do bem – de fato não há uma, mas
uma multiplicidade (estratégia, medicina, ginástica etc.); (iv) O bem não pode ser uma
quididade separada das coisas, tampouco uma verdade universal.
Para Platão, o universal com existência autônoma é atingido pela educação
voltada ao saber. Embora se afaste da metafísica platônica, surge para Aristóteles o
problema de que ao retirar o bem do “inteligível”, situando-o na “práxis”, restará saber
que papel dar ao universal na ação e no bem humanos, questão muito importante para
a exegese de cunho analítico. Aristóteles não aceitará a via platônica de supor uma
intuição de ideias que não passe pela mediação da linguagem – todo real depende da
linguagem para o homem, mas, diferente dos sofistas, considera que a linguagem é
capaz de fazer ciência a partir de seus próprios recursos. Algum nível de abrangência
74
universal aparece, não no âmbito transcendente e abstrato, mas no campo empírico e
concreto.
Um dos inconvenientes da doutrina intelectualista está em postular o Bem
como uma unidade inteligível, algo, portanto passível de ciência. Para Aristóteles,
existem vários bens, tão diversos quanto é diversa a ação humana, a única unidade
geral só pode ser obtida a partir de um fenômeno linguístico diferente de uma simples
homonímia, por que embora ele reúna sob um mesmo nome coisas que não são as
mesmas, essas coisas possuem algum tipo de "imbricação conceitual"50. O bem assim
como o ser, se diz de vários modos, existe o bem enquanto substrato – a felicidade,
enquanto qualidade – a virtude, enquanto quantidade – a medida, segundo o tempo – a
oportunidade, e assim por diante. A doutrina aristotélica da múltipla significação
compreende que não há um sentido que suprassuma todos os outros pela via de um
universal.
Platão supõe uma unidade conceitual e ontológica do bem, que pode ser
acessada não por uma construção discursiva, mas por uma intelecção direta deste, a
custo de uma complexa ciência. Aristóteles rejeita tal projeto ao situar o bem nas ações
concretas, e admitir ramificações conceituais segundo a complexidade concreta da
ação, pois, para ele, o que qualifica uma atividade humana no ponto de vista prático
não pode estar fora dela. Ao enraizar o bem na práxis, surge a dificuldade de não
podermos apreendê-lo segundo uma ontologia categorial, onde o sentido se define por
uma transcendência. O bem humano assim compreendido se funda na experiência,
aspirá-lo com virtude depende de princípios que nascem da contingência.
Porém, embora o bem humano pensado segundo a práxis consista em algo
que não pode ser dissociado do que é material e particular, ele pretende assumir
também, uma forma de algum modo universal, sem se despregar do que é humano,
por isso não se confunde com o que é "convencional". O bem pensado segundo a
práxis, não é da ordem natural, tampouco é ordem meramente convencional, é pois
uma construção humana orientada segundo um lógos em sentido mais forte que o dos
sofistas.
50
Cf. “Sobre a homonímia do bem”, CRUZ, 2004, p.91-114.
75
Como veremos, é preciso supor uma "estrutura referencial" no bem humano
que aspira a uma unidade e universalidade, e que se distancia em muito da politropia e
polimatia sofística.
Rejeição do convencionalismo da Sofística
Diferente dos sofistas, Aristóteles busca um elemento ordenador das
convenções, porém considera que este não transcende o âmbito convencional, o que
encontramos em sua noção de bem. Algo que faz para ele o projeto de uma "formação
geral" algo diverso de uma "formação do caráter" que remete a uma certa unidade,
embora lide com a variabilidade da contingência, dando respostas sempre diferenciadas,
e seu aprendizado se dá nesse lidar com a contingência a partir dela mesma.
Aristóteles defende que de algum modo há uma estrutura formal, um
princípio de inteligibilidade geral que ordena nossas ações e valorações, mesmo que
esse não seja da ordem do conceito, nem remeta a normas ou preceitos universais – é
algo que diz respeito à unidade do caráter e à aquisição e aperfeiçoamento de
determinados hábitos a partir de escolha deliberada.
Aristóteles, embora entenda o bem como convencional (1094b16) e não
relativo à natureza, busca sustentá-lo em algum princípio. Sua dificuldade consiste em
precisar como o bem, mesmo sendo convencionado, não pode ser reduzido a nómos
valorizado pelos sofistas. A dificuldade na ética talvez seja a mesma da sua ontologia em
definir uma teoria geral do signo, só que especificada no campo da significação dos
valores éticos, um problema quanto à “essência” do bem, nada socrático.
Podemos considerar que os argumentos em que busca suplantar a sofística
no plano linguístico nos sirvam para a mesma tarefa no plano ético. Encontramos no livro
gama da Metafísica a fundamentação do princípio da não contradição. Podemos
entender esse texto como a refutação do sofista no seu próprio campo, o da linguagem.51
51
Podemos retomar aqui a tese de Pierre Aubenque de que o pensamento aristotélico é aquele que leva a
sério as provocações da sofística ao mesmo tempo que busca refutá-las. “Il n‟est sans doute pas exagéré
de dire que la spéculation d‟Aristote a eu pour objet principal de répondre aux sophistes (...). Les
76
A teoria aristotélica garante um lugar para a ciência e para isso precisa desmistificar o uso
sofístico da linguagem. A ciência precisa expulsar a polissemia da palavra que permite sua
utilização equívoca, para que ela seja capaz de abordar o conceito.
Aristóteles, diferente de Platão, não acredita em intuição direta do real, toda
realidade humana se constitui na e pela linguagem. Nesse sentido, ele se aproxima dos
sofistas que defendem também que a linguagem é todo o campo do real, portanto
qualquer conhecimento passa pela linguagem. Mas, diferente dos sofistas, a linguagem
para Aristóteles é capaz de portar valor ontológico, ela possibilita verdade e
conhecimento. As palavras são capazes de portar significado, são capazes de imitar
alguma coisa da realidade.
Para haver ciência, é preciso conceito; e para haver conceito é preciso
univocidade; além disso, é preciso supor que a realidade se estruture segundo suas
essências, e que nos seja possível o conhecimento dessas. O sofista como aquele que
se refugia na polissemia dos discursos, terá de admitir, ao menos enquanto fala, que
falar algo com significado, ou então se calar, do contrário seria como soltar ruídos
sentidos pela boca.
No plano da ética, Aristóteles também aplicará sua “semântica”, há, portanto,
um conteúdo significativo expresso no bem humano, ele é convencionado, mas
intenciona algo de real. O problema que nos restará será o de dizer o lógos, isto é, o
significado intencionado pelos valores éticos na concepção aristotélica de virtude.
Será preciso então pensar a fundamentação da significação do bem a partir
da questão da significação em geral para Aristóteles, com um adendo. Se o que
sustenta toda significação é a relação da linguagem com o próprio ser, no campo da
significação ética será a do bem com o lógos da práxis; ora, lembremos que como esta,
se diferencia das artes e da ciência: a técnica e as artes têm por objeto uma produção
externa; a ciência e a teoria realizam o conhecimento ou contemplação de um objeto
externo; já práxis é a atividade humana que produz a si mesma. O que nos fará remeter
apories soulevées par les sophistes renaissent à peine résolues, s‟imposent comme une obsession et
suscitent cet „étonnement‟ toujours renouvelé qui reste, pour Aristote comme pour Platon, le point de
depart de la science et de la philosophie.” Cf. “Être et langage” In AUBENQUE, 2005. P. 94-133.
77
à estrutura de "antecipação circular" da práxis que não pode, todavia, ser assimilada à
questão do ser. (A não ser na hipótese de Heidegger que o ser em geral define seu
sentido pela práxis – práxis desempenhando o papel existencial da facticidade humana,
inserção no mundo, que ele chama de Dasein)52.
Uma significação ética, isto é, o sentido que pode haver numa ação, e que
por isso qualifica ou desqualifica o caráter individual do agente, não pode ser de tipo
estritamente semântico, pois não funciona completamente no nível prático o modelo da
significação unívoca, cuja lógica e certeza garantem a referência necessária de um signo
a uma coisa real no mundo. Porque tanto o que significa (a ação, o caráter), e seu
significado (virtude, felicidade, valor, bem) pertencem a um mesmo domínio.
***
Aristóteles não se preocupa em refutar tão extensamente os sofistas na ética.
Até porque ele já parece o fazer no Organon e no livro gama da Metafísica.
Independentemente da discussão cronológica acerca dos tratados, é bastante razoável
supor que refutação do convencionalismo sofístico acerca da linguagem englobaria
uma refutação do convencionalismo acerca da questão da virtude e da felicidade,
justamente porque é coerente conceber toda a sofística a partir das suas teorias acerca
da linguagem. O lógos sofístico se reduz ao nómos, por um lado, Aristóteles abarca
essa tese (toda ciência, dialética, filosofia, poesia etc. se faz pela linguagem, não há
outro campo, intuição intelectual como queria Platão), por outro, ele rejeita (de alguma
maneira ele pode ter acesso ao real, existe um real).
O bem humano é feito por convenções, é convencionado, porém possui
algum significado ontológico. Ele se situa na imanência, porém se referencia em algo
além. Esse além não é algo objetivo, não é da ordem dos fatos, mas da contingência.
Talvez, a maior dificuldade em Aristóteles seja entendermos sua “ontologia da
contingência”. A maior parte dos estudos aristotélicos se volta para aquilo que é
necessário, para quando a linguagem faz ciência, o que legitima alguns intérpretes de
quererem reduzir não só a ética, mas toda filosofia ao conhecimento científico.
52
Cf. HEIDEGGER, Interprétations Phénoménologiques d‟Aristote, 1992.
78
Dizer que pode haver uma ontologia do fortuito, talvez seja afirmar alguma
forma de contrassenso ou oxímoro. Veremos mais adiante que uma proposta como
essa atraiu muitos heiddegerianos, e o próprio Heiddegger na juventude. O ser da práxis
não pode ser entendido segundo as categorias metafísicas, sua inteligência é deliberativa
(é desejo inteligente, e inteligência desejante) e não calculadora.
Quando do argumento do ergon se conclui que a virtude humana se faz pelo
lógos, a resposta de Aristóteles seria idêntica; para ele, o lógos não possui uma
"estrutura de referencialidade" renegada pelos sofistas. Porém, nossa dificuldade é, sem
dúvida, definir essa referencialidade aristotélica da práxis, uma vez que não pode reduzirse a uma "teoria do significado" (apóphansis) que haveria numa ciência do bem. Qual a
semântica própria da contingência? Que tipo de racionalidade a ação exerce? (E qual o
tipo de racionalidade que nos permite descrever uma ação?) Abordaremos tais questões
no próximo capítulo.
***
Poderíamos ainda destacar o tema acerca da “medida”, e termos um
panorama geral da Paideia, e o lugar onde Aristóteles se destaca. Todavia as
abordagens da “medida” são tão distintas que talvez seja difícil traçar-lhes claramente
o ponto de contato. O que Aristóteles define como justa-medida tem certamente algo
bem diferenciado da “arte da medida” platônica (descrita em nebulosas passagens do
diálogo Protágoras), e do homem-medida de Protágoras. A arte da medida
socrático-platônica aparece em expediente argumentativo muito controverso, por
parecer que Sócrates admite a tese hedonista. De qualquer modo, se ele acata ou
não o hedonismo, ele mostra que mesmo no contexto do hedonismo, o que deve ser
buscado depende de um rigoroso raciocínio, uma espécie de cálculo dos prazeres, e
que ele mesmo não se identifica com o prazer. A medida buscada em tal arte está
referenciada em algo puramente inteligível.
A posição aristotélica da medida introduz também, de certo modo, uma
normatividade na vida passional, e de algum modo a virtude depende de submeter-se os
prazeres e as paixões, de modo geral, a essa norma. Porém, o que define essa medida
não é nada de puramente intelectual, mas a própria conduta dos homens que tomamos
como exemplo. Sem matizar que homens são esses que merecem ser tomados como
79
exemplo, poderíamos assimilar a ética aristotélica ao pensamento protagórico de que o
“homem é a medida de todas as coisas”.
Mas o que diferencia as duas éticas é justamente a definição de que “homem”
aqui se está falando. Para Protagóras, o homem é esse que vemos nos diferentes
costumes, nas diferentes constituições das diferentes sociedades. Aprendemos a agir
melhor, tomar melhores decisões e medidas de governo, observando a variabilidade das
instituições humanas, sem supor-lhes nada que lhes ultrapasse, ou de ideal de como
elas deveriam ser.
Aristóteles considera o mesmo campo que Protágoras, afastando-se mais de
Platão do que desse. Para Aristóteles, o bem humano se encontra na vida das
instituições concretas e ações ordinárias do homem, porém dessas há aquelas
praticadas por um indivíduo determinado, destacado por Aristóteles, o phrónimos. Se
para Protágoras interessa o homem normal – o que só pode ser percebido em
consideração aos diferentes costumes nas diferentes sociedades –, para Aristóteles, a
referência é aquele homem que é a própria norma, por ser aquele que podemos dizer
que é melhor do que os outros (spaudaíos), observável em sua conduta individual e nas
capacidades de conduzir as decisões políticas. Ambos buscam educar para a ação a
partir da observação dos casos concretos da comunidade, mas Aristóteles busca
distinguir aqueles que sirvam para um critério diferenciado.
Há algo observável na crítica aristotélica ao estudo das constituições
desenvolvido pelo círculo de estudos coordenado por Protágoras. Ambas escolas
parecem ter assumido a grande tarefa de compilação e edição de diversas constituições
existentes. Aristóteles critica os estudos protagóricos apontando para uma “falta de
critério” que orientasse o estudo das variadas legislações, que não recaísse em uma
erudição vazia (EN, X, 9 1181a12-1181b22).
A posição aristotélica quanto à medida resgata, em última análise, a
dimensão heroica da ética, por eleger uma figura paradigmática como fonte de todo
critério ético. Poderíamos também apontar como a ética aristotélica exibe uma
80
genealogia na ética aristocrática53, sobretudo nas questões da “visibilidade” ligada à
honra, dependência do valor e louvor, e à censura (quando Aristóteles quer destacar o
campo ético do biológico, por exemplo, não remete a questões do tipo do que deve ser
feito ou evitado, mas do que pode ser digno de louvor ou não), e à estrutura mesma
que faz derivar de um indivíduo exemplar todo valor ético.
***
A partir daqui temos elementos suficientes para situar a posição aristotélica
no grande debate da Paideia, a partir dos eixos analisados.
No ponto de vista da capacitação, sua posição é mais complexa por não se
basear em nenhuma arte ou ciência e propor um outro paradigma, o do caráter. A
educação se direciona para a capacidade de dotar de valores significativos o caráter de
indivíduos, a partir da prática de ações habituais orientadas segundo medida exemplar,
o que ocorre no âmbito da contingência impenetrável a uma intelectualidade pura.
Na definição do tipo normativo, Aristóteles nos apresenta o phronimós,
“homem-medida”, figura exemplar cuja inteligência deliberativa o consagra à excelência
reconhecível. Este é um homem que não deriva sua virtude da investigação científica,
nem de arte liberal, mas de uma prática continuada, de algo que se tornou hábito.
Na questão da unidade das virtudes, ele defende, de certo modo, um
“pluralismo articulado”. E, por fim, na questão dos afetos não defende um modelo de
contenção ou supressão, mas uma moderação, que é uma forma de dar vazão segundo
a medida do lógos, o que se estabelece com uma escuta.
53
Como faz Aubenque no capítulo 1 na “Prudência em Aristóteles” (Cf. AUBENQUE, 2003).
81
III – O problema da formação do caráter
Qualquer pessoa soa, toda pessoa boa soa bem.
Gilberto Gil54
O objetivo deste capítulo é o de mostrar como as virtudes são aprendidas,
deixando de lado, por hora, a questão de como são ensinadas, até porque esta segunda
questão é derivada da primeira. O próprio processo de aquisição é condição para que
ele seja acionado, ou facilitado (ou até dificultado ou bloqueado) pelas intervenções
educacionais. Observando como virtudes são adquiridas temos condições de pensar
como elas são aprendidas ou ensinadas.
Para Aristóteles, virtude é hábito. O que o faz diferir de toda uma tradição
que vê a excelência humana no exercício de faculdades estritamente racionais, ou da
outra que o faz em relação à capacidade técnica de produção. Toda a questão que aqui
se segue é a de como hábitos são desenvolvidos e aperfeiçoados.
Abriremos mão de dois temas fundamentais da ética aristotélica, que em
nossa interpretação se tornam derivados desse. Deixaremos de lado os temas da "justamedida" (mesotés), e o da "felicidade" (eudaimonía), em especial o controverso tópico
da relação entre a vida prática e vida teórica para a consecução da felicidade.
Tornamos esses temas derivados porque vemos na excelência prática a
dimensão própria do homem. Mesmo que Aristóteles tenha inegável tendência de
subordiná-la à vida teórica, ao exercício "daquilo que há de divino em nós", a práxis
aparece, por outro lado, como aquilo de mais humano que há em nós. Se pudermos
aspirar, compartilhar alguma coisa com os deuses, o que certamente só ocorre na
contemplação teórica, onde somos capazes de enxergar o real em sua essência, isso só
ocorreria se e somente se nossa vida mundana estiver em condições excelentes; por
exemplo, não é possível fazer ciência enquanto se está em guerra.
54
“O som da pessoa” in Gil Luminoso, Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006.
82
A virtude para Aristóteles é questão de adquirir bons hábitos, aqueles que
são tais como os dos homens reconhecidamente excelentes. Mas como isso ocorre?
Quais estruturas individuais são mobilizadas nisso? O que há de intelectual e de
emocional nesse processo? Em que sentido esse é um processo que envolve autonomia
ou heteronomia? Ter o homem bom como referência faz recair numa repetição de
costumes estabelecidos ou permite, ao contrário, uma invenção?
Este capítulo prossegue na tentativa de esclarecer tais questões, tendo como
apoio a interpretação de três linhas filosóficas diversas, que muitas vezes divergem
pontualmente, e em outras chegam a se contrapor de maneira excludente.
1) A questão da “escuta”
Entender o que seja a “formação do caráter” nos exige ter em mente, por um
lado, como as virtudes do caráter constituem um bem humano e, por outro, como
hábitos a constituem, e como eles podem ser aprendidos/adquiridos.
Para Aristóteles, o problema ético por excelência é o da Felicidade, que
consiste na plena realização humana, no desenrolar de toda uma vida, o que só ocorre
quando o homem realiza seu télos, sua função própria (ergon), que é precisamente o
lógos. Considerando a alma humana dividida em duas partes, uma que possui o lógos,
e outra não, serão dois os modos do homem realizar-se plenamente: ou pelas virtudes
do intelecto, ou pelas do caráter. No primeiro caso, a virtude consiste em desempenhar
bem o lógos; já no outro caso, virtude consiste em escuta: a parte sem lógos tornandose capaz de seguir (ser persuadido por, obedecer, tornar-se consoante)55 às
55
“Virtue is conditional on two different aspects of human nature: the potentiality to be a rational
being, and an independent potentiality to be emotionally sound.” (GRÖNROOS, 2007, p. 251). O autor
escolhe aqui uma feliz expressão na língua de origem de seu texto: “emotionally sound”, isso porque
consegue sintetizar toda a problemática da escuta presente nas virtudes éticas. O adjetivo "sound" perfaz
aqui uma adequada ambiguidade, pois tanto remete ao que é propriamente sonoro, como ao que está
em boa condição ou é saudável (Considering his age, his body is quite sound), como algo que é
confiável, que demonstra bom juízo (Government bonds are sound investment), como ainda o que é
inteiro, completo ou sólido em um sentido abstrato (How sound is her knowledge of the subject?), ainda,
83
determinações da parte que possui o lógos.
O problema da formação do caráter no sentido de uma educação para a
prática das virtudes surge como decorrência quase imediata do problema ético
fundamental para Aristóteles, e estará concentrado, na compreensão de como se efetiva
tal escuta.
Aristóteles parece distinguir duas atitudes antagônicas frente a um
aprendizado que levaria a uma formação ética: uma que a permite e outra que a
impossibilita. Pois, os
que não obedecem por natureza ao sentimento de vergonha, mas apenas ao
medo, e não se abstêm de praticar más ações porque elas são vis, mas pelo
temor do castigo. Vivendo pelas paixões, buscam os prazeres, e os meios
apropriados ao seu caráter, e evitam as dores contrárias, e nem sequer fazem
ideia do que é nobre e verdadeiramente prazeroso, pois nunca lhe sentiram o
gosto.
(...) Ora, alguns pensam que nos tornamos bons por natureza, outros por
hábito e outros ainda pelo ensino. A contribuição da natureza evidentemente
não depende de nós, mas de certas causas divinas presentes naqueles que são
realmente afortunados; enquanto argumento e ensino, podemos suspeitar, não
são efetivos em todos os homens, mas é preciso antes cultivar na alma do
estudante por meio de hábitos, nobres regozijos, e nobres repulsas, tornandoos capazes, como se prepara a terra que vai nutrir a semente. (1179b4-31)
Há um ponto de partida de toda educação do caráter, que é uma educação
prévia ou pré-disposição à virtude. Que por sua vez não pode ser desenvolvido por
“argumento e ensino”, mas somente à custa do cultivo dos hábitos de “nobres regozijos,
e nobres repulsas”.
na Lógica "sound arguments" são aqueles argumentos que além, de válidos, têm suas premissas como
verdadeiras. Com efeito, Aristóteles indica vários aspectos (que parecem estar na expressão “emotionally
sound” condensados) de como a parte desejante da alma é capaz de seguir (akolouthîen) de modo
adequado ao lógos: por ter uma participação (metékhein lógou); por ser persuadido (peíthesthai); por ser
obediente (épipeithés, peitharkhein); e por escuta (katéhkoon). (Cf. EN I 13, 1202b 13-14; I 7,1018a 4; I
13, 1102 b26, 33). Privilegiamos a palavra “escuta” para uma tal síntese em nossa língua, na medida em
que permite uma condensação similar, desde que associamos no mesmo sematema além dos sentidos
de “seguir”, “obedecer”, e “ouvir”, o da “perfeição”, de modo que associamos o que “soa” com o que é
“são”.
84
Mas se é sobre o solo sensível dos prazeres e das dores que se desenvolve a
formação, essa maturação irá rumar para uma realização do que é relativo ao lógos. O
hábito serve como condição e possibilidade para a realização da racionalidade humana
no campo da prática. O que caracteriza a condução da formação ética é uma disposição
para a escuta. A passagem acima destacada se preocupa em evidenciar a condição de
toda a formação. Como a terra precisa ser fértil para brotar, um aprendiz em ética tem
de ser previamente sensível a esse assunto. O que não significa ser capaz de discernir
conceitualmente seus temas, mas que sinta certos prazeres e dores afinados com os
valores ensinados. A formação trata do desenvolvimento e aperfeiçoamento desse senso
valorativo expresso sensivelmente.
A formação ética é uma educação do caráter através de hábitos. Ela visa
formar um indivíduo para realização de virtudes, que dependem que a parte ativa da
alma escute a parte intelectual. Burnyeat no artigo “Aristotle on learning to be good”,
acrescentará a passagem a outras que estarão em pauta também aqui56. Sua
configuração do que seja a formação ética será adotada, deixando de lado nesta seção
dois dos seus temas principais o do “amadurecimento do senso valorativo”, e o do
“saber prático” que abordaremos na próxima seção no contexto exclusivo de uma
solução analítica. Destacando assim esses dois temas, a doutrina aristotélica da
formação ética se retém em estágio problemático, deixando aberto também a outras
soluções que a por ele apresentada. Vejamos agora então tal colocação do problema.
Embora devamos começar pelo que nos é familiar, isso pode ser feito de
dois modos: algumas coisas são familiares para nós, outras não. É de se presumir que
comecemos pelo que nos é familiar. Essa é a razão porque alguém deva ser bem
educado nos bons hábitos, se estiver afim de ouvir adequadamente as preleções sobre
o que é nobre e justo, e em geral sobre as coisa relativas à pólis.
De início, [como ponto de partida] há o “quê”, e se esse estiver suficientemente
claro para o ouvinte, ele prescindirá do “porquê”. Quem foi bem educado,
possui, ou é capaz de facilmente adquirir esses pontos de partida, enquanto
quem não os possui, tampouco é capaz de adquirir a ambos [nem o “quê”,
nem o “porquê”], que ouça as palavras (que ele retoma) de Hesíodo:
56
Cf. sobre a aquisição de princípio e a distinção entre o quê e o porquê, I,4,1095a14-b15; hábito como
princípio I,7, 1098a33-b4; o amor ao nobre I,8.
85
O melhor dos homens é aquele que tudo sabe por si mesmo,
Bom é aquele que aceita conselhos desse,
mas aquele que nada sabe por si mesmo, nem leva ao coração nada do que
lhe é dito, esse é em verdade uma criatura inútil. (1095b2-13)
Se considerarmos que na passagem acima está se falando sobre as atitudes
frente a uma formação, duas conclusões podem ser tiradas. Uma, que para Aristóteles,
há um nível onde basta saber reconhecer o “quê” seja a virtude; e o outro o do
“porquê”, muito mais fundamental, que permite distinguir uma virtude exercida com
autonomia, daquela virtude que é exercida por uma obediência ou escuta a um pai ou
mestre.
Mas esse não é só um problema da esfera da inter-relação entre os
indivíduos, é também da relação entretida entre as próprias capacidades da alma, que
serão mais ou menos harmoniosas na medida em que uma parte se torna capaz de
“escutar” a outra. É o que vemos no argumento do ergon, por exemplo. E nesse quem
possui o porquê por princípio opera uma escuta entre as partes da sua própria alma, e
aquele que apenas sabe reconhecer que um ato é nobre e justo pela prática desse ato,
toma como princípio a autoridade legítima de algum agente externo que lhe serve de
exemplo.
Ainda não respondemos a questão levantada no capítulo anterior de como o
bem para Aristóteles se ancora no real ou estrutura de referencialiadade. Mas já
podemos afirmar que essa ancoragem segue o caminho do estabelecimento de um
princípio – aquele que o possui de modo autônomo é o mais sábio; e aquele que se
referencia nesse está no caminho de se tornar melhor.
A formação ética se realiza quando há escuta. Uma escuta que se consolida
pela passagem de uma atitude avaliativa “obediente” a uma autoridade externa, a outra
autônoma. De início, basta saber “o que” fazer, sem saber muito bem “por que”, basta
seguir as orientações confiadas, mas esse é um “ponto de partida” apenas “para nós”,
que só irá culminar em uma atitude mais independente quando se principiar do que é
um “ponto de partida” “puro e simples”, e então se sabe o que fazer, e por que fazê-lo
por conta própria. A autonomia nasce de uma obediência “cega”, todavia vai se
desenvolver e consumar por uma obediência de outro tipo, não mais a uma influência
alheia, mas como a escuta que faz o desejo consonante aos desígnios próprios do
lógos.
86
A ética, no ponto de vista de uma investigação sobre a realização do caráter
humano, afirma a necessidade de uma educação. Ninguém se torna virtuoso devido a
sua natureza, mas sim a seus hábitos, que devem ser adquiridos e cultivados. A
problemática de uma formação do caráter gira em torno desse cultivo, mais do que da
sua aquisição. Aristóteles apenas assinala a diferença entre os que são criados segundo
os bons hábitos, e podem desenvolver uma virtude completa e aqueles para quem basta
a presença ostensiva da lei.
A formação do caráter pressupõe uma predisposição geral à virtude, que se
revela em uma atitude obediente a uma autoridade valorosa, expresso no que ele
chama de vergonha (aidós), reconhecível exclusivamente naquele que é capaz de se
envergonhar diante de um desajuste a essa autoridade, independente às punições ou
recompensas. Por sua vez, saber o que valida e efetiva uma autoridade assim investida,
ou o que estabelece tal predisposição à obediência é outro problema.
No problema da formação ética, trata-se de investigar precisamente como
ocorre a passagem de uma atitude da qual derivam suas decisões, e compreensões
valorativas do que lhe foi até então apresentado, para outra à qual podemos atribuir
plenamente decisões e valores, pelo caráter resoluto e bem formado de onde derivam.
É um tipo de formação que pouco depende de um isolado discernimento
(intelectual ou verbal) dos bens que devam ser valorizados eticamente, e muito mais do
impulso para esses. Uma pessoa que “sabe“ que determinada ação é corajosa, supondo
a coragem um valor ético, mas não é capaz de agir assim, não é virtuosa como a outra
que age assim sem saber por que se deva valorizar a coragem, e o faz simplesmente
porque isso lhe é impulsionado por seu próprio desejo ou caráter. Todavia, mesmo sem
saber “dar razões” de sua coragem, ele é capaz de reconhecer como valoroso todo
aquele que supõe agir do mesmo modo se estivesse em seu lugar. Em última instância,
se ele tivesse que explicitar porque teria uma atitude corajosa, seu único argumento
seria que um homem valoroso (spaudaíos) agiria assim57.
57
Outro elemento interessante aqui, da argumentação aristotélica, é que o “valoroso” não
constitui uma classe, mas é composto por “indivíduos exemplares”. Cf. Cap1 de AUBENQUE, 2003.
87
Mas a virtude só se consuma maximamente quando, além da prática
consolidada das ações valorosas, essas deixam de ter referência na autoridade externa, e
passam a ser acompanhadas de uma compreensão do porque se deva valorizá-las. Em
ambos os casos, a parte desejante exerce sua escuta, por fim se direciona ao que diz sua
própria contraparte racional. Aristóteles parece indicar que aprendemos a obedecer a nós
mesmos do mesmo modo que obedecemos a um pai querido ou a um amigo mais sábio.
Interessa-nos aqui reter, da argumentação de Burnyeat, a maneira como ele
entende estar implicados na formação o aprendizado e a transmissão. Algo que
podemos observar não só, de certo modo, quando se trata da mesma formação a que
se dá no ponto de vista do indivíduo e a que passa pelas relações intersubjetivas; mas
que hábitos quando são aprendidos, independente da presença de um mestre, envolvem
de alguma forma uma alteridade.
Na questão da escuta temos prefigurado o problema da transmissão, o
lógos que se apresenta no caráter não sendo o mesmo das demonstrações
matemáticas, é que se revela na “escuta obediente de um pai ou mestre”. Trata-se de
um lógos que exerce uma “fala”, escutada pelo desejo, reverberada pelo ethos. Sendo
assim, o lógos se apresenta como uma “orientação prévia” para o caráter, de modo que
esta orientação pode tanto ser sustentada por um mestre ou internalizada.
Para a ética aristotélica o problema da formação se coloca pela questão do
estabelecimento de uma orientação prévia para a ação a partir da prática de hábitos –
uma orientação que no ensino se personifica na figura do mestre, e no ponto de vista da
aprendizagem pura e simples, numa forma de escuta que culmina na independência do
mestre.
O entendimento do que seja tal escuta se torna um problema para a
interpretação contemporânea que muito diverge sobre o sentido geral do “lógos”,
gerando a controvérsia que nos interessa aqui, a respeito da caracterização do tipo de
conteúdo que orienta a escuta no âmbito da formação ética. Ou bem se admite que tal
orientação é regida por um conteúdo lógico-semântico; ou bem por um conteúdo
existencial; ou ainda por um conteúdo expressivo irredutível à lógica ou à ontologia.
O problema exegético é, portanto, o de explicar como ocorre tal escuta, que
tipo de princípio o lógos opera nela, e como ele se consolida pela formação no estágio
88
da autonomia. A querela se concentra na compreensão do que seja o lógos e, para
respondê-la, vamos começar pelos pensadores analíticos que não têm dúvida: “lógos é
racionalidade”.
2) A visada analítica da questão
Desenvolvimento moral: amadurecimento do senso valorativo
Bunyeat em seu artigo “Aristotle on learning to be good”, já citado, começa
a identificar a virtude com o tipo de saber que é de natureza prática, e com isso afirma
que é devido ao seu “refinamento” que se realiza um desenvolvimento moral. Vejamos
como ele articula este último tema aqui nesta seção.
A formação do caráter se desenvolve pelo amadurecimento de um senso
valorativo, ou saber, que inicialmente é como o daquele indivíduo descrito no poema do
Hesíodo, capaz de escutar e seguir, todavia se conduzido por uma formação adequada,
culminará naquele tipo de indivíduo, que possui um saber em sentido pleno, de modo a
orientar a si mesmo.
Você precisa confiar intuitivamente em alguém que irá guiá-lo, até o dia em
que será capaz de fazê-lo por si mesmo. É necessário para um bom
desenvolvimento moral não apenas que sejam faladas quais são as ações
nobres e justas, mas também que a conduta seja guiada (por um pai ou pelas
instituições sociais) de modo tal que ao fazer isso que lhe é contado como
sendo nobre e justo, você irá descobrir que o que lhe foi falado é verdadeiro.
Você pode começar por tomar em confiança aquilo que virá saber por você
mesmo. (BURNYEAT, 1980, p.74, tradução nossa)
Esse é o esquema da aprendizagem em confiança. Ele apontará para o solo
sensível do amadurecimento do caráter, que não depende do uso de argumentos, mas
do cultivo de certas emoções, e posturas avaliativas, mas que, em última análise, são
baseadas na experiência do prazer ou da dor. Você só sabe se uma coisa é boa se de
fato a aprecia.58
58
Não é pelo aprendizado de uma regra que se aprende a avaliar moralmente as situações, mas pelas
instâncias particulares de avaliação. A cada avaliação se enriquece o arcabouço da experiência avaliativa.
Ora, se não é pela via do universal, isso não implica que ela estará descartada. Zingano em diversos
89
Pode-se saber que praticar determinado esporte é algo bom, mas isso não
significa sentir prazer ao praticá-lo, da mesma forma que um acrático (aquele que é
dotado de “fraqueza de vontade”) sabe como agir de modo virtuoso, mas é incapaz de
fazê-lo. Argumentos têm um alcance limitado para a formação ética, atingem aqueles
dotados de uma boa educação, que já estando acostumados ao prazer com coisas
nobres e justas, são capazes de adentrar no domínio de maiores elaborações sobre
isso, mas se mostram ineficazes no tocante a introduzir alguém nos bons hábitos.
Cabe à elaboração intelectual um papel de refinamento e motivação,
reiterando e revigorando a prática virtuosa. Para aqueles sem nenhuma propensão para
as virtudes, a única coisa que pode ser feita é garantir por meio de honras ou punições
que não ajam contra a virtude, o que jamais fariam por conta de seus próprios desejos.
O que diferencia uma atitude entre alguém que “dá valor” e quem apenas “sabe o
valor”.59
O percurso que o autor descreve em seu artigo é o daquele que aprende as
virtudes, ou como diz o título, a educação do caráter ensina alguém a tornar-se bom.
Destaca que certa atitude de caráter pode ser entendida por uma atitude epistêmica, na
medida em que hábitos são princípios de conhecimento. Temos aquele que sabe por si
mesmo; aquele que segue quem sabe, e o que não sabe, nem segue. A formação ética
gira em torno da transformação do segundo no primeiro, seu objetivo é tornar um
indivíduo que é capaz de seguir quem sabe por si mesmo, naquele que sabe por si
mesmo orientar sua conduta.
Todavia ele enfatiza que se a formação incide sobre uma função cognitiva ou
epistêmica em relação às ações, essas jamais poderiam ser resumidas a estruturas
normativas. “Aristóteles está assinalando para a nossa capacidade de, a partir de uma
série de casos particulares, internalizarmos uma atitude geral avaliativa que não é
redutível a regras ou preceitos.” (Op. cit, p. 72)
artigos irá precisar o papel dos universais na ética aristotélica. Cf. “Paticularismo e Universalismo na Ética
Aristotélica”, ZINGANO, 1996. P. 75-100.
59
Aqui encontramos mais uma vez a resistência aristotélica a uma adesão ao intelecutualismo socráticoplatônico. Mesmo se considerarmos o hábito em uma dimensão cognitiva, encontramos seu fundamento
na prática.
90
No artigo, Burnyeat enfatiza o fato de a formação do caráter incidir sobre
uma atitude avaliativa, irredutível a normas ou preceitos morais e que, todavia,
desempenha uma função cognitiva. Trata-se do “que” possuímos de antemão, cujo
desenvolvimento culmina em um “maduro senso valorativo”, onde se depreende uma
atitude autônoma, aquela que detém o “porquê”.
A ideia é que enquanto o agente estiver realizando ações nobres e justas sem
oferecer a si uma justificação plena, podemos creditar o princípio de sua ação a alguma
autoridade externa, todavia sem a qual jamais será capaz de formar um raciocínio
deliberativo autônomo. Não se trata de uma obediência no sentido de seguimento
estrito de uma norma. Só se é obediente nesse sentido através do medo, do puro
automatismo da punição e recompensa. Trata-se de uma percepção educada, que está
para além da aplicação de regras gerais às circunstâncias particulares60.
Esse senso valorativo de início pode ser creditado à autoridade alheia, mas
na medida em que se aperfeiçoa, se sofistica e amadurece, passa a ser exercido de
outro modo, não mais a título da obediência, mas sim da autonomia. O que está na
base desse senso valorativo é um tipo de saber, o saber prático.
Esquema geral da solução analítica
A visada analítica acerca da questão da escuta pode sem dúvida ser
considerada desde outros matizes, nem sempre congruentes com as colocações de
60
"One reason for the fading of the notion of character in modern ethical theory is that utilitarianism and
Kantianism have commonly been developed as ethics of rules to resolve dilemmas. (...) for Aristotle, the
virtuous man possesses phronesis, „practical wisdom‟, a sensitivity to the morally salient features of
particular situations which goes beyond an ability to apply explicit rules. (…) This view has been revived
in virtue ethics. (…) We cannot postulate a world as seen by both the virtuous and the unvirtuous, and
then explain the moral agency of the virtuous through their possessing some special desire. (...) This has
clear implications for moral education: it should consist in enabling the person to see sensitively, not (or
at least not only) in inculcating rigid and absolute principles. (…) The emphasis in virtue ethics on nonrational factors in moral motivation sits well with the notion of moral sensitivity. And this latter notion
provides another standpoint from which one might criticize the basing of morality on the categorical
imperative. As we have seen, (...) immorality is not necessarily irrational, since moral reasons depend on
the agent‟s desires. Writers (…) who depict practical reason as perceptual can also deny that immorality
is irrational. The unvirtuous lack not any capacity of the theoretical or calculative intellect, but moral
sensitivity." (Cf. “Virtue Ethics”, CRISP. In Enciclp. Routhledge, 1998, 2010).
91
Burnyeat apresentadas. Como, por exemplo, encontramos Groonros61 que insere a
mediação do ímpeto (thumos) na relação entre lógos e desejo. Trata-se de uma solução
bastante inusitada, por se valer do „thumos‟, noção muito pouco empregada por
Aristóteles, considerando-a instância motivacional decisiva, que opera uma mediação
entre racionalidade e desejo.
Poderíamos também levar em conta todas as dificuldades trazidas pela
compreensão inovadora do papel da dialética no seu First Principles on Aristotle,
pontuando melhor em que sentido o hábito dever ser entendido como princípio. Ou
ainda a minuciosa análise da aquisição de hábitos feita por Zingano, que ele considera a
partir da noção de “fixação disposicional”, remetendo às bases metafísicas da ética,
deixando claro que a contingência deixa espaço para um certo tipo de universalidade
que não poderia ser assimilada ao kantismo.
Mas, deixando de lado todas essas variações, podemos remeter alguns
aspectos comuns que reúnem tais propostas em um grupo coeso. Para a visada
analítica, o hábito é um saber prático, e formação do caráter é um desenvolvimento
moral (um improvement). Seja esse saber considerado de forma particularista ou
universalista, tenha esse desenvolvimento o sentido de amadurecimento de um senso,
ou de uma fixação da conduta. Deixemos as querelas internas à analítica de lado.
Podemos já oferecer uma primeira resposta à questão do conteúdo na significação
ética, isto é, aquela que define o lógos que se realiza na ação, sendo que no caso
da analítica esse lógos é uma cognição. Tendo em consideração todas as ressalvas
de dizer que essa é uma cognição prática, é preciso marcar que ela nasce por
habituação (ethísmos) e não abandona nunca sua base sensível. Porém, no nível de
sua estrutura, o hábito possui uma forma de juízo, que tem como lastro a referência (à
natureza humana, aos hábitos dos homens excelentes). Podemos ver que para a
analítica, a formação ética se articula no espaço de uma lógica e de uma semântica,
embora com essa doutrina rechace o intelectualismo e o kantismo, e não deixa de
vislumbrar a dimensão epistêmica subjacente à ética eudaimônica de Aristóteles.
61
Cf. GROENROOS, Goesta. "Listening to Reason in Aristotle's Moral Psychology". 2007.
92
A formação ética assim entendida pode ser pensada pelo modelo da
cumulação, tendo em vista o aspecto gradativo proporcionado na aquisição de saber.
Os exemplos alegóricos que podemos destacar dessa compreensão é do aprendizado
do xadrez e do aprendizado de uma língua.62 São coisas que não aprendemos de uma
vez por todas, mas gradativamente estamos nos aperfeiçoando nelas pela prática.
3)
A solução hermenêutica
A visada analítica não abre mão de que a referência a um objeto real ou
conceitual que seja a origem de todo sentido, considerando a filosofia em geral como
sendo análise da linguagem (evidenciando sua estrutura lógica) e submetendo o
pensamento ao modelo cognitivo da ciência.
A
tradição
hermenêutica
traz
importantes
questões
ao
modelo
“adequacionista” da verdade – que vê na atividade racional consciente o fundamento
das operações do pensamento em geral – dando espaço a um modelo fenomenológico
de verdade, onde real não é o que esconde na referência, mas o que se revela pela
evidência fenomênica. O lógos assim entendido não é algo derivado da realidade, mas
constitutivo desta. As questões da significação e da formação de sentido dizem menos
respeito à adequação e referência, do que ao próprio ser enquanto tal. O discurso deixa
de ser um “instrumento de comunicação”, para ser considerado como constituinte do
próprio ser.
Escolhemos aqui Heidegger como autor privilegiado, deixando de lado outros
intérpretes hermenêuticos importantes com Ricoeur, e Gadamer. Especialmente, nesse
caso, a visada hermenêutica alimenta a construção de sua própria perspectiva a partir
da exegese da obra aristotélica, contrapondo-se frontalmente da visada analítica, em
especial à leitura que fazem de Aristóteles.
Cf. “O que não se pode conseguir pela Vontade – Woody Allen e a lenda intelectualista: Hannah e Suas
Irmãs”, RIVIERA, 2004. p. 31-49.
62
93
Heiddegger
A relação entre a filosofia de Heiddeger de Ser e Tempo, e suas obras
anteriores de juventude, com a obra aristotélica é muito intensa, de modo que alguns
temas exegéticos que extraímos de suas análises da Ética, se confundem com seu
próprio projeto de uma ontologia fundamental.63
Heidegger encontra muitas vezes em Aristóteles o que precisa para combater a
tradição metafísica ocidental (que por alguns pode ser entendida como aristotélica) a partir
de noções dos livros da Metafísica como "ser" (o problema da significação múltipla), e
"fenômeno" (o sentido propriamente aristotélico); e extraído da ética, noções como "práxis"
e "verdade", são centrais em seu pensamento. Embora em sua análise hermenêutica dos
termos gregos pretenda uma exegese aristotélica apurada, o que de fato consegue, acaba
por produzir um pensamento completamente original a partir dessas análises.
O ethos se "forma" para a hermenêutica existencial pela abertura de um novo
horizonte de sentido, diz respeito a uma estrutura existencial do modo de inserção do
homem no mundo, que Heidegger chama de Presença (Dasein). Toda questão do
aperfeiçoamento, das condições materiais, sociais etc., que propiciam a abertura,
pertencem ao reino ôntico apenas, e supõem o horizonte de sentido. Só se torna o que
já se é. É possível que a leitura hermenêutica não negue a possibilidade de um
aperfeiçoamento cumulativo, ou até mesmo de aspectos cognitivos da práxis, mas verá
como isso sempre vai depender de que um determinado horizonte já esteja aberto. O
problema da formação ética nesta perspectiva não é o do “aperfeiçoamento”, mas versa
sobre aquilo que é capaz de modificar (ampliando, transformando) o campo de
possibilidades disponíveis em uma existência.
Superação da analítica
A crítica hermenêutica se coloca ao abordar alguns impasses na teoria
analítica. A solução analítica compreende a formação ética a partir de seis pontos
63
Cf. COURTINE, 1992; AUBENQUE, 2001; VOLPI, s/d.
94
principais já acima destacados: (i) passagem do “quê” ao “porquê”; (ii) medo versus
Vergonha; (iii) constituição de um principio pelo hábito (ethismós); (iv) a “aprendizagem
em confiança; (v) o fundamento estético ou intuitivo da valoração; (vi) formação como
amadurecimento do senso valorativo. Nessa concatenação pode-se perceber três
impasses: (a) superintelectualização; (b) ausência de heroísmo; (c) compromisso com
uma ideia cognitiva de racionalidade.
A perspectiva fenomenológica se esboça pelo interesse do jovem Heidegger
em Aristóteles, na medida em que ele encontra na sua leitura da Ética à Nicômaco
uma ontologia da vida fática, os elementos de uma crítica da “metafísica dos seres
simplesmente dados” (vorhandenheit), de maneira geral, uma prefiguração do projeto
de Ser e Tempo.
Podemos pensar que a noção de Dasein (Presença) tem equivalência com a
de práxis64 em pelo menos quatro aspectos: é uma estrutura que antecipa a si mesma;
se apoia em possibilidades próprias por rechaçar as impróprias (virtude como
equivalente à ideia de autenticidade); construção de um ethos contra os imperativos da
moral (referência a Nietzsche e valorização da eticidade grega); movimento circular de
apropriação.
Sua crítica à perspectiva analítica se constitui por esta afirmar exclusivamente
as possibilidades derivadas da existência. Na analítica está presente uma ideia linear,
cronológica de formação, e ela oferece forte apoio moral à autoridade, o que significa a
mera realização das possibilidades dadas. A questão para a perspectiva hermenêutica
sobre a formação do éthos humano não é a de “como nos tornamos melhores”; mas
“como tornar-se o que se é”.
Torna-te quem tu és: círculo existencial
De modo geral, a visada analítica enxerga a formação pela noção de
amadurecimento do senso valorativo, divergindo talvez em compreensão desse senso,
de sua abrangência universal etc. Já a visada hermenêutica vê na formação um
64
Cf. “Dasein as práxis”, VOLPI, s/d.
95
"círculo", o que descreve o ato de tornar-se o que se é. A postulação de uma ontologia
fundamental vê na condição humana da práxis, não apenas uma qualidade essencial do
homem, mas sua dinâmica própria de realização, sua presença no mundo. Ela postula
haver na temporalidade da formação uma estrutura circular onde o que vem a ser é o
que já, desde sempre, se dava. Tornar-se é uma conquista ontológica, e não uma
progressão cronológica.
O pensamento analítico comunga não apenas de um racionalismo
problemático do ponto de vista histórico, mas de pressupostos ontológicos que a
filosofia existencial hermenêutica critica e rejeita ao buscar a superação da tradição
metafísica que não diferencia o ser daquilo que está sendo.
Marcio Paixão, em O problema da Felicidade em Aristóteles (2002), dará
uma importante contribuição à visada hermenêutica, ao conceber a formação ética
segundo o imperativo de Píndaro, “torna-te quem tu és”, tendo como uma inspiração a
formação “artística” do arqueiro Zen. Na Arte do arqueiro Zen, o mais importante do
que se apreende e desenvolve não tem nada a ver com o manejo do arco, nem com
acertar o alvo, mas com a capacidade que o arqueiro tem de transformar a si, ao atirar
a flecha. A ideia é que a realização da práxis subjaz às atividades de natureza técnica (ou
mesmo teórica). Algo que Paixão retoma de um célebre artigo de Ackrill (“Aristotle on
action”, 1980). Este tem um exemplo paradigmático dessa sobredeterminação da práxis
em atividades de outra natureza: ao consertar a cerca quebrada da casa de um amigo,
desempenhamos, por exemplo, uma atividade técnica, cuja significação prática
concerne a uma virtude (generosidade) e ao exercício da amizade65.
No caso, o importante é distinguir a cronologia dos feitos, da
temporalidade da amizade. Construir ou consertar uma cerca é uma atividade que
65
Ainda sobre a determinação do campo da práxis a partir da questão da amizade: "A verdadeira
autarquia só é alcançada por essa existência ali onde ela menos suspeita, num prazer que ela não
consegue, de forma alguma, avaliar em seu real significado. Tal prazer, o mais autárquico de todos, só se
deixa avaliar corretamente numa outra modalidade de existência, que não possui o seu télos na honra.(...)
o benfeitor é no fundo um 'egoísta' (phílautos), no sentido de que ele reserva para si o que há de melhor e
mais nobilitante na ação: a própria ação de beneficiar alguém. Alguém, por exemplo, que renunciasse a
uma ação nobilitante em benefício de um amigo estaria reservando para si o melhor da própria ação. Isto
não significa que o benfeitor seja 'interesseiro', significa apenas que não há ação que já não seja
interessada. (...) Não há para Aristóteles, como se pode ver facilmente, nenhuma 'razão prática pura'". Cf.
“A raiz da distinção aristotélica entre razão prática e razão teórica”, MORAES, 2007.
96
depende de etapas sucessivas, primeiro a madeira, depois o prego etc. A amizade se
constitui em um tempo que não depende da sucessão, se é amigo ou não se é
amigo, não depende algo gradativo ou cumulativo para a instauração da amizade,
podemos dizer que ela se presentifica em atos generosos, mas não se funda em
nenhum deles. Poderíamos até investigar as condições necessárias para o surgimento
de uma amizade, mas essas não poderiam ser encontradas naquilo que é dado a
uma observação empírica e não poderiam ser ordenadas segundo uma cronologia.
Assim é também, de modo geral, a práxis, encontramos suas manifestações em
coisas que são realizadas, que dependem da sucessão de etapas, porém sua força de
instauração provém de uma temporalidade própria.
Esquema geral da hermenêutica
Temos já condições de esboçar a posição hermenêutica na questão da
escuta. De maneira geral, formar o caráter significa adentrar em um horizonte de
sentido, cabendo a um mestre ser capaz de doar horizontes. A temporalidade do
aprendizado é pensada segundo um “rasgo” que instaura a si, diz respeito a um kairós e
não a um desenvolvimento cronológico. Nesta perspectiva, o modelo de aquisição de
hábito tem de ser outro que o da aquisição de saber, para isso Heidegger traz à tona a
noção de “salto originário”.
O caminho necessário para um tal "salto" aparece na narrativa do filósofo
hermenêutico Eugem Herrigel (A Arte Cavalheiresca do arqueiro Zen, s/d) na busca da
realização da "arte sem arte" preconizada pela cultura Zen. No caso ele é introduzido a
tal proposta ao estudar a prática de tiro com arco, todavia não são as práticas e as
técnicas envolvidas que importam para se atingir um "salto originário". Poderia ter sido
na arte da espada, na arte do arranjo floral. O que importa é a realização de um ato de
engajamento onde o indivíduo realiza nem mais nem menos daquilo que tem de ser
feito. Deste modo, uma ação se torna capaz de estar em sintonia com aquilo que nos
faz ser quem somos, e o agente humano ao agir não faz mais do que realizar uma
escuta do próprio ser. Algo que se realiza mais por um "silenciar", por um "deixar de
fazer" do que qualquer outra coisa que possa ser intencionada. Segundo suas palavras
para se atingir tal estágio da formação:
97
tem que se dar o salto em direção às origens para que viva a Verdade, como
quem está intimamente ligado com ela. Tem que voltar a ser aluno, a ser
principiante, tem que vencer o último e o mais escarpado obstáculo do
caminho, passando por metamorfoses. Se sair vitorioso dessa longa jornada,
então seu destino se consumará no encontro com a Verdade inquembrantável,
com a Verdade que está por cima de todas as verdades e com a amorfa
origem de todas as origens: o Nada que é tudo. Que ele o devore e receba
uma nova vida! (HERRIGEL, s/d, p. 90-91)
4)
Solução estilística
Aqui se inicia a última seção deste capítulo, onde veremos uma interpretação
estilística do lógos. Ela se contrapõe à leitura hermenêutica e fenomenológica, por
criticar a necessidade de uma ontologia na base dos comportamentos éticos, além, de
maneira difusa, de concordar com a crítica de Heidegger não só ao pensamento
analítico, mas a toda concepção de uma racionalidade trans-histórica que tem por
pressuposto uma ideia de natureza humana. Então o fundamento do ergon não haveria
de ser uma “natureza humana”, até porque Aristóteles não poderia utilizar uma noção
tão moderna como essa.
Porém, aqui inicia uma dificuldade nova no tratamento dos textos
aristotélicos, pois essa perspectiva parece, em um primeiro momento, abrir mão de
certos quesitos do rigor analítico, e do cuidado filológico na interpretação, mesmo que
assim imponha uma apropriação textual de um modo completamente original.
A visada analítica tende a compreender a racionalidade como uma faculdade
cognitiva e intelectual humana, interessando, portanto, a ela, retomar um texto filosófico de
qualquer época, na medida em que esse contribua para o esclarecimento das condições de
possibilidade do próprio pensamento e ação, condições, aliás, que não mudam segundo o
devir histórico e, se apresentam variações, essas são de caráter acidental.
A visada fenomenológica trabalha sua leitura no sentido de uma interpretação
hermenêutica: o que por um lado busca o fenômeno que provoca e perfaz um texto (o
que Aristóteles está vendo precisamente quando escreve?), ao mesmo tempo em
que, tenta clarificar seu sentido (lógos) a partir dos seus termos e sintaxes. Ela se
posiciona de forma diversa em relação ao devir da história, enquanto que a analítica
busca perceber, nesse desenrolar, o movimento de um “horizonte de sentido”, i.e., as
condições de significação mudam, assim como os fenômenos que elas revelam.
98
Assim, não podemos simplesmente achar que ao ler um texto grego estamos diante da
sua “verdade”, mas na medida em que pudermos reconstituir, com as ferramentas que
nos couber, o “horizonte de sentido” que o possibilitou, teremos possibilidade de nos
aproximar do fenômeno que se coloca ali. Por isso, a filologia, no sentido do estudo da
utilização dos termos de uma língua em determinada situação epocal, será a grande
disciplina da hermenêutica.
Já a leitura Foucaultiana é bastante diferente, por ser uma espécie de
“filologia crítica”: ele respeita a língua e cultura gregas, sem atentar contra a lógica dos
argumentos. Ela traz, no seu cuidado com a história, tanto a atitude genealógica de
Nietzsche, como as precauções metodológicas da epistemologia histórica de Bachelard
e sua escola. Esta tradição epistemológica é aquela que desmonta a ideia de um razão
trans-histórica, observando as ciências como “demarches” e não como um
desenvolvimento progressivo.
Mas, sobretudo, o que importa é mostrar como uma noção, um termo, é
capaz de ganhar novos sentidos, mudar sua utilização, produzir novas finalidades. E
para isso Foucault percebe dois procedimentos fundamentais66, destacar a proveniência
e a emergência de uma ideia, o que é completamente oposto e contraditório com uma
investigação das origens.
Esse instrumental, Foucault usa na sua juventude, quando ao emprender a
“Arqueologia dos saberes”, investiga as condições (basicamente epistemológicas) de
emergência das ciências humanas. Na sua fase média, servirá de maneira mais
explicitamente nietzcschiana, para empreender uma “Genealogia do poder”, onde
investiga os dispositivos elementares das relações de poder que constituem a vida
subjetiva e intersubjetiva nas sociedades modernas.
Até então, podemos dizer que no autor não havia lugar para o sujeito, em
sentido próprio, na sua teoria. Sua genealogia investiga as relações de assujeitamento,
isto é, como a subjetividade é um produto das relações de poder e de seus dispositivos,
sendo o único contraponto a isso, as resistências.
66
Cf. “Nietzsche, a Genealogia e a História” em Microfísica do Poder.
99
Todavia, nos seus últimos anos de vida irá se dedicar a estudar os gregos, e
a formular uma teoria ética positiva disso. Sua principal influência passa a ser Pierre
Haddot, na sua investigação da filosofia antiga como modo de vida. Foucault aproveitará
todas suas influências para pensar mais uma vez como são os mecanismos que se
apoderam do sujeito para torná-lo quem ele é, só que dessa vez na perspectiva da
liberdade humana e não da sujeição (autonomia e não obediência). Sua questão passa a
ser: como sujeitos são capazes de se responsabilizar pelos mecanismos que os
constituem?
Ele segue as indicações de Haddot67, na ética grega, que perpassa as
preocupações morais dos indivíduos comuns, e ganha contornos conceituais e
doutrinários nos filósofos e moralistas. Ele se volta para o que, no nosso contexto,
chamamos de Paideia grega, diagnosticando que esta tem seus valores voltados para a
“diferenciação ética”, o que significa que está voltada para o desenvolvimento singular
das capacidades individuais.
Estética da existência
Segundo Michel Foucault, a ética do mundo antigo está voltada para as
práticas que conferem um estilo à própria vida, contrastando-se fortemente com a
moral do cristianismo que é centrada na obediência estrita de normas. A ética assim
entendida se vincula ao esforço que o indivíduo tem para afirmar sua liberdade e dar à
sua própria vida uma determinada forma, através da qual é possível reconhecer-se, ser
reconhecido pelos outros, servindo assim à posteridade como exemplo.
Esta elaboração da própria vida como obra de arte pessoal, mesmo que
obedeça a cânones coletivos, de acordo com Foucault, não chegaria ainda a configurar
um código de regras, mas se concentraria em um exercício de natureza “estilística”.
Essa é chave de leitura com a qual podemos retomar a noção aristotélica de caráter, o
Haddot em “O que é filosofia Antiga” e “Exercícios espirituais na Grécia arcaica” terá uma tese
inovadora da historiografia filosófica ao derivar as doutrinas filosóficas dos modos de vida de seus
autores. Destacamos aqui como sua análise serve de referência a Foucault para formular a compreensão
ética dos gregos. Cf. HADDOT, 1995.
67
100
que difere das outras interpretações que concebem o “estilo” como algo derivado de
um critério lógico (como faz a Analítica) ou ontológico (como faz a Hermenêutica
Existencial) subjacente.
Ao abordar o tema do “cuidado de si” em sua contraposição com o
“conhecimento de si” sobrevalorizado pela tradição ocidental “cartesiana”, Foucault
compreende a moral antiga como uma “estética da existência”, ou seja, como um
conjunto de práticas não tanto centradas na obediência a códigos universais, mas como
em práticas que constituem propriamente o indivíduo como sujeito ético.68
No volume II da História da Sexualidade, Foucault deixa claro que não quer
fazer uma história dos comportamentos, tampouco das representações, mas antes da
experiência envolvida na problematização moral. Poderíamos pensar que o foco de toda
problematização moral seja o que está em pauta nas obrigações e interdições
sancionadas por uma moral segundo os costumes ou um determinado código de
conduta. Mas o que Foucault descobre? Que pelo menos em torno da problemática da
austeridade sexual, na Grécia, encontra-se uma enorme preocupação moral em relação
a tópicos que não eram exigidos nem pelos costumes, tampouco por uma legislação.
As exigências de austeridade não eram organizadas numa moral unificada,
coerente, autoritária, e imposta a todos da mesma maneira; elas eram antes de
mais nada um suplemento, como que um „luxo‟ em relação à moral aceita
correntemente. (FOUCAULT, 2006, p. 23)
Foucault mostra, contra uma leitura corrente, que os antigos não teriam sido
nada tolerantes ou indiferentes aos temas que a Igreja e pastoral cristãs exigiam atenção
e austeridade. Porém, a moral cristã se fez valer por preceitos que eram, sobretudo,
constritivos, cujo alcance é universal.
A tese de Foucault é de que a problematização moral não está implicada em
interdição alguma, pois pode haver preocupação lá onde não há obrigação ou proibição.
Mas, antes, o que constitui o núcleo da problematização é o que pode ser elaborado
segundo uma “arte da existência” (techné tou bion), que consiste em
“O gnôthi seautón (Conhece-te a ti mesmo) aparece (...) no quadro mais geral do epimeleía heautôu
(Cuidado de Si) como uma das formas, como uma das consequências, como uma espécie de aplicação
precisa e particular da regra geral: é preciso que tu te ocupes de ti mesmo, que não te esqueças de ti
mesmo, que tomes cuidado consigo mesmo.” (FOUCAULT, 2010, p. 6)
68
101
práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se
fixam regras de conduta, como também procuram se transformar e modificarse em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
valores estéticos e responda certo critério de estilo. (Op. cit, p.15)
Foucault formula os princípios de uma estética da existência, ao abordar
as problematizações morais envolvidas na experiência do prazer sexual (aphrodisias)
na Antiguidade. Interessa a ele como já vimos acima, destacar do campo da
moralidade, algo que não se confunde com a lei ou com a conduta, mas que se
encontra precisamente nas práticas de si. Trata-se de observar as maneiras como o
indivíduo pode dispor de sua liberdade para dar forma e estilo a sua própria vida, em
outros termos, a maneira como o sujeito constitui a si mesmo enquanto sujeito
ético.
A ética aristotélica pode ser pensada a partir de tal princípio, não sem
algumas dificuldades precisas. A primeira é que a análise que Foucault nos faz nesse
ponto (na História da Sexualidade volumes II e III) não privilegia nenhuma escola em
especial, ele assume que irá passar ao largo de uma reconstrução doutrinária, enquanto
aqui nos interessa a reconstrução da doutrina da formação do éthos de Aristóteles. Algo
que deve ser resolvido sem modificar suas bases. Basta estender o campo das
aphrodisias, que define a virtude da temperança, e ampliar para o do ethos, o que
definiria a virtude em geral.
Uma
segunda
dificuldade
reside
na
caracterização
de
renomados
comentadores de Aristóteles que se esforçam por demonstrar sua ética como fundada
em
universais,
e/ou
na
condição
universal
da
racionalidade
humana. Mais
especificamente Foucault chega a considerar o pensamento aristotélico como a fonte
da toda teologia ocidental. Para evitar tal constrangimento podemos remeter a exegese
detalhadíssima de Pierre Aubenque, que considera o aristotelismo de maneira
desvinculada de teologia universalizante, mesmo na elaboração de uma Metafísica.
Estilística do caráter
A estilísca ancora o "bem" não na razão cognitiva, ou no sentido (o que em
última análise significa ancorar no ser), mas nas "práticas espirituais". Seria preciso
retomar à noção aristotélica de "estilo" (lexis) para entendermos melhor de que modo
102
uma articulação material assume uma função de lógos que não se reduz à forma (lógica
ou ontológica).
A defesa mais acurada dessa posição implicaria entrar num complexo debate
acerca da racionalidade que está presente na ação e na investigação ética. Implica em
dizer que o lógos retórico é mais importante nos principais pontos que o lógos
demonstrativo, e teríamos um grande problema em situar a dialética.
Assim considerada, a estilística se apoia diretamente na hermenêutica69, pois
se situa em oposição da ideia de um desenvolvimento cumulativo de um saber prático.
Para a hermenêutica, a questão acerca do particularismo ou universalismo do saber
ético nem se coloca, no máximo seria algo secundário. A formação ética se encontra no
eixo da dinâmica existencial, a escuta é aquela que abre um horizonte de sentido, sua
temporalidade é circular e não cronológica cumulativa.
Por outro lado, podemos pensar que a estilística da existência renuncia ao
plano ontológico na origem, e se funda no plano ôntico. Dar estilo à sua própria vida é
uma questão de práticas existenciais que se desenvolvem numa forma disciplinada.
Algo que se desenvolve não na direção previamente estruturada de um saber, mas de
uma "arte de viver" (tekhné tòn biòn), que deixa sempre aberta a possibilidade de
invenção de novos caminhos. Há um lógos que se intensifica e rebusca, a questão
passa a ser menos a do desenvolvimento, e mais do direcionamento que define um
"estilo".
A visada estilística é aquela mais afinada com uma concepção linguística do
lógos, onde as questões da referência e da interpretação se tornam secundárias em
relação ao que é constitutivo da significação. Nela, o mais importante é a estrutura
diferencial presente na materialidade do significante falado, onde lógos opera pela
combinação e seleção na composição de uma determinada unidade significativa.
A concepção linguística da linguagem é que ela é feita de signos selecionados
e combinados. Falar implica a seleção de certas entidades linguísticas e
69
Seria necessário ainda buscar de maneira mais ampla qual é a relação que Foucault entretém com
a tradição Hermenêutica quando escreve/leciona a "Hermenêutica do Sujeito"? O tema da história do
"esquecimento do ser" recobriria ao da "supressão do 'cuidado de si' pelo 'conhecimento de si'?
103
sua combinação em unidades linguísticas do mais alto grau de complexidade. O signo
sempre remete a outro signo. A formação do significado não depende de relação
alguma com a coisa, mas das capacidades operativas das próprias funções da
linguagem. E duas funções fundamentais são a seleção e a combinação, que formam
as figuras de estilo tão bem abordadas desde a antiguidade pela retórica.
Falar implica em selecionar unidades linguísticas em combinações que
formam unidades maiores. Da seleção de fonemas formamos a palavra, da seleção de
palavras, a frase, de frases, o contexto, e assim por diante. A noção linguística de
significado esvazia grandes pretensões ontológicas, o sentido depende da referência que
um signo pode fazer não a uma coisa, mas a outro signo.
A visada estilística concorda com a hermenêutica no que ela se destaca da
analítica – a crítica ao modelo adequacionista de verdade, e da teoria do significado
derivada deste. Mas ela também se destaca da hermenêutica por dar primazia às
operações do signo sobre o signo, enquanto esta dá primazia do signo com o significado
e com o próprio ser.
Esquema geral da estilística
O problema da escuta (EN, I, 13) se resolve como vimos na via cognitiva, ou
ontológica ou estilística. A solução estilística de Foucault mostra como o indivíduo se
vale de modo criativo dos códigos da cultura para constituir-se como sujeito da ação.
O conteúdo simbólico que uma ação é capaz de portar não será entendido
com um significado reconhecível, ou sentido interpretável, mas antes como uma
expressão (lexis). Algo que se articula no espaço de uma lógica semântica ou ontologia
existencial, mas de uma “arte da existência”. Sua operação não é a do juízo, nem a da
interpretação, mas a “produção de sentido”, da forma como a fala se estrutura na
língua, sendo que a língua não é o código, mas o “tesouro significante”, isto é, o
repositório das invenções passadas. O hábito aqui não é um saber prático, mas uma
técnica de si, que se desenvolve pela pragmática do cuidado (epimeleía). O modelo de
formação ética se encontra na ascese, onde o sujeito se submete a certas práticas que
modificam a si mesmo, tendo o grande exemplo nas técnicas de exame da consciência,
que se aplicam no contexto ético grego, e se diferenciam fundamentalmente da
104
hermenêutica confessional difundida pela pastoral cristã, porque o ser desse sujeito não
é algo que se revela pela sua “autoanálise”, mas é por ela constituído.
Diapasão foucaultiano
O presente trabalho tende a se afinar com a proposta foucaultiana,
justamente por esta ser a que soluciona as questões da práxis, reenviando para o solo
da própria práxis. A perspectiva "estilística" é a mais coerente com a nossa
investigação, justamente por garantir um lugar exclusivo para a capacitação ética no
campo da educação, sem resvalar para modelos cognitivistas ou calcados na sabedoria
originária.
A perspectiva hermenêutica tem muitas contribuições importantes na formação
do pensamento de Foucault cabendo investigar em outro momento precisamente quais
seriam estas. Aqui, o que nos interessa tomar como efetivo é o rechaço da analítica pelo
seu modelo “cognitivista” e tendência ao conservadorismo político, de modo que a
estilística se torna tributária da hermenêutica. Porém, ocorre que nesta última toda
dimensão ética é resolvida pela ontológica70. Deste modo podemos aproximar o tipo de
formação buscada pela hermenêutica com aquela professada pelos pré-socráticos que se
apoiavam numa ontologia da physis, para desenvolver suas práticas e discursos. Pelo
menos, é o que poderíamos enxergar a partir de algumas reflexões foucaultianas.
Foucault define quatro formas de relacionar a verdade à constituição subjetiva
no contexto grego, uma segundo o que ele denomina as formas de “aleturgia”71: a
profecia, a sabedoria, a técnica e a parresia. Ele destaca esta última forma como
aquela que é capaz de sustentar pragmaticamente uma verdade que constitui um
sujeito ético. Enquanto que o modelo da sabedoria72 é o do sábio que porta uma
verdade de modo pessoal, que sustenta seus ensinamentos.
70
Heidegger ao ser questionado por que nunca havia feito algum trabalho em ética, responde que muito
pelo contrário desde sempre já o fizera, que o projeto de uma ontologia fundamental engloba a valoração
ética. Cf. HEIDEGGER, Carta sobre o humanismo, 1967.
71
Aleturgia é o modo de produção da verdade investigado em Foucault (2009), onde interessa não a
determinação de um critério epistemológico, mas a compreensão de como o “dizer verdadeiro” pode ser
relevante para a constituição ética do sujeito.
72
Cf. FOUCAULT, 2009, p.17-18.
105
Le sage est structurellment silencieux. Et s‟il parle, ce n‟est que sollicité par les
questionss de quelqu‟un, ou encore par une situation d‟urgence pour la cité.
C‟est ce qui explique aussi que ses réponses et – en cela, alors, il peut
parfaitement (...) être énigmatiques et laisser ceux auxquels il s‟adresse dans
l‟ignorance ou l‟incertitude de ce que, effectivement, il a dit. Le sage dit ce qui
est, c‟est-à-dire l‟être du monde et des choses. Et si ce dire-vrai de l‟être du
monde et des choses peut pendre valeur de prescription, ce n‟est pas sous la
forme d‟un conseil lié à une conjouncture, mais dans celle d‟ un príncipe
general de conduite. (FOUCAULT, 2010, p.18)
O que Foucault busca nesse contexto é a figura do parresiasta, que sustenta
um modelo de formação ética, coerente com o que apresentamos até agora, e que se
contrasta ponto a ponto com a figura do sábio. Ele não fala por enigmas, seu tempo é
das urgências na cidade. Ele tem o dever de falar, dizer claramente o que tem que dizer,
e intervir no seu tempo, custe o que custar, fazendo disso sua missão.
Não vamos aqui adentrar na questão da parresia levantada por Foucault,
mas interessa marcar que ela é uma conduta privilegiada para se pensar o “cuidado de
si” e a “estética da existência” na ética e Paideia gregas, e também, sobretudo, que esta
compreensão se descola da hermenêutica, na medida que esta última se afina com o
modelo da sabedoria. Sua compreensão busca mostrar como o parresiasta é aquele
capaz de exercer um papel positivo na formação do caráter, justamente por ser aquele
capaz de afinar o discurso de suas práticas, tornando-se um exemplo vivo disso.
Nesse ponto a valorização explícita do "exemplia" por Foucault aparece
como o que há de mais coerente com uma formação e ethos segundo a práxis. O
verdadeiro educador é aquele que consegue servir de exemplo. Ele tem de ser um
formador de critério, e não um formador de opinião. Seus atos têm de refletir um
acordo com seu ensino, antes de possuir ou não coerência formal. Seria estratégico,
portanto, pensar contra Foucault no ponto em que ele enxerga a ética aristotélica como
fundada em princípios transcendentes e universais, e compreendê-la segundo a própria
noção foucaultiana de “estética da existência”, assim deve-se situar a phoronesis
aristotélica na tradição parresiástica do cuidado ético consigo. Deste modo
compreende- se o homem-critério pela sua kaloigathia73, antes que pela sua orthotés.
Aquele que ensina uma prática espiritual ou “prática de si” tem de ser um mestre diferente do professor
universitário que transmite um saber, ou do pregador religioso, ou sábio profético, que transmite uma
verdade, sua função é a de fazer nascer um sujeito, ajudar a produzir um saber que facilite tal ocorrência.
73
106
Deste modo admitimos em grande parte que a dimensão ética precede o
intelecto, o que dificulta, por exemplo, uma definição puramente "intelectual" do
humano. E coloca a compreensão histórica subordinada à arbitrariedade que sustenta a
instauração dos valores éticos, e não apenas a sua justificação racional, que é tardia e
refinada.
Pelo solo de valoração grega, podemos pensar o que sustenta a ética
aristotélica. Para isso, é preciso desmontar toda tendência teologizante em que
possamos derrapar. Talvez a maior ousadia deste trabalho seja enxergar não só o
aristotelismo pela via genealógica, mas a própria noção de práxis como relacionado à
anterioridade da valoração ética sobre o intelecto cognitivo.
Embora a analítica que endossa o aristotelismo tenha forte resistência ao
intelectualismo ético, seu modelo de virtude acaba se aproximando muito com o do
intelectualismo platônico. Enquanto que a hermenêutica, por enraizar o processo na
ontologia, tende a se movimentar no campo da sabedoria pré-socrática. Se quisermos
ser mais coerentes com a hipótese de que o modelo formativo da práxis não deva ser
assimilado a nenhum outro tendemos a endossar a estilística.
Sócrates quando se faz aporético e maiêutico será sempre o grande paradigma de uma empresa tão frágil
e complicada. Porém o Rio de Janeiro conheceu um sujeito dessa magnitude: Clauze Ronald Abreu
(27/10/1940 – 03/05/2004). Embora ensinasse na universidade, Clauze não era um típico professor
universitário, não ensinava filosofia, mas pregava um estilo de vida dedicado ao saber filosófico. Não
ensinava doutrina, mas procedimentos, em especial uma determinada técnica de estudo de textos
clássicos pela recitação em conjunto. Tal prática dos grupos de estudos se assemelhava mais à
organização de uma “célula libertária”, do que a uma disciplina acadêmica, verdadeiras transformações
subjetivas ocorreram nesse processo, que inclusive foi muito hostilizado pela academia a partir da década
de 90. O maior problema “pedagógico” de suas práticas foi o de que não passaram por uma formalização,
(talvez isso nem fosse possível de maneira completa), de modo que com sua morte outros mestres
surgiram, mas sua didática foi extinta. Todavia algumas questões apareciam em tal metodologia: como
guiar uma prática espiritual senão de um modo anárquico e disperso? Como integrar esses que chegam
em um diálogo já em andamento? Quatro pontos poderíamos destacar nessa sua produção estilística de
saber: (i) a abertura ao outro; (ii) deslocamento do lugar do mestre, tornar ridículo o posto; (iii) escutar
um texto antes de analisá-lo; (iv) valorização mais dos efeitos de escuta que os de significado.
107
IV – Considerações finais
1) Por uma doutrina estilística da hexis
O principal resultado do presente trabalho, mais do que nas análises já
empreendidas, está em apontar para a direção de uma tarefa de elaboração doutrinária.
A reafirmação da hipótese inicial, de que se deve pensar a formação ética a partir da
práxis, nos levou a dois resultados distintos: primeiro, que isso implica em pensar que
virtude é hábito (hexis), o que nos enraíza na posição aristotélica acerca da querela da
Paideia; e num segundo momento, que o hábito é mais bem compreendido a partir de
uma abordagem estilística, tal como nos apresenta Foucault na sua interpretação da
ética antiga.
Assumindo esses dois resultados de maneira articulada, estaremos nos
propondo a pensar a doutrina ética aristotélica do hábito a partir da abordagem
estilística. Tal projeto que se assume, teve no presente trabalho apenas o
desenvolvimento de um estágio preparatório e preliminar para uma realização teórica
satisfatória. Podemos agora, no espaço desta conclusão, apontar para alguns pontos e
dificuldades que se colocam, de modo a assim esboçar o arco de tal proposta.
A grande dificuldade de um projeto como esse está, inicialmente, em se
dissociar da tradição que subordina toda a filosofia à teologia da metafísica. Grande
ajuda vem da tradição hermenêutica que busca ver na metafísica aristotélica, entendida
como o estudo que versa sobre “o ente enquanto ente”, algo bem diverso de uma
teologia, e até mesmo de uma ciência ou conhecimento em sentido estrito. Algo que é
evidenciado pelo caráter dialético e especulativo, e segundo alguns intérpretes, o caráter
exclusivamente aporético.
Mas isso não seria de todo suficente. Teríamos de entender melhor que
lógos é esse que se define pelo estilo, e é determinante para o caráter. Investigar melhor
a noção de estilo, "lexis", em que sentido ela pode fundar a de hábito, "hexis". Há nisso
uma série de problemas lógicos e relativos ao funcionamento da linguagem no contexto
ético. A compreensão estilística da doutrina do hábito nos leva a uma "lógica do
caráter", que é pensar como o lógos nas quatro dimensões fundamentais destacadas
108
por Aristóteles (demonstração, dialética, retórica e poética) é capaz de estruturar o
caráter.
Admitindo a validade de uma visada estilística da doutrina aristotélica, e
acatando o interesse de reconstruir o pensamento ético aristotélico por essas bases, nos
responsabilizamos imediatamente por duas tarefas que complementam a legitimação
que empreendemos aqui nesta dissertação. A primeira e mais preparatória é a de
abordar os principais problemas filosóficos e interpretativos que surgem no âmbito de
uma discussão sobre o lógos no contexto da formação do caráter. E, com isso,
estabelecer as condições de reconstruir a ética aristotélica a partir de uma interpretação
fundamentada na compreensão estilística.
2)
Esboço de uma "lógica do caráter"
A principal hipótese da estilística é de que a lexis é o mais fundamental no
lógos da ação. A lexis é uma operação da linguagem que não se fundamenta na
referência ao significado, ou na articulação de princípios dialéticos, mas na própria
dimensão “estilística” da língua falada, suas figuras de linguagem, metáforas e
metonímias.
Levando às últimas consequências podemos pensar que a principal
contribuição teórica de tal hipótese está numa rearticulação da teoria dos quatro
discursos, que pelo menos quanto à formação ética, não devemos encontrar a primazia
do discurso científico, sequer do dialético, mas sim do retórico e poético. Porém, mais
do retórico do que do poético, pois estilo, lexis, nele tem uma função pragmática e não
predominantemente estética.
Todavia seria necessário, sem dúvida, retomar o discurso poético no que
esse apresenta um dos principais vetores da educação para Aristóteles: a educação
musical. No último livro da política, Aristóteles coloca a música em uma posição
privilegiada para a formação ética. Sobretudo destacando sua dimensão catártica.
Caberia investigarmos o porquê, o que sabemos de antemão por esta via interpretativa é
que se música é capaz de influenciar o caráter, não será por qualquer conteúdo
semântico que seja capaz de vincular à sua execução e apreciação.
109
3)
Conclusão
No ponto de vista da cronologia, podemos dizer que a educação funda a
ética, pois a virtude depende de uma aprendizagem calcada em algum tipo de ação
educadora. É preciso o contato com ações nobres e justas para que elas se internalizem
e se tornem integradas às práticas individuais. Trata-se do assunto que vimos no
capítulo II, considerando a educação a partir do ideal grego de formação do homem,
Paideia.
Situamos nosso debate no momento histórico do pensamento antigo
chamado de clássico, onde a Paideia aparece como o fundamento de toda discussão
acerca da educação e dos valores éticos que devem conduzi-la. Consideramos três
posições filosóficas com papel histórico decisivo: a de Platão, a dos sofistas e a de
Aristóteles. Demos primazia à posição aristotélica, na medida em que essa não
subordina a dimensão da práxis a nenhuma outra, nem a do conhecimento como faz
Platão, nem a da técnica artística como fazem os sofistas.
Já na perspectiva do conceito, a transmissão é derivada da forma constitutiva
da virtude. A estrutura de comunicabilidade de um conteúdo interno ao indivíduo é o
que permite a eficácia de qualquer ação educadora. Neste sentido filosófico estrito a
ética funda a educação. Os problemas que aparecem são: Como se dá a
transmissão/comunicação de um conteúdo ético relevante para a formação? Qual a
maneira mais própria de caracterizar esse tipo de conteúdo significativo quanto à
formação ética?
Consideramos aqui três grandes linhas interpretativas contemporâneas: a
analítica, a hermenêutica, e a estilística. No primeiro caso, vimos como a práxis deve
ser pensada em relação ao tipo de saber que lhe é próprio e não pode ser derivada de
uma racionalidade pura. No segundo, como ela pode ser remetida a uma ontologia
fundamental, de modo que interessa pensar o “ser da práxis” como fundando toda e
qualquer prática ou valoração. No terceiro e último, a práxis tem de ser considerada
remetendo ao solo das práticas de si, que são os modos como sujeitos se
responsabilizam por seu próprio modo de ser.
No ponto de vista de uma construção dialogada entre essas três abordagens,
consideramos cada uma delas retendo o que resistiu ao critério da práxis. No primeiro
110
dos casos, da analítica mantivemos a elaboração da questão da escuta nos parâmetros
por ela estabelecida, mas deixamos de lado sua resposta principal e todas as dificuldades
debatidas em seu entorno na contemporaneidade. No caso da hermenêutica, a
contribuição é bastante maior, na medida em que apresenta uma leitura renovadora
do texto aristotélico, e resolve os impasses da analítica deslocando o eixo de análise,
porém o situa num campo pouco favorável a uma valorização extrema da práxis, o
plano ontológico.
Acabamos por ter mais razões para dar adesão à estilística de Foucault,
justamente porque essa se apoia nas conquistas da hermenêutica, e leva um pouco
mais adiante o deslocamento provocado por esta, que retira o eixo principal da ética da
lógica, passando para a ontologia. A radicalização de Foucault leva-o a uma dimensão
pragmática da poética. Algo que reafirma nosso endosso é o fecundo horizonte que se
abre desde uma perspectiva apoiada numa tal Estética da Existência, algo ainda a ser
explorado no seio de uma interpretação contemporânea de Aristóteles.
111
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