A TRANGRESSÃO/RESISTÊNCIA FOUCAULTIANA: UM
PERCURSO POSSÍVEL
Tauami Sales de Paula
Formado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
Atualmente é mestrando em Filosofia pelo programa de pós-graduação da mesma
universidade.
Resumo: Neste artigo mostraremos três momentos do
conceito transgressão/resistência na obra de Michel
Foucault. Para isso, seguiremos a seleção de textos feita pela
comentadora Judith Revel em sua obra Michael Foucault:
conceitos essenciais (2005). No primeiro desses textos,
Prefácio à Transgressão, Foucault irá trabalhar o conceito de
transgressão dizendo que se trata de uma maneira pelo qual
o indivíduo “foge” dos dispositivos de identificação e de
normalização do discurso. Em Não ao sexo rei, uma
entrevista dada pelo filósofo, Foucault falará sobre como o
sexo foi utilizado enquanto ferramenta para certo dizer a
respeito da verdade. Por fim, veremos o texto O sujeito e o
poder. Nele, temos a apresentação de um projeto para uma
ontologia do presente, onde o ponto de partida se torna as
formas de resistência contra os diferentes tipos de poder.
Palavras-chave: Michel Foucault, resistência, transgressão,
relação de poder
THE FOUCAULTIAN TRANSGRESSION/RESISTENSE: A
POSSIBLE COURSE
Abstract: In the following article we will show three
moments of the concept transgression/resistance in the work
of Michel Foucault. For that, we will follow a selection of
texts made by the commentator Judith Revel in her work
Michel Foucault: conceitos fundamentais (2005). In the first
of these texts, Prefácio à transgressão, Foucault will work the
concept of transgression saying that is a way which the
individual “escapes” from the identification mechanisms. In
Não ao sexo rei, an interview given by the philosopher,
Foucault will talk about how sex was utilized as a tool for a
certain discourse about the truth. In the end, we will see the
text O sujeito e o poder. On that, there will be a presentation
of a project of an ontology of the present, where the starter
point is the ways that the forms of resistance against the
different types of power.
Keywords: Michel Foucault, resistance, transgression, power
relation
[372]
Introdução
De fato, é muito comum termos em nossas preconcepções perspectivas
absolutas, atreladas ao senso comum, a respeito de termos como poder.
Facilmente somos levados a acreditar que quando está instituído o poder em um
determinado âmbito, obviamente estamos tratando de uma circunstância em que
um manda e um outro obedece, um é oprimido e um outro é opressor. É verdade
que muitas vezes essa perspectiva se confirma. Contudo, ao analisar a filosofia de
Michel Foucault, veremos que no vocabulário desse autor há algo que escapa
dessa perversa dicotomia.
Foucault parte do lado oposto daquilo que analisa para alcançar o pleno
entendimento de seu objeto. Para compreender a verdade das instituições, se
propôs a ir em direção aos que por ela são restringidos: loucos, torturados,
anormais, encarcerados. A partir do deslocamento oferecido nesse movimento,
vemos a filosofia foucaultiana ganhando corpo e profundidade, permitindo
olhares sobre objetos que jamais, antes do filosofo francês, haviam sido
considerados. Um desses distintos olhares dados pelo pensamento de Foucault é
aquele que buscou a compreensão do que seriam as transgressões/resistência. Em
diferentes momentos de seu pensamento, o autor de Vigiar e Punir se volta para
os meios pelos quais os sujeitos podem fugir ou resistir aos poderes instituídos.
Seguiremos por um dos muitos percursos possíveis para o entendimento
do conceito de transgressão/resistência. Partiremos do trabalho da comentadora
Judith Revel, usando três dos textos do próprio Foucault: Prefácio a Transgressão,
Não ao Sexo Rei e O poder e o sujeito. Optamos pela metodologia dessa
comentadora em específico, pois ela se vale das múltiplas entradas da obra
foucaultiana e da não linearidade do pensamento do filósofo francês (REVEL,
2005, p. 3). Assim sendo, faremos um sobrevoo naquilo que versa especificamente
sobre o conceito escolhido nos textos analisados. Na conclusão, pontuaremos
algumas singularidades apresentadas no termo, dentro do período em que ele foi
desenvolvido pelo filósofo, sem que, com isso, esgotemos a temática.
[373]
Transgressão em Prefácio à Transgressão
Revel nos dirá que Foucault busca, em Prefácio à Transgressão
(FOUCAULT, 2009), detalhar o procedimento identificado como a escrita, pelo
qual o indivíduo é capaz de impedir o sucesso dos mecanismos de identificação,
classificação e normalização existentes nos dispositivos de poder (2005, p. 127).
Esses casos literários, chamados graciosamente de “esotéricos” por Revel, criam,
por meio de uma série de procedimentos linguísticos, uma impossibilidade de
objetificação normativa.
Em 1963, Foucault pega emprestado o conceito de transgressão do escritor
Georges Bataille. O filósofo francês afirma que a transgressão é um gesto relativo
ao limite (2009, p. 32) – portanto, deve ser pensada dentro dessa relação que,
segundo ele, dá densidade aos seres. Existe um jogo entre o limite e a
transgressão; a transgressão ultrapassa e jamais para de ultrapassar o limite
imposto pela linha criada pelo próprio limite. Ela avança e avança novamente, em
uma eterna corrida, que cria um novo horizonte do intransponível.
Isso torna a existência do limite algo crucial para a própria ação da
transposição. Sendo assim, seria possível falar do limite fora dessa relação? E essa
última? Existiria ela para além do momento em que se ultrapassa o próprio
limite? Quando aberto pela transposição, o limite se abre para o ilimitado, sendo
preenchido desse novo conteúdo que antes rejeitava; “a transgressão leva o limite
até o limite de seu ser” (2009, p. 32).
Contudo, essa não é uma relação de opostos. Juntos, diz o filósofo francês,
limite e transposição estariam ligados como em uma espiral. Para tentar deixar
mais clara a complexa imagem que nos está sendo apresentada, Foucault recorre
à ideia de um relâmpago que brilha incandescente contra um céu negro (2009, p.
33). Por um segundo, um profundo e brilhoso contraste surge mediante a
explosão elétrica do raio, que rompe diante das pesadas nuvens sombrias que
pairam no ar. Ambos os elementos precisam da existência um do outro para que
possam ser vislumbrados claramente. O raio não é o oposto da nuvem e a nuvem
não é o oposto do raio. Cada um existe de maneira individual, mas, para que
possamos compreendê-los e enxergá-los, dependemos do espetáculo que ocorre
no segundo em que eles se chocam.
[374]
Foucault afirma que é necessário que nos libertarmos das afinidades
existentes nas associações entre a transgressão e a ética. É preciso parar de pensar
a transgressão nos termos relacionados ao escandaloso ou ao subversivo. Não há
espaço para sonhos revolucionários ou mesmo utopias. Essa transgressão é uma
condição que está para além das rebeldias transgressoras. A transgressão,
prossegue ele, não opõe nada a nada. Ela não triunfa contra os limites que apaga.
Não há vitórias contra quaisquer supostos inimigos. Nada é negativo na
transgressão. Também nada é positivo, uma vez que nenhum conteúdo pode
prendê-la (2009, p.33).
Então, o que temos diante de nós? A transgressão surge para poder trazer
à tona a existência do limite. Dentro dessa relação entre transgressão e limite,
não devemos, sob nenhuma circunstância, carregar os dois termos dos pesados
valores éticos e políticos com os quais eles normalmente são associados. Não há
como trabalhar a transgressão e o limite, tais como estão sendo apresentados
pelo nosso autor, de uma maneira em que esses dois conceitos se opõem. O que
nos parece é que a interdependência desses termos rompe, devido a sua própria
natureza, com a possibilidade de normatização dos discursos onde estão
inseridos justamente por não ser possível colocá-los dentro de uma esquemática
dualista.
Em outras palavras, sempre que temos um ato transgressor, um limite
surge. Nesse rompimento, toda uma nova enxurrada de conteúdo preenche o
espaço que antes estava ocupado pelo próprio limite. Essa ocupação de espaço
não ocorre de modo infinito. Pelo contrário, ela continuará até que um novo
limite passe a contê-la. Com o surgimento desse novo limite, teremos uma
estagnação desse preenchimento de conteúdo. Essa estagnação ficará assim até
que uma nova transgressão ocorra, possibilitando mais um rompimento de
limites e mais uma expansão do conteúdo.
Talvez uma maneira de exemplificar imageticamente esse processo seja
pensarmos em uma represa que é rompida por uma rachadura. Imaginemos que a
água contida pela represa seja o conteúdo que nós falamos anteriormente e que a
represa seja o limite. O conteúdo ficará contido infinitamente, uma vez que a
represa é sólida, se tornado estagnado. Contudo, eis que uma rachadura
[375]
arrebenta com a represa. No momento do rompimento, a água se esvairá de
maneira violenta para fora dos limites da contenção que existia. Esse esvair irá
prosseguir até que a água encontre uma nova represa que a contenha. Quando a
contenção ocorre, apenas mediante um novo rompimento da represa é que a
água irá prosseguir sua expansão para fora.
Rompida a perspectiva dualista dentro da relação transgressão e limite, é
possível aferir que não existe a possibilidade de normatização dos discursos em
que essa relação se apresenta. Porém, dado que a experiência limite analisada é
vivenciada dentro da experiência literária, a análise cobre unicamente esse
campo. Para entender mais profundamente sobre essa questão em um âmbito
macroscópico e social, Foucault observará que se faz necessário avançar para
além das práticas discursivas, ação que não é possível ao se voltar exclusivamente
para a área da literatura.
Revel (2005, p. 127) nos coloca justamente isso. É preciso apresentar a
problemática da transgressão de modo que as práticas não discursivas sejam
contempladas. Foucault deseja pensar de modo a ir além das ações individuais e
conseguir compreender também o coletivo (ibidem). Para tal, o filósofo decide
abandonar a transgressão e avançar sua pesquisa, cunhando um novo conceito, a
resistência. Como veremos adiante, ele terá um sentido muito distinto de seu
predecessor, possibilitando o englobamento de ações coletivas e ações não
discursivas.
Resistência em Não ao Sexo rei
Em Não ao sexo rei Foucault afirma que seu intuito durante seus estudos
sobre as sexualidades seria o de entender como o sexo está ligado à procura da
verdade. Segundo ele, existe no Ocidente, e a partir do cristianismo, um núcleo
no sexo que está atrelado ao devir do ser humano, a “verdade” do sujeito humano.
As proibições e demais movimentos de coibição e confissão dos atos sexuais não
tinham como intuito vetar o sexo ou afastá-lo da consciência; foram um modo de
deslocar a sexualidade para o centro da existência e ligá-lo a alguma salvação de
movimentos obscuros (FOUCAULT, 1979, p. 229). Era preciso transformar o sexo
em discurso para que ele pudesse ser vigiado, observado.
[376]
A história da sexualidade 1: a vontade de saber (2014) deixa claro dois
pontos: 1) que o esclarecimento a respeito das sexualidades não foi feito
unicamente nos planos discursivos, mas também dentro das instituições e das
práticas. Existe um complexo maquinário que coloca a sexualidade no centro de
um grande palco. 2) As sexualidades ocorrem dentro de uma economia de
discursos e práticas. As proibições de certas práticas se faziam dentro dessa
economia, dentro de um conjunto de dispositivos. Nesse conjunto de
mecanismos é que são produzidas as verdades sobre a sexualidade e, uma vez que
elas serão atreladas às subjetividades dos indivíduos, também serão produzidas as
verdades dos sujeitos.
A produção dessas verdades e o modo como elas estão em constante
alteração são um problema fundamental para o autor (1979, p. 230). Ao
compreender o surgimento, a manipulação e a economia das verdades relativas
ao sujeito, até mesmo quando esse entendimento é oriundo de uma análise de
condições históricas já analisadas, temos a possibilidade de deslocar esse
entendimento para o presente e tentar entender melhor aquilo que está
ocorrendo no agora.
A repressão surge como um efeito dos discursos validados enquanto
verdadeiros dentro da sociedade em que eles estão circulando. Essa circulação de
discursos, ou verdades, gera efeitos de ordem não discursiva, entre eles, a própria
repressão (embora a repressão também esteja inserida no âmbito discursivo).
Com isso, tratar as repressões enquanto causas e não efeitos é tomar como
válidos os discursos e as verdades assumidas de antemão por aqueles que
praticam tais repressões.
Além disso, existe a problemática da constituição da sexualidade
produzida dentro desse contexto. Foucault irá dizer que ao se ter uma relação de
opressão sobre uma determinada sexualidade surge a necessidade dessa mesma
sexualidade ser constantemente vigiada (ibidem). Ao que nos parece, nesse
momento do pensamento de nosso autor, a sexualidade não é tomada como algo
que surge naturalmente para o ser humano; ela se desdobra de formas específicas
dentro de contextos específicos, em práticas específicas, mediante o aval de
determinados discursos tomados como verdadeiros.
[377]
Uma vez criadas essas sexualidades, surgirão aqueles que poderão tratar
sobre ela: médicos, psicólogos, biólogos, psiquiatras. Com isso, toda a sexualidade
será enquadrada de modo a caber dentro dos discursos e das práticas
previamente estipuladas pelas instituições responsáveis pela produção desses
discursos. Inseridos nesses meandros, essas autoridades também usarão a questão
da repressão enquanto recurso para validar ou não certa sexualidade. No exemplo
dado por Foucault (ibidem), profissionais da saúde falam sobre a repressão sexual
vivenciada por crianças e adolescentes. Para o filósofo, esse é um formidável
instrumento de controle e de poder. Um indivíduo, aquele aparado pelas
instituições, é responsável por dizer quais os sentimentos que um outro, aquele
que ainda não se encontra ajustado dentro dos discursos e das práticas
previamente validadas, deve sentir ou esperar.
Contudo, isso não é o mesmo que dizer que os movimentos, de
manutenção dos poderes e de contestação desses poderes sejam iguais. Ao
observamos o delicado funcionamento dos mecanismos responsáveis pelo
controle das sexualidades, corremos o risco de acreditar que os movimentos
repreendedores e os movimentos que os combatem possuem o mesmo intuito.
Isso não é verdadeiro. O que ocorre é que os movimentos que se afirmam
mediante condições repressivas o fazem “a partir” de um determinado ponto já
tomado como verdadeiro dentro das relações discursivas (FOUCAULT, 1979, p.
233).
Nos movimentos de contestação existe um deslocamento do discurso para
dentro do dispositivo que está se tentando controlar. Os narradores mudam
juntamente com o discurso. Foucault diz que esse movimento é “a inversão
estratégica de uma ‘mesma’ vontade de verdade” (1979, p. 234). Para exemplificar,
pensemos em grupos minoritários e/ou marginalizados. Esses grupos para
estarem inseridos dentro da sociedade dependem de uma aprovação prévia dos
detentores das verdades. Essa aprovação depende da capacidade deles de se
ajustarem ou não às práticas e aos discursos impostos. Uma vez conscientes de
que as possibilidades de existência dentro da sociedade podem ser mais amplas,
esses grupos abdicam da necessidade de aprovação dos detentores da verdade e
sequestram para eles os mecanismos narrativos dos dispositivos de poder,
[378]
possibilitando a eles uma nova forma de se relacionarem com a própria
sociedade. Temos um novo modo de fabricar verdades, relações, coexistências.
A resistência não é uma substância anterior ou posterior ao poder que ela
enfrenta. “Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea” (FOUCAULT,
1979, p. 241). A partir do momento que temos uma relação de poder, algo distinto
da relação de dominação, há resistência. Compreendendo as relações de poder e
seguindo estratégias específicas é possível modificar as mesmas relações.
Para que as resistências possam enfrentar as verdades impostas pelas
instituições, é necessário que elas estejam inseridas em uma relação com as
instituições. A inventividade, a produtividade e a condição positiva do poder
também devem estar presente nos movimentos que pretendem resistir a ele. Ao
se apoderar dos mecanismos discursivos, ou não-discursivos, os movimentos
marginalizados, antes oprimidos, são capazes de repensar suas próprias
condições, tornando possível uma nova forma de existência. Nesse sentido, é
preciso pensar a resistência enquanto algo que coexiste constantemente com as
relações de poder.
Como foi possível observar, não existe uma quebra com as relações de
poder justamente devido à dependência dos mecanismos utilizados por ela. Não
há libertação das relações de poder, nem mesmo é possível pensar em algo nesse
sentindo.
O
antagonismo
liberdade/poder
se
esvanece
diante
desse
entendimento, dado que sempre serão utilizados os mesmos mecanismos para
estruturar relações. O que ocorre é uma apropriação dos mecanismos que antes
eram monopolizados por determinados grupos e a utilização dessas ferramentas
para construir novas possibilidades para grupos antes oprimidos.
Revel (2005) comenta que as relações de poder estão por toda a parte e que
só é assim pois todos os indivíduos são livres (2005, p. 127). Para a comentadora,
justamente por isso, não é das lutas contra o poder que nascem os embates, mas
essas lutas surgem de determinados efeitos do poder, de certos efeitos de
dominação. Um espaço de combate só existe através das relações de poder, e esse
mesmo espaço só é possível devido às relações propiciadas pela resistência. A
comentadora também estipula um tripé que estrutura as condições da resistência
(2005, p. 128):
[379]
I)
Não faz sentindo pensarmos a resistência enquanto algo que
existe anteriormente ao poder. Como havíamos dito anteriormente, a
relação da resistência com o poder é coextensiva.
II)
A resistência irá se organizar munindo-se das mesmas
ferramentas utilizadas pelo poder para se fazer valer. Ambos se articulam e
se organizam a partir dos mesmos mecanismos, tais como relógios que são
construídos com as mesmas engrenagens, mas com essas peças
organizadas em seus interiores de modos distintos.
III)
Por fim, não é possível pensar em uma exterioridade do
poder, dado que a própria resistência, aquilo que é assumido pelo senso
comum como movimento que busca fugir dos mecanismos do poder,
apenas surge dentro da relação que ele institui com o próprio poder.
Deleuze (1988) também tece um comentário sobre a História da
sexualidade vol.1, justificando a razão desse deslocamento de maneira similar à
que foi apontada por Revel. Ele nos diz que a obra invariavelmente chega ao
impasse em que o poder nos coloca. Agora, compreendida a constância do poder
em todos os aspectos de nossa existência, torna-se impossível o choque com seus
efeitos nas mais ínfimas relações em que estamos inseridos (DELEUZE, 1988, p.
97). Torna-se necessário um movimento que atravessa e reorganiza o conjunto
dado entre as relações de poder e a subjetividade. Assim, nos parece muito
plausível o deslocamento feito nos anos posteriores por Foucault em direção ao
entendimento do sujeito.
Resistência em O sujeito e o poder
Em seu texto de 1963, vimos que Foucault buscou mostrar a experiência
limite, suas possibilidades e como ela ocorria dentro da literatura. Com essa
experiência, o sujeito era capaz de romper com a normalização dos discursos. No
texto seguinte, de 1977, o filósofo, ao falar de maneira mais ampla sobre o
macrossocial e englobar as experiências não-discursivas, se volta para a temática
da verdade. Agora, em 1982, observamos uma volta ao trato do indivíduo, embora
ocorra de modo diferente ao feito em 1963. Aqui, a relação entre sujeito e poder
se torna mais clara e mais ampla.
[380]
Em O sujeito e o poder (1995), Foucault diz que, pelo menos ali, não tem
nenhum interesse em discutir qualquer teoria ou metodologia. Seu intuito, segue
ele, é o de mostrar qual foi o objetivo de todo o seu trabalho, de toda a sua
filosofia. Seu alvo sempre foi “criar uma história dos diferentes modos pelos quais,
em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995, p.
231). Durante seus anos de trabalho acadêmico, esse foi o alvo empreendido ao
longo de sua filosofia.
Ele irá dividir sua obra em três modos de se investigar a transformação dos
seres humanos em sujeitos.
I) Primeiramente, tratou-se de uma investigação que buscava discutir o
estatuto de ciência, como é o exemplo do sujeito do discurso das gramáticas.
Também se encaixa aqui a objetivação do sujeito produtivo na economia.
Acreditamos ser possível lastrear esse raciocino ao efetuarmos a leitura de suas
primeiras obras, oriundas da década de 1960. Áreas como a filologia, a linguística,
a gramática, a história natural, a biologia são meios pelos quais a objetivação do
sujeito produtivo ocorre (FOUCAULT, 1999, p. 232).
II) Num segundo momento, o trabalho de Foucault se interessa em
mostrar como acontece a objetivação do sujeito naquilo que ele chama de
“práticas divisórias” (1995 p.231). Existe uma cisão entre os indivíduos e dentro de
cada um deles. O indivíduo precisa criar dentro de si divisões, tais como a
distinção existente entre o louco e o são, o saudável e o doente, os criminosos e
os ajustados. Nesse movimento de compartimentalização das condições de
normalidade e da não normalidade, temos um movimento de divisão interna e
externa, uma vez que o indivíduo cria dentro de si essas separações e passa a
exercer essas mesmas divisões nas relações que pratica com o social. São postos
para os indivíduos quais locais eles devem ocupar, quais não podem frequentar,
quem são eles dentro de suas ocupações, quem são os outros que não devem ser
vistos como possibilidades de existência, quais instituições são portadoras da
verdade, quais são aquelas que não são dignas da condição de instituição. Como
vemos, é sempre um movimento de cisão, onde dois lados estão em constante
enfretamento.
[381]
III) Por fim, se voltando para o momento presente do texto, Foucault
direciona seus olhos para as formas com que os seres humanos se tornam
sujeitos. Um dos exemplos disso seria o trabalho desenvolvido por Foucault a
respeito das formas de sexualidades, os modos como passamos a nos reconhecer
como sujeitos de sexualidade. Aqui, nos é ligeiramente nebuloso se o filósofo
agrega a essa pesquisa da década de 1980 os trabalhos que havia desenvolvido na
década de 1970 sobre essa mesma temática, uma vez que temos em ambos os
períodos vastas quantidades de textos acerca do assunto.
Contudo, é nítido que Foucault busca o entendimento da formação do
sujeito. O tempo despendido com a temática do poder é justificado por nosso
autor afirmando que quando os sujeitos estão enredados em relações de
produção e significação, também acabam se envolvendo em complexas relações
de poder (FOUCAULT, 1995, p. 232). Percebendo a dificuldade de estudar o tema
do poder, Foucault, de modo engenhoso, buscou entender os modelos legais,
buscou responder à pergunta sobre ‘o que legitima o poder?’. A partir desse
entendimento, a partir da compreensão daquilo que é o poder, é que foi possível
estudar a objetivação do sujeito.
É necessário compreender muito bem a historicidade daquilo que se
estuda sem que se caia no erro de tratar qualquer que seja o objeto analisado de
modo arbitrário, focando-se nas leituras escritas em outros momentos históricos.
Com isso, é possível ir além da historicidade impregnado no objeto,
possibilitando enxergamos quais as condições e acontecimentos ocorreram para
que determinada leitura se sobressaísse às demais. Foucault afirma que é preciso
pensar em uma nova economia das relações de poder.
O que isso significa? Desde Kant (FOUCAULT, 1995, p. 233), a filosofia se
incube do papel de não permitir a razão de ultrapassar os limites que ela possui,
os limites daquilo que é entendido como experiência. Entretanto, juntamente
como isso, na modernidade, também a filosofia ficará incumbida da tarefa de
vigiar os excessivos poderes da racionalidade política. Tendo isso em vista, é
preciso repensar (ou talvez pensar pela primeira vez) nessa relação, nessa
economia que existe entre a racionalidade e os poderes políticos.
[382]
Como a medicina diagnostica o doente, o louco? Quais os processos
envolvidos nesse
diagnosticar? Quais instituições
estão intrinsicamente
relacionadas com esse processo e quais são os benefícios que elas extraem disso?
Ao se fazer essas perguntas, torna-se evidente a não obviedade das
nomenclaturas assumidas e naturalizadas pelos discursos. Não há uma
racionalização ou uma racionalidade. O que temos são várias racionalizações
específicas (ibidem), que validam campos de conhecimento específicos em
momentos históricos específicos.
Com diferentes manifestações de poder, ocorrendo dentro dos processos
de racionalização, um movimento que parte do lado oposto, do lado do louco,
por exemplo, se mostra mais frutífero. Então, ao invés de buscarmos a
compreensão daquilo que é visto como ação sã pela sociedade, devemos tentar
entender primeiro aquilo que é visto como insano. Seguindo essa lógica, melhor é
tentarmos entender a nova economia de poder, voltando nosso olhar para os
meios em que são aplicadas as resistências a esse mesmo poder. Como essa
inversão de olhar é possível compreender quais são os mecanismos, quais são as
estratégias que a racionalidade interna do poder aplica seus ditames.
Então, deve-se localizar os pontos de resistência nas relações de poder e
descobrir seus pontos de aplicação. Deixaríamos de tentar entender o poder
dentro de sua interioridade e levaríamos a análise para junto de seus
antagonismos. A resistência se mostra enquanto uma ferramenta de análise. Com
ela,
podemos
modificar
como
desenvolvemos
a
análise
do
presente,
possibilitando um entendimento mais amplo e sofisticado das estratégias
exercidas pelo poder em seus processos internos e externos.
O conceito de resistência se torna instrumental. Através do olhar
despedido para os locais e os modos em que se exerce qualquer tipo de
resistência ao poder, é possível compreender através de quais mecanismos o
poder opera. Dito isso, é importante tentar entender como os embates, como as
formas de resistência ocorrem dentro das relações de poder. Foucault aponta seis
características desses conflitos (1995, p. 234):
[383]
1.
Essas lutas são “transversais”. Podemos encontrar exemplos
desses embates ocorrendo por todo o mundo.
2.
Os objetivos desses embates ocorrem enquanto efeitos do
poder. Critica-se o modo como a medicina exerce seu poder sobre seus
pacientes, não a própria medicina. Deseja-se modificar as relações de
poder, não as destruir.
3.
São lutas de caráter imediato. Elas estão localizadas entre
instância de poder que estão próximas e não existe um inimigo maior que
deva ser combatido após a resolução do problema.
4.
Esses conflitos questionam o estatuo do indivíduo. A partir
do momento que é preciso resistir a determinada classificação dentro de
uma das muitas esquemáticas do poder, o indivíduo passa a ser
questionado, por ele e pelos demais, a respeito de sua própria condição.
Um movimento forçado para dentro do indivíduo acaba ocorrendo.
5.
Na
ocorrência
de conflitos, a
resistência
se
coloca
diametralmente contra aos privilégios exercidos pelos privilegiados pelos
saberes.
6.
Todos os embates contemporâneos orbitam em torno de
uma mesma questão: “quem somos nós?” (FOUCAULT, 1995, p. 235). A
ignorância por parte da maquinaria estatal, que busca simplificar e
transformar-nos em ferramentas úteis embrutecidas, é rompida no
momento que surge o confronto. O saber, enquanto normatizador de
nossas condições, é questionado diretamente.
O intuito das lutas resultantes das formas de resistência nunca está
relacionado com a destruição de uma instituição de poder ou um grupo ou uma
elite, mas a uma técnica, um dos modos de manifestação, uma forma de poder
(FOUCAULT, 1995, p.235). O embate sempre tem como objetivo a quebra de um
dos determinados efeitos do poder. Essa forma de poder, aquela que consegue
compreender a grandiosidade existente dentro do ato de resistência, contamina a
vida cotidiana do sujeito, categorizando-o com sua própria identidade,
sujeitando-o a uma lei da verdade. Aqui temos o surgimento do sujeito: um
[384]
indivíduo sujeitado pelo controle e dependência, e preso à própria identidade por
uma consciência ou autoconhecimento (ibidem). Nos dois casos, vemos que os
efeitos do poder subjugam o indivíduo, tornando-o sujeito.
Nessa relação entre resistência e poder, as relações de poder surgem
enquanto possibilidades de submissão das ações possíveis do outro (FOUCAULT,
1995, p. 248). Elas assim o fazem mediante os mecanismos utilizados dentro das
relações, chamados por Foucault de estratégias. Como já foi apontado, não é
possível falar de relações de poder de modo a ignorar as possibilidades de
resistência. Sempre existirão resistências nas relações de poder. Essa constatação
implica inerentemente que toda a relação de poder tem em si uma estratégia de
luta, de confronto, contra as formas de resistência. Esse constante embate entre a
relação de poder e a resistência que nela está implícita só será superado quando o
jogo entre as duas for substituído por mecanismos estáveis que encontrem um
modo, com constância mínima, de conduzir a conduta do outro. Em outras
palavras, a superação da luta só acontece quando algum dos lados encontra um
meio estável de ditar o comportamento de seu adversário e esse o aceita sem
muita discordância. Entretanto, nos parece que essa condição de estabilidade será
sempre temporária.
Vemos, então, que em toda a relação de confronto, essencialmente as
relações em que estão inseridas relações de poder e suas resistências, um dos
lados buscará implacavelmente a submissão do outro (FOUCAULT, 1995, p. 248).
Não há como pensar relações de poder sem se pensar em pontos de insubmissão,
pontos de resistência. Ao nos utilizarmos dos mecanismos intrínsecos as relações
de poder, onde estão as insubmissões e as liberdades, nos depararemos
inevitavelmente com as resistências; toda as relações de poder implicam em uma
estratégia de luta, pontos de inversão possíveis. Uma vez que não podemos falar
de resistência fora das relações de poder e vice-e-versa, é possível dizer que toda a
resistência sonha em se tornar relação de poder e toda a relação de poder acaba
por confrontar suas resistências, submetendo-as ao seu crivo ou sendo
substituídas por elas (FOUCAULT, 1995, p. 248).
Apontamentos
[385]
Em 1963, Foucault, ao desenvolver sua análise a respeito das experiências
limites existentes dentro da literatura, parte da perspectiva do sujeito. Dentro da
experiência literária, que faz transparecer o limite, será o sujeito que rompe com
os processos de normatização. Ao menos, tal como a apresentação da temática foi
efetuada pelo filósofo nesse primeiro trato com o conceito, não nos foi possível
observar quais seriam os efeitos práticos que extrapolassem o limite do subjetivo
dessa experiência. Sardinha (2010) afirma que existe um contraste entre os textos
foucaultianos dessa época, inspirados na literatura, e os que vieram
posteriormente. Os primeiros irão buscar, através da transgressão, despedaçar o
sujeito, enquanto o posicionamento das décadas posteriores, na chamada virada
ética, busca preservar o indivíduo (SARDINHA, 2010, p. 178).
Ora, obviamente que é de extrema valia uma experiência que permita ao
sujeito sair das condições de normalidade impostas pelos discursos, contudo,
quais são os efeitos disso no sujeito? Qual a importância desse rompimento com
aquilo que é tido e assumido como aceitável? Quais limites, de fato, são rompidos
nos movimentos de transgressão? Estamos presos unicamente às perspectivas
literárias ou outras artes também podem nos oferecer tais experiências limites?
Muitas limitações surgem mediante uma experiência de rompimento que
ocorre exclusivamente no plano subjetivo e dentro de uma circunstância
extremamente específica. Tratando de uma leitura artística, uma leitura literária,
não seria justo também afirmar que a transgressão ocorre apenas mediante a
compreensão do sujeito que aprecia aquela arte? É preciso ultrapassar esse limite
se a proposta é ter uma compreensão mais ampla a respeito dos processos pelos
quais as possibilidades de resistência ocorrem.
Em 1977, vemos que, Foucault passa a tratar dos modos pelos quais as
relações de poder estão associadas às verdades. Nesse momento, torna-se mais
evidente a exposição de um aparato metodológico, uma maneira que Foucault
acredita ser mais pertinente desenvolver suas análises. Ao se inverter o olhar em
relação ao objeto, ao se abdicar das verdades previamente assumidas no que diz
respeito ao que se está pesquisando, torna-se possível enxergar uma nova
perspectiva sobre aquilo que se analisa. Isso se torna crucial para o que ele
efetuará sobre o conceito de resistência na década de 1980. Contudo, vemos uma
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busca pelo desenvolvimento das características existentes na resistência, dando
uma especial atenção para a forma como ela existe e se relaciona com o poder. O
crucial é destacar a impossibilidade de se pensar a resistência enquanto algo
passível de separação do poder. Ademais, torna-se possível observar, ao menos de
maneira marginal, os modos pelos quais movimentos minoritários/periféricos se
utilizam da resistência para se afirmar, para ir além dos discursos impostos a eles
a respeito de suas identidades.
As questões relacionadas às relações de poder são, de fato, importantes na
obra do nosso autor. Contudo, afirma ele em 1982 que esse não era seu foco. “Meu
objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em
nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995, p. 231).
Como foi possível observar, a resistência foi exposta nesse terceiro momento
enquanto um meio, uma estratégia pelo qual é possível analisar as relações de
poder. Os sujeitos que estão inseridos nas relações de poder, através das formas
de resistência, se tornam capazes de se apropriar das narrativas e repensar suas
próprias constituições.
Além disso, Foucault coloca, com todas as letras, a possibilidade de utilizar
o conceito de resistência enquanto uma ferramenta de análise das relações de
poder. Prado Filho (2012) falará sobre políticas de identidade como “(...) um
conjunto de práticas solidárias de individualização, identificação e normalização”
(PRADO FILHO, 2012, p. 119). Essas mesmas políticas, segundo o comentador,
sendo produtos das instituições estabelecidas na nossa sociedade, são exatamente
o ponto de oposição que surge das análises das resistências.
Vemos também que a resistência é posta como uma forma de submeter o
poder a uma nova condição dentro dessa relação. Dentro do embate entre o
poder e as formas de resistência, o desejo de ambos é sempre se manter enquanto
poder ou se tornar o poder. Dado isso, através de um apoio estratégico, as formas
de resistência permitem uma modificação do poder vigente, ainda que essa
modificação não implique a anulação do poder.
Ao final, Foucault coloca que relação do sujeito deve ser exercida através
das resistências, permitindo que o sujeito lute contra os projetos de
assujeitamento estipulados pelas instituições; “Talvez, o objetivo hoje em dia seja
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não descobrir o que somos, mas recusar o que somos” (FOUCAULT, 1995, p. 239).
Galo (2017) e Prado Filho (2012) dizem que esse problema de magnitude ética,
política, social e filosófica de nossos dias deve ser assumido veementemente,
fazendo que possamos recusar as subjetividades que têm sido impostas tanto
pelos modos de vida capitalista quanto pelos ditames vindos das instituições
estatais.
Uma das possíveis questões que surgiram foi se a possibilidade de
sequestro de narrativas, de modificação dos discursos instituídos enquanto
únicas possibilidades indenitárias, está diretamente ligada ao movimento de
desconectar o discurso das instituições. Como havíamos exemplificado, quando
os movimentos minoritários decidem que serão eles a falar respeito de suas
próprias condições, eles anulam a necessidade de uma de autoridade externa,
antes assumida por instituições médicas, entre outras, para categorizá-los. Então,
para um primeiro movimento de subjetivação, é necessário o rompimento com os
discursos previamente estipulados. Sendo assim, cabe perguntar: só há produção
de subjetividade mediante o enfrentamento de dois discursos à cerca do sujeito?
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