ISSN 1851-9628 (en línea) / ISSN 0325-1217 (impresa)
(Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois [17-38]
Runa /40.2 noviembre-abril (2019)
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doi: 10.34096/runa.v40i2.7110
"
Claudia Fonseca1
doi: 10.34096/runa.v40i2.7110
1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Correo electrónico: claudialwfonseca@gmail.com
Resumo
A base de fontes documentais e entrevistas informais com profissionais com
atuação na área, propomos nesse artigo descrever algumas mudanças no
campo de adoção de crianças e adolescentes no Brasil ao longo dos últimos
trinta anos. Iniciamos por uma observação metodológica: a falta de dados
sistemáticos sobre adoção doméstica. Passamos à consideração de uma ênfase crescente nos últimos anos na adoção pelo Cadastro Nacional de Adoção
(em particular de crianças mais velhas) como solução para o número grande
de jovens em acolhimento institucional. Sugerimos que avança uma visão
pragmática calcada nos direitos individualizados da criança como princípio
norteador das políticas de proteção, ao mesmo tempo que recuam os discursos sobre “justiça social” e “reintegração familiar” associados aos primeiros
anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Trazemos então os debates em
torno de “adoções diretas”, desenvolvendo a hipótese de que, apesar de sua
pouca legitimidade e zero visibilidade nos discursos oficiais, elas exercem
uma grande influência sobre as práticas de adoção no Brasil. Terminamos por
sublinhar certos silêncios no campo de adoção que dificultam tanto a avaliação
de políticas atuais quanto o planejamento de políticas eficazes no futuro.
Palabras clave
Adoção; Acolhimento
institucional; Políticas
públicas; Proteção da infância;
Antropologia da criança e
adolescente
Redescubriendo la adopción en Brasil treinta años despues
del Estatuto da Criança e do Adolescente
Resumen
Sobre la base de fuentes documentales y entrevistas informales a profesionales
que actúan en el área de la adopción de niños, en este artículo proponemos
describir algunas transformaciones en el campo de la adopción de niños y
adolescentes en Brasil a lo largo de los últimos treinta años. Iniciamos con
una observación metodológica: la falta de datos sistemáticos sobre adopción
doméstica. Consideramos luego el énfasis creciente que en los últimos años ha
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.
Key words
Adopción; Acogimiento
institucional; Políticas públicas;
Protección de la infancia;
Antropología de la niñez y de la
adolescencia
Dossier - Artículo invitADo
(Re)descobrindo a adoção no Brasil
trinta anos depois do Estatuto da
Criança e do Adolescente
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tenido la adopción por parte del Registro Nacional de Adopción (en particular
de niños y niñas mayores) como solución para el gran número de jóvenes en
acogimiento institucional. Sugerimos así el avance de una visión pragmática
calcada en los derechos individualizados del niño/a como principio guía de las
políticas de protección, al mismo tiempo que retroceden los discursos sobre
“justicia social” y “reintegración familiar” asociados a los primeros años de
vigencia del Estatuto da Criança e do Adolescente. Volvemos así a los debates
em torno de las “adopciones directas” y desarrollamos la hipótesis de que, a
pesar de su poca legitmidad y cero visibilidad en los discursos oficiales, ellas
ejercen una gran influencia em las prácticas de adopción en Brasil. Finalmente
señalamos ciertos silencios en el campo de la adopción que dificultan tanto la
evaluación de las políticas actuales como la planificación de políticas eficaces
en el futuro.
(Re)discovering child adoption in Brazil thirty years after the
Children’s Code
Abstract
Palavras-chave
Adoption; Institutional care;
Public policies; Juvenile
protection; Anthropology of
children
Based on documental sources and informal interviews with professionals
involved in this theme, we propose in this article to describe changes in the
field of child adoption in Brazil over the past thirty years. We begin with a
methodological observation on the lack of systematic statistics on domestic
adoption. We proceed to consider a growing emphasis in recent years on
adoption through the National Adoption Registry (in particular of older children) as a solution for the large number of youngsters in institutional care.
We suggest that a pragmatic view based on the individualized child’s rights
has gained ground, at the same time that discourses on “social justice” and
“family reintegration”, associated with the beginning years of the Children’s
Code, have been toned down. We then turn to the debates around “direct
adoptions”, raising the hypothesis that, although suffering from doubtful
legitimacy and zero visibility in official discourse, they exert a great influence
on adoption practice in Brazil. We finish by underlining silences in the field
of child adoption that hinder the evaluation of present policies as well as the
planning of effective policies in the future.
No Brasil moderno, a questão de adoção de crianças e adolescentes tem se tornado um assunto cotidiano. De Recife a Porto Alegre, as torcidas de futebol são
brindadas com a projeção nos telões e até a presença viva de adolescentes “em
busca de um lar”. A televisão colabora com entrevistas sobre o tema, pautando
representantes do Ministério Público e do Juizado de Infância que, juntos,
anunciam um novo aplicativo. Com essa tecnologia, candidatos já habilitados
pelo serviço especializado do Juizado podem abrir seus celulares, sobrevoar
uma lista de adolescentes disponíveis para adoção e clicar nos ícones específicos para ver mais informações, incluindo fotos e até vídeos que os próprios
jovens gravaram para se apresentar.
Em abril de 2019, a Corregedoria-Geral da Justiça da Região Sul/Brasil organizou uma audiência pública para apresentar o resultado de várias campanhas
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organizadas ao longo dos últimos dois anos para promover a adoção de
crianças e adolescentes vivendo no sistema público de acolhimento. Além
de praticamente ter dobrado o número anual de adoções na cidade de Porto
Alegre (onde o número “saltou” de 48 para 91 em 2018), as campanhas para
“adoção tardia” pareciam estar surtindo efeito. Ouvindo relatos sobre as diferentes fases (aproximação, estágio de convivência, etc.) do processo adotivo,
a plateia aprendeu com não pouca surpresa que a idade média dos jovens em
questão estava entre 9 e 15 anos… Entre audiências públicas e reportagens na
mídia, tudo parecia apontar para o sucesso de uma “nova cultura de adoção”
sonhada por ativistas desde os anos 90. Enquanto pesquisadora, eu tinha a
nítida impressão de que algo havia mudado desde meus últimos estudos sobre
esse tema, de dez anos atrás (Fonseca 2010).
A partir de minhas primeiras pesquisas etnográficas em bairros populares do
Sul brasileiro, tinha me alinhado (e continuo a me alinhar) com pesquisadoras
que se preocupam com os direitos reprodutivos de famílias pobres vivendo
numa sociedade extremamente desigual (Roberts, 2002; Briggs, 2006, 2012;
Rizzini, Rizzini e Baptista, 2007; Villalta, 2011; Fonseca, Marre, Uziel e Vianna,
2012; Llobet, 2015, 2016; Villalta e Llobet, 2015; Fávero, 2018). Questionava
políticas que pareciam precipitar a destituição do poder familiar sem devida
cautela. Explorava, através do estudo de casos concretos, a violência potencial encerrada no princípio da “ruptura limpa” da adoção plena, capaz de
desapropriar famílias pobres de sua prole, além de provocar uma ruptura
brutal na biografia das crianças. E me sentia encorajada ao documentar os
tímidos avanços das políticas públicas brasileiras nas duas décadas seguintes
à promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente Estatuto da Criança
e do Adolescente [ECA], 1990), período em que os direitos reprodutivos da
mulher e a prioridade dos interesses da criança e do adolescente pareciam
andar juntos. Noções carregadas de estigma (e.g., “a família desestruturada”)
pareciam ter cedido a perspectivas que sublinhavam dinâmicas locais –em
particular, redes familiares e comunitárias de ajuda mútua– que pudessem
ser acionadas numa política de proteção integral para crianças e adolescentes. Conforme as orientações tanto da Convenção dos Direitos da Criança
(Organização das Nações Unidas [ONU], 1989) como do ECA, os gestores
abraçavam a política de “convivência familiar” como indo de par com o interesse prioritário da criança. Considerava-se que as famílias pobres, confrontadas
com oportunidades de trabalho, moradia e ensino muito limitadas, tinham o
direito de receber amparo público, quando necessário, para poder criar seus
descendentes em condições dignas. Dessa maneira, investiam-se esforços na
manutenção das crianças nas suas famílias originais, reservando-se a adoção
como último recurso, em situações excepcionais.
Hoje, olhando para minhas análises de 2009, vejo uma crença ingênua no
progresso linear – como se as conquistas do momento fossem irreversíveis.
Atualmente, na cobertura midiática assim como nos debates públicos, a preocupação com famílias em situação de vulnerabilidade parece sumir atrás
do evidente entusiasmo pela adoção. Inicialmente, tive a sensação de que
muitas bandeiras que erguêramos com tanta fé alguns anos antes tinham sido,
senão descartadas, capturadas e colocadas a serviço de propósitos imprevistos.
Contudo, gostaria de pensar que as coisas não são nunca tão simples quanto
parecem “à primeira vista”. E é nesse intuito que aceitei o convite das organizadoras deste volume. Tomo a oportunidade para tentar sistematizar minhas
percepções sobre mudanças no campo de adoção de crianças e adolescente ao
longo dos últimos anos no Brasil. Assim, as reflexões expressas nos parágrafos
que se seguem não têm a pretensão de ser fruto de uma pesquisa etnográfica
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de fôlego. Antes, a base de fontes documentais e entrevistas informais com
profissionais participando ativamente das políticas atuais, proponho tecer
uma reflexão ensaística – um balão de ensaio a ser contestado, corrigido e
atualizado num futuro momento.
Dados – esclarecimentos e frustrações
Querendo entender tendências a longo prazo nas políticas públicas de adoção,
meu impulso inicial foi de consultar dados disponíveis na Internet. Nessas
minhas buscas, a primeira coisa que salta aos olhos é que a maior parte dos
dados diz respeito à adoção internacional. A relativa abundância de informação
sobre esta –tanto no Brasil, quanto no exterior– existe sem dúvida graças ao
estrito controle das fronteiras nacionais e à necessidade de as crianças adotadas
do exterior terem vistos oficiais de imigração. Porém, essa informação também é de grande interesse para os clientes das inúmeras agências privadas do
hemisfério norte que intermedeiam as adoções internacionais. Saber quais as
restrições em cada país, qual a idade e estado de saúde das crianças disponíveis
para adoção e qual o tempo médio de espera para os vários procedimentos
são informações que ajudam pais adotantes na América do Norte e na Europa
a decidirem seguir uma pista e não outra.
A leitura desses dados nos permite saber que a adoção internacional, embora
ainda popular em determinados países, entrou em declínio em torno de 2004,
caindo de 45.000 em 2004 para 29.000 em 2009 (Selman, 2012). Os Estados
Unidos, responsável por parte importante dessa queda, tem sido ultrapassado pela União Europeia como região que mais recebe crianças adotadas do
exterior. Observadores sugerem que os números caíram em parte por causa
do controle cada vez mais eficaz de adoção em países de onde as crianças
saiam (para o caso brasileiro, ver Fonseca, 2006). Porém, também arriscam a
hipótese de que, com a consolidação do princípio de subsidiariedade nos países do hemisfério sul (atribuindo prioridade sempre a adotantes que residem
no país original da criança), sobravam para adoção internacional apenas as
crianças mais velhas e com problemas de saúde. Diante desse quadro, muitos adotantes –particularmente nos USA– passaram a considerar que tinham
chances iguais ou melhores para conseguir o tipo de criança que desejavam
no seu próprio país.
Sinto, contudo, certa impaciência ao ver a adoção internacional monopolizando
a atenção de pesquisadores. Tudo bem, é o tema que mais interessa nossos
colegas do “Norte” –justamente, os analistas de maior prestígio e influência
(e que circulam mais no Google)–. Mas, mesmo quando trazem observações
críticas sobre a avidez colonialista de pais norteamericanos e europeus procurando importar bebês do Terceiro Mundo, a indignação desses pesquisadores,
com raras exceções, parece usar freios antes de chegar às políticas nacionais
de adoção doméstica.
1. Essas diferenças persistem até
hoje, embora em menor escala.
Ora, a adoção internacional me interessa justamente na medida em que revela
as diferenças entre essas políticas de adoção doméstica. Por exemplo: dados
recentes da União Europeia mostram que, durante muito tempo a quase totalidade de crianças adotadas na França e na Espanha vinha do exterior, enquanto em Portugal a porção desses adotados mal chegava a 1% (Jurviste, Sabbati,
Shreeves e Dimitrova-Stull, 2016).1 Uma explicação plausível para essa discrepância é que, em países como a França, é extremamente difícil anular o
pátrio poder de uma mãe ou um pai que se opõe ao processo. Respeito pela
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opinião dos pais, assim como uma série de medidas de solidariedade social,
fazem com que poucas crianças se tornem disponíveis para a adoção (ver UN
2009; Ribeiro, 2011; Jurviste et al., 2016). Em países onde predomina outra linha
política –uma que permite acelerar a destituição do poder familiar mesmo
contra a vontade dos familiares–, as adoções domésticas tendem a predominar,
enquanto as adoções internacionais são mantidas ao mínimo2.
Certamente, é nos Estados Unidos que encontramos a contabilidade mais
impressionante de adoções domésticas. Todo ano, o Adoption and Foster Care
Analysis and Reporting Systems (AFCARS) libera, em forma de tabelas Excel,
uma pletora estonteante de informações. O analista aprende que no dia 31 de
setembro, 2017, havia 443,000 crianças e adolescentes em abrigos ou famílias
acolhedoras sob a supervisão da administração pública, dos quais cerca de
28% eram considerados disponíveis para adoção (AFCARS, 2018).3 É possível,
a partir dessas tabelas, desdobrar a informação em séries cronológicas para
testar hipóteses sobre tendências ao longo do tempo. Por exemplo, conforme
os dados do sistema, nos últimos dez anos, entre 21 e 24% dos desligamentos
anuais diziam respeito à adoção (em média, cerca de 60.000 adotados por ano).
A idade média das crianças na lista de espera permanece estável, em torno de
8 anos de idade, enquanto a idade média dos adotados está em torno de seis
anos com leve declínio nos últimos anos.4
Só há um problema com essas tabelas: ao que tudo indica, incluem menos da
metade dos casos de adoção nos USA, pois não levam em consideração as
“adoções privadas”, isto é, as das crianças que não passaram pelo sistema de
acolhimento institucional público. Ao invés, passaram diretamente dos pais
biológicos para os pais adotivos, normalmente com a mediação de uma agência
particular especializada em adoção. Enquanto nos trâmites do sistema público,
as adoções são virtualmente de graça (e, ainda, em cerca de 90% dos casos, os
adotantes recebem algum tipo de subsídio mensal), uma adoção pelo sistema
privado pode custar até US$40,000. Estima-se que é no universo de adoções
privadas que encontramos os bebês e crianças na primeira infância tão cobiçados pelos adotantes. Ao completar os dados da AFCARS (que trata exclusivamente de crianças adotadas do sistema nacional de abrigos) com essas
transações mediadas por órgãos do setor privado, não só o total de adoções
nos USA aumenta (para entre 120,000 a 135,000 por ano),(Johnston, 2017) mas
muda consideravelmente nossa percepção sobre a idade dos adotados. Ao que
tudo indica, o quadro se aproximaria do da Inglaterra onde a grande maioria
de adotados são bebês ou estão nos primeiros anos da vida.5
No Brasil, não faltam dados que aparecem com frequência impressionante,
em forma de porcentagens e gráficos, na mídia popular. Confeccionados a
partir do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), inaugurado em 2008, pautam
em geral a) o descompasso entre o número de postulantes a paternidade adotiva na fila de espera (cerca de 45.000) e o número de jovens disponíveis para
a adoção (cerca de 5.000);6 e b) o desacerto entre o perfil desejado por postulantes (crianças na primeira infância, de pele clara, em boa saúde) e o perfil
de crianças disponíveis para adoção. Disponibilizada online pelo Conselho
Nacional de Justiça, essa informação– sempre com dados atualizados sobre o
ano em curso –pode ser de grande valia para pessoas que se interessam em
adotar uma criança do sistema institucional de acolhimento. Entretanto, no
site, faltam dados importantes que ajudariam o pesquisador a melhor entender
o funcionamento do sistema –por exemplo, sobre o número e perfil de crianças
e adolescente efetivamente adotados. No site, tampouco se encontram dados
de anos anteriores que possam facilitar uma análise de mudanças no tempo.7
2. Devemos lembrar que, por
falta de uma “harmonização” de
metodologias, a comparação de dados nacionais é sempre um tanto
arriscada. Para dar apenas um
exemplo desse tipo de dificuldade,
alguns países incluem adoções unilaterais (por padrastos) dentro da
categoria “adoções domésticas”,
outros não (Jurviste et al., 2016).
3. Em 2017, ao todo, transitaram
691,000 crianças pelo sistema
público de acolhimento.
4. Nos USA, das crianças
adotadas do sistema de abrigos,
cerca de 2% tem 16 anos ou
mais (AFCARS, 2019).
5. Na Inglaterra, 70% das crianças
adotadas tem 4 anos de idade ou
menos. Ver Statista (sin hecha) .
6. Números de 2018, disponíveis
no site do CNJ: http://www.cnj.
jus.br/cnanovo/pages/publico/
index.jsf, consultado 5/5/2019.
7. Atualmente, o CNJ está
implantando um novo sistema
que talvez responda a nossas
perguntas; porém ainda está em
construção. Ver: https://sistemas.
tjes.jus.br/sigacna/ Cabe pensar
o que a relativa inacessibilidade
(ou mesmo inexistência) de informações sobre adoção doméstica
significa para as possibilidades de
avaliar e, eventualmente, aprimorar
o sistema nacional de proteção…
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8. Neste artigo, uso “adoção
direta” e “adoção intuitu personae” como intercambiáveis.
Para nossos propósitos, a limitação mais importante desses dados é que dizem
respeito apenas aos jovens em acolhimento institucional que passam pelos
serviços públicos de colocação. Não há, em lugar nenhum, informação sobre
as adoções “diretas” (intuitu personae)8 que ocorrem por fora do Cadastro
Nacional de Adoção. Não obstante, estimativas colocam essas adoções em
número igual senão superior às adoções ultra-visibilizadas do CNA (ver, por
exemplo, Oliveira e Bandeira, 2010). Nesse caso, a profusão de estatísticas
divulgada pela mídia pode ser –tal como no caso norte-americano– enganadora, justamente por não incluir a proporção de transações que, apesar de
legais, são arranjadas entre particulares, chegando por último nos tribunais,
apenas para receber o “carimbo” do juiz. Apesar dessas adoções diretas serem
essencialmente invisíveis nos dados quantitativos, desenvolveremos ao longo
deste artigo o argumento de que elas exercem uma grande influência, sendo
produto e produtor das políticas de proteção a crianças e adolescentes no
Brasil.
Adoção não é solução: A ascensão e queda da tendência
“justiça social”
9. Núcleo de Antropologia e Cidadania.
Entre 2005 e 2006, a equipe do NACI/UFRGS9 foi contratada por autoridades
locais para realizar análises no sistema de proteção de crianças e adolescentes
na área metropolitana de Porto Alegre (Fonseca e Schuch, 2009). Concentramos
nossas atenções nos abrigos residenciais voltados para crianças que, por um
motivo ou outro, não podiam contar com o apoio de suas famílias. Nos anos
90, nosso estado (Rio Grande do Sul) tinha investido um enorme esforço na
desinstitucionalização dos jovens abrigados. O maior orfanato público (com
capacidade de cerca de 500 internos) tinha sido desmontado. A política de
então, conforme as orientações do ECA, era acolher crianças e adolescentes,
quando necessário, em pequenas unidades, integradas na vida comunitária
de bairros residenciais, onde conviveriam com meninos e meninas, mais velhos
e mais jovens, num ambiente mais próximo possível ao de uma “família normal” (Fonseca e Cardarello, 2005).
Nossa equipe visitou unidades de todas as categorias –municipais e estaduais;
públicas, filantrópicas e conveniadas e não conveniadas– incluídas na rede oficial. Embora encontrássemos situações lamentáveis que mantinham a estrutura
das instituições totais, também encontramos unidades, conforme o modelo
“casa-lar”, que pareciam funcionar razoavelmente bem. Conhecemos jovens
como Lúcia, por exemplo –uma menina, doze anos de idade, que há mais de
quatro anos, tinha vindo morar, junto ao seu irmão menor, numa unidade da
rede estadual– uma residência igual a qualquer outra casa dessa vizinhança
(classe média) perto do centro de Porto Alegre. A menina mostrava com orgulho os certificados de êxito escolar colocados na parede perto dos enfeites mais
pessoais na cabeceira de sua cama. Falava de amigos na escola pública para
onde ia a pé todos os dias; contava sobre amizades e brigas com seus “irmãos”
da casa. Também se referia com evidente afeto à cozinheira –a senhora que
há muitos anos preparava e presidia as refeições dessa “família”. Apesar de
separada por alguns anos do convívio de sua mãe, pessoa com deficiência
cognitiva, mantinha contato episódico com ela, e também –de forma mais
frequente– com uma tia materna.
Esse abrigo não era muito diferente de outro, também da rede estadual, localizado na rua atrás de minha própria casa; nos fins de semana, meu neto jogava
bola com alguns dos residentes na praça principal do bairro. Assim,
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experiências pessoais e profissionais reforçaram minha impressão de que,
entre 1995 e 2010, houve um momento áureo do “reordenamento” do sistema
de proteção. A política de então foi orquestrada por ativistas que, imbuídos
do entusiasmo da reabertura democrática,10 tinham participado da formulação
e implementação de, além do ECA, uma série de leis de assistência social que
promoviam os direitos de pessoas classicamente marginalizadas.11 Projetavase um sistema de proteção de crianças e adolescentes integrado numa política
dinâmica voltada para a melhoraria das condições de vida de famílias vivendo
abaixo da linha de pobreza. Almejava-se a consolidação e expansão de políticas
tais como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada, creches públicas e o aumento do salário mínimo.
Um tom otimista prevalecia nas repetidas afirmações quanto à transitoriedade do acolhimento institucional. E houve esforços tímidos para dinamizar
o sistema de acolhimento com modelos variados, incluindo, por exemplo,
famílias acolhedoras nas quais os abrigados são cuidados, completamente
fora do ambiente institucional, por famílias “normais” – algumas fornecendo
apoio voluntário, outras recebendo uma ajuda de custo mensal (Rizzini et
al., 2007; Costa e Rossetti-Ferreira, 2009; Moraes, Pauly e dos Santos, 2012).
Frisando sempre que a “família substituta” (leia-se, adotiva) era uma medida
excepcional, a ser acionada só em circunstâncias extremas, os textos oficiais
–desde o ECA até o Plano nacional de promoção, proteção e defesa do direito de
crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária (CONANDA/MDS,
2006) e a reformulação do ECA (Lei 12.010/09)– davam prioridade rotineira
à manutenção de vínculos entre os jovens acolhidos e suas famílias de origem.
Em outras palavras, a proteção à infância se integrava numa filosofia ampla
de “justiça social”.
Contudo, as inovações propostas nas diversas leis e políticas sociais enfrentaram dificuldades para ser efetivadas. No Brasil de 2011, estima-se que, não
obstante as recomendações do Plano, ainda havia menos de 3,5% dos jovens
abrigados vivendo em famílias acolhedoras (Ribeiro e Moraes, 2015). E até
2013, pelo menos no Rio Grande do Sul, havia sinais que administradores estavam recuando dos projetos idealizados pelo ECA. Soube, por exemplo, que a
casa onde morava nossa interlocutora Lúcia tinha sido desalugada e os jovens
internos enviados para um bairro afastado do centro onde viveriam, junto
com os moradores de quatro outras residências, numa espécie de condomínio
fechado, tendo como vizinhos apenas outras crianças e adolescentes acolhidos.
O abrigo residencial perto de minha casa também sumiu. Ao consultar amigos
que trabalhavam na Fundação de Proteção Especial responsável por parte do
acolhimento institucional, soube que as mudanças tinham sido justificadas
por argumentos logísticos. A equipe técnica –psicólogos e outros profissionais
da rede funcional– achava complicado supervisionar casas espalhadas em
diferentes localidades; o agrupamento de unidades simplificaria o trabalho,
permitindo que passassem menos tempo em trânsito e, por conseguinte, mais
tempo em atendimentos. Assim, revertendo uma tendência –de privilegiar
pequenas unidades residenciais bem integradas nos seus respectivos bairros–
que tinha vigorado durante cerca de quinze anos, os investimentos voltavam
para os “núcleos” de abrigos – casas agrupadas em grandes terrenos arborizados, nas zonas periféricas da cidade.
Ao mesmo tempo, houve uma progressiva terceirização dos quadros do sistema de acolhimento, integrando profissionais com um tênue vínculo empregatício. Os funcionários da nova geração não tinham vivido o espírito
mobilizador que reinava durante a formulação do ECA e das políticas
10. Período marcado pela Lei da
Anistia (1979), o Movimento de
“Diretas Já” (1983-4) culminando
na primeira eleição presidencial
depois de vinte anos de ditadura
militar e a nova Constituição (1988).
11. E.G. – a Lei Orgânica de Assistência Social (1993), o Sistema Único de Assistência Social (2005), etc.
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12. Conselho Regional de
Assistência Social, Centro de
Referência de Assistência Social.
13. Ver Llobet (2015) para uma
análise instigadora sobre os
“efeitos paradoxais” da institucionalização do discurso dos direitos
das crianças na Argentina.
subsequentes de assistência social. Não tendo participado da criação dos primeiros CRESS e CREAS,12 tampouco pareciam tão criativos em tomar iniciativas para aprimorar o sistema. Parecia faltar às equipes, pessoas, recursos e
tempo suficientes para efetivamente ajudarem as famílias dos abrigados a “se
organizar”. Por conseguinte, um número crescente de jovens e adolescentes
(beirando agora 50.000) podia ficar longos anos no abrigo à espera de uma
solução para seu caso.
A verdade é que, a consolidação de um “novo paradigma”, como tinha sido
proposto durante os anos 90, exige um trabalho intensivo, a longo prazo. Exige
o esforço contínuo de uma rede institucional com, se não os mesmos atores,
pelo menos a mesma filosofia norteadora. O que acontece quando os ativistas
se aposentam e a gestão política identificada com o “novo paradigma” sai do
poder? Quando as persistentes denúncias das péssimas condições em alguns
abrigos, e o número sempre ascendente de jovens transitando por essas instituições passa a ser o único fio condutor dos debates? De todo modo, como
veremos a seguir, tudo indica que houve, na segunda década desse milênio,
um recuo do modelo “justiça social” para uma visão mais pragmática calcada
nos direitos individualizados da criança como princípio norteador das políticas
de proteção.13
A adoção como solução para alguns: adolescentes abrigados e
a adoção tardia em destaque
Em torno de 2010, um interesse renovado pela adoção decorreu em parte
do reconhecimento de que a “reintegração familiar” era um ideal de difícil
realização. De fato, a adoção nunca tinha deixado de constar como uma entre
outras “soluções” para a infância em situação de vulnerabilidade. Nos Grupos
de Apoio à Adoção, havia desde o início ativistas apostando na adoção como
medida pragmática para garantir uma vida digna aos jovens abrigados. Mas,
nos vinte anos que se seguiram à promulgação do ECA, ninguém ousava
publicamente desviar do discurso que definia a adoção como uma “medida
excepcional”, a ser acionada apenas quando todas as outras alternativas (em
particular, a possibilidade de reintegração familiar) tinham sido esgotadas.
Com o tempo, a compreensão dos gestores se modificava. Para muitos dos
novos quadros, não obstante exemplos bem-sucedidos (Rocha, Arpini e
Savegnago, 2015; Mastroianni et al., 2018), era “evidente” que a orientação
que imperava em anos recentes tinha falido, permitindo a eternização de violações contra os direitos das crianças no sistema institucional. Agora, médicos,
psicólogos e especialistas na área jurídica se juntavam aos Grupos de Apoio
à Adoção para questionar a “excepcionalidade” da adoção, ressignificando o
próprio “direito a convivência familiar”. A noção se referia cada vez menos à
“manutenção de vínculos” na família e bairro originais e, cada vez mais, aos
benefícios proporcionados por uma família adotiva. No momento em que a
adoção emerge como solução evidente para desafogar os abrigos, a “celeridade” dos procedimentos jurídicos passa a ser uma pauta destacada.
Por um lado, argumenta-se que é imperativo combater a letargia inerente ao
sistema judiciário para tornar as crianças abrigadas disponíveis à adoção já na
primeira infância –isto é, quando ainda correspondem ao perfil procurado pela
maioria de adotantes. Já na nova versão do ECA de 2009 (Lei 12.010, apelidada a “Lei de Adoção”), aparecem sinais do esforço institucional para agilizar
os trâmites legais e administrativos necessários para a adoção de crianças
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em vulnerabilidade social. Foi apenas a primeira de uma série de leis que
reduzia o tempo máximo que uma criança devia ficar no sistema de acolhimento, o prazo limite para iniciar a destituição do poder familiar, o período
de espera necessária para uma criança ser declarada disponível à adoção, etc.
Os profissionais trabalhando na ponta (incluindo psicólogos e trabalhadores
sociais) objetavam inutilmente que, dentro desses prazos exíguos, não seria
possível cumprir as investigações e os acompanhamentos pressupostos pelo
ECA, muito menos formular qualquer estratégia consequente de “reintegração
familiar”. Na procura de soluções para milhares de crianças e adolescentes
no sistema de acolhimento, o pêndulo já estava voltando para a promoção
praticamente sem oposição da adoção.
Na minha cidade, Porto Alegre, uma Promotora de Justiça da Criança e do
Adolescente, nomeada em 2015, trouxe energia redobrada aos novos rumos
políticos. Visitava abrigos, denunciava unidades em más condições e pressionava para que o sistema de acolhimento respeitasse os prazos estipulados em
lei. A Corregedoria do Estado do Rio Grande do Sul também passou a concentrar esforços em documentar a lentidão dos trâmites rotineiros que acompanhavam a trajetória dos jovens que caiam no sistema de proteção. Foram
recrutados técnicos para localizar as práticas administrativas ineficientes –os
impedimentos e “gargalos” que freavam os trâmites necessários para tornar
jovens abrigados disponíveis para adoção.14 Foram afastados da administração
profissionais suspeitos de padecer de “vícios do sistema antigo”– aqueles que,
mesmo promovendo a adoção, se investiam também em ações de apoio às
famílias originais. E, para cursos de formação e consultoria, foram preteridos
nomes (como o da autora deste artigo) associados com pesquisas privilegiando
a escuta das famílias pobres. A ideia era, acima de tudo, diagnosticar e remover
os obstáculos –legais, burocráticos ou programáticos– à adoção.15
Por outro lado, já que a vasta maioria de jovens abrigados tem acima de sete
anos de idade, cabe às autoridades públicas promover uma mudança de mentalidade entre os adotantes para tornar a adoção de pré-adolescentes e adolescentes mais atraente. Assim, a nova política, coordenada entre Juizados,
Corregedoria e Promotoria, se consolida através de campanhas enérgicas para
sensibilizar a opinião pública quanto ao fenômeno de adoção tardia. É nesse
contexto que encontramos a audiência pública descrita no início deste artigo
em que se destacam com tanto orgulho a campanha de “Jovem Torcedor”, o
projeto “Busca-se(r)”, o aplicativo “Deixa o amor te surpreender”16 e, antes
de tudo, a publicidade quanto aos objetivos sendo alcançados por esses projetos: isto é, a quantidade de adolescentes encaminhados para a adoção.
É evidente que a nova orientação atinge não só os pais adotivos em potencial.
Também afeta os jovens abrigados que –conforme as diretivas administrativas–,
queiram ou não, entram no rol de adotáveis. Alguns desses adolescentes colaboram com entusiasmo, se apresentando em vídeos destinados a pessoas habilitadas que possam adotá-los. Outros encontram uma maneira de manifestar
sua resistência –esquivando-se, por exemplo, do encontro com os pais pretendentes quando visitam o abrigo. Os atuais dados públicos sobre jovens liberados para adoção internacional no Rio Grande do Sul (com, na média, 14 anos
de idade) são sugestivos quanto a esse assunto. De forma significativa, mais
de um terço desses jovens saíram da lista de “disponíveis” porque os próprios
inscritos não aceitaram dar seu consentimento.17
Em todo caso, nesse momento da história, o que as adoções doméstica e internacional têm em comum (pelo menos no Rio Grande do Sul) é o destaque dado
14. Sob instigação do CNJ,
esforços semelhantes estavam
sendo realizados em outras
partes do país (ver Nunes 2015).
15. Nesse mesmo espírito, em
março de 2014, o CNJ aprovou uma
resolução para incluir adotantes
estrangeiros no Cadastro Nacional
de Adoção, procurando reverter
uma política de quase duas
décadas que pretendia restringir a
adoção internacional de crianças
e adolescentes brasileiros.
16. Ver Estado do Rio Grande do Sul – A, (sin hecha).
17. Estado do Rio Grande do
Sul – B (2019) . Dados de março,
2019. Lembremos que, conforme o ECA, para completar uma
adoção, o jovem acima de 12 anos
deve dar seu consentimento.
25
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18. Lembramos que, no
momento, não existem dados
públicos sobre o número de
adoções ou perfil dos adotados
para o país como um todo.
19. Há boatos de um número
importante de “devoluções”, mas
não existem estatísticas oficiais
sobre isso. Ver Coakley e Berrick
(2008) sobre a correlação entre
adoção tardia e a proporção de
procedimentos interrompidos.
20. Nos Estados Unidos
estima-se que 60% das
adoções são “abertas” (https://
adoptionexperts.com/22unbelievable-stats-adoption/).
a adotados mais velhos e a projeção no imaginário público de que um número
sem precedentes de adolescentes está conseguindo colocação em família adotiva.18 Uma profissional que trabalha há muito tempo no Juizado chama
atenção para essa mudança: vinte anos atrás, os projetos de adoção eram pensados em termos de bebês e crianças pequenas. Não mais… Reconhece-se que
essa nova política encerra certos riscos –por exemplo, de aumentar o número
de adoções frustradas–,19 mas estima-se que os benefícios pesam mais.
Na época em que o adotado era, via de regra, uma criança pequena, a adoção
plena implicava necessariamente uma “ruptura limpa”. A criança adotada
vinha sem (ou com apenas vagas) memórias de seu contexto original e sem
possibilidade de contato com suas relações antigas. Dava para manter a ideia
de que a família adotiva “imitava a natureza”, tudo “como se” a criança tivesse nascido da família (Modell, 1994). Hoje, muitos jovens já têm sete ou oito
anos quando entram pela primeira vez no abrigo, e –diferentemente do que
acontecia no passado– chegam a constar na lista de “disponíveis”. Se, de fato,
conseguem colocação, então, a maioria dos adotados carrega memórias de uma
época quando tinham contatos com seus pais ou outros familiares. Nessas circunstâncias, a própria dinâmica dos serviços de apoio –a preparação dos jovens
e dos pais adotivos– também têm que seguir novos protocolos de trabalho.
Certamente, temos a impressão de uma reviravolta no campo da adoção digna
de reflexão e que, de certa forma, ameniza as objeções que eu e outras analistas
tínhamos em relação à violência do princípio da “ruptura limpa” implicado
na adoção plena. A preponderância de adotados mais velhos tornaria esse
princípio inoperante. Na prática, o procedimento começaria a se aproximar
da modalidade “adoção aberta” em que -- entre adotante, adotado e família
de origem -- circula boa quantidade de informação (sobre as diferentes famílias
e a trajetória do jovem) sem passar pelo controle do Juizado.20 Visto sob essa
luz, o esforço investido por um núcleo de ativistas no sistema judiciário e
ministério público em promover a adoção seria louvável. Em vez de “desapropriar” famílias pobres de seus filhos e netos, a política seria claramente
dirigida para o bem-estar de adolescentes abrigados e seu direito de estar
solidamente inseridos na sociedade através do apoio proporcionado por uma
família adotiva.
A adoção sem excepcionalidade: a progressiva legalização de
“adoções diretas”
No início de 2018, a conversa com uma profissional do Juizado de Infância em
Porto Alegre me colocou a “pulga atrás da orelha”, isto é, me levou a crer que
faltava algo na minha percepção da dinâmica legal de adoção no Brasil. Ela
mencionou, quase como aparte, estar intrigada por algo que observara recentemente: o fato de, apesar do Juizado ter registrado 800 sentenças de adoção
no ano anterior, a equipe de especialistas, trabalhando a partir do Cadastro
Nacional de Adoção, ter realizado apenas 200 colocações. Em outras palavras,
três quartos das adoções não entravam nas estatísticas oficiais que eu estava
encontrando na mídia, nas audiências públicas, nos debates públicos e no site
do CNA. Minha interlocutora sugeriu que parte desses processos “extras” tinha
a ver com adoções unilaterais (por padrastos); outra parte podia dever-se a
erros e duplicações das entradas. Mas, eu logo pensei também na questão das
adoções diretas, passando a desconfiar que eram bem mais comuns do que eu
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tinha imaginado. Em outras palavras, esses “dados esquecidos” me levaram
a uma revisão radical de minhas perspectivas originais.
Mesmo na ausência de dados oficiais, a adoção direta tem sido visibilizada
pelos debates infindáveis no Congresso e nos tribunais sobre a legalidade ou
não do procedimento.21 O ECA (1990) ordena a centralização do processo
adotivo nos Juizados de Infância. Porém, no artigo 166, ainda prevê a possibilidade de os pais biológicos serem “ouvidos” (presumivelmente, quanto à
escolha da família adotiva), não ocorrendo assim a adoção pelos trâmites
usuais do Cadastro Nacional. As disputas em torno do artigo 166 se remetem
fundamentalmente à pergunta: é desejável ou não os Juizados deterem um
monopólio sobre as decisões do processo adotivo?
21. Ver Ayres (2008) para um dos
raríssimos estudos com dados
quantitativos sobre essa prática.
Tentativas de responder essa pergunta levam a uma rixa entre os próprios
juristas. Por um lado, os profissionais com atuação no raio dos Juizados sublinham a expertise acumulada através de longos anos de prática institucional
constantemente avaliada e reajustada para garantir o interesse prioritário dos
jovens. Rechaçam a adoção intuitu personae por temer que envolva advogados comerciais e outros intermediários que não têm nem competência nem
interesse de respeitar os princípios do ECA. Consideram que abre o caminho
para um “mercado de bebês”, prejudicial tanto para as mães pobres –alvo de
pressões agressivas por parte de casais à procura de um filho–, quanto para
as próprias crianças –entregues a pais cuidadores que não passaram pela avaliação dos especialistas.
Durante as discussões que levaram à reformulação do ECA (Lei 12.010 em
2009), houve uma tentativa de eliminar a cláusula 166 e incluir um novo item
explicitamente proibindo transações intuitu personae. Depois de um debate
tenso, a cláusula original ficou, porém com uma série de sub-itens. Esses dizem
essencialmente que, depois do acordo feito entre (em geral) a mãe biológica e
o casal adotante, a equipe do Juizado fará uma intervenção, dando esclarecimentos e orientações às famílias natural e substituta, avaliando a situação e
garantindo que não houve má-fé. Só então será possível proceder à destituição
do poder familiar e à legalização do processo. No parágrafo 13 do artigo, há
uma tentativa de restringir o universo de adotantes não cadastrados previamente no CNA a padrastos e parentes com os quais a criança já tem um vínculo
de afetividade. Outras pessoas não-aparentadas podem eventualmente entrar
com pedido, mas apenas para uma criança com mais de três anos de idade,
para a qual os postulantes já tenham guarda legal e convivência suficiente para
existirem vínculos de afeto.
Na prática, a Lei não pôs fim às ambiguidades do processo. Consulta à jurisprudência mostra que as adoções diretas continuam a ocorrer mesmo com
crianças abaixo da idade estipulada (3 anos). Se o fato vier a sua atenção, o
Ministério Público pode recorrer. O Juiz da Infância que trabalha diretamente
com a equipe multiprofissional, geralmente empenhada em promover a lógica
do Cadastro Nacional, pode desqualificar a adoção direta, mandando retirar
a criança dos adotantes e anulando os efeitos da adoção. Porém, nas instâncias
superiores, há farta jurisprudência dando ganho de causa a adotantes que já
estão com a criança tempo suficiente para desenvolver fortes vínculos. Os
desembargadores e ministros opinam que o Cadastro Nacional de Adoção
“não tem o fim em si mesmo”, isto é, que a “letra fria” da lei não deve se
sobrepor ao interesse prioritário da criança.22
22. Minas Gerais. Tribunal
de Justiça. Apelação Civil n.
1.0024.10.117976 – 0/001. Relator:
Eduardo Andrade, julgado em
agosto de 2011, apud Gomes (2013).
27
28
23. Entre outros, ver
https://www.youtube.com/
watch?v=bBcIUf15NDE&t=1s.
A falta de qualquer definição clara sobre a legalidade de adoções diretas desponta diariamente na mídia. Por um lado, é possível ler nos principais jornais
manchetes tais como: “Proibida por lei, adoção direta ainda é comum no país”
(Oliveira e Bandeira, 2010). Por outro, se encontra com relativa facilidade
vídeos no Youtube, feitos por advogadas particulares, dizendo que “é um direito da mãe entregar seu filho em adoção a uma determinada pessoa” e ensinando para quem quiser ouvir como realizar o procedimento?23
É para acabar com as ambiguidades envoltas na adoção intuitu personae que
se formou, em anos recentes, um novo bloco de luta política, aliando certos
juristas com Grupos de Apoio à Adoção. Esses atores são unidos pela convicção
de que a adoção (que seja intuitu personae ou pelo CNA) é a maneira mais eficaz
de assegurar às crianças em situação de grande vulnerabilidade um futuro
digno. Para prevenir eventuais desavenças com o Ministério Público, querem
que a adoção direta, descrita na legislação anterior em meias-palavras e subitens restritivos, assuma um estatuto de clara legalidade. Na liderança desse
movimento está a desembargadora aposentada, Dra. Maria Berenice Dias –
professora e ativista nas áreas da mulher, de casais homoafetivos, e da criança.
Enquanto fundadora, ex-presidente e atual vice-presidente do Instituto
Brasileiro dos Direitos da Família (IBDFam), essa ativista exerce grande
influência, inclusive junto a membros do Congresso Nacional. Seu combate é
contra o que considera o sistema falido de adoção que vigora no país. Afirma
que o ECA, por progressista que seja em outros aspectos, merece ser chamado
a Lei da Contra-adoção, pois, ao definir a convivência familiar antes de tudo
em termos da manutenção do vínculo e a reintegração familiar, “consagra a
filiação biológica como absoluta e só admite a adoção excepcionalmente, quando o próprio STF reconhece a prevalência da filiação socioafetiva” (Dias, 2018)
24. Sim, na sua estimativa o
número de jovens “acolhidos”
é o dobro do número oficial.
Para Dias, é “absurdo depositar a criança num abrigo à espera que os pais
adquiram condições de ficar com ela”, e qualquer institucionalização de bebês
entregues pelas mães é “de todo descabida”. Na sua opinião, a burocracia
judicial seria a principal responsável pelas mais de 100.000 crianças e adolescentes “encarcerados” em abrigos24, pois é essa burocracia que estabelece
exigências irrealistas, criando empecilhos à adoção. Para agilizar a adoção, a
jurista faz uma série de recomendações: acesso livre de candidatos habilitados
às instituições de acolhimento para propiciar encontros com os jovens abrigados; táticas publicitárias como a postagem de vídeos e fotos para atiçar o
interesse por tal ou tal criança, etc. E, apesar de afirmar ser “indispensável
estancar as chamadas ‘adoções diretas’ que, em alguns estados, correspondem
a 90% da entrega de crianças, sem a participação do poder público” (Dias,
2018) é ela mesma instigadora de pelo menos dois projetos de lei no Congresso
Nacional que objetivam legalizar (e normatizar) a adoção intuitu personae.
Um primeiro projeto de lei (369/16) fala explicitamente da adoção intuito personae que supõe “prévio conhecimento, convívio ou amizade entre adotantes
e a família natural”. A justificativa do PL explica que, apesar de existirem
inúmeros casos no dia a dia, no ordenamento jurídico brasileiro, essa prática
não é “nem autorizada, nem vedada”; daí a necessidade de uma lei para dar
“segurança jurídica às partes”. Ao explicar, na justificativa, como pais podem
escolher “durante a gravidez ou depois do parto, a pessoa que irá adotar o
filho”, a lei não deixa dúvidas quanto ao interesse pela adoção de recémnascidos e crianças pequenas.
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O segundo projeto de lei (394/17), proposto pelo Senador Randolfe Rodrigues,
mas fruto de um grupo de trabalho organizado pelo IBDFAM (2017) a partir
do projeto “Crianças Invisíveis”, é ainda mais ambicioso. Propõe nada menos
do que tirar a adoção do ECA (que seria, então, voltado exclusivamente para
crianças e adolescentes em conflito com a lei), criando um Estatuto da Adoção.
Na justificativa, se lê que o grande número de jovens em acolhimento institucional é fruto do “descomprometimento dos agentes públicos”, presos a um
“verdadeiro culto ao biologismo”. A saída desse impasse seria a facilitação da
adoção. Assim, longe de consagrar o Cadastro Nacional como única via para
adotar uma criança, o projeto propõe diversas alternativas. Qualquer criança
em acolhimento institucional que esteja disponível há mais de 30 dias para
adoção, “independente de constar ou não do Cadastro Nacional de Adoção”
pode ser adotada por uma pessoa já habilitada pelo Juizado. E mesmo quando
existe uma pessoa no CNA querendo adotar certa criança ou adolescente, o
jovem pode dar preferência à adoção por seu padrinho afetivo ou sua família
acolhedora (habilitados ou não). Finalmente, embora a adoção intuitu personae
seja nomeada apenas na justificativa, a legalização dessa prática é garantida
(e, ampliada, pois não mais seria restrita a quem tem convívio ou amizade
com a família natural) por um dos derradeiros artigos da lei. No art. 179,
é estabelecida a possibilidade “dos pais entregarem o filho a uma família
específica e determinada”, prevendo a intervenção subsequente pela equipe
multidisciplinar do Juizado.
Congresso Nacional: Proponentes da justiça social fincam pé
A proposta para um Estatuto da Adoção encontrou oposição ferrenha, liderada
por um bloco particularmente bem organizado chamado o “Movimento Pela
Proteção Integral de Crianças e Adolescentes”. Em abril de 2019, esse movimento conta com mais de oitenta entidades e mais de 200 assistentes sociais,
psicólogos, pedagogos, cientistas sociais, defensores, procuradores e outros
juristas. Inclui profissionais do país inteiro (entre outros, a autora deste artigo), mas com uma concentração notável na PUC e no judiciário de São Paulo.
Já consolidado durante o combate ao primeiro PL referente à adoção intuitu
personae, o Movimento emitiu uma nota pouco tempo depois do lançamento
da proposta do Estatuto de Adoção (PL 394/2017) em que resume os princípios
de sua oposição:
É no ECA que habita a sistemática de garantia à convivência familiar […] E é por uma
visão de preservação de direitos inerente à proteção integral, e não por preciosismo
ideológico, que a permanência da criança e do adolescente junto a sua família natural
tem precedência sobre a ruptura de vínculos (temporária, no caso dos serviços de
acolhimento, e definitiva, no caso da colocação em família substituta por adoção).
Nesse sentido, o referido direito fundamental concita as famílias, a sociedade em
geral e o Poder Público a promoverem ações que previnam rupturas, restabeleçam
vínculos e, excepcionalmente, conduzam à adoção. (APEPSS, 2017; CRESS-MG, 2018)
Durante uma série de eventos e audiências públicas em diferentes estados, o
Movimento desenvolve, de forma consistente, dois argumentos críticos. Em
primeiro lugar, acusa o PL de representar um “claro ataque dos setores conservadores às camadas mais pobres da população” APEPSS, 2017; CRESS-MG,
2018. A proposta de encurtar (ainda mais) os prazos para os diferentes estudos
psicológicos e sociais antes de passar à suspensão ou perda do poder familiar
se encontra “distante da realidade da grande maioria de equipes técnicas do
país”. Representa um desprezo pela possibilidade da reintegração familiar,
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25. Ver Rizzini e Couto (2018) e Sarmento (2018) sobre as consequências trágicas de tal perspectiva.
como se a pobreza não justificasse tal investimento (Azambuja e Rodrigues
da Silva, 2018). E, entre muitos outros elementos criticados, o PL ainda ressuscita uma frase sobre o direito da criança viver em “ambiente sadio, livre
do contato com pessoas dependentes químicas” (substituída em 2016 pelo
direito a viver em “ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”) – o
que justificaria a priori a retirada de crianças de certos núcleos familiares
pauperizados25
Em quase todas as notas de resistência contra o PL, as diferentes entidades
sublinham a maneira como a proposta encarna uma lógica pré-ECA de fiscalização e penalização das famílias pobres. Citam pesquisas de cientistas sociais
–como as de Irene Rizzini, Claudia Fonseca, Eunice Fáver- que denunciam o
preconceito contra essas famílias, frequentemente tidas como principais responsáveis por qualquer comportamento problemático de seus filhos. E sugerem que as “trágicas estatísticas” sobre jovens em acolhimento institucional
têm mais a ver com desigualdades estruturais inscritas no próprio tecido social
do que com incompetência parental. Dessa maneira, “a sociedade” não pode
se eximir de responsabilidade, devendo firmar o compromisso de propiciar
políticas e investimentos para melhorar as condições e fortalecer os vínculos
justamente nas famílias originais de onde vêm esses jovens.
O segundo argumento do Movimento diz respeito especificamente à concepção de adoção no PL 394. Aparentemente formulado para facilitar a adoção
de bebês e crianças pequenas, o Projeto responderia mais às ânsias dos pais
adotivos (procurando um filho para “completar a família”) do que às necessidades do bem-estar infantil. Admitir a possibilidade de adoções diretas, isto
é, acordos arranjados antes de qualquer contato com o Tribunal de Justiça,
representaria uma “clara diluição das atribuições da autoridade judiciária” –
isto é, uma “privatização da adoção”, possibilitando ações eivadas de má-fé.
Numa cláusula reminiscente do “parto anônimo” já discutido e rejeitado pelo
Congresso Nacional, o PL ainda prevê, no caso da parturiente que quer anonimato total, o direito de não registrar o filho. Essa cláusula, tal como outros
tantos elementos da proposta, é citada para justificar a rejeição da proposta
enquanto “retrocesso”, que fere o espírito do ECA e opera contra o interesse
prioritário da criança e do adolescente.
Além de todas as outras críticas, sugiro que existe um ponto nevrálgico desse
debate que, embora raramente levantado, é fundamental para entender o que
está em jogo. Se a adoção direta fosse visibilizada através da explicitação legal,
o Cadastro Nacional de Adoção se tornaria praticamente inoperante. Quem
ia querer esperar anos na fila do CNA para conseguir uma criança mais velha
e, talvez, com problemas de saúde quando, passando por pessoas conhecidas
(uma vizinha, uma empregada doméstica, um pastor…), poderia adotar um
bebê num prazo curto? Em relação às tentativas de racionalizar a oferta e
demanda de crianças através do CNA, a adoção direta funcionaria como um
“fura-fila” por excelência. Ainda mais, dada a ênfase mais ou menos explícita
dos PLs na adoção de bebês, a retórica que seus proponentes evocam, sobre
a adoção direta como solução para a sobrelotação dos abrigos institucionais,
parece mais uma estratégia política para angariar apoiadores do que um objetivo real.
Contudo, é igualmente questionável se a “sobrepopulação” nos abrigos pode
ser sanada pelo Cadastro Nacional de Adoção. A verdade é que, malgrado as
muitas campanhas para promover a adoção tardia, ainda não existem dados
para confirmar o êxito desses esforços – nem no imediato e, muito menos, a
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longo prazo.26 Devemos lembrar que a noção de adoção tardia está presente
no Brasil desde, no mínimo, 1998 – quando ativistas já recomendavam uma
mudança para a presumivelmente mais aceitável “adoção necessária” (Fonseca,
2009). Ao que tudo indica, a noção não modificou substancialmente a “cultura
da adoção”. Adotantes continuaram e –em toda probabilidade– continuarão
dando preferência a crianças pequenas. Nesse caso, podemos imaginar que a
proibição da adoção direta não teria grandes consequências para a vida dos
adolescentes abrigados. Pelo contrário. Traria para dentro do Cadastro a concorrência de um número maior de crianças na primeira infância.
26. Uma reportagem pelo CNJ
em fevereiro de 2019 mostra que,
apesar de adoções no Brasil terem
aumentado apreciavelmente entre
2016 e 2018, o número de adoções
de crianças com deficiência
diminuiu por mais de 50% (de 52
para 22). www.cnj.jus.br/noticias/
cnj/88463-cadastro-nacional-deadocao-ajudou-a-formar-maisde-12-mil-familias-desde-2008
Os não-ditos que assombram as políticas de proteção
Nos debates sobre o sistema de proteção à infância (abrigos e adoção) é raramente enfrentada a natureza fundamentalmente política das alternativas escolhidas. Argui-se, por exemplo, que o acolhimento institucional é uma medida
custosa e que o inchaço do sistema pesa nos cofres dos governos locais.
Contudo, cabe perguntar: num país como o Brasil, com tamanha desigualdade
econômica e social, será que há um número exagerado de crianças no sistema
de acolhimento?27 Ninguém sugere que o acolhimento institucional seja a
solução ideal para crianças em situação de grande vulnerabilidade (ver Roberts,
2002 sobre a violência do sistema norte-americano). Entretanto, é interessante
notar que, em países europeus onde há maiores investimentos na infraestrutura
pública, garantia de renda mínima, e auxílios sociais, o número de jovens
abrigados é mantido ao mínimo.28 Podemos eventualmente fazer uma correlação direta entre a falta de tais investimentos no Brasil e a quantidade de
crianças e adolescentes sob a tutela do Estado.
Também, não é possível ignorar o fato de que o sistema de acolhimento representa uma espécie de bomba política –alvo fácil de reportagens sensacionalistas
prontas a apontar o dedo para a suposta incompetência da administração
estatal. Considerando o grande número de instituições de acolhimento –públicas, filantrópicas e conveniadas–, é quase inevitável aparecerem em algum
lugar práticas violadoras de direitos. Os administradores do sistema admitem
que estão constantemente “apagando fogo”, tentando sanar esses problemas,
apesar dos parcos recursos. A “reintegração familiar” não interessa muito,
justamente porque é demorada, requer atenção intensiva de toda uma equipe
de profissionais e ainda tem o potencial de gerar incidentes que chamam a
atenção da imprensa. Com a adoção, por outro lado, a responsabilidade por
eventuais problemas sai de vez da alçada do sistema institucional. Certamente,
existe um grande investimento na seleção e habilitação das famílias adotivas.
Entretanto, após a adoção, os problemas (delitos dos jovens, violência dos
pais...) não são facilmente detectados e, quando visibilizados, não são enquadrados como falha da administração pública.
Um sistema de proteção à infância que dá tanta ênfase à adoção de jovens
abrigados é coerente com uma filosofia política familista que, desonerando
creches e escolas, joga a grande parte da responsabilidade da socialização de
futuras gerações para a esfera privada da família nuclear. Essa filosofia vem
apoiada por certa veia simplista das neurociências para afirmar que é por causa
da maternagem inadequada que os jovens pobres enfrentam dificuldades na
vida (Fonseca, 2012; Llobet e Milanich, 2014). A maternagem idealizada é a
da mulher que, sustentada pelo marido, pode se dedicar em tempo integral
aos filhos, especialmente nos seus primeiros anos de vida. Com esse estilo de
raciocínio, a “solução” óbvia não só para as crianças em situação de grande
27. Cabe lembrar que, nos
Estados Unidos, para uma
população cinquenta por cento
maior do que a do Brasil, há dez
vezes mais jovens colocados
no sistema de acolhimento –a
maioria em famílias acolhedoras.
28. Ver, por exemplo, Embassy of Sweden, 2002.
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vulnerabilidade, mas também para os problemas que mais afligem a sociedade
(violência, desemprego, etc.) seria efetivar a transferência, o mais rápido possível, de crianças pobres para famílias de classe média alta onde, eventualmente,
esse ideal pode ser realizado.
A idealização de determinado modelo familiar nos leva a um último “não-dito”
que assombra o campo da adoção: qual o lugar das famílias de origem em
relação às crianças adotadas? Essa caixa preta poderia ser aberta pela simples
pergunta: por que as pessoas persistem em entregar seus filhos recém-nascidos através da adoção intuitu personae em vez de deixá-los com a equipe do
Juizado? Antes de ser sujeita a uma análise mais profunda, a persistência dessa
prática é atribuída muito rapidamente à ignorância das mães. Pressupõe-se que
agem assim por falta de informação ou por equivocadamente imaginar que
a entrega seja ilegal. Assim, os Juizados redobram esforços para desenvolver
campanhas informativas sobre a legalidade da entrega voluntária do recémnascido. Os proponentes da adoção direta, por seu turno, dirão que é para
evitar que seus filhos sejam condenados a passar anos num abrigo que as mães
evitam a intermediação da equipe profissional do Juizado. E, seguindo esse
raciocínio, justifica-se qualquer intervenção que acelere o processo adotivo.
Contudo, minhas pesquisas etnográficas me levam a entender as coisas de
outra maneira. Existem mulheres que, por causa de circunstâncias de grande
vulnerabilidade, estimam que não estão em condições de criar o filho que
pariram. Pode ser que um primeiro filho seja acolhido por alguém da rede
familiar, mas um segundo ou terceiro bebê encontra a rede já saturada. Nesse
caso, já durante a gravidez da futura mãe, começa a procura –conduzida, senão
pela grávida, então por familiares seus (avós, bisavós da criança a nascer)–
de alguém que possa adotar o bebê (Fonseca, 2013). Não se trata de “venda”,
nem de negócio leviano. Encontrar uma família que cuidará bem da criança
se torna um ponto de honra –prova que, nessa rede familiar, não falta carinho,
nem mulheres responsáveis.
Para a parturiente que tem esse tipo de apoio da família extensa (e, na minha
experiência, não são poucas), o destino do bebê é resolvido sem envolvimento
do sistema público de acolhimento. A constante crítica feita pelos proponentes
dos PLs contra as possibilidades de reintegração familiar, e sua insistência que
é praticamente impossível localizar alguém da família extensa para acolher os
recém-nascidos “abandonados”, pode ser verdade para o pequeno contingente
de mulheres completamente desamparadas que chega à atenção dos serviços
públicos. Mas, sugiro que esses casos extremos não retratam fielmente o universo maior de bebês colocados por suas avós e bisavós em famílias adotivas
via o processo de adoção direta.
Em outras palavras, é provável que a grande maioria das mães e seus familiares saibam que a entrega do filho “para o Juizado” é uma opção. Se não
aproveitam essa oportunidade é porque têm medo do buraco negro da (não)
informação que enfrentarão depois da entrega. Num processo realizado pelo
Juizado, seguindo estritamente as orientações legais, os familiares da criança
não terão nenhuma participação na escolha dos futuros pais, nenhum conhecimento da vida subsequente da criança. Nessa falta total de informação, só
podem imaginar o pior.
O não-lugar das famílias originais no processo adotivo é raramente problematizado por quem quer que seja. Os proponentes da adoção direta pleiteiam o
direito da mãe de escolher os pais adotivos de seu bebê. Porém, esse respeito
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pelos direitos da mãe não parece se estender para além do momento da escolha.
Os PLs não fazem nenhuma menção de medidas que possam amparar famílias
em grande dificuldade, nem de estratégias que possam levar à reintegração
familiar. Por outro lado, os proponentes da justiça social dedicam não pouca
energia à causa das famílias pobres, dando ênfase à reintegração familiar e
à manutenção do vínculo. Porém, no momento em que a mãe (ou sua rede
familiar) resolve que a criança deve ir para uma “família substituta”, os trâmites administrativos a afastam totalmente do cenário. Por medo de ela ceder
a pressões que não são do seu interesse nem do da criança, a lógica tutelar da
política estatal impede não só o contato, mas qualquer fluxo de informação,
entre a mãe e eventuais candidatos a parentalidade adotiva. E, depois da entrega, não se prevê nem acompanhamento terapêutico da mãe, nem fornecimento
de eventuais informações sobre a vida de seu filho.
****
Enfim, nossa tentativa de pensar o panorama de mudanças no campo brasileiro de adoção ao longo dos últimos trinta anos é –como qualquer visão “de
cima”– lacunar. Não faz jus à tremenda heterogeneidade de práticas envolvidas no cotidiano das políticas de proteção. Tampouco permite, no espaço
desse artigo, entrar na sutileza das autoanálises feitas pelos membros da rede
em momentos diferentes. Entretanto, tiramos um saldo modesto de três sugestões. Em primeiro lugar, sublinhamos neste artigo a evidente falta de dados
sistemáticos sobre adoção doméstica que pudessem ajudar numa avaliação
(e planejamento de políticas) mais realista. Sem esses dados, somos levados a
tomar campanhas publicitárias e apelos politicamente corretos como se fossem
retratos fidedignos da realidade –uma confusão que em nada contribui para
a compreensão da situação, e menos ainda para um planejamento adequado.
Em segundo lugar, constatamos que a política de adoção é só muito tenuamente ligada aos desafios inerentes ao sistema de acolhimento institucional.
Não obstante a justaposição dos dois temas em vários debates promocionais
da adoção, não há evidência em lugar nenhum do mundo –e muito menos no
Brasil– de que a adoção possa vir a resolver os tremendos problemas encerrados numa rede institucional voltada para crianças e adolescentes em grande
dificuldade. Aceitando o fato de que o sistema de acolhimento institucional
não vai desaparecer (nem sequer diminuir apreciavelmente) em função das
políticas mais agressivas de adoção, torna-se evidente que esse sistema merece
muito mais atenção do que tem recebido nesses últimos anos.29 E, com a
devida atenção, sem dúvida ficará mais claro que, para o enfrentamento adequado dos desafios do bem-estar infantil, devemos investir na rede ampla de
proteção integral, tal como foi projetada no ECA.
Finalmente, é evidente que a adoção continuará a ser uma medida importante
para a melhoria de vida de certo contingente de jovens brasileiros. Certamente,
nesse processo, cabe uma fiscalização pública em que os profissionais do
Estado têm um papel central. Entretanto, a complexidade política e moral
desse tema –da transferência de crianças de uma família para outra– elimina
a possibilidade de qualquer receita mágica quanto à “maneira certa” de efetivar essa transferência. Nesse quadro, as discussões acirradas são inevitáveis
e, ainda, bem-vindas. Mas, para levar a um acordo tênue entre as diferentes
perspectivas em jogo, é fundamental ter em vista que, junto com a contemplação dos interesses e responsabilidades da sociedade, o debate deve incluir
uma consideração equilibrada –e, quem sabe, alguma “voz”– de cada um dos
atores envolvidos no processo adotivo.
29. Nota-se que, no meu estado,
a homepage da Coordenaria da
Infância e da Juventude atual
anuncia sete projetos para
aprimorar a adoção contra três
para melhorar o sistema de
acolhimento. http://jij.tjrs.jus.br/
cij.php, consultado 15/5/2019.
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Sobre la autora
Claudia Fonseca (Doctorat d’État, Université de Nanterre) é professora no PPG de
Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) e do Doctorado
en Antropologia Social de la Universidad Nacional de San Martin (Argentina). Seus
interesses de pesquisa incluem organizacao familiar, parentesco e relacões de genero,
Antropologia da Ciência e Antropologia do Direito, com ênfase particular nos temas
de direitos humanos e tecnologias de governo.
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