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“Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada" Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo A786 Arte e educação para professores [recurso eletrônico] : teias de afeto e saberes / organização Sumaya Mattar e Vinícius de Azevedo. -- São Paulo : ECA-USP, 2022. PDF (254 p.) : il. color. ISBN 978-65-88640-75-3 DOI:10.11606/9786588640753 1. Arte-educação. 2. Formação de professores. 3. Escola pública. 4. Educação decolonial. 5. Extensão universitária. 6. Lei 11.645/2008. I. Mattar, Sumaya. II. Azevedo, Vinícius de. CDD 23. ed. – 700.7 Elaborado por: Alessandra Vieira Canholi Maldonado CRB-8/6194 Organização Sumaya Mattar Vinícius de Azevedo Comissão de publicação Clarissa Suzuki Dayse Ana Fernandes Fernando Lima Ramos Francisca do Val Leandro de Oliva Costa Penha Autores Clarissa Suzuki Dayse Ana Fernandes Fernando Lima Ramos Francisca do Val Gabrielle Martin Távora Gláucia Adriana Simões Leandro de Oliva Costa Penha Letycia Payayá Mariana Zanetic Ranieri Rangon Ramos Regiane de Paula Santana Renato Brunassi Neves dos Santos, Aguessy Rodrigo Acosta Silvania Francisca de Jesus Sílvio Fernandes do Amaral Sumaya Mattar Vinícius Souza de Azevedo Capa, projeto gráfico e diagramação Márcio Santos Lima Revisão Elisabete Marin Ribas Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes Escola de Comunicações e Artes Diretora: Profª Drª. Brasilina Passarelli Vice-Diretor: Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro Sumaya Mattar e Vinícius de Azevedo (organizadores) ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES TEIAS DE AFETOS E SABERES Agradecimentos Agradecemos às professoras e professores que participaram do curso, com quem muito aprendemos; aos pesquisadores/educadores do GMEPAE, que planejaram e ministraram as aulas com muito amor e carinho; à Aparecida Regina Landanji, pelo fundamental apoio para a realização do curso no Departamento de Artes Plásticas da ECA/USP; ao Márcio Santos Lima, pela caprichosa produção visual; à Elisabete Marin Ribas, pela revisão cuidadosa e aos membros da comissão de publicação: Clarissa Suzuki, Dayse Ana Fernandes, Fernando Lima Ramos, Francisca do Val e Leandro de Oliva Costa Penha, pelo atento trabalho que culminou nesta teia de afetos e saberes. Sumário Sumaya Mattar e Vinícius Souza de Azevedo Uma teia coletiva 11 Renato Brunassi Neves dos Santos, Aguessy Teias de afeto: uma história de aranhas 23 Leandro de Oliva Costa Penha Território, escola e universidade: para além dos muros e hierarquias 31 Vinícius de Azevedo O tecido dos nossos sonhos: o bordar na formação docente 67 Fernando Lima Ramos Desdobramento sobre o Curso de Formação para professores, da ECA/USP 80 Silvania Francisca de Jesus Itinerários artísticos interculturais: relato de vivências 90 Francisca do Val Memórias de um tempo feliz e estranho 104 Rodrigo Acosta Conexões 113 Regiane de Paula Santana Relato sobre a experiência no curso de extensão Arte e Educação para professores 122 Mariana Zanetic Garoas de vivências de uma artista docente em Sampa 128 Letycia Payayá e Clarissa Suzuki Soprar, semear, sonhar ideias sobre as artes e a educação: diálogos entre Letycia Payayá e Clarissa Suzuki 155 Gabrielle Martin Távora O tempo da experiência para encontrar uma deriva própria 167 Dayse Ana Fernandes Fios que se encontram: histórias e memórias 175 Gláucia Adriana Simões Reverberações 188 Ranieri Rangon Ramos Arte como expressão de múltiplas possibilidades 203 Sílvio Fernandes do Amaral Astronomia e a arte no Ensino Fundamental: uma proposta educativa 222 Renato Brunassi Neves dos Santos Silva / Aguessy A espiritualidade na formação do arte-educador: intolerância religiosa como desafio à aplicação da Lei 11.645/08 239 Sumaya Mattar e Vinícius Souza de Azevedo Uma teia coletiva O Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE) tem o prazer de apresentar um dos desdobramentos da primeira turma do curso de extensão Arte e Educação para Professores. O curso é uma iniciativa do GMEPAE, como forma de ampliação do diálogo entre Universidade e Escola Pública, buscando oferecer uma possibilidade de atualização docente em arte1, e resulta dos estudos, pesquisas, práticas, reflexões e inquietações dos membros do grupo de pesquisa, composto por pesquisadores, educadores, estudantes e artistas. Seu principal objetivo é oferecer aos professores um espaço de estudo, pesquisa, reflexão, experimentação e criação a partir de uma perspectiva decolonial, que faça frente aos desafios contemporâneos da 1 O curso é gratuito e as vagas são destinadas prioritariamente, a professores atuantes na Educação Básica das Redes Públicas de Ensino, dispostos a realizar um projeto na escola em que trabalham. 11 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES arte na educação escolar. Dois módulos semestrais consecutivos compõem o programa do curso, cada qual com uma carga horária de 60 horas. O Módulo I apresenta aos participantes bases epistemológicas e propõe vivências de experiências diversificadas em múltiplas linguagens, para fomentar o trabalho a ser realizado no Módulo II, voltado para o desenvolvimento de projetos político-poético-pedagógicos dos participantes em suas respectivas escolas. O programa do curso está estruturado em torno dos seguintes grandes eixos: perspectivas decoloniais em arte e educação; pedagogia crítica e práticas interculturais; inseparabilidade, na práxis educativa, entre professor, artista e pesquisador; defesa da educação pública e do ensino de arte no currículo escolar; valorização da profissão docente; prática educativa em arte como práxis criadora; ensino de arte como experiência emancipadora. Como desdobramentos destes eixos, os seguintes tópicos são trabalhados: 1 - Perspectivas e experiências decoloniais em arte e educação; 2 - O ensino de arte no espaço escolar frente aos desafios contemporâneos; 3 - A Lei 1.1645 / 2008: culturas indígenas e afro-brasileiras e o ensino de arte; 4 - Arte e seu ensino para além da escola: meio artesanal, cultura popular, movimentos artísticos e movimentos sociais; 5 - A docência da arte como práxis criadora; 6 - O projeto político-pedagógico da escola e os projetos poético-pedagógicos dos professores; 7 - Onde nasce um currículo de arte? As aulas do Módulo I da primeira turma do curso foram realizadas no segundo semestre de 2019, nas dependências do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunica- 12 TEIAS DE AFETOS E SABERES ções e Artes da Universidade de São Paulo2. No ano seguinte, quando o segundo módulo estava começando a ser oferecido, as atividades tiveram de ser suspensas em decorrência do isolamento social para conter a disseminação da COVID-19. Assim, o segundo módulo começou apenas em março de 2021, e como o isolamento social ainda era necessário, os encontros semanais ocorreram em formato remoto, fato que impôs inúmeros desafios aos participantes3 e à equipe educativa4. Perguntávamo-nos se seria possível transpor para o espaço virtual as ricas vivências interdisciplinares que estávamos acostumados a planejar. Também nos perguntávamos como poderíamos abrir mão, em nossas aulas, das diversas materialidades, do fazer junto, dos olhares, das vozes, dos corpos em movimento habitando o mesmo espaço. Aos poucos, com o passar das aulas, fomos entendendo que mesmo em condições tão limitadoras era possível realizar um trabalho significativo, e que não se tratava de abrirmos mão do que nos era caro como educadores, mas sim de criarmos possi- 2 Participantes do primeiro módulo, em 2019: Bernadete Aparecida dos Santos Oliveira, Camila Jacinto Pereira, Dayse Ana Fernandes, Elaine da Silva Santana, Fernando Lima Ramos, Gabrielle Martin Távora, Gláucia Adriana Simões Almeida, Letícia Rodrigues de Almeida, Mariana Zanetic, Ranieri Rangon Ramos, Regiane de Paula Santana, Renato Brunassi Neves dos Santos Silva, Rodrigo Acosta, Samanta Costa Tavares, Silvania Francisca de Jesus, Sílvio Fernandes do Amaral, Viviane Júnior e Viviane Roberta Florêncio da Silva Galter. 3 As professoras Eliene de Oliveira Aleixo, Glauce Regina Assis de Paula, Ligia Martins de Oliveira Almeida, Thaís Pereira Silva e Vanda Lúcia do Carmo não puderam participar do segundo módulo por indisponibilidade de horário. 4 A equipe educativa do curso foi composta pelos seguinte membros do GMEPAE: Alberto Roiphe, Caio Vinícius Bonifácio, Clarissa Lopes Suzuki, Francisca do Val, Gabriela Mafud, Guilherme Nakashato, Hercilia Tavares de Miranda, Leandro de Oliva Costa Penha, Lucas Rosario Joia Chrispim, Luiza Couceiro Latorre, Sumaya Mattar e Vinicius Souza de Azevedo. 13 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES bilidades com o que tínhamos em mãos, e isso foi e precisava ser feito com os participantes - professoras e professores, que, passando por situações muito difíceis com o fechamento das escolas, também se perguntavam se era possível ensinar arte de forma remota. Fomos alunos e professores uns dos outros - e foi assim que, juntos, sustentamos a nossa esperança em um sombrio período da história do nosso país e aprendemos muito. Estes dois diferentes momentos – o presencial e o on-line, bem como o processo de aprendizagem coletivo e alguns desdobramentos do curso nas práxis dos participantes, aparecem nos textos publicados nesta coletânea. Reunidos, eles representam a materialização de um duplo objetivo do GMEPAE: por um lado, o compartilhamento de experiências, saberes e referências que fizeram parte dos encontros; por outro lado, um estímulo e uma oportunidade para todos os participantes rememorarem e refletirem sobre o rico (e desafiador) processo que vivenciaram. Inspirados na maneira como o processo formativo se deu – em especial, pelo diálogo e a valorização da vivência e do olhar de cada pessoa, os dezesseis textos aqui apresentados reafirmam a profunda crença no potencial transformador da arte e da educação na formação humana. Seus autores são integrantes do GMEPAE, que ora foram docentes do curso, ora foram alunos, assim como os professores e as professoras de escolas públicas que também ocuparam os dois lugares. As múltiplas traduções das vivências feitas pela pena de cada autor/a revelam a teia de saberes que foi finamente bordada ao longo dos dois módulos do curso, de forma coletiva. A trajetória por esta teia tecida a muitas mãos tem início com a história criada por Renato Brunassi Neves dos Santos (Aguessi) inspirada em uma das narrativas trabalhadas nas 14 TEIAS DE AFETOS E SABERES aulas sobre a figura de Anansi, a aranha narradora africana, e em reflexões desenvolvidas nos encontros. O adinkra5 “ananse ntontan” (teia de aranha) simboliza sabedoria, criatividade, engenho e a complexidade da vida, síntese do significado mais profundo daquela narrativa. Na história criada por Renato, uma aranha descobre uma maneira de produzir alimento, explorando de forma predatória o meio ambiente e outras aranhas. Ananse, então, vê-se obrigada a provocar um movimento de revolução contra essa via de produção rápida e opulenta, porém destruidora. Imagem 1 – Adinkra “Ananse ntontan”. Fonte: Dicionário de símbolos, disponível em https://www.dicionariodesimbolos. com.br/simbolos-adinkra/, acessado em outubro de 2022. 5 Adinkras são um conjunto de símbolos que representam ideias expressas em provérbios, uma tradição dos povos acã, da África Ocidental, com destaque para os Asante, do Gana. Fonte: IPEAFRO, disponível em https://ipeafro.org.br/acoes/ pesquisa/adinkra/, acessado em outubro de 2022. 15 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Seguindo o fio da teia, Leandro de Oliva Costa Penha, pesquisador do GMEPAE, apresenta um artigo em que tece reflexões sobre a metodologia desenvolvida no curso e os seus desdobramentos. Para tanto, parte da descrição da aula por ele desenvolvida no 1º módulo e de algumas experiências propostas no 2º módulo. Com base nos conceitos de território e brincadeira, partindo de fotos e relatos dos participantes, Leandro narra detalhadamente sua proposição e duas aulas desenvolvidas pelos participantes com seus colegas de curso. O texto seguinte é a narração da experiência que deu início ao curso, em agosto de 2019, escrito por Vinícius Souza de Azevedo, a qual foi elaborada em parceria com Sumaya Mattar, coordenadora do curso e do GMEPAE, e com Clarissa Suzuki, pesquisadora do grupo. Vinícius retoma um trecho da história narrada6 e tece reflexões sobre as relações propostas entre a história, as experiências vividas e os desdobramentos do curso, em que o bordado figura como prática criadora e organizadora da experiência educativa. O fio segue com a narrativa verbal e visual de Fernando Lima Ramos sobre seus processos, desafios, descobertas e encontros ao longo do curso, tendo como pano de fundo o contexto em que atua como professor: escolas públicas da Rede Estadual de Ensino de São Paulo. As reflexões de Fernando apresentam aspectos fundamentais a respeito do tra- 6 A história narrada foi o conto tradicional chinês “O bordado encantado”, a partir das compilações de PERROTI, 1996 e BONAVENTURE, 1992. O conto narra a história de uma bordadeira que encontra um bordado maravilhoso em uma loja, e então, resolve investir em seus próprios desejos, bordando seus projetos, além dos costumeiros. Após uma longa saga, que começa com a perda do seu trabalho pronto, o bordado se torna realidade e passa a ser a paisagem da aldeia onde mora. 16 TEIAS DE AFETOS E SABERES balho docente, particularmente no campo da arte, e demonstram o quanto o curso alimentou seus sonhos e contribuiu com a sua formação, tornando sua práxis mais substancial e significativa, sobretudo por ter lhe dado acesso a muitos conceitos, referências, procedimentos e materiais. Na mesma linha narrativa, Silvania Francisca de Jesus conta um pouco da sua trajetória até chegar ao curso e narra algumas experiências vivenciadas durante os encontros. Em um relato sensível e delicado, quase um diário de bordo, ela compartilha seu processo de descobertas, vivências, criações, relacionando esses momentos com as propostas desenvolvidas pelos diversos docentes. Silvania relaciona essas experiências às propostas que desenvolveu com a sua classe de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com a qual trabalhava na época, sugerindo um diálogo entre o ser ensinante e o ser aprendente no jogo árduo, porém revigorante, da educação no âmbito escolar. Francisca do Val, membro do GMEPAE, oferece um relato inspirado em sua experiência no curso e no próprio grupo de pesquisa. Narra um pouco da sua trajetória como professora do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo e da sua chegada a um grupo de pesquisa em arte e educação. Os aprendizados propiciados pela interface destes dois campos e seus desdobramentos em sua forma de pensar são objetos da sua narrativa. O fio dessa teia segue se desdobrando com o relato repleto de imagens de Rodrigo Acosta, em que narra, afetuosamente, como chegou ao curso e as perspectivas que foram se abrindo à medida que, semana a semana, os encontros aconteciam. Rodrigo conta como era sair, cotidianamente, de Santo André, município da Grande São Paulo, para ir à USP aprender/ 17 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ensinar e refletir sobre temas e questões que abriram novos horizontes em seu exercício como professor de Arte da Rede Municipal de Educação de Diadema e São Caetano, também municípios da grande São Paulo. Com um fio de nuances parecidas às dos fios narrativos empregados por Rodrigo, Regiane de Paula Santana tece o seu relato, também cheio de afetividade, com o qual compartilha sua trajetória como professora de Arte da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, ao mesmo tempo em que reflete sobre a importância de ter participado do curso, especialmente por lhe terem sido apresentadas novas referências e possibilidades de atuação. Mariana Zanetic, por sua vez, ensaia uma tessitura nova nesta teia coletiva ao relatar sua experiência como professora da Rede Pública Municipal de São Paulo, exercício que segue pari passu à militância por direitos básicos da classe docente. Em um relato/manifesto, ela resgata alguns acontecimentos políticos dos últimos anos no país e reflete sobre experiências vivenciadas no curso e suas reverberações em seu cotidiano, entre as quais, proposições que desenvolveu com estudantes das escolas onde trabalha como professora de Arte. Com este mesmo fio do engajamento político, Clarissa Suzuki e Letycia Rendy Yobá Payayá traçam reflexões sobre os saberes historicamente silenciados pelos processos colonizadores, patriarcais, embranquecedores e universalizantes impetrados à população brasileira, com destaque para os povos originários. Elas narram a experiência de docência compartilhada que realizaram no curso, uma proposta de diálogo entre os saberes dos povos originários de Pindorama, a educação e as artes, e apresentam importantes referenciais epistemológicos para este campo. 18 TEIAS DE AFETOS E SABERES Gabrielle Martin Távora segue o fio da teia relatando a proposição que desenvolveu no 2º módulo do curso, quando os participantes foram convidados a ministrar uma aula ou apresentar uma proposta de trabalho para os colegas da turma. Gabrielle trabalhou a partir do conceito de “deriva poética”, como forma de aquecer, animar, mobilizar, sensibilizar o corpo de maneira integrada e integradora. Ela também conta um pouco como realiza essa mesma proposta no contexto da educação não formal na área de teatro. Dayse Ana Fernandes igualmente relata suas experiências como professora em uma Escola de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, desencadeadas pelo curso. As experiências vivenciadas no início do primeiro módulo, em especial a proposta com o bordado, trouxeram-lhe referenciais importantes e provocativos e a encorajaram a experimentar novas formas de promover ações pedagógicas com a sua turma. Partindo do bordado, Dayse desenvolveu com as crianças uma série de vivências que reverberaram em novas relações interpessoais na turma, assim como repercutiram em fazeres pautados na criatividade e na imaginação, sem perder de vista o trabalho coletivo, a convivência diária e o ato de compartilhar, instâncias fundamentais tanto no início quanto ao longo de todo o processo de escolarização. A teia da sala de aula segue sendo tecida por Gláucia Adriana Simões, que compartilha os desafios de ser uma professora de Música que optou por trabalhar com Educação Especial, com ênfase em surdez, deficiência múltipla e deficiência sensorial (surdocegueira). Em seu texto, Gláucia mescla experiências e reflexões promovidas pelo curso com a sua práxis educativa, ora narrando seu ponto de vista como estudante 19 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES do curso, ora narrando seu experiente olhar como professora de Educação Especial. Ranieri Rangon Ramos estende o fio da práxis educativa e narra suas propostas como docente orientador de Sala de Leitura de uma escola da Rede Municipal de Educação de São Paulo. Com base nas experiências e nos referenciais vivenciados no curso, ele discorre sobre os desafios que enfrenta no contexto em que atua e tece reflexões sobre a imagem da rede enquanto estrutura de organização e de produção de conhecimento no âmbito do curso. Esta estrutura seria a responsável pelas conexões e interações múltiplas e de várias naturezas que se deram ao longo dos encontros. Na continuação do seu relato, Ranieri explica como chegou à ideia da proposta que apresentou aos colegas da turma e de que maneira a adaptou para trabalhar com os seus estudantes. A narrativa de Sílvio Fernandes do Amaral segue na sala de aula, contextualizando o curso e explicando as escolhas que o levaram à proposta que desenvolveu com estudantes de 5º ano do Ensino Fundamental de escolas estaduais de São Paulo, onde trabalha. Sílvio explica detalhes de cada fase do trabalho interdisciplinar que realiza e no qual conjuga Arte, Música e Astronomia, incluindo exemplos de materiais que podem ser utilizados em sala de aula. Por fim, arrematando esta intrincada, afetuosa e multifacetada teia de afetos e saberes, Renato Brunassi Neves dos Santos Silva (Aguessi), que iniciou esta tessitura com a história da aranha capitalista, apresenta uma pesquisa que ele realizou no curso e a partir dele, sobre a questão da espiritualidade na formação do professor de arte. Após discorrer sobre os processos, os conceitos e as experiências promovi- 20 TEIAS DE AFETOS E SABERES dos no curso e afirmar a necessidade de se discutir a espiritualidade no contexto da educação escolar, Renato apresenta resultados do levantamento que fez com os participantes do curso em torno de questões como: vivência da espiritualidade, liberdade religiosa, inspiração religiosa no trabalho educativo e presença deste tema em sala de aula, e conclui refletindo sobre a importância destas questões serem trabalhadas e pensadas a partir de perspectivas decoloniais referenciadas em outras formas de ser e de conhecer e na importância da Arte como um lugar de múltiplas potencialidades. Esta publicação foi, assim como a teia do próprio curso, cuidadosamente tecida ao longo de um tempo de troca, partilha, cuidado, atenção, afeto, permeado por desvios, paradas, retornos, aspectos que caracterizam qualquer trajetória que se faz humana e respeitosa, frutificando nesta coletânea de textos que aqui se apresenta, resultado de um trabalho de muitas mãos, um círculo produtivo e virtuoso que busca a valorização das pessoas, dos saberes e o compartilhamento das experiências. Que esta teia reverbere em novas, múltiplas, infinitas e potentes tessituras! Primavera de 2022 Renato Brunassi Neves dos Santos1, Aguessy Teias de afeto: uma história de aranhas Após ajudar sua comunidade por mais uma vez, a Anansi decidiu descansar. Deitou-se em sua teia delicada, esperando uma mosca pousar e ficar. Ali, esteve por algumas horas, mas percebeu que mosca alguma ameaçara nem sequer um voo próximo, nem mesmo triscar a teia, quanto mais ficar presa nela. Anansi achou aquela situação enigmática e um pouco assustadora, então decidiu vibrar a teia em busca de informa- 1 Renato Brunassi Neves dos Santos, Aguessy. Doutorando e mestre em Ciências pelo PPG em Humanidades, direitos e outras legitimidades, do Diversitas - FFLCH/ USP. Especializado em Educação em Direitos Humanos pela UFABC e em Gestão da Educação Pública pela UNIFESP. Graduado e licenciado em História pela USP. É professor de História na rede da SME/SP e articulador pedagógico na Ocupação Cultural Jeholu. Iniciado como Dofono de Ossaim no Ilê Axé Omi Otá Lowa. 23 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ções. Por onde estariam as apetitosas moscas que todos os dias serviriam de alimento aos seus lindos filhotinhos, recém-saídos da ooteca, a bolsa tecida com tanto amor pela mamãe aranha? Conversando com suas amigas, Anansi descobriu que uma estranha aranha havia conquistado uma maneira de atrair todas as moscas para sua própria teia. Ela fazia isso roubando filhotes de outras aranhas e com eles produzindo um bálsamo, que para as moscas era como um irresistível perfume. A estranha aranha, então, lambuzava este perfume mórbido nos fios de sua teia, atraindo as moscas até o pouso derradeiro. Um bálsamo feito da inocência de jovens aranhas, transformadas em aroma que atraía as moscas para uma única teia, que ficava cada vez mais pesada. A estranha aranha trabalhava, dia e noite, para que sua teia pudesse suportar a quantidade cada vez maior de moscas grudadas em sua ilusória armadilha. Anansi achou aquilo uma insanidade e decidiu ir conversar com a mais nova dona de todas as moscas da floresta. Chegando lá, Anansi foi recebida com um delicioso suco de mosca fresquinho e convidada pela estranha aranha a se sentar e observar como toda aquela engenharia funcionava. A nova senhora das moscas disse à Anansi que trabalhava naquela ideia há algum tempo e que lhe parecia genial. Já havia conseguido criar uma teia tão grande e próspera, que nem lembrava mais da época em que passou fome. O perfume irresistível, mesmo sendo produzido com os corpos de inocentes filhotes, dia após dia, deixava de ser visto como uma escolha cruel e passava a ser o único modo possível de 24 TEIAS DE AFETOS E SABERES garantir aquela nova vida, livre de preocupações com as incertezas do futuro. Anansi ouvia atentamente as conclusões da estranha aranha, já pressentindo que aquela invenção colocava todas as outras aranhas em perigo, sem falar da terrível sensação que sentia ao pensar que, naquele esquema moedor, seus filhotes poderiam ter um fim trágico e precoce, apenas para sustentar o estranho modo de vida daquela aranha que, a cada minuto, parecia tornar-se mais e mais poderosa. A dona da teia perfumada de sangue estava feliz e satisfeita, com tamanho progresso que sua escolha arriscada produzia e Anansi, cada vez mais preocupada, decidiu perguntar o nome daquela irmã que com sua ganância trazia risco para toda a comunidade: Sou Ilorukó! Anansi ficou pensativa ao descobrir que o nome da estranha aranha significa exatamente “inominável”. Percebeu que estava diante de uma transformação na forma como as coisas deveriam ser. Como alguém poderia se referir a si mesma como “aquela que não tem nome”? Isso a tornava irreconhecível, desencontrada e, portanto, sem limites. Não passaria muito tempo para que Ilorukó controlasse alimento acumulado o suficiente para acalmar as revoltas das aranhas famintas e, doando cestas básicas de moscas frescas, comprasse o apoio das aranhas e de suas famílias, em nome de uma vida de abundância irresponsável. Esse projeto engenhoso e macabro, refletiu Anansi, se continuasse por muito tempo, poderia aprisionar toda a comunidade de aranhas numa ilusão cruel e insustentável. Uma teia, com uma dona sem nome, que alimentava a todos, consumin- 25 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES do por completo a vida das novas gerações. Uma vida de luxo e profusão, que trazia, hipocritamente, um terror sem fim. Em nome de quêm? A troco de quê? Anansi, então percebeu que, novamente, e por mais uma vez, sua comunidade precisava de ajuda, ajuda contra a ideia de que tudo pode ser calculado, até mesmo a relação entre a morte de inocentes para a boa vida de alguns gulosos. Precisava descobrir uma maneira de convencer a todos que aquela teia de morte destruía os princípios da vida comum: a reciprocidade e o compartilhar. Anansi saiu quase fugindo daquela teia da acumulação e, com sua agilidade de aranha, correu para junto de seu filhotes, os ajuntou próximos a ela e começou a colocar em prática a única estratégia conhecida para quando a gente precisa lutar contra uma ideia fixa perigosa: Anansi fechou os seus oito olhos e começou a sonhar. Ela precisava conhecer uma nova história, porque com a força das histórias seria possível vencer as armas terríveis de Ilorukó. Anansi precisava sonhar e, sonhando, lembrar o que queria aprender. Anansi sonhou, sonhou e sonhou, tanto que teve uma revelação: camaleões, não dois ou três, mas milhares e milhares de camaleões, sentados, parados, famintos, esperando suas presas. Suas peles mudavam de cor, metamorfoseavam-se nas mais variadas cores e texturas, e até brincavam de camaleão fingindo ser camaleão, que logo eram. Tão naturalmente adaptáveis, tão ao sabor das circunstâncias, revelaram para Anansi a potência do devir. Anansi acordou confiante! E porque tinha pressa por seus filhos, correu como só a ligeireza das pernas de uma aranha 26 TEIAS DE AFETOS E SABERES é capaz de correr, e foi falar com um velho sábio camaleão conhecido seu. “Venham, junte todos os seus camaleões e venham comigo, vou mostrar-lhes um banquete farto e infinito!” O velho camaleão desconfiou, mas conhecendo Anansi de tantos e tantos anos como conhecia, achou que talvez poderia mesmo ser apenas uma brincadeira, mas aquelas com final feliz e barriga cheia. Para dar confiança ao velho camaleão Anansi disse que, lá na comunidade das aranhas, uma delas havia criado uma brincadeira de mal gosto que tomou proporções incontroláveis e ninguém mais sabia como sair daquele jogo de ilusão, ao mesmo tempo em que iam se esquecendo, pouco a pouco, de que a vida não deveria e nem poderia ser daquele jeito. Para dar fim ao jogo, então, Anansi e o velho Camaleão concordaram que a melhor maneira seria virar a mesa, destruir o tabuleiro, subverter as estruturas, ir na raiz, ser radical, tendo o sonho como guia. O velho sábio camaleão juntou todos os seus filhos, netos, bisnetos e tataranetos e contou que havia um banquete preparado para eles, um banquete que deveria ser de todos. Os jovens da família não resistiram à proposta de irem ver com os próprios olhos e sentir com as próprias línguas os sabores mais recheados de sabores do mundo: um banquete de moscas! Como todos sabem, os camaleões não saem à caça de alimento, preferem usar a estratégia de sentar e esperar. Por isso, Anansi precisou deixar muito bem explicado que o banquete de moscas estava lá, prontinho, aguardando para ser devorado e que eles eram muito bem vindos para se alimentarem. E lá foram eles, a tropa de camaleões, guiados por Anansi 27 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES e pelo velho Camaleão, em direção à teia mais cheia de moscas que aquela floresta já vira. Ao chegarem em frente ao tesouro de Ilorukó, ela estava dormindo, tão saciada quanto cansada daquele trabalho de acumulação sem fim Os camaleões, ao verem tão pesada teia, adoçada por bálsamo terrível, saturada de moscas, tiveram uma sensação de reconhecimento. Como filhos da natureza que eram, receberam de bom agrado a fartura trazida pela floresta e começaram a devorar cada uma das moscas daquele banquete, destruindo assim, mesmo sem se darem conta, os sonhos de grandeza de Ilorukó. Que ironia, pensou Anansi, mal sabiam eles do que se tratava. Ela não compreendia o porquê de tamanha acumulação, do quanto aquilo era contra as leis sagradas dos ancestrais, da reciprocidade e da solidariedade. Mas, como parte da estratégia, Anansi achou melhor não falar nada, a batalha estava traçada e sendo executada como da lembrança de um sonho ela havia aprendido. Após a comilança, os camaleões, saciados, deitaram e dormiram todos, ali mesmo. E sonharam. Sonharam com a mãe natureza, em como a floresta, quando em harmonia, não falha em dar de comer aos seus e se agrada em satisfazer a vontade de fartura. O sábio camaleão, ao acordar, disse que o sonho o fez se lembrar de que prosperidade é bom, mas tirar o que deveria ser do outro é contra os ensinamentos ancestrais. Anansi, que ainda não tinha finalizado seu plano, percebeu que o recado dado tinha endereço certo e foi falar com Ilorukó, que estava em estado de choque ao ver sua teia destruída. Anansi carregou Ilorukó para sua própria teia e cuidou dela, acolheu e ensinou, pouco a pouco, dia a dia, que não é preciso ter muitas coisas para ser próspera, basta saber receber aqui- 28 TEIAS DE AFETOS E SABERES lo que te faz realizada. E a realização pessoal é algo que não se conquista sozinha, é algo que você constrói coletivamente, pois ninguém se sente reconhecida, importante e satisfeita sem ser valorizada pela comunidade que ama. Então, Anansi reuniu toda a comunidade: as aranhas com seus filhotes, os camaleões, os outros animais e todos os seres da floresta, para darem a Ilorukó um novo nome. Aquela que não tinha nome nenhum, passaria a ser chamada de Olamide, que significa “a riqueza chegou”, pois ela receberia, naquele momento, o reconhecimento de todos e assim ser próspera não pelo que tem, mas pelo que é. “Eu sou porque nós somos”, disse Olamide, cercada de aplausos e muita gritaria de felicidade. Desde então, Olamide vive sua vida ajudando a comunidade e compartilhando com todos seus momentos de alegria e também os de tristeza. Desde então, ela nunca mais passou por nada sozinha e sempre se lembrava que, tal qual um casamento, na vida em comunidade, nós temos uns aos outros para conviver, na doença e na saúde, na dificuldade e na fartura. Estava tranquila por isso, enfim. Livre da ansiedade. E Anansi, aliviada, sorria um riso solto ao brincar com seus filhinhos. 29 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Leandro de Oliva Costa Penha1 Território, escola e universidade: para além dos muros e hierarquias2 Um curso gratuito de arte e educação para professores com o objetivo de “oferecer um espaço de estudo, pesquisa, reflexão, experimentação e criação a partir de uma perspectiva decolo- 1 Leandro de Oliva Costa Penha é doutorando, com bolsa CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), sob a orientação da Profa. Dra. Sumaya Mattar. Especialista em Arte na Educação pela mesma instituição. Integra, como pesquisador, o GMEPAE - Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação. Tem experiência como gestor e arte/educador de projetos culturais e sociais desde 1997. <http://lattes. cnpq.br/2645606448629936>. 2 Este texto integra a pesquisa de doutorado do autor intitulada, provisoriamente: Entre a escola e a rua: o meio-fio como espaço de potência para as aulas de arte. 31 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES nial3, que faça frente aos desafios contemporâneos da arte na educação escolar” (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2022). Uma ponte estabelecida entre a universidade e a Educação Básica. Coordenado pela professora Sumaya Mattar e concebido em bases freirianas, desde sua criação pelo Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE)4 até a realização com professoras e professores participantes, majoritariamente, trabalhadores de escolas públicas de diferentes regiões da Grande São Paulo, o curso prezou pela construção do conhecimento em conjunto ou em comunhão, como dizia Paulo Freire, a partir do encontro de presenças curiosas no mundo. Pesquisadores-professores integrantes do grupo de pesquisa e professores-pesquisadores que se inscreveram para o curso ou, de forma sintética, “professores-alunos e alunos-professores” (Latorre, 2021)5 com corpos e mentes dispostos 3 Perspectiva de pensamentos e lógicas que superem a “longa história do mundo colonial/moderno, a colonialidade do poder, a subalternização do conhecimento e a diferença colonial” (MIGNOLO, 2020, p. 444). Tal conceito nos convoca a rever as narrativas dominantes em nossas práticas, de modo a colocar outras referências, outros relatos em diálogo, sem estabelecer uma hierarquia entre eles. 4 “O Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE/ CAP/ECA/USP) é vinculado ao Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP. De sua composição fazem parte docentes do ensino superior, estudantes de graduação e de pós-graduação, professores da Educação Básica, pesquisadores e artistas”. (GMEPAE, 2022). Disponível em: https://www. gmepae.com.br, acessado em 03 de julho de 2022. 5 Termos utilizados por Luiza Latorre, em seu trabalho de conclusão de curso intitulado Alunos-professores, professores-alunos, orientado pela professora Sumaya Mattar, submetido, em 2021, ao curso de Licenciatura em Artes Visuais na Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de licenciada em Artes Visuais. Luiza é integrante do grupo de pesquisa GMEPAE e, juntamente com Caio Bonifácio (na ocasião, também estudante de graduação), ministrou uma das aulas do curso Arte e Educação para Professores. Em Pedagogia do Oprimido (2021, [1970]), Paulo Freire utiliza os termos educador-educando e educando-educador. 32 TEIAS DE AFETOS E SABERES a criar, dialogar, refletir e experienciar a partir de ações poéticas e pedagógicas, formaram o grupo reunido ao longo de dois semestres. Aulas-encontros inventadas que convidaram para reinvenções. Uma formação dentro de um contexto relacional, com a proposta de mobilizar e potencializar saberes e práticas voltados para o conceito da aula como uma experiência significativa que alimenta a esperança e a capacidade de transformação nos níveis individual e social. Assim, caracterizou-se o curso de extensão Arte e Educação para professores – Módulo I e Módulo II, em sua primeira edição, realizada em 2019 e em 2021. Uma vez que temos refletido sobre a quebra de padrões coloniais, determinadas nomenclaturas precisam ser avaliadas ou, ao menos, representar temas disparadores de reflexões para mudanças futuras. Se considerarmos uma análise semântica, “ao estudar o campo associativo de significação”, como nos convida Paulo Freire em seu livro Extensão ou Comunicação, (Freire, 2021, [1967], p.20-21), por sua natureza, este curso não se caracteriza como “extensão”, termo que pode ser relacionado à “transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação etc.”, conceitos incompatíveis com uma educação de caráter crítico e libertador. Ao lado de ensino e pesquisa, muitas vezes, o eixo extensão na universidade é considerado como apêndice, de menor importância, com menos crédito e, portanto, isolado ou menosprezado. Estender para a sociedade os conhecimentos desenvolvidos dentro da esfera acadêmica? Estender à população em geral possibilidades de formação? “Estender da sede do saber até a sede da ignorância?” (ibidem, p. 25). Uma terminologia permeada por uma hierarquia, em que su- 33 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES jeitas, sujeites6 e sujeitos atives, com postura de superioridade, transmitem conteúdos para outres considerades passives e inferiores, que se encontram fora dos muros institucionais, fortalecendo, assim, a lógica de opressão, de dominação e invasão cultural, no caso dos territórios - uma vez que o conteúdo transmitido revela a visão de mundo de quem o leva e se sobrepõe à visão de quem o recebe. Freire defende a extensão universitária como ação cultural, um processo dialógico que envolve a transformação des sujeites envolvides e de questões sociais referentes a cada território específico. Como escreveu Gadotti (2017): [a] extensão universitária pode tornar-se articuladora das políticas territoriais, mas, para isso, precisa incorporar os “saberes de experiência feitos” (Paulo Freire) das comunidades, muitas vezes silenciados, subalternizados e até marginalizados pela academia. A extensão universitária na perspectiva da Educação Popular precisa começar pela descolonização das mentes no interior das próprias universidades. Um dos temas trabalhados no curso foi Arte e seu ensino para além da escola: meio artesanal, cultura popular, movimentos artísticos e movimentos sociais. No Módulo I, ocorrido no segundo semestre de 2019, participantes tiveram contato, por meio de textos indicados e experiências vivenciadas em sala de aula e fora dela, com as bases epistemológicas acerca deste eixo temático, assim como de todos os outros ei- 6 A opção do autor ao escrever o texto é pelo uso da linguagem neutra ou não-binária, com intuito de estabelecer uma comunicação inclusiva e menos sexista com leitores. 34 TEIAS DE AFETOS E SABERES xos7, e, no Módulo II, realizado no primeiro semestre de 2021, em formato remoto, em decorrência da pandemia, elaboraram aulas voltadas às escolas em que trabalham. A aula que propus, como um dos educadores da equipe, para refletirmos juntes sobre o ensino de arte para além dos muros da escola, foi criada a partir do conceito de território, um tema central em minha pesquisa de doutorado. Território é: [o] lugar marcado de um jogo, que se entende em sentido amplo como plataforma de toda e qualquer cultura: sistema de regras de movimentação humana de um grupo, horizonte de relacionamento com o real. (SODRÉ, 2002, p.23) O território como foco da experiência pedagógica, tanto em termos de produção de subjetividade a partir do reconhecimento das potências do local em que as pessoas vivem, quanto em termos de valorização de saberes do cotidiano que não são considerados como conhecimento dentro de uma lógica neoliberal, classista, tecnicista e hierárquica. Conforme explicita Milton Santos (2000, p.70): Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da 7 “Tópicos/Eixos/Temas: 1. Perspectivas e experiências decoloniais em arte e educação; 2. O ensino de arte no espaço escolar frente aos desafios contemporâneos; 3. A Lei 11.645: culturas indígenas e afro-brasileiras e o ensino de arte; 4. Arte e seu ensino para além da escola: meio artesanal, cultura popular, movimentos artísticos e movimentos sociais; 5. A docência da arte como práxis criadora; 6. O projeto político-pedagógico da escola e os projetos poético-pedagógicos dos professores” (Universidade de São Paulo, 2022). Disponível em: https://uspdigital. usp.br/apolo/apoObterCurso?cod_curso=270300026&cod_edicao=19001&numseqofeedi=1, acessado em 10 de julho de 2022. 35 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. É desse modo que, gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se como um alimento da política dos pobres, que se dá independentemente e acima dos partidos e das organizações. Na proposta apresentada ao grupo de professoras e professores, refletir sobre o espaço de vizinhança e onde se atua representou um convite para pensar a cidade para além das ruas, pontes, viadutos, construções; para refletir a partir das diferentes culturas territorializadas que a constituem; para planejar, em termos pedagógicos e artísticos, considerando que a urbe é composta por espaços territoriais e sociais, com diferentes marcas, regras e relações; para criar em conjunto com saberes e fazeres de cada pedaço da cidade, “por onde fluem novos significados coletivos que expressam as interpretações formuladas sobre as condições de vida na metrópole” (SADER, 1988, p. 121) . Pedaço da cidade, como definiu Magnani (2013, [1984], p. 116), é o “espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade”. Vale ressaltar que as professoras e os professores participantes do curso residem em São Paulo e Grande São Paulo e atuam em escolas públicas de diferentes pedaços, em diferentes bairros da cidade paulistana como Cidade Tiradentes, Bom Retiro, Campo Limpo, Butantã, Rio Pequeno, Sapopemba, Vila Nova Cachoeirinha, Jardim João XXIII, Jaraguá, Perus, Aclimação, Itaquera, e em cidades próximas, como Francis- 36 TEIAS DE AFETOS E SABERES co Morato, Diadema, São Caetano do Sul8. Lugares distantes do centro da grande metrópole, espaços marginais. Segundo hooks (1989, p.22-23): Espaços podem contar histórias e desdobrar histórias. Espaços podem ser interrompidos, apropriados e transformados através da prática artística e literária. (...) Espaço marginal não é um lugar de dominação, mas um lugar de resistência, de abertura e de possibilidade radicais, (...) continuamente formado nessa cultura segregada de oposição que é nossa resposta crítica à dominação9. [tradução nossa]. Se para a tese investigo “projetos poético-pedagógicos” (Moraes, 2002) de professores em diálogo com os territórios onde as escolas em que atuam estão inseridas, com o curso 8 Os bairros, em sua maioria, estão localizados nas periferias da cidade de São Paulo. Informação obtida a partir de questionário criado pelo autor, em formato Google Forms, respondido pelas professoras e participantes do curso entre setembro e outubro de 2020. 9 “Spaces can be real and imagined. Spaces can tell stories and unfold histories. Spaces can be interrupted, appropriated, and transformed through artistic and literary practice. (...) I make a definite distinction between that marginality which is imposed by oppressive structures and that marginality one chooses as site of resistance - as location of radical openness and possibility. This site of resistance is continually formed in that segregated culture of opposition that is our critical response to domination.” 37 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES de atualização10, pude ampliar a questão. Com a pesquisa, o interesse encontra-se nas frestas que existem nos muros que separam escolas e territórios. A possibilidade de reflexão propiciada pelas aulas do curso e a elaboração deste texto me fizeram perceber as barreiras que separam a universidade da cidade como um todo, a distância que, de forma generalizada, existe entre universidade e territórios vulneráveis socialmente, entre universidade e escola pública. Assim, somam-se à investigação novas indagações: de que forma a integração entre universidade, escola e território pode contribuir para novas epistemologias relacionadas ao ensino de arte? Como a extensão, como eixo acadêmico, pode contribuir para a formação de professores de escolas públicas? Para a concepção de uma aula que pode ser a primeira de uma sequência didática acerca do tema território, a rua foi escolhida como célula do sistema urbano, como local do coletivo, da vida em comum, da manifestação pública, da democracia. Em contraposição, o corpo como lugar da identidade, do subjetivo, do íntimo, da constituição individual, que ocupa e, artisticamente, ressignifica, o espaço público. Quando a brincadeira de rua vira dança foi o título da proposição poética e 10 Os cursos de extensão na ECA USP são oferecidos nas seguintes modalidades e carga horária mínima: especialização, com 360 horas; aperfeiçoamento, com 180 horas; atualização, 30 horas, e, difusão, com quatro horas. O curso de atualização “visa difundir o progresso do conhecimento em determinadas áreas ou disciplinas. (...) É destinado aos interessados em rever e aprimorar suas atividades profissionais, além de interagir com profissionais da área. Destina-se ao melhoramento da capacitação profissional.” (Universidade de São Paulo, 2022). O curso Arte e Educação para Professores é constituído por dois módulos com 15 aulas prático-teóricas semanais de quatro horas, totalizando uma carga de 60 horas cada um. Disponível em: https://www.eca.usp.br/ccex/cursos-e-oficinas, acessado em 10 de julho de 2022. 38 TEIAS DE AFETOS E SABERES pedagógica que realizamos em 06 de novembro de 2019 utilizando a sala B3 e o quintal do Departamento de Artes Plásticas (CAP)11, tendo a brincadeira de rua como matriz para experimentos cênicos. Como defende Hugo Cruz (2015, p. 538): [a] apropriação de espaços como ruas, escolas, mercados, praças, que são por excelência espaços de uma comunidade, facilita e enriquece o exercício de transposição entre o real e o imaginado, exatamente porque o processo artístico acontece nos espaços onde se deseja que aconteçam as mudanças. Partir das brincadeiras ocorridas ao ar livre, do corpo presente em estado de expansão e diversão no espaço urbano, é relembrar uma das primeiras estruturas organizadoras pelas quais construímos nossas relações coletivas na infância. Brincar é liberdade, é autonomia, é pertencimento, é expressão, é investigação e criação de mundo. Maria Amélia Pereira (2016) reitera: É no exercício do corpo em movimento que o brincar rompe com as limitações desse mesmo corpo, numa aliança com a imaginação, permitindo o intercâmbio livre entre o sujeito e o objeto. Dentro dessa verdadeira dança, o brincar se afirma como uma conduta pensante, produto de um complexo comportamento que tem origem no corpo. Tendo a rua como ambiente e a brincadeira de infância na memória, o corpo físico em diálogo com o corpo social, a dança, o desenho e a música foram as linguagens artísticas escolhidas para o encontro. De forma coletiva, investigamos o corpo que dança brincando e que brinca dançando. Um corpo 11 Dependências do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA / USP). 39 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES que transita do singular ao plural, do individual ao coletivo, explorando-se e explorando o meio em que está. Os objetivos da aula eram: explorar a relação do(s) corpo(s) no espaço urbano; inspirar processos de criação de experimentos cênicos com base no brincar, e provocar reflexões sobre a rua como campo de aprendizagem e experimentação artística. Para a realização deste encontro foram utilizados os seguintes materiais: uma bobina de papel branco 60cm x 20m, 50 lápis de cores variadas, três conjuntos de canetas hidrográficas, diferentes tipos de papel, cinco envelopes, retalhos, gravetos, sementes e um microsystem, onde foram reproduzidos CDs com diferentes músicas. A aula foi dividida em três momentos: Momento 1: Desenho e memórias de infância e do bairro onde cresceu; desenvolvido na sala de aula, com duração de 40 minutos. • Desenho ou colagem: cada participante pôde concentrar-se em um pedaço de um grande rolo de papel estendido no chão. Com diversos materiais distribuídos em cima e ao lado deste suporte (lápis de cor, cola, retalhos, diferentes tipos de papel, tesoura, sementes, canetas), criou uma obra inspirada em uma brincadeira de rua de sua infância. O título da obra se baseou no nome da brincadeira. Ao fundo, uma música instrumental que atravessou séculos: “Cânone em Ré Maior”, um cânone do compositor alemão Johann Pachelbel, com violoncelo e piano. • Com os trabalhos expostos, a turma apreciou todas as obras como em uma galeria e foi convidada a se dividir em quatro subgrupos, com cinco integrantes em cada um, tendo 40 TEIAS DE AFETOS E SABERES como critérios as afinidades, aproximações e similaridades entre os títulos ou entre as imagens. Imagem 1: Desenho – lembranças da infância. Fonte: GMEPAE, 2019. Momento 2: Brincadeira e corpos dançantes, desenvolvido no quintal, um espaço aberto, com jardim, existente nas dependências do CAP, com duração de três horas. • Uma ou um integrante de cada subgrupo ensinou a brincadeira que havia relembrado para suas e seus colegas. Os subgrupos brincaram e realizaram as trocas até que todes do grupo tivessem vivenciado todas as brincadeiras. Este momento, intencionalmente, teve duração de 80 minutos para que os corpos atingissem um estado de expansão e dilatação. Foram realizadas, aproximadamente, 20 brincadeiras diferentes. • Cada integrante escolheu um movimento corporal que realizou em cada brincadeira, ou seja, selecionou cinco movimentos e criou uma sequência coreográfica. Ao som de diferentes músicas e ritmos, todes, simultaneamente, dançaram suas criações individuais ao ar livre. 41 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES • Cada integrante escolheu apenas um dos cinco movimentos e ensinou para seu subgrupo. O subgrupo criou uma célula coreográfica com cinco movimentos e uma estrutura de início, meio e fim, que foi apresentada à turma com uma das músicas escolhidas pelo grupo, interferindo, poeticamente, no espaço. Ao final, todes dançaram juntos em um único grupo, inspirados pelas coreografias criadas ao som da música do início da aula, “Cânone em Ré Maior”, de Johann Pachelbel. Momento 3: roda de reflexão sobre aprendizados e inspirações para aulas realizadas em espaços públicos próximos às escolas onde atuam e/ou em diálogo com a história pessoal e a cultura local. • Cada grupo recebeu um envelope com frases retiradas das referências bibliográficas12 que foram utilizadas como convites disparadores para uma reflexão em roda a partir do que foi vivenciado, de modo a produzir conhecimento de forma coletiva, aliando teoria e prática. Para Paulo Freire, “é a consciência da experiência que podemos chamar conhecimento” (apud BARBOSA, 2010, p.12). Em seu trabalho de conclusão de curso, Luiza Latorre (2021, p. 22-24), após analisar as entrevistas que realizou com participantes do curso, concluiu sobre esta aula específica: “Acho interessante como uma aula pensada para crianças foi potencializada quando realizada para um grupo de adultos, posto que, dessa vez, a memória e a nostalgia embalaram a experiência de todos”. Outros comentários presentes nas entrevis- 12 Ver Apêndice 1. 42 TEIAS DE AFETOS E SABERES tas aparecem em seu texto: Parecia que a gente estava fazendo várias coisas divertidas, e no final, a gente estava aprendendo várias coisas, movimentos, e acho que essa é outra forma de elaboração também. (BONIFÁCIO, C., 2021, informação verbal) Achei incrível como pequenos atos remontados a partir das memórias de infância de cada um deram movimentos às danças criadas naquela aula. Mesmo eu que sou completamente travado de timidez me senti solto durante aquela atividade e consegui me expressar. (RAMOS, R., 2021, informação verbal) Uma continuidade desta aula poderia estar vinculada a mestres populares, com conversas presenciais ou vídeos, por meio dos quais a turma trocasse saberes e fazeres sobre construções de brinquedos tradicionais e/ou dinâmicas do universo das danças populares brasileiras. Ao final do Módulo I, do qual fez parte a aula descrita, algumas ideias foram apresentadas pelas professoras e pelos professores participantes, no sentido de orientar seus projetos poético-pedagógicos: desenho e livro de uma turma de alunos da escola; teatro com dança e poesia; a sala de aula não é uma caixa; documentário sobre os propósitos dos alunos; brinquedos dos avós (resgate das práticas ancestrais), tramas e territórios (ocupar a praça com arte); pesquisa a partir do simbolismo das portas da escola; histórias indígenas a partir de histórias de vida; criação de um cineclube; intercâmbio entre escolas por meio da troca de cartas; histórias de vida com mosaico; ritos e tradições; a cultura surda; criação de currículo com os saberes das famílias do território. Em virtude do contexto pandêmico, o Módulo II do curso 43 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ocorreu, em formato remoto, no primeiro semestre de 2021, o que impactou na adaptação, suspensão ou adiamento dos projetos pedagógicos criados por participantes. Como previsto no planejamento do curso, as aulas do segundo módulo foram criadas, planejadas e ministradas por professores participantes. A cada encontro, o grupo vivenciava duas proposições pedagógicas criadas por diferentes profissionais. Entre as aulas era realizado um pequeno intervalo. Pesquisadores, coordenadores e integrantes do GMEPAE, que no Módulo I eram responsáveis pelas aulas, participavam destes novos encontros como educandes. Ao final de cada encontro era realizada uma roda de reflexão, com comentários, observações, sugestões de todo o grupo a partir da experiência vivenciada com intuito de colaborar para que cada profissional realizasse, posteriormente, sua proposição na escola em que trabalhava, com um pensamento ainda mais aprofundado acerca de sua criação pedagógica e artística. Algumas destas aulas apresentaram diferentes possibilidades de ensino e aprendizagem de arte na escola pública em diálogo com o território. Para este texto, priorizei duas propostas de professores13 que residem e trabalham em bairros distantes do centro da cidade de São Paulo e que, em seus planejamentos pedagógicos, enfatizam a cultura local e a arte que está enraizada nestes pedaços da cidade. A Expressividade do grafitti foi o título da aula criada pelo professor Fernando Lima Ramos, que reside em Itaquera e trabalha com turmas de Ensino Fundamental II e Ensino Mé- 13 Tais profissionais autorizaram o uso e a publicação dos dados. 44 TEIAS DE AFETOS E SABERES dio em escola estadual situada na zona leste, mais especificamente, no bairro Cidade Patriarca, distrito de Vila Matilde. Sua aula foi realizada em 05 de maio de 2021, de forma remota, pela plataforma Google Meet, com os alunos-professores do Curso Arte e Educação para Professores, e em 02 de fevereiro de 2022, em formato presencial, para alunes das três diferentes séries do Ensino Médio na escola pública onde trabalha. A base de sua proposição apoiou-se nos pilares de uma linguagem artística originariamente periférica, de suas experiências como aluno e de seus anseios como educador dedicado e atento às necessidades des educandes. Como docente ao longo de 10 anos nas escolas públicas de São Paulo, pude observar que as necessidades dos jovens, em sua grande maioria, são basicamente as mesmas que eu ansiava há décadas, quando eu também era apenas mais um estudante da rede pública. O anseio de ser escutado, de ter voz. Por quem eles são escutados? (RAMOS, 2021, p.1) Em seu plano de aula, descreveu os principais momentos do seu planejamento: Começaremos com a música Azul da Cor do Mar14 do cantor Tim Maia, que servirá de inspiração para o trabalho prático. Após apresentada a música, assistiremos a um vídeo do artista Dingos, e mostrarei imagens de produções de artistas para os alunos, tais como: Keith Haring, Jean Michael Basquiat, Os Gêmeos, Binho, Banksy, Odeith, Tioch e Jeinst One. Também será explicada, de forma resumida, a história do graffiti. Por último, com base no início da letra da música (Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir...), os alunos desenharão, utilizando 14 Ver Anexo 1. 45 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES a estética do graffiti, o que gostariam que as pessoas escutassem deles. As obras serão expostas e discutiremos sobre cada uma delas. (RAMOS, 2021, p. 2) Ao compartilhar imagens de grafittis de São Paulo, do Brasil e do mundo, por meio de fotografias projetadas e de um vídeo, Fernando convidou as turmas, tanto no formato remoto quanto no presencial, a ampliarem o olhar para o espaço externo, para o espaço público, para a rua e para os muros. Simultaneamente, a partir da letra da canção, convocou a expressividade do sujeito, nos convidando a entrar em contato com sonhos, desejos, angústias, denúncias, com nossas lutas e nossas buscas. Uma proposta pedagógica que não somente valoriza a arte urbana com a integração de diferentes linguagens - música, vídeo e desenho – como investe no sentido e no propósito do grafitti como forma potente de expressão, reconhecimento e identidade. Em um momento em que estávamos impedidos de irmos para a rua, em 2021, pelo contexto pandêmico, Fernando trouxe a rua para dentro da aula. Partiu da letra de uma música e chegou a letras desenhadas, expressando sentimentos. Palavras expressando profundos desejos de mudança e esperança foram apresentadas e compartilhadas, com traços inspirados em uma arte democrática. Ao final do encontro, tínhamos um painel com uma diversidade de traços, tipos de letras, cores e uma pulsão coletiva voltada para a transformação social. Na aula presencial alguns alunes escolheram não participar da atividade de desenho. Fernando considerou os tempos, ritmos e características de cada grupo. Para o educador, “foi uma experiência compensadora e desafiadora que deu muito certo nas duas turmas”. 46 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 2: Exercício realizado na aula do professor Fernando Lima. Fonte: Acervo pessoal, 2021. Silvania Francisca de Jesus, residente do bairro Piqueri, é professora de um Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, em Perus, zona noroeste da cidade de São Paulo. Enalteceu o bem-estar a partir da natureza, o contato com a terra, o olhar para o quintal, a ação das mãos na horta, o regar as plantas em vasos que, muitas vezes, são trocadas entre vizinhes, em decorrência de suas propriedades medicinais. Segundo ela, “é comum, nos corredores da escola, se ouvir a partilha de receitas entre os estudantes sobre o tratamento de diferentes moléstias. O conhecimento sobre as ervas, as plantas que curam, por parte dos estudantes de EJA é bastante relevante”. Ao fecharmos os olhos por alguns segundos, concentrados neste cenário, quase podemos ouvir: - Capim-limão tem no quintal da Dona Ana; pede arruda pra dona Cida que ela te 47 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES dá um raminho; o Tonho sarou foi com aquele trem da flor branca cheirosa. Muitas são as frases repletas de sabedoria que ouvimos ao caminhar entre as ruas das comunidades ou entre os corredores da escola. Tradições familiares, religiosas, crendices populares, processos de cura, tratamentos e terapias em conexão com a natureza. O convívio comunitário repleto de solidariedade fortalece a rede de cuidado e de proteção em territórios periféricos. A aula de Silvania para a turma do curso de extensão, intitulada Conhecendo as ervas medicinais, uma farmácia no nosso jardim, ocorreu, em formato remoto, em 7 de abril de 2021, e teve como objetivos: ampliar o conhecimento ancestral dos estudantes sobre o uso das ervas medicinais; apresentar os diferentes tipos de ervas medicinais; motivar estudantes a registrarem as receitas de chás e xaropes em um livro com ilustrações das ervas, tendo o decalque15 como técnica ou outra técnica de escolha da turma, e fomentar a leitura e a escrita de textos curtos informativos e instrucionais. (JESUS, 2021, p. 1). A aula foi iniciada com música cantada por ela, seguida por um poema16 de Rosenir Gonçalves Neves, publicado no livro Xacriabá de plantas medicinais: fonte de esperança e mais saúde, e finalizada com cantiga da curandeira baiana Maria Redonda, ao som de instrumento de percussão tocado por Tiago Neves, marido de Elaine Santana, outra participante do curso. Tudo por meio de janelas das plataformas digitais de videoconferências. 15 “A arte aqui é usar as folhas por baixo do sulfite, e passar o giz de cêra de forma que as nervuras e texturas da folha apareçam no papel.” (JESUS, 2021, p.1) 16 Ver Anexo 2. 48 TEIAS DE AFETOS E SABERES Previamente, por e-mail enviado pela professora, a turma foi convidada a escolher uma erva medicinal e preparar o próprio chá. Ao iniciar o encontro, Silvania nos perguntou: - que erva você tem aí? Que relação você tem com ela? Por que a escolheu? Tem memória de algum chá que alguém preparou para você? Boldo, manjericão, camomila, erva-cidreira, capim-limão, hortelã, alecrim, louro, peregum, melissa, aranto, babosa, ora-pro-nóbis, sálvia e unha-de-gato apareceram nas histórias e lembranças contadas. Os vínculos familiares, a figura de avós, tias, mães, pais e filhos foram destaques durante os diálogos estabelecidos. Por meio das memórias afetivas compartilhadas por cada participante, a experiência virtual ganhou ares de uma roda presencial, tamanha ativação de diferentes sentidos, troca de afeto, de aprendizados e de revelações sobre o estado de encantamento, pertencimento e calmaria obtidos. Um elo estabelecido entre as pessoas por meio do ritual do chá. Uma ruptura do estado de isolamento e distanciamento em que nos encontrávamos naquele momento da história. “Um Círculo de Cultura17 se criou”, conforme sintetizou Silvania, inspirada em Paulo Freire. Pude perceber (...) a transversalidade que esta prática nos propôs em ter um olhar para diferentes áreas do conhecimento, muito perceptíveis na oralidade, pois são saberes passados de mãe para filha, de vó para neta, de bisavó para bisneta. (...) Os assuntos que surgiram passaram pela ancestralidade e experiência com o sagrado de cada participante ao degustar o 17 “Os Círculos de Cultura eram espaços em que dialogicamente se ensinava e se aprendia. Em que se conhecia em lugar de se fazer transferência de conhecimento. Em que se produzia conhecimento em lugar da justaposição ou da superposição de conhecimento feitas pelo educador a ou sobre o educando. Em que se construíam novas hipóteses de leitura do mundo.” (FREIRE, 2019, [1994], p.192) 49 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES chá, a escuta atenta dos demais, o acolhimento da diversidade de experiências e memórias afetivas que brotaram a cada fala. (...) A metodologia usada atravessou a tela do notebook, dos celulares e os participantes entraram na roda de aromas, sabores diversos dos deliciosos chás saboreados durante a aula. (JESUS, 2021, p.4). Imagem 3: Professora Silvania Francisca de Jesus em sua aula remota Conhecendo as ervas medicinais, uma farmácia no nosso jardim Fonte: GMEPAE, 2021. Em um exercício de reflexão, após a conclusão da aula e da roda de avaliação do grupo, a professora notou que muitas 50 TEIAS DE AFETOS E SABERES memórias foram resgatadas para ressignificar saberes que as pessoas traziam em seus repertórios. O ajuste que Silvania propôs para o formato presencial incluiu, em seu plano pedagógico, as histórias de vida de cada estudante e teve o jardim da escola e as hortas comunitárias em parques municipais como possíveis locais para a realização da aula. O centro da reflexão do projeto pedagógico é o fio da história de vida de cada estudante, baseado em sua trajetória e nos lugares por onde passou. Portanto, esse trabalho retrata, geograficamente essas pessoas, que na circularidade dialogam, se deparam com suas semelhanças e diferenças. (...) Na educação de jovens e adultos, muitos verbos permeiam as falas dos estudantes e o esperançar, assim como pontua Paulo Freire, ‘esperança do verbo esperançar’, dá ânimo para não desistirem de seus sonhos. (JESUS, 2021, p. 5-6) A intencionalidade de fortalecer subjetividades e facilitar a troca de saberes entre as pessoas a partir do que dominam e reconhecem como seus saberes cria uma rede coesa de sociabilidade e engajamento com as questões sociais e culturais do bairro. Equipe pedagógica e gestores debruçam-se sobre a história do território, estabelecem parcerias com instituições e coletivos locais, de modo que, o planejamento das ações envolva a população atendida. “Aqui os estudantes conseguem se sentir pertencentes ao mundo educador. (...) Para nós, acolher e dialogar com o território significa acolher e dialogar com esses estudantes” (JESUS, 2021, informação verbal)18. 18 Informação fornecida por Silvania Francisca de Jesus em entrevista concedida ao autor, realizada em formato remoto, pela plataforma de videoconferência Google Meet, em 10 de dezembro de 2021. 51 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Como podemos notar, território está inserido como tema em algumas propostas de profissionais que participaram do curso de extensão, o que demonstra, de algum modo, a ressonância e a repercussão da proposta. Para Bachelard (1993, p. 187):: As ressonâncias se dispersam nos diferentes planos da nossa vida no mundo, a repercussão nos chama a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância, ouvimos o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso. As repercussões notadas, sobretudo por depoimentos, entrevistas e conversas com participantes durante e após a realização do curso, ocorrem progressivamente a cada contato. Ainda em 2020, primeiro ano de pandemia - com as aulas nas escolas públicas realizadas em formato remoto e todas as dificuldades advindas deste formato, como falta de acesso para alunes, sobrecarga de trabalho para professores e diretores, um panorama de tragédia com um número crescente de óbitos diariamente em todo o país, além do aumento dos índices de pobreza – participantes do curso revelavam que temas tratados no Módulo I continuavam permeando suas práticas. Alguns conteúdos citados nas entrevistas fechadas foram: questões étnico-raciais, questões de gênero, memória, educação antirracista, poéticas pessoais, histórias de vida, culturas indígena e africana, o vínculo entre prática pedagógica e criação artística. Uma professora que atua com Ensino Infantil concluiu: Acredito que a abordagem do primeiro módulo, onde nos foi apresentada e oferecida a experimentação de diversas possibilidades artísticas e culturais, com reflexões essenciais sobre questões sociais e educacionais, foi de extrema utilidade nesse momento do trabalho remoto, pois além de ser possível partilhar essas aprendizagens e reflexões ao longo desse 52 TEIAS DE AFETOS E SABERES período, também foi possível colocar em prática em diversas propostas idealizadas pelo meu grupo de trabalho, onde a arte esteve presente em todos os momentos, com propostas inspiradas em diversos artistas contemporâneos, indígenas, mulheres, onde procuramos trabalhar questões étnico raciais, de gênero, histórias, memórias, utilizando diversas possibilidades artísticas. (informação pessoal)19 Ao final do curso, em registros avaliativos, uma das tônicas apresentadas por participantes foi a importância em termos de conhecimento apreendido e em relação aos desdobramentos no exercício do ofício como professores. Silvania e Fernando relataram: Os dois módulos do curso abriram horizontes, um presencial e o outro on-line, e possibilitaram revisitar minha prática e a dos colegas, sonhar novas trajetórias, alinhar ideias, arriscar a expandir o sonho de uma prática crítico-libertadora na educação de jovens e adultos. (JESUS, S., 2021, p.8) O encaminhamento que foi dado em cada encontro trouxe para mim novas possibilidades que eu utilizei com os meus estudantes. Estou usando agora, na EJA, fazendo a aula virtual para alguns estudantes que não podem no presencial e isso está funcionando. (...) A metodologia (do curso) me marcou. (JESUS, S., 2021, informação verbal)20 19 [...] Consulta à turma do Curso de Extensão Arte e Educação para Professores - Módulo II. Destinatário: Leandro de Oliva Costa Penha. [São Paulo], setembro. 2020. Formulário eletrônico. O formulário, criado pelo autor, foi elaborado de forma a garantir o anonimato de todas, todos e todes que responderam. 20 Informação fornecida por Silvania Francisca de Jesus em entrevista a Leandro de Oliva Costa Penha, realizada em 04 de agosto de 2021, em formato remoto, por meio da plataforma de videoconferência Google Meet. 53 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Antes de ingressar no Curso de Arte e Educação para Professores, eu nunca tinha escutado falar em decolonialidade, e posso ir muito mais além: nunca questionei os processos históricos apresentados ao longo dos anos, pautado na visão eurocêntrica. (...) Os conhecimentos e experiências adquiridos no curso me propiciaram um novo olhar para a escola, mais humano e empático, valorizando tempos, ações e contextos. Foi uma mudança completa na minha forma de enxergar processos históricos, percursos formativos, construção coletiva de saberes. Transformou minha prática pedagógica e a forma de observação perante os discentes. Lacunas onde habitava o desânimo foram preenchidas pela esperança de fazer a diferença na educação pública. (RAMOS, F., 2021, p.8-9) Vimos, assim, como são significativas as ressonâncias e reverberações em diferentes contextos de um curso gratuito voltado para atualização docente em arte, ao convidar professoras e professores da Educação Básica, assim como pesquisadores, estudantes, educadores e artistas integrantes de um grupo de estudo, pesquisa e extensão de uma universidade pública, para um espaço de troca de saberes e fazeres, que convoca o alinhamento entre teorias e práticas pautadas na emancipação, na criação, na diversidade, na crítica e na transformação de realidades. Um processo colaborativo de formação em que a reflexão e o diálogo são as chaves da aprendizagem com base na experiência. Retomo a problematização do início do texto sobre extensão e território periférico como margens. É preciso transcender as margens com aprendizados aliados às práticas em diferentes realidades por meio dos estágios supervisionados, como ocorre com as propostas de organização do estágio de- 54 TEIAS DE AFETOS E SABERES senvolvidas pela professora Sumaya Mattar nas disciplinas21 do curso de licenciatura em Artes Visuais no CAP USP e em projetos de ensino, como o Subprojeto Arte do Programa de Residência Pedagógica - CAPES USP22, por exemplo, assim como com atividades síncronas e assíncronas, de modo que o acesso à formação docente seja democratizado, como ocorre com o projeto de extensão Matizes: diversidade na roda da arte/educação,23 iniciativa igualmente coordenada pela professora Sumaya Mattar, criada por estudantes da licenciatura em Artes Visuais, em 2021. Outra perspectiva é fortalecer a margem, inseri-la no centro das pautas, com políticas afirmativas, com cursos centrados em trabalhadores dos serviços públicos, em um público que está fora do universo acadêmico - inclusive pelo histórico classista da universidade - na população que sofre discriminação e exclusão social, política e econômica, como negres, indígenas, pobres, desempregades, homossexuais, travestis, 21 Refiro-me especificamente às disciplinas: Metodologias de Ensino das Artes Visuais com Estágios Supervisionados (I e II), ministradas pela professora Sumaya Mattar. (GMEPAE, 2022). Disponível em: https://gmepae.com.br/disciplinas/graduacao, acessado em 24 de julho de 2022. 22 “O Subprojeto Arte é parte do Projeto Institucional da USP de Residência Pedagógica e visa contribuir para a superação da distância entre teoria e prática na formação de futuros professores dos cursos de licenciatura em arte da Escola de Comunicações e Artes da USP” (GMEPAE, 2022). Disponível em: https://gmepae. com.br/projetos/residencia-pedagogica-capes-usp-subprojeto-arte-inicio-2020/, acessado em 24 de julho de 2022. 23 “O projeto Matizes promove o diálogo com educadores, artistas e pesquisadores em torno das temáticas étnico-raciais, diversidades e interseccionalidades na arte e educação, sob uma perspectiva decolonial.” (GMEPAE, 2022). Disponível em: https://www.gmepae.com.br/projetos/matizes-diversidade-na-roda-da-arte-educacao/, acessado em 24 de julho de 2022. 55 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES refugiades, deficientes e pessoas idosas. Urge que o diálogo, o afeto, o cuidado, o acolhimento, a escuta ativa, o olhar para questões individuais e coletivas sejam princípios orientadores das relações e das políticas de permanência nos ambientes formativos para garantir que as pessoas concluam suas formações e integrem uma rede capaz de produzir conhecimento de forma sensível. O curso Arte e Educação para professores efetiva tal proposta. Durante os módulos do curso foi estabelecido um ambiente de diálogo e criação pedagógica e artística sem hierarquia de saberes. Todes - pesquisadores, professores, coordenadores, graduandes e graduades, pós-graduandes e pós-graduades aprendendo e ensinando de mão dadas, em círculo, no chão, em cadeiras, sempre com olhos nos olhos, em sala de aula ou por meio de câmeras, quando foi necessário. Uma iniciativa democrática em todas as etapas de criação e realização. As adversidades, que porventura tenham ocorrido, foram acolhidas pela coordenação e pelo grupo. Soluções foram encontradas coletivamente. Territórios valorizados em propostas pedagógicas, professores dedicades nas mais diversas circunstâncias e situações, um exercício constante de investigação de si e do mundo, em conjunto com parceires de profissão de, praticamente, todos os níveis e modalidades da Educação: trabalhadoras e trabalhadores da Educação Infantil, da Educação Fundamental, de Ensino Médio, de Educação de Jovens e Adultos, de Educação Especial e de Ensino Superior. Profissionais engajades, social e politicamente, com clareza sobre o papel e a função social da universidade pública e ávides por prosseguirem com o processo formativo em um ambiente acadêmico: 56 TEIAS DE AFETOS E SABERES É importante que a universidade pública dê oportunidade para todos, principalmente para aqueles que vêm da periferia. (...) Eu pensei até em desistir do curso por ser remoto (no módulo II). Eu achei que eu não ia dar conta, por não ser o meu perfil. (...) Como eu já tinha encarado isso como um desafio, como uma grande oportunidade estudar na Universidade de São Paulo - mesmo porque eu pretendo continuar estudando, pretendo ingressar, de repente, em um mestrado, quem sabe em um doutorado - eu falei: - é importante para mim, vou continuar, mesmo que seja difícil o modo on-line. E me surpreendeu. (...) Foi uma coisa mais tranquila, mais leve, (...) foi muito bom. (...) Até me ajudou a prestar atenção em como estavam sendo minhas aulas com os alunos no modo on-line. Como era on-line eu ficava muito preso na teoria, tive um pouco de medo de trabalhar prática e eu percebi: no curso a gente faz a coisa prática mesmo on-line, então, acho que dá para trabalhar com os alunos e aí rolou. Foi legal também, foi bacana. (RAMOS, F., 2021, informação verbal)24 Eu sempre tive o sonho de fazer qualquer curso na USP. Sempre achei a USP um território bem longe de mim, bem longe da minha prática, da minha realidade. (...) A universidade pública, para mim, tem um papel importante para abrir espaço para aqueles que ficaram muito tempo fora da universidade. (...) Eu me sinto essa pessoa, que jamais imaginava que iria fazer um curso numa universidade pública e hoje consegui ingressar num doutorado numa faculdade renomada como a USP. A formação que eu tenho pela faculdade pública, hoje, ela me dá um aporte teórico muito bom, ela me ampara na teoria, mas, eu sinto que ela ainda precisa mergulhar dentro das práticas das escolas para trazer novos conhecimentos. (...) Precisa ter 24 Informação fornecida por Fernando Lima Ramos em entrevista ao autor, realizada em 10 de agosto de 2021, por meio da plataforma de videoconferência Google Meet. 57 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES esse bem viver entre a universidade e a escola, o chão da escola. (JESUS, S., 2021, informação verbal)25 As palavras de Silvania soam como uma convocatória para todes nós que buscamos construir e colaborar com outras histórias, criadas a partir do rompimento ou do abalo aos muros, físicos e simbólicos, visíveis e invisíveis, que foram erguidos para separar territórios periféricos, escolas públicas e universidade. Ao nos debruçarmos sobre os planejamentos pedagógicos e sobre as reflexões posteriores às aulas que foram ministradas no curso e nas escolas públicas, nos deparamos não com modelos, formatos e receitas a serem seguidos, copiados ou reproduzidos, mas com um caleidoscópio de propostas autorais que podem inspirar outras criações, com proposições potentes em termos de formação humana, de valorização da arte como um direito, de um olhar crítico para o sistema e do exercício pleno da cidadania na democracia. Como considerações finais, vale retomar as questões que orientaram este texto e as pistas encontradas. De que forma a integração entre universidade, escola e território pode contribuir para novas epistemologias relacionadas ao ensino de arte? Nos dois módulos realizados houve um empenho para estabelecer uma proposta de ensino e aprendizagem contra hegemônica, um modelo não conteudista, com relações dialógicas entre discentes e docentes. Planos de aula foram criados, não reproduzidos por professores; elaborados com base 25 Informação fornecida por Silvania Francisca de Jesus em entrevista ao autor, realizada em 04 de agosto de 2021, por meio da plataforma de videoconferência Google Meet. 58 TEIAS DE AFETOS E SABERES em referências teóricas e práticas indicadas na bibliografia do curso e ampliadas com outras apresentadas por participantes, o que ampliou os repertórios individuais. As proposições eram seguidas de reflexões, com base em registros e em debates entre o grupo, antes de novas ações pedagógicas. Um amplo conjunto de produções artísticas foi elaborado, de forma individual e coletiva, ao longo das aulas. A construção de conhecimentos ocorreu a partir da somatória de saberes acadêmicos e não acadêmicos, considerando a potência dos territórios periféricos. Potência esta que se manifestou, no curso, nos saberes e nas tradições culturais mobilizadas por professores e pesquisadores, mas que também pode se expressar na produção artística, na capacidade de enfrentamento às duras condições de vida, na valorização da cultura local, na produção e realização de eventos populares, no surgimento de inúmeros coletivos de ação e de intervenção social e urbana, na sociabilidade e solidariedade como elementos aglutinadores de uma vida em comunidade. Tal como apontado em diferentes estudos (como Nascimento, 2009 e Hamburger, 2011), as produções culturais da periferia se constituem como manifestações contundentes no cenário contemporâneo e ajudam a criar um sentido positivo e de pertencimento a um tipo de território que antes estava apenas associado à pobreza, à violência e à precariedade de infraestrutura e serviços. Outra questão que orientou os percursos deste relato de experiência: como a extensão, como eixo acadêmico, pode contribuir para a formação de professores de escolas públicas? Com oferta de cursos com acesso gratuito, envolvimento de docentes e discentes de graduação e de pós-graduação, inscrições abertas a professores da rede pública de ensino, vagas preenchidas a partir da política de diversidade étnico-racial e 59 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ações afirmativas, que foi como se deu a seleção dos participantes, divulgação realizada com apoio de Diretorias Regionais de Educação, metodologia pautada na criação pedagógica e artística, assim como no afeto, no cuidado e na troca. Também ao estabelecer conexões entre teoria e prática e considerar as características de cada realidade, a extensão universitária tem muito a somar em termos de formação continuada. Por suas características, o curso Arte e Educação para Professores, criado e organizado pelo GMEPAE, apresenta-se como uma ação cultural, como propôs Paulo Freire. Mobiliza-nos a seguir em frente quando constatamos a potência existente nas frestas. Agir com a intenção de causar rachaduras, de abrir espaços, de apontar caminhos e ações para criarmos sentidos de outras formas – que o sistema totalitário insiste em perseguir e destruir – é dever de todas as partes que buscam viver em uma sociedade mais justa e com melhores condições de vida para todes. Que a produção de conhecimento resultante das relações horizontais entre territórios, escolas e universidades seja cada vez mais uma regra e não uma exceção. REFERÊNCIAS BACHELARD, G. A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978. BARBOSA, Ana Mae. Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2010. CRUZ, Hugo. Possíveis leituras-síntese e projecções futuras em arte e comunidade. In: CRUZ, Hugo (Org.). Arte e Comunidade. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 23ª. edição. 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A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2000. KISHIMOTO, Tizuko Morchida (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1996. MARQUES, Isabel. Notas sobre o corpo e o ensino da dança. Caderno Pedagógico, Lajeado, v. 8, n. 1, p. 31-36, 2011. ________________ Dançando na escola. São Paulo: Cortez Editora, 2003. ________________. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez Editora, 1999. MARTINEZ BONAFÉ, Jaume. A cidade no currículo e o currículo na cidade. In: GIMENO, J. (org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 442 a 458. XAVIER, Uxa. Lagartixa na janela - Mapas para dançar em muitos lugares. São Paulo: Editora Patuá, 2014. VÍDEOS: CENTRO DE REFERÊNCIA CULTURA INF NCIA. Entrevista Lydia Hortélio. Youtube, 17 de novembro de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VgobqqhlbSk>. ITAÚ CULTURAL. Memórias da infância – Ocupação Lydia Hortélio (2019). Youtube, 19 de julho de 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UKyEyf2FGzQ>. MEMÓRIAS DO FUTURO. Peo - Maria Amelia Pereira - Casa Redonda. Youtube, 11 de abril de 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A7x33gzfYEs>. 63 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ANEXO 1 AZUL DA COR DO MAR canção de Tim Maia Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir Tenho muito pra contar Dizer que aprendi E na vida a gente tem que entender Que um nasce pra sofrer Enquanto o outro ri Mas quem sofre sempre tem que procurar Pelo menos vir achar Razão para viver Ver na vida algum motivo pra sonhar Ter um sonho todo azul Azul da cor do mar Mas quem sofre sempre tem que procurar Pelo menos vir achar Razão para viver Ver na vida algum motivo pra sonhar Ter um sonho todo azul Azul da cor do mar 64 TEIAS DE AFETOS E SABERES ANEXO 2 AS PLANTAS MEDICINAIS poema de Rosenir Gonçalves Neves As plantas medicinais Combatem doenças e dores Só temos de conhecer Seus verdadeiros valores Quem entende desta arte Descreve parte por parte Para explicar aos leitores Tudo o que Deus criou Já nasce com seu valor Não sou contra farmácia Nem hospital nem doutor Mas se existissem as reservas Das matas com suas ervas Não havia tanta dor Vamos procurar conhecer As plantas medicinais Seguindo um pouco do exemplo Que deram os nossos pais Pra ver se sobram alguns trocados Pois só com remédio comprado A gente não aguenta mais! 65 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Vinícius de Azevedo1 O tecido dos nossos sonhos: o bordar na formação docente Nossa história começa com uma bordadeira que bordava o dia inteiro para sustentar seus filhos. Fazia pássaros, flores e borboletas e vendia na aldeia perto de sua casa, mas como ganhava muito pouco pelo seu trabalho, precisava trabalhar arduamente de sol a sol para garantir, minimamente, o alimento para sua família. Por ter que trabalhar tanto, não tinha muito tempo para sonhar, nem para pensar em seus desejos, seus propósitos, 1 Vinícius Souza de Azevedo. Arte-educador, bordador e narrador de histórias, doutor pela ECA/USP, na linha de pesquisa Fundamentos do Ensino e Aprendizagem da Arte (2020). Atualmente, trabalha com formação continuada de professores de arte junto ao Instituto Arte na Escola e como professor conteudista do Centro Universitário UNINA. 67 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES seus projetos. Apenas trabalhar, trabalhar, trabalhar... Um dia, depois de vender seus bordados, resolveu dar uma volta na aldeia, para procurar alguma promoção de comida e gastar menos dinheiro. Foi assim que ela encontrou o bordado mais lindo que havia visto na vida! Estava pendurado na frente de uma rica loja de tecidos finos e representava uma paisagem toda bordada em fios de seda, ouro e prata! Uma preciosidade... Ali, olhando aquele rico trabalho, rememorou seus desejos, voltou a pensar em seus propósitos como bordadeira e a sonhar... Voltando para casa, foi lembrando de um antigo desejo, um bordado o qual ela sempre quis realizar, mas nunca tivera tempo para dedicar a tal empreitada. E no caminho, foi pensando que nunca era tarde para realizar projetos e decidiu: a partir daquele dia, além dos bordados costumeiros, dedicaria tempo aos seus próprios desejos, mesmo que tivesse que bordar até altas horas da noite, não havia problema, desde que conseguisse realizar seus verdadeiros propósitos como bordadeira. Seu bordado seria uma linda paisagem também, como aquela que havia visto na aldeia, porém, ela faria um lago, com uma casa às suas margens e um belíssimo canteiro de flores. E coroando toda a composição, um lindo pôr-do-sol! Antes de qualquer coisa, ela precisava decidir quais materiais usaria para realizar tão importante trabalho. Primeiro de tudo, qual o tecido serviria de suporte? Deveria ser fino e elegante para trazer sofisticação ao trabalho, mas também precisava ser forte e resistente, pois queria que fosse um bordado que durasse muito e muito tempo. Qual tecido suportaria seu desejo? Após algumas reflexões, ela tomou sua decisão e, junto com ela, decidiu também sobre as linhas e as agulhas que 68 TEIAS DE AFETOS E SABERES usaria, adequadas ao suporte escolhido. E então, iniciou seu bordado: realizou o risco do desenho, a partir do qual desenvolveria todo o trabalho e, conforme ia desenhando, também planejava o conjunto de pontos que usaria para construir a imagem: aqui, entra muito bem o ponto haste; já nesta parte, seria mais adequado o ponto matiz; nesta outra, o ponto corrente; nesta, o ponto caseado. Assim, aos poucos, foi desenhando e elaborando toda a sua proposta de trabalho, o qual duraria muito tempo, pois se tratava de um desenho complexo e cheio de nuances, uma ótima expressão de seu desejo. O movimento realizado pela bordadeira não foi uma ação qualquer, tratou-se de um ato de reconexão, de atualização dos sentidos de sua prática. Rememorar os propósitos é um movimento salutar para o desenvolvimento de um processo de formação imbuído de significados e carregado de potência. Exatamente por isso, nossos primeiros movimentos nesse curso de extensão foram no sentido de provocar situações e práticas que estimulassem os participantes a este movimento: lembrar de si, de suas trajetórias, daquilo que mobilizou e ainda mobiliza. Particularmente, no campo do ensino da arte esse processo de rememorar é fundamental, pois geralmente, as escolhas feitas durante a trajetória de cada um e cada uma esteve carregada de significados especiais e, além disso, trata-se de um campo de conhecimento em que a poesia é a matéria-prima principal e a memória, desta maneira, se amalgama com elementos poéticos e experiências que trazem (ou podem trazer) a dimensão estética. Depois de provocar os participantes a pensar e escrever sobre suas trajetórias, e a pensarem nos propósitos que mobili- 69 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES zaram e mobilizam sua prática docente, produzimos cadernos artesanais, os quais seriam a base para todo o processo reflexivo que viria ao longo dos encontros subsequentes e que poderiam auxiliar os participantes na construção de seus processos formativos. Mas para além disso, a produção em si dos cadernos representou uma primeira experiência muito potente de formação de grupo, de partilha de materiais e conhecimentos, de construção coletiva de saberes, uma experiência muito objetiva, pois voltava-se para algo prático (fazer um caderno), e também muito significativa, visto que já vinha imbuída de toda uma reflexão sobre a trajetória de cada um e cada uma. A primeira “encomenda” que fizemos para o caderno foi que anotassem logo nas primeiras páginas o propósito elaborado anteriormente e que chegassem a uma síntese visual desse propósito, por meio de uma imagem que o expressasse. Após a realização do caderno, narramos “O bordado encantado” (PERROTI, 1996), conto tradicional chinês, o qual inicia este relato. Interrompemos a narração com a pergunta: “qual tecido suporta seus desejos?” A mesma que a bordadeira fez quando decidiu dedicar tempo ao seu projeto, provocando os participantes a realizarem uma transposição das imagens/ sínteses de seus propósitos para um bordado a ser realizado por todos e todas. Assim como a bordadeira na história, provocamos os participantes a pensarem nos elementos que materializariam seus propósitos, trazendo o bordado como via poética e expressiva. O bordar possibilita o que temos chamado de “atenção distendida” (AZEVEDO, 2020), uma qualidade de concentração em que o sujeito que borda dinamiza seu foco de atenção, ora se voltando para aquilo que borda e mantendo o contexto 70 TEIAS DE AFETOS E SABERES à sua volta mais difuso, ora ao contrário, se voltando para o contexto e mantendo o bordado mais difuso. Isso é possível porque o bordar se realiza ponto a ponto, em um movimento lento e repetitivo que, aos poucos, vai configurando uma forma. Essa ação repetitiva poderia se transformar em ato mecânico, reificado e vazio, de um fazer estéril, alienado e desatento. Porém, o que acontece é exatamente o oposto, pois o bordar nos provoca a prestar atenção, exatamente por ser um movimento repetitivo, o qual requer pequenas tomadas de decisões a cada novo movimento. Qual a posição em que devo inserir a agulha no tecido? Quanta pressão devo exercer na linha para que o ponto fique em uma forma satisfatória? Qual a distância entre um ponto e outro? São perguntas tácitas que a bordadeira faz enquanto realiza o bordado, perguntas cujas respostas se tornam formas de pensar, mas principalmente, maneiras de agir e que configuram o próprio bordado. Esse pensar/fazendo que o bordado proporciona é o que gera uma distenção na atenção, pois se trata de uma cognição que se dá pela ponta dos dedos, por assim dizer, o que, de certa forma, acaba propiciando uma abertura para outros focos de percepção e até de pensamento. Nossa tese é a de que esse estado, de atenção distendida, proporcionado pelo bordar, produz um campo muito profícuo para o desenvolvimento de propostas formativas, pois é um processo organizador para o sujeito, na medida em que o vai e vem da agulha e da atenção tornam todo o trabalho muito mais orgânico e conectado com o tempo de cada um e cada uma. A partir então da proposição de se bordar os propósitos dos participantes, instauramos esse tempo alongado na dinâmica dos encontros que se seguiriam, provocando todos e todas a ex- 71 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES perimentarem a atenção distendida na vivência e acompanhamento das propostas que viriam a partir de então. Uma proposta que trazia a confluência de dois fluxos fundamentais: a participação coletiva em um compartilhamento de conhecimentos; e a materialização dos propósitos em uma imagem/síntese. O envolvimento dos participantes foi notório e pode ser observado na sequência de imagens abaixo, em que é possível acompanhar o mergulho que experimentaram, mesmo durante os outros encontros, aproveitando-se da atenção distendida pelo bordado para mergulhar nas propostas que vieram depois. Nas legendas, é possível observar a data da foto, para acompanhar o desenrolar dessa experiência ao longo do curso. Imagens 1, 2 e 3: Aula do curso de extensão no dia 04 de setembro de 2019. 72 TEIAS DE AFETOS E SABERES 73 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 4: Aula do curso de extensão no dia 11 de setembro de 2019. 74 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 5 – Aula do curso de extensão no dia 09 de outubro de 2019. 75 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagens 6 e 7: Aula do curso de extensão no dia 30 de outubro de 2019. Imagens 8 e 9: Aula do curso de extensão no dia 27 de novembro de 2019. 76 TEIAS DE AFETOS E SABERES Para nós, a realização da proposta de trabalho com o bordado durante o curso de extensão representou uma oportunidade única, pois estávamos em pleno processo de elaboração de nossa pesquisa de doutorado, cuja tese central é exatamente a instauração do bordado como tempo/espaço propício à formação docente, pela sua capacidade de distender a atenção e de provocar processos reparadores aos sujeitos que nele se envolvem. Ao observar os desdobramentos de nossas propostas no curso, pudemos perceber a dinâmica e a potência dessas relações, experimentando um contexto novo, a partir do qual pudemos verificar os sentidos intrínsecos à nossa pesquisa. Ao mesmo tempo, participar da proposta geral do curso, a qual representou um grande passo no conjunto de ações e reflexões do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE), visto que não apenas nos aproximamos de forma direta e contínua de um significativo grupo de docentes, como também, e principalmente, tivemos a oportunidade de atuarmos juntos na elaboração e execução de todo o curso. Uma iniciativa realmente coletiva, na qual a construção de sentidos, a realização dos fazeres, a proposição de experiências se deu eminentemente em grupo, com o grupo e pelo grupo. Encerro este relato comentando sobre o prazer que foi trabalhar de forma muito próxima com a Profª Drª Sumaya e a Profª Drª Clarissa, com quem compartilhei a elaboração dessa pequena sequência de propostas formativas, que incluiu os relatos autobiográficos, a definição do propósito, a elaboração dos cadernos, a criação da imagem/síntese do propósito e sua transfiguração por meio do bordado. Grandes parceiras, com quem aprendi (e aprendo) muito e pude dividir a cons- 77 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES trução desse conjunto de experiências que iniciou o curso em sua primeira edição, em 2019. Obrigado! Referências AZEVEDO, Vinícius Souza de. Roda de bordar: atenção distendida em espirais na formação de professores de arte. 2020. 418 f. Tese (Doutorado em Arte). Escola de Comunicações e Artes (ECA). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2020. BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Paulus, 1992. MATTAR, Sumaya. Práticas de registro e processos de ensino-aprendizagem da arte. Cadernos de registro Macu. Edição nº 10. 1º semestre de 2017a. p. 6-15. PERROTI, Edmir. O bordado encantado. São Paulo: Paulinas, 1996. SUZUKI, Clarissa. Cadernos de artista: páginas que revelam olhares da arte e da educação. 2014. 134 f. Dissertação (Mestrado em Arte). Escola de Comunicações e Artes (ECA). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2014. 78 TEIAS DE AFETOS E SABERES Fernando Lima Ramos1 Desdobramento sobre o Curso de Formação para professores, da ECA/USP Toda experiência nos transforma, e momentos críticos fazem aguçar a criatividade que, por si só, já é transformadora. Se manter motivado na docência não se limita somente a estar fazendo o que gosta, o que se identifica, pois, a docência exige reflexão, criação, diálogo, uma busca incessante por novos conhecimentos. A falta de motivação no quadro do magistério não é algo surpreendente e vários motivos podem ser apontados, que vão desde a falta de incentivo financeiro e de aprofundamento aos 1 Fernando Lima Ramos. Formado em Artes Visuais pela universidade Cruzeiro do Sul, é docente da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo, há onze anos. 80 TEIAS DE AFETOS E SABERES estudos, até a inexistência de um plano de carreira que funcione verdadeiramente. Porém, ficarei limitado a comentar apenas sobre a falta de motivação por conta do comodismo e do desânimo para criar aulas mais atrativas e melhorar o próprio desempenho. Esse foi o foco para a minha busca por mudanças. Para se desenvolver, o ser humano necessita das relações interpessoais e de trocas, compensações. O cansaço, a rotina, levam à falta de interesse, o que reflete diretamente no desenvolvimento, uma inércia criativa. Quando tudo que se faz não o desafia, a tendência é que se perca a vontade nesta ação. No caso do docente, nada do que já foi falado foge à regra. Posso dizer pela experiência de dez anos atuando como docente na Rede Estadual de Ensino de São Paulo, que recém-formados que ingressam no quadro do magistério tendem a idealizar mais e a trabalhar com maior ânimo e empenho em comparação aos docentes com mais tempo na função. Com o tempo, e tudo que o envolve, o processo criativo do professor entra em estagnação, não há vontade, e tudo começa a girar em torno de algumas ações que, por terem apresentado êxito em algum momento, se tornam repetitivas, inflexíveis e imutáveis, que não mais o satisfaz, e é nesse momento que o professor começa a perder o sentido da sua docência. A prática docente não pode ser reduzida apenas à transmissão de conteúdo. Há criação em todo o processo de preparo das aulas, dos materiais que serão utilizados, da proposta pedagógica e da metodologia que será utilizada. Todos estes processos colocam o professor em igualdade, por exemplo, a um artista. Há conceitos, formulações e objetivos, há um percurso de conhecimento teórico-prático criado pelo professor, que exige a capacidade criativa do docente. 81 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 1: Questionamentos (Colagem e tinta sobre papel). Sonhos... o que seria da vida se às vezes não pudéssemos sonhar? Grande parte dos docentes que conheço relatam que desde cedo, desde a infância/adolescência, já vinham despertando a vontade de lecionar, de estar à frente de uma sala de aula. Muitos não imaginavam a problemática que isso envolve, o tratar com pessoas, o processo de ensino-aprendizagem, a parte burocrática, enfim, diversas competências além do que inicialmente pensavam. No meu caso foi tudo muito diferente, pois nunca, em momento algum durante o meu percurso formativo até o término do curso de arte visuais, criei tal expectativa. Fiz este relato em uma atividade proposta pela professora Sumaya no curso de extensão Arte e Educação para Professo- 82 TEIAS DE AFETOS E SABERES res, da ECA/USP, onde deveríamos criar um relato autobiográfico de formação, no qual cada aluno do curso deveria pensar e relatar toda sua trajetória até o processo de atuação docente. Até este relato, eu não conseguia compreender o que me trouxe até à docência. Cheguei a imaginar que foi sorte, ou até mesmo falta de opção, já que com um diploma de licenciado em Artes Visuais eu não teria tantas opções, e as que se apresentavam teriam expedientes aos finais de semanas e feriados, tais como mediadores em museus e galerias, e atrapalhariam as minhas questões pessoais. Com este relato, consegui chegar à conclusão de que nada foi um mero acaso. É inacreditável como tudo parece ter sido planejado desde sempre, que existia uma linha que me conduziu até aqui. Imagem 2: Busca (Colagem e bordado em tecido). 83 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES É fato que, como professor, eu nunca me senti preparado para trabalhar com as questões indígenas, africanas e afro-brasileiras, não por não as achar importantes, mas por pouco conhecimento e receio de tocar neste tema tão importante de forma equivocada. Mas como não falar destas culturas se são elas que são as bases mais sólidas da cultura brasileira? Aliás, ela não existiria sem as contribuições indígenas e africanas. Não abordar estas culturas é ignorar a formação do povo brasileiro, o que não faz nenhum sentido e carece de lógica. É importante citar que no ano de 2008 foi promulgada a lei número 11.645, que torna obrigatório em todo o ensino básico o conteúdo das culturas indígenas e africanas. Essa lei veio como ação afirmativa para compensar danos históricos às populações afro e indígena. Neste mesmo ano de 2008, estava eu ingressando no curso de licenciatura em Artes Visuais, porém, não me recordo de nenhuma menção ao caso. Lembro de estudar sobre cultura indígena, mas sem muito aprofundamento. Imagem 3: Caderno/ Livro de artista. 84 TEIAS DE AFETOS E SABERES O Brasil é um país onde 54% da população é negra, segundo dados do IBGE 2010, ou seja, mais da metade dos brasileiros. Também vale lembrar que fomos a última nação das Américas a abolir a escravidão, tendo hoje um pouco mais de cem anos deste fato. Cem anos de abolição não são suficientes para reparar trezentos anos de sofrimento e massacre, pois, os reflexos deste terror histórico são sentidos ainda hoje, no nosso cotidiano. O racismo ainda é presente na sociedade brasileira, e suas estruturas estão ligadas a desigualdade social e de direitos. Dentro deste contexto também temos os povos indígenas (ou originários), que também sofreram atrocidades, desde violência física a processo de aculturamento e perda de territórios. São povos que resistem e insistem em manter suas tradições, apesar de todos os ataques que sofreram e sofrem ainda hoje, pois, não há como não mencionar neste texto o retrocesso cometido com o atual governo no que se refere a terras indígenas (vide o marco temporal). Imagem 4: Fênix (Xilogravura). 85 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Toda cultura é dinâmica e formada por processos históricos, e toda história tem dois lados (ou mais). Pensar de forma crítica e questionadora sobre o processo histórico brasileiro é de suma importância para nos tornarmos mais conscientes de que sempre nos foi passada a estreita versão do colonizador. Quem foi colonizado dificilmente aparece nos livros didáticos para contar a sua versão, pois são corpos invisibilizados e falas silenciadas. Estas problemáticas aparecem nas escolas e nas formações de professores? Não sei dizer. Antes de ingressar no Curso de Arte e Educação para Professores, da Escola de Comunicações de Arte da Universidade de São Paulo (ECA / USP), eu nunca tinha escutado falar em decolonialidade, e posso ir muito mais além: nunca questionei os processos históricos apresentados ao longo dos anos, pautado na visão eurocêntrica. É incrível poder observar a história de um ponto de vista totalmente oposto ao que nos é apresentado em todo o ensino básico. 86 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 5: Luz e sombra (Fotografia). Os conhecimentos e experiências adquiridos no curso me propiciaram um novo olhar para a escola, mais humano e empático, valorizando tempos, ações e contextos. Foi uma mudança completa na minha forma de enxergar processos históricos, percursos formativos, construção coletiva de saberes, transformou minha prática pedagógica e a forma de observação perante os discentes. Lacunas onde habitava o desânimo foram preenchidas pela esperança de fazer a diferença na educação pública. Estar em uma classe lecionando é aprender a cada dia, é 87 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES trocar experiências, informações e conhecimentos, é vivenciar conflitos e procurar uma maneira de solucioná-los, é repensar sobre rotina e estagnação, e sempre (re)surgir com novas ideias e ações, testando as possibilidades, errando e acertando. Acreditar na educação como ferramenta transformadora e de inclusão social, de aprendizagem e processo, autonomia e liberdade, resistência, diálogo e comunicação, são os principais propósitos para enfrentar as dificuldades diárias e diversas no contexto da escola pública. Referências Reparação Histórica. Disponível em: https://tab.uol.com.br/edicao/ reparacao-historica/#page2, acessado 08/09/2021 às 19:50. Dez Expressões racistas que você fala sem perceber. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E_BjYPOE3ag, acessado em: 08/09 às 19:10. HOOKS, bell. Altares do sacrifício: Relembrando Basquiat. Disponível em: https://piseagrama.org/altares-do-sacrificio , acessado em 12/09/2021, às 11:10. 88 TEIAS DE AFETOS E SABERES Silvania Francisca de Jesus1 Itinerários artísticos interculturais: relato de vivências Tudo começou com uma mensagem que chegou em minha caixa de e-mails no primeiro semestre de 2019. Um convite para me inscrever num curso de extensão em Arte e Educação para Professores na ECA/USP - Módulo I 2019. As aulas ocorreram no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP, às quartas-feiras, dia certo para trilhar uma experiência incrível de muito aprendizado, com 1 Silvania Francisca de Jesus, professora, contadora de histórias, arte educadora, educadora Griô e pesquisadora de diferentes culturas voltadas para a literatura, música e brincadeiras de roda. Encantada pela cultura indígena, africana e afro-brasileira. É doutoranda no programa Diversitas - FFLCH/USP com o estudo sobre o processo educativo do povo guarani M’bya através das canções. 90 TEIAS DE AFETOS E SABERES pessoas maravilhosas. Não me recordo por onde veio o convite, talvez, pela escola onde lecionava. Não demorei para decidir, preenchi o formulário, mas sem expectativa de conseguir realmente uma vaga. O que me chamou a atenção foi o recorte étnico- racial que o curso trazia em seu conteúdo programático e o fato de ser voltado para o público de educadores e professores de Rede Pública. Além disso, o horário estabelecido para a realização das aulas, contemplava minha rotina que costuma acumular muitas demandas. Ao chegar à primeira aula, minha cabeça estava a mil, por estar iniciando uma aproximação com duas crianças para uma provável adoção. A acolhida pela equipe do curso e dos colegas participantes foi cuidadosa, afetiva, calorosa. A vontade de realizar um curso na faculdade de artes da USP era um desejo muito sonhado há alguns anos, porém estava aguardando a oportunidade. O formato do curso se deu na circularidade e no compartilhamento de ideias e vivências de cada participante. A equipe de educadores - Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE ECA / USP) e professores convidados - conduziu cada encontro com grande sabedoria, acolhendo a participação dos integrantes do grupo, a maioria professores de arte de Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio, tendo também professores de Educação Infantil e EJA. Era um grupo bastante heterogêneo, o que possibilitou ricas trocas de práticas pedagógicas diferenciadas e experiências. O conteúdo do curso estava centrado na apresentação de ferramentas e aportes artísticos para apoiar os professores em suas práticas, de arte ou não, realizadas na escola, com 91 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES seus estudantes. Cada participante tinha que pensar seu projeto voltado para a realidade de seu espaço de atuação. Diante desta orientação, esbocei meu primeiro projeto cartográfico, após realizar alguns exercícios de cartas cartográficas propostas pela equipe do curso. O desafio foi grande, pois não estava habituada a esboçar desenhos ou criar contornos que se aproximassem um pouco do que eu estava considerando como um pré-projeto ou proposta a ser trabalhada com os estudantes de EJA. Imagem 1: Primeiro esboço do projeto. 92 TEIAS DE AFETOS E SABERES Como ressalta a professora Sumaya Mattar em seu artigo O ato cartográfico na docência da arte: Instaurando estados criativos de experimentação apresentado no 3º ANPAP em 2017, [a] cartografia, aqui compreendida como conjunto de ações de registro, delineamento e criação de territórios e itinerários reais ou imaginários, configura-se como um campo dinâmico que possibilita imprimir sentido temporal e topológico aos percursos pessoais de formação e ao trabalho de planejamento de ensino, um campo capaz de englobar todas as práticas que proponho, cujo ápice é o processo de criação didática. (...) (MATTAR, 2017, p. 3.279). Com esse propósito me debrucei sobre minha criação, um pouco confusa, mas tendo foco nos estudantes com quem iria experimentar e construir novos saberes. E assim ficou. Imagem 2: Projeto artístico das possíveis ações pedagógicas a serem desenvolvidas com as turmas de alfabetização da EJA, no CIEJA - Perus. 93 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES A construção desse trabalho, exigiu muita reflexão e escuta atenta nas rodas de conversa e produção coletiva do conhecimento durante a formação do Módulo I e foi se concretizando no Módulo II. Muitos momentos marcantes aconteceram nesse curso e me arrisco a desenhá-los a seguir. As atividades propostas marcaram corpos e mentes, olhares, ouvidos, com tanta maestria e arte que não é possível esquecer. Foi significativo o desafio da criação, de se arriscar a olhar sua trajetória, revisitá-la, refazer caminhos, se permitir. Um destes momentos é a proposta da confecção do caderno de registro proposto por Clarissa, logo nas primeiras aulas do curso, que mobilizou o grupo. Muita arte e criatividade, atenção e concentração para aproveitar cada instante vivido, experimentado. Imagem 3: Confecção dos cadernos de registro com Clarissa. 94 TEIAS DE AFETOS E SABERES Em cada página do caderno há um singelo traço do projeto que me propus a fazer, a trilhar nesse curso tão potente e provocante. São itinerários que atravessaram o campo da imaginação e da prática pedagógica. Importante refletir sobre cada experiência vivida que buscou trazer para as rodas, diferentes traços das culturas indígenas e das culturas afro-brasileiras. As rodas de diálogo com os convidados proporcionaram apresentar aos professores possibilidades de revisitarem suas práticas. Muitos relatos, desabafos, fortaleceram os laços entre os colegas de profissão e de expectativas para construírem juntos outros olhares sobre as demandas esperadas numa prática pedagógica, que proporcionasse a construção coletiva do conhecimento. Foi valioso o convite para registrar cada expressão, despertando a sensibilidade sobre o que se ouve, e se vê, permitindo construir uma relação dialógica com todo o processo vivido. A fala dos professores e orientadores (estudantes de licenciatura e pós-graduação) convidava os professores a voltarem seus olhares, para o que compreendo, como práticas pedagógicas decoloniais. A decolonialidade permeou grande parte dessa formação, possibilitando novos desdobramentos, a cada encontro vivenciado intensamente e inteiramente pelo grupo. Fato também importante foi a escolha dos autores como aporte teórico para o curso, compondo a bibliografia indicada para leitura e estudo. Nas falas do mestre Alcides, fomos envolvidos por conhecimentos que não estão registrados em livros, mas brotam da sabedoria da vida, uma experiência traçada por vínculos afetivos. Os traços de oralidade presentes em seu fazer pedagógico, colocou o grupo frente a um novo modelo de cons- 95 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES truir conhecimento, que é a prática metodológica da Pedagogia Griô. Uma pedagogia facilitadora de rituais e vínculos na produção do conhecimento coletivo. Mestre Alcides aponta caminhos, sugere possibilidades de envolvimento dos educandos em torno de um saber, um saber vindo dos mestres de tradição oral, do mestre griô. A arte que atravessa corpos como o jogo da capoeira, ferramenta ancestral de trabalho do mestre Alcides. Com a capoeira ele revisita sua própria história de vida e acorda tantas histórias e memórias de quem o ouve. Imagem 4: Cada fio traçado nos encontros proporcionou um novo olhar, um novo sentido para o projeto de prática que vai brotando, vai tomando corpo. 96 TEIAS DE AFETOS E SABERES Projeto de prática, um olhar de cuidado para os estudantes da EJA Ao traçar esse projeto de prática com a arte e educação voltada para a alfabetização de adultos, pontuei cada encontro em que os convidados compartilhavam suas experiências e vivências na arte com a educação. A fala deles foi alimento para minhas reflexões, com meus pensamentos atravessados por questionamentos nada fáceis de responder. Passei por momentos difíceis, confrontando a realidade dos estudantes com a proposta do projeto. Alinhar os pontos para que os objetivos realmente alcançassem todos os sujeitos. Resultou, então, em colocar como centro da reflexão do projeto pedagógico o fio da história de vida de cada estudante, baseado em suas trajetórias e nos lugares por onde passaram. Portanto, esse trabalho retrata geograficamente essas pessoas, que na circularidade dialogam e se deparam com suas semelhanças e diferenças. Imagens 5 e 6: O traçado do fio dos sonhos de estudantes que após passar tantos anos fora do itinerário das letras, da escrita, arrisca lançar mão no lápis e enfrentar o desafio de alcançar os seus sonhos. 97 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Nas rodas de discussão em sala de aula com os estudantes, muitas memórias foram resgatadas para ressignificar o saber que eles trazem em sua bagagem. Essa é uma das atividades que o projeto propõe, tendo como objetivo a escuta atenta aos anseios dos estudantes. Imagem 7: Conjugando o verbo ESPERANÇAR Na Educação de Jovens e Adultos muitos verbos permeiam as falas dos estudantes e o esperançar, assim como pontua Paulo Freire, “esperança do verbo esperançar”, dá ânimo para não desistirem de seus sonhos. 98 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagens 8 e 9: Sensibilização no caderno de registros – modos de ver e sentir. Imagem 10: Apreciação dos cadernos de registro, como fazer uso dele nos encontros formativos. 99 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Assim como nos fios tecidos por Anansi, a aranha contadora de histórias, o projeto foi se delineando, criando forma através da escuta atenta dos colegas, enfim do grupo. Imagem 11: Partilha dos saberes de cada professor sobre seu fazer pedagógico. Praticar a escuta atenta à palavra do outro que comunga ou dialoga, soma com o seu fazer. 100 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagens 12, 13 e 14: Momentos de aprendizagem e troca de saberes. Imagens 15 e 16: Bordado do projeto. Os dois módulos do curso abriram horizontes, - um presencial e o outro on-line - , e possibilitaram revisitar minha prática e a dos colegas, sonhar novas trajetórias, alinhar ideias, arriscar a expandir o sonho de uma prática crítico-libertadora na Educação de Jovens e Adultos. A educação liberta o sujeito como ressalta Paulo Freire, a arte liberta mentes e corpos, independente da linguagem artística. 101 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Referência MATTAR, Sumaya. O ato cartográfico na docência da arte: instaurando estados criativos de experimentação. In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26º., 2017, Campinas. Anais do 26º. Encontro da ANPAP. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.3277-3291. 102 TEIAS DE AFETOS E SABERES Francisca do Val1 Memórias de um tempo feliz e estranho Introdução, meu percurso Sou servidora pública, aposentada, pintora, bióloga-zoóloga. Nasci livre, cresci sem sapatos, descalça, subindo em árvores com crianças caiçaras e da nossa família. Fui professora na pós-graduação do Museu de Zoologia, durante 40 anos, criei alguns cursos de iniciação e de extensão universitária, o último curso para funcionários não-docentes do Instituto de Biociências da USP. Trabalho com insetos, principalmente com as drosófilas, - mos- 1 Francisca Carolina do Val é Bacharel em Pintura pela Escola de Belas Artes S. Marcelina; doutora em Ciências pelo Departamento de Zoologia e livre docente pelo Departamento de Biologia. Pós-doutorada em Genética na University of Hawaii. Responsável pela disciplina “Evolução dos animais ao nível de espécie”. Publicou “Drosófila, a mosquinha famosa”, em 2007, pela editora Terceiro nome. 104 TEIAS DE AFETOS E SABERES quinhas das bananas-, que são importantes organismos modelos, usados inclusive para a compreensão de fenômenos humanos. GMEPAE 1 Participei dos encontros do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE) a convite da coordenadora, professora Sumaya Mattar, durante cerca de dez anos. Aprendi muito, sendo uma ouvinte alienígena (bióloga, cientista acadêmica) na Escola de Comunicações e Artes. Os alunos da licenciatura percebiam o autoritarismo na hierarquia do saber, o desperdício da cultura coletiva, em favor da monocultura colonizada, a necessidade de encarar o negacionismo do dissenso na sala de aula, contra o foco na produtividade e no consumo viciante. Ainda não havia respostas, mas a reflexão entre as alunas e alunos causava um desconforto positivo, tirando as/os estudantes da letargia utópica. Eu nunca antes havia participado de uma equipe tão diversificada de longa duração, com educadoras e pesquisadores no campo das artes. Havia um sentimento forte para garantir a permanência da Arte nas escolas. A formação de professores/ as deveria resultar na autonomia intelectual, cultural e gerencial, além da didática. A formação deveria ser orientada contra a experiência unificada na ecologia do saber, contra o saber científico e diferente da moral ocidental; pensar na “ecologia do sul”, nas pedagogias “congadeiras” e indígenas, criar imagens desestabilizadoras contra a moral antiga. Em 2018, acompanhei o Ciclo Afro-indígena organizado por duas professoras ex-pós-graduandas (Clarissa e Maria) para professores da Rede Pública de Ensino. Foi uma experiência inusitada para mim; um verdadeiro mergulho no universo que eu desconhecia. Entre os convidados pela a Professora Clarissa, eu me identifiquei muito com o mestre Alcides, que posterior- 105 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES mente participou de uma das aulas do curso para professores de arte (2020). Ele se declarou subversivo e que gostaria de punir os não-rebeldes (sou rebelde!). No segundo semestre de 2019, teve início o curso de extensão, Arte e Educação para Professores – Módulo I, presencial para professores da Rede Pública do Ensino na cidade de São Paulo. Procurou-se mostrar o território da cidade; a grande maioria selecionada foi de mulheres professoras; foram chamadas 20 professoras e cinco professores. Posteriormente, outras três professoras somaram-se ao grupo. O Módulo I foi uma oportunidade para o convívio com professoras e professores do Ensino Fundamental e Secundário. Descobri que existem diretores não concursados em algumas de escolas públicas, e que diretoras, diretores, professores e professoras, discriminam as crianças mais pobres, e a grande maioria de crianças com a pele escura. Fiquei muito impressionada com a boa disposição (obediência) e a grande criatividade dos trabalhos das professoras e professores. O primeiro módulo do curso aconteceu numa sala de ateliê de arte, no andar térreo do edifício principal da ECA, e ao lado de um jardim interno com uma grande árvore. As primeiras propostas de trabalho foram sugeridas pelos líderes. A professora Clarissa mostrou como confeccionar um caderno personalizado para o uso diário dos professores. O professor Vinícius incentivou os alunos a bordarem histórias. O professor Leandro foi documentando o que acontecia. Eu fui a única que não consegui montar o caderno, só estive observando e pensando, depois de ter levado o material equivocado para fazer o caderno. Já não me lembro dos muitos projetos desenvolvido pelas alunas e alunos, professoras e professores artistas incansáveis, e todos apresentaram alguma coisa muito especial. 106 TEIAS DE AFETOS E SABERES Pandemia, apagamentos, esquecimentos e memórias do Módulo II Projeto poético pedagógico Demorei a entender o que é um projeto poético pedagógico. Ainda no primeiro módulo, eu ouvi a professora Sumaya explicar que não é um projeto pensado pronto, mas um projeto para ser lançado; eu não entendia muito bem. Talvez eu tenha atrapalhado a concentração das alunas e alunos professores fazendo aviões de papel dobrado e “lançando meu projeto”. Quando criança, eu vi muitos aviões voando no céu, com as letras PPP escritas nas asas. O segundo módulo planejado, Módulo II, com o avanço da pandemia do Coronavírus, não pode ser presencial, mas foi muito produtivo e estimulante para o aprendizado das novas tecnologias digitais. A professora Hercília, sempre presente nas apresentações, foi grande incentivadora contra o desânimo, com comentários encorajadores para os professores. Fui provocada a participar da abertura do Módulo II, apesar de ser ouvinte do curso, um “sapo de fora” que não chia numa roda de cantorias noturnas. O líder bordador professor Vinícius abriu o encontro narrando um conto africano, sobre a aranha que foi buscar o sol, no tempo em que os animais falavam e viviam no escuro da floresta! Maravilhoso! Eu havia pintado e tingido uma aranha com as cerdas da cabeça arrepiadas, como se fosse um “chuca-chuca”, penteado de cabelos dos bebês de antigamente. Por coincidência eu havia recebido a cópia de um livro científico e bem ilustrado sobre aranhas, escrito por duas pesquisadoras norte-americanas. O 107 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES livro começa com um conto da Grécia antiga sobre a deusa aranha, Aracna, e entre outros aspectos interessantes informa sobre os fios de seda produzidos pelas aranhas. As autoras informam que, com a combinação de até quatro proteínas, os fios de seda podem ser até 400 vezes mais fortes do que fios de aço da mesma espessura. O professor Renato foi escrevendo uma história da nossa realidade socioeconômica, uma alegoria sobre uma aranha capitalista, acumuladora, que protegia sua prole de filhotes, eliminando o que caísse na sua teia. Havia muito a conversar, dançamos, pintamos, bordamos, depois de um dia de trabalho de cada um em sua escola. Foi admirável constatar que, as professoras alunas e professores alunos, inclusive a professora Sumaya puderam ilustrar melhor do que eu, bióloga, as aranhas e o camaleão que pôs fim ao império capitalista da aranha mãe. O trabalho de reflexão do aluno- professor Renato resultou na produção de um livro já pronto, e talvez até ilustrado. Seguem, em anexo: fotos da abertura do Módulo II, e fotos do meu próprio projeto poético pedagógico, iniciado em setembro/2021: O Jardim como sala de aula. 108 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 1 - Batik; imagem 2 - Livro Spider Silk (BRUNETTA; CRAIG, 2010) Francisca do Val Imagem 3 - Aranha com 8 olhos Yale Univ.Press, 260p. 109 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 4: Desenho de F.Val - Interpretação do projeto poético pedagógico do Prof. Ranieri, sobre a perspectiva de seus alunos quanto a conceitos abstratos como: o universo, o tempo, a evolução biológica, a cultura. O Prof. Ranieri incentiva a reflexão sobre o que não se vê, e pergunta: por exemplo, como poderia ser representado o tempo? Francisca do Val Imagens 5 e 6: O Jardim como Sala de Aula: 5) Crianças, gato, Estações do ano; 6) Plantando e colocando a placa de identificação; pais e crianças, saudando a Primavera, Set/2021. Francisca do Val 110 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 7: Iolanda, bebê e Francisca do Val. Referências Brunetta, L & Craig, C. Spider Silk, Yale University Press, 2010. 260p. Mattar, S. Arte e Educação - entre a oficina artesanal e a sala de aula. São Paulo: Papirus Editora, 2010. 204p. 111 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Rodrigo Acosta1 Conexões Imagem 1: Equilíbrio. 1 Rodrigo Acosta, artista, permacultor e educador. Com graduação em Educação artística e pedagogia. Pós graduação em arte educação, ludopedagogia e neurociências aplicadas à educação. Atua como arte educador nas prefeituras de Diadema (SP) e São Caetano do Sul (SP). 113 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Creio que dos meus familiares mais próximos eu fui o primeiro a entrar na USP. Sempre acompanhei a rádio USP descobrindo novas músicas e no mesmo ano que ingressei no curso conheci o pico do Jaraguá onde vi a antena da rádio. Eu acredito na relação de conexões entre as coisas, por isso vou deixar aqui meu relato. Quando fiz a inscrição para o curso, fiz sem pretensão nenhuma de passar, gostei da proposta, mas quando fui um dos selecionados para participar do curso pensei: - E agora? Como faço com a distância? Como faço com o tempo? Saía às quartas às 16 horas para chegar às 18 horas na USP. Eu creio que a USP faz parte do imaginário dos brasileiros que não a conhecem. Confesso que eu imaginava a faculdade de uma outra forma. Aos poucos fui conhecendo o lugar. Chegava mais cedo para andar e me perder por ali. Infelizmente por conta da pandemia não cheguei a visitar lugares nos quais eu achava interessante, como o museu por exemplo. Era um desafio chegar até a faculdade. Não gosto de dirigir para longe de casa, o trânsito era intenso, mas era muito interessante no caminho da faculdade passar em frente ao jóquei e aos imensos prédios de vidro que pareciam joias no horizonte. Chegando lá me deparei com tijolos e um recado na parede, também com uma Mônica Outsider Art e com esculturas enferrujadas e escondidas no estacionamento bem abandonado cheio de folhas, com o concreto quebrado e pouco iluminado. Na caixa de energia sempre tinha alguma garrafa vazia, curioso imaginava quem se reunia ali, ou se era alguém no qual ti- 114 TEIAS DE AFETOS E SABERES nha a mania de deixar suas garrafas sempre no mesmo lugar. Imagem 2: Lápide. Ao chegar no prédio era sempre um guarda diferente e ele sempre perguntava pelo nome, e por mais que você falasse ele sempre esquecia. O atalho mais curto, palavra chave ou senha era dizer: - Vim para a aula da Sumaya. Subia até o banheiro e dava uma volta de curioso para ver o ateliê com a mesa de gravura e os estudantes de arte. Chegando na sala deixava o salgado que comprei para o ca- 115 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES fé-janta coletivo em cima da mesa; confesso que achava uma das melhores partes do curso. Gostava da diversidade de opções e de como cada indivíduo se servia. Com a fome, a hora do lanche era uma festa. Gostava de experimentar um pouco de cada lanche com destaque ao “pão Cascudo”. Gostava do carinho dos professores ao preparar o café e do trabalho em equipe para que este ritual funcionasse. As aulas me faziam sentir “em casa” por conta da simplicidade e da veracidade nos quais as pessoas participavam. Eram todos educadores nos quais acreditavam em seu trabalho e apesar do cansaço me sentia muito bem ali. As atividades eram informativas e ao mesmo tempo terapêuticas. Era possível sentir a dor do outro “ter empatia” e também sentir como o outro vibrava feliz contando as coisas positivas que aconteceram na semana. Trabalhávamos todas as linguagens da arte, falávamos de decolonialidade, ancestralidade, direitos, sentimentos, e sim, bordávamos... Imagem 3: Entre linhas e agulhas; Imagem 4: Caderno de bolso. 116 TEIAS DE AFETOS E SABERES O curso é iniciado com muita poesia, apresenta muita diversidade de ideias, todos os participantes acreditam no potencial criador e na educação. Existiam representatividades ali. Existiam pessoas de verdade! No começo do curso nós fizemos nosso próprio caderno de anotações. Eu adorava o jardim de frente pra porta da sala, adorava o canteiro com plantas medicinais, acho uma pena que não pude frequentar aquele espaço de dia. Confesso que se fosse estudante da graduação de arte faria do espaço o meu quintal. Desenvolveria algum projeto de educação ambiental e arte, faria tinta da terra, horta, land arte, intervenção e observação dos pássaros, das árvores e de toda natureza ali presente. O curso proporcionou o resgate de brincadeiras onde também deixávamos o cansaço e os problemas de lado e muitas vezes voltávamos a ser criança. Imagem 5: Ode à infância. 117 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Sim, nós fomos ao teatro. Engraçado que eu sempre dirigia para bem longe para chegar até a USP. Só que escolheram para atividade complementar assistir uma peça de teatro ao lado de casa, no SESC Santo André (SP). Imagem 6: Os quebra-cabeças. O curso presencial contou com diversos convidados, nos quais pareciam também muito felizes em estar ali, quando não tínhamos as visitas os próprios estudantes levavam e apresentavam o que conheciam de melhor. Na pandemia nosso ensino foi remoto no qual serviu de 118 TEIAS DE AFETOS E SABERES uma espécie de retiro para refletirmos as práticas aprendidas no presencial. Os estudantes apresentaram a essência do que se absorveu com o curso. Foi como se o curso presencial fosse a semeadura e os cuidados de uma planta e no remoto extraímos os óleos essenciais e o perfume da mesma. Segue a foto de dois trabalhos desenvolvidos no remoto: Imagem 7: Exper.momentos. Eu apresentei um projeto intitulado Máscaras Ancestrais o qual sempre tive vontade de desenvolver. Este que mistura a antiga arte das máscaras ancestrais das diversas religiões pagãs e ou xamânicas. Deixo a seguir as fotos com os resultados dos desenhos nos quais os estudantes do curso desenvolveram a atividade que eu mediei. 119 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 8: Máscaras ancestrais. A única parte negativa disso tudo é que deveria existir uma USP em cada cidade, pois se eu não tivesse veículo próprio provavelmente não conseguiria fazer o curso. Sinto vontade de conhecer outros cursos na universidade e até mesmo, quem sabe, um mestrado no futuro. Mas a distância ainda é algo no qual eu preciso me adaptar. É bem provável que se eu morasse próximo à USP faria diversos outros cursos e são essas formações que os educadores precisam. Formações como essas que estamos precisando: uma faculdade pública que atualiza, promove e valoriza o ensino público. São estas ações nas quais eu acredito. 120 TEIAS DE AFETOS E SABERES Regiane de Paula Santana1 Relato sobre a experiência no curso de extensão Arte e Educação para professores Como começar a escrever sobre a experiência de um curso de arte educação para professores da Rede Pública? Pensei por vários dias em como abordar o assunto, em como iniciar de forma interessante e bem elaborada, mas não consegui encontrar outra maneira que não fosse um relato pessoal, para mostrar as transformações pelas quais eu passei nesses dois anos, desde o início do curso até a finalização dele e com uma pandemia no meio. 1 Regiane de Paula Santana. Professora e editora de arte. Formada em artes gráficas, artes plásticas e design editorial. Trabalha atualmente na Rede Pública Municipal de São Paulo como professora orientadora da sala de leitura, unindo suas duas paixões: arte e livro. 122 TEIAS DE AFETOS E SABERES Fui estudante de escola pública a vida inteira, cursei faculdade privada, mas por meio do PROUNI, pois sem ele não teria condições, ou seria muito difícil, de me formar na graduação e principalmente no curso de Artes Plásticas, que é um curso desacreditado por muitos, pois arte é um ramo tortuoso para quem não tem condições financeiras favoráveis. Como pude cursar gratuitamente eu tive a oportunidade de escolher o curso, mesmo meu pai querendo que eu trocasse por Direito ou Administração. Ele só parou de tentar me demover quando arranjei um emprego na área e ele viu que dava certo. Eu nunca pensei em ser professora de Arte, porém o curso tinha como base a licenciatura nos três primeiros anos e nunca é demais aprender coisas novas. Finalizei o curso junto com o bacharelado, porém a licenciatura ficou guardada, pois eu já atuava em outra área e estava indo bem nela. Como nunca conseguimos prever a vida, após sete anos de formada eu acabei prestando o concurso público para professora de Arte do município de São Paulo e passei. Dois anos depois de feito o concurso, fui nomeada para o cargo e acabei ingressando na docência. Como nunca havia dado aula antes, foi um choque entrar em sala de aula (ainda mais em Rede Pública de Ensino) e ver que a realidade não é como nos livros ou nas aulas da faculdade, ainda mais após nove anos desde minha formatura. Acreditava que meus conhecimentos já estavam defasados. Como sempre gostei de estudar e pesquisar fui fazer cursos complementares para melhorar minha didática e oferecer aos alunos o melhor que eu poderia, pois sendo egressa do ensino público eu precisava devolver tudo que aprendi e tinha conseguido estudar para que os alunos também tivessem as mesmas oportunidades. Foi nessa procura que me indicaram 123 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES o curso da ECA/ USP. Jamais eu tinha pensado em estudar na USP. Como moradora da periferia da Zona Leste de São Paulo, a universidade sempre foi algo distante (tanto de ingresso como de distância física) e que não seria algo pra mim. Me candidatei na cara e na coragem a uma vaga e, para minha surpresa, fui aceita. Foi muito interessante entrar na USP para estudar, me senti importante, pois teria um certificado emitido pela ECA. Isso fez com que eu achasse possível tentar estudar lá, para continuar com a minha aprendizagem. No curso eu encontrei pessoas de vários locais, com vivências e experiências muito diversas e bem diferentes da minha, o que ampliou mais um pouco minha mente e me proporcionou aprender e entender coisas que eu dificilmente teria se eu não atravessasse (de verdade) a cidade toda. Sempre morei na mesma região e, apesar de trabalhar em outros locais, a minha bolha de convivência era totalmente diferente das pessoas que conheci nos encontros semanais da sala B3. Durante esses encontros eu tive a oportunidade de ouvir os colegas relatando suas experiências de vida e de docência, escutar pequenas palestras dos professores do curso e seus convidados e receber indicações preciosas da professora Hercília e da professora Sumaya. Uma das primeiras atividades do curso foi oferecida pela professora Clarissa e era o de criar um caderno para anotar o desenrolar do curso. Foi uma atividade muito prazerosa e que despertou minhas habilidades manuais que estavam um pouco adormecidas em razão da correria do dia a dia. Neste caderno, a cada aula, tentei separar uma foto ou fazer um desenho que sintetizasse o que eu havia visto e feito. Este processo foi muito importante para eu 124 TEIAS DE AFETOS E SABERES retomar o contato com o fazer artístico sem muita pretensão e que mais pra frente me mostrou o caminho de pesquisa ao qual eu quero aprofundar meus estudos. Ao final do 1º módulo do curso, em dezembro de 2019, elaborei um projeto para os alunos com base na criatividade e na imaginação do fazer artístico. Porém não houve tempo para sua aplicação e o projeto ficou guardado na gaveta. No início de 2020 fiz por duas vezes a aplicação do projeto e percebi que além de ser possível a execução, também era possível ampliar mais ainda a pesquisa. Como novamente a vida nos leva a outros lugares, pouco tempo depois de iniciarmos o ano letivo, as escolas foram fechadas por uma pandemia, obrigando a todos a ficarem em casa durante o ano inteiro e o Módulo II do curso de extensão foi suspenso em 2020. Como nessa época eu não tinha turmas atribuídas, fiquei sem contato com os alunos, mas a semente que plantei nas oportunidades em que pude testar meu projeto, ficaram germinando em mim. Com o início de 2021 eu acabei mudando de escola e tendo algumas turmas atribuídas. A escola para onde eu fui tem outra realidade da que eu estava anteriormente, porém o mote do meu projeto continua pertinente: as crianças continuam com o mesmo problema que é o de estarem muito expostas a dispositivos eletrônicos e deixarem as brincadeiras manuais e o uso da imaginação de lado. Com os protocolos sanitários elaborados pelas autoridades, a aplicação do meu projeto ficou comprometida, porém as observações continuaram a ser feitas, para que ele seja modificado e ampliado. Junto com a nova realidade que nos foi imposta o curso de Arte e Educação para professores voltou com a proposta de ser on-line em 2021, uma forma de nos reunir e de dar 125 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES continuação ao curso, mesmo que à distância. Essa volta foi importante para resgatar o que ficou parado no ano anterior. Novamente o compartilhamento de experiências foi muito rico e as ideias foram interessantíssimas, na reunião para debater sobre o ofício de professora, as dificuldades, as soluções, ocorrida virtualmente. Nesse módulo pudemos aplicar de forma adaptada nossas propostas de aula que havíamos formulado em 2019, agora com alterações para o meio virtual. As interações e devolutivas sobre as propostas de cada um foi um modo diferente de analisar, em grupo, os acertos e as adaptações a serem feitas. Tivemos várias propostas diferentes e cada uma com um tema diferente da outra, o que mostrou mais uma vez a diversidade do grupo e fez com que eu aprendesse ainda mais com os colegas, juntamente com as observações dos professores do curso. Para mim, foram dois anos intensos, tanto na ampliação do horizonte pessoal quanto no profissional, além de tudo o que aconteceu para o bem e para o mal no mundo e na vida de cada um de nós. Sinto que apesar de todas as dificuldades, esse curso me ajudou a sair da minha bolha pessoal e da minha zona de conforto. Conhecendo outras realidades eu pude me flexibilizar mais e aprendi a pensar por diferentes ângulos, assuntos que antes eu dava por certo por ter somente um ponto de vista. Não foi só em relação às minhas aulas que o curso superou minhas expectativas. Quando entrei, pensei somente em ter auxílio para minhas aulas, mas acabei encontrando outras percepções para além da escola, o que faz com que eu possa ser melhor integralmente, beneficiando por fim minhas escolhas ao lecionar arte na escola pública. 126 TEIAS DE AFETOS E SABERES Mariana Zanetic1 Garoas de vivências de uma artista docente em Sampa Introdução Esse pequeno texto que agora me empenho em escrever pretende se desenrolar enquanto um relato de algumas experiências da alquimia em sala de aula da Rede Municipal do Ensino de São Paulo enquanto professora de Arte. Mais especificamente no laboratório da vida de uma artista docente, neste entremeio do ensino de arte, da conjuntura social e da 1 Mariana Zanetic. Formada em Artes Plásticas e Educação Artística pela Unicamp. Trabalhou como oficineira de arte, lecionou Arte pelo Estado de São Paulo e em escolas particulares, foi educadora em algumas instituições e museus e atualmente trabalha como professora de Arte na Prefeitura de São Paulo. Pós-graduada em psicopedagogia pelo Mackenzie, é brincante no Grupo Cupuaçu de Danças Brasileiras. 128 TEIAS DE AFETOS E SABERES luta por manutenção de direitos trabalhistas. Também trato brevemente do aprendizado, enquanto educadora que cursa aperfeiçoamento em sua área de atuação num curso de extensão Arte e Educação para Professores. Esse curso foi ministrado pela professora doutora Sumaya Mattar, com a colaboração dos professores Alberto Roiphe, Caio Bonifácio, Clarissa Suzuki, Francisca do Val, Gabriela Mafud, Guilherme Nakashato, Hercilia Tavares Miranda, Leandro de Oliva Costa Penha, Lukas Joia Chrispin, Luiza Couceiro Latorre e Vinicius Souza Azevedo na Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo (ECA/ USP), segundo semestre de 2019 e primeiro semestre de 2021. Inicio meu relato com: (i) os fatos que me motivaram à vinda ao ambiente acadêmico em busca de aprimoramento no ensino de arte; (ii) o caminho que percorri nesse processo de ser educadora no laboratório de reflexão em ensino de arte em uma perspectiva progressista e decolonial; (iii) minha prática de ensino e a conjuntura nesse caminhar do ensinar e aprender durante os dois módulos e nesse pedaço de segundo semestre de 2021, logo após a mais longa greve da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. No caminho Exatamente em janeiro de 2018, olhando para fatos recentes de nossa história como o impeachment de Dilma Rousseff em agosto de 2016, a entrada em cena do protagonismo de Michel Temer na presidência com dois projetos de emenda constitucional aprovados e pré-aprovados: a reforma trabalhista e a reforma da previdência. 129 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES E para além desses, a ascensão da direita no mundo protagonizada por alguns presidentes como Donald Trump nos EUA, a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva no início de 2017, o primeiro ano da prefeitura de São Paulo de João Dória e o retorno do Sampaprev, culminando em greve e derrota dos servidores públicos enquanto pauta de retirada de direitos no cenário do serviço público paulistano, entre inúmeras manifestações, movimentos, mobilizações e enfrentamentos na esfera civil e política contra essas ameaças e recentes retomadas de superexploração da força de trabalho em várias esferas e também outras questões de violências e ataques ao bem estar social a aos cidadãos menos favorecidos no país, fiquei refletindo sobre o que estará por vir nesse ano eleitoral no Brasil. Imagem 1: Luto luto. Nesse contexto produzi uma arte visual pensando no tema Territórios e Bandeiras de Luta, uma reflexão frente a diversas pautas de lutas que percebo nos nossos coletivos sindicais e em outros movimentos como no caso dos movimentos estudantis, e que nesse contexto pensei que muita luta viria 130 TEIAS DE AFETOS E SABERES pela frente, e também muito sangue ainda seria derramado, pensei também em brincar com a ideia das lutas em cena no país e no mundo, enquanto artista visual. Depois percebi que usei as cores que representam o continente africano e a diáspora negra. São essas coisas que artistas, pensadores, produtores de arte e professores progressistas fazem ao olhar para o caldeirão de cultura e conjunturas sociais ao produzir conhecimento e pesquisas em sua profissão, antecipando fatos pela leitura de contexto. Infelizmente, praticamente dois meses depois, Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados numa emboscada planejada para a execução da vereadora Marielle. Vi nessa tragédia o prenúncio de algo que já conhecemos: os passos avançados do Lobo do Homem, da frase O Homem é o lobo do homem, retirada do filósofo inglês Thomas Hobbes em Leviatã, cuja frase original é do dramaturgo romano Platus, escrita em uma de suas peças, sendo no latim homo homini lúpus. Em Hobbes é narrada a ganância humana em satisfazer apenas interesses pessoais. E é o que vemos ainda hoje, principalmente nessa conjuntura política, repetir-se sistemas viciados de elite financeira que visa abocanhar como sempre o poder, os meios de produção de riquezas e abalar ainda mais as estruturas dos Estados Democráticos de Direito. Que precisa, para tanto de um povo iludido, adoecido, sem condições de se ater as artimanhas dessa estrutura: Aí está uma das razões para a proibição, para as dificuldades... no sentido de que as massas populares cheguem a “inserir-se”, criticamente, na realidade. É que o opressor sabe muito bem que esta “imersão crítica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu esta- 131 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES do de “imersão” em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como “situação limite” que lhes parece intransponível. (FREIRE, 2005, p.43) O ano 2018, marca o avanço das pautas da Direita no poder. De um lado, João Dória se elege governador do Estado de São Paulo, deixando o Bruno Covas no cargo de prefeito da cidade de São Paulo, duas governanças neoliberais. E do outro lado, mais especificamente no topo da pirâmide de poder, na Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro é eleito. Trata-se de uma liderança protofascista, uma vez que este defende um viés religioso cristão num Estado Laico e de Direito, a elite econômica num país extremamente desigual, a raça branca num país de herança colonial escravagista sobre povos indígenas e negros, e de gênero masculino num dos países campeões de feminicídio no mundo, e o extermínio dos diferentes, incluindo a homofobia, entre outras coisas. No início de 2019, nós servidores públicos da prefeitura de São Paulo, fizemos uma grande greve contra o Sampaprev, projeto de lei aprovado em dezembro do ano anterior, que aumentou o imposto da previdência de 11 para 14%, fixou um teto previdenciário alinhado ao INSS, e acabou com a integralidade previdenciária, uma vez que o trabalhador deverá contribuir com uma previdência privada para ter uma aposentadoria acima do teto, aumentando o investimento em bancos e empresas financeiras, que são as maiores devedoras dos cofres públicos. E o final da greve culminou com um ano da morte de Marielle Franco. No meu projeto de Stencil Art com os nonos anos, trabalhei imagens e dizeres sobre esse evento, pois dou início ao projeto ensinando as técnicas do Stencil, e desenvolvo em sequências de aulas conteúdos referentes ao engajamento na arte, utilizando artistas como Lasar Segall, 132 TEIAS DE AFETOS E SABERES Otto Dix, Antonio Dias e Rosana Paulino. Imagem 2: Sobreposição de desenhos dos estudantes, exercício partindo da conversa sobre a obra Parede de Memória de Rosana Paulino. No caso desse tema, da tragédia que foi o assassinato de Marielle, a repercussão e manifestação popular, utilizei como mediação a obra Quem Matou Herzog? de Cildo Meirelles. Enquanto o trabalho de Stencil Art secava na sala dos professores, uma professora simpatizante do Bolsonaro, das Ideias de Olavo de Carvalho e do movimento Escola sem Partido, fotografou sem a minha permissão, divulgou no formato público em rede social difamando minha atividade profissional. 133 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 3: Marielle Presente. Além de ocorrências realizadas por mim, na diretoria da escola e na diretoria regional de ensino, que não geraram nenhum fruto, dado o pensamento de neutralidade política por parte dos funcionários que ocupam os cargos de gestor e supervisor da escola em que este fato ocorreu. Isso me fez pensar muito sobre a necessidade de um aprimoramento no ensino de arte, no sentido de defender melhor minha prática de ensino. Um ensino antirracista, ancorado na obrigatoriedade do ensino de história da África: § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. 134 TEIAS DE AFETOS E SABERES § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (Lei 11.645/2008) Foi nessa ocasião que recebi num grupo de WhatsApp de outra escola o convite aberto para inscrição em um curso de arte na ECA-USP de atualização curricular para professores de arte e outros professores que utilizam a arte como repertório em sua prática. E fui me deparar com o termo Pedagogia Decolonial, que já tinha ouvido nome e conceito por parte de uma amiga e colega de trabalho, mas não tinha me atentado ao conteúdo desta proposição. Esta recepção e percepção de olhar para o ensino abriu uma nova perspectiva, na qual ainda pretendo me aprofundar. Decolonialidade Esta visão parte de uma crítica à cultura moderna de formação de conhecimento hegemônico baseado numa estrutura de poder eurocêntrica e ocidental não somente o poder financeiro, mas de pensamento. Sendo uma proposta de ruptura da estruturação epistemológica e política, onde os povos subalternizados foram deslocados de seus territórios de origem ou estão sendo constantemente devorados territorialmente, materialmente e culturalmente pelo colonialismo e suas concepções são naturalmente inferiorizadas. Procurando decodificar a percepção que impõe historicamente não somente uma história única dos colonizadores, devido sua meta imperialista, mas se mantém confirmando 135 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES essa estrutura de saberes e formas das produções de saberes por uma manutenção permanente, através também do pensamento econômico baseado na proteção do sistema de concentração de renda e validade da produção humana baseada no lucro, onde a economia capitalista demarca as regras em detrimento dos grupos historicamente minorizados ou outras formas de organizações humanas baseadas em outros valores. Essa teia de organização das políticas em todas as áreas é permeada por uma camada de concepção de mundo definida como colonialidade, que se mantém nos corpos, imaginários e relações na perspectiva Decolonial. Uma percepção que visa explicitar a relação onde o colonizado permanece enredado e reproduz essa forma de produção de mundo e o colonizador se retroalimenta. Quijano (2005) vai propor o conceito de colonialidade do poder para referir-se a essa situação. Essa seria uma estrutura de dominação que submeteu a América Latina, a África e a Ásia, a partir da conquista. O termo faz alusão à invasão do imaginário do outro, ou seja, sua ocidentalização. Mais especificamente, diz respeito a um discurso que se insere no mundo do colonizado, porém também se reproduz no lócus do colonizador. Nesse sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma seu próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos. Opera-se, então, a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização epistêmica do outro não-europeu e a própria negação e o esquecimento de processos históricos não-europeus. Essa operação se realizou de várias formas, como a sedução da cultura colonialista, o fetichismo cultural que o europeu cria em torno da sua cultura, estimulando forte aspiração à cultura europeia por parte 136 TEIAS DE AFETOS E SABERES dos sujeitos subalternizados. Portanto, o eurocentrismo não é perspectiva cognitiva somente dos europeus, mas torna-se também do conjunto daqueles educados sob sua hegemonia. (OLIVEIRA e CANDAU, 2010. P.19). Assim a concepção de pensamento e pedagogia chamada Decolonial é uma proposição crítica e ainda em construção que parte de reflexões desde 1970. E revistas em 1990 por um grupo de pensadores latino-americanos observando ativamente formas de romper esse paradigma cristalizado que apaga, silencia e deslegitima especialmente civilizações e suas produções de saberes localizadas na África, Ásia e América Latina. Repensar políticas educacionais dentro dessa proposta é repensar a produção e a forma de produção de conhecimento de culturas relegadas à margem da civilização. Se posicionando como uma nova meta de desenvolvimento civilizatório. Recepção e partilha Logo que chegamos na primeira aula do Módulo I foi informado da importância em não faltar, para não se perder o fio da meada, pois cada aula seria única e daria pano à próxima e seria finalizada com a partilha do aprendizado do dia mais alguma atividade para a próxima. Realizamos várias atividades riquíssimas!, com cada uma das professoras e professores, tão singulares que será impossível descrevê-las. Uma das primeiras atividades foi a produção de uma imagem do porquê me movi em direção a esse aprimoramento no ensino de arte, o que me remeteu diretamente ao evento do exercício de Stencil Art que foi parar nas redes sociais como uma espécie de denúncia pública de ensino ideológico em sala de aula. E como as instâncias públicas temem tratar do tema ensino an- 137 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES tirracista e também como estão despreparadas para lidar com perseguição política na escola. Foi aí que produzi uma arte objeto chamada Pisando em Ovos, pois andei me sentindo pisando num território frágil e perigoso devido ao momento político do país. Lemos e conversamos sobre escritores fora do eixo eurocêntrico, como Fela Cuti e Márcia Kambeba e outros textos tanto com Hercília quanto com Alberto; a Clarissa nos ensinou a fazer um caderno lindo, todo personalizado para nossas anotações; trabalhamos o bordado recheado com contações de histórias pelo Vinicius; vivenciamos percepção corporal e danças com a Gabriela e com o Leandro; Francisca nos trouxe suas experiências por meio das aquarelas e biologia; Lukas nos levou à exploração da cena no universo de Boal e Brecht; passamos pela reflexão sobre a história do ensino de arte no Brasil com Guilherme Nakashato, recebendo todo o apoio nas atividades pelo Caio e Luiza e a supervisão e exercícios de crítica de arte em grupo com a Sumaya. Sem contar os lanchinhos no intervalo que levávamos para partilhar e as conversas. 138 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 4: Pisando em Ovos e problematizações com um grupo de colegas professores bem críticos e interessados em seu processo enquanto educador. De tudo isso, as coisas que mais marcaram foram as vivências que me proporcionaram pôr os pés no chão das questões étnico-raciais em consonância ao fazer enquanto educadora, minhas vivências no campo identitário e artístico. A visita do Mestre Alcides na aula da Clarissa foi potencializadora, no sentido de observar o legado dos mestres e também questionar o que me leva a ser tocada profundamente pelas culturas 139 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES de matrizes africanas e esse pulsar de um ensino-aprendizagem que extravase os portais do cânone erudito. Para além do Ser e de Estar, do Paulo Freire nas questões de opressão de classe e o ensino mecanizado, a questão raiz cultural e propósito da ação no mundo, completando com as reflexões de Ailton Krenak, sou convidada a mergulhar na terra para poder me estirar novamente e esticar os galhos/braços entre horizonte e céu. Me pondo no desafio de enfrentar obstáculos e observar as contradições para transcender as aparências, percebi que para além do repensar o ensino estava repensando o fazer arte. E desconfio que estou encontrando minha poética enquanto artista também. No uso de tecido, imagens objetos e palavras. Como no caso de um exercício visual utilizando frases feitas e transformando-as em imagem. Imagem 5: Frase Enfeita. 140 TEIAS DE AFETOS E SABERES Voltei com sede ao pote, numa nova escola, pois de 2019 para 2020 me mudei de unidade escolar, e chegou à pandemia. Meu tema, baseado em territórios ficou à deriva. O segundo módulo do curso foi adiado e começamos a trabalhar on-line, quase sem recursos tecnológicos pelo serviço e com a maioria dos alunos sem acesso. Mesmo assim o ano inteiro de 2020 foi on-line, sem vacina para o Coronavírus e com a pandemia voltando a descontrolar. Final de janeiro de 2021 recebemos a notícia do retorno presencial, ainda sem vacinação, para início de fevereiro, com a pandemia totalmente descontrolada, em vista da falta de condições sanitárias, pois além disso as escolas contavam com quadro de limpeza, de apoio e também de professores reduzido, além de muitas escolas não terem janelas e estrutura predial que permitam a ventilação adequada. Além da falta de estratégia e recursos para as testagens necessárias e oferta de EPIs (equipamentos de proteção individuais) de qualidade aos profissionais de educação. Com isso o funcionalismo, com o apoio de seus sindicatos declararam greve, uma greve pela vida, cuja principal reivindicação foi o ensino remoto enquanto não houvesse vacina para todas as pessoas, além da entrega dos tablets aos alunos, comprados pela prefeitura no final do ano anterior. Chegamos numa taxa absurda de mais de três mil óbitos por COVID-19 ao dia em março, quando o Módulo II do curso se iniciou. E me vi utilizando da arte engajada no meu envolvimento da luta trabalhista, como nessas cenas de uma manifestação do Comando de Greve em frente à Diretoria Regional de Ensino, quando denunciávamos a falta de condições do retorno às aulas presenciais, que chamei de ação Luto-luto. 141 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 6: Ação Luto luto. Esse foi o momento de cada professora e professor inscrito na formação desenvolver uma aula partindo da reflexão de ensino vivenciada no módulo anterior levando em consideração as condições de ensino remoto no curso e todas essas condições da conjuntura nacional e mundial que estávamos e estamos enfrentando, devido à doença do Coronavírus mais várias crises sociais e climáticas que foram estancadas nesse processo; como a deflagração da corrosão desses sistemas de poderes nas sociedades de modo geral devido justamente ao modelo econômico capitalista que se mantém baseado no lucro, na alta exploração dos recursos naturais e humanos, em síntese; as engrenagens de herança colonial passando a ter suas fraturas expostas e o avanço da direita no Brasil e no mundo mostrando sua cara nos crimes de racismo estrutural, aumento da taxa de refugiados por conta do desemprego e a fome, além de um negacionismo bem típico do governo atual do Brasil. Nesse processo percebi nos desafios da proposição de aulas além da questão do distanciamento social e investigação 142 TEIAS DE AFETOS E SABERES dos recursos on-line, a necessidade de mergulhar nas raízes do ser por meio de várias linguagens como dança, literatura, vivência afetiva com as ervas e chás, a costura, a produção de patuá, o corpo em cena, a música e também vivenciar o luto. Expresso nesse livro objeto com curativos adesivos, que servem para guardar as dores da vida. Imagem 7: Guardador. Eu levei e questão do luto como assunto para tratar através de duas linguagens de arte; música e artes visuais criando um ambiente de produção cujo assunto em questão passou a ser 143 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES o impulso criativo, na voz/letra e arte visual de duas mulheres artistas brasileiras, pensando nesse lugar da ideia e da comunicação que acontece nas várias artes e que nos torna possível tecer cenas, impressões e sentimentos a respeito da vida e fatos vividos recentemente. Uma proposta de entrelaçamento de vida e arte, de linguagens de arte em diálogos com experiências vividas, numa espécie de curadoria temática, para se falar daquilo que pode ser intraduzível pelas palavras, as incertezas do hoje, do amanhã, dos próximos passos numa sociedade que se mostrou por demais frágil a existência humana e a estrutura de poderes que se desvelou dura por demais às pessoas e suas necessidades básicas, um processo de reensinar arte quando estamos precisando ainda aprender a respirar o presente e entender-se corporalmente num espaço hostil oferecendo acolhimento e autoacolhimento: A arte do cruzo só pode vir a ser praticada a partir de uma invocação e motivação exuística. O cruzo é a arte da rasura, das desautorizações, das transgressões necessárias, da resiliência, das possibilidades, das reinvenções e transformações. O cruzo, como perspectiva teórico-metodológica, dá o tom do caráter dinâmico, inventivo e inacabado de Exu. A encruzilhada, símbolo pluriversal, atravessa todo e qualquer conhecimento que se reivindica como único. Os saberes, nas mais diferentes formas, ao se cruzarem, ressaltam as zonas fronteiriças, tempos/ espaços de encontros e atravessamentos interculturais que destacam saberes múltiplos e tão vastos e inacabados quanto experiências humanas. (RUFINO, 2019. P. 86). Pois esse momento também evidenciou o crescimento do feminicídio no Brasil e o sucesso nas ações de lideranças femininas no combate à pandemia, portanto quis evidenciar arte de mulheres. Mas também me mantive olhando para a pauta identidade étnico-racial e também o quanto essas múltiplas pau- 144 TEIAS DE AFETOS E SABERES tas: étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, viés político progressista e crise ambiental, se correlacionam e estão integrados numa atuação pedagógica com esse viés Decolonial. O que me pega enquanto identidade são as histórias familiares e de ações políticas que compõem a minha história enquanto pessoa e me faz refletir quem sou eu nesse Brasil de hoje, e o que isso potencializa no meu papel enquanto educadora, mais especificamente artista docente. Essa última produção traduz um momento no qual muitas partes de mim se encontram num todo, quase como se estivesse que reconhecendo a somatória do eu artista, política e educadora e as diversas linguagens dessa entidade ser humana e integrada ao momento, não por acaso foi o dia em que encontrei um cartão com a imagem de Oxumaré desenhada, que estava procurando há anos, dentro do livro Educação Cidadã de Moacir Gadotti. Imagem 8: Transformação. 145 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Orvalhos e garoas Em junho retornamos da greve, por desgaste mesmo, não tínhamos mais fôlego e tivemos umas pequenas conquistas, num cenário de um governo extremamente intransigente e arbitrário. Enquanto conquistas tivemos a garantia da vacinação do servidor da Rede de Ensino como prioridade, a entrega de EPIs mais adequados, ampliação dos contratados para limpeza, ampliação de contingente de apoio educacional, entrega dos tablets aos estudantes, garantia de 20% do trabalho em casa e o turno, que se manteve de 50% de estudantes por dia em esquema de revezamento entre ensino remoto e presencial chamado ensino híbrido, com direito de ensino remoto total para os estudantes cuja família não aceitou o retorno presencial aos seus filhos. Mesmo assim entendemos o retorno como precoce, pois as escolas com ventilação inadequadas não foram reformadas, ainda não tinha chegado a vez de vacinação da maioria dos profissionais e, dos que foram vacinados, a maioria ainda não tinha tomado a segunda dose, as crianças e adolescentes estavam sem previsão de vacinação e a pandemia seguia descontrolada, mesmo com a taxa de mortalidade decrescente. O maior ganho da greve foi manter as escolas fechadas ou parcialmente fechadas no pior período de descontrole da pandemia. Com isso, diminuir a circulação de pessoas, o aumento do contágio e morte, preservando nossas vidas, as vidas dos estudantes e seus familiares. Mas voltamos, e em meio a readaptação ao ritmo de trabalho presencial, às novas regras de protocolo sanitário, ao revezamento de estudantes e com isso as quebras de continuidade das atividades, ao ritmo de estar tanto no ensino 146 TEIAS DE AFETOS E SABERES presencial como no remoto, experienciar todo esse desdobramento também tivemos que organizar e dar conta de começar a reposição de aulas e carga horária do tempo que passamos em greve. Foi aí que resolvi organizar grande parte da minha reposição na forma de oficina de arte, com isso oferecer encontros presenciais com um tempo mais alongado ao fundamental I que tem somente uma aula semanal de Arte. Primeiro acho importante o olhar para esse recomeço: o que conversar com os estudantes? De onde recomeçar o ensino formal? Como avaliar dificuldades e desânimos ao estudo? Como oferecer equidade para as crianças com deficiência? O recomeço foi de escuta e conversas sobre expectativas para a escola e o mundo. Entre professores também necessária e vivenciada as reflexões sobre o ritmo, cuidados e repensar as escolas e os tempos e espaços da mesma. Nas rodas de conversas entre educadores surgiu a preocupação com as presenças inconstantes e a retomada sucessível do mesmo conteúdo, a sensação de que toda aula é quase a primeira aula. Todas as paradas e dispensas de aulas presenciais representaram nova refreada do ritmo de aulas. Uma proposta que surgiu fortemente e tomou fôlego foi a revitalização do espaço externo, por vários motivos; um deles sendo a necessidade de estarmos mais tempo em local ventilado, outro motivo foi o fato de termos um bom espaço externo, - mas abandonado-, e o outro motivo foi o ânimo especialmente por um dos professores de Geografia de trabalhar horta e jardins nesses espaços de terra. Nossa preocupação com as questões ambientais tão em pauta, dado a necessidade urgente de refrear os desmatamentos e outros desastres irreversíveis ao meio ambiente, tomou corpo e vários professores se empolgaram em desenvolver um projeto de educação ambiental, 147 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES que no momento está em andamento com algumas atividades sendo realizadas, como o plantio de mudas, limpeza da terra na região do córrego Água Podre, leitura no bosque e desenho de observação das árvores e área externa. Imagem 9: Atividades do projeto Educação Ambiental. Nas aulas de Arte além de atividades ligadas a apreciação de obras de arte refletindo conteúdos e comunicações inerentes ou possíveis às técnicas e assuntos tratados pelos artistas, o contato com a cultura indígena por meio de histórias, vídeos de rituais e documentários, o contado e exercício com diversos tipos de chocalhos para se conhecer instrumentos musicais, o som e suas origens e também seu aspecto material, fizemos essas atividades externas. Na gênese da arte encontra-se um exemplo de como a narrativa, por meio de sua estrutura e forma, pode inspirar diferentes significados. As covas de Lascaux e Altamira são lugares de formação e de significado que constituem os prolegômenos da ciência, da arte, da religião, da literatura e da educação. 148 TEIAS DE AFETOS E SABERES A psicologia narrativa legitima as múltiplas interpretações de uma narração dada como texto... Deve-se estimular os estudantes a unir suas histórias pessoais aos pressupostos culturais, as crenças pessoais e a pontos de vista – pensar, sentir e querer, enfim, ver como essas histórias ajudam a construir o conhecimento. (BARBOSA, CAO, 2008. PP. 197-198). Na oficina, no momento que conta com quase dois meses de atividades, o foco tem sido valorizar o tempo do contato com materiais diversos das artes visuais. Esse tem sido o objetivo principal, o tempo para vivenciar o fazer em artes visuais, que é a minha formação e por isso o que eu tenho mais domínio, e pretendo desenvolver o gosto de experienciar a prática; de mexer, de construir e de desenhar, a prática laboratorial de investigação nessa linguagem, uma vez que sempre temos sido impulsionadas para a polivalência de linguagem e quase nada de tempo para o desenvolvimento e investigação nas artes. Imagem 10: Desenhos e pinturas em aquarela. 149 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Começamos com desenho/ pintura em aquarela, a investigação do material e dois temas; pessoas e paisagens, e depois passamos para uma técnica de uso do papel umedecido. Nesse momento, estamos trabalhando com a colagem e eu estou vendo materiais para desenvolver um caderno. Me lembrei da nossa aula de cadernos e estou no momento querendo reaproveitar os materiais que ficaram parados na escola: papéis, fitas adesivas coloridas, furadora e barbantes coloridos. Também realizamos desenhos de observação no parquinho da escola e bosque. Imagem 11: Desenhos no parque. Semeadura Após esse primeiro ensaio de oficina, e a riqueza de potencial que tenho visto na atividade de educação ambiental que meus colegas estão implementando (e eu estou timidamente me aproximando), quero ver uma forma de ligar a investigação nas Artes Visuais com o potencial material e espacial da área externa. Os próximos passos serão coleta de materiais 150 TEIAS DE AFETOS E SABERES orgânicos do bosque para colagem. Frotagem de texturas de cascas de árvores, de folhas e o que mais descobrirmos de potencial para coleta de texturas. E a apresentação do artista Frans Krajcberg e suas obras e a relação das obras com o mundo, tanto as produções humanas quanto nossas relações com as demais espécies e o meio ambiente. A modelagem em massinha, modelagem em argila e modelagem com a terra do terreno da escola, permeada por conversas sobre os materiais e produções nas Artes Visuais. E novos passos a partir daí, pensando nessa relação oficina e o terreno da escola e todo esse potencial, sem perder a importância do fazer arte, mesmo que engajada. Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. Especificamente humana a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações e medos, desejos. Exige de mim, como professor(a), uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente. (FREIRE, 1996,p. 70-71). O desdobramento final para esse ano será uma exposição híbrida: física e virtual das produções dessas oficinas. Uma parte da oficina vai ser remota. Então pretendo fazer a exposição física e imprimir os trabalhos virtuais também na parede. 151 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES E fotografar e filmar a oficina e apresentar na sala de aula virtual e também no site da escola, cruzando assim esses diversos tempos e espaços. Imagem 12: Dado Butantã. Referências CAO, Marián Lópes F. Lugar do outro na Educação Artística – Olhar como eixo articulador da experiência: uma proposta didática. In BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/Educação Contemporânea: Consoantes Internacionais. – São Paulo: Cortez, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. __________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005 (49º reimpressão). 152 TEIAS DE AFETOS E SABERES OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural no Brasil. Belo Horizonte: Educação em Revista, 2010. RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019 (escrito em 1987). SILVA, Luiz Inácio Lula da. HADDAD, Fernando. LEI 11.645. Brasília: Presidência da República/ Casa Civil, 2008. Imagens Imagem 1 – ZANETIC, Mariana. Luto luto. Foto e arte em tecido, acervo pessoal. São Paulo, 2018. Imagem 2 – ZANETIC, Mariana. Exposição de arte, nonos anos 2019, acervo pessoal. – São Paulo, 2019. Imagem 3 – FACEBOOK, Rede social. Detalhes de publicações, foto, comentários não autorizados e defesa de estudante. - São Paulo, 19 de junho e 23 de julho de 2019. Imagem 4- ZANETIC, Mariana. Pisando em Ovos. Foto e objeto, acervo pessoal. São Paulo, 2019. Imagem 5 - ZANETIC, Mariana. Frase Enfeita. Foto e arte em tecido, acervo pessoal. - São Paulo, 2019. Imagem 6 - ZANETIC, Mariana. Fotos de registro de ação Luto luto, acervo pessoal. - São Paulo, 2021. Imagem 7 - ZANETIC, Mariana. Guardador. Foto e objeto, acervo pessoal. - São Paulo, 2021. Imagem 8 - ZANETIC, Mariana. Oxumarê. Foto e arte em papel, acervo pessoal. São Paulo, 2021. Imagem 9 - Escola da Rede Municipal do Ensino de São Paulo, acervo da escola. São Paulo, 2021. Imagem 10 – ZANETIC, Mariana. Fotos de desenhos e pinturas em aquarela, acervo pessoal. - São Paulo, 2021. Imagem 11 - ZANETIC, Mariana. Fotos de desenhos no parque, acervo pessoal. São Paulo, 2021. Imagem 12- ZANETIC, Mariana. Dado Butantã. Foto e objeto em terra forte e sementes, acervo pessoal. - São Paulo 2021. 153 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Letycia Payayá1 e Clarissa Suzuki2 Soprar, semear, sonhar ideias sobre as artes e a educação: diálogos entre Letycia Payayá e Clarissa Suzuki Eu, Letycia Rendy Yobá Payayá, sou ativista na luta pelos direitos dos povos indígenas pelo Brasil, arte-educada com o projeto Cine Sarau Jacó na periferia da cidade de São Paulo. Eu, Clarissa, sou nipo-pindorâmica, filha de Suely e Jorge, de Oxum e de Xangô. Pisciana sonhadora, professora, pesquisadora, militante por um mundo melhor onde caibam todas, todos e todes: um mundo anticapitalista, anticolonial, antirra- 1 Letycia Payayá. Mestranda em História Oral pelo Diversitas - FFLCH/USP, idealizadora do projeto Cine Sarau Jacó, cinema e sarau na rua pelos bairros Jardim Jaqueline e Celeste na Zona Oeste da cidade de São Paulo. 2 Clarissa Suzuki. Doutora e Mestra em Artes pela ECA/USP, professora na Educação Básica e no Ensino Superior. 155 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES cista, antimachista, anti-homofóbico, contra tudo aquilo que gera violência e invisibilidades. Imagem 1: Juntas no curso de extensão em Arte e Educação para Professores da ECA/USP (2019). O nosso feliz encontro se deu há alguns anos, na vida, na luta pelos direitos dos povos originários, pelos direitos das mulheres, das trabalhadoras e trabalhadores. Compartilha- 156 TEIAS DE AFETOS E SABERES mos territórios, já fomos vizinhas. Somos mulheres posicionadas e não abrimos mão desse lugar político que, muitas vezes, nos coloca em situações desfavoráveis, principalmente nas estruturas coloniais, que marginalizam o que provoca fissuras em suas fundações. As reflexões plantadas aqui neste texto são decorrentes da docência solidária e compartilhada em um dos encontros/ aula no curso de extensão em Arte e Educação para Professores que a Profª Drª Sumaya Mattar, junto com o GMEPAE – Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (CAP/ ECA/USP) –, criou e ministrou no segundo semestre de 2019 e no primeiro semestre de 2021. O curso foi oferecido gratuitamente para professores atuantes na Educação Básica das Redes Públicas de Ensino, no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP. O curso tinha como objetivo oferecer aos professores um espaço de estudo, pesquisa, reflexão, experimentação e criação, a partir de uma perspectiva decolonial, fazendo frente aos desafios contemporâneos da Arte na educação escolar. No Módulo I, os participantes tiveram contato com as bases epistemológicas desta perspectiva e vivenciaram experiências que fomentaram o trabalho a ser desenvolvido no Módulo II, voltado aos projetos poético-pedagógicos dos participantes. Em decorrência da pandemia do Coronavírus, o Módulo I ocorreu no ano de 2019 de forma presencial, já o Módulo II ocorreu de forma remota, no primeiro semestre do ano de 2021. O contexto dessa docência compartilhada foi o plano de trabalho que tratou dos “Pensares e fazeres interculturais e decoloniais desde a arte e educação” e que propunha, entre outras coisas, o compartilhamento e a reflexão de práticas 157 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES educativas/ artísticas que integrassem às epistemologias afro-brasileiras e indígenas em diálogo com as teorias que problematizam outros pensares e fazeres na educação. Clarissa era docente do curso, Letycia era cursista, mas neste e em muitos momentos as nossas funções se confluíram no curso do rio chamado conhecimento. Juntas, propusemos a vivência prático-teórica que abordou os saberes dos povos originários pindorâmicos em diálogo com a educação e as artes. As ideias a seguir são reflexões dessa nossa experiência. Imagem 2: Encantando no curso de extensão em Arte e Educação para Professores da ECA/USP (2019). 158 TEIAS DE AFETOS E SABERES Demarcando territórios Não há como falar em arte indígena (contemporânea) sem falar dos indígenas, sem falar do direito à terra e à vida. (Esbell, 2018). Começaremos refletindo sobre a Arte no Brasil - talvez a palavra arte nem seja adequada, a palavra Brasil, muito menos. Por isso, assumimos um posicionamento político sobre a presença criadora dos povos pindorâmicos, que foi registrada artisticamente pelos não-indígenas em diferentes momentos da história deste país, mas sempre pelo conforto colonial. Registraram o outro não-civilizado, exótico, que não tem capacidade intelectual de falar sobre si. Assim se deu (ou ainda se dá?) o encontro do pensamento da arte européia com os artistas selvagens, que não produzem arte, não é? Não! Soprou Esbell (2018), “Arte e indígenas é um passar performático ao longo do tempo e da geografia e para esses sentidos temos de abordar o elemento colonizador”: O olhar do cristão, salve os jesuítas! O olhar do viajante, salve Eckhout! O olhar do etnógrafo, salve os antropólogos! O olhar do romântico, salve Meirelles! O olhar do modernista, salve Andrade! O olhar do galerista, salve o mercado! O olhar do crítico, salve os acadêmicos! 159 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Apesar de Jaider não estar mais fisicamente entre nós, na forma humana, suas ideias continuam nos provocando. Um dos piolhos que ele colocou na nossa cabeça, parafraseando o escritor Daniel Munduruku, foi sobre como é o encontro da arte indígena com o sistema de arte geral, ou seja, aquele sistema dos códigos europeus, eleito como o sistema universal para lidar com as manifestações artísticas. Diz ele, [r]efazendo o caminho da pergunta, ressignificamos as respostas. Entende-se com essa pergunta que o sistema de arte seja algo que realmente não compreende, no sentido de não conter, a arte dos indígenas. Percebe-se também que o sistema de arte de natureza ocidental não vê, não percebe e não faz qualquer relação com seu próprio paralelo: o sistema de arte indígena, digamos assim. O sistema de arte europeu desconhece e, portanto, não reconhece que entre os indígenas há um sistema de arte próprio, com sentidos e dimensões próprios (ESBELL, 2018). Seguindo o sopro do Jaider (idem), afirmamos que os propósitos da arte indígena “vão muito além do assimilar e usufruir de estruturas econômicas, icônicas e midiáticas. A arte indígena contemporânea é, sim, um caso específico de empoderamento no campo cosmológico de pensar a humanidade e o meio ambiente”, portanto, enxergar o ambiente inteiro contando com nosso próprio pertencimento. Esse modelo de civilidade nos apartou da terra e interpôs o concreto, o rígido, o intolerável. A terra suja, o asfalto limpa. Para além daquilo que é catalogado como arte pelo olhar colonial, podemos falar das produções artísticas indígenas frutos das identidades individuais e coletivas. Produções ligadas às necessidades diárias e à vida comunitária, atravessadas pelas tradições e ancestralidades. Os grafismos, por 160 TEIAS DE AFETOS E SABERES exemplo, muitas vezes não têm um significado específico, eles complementam a identidade de cada povo. Os traços diferenciam cada indivíduo, suas relações, cada etnia, as diferentes cestarias e outros objetos. Por exemplo, para se criar e elaborar um colar indígena, é necessário todo um pensamento crítico, geográfico e da materialidade presente no território que se habita, as palhas do Norte do país são diferentes das do Nordeste. No Norte temos o tucum, o açaizeiro e no Nordeste o licuri e a palha do coco, o que determina quais formas, cores e texturas têm a produção de um artista da localidade específica. Quantos brasis cabem nesta conversa? Quantos sistemas estéticos, éticos, coletivos, individuais podem co-existir? Quantas cosmologias guiam os nossos pensamentos e fazeres? O “índio genérico” que o colonizador des(d)enhou, pintou e narrou não contempla os mais de 300 povos indígenas brasileiros falantes de 274 línguas originárias, tampouco as suas cosmologias e complexidades culturais, sociais e políticas. O índígena fixado no tempo e no espaço, dócil e romantizado, embranquecido nas representações visuais ao longo da história (ao passo do embranquecimento da população), apesar de colonizar muitos imaginários, é um equívoco violento, uma estratégia de valorização dos valores estéticos estrangeiros por meio da invisibilização da estética dos povos nativos. Sabemos que muitos artistas brasileiros e europeus se inspiraram nas artes indígenas em muitos momentos da história, porém, essas referências foram reveladas em suas produções? Até hoje as referências indígenas são invisibilizadas, enquanto outros referenciais - principalmente os europeus, acadêmicos, masculinos, brancos - são amplamente difun- 161 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES didos e reproduzidos. Ainda hoje enfrentamos o discurso de que temos poucos referentes escritos de autoras e autores indígenas para fundamentar as nossas produções acadêmicas e artísticas. Será? Imagem 3: Com_partilhando diversas sementes. Curso de extensão em Arte e Educação para Professores da ECA/USP (2019). Respeitar os saberes dos povos originários é respeitar as suas ancestralidades Como característica, a arte indígena está diretamente integrada nos diversos domínios da vida social e a sua natureza é diversa, ativa, participante e coletiva. Cada um dos mais de 300 povos indígenas do Brasil têm as suas especificidades, cada artista indígena tem as suas particularidades em criar sua arte, é fruto do seu tempo e espaço. O canto, a dança, as expressões corporais remetem às suas diferentes identida- 162 TEIAS DE AFETOS E SABERES des. A disposição das sementes ao criar um colar, as cores escolhidas são matematicamente combinadas, nunca foram combinações aleatórias. Por ser uma produção ancestral, de saberes compartilhados entre os parentes, a participação também se torna um elemento do processo artístico na expressão indígena. Assim, as produções não servem apenas para contemplação, mas ganham valor de intervenção cultural e de constituição das próprias identidades. Nesse contexto, um grande problema é agregar valor às artes indígenas, aquelas descoladas das grandes instituições culturais e artísticas, porque apesar da arte indígena contemporânea ter conquistado espaços nessas instituições, somente alguns artistas são eleitos - individualmente - na valorização de seus trabalhos. Nunca fomos selvagens! A matemática, a geografia, a astronomia, a extração das cores, a manipulação das argilas, a disposição dos objetos, a arquitetura, são conhecimentos repassados pela corrente dos mais velhos para os mais novos. Nessa corrente, a ancestralidade é quem fortalece o indivíduo dentro do coletivo e, da mesma forma, o coletivo segue fortalecido na busca da garantia dos seus direitos. A docência compartilhada é uma floresta Diante de todas reflexões apontadas até aqui e, principalmente, pela complexidade de se pensar em como abordar/ vivenviar a arte indígena em um curso de formação, apontamos que uma possibilidade ética e solidária é assumir a docência compartilhada, que além de descentralizar o poder pedagógico, promove diálogos pluriversais e trocas de saberes. É como uma 163 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES floresta: cheia de vidas diversas, movimentos, sons e silêncios. Tem seus riscos e suas belezas, fortalece o corpo e o espírito! Com isso, nos posicionamos contra as hierarquias epistêmicas, dividimos efetivamente o trabalho docente e assumimos que a prática educativa é essencialmente coletiva. Assim, somamos vozes, saberes e olhares. Praticamos a solidariedade entre pares, mulheres, entre saberes distintos! É como se em um momento fôssemos árvore, no outro pássaro, em outro pedra. Experimentamos falar, ouvir, pensar, dialogar, receber, compartilhar. Coletivizamos narrativas, pontos de vista, olhares para as histórias e memórias, que muitas vezes foram invisibilizadas pelas narrativas coloniais daqueles que puderam contar as suas histórias. Imagem 4: No quintal do CAP (Departamento de Artes Plásticas) na ECA/USP, semeando coletivamente o chão. Curso de extensão em Arte e Educação para Professores da ECA/USP (2019). 164 TEIAS DE AFETOS E SABERES Semeando ideias Como olhar a arte pela perspectiva indígena? A priori, é pensar na preservação do território como fonte de sobrevivência, no reconhecimento e na garantia dos direitos dos povos indígenas pelo governo e sociedade civil. Na preservação do ambiente inteiro e assumir que todos os corpos coexistem. Abrindo mão do acúmulo e do lucro gerado pela ganância e propor o uso consciente dos elementos da natureza. Pensar que a semente, a palha, a argila não tem apenas valor comercial, mas existem valores espirituais e orgânicos que vão para além do dinheiro. Povos indígenas dividem, com quem adquire uma arte, toda sua cosmovisão de mundo e uma possibilidade de como preservá-lo. Afinal, quem diz o que é arte? Referências CADERNOS SELVAGENS. Ciclo Selvagem (Produção Coletiva da Comunidade Selvagem). Disponível em: http://selvagemciclo.com.br/ cadernos/, acessado em maio de 2022. ESBELL, Jaider. Arte indígena contemporânea e o grande mundo. Revista Select, edicão nº 39, 2008.Disponível em: https://www. select.art.br/arte-indigena-contemporanea-e-o-grande-mundo/, acessado em 18 de maio de 2022. MACHADO, Ricardo. Nem modernista, nem anti-modernista, a Arte Indígena Contemporânea (e cosmopolítica) na vanguarda de um Brasil que jamais foi moderno. Instituto Humanas Unisinos, 2022. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/618002-nem-modernista-nem-anti-modernista-a-arte-indigena-contemporanea-e-cosmopolitica-na-vanguarda-de-um-brasil-que-jamais-foi-moderno, acessado em 22 de maio de 2022. TERENA, Naine; MUNDURUKU, Daniel. Véxoa: Nós sabemos (catálogo de exposição). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020. 165 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Gabrielle Martin Távora1 O tempo da experiência para encontrar uma deriva própria 1 Gabrielle Távora é atriz e arte-educadora. Bacharel em Artes Cênicas pela USP, licenciada em Artes Visuais e atualmente está cursando Pedagogia. Dos palcos teatrais às salas de aula, tem investigado a interdisciplinaridade dos processos artísticos com diferentes composições de grupo. 167 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES O tempo da experiência: para encontrar uma deriva própria é um dos projetos-aulas autorais que foram desenvolvidos durante o curso de Arte e Educação para Professores, coordenado pelo Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação - GMEPAE, da Escola de Comunicações e Artes/USP, em São Paulo, e orientado pelas professoras doutoras Sumaya Mattar e Hercília Tavares de Miranda. Este curso teve como circunstância principal a presença de alunos que também são professores, ministrando aulas de arte regularmente, ou outras disciplinas que contêm atividades artísticas, principalmente na escola pública. Portanto, a criação dos projetos-aulas de cada um dos alunos se configurou também como um compartilhamento de pesquisas entre educadores interessados em aprender uns com os outros, em um curso ministrado à distância, com encontros virtuais durante o primeiro semestre de 2021. O projeto-aula que intitula este relato visou criar uma experiência sensível através da ação do corpo no espaço, com um procedimento de imersão sonora e sensorial denominado “deriva poética”. Esta temática foi pesquisada por mim durante o ano de 2020, estando vinculada ao Departamento de Artes Cênicas da USP e, posteriormente, com o estímulo das professoras-orientadoras do curso em Arte e Educação, transformou-se em um projeto-aula, expandido e adaptado ao formato remoto. O procedimento de deriva é uma prática artística realizada, geralmente, no espaço público. Charles Baudelaire já praticava uma atividade estética similar denominada “flanância”. Posteriormente surgiram as deambulações surrealistas, até as Derivas ganharem forma com o Movimento Situacionista 168 TEIAS DE AFETOS E SABERES na década de 1950. No contexto atual, a proposta é utilizar a deriva como ferramenta pedagógica e estética para sensibilizar os participantes corporalmente, além de estimular a reflexão consciente, ainda que no interior de suas próprias casas. Deriva é a ação estética de caminhar de modo desviante do habitual, sem estabelecer um ponto de chegada e criando regras de jogo que direcionem os próprios sentidos e a rota a ser percorrida. De acordo com Berenstein: [u]ma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar. (2012, p. 213). Esse procedimento costuma ser utilizado como uma prática corporal para a criação artística, mas percebi também uma potencialidade estético-pedagógica como ferramenta de sensibilização pessoal com os alunos, principalmente no contexto atual. Explico: muitas pessoas vivem a realidade exaustiva do home-office, ou do ensino à distância, com tempo excessivo de exposição às telas, excesso de horas de trabalho e excesso de informação. Nessas condições, faltam tempo e espaço na rotina para vivenciar momentos verdadeiramente sensibilizadores, disponibilizados pelo ócio criativo, rico em possibilidade de reflexão e experiência artística. O isolamento social também agravou essa situação em 2020 e 2021, durante o período de obrigatoriedade da permanência dentro de casa: um espaço ocupado apenas com função de utilidade e produtividade, o que contribuiu para criar uma vivência permeada de estresse, insegurança, conflitos e falta de sentido. 169 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES O filósofo e pedagogo Jorge Larossa Bondía, ao refletir sobre o indivíduo moderno, afirma que “somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos”. (2002, p. 24). A ausência de pausa em uma rotina caracterizada pelo ritmo frenético de atividades faz com que nenhuma experiência significativa aconteça. A percepção aguçada e sensível exige tempo para pensar, para olhar longamente, para escutar os sons do ambiente com atenção, para sentir o corpo sem ignorar as próprias emoções. Pensando em promover uma situação artística-pedagógica que operasse em função disso, criei um percurso de deriva em formato “vídeo-aula” para ser feito pelos participantes do curso de Arte e Educação para Professores dentro de suas casas, através de um áudio pré-gravado com duração de 20 minutos, podendo ser baixado e ouvido em qualquer aparelho celular. O objetivo dessa prática foi promover um respiro na rotina desgastante e transformar a relação cotidiana dos alunos com o espaço de suas casas, proporcionando uma experiência artística e imersiva através do corpo e dos sentidos (audição, paladar, olfato, tato). O sentido da visão tem sido super estimulado pelas intensas interações virtuais e constante presença de telas no cotidiano pandêmico. Por isso, a instrução de vendar os olhos durante o exercício de deriva teve o intuito de aguçar os outros sentidos da percepção. O exercício foi realizado individualmente pelos alunos-professores em suas casas, no dia 28 de abril de 2021, enquanto escutavam o áudio pré-gravado por mim. Para isso, eles deveriam escolher um cômodo da casa que possibilitasse liberda- 170 TEIAS DE AFETOS E SABERES de para movimentação, e, de preferência, sem a presença de outras pessoas (quarto, banheiro, garagem, corredor etc). O áudio serviu como condutor das ações dos alunos no espaço escolhido por cada um deles, passando por alguns momentos: Como um corpo deriva no espaço? Percepção corporal: pés e respiração; Espreguiçar e alongar o corpo; Vendar os olhos; Caminhar no escuro/ perceber o espaço; Guiar-se pela escuta; Seguir os rastros lúdicos: sons, texturas, cheiros; Permanência do corpo/ ativação do paladar; Devaneio musical. O procedimento de deriva constituiu-se como uma experiência estética muito potente, tanto para sensibilizar os participantes, quanto para gerar um estado de consciência sobre seus gestos e percepções sensório-espaciais. Alguns retornos dos participantes sobre a experiência da deriva, após o término da aula, superaram minhas expectativas sobre a capacidade de sensibilização dos exercícios e também trouxeram novas reflexões e apontamentos sobre a pesquisa, a ser continuada com outros grupos de alunos de forma remota ou presencial. 171 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Se a aula ministrada tivesse tido maior tempo de duração, eu gostaria de realizar uma etapa posterior ao momento de deriva: os alunos teriam o tempo de dez minutos ininterruptos (escrita em fluxo) para registrar através de texto suas percepções e imagens mentais geradas durante o exercício corporal, estimulando assim, uma criação autoral e de elaboração a partir da vivência artística. Penso que o procedimento da deriva é versátil como ferramenta pedagógica, podendo ter diversas repercussões e enfoques, inclusive como preparação para outras atividades de criação artística em sala de aula debates, leituras e até mesmo a confecção plástica em ateliê - a depender das características de cada grupo de alunos. Por conta do contexto de isolamento social durante a pandemia de COVID-19, criei uma relação entre a sensibilização corporal e o espaço da casa. Entretanto, seria interessante fazer a mesma atividade em espaço aberto com os estudantes, como o pátio escolar ou até mesmo um parque, enquanto eles se mantivessem com os fones de ouvido e de olhos vendados. Pretendo direcionar o olhar dos participantes para o cultivo da atenção e da delicadeza, criando tempo e espaço para explorar os sentidos; premissa que se manterá diante da adaptação deste procedimento estético-pedagógico para novos espaços que não sejam de caráter privado e individual - a escola, o parque, a rua. Tive a oportunidade de compartilhar este projeto-aula com tantos alunos-professores dedicados, durante os encontros do curso de Arte e Educação da ECA/USP. E na troca prazerosa que se realizou, na intensa fluidez entre ensinar-aprender, pude constatar que O tempo da experiência: para encontrar uma deriva própria é apenas uma das vias possíveis para a minha pesquisa sobre sensibilização poética, sobre incentivar 172 TEIAS DE AFETOS E SABERES os alunos a se demorarem nos detalhes, a suspenderem os juízos de valor e o automatismo das ações. Para ressignificar, pela audição e por outros sentidos, a relação dos alunos com o espaço da casa, foi utilizado o procedimento da deriva em audioguia. Porém, o trabalho continuará, espero que em novos formatos também, pois ainda há muitos caminhos a serem desvendados e percorridos. Então, para concluir e inspirar os desdobramentos futuros desta pesquisa, deixo registrado aqui as palavras de Lispector, as quais sintetizam o estado de experiência que busco através da sensibilização poética: “O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.” (2020, p. 20). Referências BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, 2002, n. 19, p 20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt , acessado em 21 de junho de 2021. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador : EDUFBA, 2012. LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. 173 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Dayse Ana Fernandes1 Fios que se encontram: histórias e memórias Caminhos iniciados [...] Acredito que precisamos estar em constante reflexão e formação para podermos rever e revisitar nossas práticas, multiplicando assim o conhecimento, e esse curso com a temática voltada para “Arte e Educação” representa a possibilidade de novas experiências e aprendizagens, coincidindo com um dos meus propósitos de trabalho que é possibilitar a troca de conhecimentos através das expressões artísticas, respeitando a criança como parte ativa e principal do desenvolvimento, valorizando não o produto final, mas sim todo o processo de criação ... O trecho acima é um recorte do relato autobiográfico escrito 1 Dayse Ana Fernandes. Formada em Pedagogia pela UNIFESP, atuando como professora de Educação Infantil na Rede Municipal de São Paulo, sempre em busca do encantamento, diversidade e potencialidades que as artes oferecem. 175 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES por mim no início do primeiro módulo, que apresenta algumas das expectativas ao participar do curso, e posso afirmar que essas perspectivas foram atingidas de maneira que foi possível refletir, ressignificar, aprender, compartilhar experiências e experimentações que trouxeram reverberações diretamente no chão da escola. E destaco ainda que a didática utilizada durante todo o processo, onde pudemos observar, ouvir, experimentar, refletir com pesquisadores de diferentes linguagens artísticas, valorizando as culturas dos povos originários e com práticas decoloniais, foi essencial para o enriquecimento, desenvolvimento e movimentação do curso. Os relatos de prática compartilhados ao longo de todo o processo, também foram indispensáveis para a reflexão entre o “pensar e fazer” nas unidades educacionais, principalmente quando nos referimos à educação pública e sua pluralidade de corpos, vozes, cultura, etc. Mesmo durante a pandemia do COVID-19, onde tivemos que alterar as aulas para o ensino remoto a fim de dar continuidade ao segundo módulo do curso, foi possível dividir as experiências nessa modalidade de ensino que era novidade para grande parte dos participantes, o que tornou possível ampliar o repertório através do compartilhamento de referências e práticas. Inicialmente, quando ainda estávamos começando o ano letivo de 2020, identifiquei em minha turma o interesse por vivências com movimento. Assim, em conjunto com um grupo parceiro, iniciamos o projeto “Tecendo Movimento”, onde inspirados nos artistas Hélio Oiticica e Ernesto Neto, começamos um processo de experimentações com tecidos, afim de desconstruir a arte como algo estático, e que está associado apenas as Artes Visuais, mas busca evidenciar o corpo e todos os sentidos, como maneiras de vivenciar e experimentar a arte. Infelizmente devido à pandemia precisamos interromper o processo, mas mesmo 176 TEIAS DE AFETOS E SABERES nas propostas on-line, as referências artísticas e suas diversas linguagens sempre estiveram presentes. Novas direções: “Super tapete arco-íris gatinho colorido late.” Ao retornar para o ensino presencial no segundo semestre de 2021, houve muitas mudanças, incluindo a quantidade de crianças, a necessidade de protocolos de higiene constantes, e o aumento na dificuldade para o diálogo e escuta, devido a todo contexto relacionado à pandemia. Com inspiração em uma das primeiras vivências do curso, onde tivemos contato com o bordado que permeou todo o processo das experiências, iniciei uma experimentação com as “Rodas de Bordar”, buscando ampliar o diálogo e a resolução de conflitos entre as crianças da turma, utilizando a arte como veículo de reflexão e inspiração no cotidiano, assim como experimentamos durante as aulas presenciais do curso, onde tínhamos a possibilidade de nos inspirar com os diálogos e bordar. Segundo Vinicius Azevedo, um dos professores do curso e com quem tive a oportunidade de aprender durante toda essa experiência: [n]a Roda de bordado, construímos vínculos afetivos muito fortes, nos tornamos amigos e a Roda é o lugar onde nos encontramos. Mas como isso se instaura? Os comentários feitos nesta conversa dão algumas pistas: valorizar o encontro, instaurando a roda em que todos podem se ver, pensar e fazer juntos, sem distinção de saberes, sem pretensões artísticas, sem preocupações extremas com produtos, mas trazendo processos que alimentem o desejo. (AZEVEDO, 2021 p.102) Observando a dificuldade sobre a atenção e entendimento 177 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES dos combinados, nas minhas duas turmas de Educação Infantil II, em uma Escola Municipal da Prefeitura de São Paulo, localizada na Zona Leste, iniciei o processo de “Rodas de Bordar” utilizando como material Talagarça Preta, retalhos, fitas de cetim e barbantes, onde os bordados seriam feitos com as mãos. Imagem 1: Disponibilidade dos materiais para iniciar a vivência. Iniciamos o processo conversando sobre o conhecimento prévio que eles tinham sobre o que era “bordar”, onde surgiram respostas como: - é tipo um pano, é costurar um pano na máquina, serve para costurar as roupas. Até que chegamos em uma resposta que trouxe a ancestralidade para o nosso diálogo, onde a criança disse: Minha vó é costureira, e ela sempre trabalhou assim! O sonho dela é ter uma máquina lá em casa, eu peço pra ela fazer os vestidinhos pra minhas bonecas e ela faz em um segundo com a máquina. E partindo dessa resposta, várias crianças começaram a 178 TEIAS DE AFETOS E SABERES compartilhar o nome das pessoas da família que costuravam, associando ao ato de bordar, evidenciando assim o conhecimento que os entes queridos possuem. Imagens 2 e 3: Criança que iniciou a conversa sobre o conhecimento da família: Minha avó faz desse jeito! Começamos assim uma rotina com pelo menos vinte minutos de “Rodas de Bordar”, todos os dias, que poderia ser feita na sala de referência, ou área externa, onde conversávamos sobre os combinados e acontecimentos com a turma, preferências do cotidiano, brincadeiras, brinquedos, passeios, sentimentos, sensações, etc. As crianças gostavam de compartilhar o que faziam em casa e com suas famílias, os desenhos e filmes que assistiam e também aproveitavam para dividir o que os incomodava, e a preocupação com o fim da pandemia. Algumas crianças que demonstravam dificuldade para se expressar, começaram a se sentir mais confortáveis, assim como algumas que apresentavam conflitos constantes, começaram a se ajudar no momento do bordado, cortando as linhas 179 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES umas para as outras, pensando em maneiras de impedir o tapete de sair do lugar, auxiliando a amarrar as fitas, entre outras coisas que passaram a facilitar a convivência. Em nosso combinado ninguém era obrigado a fazer o bordado, mas buscávamos ficar sentados juntos, incentivando assim a escuta. Imagem 4: Duas crianças que apresentavam conflitos constantes, mas que no momento do bordado sempre estavam próximas e se ajudando. A criatividade e imaginação também foram estimuladas de várias maneiras através dessa vivência, uma vez que as crianças tinham a liberdade de utilizar os materiais da maneira que preferissem, e essas materialidades passaram a fazer parte da rotina em outros momentos também. Pensando na proposta “Tecendo Movimento”, anterior a pandemia que começou a ser desenvolvida em 2020, as crianças também conseguiram se apropriar do bordado em seus corpos, utilizando as linhas, 180 TEIAS DE AFETOS E SABERES lãs e barbantes, literalmente fazendo arte. Imagens 5 e 6: O bordado no corpo. Imagens 7 e 8: As mãos que bordam e brincam. Pensando na interdisciplinaridade que também é importante nessa etapa da educação, essa experimentação artística proporcionou que as crianças cultivassem noções de espaço, tamanhos, construção de figuras geométricas, identificação de cores, registros, entre outras questões que tiveram influência positiva no restante das vivências ao longo do semestre. 181 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagens 9 e 10: Figuras geométricas que foram surgindo e medição das fitas. Durante o processo da vivência, as crianças foram ficando cada vez mais participativas e começaram a compartilhar com os colegas a maneira que gostavam de fazer seus bordados, como se fossem tutoriais, assim como começaram a simbolizar o entrelace das linhas, como: os cabelos da boneca, o dinossauro T-Rex, o carrinho, entre outros. Imagem 11: A boneca com seus laços no cabelo: - Prô, olha o cabelo da minha menina! 182 TEIAS DE AFETOS E SABERES Em um dia chuvoso, a criança de uma das turmas comentou que quando para de chover, aparece o arco-íris, e outra respondeu que era colorido igual o nosso tapete, sugerindo assim dar o nome de “Tapete Arco-íris”. Levei essa informação para a outra turma, e sugeri de pensarmos um nome para o outro tapete também, surgindo assim o nome “Super tapete gatinho colorido late”. Com suas devidas explicações: o super é porque ele é um tapete muito grande, gatinho porque eles amam linhas soltas, colorido porque usa muitas cores e late porque quando as fitas se juntam formam um objeto. Cada uma dessas explicações foi dada por uma das crianças, mas como não conseguimos eleger um único nome, resolvemos juntar todos. Imagens 12 e 13: “Tapete Arco-íris” e “Super tapete gatinho colorido late”. O bordado que se multiplica Ao longo dessa vivência, foi possível observar o quanto as crianças estavam incorporando as materialidades e comportamentos no cotidiano, ampliando assim a escuta e o diálogo em diversas situações, assim como estavam exercendo papel 183 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ativo em seu desenvolvimento e na relação com seus pares, compartilhando as descobertas, observações e reflexões com todos, onde a arte desempenha um papel condutor e estimulante. Com o passar do tempo, a proposta de bordado começou a aparecer em mais momentos, e pôde exercer influência em outras propostas e brincadeiras na rotina da turma, assim como também esteve presente na reunião com as famílias, para compartilhar e convidá-los a participar da vivência. Imagem 14: Bordado com elástico na grade, que virou uma cama de gato. 184 TEIAS DE AFETOS E SABERES Imagem 15: Famílias conhecendo os tapetes. Assim como as “teias de aprendizagem” construídas ao longo do curso, acredito que o emaranhado de lã e linhas nos tapetes confeccionados nessa vivência, oportunizaram que as crianças compartilhassem e ampliassem seus conhecimentos, assim como tiveram a possibilidade de vivenciar e experienciar a Arte em seu cotidiano. Finalizo assim esse relato, ressaltando a importância desse curso para a formação de professores, sobretudo da Rede Pública de Ensino, uma vez que através das artes conseguimos ampliar o trabalho pedagógico com as crianças e adolescentes, assim como refletir sobre a prática docente de maneira artística e poética, sempre buscando valorizar e respeitar as diferentes histórias e vozes que compõem esse “imenso bordado” que é a educação. 185 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 16: Observação do processo de bordar. Referências AZEVEDO, Vinícius Souza. Rodas de bordar: Atenção distendida em espirais na formação de professores de arte – Volume 01. Tese (doutorado) apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2021. São Paulo (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade : Educação Infantil. – São Paulo : SME / COPED, 2019. 186 TEIAS DE AFETOS E SABERES Gláucia Adriana Simões1 Reverberações “Nada sobre nós sem nós” - significa que nenhum resultado a respeito das pessoas com deficiência deverá ser gerado sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência (Sassaki, 2007). Momentos de Reflexão Quando iniciei o curso de Arte e Educação para Professores, fui orientada a fazer um recorte autobiográfico, o que foi muito importante para me ajudar a entender qual era o verdadeiro motivo pelo qual fiz minha inscrição, pois tive a oportunidade de me investigar e refletir. Lembro-me que durante a sua elaboração por algumas vezes, correram lágrimas pelo meu rosto, pois me confrontei e me enxerguei. Caminhei pelas lembranças de todos os anos letivos e per- 1 Gláucia Adriana Simões. Pós graduada em Educação Especial com ênfase em surdez pelo Mackenzie, habilitada em surdocegueira pela Ahimsa/ USP, guia intérprete e professora de arte para Ensino Fundamental I, II e Médio em EMEBS (Escola de Educação Bilíngue para Surdos) na cidade de São Paulo. 188 TEIAS DE AFETOS E SABERES cebi que os momentos felizes foram em maior quantidade, mas, também me lembrei, que quase pedi minha exoneração, pois também existiram momentos difíceis. Hoje, vivo uma realidade pedagógica completamente fora da realidade dos demais colegas de área. Depois de me remendar, refazer e me restaurar, sou uma professora completamente diferente e trabalho com os alunos incríveis e em um ambiente escolar acolhedor. Sou apaixonada pelo meu trabalho! Comecei a lecionar como professora de Arte com habilitação em Música. Minha prática era voltada para a musicalização, e hoje sou professora de Arte especializada em educação especial com ênfase em surdez e deficiência múltipla e deficiência sensorial (surdocegueira). Não sou mais musicalizadora... Foi perguntado a mim o que eu desejava para o meu aluno e eu respondi que meu desejo é que ele seja autônomo e que sua cultura e identidade sejam reconhecidas, compreendidas e respeitadas para que ele possa ser inserido na sociedade. Percebi que meus colegas de curso desejavam o mesmo para os seus estudantes, eles não conheciam o universo dos meus estudantes surdos e eu não prestava atenção em que condições os estudantes deles viviam. Foi uma troca maravilhosa! Desdobramentos No decorrer do curso trocamos muita experiência, minha prática pedagógica mudou e fui contaminando meus colegas de escola com as ideias e práticas que absorvi. E meus alunos foram os maiores beneficiados. Foi inevitável confeccionar os cadernos com meus estudantes que aprenderam a técnica e se surpreenderam com a 189 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES possibilidade de fazer o próprio caderno. Imagens 1 e 2: produção de cadernos artesanais. O bordado gerou briga entre meus estudantes, não havia agulhas suficientes e todos queriam ficar bordando. Alguns alunos me pediram para levar o material para casa para poder fazer em seu momento de lazer. Eles também foram entrelaçados. Imagens 3, 4 e 5: produção do estandarte da escola. 190 TEIAS DE AFETOS E SABERES Temas africanos e indígenas transitaram intensamente pelos corredores da escola. Em 2021, as culturas afro-brasileiras e indígenas tornaram-se eixo norteador dos projetos da escola, passando pelas diferentes áreas de conhecimento (Arte, Literatura, Geografia, LIBRAS...). Algumas das propostas de trabalho nesta Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos (EMEBS) caracterizam-se por serem interdisciplinares, cujo objetivo é facilitar o aprendizado do estudante, construindo repertório e diferentes visões (áreas de conhecimento) para promover aquisição de saberes. O primeiro projeto do ano foi trabalho com o Abaporu2: ainda em férias (janeiro) os professores de Geografia, Português e sala de leitura entraram em contato comigo para que pudéssemos pensar em alguma atividade para acolhimento, introdução. Queríamos uma atividade de sensibilização mas que abordasse temas eleitos como eixo norteador do ano (culturas afro-brasileiras e indígenas). Sugeri, então uma atividade usando o Abaporu, contextualizando de acordo com a visão antropofágica, mas fazendo uma analogia a pandemia (vivemos um ano pandêmico, uma nova realidade, nos “alimentamos” desse “novo normal” e nos tornamos diferentes, pois trouxemos novas práticas e diferentes tecnologias para a nossa rotina) e os demais professores foram dando contribuições à elaboração da atividade cujo objetivo era, segundo o currículo da cidade, analisar o papel da diversidade de povos e culturas no processo de formação territorial brasileira, de- 2 Nome de quadro da artista brasileira Tarsila do Amaral. Técnica óleo sobre tela, pintado em 1928. 191 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES batendo modos de vida e diferentes territorialidades. E proporcionar uma discussão promovendo reflexão sobre o tema (suas possibilidades e conhecimento artístico, a releitura da obra e uma reflexão sobre o momento pandêmico vivido). O projeto seguinte foi a lenda da mandioca, que possibilitou valorizar a cultura indígena e brasileira, a literatura, biologia, culinária, identidade de um povo e, claro, produção artística na releitura da lenda criada por representações concretas (elemento táteis dos personagens e a própria mandioca) no momento de recontar a lenda. Vale lembrar que todo o processo de confecção dos elementos concretos BPM (aluna) participou ativamente da produção. Anansi, um importante personagem das lendas africanas, deu origem ao próximo projeto, trazendo a cultura vinda da África e nos presenteando com suas histórias e outras vindas de seu continente de origem. Com ele chegaram as primeiras histórias e uma delas é a “Lenda do Baobá”, a primeira árvore do mundo e toda uma simbologia que traz consigo conhecimentos culturais, literários e matemáticos. Surdocegueira Minha primeira atividade no curso foi o bordado. Senti a imensa necessidade de bordar um compasso de música cujo título leva o nome de BPM e foi o que fiz, não entendia o motivo, mas ela estampou minha atividade. Quando fiz o recorte autobiográfico, senti necessidade de usar uma foto e quem estava ali para dizer em que tipo de professora me tornei foi ela: BPM. Nas EMEBS temos um público diferenciado, todos os estu- 192 TEIAS DE AFETOS E SABERES dantes são surdos ou surdos com outras deficiências associadas, entre eles os surdocegos. A aceitação do termo surdocego e surdocegueira sem hífen em 1991, foi proposta por Salvatore Lagati que defendeu na IX Conferência Mundial de Orebro - Suécia, a necessidade do reconhecimento da surdocegueira como deficiência única (SR Maia) Para lecionar em uma EMEBS (Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos) é necessário ter pós-graduação em surdez e para trabalhar com um aluno surdocego é necessário ter especialização em surdocegueira. Conhecer a história, cultura, identidade, língua e formas de comunicação do aluno surdo e surdocego é imprescindível. Sou professora de Arte lotada na EMEBS Helen Keller desde 2014. Sempre trabalhei com todas as turmas, nos quatro níveis da escola (Ensino Fundamental I, Ensino Fundamental ll, Ensino Médio e EJA) e em 2016 concluí minha especialização em surdocegueira. Sentia-me confortável em trabalhar com as turmas que possuíam alunos com múltiplas deficiências, esse público me atraía, mas apenas em 2021 tive coragem de atribuir como regência em surdocegueira a aluna BPM. BPM tem 17 anos e cursa o 1º ano de Ensino Médio, tem síndrome de CHARGE o que acarreta em surdocegueira, má formação do sistema digestivo, respiratório, reprodutivo, insuficiência cardíaca e deficiência intelectual. A estudante possui um pequeno resíduo visual e auditivo, que possibilita a inclusão do uso de imagens e sons na rotina pedagógica. Devido à deficiência sensorial (surdocegueira) é necessário que seja acompanhada por um guia-intérprete. Este, faz a interpretação usando o método de comunicação adotado pelo 193 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES estudante que no caso da BPM é a fala ampliada e LIBRAS tátil. Surdocegueira é uma deficiência singular que apresenta perdas auditivas e visuais concomitantemente em diferentes graus. Levando a pessoa surdocega a desenvolver diferentes formas de comunicação para entender e interagir com as pessoas e o meio ambiente, para ter acesso a informações, uma vida social com qualidade, orientação, mobilidade, educação e trabalho. (Grupo Brasil-2003). Flexibilizar o currículo e atividades e adaptar material e suporte pedagógico é uma das funções do guia-intérprete. A ele compete saber quais são os conteúdos que os professores das diversas disciplinas vêm desenvolvendo com a turma para que assim possa elaborar atividades e os materiais para o desenvolvimento delas, respeitando os temas que estão sendo trabalhados com os demais educandos. Ou seja, flexibilizar o currículo e confeccionar material adaptado ao estudante com deficiência múltipla e sensorial. Portanto, manter diálogo e planejar junto com os demais professores e frequentar a sala de aula junto com os demais estudantes é fundamental. Cada estudante com deficiência múltipla e sensorial é único. Existe uma série de fatores a serem analisados, assim como o seu nível de motricidade, cognição, capacidade visual e auditiva, só então é possível fazer as adequações necessárias para cada um. Ser a guia-intérprete da estudante BPM em plena pandemia - que obrigou a manter distância como parte dos protocolos sanitários -, foi um verdadeiro desafio. Como manter a distância se a comunicação é LIBRAS tátil? Como desenvolver as atividades em uma aula on-line com um estudante surdocego? A colaboração da família da estudante foi fundamental, e a partir dela foi possível desenvolver um projeto sobre cultura indígena, um 194 TEIAS DE AFETOS E SABERES dos temas amplamente discutido no curso, e logo após planejar, recebi o desafio de desenvolver uma aula, da maneira que trabalharia com minha “turma”, e executá-la com os participantes do curso. Não queria apresentar algo trabalhado em algum momento do passado, queria mostrar o que estava trabalhando e, contando com o apoio da família de minha estudante e com os demais professores de minha unidade escolar, me senti segura para apresentar o que recentemente havia planejado, pois tinha relação direta com os conteúdos que aprendi. Pedi que minha apresentação fosse uma das últimas, pois entendi que precisava fazer registros do desenvolvimento dela com BPM. Tinha ciência que para compreender, de fato, os objetivos e as habilidades a serem desenvolvidas, era necessário conhecer um estudante surdocego, entender como se dá a sua comunicação e quais são as suas necessidades. Muitas vezes durante o curso, fazia relatos de situações que para mim era corriqueiro e óbvio, mas olhava para os demais participantes e percebia que o que eu dizia não fazia sentido algum, pois não é comum um professor ter em sua turma um estudante surdocego. Tive então a oportunidade de apresentar este universo aos demais e então passei a trabalhar no projeto “Lenda da Mandioca”. É importante saber que pequenos detalhes devem ser valorizados quando trabalhamos com um estudante surdocego, pois somos os olhos e ouvidos deles e precisamos lhes mostrar o mundo. Não devemos lhes apresentar as coisas prontas, ele precisa compreender o que são, de onde vem, para que serve. Em outras palavras, todo material é confeccionado junto ao educando para que de fato ele compreenda o processo. A estudante BPM ainda está na fase de aquisição de linguística, conhece poucos sinais (Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS), em que se refere à comunicação, ela é passi- 195 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES va, compreende pouca coisa e faz uso de pouquíssimos sinais para se expressar, portanto toda atividade desenvolvida para ela deve contemplar a ampliação de vocabulário e conceitos. Comecei ensinando o sinal de mandioca e para isso enviei um kit com mandioca, farinha de mandioca e tapioca para a família e os orientei a cozinhar e fazer o uso do sinal de mandioca (LIBRAS), enquanto a BPM estivesse saboreando. Também orientei a família a deixar que BPM explorasse as texturas das diversas farinhas feitas com a mandioca, a mãe de BPM depois de permitir que a filha explorasse as texturas fez um pão utilizando a farinha. Tocando, cheirando e saboreando foi apresentado à estudante um elemento da lenda assim como o seu sinal. Devemos estimular todos os sentidos de um aluno com deficiência sensorial. Outros elementos precisavam ser trabalhados como “indígena” e esse foi meu grande desafio. Como ensinar o conceito de indígena para uma estudante surdocega com deficiência intelectual, sem que haja um apelo para estereótipo do indígena, pois a aluna precisa tocar, precisa de pistas táteis para memorizar, e nesse caso, infelizmente o uso de alguns estereótipos foram necessários. Com minha estudante não é possível fazer um trabalho reflexivo e crítico.O que fiz foi mostrar que existe o indígena e a mandioca, e de alguma forma, ela está associada a ele. Para lhe apresentar e ensinar o sinal de indígena, usei a foto de uma indígena na qual apliquei relevo e texturas e posteriormente, quando a estudante já havia começado a frequentar as aulas de maneira presencial, começamos a confecção do material tridimensional (bonecos), utilizando os mesmos elementos texturizados na foto. Como disse anteriormente, o estudante com surdocegueira deve participar de todo o processo de confecção do material, portanto BPM me ajudou a riscar o tecido, 196 TEIAS DE AFETOS E SABERES cortar, costurar, - fazendo uso da máquina de costura -, encher e decorar. Todo esse processo demorou três semanas e, junto à confecção do material, foi permitido que a estudante explorasse de diversas formas os materiais utilizados (tocar, cheirar, sentir a vibração), assim como seus sinais.Enquanto fazíamos a decoração dos bonecos, também trabalhamos sinais como: cabeça, braço, corpo, pernas, cabelo, olhos, boca, nariz, além da diferenciação de cada boneco, para que a estudante percebesse que eram diferentes personagens. Imagens 6, 7, 8 e 9: produção de bonecos da ”Lenda da Mandioca”. Dentro do processo de aquisição linguística é necessário falar de um elemento de extrema importância presente na es- 197 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES cola bilingue: o instrutor de LIBRAS. O instrutor de LIBRAS é um adulto surdo, que auxilia os professores e alunos no uso da língua de sinais e ainda serve como referência para os alunos surdos. Recebi o auxílio dos instrutores durante o processo de desenvolvimento da atividade. Só depois da finalização do material e de ter trabalhado todo o vocabulário, elementos e conceitos é que convidamos a professora de Sala de Leitura que contou a lenda utilizando o material tridimensional. Imagens 10 e 11: Atividade de Sala de Leitura (contação da “Lenda da Mandioca”). E esta foi a atividade apresentada para os meus colegas de curso e como é uma atividade funcional, não parou por aí. Depois de apresentar a lenda da mandioca para a estudante BPM, venho trabalhando outros conceitos, sinais e palavras 198 TEIAS DE AFETOS E SABERES derivados dessa lenda, assim como o conceito de “família”. O processo pedagógico para um estudante com deficiência múltipla e sensorial se dá em espiral crescente, e deve seguir o ritmo do aluno, que geralmente é mais lento. Para trabalhar com esse público é necessário observar, conhecer seu estudante, criar vínculo. Ele precisa confiar em você, e sobretudo é preciso ter muita paciência e amor. Tramas... Hoje, percebo como tudo foi meticulosamente elaborado... começamos com o bordado, bordamos sem nenhuma pretensão, mas costurei amizades, vínculo e afeto. Cada um bordando algo significativo em sua vida, lembranças e histórias iam passando pela cabeça e muitas vezes eram ditas em voz alta e compartilhada com os colegas. Entrelaçamentos, fios, rede... Ouvir e ser ouvida, os relatos dos colegas que vivem os mesmos problemas e outros problemas que desconhecemos. Houve apoio mútuo e ali ficamos entrelaçados. Desenhamos, pintamos, dançamos, brincamos, atuamos e relaxamos. Momentos em que pudemos nos colocar no lugar do aluno e muitos de nós voltaram a ser criança. Percebi como pode ser prazerosa a sala de aula. Confeccionar nossos cadernos para que possamos dar início ao nosso diário foi delicioso. Na educação de alunos com deficiência múltipla e sensorial é indicado confeccionar o ma- 199 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES terial que é usado durante as aulas, do zero, junto e com a colaboração do estudante. Foi inevitável fazer essa comparação. É importante que o aluno se aproprie do material e participe de todas as etapas da confecção deles, pois assim ele cria memória afetiva e compreende que não é feito magicamente. A história de Anansi ilustrou e fixou a teia que formamos, os nós foram desembaraçados. Imagem 12: símbolo da interação “Não somos nada sem o outro”. 200 TEIAS DE AFETOS E SABERES Referências BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003. MAIA, Shirley Rodrigues. A Educação do Surdocego – Diretrizes Básicas para Pessoas não Especializadas. Dissertação de mestrado, defendida junto a Universidade Presbiterana Mackenzie, no Programa de Pós-Graduação de Distúrbios do Desenvolvimento, sob a orientação de Elcie Fortes Salzano Masini. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2004. Disponível em: https://perkinsglobalcommunity.org/lac/wp-content/uploads/2021/02/A-Educacao-do-Surdocego-%E2%80%93-Diretrizes-Basicas-para-Pessoas-nao-Especializadas_autor-Maia-Shirley-1.pdf SASSAKI, R. K. O direito à educação inclusiva, segundo a ONU. In: A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada. Brasília: Corde, 2007. 201 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Ranieri Rangon Ramos1 Arte como expressão de múltiplas possibilidades Introdução O curso de Arte e Educação para Professores parte de uma perspectiva freireana de que o aluno traz consigo uma série de conhecimentos adquiridos por meio de suas vivências. No caso, os alunos são também professores de diferentes redes de ensino e diferentes áreas do conhecimento, tendo sua própria organização e bibliografia construídas. O grupo de estudos que rege o curso de Arte e Educação, considera as práticas e saberes de cada um, buscando potencializá-las através da arte, compartilhando experiências e visões sobre a educação. Neste sentido, o curso carrega um viés que, além de somar diversas práticas realizadas por seus estudantes/ professores, inclui a arte em um ensino interdisciplinar e car- 1 Ranieri Rangon Ramos. Professor da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, graduado em Geografia e Pedagogia, atuante como professor de leitura. 203 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES regado de significado para os alunos destes professores que também se beneficiarão desta formação, sendo o curso uma forma de rede, que visa replicar todo conhecimento compartilhado e práticas desenvolvidas em seu decorrer. Este formato de rede de saberes e práticas está presente desde a formação do curso, pensado para ser ministrado por um grupo de estudos e não por um professor isoladamente. Cada membro do grupo de estudos, bem como cada aluno do curso, tem uma série de conhecimentos e práticas prévios, que garantem uma pluralidade capaz de dar variados tons à rede construída ao longo do curso. A partir das noções de fenomenologia, sabemos que nossas vivências transformam o como percebemos e lidamos com o mundo. No formato de rede proporcionado pelo curso, as demandas de cada membro se tornam horizontais, criando um cuidado especial para os temas da diversidade, tais como a temática afro, indígena, a atenção com alunos com necessidades especiais, dificuldades de aprendizado, além de um olhar atento à arte-educação, tema gerador do curso. Desta forma, é através das práticas já realizadas e o compartilhamento de ações e visões de mundo que se desenvolve um trabalho mais empático para a pluralidade e a inclusão. Os vários olhares e ações de cada participante do grupo rendem debates e reflexões capazes de melhorar a prática docente, transformando a identidade do ser professor. O ambiente propiciado pelo grupo de estudos favorece uma aprendizagem que vai além do debate bibliográfico, somando ao referencial teórico uma base de práticas compartilhadas. Falar sobre a influência deste curso em minha prática docente se torna uma tarefa imensurável em um caráter amplo, pois é o tipo de experiência que amplia nossa percepção a 204 TEIAS DE AFETOS E SABERES longo prazo, se tornando presente em diversas ações, portanto, irei exemplificar, sem o intuito de reduzir a isto, a partir de uma atividade proposta pelo grupo, desenvolvida e aprimorada durante o curso. Da atividade desenvolvida Inicialmente, a proposta do curso era a criação de um projeto que valorizasse as experiências dos professores/alunos, pensado a partir do curso de formação em arte educação. Contudo, foi necessário adaptar-se ao ritmo imposto pela pandemia da COVID-19, mudando o formato do curso para vídeo aulas, o que não ocasionou alterações na proposta de escuta e partilha, por mais que tenha criado limitações devido ao distanciamento, que gerou uma atmosfera um pouco menos afetiva, não por culpa dos integrantes / participantes das aulas, mas pela característica que a tecnologia proporciona, tendo em vista que uma tela é totalmente diferente do contato e diálogo realizado pessoalmente. A nova proposta, manteve a base de compartilhamento de experiências a partir de apresentações individuais sobre propostas de aulas, com tempo para sugestões, comentários e reflexões a cada aula ministrada. Como forma de realizar esta atividade proposta pelo grupo de estudos, foi pensada uma aula com a duração de 45 minutos. O intuito é sensibilizar os alunos de idade entre 11 a 14 anos para a diversidade, pensando nos múltiplos olhares sobre o mundo. A aula em questão vinha sendo ministrada como forma de preencher alguma lacuna na ausência de professor regente, uma vez que foi pensada como atividade a ser aplicada na função de módulo (professor substituto), função que eu exerci durante o primeiro módulo do curso de Arte e Educação. 205 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Esta proposta de aula introdutória tem como objetivos: a) Refletir sobre a existência de diferentes olhares; b) Compreender a influência da cultura em nossa individualidade; c) Entender e refletir sobre as variáveis biológicas em nossa formação. Foi pensada como uma aula interdisciplinar, portanto remonta temas de diversas áreas do conhecimento e dependendo do ano letivo na qual é lecionada, introduz ou revisa temas que os estudantes verão ou viram em outras disciplinas. É dividida em três etapas: Como enxergamos? Cultura e visão de mundo. Atividade. Como enxergamos? Aqui se estabelece uma diferença entre enxergar e olhar. Enxergar é entendido como a habilidade de ver as coisas. Já o olhar é algo carregado de cultura, ou seja, distribui significados; é a avaliação, adjetivação que fazemos com as coisas que enxergamos. Neste ponto da aula são exploradas duas ideias que colocam a habilidade de enxergar como parte de um processo evolutivo. Primeiramente é explicado um pouco sobre os processos evolutivos ocasionados pela adaptação. Neste ponto, é oportuno citar a Teoria da Evolução de Darwin. 206 TEIAS DE AFETOS E SABERES Uma vez que somos animais resultantes destes processos, enxergamos devido à forma como nos adaptamos a tal, sendo necessária a presença de luz para que consigamos realizar este processo. É explicado para os alunos que enxergamos a luz refletida pelas coisas, e sendo assim, nossa percepção é uma espécie de ilusão de ótica criada pela refração da luz. Dada a explicação, os alunos são provocados a refletir outras formas de se perceber o mundo, como, por exemplo os morcegos, que a partir do sonar conseguem se locomover reconhecendo o ambiente no qual estão inseridos, ou os insetos, que têm uma percepção a partir das vibrações captadas por suas antenas. Desta forma, o aluno é levado a questões de como seria se conseguíssemos perceber as coisas de outra forma, ou de mais de uma forma simultaneamente? Como seria vivenciar o mundo a partir de outros processos evolutivos diferentes do nosso? Um ponto interessante no que se refere à inclusão: é muito comum, neste ponto da aula, partir dos próprios alunos a curiosidade de como daltônicos e cegos percebem o mundo dentro de suas limitações. Isto pode gerar desdobramentos futuros para trazer o tema com maiores detalhes, além de atividades para experimentar esta percepção de forma imersiva. A segunda parte consiste na explicação da realidade, entendendo que esta é composta por Tempo + Espaço, sendo que temos noções do chamado 3D (altura, profundidade e largura), mas com relação ao tempo nossa percepção se limita ao que denominamos presente. Tal percepção da realidade também pode ser entendida como um processo evolutivo, levando os alunos a uma segunda provocação, será que existem espécies que experimentam noções diferentes do tempo? Ou até mesmo, como seria perceber o tempo para além do momento presente? 207 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Cultura e visão de mundo Neste ponto da aula partimos das considerações evolutivas, para as considerações sociais. A partir da ideia de cultura, a exposição aborda como esta influencia em nosso olhar sobre o mundo, processo que vai desde os nomes que damos às coisas, até mesmo ao julgamento que empregamos. A Cultura é algo que está presente em nossa formação, nos empregando, além da língua, noções que podem ou não ser questionadas e passadas adiante. Desta forma, temos a capacidade de perpetuar ou romper preconceitos, manter ou romper com paradigmas. Nesta parte da atividade, os alunos são provocados a pensar em pessoas que usam outras línguas para se comunicar a partir do simples exemplo da cadeira, que em outras línguas recebe outro nome, e que só a conhecemos por este nome por termos o português como língua. Apesar de um exemplo simples e de fácil tradução, ele abre para as possibilidades de comunicação e como a própria língua direciona nosso olhar sobre o mundo. Posteriormente, refletimos sobre outros modos de vida, diferentes do nosso ritmo urbano. Por fim, também é aberto um espaço para pensarmos em nossa individualidade, que transcende às noções culturais, dando ainda, camadas de gosto pessoal sobre as coisas. As pessoas têm suas experiências pessoais, que mesmo vividas de forma semelhante, são absorvidas dos mais variados jeitos, gerando singularidades. Neste ponto se estabelece uma auto reflexão e uma reflexão do outro e o tema interdisciplinar se torna gerador de empatia, reforçando que as diferenças não só existem, como são um complexo resultado de vivências, escolhas, amadurecimento e entendimento. 208 TEIAS DE AFETOS E SABERES Atividade para os alunos A atividade é a parte na qual os alunos devem fazer uma representação ilustrada para responder às inúmeras possibilidades de percepção da realidade, caso tivéssemos outra habilidade de enxergar, ou caso percebêssemos o tempo. Imagem 1: E se enxergássemos outras formas de energia? Na Imagem 1 eu emergi na atividade proposta com meus alunos, também contribuindo com a mesma prática solicitada a eles. Tentei representar um corpo visto por mais de uma forma, incluindo raio-x, por isso a estrutura óssea presente na imagem. Já ao lado, busquei representar objetos simples, como figuras geométricas, dispostos ao longo do tempo, como se este fosse observável. 209 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 2: E se enxergássemos a eletricidade? Na Imagem 2 um aluno imaginou que fosse possível enxergar a eletricidade em seu percurso até o objeto que ligamos na tomada. Imagem 3: E se enxergarmos o tempo? 210 TEIAS DE AFETOS E SABERES A Imagem 3 traz uma tentativa de representar uma única pessoa observada pela ótica do tempo. Para esta aluna, seria possível observar todos os movimentos simultaneamente e não apenas o momento presente do corpo representado. Imagem 4: E se o tempo fosse uma entidade viva? Na Imagem 4, uma aluna imaginou o tempo como sendo um ser cósmico, e se víssemos ele, teria esta aparência. 211 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 5: E se fossemos como os morcegos? A Imagem 5 traz a possibilidade de termos desenvolvido sonar ao invés da visão, e assim seríamos como os morcegos, que se orientam pelo som. Como a atividade é pensada como sendo uma introdução, ela não se encerra por este breve relato, pois apenas abre o tema dos múltiplos olhares e formas de vivenciar e perceber o mundo à nossa volta. Trata-se de uma sensibilização inspirada em discursos como o feito por Carl Sagan (2019) em Pálido ponto azul, que traz uma perspectiva de reconhecer-se como parte de algo muito maior, entendendo que há uma pluralidade, respeitando as diferenças, sem deixar de ter uma ligação com a Arte como representação do desconhecido e compartilhando essa visão com o coletivo através dos desenhos criados. Ao ministrar a aula para o grupo, este também realizou a atividade. As diferentes representações trazem um pouco do pes- 212 TEIAS DE AFETOS E SABERES soal de cada um. O que na exposição chamou mais a atenção, foi a questão tempo? Foi o espaço? Foi a possibilidade de enxergar diferentes formas de energia? Cada um trouxe, de forma artística a sua imaginação de possíveis realidades alternativas. Na sequência, trago alguns exemplos deste material. Imagem 6: Tempo e energia. Imagem 7: Energias percorrendo o tempo. 213 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Imagem 8: Múltiplas possibilidades. Tal variedade é similar ao resultado encontrado na sala de aula: alguns alunos se perdem em meio a tantas possibilidades; outros têm sua atenção mais voltada apenas a uma das possibilidades; têm aqueles que pensam em um combinado de hipóteses e combinam em um único desenho; outros que entregam mais de um desenho para tentar expressar suas ideias. Tal atividade vai para além da obtenção destes conhecimentos apresentados e trazem uma tentativa de representação que incorpora a arte no processo, resultando nas mais variadas representações e mostrando que todos podem fazer Arte, algo que eu, que sempre me considerei alguém sem habilidades artísticas, também aprendi neste curso. Meu aprendizado sobre Arte para todos veio através de momentos incríveis proporcionados ao longo do curso, como na aula ministrada no primeiro módulo pelo Leandro (membro 214 TEIAS DE AFETOS E SABERES do grupo de estudos GMEPAE), na qual construímos uma dança a partir de nossas brincadeiras de infância, assim como nas falas acolhedoras de colegas como o Rodrigo, que enfatizava a ideia de arte acessível e democrática. Afinal, o curso de Arte e Educação não foi ministrado apenas para artistas, mas para educadores, estes de diversas áreas do conhecimento, assim como eu que vim da Geografia e nos processos desenvolvidos aqui cheguei nesta proposta interdisciplinar que agrega inclusive a arte como ferramenta de representação, expressão e criação de possibilidades. Desdobramentos Tal plano de aula já havia sido influenciado pelos debates e atividades desenvolvidas durante o primeiro módulo do curso de Arte e Educação da USP, mas a partir da apresentação para o grupo, recebi comentários e sugestões que sensibilizaram mudanças e projeções. A proposta que inicialmente foi pensada como módulo, para preencher lacunas na ausência de algum professor regente, ganhou novas perspectivas após apresentação da ideia para o grupo do curso de Arte e Educação. Aqui cito algumas sugestões que renderam desdobramentos na prática docente. A partir da relação feita pela professora Hercília com o texto Uma esperança de Clarice Lispector, uma vez que, coincidentemente, assumi a função de professor orientador da sala de leitura (POSL), no colégio onde atuo, percebi que este plano de aula poderia ser aplicado como introdução de uma visão de mundo que orientaria as demais atividades do ano letivo, uma vez que a leitura proporciona um contato com ou- 215 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES tros olhares, pauta da aula por meio do debate sobre cultura. Desta forma, a aula passou a ser pensada como uma aula introdutória para, ao longo do ano letivo, ser retomada ao se falar dos diversos temas abordados ao longo do curso, como a temática afro-brasileira, povos indígenas, equidade de gênero, alunos com necessidades especiais, migração, entre outros temas que envolvem a interdisciplinaridade em conjunto à proposta de sala de leitura. Além disto, tais temas foram explorados pelo grupo, tendo representações que já realizavam atividades em cada um destes aspectos, e, a partir da partilha proporcionada pelo curso, ampliou os debates para esta rede formada entre membros do grupo de formação e alunos/ professores inscritos. Outra proposta, que partiu da professora Sumaya, foi a de possibilitar maiores experimentações para os alunos como: buscar material de audiovisual para imergir os alunos em algumas hipóteses, como na forma de percepção de mundo de outros seres vivos, que existem pesquisas e simulações que buscam demonstrar como um gato enxerga, por exemplo. O espaço da sala de leitura em minha unidade escolar dispõe de computador, som e projetor que possibilitam tal imersão, porém, devido à pandemia, as atividades têm sido feitas nas salas de aula convencionais e estas não têm a mesma estrutura. Contudo, com o retorno das atividades presenciais na sala de leitura, o desdobramento almejado para esta proposta é fazer um bom uso do espaço amplo da sala, dos equipamentos de áudio e visual, para proporcionar tais experiências, além de atividades corporais que possibilitem este ponto, uma vez que a leitura não se limita à decifrar códigos alfabéticos, mas à uma percepção ampla. Não apenas enxergar, mas perceber, desenvolvendo olhares sobre o mundo. 216 TEIAS DE AFETOS E SABERES Todavia, essa proposta de imersão tem sido realizada, em minha prática docente, com os relatos trazidos pelos escritores, afinal a leitura literária é a base do trabalho com a sala de leitura. Após esta atividade introdutória, partimos para diferentes temas que também foram apresentados por outros colegas durante o curso, como a luta dos povos indígenas trazida, não só na apresentação, mas também na vivência da colega Letícia. Ao trabalhar o tema indígena, tentei causar a imersão dos alunos através da palavra de escritores indígenas, como Daniel Munduruku, que tem uma publicação literária vasta e, dentre seus livros, destaco o título chamado Crônicas de São Paulo no qual traz seu olhar para essa cidade que para nós, muitas vezes, parece tão comum. Em temáticas sobre migração, trouxe uma diversidade de relatos de imigrantes, sobre situações no próprio Brasil e também em outros países. Tais relatos vieram em diferentes gêneros literários e até mesmo por meio de entrevistas mais descontraídas relatando as principais diferenças culturais que se notaram entre sua terra natal e nosso país. Estes são alguns exemplos que demonstram a influência trazida pelas experiências compartilhadas pelos colegas para a construção de um plano de aula que partiu de uma atividade interdisciplinar que busca trazer um contato ao diferente, entendendo nossa percepção de mundo a partir não só de nossas capacidades desenvolvidas ao longo de todo processo evolutivo, mas também moldada por aspectos culturais, que tanto nos influenciam. A meu ver, tal introdução, construída coletivamente neste ambiente proporcionado pelo curso, facilita a sensibilização aos tantos outros temas que entendemos importantes para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, pois perpassam por estas questões culturais. Este 217 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES ponto de partida serve como alicerce para experimentarmos a empatia necessária para adentrarmos outros temas. Considerações finais Todo este ambiente possibilita a formação da identidade do professor arte-educador, com um olhar sensível para as diferenças, que valoriza a diversidade, se atenta às dificuldades e consegue fazer uso da Arte como forma de expressão, que transcende às representações de leitura e escrita gramaticais para representações de todo um olhar sobre o mundo. Uma leitura expressiva da realidade. O uso de diferentes técnicas, espaços e materiais é também bastante explorado de forma a instigar e desenvolver a criatividade e o olhar do todo, do mundo, da sociedade, das diferentes culturas e visões individuais, além das expressões resultantes do nosso eu que é colocado em desenvolvimento e constante reflexão decorrente do que a Arte nos proporciona. Cada um dos temas trazidos pelos alunos/ professores é também uma demanda de seus alunos. Trabalhamos com a diversidade e ao reconhecer isto, ao nos apropriarmos de outras falas, dar voz aos autores, nós damos voz também aos nossos alunos, criando um ambiente democrático. Pensar neste pequeno exemplo, que trouxe como pauta deste texto, foi o diferencial para iniciar uma série de debates que demandam imersão nos sentimentos e na fala de terceiros. O diferencial para essa construção foi justamente passar pelo mesmo processo ao longo deste curso, que, de forma poética, não apenas deu voz a cada membro, mas lhes deu a possibilidade de causar experiências uns aos outros. Iniciei 218 TEIAS DE AFETOS E SABERES neste processo equivocado, acreditando que Arte demandava habilidades que eu não tinha, e saio dele com outra visão: de que a Arte é justamente este processo de imergir e se fazer entender, causando imersões. Pelas teias, imersões e partilhas deixo meu agradecimento a toda equipe formadora e aos colegas formandos. Imagem 9: Reverberações. 219 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Referências HEIDEGGER, Martin: Ser e Tempo. Editora Vozes, 2006. SAGAN, Carl. Pálido ponto azul: uma visão do futuro da humanidade no espaço. São Paulo: Cia das Letras, 2019. SANTOS, Milton: Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal. Editora Record, 6a edição, 2001. SÃO PAULO (SP), Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da Cidade - São Paulo, SME/COPED, 2019EAGLETON, Terry: A ideia de cultura. Editora Unesp, 2a edição, 2000. Vídeos - Série documental: Cosmos - A spacetime Odyssey. Fox, 2014. - Quarta dimensão explicada por Carl Sagan, disponível em: https://youtu.be/WMZNLy0hGEI Imagens Imagem 01: Autoria; Imagem 02: Atividade entregue por aluno do 8º ano do Ensino Fundamental; Imagem 03: Atividade entregue por aluno do 8º ano do Ensino Fundamental; Imagem 04: Atividade entregue por aluno do 5º ano do Ensino Fundamental; Imagem 05: Atividade entregue por aluno do 5º ano do Ensino Fundamental; Imagem 06: Atividade realizada por membro do curso de Arte e Educação; Imagem 07: Atividade realizada por membro do curso de Arte e Educação; Imagem 08: Atividade realizada por membro do curso de Arte e Educação; Imagem 09: Autoria. 220 TEIAS DE AFETOS E SABERES Sílvio Fernandes do Amaral1 Astronomia e a arte no Ensino Fundamental: uma proposta educativa Este texto faz parte de um trabalho final do curso sobre Arte e Educação. Trata-se de um memorial para a apresentação das minhas atividades acadêmicas realizadas durante o curso de extensão Arte e Educação para Professores -ECA/USP, orientado pela Prof.ª e Dra. Sumaya Mattar, junto ao Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O material a ser apresentado traduz a minha experiência como aluno, professor e músico. O curso foi dividido em dois módulos, sendo que o primeiro teve o início em 21 de agosto de 2019, com aulas presenciais 1 Sílvio Fernandes do Amaral. Mestre em Ciências pelo IAG/USP, área de concentração Educação Científica em Astronomia no Ensino Fundamental, músico e professor da Educação Básica - Anos Iniciais (PEB I) na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. 222 TEIAS DE AFETOS E SABERES que aconteciam uma vez por semana, e que também requeriam tempo de dedicação para leituras e outras atividades solicitadas pela professora ministrante Sumaya Mattar e o seu grupo Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa (GMEPAE). No primeiro encontro do grupo no Módulo I, após as apresentações individuais uma sugestão dada pela professora Sumaya era para que cada aluno fizesse um relato autobiográfico, um desenho que representasse a expectativa sobre o curso e pensasse um propósito para a escola onde cada um leciona. Esse fim não deveria ser um objetivo, mas o sentido que nos sustenta durante essa caminhada, trazendo assim a nossa história pessoal para compor a história social. Ainda foi recomendado pensar numa pergunta que deveria nos acompanhar como fonte de inspiração: “Qual é o tecido para o meu propósito?” Um modo de desenvolver reflexões sobre temas relevantes para contextualizar a Arte e a Educação em cenários sociais, as relações Arte e identidade cultural, a função da Educação, a ação do fazer criativo e suas perspectivas nos procedimentos de mudança, com novas atitudes originando transformações pela Arte, descolonizando para a concepção da diversidade cultural. O segundo módulo que deveria ter tido início no primeiro semestre de 2020, não pôde ser realizado devido à chegada da pandemia em nosso país, o que também nos obrigou ao isolamento social para conter a propagação do contágio do COVID-19. O retorno às atividades do Módulo II só foram possíveis em 07 de abril de 2021, no modo remoto. As aulas foram realizadas através da plataforma do Google Meet com a proposta inicial de que a cada encontro semanal, dois alunos escolhidos antecipadamente deveriam apresentar individualmente um plano 223 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES de aula para o grupo. Cada aula teria a duração de 30 minutos para exposição e realização das atividades, restando 15 minutos para reflexão ou discussão de resultados e 05 minutos de intervalo entre a primeira e a segunda aula. Este foi um período que deu origem a muitas produções artísticas, assim como: desenhos, pinturas, textos poéticos, trabalhos artesanais, experiências teatrais, danças, discussões e reflexões, e ainda um vasto compartilhamento de conhecimentos experimentados por esses profissionais da Educação no seu cotidiano. Mais à frente, depois de ter passado por tantos desafios com o grupo, retomamos as discussões do Módulo I, onde tivemos que pensar um propósito para a escola em que trabalhamos, e após refletir sobre a pergunta inicial “Qual é o tecido para o meu propósito?” Optei em realizar o escopo do projeto que apresento no decorrer deste texto, com os alunos do 5º ano B na EE Conselheiro Antônio Prado antes da pandemia e, finalizei com os alunos da EE Prudente de Moraes do 5º ano H, no retorno às aulas em 02 agosto de 2021 atendendo os protocolos sanitários, tendo assim a classe com redução de 50% dos alunos e distanciamento de 1,5 m entre eles. A Educação e iniciação científica em ensino de Astronomia para alunos dos anos iniciais e do Ensino Fundamental do Ciclo I com o auxílio das Artes Audiovisuais Conforme Brandão: [n]inguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para 224 TEIAS DE AFETOS E SABERES aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com educação. (Brandão, 1981, p.7). Para os anos iniciais a finalidade da alfabetização formal se insere de maneira interdisciplinar. Assim no conjunto de conhecimentos fornecidos na escola, a Astronomia surge como elemento de integração, simultaneamente com as demais áreas do conhecimento, objetivando nesta construção a identificação de suas próprias ideias para compreender o mundo que nos cerca. Formuladas a partir do currículo de ciências na disciplina de Astronomia, é apresentada como uma poderosa ferramenta pedagógica importante na Educação Infantil e Fundamental, pois age no desenvolvimento integral do indivíduo, nos campos, intelectual, emocional e social. Por que ensinar Astronomia desde os anos iniciais? [...] o ensino de ciências é fundamental para despertar nos estudantes o interesse pelas carreiras científicas e assim ampliar a possibilidade do país em contar com profissionais capazes de produzir conhecimento científico e tecnológico, que poderão contribuir para o desenvolvimento econômico e social da nação (UNESCO, 2005). O cenário geral histórico do ensino de Astronomia do Brasil confirma o quanto esta ciência tem se distanciado de forma lenta e gradual dos currículos escolares, de tal maneira “a ponto de praticamente inexistir em cursos de formação de professores, notadamente de Ensino Fundamental dos anos iniciais”. (LANGHI, 2004, p.7). De acordo com Albrecht: 225 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES A inserção da Astronomia na Educação Básica é necessária, uma vez que auxilia no entendimento de fenômenos que ocorrem no cotidiano e a escola é, ou deveria ser, o meio mais eficaz de aprendizagem destes fenômenos, promovendo a formação para a cidadania. (ALBRECHT, 2012, p.18). De maneira que as pessoas desenvolvam costumes, valores sociais e competência “para compreender, julgar e participar de processos decisórios que envolvam questões científicas e tecnológicas.” (Auler; Delizoicov, 2001; UNESCO, 2005; Martins; Paixão, 2011 apud Experiências em Ensino de Ciências V.12, No. 4, 2017). O objetivo do ensino de Astronomia, nos anos iniciais do Fundamental I, é estimular os alunos a desenvolver habilidades e a sua capacidade criativa, bem como ampliar a percepção e suas competências explorando as noções prévias das crianças para que elas se motivem e aprendam uma ciência fundamental. Sendo assim, as habilitaremos à conquista de novos saberes nos mais diversos modelos de atividades, a fim de despertar ainda cedo o desejo e o prazer pela pesquisa, planejando o futuro nessa grande aventura de desvendar os mistérios do universo. (AMARAL, 2019, p. 43). Como podemos observar, na prática docente, não há como desviar dos temas de Astronomia: Os PCN recomendam o ensino de Astronomia a partir do eixo temático Terra e Universo para as séries do ensino fundamental, sugerindo que o professor trabalhe atividades práticas com os alunos, tais como, construir instrumentos simples semelhantes aos primitivos relógios de Sol, gnômons, realizar observações do Sol, Lua, estrelas e meteoros, marcando suas observações e dados (BRASIL, 1999). Faz algum tempo que os tópicos de Astronomia aparecem diluídos nos livros didáticos dos anos iniciais do fundamental 226 TEIAS DE AFETOS E SABERES I e II, indo um pouco mais além, não é incomum esse conteúdo em outras ciências do ensino médio. Mediante o exposto, isto deve ser, “um procedimento guiado pelo professor, previamente planejado” (BRASIL, 1997). Conforme os PCN 2021 “Observar não significa apenas ver, e sim buscar ver melhor, encontrar detalhes no objeto observado”. (BRASIL, 1997). Considerado por muitos como o pai da educação moderna, Pestalozzi2 [i]nspirou diretamente os trabalhos de Froebel e de Herbart e o seu nome está associado com todos os movimentos por reformas educacionais que surgiram de forma apaixonada no século XIX. As suas ideias e as suas experiências pedagógicas influenciaram ainda, de forma direta ou indireta, as concepções dos criadores do Movimento Escola Nova no século XX. (MEDEIROS, 2006, p. 33). A filosofia educacional de John Dewey3, um dos mais importantes nomes do Movimento Escola Nova, e Albert Einstein4 admirável físico e matemático alemão que entrou para o 2 Heinrich Pestalozzi (1746-1827) foi um educador suíço cuja pregação da liberdade e dos métodos ativos de ação ligados às vidas das crianças muito influenciou outros educadores mais modernos. (MEDEIROS, 2006, p. 32). 3 John Dewey (1859- 1952) nasceu em Burlington, no estado norte-americano de Vermont. Foi professor secundário por três anos antes de cursar a Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Estudou artes e filosofia e tornou-se professor da Universidade de Minnesota. Escreveu sobre Filosofia e Educação, além de Arte, Religião, Moral, Teoria do Conhecimento, Psicologia e Política. https://novaescola. org.br/conteudo/7225/john-dewey Acesso em 16 de jul. de 2021. 4 Albert Einstein (1879 - 1955) Albert Einstein foi matemático e físico, desenvolveu a Teoria da Relatividade, estabeleceu a relação entre massa e energia e formulou a conhecida equação E = mc². 227 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES rol dos maiores gênios da humanidade ao desenvolver a teoria da Relatividade, não podem ser em nenhum momento relacionados ao simples acaso, senão pela influência educativa recebida de Pestalozzi. Esse modelo de instrução, ou seja, “Este tipo de educação certamente atuou como um fermento intelectual para alguém como Einstein que já trazia consigo uma forte tendência em raciocinar por imagens”. (MEDEIROS, 2006, p. 34). “Um dos pontos enfatizados em uma tal abordagem inspirada na pedagogia de Pestalozzi era a tentativa de desenvolver nos alunos o raciocínio por imagens e não apenas aquele fundado na expressão verbal”. (MEDEIROS, 2006, p. 33 e 34). Pestalozzi dava atenção especial às atividades com desenhos, ao uso de mapas e outras configurações de expressão visual. O professor Anísio Teixeira, discípulo de John Dewey, trouxe ao Brasil as ideias de seu mestre, segundo as quais, “a arte deveria ser retirada do pedestal em que se encontrava e colocada no centro às comunidades” (FONTERRADA, 2008, p.210). Sabemos que as crianças se expressam com o corpo, com a voz, com movimentos faciais, com imitações, com movimentos de trabalho, de acordo com estímulo musical, com os objetivos do exercício em questão (MORAIS, 2012) e a música é o material para um processo educativo e formativo amplo, dirigido para o pleno desenvolvimento do indivíduo, como sujeito social (PENNA, 2012). Através da música e das artes visuais, [...] Partilhamos da ideia de que a crise no ensino de ciências é acompanhada de uma crise de criatividade, pois os indivíduos parecem experimentar as consequências de uma “educação bancária” tão critica- 228 TEIAS DE AFETOS E SABERES da por Freire (1996). Com o uso das novas tecnologias, cria-se uma situação de motivação nas leituras de imagens e de outras manifestações visuais, modificando o cenário e tornando o estudante agente ativo na construção do conhecimento, [...] cabendo ao professor potencializar a utilização destes recursos. (Anais do 14º Congresso Internacional de Tecnologia na Educação, 2016, p. 3). Na nossa posição de mediadores do processo de ensino-aprendizagem desejamos ter outras possibilidades, outros tecidos que possam nos apoiar na ocupação da educação. Os encantos motivacionais das artes audiovisuais recomendam ao mesmo tempo o ensino enquanto espaço de lazer, esclarecendo de outras formas as áreas de interesse trazendo elementos determinantes para a formação. O material audiovisual é um importante instrumento para promover a educação inclusiva, porque na construção dos vídeos podem ser inseridos além de imagens estáticas e em movimento, recursos como legendas, audiodescrição, a fim de atender não só os que carecem dessa assistência, mas todos os envolvidos no processo educativo. Nas orientações do currículo paulista para o ano de 2020, espera-se que o componente Arte contribua com o aprofundamento das aprendizagens nas diferentes linguagens e no diálogo entre elas e com as outras áreas do conhecimento, com vistas a possibilitar aos estudantes maior autonomia nas experiências e vivências artísticas. (BRASIL, 2017, p.203). Plano de experiência com Arte Caracterização da turma Alunos dos anos iniciais do Fundamental I do 1º ao 5º ano. 229 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Tema Sistema Solar Objetivos • Representar o Sol e os planetas do Sistema Solar em escala reduzida; • Explicar as características dos planetas; • Movimento de rotação e translação. Conteúdos • Ordem de afastamento dos planetas do Sistema Solar a partir de uma estrela: o Sol; • Movimento de rotação: dia e noite; • Movimento de translação: o ano. Materiais Lápis preto; borracha; lápis de cor; tesoura; cola; prendedores de roupas (de madeira); 1 folha de sulfite para anotações; 60 cm de barbante. Problematizações • Quais as principais características que você percebe no Sistema Solar? • O que é período de rotação e translação? • Qual é a origem do dia e da noite? • Todos os planetas têm a mesma característica em relação ao movimento de rotação? Metodologia Como nós sabemos, a música não é só uma composição, pode ser uma história, uma dança, um drama, uma peça para um grupo de canto coral. E por que não ser uma ferramenta na assistência do ensino? 230 TEIAS DE AFETOS E SABERES Planejando atender as necessidades dos alunos para a compreensão do Sistema Solar, foi exibido um vídeo de curta metragem com imagens dos planetas representados artisticamente e uma composição musical chamada Sistema Solar (ver Anexo A), atividades compreendidas como lúdico-pedagógicas, com o objetivo de facilitar a compreensão de alguns conceitos de Astronomia, além de despertar o interesse em desenhar, recortar, colorir e cantar a música com o título “Sistema Solar”. Visando auxiliar na fixação destes conteúdos, disponibilizamos um jogo chamado Sistema Solar que traz experiências divertidas que ensinam alguns conceitos e os nomes dos planetas que compõe o Sistema Solar e estabelece uma relação a respeito das características dos planetas, buscando perceber as suas formas, tamanhos, cores, nomes e movimentos, por intermédio desse aplicativo o aluno irá aprender de maneira lúdica e interativa a órbita de cada planeta, ordem de afastamento e observar o movimento de rotação dos astros. Aponte a câmera do seu celular para o QR Code, e instale o jogo Sistema Solar. Produto Final Montar um varal com a sequência dos planetas na ordem de afastamento demostrando como se organiza o nosso Sistema Solar a partir de uma estrela, alocando os desenhos dos planetas colados em prendedores, conforme a orientação da letra da música Sistema Solar. 231 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES É importante lembrar os alunos que o material produzido não está na escala de tamanho, nem corresponde à distância, e que os planetas não ficam alinhados em sua órbita da maneira como se apresentam no varal. O varal com os planetas é o resultado de uma representação artística do nosso Sistema Solar para auxiliar a nossa compreensão. O varal poderá ser exposto no espaço da escola para apreciação dos demais alunos. Avaliação Os alunos são avaliados pela participação durante as aulas, nas realizações de atividades de registros como desenhar, pintar, recortar, produção textual e comentários reflexivos acerca do conteúdo que aprenderam durante a aula. Em todas as aulas de Astronomia os alunos recebem além do molde, uma folha A4 para fazer seus registros, produzir texto e/ou fazer desenhos. Referências ALBRECHT, Evonir. Astronomia nas propostas curriculares dos estados da região sul do Brasil: uma análise comparativa. 2012. 105f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática). Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2012. AMARAL, Silvio Fernandes do. Alfabetização e a Educação Científica em Astronomia para alunos dos anos iniciais do Fundamental I, 2019. Anais do 14º Congresso Internacional de Tecnologia na Educação, Importância da arte e recursos audiovisuais no processo de ensino-aprendizagem. Brasil, Recife, setembro de 2016. Acessado em 29 de jul. de 2021. Arte para crianças / [Dorling Kindersley: tradução Maria Anunciação Rodrigues. - São Paulo: Publifolhinha, 2013. 4ª reimpr. da 1ª ed. 232 TEIAS DE AFETOS E SABERES de 2009. Título original: Children´s book of art. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação? 12ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. – Brasília: Ministério da Educação, 1999. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ciências naturais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997. 136p. FONTERRADA, M. T. DE O. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação, 2a ed. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Funarte, 2008. LANGHI, Rodolfo. Um estudo exploratório para a inserção da astronomia na formação de professores dos anos iniciais do ensino fundamental. - Bauru: [s.n.], 2004. 240 f. LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores, 2009, 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) Faculdade de Ciências, 2009. UNESP, Bauru https://sites.google.com/site/proflanghi/228 acessado em 07 de jul de 2021. LIMA, Analice Almeida; FREITAS FILHO, João Rufino de; BELIAN, Mônica Freire. Ensinando química para séries iniciais do ensino fundamental: O uso da experimentação e atividade lúdica como estratégias metodológicas, In: Experiências em Ensino de Ciências V.12, No. 4, 2017. MEDEIROS, A., Cleide Farias de Medeiros, Einstein e a Educação. 1ª ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006. Música para crianças / [Dorling Kindersley: tradução Eric Heneault e Francisco J.M. Couto]. - 1 ed. - São Paulo: Publifolhinha, 2013. 2ª reimpr. da 1ª ed. de 2011. Título original: Children´s book of music. MORAIS, D. V. Educação musical: materiais concretos e prática docente. Curitiba: Appris, 2012. 233 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES PENNA, M. Música (s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2a ed. 2012. TIGNANELLI, H. L., in Didática das Ciências Naturais: Contribuições e Reflexões, organizado por H. Weissmann, Artmed, Porto Alegre, 1998. UNESCO. Ciência na Escola. Um Direito de Todos. Brasília: UNESCO, 2005. Anexo A Disponível em vídeo em: https://youtu.be/URJbPqyVm9c, 234 TEIAS DE AFETOS E SABERES Anexo B Molde de figuras para pintar recortar e colar 235 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Anexo C As fotos abaixo demonstram atividades realizadas com alunos do 5º ano B na EE Conselheiro Antônio Prado. Exercícios lúdicos de pintar, recortar, colar e cantar exemplificando a ordem de afastamento dos planetas, representadas em um varal astronômico feito com um barbante e figuras dos planetas coladas em prendedores de roupa. Período anterior a pandemia do COVID – 19. Fonte: Acervo pessoal de Sílvio Fernandes do Amaral 236 TEIAS DE AFETOS E SABERES Anexo D Apresentação de alguns dos trabalhos finais dos alunos da EE Prudente de Moraes - 5º ano H. Atividades lúdica de pintar, recortar, colar e cantar seguindo a orientação da letra da canção o Sistema Solar. Brincadeira com objetivo de simular a ordem de afastamento dos planetas no varal astronômico. Fonte: Acervo pessoal de Sílvio Fernandes do Amaral 237 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Renato Brunassi Neves dos Santos Silva / Aguessy1 A espiritualidade na formação do arte-educador: intolerância religiosa como desafio à aplicação da Lei 11.645/08 Vivenciar uma experiência educativa formativa como prática da liberdade requer coragem e método. Negociação, insubordinação, alegria, confiança e esperança no sentido da utopia são o cerne da luta. As potencialidades das diferenças sedimentadas no corpo pela convivência. Neste sentido, a formação humana que a experiência estética promove nos prepara para, sem nos deixar paralisar pelo sentimento da 1 Renato Brunassi Neves dos Santos,Aguessy. Doutorando e mestre em Ciências pelo PPG em Humanidades, direitos e outras legitimidades, do Diversitas - FFLCH/ USP. Especializado em Educação em Direitos Humanos pela UFABC e em Gestão da Educação Pública pela UNIFESP. Graduado e licenciado em História pela USP. É professor de História na rede da SME/SP e articulador pedagógico na Ocupação Cultural Jeholu. Iniciado como Dofono de Ossaim no Ilê Axé Omi Otá Lowa. 239 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES esperança inerte, experimentar e construir coletivamente um mural, uma galeria a céu aberto de sonhos, grafites, uma colcha de retalhos costurada com amor, um vitral bem colorido, um mosaico. Janelas em sala, janelas em cena, a transversalidade destacada, privilegiada, a intervenção e a fala facilitadas quando conseguimos permanecer presentes fisicamente por meio daquele fio de tecnologia virtual que nos liga em rede de bits da aula on-line. Proposta multifacetada insere cada estudante como parte estrutural do processo de ensino aprendizagem. Professores cursistas não seriam “apenas alunos” nem em uma proposta tradicional de educação de metodologia bancária; muito menos ainda o são no contexto heterárquico que destacamos, no qual cada pessoa é convocada a contribuir com uma aula inteira, ao estilo de seminários, sem comanda com relação ao tema ou à bibliografia, liberta para propor a aula como reflexão-ação a partir daquilo que a convoca e acredita que pode convocar outros. De uma inspiração inicial, com as linhas temáticas gerais do curso, a metodologia se desenvolve potente no método de produção compartilhada, onde justamente professores e estudantes convivem junto nos mesmos lugares de aprendizagens, mestres-aprendizes, sempre compartilhantes, implicando energias na potência da diversidade e na convivência a partir da diferença. Nesta ambiência de trocas justas e alegres, - pois acreditamos na formação humana -, certo sentimento de comunidade vai se constituindo, inspirado por confiança mútua em relação negociada e companheira que vai se retroalimentando. Com mestres e mestras interagindo em trocas profícuas, abrimos o pensamento e para a reflexão, preocupados em delimitar bem o ponto de saída e desobedientemente livres com relação ao 240 TEIAS DE AFETOS E SABERES que se espera do ponto de chegada. Neste lugar construído por todos, a experiência religiosa surgiu como elemento fundamental de muitas das vivências propostas pelos cursistas. A crença e a religião são dimensões de nossa experiência em sociedade que afetam o espaço público, especialmente o educacional. A laicidade do estado brasileiro constituída legalmente na carta magna se contradiz com os crucifixos e rezas de pai nosso tão comuns nos ambientes públicos como fóruns, assembleias e escolas. De modo que tratar da educação por uma perspectiva de sua interação com a religiosidade ganha força à medida que olhamos criticamente a influência desta nas ações cotidianas dos estudantes e educadores, sejam eles docentes ou não-docentes. A sociedade brasileira construída sob uma hegemonia cristã, alinhada à ideologia colonizadora característica do catolicismo, toma, em tempos de crise institucional e ética, contornos fundamentalistas, cuja face que mais nos incomoda é a cotidiana perseguição às religiões de matrizes africanas e indígenas. Percebe-se atualmente nas análises mais veiculadas a relação entre a intolerância religiosa, a estigmatização e criminalização da cultura popular negra e indígena e o racismo cotidiano, organizado, além dos raciais, em critérios sociais e econômicos. É notório no Brasil das últimas décadas o recrudescimento dos ataques violentos às tradições religiosas dos povos de terreiro e isso tem levado a público a discussão sobre o direito à liberdade de culto e dever do estado em garanti-la, cuja votação do Recurso Extraordinário (RE) 494.601 pelo STF, em 28 de março de 2019, decidiu ser constitucional o sacrifício ritual de animais em cultos de matriz africana, e que 241 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES aqui figura como um exemplo importante2. O estranhamento, portanto, sobre a relação ambígua entre laicidade e liberdade religiosa diminui ao passo que compreendemos a historicidade da relação entre religião, Estado e, no nosso caso, formação escolar. Em 27 de setembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional, por 6 votos a 5, o ensino religioso confessional na Rede Pública de Ensino Brasileira, decidindo-se pela improcedência da ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria-Geral da República contra trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e do acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, o Decreto 7.107/2010, em especial seu artigo 113. Tal votação demonstra que a laicidade da escola pública brasileira é bastante específica e integra a hegemonia católica, de maneira explícita, nas leis e, de forma tácita, nas atuações profissionais de educadores. Oferecemos aos cursistas, portanto, um formulário com perguntas que nos ajudam a refletir sobre o desafio do respeito ao livre exercício da religião e das condições para a sua inclusão na prática educativa, a partir de uma perspectiva das minorias, para pensar de forma abrangente a inclusão. Tomamos assim os caminhos da Educação para as Relações Étnico-Raciais na implementação da lei 10.639/03 e 11.645/08, 2 STEINMETZ, W. Deveres estatais de proteção da fauna e direito fundamental de livre exercício de culto: o caso do Recurso Extraordinário 494.601. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 19, n.3, 813–822, 2019 3 TEIXEIRA, M. Por maioria, Supremo permite ensino religioso confessional nas escolas públicas. Revista Consultor Jurídico. SET, 2017.Disponível em: https:// www.conjur.com.br/2017-set-27/stf-permite-ensino-religioso-confessional-escolas-publicas, acessado em 15/11/2021 242 TEIAS DE AFETOS E SABERES particularmente onde essa educação tangencia a relação com a espiritualidade e religiosidade dos atores no ambiente escolar, buscando pensar de que maneira nossa constituição subjetiva, baseada em crenças religiosas, potencializam ou conformam resistências à valorização das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas. Apesar deste ter sido o objetivo, obtivemos alguns apontamentos mais modestos e reveladores dos desafios para tratarmos a questão. Produziu-se um formulário para ser respondido pelos cursistas em caráter de convite, no qual os aspectos da espiritualidade, das crenças e da religião foram questionados. As seis respostas obtidas, não-obrigatórias e de autorreconhecimento, recolhidas entre 12 e 30 de agosto de 2021, após a finalização do segundo módulo do curso, são apresentadas abaixo. Regiane Santana, 36, mulher cis, hétero, latina e católica não-praticante, professora de Arte, comentou “Eu não sou entusiasta de misturar religião com qualquer atividade que não seja para a prática da religião em si, por isso tenho resistência em trabalhar ou participar de qualquer coisa que misture religião no meio.” Sobre a importância do debate sobre religião na escola, destacou: “Isso é um assunto bem complexo, tem muitas coisas para se levar em consideração, é importante debater a tolerância e apresentar cada uma das religiões, desmistificando os estereótipos, mais que isso acho que não é prudente.” Contudo, considera que “há muitos professores que não abrem os olhos para nada além de sua religião e julgam os outros e os próprios alunos com base nisso.” Mariana Zanetic, 48, mulher cis, hétero, branca, moro-eslava, descendente de refugiados, professora de Arte e praticante de “magia de forma holística”, diz que vivencia sua es- 243 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES piritualidade “através do cuidado com entidades de matriz africana ou no sincretismo católico afro-brasileiro” Além disso, pesquisa a matriz panteísta eslava. Mariana comenta que Geralmente eu não me inspiro na religiosidade, mas trabalho com a matriz africana ou afro-brasileira, os aspectos culturais e manifestações artísticas. A maioria dos estudantes tem uma relação positiva com as atividades, porém alguns trazem adjetivos pejorativos como “isso faz parte dos falsos deuses” (mitologia grega), “isso é coisa de macumba” (obra do Vitor Valentin) (MZ). Sobre a espiritualidade e religiosidade como dimensão a ser trabalhada na educação pública diz que é “importante no sentido de decodificar os aspectos culturais ou de poder, isso no caso das religiões imperialistas. E também para tratar da liberdade de orientação religiosa ou mesmo de não ter religião. Até para separar ética de religião.” Sobre a interferência da religiosidade na ação educativa percebe [i]nfelizmente, interferências negativas, quando há uma imposição religiosa. E isso acontece sempre, em crenças religiosas arraigadas de matrizes religiosas cristãs, uma das matrizes religiosas mais imperialistas de nossa história. Quando passam orações para copiar ou põem estudantes para rezar. Isso acontece quando os/as professores/as estudaram em escolas religiosas ou estudaram em um período em que havia aula de religião, cujas religiões cristãs eram a única referência. (MZ) Raniere, homem cis, hétero, se coloca a “refletir sobre as questões existenciais, mas sem seguir nenhuma religião ou misticismo”. Não considera que a dimensão espiritual potencializa sua atuação como educador, acredita que “independente disto, o reconhecimento ao olhar do outro pode poten- 244 TEIAS DE AFETOS E SABERES cializar a atuação do educador.” Considera que a dimensão espiritual “surgiu inúmeras vezes no decorrer do curso, mas mais partindo dos outros como proposta do que de mim”. Neste sentido, considera que debater religiosidade e espiritualidade “no ponto de demonstrar que existem diferentes crenças e diferentes olhares de mundo, sim. Mas é um tema que pode cair na defesa de uma religião, o que não seria benéfico ao meu ver”, no contexto da educação pública. Percebe ainda “alguns educadores limitarem suas práticas alegando sua religião como impedimento para participar de certos projetos na escola.” Elaine da Silva Santana, 29, mulher cis, hétero, define-se como “parda”,4 professora, mestranda, não professa religião e diz que: Essa é uma questão complexa para mim. Não faz muito tempo que consegui compreender espiritualidade desassociada de religião. Acredito que vivencio através dos exercícios de presença. Nos banhos com ervas, nas pausas dos chás, durante a produção de bordados e peças de crochê, nos fazeres manuais. São momentos que entendo como ritos, nas pausas do próprio cotidiano. (ES) Acredita que a dimensão espiritual potencializa sua atuação como educadora: ”creio que a espiritualidade me torna mais sensível no sentido da percepção mesmo. Como associo a questão da presença e consciência, essa espiritualidade me faz estar 4 E pondera: “Não gosto do termo parda. Mas não me reconheço como branca nem negra. Na minha certidão de nascimento diz branca, mas meu pai é negro. Então não me considero branca. Ainda estou construindo uma forma de me auto descrever.” 245 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES mais atenta às necessidades das crianças que atendo.” Elaine considera que a dimensão espiritual lhe inspirou, pois: Muitas vivências no percurso da nossa formação me afetaram muito! Sendo que as que tiveram mais impacto sobre minha experiência e produção de conhecimento estavam ligadas à espiritualidade. Digo isso com relação às proposições dos colegas para a turma. No que diz respeito ao que eu construí e às proposições que eu trouxe são resultado dessas interações. Tenho percebido nos fazeres manuais um lugar que rompe com a lógica de espaço-tempo convencionais, e vejo nisso muita espiritualidade também. (ES) Sobre resistências e entusiasmos com relação às propostas pedagógicas de inspiração religiosa, acredita que [q]uestões relacionadas à religiosidade sempre serão delicadas. Um argumento comum é a laicidade das instituições educativas. Por conta disso, qualquer proposta que traga elementos que evocam a religiosidade pode causar resistência ou entusiasmo dependendo da compreensão que a pessoa tem sobre o tema. De uma forma ou outra creio que a vivência é afetada. (ES) Neste sentido, Elaine considera importante debater religiosidade e espiritualidade como uma dimensão da educação pública, “pois há muito preconceito em torno do que se entende por espiritualidade e religiosidade.” Mas, faz uma diferenciação entre religiosidade e crença, ao comentar sobre a interferência na ação educativa de professores: Não sei muito bem se a religiosidade. Na verdade percebo que o que realmente interfere são as crenças. Mas, não sei até que ponto isso está envolvido com a religiosidade. Um exemplo 246 TEIAS DE AFETOS E SABERES são professoras que acreditam que homossexualidade é pecado e tratam crianças que elas acreditam demonstrar essa característica de maneira diferente. Tudo de maneira muito equivocada. (ES) Silvania Francisca de Jesus, 48, mulher cis, hétero, negra, (“sou preta de cabelos crespos, sou persistente”), é professora e doutoranda. Católica de formação, acolhe “a religião afro e a espiritualidade indígena”. Vivencia a espiritualidade “participando das comunidades eclesiais de base, das formações da Teologia da Libertação”. Sobre a espiritualidade institucional e comunitária, afirma: “Iniciei minha formação na pastoral da juventude, na formação de Fé e Política, sou animadora de missas e celebrações pelo menos dois domingos no mês” Silvania considera que a dimensão espiritual potencializa sua atuação como educadora: A minha base de formação foi na educação popular promovida pelas formações das CEBS5. Aprendi o que é uma espiritualidade libertadora, de um Cristo revolucionário; conheci a obra de Paulo Freire nessas formações que hoje me aponta novos caminhos para uma prática pedagógica-crítico-libertadora. (SJ) Segue afirmando a dimensão espiritual como inspiração: Tendo em vista minha aula, que versou sobre a importância das ervas para nos cuidar, afirmo que sim. Muitas sensibilidades afloraram no decorrer da aula, memórias foram acordadas, e acredito que tudo isso passa por um campo espiritual, 5 Comunidades Eclesiais de Base. 247 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES sem verbalizar nenhum segmento religioso. (SJ) Sobre reações ao trabalho pedagógico de inspiração religiosa, acredita “que tudo que toca nossa singularidade, subjetividade, expressa religiosidade, a espiritualidade. Despertando sentimentos, nos colocando num outro lugar, que só o racional não dá conta.” Sobre a relevância de se debater religiosidade e espiritualidade como uma dimensão da educação pública, afirma Nós somos seres pela cultura atravessados por religiosidade; pensando em Brasil, um povo misto em todos os sentidos, traz em si a espiritualidade indígena ao colher uma erva ou planta pedindo licença a natureza, ou sentir o corpo se arrepiar ao som de um tambor, tão reverenciado na cultura da religiosidade afro. Enfim, acredito que a religiosidade e espiritualidade nos envolve sim, não só na educação. Importante ressaltar que não estou falando em doutrinas, instituições religiosas. (SJ) Sobre a interferência da religiosidade na ação educativa de professores, considera que “muitos professores apresentam um bloqueio muito grande ao lidar com alguns temas, devido à religião que seguem. Se praticassem uma religiosidade e espiritualidade libertadora, não doutrinária, esses bloqueios seriam menos evidentes”. Rodrigo Acosta, 38, homem-cis “com forte energia feminina”, hétero, pardo, baixo, careca cabeludo, arte-educador, pós-graduado, agnóstico, diz frequentar “diversas religiões conforme sinta o convite”. Vivencia a espiritualidade nos seguintes termos: “agradecimentos, procuro cuidar do meu corpo e do mundo ao redor”. Rodrigo não vivencia a religiosidade de forma institucional: “Procuro levar a positividade e 248 TEIAS DE AFETOS E SABERES orientações nos quais são saudáveis a todos. Não creio em um único Deus paternalista. Acredito em egrégoras, energias e acredito na natureza.” Para ele, a dimensão espiritual: “[potencializa] a fé e tentar entender qual a minha missão e responsabilidade perante as pessoas às quais atendo. Eu acredito que não existe o acaso e se algo acontece é para a absorção de alguma experiência ou conhecimento.” Sobre propostas pedagógicas inspiradas pela religiosidade, afirma: Acho muito complicado trabalhar a religiosidade nas escolas. Como atuo em escolas públicas, sabemos que o ensino é laico, porém, é visível como o cristianismo é aceito e faz parte do nosso cotidiano, diferente das outras religiões. Sei de todo o contexto histórico do cristianismo. Como leciono história da arte, ele fica evidente por conta do decolonialismo e vira como uma espécie de base, “única verdade”. (RA) Rodrigo pondera sobre a importância em debater religiosidade e espiritualidade na educação pública: Muito importante. Observo nas religiões de matriz africana, principalmente a umbanda muita “brasilidade” apesar de não frequentar esta religião, tanto a parte visual quanto as músicas vejo muito de Brasil e me agrada muito essa estética. Acho um absurdo termos de ter cuidado em falar de mitologia africana como os Orixás e ver estudantes com materiais escolares de mitologia nórdica como Thor, o Deus trovão. Ou seja, podemos falar de Thor “Deus trovão” que não faz parte da nossa cultura, mas devemos ter cuidado ao falar de Xangô e Tupã que também são “Deuses como trovão em simbologia”. Mesmo sendo um país com base no cristianismo, em épocas nos quais trabalhamos danças tradicionais brasileiras muitos estudantes evangélicos sentem desconforto. Este ano, mesmo remoto, um estudante se recusou a fazer uma atividade sobre Carimbó na qual disse que não concordava com a dança.” (RA) 249 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Rodrigo considera, por fim, que a religiosidade interfere na ação educativa de professores: Sim e muitas vezes negativa. Já fui “julgado” por colegas e ou estudantes evangélicos ou católicos por conta de lecionar história da arte e estéticas culturais. Infelizmente os fundamentalistas religiosos estão acabando com a educação, pois muitas vezes mesmo no direito em lecionar me sinto desconfortável em apresentar alguns conteúdos. Os discursos no cotidiano são muito tóxicos. Meus colegas de trabalho sabem que frequento religiões xamânicas e fazem piadas e enxergam isso como algo natural, porém em qualquer discurso sobre cristianismo a sociedade se sente agredida. (RA) A liberdade de escolha dos temas de aula por parte dos cursistas levou a emergir a questão religiosa demonstrando tanto um momento de encontro de legitimação institucional advindo da possibilidade de ser professor “regente” de uma aula de um curso de extensão da ECA/USP, quanto de uma demanda subjetiva que se encontra na interface entre religião e educação, que refere-se à tensão entre a esfera dos valores religiosos, da vida privada, do espaço público escolar e da descolonização do currículo. Se por um lado, de uma turma com 19 cursistas, apenas 6 responderam ao questionário de forma espontânea, em falas dos respondentes nota-se que a questão religiosa permeou várias das aulas propostas no curso e das suas vivências nas escolas. Isso pode ser interpretado como uma escolha pelo silêncio ou a um certo sentimento de insegurança com relação à temática por parte dos não-respondentes. Isso demonstra complexidade nesta dimensão entre as relações individuais e institucionais com a religião, seja na universidade ou na escola, postura corroborada pelas recorrentes falas dos res- 250 TEIAS DE AFETOS E SABERES pondentes sobre a prática de vivências espirituais afastadas das instituições religiosas formais e do estranhamento com relação aos professores, em geral cristãos, que vivenciam sua religião de maneira explícita no ambiente escolar. Em um contexto de formação de professores em arte-educação, esse afastamento do religioso ambiguamente acompanhado pela inspiração na religiosidade ou espiritualidade aponta para uma relação histórica entre o conceito de formação humana e o conceito de formação espiritual. As ciências humanas e as experimentações estéticas foram, por séculos, chamadas de ciências do espírito. Neste sentido, em um momento pandêmico mundial e instável politicamente, no qual as escolas e os profissionais da educação viram-se perplexos a escolher manterem seus empregos, expondo-se ao risco de vida, ou enfrentando infindáveis greves, por todos atacadas e criminalizadas, a formação inerente ao processo educativo formal teve destacada sua dimensão espiritual, revivendo a antiga relação entre ser formado/formador e o desenvolvimento de uma espiritualidade, que seria a quintessência do humano. Neste ponto, a questão sobre as religiosidades nas escolas e universidades públicas pode avançar, tendo como caminho a proposta decolonial, na qual o giro epistêmico intenta refundar as bases da modernidade, incluindo a proposta educacional de formação do sujeito. Ao invés de uma educação preocupada com a formação do sujeito humano universal, uma formação baseada no multiculturalismo e na valorização da diferença, superando os entraves do conceito de igualdade, que é igualdade só para alguns, servindo mais ao apagamento das tensões e à manutenção das formas de dominação. 251 ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES Neste sentido, encaminhar a pedagogia decolonial neste caso significa beber das fontes não-ocidentais que conformam a identidade de povos originários e de povos africanos resistentes às escravizações e genocídios, que apenas de forma desidratada compõem as narrativas oficiais de história e cultura brasileiras. Pensar a espiritualidade na escola a partir destes termos decoloniais significa trabalhar uma ressignificação do próprio conceito de religião e de formação. Significa pensar a espiritualidade como uma dimensão inerente ao corpo e forma primeira de comunicação entre os seres. Perceber, por um lado, que a escola e a academia ao acolherem a dimensão espiritual de seus estudantes e professores abrem-se para constituições epistemológicas negadas, apagadas e silenciadas que trazem potência para exprimirem a transmissão de conhecimento por meio da experiência estética, que extrapola o conceito de arte, e se realiza na cultura viva vivida nos corpos e nas suas expansões. Talvez, possamos encontrar um lugar de contato entre essas possibilidades e o campo das artes ao pensarmos o conceito de “performance”, no qual a separação entre o que é artístico e o que é vivido em sua espontaneidade subjetiva é uma linha embaçada e de pouca importância. Nota-se que a tentativa de reconquistar espaço no mercado religioso, tanto por parte das igrejas evangélicas como da igreja católica, vêm assumindo práticas mais agressivas de trabalho de base, especialmente nas periferias, para ocupar e se manter no cenário religioso e na constituição de narrativas hegemônicas, recorrendo muitas vezes a estratégias de ordem político-institucional, das quais o apoio neopentecostal ao bolsonarismo é estridente exemplo. Esse movimento fundamentalista, que tem pelo menos 40 anos, tem sido ci- 252 TEIAS DE AFETOS E SABERES tado por professores, em diversas ocasiões em que se debate a implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, e apontado como base estruturante da resistência por parte das famílias em se trabalhar culturas afro-indígenas nas escolas. Por isso, é o momento de pensarmos de que maneira às religiões e religiosidades não-hegemônicas podem ser dados seus devidos nomes no ambiente escolar, como metodologia estratégica de revide às guerras e interesses de dominação política de nossos seres, por parte daqueles que se colocam como nossos inimigos. Que Exu nas escolas aponte os caminhos certos e errados desta encruzilhada. Referências ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. B , Amadou. Hampâté Tradição Viva. In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, p. 167-212. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BOURDIEU, P. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. Tradução de Daniela Kerne Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. DOS SANTOS, Ivanir. 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