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Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
A786
Arte e educação para professores [recurso eletrônico] : teias de afeto e saberes /
organização Sumaya Mattar e Vinícius de Azevedo. -- São Paulo : ECA-USP, 2022.
PDF (254 p.) : il. color.
ISBN 978-65-88640-75-3
DOI:10.11606/9786588640753
1. Arte-educação. 2. Formação de professores. 3. Escola pública. 4. Educação
decolonial. 5. Extensão universitária. 6. Lei 11.645/2008. I. Mattar, Sumaya. II.
Azevedo, Vinícius de.
CDD 23. ed. – 700.7
Elaborado por: Alessandra Vieira Canholi Maldonado CRB-8/6194
Organização
Sumaya Mattar
Vinícius de Azevedo
Comissão de publicação
Clarissa Suzuki
Dayse Ana Fernandes
Fernando Lima Ramos
Francisca do Val
Leandro de Oliva Costa Penha
Autores
Clarissa Suzuki
Dayse Ana Fernandes
Fernando Lima Ramos
Francisca do Val
Gabrielle Martin Távora
Gláucia Adriana Simões
Leandro de Oliva Costa Penha
Letycia Payayá
Mariana Zanetic
Ranieri Rangon Ramos
Regiane de Paula Santana
Renato Brunassi Neves dos Santos, Aguessy
Rodrigo Acosta
Silvania Francisca de Jesus
Sílvio Fernandes do Amaral
Sumaya Mattar
Vinícius Souza de Azevedo
Capa, projeto gráfico e diagramação
Márcio Santos Lima
Revisão
Elisabete Marin Ribas
Universidade de São Paulo
Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes
Escola de Comunicações e Artes
Diretora: Profª Drª. Brasilina Passarelli
Vice-Diretor: Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro
Sumaya Mattar e
Vinícius de Azevedo
(organizadores)
ARTE E EDUCAÇÃO
PARA PROFESSORES
TEIAS DE
AFETOS E
SABERES
Agradecimentos
Agradecemos às professoras e professores que participaram do curso, com quem muito aprendemos; aos pesquisadores/educadores do GMEPAE, que planejaram e ministraram as
aulas com muito amor e carinho; à Aparecida Regina Landanji,
pelo fundamental apoio para a realização do curso no Departamento de Artes Plásticas da ECA/USP; ao Márcio Santos Lima,
pela caprichosa produção visual; à Elisabete Marin Ribas, pela
revisão cuidadosa e aos membros da comissão de publicação:
Clarissa Suzuki, Dayse Ana Fernandes, Fernando Lima Ramos,
Francisca do Val e Leandro de Oliva Costa Penha, pelo atento
trabalho que culminou nesta teia de afetos e saberes.
Sumário
Sumaya Mattar e Vinícius Souza de Azevedo
Uma teia coletiva
11
Renato Brunassi Neves dos Santos, Aguessy
Teias de afeto: uma história de aranhas
23
Leandro de Oliva Costa Penha
Território, escola e universidade: para além dos muros
e hierarquias
31
Vinícius de Azevedo
O tecido dos nossos sonhos: o bordar na formação
docente
67
Fernando Lima Ramos
Desdobramento sobre o Curso de Formação para
professores, da ECA/USP
80
Silvania Francisca de Jesus
Itinerários artísticos interculturais: relato de
vivências
90
Francisca do Val
Memórias de um tempo feliz e estranho
104
Rodrigo Acosta
Conexões
113
Regiane de Paula Santana
Relato sobre a experiência no curso de extensão Arte e
Educação para professores
122
Mariana Zanetic
Garoas de vivências de uma artista docente em Sampa
128
Letycia Payayá e Clarissa Suzuki
Soprar, semear, sonhar ideias sobre as artes e a
educação: diálogos entre Letycia Payayá e Clarissa
Suzuki
155
Gabrielle Martin Távora
O tempo da experiência para encontrar uma deriva
própria
167
Dayse Ana Fernandes
Fios que se encontram: histórias e memórias 175
Gláucia Adriana Simões
Reverberações
188
Ranieri Rangon Ramos
Arte como expressão de múltiplas possibilidades
203
Sílvio Fernandes do Amaral
Astronomia e a arte no Ensino Fundamental: uma
proposta educativa
222
Renato Brunassi Neves dos Santos Silva / Aguessy
A espiritualidade na formação do arte-educador:
intolerância religiosa como desafio à aplicação da Lei
11.645/08
239
Sumaya Mattar e Vinícius Souza de Azevedo
Uma teia coletiva
O Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e
Educação (GMEPAE) tem o prazer de apresentar um dos desdobramentos da primeira turma do curso de extensão Arte
e Educação para Professores. O curso é uma iniciativa do
GMEPAE, como forma de ampliação do diálogo entre Universidade e Escola Pública, buscando oferecer uma possibilidade de atualização docente em arte1, e resulta dos estudos,
pesquisas, práticas, reflexões e inquietações dos membros
do grupo de pesquisa, composto por pesquisadores, educadores, estudantes e artistas. Seu principal objetivo é oferecer aos professores um espaço de estudo, pesquisa, reflexão, experimentação e criação a partir de uma perspectiva
decolonial, que faça frente aos desafios contemporâneos da
1
O curso é gratuito e as vagas são destinadas prioritariamente, a professores
atuantes na Educação Básica das Redes Públicas de Ensino, dispostos a realizar
um projeto na escola em que trabalham.
11
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
arte na educação escolar.
Dois módulos semestrais consecutivos compõem o programa do curso, cada qual com uma carga horária de 60 horas. O
Módulo I apresenta aos participantes bases epistemológicas
e propõe vivências de experiências diversificadas em múltiplas linguagens, para fomentar o trabalho a ser realizado no
Módulo II, voltado para o desenvolvimento de projetos político-poético-pedagógicos dos participantes em suas respectivas escolas.
O programa do curso está estruturado em torno dos seguintes grandes eixos: perspectivas decoloniais em arte e
educação; pedagogia crítica e práticas interculturais; inseparabilidade, na práxis educativa, entre professor, artista e
pesquisador; defesa da educação pública e do ensino de arte
no currículo escolar; valorização da profissão docente; prática
educativa em arte como práxis criadora; ensino de arte como
experiência emancipadora. Como desdobramentos destes eixos, os seguintes tópicos são trabalhados: 1 - Perspectivas e
experiências decoloniais em arte e educação; 2 - O ensino de
arte no espaço escolar frente aos desafios contemporâneos; 3
- A Lei 1.1645 / 2008: culturas indígenas e afro-brasileiras e o
ensino de arte; 4 - Arte e seu ensino para além da escola: meio
artesanal, cultura popular, movimentos artísticos e movimentos sociais; 5 - A docência da arte como práxis criadora; 6 - O
projeto político-pedagógico da escola e os projetos poético-pedagógicos dos professores; 7 - Onde nasce um currículo
de arte?
As aulas do Módulo I da primeira turma do curso foram
realizadas no segundo semestre de 2019, nas dependências
do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunica-
12
TEIAS DE AFETOS E SABERES
ções e Artes da Universidade de São Paulo2. No ano seguinte,
quando o segundo módulo estava começando a ser oferecido, as atividades tiveram de ser suspensas em decorrência do
isolamento social para conter a disseminação da COVID-19.
Assim, o segundo módulo começou apenas em março de 2021,
e como o isolamento social ainda era necessário, os encontros semanais ocorreram em formato remoto, fato que impôs
inúmeros desafios aos participantes3 e à equipe educativa4.
Perguntávamo-nos se seria possível transpor para o espaço virtual as ricas vivências interdisciplinares que estávamos
acostumados a planejar. Também nos perguntávamos como
poderíamos abrir mão, em nossas aulas, das diversas materialidades, do fazer junto, dos olhares, das vozes, dos corpos
em movimento habitando o mesmo espaço.
Aos poucos, com o passar das aulas, fomos entendendo que
mesmo em condições tão limitadoras era possível realizar um
trabalho significativo, e que não se tratava de abrirmos mão do
que nos era caro como educadores, mas sim de criarmos possi-
2
Participantes do primeiro módulo, em 2019: Bernadete Aparecida dos Santos
Oliveira, Camila Jacinto Pereira, Dayse Ana Fernandes, Elaine da Silva Santana,
Fernando Lima Ramos, Gabrielle Martin Távora, Gláucia Adriana Simões Almeida,
Letícia Rodrigues de Almeida, Mariana Zanetic, Ranieri Rangon Ramos, Regiane de
Paula Santana, Renato Brunassi Neves dos Santos Silva, Rodrigo Acosta, Samanta
Costa Tavares, Silvania Francisca de Jesus, Sílvio Fernandes do Amaral, Viviane
Júnior e Viviane Roberta Florêncio da Silva Galter.
3
As professoras Eliene de Oliveira Aleixo, Glauce Regina Assis de Paula, Ligia
Martins de Oliveira Almeida, Thaís Pereira Silva e Vanda Lúcia do Carmo não puderam participar do segundo módulo por indisponibilidade de horário.
4
A equipe educativa do curso foi composta pelos seguinte membros do GMEPAE: Alberto Roiphe, Caio Vinícius Bonifácio, Clarissa Lopes Suzuki, Francisca do
Val, Gabriela Mafud, Guilherme Nakashato, Hercilia Tavares de Miranda, Leandro
de Oliva Costa Penha, Lucas Rosario Joia Chrispim, Luiza Couceiro Latorre, Sumaya
Mattar e Vinicius Souza de Azevedo.
13
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
bilidades com o que tínhamos em mãos, e isso foi e precisava
ser feito com os participantes - professoras e professores, que,
passando por situações muito difíceis com o fechamento das
escolas, também se perguntavam se era possível ensinar arte
de forma remota. Fomos alunos e professores uns dos outros - e
foi assim que, juntos, sustentamos a nossa esperança em um
sombrio período da história do nosso país e aprendemos muito.
Estes dois diferentes momentos – o presencial e o on-line,
bem como o processo de aprendizagem coletivo e alguns desdobramentos do curso nas práxis dos participantes, aparecem nos
textos publicados nesta coletânea. Reunidos, eles representam
a materialização de um duplo objetivo do GMEPAE: por um lado,
o compartilhamento de experiências, saberes e referências que
fizeram parte dos encontros; por outro lado, um estímulo e uma
oportunidade para todos os participantes rememorarem e refletirem sobre o rico (e desafiador) processo que vivenciaram.
Inspirados na maneira como o processo formativo se deu
– em especial, pelo diálogo e a valorização da vivência e do
olhar de cada pessoa, os dezesseis textos aqui apresentados
reafirmam a profunda crença no potencial transformador da
arte e da educação na formação humana. Seus autores são
integrantes do GMEPAE, que ora foram docentes do curso, ora
foram alunos, assim como os professores e as professoras de
escolas públicas que também ocuparam os dois lugares. As
múltiplas traduções das vivências feitas pela pena de cada
autor/a revelam a teia de saberes que foi finamente bordada
ao longo dos dois módulos do curso, de forma coletiva.
A trajetória por esta teia tecida a muitas mãos tem início
com a história criada por Renato Brunassi Neves dos Santos
(Aguessi) inspirada em uma das narrativas trabalhadas nas
14
TEIAS DE AFETOS E SABERES
aulas sobre a figura de Anansi, a aranha narradora africana, e em reflexões desenvolvidas nos encontros. O adinkra5
“ananse ntontan” (teia de aranha) simboliza sabedoria, criatividade, engenho e a complexidade da vida, síntese do significado mais profundo daquela narrativa. Na história criada
por Renato, uma aranha descobre uma maneira de produzir
alimento, explorando de forma predatória o meio ambiente e
outras aranhas. Ananse, então, vê-se obrigada a provocar um
movimento de revolução contra essa via de produção rápida e
opulenta, porém destruidora.
Imagem 1 – Adinkra “Ananse ntontan”.
Fonte: Dicionário de símbolos, disponível em https://www.dicionariodesimbolos.
com.br/simbolos-adinkra/, acessado em outubro de 2022.
5 Adinkras são um conjunto de símbolos que representam ideias expressas em
provérbios, uma tradição dos povos acã, da África Ocidental, com destaque para
os Asante, do Gana. Fonte: IPEAFRO, disponível em https://ipeafro.org.br/acoes/
pesquisa/adinkra/, acessado em outubro de 2022.
15
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Seguindo o fio da teia, Leandro de Oliva Costa Penha, pesquisador do GMEPAE, apresenta um artigo em que tece reflexões sobre a metodologia desenvolvida no curso e os seus
desdobramentos. Para tanto, parte da descrição da aula por
ele desenvolvida no 1º módulo e de algumas experiências
propostas no 2º módulo. Com base nos conceitos de território
e brincadeira, partindo de fotos e relatos dos participantes,
Leandro narra detalhadamente sua proposição e duas aulas
desenvolvidas pelos participantes com seus colegas de curso.
O texto seguinte é a narração da experiência que deu início ao curso, em agosto de 2019, escrito por Vinícius Souza
de Azevedo, a qual foi elaborada em parceria com Sumaya
Mattar, coordenadora do curso e do GMEPAE, e com Clarissa
Suzuki, pesquisadora do grupo. Vinícius retoma um trecho da
história narrada6 e tece reflexões sobre as relações propostas
entre a história, as experiências vividas e os desdobramentos
do curso, em que o bordado figura como prática criadora e
organizadora da experiência educativa.
O fio segue com a narrativa verbal e visual de Fernando
Lima Ramos sobre seus processos, desafios, descobertas e
encontros ao longo do curso, tendo como pano de fundo o
contexto em que atua como professor: escolas públicas da
Rede Estadual de Ensino de São Paulo. As reflexões de Fernando apresentam aspectos fundamentais a respeito do tra-
6 A história narrada foi o conto tradicional chinês “O bordado encantado”, a partir
das compilações de PERROTI, 1996 e BONAVENTURE, 1992. O conto narra a história
de uma bordadeira que encontra um bordado maravilhoso em uma loja, e então,
resolve investir em seus próprios desejos, bordando seus projetos, além dos costumeiros. Após uma longa saga, que começa com a perda do seu trabalho pronto, o
bordado se torna realidade e passa a ser a paisagem da aldeia onde mora.
16
TEIAS DE AFETOS E SABERES
balho docente, particularmente no campo da arte, e demonstram o quanto o curso alimentou seus sonhos e contribuiu
com a sua formação, tornando sua práxis mais substancial e
significativa, sobretudo por ter lhe dado acesso a muitos conceitos, referências, procedimentos e materiais.
Na mesma linha narrativa, Silvania Francisca de Jesus conta
um pouco da sua trajetória até chegar ao curso e narra algumas
experiências vivenciadas durante os encontros. Em um relato
sensível e delicado, quase um diário de bordo, ela compartilha
seu processo de descobertas, vivências, criações, relacionando
esses momentos com as propostas desenvolvidas pelos diversos docentes. Silvania relaciona essas experiências às propostas que desenvolveu com a sua classe de Educação de Jovens
e Adultos (EJA), com a qual trabalhava na época, sugerindo um
diálogo entre o ser ensinante e o ser aprendente no jogo árduo,
porém revigorante, da educação no âmbito escolar.
Francisca do Val, membro do GMEPAE, oferece um relato
inspirado em sua experiência no curso e no próprio grupo de
pesquisa. Narra um pouco da sua trajetória como professora do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo e da
sua chegada a um grupo de pesquisa em arte e educação. Os
aprendizados propiciados pela interface destes dois campos
e seus desdobramentos em sua forma de pensar são objetos
da sua narrativa.
O fio dessa teia segue se desdobrando com o relato repleto
de imagens de Rodrigo Acosta, em que narra, afetuosamente,
como chegou ao curso e as perspectivas que foram se abrindo
à medida que, semana a semana, os encontros aconteciam.
Rodrigo conta como era sair, cotidianamente, de Santo André, município da Grande São Paulo, para ir à USP aprender/
17
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ensinar e refletir sobre temas e questões que abriram novos
horizontes em seu exercício como professor de Arte da Rede
Municipal de Educação de Diadema e São Caetano, também
municípios da grande São Paulo.
Com um fio de nuances parecidas às dos fios narrativos empregados por Rodrigo, Regiane de Paula Santana tece o seu relato, também cheio de afetividade, com o qual compartilha sua
trajetória como professora de Arte da Rede Municipal de Ensino
de São Paulo, ao mesmo tempo em que reflete sobre a importância de ter participado do curso, especialmente por lhe terem sido
apresentadas novas referências e possibilidades de atuação.
Mariana Zanetic, por sua vez, ensaia uma tessitura nova
nesta teia coletiva ao relatar sua experiência como professora
da Rede Pública Municipal de São Paulo, exercício que segue
pari passu à militância por direitos básicos da classe docente.
Em um relato/manifesto, ela resgata alguns acontecimentos
políticos dos últimos anos no país e reflete sobre experiências
vivenciadas no curso e suas reverberações em seu cotidiano,
entre as quais, proposições que desenvolveu com estudantes
das escolas onde trabalha como professora de Arte.
Com este mesmo fio do engajamento político, Clarissa
Suzuki e Letycia Rendy Yobá Payayá traçam reflexões sobre os
saberes historicamente silenciados pelos processos colonizadores, patriarcais, embranquecedores e universalizantes impetrados à população brasileira, com destaque para os povos
originários. Elas narram a experiência de docência compartilhada que realizaram no curso, uma proposta de diálogo entre
os saberes dos povos originários de Pindorama, a educação e
as artes, e apresentam importantes referenciais epistemológicos para este campo.
18
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Gabrielle Martin Távora segue o fio da teia relatando a proposição que desenvolveu no 2º módulo do curso, quando os
participantes foram convidados a ministrar uma aula ou apresentar uma proposta de trabalho para os colegas da turma.
Gabrielle trabalhou a partir do conceito de “deriva poética”,
como forma de aquecer, animar, mobilizar, sensibilizar o corpo de maneira integrada e integradora. Ela também conta
um pouco como realiza essa mesma proposta no contexto da
educação não formal na área de teatro.
Dayse Ana Fernandes igualmente relata suas experiências
como professora em uma Escola de Educação Infantil da Rede
Municipal de Ensino de São Paulo, desencadeadas pelo curso. As experiências vivenciadas no início do primeiro módulo,
em especial a proposta com o bordado, trouxeram-lhe referenciais importantes e provocativos e a encorajaram a experimentar novas formas de promover ações pedagógicas com
a sua turma. Partindo do bordado, Dayse desenvolveu com as
crianças uma série de vivências que reverberaram em novas
relações interpessoais na turma, assim como repercutiram em
fazeres pautados na criatividade e na imaginação, sem perder
de vista o trabalho coletivo, a convivência diária e o ato de
compartilhar, instâncias fundamentais tanto no início quanto
ao longo de todo o processo de escolarização.
A teia da sala de aula segue sendo tecida por Gláucia Adriana Simões, que compartilha os desafios de ser uma professora de Música que optou por trabalhar com Educação Especial,
com ênfase em surdez, deficiência múltipla e deficiência sensorial (surdocegueira). Em seu texto, Gláucia mescla experiências e reflexões promovidas pelo curso com a sua práxis
educativa, ora narrando seu ponto de vista como estudante
19
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
do curso, ora narrando seu experiente olhar como professora
de Educação Especial.
Ranieri Rangon Ramos estende o fio da práxis educativa
e narra suas propostas como docente orientador de Sala de
Leitura de uma escola da Rede Municipal de Educação de São
Paulo. Com base nas experiências e nos referenciais vivenciados no curso, ele discorre sobre os desafios que enfrenta no
contexto em que atua e tece reflexões sobre a imagem da rede
enquanto estrutura de organização e de produção de conhecimento no âmbito do curso. Esta estrutura seria a responsável
pelas conexões e interações múltiplas e de várias naturezas
que se deram ao longo dos encontros. Na continuação do seu
relato, Ranieri explica como chegou à ideia da proposta que
apresentou aos colegas da turma e de que maneira a adaptou
para trabalhar com os seus estudantes.
A narrativa de Sílvio Fernandes do Amaral segue na sala
de aula, contextualizando o curso e explicando as escolhas
que o levaram à proposta que desenvolveu com estudantes
de 5º ano do Ensino Fundamental de escolas estaduais de São
Paulo, onde trabalha. Sílvio explica detalhes de cada fase do
trabalho interdisciplinar que realiza e no qual conjuga Arte,
Música e Astronomia, incluindo exemplos de materiais que
podem ser utilizados em sala de aula.
Por fim, arrematando esta intrincada, afetuosa e multifacetada teia de afetos e saberes, Renato Brunassi Neves dos
Santos Silva (Aguessi), que iniciou esta tessitura com a história da aranha capitalista, apresenta uma pesquisa que ele
realizou no curso e a partir dele, sobre a questão da espiritualidade na formação do professor de arte. Após discorrer
sobre os processos, os conceitos e as experiências promovi-
20
TEIAS DE AFETOS E SABERES
dos no curso e afirmar a necessidade de se discutir a espiritualidade no contexto da educação escolar, Renato apresenta
resultados do levantamento que fez com os participantes do
curso em torno de questões como: vivência da espiritualidade,
liberdade religiosa, inspiração religiosa no trabalho educativo e presença deste tema em sala de aula, e conclui refletindo sobre a importância destas questões serem trabalhadas e
pensadas a partir de perspectivas decoloniais referenciadas
em outras formas de ser e de conhecer e na importância da
Arte como um lugar de múltiplas potencialidades.
Esta publicação foi, assim como a teia do próprio curso, cuidadosamente tecida ao longo de um tempo de troca, partilha,
cuidado, atenção, afeto, permeado por desvios, paradas, retornos, aspectos que caracterizam qualquer trajetória que se
faz humana e respeitosa, frutificando nesta coletânea de textos que aqui se apresenta, resultado de um trabalho de muitas
mãos, um círculo produtivo e virtuoso que busca a valorização
das pessoas, dos saberes e o compartilhamento das experiências. Que esta teia reverbere em novas, múltiplas, infinitas e
potentes tessituras!
Primavera de 2022
Renato Brunassi Neves dos Santos1, Aguessy
Teias de afeto: uma
história de aranhas
Após ajudar sua comunidade por mais uma vez, a Anansi
decidiu descansar. Deitou-se em sua teia delicada, esperando uma mosca pousar e ficar. Ali, esteve por algumas horas,
mas percebeu que mosca alguma ameaçara nem sequer um
voo próximo, nem mesmo triscar a teia, quanto mais ficar
presa nela.
Anansi achou aquela situação enigmática e um pouco assustadora, então decidiu vibrar a teia em busca de informa-
1 Renato Brunassi Neves dos Santos, Aguessy. Doutorando e mestre em Ciências
pelo PPG em Humanidades, direitos e outras legitimidades, do Diversitas - FFLCH/
USP. Especializado em Educação em Direitos Humanos pela UFABC e em Gestão
da Educação Pública pela UNIFESP. Graduado e licenciado em História pela USP.
É professor de História na rede da SME/SP e articulador pedagógico na Ocupação
Cultural Jeholu. Iniciado como Dofono de Ossaim no Ilê Axé Omi Otá Lowa.
23
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ções. Por onde estariam as apetitosas moscas que todos os
dias serviriam de alimento aos seus lindos filhotinhos, recém-saídos da ooteca, a bolsa tecida com tanto amor pela mamãe
aranha?
Conversando com suas amigas, Anansi descobriu que uma
estranha aranha havia conquistado uma maneira de atrair todas as moscas para sua própria teia. Ela fazia isso roubando
filhotes de outras aranhas e com eles produzindo um bálsamo, que para as moscas era como um irresistível perfume. A
estranha aranha, então, lambuzava este perfume mórbido nos
fios de sua teia, atraindo as moscas até o pouso derradeiro.
Um bálsamo feito da inocência de jovens aranhas, transformadas em aroma que atraía as moscas para uma única teia,
que ficava cada vez mais pesada.
A estranha aranha trabalhava, dia e noite, para que sua
teia pudesse suportar a quantidade cada vez maior de moscas grudadas em sua ilusória armadilha. Anansi achou aquilo
uma insanidade e decidiu ir conversar com a mais nova dona
de todas as moscas da floresta.
Chegando lá, Anansi foi recebida com um delicioso suco
de mosca fresquinho e convidada pela estranha aranha a se
sentar e observar como toda aquela engenharia funcionava. A
nova senhora das moscas disse à Anansi que trabalhava naquela ideia há algum tempo e que lhe parecia genial.
Já havia conseguido criar uma teia tão grande e próspera, que nem lembrava mais da época em que passou fome. O
perfume irresistível, mesmo sendo produzido com os corpos
de inocentes filhotes, dia após dia, deixava de ser visto como
uma escolha cruel e passava a ser o único modo possível de
24
TEIAS DE AFETOS E SABERES
garantir aquela nova vida, livre de preocupações com as incertezas do futuro.
Anansi ouvia atentamente as conclusões da estranha aranha, já pressentindo que aquela invenção colocava todas as
outras aranhas em perigo, sem falar da terrível sensação que
sentia ao pensar que, naquele esquema moedor, seus filhotes
poderiam ter um fim trágico e precoce, apenas para sustentar
o estranho modo de vida daquela aranha que, a cada minuto,
parecia tornar-se mais e mais poderosa.
A dona da teia perfumada de sangue estava feliz e satisfeita, com tamanho progresso que sua escolha arriscada produzia e Anansi, cada vez mais preocupada, decidiu perguntar
o nome daquela irmã que com sua ganância trazia risco para
toda a comunidade: Sou Ilorukó!
Anansi ficou pensativa ao descobrir que o nome da estranha aranha significa exatamente “inominável”. Percebeu que
estava diante de uma transformação na forma como as coisas deveriam ser. Como alguém poderia se referir a si mesma
como “aquela que não tem nome”? Isso a tornava irreconhecível, desencontrada e, portanto, sem limites.
Não passaria muito tempo para que Ilorukó controlasse
alimento acumulado o suficiente para acalmar as revoltas das
aranhas famintas e, doando cestas básicas de moscas frescas,
comprasse o apoio das aranhas e de suas famílias, em nome
de uma vida de abundância irresponsável.
Esse projeto engenhoso e macabro, refletiu Anansi, se continuasse por muito tempo, poderia aprisionar toda a comunidade de aranhas numa ilusão cruel e insustentável. Uma teia,
com uma dona sem nome, que alimentava a todos, consumin-
25
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
do por completo a vida das novas gerações. Uma vida de luxo
e profusão, que trazia, hipocritamente, um terror sem fim. Em
nome de quêm? A troco de quê?
Anansi, então percebeu que, novamente, e por mais uma
vez, sua comunidade precisava de ajuda, ajuda contra a ideia
de que tudo pode ser calculado, até mesmo a relação entre a
morte de inocentes para a boa vida de alguns gulosos. Precisava descobrir uma maneira de convencer a todos que aquela
teia de morte destruía os princípios da vida comum: a reciprocidade e o compartilhar.
Anansi saiu quase fugindo daquela teia da acumulação e,
com sua agilidade de aranha, correu para junto de seu filhotes, os ajuntou próximos a ela e começou a colocar em prática a única estratégia conhecida para quando a gente precisa
lutar contra uma ideia fixa perigosa: Anansi fechou os seus
oito olhos e começou a sonhar. Ela precisava conhecer uma
nova história, porque com a força das histórias seria possível
vencer as armas terríveis de Ilorukó. Anansi precisava sonhar
e, sonhando, lembrar o que queria aprender.
Anansi sonhou, sonhou e sonhou, tanto que teve uma revelação: camaleões, não dois ou três, mas milhares e milhares
de camaleões, sentados, parados, famintos, esperando suas
presas. Suas peles mudavam de cor, metamorfoseavam-se
nas mais variadas cores e texturas, e até brincavam de camaleão fingindo ser camaleão, que logo eram. Tão naturalmente
adaptáveis, tão ao sabor das circunstâncias, revelaram para
Anansi a potência do devir.
Anansi acordou confiante! E porque tinha pressa por seus
filhos, correu como só a ligeireza das pernas de uma aranha
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
é capaz de correr, e foi falar com um velho sábio camaleão
conhecido seu. “Venham, junte todos os seus camaleões e venham comigo, vou mostrar-lhes um banquete farto e infinito!” O velho camaleão desconfiou, mas conhecendo Anansi de
tantos e tantos anos como conhecia, achou que talvez poderia
mesmo ser apenas uma brincadeira, mas aquelas com final
feliz e barriga cheia.
Para dar confiança ao velho camaleão Anansi disse que,
lá na comunidade das aranhas, uma delas havia criado uma
brincadeira de mal gosto que tomou proporções incontroláveis e ninguém mais sabia como sair daquele jogo de ilusão,
ao mesmo tempo em que iam se esquecendo, pouco a pouco,
de que a vida não deveria e nem poderia ser daquele jeito.
Para dar fim ao jogo, então, Anansi e o velho Camaleão concordaram que a melhor maneira seria virar a mesa, destruir o
tabuleiro, subverter as estruturas, ir na raiz, ser radical, tendo
o sonho como guia.
O velho sábio camaleão juntou todos os seus filhos, netos,
bisnetos e tataranetos e contou que havia um banquete preparado para eles, um banquete que deveria ser de todos. Os
jovens da família não resistiram à proposta de irem ver com
os próprios olhos e sentir com as próprias línguas os sabores
mais recheados de sabores do mundo: um banquete de moscas!
Como todos sabem, os camaleões não saem à caça de alimento, preferem usar a estratégia de sentar e esperar. Por
isso, Anansi precisou deixar muito bem explicado que o banquete de moscas estava lá, prontinho, aguardando para ser
devorado e que eles eram muito bem vindos para se alimentarem. E lá foram eles, a tropa de camaleões, guiados por Anansi
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
e pelo velho Camaleão, em direção à teia mais cheia de moscas
que aquela floresta já vira. Ao chegarem em frente ao tesouro
de Ilorukó, ela estava dormindo, tão saciada quanto cansada
daquele trabalho de acumulação sem fim
Os camaleões, ao verem tão pesada teia, adoçada por bálsamo terrível, saturada de moscas, tiveram uma sensação de reconhecimento. Como filhos da natureza que eram, receberam
de bom agrado a fartura trazida pela floresta e começaram a
devorar cada uma das moscas daquele banquete, destruindo
assim, mesmo sem se darem conta, os sonhos de grandeza de
Ilorukó. Que ironia, pensou Anansi, mal sabiam eles do que se
tratava. Ela não compreendia o porquê de tamanha acumulação, do quanto aquilo era contra as leis sagradas dos ancestrais, da reciprocidade e da solidariedade. Mas, como parte
da estratégia, Anansi achou melhor não falar nada, a batalha
estava traçada e sendo executada como da lembrança de um
sonho ela havia aprendido.
Após a comilança, os camaleões, saciados, deitaram e dormiram todos, ali mesmo. E sonharam. Sonharam com a mãe
natureza, em como a floresta, quando em harmonia, não falha
em dar de comer aos seus e se agrada em satisfazer a vontade
de fartura. O sábio camaleão, ao acordar, disse que o sonho o
fez se lembrar de que prosperidade é bom, mas tirar o que deveria ser do outro é contra os ensinamentos ancestrais. Anansi, que ainda não tinha finalizado seu plano, percebeu que o
recado dado tinha endereço certo e foi falar com Ilorukó, que
estava em estado de choque ao ver sua teia destruída.
Anansi carregou Ilorukó para sua própria teia e cuidou dela,
acolheu e ensinou, pouco a pouco, dia a dia, que não é preciso
ter muitas coisas para ser próspera, basta saber receber aqui-
28
TEIAS DE AFETOS E SABERES
lo que te faz realizada. E a realização pessoal é algo que não
se conquista sozinha, é algo que você constrói coletivamente,
pois ninguém se sente reconhecida, importante e satisfeita
sem ser valorizada pela comunidade que ama. Então, Anansi
reuniu toda a comunidade: as aranhas com seus filhotes, os
camaleões, os outros animais e todos os seres da floresta,
para darem a Ilorukó um novo nome. Aquela que não tinha
nome nenhum, passaria a ser chamada de Olamide, que significa “a riqueza chegou”, pois ela receberia, naquele momento,
o reconhecimento de todos e assim ser próspera não pelo que
tem, mas pelo que é. “Eu sou porque nós somos”, disse Olamide, cercada de aplausos e muita gritaria de felicidade.
Desde então, Olamide vive sua vida ajudando a comunidade e compartilhando com todos seus momentos de alegria e
também os de tristeza. Desde então, ela nunca mais passou
por nada sozinha e sempre se lembrava que, tal qual um casamento, na vida em comunidade, nós temos uns aos outros
para conviver, na doença e na saúde, na dificuldade e na fartura. Estava tranquila por isso, enfim. Livre da ansiedade. E
Anansi, aliviada, sorria um riso solto ao brincar com seus filhinhos.
29
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Leandro de Oliva Costa Penha1
Território, escola e
universidade: para além
dos muros e hierarquias2
Um curso gratuito de arte e educação para professores com o
objetivo de “oferecer um espaço de estudo, pesquisa, reflexão,
experimentação e criação a partir de uma perspectiva decolo-
1 Leandro de Oliva Costa Penha é doutorando, com bolsa CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA/USP), sob a orientação da Profa. Dra. Sumaya Mattar. Especialista em Arte na
Educação pela mesma instituição. Integra, como pesquisador, o GMEPAE - Grupo
Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação. Tem experiência como
gestor e arte/educador de projetos culturais e sociais desde 1997. <http://lattes.
cnpq.br/2645606448629936>.
2
Este texto integra a pesquisa de doutorado do autor intitulada, provisoriamente: Entre a escola e a rua: o meio-fio como espaço de potência para as aulas
de arte.
31
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
nial3, que faça frente aos desafios contemporâneos da arte na
educação escolar” (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2022). Uma
ponte estabelecida entre a universidade e a Educação Básica.
Coordenado pela professora Sumaya Mattar e concebido em bases freirianas, desde sua criação pelo Grupo Multidisciplinar de
Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE)4 até a realização com professoras e professores participantes, majoritariamente, trabalhadores de escolas públicas de diferentes regiões
da Grande São Paulo, o curso prezou pela construção do conhecimento em conjunto ou em comunhão, como dizia Paulo Freire,
a partir do encontro de presenças curiosas no mundo.
Pesquisadores-professores integrantes do grupo de pesquisa e professores-pesquisadores que se inscreveram para
o curso ou, de forma sintética, “professores-alunos e alunos-professores” (Latorre, 2021)5 com corpos e mentes dispostos
3 Perspectiva de pensamentos e lógicas que superem a “longa história do mundo
colonial/moderno, a colonialidade do poder, a subalternização do conhecimento e
a diferença colonial” (MIGNOLO, 2020, p. 444). Tal conceito nos convoca a rever as
narrativas dominantes em nossas práticas, de modo a colocar outras referências,
outros relatos em diálogo, sem estabelecer uma hierarquia entre eles.
4 “O Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE/
CAP/ECA/USP) é vinculado ao Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP. De sua composição fazem parte docentes do ensino
superior, estudantes de graduação e de pós-graduação, professores da Educação
Básica, pesquisadores e artistas”. (GMEPAE, 2022). Disponível em: https://www.
gmepae.com.br, acessado em 03 de julho de 2022.
5 Termos utilizados por Luiza Latorre, em seu trabalho de conclusão de curso intitulado Alunos-professores, professores-alunos, orientado pela professora Sumaya
Mattar, submetido, em 2021, ao curso de Licenciatura em Artes Visuais na Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de licenciada em
Artes Visuais. Luiza é integrante do grupo de pesquisa GMEPAE e, juntamente com
Caio Bonifácio (na ocasião, também estudante de graduação), ministrou uma das
aulas do curso Arte e Educação para Professores. Em Pedagogia do Oprimido (2021,
[1970]), Paulo Freire utiliza os termos educador-educando e educando-educador.
32
TEIAS DE AFETOS E SABERES
a criar, dialogar, refletir e experienciar a partir de ações poéticas e pedagógicas, formaram o grupo reunido ao longo de
dois semestres. Aulas-encontros inventadas que convidaram
para reinvenções. Uma formação dentro de um contexto relacional, com a proposta de mobilizar e potencializar saberes e
práticas voltados para o conceito da aula como uma experiência significativa que alimenta a esperança e a capacidade de
transformação nos níveis individual e social. Assim, caracterizou-se o curso de extensão Arte e Educação para professores
– Módulo I e Módulo II, em sua primeira edição, realizada em
2019 e em 2021.
Uma vez que temos refletido sobre a quebra de padrões
coloniais, determinadas nomenclaturas precisam ser avaliadas ou, ao menos, representar temas disparadores de reflexões para mudanças futuras. Se considerarmos uma análise
semântica, “ao estudar o campo associativo de significação”,
como nos convida Paulo Freire em seu livro Extensão ou Comunicação, (Freire, 2021, [1967], p.20-21), por sua natureza,
este curso não se caracteriza como “extensão”, termo que
pode ser relacionado à “transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação etc.”,
conceitos incompatíveis com uma educação de caráter crítico
e libertador. Ao lado de ensino e pesquisa, muitas vezes, o
eixo extensão na universidade é considerado como apêndice,
de menor importância, com menos crédito e, portanto, isolado ou menosprezado. Estender para a sociedade os conhecimentos desenvolvidos dentro da esfera acadêmica? Estender
à população em geral possibilidades de formação? “Estender
da sede do saber até a sede da ignorância?” (ibidem, p. 25).
Uma terminologia permeada por uma hierarquia, em que su-
33
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
jeitas, sujeites6 e sujeitos atives, com postura de superioridade, transmitem conteúdos para outres considerades passives
e inferiores, que se encontram fora dos muros institucionais,
fortalecendo, assim, a lógica de opressão, de dominação e invasão cultural, no caso dos territórios - uma vez que o conteúdo transmitido revela a visão de mundo de quem o leva e se
sobrepõe à visão de quem o recebe. Freire defende a extensão
universitária como ação cultural, um processo dialógico que
envolve a transformação des sujeites envolvides e de questões sociais referentes a cada território específico. Como escreveu Gadotti (2017):
[a] extensão universitária pode tornar-se articuladora das
políticas territoriais, mas, para isso, precisa incorporar os “saberes de experiência feitos” (Paulo Freire) das comunidades,
muitas vezes silenciados, subalternizados e até marginalizados pela academia. A extensão universitária na perspectiva da
Educação Popular precisa começar pela descolonização das
mentes no interior das próprias universidades.
Um dos temas trabalhados no curso foi Arte e seu ensino
para além da escola: meio artesanal, cultura popular, movimentos artísticos e movimentos sociais. No Módulo I, ocorrido no segundo semestre de 2019, participantes tiveram contato, por meio de textos indicados e experiências vivenciadas
em sala de aula e fora dela, com as bases epistemológicas
acerca deste eixo temático, assim como de todos os outros ei-
6 A opção do autor ao escrever o texto é pelo uso da linguagem neutra ou não-binária, com intuito de estabelecer uma comunicação inclusiva e menos sexista
com leitores.
34
TEIAS DE AFETOS E SABERES
xos7, e, no Módulo II, realizado no primeiro semestre de 2021,
em formato remoto, em decorrência da pandemia, elaboraram
aulas voltadas às escolas em que trabalham.
A aula que propus, como um dos educadores da equipe, para
refletirmos juntes sobre o ensino de arte para além dos muros
da escola, foi criada a partir do conceito de território, um tema
central em minha pesquisa de doutorado. Território é:
[o] lugar marcado de um jogo, que se entende em sentido amplo como plataforma de toda e qualquer cultura: sistema de
regras de movimentação humana de um grupo, horizonte de
relacionamento com o real. (SODRÉ, 2002, p.23)
O território como foco da experiência pedagógica, tanto
em termos de produção de subjetividade a partir do reconhecimento das potências do local em que as pessoas vivem,
quanto em termos de valorização de saberes do cotidiano que
não são considerados como conhecimento dentro de uma lógica neoliberal, classista, tecnicista e hierárquica. Conforme
explicita Milton Santos (2000, p.70):
Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso
territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da
7
“Tópicos/Eixos/Temas: 1. Perspectivas e experiências decoloniais em arte e
educação; 2. O ensino de arte no espaço escolar frente aos desafios contemporâneos; 3. A Lei 11.645: culturas indígenas e afro-brasileiras e o ensino de arte; 4.
Arte e seu ensino para além da escola: meio artesanal, cultura popular, movimentos artísticos e movimentos sociais; 5. A docência da arte como práxis criadora; 6.
O projeto político-pedagógico da escola e os projetos poético-pedagógicos dos
professores” (Universidade de São Paulo, 2022). Disponível em: https://uspdigital.
usp.br/apolo/apoObterCurso?cod_curso=270300026&cod_edicao=19001&numseqofeedi=1, acessado em 10 de julho de 2022.
35
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. É desse
modo que, gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se
como um alimento da política dos pobres, que se dá independentemente e acima dos partidos e das organizações.
Na proposta apresentada ao grupo de professoras e professores, refletir sobre o espaço de vizinhança e onde se atua
representou um convite para pensar a cidade para além das
ruas, pontes, viadutos, construções; para refletir a partir das
diferentes culturas territorializadas que a constituem; para
planejar, em termos pedagógicos e artísticos, considerando
que a urbe é composta por espaços territoriais e sociais, com
diferentes marcas, regras e relações; para criar em conjunto
com saberes e fazeres de cada pedaço da cidade, “por onde
fluem novos significados coletivos que expressam as interpretações formuladas sobre as condições de vida na metrópole” (SADER, 1988, p. 121) . Pedaço da cidade, como definiu
Magnani (2013, [1984], p. 116), é o “espaço intermediário entre
o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações
formais e individualizadas impostas pela sociedade”.
Vale ressaltar que as professoras e os professores participantes do curso residem em São Paulo e Grande São Paulo e
atuam em escolas públicas de diferentes pedaços, em diferentes bairros da cidade paulistana como Cidade Tiradentes,
Bom Retiro, Campo Limpo, Butantã, Rio Pequeno, Sapopemba,
Vila Nova Cachoeirinha, Jardim João XXIII, Jaraguá, Perus,
Aclimação, Itaquera, e em cidades próximas, como Francis-
36
TEIAS DE AFETOS E SABERES
co Morato, Diadema, São Caetano do Sul8. Lugares distantes
do centro da grande metrópole, espaços marginais. Segundo
hooks (1989, p.22-23):
Espaços podem contar histórias e desdobrar histórias. Espaços podem ser interrompidos, apropriados e transformados
através da prática artística e literária. (...) Espaço marginal
não é um lugar de dominação, mas um lugar de resistência,
de abertura e de possibilidade radicais, (...) continuamente
formado nessa cultura segregada de oposição que é nossa
resposta crítica à dominação9. [tradução nossa].
Se para a tese investigo “projetos poético-pedagógicos”
(Moraes, 2002) de professores em diálogo com os territórios
onde as escolas em que atuam estão inseridas, com o curso
8 Os bairros, em sua maioria, estão localizados nas periferias da cidade de São
Paulo. Informação obtida a partir de questionário criado pelo autor, em formato
Google Forms, respondido pelas professoras e participantes do curso entre setembro e outubro de 2020.
9 “Spaces can be real and imagined. Spaces can tell stories and unfold histories.
Spaces can be interrupted, appropriated, and transformed through artistic and literary practice. (...) I make a definite distinction between that marginality which
is imposed by oppressive structures and that marginality one chooses as site of
resistance - as location of radical openness and possibility. This site of resistance
is continually formed in that segregated culture of opposition that is our critical
response to domination.”
37
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
de atualização10, pude ampliar a questão. Com a pesquisa, o
interesse encontra-se nas frestas que existem nos muros que
separam escolas e territórios. A possibilidade de reflexão propiciada pelas aulas do curso e a elaboração deste texto me
fizeram perceber as barreiras que separam a universidade da
cidade como um todo, a distância que, de forma generalizada, existe entre universidade e territórios vulneráveis socialmente, entre universidade e escola pública. Assim, somam-se
à investigação novas indagações: de que forma a integração
entre universidade, escola e território pode contribuir para
novas epistemologias relacionadas ao ensino de arte? Como
a extensão, como eixo acadêmico, pode contribuir para a formação de professores de escolas públicas?
Para a concepção de uma aula que pode ser a primeira de
uma sequência didática acerca do tema território, a rua foi escolhida como célula do sistema urbano, como local do coletivo, da vida em comum, da manifestação pública, da democracia. Em contraposição, o corpo como lugar da identidade, do
subjetivo, do íntimo, da constituição individual, que ocupa e,
artisticamente, ressignifica, o espaço público. Quando a brincadeira de rua vira dança foi o título da proposição poética e
10 Os cursos de extensão na ECA USP são oferecidos nas seguintes modalidades
e carga horária mínima: especialização, com 360 horas; aperfeiçoamento, com 180
horas; atualização, 30 horas, e, difusão, com quatro horas. O curso de atualização
“visa difundir o progresso do conhecimento em determinadas áreas ou disciplinas.
(...) É destinado aos interessados em rever e aprimorar suas atividades profissionais, além de interagir com profissionais da área. Destina-se ao melhoramento da
capacitação profissional.” (Universidade de São Paulo, 2022). O curso Arte e Educação para Professores é constituído por dois módulos com 15 aulas prático-teóricas
semanais de quatro horas, totalizando uma carga de 60 horas cada um.
Disponível em: https://www.eca.usp.br/ccex/cursos-e-oficinas, acessado em 10 de
julho de 2022.
38
TEIAS DE AFETOS E SABERES
pedagógica que realizamos em 06 de novembro de 2019 utilizando a sala B3 e o quintal do Departamento de Artes Plásticas (CAP)11, tendo a brincadeira de rua como matriz para experimentos cênicos. Como defende Hugo Cruz (2015, p. 538):
[a] apropriação de espaços como ruas, escolas, mercados,
praças, que são por excelência espaços de uma comunidade,
facilita e enriquece o exercício de transposição entre o real e o
imaginado, exatamente porque o processo artístico acontece
nos espaços onde se deseja que aconteçam as mudanças.
Partir das brincadeiras ocorridas ao ar livre, do corpo presente em estado de expansão e diversão no espaço urbano, é relembrar uma das primeiras estruturas organizadoras pelas quais
construímos nossas relações coletivas na infância. Brincar é liberdade, é autonomia, é pertencimento, é expressão, é investigação e criação de mundo. Maria Amélia Pereira (2016) reitera:
É no exercício do corpo em movimento que o brincar rompe
com as limitações desse mesmo corpo, numa aliança com a
imaginação, permitindo o intercâmbio livre entre o sujeito e
o objeto. Dentro dessa verdadeira dança, o brincar se afirma
como uma conduta pensante, produto de um complexo comportamento que tem origem no corpo.
Tendo a rua como ambiente e a brincadeira de infância na
memória, o corpo físico em diálogo com o corpo social, a dança, o desenho e a música foram as linguagens artísticas escolhidas para o encontro. De forma coletiva, investigamos o
corpo que dança brincando e que brinca dançando. Um corpo
11 Dependências do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA / USP).
39
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
que transita do singular ao plural, do individual ao coletivo,
explorando-se e explorando o meio em que está. Os objetivos
da aula eram: explorar a relação do(s) corpo(s) no espaço urbano; inspirar processos de criação de experimentos cênicos
com base no brincar, e provocar reflexões sobre a rua como
campo de aprendizagem e experimentação artística.
Para a realização deste encontro foram utilizados os seguintes materiais: uma bobina de papel branco 60cm x 20m,
50 lápis de cores variadas, três conjuntos de canetas hidrográficas, diferentes tipos de papel, cinco envelopes, retalhos,
gravetos, sementes e um microsystem, onde foram reproduzidos CDs com diferentes músicas.
A aula foi dividida em três momentos:
Momento 1: Desenho e memórias de infância e do bairro
onde cresceu; desenvolvido na sala de aula, com duração de
40 minutos.
• Desenho ou colagem: cada participante pôde concentrar-se em um pedaço de um grande rolo de papel estendido no
chão. Com diversos materiais distribuídos em cima e ao lado
deste suporte (lápis de cor, cola, retalhos, diferentes tipos de
papel, tesoura, sementes, canetas), criou uma obra inspirada
em uma brincadeira de rua de sua infância. O título da obra se
baseou no nome da brincadeira. Ao fundo, uma música instrumental que atravessou séculos: “Cânone em Ré Maior”, um
cânone do compositor alemão Johann Pachelbel, com violoncelo e piano.
• Com os trabalhos expostos, a turma apreciou todas as
obras como em uma galeria e foi convidada a se dividir em
quatro subgrupos, com cinco integrantes em cada um, tendo
40
TEIAS DE AFETOS E SABERES
como critérios as afinidades, aproximações e similaridades
entre os títulos ou entre as imagens.
Imagem 1: Desenho – lembranças da infância.
Fonte: GMEPAE, 2019.
Momento 2: Brincadeira e corpos dançantes, desenvolvido no
quintal, um espaço aberto, com jardim, existente nas dependências do CAP, com duração de três horas.
• Uma ou um integrante de cada subgrupo ensinou a brincadeira que havia relembrado para suas e seus colegas. Os
subgrupos brincaram e realizaram as trocas até que todes do
grupo tivessem vivenciado todas as brincadeiras. Este momento, intencionalmente, teve duração de 80 minutos para que os
corpos atingissem um estado de expansão e dilatação. Foram
realizadas, aproximadamente, 20 brincadeiras diferentes.
• Cada integrante escolheu um movimento corporal que realizou em cada brincadeira, ou seja, selecionou cinco movimentos e criou uma sequência coreográfica. Ao som de diferentes músicas e ritmos, todes, simultaneamente, dançaram
suas criações individuais ao ar livre.
41
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
• Cada integrante escolheu apenas um dos cinco movimentos e ensinou para seu subgrupo. O subgrupo criou uma célula
coreográfica com cinco movimentos e uma estrutura de início,
meio e fim, que foi apresentada à turma com uma das músicas
escolhidas pelo grupo, interferindo, poeticamente, no espaço.
Ao final, todes dançaram juntos em um único grupo, inspirados pelas coreografias criadas ao som da música do início da
aula, “Cânone em Ré Maior”, de Johann Pachelbel.
Momento 3: roda de reflexão sobre aprendizados e inspirações para aulas realizadas em espaços públicos próximos às
escolas onde atuam e/ou em diálogo com a história pessoal e
a cultura local.
• Cada grupo recebeu um envelope com frases retiradas das
referências bibliográficas12 que foram utilizadas como convites disparadores para uma reflexão em roda a partir do que
foi vivenciado, de modo a produzir conhecimento de forma
coletiva, aliando teoria e prática. Para Paulo Freire, “é a consciência da experiência que podemos chamar conhecimento”
(apud BARBOSA, 2010, p.12).
Em seu trabalho de conclusão de curso, Luiza Latorre (2021,
p. 22-24), após analisar as entrevistas que realizou com participantes do curso, concluiu sobre esta aula específica: “Acho
interessante como uma aula pensada para crianças foi potencializada quando realizada para um grupo de adultos, posto
que, dessa vez, a memória e a nostalgia embalaram a experiência de todos”. Outros comentários presentes nas entrevis-
12
Ver Apêndice 1.
42
TEIAS DE AFETOS E SABERES
tas aparecem em seu texto:
Parecia que a gente estava fazendo várias coisas divertidas, e
no final, a gente estava aprendendo várias coisas, movimentos, e acho que essa é outra forma de elaboração também.
(BONIFÁCIO, C., 2021, informação verbal)
Achei incrível como pequenos atos remontados a partir das
memórias de infância de cada um deram movimentos às danças criadas naquela aula. Mesmo eu que sou completamente
travado de timidez me senti solto durante aquela atividade e
consegui me expressar. (RAMOS, R., 2021, informação verbal)
Uma continuidade desta aula poderia estar vinculada a
mestres populares, com conversas presenciais ou vídeos,
por meio dos quais a turma trocasse saberes e fazeres sobre
construções de brinquedos tradicionais e/ou dinâmicas do
universo das danças populares brasileiras.
Ao final do Módulo I, do qual fez parte a aula descrita, algumas ideias foram apresentadas pelas professoras e pelos
professores participantes, no sentido de orientar seus projetos poético-pedagógicos: desenho e livro de uma turma de
alunos da escola; teatro com dança e poesia; a sala de aula
não é uma caixa; documentário sobre os propósitos dos alunos; brinquedos dos avós (resgate das práticas ancestrais),
tramas e territórios (ocupar a praça com arte); pesquisa a partir do simbolismo das portas da escola; histórias indígenas
a partir de histórias de vida; criação de um cineclube; intercâmbio entre escolas por meio da troca de cartas; histórias de
vida com mosaico; ritos e tradições; a cultura surda; criação
de currículo com os saberes das famílias do território.
Em virtude do contexto pandêmico, o Módulo II do curso
43
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ocorreu, em formato remoto, no primeiro semestre de 2021,
o que impactou na adaptação, suspensão ou adiamento dos
projetos pedagógicos criados por participantes.
Como previsto no planejamento do curso, as aulas do segundo módulo foram criadas, planejadas e ministradas por
professores participantes. A cada encontro, o grupo vivenciava duas proposições pedagógicas criadas por diferentes profissionais. Entre as aulas era realizado um pequeno intervalo.
Pesquisadores, coordenadores e integrantes do GMEPAE,
que no Módulo I eram responsáveis pelas aulas, participavam
destes novos encontros como educandes. Ao final de cada encontro era realizada uma roda de reflexão, com comentários,
observações, sugestões de todo o grupo a partir da experiência vivenciada com intuito de colaborar para que cada profissional realizasse, posteriormente, sua proposição na escola
em que trabalhava, com um pensamento ainda mais aprofundado acerca de sua criação pedagógica e artística.
Algumas destas aulas apresentaram diferentes possibilidades de ensino e aprendizagem de arte na escola pública em
diálogo com o território. Para este texto, priorizei duas propostas de professores13 que residem e trabalham em bairros
distantes do centro da cidade de São Paulo e que, em seus
planejamentos pedagógicos, enfatizam a cultura local e a arte
que está enraizada nestes pedaços da cidade.
A Expressividade do grafitti foi o título da aula criada pelo
professor Fernando Lima Ramos, que reside em Itaquera e
trabalha com turmas de Ensino Fundamental II e Ensino Mé-
13
Tais profissionais autorizaram o uso e a publicação dos dados.
44
TEIAS DE AFETOS E SABERES
dio em escola estadual situada na zona leste, mais especificamente, no bairro Cidade Patriarca, distrito de Vila Matilde. Sua
aula foi realizada em 05 de maio de 2021, de forma remota,
pela plataforma Google Meet, com os alunos-professores do
Curso Arte e Educação para Professores, e em 02 de fevereiro
de 2022, em formato presencial, para alunes das três diferentes séries do Ensino Médio na escola pública onde trabalha. A
base de sua proposição apoiou-se nos pilares de uma linguagem artística originariamente periférica, de suas experiências como aluno e de seus anseios como educador dedicado e
atento às necessidades des educandes.
Como docente ao longo de 10 anos nas escolas públicas de
São Paulo, pude observar que as necessidades dos jovens, em
sua grande maioria, são basicamente as mesmas que eu ansiava há décadas, quando eu também era apenas mais um estudante da rede pública. O anseio de ser escutado, de ter voz.
Por quem eles são escutados? (RAMOS, 2021, p.1)
Em seu plano de aula, descreveu os principais momentos
do seu planejamento:
Começaremos com a música Azul da Cor do Mar14 do cantor
Tim Maia, que servirá de inspiração para o trabalho prático.
Após apresentada a música, assistiremos a um vídeo do artista Dingos, e mostrarei imagens de produções de artistas para
os alunos, tais como: Keith Haring, Jean Michael Basquiat, Os
Gêmeos, Binho, Banksy, Odeith, Tioch e Jeinst One. Também
será explicada, de forma resumida, a história do graffiti. Por
último, com base no início da letra da música (Ah, se o mundo
inteiro me pudesse ouvir...), os alunos desenharão, utilizando
14
Ver Anexo 1.
45
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
a estética do graffiti, o que gostariam que as pessoas escutassem deles. As obras serão expostas e discutiremos sobre
cada uma delas. (RAMOS, 2021, p. 2)
Ao compartilhar imagens de grafittis de São Paulo, do Brasil e do mundo, por meio de fotografias projetadas e de um
vídeo, Fernando convidou as turmas, tanto no formato remoto quanto no presencial, a ampliarem o olhar para o espaço
externo, para o espaço público, para a rua e para os muros.
Simultaneamente, a partir da letra da canção, convocou a expressividade do sujeito, nos convidando a entrar em contato
com sonhos, desejos, angústias, denúncias, com nossas lutas
e nossas buscas. Uma proposta pedagógica que não somente
valoriza a arte urbana com a integração de diferentes linguagens - música, vídeo e desenho – como investe no sentido
e no propósito do grafitti como forma potente de expressão,
reconhecimento e identidade.
Em um momento em que estávamos impedidos de irmos
para a rua, em 2021, pelo contexto pandêmico, Fernando trouxe a rua para dentro da aula. Partiu da letra de uma música e
chegou a letras desenhadas, expressando sentimentos. Palavras expressando profundos desejos de mudança e esperança
foram apresentadas e compartilhadas, com traços inspirados
em uma arte democrática. Ao final do encontro, tínhamos um
painel com uma diversidade de traços, tipos de letras, cores
e uma pulsão coletiva voltada para a transformação social.
Na aula presencial alguns alunes escolheram não participar
da atividade de desenho. Fernando considerou os tempos,
ritmos e características de cada grupo. Para o educador, “foi
uma experiência compensadora e desafiadora que deu muito
certo nas duas turmas”.
46
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 2: Exercício realizado na aula do professor Fernando Lima.
Fonte: Acervo pessoal, 2021.
Silvania Francisca de Jesus, residente do bairro Piqueri, é
professora de um Centro de Integração de Educação de Jovens
e Adultos (CIEJA) da Rede Municipal de Ensino de São Paulo,
em Perus, zona noroeste da cidade de São Paulo. Enalteceu o
bem-estar a partir da natureza, o contato com a terra, o olhar
para o quintal, a ação das mãos na horta, o regar as plantas
em vasos que, muitas vezes, são trocadas entre vizinhes, em
decorrência de suas propriedades medicinais. Segundo ela, “é
comum, nos corredores da escola, se ouvir a partilha de receitas entre os estudantes sobre o tratamento de diferentes moléstias. O conhecimento sobre as ervas, as plantas que curam,
por parte dos estudantes de EJA é bastante relevante”.
Ao fecharmos os olhos por alguns segundos, concentrados
neste cenário, quase podemos ouvir: - Capim-limão tem no
quintal da Dona Ana; pede arruda pra dona Cida que ela te
47
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
dá um raminho; o Tonho sarou foi com aquele trem da flor
branca cheirosa. Muitas são as frases repletas de sabedoria
que ouvimos ao caminhar entre as ruas das comunidades ou
entre os corredores da escola. Tradições familiares, religiosas, crendices populares, processos de cura, tratamentos e
terapias em conexão com a natureza. O convívio comunitário
repleto de solidariedade fortalece a rede de cuidado e de proteção em territórios periféricos.
A aula de Silvania para a turma do curso de extensão, intitulada Conhecendo as ervas medicinais, uma farmácia no nosso
jardim, ocorreu, em formato remoto, em 7 de abril de 2021, e
teve como objetivos: ampliar o conhecimento ancestral dos
estudantes sobre o uso das ervas medicinais; apresentar os
diferentes tipos de ervas medicinais; motivar estudantes a registrarem as receitas de chás e xaropes em um livro com ilustrações das ervas, tendo o decalque15 como técnica ou outra
técnica de escolha da turma, e fomentar a leitura e a escrita
de textos curtos informativos e instrucionais. (JESUS, 2021, p.
1). A aula foi iniciada com música cantada por ela, seguida por
um poema16 de Rosenir Gonçalves Neves, publicado no livro
Xacriabá de plantas medicinais: fonte de esperança e mais
saúde, e finalizada com cantiga da curandeira baiana Maria
Redonda, ao som de instrumento de percussão tocado por
Tiago Neves, marido de Elaine Santana, outra participante do
curso. Tudo por meio de janelas das plataformas digitais de
videoconferências.
15
“A arte aqui é usar as folhas por baixo do sulfite, e passar o giz de cêra de
forma que as nervuras e texturas da folha apareçam no papel.” (JESUS, 2021, p.1)
16
Ver Anexo 2.
48
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Previamente, por e-mail enviado pela professora, a turma
foi convidada a escolher uma erva medicinal e preparar o próprio chá. Ao iniciar o encontro, Silvania nos perguntou: - que
erva você tem aí? Que relação você tem com ela? Por que a
escolheu? Tem memória de algum chá que alguém preparou
para você? Boldo, manjericão, camomila, erva-cidreira, capim-limão, hortelã, alecrim, louro, peregum, melissa, aranto, babosa, ora-pro-nóbis, sálvia e unha-de-gato apareceram nas
histórias e lembranças contadas. Os vínculos familiares, a figura de avós, tias, mães, pais e filhos foram destaques durante os diálogos estabelecidos.
Por meio das memórias afetivas compartilhadas por cada
participante, a experiência virtual ganhou ares de uma roda presencial, tamanha ativação de diferentes sentidos, troca de afeto,
de aprendizados e de revelações sobre o estado de encantamento, pertencimento e calmaria obtidos. Um elo estabelecido entre
as pessoas por meio do ritual do chá. Uma ruptura do estado
de isolamento e distanciamento em que nos encontrávamos naquele momento da história. “Um Círculo de Cultura17 se criou”,
conforme sintetizou Silvania, inspirada em Paulo Freire.
Pude perceber (...) a transversalidade que esta prática nos
propôs em ter um olhar para diferentes áreas do conhecimento, muito perceptíveis na oralidade, pois são saberes passados de mãe para filha, de vó para neta, de bisavó para bisneta.
(...) Os assuntos que surgiram passaram pela ancestralidade e
experiência com o sagrado de cada participante ao degustar o
17 “Os Círculos de Cultura eram espaços em que dialogicamente se ensinava e se
aprendia. Em que se conhecia em lugar de se fazer transferência de conhecimento.
Em que se produzia conhecimento em lugar da justaposição ou da superposição de
conhecimento feitas pelo educador a ou sobre o educando. Em que se construíam
novas hipóteses de leitura do mundo.” (FREIRE, 2019, [1994], p.192)
49
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
chá, a escuta atenta dos demais, o acolhimento da diversidade de experiências e memórias afetivas que brotaram a cada
fala. (...) A metodologia usada atravessou a tela do notebook,
dos celulares e os participantes entraram na roda de aromas,
sabores diversos dos deliciosos chás saboreados durante a
aula. (JESUS, 2021, p.4).
Imagem 3: Professora Silvania Francisca de Jesus em sua aula remota
Conhecendo as ervas medicinais, uma farmácia no nosso jardim
Fonte: GMEPAE, 2021.
Em um exercício de reflexão, após a conclusão da aula e da
roda de avaliação do grupo, a professora notou que muitas
50
TEIAS DE AFETOS E SABERES
memórias foram resgatadas para ressignificar saberes que as
pessoas traziam em seus repertórios. O ajuste que Silvania
propôs para o formato presencial incluiu, em seu plano pedagógico, as histórias de vida de cada estudante e teve o jardim
da escola e as hortas comunitárias em parques municipais
como possíveis locais para a realização da aula.
O centro da reflexão do projeto pedagógico é o fio da história de vida de cada estudante, baseado em sua trajetória e
nos lugares por onde passou. Portanto, esse trabalho retrata,
geograficamente essas pessoas, que na circularidade dialogam, se deparam com suas semelhanças e diferenças. (...) Na
educação de jovens e adultos, muitos verbos permeiam as falas dos estudantes e o esperançar, assim como pontua Paulo
Freire, ‘esperança do verbo esperançar’, dá ânimo para não
desistirem de seus sonhos. (JESUS, 2021, p. 5-6)
A intencionalidade de fortalecer subjetividades e facilitar a
troca de saberes entre as pessoas a partir do que dominam e
reconhecem como seus saberes cria uma rede coesa de sociabilidade e engajamento com as questões sociais e culturais
do bairro. Equipe pedagógica e gestores debruçam-se sobre a
história do território, estabelecem parcerias com instituições
e coletivos locais, de modo que, o planejamento das ações envolva a população atendida. “Aqui os estudantes conseguem
se sentir pertencentes ao mundo educador. (...) Para nós, acolher e dialogar com o território significa acolher e dialogar
com esses estudantes” (JESUS, 2021, informação verbal)18.
18
Informação fornecida por Silvania Francisca de Jesus em entrevista concedida ao autor, realizada em formato remoto, pela plataforma de videoconferência
Google Meet, em 10 de dezembro de 2021.
51
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Como podemos notar, território está inserido como tema em
algumas propostas de profissionais que participaram do curso
de extensão, o que demonstra, de algum modo, a ressonância e
a repercussão da proposta. Para Bachelard (1993, p. 187)::
As ressonâncias se dispersam nos diferentes planos da nossa
vida no mundo, a repercussão nos chama a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância, ouvimos
o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso.
As repercussões notadas, sobretudo por depoimentos, entrevistas e conversas com participantes durante e após a realização do curso, ocorrem progressivamente a cada contato. Ainda
em 2020, primeiro ano de pandemia - com as aulas nas escolas
públicas realizadas em formato remoto e todas as dificuldades
advindas deste formato, como falta de acesso para alunes, sobrecarga de trabalho para professores e diretores, um panorama
de tragédia com um número crescente de óbitos diariamente em
todo o país, além do aumento dos índices de pobreza – participantes do curso revelavam que temas tratados no Módulo I continuavam permeando suas práticas. Alguns conteúdos citados
nas entrevistas fechadas foram: questões étnico-raciais, questões de gênero, memória, educação antirracista, poéticas pessoais, histórias de vida, culturas indígena e africana, o vínculo
entre prática pedagógica e criação artística.
Uma professora que atua com Ensino Infantil concluiu:
Acredito que a abordagem do primeiro módulo, onde nos foi
apresentada e oferecida a experimentação de diversas possibilidades artísticas e culturais, com reflexões essenciais sobre questões sociais e educacionais, foi de extrema utilidade
nesse momento do trabalho remoto, pois além de ser possível partilhar essas aprendizagens e reflexões ao longo desse
52
TEIAS DE AFETOS E SABERES
período, também foi possível colocar em prática em diversas
propostas idealizadas pelo meu grupo de trabalho, onde a
arte esteve presente em todos os momentos, com propostas
inspiradas em diversos artistas contemporâneos, indígenas,
mulheres, onde procuramos trabalhar questões étnico raciais,
de gênero, histórias, memórias, utilizando diversas possibilidades artísticas. (informação pessoal)19
Ao final do curso, em registros avaliativos, uma das tônicas
apresentadas por participantes foi a importância em termos
de conhecimento apreendido e em relação aos desdobramentos no exercício do ofício como professores. Silvania e Fernando relataram:
Os dois módulos do curso abriram horizontes, um presencial
e o outro on-line, e possibilitaram revisitar minha prática e a
dos colegas, sonhar novas trajetórias, alinhar ideias, arriscar
a expandir o sonho de uma prática crítico-libertadora na educação de jovens e adultos. (JESUS, S., 2021, p.8)
O encaminhamento que foi dado em cada encontro trouxe
para mim novas possibilidades que eu utilizei com os meus
estudantes. Estou usando agora, na EJA, fazendo a aula virtual para alguns estudantes que não podem no presencial e isso
está funcionando. (...) A metodologia (do curso) me marcou.
(JESUS, S., 2021, informação verbal)20
19 [...] Consulta à turma do Curso de Extensão Arte e Educação para Professores
- Módulo II. Destinatário: Leandro de Oliva Costa Penha. [São Paulo], setembro.
2020. Formulário eletrônico. O formulário, criado pelo autor, foi elaborado de forma a garantir o anonimato de todas, todos e todes que responderam.
20 Informação fornecida por Silvania Francisca de Jesus em entrevista a Leandro
de Oliva Costa Penha, realizada em 04 de agosto de 2021, em formato remoto, por
meio da plataforma de videoconferência Google Meet.
53
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Antes de ingressar no Curso de Arte e Educação para Professores, eu nunca tinha escutado falar em decolonialidade, e
posso ir muito mais além: nunca questionei os processos históricos apresentados ao longo dos anos, pautado na visão eurocêntrica. (...) Os conhecimentos e experiências adquiridos
no curso me propiciaram um novo olhar para a escola, mais
humano e empático, valorizando tempos, ações e contextos.
Foi uma mudança completa na minha forma de enxergar processos históricos, percursos formativos, construção coletiva
de saberes. Transformou minha prática pedagógica e a forma
de observação perante os discentes. Lacunas onde habitava o
desânimo foram preenchidas pela esperança de fazer a diferença na educação pública. (RAMOS, F., 2021, p.8-9)
Vimos, assim, como são significativas as ressonâncias e
reverberações em diferentes contextos de um curso gratuito
voltado para atualização docente em arte, ao convidar professoras e professores da Educação Básica, assim como pesquisadores, estudantes, educadores e artistas integrantes de um
grupo de estudo, pesquisa e extensão de uma universidade
pública, para um espaço de troca de saberes e fazeres, que
convoca o alinhamento entre teorias e práticas pautadas na
emancipação, na criação, na diversidade, na crítica e na transformação de realidades. Um processo colaborativo de formação em que a reflexão e o diálogo são as chaves da aprendizagem com base na experiência.
Retomo a problematização do início do texto sobre extensão e território periférico como margens. É preciso transcender as margens com aprendizados aliados às práticas em diferentes realidades por meio dos estágios supervisionados,
como ocorre com as propostas de organização do estágio de-
54
TEIAS DE AFETOS E SABERES
senvolvidas pela professora Sumaya Mattar nas disciplinas21
do curso de licenciatura em Artes Visuais no CAP USP e em
projetos de ensino, como o Subprojeto Arte do Programa de
Residência Pedagógica - CAPES USP22, por exemplo, assim
como com atividades síncronas e assíncronas, de modo que o
acesso à formação docente seja democratizado, como ocorre
com o projeto de extensão Matizes: diversidade na roda da
arte/educação,23 iniciativa igualmente coordenada pela professora Sumaya Mattar, criada por estudantes da licenciatura
em Artes Visuais, em 2021.
Outra perspectiva é fortalecer a margem, inseri-la no centro das pautas, com políticas afirmativas, com cursos centrados em trabalhadores dos serviços públicos, em um público
que está fora do universo acadêmico - inclusive pelo histórico
classista da universidade - na população que sofre discriminação e exclusão social, política e econômica, como negres,
indígenas, pobres, desempregades, homossexuais, travestis,
21 Refiro-me especificamente às disciplinas: Metodologias de Ensino das Artes
Visuais com Estágios Supervisionados (I e II), ministradas pela professora Sumaya Mattar. (GMEPAE, 2022). Disponível em:
https://gmepae.com.br/disciplinas/graduacao, acessado em 24 de julho de 2022.
22
“O Subprojeto Arte é parte do Projeto Institucional da USP de Residência
Pedagógica e visa contribuir para a superação da distância entre teoria e prática
na formação de futuros professores dos cursos de licenciatura em arte da Escola
de Comunicações e Artes da USP” (GMEPAE, 2022). Disponível em: https://gmepae.
com.br/projetos/residencia-pedagogica-capes-usp-subprojeto-arte-inicio-2020/,
acessado em 24 de julho de 2022.
23 “O projeto Matizes promove o diálogo com educadores, artistas e pesquisadores em torno das temáticas étnico-raciais, diversidades e interseccionalidades na
arte e educação, sob uma perspectiva decolonial.” (GMEPAE, 2022).
Disponível em: https://www.gmepae.com.br/projetos/matizes-diversidade-na-roda-da-arte-educacao/, acessado em 24 de julho de 2022.
55
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
refugiades, deficientes e pessoas idosas.
Urge que o diálogo, o afeto, o cuidado, o acolhimento, a
escuta ativa, o olhar para questões individuais e coletivas sejam princípios orientadores das relações e das políticas de
permanência nos ambientes formativos para garantir que as
pessoas concluam suas formações e integrem uma rede capaz
de produzir conhecimento de forma sensível. O curso Arte e
Educação para professores efetiva tal proposta.
Durante os módulos do curso foi estabelecido um ambiente
de diálogo e criação pedagógica e artística sem hierarquia de
saberes. Todes - pesquisadores, professores, coordenadores,
graduandes e graduades, pós-graduandes e pós-graduades aprendendo e ensinando de mão dadas, em círculo, no chão,
em cadeiras, sempre com olhos nos olhos, em sala de aula ou
por meio de câmeras, quando foi necessário. Uma iniciativa
democrática em todas as etapas de criação e realização. As
adversidades, que porventura tenham ocorrido, foram acolhidas pela coordenação e pelo grupo. Soluções foram encontradas coletivamente.
Territórios valorizados em propostas pedagógicas, professores dedicades nas mais diversas circunstâncias e situações,
um exercício constante de investigação de si e do mundo, em
conjunto com parceires de profissão de, praticamente, todos
os níveis e modalidades da Educação: trabalhadoras e trabalhadores da Educação Infantil, da Educação Fundamental, de
Ensino Médio, de Educação de Jovens e Adultos, de Educação
Especial e de Ensino Superior. Profissionais engajades, social
e politicamente, com clareza sobre o papel e a função social
da universidade pública e ávides por prosseguirem com o
processo formativo em um ambiente acadêmico:
56
TEIAS DE AFETOS E SABERES
É importante que a universidade pública dê oportunidade
para todos, principalmente para aqueles que vêm da periferia.
(...) Eu pensei até em desistir do curso por ser remoto (no módulo II). Eu achei que eu não ia dar conta, por não ser o meu
perfil. (...) Como eu já tinha encarado isso como um desafio,
como uma grande oportunidade estudar na Universidade de
São Paulo - mesmo porque eu pretendo continuar estudando, pretendo ingressar, de repente, em um mestrado, quem
sabe em um doutorado - eu falei: - é importante para mim,
vou continuar, mesmo que seja difícil o modo on-line. E me
surpreendeu. (...) Foi uma coisa mais tranquila, mais leve, (...)
foi muito bom. (...) Até me ajudou a prestar atenção em como
estavam sendo minhas aulas com os alunos no modo on-line. Como era on-line eu ficava muito preso na teoria, tive um
pouco de medo de trabalhar prática e eu percebi: no curso a
gente faz a coisa prática mesmo on-line, então, acho que dá
para trabalhar com os alunos e aí rolou. Foi legal também, foi
bacana. (RAMOS, F., 2021, informação verbal)24
Eu sempre tive o sonho de fazer qualquer curso na USP. Sempre achei a USP um território bem longe de mim, bem longe da
minha prática, da minha realidade. (...) A universidade pública, para mim, tem um papel importante para abrir espaço para
aqueles que ficaram muito tempo fora da universidade. (...)
Eu me sinto essa pessoa, que jamais imaginava que iria fazer
um curso numa universidade pública e hoje consegui ingressar num doutorado numa faculdade renomada como a USP. A
formação que eu tenho pela faculdade pública, hoje, ela me dá
um aporte teórico muito bom, ela me ampara na teoria, mas,
eu sinto que ela ainda precisa mergulhar dentro das práticas
das escolas para trazer novos conhecimentos. (...) Precisa ter
24
Informação fornecida por Fernando Lima Ramos em entrevista ao autor,
realizada em 10 de agosto de 2021, por meio da plataforma de videoconferência
Google Meet.
57
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
esse bem viver entre a universidade e a escola, o chão da escola. (JESUS, S., 2021, informação verbal)25
As palavras de Silvania soam como uma convocatória para
todes nós que buscamos construir e colaborar com outras histórias, criadas a partir do rompimento ou do abalo aos muros, físicos e simbólicos, visíveis e invisíveis, que foram erguidos para
separar territórios periféricos, escolas públicas e universidade.
Ao nos debruçarmos sobre os planejamentos pedagógicos
e sobre as reflexões posteriores às aulas que foram ministradas no curso e nas escolas públicas, nos deparamos não
com modelos, formatos e receitas a serem seguidos, copiados
ou reproduzidos, mas com um caleidoscópio de propostas autorais que podem inspirar outras criações, com proposições
potentes em termos de formação humana, de valorização da
arte como um direito, de um olhar crítico para o sistema e do
exercício pleno da cidadania na democracia.
Como considerações finais, vale retomar as questões que
orientaram este texto e as pistas encontradas. De que forma
a integração entre universidade, escola e território pode contribuir para novas epistemologias relacionadas ao ensino de
arte? Nos dois módulos realizados houve um empenho para
estabelecer uma proposta de ensino e aprendizagem contra
hegemônica, um modelo não conteudista, com relações dialógicas entre discentes e docentes. Planos de aula foram criados, não reproduzidos por professores; elaborados com base
25 Informação fornecida por Silvania Francisca de Jesus em entrevista ao autor,
realizada em 04 de agosto de 2021, por meio da plataforma de videoconferência
Google Meet.
58
TEIAS DE AFETOS E SABERES
em referências teóricas e práticas indicadas na bibliografia do
curso e ampliadas com outras apresentadas por participantes, o que ampliou os repertórios individuais. As proposições
eram seguidas de reflexões, com base em registros e em debates entre o grupo, antes de novas ações pedagógicas. Um
amplo conjunto de produções artísticas foi elaborado, de forma individual e coletiva, ao longo das aulas. A construção de
conhecimentos ocorreu a partir da somatória de saberes acadêmicos e não acadêmicos, considerando a potência dos territórios periféricos. Potência esta que se manifestou, no curso,
nos saberes e nas tradições culturais mobilizadas por professores e pesquisadores, mas que também pode se expressar
na produção artística, na capacidade de enfrentamento às duras condições de vida, na valorização da cultura local, na produção e realização de eventos populares, no surgimento de
inúmeros coletivos de ação e de intervenção social e urbana,
na sociabilidade e solidariedade como elementos aglutinadores de uma vida em comunidade. Tal como apontado em diferentes estudos (como Nascimento, 2009 e Hamburger, 2011),
as produções culturais da periferia se constituem como manifestações contundentes no cenário contemporâneo e ajudam
a criar um sentido positivo e de pertencimento a um tipo de
território que antes estava apenas associado à pobreza, à violência e à precariedade de infraestrutura e serviços.
Outra questão que orientou os percursos deste relato de experiência: como a extensão, como eixo acadêmico, pode contribuir para a formação de professores de escolas públicas?
Com oferta de cursos com acesso gratuito, envolvimento de
docentes e discentes de graduação e de pós-graduação, inscrições abertas a professores da rede pública de ensino, vagas
preenchidas a partir da política de diversidade étnico-racial e
59
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ações afirmativas, que foi como se deu a seleção dos participantes, divulgação realizada com apoio de Diretorias Regionais
de Educação, metodologia pautada na criação pedagógica e artística, assim como no afeto, no cuidado e na troca. Também
ao estabelecer conexões entre teoria e prática e considerar as
características de cada realidade, a extensão universitária tem
muito a somar em termos de formação continuada.
Por suas características, o curso Arte e Educação para Professores, criado e organizado pelo GMEPAE, apresenta-se como
uma ação cultural, como propôs Paulo Freire. Mobiliza-nos a
seguir em frente quando constatamos a potência existente nas
frestas. Agir com a intenção de causar rachaduras, de abrir espaços, de apontar caminhos e ações para criarmos sentidos de
outras formas – que o sistema totalitário insiste em perseguir
e destruir – é dever de todas as partes que buscam viver em
uma sociedade mais justa e com melhores condições de vida
para todes. Que a produção de conhecimento resultante das
relações horizontais entre territórios, escolas e universidades
seja cada vez mais uma regra e não uma exceção.
REFERÊNCIAS
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Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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internacionais. São Paulo: Cortez, 2010.
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Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 23ª. edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021.
60
TEIAS DE AFETOS E SABERES
____________. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e
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GADOTTI, Moacir. Extensão Universitária: Para quê?. Instituto
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representação da e na urbe paulistana. In: KOWARICK, L.; MARQUES, E. (orgs.). São Paulo: novos percursos e atores. São Paulo:
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. 4p. Mimeo.
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Visuais) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
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MAGNANI, José G. C. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na
cidade. São Paulo: Hucitec/UNESP, 2003.
MORAES, Sumaya Mattar. Aprender a ouvir o som das águas: o
projeto poético-pedagógico do professor de arte. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo, 2002.
61
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
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saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2020.
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Coleção Tramas Urbanas. Rio de Janeiro, Aeroplano/Fapesp, 2009.
PEREIRA, Maria Amélia. O toque e três histórias. Catalonia.org,
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RAMOS, Fernando Lima. Desdobramentos sobre o Curso de Formação para Professores, da ECA/USP. Curso de Extensão Arte e
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SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena:
experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo
(1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
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Acesso em 10 de julho de 2022.
APÊNDICE 1
Referências para a aula QUANDO A BRINCADEIRA DE RUA VIRA
DANÇA, criada por Leandro de Oliva Costa Penha, especialmente
para a turma de 2019 do Curso de Extensão Arte e Educação para
Professores.
62
TEIAS DE AFETOS E SABERES
BENJAMIN, Walter. A criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Summus, 1984.
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2000.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira
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________________. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez Editora, 1999.
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XAVIER, Uxa. Lagartixa na janela - Mapas para dançar em muitos
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CENTRO DE REFERÊNCIA CULTURA INF NCIA. Entrevista Lydia Hortélio. Youtube, 17 de novembro de 2015. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=VgobqqhlbSk>.
ITAÚ CULTURAL. Memórias da infância – Ocupação Lydia Hortélio
(2019). Youtube, 19 de julho de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=UKyEyf2FGzQ>.
MEMÓRIAS DO FUTURO. Peo - Maria Amelia Pereira - Casa Redonda. Youtube, 11 de abril de 2013. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=A7x33gzfYEs>.
63
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ANEXO 1
AZUL DA COR DO MAR
canção de Tim Maia
Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir
Tenho muito pra contar
Dizer que aprendi
E na vida a gente tem que entender
Que um nasce pra sofrer
Enquanto o outro ri
Mas quem sofre sempre tem que procurar
Pelo menos vir achar
Razão para viver
Ver na vida algum motivo pra sonhar
Ter um sonho todo azul
Azul da cor do mar
Mas quem sofre sempre tem que procurar
Pelo menos vir achar
Razão para viver
Ver na vida algum motivo pra sonhar
Ter um sonho todo azul
Azul da cor do mar
64
TEIAS DE AFETOS E SABERES
ANEXO 2
AS PLANTAS MEDICINAIS
poema de Rosenir Gonçalves Neves
As plantas medicinais
Combatem doenças e dores
Só temos de conhecer
Seus verdadeiros valores
Quem entende desta arte
Descreve parte por parte
Para explicar aos leitores
Tudo o que Deus criou
Já nasce com seu valor
Não sou contra farmácia
Nem hospital nem doutor
Mas se existissem as reservas
Das matas com suas ervas
Não havia tanta dor
Vamos procurar conhecer
As plantas medicinais
Seguindo um pouco do exemplo
Que deram os nossos pais
Pra ver se sobram alguns trocados
Pois só com remédio comprado
A gente não aguenta mais!
65
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Vinícius de Azevedo1
O tecido dos nossos
sonhos: o bordar na
formação docente
Nossa história começa com uma bordadeira que bordava o
dia inteiro para sustentar seus filhos. Fazia pássaros, flores
e borboletas e vendia na aldeia perto de sua casa, mas como
ganhava muito pouco pelo seu trabalho, precisava trabalhar
arduamente de sol a sol para garantir, minimamente, o alimento para sua família.
Por ter que trabalhar tanto, não tinha muito tempo para
sonhar, nem para pensar em seus desejos, seus propósitos,
1
Vinícius Souza de Azevedo. Arte-educador, bordador e narrador de histórias,
doutor pela ECA/USP, na linha de pesquisa Fundamentos do Ensino e Aprendizagem da Arte (2020). Atualmente, trabalha com formação continuada de professores de arte junto ao Instituto Arte na Escola e como professor conteudista do
Centro Universitário UNINA.
67
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
seus projetos. Apenas trabalhar, trabalhar, trabalhar...
Um dia, depois de vender seus bordados, resolveu dar uma
volta na aldeia, para procurar alguma promoção de comida e
gastar menos dinheiro. Foi assim que ela encontrou o bordado
mais lindo que havia visto na vida! Estava pendurado na frente
de uma rica loja de tecidos finos e representava uma paisagem
toda bordada em fios de seda, ouro e prata! Uma preciosidade...
Ali, olhando aquele rico trabalho, rememorou seus desejos, voltou a pensar em seus propósitos como bordadeira e a sonhar...
Voltando para casa, foi lembrando de um antigo desejo, um
bordado o qual ela sempre quis realizar, mas nunca tivera tempo para dedicar a tal empreitada. E no caminho, foi pensando
que nunca era tarde para realizar projetos e decidiu: a partir
daquele dia, além dos bordados costumeiros, dedicaria tempo
aos seus próprios desejos, mesmo que tivesse que bordar até
altas horas da noite, não havia problema, desde que conseguisse realizar seus verdadeiros propósitos como bordadeira.
Seu bordado seria uma linda paisagem também, como
aquela que havia visto na aldeia, porém, ela faria um lago, com
uma casa às suas margens e um belíssimo canteiro de flores.
E coroando toda a composição, um lindo pôr-do-sol! Antes de
qualquer coisa, ela precisava decidir quais materiais usaria
para realizar tão importante trabalho. Primeiro de tudo, qual
o tecido serviria de suporte? Deveria ser fino e elegante para
trazer sofisticação ao trabalho, mas também precisava ser forte e resistente, pois queria que fosse um bordado que durasse
muito e muito tempo. Qual tecido suportaria seu desejo?
Após algumas reflexões, ela tomou sua decisão e, junto
com ela, decidiu também sobre as linhas e as agulhas que
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
usaria, adequadas ao suporte escolhido. E então, iniciou seu
bordado: realizou o risco do desenho, a partir do qual desenvolveria todo o trabalho e, conforme ia desenhando, também
planejava o conjunto de pontos que usaria para construir a
imagem: aqui, entra muito bem o ponto haste; já nesta parte, seria mais adequado o ponto matiz; nesta outra, o ponto
corrente; nesta, o ponto caseado. Assim, aos poucos, foi desenhando e elaborando toda a sua proposta de trabalho, o qual
duraria muito tempo, pois se tratava de um desenho complexo e cheio de nuances, uma ótima expressão de seu desejo.
O movimento realizado pela bordadeira não foi uma ação
qualquer, tratou-se de um ato de reconexão, de atualização dos
sentidos de sua prática. Rememorar os propósitos é um movimento salutar para o desenvolvimento de um processo de formação imbuído de significados e carregado de potência. Exatamente por isso, nossos primeiros movimentos nesse curso de
extensão foram no sentido de provocar situações e práticas que
estimulassem os participantes a este movimento: lembrar de si,
de suas trajetórias, daquilo que mobilizou e ainda mobiliza.
Particularmente, no campo do ensino da arte esse processo
de rememorar é fundamental, pois geralmente, as escolhas
feitas durante a trajetória de cada um e cada uma esteve carregada de significados especiais e, além disso, trata-se de um
campo de conhecimento em que a poesia é a matéria-prima
principal e a memória, desta maneira, se amalgama com elementos poéticos e experiências que trazem (ou podem trazer)
a dimensão estética.
Depois de provocar os participantes a pensar e escrever sobre suas trajetórias, e a pensarem nos propósitos que mobili-
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
zaram e mobilizam sua prática docente, produzimos cadernos
artesanais, os quais seriam a base para todo o processo reflexivo que viria ao longo dos encontros subsequentes e que
poderiam auxiliar os participantes na construção de seus processos formativos. Mas para além disso, a produção em si dos
cadernos representou uma primeira experiência muito potente
de formação de grupo, de partilha de materiais e conhecimentos, de construção coletiva de saberes, uma experiência muito
objetiva, pois voltava-se para algo prático (fazer um caderno),
e também muito significativa, visto que já vinha imbuída de
toda uma reflexão sobre a trajetória de cada um e cada uma.
A primeira “encomenda” que fizemos para o caderno foi que
anotassem logo nas primeiras páginas o propósito elaborado
anteriormente e que chegassem a uma síntese visual desse
propósito, por meio de uma imagem que o expressasse.
Após a realização do caderno, narramos “O bordado encantado” (PERROTI, 1996), conto tradicional chinês, o qual inicia
este relato. Interrompemos a narração com a pergunta: “qual
tecido suporta seus desejos?” A mesma que a bordadeira fez
quando decidiu dedicar tempo ao seu projeto, provocando os
participantes a realizarem uma transposição das imagens/
sínteses de seus propósitos para um bordado a ser realizado
por todos e todas. Assim como a bordadeira na história, provocamos os participantes a pensarem nos elementos que materializariam seus propósitos, trazendo o bordado como via
poética e expressiva.
O bordar possibilita o que temos chamado de “atenção distendida” (AZEVEDO, 2020), uma qualidade de concentração
em que o sujeito que borda dinamiza seu foco de atenção,
ora se voltando para aquilo que borda e mantendo o contexto
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
à sua volta mais difuso, ora ao contrário, se voltando para o
contexto e mantendo o bordado mais difuso. Isso é possível
porque o bordar se realiza ponto a ponto, em um movimento lento e repetitivo que, aos poucos, vai configurando uma
forma. Essa ação repetitiva poderia se transformar em ato
mecânico, reificado e vazio, de um fazer estéril, alienado e desatento. Porém, o que acontece é exatamente o oposto, pois
o bordar nos provoca a prestar atenção, exatamente por ser
um movimento repetitivo, o qual requer pequenas tomadas
de decisões a cada novo movimento.
Qual a posição em que devo inserir a agulha no tecido?
Quanta pressão devo exercer na linha para que o ponto fique
em uma forma satisfatória? Qual a distância entre um ponto e
outro? São perguntas tácitas que a bordadeira faz enquanto
realiza o bordado, perguntas cujas respostas se tornam formas
de pensar, mas principalmente, maneiras de agir e que configuram o próprio bordado. Esse pensar/fazendo que o bordado
proporciona é o que gera uma distenção na atenção, pois se
trata de uma cognição que se dá pela ponta dos dedos, por assim dizer, o que, de certa forma, acaba propiciando uma abertura para outros focos de percepção e até de pensamento.
Nossa tese é a de que esse estado, de atenção distendida,
proporcionado pelo bordar, produz um campo muito profícuo
para o desenvolvimento de propostas formativas, pois é um
processo organizador para o sujeito, na medida em que o vai e
vem da agulha e da atenção tornam todo o trabalho muito mais
orgânico e conectado com o tempo de cada um e cada uma.
A partir então da proposição de se bordar os propósitos dos
participantes, instauramos esse tempo alongado na dinâmica
dos encontros que se seguiriam, provocando todos e todas a ex-
71
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
perimentarem a atenção distendida na vivência e acompanhamento das propostas que viriam a partir de então. Uma proposta
que trazia a confluência de dois fluxos fundamentais: a participação coletiva em um compartilhamento de conhecimentos; e a
materialização dos propósitos em uma imagem/síntese.
O envolvimento dos participantes foi notório e pode ser observado na sequência de imagens abaixo, em que é possível
acompanhar o mergulho que experimentaram, mesmo durante os outros encontros, aproveitando-se da atenção distendida pelo bordado para mergulhar nas propostas que vieram
depois. Nas legendas, é possível observar a data da foto, para
acompanhar o desenrolar dessa experiência ao longo do curso.
Imagens 1, 2 e 3: Aula do curso de extensão no dia 04 de setembro de 2019.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 4: Aula do curso de extensão no dia 11 de setembro de 2019.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 5 – Aula do curso de extensão no dia 09 de outubro de 2019.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagens 6 e 7: Aula do curso de extensão no dia 30 de outubro de 2019.
Imagens 8 e 9: Aula do curso de extensão no dia 27 de novembro de 2019.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Para nós, a realização da proposta de trabalho com o bordado durante o curso de extensão representou uma oportunidade única, pois estávamos em pleno processo de elaboração de
nossa pesquisa de doutorado, cuja tese central é exatamente
a instauração do bordado como tempo/espaço propício à formação docente, pela sua capacidade de distender a atenção
e de provocar processos reparadores aos sujeitos que nele
se envolvem. Ao observar os desdobramentos de nossas propostas no curso, pudemos perceber a dinâmica e a potência
dessas relações, experimentando um contexto novo, a partir
do qual pudemos verificar os sentidos intrínsecos à nossa
pesquisa.
Ao mesmo tempo, participar da proposta geral do curso,
a qual representou um grande passo no conjunto de ações e
reflexões do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em
Arte e Educação (GMEPAE), visto que não apenas nos aproximamos de forma direta e contínua de um significativo grupo de docentes, como também, e principalmente, tivemos a
oportunidade de atuarmos juntos na elaboração e execução
de todo o curso. Uma iniciativa realmente coletiva, na qual a
construção de sentidos, a realização dos fazeres, a proposição
de experiências se deu eminentemente em grupo, com o grupo e pelo grupo.
Encerro este relato comentando sobre o prazer que foi trabalhar de forma muito próxima com a Profª Drª Sumaya e a
Profª Drª Clarissa, com quem compartilhei a elaboração dessa
pequena sequência de propostas formativas, que incluiu os
relatos autobiográficos, a definição do propósito, a elaboração dos cadernos, a criação da imagem/síntese do propósito
e sua transfiguração por meio do bordado. Grandes parceiras,
com quem aprendi (e aprendo) muito e pude dividir a cons-
77
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
trução desse conjunto de experiências que iniciou o curso em
sua primeira edição, em 2019. Obrigado!
Referências
AZEVEDO, Vinícius Souza de. Roda de bordar: atenção distendida
em espirais na formação de professores de arte. 2020. 418 f. Tese
(Doutorado em Arte). Escola de Comunicações e Artes (ECA). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2020.
BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Paulus,
1992.
MATTAR, Sumaya. Práticas de registro e processos de ensino-aprendizagem da arte. Cadernos de registro Macu. Edição nº 10.
1º semestre de 2017a. p. 6-15.
PERROTI, Edmir. O bordado encantado. São Paulo: Paulinas, 1996.
SUZUKI, Clarissa. Cadernos de artista: páginas que revelam olhares da arte e da educação. 2014. 134 f. Dissertação (Mestrado em
Arte). Escola de Comunicações e Artes (ECA). Universidade de São
Paulo (USP), São Paulo, 2014.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Fernando Lima Ramos1
Desdobramento sobre o
Curso de Formação para
professores, da ECA/USP
Toda experiência nos transforma, e momentos críticos fazem
aguçar a criatividade que, por si só, já é transformadora.
Se manter motivado na docência não se limita somente a
estar fazendo o que gosta, o que se identifica, pois, a docência exige reflexão, criação, diálogo, uma busca incessante por
novos conhecimentos.
A falta de motivação no quadro do magistério não é algo
surpreendente e vários motivos podem ser apontados, que vão
desde a falta de incentivo financeiro e de aprofundamento aos
1
Fernando Lima Ramos. Formado em Artes Visuais pela universidade Cruzeiro
do Sul, é docente da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo, há onze anos.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
estudos, até a inexistência de um plano de carreira que funcione verdadeiramente. Porém, ficarei limitado a comentar apenas sobre a falta de motivação por conta do comodismo e do
desânimo para criar aulas mais atrativas e melhorar o próprio
desempenho. Esse foi o foco para a minha busca por mudanças.
Para se desenvolver, o ser humano necessita das relações
interpessoais e de trocas, compensações. O cansaço, a rotina, levam à falta de interesse, o que reflete diretamente no
desenvolvimento, uma inércia criativa. Quando tudo que se
faz não o desafia, a tendência é que se perca a vontade nesta
ação. No caso do docente, nada do que já foi falado foge à
regra. Posso dizer pela experiência de dez anos atuando como
docente na Rede Estadual de Ensino de São Paulo, que recém-formados que ingressam no quadro do magistério tendem a
idealizar mais e a trabalhar com maior ânimo e empenho em
comparação aos docentes com mais tempo na função.
Com o tempo, e tudo que o envolve, o processo criativo do
professor entra em estagnação, não há vontade, e tudo começa a girar em torno de algumas ações que, por terem apresentado êxito em algum momento, se tornam repetitivas, inflexíveis e imutáveis, que não mais o satisfaz, e é nesse momento
que o professor começa a perder o sentido da sua docência.
A prática docente não pode ser reduzida apenas à transmissão de conteúdo. Há criação em todo o processo de preparo das aulas, dos materiais que serão utilizados, da proposta
pedagógica e da metodologia que será utilizada. Todos estes
processos colocam o professor em igualdade, por exemplo, a
um artista. Há conceitos, formulações e objetivos, há um percurso de conhecimento teórico-prático criado pelo professor,
que exige a capacidade criativa do docente.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 1: Questionamentos (Colagem e tinta sobre papel).
Sonhos... o que seria da vida se às vezes não pudéssemos
sonhar? Grande parte dos docentes que conheço relatam que
desde cedo, desde a infância/adolescência, já vinham despertando a vontade de lecionar, de estar à frente de uma sala
de aula. Muitos não imaginavam a problemática que isso envolve, o tratar com pessoas, o processo de ensino-aprendizagem, a parte burocrática, enfim, diversas competências além
do que inicialmente pensavam. No meu caso foi tudo muito
diferente, pois nunca, em momento algum durante o meu percurso formativo até o término do curso de arte visuais, criei
tal expectativa.
Fiz este relato em uma atividade proposta pela professora
Sumaya no curso de extensão Arte e Educação para Professo-
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
res, da ECA/USP, onde deveríamos criar um relato autobiográfico de formação, no qual cada aluno do curso deveria pensar
e relatar toda sua trajetória até o processo de atuação docente. Até este relato, eu não conseguia compreender o que me
trouxe até à docência. Cheguei a imaginar que foi sorte, ou
até mesmo falta de opção, já que com um diploma de licenciado em Artes Visuais eu não teria tantas opções, e as que
se apresentavam teriam expedientes aos finais de semanas e
feriados, tais como mediadores em museus e galerias, e atrapalhariam as minhas questões pessoais.
Com este relato, consegui chegar à conclusão de que nada
foi um mero acaso. É inacreditável como tudo parece ter sido
planejado desde sempre, que existia uma linha que me conduziu até aqui.
Imagem 2: Busca (Colagem e bordado em tecido).
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
É fato que, como professor, eu nunca me senti preparado
para trabalhar com as questões indígenas, africanas e afro-brasileiras, não por não as achar importantes, mas por pouco
conhecimento e receio de tocar neste tema tão importante de
forma equivocada. Mas como não falar destas culturas se são
elas que são as bases mais sólidas da cultura brasileira? Aliás,
ela não existiria sem as contribuições indígenas e africanas.
Não abordar estas culturas é ignorar a formação do povo brasileiro, o que não faz nenhum sentido e carece de lógica.
É importante citar que no ano de 2008 foi promulgada a lei
número 11.645, que torna obrigatório em todo o ensino básico o conteúdo das culturas indígenas e africanas. Essa lei veio
como ação afirmativa para compensar danos históricos às populações afro e indígena. Neste mesmo ano de 2008, estava eu
ingressando no curso de licenciatura em Artes Visuais, porém,
não me recordo de nenhuma menção ao caso. Lembro de estudar sobre cultura indígena, mas sem muito aprofundamento.
Imagem 3: Caderno/ Livro de artista.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
O Brasil é um país onde 54% da população é negra, segundo
dados do IBGE 2010, ou seja, mais da metade dos brasileiros.
Também vale lembrar que fomos a última nação das Américas a
abolir a escravidão, tendo hoje um pouco mais de cem anos deste fato. Cem anos de abolição não são suficientes para reparar
trezentos anos de sofrimento e massacre, pois, os reflexos deste
terror histórico são sentidos ainda hoje, no nosso cotidiano. O
racismo ainda é presente na sociedade brasileira, e suas estruturas estão ligadas a desigualdade social e de direitos.
Dentro deste contexto também temos os povos indígenas
(ou originários), que também sofreram atrocidades, desde
violência física a processo de aculturamento e perda de territórios. São povos que resistem e insistem em manter suas
tradições, apesar de todos os ataques que sofreram e sofrem
ainda hoje, pois, não há como não mencionar neste texto o
retrocesso cometido com o atual governo no que se refere a
terras indígenas (vide o marco temporal).
Imagem 4: Fênix (Xilogravura).
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Toda cultura é dinâmica e formada por processos históricos, e toda história tem dois lados (ou mais). Pensar de forma
crítica e questionadora sobre o processo histórico brasileiro é
de suma importância para nos tornarmos mais conscientes de
que sempre nos foi passada a estreita versão do colonizador.
Quem foi colonizado dificilmente aparece nos livros didáticos
para contar a sua versão, pois são corpos invisibilizados e falas silenciadas. Estas problemáticas aparecem nas escolas e
nas formações de professores? Não sei dizer.
Antes de ingressar no Curso de Arte e Educação para Professores, da Escola de Comunicações de Arte da Universidade
de São Paulo (ECA / USP), eu nunca tinha escutado falar em
decolonialidade, e posso ir muito mais além: nunca questionei os processos históricos apresentados ao longo dos anos,
pautado na visão eurocêntrica. É incrível poder observar a
história de um ponto de vista totalmente oposto ao que nos é
apresentado em todo o ensino básico.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 5: Luz e sombra (Fotografia).
Os conhecimentos e experiências adquiridos no curso me
propiciaram um novo olhar para a escola, mais humano e empático, valorizando tempos, ações e contextos. Foi uma mudança completa na minha forma de enxergar processos históricos, percursos formativos, construção coletiva de saberes,
transformou minha prática pedagógica e a forma de observação perante os discentes. Lacunas onde habitava o desânimo foram preenchidas pela esperança de fazer a diferença na
educação pública.
Estar em uma classe lecionando é aprender a cada dia, é
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
trocar experiências, informações e conhecimentos, é vivenciar conflitos e procurar uma maneira de solucioná-los, é repensar sobre rotina e estagnação, e sempre (re)surgir com
novas ideias e ações, testando as possibilidades, errando e
acertando. Acreditar na educação como ferramenta transformadora e de inclusão social, de aprendizagem e processo, autonomia e liberdade, resistência, diálogo e comunicação, são
os principais propósitos para enfrentar as dificuldades diárias
e diversas no contexto da escola pública.
Referências
Reparação Histórica. Disponível em: https://tab.uol.com.br/edicao/
reparacao-historica/#page2, acessado 08/09/2021 às 19:50.
Dez Expressões racistas que você fala sem perceber. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=E_BjYPOE3ag, acessado
em: 08/09 às 19:10.
HOOKS, bell. Altares do sacrifício: Relembrando Basquiat. Disponível em: https://piseagrama.org/altares-do-sacrificio , acessado
em 12/09/2021, às 11:10.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Silvania Francisca de Jesus1
Itinerários artísticos
interculturais: relato
de vivências
Tudo começou com uma mensagem que chegou em minha
caixa de e-mails no primeiro semestre de 2019. Um convite
para me inscrever num curso de extensão em Arte e Educação
para Professores na ECA/USP - Módulo I 2019. As aulas ocorreram no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP, às quartas-feiras, dia certo para
trilhar uma experiência incrível de muito aprendizado, com
1 Silvania Francisca de Jesus, professora, contadora de histórias, arte educadora,
educadora Griô e pesquisadora de diferentes culturas voltadas para a literatura,
música e brincadeiras de roda. Encantada pela cultura indígena, africana e afro-brasileira. É doutoranda no programa Diversitas - FFLCH/USP com o estudo sobre
o processo educativo do povo guarani M’bya através das canções.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
pessoas maravilhosas. Não me recordo por onde veio o convite, talvez, pela escola onde lecionava.
Não demorei para decidir, preenchi o formulário, mas sem
expectativa de conseguir realmente uma vaga. O que me chamou a atenção foi o recorte étnico- racial que o curso trazia em
seu conteúdo programático e o fato de ser voltado para o público de educadores e professores de Rede Pública. Além disso,
o horário estabelecido para a realização das aulas, contemplava minha rotina que costuma acumular muitas demandas.
Ao chegar à primeira aula, minha cabeça estava a mil, por
estar iniciando uma aproximação com duas crianças para uma
provável adoção. A acolhida pela equipe do curso e dos colegas participantes foi cuidadosa, afetiva, calorosa. A vontade
de realizar um curso na faculdade de artes da USP era um desejo muito sonhado há alguns anos, porém estava aguardando a oportunidade.
O formato do curso se deu na circularidade e no compartilhamento de ideias e vivências de cada participante. A equipe
de educadores - Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE ECA / USP) e professores
convidados - conduziu cada encontro com grande sabedoria,
acolhendo a participação dos integrantes do grupo, a maioria
professores de arte de Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio,
tendo também professores de Educação Infantil e EJA. Era um
grupo bastante heterogêneo, o que possibilitou ricas trocas
de práticas pedagógicas diferenciadas e experiências.
O conteúdo do curso estava centrado na apresentação de
ferramentas e aportes artísticos para apoiar os professores
em suas práticas, de arte ou não, realizadas na escola, com
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
seus estudantes. Cada participante tinha que pensar seu projeto voltado para a realidade de seu espaço de atuação.
Diante desta orientação, esbocei meu primeiro projeto cartográfico, após realizar alguns exercícios de cartas cartográficas propostas pela equipe do curso. O desafio foi grande, pois
não estava habituada a esboçar desenhos ou criar contornos
que se aproximassem um pouco do que eu estava considerando como um pré-projeto ou proposta a ser trabalhada com os
estudantes de EJA.
Imagem 1: Primeiro esboço do projeto.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Como ressalta a professora Sumaya Mattar em seu artigo O
ato cartográfico na docência da arte: Instaurando estados criativos de experimentação apresentado no 3º ANPAP em 2017,
[a] cartografia, aqui compreendida como conjunto de ações
de registro, delineamento e criação de territórios e itinerários
reais ou imaginários, configura-se como um campo dinâmico que possibilita imprimir sentido temporal e topológico aos
percursos pessoais de formação e ao trabalho de planejamento de ensino, um campo capaz de englobar todas as práticas
que proponho, cujo ápice é o processo de criação didática. (...)
(MATTAR, 2017, p. 3.279).
Com esse propósito me debrucei sobre minha criação, um
pouco confusa, mas tendo foco nos estudantes com quem iria
experimentar e construir novos saberes. E assim ficou.
Imagem 2: Projeto artístico das possíveis ações pedagógicas a serem
desenvolvidas com as turmas de alfabetização da EJA, no CIEJA - Perus.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
A construção desse trabalho, exigiu muita reflexão e escuta
atenta nas rodas de conversa e produção coletiva do conhecimento durante a formação do Módulo I e foi se concretizando
no Módulo II.
Muitos momentos marcantes aconteceram nesse curso e
me arrisco a desenhá-los a seguir. As atividades propostas
marcaram corpos e mentes, olhares, ouvidos, com tanta maestria e arte que não é possível esquecer. Foi significativo o
desafio da criação, de se arriscar a olhar sua trajetória, revisitá-la, refazer caminhos, se permitir.
Um destes momentos é a proposta da confecção do caderno de registro proposto por Clarissa, logo nas primeiras aulas do curso, que mobilizou o grupo. Muita arte e criatividade,
atenção e concentração para aproveitar cada instante vivido,
experimentado.
Imagem 3: Confecção dos cadernos de registro com Clarissa.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Em cada página do caderno há um singelo traço do projeto que me propus a fazer, a trilhar nesse curso tão potente
e provocante. São itinerários que atravessaram o campo da
imaginação e da prática pedagógica.
Importante refletir sobre cada experiência vivida que buscou trazer para as rodas, diferentes traços das culturas indígenas e das culturas afro-brasileiras. As rodas de diálogo com
os convidados proporcionaram apresentar aos professores
possibilidades de revisitarem suas práticas. Muitos relatos,
desabafos, fortaleceram os laços entre os colegas de profissão e de expectativas para construírem juntos outros olhares
sobre as demandas esperadas numa prática pedagógica, que
proporcionasse a construção coletiva do conhecimento.
Foi valioso o convite para registrar cada expressão, despertando a sensibilidade sobre o que se ouve, e se vê, permitindo
construir uma relação dialógica com todo o processo vivido.
A fala dos professores e orientadores (estudantes de licenciatura e pós-graduação) convidava os professores a voltarem seus olhares, para o que compreendo, como práticas
pedagógicas decoloniais. A decolonialidade permeou grande
parte dessa formação, possibilitando novos desdobramentos, a cada encontro vivenciado intensamente e inteiramente
pelo grupo. Fato também importante foi a escolha dos autores
como aporte teórico para o curso, compondo a bibliografia indicada para leitura e estudo.
Nas falas do mestre Alcides, fomos envolvidos por conhecimentos que não estão registrados em livros, mas brotam
da sabedoria da vida, uma experiência traçada por vínculos
afetivos. Os traços de oralidade presentes em seu fazer pedagógico, colocou o grupo frente a um novo modelo de cons-
95
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
truir conhecimento, que é a prática metodológica da Pedagogia Griô. Uma pedagogia facilitadora de rituais e vínculos na
produção do conhecimento coletivo.
Mestre Alcides aponta caminhos, sugere possibilidades de
envolvimento dos educandos em torno de um saber, um saber
vindo dos mestres de tradição oral, do mestre griô. A arte que
atravessa corpos como o jogo da capoeira, ferramenta ancestral de trabalho do mestre Alcides. Com a capoeira ele revisita
sua própria história de vida e acorda tantas histórias e memórias de quem o ouve.
Imagem 4: Cada fio traçado nos encontros proporcionou um novo
olhar, um novo sentido para o projeto de prática que vai brotando, vai
tomando corpo.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Projeto de prática, um olhar de cuidado para os estudantes
da EJA
Ao traçar esse projeto de prática com a arte e educação voltada para a alfabetização de adultos, pontuei cada encontro
em que os convidados compartilhavam suas experiências e
vivências na arte com a educação. A fala deles foi alimento
para minhas reflexões, com meus pensamentos atravessados
por questionamentos nada fáceis de responder. Passei por
momentos difíceis, confrontando a realidade dos estudantes
com a proposta do projeto. Alinhar os pontos para que os objetivos realmente alcançassem todos os sujeitos.
Resultou, então, em colocar como centro da reflexão do
projeto pedagógico o fio da história de vida de cada estudante, baseado em suas trajetórias e nos lugares por onde passaram. Portanto, esse trabalho retrata geograficamente essas
pessoas, que na circularidade dialogam e se deparam com
suas semelhanças e diferenças.
Imagens 5 e 6: O traçado do fio dos sonhos de estudantes que após
passar tantos anos fora do itinerário das letras, da escrita, arrisca lançar
mão no lápis e enfrentar o desafio de alcançar os seus sonhos.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Nas rodas de discussão em sala de aula com os estudantes,
muitas memórias foram resgatadas para ressignificar o saber
que eles trazem em sua bagagem. Essa é uma das atividades
que o projeto propõe, tendo como objetivo a escuta atenta
aos anseios dos estudantes.
Imagem 7: Conjugando o verbo ESPERANÇAR
Na Educação de Jovens e Adultos muitos verbos permeiam
as falas dos estudantes e o esperançar, assim como pontua
Paulo Freire, “esperança do verbo esperançar”, dá ânimo para
não desistirem de seus sonhos.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagens 8 e 9: Sensibilização no caderno de registros – modos de ver e
sentir.
Imagem 10: Apreciação dos cadernos de registro, como fazer uso dele
nos encontros formativos.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Assim como nos fios tecidos por Anansi, a aranha contadora de histórias, o projeto foi se delineando, criando forma
através da escuta atenta dos colegas, enfim do grupo.
Imagem 11: Partilha dos saberes de cada professor sobre seu fazer
pedagógico. Praticar a escuta atenta à palavra do outro que comunga ou
dialoga, soma com o seu fazer.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagens 12, 13 e 14: Momentos de aprendizagem e troca de saberes.
Imagens 15 e 16: Bordado do projeto.
Os dois módulos do curso abriram horizontes, - um presencial e o outro on-line - , e possibilitaram revisitar minha prática e a dos colegas, sonhar novas trajetórias, alinhar ideias,
arriscar a expandir o sonho de uma prática crítico-libertadora
na Educação de Jovens e Adultos. A educação liberta o sujeito
como ressalta Paulo Freire, a arte liberta mentes e corpos, independente da linguagem artística.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Referência
MATTAR, Sumaya. O ato cartográfico na docência da arte: instaurando estados criativos de experimentação. In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26º., 2017,
Campinas. Anais do 26º. Encontro da ANPAP. Campinas: Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, 2017. p.3277-3291.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Francisca do Val1
Memórias de um tempo
feliz e estranho
Introdução, meu percurso
Sou servidora pública, aposentada, pintora, bióloga-zoóloga. Nasci livre, cresci sem sapatos, descalça, subindo em árvores com crianças caiçaras e da nossa família. Fui professora
na pós-graduação do Museu de Zoologia, durante 40 anos,
criei alguns cursos de iniciação e de extensão universitária, o
último curso para funcionários não-docentes do Instituto de
Biociências da USP.
Trabalho com insetos, principalmente com as drosófilas, - mos-
1
Francisca Carolina do Val é Bacharel em Pintura pela Escola de Belas Artes
S. Marcelina; doutora em Ciências pelo Departamento de Zoologia e livre docente pelo Departamento de Biologia. Pós-doutorada em Genética na University of
Hawaii. Responsável pela disciplina “Evolução dos animais ao nível de espécie”.
Publicou “Drosófila, a mosquinha famosa”, em 2007, pela editora Terceiro nome.
104
TEIAS DE AFETOS E SABERES
quinhas das bananas-, que são importantes organismos modelos,
usados inclusive para a compreensão de fenômenos humanos.
GMEPAE 1
Participei dos encontros do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE) a convite da coordenadora, professora Sumaya Mattar, durante cerca de dez
anos. Aprendi muito, sendo uma ouvinte alienígena (bióloga,
cientista acadêmica) na Escola de Comunicações e Artes. Os
alunos da licenciatura percebiam o autoritarismo na hierarquia do saber, o desperdício da cultura coletiva, em favor da
monocultura colonizada, a necessidade de encarar o negacionismo do dissenso na sala de aula, contra o foco na produtividade e no consumo viciante. Ainda não havia respostas,
mas a reflexão entre as alunas e alunos causava um desconforto positivo, tirando as/os estudantes da letargia utópica.
Eu nunca antes havia participado de uma equipe tão diversificada de longa duração, com educadoras e pesquisadores no
campo das artes. Havia um sentimento forte para garantir a
permanência da Arte nas escolas. A formação de professores/
as deveria resultar na autonomia intelectual, cultural e gerencial, além da didática. A formação deveria ser orientada
contra a experiência unificada na ecologia do saber, contra
o saber científico e diferente da moral ocidental; pensar na
“ecologia do sul”, nas pedagogias “congadeiras” e indígenas,
criar imagens desestabilizadoras contra a moral antiga. Em
2018, acompanhei o Ciclo Afro-indígena organizado por duas
professoras ex-pós-graduandas (Clarissa e Maria) para professores da Rede Pública de Ensino. Foi uma experiência inusitada para mim; um verdadeiro mergulho no universo que eu
desconhecia. Entre os convidados pela a Professora Clarissa,
eu me identifiquei muito com o mestre Alcides, que posterior-
105
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
mente participou de uma das aulas do curso para professores
de arte (2020). Ele se declarou subversivo e que gostaria de
punir os não-rebeldes (sou rebelde!).
No segundo semestre de 2019, teve início o curso de extensão, Arte e Educação para Professores – Módulo I, presencial
para professores da Rede Pública do Ensino na cidade de São
Paulo. Procurou-se mostrar o território da cidade; a grande
maioria selecionada foi de mulheres professoras; foram chamadas 20 professoras e cinco professores. Posteriormente,
outras três professoras somaram-se ao grupo.
O Módulo I foi uma oportunidade para o convívio com professoras e professores do Ensino Fundamental e Secundário.
Descobri que existem diretores não concursados em algumas
de escolas públicas, e que diretoras, diretores, professores e
professoras, discriminam as crianças mais pobres, e a grande
maioria de crianças com a pele escura. Fiquei muito impressionada com a boa disposição (obediência) e a grande criatividade dos trabalhos das professoras e professores. O primeiro
módulo do curso aconteceu numa sala de ateliê de arte, no andar térreo do edifício principal da ECA, e ao lado de um jardim
interno com uma grande árvore. As primeiras propostas de
trabalho foram sugeridas pelos líderes. A professora Clarissa
mostrou como confeccionar um caderno personalizado para
o uso diário dos professores. O professor Vinícius incentivou
os alunos a bordarem histórias. O professor Leandro foi documentando o que acontecia. Eu fui a única que não consegui
montar o caderno, só estive observando e pensando, depois
de ter levado o material equivocado para fazer o caderno. Já
não me lembro dos muitos projetos desenvolvido pelas alunas e alunos, professoras e professores artistas incansáveis,
e todos apresentaram alguma coisa muito especial.
106
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Pandemia, apagamentos, esquecimentos e memórias do
Módulo II
Projeto poético pedagógico
Demorei a entender o que é um projeto poético pedagógico.
Ainda no primeiro módulo, eu ouvi a professora Sumaya explicar que não é um projeto pensado pronto, mas um projeto
para ser lançado; eu não entendia muito bem. Talvez eu tenha
atrapalhado a concentração das alunas e alunos professores
fazendo aviões de papel dobrado e “lançando meu projeto”.
Quando criança, eu vi muitos aviões voando no céu, com as
letras PPP escritas nas asas.
O segundo módulo planejado, Módulo II, com o avanço da
pandemia do Coronavírus, não pode ser presencial, mas foi
muito produtivo e estimulante para o aprendizado das novas
tecnologias digitais. A professora Hercília, sempre presente
nas apresentações, foi grande incentivadora contra o desânimo, com comentários encorajadores para os professores.
Fui provocada a participar da abertura do Módulo II, apesar de ser ouvinte do curso, um “sapo de fora” que não chia
numa roda de cantorias noturnas. O líder bordador professor
Vinícius abriu o encontro narrando um conto africano, sobre
a aranha que foi buscar o sol, no tempo em que os animais
falavam e viviam no escuro da floresta! Maravilhoso! Eu havia pintado e tingido uma aranha com as cerdas da cabeça
arrepiadas, como se fosse um “chuca-chuca”, penteado de cabelos dos bebês de antigamente. Por coincidência eu havia
recebido a cópia de um livro científico e bem ilustrado sobre
aranhas, escrito por duas pesquisadoras norte-americanas. O
107
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
livro começa com um conto da Grécia antiga sobre a deusa
aranha, Aracna, e entre outros aspectos interessantes informa sobre os fios de seda produzidos pelas aranhas. As autoras informam que, com a combinação de até quatro proteínas,
os fios de seda podem ser até 400 vezes mais fortes do que
fios de aço da mesma espessura.
O professor Renato foi escrevendo uma história da nossa
realidade socioeconômica, uma alegoria sobre uma aranha
capitalista, acumuladora, que protegia sua prole de filhotes,
eliminando o que caísse na sua teia. Havia muito a conversar,
dançamos, pintamos, bordamos, depois de um dia de trabalho
de cada um em sua escola.
Foi admirável constatar que, as professoras alunas e professores alunos, inclusive a professora Sumaya puderam ilustrar melhor do que eu, bióloga, as aranhas e o camaleão que
pôs fim ao império capitalista da aranha mãe. O trabalho de
reflexão do aluno- professor Renato resultou na produção de
um livro já pronto, e talvez até ilustrado.
Seguem, em anexo: fotos da abertura do Módulo II, e fotos
do meu próprio projeto poético pedagógico, iniciado em setembro/2021: O Jardim como sala de aula.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 1 - Batik; imagem 2 - Livro Spider Silk (BRUNETTA; CRAIG, 2010)
Francisca do Val
Imagem 3 - Aranha com 8 olhos
Yale Univ.Press, 260p.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 4: Desenho de F.Val - Interpretação do projeto poético
pedagógico do Prof. Ranieri, sobre a perspectiva de seus alunos quanto
a conceitos abstratos como: o universo, o tempo, a evolução biológica,
a cultura. O Prof. Ranieri incentiva a reflexão sobre o que não se vê, e
pergunta: por exemplo, como poderia ser representado o tempo?
Francisca do Val
Imagens 5 e 6: O Jardim como Sala de Aula: 5) Crianças, gato, Estações
do ano; 6) Plantando e colocando a placa de identificação; pais e
crianças, saudando a Primavera, Set/2021.
Francisca do Val
110
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 7: Iolanda, bebê e Francisca do Val.
Referências
Brunetta, L & Craig, C. Spider Silk, Yale University Press, 2010.
260p.
Mattar, S. Arte e Educação - entre a oficina artesanal e a sala de
aula. São Paulo: Papirus Editora, 2010. 204p.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Rodrigo Acosta1
Conexões
Imagem 1: Equilíbrio.
1 Rodrigo Acosta, artista, permacultor e educador. Com graduação em Educação
artística e pedagogia. Pós graduação em arte educação, ludopedagogia e neurociências aplicadas à educação. Atua como arte educador nas prefeituras de Diadema
(SP) e São Caetano do Sul (SP).
113
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Creio que dos meus familiares mais próximos eu fui o primeiro a entrar na USP. Sempre acompanhei a rádio USP descobrindo novas músicas e no mesmo ano que ingressei no
curso conheci o pico do Jaraguá onde vi a antena da rádio. Eu
acredito na relação de conexões entre as coisas, por isso vou
deixar aqui meu relato.
Quando fiz a inscrição para o curso, fiz sem pretensão nenhuma de passar, gostei da proposta, mas quando fui um dos
selecionados para participar do curso pensei: - E agora? Como
faço com a distância? Como faço com o tempo?
Saía às quartas às 16 horas para chegar às 18 horas na USP.
Eu creio que a USP faz parte do imaginário dos brasileiros que
não a conhecem. Confesso que eu imaginava a faculdade de
uma outra forma.
Aos poucos fui conhecendo o lugar. Chegava mais cedo para
andar e me perder por ali. Infelizmente por conta da pandemia não cheguei a visitar lugares nos quais eu achava interessante, como o museu por exemplo.
Era um desafio chegar até a faculdade. Não gosto de dirigir para longe de casa, o trânsito era intenso, mas era muito
interessante no caminho da faculdade passar em frente ao
jóquei e aos imensos prédios de vidro que pareciam joias no
horizonte.
Chegando lá me deparei com tijolos e um recado na parede,
também com uma Mônica Outsider Art e com esculturas enferrujadas e escondidas no estacionamento bem abandonado
cheio de folhas, com o concreto quebrado e pouco iluminado.
Na caixa de energia sempre tinha alguma garrafa vazia, curioso imaginava quem se reunia ali, ou se era alguém no qual ti-
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
nha a mania de deixar suas garrafas sempre no mesmo lugar.
Imagem 2: Lápide.
Ao chegar no prédio era sempre um guarda diferente e ele
sempre perguntava pelo nome, e por mais que você falasse
ele sempre esquecia. O atalho mais curto, palavra chave ou
senha era dizer: - Vim para a aula da Sumaya.
Subia até o banheiro e dava uma volta de curioso para ver o
ateliê com a mesa de gravura e os estudantes de arte.
Chegando na sala deixava o salgado que comprei para o ca-
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
fé-janta coletivo em cima da mesa; confesso que achava uma
das melhores partes do curso. Gostava da diversidade de opções e de como cada indivíduo se servia.
Com a fome, a hora do lanche era uma festa. Gostava de
experimentar um pouco de cada lanche com destaque ao “pão
Cascudo”. Gostava do carinho dos professores ao preparar o
café e do trabalho em equipe para que este ritual funcionasse.
As aulas me faziam sentir “em casa” por conta da simplicidade e da veracidade nos quais as pessoas participavam.
Eram todos educadores nos quais acreditavam em seu trabalho e apesar do cansaço me sentia muito bem ali.
As atividades eram informativas e ao mesmo tempo terapêuticas. Era possível sentir a dor do outro “ter empatia” e
também sentir como o outro vibrava feliz contando as coisas
positivas que aconteceram na semana. Trabalhávamos todas
as linguagens da arte, falávamos de decolonialidade, ancestralidade, direitos, sentimentos, e sim, bordávamos...
Imagem 3: Entre linhas e agulhas; Imagem 4: Caderno de bolso.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
O curso é iniciado com muita poesia, apresenta muita diversidade de ideias, todos os participantes acreditam no potencial criador e na educação. Existiam representatividades
ali. Existiam pessoas de verdade!
No começo do curso nós fizemos nosso próprio caderno de
anotações.
Eu adorava o jardim de frente pra porta da sala, adorava
o canteiro com plantas medicinais, acho uma pena que não
pude frequentar aquele espaço de dia. Confesso que se fosse
estudante da graduação de arte faria do espaço o meu quintal.
Desenvolveria algum projeto de educação ambiental e arte,
faria tinta da terra, horta, land arte, intervenção e observação
dos pássaros, das árvores e de toda natureza ali presente.
O curso proporcionou o resgate de brincadeiras onde também deixávamos o cansaço e os problemas de lado e muitas
vezes voltávamos a ser criança.
Imagem 5: Ode à infância.
117
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Sim, nós fomos ao teatro. Engraçado que eu sempre dirigia para bem longe para chegar até a USP. Só que escolheram
para atividade complementar assistir uma peça de teatro ao
lado de casa, no SESC Santo André (SP).
Imagem 6: Os quebra-cabeças.
O curso presencial contou com diversos convidados, nos
quais pareciam também muito felizes em estar ali, quando
não tínhamos as visitas os próprios estudantes levavam e
apresentavam o que conheciam de melhor.
Na pandemia nosso ensino foi remoto no qual serviu de
118
TEIAS DE AFETOS E SABERES
uma espécie de retiro para refletirmos as práticas aprendidas no presencial. Os estudantes apresentaram a essência
do que se absorveu com o curso. Foi como se o curso presencial fosse a semeadura e os cuidados de uma planta e no remoto extraímos os óleos essenciais e o perfume da mesma.
Segue a foto de dois trabalhos desenvolvidos no remoto:
Imagem 7: Exper.momentos.
Eu apresentei um projeto intitulado Máscaras Ancestrais
o qual sempre tive vontade de desenvolver. Este que mistura
a antiga arte das máscaras ancestrais das diversas religiões
pagãs e ou xamânicas. Deixo a seguir as fotos com os resultados dos desenhos nos quais os estudantes do curso desenvolveram a atividade que eu mediei.
119
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 8: Máscaras ancestrais.
A única parte negativa disso tudo é que deveria existir uma
USP em cada cidade, pois se eu não tivesse veículo próprio provavelmente não conseguiria fazer o curso. Sinto vontade de conhecer outros cursos na universidade e até mesmo, quem sabe,
um mestrado no futuro. Mas a distância ainda é algo no qual eu
preciso me adaptar. É bem provável que se eu morasse próximo
à USP faria diversos outros cursos e são essas formações que os
educadores precisam. Formações como essas que estamos precisando: uma faculdade pública que atualiza, promove e valoriza
o ensino público. São estas ações nas quais eu acredito.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Regiane de Paula Santana1
Relato sobre a experiência
no curso de extensão Arte e
Educação para professores
Como começar a escrever sobre a experiência de um curso
de arte educação para professores da Rede Pública? Pensei
por vários dias em como abordar o assunto, em como iniciar
de forma interessante e bem elaborada, mas não consegui encontrar outra maneira que não fosse um relato pessoal, para
mostrar as transformações pelas quais eu passei nesses dois
anos, desde o início do curso até a finalização dele e com uma
pandemia no meio.
1
Regiane de Paula Santana. Professora e editora de arte. Formada em artes
gráficas, artes plásticas e design editorial. Trabalha atualmente na Rede Pública
Municipal de São Paulo como professora orientadora da sala de leitura, unindo
suas duas paixões: arte e livro.
122
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Fui estudante de escola pública a vida inteira, cursei faculdade privada, mas por meio do PROUNI, pois sem ele não
teria condições, ou seria muito difícil, de me formar na graduação e principalmente no curso de Artes Plásticas, que é um
curso desacreditado por muitos, pois arte é um ramo tortuoso
para quem não tem condições financeiras favoráveis. Como
pude cursar gratuitamente eu tive a oportunidade de escolher
o curso, mesmo meu pai querendo que eu trocasse por Direito
ou Administração. Ele só parou de tentar me demover quando
arranjei um emprego na área e ele viu que dava certo.
Eu nunca pensei em ser professora de Arte, porém o curso tinha como base a licenciatura nos três primeiros anos e
nunca é demais aprender coisas novas. Finalizei o curso junto
com o bacharelado, porém a licenciatura ficou guardada, pois
eu já atuava em outra área e estava indo bem nela. Como nunca conseguimos prever a vida, após sete anos de formada eu
acabei prestando o concurso público para professora de Arte
do município de São Paulo e passei. Dois anos depois de feito
o concurso, fui nomeada para o cargo e acabei ingressando
na docência.
Como nunca havia dado aula antes, foi um choque entrar
em sala de aula (ainda mais em Rede Pública de Ensino) e
ver que a realidade não é como nos livros ou nas aulas da faculdade, ainda mais após nove anos desde minha formatura.
Acreditava que meus conhecimentos já estavam defasados.
Como sempre gostei de estudar e pesquisar fui fazer cursos
complementares para melhorar minha didática e oferecer aos
alunos o melhor que eu poderia, pois sendo egressa do ensino público eu precisava devolver tudo que aprendi e tinha
conseguido estudar para que os alunos também tivessem as
mesmas oportunidades. Foi nessa procura que me indicaram
123
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
o curso da ECA/ USP.
Jamais eu tinha pensado em estudar na USP. Como moradora da periferia da Zona Leste de São Paulo, a universidade
sempre foi algo distante (tanto de ingresso como de distância
física) e que não seria algo pra mim. Me candidatei na cara e
na coragem a uma vaga e, para minha surpresa, fui aceita. Foi
muito interessante entrar na USP para estudar, me senti importante, pois teria um certificado emitido pela ECA. Isso fez
com que eu achasse possível tentar estudar lá, para continuar
com a minha aprendizagem.
No curso eu encontrei pessoas de vários locais, com vivências e experiências muito diversas e bem diferentes da minha,
o que ampliou mais um pouco minha mente e me proporcionou aprender e entender coisas que eu dificilmente teria se
eu não atravessasse (de verdade) a cidade toda. Sempre morei na mesma região e, apesar de trabalhar em outros locais,
a minha bolha de convivência era totalmente diferente das
pessoas que conheci nos encontros semanais da sala B3.
Durante esses encontros eu tive a oportunidade de ouvir
os colegas relatando suas experiências de vida e de docência, escutar pequenas palestras dos professores do curso e
seus convidados e receber indicações preciosas da professora
Hercília e da professora Sumaya. Uma das primeiras atividades do curso foi oferecida pela professora Clarissa e era o de
criar um caderno para anotar o desenrolar do curso. Foi uma
atividade muito prazerosa e que despertou minhas habilidades manuais que estavam um pouco adormecidas em razão
da correria do dia a dia. Neste caderno, a cada aula, tentei separar uma foto ou fazer um desenho que sintetizasse o que eu
havia visto e feito. Este processo foi muito importante para eu
124
TEIAS DE AFETOS E SABERES
retomar o contato com o fazer artístico sem muita pretensão
e que mais pra frente me mostrou o caminho de pesquisa ao
qual eu quero aprofundar meus estudos.
Ao final do 1º módulo do curso, em dezembro de 2019, elaborei um projeto para os alunos com base na criatividade e na
imaginação do fazer artístico. Porém não houve tempo para
sua aplicação e o projeto ficou guardado na gaveta. No início
de 2020 fiz por duas vezes a aplicação do projeto e percebi que
além de ser possível a execução, também era possível ampliar
mais ainda a pesquisa. Como novamente a vida nos leva a outros lugares, pouco tempo depois de iniciarmos o ano letivo,
as escolas foram fechadas por uma pandemia, obrigando a
todos a ficarem em casa durante o ano inteiro e o Módulo II
do curso de extensão foi suspenso em 2020.
Como nessa época eu não tinha turmas atribuídas, fiquei
sem contato com os alunos, mas a semente que plantei nas
oportunidades em que pude testar meu projeto, ficaram germinando em mim. Com o início de 2021 eu acabei mudando de
escola e tendo algumas turmas atribuídas. A escola para onde
eu fui tem outra realidade da que eu estava anteriormente,
porém o mote do meu projeto continua pertinente: as crianças
continuam com o mesmo problema que é o de estarem muito
expostas a dispositivos eletrônicos e deixarem as brincadeiras manuais e o uso da imaginação de lado. Com os protocolos
sanitários elaborados pelas autoridades, a aplicação do meu
projeto ficou comprometida, porém as observações continuaram a ser feitas, para que ele seja modificado e ampliado.
Junto com a nova realidade que nos foi imposta o curso
de Arte e Educação para professores voltou com a proposta de ser on-line em 2021, uma forma de nos reunir e de dar
125
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
continuação ao curso, mesmo que à distância. Essa volta foi
importante para resgatar o que ficou parado no ano anterior.
Novamente o compartilhamento de experiências foi muito
rico e as ideias foram interessantíssimas, na reunião para debater sobre o ofício de professora, as dificuldades, as soluções, ocorrida virtualmente. Nesse módulo pudemos aplicar
de forma adaptada nossas propostas de aula que havíamos
formulado em 2019, agora com alterações para o meio virtual.
As interações e devolutivas sobre as propostas de cada um
foi um modo diferente de analisar, em grupo, os acertos e as
adaptações a serem feitas. Tivemos várias propostas diferentes e cada uma com um tema diferente da outra, o que mostrou mais uma vez a diversidade do grupo e fez com que eu
aprendesse ainda mais com os colegas, juntamente com as
observações dos professores do curso.
Para mim, foram dois anos intensos, tanto na ampliação do
horizonte pessoal quanto no profissional, além de tudo o que
aconteceu para o bem e para o mal no mundo e na vida de
cada um de nós. Sinto que apesar de todas as dificuldades,
esse curso me ajudou a sair da minha bolha pessoal e da minha zona de conforto. Conhecendo outras realidades eu pude
me flexibilizar mais e aprendi a pensar por diferentes ângulos, assuntos que antes eu dava por certo por ter somente um
ponto de vista.
Não foi só em relação às minhas aulas que o curso superou minhas expectativas. Quando entrei, pensei somente em
ter auxílio para minhas aulas, mas acabei encontrando outras
percepções para além da escola, o que faz com que eu possa
ser melhor integralmente, beneficiando por fim minhas escolhas ao lecionar arte na escola pública.
126
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Mariana Zanetic1
Garoas de vivências
de uma artista docente
em Sampa
Introdução
Esse pequeno texto que agora me empenho em escrever
pretende se desenrolar enquanto um relato de algumas experiências da alquimia em sala de aula da Rede Municipal do
Ensino de São Paulo enquanto professora de Arte. Mais especificamente no laboratório da vida de uma artista docente,
neste entremeio do ensino de arte, da conjuntura social e da
1 Mariana Zanetic. Formada em Artes Plásticas e Educação Artística pela Unicamp.
Trabalhou como oficineira de arte, lecionou Arte pelo Estado de São Paulo e em
escolas particulares, foi educadora em algumas instituições e museus e atualmente
trabalha como professora de Arte na Prefeitura de São Paulo. Pós-graduada em psicopedagogia pelo Mackenzie, é brincante no Grupo Cupuaçu de Danças Brasileiras.
128
TEIAS DE AFETOS E SABERES
luta por manutenção de direitos trabalhistas.
Também trato brevemente do aprendizado, enquanto educadora que cursa aperfeiçoamento em sua área de atuação
num curso de extensão Arte e Educação para Professores.
Esse curso foi ministrado pela professora doutora Sumaya
Mattar, com a colaboração dos professores Alberto Roiphe,
Caio Bonifácio, Clarissa Suzuki, Francisca do Val, Gabriela Mafud, Guilherme Nakashato, Hercilia Tavares Miranda, Leandro
de Oliva Costa Penha, Lukas Joia Chrispin, Luiza Couceiro Latorre e Vinicius Souza Azevedo na Escola de Comunicações e
Arte da Universidade de São Paulo (ECA/ USP), segundo semestre de 2019 e primeiro semestre de 2021.
Inicio meu relato com: (i) os fatos que me motivaram à vinda ao ambiente acadêmico em busca de aprimoramento no
ensino de arte; (ii) o caminho que percorri nesse processo de
ser educadora no laboratório de reflexão em ensino de arte
em uma perspectiva progressista e decolonial; (iii) minha prática de ensino e a conjuntura nesse caminhar do ensinar e
aprender durante os dois módulos e nesse pedaço de segundo semestre de 2021, logo após a mais longa greve da Rede
Municipal de Ensino de São Paulo.
No caminho
Exatamente em janeiro de 2018, olhando para fatos recentes de nossa história como o impeachment de Dilma Rousseff em agosto de 2016, a entrada em cena do protagonismo
de Michel Temer na presidência com dois projetos de emenda
constitucional aprovados e pré-aprovados: a reforma trabalhista e a reforma da previdência.
129
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
E para além desses, a ascensão da direita no mundo protagonizada por alguns presidentes como Donald Trump nos
EUA, a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva no
início de 2017, o primeiro ano da prefeitura de São Paulo de
João Dória e o retorno do Sampaprev, culminando em greve
e derrota dos servidores públicos enquanto pauta de retirada de direitos no cenário do serviço público paulistano, entre inúmeras manifestações, movimentos, mobilizações e enfrentamentos na esfera civil e política contra essas ameaças e
recentes retomadas de superexploração da força de trabalho
em várias esferas e também outras questões de violências e
ataques ao bem estar social a aos cidadãos menos favorecidos no país, fiquei refletindo sobre o que estará por vir nesse
ano eleitoral no Brasil.
Imagem 1: Luto luto.
Nesse contexto produzi uma arte visual pensando no tema
Territórios e Bandeiras de Luta, uma reflexão frente a diversas pautas de lutas que percebo nos nossos coletivos sindicais e em outros movimentos como no caso dos movimentos
estudantis, e que nesse contexto pensei que muita luta viria
130
TEIAS DE AFETOS E SABERES
pela frente, e também muito sangue ainda seria derramado,
pensei também em brincar com a ideia das lutas em cena no
país e no mundo, enquanto artista visual. Depois percebi que
usei as cores que representam o continente africano e a diáspora negra. São essas coisas que artistas, pensadores, produtores de arte e professores progressistas fazem ao olhar
para o caldeirão de cultura e conjunturas sociais ao produzir
conhecimento e pesquisas em sua profissão, antecipando fatos pela leitura de contexto.
Infelizmente, praticamente dois meses depois, Marielle
Franco e Anderson Gomes foram assassinados numa emboscada planejada para a execução da vereadora Marielle. Vi nessa tragédia o prenúncio de algo que já conhecemos: os passos
avançados do Lobo do Homem, da frase O Homem é o lobo do
homem, retirada do filósofo inglês Thomas Hobbes em Leviatã, cuja frase original é do dramaturgo romano Platus, escrita
em uma de suas peças, sendo no latim homo homini lúpus.
Em Hobbes é narrada a ganância humana em satisfazer apenas interesses pessoais. E é o que vemos ainda hoje, principalmente nessa conjuntura política, repetir-se sistemas viciados de elite financeira que visa abocanhar como sempre o
poder, os meios de produção de riquezas e abalar ainda mais
as estruturas dos Estados Democráticos de Direito. Que precisa, para tanto de um povo iludido, adoecido, sem condições
de se ater as artimanhas dessa estrutura:
Aí está uma das razões para a proibição, para as dificuldades...
no sentido de que as massas populares cheguem a “inserir-se”, criticamente, na realidade. É que o opressor sabe muito
bem que esta “imersão crítica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe
interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu esta-
131
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
do de “imersão” em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como “situação limite”
que lhes parece intransponível. (FREIRE, 2005, p.43)
O ano 2018, marca o avanço das pautas da Direita no poder.
De um lado, João Dória se elege governador do Estado de São
Paulo, deixando o Bruno Covas no cargo de prefeito da cidade
de São Paulo, duas governanças neoliberais. E do outro lado,
mais especificamente no topo da pirâmide de poder, na Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro é eleito. Trata-se
de uma liderança protofascista, uma vez que este defende um
viés religioso cristão num Estado Laico e de Direito, a elite
econômica num país extremamente desigual, a raça branca
num país de herança colonial escravagista sobre povos indígenas e negros, e de gênero masculino num dos países campeões de feminicídio no mundo, e o extermínio dos diferentes, incluindo a homofobia, entre outras coisas.
No início de 2019, nós servidores públicos da prefeitura de
São Paulo, fizemos uma grande greve contra o Sampaprev,
projeto de lei aprovado em dezembro do ano anterior, que aumentou o imposto da previdência de 11 para 14%, fixou um
teto previdenciário alinhado ao INSS, e acabou com a integralidade previdenciária, uma vez que o trabalhador deverá
contribuir com uma previdência privada para ter uma aposentadoria acima do teto, aumentando o investimento em bancos
e empresas financeiras, que são as maiores devedoras dos
cofres públicos. E o final da greve culminou com um ano da
morte de Marielle Franco. No meu projeto de Stencil Art com
os nonos anos, trabalhei imagens e dizeres sobre esse evento,
pois dou início ao projeto ensinando as técnicas do Stencil, e
desenvolvo em sequências de aulas conteúdos referentes ao
engajamento na arte, utilizando artistas como Lasar Segall,
132
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Otto Dix, Antonio Dias e Rosana Paulino.
Imagem 2: Sobreposição de desenhos dos estudantes, exercício partindo
da conversa sobre a obra Parede de Memória de Rosana Paulino.
No caso desse tema, da tragédia que foi o assassinato de
Marielle, a repercussão e manifestação popular, utilizei como
mediação a obra Quem Matou Herzog? de Cildo Meirelles. Enquanto o trabalho de Stencil Art secava na sala dos professores, uma professora simpatizante do Bolsonaro, das Ideias de
Olavo de Carvalho e do movimento Escola sem Partido, fotografou sem a minha permissão, divulgou no formato público
em rede social difamando minha atividade profissional.
133
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 3: Marielle Presente.
Além de ocorrências realizadas por mim, na diretoria da
escola e na diretoria regional de ensino, que não geraram
nenhum fruto, dado o pensamento de neutralidade política
por parte dos funcionários que ocupam os cargos de gestor
e supervisor da escola em que este fato ocorreu. Isso me fez
pensar muito sobre a necessidade de um aprimoramento no
ensino de arte, no sentido de defender melhor minha prática
de ensino. Um ensino antirracista, ancorado na obrigatoriedade do ensino de história da África:
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois
grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos
africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil,
a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na
formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.
134
TEIAS DE AFETOS E SABERES
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
educação artística e de literatura e história brasileiras.” (Lei
11.645/2008)
Foi nessa ocasião que recebi num grupo de WhatsApp de
outra escola o convite aberto para inscrição em um curso de
arte na ECA-USP de atualização curricular para professores
de arte e outros professores que utilizam a arte como repertório em sua prática. E fui me deparar com o termo Pedagogia
Decolonial, que já tinha ouvido nome e conceito por parte de
uma amiga e colega de trabalho, mas não tinha me atentado
ao conteúdo desta proposição. Esta recepção e percepção de
olhar para o ensino abriu uma nova perspectiva, na qual ainda
pretendo me aprofundar.
Decolonialidade
Esta visão parte de uma crítica à cultura moderna de formação de conhecimento hegemônico baseado numa estrutura
de poder eurocêntrica e ocidental não somente o poder financeiro, mas de pensamento. Sendo uma proposta de ruptura
da estruturação epistemológica e política, onde os povos subalternizados foram deslocados de seus territórios de origem
ou estão sendo constantemente devorados territorialmente,
materialmente e culturalmente pelo colonialismo e suas concepções são naturalmente inferiorizadas.
Procurando decodificar a percepção que impõe historicamente não somente uma história única dos colonizadores,
devido sua meta imperialista, mas se mantém confirmando
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
essa estrutura de saberes e formas das produções de saberes
por uma manutenção permanente, através também do pensamento econômico baseado na proteção do sistema de concentração de renda e validade da produção humana baseada
no lucro, onde a economia capitalista demarca as regras em
detrimento dos grupos historicamente minorizados ou outras
formas de organizações humanas baseadas em outros valores. Essa teia de organização das políticas em todas as áreas é
permeada por uma camada de concepção de mundo definida
como colonialidade, que se mantém nos corpos, imaginários
e relações na perspectiva Decolonial. Uma percepção que visa
explicitar a relação onde o colonizado permanece enredado e
reproduz essa forma de produção de mundo e o colonizador
se retroalimenta.
Quijano (2005) vai propor o conceito de colonialidade do poder para referir-se a essa situação. Essa seria uma estrutura
de dominação que submeteu a América Latina, a África e a
Ásia, a partir da conquista. O termo faz alusão à invasão do
imaginário do outro, ou seja, sua ocidentalização. Mais especificamente, diz respeito a um discurso que se insere no
mundo do colonizado, porém também se reproduz no lócus do
colonizador. Nesse sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma seu próprio imaginário. Assim, a colonialidade
do poder reprime os modos de produção de conhecimento,
os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e
impõe novos. Opera-se, então, a naturalização do imaginário
do invasor europeu, a subalternização epistêmica do outro
não-europeu e a própria negação e o esquecimento de processos históricos não-europeus. Essa operação se realizou
de várias formas, como a sedução da cultura colonialista, o
fetichismo cultural que o europeu cria em torno da sua cultura, estimulando forte aspiração à cultura europeia por parte
136
TEIAS DE AFETOS E SABERES
dos sujeitos subalternizados. Portanto, o eurocentrismo não
é perspectiva cognitiva somente dos europeus, mas torna-se
também do conjunto daqueles educados sob sua hegemonia.
(OLIVEIRA e CANDAU, 2010. P.19).
Assim a concepção de pensamento e pedagogia chamada
Decolonial é uma proposição crítica e ainda em construção que
parte de reflexões desde 1970. E revistas em 1990 por um grupo de pensadores latino-americanos observando ativamente
formas de romper esse paradigma cristalizado que apaga, silencia e deslegitima especialmente civilizações e suas produções de saberes localizadas na África, Ásia e América Latina.
Repensar políticas educacionais dentro dessa proposta é repensar a produção e a forma de produção de conhecimento de
culturas relegadas à margem da civilização. Se posicionando
como uma nova meta de desenvolvimento civilizatório.
Recepção e partilha
Logo que chegamos na primeira aula do Módulo I foi informado da importância em não faltar, para não se perder o fio
da meada, pois cada aula seria única e daria pano à próxima
e seria finalizada com a partilha do aprendizado do dia mais
alguma atividade para a próxima. Realizamos várias atividades riquíssimas!, com cada uma das professoras e professores, tão singulares que será impossível descrevê-las. Uma das
primeiras atividades foi a produção de uma imagem do porquê me movi em direção a esse aprimoramento no ensino de
arte, o que me remeteu diretamente ao evento do exercício de
Stencil Art que foi parar nas redes sociais como uma espécie
de denúncia pública de ensino ideológico em sala de aula. E
como as instâncias públicas temem tratar do tema ensino an-
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
tirracista e também como estão despreparadas para lidar com
perseguição política na escola. Foi aí que produzi uma arte
objeto chamada Pisando em Ovos, pois andei me sentindo
pisando num território frágil e perigoso devido ao momento
político do país.
Lemos e conversamos sobre escritores fora do eixo eurocêntrico, como Fela Cuti e Márcia Kambeba e outros textos tanto com Hercília quanto com Alberto; a Clarissa nos
ensinou a fazer um caderno lindo, todo personalizado para
nossas anotações; trabalhamos o bordado recheado com
contações de histórias pelo Vinicius; vivenciamos percepção
corporal e danças com a Gabriela e com o Leandro; Francisca nos trouxe suas experiências por meio das aquarelas e
biologia; Lukas nos levou à exploração da cena no universo
de Boal e Brecht; passamos pela reflexão sobre a história do
ensino de arte no Brasil com Guilherme Nakashato, recebendo todo o apoio nas atividades pelo Caio e Luiza e a supervisão e exercícios de crítica de arte em grupo com a Sumaya.
Sem contar os lanchinhos no intervalo que levávamos para
partilhar e as conversas.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 4: Pisando em Ovos e problematizações com um grupo de
colegas professores bem críticos e interessados em seu processo
enquanto educador.
De tudo isso, as coisas que mais marcaram foram as vivências que me proporcionaram pôr os pés no chão das questões
étnico-raciais em consonância ao fazer enquanto educadora,
minhas vivências no campo identitário e artístico. A visita do
Mestre Alcides na aula da Clarissa foi potencializadora, no
sentido de observar o legado dos mestres e também questionar o que me leva a ser tocada profundamente pelas culturas
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
de matrizes africanas e esse pulsar de um ensino-aprendizagem que extravase os portais do cânone erudito. Para além do
Ser e de Estar, do Paulo Freire nas questões de opressão de
classe e o ensino mecanizado, a questão raiz cultural e propósito da ação no mundo, completando com as reflexões de
Ailton Krenak, sou convidada a mergulhar na terra para poder
me estirar novamente e esticar os galhos/braços entre horizonte e céu. Me pondo no desafio de enfrentar obstáculos e
observar as contradições para transcender as aparências, percebi que para além do repensar o ensino estava repensando o
fazer arte. E desconfio que estou encontrando minha poética
enquanto artista também. No uso de tecido, imagens objetos
e palavras. Como no caso de um exercício visual utilizando
frases feitas e transformando-as em imagem.
Imagem 5: Frase Enfeita.
140
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Voltei com sede ao pote, numa nova escola, pois de 2019
para 2020 me mudei de unidade escolar, e chegou à pandemia. Meu tema, baseado em territórios ficou à deriva. O segundo módulo do curso foi adiado e começamos a trabalhar
on-line, quase sem recursos tecnológicos pelo serviço e com
a maioria dos alunos sem acesso. Mesmo assim o ano inteiro
de 2020 foi on-line, sem vacina para o Coronavírus e com a
pandemia voltando a descontrolar.
Final de janeiro de 2021 recebemos a notícia do retorno
presencial, ainda sem vacinação, para início de fevereiro, com
a pandemia totalmente descontrolada, em vista da falta de
condições sanitárias, pois além disso as escolas contavam
com quadro de limpeza, de apoio e também de professores reduzido, além de muitas escolas não terem janelas e estrutura
predial que permitam a ventilação adequada. Além da falta de
estratégia e recursos para as testagens necessárias e oferta
de EPIs (equipamentos de proteção individuais) de qualidade
aos profissionais de educação.
Com isso o funcionalismo, com o apoio de seus sindicatos
declararam greve, uma greve pela vida, cuja principal reivindicação foi o ensino remoto enquanto não houvesse vacina para
todas as pessoas, além da entrega dos tablets aos alunos,
comprados pela prefeitura no final do ano anterior. Chegamos
numa taxa absurda de mais de três mil óbitos por COVID-19
ao dia em março, quando o Módulo II do curso se iniciou. E
me vi utilizando da arte engajada no meu envolvimento da
luta trabalhista, como nessas cenas de uma manifestação do
Comando de Greve em frente à Diretoria Regional de Ensino,
quando denunciávamos a falta de condições do retorno às aulas presenciais, que chamei de ação Luto-luto.
141
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 6: Ação Luto luto.
Esse foi o momento de cada professora e professor inscrito
na formação desenvolver uma aula partindo da reflexão de ensino vivenciada no módulo anterior levando em consideração
as condições de ensino remoto no curso e todas essas condições da conjuntura nacional e mundial que estávamos e estamos enfrentando, devido à doença do Coronavírus mais várias
crises sociais e climáticas que foram estancadas nesse processo; como a deflagração da corrosão desses sistemas de poderes nas sociedades de modo geral devido justamente ao modelo econômico capitalista que se mantém baseado no lucro, na
alta exploração dos recursos naturais e humanos, em síntese;
as engrenagens de herança colonial passando a ter suas fraturas expostas e o avanço da direita no Brasil e no mundo mostrando sua cara nos crimes de racismo estrutural, aumento da
taxa de refugiados por conta do desemprego e a fome, além de
um negacionismo bem típico do governo atual do Brasil.
Nesse processo percebi nos desafios da proposição de aulas além da questão do distanciamento social e investigação
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
dos recursos on-line, a necessidade de mergulhar nas raízes
do ser por meio de várias linguagens como dança, literatura,
vivência afetiva com as ervas e chás, a costura, a produção de
patuá, o corpo em cena, a música e também vivenciar o luto.
Expresso nesse livro objeto com curativos adesivos, que servem para guardar as dores da vida.
Imagem 7: Guardador.
Eu levei e questão do luto como assunto para tratar através
de duas linguagens de arte; música e artes visuais criando um
ambiente de produção cujo assunto em questão passou a ser
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
o impulso criativo, na voz/letra e arte visual de duas mulheres artistas brasileiras, pensando nesse lugar da ideia e da
comunicação que acontece nas várias artes e que nos torna
possível tecer cenas, impressões e sentimentos a respeito da
vida e fatos vividos recentemente. Uma proposta de entrelaçamento de vida e arte, de linguagens de arte em diálogos
com experiências vividas, numa espécie de curadoria temática, para se falar daquilo que pode ser intraduzível pelas palavras, as incertezas do hoje, do amanhã, dos próximos passos
numa sociedade que se mostrou por demais frágil a existência humana e a estrutura de poderes que se desvelou dura por
demais às pessoas e suas necessidades básicas, um processo
de reensinar arte quando estamos precisando ainda aprender
a respirar o presente e entender-se corporalmente num espaço hostil oferecendo acolhimento e autoacolhimento:
A arte do cruzo só pode vir a ser praticada a partir de uma invocação e motivação exuística. O cruzo é a arte da rasura, das
desautorizações, das transgressões necessárias, da resiliência,
das possibilidades, das reinvenções e transformações. O cruzo,
como perspectiva teórico-metodológica, dá o tom do caráter
dinâmico, inventivo e inacabado de Exu. A encruzilhada, símbolo pluriversal, atravessa todo e qualquer conhecimento que
se reivindica como único. Os saberes, nas mais diferentes formas, ao se cruzarem, ressaltam as zonas fronteiriças, tempos/
espaços de encontros e atravessamentos interculturais que
destacam saberes múltiplos e tão vastos e inacabados quanto
experiências humanas. (RUFINO, 2019. P. 86).
Pois esse momento também evidenciou o crescimento do
feminicídio no Brasil e o sucesso nas ações de lideranças femininas no combate à pandemia, portanto quis evidenciar arte de
mulheres. Mas também me mantive olhando para a pauta identidade étnico-racial e também o quanto essas múltiplas pau-
144
TEIAS DE AFETOS E SABERES
tas: étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, viés político
progressista e crise ambiental, se correlacionam e estão integrados numa atuação pedagógica com esse viés Decolonial.
O que me pega enquanto identidade são as histórias familiares e de ações políticas que compõem a minha história enquanto pessoa e me faz refletir quem sou eu nesse Brasil de hoje, e o
que isso potencializa no meu papel enquanto educadora, mais
especificamente artista docente. Essa última produção traduz
um momento no qual muitas partes de mim se encontram num
todo, quase como se estivesse que reconhecendo a somatória do eu artista, política e educadora e as diversas linguagens
dessa entidade ser humana e integrada ao momento, não por
acaso foi o dia em que encontrei um cartão com a imagem de
Oxumaré desenhada, que estava procurando há anos, dentro
do livro Educação Cidadã de Moacir Gadotti.
Imagem 8: Transformação.
145
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Orvalhos e garoas
Em junho retornamos da greve, por desgaste mesmo, não
tínhamos mais fôlego e tivemos umas pequenas conquistas,
num cenário de um governo extremamente intransigente e
arbitrário. Enquanto conquistas tivemos a garantia da vacinação do servidor da Rede de Ensino como prioridade, a entrega
de EPIs mais adequados, ampliação dos contratados para limpeza, ampliação de contingente de apoio educacional, entrega dos tablets aos estudantes, garantia de 20% do trabalho
em casa e o turno, que se manteve de 50% de estudantes por
dia em esquema de revezamento entre ensino remoto e presencial chamado ensino híbrido, com direito de ensino remoto total para os estudantes cuja família não aceitou o retorno
presencial aos seus filhos.
Mesmo assim entendemos o retorno como precoce, pois as
escolas com ventilação inadequadas não foram reformadas,
ainda não tinha chegado a vez de vacinação da maioria dos
profissionais e, dos que foram vacinados, a maioria ainda não
tinha tomado a segunda dose, as crianças e adolescentes estavam sem previsão de vacinação e a pandemia seguia descontrolada, mesmo com a taxa de mortalidade decrescente. O
maior ganho da greve foi manter as escolas fechadas ou parcialmente fechadas no pior período de descontrole da pandemia. Com isso, diminuir a circulação de pessoas, o aumento
do contágio e morte, preservando nossas vidas, as vidas dos
estudantes e seus familiares.
Mas voltamos, e em meio a readaptação ao ritmo de trabalho presencial, às novas regras de protocolo sanitário, ao
revezamento de estudantes e com isso as quebras de continuidade das atividades, ao ritmo de estar tanto no ensino
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
presencial como no remoto, experienciar todo esse desdobramento também tivemos que organizar e dar conta de começar
a reposição de aulas e carga horária do tempo que passamos
em greve. Foi aí que resolvi organizar grande parte da minha
reposição na forma de oficina de arte, com isso oferecer encontros presenciais com um tempo mais alongado ao fundamental I que tem somente uma aula semanal de Arte.
Primeiro acho importante o olhar para esse recomeço: o
que conversar com os estudantes? De onde recomeçar o ensino formal? Como avaliar dificuldades e desânimos ao estudo?
Como oferecer equidade para as crianças com deficiência? O
recomeço foi de escuta e conversas sobre expectativas para
a escola e o mundo. Entre professores também necessária e
vivenciada as reflexões sobre o ritmo, cuidados e repensar as
escolas e os tempos e espaços da mesma.
Nas rodas de conversas entre educadores surgiu a preocupação com as presenças inconstantes e a retomada sucessível do mesmo conteúdo, a sensação de que toda aula é quase
a primeira aula. Todas as paradas e dispensas de aulas presenciais representaram nova refreada do ritmo de aulas. Uma
proposta que surgiu fortemente e tomou fôlego foi a revitalização do espaço externo, por vários motivos; um deles sendo a
necessidade de estarmos mais tempo em local ventilado, outro motivo foi o fato de termos um bom espaço externo, - mas
abandonado-, e o outro motivo foi o ânimo especialmente por
um dos professores de Geografia de trabalhar horta e jardins
nesses espaços de terra. Nossa preocupação com as questões ambientais tão em pauta, dado a necessidade urgente
de refrear os desmatamentos e outros desastres irreversíveis
ao meio ambiente, tomou corpo e vários professores se empolgaram em desenvolver um projeto de educação ambiental,
147
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
que no momento está em andamento com algumas atividades
sendo realizadas, como o plantio de mudas, limpeza da terra
na região do córrego Água Podre, leitura no bosque e desenho
de observação das árvores e área externa.
Imagem 9: Atividades do projeto Educação Ambiental.
Nas aulas de Arte além de atividades ligadas a apreciação
de obras de arte refletindo conteúdos e comunicações inerentes ou possíveis às técnicas e assuntos tratados pelos artistas, o contato com a cultura indígena por meio de histórias,
vídeos de rituais e documentários, o contado e exercício com
diversos tipos de chocalhos para se conhecer instrumentos
musicais, o som e suas origens e também seu aspecto material, fizemos essas atividades externas.
Na gênese da arte encontra-se um exemplo de como a narrativa, por meio de sua estrutura e forma, pode inspirar diferentes significados. As covas de Lascaux e Altamira são lugares
de formação e de significado que constituem os prolegômenos da ciência, da arte, da religião, da literatura e da educação.
148
TEIAS DE AFETOS E SABERES
A psicologia narrativa legitima as múltiplas interpretações de
uma narração dada como texto... Deve-se estimular os estudantes a unir suas histórias pessoais aos pressupostos culturais, as crenças pessoais e a pontos de vista – pensar, sentir e
querer, enfim, ver como essas histórias ajudam a construir o
conhecimento. (BARBOSA, CAO, 2008. PP. 197-198).
Na oficina, no momento que conta com quase dois meses de
atividades, o foco tem sido valorizar o tempo do contato com
materiais diversos das artes visuais. Esse tem sido o objetivo
principal, o tempo para vivenciar o fazer em artes visuais, que
é a minha formação e por isso o que eu tenho mais domínio,
e pretendo desenvolver o gosto de experienciar a prática; de
mexer, de construir e de desenhar, a prática laboratorial de investigação nessa linguagem, uma vez que sempre temos sido
impulsionadas para a polivalência de linguagem e quase nada
de tempo para o desenvolvimento e investigação nas artes.
Imagem 10: Desenhos e pinturas em aquarela.
149
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Começamos com desenho/ pintura em aquarela, a investigação do material e dois temas; pessoas e paisagens, e depois passamos para uma técnica de uso do papel umedecido.
Nesse momento, estamos trabalhando com a colagem e eu
estou vendo materiais para desenvolver um caderno. Me lembrei da nossa aula de cadernos e estou no momento querendo
reaproveitar os materiais que ficaram parados na escola: papéis, fitas adesivas coloridas, furadora e barbantes coloridos.
Também realizamos desenhos de observação no parquinho da
escola e bosque.
Imagem 11: Desenhos no parque.
Semeadura
Após esse primeiro ensaio de oficina, e a riqueza de potencial que tenho visto na atividade de educação ambiental que
meus colegas estão implementando (e eu estou timidamente
me aproximando), quero ver uma forma de ligar a investigação nas Artes Visuais com o potencial material e espacial da
área externa. Os próximos passos serão coleta de materiais
150
TEIAS DE AFETOS E SABERES
orgânicos do bosque para colagem. Frotagem de texturas de
cascas de árvores, de folhas e o que mais descobrirmos de
potencial para coleta de texturas. E a apresentação do artista Frans Krajcberg e suas obras e a relação das obras com o
mundo, tanto as produções humanas quanto nossas relações
com as demais espécies e o meio ambiente. A modelagem em
massinha, modelagem em argila e modelagem com a terra do
terreno da escola, permeada por conversas sobre os materiais
e produções nas Artes Visuais. E novos passos a partir daí,
pensando nessa relação oficina e o terreno da escola e todo
esse potencial, sem perder a importância do fazer arte, mesmo que engajada.
Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda
prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que,
ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu
cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de
técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos utopias, ideais. Daí a sua politicidade,
qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não
poder ser neutra.
Especificamente humana a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios,
de técnicas, envolve frustrações e medos, desejos. Exige de
mim, como professor(a), uma competência geral, um saber de
sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade
docente. (FREIRE, 1996,p. 70-71).
O desdobramento final para esse ano será uma exposição
híbrida: física e virtual das produções dessas oficinas. Uma
parte da oficina vai ser remota. Então pretendo fazer a exposição física e imprimir os trabalhos virtuais também na parede.
151
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
E fotografar e filmar a oficina e apresentar na sala de aula
virtual e também no site da escola, cruzando assim esses diversos tempos e espaços.
Imagem 12: Dado Butantã.
Referências
CAO, Marián Lópes F. Lugar do outro na Educação Artística – Olhar
como eixo articulador da experiência: uma proposta didática. In
BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/Educação Contemporânea: Consoantes Internacionais. – São Paulo: Cortez, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
__________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2005 (49º reimpressão).
152
TEIAS DE AFETOS E SABERES
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural no Brasil.
Belo Horizonte: Educação em Revista, 2010.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019 (escrito em 1987).
SILVA, Luiz Inácio Lula da. HADDAD, Fernando. LEI 11.645. Brasília:
Presidência da República/ Casa Civil, 2008.
Imagens
Imagem 1 – ZANETIC, Mariana. Luto luto. Foto e arte em tecido, acervo pessoal. São Paulo, 2018.
Imagem 2 – ZANETIC, Mariana. Exposição de arte, nonos anos 2019, acervo pessoal.
– São Paulo, 2019.
Imagem 3 – FACEBOOK, Rede social. Detalhes de publicações, foto, comentários
não autorizados e defesa de estudante. - São Paulo, 19 de junho e 23 de julho de
2019.
Imagem 4- ZANETIC, Mariana. Pisando em Ovos. Foto e objeto, acervo pessoal. São Paulo, 2019.
Imagem 5 - ZANETIC, Mariana. Frase Enfeita. Foto e arte em tecido, acervo pessoal.
- São Paulo, 2019.
Imagem 6 - ZANETIC, Mariana. Fotos de registro de ação Luto luto, acervo pessoal.
- São Paulo, 2021.
Imagem 7 - ZANETIC, Mariana. Guardador. Foto e objeto, acervo pessoal. - São Paulo, 2021.
Imagem 8 - ZANETIC, Mariana. Oxumarê. Foto e arte em papel, acervo pessoal. São Paulo, 2021.
Imagem 9 - Escola da Rede Municipal do Ensino de São Paulo, acervo da escola. São Paulo, 2021.
Imagem 10 – ZANETIC, Mariana. Fotos de desenhos e pinturas em aquarela, acervo
pessoal. - São Paulo, 2021.
Imagem 11 - ZANETIC, Mariana. Fotos de desenhos no parque, acervo pessoal. São Paulo, 2021.
Imagem 12- ZANETIC, Mariana. Dado Butantã. Foto e objeto em terra forte e sementes, acervo pessoal. - São Paulo 2021.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Letycia Payayá1 e Clarissa Suzuki2
Soprar, semear, sonhar ideias
sobre as artes e a educação:
diálogos entre Letycia Payayá
e Clarissa Suzuki
Eu, Letycia Rendy Yobá Payayá, sou ativista na luta pelos
direitos dos povos indígenas pelo Brasil, arte-educada com o
projeto Cine Sarau Jacó na periferia da cidade de São Paulo.
Eu, Clarissa, sou nipo-pindorâmica, filha de Suely e Jorge,
de Oxum e de Xangô. Pisciana sonhadora, professora, pesquisadora, militante por um mundo melhor onde caibam todas,
todos e todes: um mundo anticapitalista, anticolonial, antirra-
1 Letycia Payayá. Mestranda em História Oral pelo Diversitas - FFLCH/USP, idealizadora do projeto Cine Sarau Jacó, cinema e sarau na rua pelos bairros Jardim
Jaqueline e Celeste na Zona Oeste da cidade de São Paulo.
2 Clarissa Suzuki. Doutora e Mestra em Artes pela ECA/USP, professora na Educação Básica e no Ensino Superior.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
cista, antimachista, anti-homofóbico, contra tudo aquilo que
gera violência e invisibilidades.
Imagem 1: Juntas no curso de extensão em Arte e Educação para
Professores da ECA/USP (2019).
O nosso feliz encontro se deu há alguns anos, na vida, na
luta pelos direitos dos povos originários, pelos direitos das
mulheres, das trabalhadoras e trabalhadores. Compartilha-
156
TEIAS DE AFETOS E SABERES
mos territórios, já fomos vizinhas. Somos mulheres posicionadas e não abrimos mão desse lugar político que, muitas
vezes, nos coloca em situações desfavoráveis, principalmente
nas estruturas coloniais, que marginalizam o que provoca fissuras em suas fundações.
As reflexões plantadas aqui neste texto são decorrentes
da docência solidária e compartilhada em um dos encontros/
aula no curso de extensão em Arte e Educação para Professores que a Profª Drª Sumaya Mattar, junto com o GMEPAE –
Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (CAP/ ECA/USP) –, criou e ministrou no segundo semestre
de 2019 e no primeiro semestre de 2021. O curso foi oferecido
gratuitamente para professores atuantes na Educação Básica das Redes Públicas de Ensino, no Departamento de Artes
Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.
O curso tinha como objetivo oferecer aos professores um
espaço de estudo, pesquisa, reflexão, experimentação e criação, a partir de uma perspectiva decolonial, fazendo frente aos
desafios contemporâneos da Arte na educação escolar. No Módulo I, os participantes tiveram contato com as bases epistemológicas desta perspectiva e vivenciaram experiências que
fomentaram o trabalho a ser desenvolvido no Módulo II, voltado aos projetos poético-pedagógicos dos participantes. Em
decorrência da pandemia do Coronavírus, o Módulo I ocorreu
no ano de 2019 de forma presencial, já o Módulo II ocorreu de
forma remota, no primeiro semestre do ano de 2021.
O contexto dessa docência compartilhada foi o plano de
trabalho que tratou dos “Pensares e fazeres interculturais e
decoloniais desde a arte e educação” e que propunha, entre
outras coisas, o compartilhamento e a reflexão de práticas
157
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
educativas/ artísticas que integrassem às epistemologias
afro-brasileiras e indígenas em diálogo com as teorias que
problematizam outros pensares e fazeres na educação. Clarissa era docente do curso, Letycia era cursista, mas neste e em
muitos momentos as nossas funções se confluíram no curso
do rio chamado conhecimento.
Juntas, propusemos a vivência prático-teórica que abordou os saberes dos povos originários pindorâmicos em diálogo com a educação e as artes. As ideias a seguir são reflexões
dessa nossa experiência.
Imagem 2: Encantando no curso de extensão em Arte e Educação para
Professores da ECA/USP (2019).
158
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Demarcando territórios
Não há como falar em arte indígena (contemporânea) sem falar dos indígenas, sem falar do direito à terra e à vida. (Esbell,
2018).
Começaremos refletindo sobre a Arte no Brasil - talvez a
palavra arte nem seja adequada, a palavra Brasil, muito menos. Por isso, assumimos um posicionamento político sobre a
presença criadora dos povos pindorâmicos, que foi registrada
artisticamente pelos não-indígenas em diferentes momentos
da história deste país, mas sempre pelo conforto colonial. Registraram o outro não-civilizado, exótico, que não tem capacidade intelectual de falar sobre si. Assim se deu (ou ainda se
dá?) o encontro do pensamento da arte européia com os artistas selvagens, que não produzem arte, não é? Não! Soprou
Esbell (2018), “Arte e indígenas é um passar performático ao
longo do tempo e da geografia e para esses sentidos temos de
abordar o elemento colonizador”:
O olhar do cristão, salve os jesuítas!
O olhar do viajante, salve Eckhout!
O olhar do etnógrafo, salve os antropólogos!
O olhar do romântico, salve Meirelles!
O olhar do modernista, salve Andrade!
O olhar do galerista, salve o mercado!
O olhar do crítico, salve os acadêmicos!
159
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Apesar de Jaider não estar mais fisicamente entre nós, na
forma humana, suas ideias continuam nos provocando. Um
dos piolhos que ele colocou na nossa cabeça, parafraseando
o escritor Daniel Munduruku, foi sobre como é o encontro da
arte indígena com o sistema de arte geral, ou seja, aquele sistema dos códigos europeus, eleito como o sistema universal
para lidar com as manifestações artísticas. Diz ele,
[r]efazendo o caminho da pergunta, ressignificamos as respostas. Entende-se com essa pergunta que o sistema de arte
seja algo que realmente não compreende, no sentido de não
conter, a arte dos indígenas. Percebe-se também que o sistema de arte de natureza ocidental não vê, não percebe e não
faz qualquer relação com seu próprio paralelo: o sistema de
arte indígena, digamos assim. O sistema de arte europeu desconhece e, portanto, não reconhece que entre os indígenas há
um sistema de arte próprio, com sentidos e dimensões próprios (ESBELL, 2018).
Seguindo o sopro do Jaider (idem), afirmamos que os propósitos da arte indígena “vão muito além do assimilar e usufruir de estruturas econômicas, icônicas e midiáticas. A arte
indígena contemporânea é, sim, um caso específico de empoderamento no campo cosmológico de pensar a humanidade e o meio ambiente”, portanto, enxergar o ambiente inteiro
contando com nosso próprio pertencimento. Esse modelo de
civilidade nos apartou da terra e interpôs o concreto, o rígido,
o intolerável. A terra suja, o asfalto limpa.
Para além daquilo que é catalogado como arte pelo olhar
colonial, podemos falar das produções artísticas indígenas
frutos das identidades individuais e coletivas. Produções ligadas às necessidades diárias e à vida comunitária, atravessadas pelas tradições e ancestralidades. Os grafismos, por
160
TEIAS DE AFETOS E SABERES
exemplo, muitas vezes não têm um significado específico, eles
complementam a identidade de cada povo. Os traços diferenciam cada indivíduo, suas relações, cada etnia, as diferentes
cestarias e outros objetos.
Por exemplo, para se criar e elaborar um colar indígena, é
necessário todo um pensamento crítico, geográfico e da materialidade presente no território que se habita, as palhas do
Norte do país são diferentes das do Nordeste. No Norte temos
o tucum, o açaizeiro e no Nordeste o licuri e a palha do coco, o
que determina quais formas, cores e texturas têm a produção
de um artista da localidade específica. Quantos brasis cabem
nesta conversa? Quantos sistemas estéticos, éticos, coletivos,
individuais podem co-existir? Quantas cosmologias guiam os
nossos pensamentos e fazeres?
O “índio genérico” que o colonizador des(d)enhou, pintou
e narrou não contempla os mais de 300 povos indígenas brasileiros falantes de 274 línguas originárias, tampouco as suas
cosmologias e complexidades culturais, sociais e políticas. O
índígena fixado no tempo e no espaço, dócil e romantizado,
embranquecido nas representações visuais ao longo da história (ao passo do embranquecimento da população), apesar
de colonizar muitos imaginários, é um equívoco violento, uma
estratégia de valorização dos valores estéticos estrangeiros
por meio da invisibilização da estética dos povos nativos.
Sabemos que muitos artistas brasileiros e europeus se inspiraram nas artes indígenas em muitos momentos da história, porém, essas referências foram reveladas em suas produções? Até hoje as referências indígenas são invisibilizadas,
enquanto outros referenciais - principalmente os europeus,
acadêmicos, masculinos, brancos - são amplamente difun-
161
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
didos e reproduzidos. Ainda hoje enfrentamos o discurso de
que temos poucos referentes escritos de autoras e autores indígenas para fundamentar as nossas produções acadêmicas e
artísticas. Será?
Imagem 3: Com_partilhando diversas sementes. Curso de extensão em
Arte e Educação para Professores da ECA/USP (2019).
Respeitar os saberes dos povos originários é respeitar as
suas ancestralidades
Como característica, a arte indígena está diretamente integrada nos diversos domínios da vida social e a sua natureza
é diversa, ativa, participante e coletiva. Cada um dos mais de
300 povos indígenas do Brasil têm as suas especificidades,
cada artista indígena tem as suas particularidades em criar
sua arte, é fruto do seu tempo e espaço. O canto, a dança, as
expressões corporais remetem às suas diferentes identida-
162
TEIAS DE AFETOS E SABERES
des. A disposição das sementes ao criar um colar, as cores
escolhidas são matematicamente combinadas, nunca foram
combinações aleatórias.
Por ser uma produção ancestral, de saberes compartilhados entre os parentes, a participação também se torna um
elemento do processo artístico na expressão indígena. Assim,
as produções não servem apenas para contemplação, mas
ganham valor de intervenção cultural e de constituição das
próprias identidades. Nesse contexto, um grande problema
é agregar valor às artes indígenas, aquelas descoladas das
grandes instituições culturais e artísticas, porque apesar da
arte indígena contemporânea ter conquistado espaços nessas instituições, somente alguns artistas são eleitos - individualmente - na valorização de seus trabalhos.
Nunca fomos selvagens! A matemática, a geografia, a astronomia, a extração das cores, a manipulação das argilas, a
disposição dos objetos, a arquitetura, são conhecimentos repassados pela corrente dos mais velhos para os mais novos.
Nessa corrente, a ancestralidade é quem fortalece o indivíduo
dentro do coletivo e, da mesma forma, o coletivo segue fortalecido na busca da garantia dos seus direitos.
A docência compartilhada é uma floresta
Diante de todas reflexões apontadas até aqui e, principalmente, pela complexidade de se pensar em como abordar/ vivenviar a arte indígena em um curso de formação, apontamos
que uma possibilidade ética e solidária é assumir a docência
compartilhada, que além de descentralizar o poder pedagógico,
promove diálogos pluriversais e trocas de saberes. É como uma
163
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
floresta: cheia de vidas diversas, movimentos, sons e silêncios.
Tem seus riscos e suas belezas, fortalece o corpo e o espírito!
Com isso, nos posicionamos contra as hierarquias epistêmicas, dividimos efetivamente o trabalho docente e assumimos que a prática educativa é essencialmente coletiva. Assim,
somamos vozes, saberes e olhares. Praticamos a solidariedade entre pares, mulheres, entre saberes distintos! É como se
em um momento fôssemos árvore, no outro pássaro, em outro
pedra. Experimentamos falar, ouvir, pensar, dialogar, receber,
compartilhar.
Coletivizamos narrativas, pontos de vista, olhares para as
histórias e memórias, que muitas vezes foram invisibilizadas
pelas narrativas coloniais daqueles que puderam contar as
suas histórias.
Imagem 4: No quintal do CAP (Departamento de Artes Plásticas) na
ECA/USP, semeando coletivamente o chão. Curso de extensão em Arte e
Educação para Professores da ECA/USP (2019).
164
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Semeando ideias
Como olhar a arte pela perspectiva indígena? A priori, é
pensar na preservação do território como fonte de sobrevivência, no reconhecimento e na garantia dos direitos dos povos indígenas pelo governo e sociedade civil. Na preservação
do ambiente inteiro e assumir que todos os corpos coexistem.
Abrindo mão do acúmulo e do lucro gerado pela ganância e
propor o uso consciente dos elementos da natureza.
Pensar que a semente, a palha, a argila não tem apenas
valor comercial, mas existem valores espirituais e orgânicos
que vão para além do dinheiro. Povos indígenas dividem, com
quem adquire uma arte, toda sua cosmovisão de mundo e
uma possibilidade de como preservá-lo.
Afinal, quem diz o que é arte?
Referências
CADERNOS SELVAGENS. Ciclo Selvagem (Produção Coletiva da Comunidade Selvagem). Disponível em: http://selvagemciclo.com.br/
cadernos/, acessado em maio de 2022.
ESBELL, Jaider. Arte indígena contemporânea e o grande mundo.
Revista Select, edicão nº 39, 2008.Disponível em: https://www.
select.art.br/arte-indigena-contemporanea-e-o-grande-mundo/,
acessado em 18 de maio de 2022.
MACHADO, Ricardo. Nem modernista, nem anti-modernista, a Arte
Indígena Contemporânea (e cosmopolítica) na vanguarda de um
Brasil que jamais foi moderno. Instituto Humanas Unisinos, 2022.
Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/618002-nem-modernista-nem-anti-modernista-a-arte-indigena-contemporanea-e-cosmopolitica-na-vanguarda-de-um-brasil-que-jamais-foi-moderno, acessado em 22 de maio de 2022.
TERENA, Naine; MUNDURUKU, Daniel. Véxoa: Nós sabemos (catálogo de exposição). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020.
165
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Gabrielle Martin Távora1
O tempo da experiência
para encontrar uma
deriva própria
1 Gabrielle Távora é atriz e arte-educadora. Bacharel em Artes Cênicas pela USP,
licenciada em Artes Visuais e atualmente está cursando Pedagogia. Dos palcos
teatrais às salas de aula, tem investigado a interdisciplinaridade dos processos
artísticos com diferentes composições de grupo.
167
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
O tempo da experiência: para encontrar uma deriva própria é um dos projetos-aulas autorais que foram desenvolvidos durante o curso de Arte e Educação para Professores,
coordenado pelo Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa
em Arte e Educação - GMEPAE, da Escola de Comunicações e
Artes/USP, em São Paulo, e orientado pelas professoras doutoras Sumaya Mattar e Hercília Tavares de Miranda.
Este curso teve como circunstância principal a presença de
alunos que também são professores, ministrando aulas de
arte regularmente, ou outras disciplinas que contêm atividades artísticas, principalmente na escola pública. Portanto, a
criação dos projetos-aulas de cada um dos alunos se configurou também como um compartilhamento de pesquisas entre
educadores interessados em aprender uns com os outros, em
um curso ministrado à distância, com encontros virtuais durante o primeiro semestre de 2021.
O projeto-aula que intitula este relato visou criar uma experiência sensível através da ação do corpo no espaço, com
um procedimento de imersão sonora e sensorial denominado
“deriva poética”. Esta temática foi pesquisada por mim durante o ano de 2020, estando vinculada ao Departamento de
Artes Cênicas da USP e, posteriormente, com o estímulo das
professoras-orientadoras do curso em Arte e Educação, transformou-se em um projeto-aula, expandido e adaptado ao formato remoto.
O procedimento de deriva é uma prática artística realizada,
geralmente, no espaço público. Charles Baudelaire já praticava uma atividade estética similar denominada “flanância”.
Posteriormente surgiram as deambulações surrealistas, até
as Derivas ganharem forma com o Movimento Situacionista
168
TEIAS DE AFETOS E SABERES
na década de 1950. No contexto atual, a proposta é utilizar a
deriva como ferramenta pedagógica e estética para sensibilizar os participantes corporalmente, além de estimular a reflexão consciente, ainda que no interior de suas próprias casas.
Deriva é a ação estética de caminhar de modo desviante
do habitual, sem estabelecer um ponto de chegada e criando
regras de jogo que direcionem os próprios sentidos e a rota a
ser percorrida. De acordo com Berenstein:
[u]ma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de
se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e
das pessoas que nele venham a encontrar. (2012, p. 213).
Esse procedimento costuma ser utilizado como uma prática corporal para a criação artística, mas percebi também uma
potencialidade estético-pedagógica como ferramenta de sensibilização pessoal com os alunos, principalmente no contexto atual. Explico: muitas pessoas vivem a realidade exaustiva
do home-office, ou do ensino à distância, com tempo excessivo de exposição às telas, excesso de horas de trabalho e
excesso de informação.
Nessas condições, faltam tempo e espaço na rotina para
vivenciar momentos verdadeiramente sensibilizadores, disponibilizados pelo ócio criativo, rico em possibilidade de reflexão e experiência artística. O isolamento social também
agravou essa situação em 2020 e 2021, durante o período de
obrigatoriedade da permanência dentro de casa: um espaço
ocupado apenas com função de utilidade e produtividade, o
que contribuiu para criar uma vivência permeada de estresse,
insegurança, conflitos e falta de sentido.
169
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
O filósofo e pedagogo Jorge Larossa Bondía, ao refletir sobre o indivíduo moderno, afirma que “somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e superestimulados,
mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos”. (2002,
p. 24). A ausência de pausa em uma rotina caracterizada pelo
ritmo frenético de atividades faz com que nenhuma experiência significativa aconteça. A percepção aguçada e sensível
exige tempo para pensar, para olhar longamente, para escutar
os sons do ambiente com atenção, para sentir o corpo sem
ignorar as próprias emoções.
Pensando em promover uma situação artística-pedagógica
que operasse em função disso, criei um percurso de deriva
em formato “vídeo-aula” para ser feito pelos participantes
do curso de Arte e Educação para Professores dentro de suas
casas, através de um áudio pré-gravado com duração de 20
minutos, podendo ser baixado e ouvido em qualquer aparelho
celular.
O objetivo dessa prática foi promover um respiro na rotina desgastante e transformar a relação cotidiana dos alunos
com o espaço de suas casas, proporcionando uma experiência
artística e imersiva através do corpo e dos sentidos (audição,
paladar, olfato, tato). O sentido da visão tem sido super estimulado pelas intensas interações virtuais e constante presença de telas no cotidiano pandêmico. Por isso, a instrução
de vendar os olhos durante o exercício de deriva teve o intuito
de aguçar os outros sentidos da percepção.
O exercício foi realizado individualmente pelos alunos-professores em suas casas, no dia 28 de abril de 2021, enquanto
escutavam o áudio pré-gravado por mim. Para isso, eles deveriam escolher um cômodo da casa que possibilitasse liberda-
170
TEIAS DE AFETOS E SABERES
de para movimentação, e, de preferência, sem a presença de
outras pessoas (quarto, banheiro, garagem, corredor etc). O
áudio serviu como condutor das ações dos alunos no espaço
escolhido por cada um deles, passando por alguns momentos:
Como um corpo deriva no espaço?
Percepção corporal: pés e respiração;
Espreguiçar e alongar o corpo;
Vendar os olhos;
Caminhar no escuro/ perceber o espaço;
Guiar-se pela escuta;
Seguir os rastros lúdicos: sons, texturas, cheiros;
Permanência do corpo/ ativação do paladar;
Devaneio musical.
O procedimento de deriva constituiu-se como uma experiência estética muito potente, tanto para sensibilizar os participantes, quanto para gerar um estado de consciência sobre
seus gestos e percepções sensório-espaciais. Alguns retornos dos participantes sobre a experiência da deriva, após o
término da aula, superaram minhas expectativas sobre a capacidade de sensibilização dos exercícios e também trouxeram novas reflexões e apontamentos sobre a pesquisa, a ser
continuada com outros grupos de alunos de forma remota ou
presencial.
171
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Se a aula ministrada tivesse tido maior tempo de duração,
eu gostaria de realizar uma etapa posterior ao momento de
deriva: os alunos teriam o tempo de dez minutos ininterruptos
(escrita em fluxo) para registrar através de texto suas percepções e imagens mentais geradas durante o exercício corporal, estimulando assim, uma criação autoral e de elaboração
a partir da vivência artística. Penso que o procedimento da
deriva é versátil como ferramenta pedagógica, podendo ter
diversas repercussões e enfoques, inclusive como preparação
para outras atividades de criação artística em sala de aula debates, leituras e até mesmo a confecção plástica em ateliê
- a depender das características de cada grupo de alunos.
Por conta do contexto de isolamento social durante a pandemia de COVID-19, criei uma relação entre a sensibilização
corporal e o espaço da casa. Entretanto, seria interessante
fazer a mesma atividade em espaço aberto com os estudantes, como o pátio escolar ou até mesmo um parque, enquanto
eles se mantivessem com os fones de ouvido e de olhos vendados. Pretendo direcionar o olhar dos participantes para o
cultivo da atenção e da delicadeza, criando tempo e espaço
para explorar os sentidos; premissa que se manterá diante da
adaptação deste procedimento estético-pedagógico para novos espaços que não sejam de caráter privado e individual - a
escola, o parque, a rua.
Tive a oportunidade de compartilhar este projeto-aula com
tantos alunos-professores dedicados, durante os encontros
do curso de Arte e Educação da ECA/USP. E na troca prazerosa que se realizou, na intensa fluidez entre ensinar-aprender,
pude constatar que O tempo da experiência: para encontrar
uma deriva própria é apenas uma das vias possíveis para a
minha pesquisa sobre sensibilização poética, sobre incentivar
172
TEIAS DE AFETOS E SABERES
os alunos a se demorarem nos detalhes, a suspenderem os
juízos de valor e o automatismo das ações.
Para ressignificar, pela audição e por outros sentidos, a relação dos alunos com o espaço da casa, foi utilizado o procedimento da deriva em audioguia. Porém, o trabalho continuará, espero que em novos formatos também, pois ainda há
muitos caminhos a serem desvendados e percorridos. Então,
para concluir e inspirar os desdobramentos futuros desta
pesquisa, deixo registrado aqui as palavras de Lispector, as
quais sintetizam o estado de experiência que busco através
da sensibilização poética: “O mundo não tem ordem visível
e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.”
(2020, p. 20).
Referências
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de
experiência. Revista Brasileira de Educação, 2002, n. 19, p 20-28.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt , acessado em 21 de junho de
2021.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador : EDUFBA, 2012.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
173
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Dayse Ana Fernandes1
Fios que se encontram:
histórias e memórias
Caminhos iniciados
[...] Acredito que precisamos estar em constante reflexão e formação para podermos rever e revisitar nossas práticas, multiplicando assim o conhecimento, e esse curso com a temática
voltada para “Arte e Educação” representa a possibilidade de
novas experiências e aprendizagens, coincidindo com um dos
meus propósitos de trabalho que é possibilitar a troca de conhecimentos através das expressões artísticas, respeitando a criança como parte ativa e principal do desenvolvimento, valorizando
não o produto final, mas sim todo o processo de criação ...
O trecho acima é um recorte do relato autobiográfico escrito
1
Dayse Ana Fernandes. Formada em Pedagogia pela UNIFESP, atuando como
professora de Educação Infantil na Rede Municipal de São Paulo, sempre em busca
do encantamento, diversidade e potencialidades que as artes oferecem.
175
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
por mim no início do primeiro módulo, que apresenta algumas
das expectativas ao participar do curso, e posso afirmar que
essas perspectivas foram atingidas de maneira que foi possível refletir, ressignificar, aprender, compartilhar experiências e
experimentações que trouxeram reverberações diretamente no
chão da escola. E destaco ainda que a didática utilizada durante
todo o processo, onde pudemos observar, ouvir, experimentar,
refletir com pesquisadores de diferentes linguagens artísticas,
valorizando as culturas dos povos originários e com práticas decoloniais, foi essencial para o enriquecimento, desenvolvimento
e movimentação do curso. Os relatos de prática compartilhados
ao longo de todo o processo, também foram indispensáveis para
a reflexão entre o “pensar e fazer” nas unidades educacionais,
principalmente quando nos referimos à educação pública e sua
pluralidade de corpos, vozes, cultura, etc.
Mesmo durante a pandemia do COVID-19, onde tivemos que
alterar as aulas para o ensino remoto a fim de dar continuidade
ao segundo módulo do curso, foi possível dividir as experiências nessa modalidade de ensino que era novidade para grande
parte dos participantes, o que tornou possível ampliar o repertório através do compartilhamento de referências e práticas.
Inicialmente, quando ainda estávamos começando o ano letivo de 2020, identifiquei em minha turma o interesse por vivências com movimento. Assim, em conjunto com um grupo parceiro, iniciamos o projeto “Tecendo Movimento”, onde inspirados
nos artistas Hélio Oiticica e Ernesto Neto, começamos um processo de experimentações com tecidos, afim de desconstruir a
arte como algo estático, e que está associado apenas as Artes
Visuais, mas busca evidenciar o corpo e todos os sentidos, como
maneiras de vivenciar e experimentar a arte. Infelizmente devido à pandemia precisamos interromper o processo, mas mesmo
176
TEIAS DE AFETOS E SABERES
nas propostas on-line, as referências artísticas e suas diversas
linguagens sempre estiveram presentes.
Novas direções: “Super tapete arco-íris gatinho colorido
late.”
Ao retornar para o ensino presencial no segundo semestre
de 2021, houve muitas mudanças, incluindo a quantidade de
crianças, a necessidade de protocolos de higiene constantes,
e o aumento na dificuldade para o diálogo e escuta, devido a
todo contexto relacionado à pandemia.
Com inspiração em uma das primeiras vivências do curso,
onde tivemos contato com o bordado que permeou todo o
processo das experiências, iniciei uma experimentação com
as “Rodas de Bordar”, buscando ampliar o diálogo e a resolução de conflitos entre as crianças da turma, utilizando a arte
como veículo de reflexão e inspiração no cotidiano, assim
como experimentamos durante as aulas presenciais do curso,
onde tínhamos a possibilidade de nos inspirar com os diálogos e bordar. Segundo Vinicius Azevedo, um dos professores
do curso e com quem tive a oportunidade de aprender durante toda essa experiência:
[n]a Roda de bordado, construímos vínculos afetivos muito
fortes, nos tornamos amigos e a Roda é o lugar onde nos encontramos. Mas como isso se instaura? Os comentários feitos
nesta conversa dão algumas pistas: valorizar o encontro, instaurando a roda em que todos podem se ver, pensar e fazer
juntos, sem distinção de saberes, sem pretensões artísticas,
sem preocupações extremas com produtos, mas trazendo processos que alimentem o desejo. (AZEVEDO, 2021 p.102)
Observando a dificuldade sobre a atenção e entendimento
177
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
dos combinados, nas minhas duas turmas de Educação Infantil
II, em uma Escola Municipal da Prefeitura de São Paulo, localizada na Zona Leste, iniciei o processo de “Rodas de Bordar”
utilizando como material Talagarça Preta, retalhos, fitas de cetim e barbantes, onde os bordados seriam feitos com as mãos.
Imagem 1: Disponibilidade dos materiais para iniciar a vivência.
Iniciamos o processo conversando sobre o conhecimento
prévio que eles tinham sobre o que era “bordar”, onde surgiram respostas como: - é tipo um pano, é costurar um pano na
máquina, serve para costurar as roupas. Até que chegamos
em uma resposta que trouxe a ancestralidade para o nosso
diálogo, onde a criança disse:
Minha vó é costureira, e ela sempre trabalhou assim! O sonho
dela é ter uma máquina lá em casa, eu peço pra ela fazer os
vestidinhos pra minhas bonecas e ela faz em um segundo com
a máquina.
E partindo dessa resposta, várias crianças começaram a
178
TEIAS DE AFETOS E SABERES
compartilhar o nome das pessoas da família que costuravam,
associando ao ato de bordar, evidenciando assim o conhecimento que os entes queridos possuem.
Imagens 2 e 3: Criança que iniciou a conversa sobre o conhecimento da
família: Minha avó faz desse jeito!
Começamos assim uma rotina com pelo menos vinte minutos de “Rodas de Bordar”, todos os dias, que poderia ser feita
na sala de referência, ou área externa, onde conversávamos
sobre os combinados e acontecimentos com a turma, preferências do cotidiano, brincadeiras, brinquedos, passeios, sentimentos, sensações, etc. As crianças gostavam de compartilhar o que faziam em casa e com suas famílias, os desenhos
e filmes que assistiam e também aproveitavam para dividir o
que os incomodava, e a preocupação com o fim da pandemia.
Algumas crianças que demonstravam dificuldade para se
expressar, começaram a se sentir mais confortáveis, assim
como algumas que apresentavam conflitos constantes, começaram a se ajudar no momento do bordado, cortando as linhas
179
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
umas para as outras, pensando em maneiras de impedir o tapete de sair do lugar, auxiliando a amarrar as fitas, entre outras coisas que passaram a facilitar a convivência. Em nosso
combinado ninguém era obrigado a fazer o bordado, mas buscávamos ficar sentados juntos, incentivando assim a escuta.
Imagem 4: Duas crianças que apresentavam conflitos constantes, mas
que no momento do bordado sempre estavam próximas e se ajudando.
A criatividade e imaginação também foram estimuladas de
várias maneiras através dessa vivência, uma vez que as crianças tinham a liberdade de utilizar os materiais da maneira que
preferissem, e essas materialidades passaram a fazer parte
da rotina em outros momentos também. Pensando na proposta “Tecendo Movimento”, anterior a pandemia que começou a
ser desenvolvida em 2020, as crianças também conseguiram
se apropriar do bordado em seus corpos, utilizando as linhas,
180
TEIAS DE AFETOS E SABERES
lãs e barbantes, literalmente fazendo arte.
Imagens 5 e 6: O bordado no corpo.
Imagens 7 e 8: As mãos que bordam e brincam.
Pensando na interdisciplinaridade que também é importante nessa etapa da educação, essa experimentação artística
proporcionou que as crianças cultivassem noções de espaço,
tamanhos, construção de figuras geométricas, identificação de
cores, registros, entre outras questões que tiveram influência
positiva no restante das vivências ao longo do semestre.
181
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagens 9 e 10: Figuras geométricas que foram surgindo e medição das
fitas.
Durante o processo da vivência, as crianças foram ficando
cada vez mais participativas e começaram a compartilhar com
os colegas a maneira que gostavam de fazer seus bordados,
como se fossem tutoriais, assim como começaram a simbolizar o entrelace das linhas, como: os cabelos da boneca, o
dinossauro T-Rex, o carrinho, entre outros.
Imagem 11: A boneca com seus laços no cabelo: - Prô, olha o cabelo da
minha menina!
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Em um dia chuvoso, a criança de uma das turmas comentou que quando para de chover, aparece o arco-íris, e outra
respondeu que era colorido igual o nosso tapete, sugerindo
assim dar o nome de “Tapete Arco-íris”. Levei essa informação
para a outra turma, e sugeri de pensarmos um nome para o
outro tapete também, surgindo assim o nome “Super tapete
gatinho colorido late”. Com suas devidas explicações: o super
é porque ele é um tapete muito grande, gatinho porque eles
amam linhas soltas, colorido porque usa muitas cores e late
porque quando as fitas se juntam formam um objeto. Cada
uma dessas explicações foi dada por uma das crianças, mas
como não conseguimos eleger um único nome, resolvemos
juntar todos.
Imagens 12 e 13: “Tapete Arco-íris” e “Super tapete gatinho colorido
late”.
O bordado que se multiplica
Ao longo dessa vivência, foi possível observar o quanto as
crianças estavam incorporando as materialidades e comportamentos no cotidiano, ampliando assim a escuta e o diálogo
em diversas situações, assim como estavam exercendo papel
183
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ativo em seu desenvolvimento e na relação com seus pares,
compartilhando as descobertas, observações e reflexões com
todos, onde a arte desempenha um papel condutor e estimulante. Com o passar do tempo, a proposta de bordado começou a aparecer em mais momentos, e pôde exercer influência
em outras propostas e brincadeiras na rotina da turma, assim
como também esteve presente na reunião com as famílias,
para compartilhar e convidá-los a participar da vivência.
Imagem 14: Bordado com elástico na grade, que virou uma cama de gato.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Imagem 15: Famílias conhecendo os tapetes.
Assim como as “teias de aprendizagem” construídas ao
longo do curso, acredito que o emaranhado de lã e linhas nos
tapetes confeccionados nessa vivência, oportunizaram que as
crianças compartilhassem e ampliassem seus conhecimentos,
assim como tiveram a possibilidade de vivenciar e experienciar a Arte em seu cotidiano.
Finalizo assim esse relato, ressaltando a importância desse
curso para a formação de professores, sobretudo da Rede Pública de Ensino, uma vez que através das artes conseguimos
ampliar o trabalho pedagógico com as crianças e adolescentes, assim como refletir sobre a prática docente de maneira
artística e poética, sempre buscando valorizar e respeitar as
diferentes histórias e vozes que compõem esse “imenso bordado” que é a educação.
185
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 16: Observação do processo de bordar.
Referências
AZEVEDO, Vinícius Souza. Rodas de bordar: Atenção distendida
em espirais na formação de professores de arte – Volume 01. Tese
(doutorado) apresentada à Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, 2021.
São Paulo (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria
Pedagógica. Currículo da cidade : Educação Infantil. – São Paulo :
SME / COPED, 2019.
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
Gláucia Adriana Simões1
Reverberações
“Nada sobre nós sem nós” - significa que nenhum resultado a
respeito das pessoas com deficiência deverá ser gerado sem
a plena participação das próprias pessoas com deficiência
(Sassaki, 2007).
Momentos de Reflexão
Quando iniciei o curso de Arte e Educação para Professores, fui orientada a fazer um recorte autobiográfico, o que foi
muito importante para me ajudar a entender qual era o verdadeiro motivo pelo qual fiz minha inscrição, pois tive a oportunidade de me investigar e refletir. Lembro-me que durante
a sua elaboração por algumas vezes, correram lágrimas pelo
meu rosto, pois me confrontei e me enxerguei.
Caminhei pelas lembranças de todos os anos letivos e per-
1
Gláucia Adriana Simões. Pós graduada em Educação Especial com ênfase em
surdez pelo Mackenzie, habilitada em surdocegueira pela Ahimsa/ USP, guia intérprete e professora de arte para Ensino Fundamental I, II e Médio em EMEBS
(Escola de Educação Bilíngue para Surdos) na cidade de São Paulo.
188
TEIAS DE AFETOS E SABERES
cebi que os momentos felizes foram em maior quantidade,
mas, também me lembrei, que quase pedi minha exoneração,
pois também existiram momentos difíceis.
Hoje, vivo uma realidade pedagógica completamente fora da
realidade dos demais colegas de área. Depois de me remendar,
refazer e me restaurar, sou uma professora completamente diferente e trabalho com os alunos incríveis e em um ambiente
escolar acolhedor. Sou apaixonada pelo meu trabalho!
Comecei a lecionar como professora de Arte com habilitação
em Música. Minha prática era voltada para a musicalização, e
hoje sou professora de Arte especializada em educação especial com ênfase em surdez e deficiência múltipla e deficiência
sensorial (surdocegueira). Não sou mais musicalizadora...
Foi perguntado a mim o que eu desejava para o meu aluno
e eu respondi que meu desejo é que ele seja autônomo e que
sua cultura e identidade sejam reconhecidas, compreendidas
e respeitadas para que ele possa ser inserido na sociedade.
Percebi que meus colegas de curso desejavam o mesmo para
os seus estudantes, eles não conheciam o universo dos meus
estudantes surdos e eu não prestava atenção em que condições os estudantes deles viviam. Foi uma troca maravilhosa!
Desdobramentos
No decorrer do curso trocamos muita experiência, minha
prática pedagógica mudou e fui contaminando meus colegas
de escola com as ideias e práticas que absorvi. E meus alunos
foram os maiores beneficiados.
Foi inevitável confeccionar os cadernos com meus estudantes que aprenderam a técnica e se surpreenderam com a
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
possibilidade de fazer o próprio caderno.
Imagens 1 e 2: produção de cadernos artesanais.
O bordado gerou briga entre meus estudantes, não havia agulhas suficientes e todos queriam ficar bordando. Alguns alunos
me pediram para levar o material para casa para poder fazer em
seu momento de lazer. Eles também foram entrelaçados.
Imagens 3, 4 e 5: produção do estandarte da escola.
190
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Temas africanos e indígenas transitaram intensamente pelos corredores da escola. Em 2021, as culturas afro-brasileiras
e indígenas tornaram-se eixo norteador dos projetos da escola, passando pelas diferentes áreas de conhecimento (Arte,
Literatura, Geografia, LIBRAS...).
Algumas das propostas de trabalho nesta Escola Municipal
de Educação Bilíngue para Surdos (EMEBS) caracterizam-se
por serem interdisciplinares, cujo objetivo é facilitar o aprendizado do estudante, construindo repertório e diferentes visões (áreas de conhecimento) para promover aquisição de
saberes.
O primeiro projeto do ano foi trabalho com o Abaporu2:
ainda em férias (janeiro) os professores de Geografia, Português e sala de leitura entraram em contato comigo para que
pudéssemos pensar em alguma atividade para acolhimento,
introdução. Queríamos uma atividade de sensibilização mas
que abordasse temas eleitos como eixo norteador do ano
(culturas afro-brasileiras e indígenas). Sugeri, então uma atividade usando o Abaporu, contextualizando de acordo com a
visão antropofágica, mas fazendo uma analogia a pandemia
(vivemos um ano pandêmico, uma nova realidade, nos “alimentamos” desse “novo normal” e nos tornamos diferentes,
pois trouxemos novas práticas e diferentes tecnologias para a
nossa rotina) e os demais professores foram dando contribuições à elaboração da atividade cujo objetivo era, segundo o
currículo da cidade, analisar o papel da diversidade de povos
e culturas no processo de formação territorial brasileira, de-
2 Nome de quadro da artista brasileira Tarsila do Amaral. Técnica óleo sobre tela,
pintado em 1928.
191
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
batendo modos de vida e diferentes territorialidades. E proporcionar uma discussão promovendo reflexão sobre o tema
(suas possibilidades e conhecimento artístico, a releitura da
obra e uma reflexão sobre o momento pandêmico vivido).
O projeto seguinte foi a lenda da mandioca, que possibilitou valorizar a cultura indígena e brasileira, a literatura,
biologia, culinária, identidade de um povo e, claro, produção
artística na releitura da lenda criada por representações concretas (elemento táteis dos personagens e a própria mandioca) no momento de recontar a lenda. Vale lembrar que todo o
processo de confecção dos elementos concretos BPM (aluna)
participou ativamente da produção.
Anansi, um importante personagem das lendas africanas,
deu origem ao próximo projeto, trazendo a cultura vinda da
África e nos presenteando com suas histórias e outras vindas
de seu continente de origem. Com ele chegaram as primeiras
histórias e uma delas é a “Lenda do Baobá”, a primeira árvore
do mundo e toda uma simbologia que traz consigo conhecimentos culturais, literários e matemáticos.
Surdocegueira
Minha primeira atividade no curso foi o bordado. Senti a
imensa necessidade de bordar um compasso de música cujo
título leva o nome de BPM e foi o que fiz, não entendia o motivo, mas ela estampou minha atividade. Quando fiz o recorte
autobiográfico, senti necessidade de usar uma foto e quem
estava ali para dizer em que tipo de professora me tornei foi
ela: BPM.
Nas EMEBS temos um público diferenciado, todos os estu-
192
TEIAS DE AFETOS E SABERES
dantes são surdos ou surdos com outras deficiências associadas, entre eles os surdocegos.
A aceitação do termo surdocego e surdocegueira sem hífen em
1991, foi proposta por Salvatore Lagati que defendeu na IX Conferência Mundial de Orebro - Suécia, a necessidade do reconhecimento da surdocegueira como deficiência única (SR Maia)
Para lecionar em uma EMEBS (Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos) é necessário ter pós-graduação em
surdez e para trabalhar com um aluno surdocego é necessário ter especialização em surdocegueira. Conhecer a história,
cultura, identidade, língua e formas de comunicação do aluno
surdo e surdocego é imprescindível.
Sou professora de Arte lotada na EMEBS Helen Keller desde
2014. Sempre trabalhei com todas as turmas, nos quatro níveis da escola (Ensino Fundamental I, Ensino Fundamental ll,
Ensino Médio e EJA) e em 2016 concluí minha especialização
em surdocegueira. Sentia-me confortável em trabalhar com
as turmas que possuíam alunos com múltiplas deficiências,
esse público me atraía, mas apenas em 2021 tive coragem de
atribuir como regência em surdocegueira a aluna BPM.
BPM tem 17 anos e cursa o 1º ano de Ensino Médio, tem síndrome de CHARGE o que acarreta em surdocegueira, má formação do sistema digestivo, respiratório, reprodutivo, insuficiência cardíaca e deficiência intelectual. A estudante possui
um pequeno resíduo visual e auditivo, que possibilita a inclusão do uso de imagens e sons na rotina pedagógica.
Devido à deficiência sensorial (surdocegueira) é necessário que seja acompanhada por um guia-intérprete. Este, faz a
interpretação usando o método de comunicação adotado pelo
193
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
estudante que no caso da BPM é a fala ampliada e LIBRAS tátil.
Surdocegueira é uma deficiência singular que apresenta perdas auditivas e visuais concomitantemente em diferentes
graus. Levando a pessoa surdocega a desenvolver diferentes
formas de comunicação para entender e interagir com as pessoas e o meio ambiente, para ter acesso a informações, uma
vida social com qualidade, orientação, mobilidade, educação
e trabalho. (Grupo Brasil-2003).
Flexibilizar o currículo e atividades e adaptar material e suporte pedagógico é uma das funções do guia-intérprete. A ele
compete saber quais são os conteúdos que os professores das
diversas disciplinas vêm desenvolvendo com a turma para que
assim possa elaborar atividades e os materiais para o desenvolvimento delas, respeitando os temas que estão sendo trabalhados com os demais educandos. Ou seja, flexibilizar o currículo
e confeccionar material adaptado ao estudante com deficiência
múltipla e sensorial. Portanto, manter diálogo e planejar junto
com os demais professores e frequentar a sala de aula junto com
os demais estudantes é fundamental. Cada estudante com deficiência múltipla e sensorial é único. Existe uma série de fatores
a serem analisados, assim como o seu nível de motricidade, cognição, capacidade visual e auditiva, só então é possível fazer as
adequações necessárias para cada um.
Ser a guia-intérprete da estudante BPM em plena pandemia
- que obrigou a manter distância como parte dos protocolos sanitários -, foi um verdadeiro desafio. Como manter a distância se
a comunicação é LIBRAS tátil? Como desenvolver as atividades
em uma aula on-line com um estudante surdocego? A colaboração da família da estudante foi fundamental, e a partir dela
foi possível desenvolver um projeto sobre cultura indígena, um
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
dos temas amplamente discutido no curso, e logo após planejar,
recebi o desafio de desenvolver uma aula, da maneira que trabalharia com minha “turma”, e executá-la com os participantes
do curso. Não queria apresentar algo trabalhado em algum momento do passado, queria mostrar o que estava trabalhando e,
contando com o apoio da família de minha estudante e com os
demais professores de minha unidade escolar, me senti segura
para apresentar o que recentemente havia planejado, pois tinha
relação direta com os conteúdos que aprendi. Pedi que minha
apresentação fosse uma das últimas, pois entendi que precisava
fazer registros do desenvolvimento dela com BPM. Tinha ciência que para compreender, de fato, os objetivos e as habilidades
a serem desenvolvidas, era necessário conhecer um estudante
surdocego, entender como se dá a sua comunicação e quais são
as suas necessidades. Muitas vezes durante o curso, fazia relatos de situações que para mim era corriqueiro e óbvio, mas olhava para os demais participantes e percebia que o que eu dizia
não fazia sentido algum, pois não é comum um professor ter em
sua turma um estudante surdocego. Tive então a oportunidade
de apresentar este universo aos demais e então passei a trabalhar no projeto “Lenda da Mandioca”.
É importante saber que pequenos detalhes devem ser valorizados quando trabalhamos com um estudante surdocego,
pois somos os olhos e ouvidos deles e precisamos lhes mostrar o mundo. Não devemos lhes apresentar as coisas prontas, ele precisa compreender o que são, de onde vem, para
que serve. Em outras palavras, todo material é confeccionado
junto ao educando para que de fato ele compreenda o processo. A estudante BPM ainda está na fase de aquisição de
linguística, conhece poucos sinais (Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS), em que se refere à comunicação, ela é passi-
195
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
va, compreende pouca coisa e faz uso de pouquíssimos sinais
para se expressar, portanto toda atividade desenvolvida para
ela deve contemplar a ampliação de vocabulário e conceitos.
Comecei ensinando o sinal de mandioca e para isso enviei um
kit com mandioca, farinha de mandioca e tapioca para a família e os orientei a cozinhar e fazer o uso do sinal de mandioca (LIBRAS), enquanto a BPM estivesse saboreando. Também
orientei a família a deixar que BPM explorasse as texturas
das diversas farinhas feitas com a mandioca, a mãe de BPM
depois de permitir que a filha explorasse as texturas fez um
pão utilizando a farinha. Tocando, cheirando e saboreando foi
apresentado à estudante um elemento da lenda assim como o
seu sinal. Devemos estimular todos os sentidos de um aluno
com deficiência sensorial.
Outros elementos precisavam ser trabalhados como “indígena” e esse foi meu grande desafio. Como ensinar o conceito de
indígena para uma estudante surdocega com deficiência intelectual, sem que haja um apelo para estereótipo do indígena, pois
a aluna precisa tocar, precisa de pistas táteis para memorizar, e
nesse caso, infelizmente o uso de alguns estereótipos foram necessários. Com minha estudante não é possível fazer um trabalho
reflexivo e crítico.O que fiz foi mostrar que existe o indígena e a
mandioca, e de alguma forma, ela está associada a ele.
Para lhe apresentar e ensinar o sinal de indígena, usei a foto
de uma indígena na qual apliquei relevo e texturas e posteriormente, quando a estudante já havia começado a frequentar as
aulas de maneira presencial, começamos a confecção do material tridimensional (bonecos), utilizando os mesmos elementos
texturizados na foto. Como disse anteriormente, o estudante
com surdocegueira deve participar de todo o processo de confecção do material, portanto BPM me ajudou a riscar o tecido,
196
TEIAS DE AFETOS E SABERES
cortar, costurar, - fazendo uso da máquina de costura -, encher
e decorar. Todo esse processo demorou três semanas e, junto
à confecção do material, foi permitido que a estudante explorasse de diversas formas os materiais utilizados (tocar, cheirar,
sentir a vibração), assim como seus sinais.Enquanto fazíamos
a decoração dos bonecos, também trabalhamos sinais como:
cabeça, braço, corpo, pernas, cabelo, olhos, boca, nariz, além da
diferenciação de cada boneco, para que a estudante percebesse que eram diferentes personagens.
Imagens 6, 7, 8 e 9: produção de bonecos da ”Lenda da Mandioca”.
Dentro do processo de aquisição linguística é necessário
falar de um elemento de extrema importância presente na es-
197
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
cola bilingue: o instrutor de LIBRAS. O instrutor de LIBRAS é
um adulto surdo, que auxilia os professores e alunos no uso
da língua de sinais e ainda serve como referência para os alunos surdos. Recebi o auxílio dos instrutores durante o processo de desenvolvimento da atividade.
Só depois da finalização do material e de ter trabalhado
todo o vocabulário, elementos e conceitos é que convidamos
a professora de Sala de Leitura que contou a lenda utilizando
o material tridimensional.
Imagens 10 e 11: Atividade de Sala de Leitura (contação da “Lenda da
Mandioca”).
E esta foi a atividade apresentada para os meus colegas
de curso e como é uma atividade funcional, não parou por aí.
Depois de apresentar a lenda da mandioca para a estudante
BPM, venho trabalhando outros conceitos, sinais e palavras
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
derivados dessa lenda, assim como o conceito de “família”. O
processo pedagógico para um estudante com deficiência múltipla e sensorial se dá em espiral crescente, e deve seguir o
ritmo do aluno, que geralmente é mais lento. Para trabalhar
com esse público é necessário observar, conhecer seu estudante, criar vínculo. Ele precisa confiar em você, e sobretudo
é preciso ter muita paciência e amor.
Tramas...
Hoje, percebo como tudo foi meticulosamente elaborado...
começamos com o bordado, bordamos sem nenhuma pretensão, mas costurei amizades, vínculo e afeto. Cada um bordando algo significativo em sua vida, lembranças e histórias iam
passando pela cabeça e muitas vezes eram ditas em voz alta e
compartilhada com os colegas.
Entrelaçamentos, fios, rede...
Ouvir e ser ouvida, os relatos dos colegas que vivem os
mesmos problemas e outros problemas que desconhecemos.
Houve apoio mútuo e ali ficamos entrelaçados.
Desenhamos, pintamos, dançamos, brincamos, atuamos e
relaxamos. Momentos em que pudemos nos colocar no lugar
do aluno e muitos de nós voltaram a ser criança. Percebi como
pode ser prazerosa a sala de aula.
Confeccionar nossos cadernos para que possamos dar início ao nosso diário foi delicioso. Na educação de alunos com
deficiência múltipla e sensorial é indicado confeccionar o ma-
199
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
terial que é usado durante as aulas, do zero, junto e com a colaboração do estudante. Foi inevitável fazer essa comparação.
É importante que o aluno se aproprie do material e participe
de todas as etapas da confecção deles, pois assim ele cria memória afetiva e compreende que não é feito magicamente.
A história de Anansi ilustrou e fixou a teia que formamos,
os nós foram desembaraçados.
Imagem 12: símbolo da interação “Não somos nada sem o outro”.
200
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Referências
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.
MAIA, Shirley Rodrigues. A Educação do Surdocego – Diretrizes
Básicas para Pessoas não Especializadas. Dissertação de mestrado, defendida junto a Universidade Presbiterana Mackenzie, no
Programa de Pós-Graduação de Distúrbios do Desenvolvimento,
sob a orientação de Elcie Fortes
Salzano Masini. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie,
2004. Disponível em: https://perkinsglobalcommunity.org/lac/wp-content/uploads/2021/02/A-Educacao-do-Surdocego-%E2%80%93-Diretrizes-Basicas-para-Pessoas-nao-Especializadas_autor-Maia-Shirley-1.pdf
SASSAKI, R. K. O direito à educação inclusiva, segundo a ONU. In:
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada. Brasília: Corde, 2007.
201
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Ranieri Rangon Ramos1
Arte como expressão de
múltiplas possibilidades
Introdução
O curso de Arte e Educação para Professores parte de uma
perspectiva freireana de que o aluno traz consigo uma série
de conhecimentos adquiridos por meio de suas vivências.
No caso, os alunos são também professores de diferentes
redes de ensino e diferentes áreas do conhecimento, tendo
sua própria organização e bibliografia construídas. O grupo
de estudos que rege o curso de Arte e Educação, considera
as práticas e saberes de cada um, buscando potencializá-las
através da arte, compartilhando experiências e visões sobre
a educação. Neste sentido, o curso carrega um viés que, além
de somar diversas práticas realizadas por seus estudantes/
professores, inclui a arte em um ensino interdisciplinar e car-
1
Ranieri Rangon Ramos. Professor da Rede Municipal de Ensino de São Paulo,
graduado em Geografia e Pedagogia, atuante como professor de leitura.
203
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
regado de significado para os alunos destes professores que
também se beneficiarão desta formação, sendo o curso uma
forma de rede, que visa replicar todo conhecimento compartilhado e práticas desenvolvidas em seu decorrer.
Este formato de rede de saberes e práticas está presente
desde a formação do curso, pensado para ser ministrado por
um grupo de estudos e não por um professor isoladamente.
Cada membro do grupo de estudos, bem como cada aluno do
curso, tem uma série de conhecimentos e práticas prévios, que
garantem uma pluralidade capaz de dar variados tons à rede
construída ao longo do curso. A partir das noções de fenomenologia, sabemos que nossas vivências transformam o como
percebemos e lidamos com o mundo. No formato de rede proporcionado pelo curso, as demandas de cada membro se tornam horizontais, criando um cuidado especial para os temas da
diversidade, tais como a temática afro, indígena, a atenção com
alunos com necessidades especiais, dificuldades de aprendizado, além de um olhar atento à arte-educação, tema gerador
do curso. Desta forma, é através das práticas já realizadas e o
compartilhamento de ações e visões de mundo que se desenvolve um trabalho mais empático para a pluralidade e a inclusão. Os vários olhares e ações de cada participante do grupo
rendem debates e reflexões capazes de melhorar a prática docente, transformando a identidade do ser professor.
O ambiente propiciado pelo grupo de estudos favorece uma
aprendizagem que vai além do debate bibliográfico, somando
ao referencial teórico uma base de práticas compartilhadas.
Falar sobre a influência deste curso em minha prática docente se torna uma tarefa imensurável em um caráter amplo,
pois é o tipo de experiência que amplia nossa percepção a
204
TEIAS DE AFETOS E SABERES
longo prazo, se tornando presente em diversas ações, portanto, irei exemplificar, sem o intuito de reduzir a isto, a partir de
uma atividade proposta pelo grupo, desenvolvida e aprimorada durante o curso.
Da atividade desenvolvida
Inicialmente, a proposta do curso era a criação de um projeto que valorizasse as experiências dos professores/alunos,
pensado a partir do curso de formação em arte educação.
Contudo, foi necessário adaptar-se ao ritmo imposto pela
pandemia da COVID-19, mudando o formato do curso para vídeo aulas, o que não ocasionou alterações na proposta de escuta e partilha, por mais que tenha criado limitações devido
ao distanciamento, que gerou uma atmosfera um pouco menos afetiva, não por culpa dos integrantes / participantes das
aulas, mas pela característica que a tecnologia proporciona,
tendo em vista que uma tela é totalmente diferente do contato e diálogo realizado pessoalmente.
A nova proposta, manteve a base de compartilhamento de
experiências a partir de apresentações individuais sobre propostas de aulas, com tempo para sugestões, comentários e
reflexões a cada aula ministrada.
Como forma de realizar esta atividade proposta pelo grupo
de estudos, foi pensada uma aula com a duração de 45 minutos. O intuito é sensibilizar os alunos de idade entre 11 a 14
anos para a diversidade, pensando nos múltiplos olhares sobre o mundo. A aula em questão vinha sendo ministrada como
forma de preencher alguma lacuna na ausência de professor
regente, uma vez que foi pensada como atividade a ser aplicada na função de módulo (professor substituto), função que eu
exerci durante o primeiro módulo do curso de Arte e Educação.
205
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Esta proposta de aula introdutória tem como objetivos:
a) Refletir sobre a existência de diferentes olhares;
b) Compreender a influência da cultura em nossa individualidade;
c) Entender e refletir sobre as variáveis biológicas em nossa formação.
Foi pensada como uma aula interdisciplinar, portanto remonta temas de diversas áreas do conhecimento e dependendo do ano letivo na qual é lecionada, introduz ou revisa temas
que os estudantes verão ou viram em outras disciplinas.
É dividida em três etapas:
Como enxergamos?
Cultura e visão de mundo.
Atividade.
Como enxergamos?
Aqui se estabelece uma diferença entre enxergar e olhar.
Enxergar é entendido como a habilidade de ver as coisas. Já
o olhar é algo carregado de cultura, ou seja, distribui significados; é a avaliação, adjetivação que fazemos com as coisas
que enxergamos. Neste ponto da aula são exploradas duas
ideias que colocam a habilidade de enxergar como parte de
um processo evolutivo. Primeiramente é explicado um pouco
sobre os processos evolutivos ocasionados pela adaptação.
Neste ponto, é oportuno citar a Teoria da Evolução de Darwin.
206
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Uma vez que somos animais resultantes destes processos,
enxergamos devido à forma como nos adaptamos a tal, sendo necessária a presença de luz para que consigamos realizar
este processo. É explicado para os alunos que enxergamos a
luz refletida pelas coisas, e sendo assim, nossa percepção é
uma espécie de ilusão de ótica criada pela refração da luz. Dada
a explicação, os alunos são provocados a refletir outras formas de se perceber o mundo, como, por exemplo os morcegos,
que a partir do sonar conseguem se locomover reconhecendo o
ambiente no qual estão inseridos, ou os insetos, que têm uma
percepção a partir das vibrações captadas por suas antenas.
Desta forma, o aluno é levado a questões de como seria se conseguíssemos perceber as coisas de outra forma, ou de mais de
uma forma simultaneamente? Como seria vivenciar o mundo a
partir de outros processos evolutivos diferentes do nosso?
Um ponto interessante no que se refere à inclusão: é muito comum, neste ponto da aula, partir dos próprios alunos a
curiosidade de como daltônicos e cegos percebem o mundo
dentro de suas limitações. Isto pode gerar desdobramentos
futuros para trazer o tema com maiores detalhes, além de atividades para experimentar esta percepção de forma imersiva.
A segunda parte consiste na explicação da realidade, entendendo que esta é composta por Tempo + Espaço, sendo que
temos noções do chamado 3D (altura, profundidade e largura),
mas com relação ao tempo nossa percepção se limita ao que
denominamos presente. Tal percepção da realidade também
pode ser entendida como um processo evolutivo, levando os
alunos a uma segunda provocação, será que existem espécies
que experimentam noções diferentes do tempo? Ou até mesmo,
como seria perceber o tempo para além do momento presente?
207
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Cultura e visão de mundo
Neste ponto da aula partimos das considerações evolutivas, para as considerações sociais.
A partir da ideia de cultura, a exposição aborda como esta
influencia em nosso olhar sobre o mundo, processo que vai
desde os nomes que damos às coisas, até mesmo ao julgamento que empregamos. A Cultura é algo que está presente
em nossa formação, nos empregando, além da língua, noções
que podem ou não ser questionadas e passadas adiante. Desta forma, temos a capacidade de perpetuar ou romper preconceitos, manter ou romper com paradigmas. Nesta parte
da atividade, os alunos são provocados a pensar em pessoas
que usam outras línguas para se comunicar a partir do simples exemplo da cadeira, que em outras línguas recebe outro
nome, e que só a conhecemos por este nome por termos o
português como língua. Apesar de um exemplo simples e de
fácil tradução, ele abre para as possibilidades de comunicação
e como a própria língua direciona nosso olhar sobre o mundo.
Posteriormente, refletimos sobre outros modos de vida, diferentes do nosso ritmo urbano. Por fim, também é aberto um
espaço para pensarmos em nossa individualidade, que transcende às noções culturais, dando ainda, camadas de gosto
pessoal sobre as coisas.
As pessoas têm suas experiências pessoais, que mesmo
vividas de forma semelhante, são absorvidas dos mais variados jeitos, gerando singularidades. Neste ponto se estabelece
uma auto reflexão e uma reflexão do outro e o tema interdisciplinar se torna gerador de empatia, reforçando que as diferenças não só existem, como são um complexo resultado de
vivências, escolhas, amadurecimento e entendimento.
208
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Atividade para os alunos
A atividade é a parte na qual os alunos devem fazer uma
representação ilustrada para responder às inúmeras possibilidades de percepção da realidade, caso tivéssemos outra habilidade de enxergar, ou caso percebêssemos o tempo.
Imagem 1: E se enxergássemos outras formas de energia?
Na Imagem 1 eu emergi na atividade proposta com meus
alunos, também contribuindo com a mesma prática solicitada
a eles. Tentei representar um corpo visto por mais de uma
forma, incluindo raio-x, por isso a estrutura óssea presente
na imagem. Já ao lado, busquei representar objetos simples,
como figuras geométricas, dispostos ao longo do tempo, como
se este fosse observável.
209
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 2: E se enxergássemos a eletricidade?
Na Imagem 2 um aluno imaginou que fosse possível enxergar a eletricidade em seu percurso até o objeto que ligamos
na tomada.
Imagem 3: E se enxergarmos o tempo?
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
A Imagem 3 traz uma tentativa de representar uma única
pessoa observada pela ótica do tempo. Para esta aluna, seria
possível observar todos os movimentos simultaneamente e
não apenas o momento presente do corpo representado.
Imagem 4: E se o tempo fosse uma entidade viva?
Na Imagem 4, uma aluna imaginou o tempo como sendo
um ser cósmico, e se víssemos ele, teria esta aparência.
211
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 5: E se fossemos como os morcegos?
A Imagem 5 traz a possibilidade de termos desenvolvido
sonar ao invés da visão, e assim seríamos como os morcegos,
que se orientam pelo som.
Como a atividade é pensada como sendo uma introdução, ela
não se encerra por este breve relato, pois apenas abre o tema
dos múltiplos olhares e formas de vivenciar e perceber o mundo à nossa volta. Trata-se de uma sensibilização inspirada em
discursos como o feito por Carl Sagan (2019) em Pálido ponto
azul, que traz uma perspectiva de reconhecer-se como parte de
algo muito maior, entendendo que há uma pluralidade, respeitando as diferenças, sem deixar de ter uma ligação com a Arte
como representação do desconhecido e compartilhando essa
visão com o coletivo através dos desenhos criados.
Ao ministrar a aula para o grupo, este também realizou a atividade. As diferentes representações trazem um pouco do pes-
212
TEIAS DE AFETOS E SABERES
soal de cada um. O que na exposição chamou mais a atenção,
foi a questão tempo? Foi o espaço? Foi a possibilidade de enxergar diferentes formas de energia? Cada um trouxe, de forma
artística a sua imaginação de possíveis realidades alternativas.
Na sequência, trago alguns exemplos deste material.
Imagem 6: Tempo e energia.
Imagem 7: Energias percorrendo o tempo.
213
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Imagem 8: Múltiplas possibilidades.
Tal variedade é similar ao resultado encontrado na sala de
aula: alguns alunos se perdem em meio a tantas possibilidades; outros têm sua atenção mais voltada apenas a uma das
possibilidades; têm aqueles que pensam em um combinado
de hipóteses e combinam em um único desenho; outros que
entregam mais de um desenho para tentar expressar suas
ideias. Tal atividade vai para além da obtenção destes conhecimentos apresentados e trazem uma tentativa de representação que incorpora a arte no processo, resultando nas mais
variadas representações e mostrando que todos podem fazer
Arte, algo que eu, que sempre me considerei alguém sem habilidades artísticas, também aprendi neste curso.
Meu aprendizado sobre Arte para todos veio através de momentos incríveis proporcionados ao longo do curso, como na
aula ministrada no primeiro módulo pelo Leandro (membro
214
TEIAS DE AFETOS E SABERES
do grupo de estudos GMEPAE), na qual construímos uma dança a partir de nossas brincadeiras de infância, assim como nas
falas acolhedoras de colegas como o Rodrigo, que enfatizava
a ideia de arte acessível e democrática.
Afinal, o curso de Arte e Educação não foi ministrado apenas para artistas, mas para educadores, estes de diversas
áreas do conhecimento, assim como eu que vim da Geografia
e nos processos desenvolvidos aqui cheguei nesta proposta
interdisciplinar que agrega inclusive a arte como ferramenta
de representação, expressão e criação de possibilidades.
Desdobramentos
Tal plano de aula já havia sido influenciado pelos debates e
atividades desenvolvidas durante o primeiro módulo do curso
de Arte e Educação da USP, mas a partir da apresentação para
o grupo, recebi comentários e sugestões que sensibilizaram
mudanças e projeções.
A proposta que inicialmente foi pensada como módulo, para
preencher lacunas na ausência de algum professor regente,
ganhou novas perspectivas após apresentação da ideia para o
grupo do curso de Arte e Educação. Aqui cito algumas sugestões que renderam desdobramentos na prática docente.
A partir da relação feita pela professora Hercília com o texto Uma esperança de Clarice Lispector, uma vez que, coincidentemente, assumi a função de professor orientador da
sala de leitura (POSL), no colégio onde atuo, percebi que este
plano de aula poderia ser aplicado como introdução de uma
visão de mundo que orientaria as demais atividades do ano
letivo, uma vez que a leitura proporciona um contato com ou-
215
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
tros olhares, pauta da aula por meio do debate sobre cultura. Desta forma, a aula passou a ser pensada como uma aula
introdutória para, ao longo do ano letivo, ser retomada ao se
falar dos diversos temas abordados ao longo do curso, como
a temática afro-brasileira, povos indígenas, equidade de gênero, alunos com necessidades especiais, migração, entre outros temas que envolvem a interdisciplinaridade em conjunto
à proposta de sala de leitura. Além disto, tais temas foram explorados pelo grupo, tendo representações que já realizavam
atividades em cada um destes aspectos, e, a partir da partilha
proporcionada pelo curso, ampliou os debates para esta rede
formada entre membros do grupo de formação e alunos/ professores inscritos.
Outra proposta, que partiu da professora Sumaya, foi a de
possibilitar maiores experimentações para os alunos como:
buscar material de audiovisual para imergir os alunos em algumas hipóteses, como na forma de percepção de mundo de
outros seres vivos, que existem pesquisas e simulações que
buscam demonstrar como um gato enxerga, por exemplo. O
espaço da sala de leitura em minha unidade escolar dispõe de
computador, som e projetor que possibilitam tal imersão, porém, devido à pandemia, as atividades têm sido feitas nas salas de aula convencionais e estas não têm a mesma estrutura.
Contudo, com o retorno das atividades presenciais na sala de
leitura, o desdobramento almejado para esta proposta é fazer um bom uso do espaço amplo da sala, dos equipamentos
de áudio e visual, para proporcionar tais experiências, além
de atividades corporais que possibilitem este ponto, uma vez
que a leitura não se limita à decifrar códigos alfabéticos, mas
à uma percepção ampla. Não apenas enxergar, mas perceber,
desenvolvendo olhares sobre o mundo.
216
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Todavia, essa proposta de imersão tem sido realizada, em
minha prática docente, com os relatos trazidos pelos escritores, afinal a leitura literária é a base do trabalho com a sala
de leitura. Após esta atividade introdutória, partimos para
diferentes temas que também foram apresentados por outros colegas durante o curso, como a luta dos povos indígenas trazida, não só na apresentação, mas também na vivência
da colega Letícia. Ao trabalhar o tema indígena, tentei causar
a imersão dos alunos através da palavra de escritores indígenas, como Daniel Munduruku, que tem uma publicação literária vasta e, dentre seus livros, destaco o título chamado
Crônicas de São Paulo no qual traz seu olhar para essa cidade
que para nós, muitas vezes, parece tão comum.
Em temáticas sobre migração, trouxe uma diversidade de
relatos de imigrantes, sobre situações no próprio Brasil e
também em outros países. Tais relatos vieram em diferentes
gêneros literários e até mesmo por meio de entrevistas mais
descontraídas relatando as principais diferenças culturais
que se notaram entre sua terra natal e nosso país.
Estes são alguns exemplos que demonstram a influência
trazida pelas experiências compartilhadas pelos colegas para
a construção de um plano de aula que partiu de uma atividade interdisciplinar que busca trazer um contato ao diferente, entendendo nossa percepção de mundo a partir não só de
nossas capacidades desenvolvidas ao longo de todo processo
evolutivo, mas também moldada por aspectos culturais, que
tanto nos influenciam. A meu ver, tal introdução, construída
coletivamente neste ambiente proporcionado pelo curso, facilita a sensibilização aos tantos outros temas que entendemos
importantes para a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária, pois perpassam por estas questões culturais. Este
217
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
ponto de partida serve como alicerce para experimentarmos a
empatia necessária para adentrarmos outros temas.
Considerações finais
Todo este ambiente possibilita a formação da identidade
do professor arte-educador, com um olhar sensível para as diferenças, que valoriza a diversidade, se atenta às dificuldades
e consegue fazer uso da Arte como forma de expressão, que
transcende às representações de leitura e escrita gramaticais
para representações de todo um olhar sobre o mundo. Uma
leitura expressiva da realidade.
O uso de diferentes técnicas, espaços e materiais é também
bastante explorado de forma a instigar e desenvolver a criatividade e o olhar do todo, do mundo, da sociedade, das diferentes culturas e visões individuais, além das expressões resultantes do nosso eu que é colocado em desenvolvimento e
constante reflexão decorrente do que a Arte nos proporciona.
Cada um dos temas trazidos pelos alunos/ professores é
também uma demanda de seus alunos. Trabalhamos com a
diversidade e ao reconhecer isto, ao nos apropriarmos de outras falas, dar voz aos autores, nós damos voz também aos
nossos alunos, criando um ambiente democrático.
Pensar neste pequeno exemplo, que trouxe como pauta
deste texto, foi o diferencial para iniciar uma série de debates
que demandam imersão nos sentimentos e na fala de terceiros. O diferencial para essa construção foi justamente passar pelo mesmo processo ao longo deste curso, que, de forma
poética, não apenas deu voz a cada membro, mas lhes deu a
possibilidade de causar experiências uns aos outros. Iniciei
218
TEIAS DE AFETOS E SABERES
neste processo equivocado, acreditando que Arte demandava
habilidades que eu não tinha, e saio dele com outra visão: de
que a Arte é justamente este processo de imergir e se fazer
entender, causando imersões.
Pelas teias, imersões e partilhas deixo meu agradecimento
a toda equipe formadora e aos colegas formandos.
Imagem 9: Reverberações.
219
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Referências
HEIDEGGER, Martin: Ser e Tempo. Editora Vozes, 2006.
SAGAN, Carl. Pálido ponto azul: uma visão do futuro da humanidade no espaço. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
SANTOS, Milton: Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal. Editora Record, 6a edição, 2001.
SÃO PAULO (SP), Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria
Pedagógica. Currículo da Cidade - São Paulo, SME/COPED, 2019EAGLETON, Terry: A ideia de cultura. Editora Unesp, 2a edição, 2000.
Vídeos
- Série documental: Cosmos - A spacetime Odyssey. Fox, 2014.
- Quarta dimensão explicada por Carl Sagan, disponível em: https://youtu.be/WMZNLy0hGEI
Imagens
Imagem 01: Autoria;
Imagem 02: Atividade entregue por aluno do 8º ano do Ensino Fundamental;
Imagem 03: Atividade entregue por aluno do 8º ano do Ensino Fundamental;
Imagem 04: Atividade entregue por aluno do 5º ano do Ensino Fundamental;
Imagem 05: Atividade entregue por aluno do 5º ano do Ensino Fundamental;
Imagem 06: Atividade realizada por membro do curso de Arte e Educação;
Imagem 07: Atividade realizada por membro do curso de Arte e Educação;
Imagem 08: Atividade realizada por membro do curso de Arte e Educação;
Imagem 09: Autoria.
220
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Sílvio Fernandes do Amaral1
Astronomia e a arte no
Ensino Fundamental:
uma proposta educativa
Este texto faz parte de um trabalho final do curso sobre Arte
e Educação. Trata-se de um memorial para a apresentação das
minhas atividades acadêmicas realizadas durante o curso de
extensão Arte e Educação para Professores -ECA/USP, orientado pela Prof.ª e Dra. Sumaya Mattar, junto ao Departamento
de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O material a ser apresentado traduz a
minha experiência como aluno, professor e músico.
O curso foi dividido em dois módulos, sendo que o primeiro
teve o início em 21 de agosto de 2019, com aulas presenciais
1
Sílvio Fernandes do Amaral. Mestre em Ciências pelo IAG/USP, área de concentração Educação Científica em Astronomia no Ensino Fundamental, músico e
professor da Educação Básica - Anos Iniciais (PEB I) na Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo.
222
TEIAS DE AFETOS E SABERES
que aconteciam uma vez por semana, e que também requeriam tempo de dedicação para leituras e outras atividades solicitadas pela professora ministrante Sumaya Mattar e o seu
grupo Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa (GMEPAE).
No primeiro encontro do grupo no Módulo I, após as apresentações individuais uma sugestão dada pela professora
Sumaya era para que cada aluno fizesse um relato autobiográfico, um desenho que representasse a expectativa sobre
o curso e pensasse um propósito para a escola onde cada um
leciona. Esse fim não deveria ser um objetivo, mas o sentido
que nos sustenta durante essa caminhada, trazendo assim a
nossa história pessoal para compor a história social.
Ainda foi recomendado pensar numa pergunta que deveria
nos acompanhar como fonte de inspiração: “Qual é o tecido
para o meu propósito?” Um modo de desenvolver reflexões
sobre temas relevantes para contextualizar a Arte e a Educação em cenários sociais, as relações Arte e identidade cultural, a função da Educação, a ação do fazer criativo e suas perspectivas nos procedimentos de mudança, com novas atitudes
originando transformações pela Arte, descolonizando para a
concepção da diversidade cultural.
O segundo módulo que deveria ter tido início no primeiro
semestre de 2020, não pôde ser realizado devido à chegada da
pandemia em nosso país, o que também nos obrigou ao isolamento social para conter a propagação do contágio do COVID-19.
O retorno às atividades do Módulo II só foram possíveis em
07 de abril de 2021, no modo remoto. As aulas foram realizadas
através da plataforma do Google Meet com a proposta inicial
de que a cada encontro semanal, dois alunos escolhidos antecipadamente deveriam apresentar individualmente um plano
223
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
de aula para o grupo. Cada aula teria a duração de 30 minutos
para exposição e realização das atividades, restando 15 minutos para reflexão ou discussão de resultados e 05 minutos de
intervalo entre a primeira e a segunda aula.
Este foi um período que deu origem a muitas produções artísticas, assim como: desenhos, pinturas, textos poéticos, trabalhos artesanais, experiências teatrais, danças, discussões
e reflexões, e ainda um vasto compartilhamento de conhecimentos experimentados por esses profissionais da Educação
no seu cotidiano.
Mais à frente, depois de ter passado por tantos desafios
com o grupo, retomamos as discussões do Módulo I, onde tivemos que pensar um propósito para a escola em que trabalhamos, e após refletir sobre a pergunta inicial “Qual é o
tecido para o meu propósito?” Optei em realizar o escopo do
projeto que apresento no decorrer deste texto, com os alunos
do 5º ano B na EE Conselheiro Antônio Prado antes da pandemia e, finalizei com os alunos da EE Prudente de Moraes do 5º
ano H, no retorno às aulas em 02 agosto de 2021 atendendo
os protocolos sanitários, tendo assim a classe com redução
de 50% dos alunos e distanciamento de 1,5 m entre eles.
A Educação e iniciação científica em ensino de Astronomia
para alunos dos anos iniciais e do Ensino Fundamental do
Ciclo I com o auxílio das Artes Audiovisuais
Conforme Brandão:
[n]inguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou
na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos
pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para
224
TEIAS DE AFETOS E SABERES
aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para
conviver, todos os dias misturamos a vida com educação.
(Brandão, 1981, p.7).
Para os anos iniciais a finalidade da alfabetização formal se
insere de maneira interdisciplinar. Assim no conjunto de conhecimentos fornecidos na escola, a Astronomia surge como
elemento de integração, simultaneamente com as demais
áreas do conhecimento, objetivando nesta construção a identificação de suas próprias ideias para compreender o mundo
que nos cerca. Formuladas a partir do currículo de ciências na
disciplina de Astronomia, é apresentada como uma poderosa ferramenta pedagógica importante na Educação Infantil e
Fundamental, pois age no desenvolvimento integral do indivíduo, nos campos, intelectual, emocional e social.
Por que ensinar Astronomia desde os anos iniciais?
[...] o ensino de ciências é fundamental para despertar nos
estudantes o interesse pelas carreiras científicas e assim ampliar a possibilidade do país em contar com profissionais capazes de produzir conhecimento científico e tecnológico, que
poderão contribuir para o desenvolvimento econômico e social da nação (UNESCO, 2005).
O cenário geral histórico do ensino de Astronomia do Brasil confirma o quanto esta ciência tem se distanciado de forma lenta e gradual dos currículos escolares, de tal maneira
“a ponto de praticamente inexistir em cursos de formação de
professores, notadamente de Ensino Fundamental dos anos
iniciais”. (LANGHI, 2004, p.7).
De acordo com Albrecht:
225
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
A inserção da Astronomia na Educação Básica é necessária,
uma vez que auxilia no entendimento de fenômenos que
ocorrem no cotidiano e a escola é, ou deveria ser, o meio mais
eficaz de aprendizagem destes fenômenos, promovendo a
formação para a cidadania. (ALBRECHT, 2012, p.18).
De maneira que as pessoas desenvolvam costumes, valores
sociais e competência “para compreender, julgar e participar de
processos decisórios que envolvam questões científicas e tecnológicas.” (Auler; Delizoicov, 2001; UNESCO, 2005; Martins; Paixão,
2011 apud Experiências em Ensino de Ciências V.12, No. 4, 2017).
O objetivo do ensino de Astronomia, nos anos iniciais do Fundamental I, é estimular os alunos a desenvolver habilidades
e a sua capacidade criativa, bem como ampliar a percepção e
suas competências explorando as noções prévias das crianças para que elas se motivem e aprendam uma ciência fundamental. Sendo assim, as habilitaremos à conquista de novos
saberes nos mais diversos modelos de atividades, a fim de
despertar ainda cedo o desejo e o prazer pela pesquisa, planejando o futuro nessa grande aventura de desvendar os mistérios do universo. (AMARAL, 2019, p. 43).
Como podemos observar, na prática docente, não há como
desviar dos temas de Astronomia:
Os PCN recomendam o ensino de Astronomia a partir do eixo
temático Terra e Universo para as séries do ensino fundamental, sugerindo que o professor trabalhe atividades práticas
com os alunos, tais como, construir instrumentos simples semelhantes aos primitivos relógios de Sol, gnômons, realizar
observações do Sol, Lua, estrelas e meteoros, marcando suas
observações e dados (BRASIL, 1999).
Faz algum tempo que os tópicos de Astronomia aparecem
diluídos nos livros didáticos dos anos iniciais do fundamental
226
TEIAS DE AFETOS E SABERES
I e II, indo um pouco mais além, não é incomum esse conteúdo em outras ciências do ensino médio. Mediante o exposto,
isto deve ser, “um procedimento guiado pelo professor, previamente planejado” (BRASIL, 1997).
Conforme os PCN 2021 “Observar não significa apenas ver,
e sim buscar ver melhor, encontrar detalhes no objeto observado”. (BRASIL, 1997).
Considerado por muitos como o pai da educação moderna,
Pestalozzi2
[i]nspirou diretamente os trabalhos de Froebel e de Herbart
e o seu nome está associado com todos os movimentos por
reformas educacionais que surgiram de forma apaixonada no
século XIX. As suas ideias e as suas experiências pedagógicas
influenciaram ainda, de forma direta ou indireta, as concepções dos criadores do Movimento Escola Nova no século XX.
(MEDEIROS, 2006, p. 33).
A filosofia educacional de John Dewey3, um dos mais importantes nomes do Movimento Escola Nova, e Albert Einstein4 admirável físico e matemático alemão que entrou para o
2 Heinrich Pestalozzi (1746-1827) foi um educador suíço cuja pregação da liberdade e dos métodos ativos de ação ligados às vidas das crianças muito influenciou
outros educadores mais modernos. (MEDEIROS, 2006, p. 32).
3
John Dewey (1859- 1952) nasceu em Burlington, no estado norte-americano
de Vermont. Foi professor secundário por três anos antes de cursar a Universidade
Johns Hopkins, em Baltimore. Estudou artes e filosofia e tornou-se professor da
Universidade de Minnesota. Escreveu sobre Filosofia e Educação, além de Arte,
Religião, Moral, Teoria do Conhecimento, Psicologia e Política. https://novaescola.
org.br/conteudo/7225/john-dewey Acesso em 16 de jul. de 2021.
4
Albert Einstein (1879 - 1955) Albert Einstein foi matemático e físico, desenvolveu a Teoria da Relatividade, estabeleceu a relação entre massa e energia e
formulou a conhecida equação E = mc².
227
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
rol dos maiores gênios da humanidade ao desenvolver a teoria da Relatividade, não podem ser em nenhum momento relacionados ao simples acaso, senão pela influência educativa
recebida de Pestalozzi.
Esse modelo de instrução, ou seja, “Este tipo de educação
certamente atuou como um fermento intelectual para alguém
como Einstein que já trazia consigo uma forte tendência em
raciocinar por imagens”. (MEDEIROS, 2006, p. 34).
“Um dos pontos enfatizados em uma tal abordagem inspirada na pedagogia de Pestalozzi era a tentativa de desenvolver nos alunos o raciocínio por imagens e não apenas aquele
fundado na expressão verbal”. (MEDEIROS, 2006, p. 33 e 34).
Pestalozzi dava atenção especial às atividades com desenhos,
ao uso de mapas e outras configurações de expressão visual.
O professor Anísio Teixeira, discípulo de John Dewey, trouxe ao Brasil as ideias de seu mestre, segundo as quais, “a arte
deveria ser retirada do pedestal em que se encontrava e colocada no centro às comunidades” (FONTERRADA, 2008, p.210).
Sabemos que as crianças se expressam com o corpo, com a
voz, com movimentos faciais, com imitações, com movimentos de trabalho, de acordo com estímulo musical, com os objetivos do exercício em questão (MORAIS, 2012) e a música
é o material para um processo educativo e formativo amplo,
dirigido para o pleno desenvolvimento do indivíduo, como sujeito social (PENNA, 2012).
Através da música e das artes visuais, [...] Partilhamos da ideia
de que a crise no ensino de ciências é acompanhada de uma
crise de criatividade, pois os indivíduos parecem experimentar as consequências de uma “educação bancária” tão critica-
228
TEIAS DE AFETOS E SABERES
da por Freire (1996). Com o uso das novas tecnologias, cria-se
uma situação de motivação nas leituras de imagens e de outras manifestações visuais, modificando o cenário e tornando
o estudante agente ativo na construção do conhecimento, [...]
cabendo ao professor potencializar a utilização destes recursos. (Anais do 14º Congresso Internacional de Tecnologia na
Educação, 2016, p. 3).
Na nossa posição de mediadores do processo de ensino-aprendizagem desejamos ter outras possibilidades, outros
tecidos que possam nos apoiar na ocupação da educação. Os
encantos motivacionais das artes audiovisuais recomendam
ao mesmo tempo o ensino enquanto espaço de lazer, esclarecendo de outras formas as áreas de interesse trazendo elementos determinantes para a formação.
O material audiovisual é um importante instrumento para
promover a educação inclusiva, porque na construção dos
vídeos podem ser inseridos além de imagens estáticas e em
movimento, recursos como legendas, audiodescrição, a fim de
atender não só os que carecem dessa assistência, mas todos
os envolvidos no processo educativo.
Nas orientações do currículo paulista para o ano de 2020,
espera-se que o componente Arte contribua com o aprofundamento das aprendizagens nas diferentes linguagens e no
diálogo entre elas e com as outras áreas do conhecimento,
com vistas a possibilitar aos estudantes maior autonomia nas
experiências e vivências artísticas. (BRASIL, 2017, p.203).
Plano de experiência com Arte
Caracterização da turma
Alunos dos anos iniciais do Fundamental I do 1º ao 5º ano.
229
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Tema
Sistema Solar
Objetivos
• Representar o Sol e os planetas do Sistema Solar em escala
reduzida;
• Explicar as características dos planetas;
• Movimento de rotação e translação.
Conteúdos
• Ordem de afastamento dos planetas do Sistema Solar a partir
de uma estrela: o Sol;
• Movimento de rotação: dia e noite;
• Movimento de translação: o ano.
Materiais
Lápis preto; borracha; lápis de cor; tesoura; cola; prendedores
de roupas (de madeira); 1 folha de sulfite para anotações; 60 cm
de barbante.
Problematizações
• Quais as principais características que você percebe no Sistema Solar?
• O que é período de rotação e translação?
• Qual é a origem do dia e da noite?
• Todos os planetas têm a mesma característica em relação ao
movimento de rotação?
Metodologia
Como nós sabemos, a música não é só uma composição,
pode ser uma história, uma dança, um drama, uma peça para
um grupo de canto coral. E por que não ser uma ferramenta na
assistência do ensino?
230
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Planejando atender as necessidades dos alunos para a compreensão do Sistema Solar, foi exibido um vídeo de curta metragem com imagens dos planetas representados artisticamente
e uma composição musical chamada Sistema Solar (ver Anexo
A), atividades compreendidas como lúdico-pedagógicas, com o
objetivo de facilitar a compreensão de alguns conceitos de Astronomia, além de despertar o interesse em desenhar, recortar,
colorir e cantar a música com o título “Sistema Solar”.
Visando auxiliar na fixação destes conteúdos, disponibilizamos um jogo chamado Sistema Solar que traz experiências
divertidas que ensinam alguns conceitos e os nomes dos planetas que compõe o Sistema Solar e estabelece uma relação a
respeito das características dos planetas, buscando perceber
as suas formas, tamanhos, cores, nomes e movimentos, por
intermédio desse aplicativo o aluno irá aprender de maneira
lúdica e interativa a órbita de cada planeta, ordem de afastamento e observar o movimento de rotação dos astros.
Aponte a câmera do seu celular para o
QR Code, e instale o jogo Sistema Solar.
Produto Final
Montar um varal com a sequência dos planetas na ordem
de afastamento demostrando como se organiza o nosso Sistema Solar a partir de uma estrela, alocando os desenhos dos
planetas colados em prendedores, conforme a orientação da
letra da música Sistema Solar.
231
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
É importante lembrar os alunos que o material produzido
não está na escala de tamanho, nem corresponde à distância,
e que os planetas não ficam alinhados em sua órbita da maneira como se apresentam no varal. O varal com os planetas é
o resultado de uma representação artística do nosso Sistema
Solar para auxiliar a nossa compreensão.
O varal poderá ser exposto no espaço da escola para apreciação dos demais alunos.
Avaliação
Os alunos são avaliados pela participação durante as aulas, nas realizações de atividades de registros como desenhar,
pintar, recortar, produção textual e comentários reflexivos
acerca do conteúdo que aprenderam durante a aula.
Em todas as aulas de Astronomia os alunos recebem além
do molde, uma folha A4 para fazer seus registros, produzir
texto e/ou fazer desenhos.
Referências
ALBRECHT, Evonir. Astronomia nas propostas curriculares dos estados da região sul do Brasil: uma análise comparativa. 2012. 105f.
Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática). Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2012.
AMARAL, Silvio Fernandes do. Alfabetização e a Educação Científica
em Astronomia para alunos dos anos iniciais do Fundamental I, 2019.
Anais do 14º Congresso Internacional de Tecnologia na Educação,
Importância da arte e recursos audiovisuais no processo de ensino-aprendizagem. Brasil, Recife, setembro de 2016. Acessado em
29 de jul. de 2021.
Arte para crianças / [Dorling Kindersley: tradução Maria Anunciação Rodrigues. - São Paulo: Publifolhinha, 2013. 4ª reimpr. da 1ª ed.
232
TEIAS DE AFETOS E SABERES
de 2009. Título original: Children´s book of art.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação? 12ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
Brasília, 2017.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. –
Brasília: Ministério da Educação, 1999.
BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ciências naturais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997. 136p.
FONTERRADA, M. T. DE O. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação, 2a ed. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro:
Funarte, 2008.
LANGHI, Rodolfo. Um estudo exploratório para a inserção da astronomia na formação de professores dos anos iniciais do ensino
fundamental. - Bauru: [s.n.], 2004. 240 f.
LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental:
repensando a formação de professores, 2009, 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) Faculdade de Ciências, 2009.
UNESP, Bauru https://sites.google.com/site/proflanghi/228 acessado em 07 de jul de 2021.
LIMA, Analice Almeida; FREITAS FILHO, João Rufino de; BELIAN,
Mônica Freire. Ensinando química para séries iniciais do ensino
fundamental: O uso da experimentação e atividade lúdica como
estratégias metodológicas, In: Experiências em Ensino de Ciências
V.12, No. 4, 2017.
MEDEIROS, A., Cleide Farias de Medeiros, Einstein e a Educação. 1ª
ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006.
Música para crianças / [Dorling Kindersley: tradução Eric Heneault
e Francisco J.M. Couto]. - 1 ed. - São Paulo: Publifolhinha, 2013. 2ª
reimpr. da 1ª ed. de 2011. Título original: Children´s book of music.
MORAIS, D. V. Educação musical: materiais concretos e prática
docente. Curitiba: Appris, 2012.
233
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
PENNA, M. Música (s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2a ed. 2012.
TIGNANELLI, H. L., in Didática das Ciências Naturais: Contribuições e
Reflexões, organizado por H. Weissmann, Artmed, Porto Alegre, 1998.
UNESCO. Ciência na Escola. Um Direito de Todos. Brasília: UNESCO,
2005.
Anexo A
Disponível em vídeo em: https://youtu.be/URJbPqyVm9c,
234
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Anexo B
Molde de figuras para pintar recortar e colar
235
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Anexo C
As fotos abaixo demonstram atividades realizadas com alunos do 5º ano B na EE Conselheiro Antônio Prado.
Exercícios lúdicos de pintar,
recortar, colar e cantar exemplificando a ordem de afastamento dos planetas, representadas em um varal astronômico
feito com um barbante e figuras dos planetas coladas em
prendedores de roupa. Período
anterior a pandemia do COVID
– 19. Fonte: Acervo pessoal de
Sílvio Fernandes do Amaral
236
TEIAS DE AFETOS E SABERES
Anexo D
Apresentação de alguns dos trabalhos finais dos alunos da
EE Prudente de Moraes - 5º ano H.
Atividades lúdica de pintar, recortar, colar e cantar
seguindo a orientação da letra da canção o Sistema Solar.
Brincadeira com objetivo de
simular a ordem de afastamento dos planetas no varal
astronômico. Fonte: Acervo
pessoal de Sílvio Fernandes
do Amaral
237
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Renato Brunassi Neves dos Santos Silva / Aguessy1
A espiritualidade na formação
do arte-educador: intolerância
religiosa como desafio à
aplicação da Lei 11.645/08
Vivenciar uma experiência educativa formativa como prática da liberdade requer coragem e método. Negociação, insubordinação, alegria, confiança e esperança no sentido da
utopia são o cerne da luta. As potencialidades das diferenças sedimentadas no corpo pela convivência. Neste sentido,
a formação humana que a experiência estética promove nos
prepara para, sem nos deixar paralisar pelo sentimento da
1 Renato Brunassi Neves dos Santos,Aguessy. Doutorando e mestre em Ciências
pelo PPG em Humanidades, direitos e outras legitimidades, do Diversitas - FFLCH/
USP. Especializado em Educação em Direitos Humanos pela UFABC e em Gestão
da Educação Pública pela UNIFESP. Graduado e licenciado em História pela USP.
É professor de História na rede da SME/SP e articulador pedagógico na Ocupação
Cultural Jeholu. Iniciado como Dofono de Ossaim no Ilê Axé Omi Otá Lowa.
239
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
esperança inerte, experimentar e construir coletivamente um
mural, uma galeria a céu aberto de sonhos, grafites, uma colcha de retalhos costurada com amor, um vitral bem colorido,
um mosaico. Janelas em sala, janelas em cena, a transversalidade destacada, privilegiada, a intervenção e a fala facilitadas quando conseguimos permanecer presentes fisicamente
por meio daquele fio de tecnologia virtual que nos liga em
rede de bits da aula on-line.
Proposta multifacetada insere cada estudante como parte
estrutural do processo de ensino aprendizagem. Professores
cursistas não seriam “apenas alunos” nem em uma proposta
tradicional de educação de metodologia bancária; muito menos ainda o são no contexto heterárquico que destacamos,
no qual cada pessoa é convocada a contribuir com uma aula
inteira, ao estilo de seminários, sem comanda com relação ao
tema ou à bibliografia, liberta para propor a aula como reflexão-ação a partir daquilo que a convoca e acredita que pode
convocar outros. De uma inspiração inicial, com as linhas temáticas gerais do curso, a metodologia se desenvolve potente no método de produção compartilhada, onde justamente
professores e estudantes convivem junto nos mesmos lugares de aprendizagens, mestres-aprendizes, sempre compartilhantes, implicando energias na potência da diversidade e na
convivência a partir da diferença.
Nesta ambiência de trocas justas e alegres, - pois acreditamos na formação humana -, certo sentimento de comunidade
vai se constituindo, inspirado por confiança mútua em relação
negociada e companheira que vai se retroalimentando. Com
mestres e mestras interagindo em trocas profícuas, abrimos o
pensamento e para a reflexão, preocupados em delimitar bem
o ponto de saída e desobedientemente livres com relação ao
240
TEIAS DE AFETOS E SABERES
que se espera do ponto de chegada. Neste lugar construído
por todos, a experiência religiosa surgiu como elemento fundamental de muitas das vivências propostas pelos cursistas.
A crença e a religião são dimensões de nossa experiência
em sociedade que afetam o espaço público, especialmente o
educacional. A laicidade do estado brasileiro constituída legalmente na carta magna se contradiz com os crucifixos e rezas de pai nosso tão comuns nos ambientes públicos como
fóruns, assembleias e escolas. De modo que tratar da educação por uma perspectiva de sua interação com a religiosidade
ganha força à medida que olhamos criticamente a influência
desta nas ações cotidianas dos estudantes e educadores, sejam eles docentes ou não-docentes.
A sociedade brasileira construída sob uma hegemonia cristã, alinhada à ideologia colonizadora característica do catolicismo, toma, em tempos de crise institucional e ética, contornos fundamentalistas, cuja face que mais nos incomoda é
a cotidiana perseguição às religiões de matrizes africanas e
indígenas.
Percebe-se atualmente nas análises mais veiculadas a relação entre a intolerância religiosa, a estigmatização e criminalização da cultura popular negra e indígena e o racismo
cotidiano, organizado, além dos raciais, em critérios sociais
e econômicos. É notório no Brasil das últimas décadas o recrudescimento dos ataques violentos às tradições religiosas
dos povos de terreiro e isso tem levado a público a discussão
sobre o direito à liberdade de culto e dever do estado em garanti-la, cuja votação do Recurso Extraordinário (RE) 494.601
pelo STF, em 28 de março de 2019, decidiu ser constitucional o
sacrifício ritual de animais em cultos de matriz africana, e que
241
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
aqui figura como um exemplo importante2.
O estranhamento, portanto, sobre a relação ambígua entre
laicidade e liberdade religiosa diminui ao passo que compreendemos a historicidade da relação entre religião, Estado e,
no nosso caso, formação escolar. Em 27 de setembro de 2017,
o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional, por 6 votos a 5, o ensino religioso confessional na Rede Pública de
Ensino Brasileira, decidindo-se pela improcedência da ação
direta de inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria-Geral da República contra trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e do acordo firmado entre o Brasil e a Santa
Sé, o Decreto 7.107/2010, em especial seu artigo 113. Tal votação demonstra que a laicidade da escola pública brasileira é
bastante específica e integra a hegemonia católica, de maneira explícita, nas leis e, de forma tácita, nas atuações profissionais de educadores.
Oferecemos aos cursistas, portanto, um formulário com
perguntas que nos ajudam a refletir sobre o desafio do respeito ao livre exercício da religião e das condições para a sua
inclusão na prática educativa, a partir de uma perspectiva das
minorias, para pensar de forma abrangente a inclusão.
Tomamos assim os caminhos da Educação para as Relações
Étnico-Raciais na implementação da lei 10.639/03 e 11.645/08,
2 STEINMETZ, W. Deveres estatais de proteção da fauna e direito fundamental de
livre exercício de culto: o caso do Recurso Extraordinário 494.601. Espaço Jurídico
Journal of Law [EJJL], v. 19, n.3, 813–822, 2019
3
TEIXEIRA, M. Por maioria, Supremo permite ensino religioso confessional
nas escolas públicas. Revista Consultor Jurídico. SET, 2017.Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2017-set-27/stf-permite-ensino-religioso-confessional-escolas-publicas, acessado em 15/11/2021
242
TEIAS DE AFETOS E SABERES
particularmente onde essa educação tangencia a relação com
a espiritualidade e religiosidade dos atores no ambiente escolar, buscando pensar de que maneira nossa constituição
subjetiva, baseada em crenças religiosas, potencializam ou
conformam resistências à valorização das culturas africanas,
afro-brasileiras e indígenas. Apesar deste ter sido o objetivo,
obtivemos alguns apontamentos mais modestos e reveladores dos desafios para tratarmos a questão.
Produziu-se um formulário para ser respondido pelos cursistas em caráter de convite, no qual os aspectos da espiritualidade, das crenças e da religião foram questionados. As seis
respostas obtidas, não-obrigatórias e de autorreconhecimento, recolhidas entre 12 e 30 de agosto de 2021, após a finalização do segundo módulo do curso, são apresentadas abaixo.
Regiane Santana, 36, mulher cis, hétero, latina e católica
não-praticante, professora de Arte, comentou “Eu não sou entusiasta de misturar religião com qualquer atividade que não
seja para a prática da religião em si, por isso tenho resistência em trabalhar ou participar de qualquer coisa que misture
religião no meio.” Sobre a importância do debate sobre religião na escola, destacou: “Isso é um assunto bem complexo,
tem muitas coisas para se levar em consideração, é importante debater a tolerância e apresentar cada uma das religiões,
desmistificando os estereótipos, mais que isso acho que não
é prudente.” Contudo, considera que “há muitos professores
que não abrem os olhos para nada além de sua religião e julgam os outros e os próprios alunos com base nisso.”
Mariana Zanetic, 48, mulher cis, hétero, branca, moro-eslava, descendente de refugiados, professora de Arte e praticante de “magia de forma holística”, diz que vivencia sua es-
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
piritualidade “através do cuidado com entidades de matriz
africana ou no sincretismo católico afro-brasileiro” Além disso, pesquisa a matriz panteísta eslava. Mariana comenta que
Geralmente eu não me inspiro na religiosidade, mas trabalho
com a matriz africana ou afro-brasileira, os aspectos culturais e manifestações artísticas. A maioria dos estudantes tem
uma relação positiva com as atividades, porém alguns trazem
adjetivos pejorativos como “isso faz parte dos falsos deuses”
(mitologia grega), “isso é coisa de macumba” (obra do Vitor
Valentin) (MZ).
Sobre a espiritualidade e religiosidade como dimensão a
ser trabalhada na educação pública diz que é “importante no
sentido de decodificar os aspectos culturais ou de poder, isso
no caso das religiões imperialistas. E também para tratar da
liberdade de orientação religiosa ou mesmo de não ter religião. Até para separar ética de religião.” Sobre a interferência
da religiosidade na ação educativa percebe
[i]nfelizmente, interferências negativas, quando há uma imposição religiosa. E isso acontece sempre, em crenças religiosas
arraigadas de matrizes religiosas cristãs, uma das matrizes
religiosas mais imperialistas de nossa história. Quando passam orações para copiar ou põem estudantes para rezar. Isso
acontece quando os/as professores/as estudaram em escolas
religiosas ou estudaram em um período em que havia aula de
religião, cujas religiões cristãs eram a única referência. (MZ)
Raniere, homem cis, hétero, se coloca a “refletir sobre as
questões existenciais, mas sem seguir nenhuma religião ou
misticismo”. Não considera que a dimensão espiritual potencializa sua atuação como educador, acredita que “independente disto, o reconhecimento ao olhar do outro pode poten-
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
cializar a atuação do educador.” Considera que a dimensão
espiritual “surgiu inúmeras vezes no decorrer do curso, mas
mais partindo dos outros como proposta do que de mim”.
Neste sentido, considera que debater religiosidade e espiritualidade “no ponto de demonstrar que existem diferentes
crenças e diferentes olhares de mundo, sim. Mas é um tema
que pode cair na defesa de uma religião, o que não seria benéfico ao meu ver”, no contexto da educação pública. Percebe
ainda “alguns educadores limitarem suas práticas alegando
sua religião como impedimento para participar de certos projetos na escola.”
Elaine da Silva Santana, 29, mulher cis, hétero, define-se
como “parda”,4 professora, mestranda, não professa religião
e diz que:
Essa é uma questão complexa para mim. Não faz muito tempo
que consegui compreender espiritualidade desassociada de
religião. Acredito que vivencio através dos exercícios de presença. Nos banhos com ervas, nas pausas dos chás, durante
a produção de bordados e peças de crochê, nos fazeres manuais. São momentos que entendo como ritos, nas pausas do
próprio cotidiano. (ES)
Acredita que a dimensão espiritual potencializa sua atuação
como educadora: ”creio que a espiritualidade me torna mais
sensível no sentido da percepção mesmo. Como associo a questão da presença e consciência, essa espiritualidade me faz estar
4
E pondera: “Não gosto do termo parda. Mas não me reconheço como branca
nem negra. Na minha certidão de nascimento diz branca, mas meu pai é negro.
Então não me considero branca. Ainda estou construindo uma forma de me auto
descrever.”
245
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
mais atenta às necessidades das crianças que atendo.”
Elaine considera que a dimensão espiritual lhe inspirou, pois:
Muitas vivências no percurso da nossa formação me afetaram
muito! Sendo que as que tiveram mais impacto sobre minha
experiência e produção de conhecimento estavam ligadas à
espiritualidade. Digo isso com relação às proposições dos colegas para a turma. No que diz respeito ao que eu construí
e às proposições que eu trouxe são resultado dessas interações. Tenho percebido nos fazeres manuais um lugar que
rompe com a lógica de espaço-tempo convencionais, e vejo
nisso muita espiritualidade também. (ES)
Sobre resistências e entusiasmos com relação às propostas
pedagógicas de inspiração religiosa, acredita que
[q]uestões relacionadas à religiosidade sempre serão delicadas. Um argumento comum é a laicidade das instituições
educativas. Por conta disso, qualquer proposta que traga elementos que evocam a religiosidade pode causar resistência
ou entusiasmo dependendo da compreensão que a pessoa
tem sobre o tema. De uma forma ou outra creio que a vivência
é afetada. (ES)
Neste sentido, Elaine considera importante debater religiosidade e espiritualidade como uma dimensão da educação
pública, “pois há muito preconceito em torno do que se entende por espiritualidade e religiosidade.” Mas, faz uma diferenciação entre religiosidade e crença, ao comentar sobre a
interferência na ação educativa de professores:
Não sei muito bem se a religiosidade. Na verdade percebo que
o que realmente interfere são as crenças. Mas, não sei até que
ponto isso está envolvido com a religiosidade. Um exemplo
246
TEIAS DE AFETOS E SABERES
são professoras que acreditam que homossexualidade é pecado e tratam crianças que elas acreditam demonstrar essa
característica de maneira diferente. Tudo de maneira muito
equivocada. (ES)
Silvania Francisca de Jesus, 48, mulher cis, hétero, negra,
(“sou preta de cabelos crespos, sou persistente”), é professora e doutoranda. Católica de formação, acolhe “a religião afro
e a espiritualidade indígena”. Vivencia a espiritualidade “participando das comunidades eclesiais de base, das formações
da Teologia da Libertação”. Sobre a espiritualidade institucional e comunitária, afirma: “Iniciei minha formação na pastoral da juventude, na formação de Fé e Política, sou animadora
de missas e celebrações pelo menos dois domingos no mês”
Silvania considera que a dimensão espiritual potencializa
sua atuação como educadora:
A minha base de formação foi na educação popular promovida pelas formações das CEBS5. Aprendi o que é uma espiritualidade libertadora, de um Cristo revolucionário; conheci
a obra de Paulo Freire nessas formações que hoje me aponta
novos caminhos para uma prática pedagógica-crítico-libertadora. (SJ)
Segue afirmando a dimensão espiritual como inspiração:
Tendo em vista minha aula, que versou sobre a importância
das ervas para nos cuidar, afirmo que sim. Muitas sensibilidades afloraram no decorrer da aula, memórias foram acordadas, e acredito que tudo isso passa por um campo espiritual,
5
Comunidades Eclesiais de Base.
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ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
sem verbalizar nenhum segmento religioso. (SJ)
Sobre reações ao trabalho pedagógico de inspiração religiosa, acredita “que tudo que toca nossa singularidade, subjetividade, expressa religiosidade, a espiritualidade. Despertando sentimentos, nos colocando num outro lugar, que só o
racional não dá conta.” Sobre a relevância de se debater religiosidade e espiritualidade como uma dimensão da educação
pública, afirma
Nós somos seres pela cultura atravessados por religiosidade;
pensando em Brasil, um povo misto em todos os sentidos, traz
em si a espiritualidade indígena ao colher uma erva ou planta
pedindo licença a natureza, ou sentir o corpo se arrepiar ao
som de um tambor, tão reverenciado na cultura da religiosidade afro. Enfim, acredito que a religiosidade e espiritualidade nos envolve sim, não só na educação. Importante ressaltar
que não estou falando em doutrinas, instituições religiosas.
(SJ)
Sobre a interferência da religiosidade na ação educativa de
professores, considera que “muitos professores apresentam
um bloqueio muito grande ao lidar com alguns temas, devido
à religião que seguem. Se praticassem uma religiosidade e
espiritualidade libertadora, não doutrinária, esses bloqueios
seriam menos evidentes”.
Rodrigo Acosta, 38, homem-cis “com forte energia feminina”, hétero, pardo, baixo, careca cabeludo, arte-educador,
pós-graduado, agnóstico, diz frequentar “diversas religiões
conforme sinta o convite”. Vivencia a espiritualidade nos seguintes termos: “agradecimentos, procuro cuidar do meu corpo e do mundo ao redor”. Rodrigo não vivencia a religiosidade de forma institucional: “Procuro levar a positividade e
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TEIAS DE AFETOS E SABERES
orientações nos quais são saudáveis a todos. Não creio em
um único Deus paternalista. Acredito em egrégoras, energias e acredito na natureza.” Para ele, a dimensão espiritual:
“[potencializa] a fé e tentar entender qual a minha missão
e responsabilidade perante as pessoas às quais atendo. Eu
acredito que não existe o acaso e se algo acontece é para
a absorção de alguma experiência ou conhecimento.” Sobre
propostas pedagógicas inspiradas pela religiosidade, afirma:
Acho muito complicado trabalhar a religiosidade nas escolas.
Como atuo em escolas públicas, sabemos que o ensino é laico,
porém, é visível como o cristianismo é aceito e faz parte do
nosso cotidiano, diferente das outras religiões. Sei de todo
o contexto histórico do cristianismo. Como leciono história
da arte, ele fica evidente por conta do decolonialismo e vira
como uma espécie de base, “única verdade”. (RA)
Rodrigo pondera sobre a importância em debater religiosidade e espiritualidade na educação pública:
Muito importante. Observo nas religiões de matriz africana,
principalmente a umbanda muita “brasilidade” apesar de não
frequentar esta religião, tanto a parte visual quanto as músicas
vejo muito de Brasil e me agrada muito essa estética. Acho um
absurdo termos de ter cuidado em falar de mitologia africana
como os Orixás e ver estudantes com materiais escolares de
mitologia nórdica como Thor, o Deus trovão. Ou seja, podemos
falar de Thor “Deus trovão” que não faz parte da nossa cultura,
mas devemos ter cuidado ao falar de Xangô e Tupã que também são “Deuses como trovão em simbologia”. Mesmo sendo
um país com base no cristianismo, em épocas nos quais trabalhamos danças tradicionais brasileiras muitos estudantes
evangélicos sentem desconforto. Este ano, mesmo remoto, um
estudante se recusou a fazer uma atividade sobre Carimbó na
qual disse que não concordava com a dança.” (RA)
249
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Rodrigo considera, por fim, que a religiosidade interfere na
ação educativa de professores:
Sim e muitas vezes negativa. Já fui “julgado” por colegas e
ou estudantes evangélicos ou católicos por conta de lecionar
história da arte e estéticas culturais. Infelizmente os fundamentalistas religiosos estão acabando com a educação, pois
muitas vezes mesmo no direito em lecionar me sinto desconfortável em apresentar alguns conteúdos. Os discursos no cotidiano são muito tóxicos. Meus colegas de trabalho sabem
que frequento religiões xamânicas e fazem piadas e enxergam
isso como algo natural, porém em qualquer discurso sobre
cristianismo a sociedade se sente agredida. (RA)
A liberdade de escolha dos temas de aula por parte dos
cursistas levou a emergir a questão religiosa demonstrando
tanto um momento de encontro de legitimação institucional
advindo da possibilidade de ser professor “regente” de uma
aula de um curso de extensão da ECA/USP, quanto de uma demanda subjetiva que se encontra na interface entre religião
e educação, que refere-se à tensão entre a esfera dos valores religiosos, da vida privada, do espaço público escolar e da
descolonização do currículo.
Se por um lado, de uma turma com 19 cursistas, apenas 6
responderam ao questionário de forma espontânea, em falas
dos respondentes nota-se que a questão religiosa permeou
várias das aulas propostas no curso e das suas vivências nas
escolas. Isso pode ser interpretado como uma escolha pelo silêncio ou a um certo sentimento de insegurança com relação
à temática por parte dos não-respondentes. Isso demonstra
complexidade nesta dimensão entre as relações individuais
e institucionais com a religião, seja na universidade ou na
escola, postura corroborada pelas recorrentes falas dos res-
250
TEIAS DE AFETOS E SABERES
pondentes sobre a prática de vivências espirituais afastadas
das instituições religiosas formais e do estranhamento com
relação aos professores, em geral cristãos, que vivenciam sua
religião de maneira explícita no ambiente escolar.
Em um contexto de formação de professores em arte-educação, esse afastamento do religioso ambiguamente acompanhado pela inspiração na religiosidade ou espiritualidade
aponta para uma relação histórica entre o conceito de formação humana e o conceito de formação espiritual. As ciências
humanas e as experimentações estéticas foram, por séculos,
chamadas de ciências do espírito. Neste sentido, em um momento pandêmico mundial e instável politicamente, no qual
as escolas e os profissionais da educação viram-se perplexos
a escolher manterem seus empregos, expondo-se ao risco de
vida, ou enfrentando infindáveis greves, por todos atacadas
e criminalizadas, a formação inerente ao processo educativo
formal teve destacada sua dimensão espiritual, revivendo a
antiga relação entre ser formado/formador e o desenvolvimento de uma espiritualidade, que seria a quintessência do
humano.
Neste ponto, a questão sobre as religiosidades nas escolas
e universidades públicas pode avançar, tendo como caminho
a proposta decolonial, na qual o giro epistêmico intenta refundar as bases da modernidade, incluindo a proposta educacional de formação do sujeito. Ao invés de uma educação
preocupada com a formação do sujeito humano universal,
uma formação baseada no multiculturalismo e na valorização
da diferença, superando os entraves do conceito de igualdade, que é igualdade só para alguns, servindo mais ao apagamento das tensões e à manutenção das formas de dominação.
251
ARTE E EDUCAÇÃO PARA PROFESSORES
Neste sentido, encaminhar a pedagogia decolonial neste caso
significa beber das fontes não-ocidentais que conformam a
identidade de povos originários e de povos africanos resistentes às escravizações e genocídios, que apenas de forma
desidratada compõem as narrativas oficiais de história e cultura brasileiras.
Pensar a espiritualidade na escola a partir destes termos
decoloniais significa trabalhar uma ressignificação do próprio
conceito de religião e de formação. Significa pensar a espiritualidade como uma dimensão inerente ao corpo e forma primeira de comunicação entre os seres. Perceber, por um lado,
que a escola e a academia ao acolherem a dimensão espiritual
de seus estudantes e professores abrem-se para constituições epistemológicas negadas, apagadas e silenciadas que
trazem potência para exprimirem a transmissão de conhecimento por meio da experiência estética, que extrapola o conceito de arte, e se realiza na cultura viva vivida nos corpos
e nas suas expansões. Talvez, possamos encontrar um lugar
de contato entre essas possibilidades e o campo das artes ao
pensarmos o conceito de “performance”, no qual a separação
entre o que é artístico e o que é vivido em sua espontaneidade subjetiva é uma linha embaçada e de pouca importância.
Nota-se que a tentativa de reconquistar espaço no mercado religioso, tanto por parte das igrejas evangélicas como da
igreja católica, vêm assumindo práticas mais agressivas de
trabalho de base, especialmente nas periferias, para ocupar
e se manter no cenário religioso e na constituição de narrativas hegemônicas, recorrendo muitas vezes a estratégias de
ordem político-institucional, das quais o apoio neopentecostal ao bolsonarismo é estridente exemplo. Esse movimento
fundamentalista, que tem pelo menos 40 anos, tem sido ci-
252
TEIAS DE AFETOS E SABERES
tado por professores, em diversas ocasiões em que se debate
a implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, e apontado
como base estruturante da resistência por parte das famílias
em se trabalhar culturas afro-indígenas nas escolas. Por isso,
é o momento de pensarmos de que maneira às religiões e religiosidades não-hegemônicas podem ser dados seus devidos
nomes no ambiente escolar, como metodologia estratégica de
revide às guerras e interesses de dominação política de nossos seres, por parte daqueles que se colocam como nossos
inimigos. Que Exu nas escolas aponte os caminhos certos e
errados desta encruzilhada.
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