Esta tese parte de uma pergunta arriscada: por que, mesmo depois de três décadas, alguns mortos continuam a ser recordados? Tal questão nos coloca do lado das fantasmagorias — e, por extensão, da política. "Fogo e Asfalto" é um convite a...
moreEsta tese parte de uma pergunta arriscada: por que, mesmo depois de três décadas, alguns mortos continuam a ser recordados? Tal questão nos coloca do lado das fantasmagorias — e, por extensão, da política. "Fogo e Asfalto" é um convite a explorar a história recente chilena seguindo os rastros dos encapuchados, figura enigmática que, desde a década de 1980, assombra as ruas de Santiago. Essas figuras surgem, especialmente, em efemérides que recordam manifestantes anticapitalistas mortos na ditadura pinochetista e na pós-ditadura. Pelo anonimato e pela disposição a destruir objetos, lugares e corpos que encarnariam o Estado e o Capital, essas rebeldias são recusadas e expulsas para fora das margens da política. Nesse sentido, em vez de reduzi-los às esferas da baderna e criminalidade, interessa-me observar a resposta estatal total que suas ações geram. Arranjos de leis, táticas de policiamento, tecnologias e saberes, regimes penitenciários dedicados ao problema dessa violência – chamada pela polícia e pelo Ministério Público chileno de violência antissistema, anarquista insurrecional ou, ainda, de terrorismo. Pretendo de tal modo, indagar os excessos e as ansiedades do Estado na tentativa de combater aqueles que colocam como seu inimigo principal, justamente, o próprio Estado, atacando de forma aberta e espetacular os símbolos dominantes desse inimigo. Esta tese, resultado de uma pesquisa etnográfica de mais de 4 anos, se organiza em três capítulos. Em “Perseguições em Transição”, analiso a empreitada política e afetiva empreendida na redemocratização, projeto orientado pela ideia da reconciliação nacional que, por sua vez, colocou como principal inimigo da nação a figura do terrorista de esquerda – referindo-se àqueles que continuaram acreditando na violência como recurso na luta contra o capitalismo e contra a impunidade que protegeu aos perpetradores do terrorismo de Estado nos anos da ditadura. Em “Mortos, Ruas e Encapuchados”, atento para as composições espaço-temporais entre corpos, artefatos e fantasmagorias que sustentam essas rebeldias minoritárias, propondo uma leitura estética desses exercícios cinéticos de recordação no presente dos jovens combatentes mortos no passado. Junto à análise das mudanças estéticas nos embates entre mascarados e polícia, interrogo a linhagem de mortos construída tanto pelos militantes como pela polícia, isto é, as tramas entre os que hoje se recusam a abraçar a máxima da paz e das formas cívicas de participação política e os que o fizeram no passado. No último capítulo, “Presxs a la kalle”, exploro a experiência prisional de jovens acusados de perpetrar ataques contra os símbolos do Capital e do Estado. A partir do acompanhamento de audiências e de documentos jurídicos, analiso as materialidades e tecnologias mobilizadas como evidências que comprovariam a ideologia política dos suspeitos: DNA, confisco de livros, infiltrados da polícia no mundo off-line e online, conjunto que chamo de polícia mimética.