Homunculus
Homunculus
Homunculus
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Homunculus
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É na baixeza que o homem se conhece, se reconhece e até desfalece se preciso for. Nela,
o homem deve assumir-se e elevar-se perante as favas de sua insignificância, com
prudente dignidade. De fato, parece estranho que muitos não saltem definitivamente
desta lama da baixeza que pouco a pouco nos cobre, e como um banho de cobre, nos dá
um tom de valor. Tal lama viçosa e insossa percorre tranquila nossas veias em cada
lampejo desilustre. Em sua circunvolução, perdemos o desejo tênue pela liberdade
refulgente em meio à uma espessa penumbra, no auge de uma lassidão desesperante.
Acabamos por nos tornar baixos a ponto de odiarmos os grandes que deveríamos amar.
Vislumbramos de soslaio os diversos personagens do mundo e suas portentosas
instituições como teratológicas divas, enquanto os verdadeiros rebentos de virtude
heróica, que chamamos “grandes homens”, passam a ser considerados por nós como
subversivos e derrotados, quando muito, escandalosos. É o caso dos santos católicos,
homens no sentido pleno da palavra, que hoje são tratados como lendas de uma
humanidade tola e ingênua. São vistos pelos homunculus do dia como pequenos insetos,
imagens defuntas e assustadoras, sinônimos de morte e fanatismo antiquado. Pois sim,
os homunculus, estes deuses de casas de boneca, adoram julgar os grandes homens
virtuosos do alto de sua sordidez olímpica.
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aviltar. Procuram a cada instante roer os ossos dos próprios irmãos conforme sua
profunda falta de convicção. Mudam de opinião como mudam roupa, ao soprar da
moda! arrotando hálitos insólitos que só hão de afirmar o fragor profano de sua
desatinada corrupção.
Estes homunculus sedentos por segurança e conforto não aceitam fiança. Se te prendem
em suas teias, te assaltam ou te arrancam as vísceras, lhe cobram caro – e sem
prestações! pelos instrumentos utilizados e serviços prestados na incursão. Não creem
na Verdade – esta é apenas simples validação convencional – nem mesmo no erro – um
“estar de fora da roda” -, creem apenas em si mesmos como estátuas gregas sem braços,
porém, de máscaras, produzindo impressões sólidas e angustiosas nos corações daqueles
que os visitam em seus museológicos aposentos. Desmascará-los, eis nossa maçante,
mas gratificante missão.
Nesta alegoria pitoresca, o simples fato de não terem braços - um modo de dizer a
obtusidade e inabilidade acerca de sua ideia primitiva em relação à Verdade e o erro -
nos indica um detalhe burlesco de seu caráter: os homunculus modernos simplesmente
não agem por razão, mas sim, pela mera conveniência. Mesmo que uma determinada
linha de ação não faça o menor sentido de razoabilidade, a adotam, se for conveniente.
Isto porque confiam ritmicamente no som da flauta que toca a canção gloriosa dos
lemingues que unifica as consciências na mesma frequência estática, no mesmo orbe
nauseabundo, na mesma ilusão mentecapta. Democratizando a bestialidade, esta flauta
traduz emoções em letras toscas, esperanças em sansões de graus sutis, lúmenes
diapasões mumificantes. Esta portentosa flauta amorfa, mas saliente, reproduz no ar
elementos hierofânicos que inspiram as moscas sentimentalóides e suas asas políticas a
planarem sobre as tundas frescas feitas para nossa contemplação.
Sobre as colinas salivosas deste plásmico rincão, espera a musa dos homunculus em sua
música tônica, o respeito humano, ode que toca mais na pele que na concha do mar!
Não ouvem, sequer escutam!... respiram seu bálsamo amanteigado. Absorvem e
coagulam essas notas pútridas nos átrios profundos de seus candeeiros até suas últimas
consequências. O respeito humano é a canção de ninar dos homunculus embevecidos no
mal, no mal estar. Isto indica que vivemos na era do bem, do bem estar, e a raiz da
conveniência deste enredo musical que os atrai está no perigoso e sorrateiro respeito
humano. Tal deslustre atitude tem como antípoda – e digno remédio - o amor ao
próximo, tão empoeirado nos tempos de agora que acaba por nos impor a seguinte
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questão: como aplicar, remediar e sanar tal achaque em dias como estes que tudo se
dissolve no ácido estomacal do igualitarismo rasteiro? Com certeza, de uma forma que
irá soar aos olhos púbicos do público pudico como “afronta”, “intolerância”,
“violência”, em suma, na mais completa maquinação de um “fanatismo
antiprogressista”. Oh! como as almas de hoje são bisonhas e escurentas...
É triste ter de tratar com os homunculus, tão psiquicamente atados a diversos limites
linguísticos. Sim, limites linguísticos impostos pelo som da musa - a nova caçadora de
lemingues que desbancou o flautista masculino de Hamelim - que fazem as mais óbvias
verdades travestirem-se em ofensas partidárias.
A musa da ordem, da nova ordem, similar a deusa razão dos revolucionários franceses,
porém, muito mais poderosa, pouco a pouco aumenta o cerco semântico e espalha seu
pólem de respeito humano na atmosfera asfixiante do domo de Adão. Seduz com sua
eufonia os pequenos anões supersticiosos que não creem mais em Deus, mas na palavra
Deus! enquanto repetem a torto e a direito, a todo custo, em toda esquina, palavras
divinas por sua língua em torpor: senhor, senhor... Pois bem, o Senhor mesmo nos disse
em alto e bom som que não podemos servir a Deus e ao dinheiro. Usou o dinheiro como
exemplo de uma poderosa força motriz para sinalizar: nada de dois senhores, esqueça.
Ou Deus – princípio único, absoluto e imutável – ou o dinheiro – a musa e todas suas
quinquilharias, inclusive, o respeito humano.
A musa, aqui para nós, é o espírito daquilo que Santo Agostinho denominou “cidade dos
homens” em contraposto à “cidade de Deus”. É um espírito no sentido de ser uma
mentalidade, um modo possível da alma que se assemelha à uma mulher nua galopando
num cavalo – sem sela - roubado da estrebaria dos deuses e que pode tomar variadas
facetas dependendo das condições atmosféricas. Se reproduz socialmente e já se
consolidou ao longo dos séculos sob a forma de diversos impérios. É uma espécie de
praga germinal da história que, quando não é descoberta a tempo, acoberta toda a luz
natural acostumando, em sua sensual penumbra, as retinas à chegada de uma noite sem
fim. São os homunculus os lápis-lazúli desta positivista Babilônia.
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tão expansiva quanto nos últimos séculos. Assim, a musa prepara seu trono nos lombos
dos outeiros e estes remontam os caminhos. As praças públicas agora são luzes em telas
de bolso; as ágoras, plataformas de opiniões coloridas; o mundo, este pecado de terno e
gravata! Elegantes e tórridos, os homunculus colecionam prazeres e se comprazem na
diversidade do mercado. Compram e vendem nas interfaces digitais, comem e bebem
entre camaradas animais, se habilitam e empilham diplomas. Eles nasceram pra vencer!
Conhecer a Verdade, ordenar todas as coisas, apontar os erros e julgar os princípios, eis
o quadrante encontrado por Aquino, um destes grandes sábios que pode transfigurar
homunculus em vasos virtuosos! Quantos deles se desbarataram dos laços do erro ao
serem conduzidos pelo ensinamento de sábios como este! A sabedoria, sim, é o remédio
para a homunculação assintomática do mundo, pois ela é a maior demonstração de amor
ao próximo. Quem ensina a verdade, espalha esse amor. Quem a esconde, trancafia-o no
horror.
Pois então, o que seria a verdadeira grandeza humana: a posse de um poder temporal?
Da riqueza reluzente? Da beleza encantadora? Da eloquência sedutora? Dos títulos
acadêmicos? Da força bruta? Da fama febril? Do reconhecimento público de alguma
qualidade particular? Dos aplausos efusivos de uma platéia microcéfala? Do olhar
cadente de uma admiração narcoléptica? Jamais! A grandeza humana é a admissão de
uma pequenez constitutiva e irrevogável perante a realidade! Esta grandeza,
evidentemente, existe em graus diversos segundo uma escala hierárquica e o único
igualitarismo existente nela é o fato de estarem, aqueles que assim procedem, ou seja, os
magnus, despidos das indumentárias ilusórias desta vida. Outrossim, isto não é grandeza
aos olhos dos homunculus modernos, mas antes, sofreguidão. Não suportam o fato de
que seus grandes ídolos jamais serão tão grandes quanto os sábios e santos! Acreditam
que a grandeza é se render aos Golias do mundo, aos ricos antropófagos, aos
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masturbadores opulentos e suas instituições civis ultrajantemente convencionais. Diria o
poeta, a grandeza de alma se esconde nos calcanhares da baixeza altiva.
Não devemos nos sentir grandes se não percebermos primariamente esta nossa
pequenez constitutiva. Sabedores da disparidade irreversível em relação à realidade, nos
libertamos como os virtuosos, que a esta sabedoria assentiram por se admitirem tão
pequenos. Claramente percebemos que pela declaração sincera de nossa própria baixeza
e pequenez em relação à realidade podemos entrar no reto caminho da grandeza
humana. Em contraposição ao orgulho seguro dos homunculus, este tipo de pequenez - a
pequenez dos santos, sábios e pios homens – aparece como via perfeita, alternativa
eficaz para a futura realização da bela natureza do homem. O exemplo dos bons é a cura
para esta doença anônima que pervadiu o cenário global.