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Esther Hamburger/Gustavo Souza/Leandro Mendonça/Tunico Amancio (ÜRGS.) ESTUDOS DE CINEMA §COJCCIIMIE O|nセ@ f.lC!MfP>q ConHiho hャ」ッョセ@ tlll DeHnvoMmento Cientifico • T«nológlco C A P E S Ministério da Cultura [;] セI@ :uM· .PAI 5:,.· .D.E . T.O:D. O 5 GOVERNO FEDERAL H185 Infóthes lnforrnacão e Tesauro Hamburger, Esther, Org.; Souza, Gustavo, Org.; Mendonça Leandro, Org.; Amancio Tunico, Org. Estudos de Cinema. I Organização de Esther Hamburger, -Gustavo Souza, Leandro Mendonça e Tunico Amancio. -- São Paulo, AnnablUip.e; Fapesp; Socine, 2008. (Estudos do Cinema - Socine, IX). 390 p. ; 16 x 23 em. Encontro Socine, 11°, Rio de Janeiro (RJ), 17 a 20 de outubro de 2007. ISBN 978-85-7419-864-4 I. Cinema. 2. Cinema Brasileiro. 3. Cinema Latino-americano. 4. Audiovisual. 5. Documentário. 6. Sociologia do Cinema. I. Título. Il. Série. III. Socine. IV. Encontro Socine, 11°. Rio de Janeiro (RJ), 17 a 20 de outubro de 2007. CDU 791.43 CDD 791 Ficha elaborada por Wanda Lucia Schmidt - CRB-8-1922 ESTUDOS DE CINEMA SOCINE Coordenação editorial Joaquim Antonio Pereira Capa Carlos Clémen Diagramação Lívia C. L. Pereira CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peíiuela Caíiizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoríam) Cecilia de Almeida Salles Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D' Aléssio Ferrara 1• edição: outubro de 2008 © Socine - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual ANNABLUME editora . comunicação Rua Tucambira, 79 . Pinheiros 05428-020 . São Paulo . SP . Brasil Te!. e Fax. (011) 3812-6764- Televendas 3031-1754 www.annablume.com.br Diretoria da Socine: Denilson Lopes (UFRJ) - Presidente Andréa França (PUC-RJ)- Vice-Presidente Paulo Menezes (USP) -Tesoureiro Rosana de Lima Soares (USP)- Secretária Conselho Deliberativo: Afrânio Mendes Catani (USP) Alexandre Figueirôa (Unicap) André Gatti (Universidade Anhembi Morumbi/Faap) Bernadette Lyra (Universidade Anhembi Morumbi) Eduardo Morettin (USP) Erick Felinto (UERJ) Gustavo Souza (USP) - representante discente Ivana Bentes (UFRJ) João Guilherme Barone (PUCRS) João Luiz Vieira (UFF) Luiz Cláudio da Costa (UERJ) Luciana Corrêa de Araújo (UFSCar) Maria Dora Mourão (USP) Maurício Reinaldo Gonçalves (Uniso) Miguel Serpa Pereira (PUC-RJ) Reinaldo Cardenutto (Universidade Anhembi Morumbi/Faap)- representante discente Rogério Ferraraz (UniversidadeAnhembi Morumbi) Comitê Cientifico: Anelise Corseuil (UFSC) Angela Prysthon (UFPE) Ismail Xavier (USP) José Gatti (UFSCar) Marcius Freire (Unicamp) Mariarosaria Fabris (USP) Conselho Editorial: Afrânio Mendes Catani, Alexander Patez Galvão, Alexandre Figueirôa, Andréa França, Anelise Corseuil, Carlos Augusto Cal i!, César Guimarães, Cezar Migliorin, Consuelo Lins, Denilson Lopes, Eduardo Escorei, Eduardo Pefiuela Cafiizal, Fernando Morais da Costa, Flávia Cesarino Costa, João Guilherme Barone, João Luiz Vieira, Luciana Corrêa de Araújo, Marcius Freire, Mariarosaria Fabris, Miguel Serpa Pereira, Rosana de Lima Soares, Rubens Machado Jr. e Wilton Garcia Comissão de Publicação: Esther Hamburger, Gustavo Souza, Leandro Mendonça, Tunico Amâncio www.socine.org.br socine@gmail.com ENCONTROS ANUAiS DA SOCINE I 11 III IV v VI VII VIII IX X XI 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Univers_idade de São Paulo (São Paulo-SP) Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ) Universidade de Brasília (Brasília-DF) Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis-Se) Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PortoAlegre-RS) Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ) Universidade Federal da Bahia (Salvador-BA) Universidade Católica de Pernambuco (Recife-PE) Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo-RS) Socine- Estalagem de Minas Gerais (Ouro Preto-MG) Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ) SUMÁRIO 11 APRESENTAÇÃO Esther Hamburger, Gustavo Souza, Leandro Mendonça, Tunico Amancio TERROR, HORROR 15 0 ESTUDANTE DE PRAGA: O DUPLO, O ESPELHO, O AUTOR Adalberto Mu/ler 25 0 CINEMA E AS MUTAÇÕES DE DRÁCULA Mauro Pommer 33 BAD TRIP: AS ESTRATÉGIAS AUTORAIS DE PRODUÇÃO DE ENCANTO DE JOSÉ MOJICA MAR!NS EM 0 DESPERTAR DA BESTA (1969) Klaus Bragança ALTERIDADES 45 REVENDO A GRANDE CIDADE, DE CACÁ DlEGUES: O ORFISMO ÀS AVESSAS DA PERIFERIA Maria Cecília Coelho 53 RAciSMO E ANTI-RACISMo NO CINEMA Novo Noel Carvalho 61 QUANTO VALE OU É POR QUILO? A PRESENÇA DA RAÇA NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Pedro Lapera 71 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM À1ARIDINHO DE LUXO (1938), DE LUIZ DE BARROS Luiza Beatriz A. M A/vim VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 83 NEM PENSAR A GENTE QUER, A GENTE QUER É VfVER - FOCALIZAÇÃO E DIALOGISMO 91 Luiz Antonio Mousinho 0 CHÃO DE ASFALTO DE SUELY (OU Alessandra Brandão 99 Do CURTA AO LONGA: RELAÇÕES ESTÉTICAS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO DE EM HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES E MEU TIO MATOU UM CARA, DE JORGE FURTADO A ANTI-CABÍRIA DO SERTÃO DE ArNOUZ) PERNAMBUCO Samuel Paiva 109 0 PORTUGUÊS REDESCOBERTO NAS TELAS Fernando Morais da Costa CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 119 0 CINEMA NOVO SEGUNDO HABLEMOS DE CINE Fabián Núiíez 127 A RECEPÇÃO DA CRÍTICA AO CINEMA BRASILEIRO EXIBIDO EM PORTUGAL: 1960-1999 Regina Gomes EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 137 0 DOCUMENTÁRIO CHILENO DA ATUAL DEMOCRACIA Andrea Molfetta 145 A ESTÉTICA DA MONOTONIA: DESENCANTO, SOLIDÃO E INCOMUNICABILIDADE EM WHISKY Fábio Mendes 155 A CARAVANA FARKAS E O MODERNO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO: INTRODUÇÃO AOS CONTEXTOS E AOS CONCEITOS DOS FILMES Gilberto A. Sobrinho 163 ALTERIDADE, CONFLITO E RESISTÊNCIA NO BARROCO DE PAUL. LEDUC Maurício de Bragança IMAGEM E PODER 173 NEM TUDO É VERDADE, NEM TUDO É MENTIRA Mariarosaria Fabris 183 DOCUMENTÁRIO SOCIAL INGLÊS: PROBLEMATIZANDO A "OBRA" DE ÜRIERSON Paulo Menezes 191 Ao SUL DA FRONTEIRA COMDISNEY: 0 DOCUMENTÁRIO "MAKING OF" DEAL6AMIGOS DarIene J. Sad/ier 199 PROJEÇÕES, PROJETOS E PROJÉTEIS: O NOME DE 'ÁfRICA' E A SUBJETIVAÇÃO IMPERIAL EM LAGRIMAS DO SOL (2003) Marcelo R. Souza Ribeiro CINEMA, AUTORIA E POLÍTICA 211 ESTRANHAMENTO E APROXIMAÇÃO EM ESTAMIRA- DA ELOQÜÊNCIA DA LOUCURA AO TRAUMA SOCIAL Mariana Baltar 219 FROM "CINEMA" TO "FILM:" THE REPRESENTATION OF REALITY AND THE PLACE OF POLITICAL ENGAGEMENT IN THE FILM THEORY OF PIER PAOLO PASOLINI Stefano Ciammaroni 227 UM CINEMA DESENQUADRADO: A POLÍTICA DA LINGUAGEM E A LINGUAGEM DA POLÍTICA EM DUAS OU TRÊS COISAS QUE EU SEI DELA Cecilia Sayad 235 0 APELO REALISTA: UMA EXPRESSÃO ESTÉTICA DA BIOPOLÍTICA I/ana Feldman INTERFACES COM OUTRAS ARTES 247 GALÁXIAS: UMA POÉTICA DO ARQUIVO EM CONSTELAÇÕES RESSONANTES Luiz Cláudio da Costa 255 BRESSANE E A PINTURA- UMA LEITURA DAS IMAGENS NA OBRA BRESSANEANA, SOB A ÓTICA DAS GALÁXIAS Josette Monzani 263 0 DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO: A ENCENAÇÃO DO DESAFIO Sylvia R. Bastos Nemer 273 300 TORSOS TORNEADOS Ramayana Lira VISUALIDADES 283 RECURSOS POÉTICOS EM AMOR 291 EFEITOS VISUAIS COMO MARCAS DE FALSIFICAÇÃO NA OBRA DE SOKÚROV A FLOR DA PELE Genilda Azeredo Elianne Ivo Barroso 299 PERTO DEMAIS SE VÊ DE MENOS: A QUESTÃO DO PONTO DE VISTA NA ADAPTAÇÃO DE CLOSER Mareei Vieira EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO E NA TV 315 ARTE E VIDA: NOVOS CAMINHOS PARA O CINEMA NOS ANOS 1960 Elizabeth Real 325 CINEMA MODERNO E DE VANGUARDA NA TV: O PARADOXO PÓS-MODERNO DE CENA • ABERTA 333 Renato Luiz Pucci Jr 0 VALOR ESTÉTICO DOS VIDEOCLIPES PARA CANÇÕES DE FILMES: MARCAS AUTORAIS COMO DIFERENCIAL EXPRESSIVO Rodrigo Ribeiro Barreto 341 INTERFACES DO CINEMA MULTIMIDIÁTICO DE PETER GREENAWAY Denise Duarte Guimarães PESQIDSA, PÚBLICO E POLÍTICAS AUDIOVISUAIS 351 0 PENSAMENTO INDUSTRIAL CINEMATOGRÁFICO EM TEMPOS NEOLIBERAIS 1993) Arthur Autran 359 DIFERENTES CONCEPÇÕES DO POPULAR NO CINEMA BRASILEIRO Miriam de Souza Rossini (1990- 367 CINEMA E IDENTIDADE CULTURAL: O DEBATE CONTEMPORÂNEO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DO AUDIOVISUAL NO BRASIL Lia Bahia 377 CINEMA INDEPENDENTE NO BRASIL: ANOS 1950 Luís Alberto Rocha Melo 383 ACERVOS DOCUMENTAIS DE ARQUIVOS AUDIOVISUAIS: DESAFIOS E PROPOSTAS Rafael de Luna Freire APRESENTAÇÃO EsTE VOLUME traz uma seleção variada feita dentre as duas centenas e meia de trabalhos apresentados no XI Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em outubro de 2007. A reunião foi a maior até agora realizada pela entidade e contou com participação internacional. Os textos selecionados confirmam a proeminência da SOCINE no campo da pesquisa sobre as mais diversas relações entre a imagem e som. O volume sugere o estado avançado da reflexão sobre o campo do audiovisual no Brasil, que vai se afirmando de maneira específica, entrecortado pelo estudo de múltiplos suportes e meios de difusão, diversas abordagens e recortes teóricos e disciplinares. Para este número e sofisticando o método utilizado anteriormente, os trabalhos inscritos foram selecionados por uma ampla comissão de pareceristas que destacou proposições e leituras originais e aprofundadas sobre o vasto campo de cobertura do Encontro. Uma certa organicidade difusa expressa os muitos caminhos tangenciados pelo pensamento cinematográfico em busca da conformação e visibilidade de um campo próprio abrigado na SOCINE. . Os textos publicados reafirmam o interesse permanente em maior escala pelo cinema brasileiro, pensado aqui em algumas de suas vertentes contemporâneas, num largo espectro que contempla expressões de alteridades, repercussões críticas no exterior e inevitáveis interfaces que estabelece com um certo cinema da América Latina. Outros temas contemplados com sessões específicas incluem o cinema internacional, o vigor do documentário, processos de autoria e subjetivação política, visualidades singulares que perpassam do filme de horror ao apagamento de fronteiras com outras artes e outros suportes ou meios. Há também uma perspectiva histórica e um olhar sobre modos de gestão e de recepção. No momento em que a SOCINE se prepara para incrementar sua estrutura virtual, definindo procedimentos de divulgação e participação via digital, este volume, ainda em forma de livro, atesta a excelência de alguns dos debates ocorridos no ano passado e se propõe como elemento incentivador de novos olhares sobre o cinema e o audiovisual. ESTHER HAMBURGER GusTAVO SouzA LEANDRO MENDONÇA TUNJCO AMANCIO TERROR, HORROR O estudante de Praga: o duplo, o espelho, o autor ADALBERTO MüLLER (UNB) 1 Socorro/Perdi minha imagem! Offenbach, Contos de Hoffman, VI, 21. O ESTUDANTE DE PRAGA (Der Student von Prag,1913) é considerado um dos precursores do Expressionismo Alemão e dos filmes de horror. Narrando a história de um personagem que se confronta com o seu duplo, o filme é contemporâneo de outras produções que, de alguma forma, tocam em questões semelhantes, como O outro (Max Mack, 1913) e O golem (Paul Wegener, 1915). Ao mesmo tempo, é um filme que antecipa muitas das questões relacionadas a cinema e psicanálise, particularmente as que abrangem os temas de narcisismo e identidade, urna vez que o filme inspirou o estudo do psicanalista Otto Rank, Der Doppelgânger (1914). Original e criativo, esse filme se situa num cruzamento de contos e romances sobre o duplo (como os de E.T.A Hoffmann, Edgar A. Poe, Robertson, Dostoiévski, Maupassant), e antecipa filmes sobre o tema. Ao mesmo tempo, levanta questões atualíssimas sobre o conceito de autor, uma vez que sua autoria pode ser atribuída ao seu diretor (Stellan Rye), ao roteirista (Hanns Heinz Elwers), a até mesmo ao próprio ator, Paul Wegener. Trata-se, pois, de um filme seminal para compreender a história do cinema entre 191 O e 1920, e os seus desdobramentos. O estudante de Praga conta a infeliz história do estudante universitário Balduíno, jovem impulsivo e perdulário. Numa certa tarde, em que se divertia com a garçonete Lyudusha, numa praça de Praga, Balduíno conhece Scalpinelli, um estranho forasteiro, 1. Este trabalho foi realizado com apoio da FINATEC. 16 ESTUDOS DE CINEMA a quem Balduíno se queixa de suas desventuras financeiras. Quando passeiam pelos bosques próximos a um palácio, Balduíno salva a vida de uma Condessa, Margit, cujo cavalo desenfreara durante uma caça à raposa, da qual também participava seu primo e pretendente, o Barão Waldis-Schwarzenberg. Dias depois, quando se encontra em seu quarto, Balduíno recebe a visita inesperada de Scalpinelli, e este lhe faz uma proposta estranha: em troca de um objeto qualquer de seu quarto, Balduíno receberia uma grande soma de dinheiro, capaz de tomá-lo um homem rico. O estudante assina o pacto, e Scapinelli elege, dentre todas as coisas do seu quarto, a mais inesperada: a sua imagem, refletida num espelho. Como por milagre, a imagem de Balduíno se toma seu duplo, e passa a persegui-lo, onde quer que se encontre, atrapalhando seus planos de se casar com a Condessa Margit- para o que também contribuiu a dançarina Lyudusha, que, assim como seu duplo, passa a criar intrigas para afastá-lo de sua amada Condessa. Em várias ocasiões, o duplo passa a surgir e atrapalhar os planos de felicidade de Balduíno. O desfecho da história do amor acaba em desastre: o pretendente de Margit, sentindo-se desonrado, desafia Balduíno para um duelo; este promete a todos não ferir o Barão. No entanto, o duplo chega primeiro e mata o Barão no duelo. Desesperado, decide pôr fim à sua existência, mas atira no duplo, que desaparece. A felicidade de Balduíno dura pouco: seu peito começa a sangrar no mesmo local em que o duplo recebera o tiro, e Balduíno morre. Sobre seu cadáver, Scalpinelli vem rasgar o contrato. Na versão original do filme, vemos um plano final em que o duplo aparece sentado na tumba de Balduíno, sorrindo sarcasticamente. As pesquisas sobre o contexto em que surge um filme como O estudante de Praga ( 1913) têm levantado importantes debates teóricos e historio gráficos entre pesquisadores do cinema alemão. Por um lado, trata-se de repensar, como faz Thomas Elsaesser, as duas grandes interpretações do chamado Expressionismo alemão (ou cinema de Weimar), a saber, as de Siegfried Krakauer (De caligari a Hitler ) e de Lotte Eisner (A tela demoníaca). Esse questionamento se encaminha na direção de afirmar que filmes como O estudante de Praga (que Krakauer apenas menciona, por considerá-lo perdido quando escreveu seu livro) e toda a produção do período guilhermino (antes de 1914) poderiam desmentir a tese de que o cinema alemão do período pós-1918 prefigura os anos sombrios do nazismo, tomando-se um modo de compreender a psicologia "demoníaca" de uma nação inteira. Menos preocupados em definir um "caráter nacional", pesquisadores como Elsaesser (1999), Diederichs (1985) e Corina Müller (1988) lançaram outras luzes sobre a história do cinema silencioso alemão, sobretudo através de uma reavaliação do período pré-1918, e pelo estudo de filmes que não se enquadram no perfil traçado por Krakauer e Eisner. Segundo Elsaesser, é preciso ter cuidado para não reduzir o cinema alemão do período guilhermino a um mero "antecedente" do Expressionismo. O cinema realizado entre 1908 e 1914 constitui um conjunto de várias camadas superpostas: desde os prestigiosos Autorenjilme (sobre os quais falaremos a seguir), até os gêneros populares TERROR, HORROR 17 (filmes de detetive, melodramas e comédias). Quando se desvela essas várias camadas, fica ainda mais complexo reduzir o cinema desse período a considerações como as de Krakauer, para quem o cinema de Weimar seria um fenômeno político a ser entendido dentro de uma história ideológica, segundo a qual o cinema refletiria valores autoritários, nacionalistas ou racistas. Trata-se, sobretudo, de compreender esse cinema fora de uma moldura "traumática", característica de pensadores judeus que sobreviveram ao nazismo, como Krakauer e Eisner. Questões como autoria, público e gêneros populares têm despertado assim o interesse pelo cinema do período compreendido entre 1908 e 1914, quando o cinema alemão começa a ser produzido e distribuído internamente em escala comparável ao cinema francês e americano, e quando se forma uma "consciência crítica" do cinema, com o surgimento de várias colunas dedicadas à crítica cinematográfica nos grandes jornais, e até revistas especializadas em cinema, como a Kinematograph: É nesse contexto que surgem os conceito de Kunstfilm e Autorenfilm. O Kunstfilm é o equivalente alemão do "film d'art" francês, e consistiu em algumas modificações promovidas pela nascente indústria na estrutura de produção e exibição dos filmes, instalada em Neubabelsberg: a contratação de escritores, dramaturgos e atores reconhecidos para a produção de filmes, a modificação na duração dos filmes (dos curtas de 1O minutos exibidos em série numa sessão aos longa-metragem de I hora e meia a duas horas, exibidos isoladamente). Se nas revistas como Kinematograph e Spektator discute-se a "estética"do cinema, o investimento nos Kunstfilme traria para o cinema uma série de escritores renomados, dando origem a um tipo de filmes chamados de Autorenfilme, levados à tela por diretores como Gerhart Hauptmann, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmansthal, Paul Lindau e Hanns Heinz Ewers. Os Autorenfilme são a conseqüência de uma estratégia adotada pela indústria para tomar o cinema uma diversão "saudável" dentro do conjunto de uma sociedade bastante conservadora, tornando-o palatável para o gosto das classes intelectualizadas. Segundo Thomas Elsaesser, a indústria esforçouse por elevar o cinema a "high culture": Para ser reconhecida como parte da alta cultura, a indústria cinematográfica precisava produzir filmes, cujos valores estivessem sustentados por conceitos que tornavam as outras artes confiáveis: originalidade, autoria individual, especificidade estilística e coerência eram os critérios que permitiam comparar os filmes com outros acontecimentos culturais, como as obras primas do passado ou a arte de vanguarda do presente. (Elsaesser, 1999: 65) Por outro lado, por mais tentador que seja ver nos Autorenfilm um prenúncio do "cinema d'auteur" da nouvelle vague, é preciso entender o conceito de autoria dentro da especificidade do cinema guilhermino. Em primeiro lugar, deve-se destacar 18 ESTUDOS DE CINEMA que Autor em alemão, no contexto de cinema, tanto pode ser traduzido como autor quanto como roteirista ("Drehbuchautor" ou "Autor"). Corinna Müller, no excelente artigo "Das 'andere' Kino? Autorenfilme in der Vorkriegsãra", inicia suas reflexões sobre os Autorenfilm com uma definição retirada da Spektator, de 1913: "Filmes cujos manuscritos ou argumentos provêm de autores famosos" (Müller, 1998:153). Isso significa dizer que a importância do roteirista ou "Autor" na produção do filme se tomava equivafente à do diretor do mesmo, fato que, veremos, no caso de O estudante de Praga, é de grande relevância. A questão da autoria se tomaria ainda mais complexa, na medida em que renomados atores e atrizes de teatro como Paul Weggener e Asta Nielsen passam a influir diretamente sobre a produção de filmes, tomando-se, muitas vezes, o nome principal do mesmo. Segundo o minucioso estudo de Helmut Diederichs (1985), toma-se difícil atribuir com clareza a autoria desse filme ao diretor (Stellan Rye), ao roteirista e idealizador (Hanns Heinz Ewers) ou ao ator (Paul Wegener). Também foi fundamental para o filme a contribuição do fotógrafo e operador de câmera Guido Seeber, a quem se deve o truque-efeito de "dupla exposição" com o uso de máscaras diante da objetiva da câmera. Enfim, trata-se de um fenômeno complexo de autoria, que só pode ser deslindado através de uma análise da história de sua produção. Essa se inicia com as histórias particulares de cada um de seus quatro "autores". Paul Wegener, que ficaria ainda mais famoso com o filme O Golem (1915), do qual ele também é um dos "autores", iniciara sua carreira teatral na trupe de Max Reinhard. O dinamarquês Stellan Rye fizera sua carreira de ator e dramaturgo em Copenhague, onde iniciara sua . carreira como poeta histriônico e excêntrico. Suas peças acabaram sendo acusadas de indecentes, e o levaram a um processo judicial que o levou ao exílio em Berlim, onde se dedicaria ao cinema. Finalmente, Hanns Heinz Ewers, ou Dr. Ewers, depois de formar-se em Direito, dedicou-se à literatura, traduzindo obras de Edgar Poe e Oscar Wilde, organizando e comentando obras como as de E. T.A Hoffmann, escrevendo obras decadentistas e tardo-românticas. O filme foi rodado parcialmente (as externas) em Praga, por se tratar da cidade universitária de maior prestígio entre os países de língua alemã. Quando escreve o roteiro de O estudante de Praga, o Dr. Ewers leva em consideração uma longa tradição de textos românticos sobre a questão do duplo, mas também foram importantes as experiências de Paul Wegener e Guido Seeber com a dupla exposição da imagem e algumas incursões de Stellan Rye pelo tema do duplo. Portanto, todos os "autores" do filme (incluindo-se aí o cinegrafista Seeber) estavam preparados para o tema e para a forma de O estudante de Praga. Mas nada seria como é se o roteiro de Ewers não tivesse colocado todos os pingos nos is. Esse roteiro é na verdade uma verdadeira colcha de retalhos de livros sobre o duplo, o que faz pensar que a relação entre literatura e cinema nem sempre deve ser vista de modo direto - o modo que considera a adaptação de uma obra para o cinema TERROR, HORROR 19 - mas ganha muito quando se pensa nas relações entre a mídia literatura (p. ex., a questão do duplo na literatura) e a mídia cinema (que, no caso de O estudante de Praga, envolvem questões como a produção dos filmes de Neubabelsberg em função de técnicas de produção específicas , tais como a parada de câmera, a dupla exposição, a filmagem em estúdio combinada com locações externas, o sistema de contratação de escritores e de atores de teatro, etc.). Ao invés da adaptação, a palavra-chave passa a ser então a intermidialidade. Do ponto de vista da relação do filme com a mídia literatura, Hanns Heinz Ewers partiu de uma série de textos, analisados por Otto Rank em seu excelente estudo sobre O estudante de Praga. Entre esses textos, destacam-se as obras de Adelbert von Chamisso (Peter Schlemilhs wundérsame Geschichte), e de E.T.A. Hoffman (Die Geschichte vom verlorenen Spiegelbild), em que se narram as histórias de personagens assediados por um duplo que se origina da imagem de um protagonista refletida no espelho. Esses duplos são tratados como projeções do "Eu" dos personagens, um tema caro à literatura romântica alemã, que encontra reflexos na filosofia de Fichte sobre o Sujeito e nas considerações de Jean Paul sobre a personalidade. O Scalpinelli de O estudante de Praga é também um eco do Mefistófeles de Goethe, uma vez que propõe ao estudante Balduíno um pacto (nesse sentido, o Fausto de Murnau deve muito ao filme de Ewers/Rye), mas também lembra o Dr. Caligari. Além disso, uma das fontes literárias mais relevantes, e citada explicitamente no filme, é o poema "La nuit de décembre", do poeta romântico francês Alfred de Musset, na qual o narrador-eu lírico passa a ser assediado por um duplo de si mesmo. Numa das cartelas do filme, lemos a seguinte inscrição, retirada do poema de Musset: Partout ou j 'ai voulu dormir, Partout ou j 'ai voulu mourir, Partout ou j 'ai touché la terre, Sur ma route est venu s'asseoir Un malheureux vêtu de noir, Qui me ressemblait comme um frere. · Je ne suis ni dieu ni démon; Et tu m'as nomé par mon nom Quand tu m'as appelé ton frere; Ou tu vas, j 'y serais toujours, Jusqu'au demier de tes jours, ouj'irai m'asseoir surta Pierre. Na versão original do filme- que não é a que circula no DVD americanovemos um plano final em que o duplo senta-se ao lado da tumba de Balduíno sorridente. É esse ingrediente que transforma o duplo em algo ainda mais exasperado r, sobretudo 20 ESTUDOS DE CINEMA para a platéia, e que certamente levou tardiamente alguns críticos a considerar O estudante de Praga como um precursor dos filmes de horror. Mas a questão do gênero do filme não é menos complexa que a questão da autoria. Para o espectador da época, O estudante de Praga não é "o precursor dos filmes de horror", e muito menos um "precursor do Expressionismo alemão", mas um Kunstfilm, ou seja, um filme que segue os preceitos dos "film d'art" dos estúdios Pathé, que inclusive tinham uma duração bem maior do que a dos filmes convencionais da época (cf. Müller, 1998). Ao mesmo tempo, tratava-se de um Autorenfilm , ou seja, um tipo de filme produzido com a colaboração de um escritor ou literato, e com a participação de nomes importantes da cena teatral. O filme tinha além disso um subtítulo que nos aponta para o caráter intermidiático dos gêneros cinematográficos do primeiro cinema: "Ein romantisches Drama". Drama romântico aqui não deve ser entendido como hoje entendemos a palavra, ou seja, como aqueles filmes de intrigas amorosas (embora esse elemento esteja presente em O estudante de Praga). O adjetivo "romantich" tem em alemão uma acepção menos ligada a histórias de sentimento (histórias afetivas) e mais a questões de cunho filosófico e reflexivo. O termo "drama romântico" foi empregado por Friedrich Schlegel para distinguir o drama clássico, de gosto francês, da dramaturgia nascente desde o Sturm und Drang, que incluía nomes como Schiller e Lessing, e que recebera forte influência do teatro shakespeariano teatro em que, aliás, não faltam fantasmas, bruxas e elementos sobrenaturais. Para Hanns Heins Ewers, o elemento romântico de O estudante de Praga associa-se ao elemento sobrenatural e inquietante do "doppelganger", cuja fonte são autores românticos como Hoffmmann, Chemisso, Poe, Musset, ou tardo-românticos Maupassant e Wilde. Mas a tradição crítica posterior ao filme o consideraria como um dos mais importantes filmes de terror de que se tem notícia. Mas em que medida essa apreciação é correta? Como vimos, ela só pode ser entendida fora do contexto do cinema guilhermino, em que O estudante de Praga é um Kunstfilm, ou, para ser mais preciso, um Autorenfilm. Mas o subtítulo dado por Ewers ao filme já abre a possibilidade de associá-lo ao gênero de horror gótico, uma vez que o gótico é caracteristicamente um gênero romântico- gênero literário que, aliás, sofreu influência dos espetáculos de fantasmagoria do século XVill. Assim, poderíamos considerar que, a posteriori, O estudante de Praga é um filme de terror, uma vez que nele se apresentam algumas características desse gênero cinematográfico. Segundo Rick Altman (que usa uma terminologia lingüística para descrever os gêneros cinematográficos), os filmes de horror tomam emprestada da tradição literária do século XIX sua dependência em relação à presença do monstro. Ao fazê-lo, perpetuam claramente o significado lingüístico do monstro como "ser inumano ameaçador", ao desenrolar novos laços sintáticos, geram uma importante série de novos significados textuais. TERROR, HORROR 21 No século XIX, a aparição do monstro encontra-se invariavelmente ligada a uma ruptura de limites de caráter romântico, com a tentativa de um cientista humano de contrapor-se à ordem divina. Em textos como Frankenstein de Mary Shelley, La recherche de l'absolu de Balzac, Dr. Jeckyll and Mr. Hyde de Stevenson, uma estudada sintaxe iguala o homem e o monstro, atribuindo a ambos a monstruosidade de estar fora da natureza, tal como a definem a religião e a ciência estabelecidas. No cinema de terror, um outro tipo de sintaxe iguala rapidamente a monstruosidade não com o excesso de atividade de uma mente do ·século XIX, mas com o excesso de atividade de um corpo do século XX. Uma e outra vez, o monstro se identifica com o apetite sexual insatisfeito de sua contrapartida humana; estabelecem-se assim, com os mesmos materiais "lingüísticos" primários (o monstro, o terror, a perseguição, a morte) significados textuais totalmente novos, de caráter mais fálico que científico. (Altman:2000: 302-3) Como vemos, Rick Altman constrói sua definição do terror e do monstro em tennos psicanalíticos (apetite sexual insatisfeito, caráter fálico). De fato, num filme como O estudante de Praga, é o próprio gênero terror que é posto em causa, uma vez que o monstro não é ou não parece ser "inumano", mas, sim, tem forma não apenas humana, mas idêntica à do protagonista. Em 1914, menos de um ano depois do lançamento do filme, o psicanalista Otto Rank, um dos discípulos de Freud, publica na revista /mago o texto Der Doppelganger [O Duplo], que se toma o primeiro texto psicanalítico sobre cinema de que tenho notícia. Trata-se de um estudo de peso, que tenta levantar fontes literárias e míticas para explicar a questão do duplo, e com vistas a constituir uma teoria da personalidade. Para a teoria psicanalítica de Otto Rank, o Duplo evidencia um distúrbio neurótico de personalidade, que se constitui através de uma "divisão" [Spaltung], da personalidade, provocada por um excessivo amor próprio [eigenes Lieben], de raiz narcisística. Essa configuração psicológica está relacionada a uma incapacidade para amar, e ao mesmo tempo para um impulso de morte [Todesbetrieb]. Para explicitar esse tipo de patologia psíquica, Otto Rank recorre ao filme O estudante de Praga, e ao mesmo tempo busca as bases literárias e folclóricas da questão do duplo. Do ponto de vista literário, as fontes são quase todas oriundas da literatura romântica: do Peter Schlehrnil de Adelbert von Chemisso, o "homem que perdeu sua sombra", ou melhor, que "vendeu sua sombra/sua alma"ao diabo, passando por diversas narrativas de E.T.A. Hoffmann, como "Die Geschichte vom verlorenen Speigelbild", cujo protagonista, Erasmus Spikher, depois de envolver-se com uma jovem na Itália, vê sua imagem no espelho definhar até desaparecer. Vale lembrar, como destacará Otto Rank no seu estudo, que alma, sombra e imagem refletida [Spiegelbild] são termos sinônimos em muitas culturas. E.T.A Hoffman desenvolveu ao longo de suas narrativas uma reflexão profunda sobre a personalidade, sob influência de Jean Paul(?) e sua crítica à filosofia do Eu de Fichte. Numa das saborosas epígrafes TERROR, HORROR 23 BIBLIOGRAFIA ALTMAN, Rick. Los géneros cinematográficos. Barcelona!Paidos, 2000. AUGEN-BLICK. DerStummfilm als Gesamtkunstwerk. Marburg, set. 1988, n. 8. CANEPA, Laura. Expressionismo alemão. In: Mascarello, F.(org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus: 2006. DIEDERICHS, Helmut. Der Student von Prag: Einfürung und Protokoll. Stuttgart: Focus Fil-Texte, 1985. ELSAESSER, Thomas. Das Weimarer Kino. Berlin: Vorwerk 8, 1999. 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É tendo em mente essa mudança no caráter do personagem que se pode dar conta de que Drácula, o vampiro inventado literariamente por Bram Stoker, faz no contexto do romance algo que horrorizaria os espectadores de cinema: caminhar à luz do dia. A luz solar não o destrói, apenas reduz consideravelmente seus poderes razão pela qual ele costuma passar os períodos diurnos em estado de letargia. Já os vampiros cinematográficos, todos eles derivados daquela mesma fonte literária, são tão sensíveis à luz do sol quanto o é a própria emulsão da película. Essa nova forma de fragilidade, constituída por uma analogia (que é uma das formas operatórias do universo mágico) de caráter simultaneamente técnico e metafórico, é uma criação de Murnau e de seu roteirista Henrik Galeen, em Nosferatu ( 1922). Nosfera tu não constitui a primeira adaptação do romance Drácula para o cinema. Porém, a primeira versão para o texto de Stoker, o filme húngaro Drakula (1920), consiste em uma adaptação não-autorizada da qual não restou nenhuma cópia conhecida. 1 Desse modo, as inovações introduzidas por Mumau e Galeen tornaram-se a referência duradoura para as futuras adaptações. Um elemento central do estilo estético adotado por Murnau nesse filme foi a utilização sistemática das trucagens para indicar ou mimetizar as características I. Ver BIGNELL, 2000: 114-30. TERROR, HORROR 29 reforça o caráter de confluência entre as qualidades do vampiro e a natureza do aparelho cinematográfico. Esse ser das sombras desaparece tão completamente quanto a imagem num filme superexposto. Essa reconformação introduzida no mito do vampiro, tal como visto em Nosferatu, tomar-se-á a base de suas inúmeras adaptações futuras para o cinema. Gostaria de mencionar aqui três dessas adaptações para efeito comparativo. Uma delas é a versão realizada por Terence Fisher para a produtora inglesa Hammer, em 1958, The Horror of Dracula, que se tomou uma espécie de paradigma da releitura dessa história no contexto dos anos 1950, marcando o início da dominação da produtora sobre o cinema de horror até o início dos anos 1970. Primeira versão cinematográfica em cores, permite que o vermelho do sangue assuma um lugar proeminente em sua direção de arte. O dado curioso sobre essa adaptação está na busca de uma "naturalização" do vampiro, de tal modo que a vertente "cientificista" presente na obra original é não apenas retomada, mas até ultrapassada. Exemplar dessa tendência é a observação gravada por Van Helsing em seu dictaphone: 4 "É uma falácia comum considerar que os vampiros podem transformar-se em morcegos e lobos". Assim sendo, e tendo sido eliminada qualquer relação com o sobrenatural (o que tenderia a engendrar correlativamente questões de natureza moral e mesmo religiosa), a condição a que está submetido o Conde Drácula reduz-se a uma espécie de doença ainda desconhecida, mas possível de ser combatida caso se possam repertoriar algumas de suas características. É então, em meio a uma cenografia de marcante caráter teatralizado e atemporal- onde as aspirações sanitárias próprias aos anos 1950, de forte urbanização e abandono da "sujeira" rural se fazem dominantes, em forte contraste com o decadente castelo de Nosferatu -, que a ambígua caracterização dessa nova versão do vampiro se faz presente. Ele inexplicavelmente teme as cruzes, mesmo se sua afecção constitui apenas uma doença, embora desconhecida; e sabe-se de sua mortal sensibilidade à luz do sol, qúando a ciência parece mostrar-se capaz de um dia explicar tal fenômeno, fora de qualquer conotação religiosa. No final, é graças a esse conhecimento que o vampiro é aniquilado, transformando-se em pó graças ao ardil de Van Helsing, que o detém com um crucifixo, e depois o ataca com a abertura de uma grossa cortina, deixando entrar a luz do dia. De modo que o filme caminha entre duas vertentes, fazendo com que os instrumentos "científicos" da derrota do vampiro (a cruz e a luz solar) impliquem, pelas suas derivações conotativas, na condenação moral de seu comportamento, já que ele continua uma criatUra das trevas, e anticristão. 4. A presença desse aparelho elétrico, recém-inventado, no contexto da história, é marca importante da presença da ciência e de suas derivações tecnológicas no contexto da obra de Stoker, recuperada no filme de Fisher. 26 ESTUDOS DE CINEMA sobrenaturais do vampiro, produzindo com isso uma interação da criatura com o aparelho cinematográfico, de repercussões tanto narrativas quanto simbólicas. O vampiro é apresentado como sombra, tanto nos intertítulos ("Tome cuidado para que a sombra dele não venha perturbar seu sono com horríveis pesadelos"), quanto visualmente, como no caso da sua sombra sobre Hutter (no livro, Harker), desmaiado, ou da sombra no topo da escada, em direção ao quarto de Ellen (ou Mina). Assim, o vampiro se apresenta, constitutivamente, como o inverso da luz. Considerada tal caracteristica em termos especificamente cinematográficos, ele se apresenta como uma criatura que só pode impressionar a película pelo contraste com o que efetivamente existe, já que a película não registra as sombras por si mesmas. Trata-se de uma decorrência visual, de sua ambígua natureza de morto-vivo. ,Nessa mesma linha de raciocínio, vê-se impor sua presença por sobre os objetos existentes no mundo material, como na cena passada no porão do navio: um marujo doente, estendido em uma rede, vislumbra a figura do vampiro, que aparece em sobreimpressão acima das caixas de terra, que ele próprio embarcara naquela nave. Essa imagem é oportunamente mostrada como uma subjetiva do marujo, acentuando a ambigüidade presente entre a existência efetiva do vampiro como um ser concreto (embora de natureza diversa da humana) e a percepção que dele se pode ter. Tal contraposição objetividade/subjetividade aparece como algo próprio a um estado alterado da consciência- no caso, o estado alucinatório derivado da febre que consome aqueles marinheiros por causa da infecção que grassa a bordo. De modo que o vampiro é mostrado por vezes como constituindo um efeito do olhar, do foco da atenção, do interesse subjetivo. Outros usos de trucagens para marcar sua manifestação ocorrem quando o capitão do navio ameaça atacá-lo com uma machadinha, após abrir o caixão onde ele se acha deitado sobre a terra. Nosferatu então ergue-se ao ar mantendo sua postura de rigidez cadavérica, por uma força de natureza mágica - para a qual se utiliza a "magia" dos efeitos especiais; e ainda quando, ao entrar em sua nova residência, na cidade portuária, "seu ser se dissolve" ao passar peia porta fechada, através de uma sobreimpressão em fade-out. Esse conjunto de procedimentos estéticos, concebidos que são para representar a parte incorpórea, presente na natureza de uma criatura que transita entre dois mundos, pode ser também tomado como uma metáfora do cinema, em sua capacidade de manter em estado de suspensão animada um conjunto de momentos eventuais capturados pela via da luz refletida. Enquanto espectadores de cinema, habitualmente vivencia-se o presente narrativo veiculado em suas histórias, abstraindo o fato de serem imagens por sua natureza intrínseca pertencentes ao passado. Na concepção de Mumau, o caráter fantasmagórico próprio ao cinema reencontra uma permanente atualização, pertinente a um dispositivo capaz de transformar uma performance em repetição mecânica. É o domínio de uma ritualidade de tipo novo, baseada sobre à TERROR, HORROR 27 reprodução da morte como vida - triunfo de um estilo civilizatório que a obra de Murnau, em seu conjunto, demonstra abominar. De modo que o cinema, forma artística de eleição para Mumau, não obstante é por ele caracterizado como um instrumento constituinte da mesma lógica vampirizadora intrínseca à civilização que gerou tal dispositivo. Nesse registro, a própria característica da impressão da imagem em preto e branco é utilizada por Mumau como suporte de um procedimento artístico pleno de conotações, pela via da manipulação empregada na seqüência da chegada de Hutter ao castelo, na carruagem do Conde. Montando a tomada em negativo, Mumau cria uma imagem de inversão capaz de apontar em muitas direções simultaneamente. De um lado, marca a passagem a um território onde deixam de vigorar as normas e costumes da civilização européia dos anos 20, como explicitamente no caso do homoerotismo, então considerado crime. Em adição a isso, note-se ainda que num contexto repressivo das manifestações da sexualidade, o sutil deslocamento provocado no contexto do filme em relação à sexualidade - que aí opera em caráter sugestivo, e não de forma explícita- remete a uma reerotização de todas as relações envolvidas no contexto da história. Por outro lado, tal inversão prenuncia o projeto de Mumau de elogio à autencidade da tradição, presente nas imagens do castelo e de seus arredores rurais, colocada contra a sugerida corrupção urbana, representada pela cidade como local propício à disseminação da pestilência. Que Nosferatu seja o indutor da epidemia urbana é apenas uma forma de cumprir seu papel desagregador, com referência àquilo que já se encontra intrinsecamente corrompido. Esse tipo de oposição rural/urbano será retomado de forma recorrente depois da ida de Mumau aos Estados Unidos, constituindo um tema chave no conjunto de sua obra- vide Aurora, City Girl, Tabu, onde o urbano é visto como local de decadência. Na base de tal inversão encontra-se ainda um movimento que subverte o cerne da obra original de Stoker, já que este aponta a técnica (supra-sumo do urbano) como salvação, confrontada aos males inerentes ao primitivismo representado pelo vampiro. Em Nosferatu, a própria mecanização da arte trazida pelo cinema é utilizada como suporte (via trucagens fotográficas, montagem e efeitos especiais, como se vê) para uma sutil denúncia da desumanização que a civilização mecânica promove. Pois o vampirismo constitui uma privilegiada metáfora do cinema: "rouba" a alma das pessoas, ao transformá-las em mortos-vivos, movendo-se nas telas. 2 Aqui, a representação da vida pela via mecanizada, amplifica, busca flagrar o senso comum da vida cotidiana como ritual vazio, repetição inconsciente de uma visão de mundo restrita. 2. A utilização do princípio estético de que a imagem cinematográfica pode ser doadora de vida ou promotora da morte do personagem retratado continuará a ser sistematicamente desenvolvida por Murnau em sua obra posterior. Em Der Letzte Mann, por exemplo, ele faz com que a decupagem e o enquadramento prenunciem a queda em desgraça do porteiro antes mesmo que esse fato ocorra na narrativa (Cf. POMMER, 2000: 170-1). 28 ESTUDOS DE CINEMA Murnau demonstra simpatia pelo vampiro - capaz de revelar aos outros personagens suas verdades profundas-, opostamente a Stoker, que combina fascinação com aversão. Para Stoker, o Conde representa o atraso rural, com sua ameaça centroeuropéia à civilização inglesa, enquanto resultado da mistura de estranhas tradições, avessas à cultura cristã. 3 O próprio Nosferatu acaba sendo destruído pela luz do sol porque, levado por uma espécie de arroubo "romântico", ele se esquece da passagem do tempo enquanto suga o sangue de Ellen. Esta age em concordância com o que lera, no livro trazido por seu marido, acerca dos poderes do vampiro: "Ninguém pode salvá-lo a menos que uma moça sem pecado faça o vampiro esquecer-se do primeiro canto do galo, dandolhe o seu sangue deliberadamente". Essa sua disposição ao sacrificio tem sua cota de ambigüidade, já que ela demonstra por seu sonambulismo estar sob a influência de Nosferatu. Nesse sentido, a personagem Ellen constitui uma fusão dos caracteres literários de Mina (a devota) e sua prima Lucy (a sensual). Inclusive na cena em que Ellen borda numa toalha as palavr;1s "Ich liebe Dich" ("Eu te amd'), ela lança ao além um olhar melancólico, de natureza enigmática. Se o contexto da história aponta Hutter como o destinatário de tal declaração, a seqüência apresentada pela montagem dá a entender que é o vampiro quem mobiliza seus pensamentos. De certo modo, a revelação de um resto de humanidade nesse personagem - a ponto de mostrá-lo digno da compaixão de Ellen- termina por redimi-lo na versão de Murnau. Já na concepção original de Stoker, o vampiro é tratado como uma anomalia da natureza, da qual todo traço humano foi esvaziado. A destruição de Drácula se dá na obra de Stoker num contexto em que seus perseguidores, baseados em evidências de caráter "científico" coletadas por Van Helsing em fontes diversas, buscam tirar proveito da fragilidade do vampiro durante as horas em que o sol está acima do horizonte. Trata-se de uma operação de caráter praticamente sanitário, levada a termo com o mesmo grau de deliberação e busca de eficácia com se levaria a efeito, por exemplo, uma desratização. Mas Nosferatu tem sua peculiar relação com a luz tratada de modo poético e sutil. Ela é mostrada por uma trucagem fotográfica, levada a efeito quando o vampiro entra à noite no quarto de Ruth, a cunhada de Hutter (ocupando estruturalmente no filme o lugar de Lucy no romance). A chegada do morto-vivo no quarto é anunciada por uma viragem na cópia, do tom sépia para o azulado, como se mesmo a penumbra fosse contagiada por sua presença. Conhecedora da relação do vampiro com a luz, Ellen decide entregar-se a ele para destruí-lo, fazendo com que Nosferatu não perceba que o sol está nascendo. É assim por causa da luz excessiva do sol, que o vampiro é aniquilado, transformando-se em fumaça. A trucagem empregada na cena, umfade-out em sobre-impressão, novamente 3. Ver CONDOURIOTIS, 2000: 143-59. 22 ESTUDOS DE CINEMA do livro de Rank, encontramos essa passagem de E.Th. A. Hoffman, que ilustra o pensamento do psicanalista sobre a questão do duplo: "Penso que meu Eu seja como um espelho multiplicado; todas as formas que se movem ao meu redor são Eus, e me irrito com que fazem e deixam de fazer." (Rank, 1993: 13). Outra fonte importante para Rank é a obra cômica-romântica de Ferdinand Raimund, que depois de descobrir que seu reflexo (Spiegenbild) foi libertado do espelho, passa a sentir-se perseguido por uma "maldita duplicidade" [verdaemmte Doppelgaengerei] (Rank, 1993:24). Rank ainda elenca vários outros escritos célebres sobre a questão do duplo na literatura, como o de Alfred de Musset ("la nuit de décembre", o conto "William Wilson" de Edgar Poe (adaptado por Louis Malle), a narrativa "Le Horla", de Guy de Maupassant, e as novelas O duplo, de Dostoievski, e O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. A impressão que se tem, ao ler o estudo comparativo de Rank, é que Ewers aproveitouse de todas essas narrativas, constituindo um patchwork de narrativas. Mas não apenas a literatura é fonte de pesquisa para Rank. Ele também se vale de informações do folclore. Primeiro, em relação à questão da sombra. Em muitas culturas, a sombra é considerada como alma [Seele], e o fato de perder sua sombra ou não conseguir vê-la em determinadas ocasiões está associado a prenúncios de morte. Em muitas culturas arcaicas, a palavra que designa sombra, imagem e alma é a mesma. Para os nativos das ilhas Fiji, a palavra "yalo" (alma) quando duplicada "yaloyalo" passa a significar "sombra". Também em muitas culturas antigas, os mortos e algumas entidades sobrenaturais (como os fantasmas, os elfos e os bruxos) não produzem sombra. Também faz parte do folclore associar a imagem refletida [Spiegelbid] à alma, e muitas são as lendas e crenças que se referem a esse tipo de imagem. Os gregos acreditavam que ver em sonho a sua imagem refletida era um prenúncio de morte. Entre os mesmos gregos surgiu o mito de Narciso, tão fundamental para a questão do duplo e para o seu significado psicanalítico. Uma das versões do mito assevera que Tirésias teria previsto que Narciso não deveria jamais olhar para a sua imagem, pois isso o levaria à morte. Esse mito é um dos fundamentos da teoria psicanalítica de Rank, para quem o narcisismo não apenas está associado à sexualidade, mas ao impulso de morte. O narcisismo é um "ersatz" do impulso da morte, e como tal, O Estudante de Praga pode ser tomado como a primeira "ilustração" das grandes teorias psicanalíticas derivadas do círculo freudiano, e que viriam a ser um dos pilares da cultura e do pensamento do século XX. Rever esse filme antigo e semi-olvidado, portanto, não mero exercício de necrofilia, mas quiçá uma necessidade para quem quer compreender o frutífero diálogo entre arte, tecnologia e psicanálise. 30 ESTUDOS DE CINEMA s Curiosamente, é na versão de Francis Coppola, intitulada Eram Stoker Dracula ( 1992), que é feita a primeira tentativa conseqüente de recristianização do personagem. Enfatizando o princípio dramatúrgico de que todo personagem tem suas razões, Coppola e seu roteirista James Hart optam por dotar a história de um preâmbulo onde se apresenta a guerra comandada pelo Conde contra a invasão otomana no século XV, e se narra sua paixão pela noiva, morta de forma trágica e absurda em função dos desdobramentos desse combate. Por causa desse infortúnio, Drácula renega o cristianismo e consagra-se a uma espécie de vingança contra Deus, fazendo um pacto com as forças malignas capaz de .garantir-lhe a eternidade na Terra desde que se nutrisse do sangue dos vivos. Posteriormente, tendo-se tomado imortal, ele vem a descobrir, no final do século XIX, que sua amada se reencamara na figura de Mina Murray, a noiva de Harker, o agente imobiliário londrino que viaja até a Transilvânia com o objetivo de concluir negócios referentes à aquisição de uma propriedade em Londres. Em função das opções autorais que Coppola assume, sua adaptação recoloca em termos bastante distintos, daqueles originalmente utilizados por Stoker, a forma como é tratada a questão da modernidade, assim como o papel nesse contexto desempenhado pela tradição. O cineasta realiza um filme no qual deliberadamente emprega apenas as possibilidades de trucagens existentes na própria época em que sua história transcorre, e exibe a então recente invenção que era o cinematógrafo como elemento interno à própria narrativa, colocando o próprio Conde presente a uma das sessões pioneiras com o aparelho. Dessa forma, o vampiro aparece como despido do ar empoeirado com que o vestira o cinema precedentemente, seja nas adaptações derivadas da visão de Murnau, que insiste em imagens que remetem ao passado, seja naquelas inspiradas pelo estilo Hammer, que apesar de privilegiarem certa atemporalidade no tratamento cenográfico, colocavam ênfase no provinciano e no rural. O vampiro de Coppola é uma criatura decididamente urbana; nesse sentido, sua decisão de instalar-se em Londres, então a maior metrópole do mundo, surge como um passo natural. O filme recupera a idéia original sobre a possibilidade dessa criatura não propriamente ser destruída pela exposição ao sol, mas apenas perder temporariamente o uso de seus poderes. Utilizar óculos escuros mesmo na fraca e difusa luz londrina, é a única e sutil menção à sua afecção. É em outro plano que aparece a questão do vampirismo nesse filme - como doença contagiante (nos mesmos moldes em que se vê no filme de Fischer), e não enquanto repercussão do Mal. De forma surpreendente, essa infecção assume um papel de signo modemizante em dois planos diferentes na história, tal qual contada por Coppola. Na medida em que o lado negativo da modernidade se encontra vinculado ao papel mecânico que o ser humano é chamado a desempenhar, ao adaptar-se ao ritmo das máquinas na busca de fazê-las funcionarem adequadamente, a marca por excelência da manutenção de um espaço humanizado passa a interiorizar-se na forma do amor romântico. Em sua busca da atualização do mito do vampiro, Coppola substitui TERROR, HORROR 31 sua luxúria original (que engendrava a condenação suprema que a criatura poderia sofrer no contexto vitoriano de seu surgimento) por um amor apaixonado, que ao ter sido contrariado, colocou-se tanto na origem de sua revolta contra a tradição cristã da piedade quanto de seu posterior reencontro com esses valores ao perceber a inevitabilidade da morte. O espaço da subjetividade constitui então o reduto onde o humano se abriga, já que sua ação exterior cotidiana se apresenta configurada pelo tempo e pela ação mecanizados. Não é de se espantar que seja portanto Drácula, um membro da nobreza, quem é capaz de manter-se "integrado com sua natureza humana" (ou seja, o filme defende essa idéia pela via do paradoxo: um morto-vivo como símbolo da humanidade), na medida em que sua condição social o libera do trabalho escravizante. Além disso, tal modernização atinge um caráter contemporâneo também porque a narrativa introduz similaridades analógicas entre o contágio vampiresco e aquele proveniente da Aids. A cena em que Mina se entrega ao vampiro, e decididamente bebe o sangue dele, é nesse ponto exemplar. Afirma-se o predomínio da paixão sobre o da autopreservação, numa atitude que deliberadamente confronta as discussões na época da produção do filme sobre essa infecção. Trata-se da repercussão, num plano contemporâneo, da epidemia de sífilis ocorrida no final do século XIX em Londres, inspiradora da história original. Num contexto em que o emprego da transfusão de sangue constituía um grande avanço científico, a presença de uma doença transmissível em decorrência desse procedimento médico coloca simultaneamente em cheque os hábitos de uma coletividade. Tal manifestação infecciosa, cujo combate assumiu tanto um caráter de controle da saúde pública quanto de questionamento moral, constitui na verdade o fundamento inexplícito sobre o qual a história de Drácula foi construída. A busca de uma justificação capaz de resgatar as razões próprias a um personagem sanguinário não constitui novidade na obra de Coppola. O autor já empregara tratamento análogo na busca de um perdão para os Corleone, pa trilogia de O poderoso chefão. Ali, os mafiosos "do bem" aparecem sobretudo como vítimas de um contexto agrário tradicional, capaz de deixar raízes tão profundas no comportamento e nos valores de uma comunidade no sentido de sua corrupção moral, que nem mesmo seu transporte para o contexto urbano seria capaz de erradicar. Nessa medida, Don Corleone, tal qual o Conde Drácula, apresentam-se como personagens inextricavelmente conectados com seu antigo país, representantes dos aspectos arcaicos da velha Europa. A terra e o sangue nos dois casos formam uma unidade indistinguível, pois tanto os nobres da Transilvânia quanto os líderes locais das fraternidades secretas da Sicília têm em comum o fato de que o sangue de seus ancestrais misturou-se com a terra em que habitam, na defesa de seus territórios contra os invasores estrangeiros. A própria etimologia do nome Drácula ("o filho do dragão") remete aos mitos fundadores da civilização na Europa Central, onde o dragão aparece como metonímia ESTUDOS DE CINEMA 32 do poder vital da Terra. Habitando os subterrâneos de uma caverna, essa criatura representa a perene continuidade da vida através da quase imortalidade que lhe é conferida pela rara qualidade de seu sangue. É dessa forma que Siegfried, por ter se banhado no sangue do dragão, toma-se invulnerável, exceto por um pequeno pedaço de suas costas que o sangue não cobriu. A conexão profunda entre a vida subterrânea, o sangue e a imortalidade recoloca Drácula (aquele que só pode repousar em um caixão com sua terra natal encharcada pelo sangue de seus ancestrais), como representante da antiga ordem da nobreza agrária, caracterizada por uma união fusional com a terra, de natureza sagrada. No contexto do sucesso da Revolução Industrial inglesa, em que foi concebida a narrativa de Drácula, "ser um com a terra" constitui uma qualidade que se opõe frontalmente ao capitalismo triunfante, império do fluxo financeiro e da transitoriedade. Entretanto, tal revisão cinematográfica do mito, longe de vacinar os vampiros contra os poderes da luz sobre eles, representou apenas um intervalo nostálgico. Acerca da permanência de sua sensibilidade à luz, enquanto emblema da pirotecnia cinematográfica, é exemplar a versão extremamente contemporânea que John Carpenter constrói em Vampires ( 1998), narrando a caça efetuada por especialistas ao temido Valek, que durante séculos procura por uma cruz negra com a finalidade de executar um ritual: a complementação de um exorcismo ocorrido na Idade Média, que, por mal realizado, o transformara num vampiro. Uma vez retomado o ritual, ele iria imunizá-lo contra os efeitos da luz do dia. Ao serem encontrados, empalados, e arrastados das sombras para a luz do sol, Valek e seus seguidores queimam rápido como a emulsão de brometo de prata dos antigos filmes. Eles são mostrados como tão impuros e profundamente conectados à terra que a luz do sol acelera o processo de sua purificação até uma velocidade intolerável. Em sua química profunda, continuam um registro de luz, assim como inventado em Nosferatu. BIBLIOGRAFIA BIGNELL, Jonathan. "Ataste ofthe Gothic: film and television versons ofDracula". The Classic Novel- from Page to Screen. Manchester University Press, 2000. COUNDOURIOTIS, Eleni. "Dracula and the idea ofEurope". Connotations, Tuebingen, n° 9, 2000,p. 143-159. EISNER, Lotte. A tela demoníaca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After: German Historical lmaginary. New York: Routledge, 2000. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. POMMER, Mauro. "Alfred Hitchcock, o cinema devorador". 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Talvez devido a isso, o filme tenha sido censurado por quase quinze anos, sendo exibido pela primeira vez em 1983, além de que, nunca foi distribuído em circuito comercial, apenas em mostras e festivais como o Rio-C in e Festival. 1 O censor Antônio de Pádua Carvalho Alves, da comissão examinadora de Ritual dos Sádicos, explica o motivo da censura: "o filme [... ] é uma sucessão de fatos e situações, [... ] da prática do vício, de bacanais, orgias, rituais sadomasoquistas, taras, anormalidades, morbidez, [... ] enfim, uma gama infindável de aspectos que caracterizam a total degenerescência humana" (In: BARCINSKI; FINOTTI, 1998: 268). Ao contrário de seus três primeiros filmes de horror, que se ambientam em cidadezinhas de interior sem uma data precisa, O despertar da besta não cria nenhum mundo alternativo, mas explora o espaço da Grande São Paulo do final da década de 1. Edição de 1986. O despertar da Besta I Ritual dos sádicos recebeu os prêmios de melhor roteiro é melhor ator para José Mojica Marins. 34 ESTUDOS DE CINEMA 1960, período não só da ditadura militar no Brasil, como também do movimento internacional de contracultura. A referência à contracultura fica explícita junto aos hippies, que são personagens e figurantes constantes do filme, com comportamentos liberais, trajes característicos, músicas engajadas e o uso de drogas que ofereçam estados alterados de consciência, como uma afronta às regras e aos valores morais correntes. A associação entre esse grupo, as drogas e as ações violentas ou absurdas são pontos de posicionamento da obra, pois expõe os indivíduos viciados e suas reações a certos estímulos, que os levem a cometer violências físicas ou atitudes ridículas e insanas. Depois de maio de 1993, quando Mike Vraney- o fundador da distribuidora norte-americana Something Weird, segmentada no ramo de filmes B dos anos 1950 e 1960- resolveu lançar de Seattle, nove longas-metragens de Mojica, um novo público, jovem e ávido por novidades da indústria do cinema B, descobriu algo espetacular em velhos filmes de horror brasileiros. Cerca de cinco mil fitas foram vendidas com apenas um ano no mercado, o que levou a toda uma comunidade consumidora e divulgadora de cultura underground e cinema B a conhecer o personagem tupiniquim Zé do Caixão, rebatizado de Coffin Joe. A revalorização concedida ao cineasta a partir da década de 1990 põe em evidência o problema pragmático que é enfrentado nessa pesquisa, isto é, a retomada de um artista e de obras que conseguiram uma "preservação através da ruína do tempo" (COMPAGNON, 2006: 245). Essa canonização tardia abre portas para obras antes marginalizadas receberem o prestígio, relegado aos "textos centrais". Celebrado através de alguns documentários como Maldito - O estranho mundo de José Mojica Marins de André Barcinski e Ivan Finotti (2001); livros como José Mojica Marins- 50 anos de carreira, organizado por Eugênio Puppo (2007, Heco Produções); e mostras a exemplo de José Mojica Marins- Retrospectiva e obra ocorrida no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo em novembro de 2007, o cineasta Mojica foi tardiamente reconhecido por uma geração que não presenciou o início de sua carreira, familiarizada apenas com seu personagem monstruoso em algumas participações na televisão, como no Cine Trash exibido em 1996 pela Rede Bandeirantes. Concede-se valor às obras artísticas que apresentam desvios únicos em relação ao universo que as concentra, porém dado que os desvios aqui analisados foram tomando-se familiares com o passar dos anos e com a diversidade de filmes que possam ter recorrido a esses desvios como referência ou citação, entende-se que o atual valor de culto dedicado ao cineasta provém do reencontro com essas marcas características que recebem uma atualização perceptiva do novo leitor e ganha ares de um novo "veiho desvio". Quer dizer, "a obra de valor é a obra que se continua a admirar, porque ela contém uma pluralidade de níveis capazes de satisfazer uma · variedade de leitores" (COMPAGNON, 2006: 229). TERROR, HORROR 35 Resultado de uma canonização emergida entre as marcas do passado e sua perduração fora do contexto de origem, as obras de Mojica ainda possuem pertinência e funcionamento, para a apreciação contemporânea. As condições de leitura são permeadas pelos fatores de consagração, que tanto o artista quanto as obras conquistaram historicamente. Percebidas como "clássicas", as obras são analisadas conjugando as propriedades herdadas pelo tempo e os efeitos percebidos pelo atual momento de apreciação, portanto, "se os clássicos mudam, é à margem, através de um jogo, analisável, entre o centro e a periferia. Há entradas e saídas, mas elas não são tão numerosas assim, nem completamente imprevisíveis" (idem: 254). Marcas que em outro cineasta talvez fossem interpretadas como problemas ou incompetências de produção, no caso de Mojica ganham o estatuto de estilo autoral, principalmente se relevado a recorrência nas obras. Antoine Compagnon (2006, p.l68) propõe que o estilo deve ser pensado como ornamento e desvio, inseparavelmente, quer dizer, "o estilo, pelo menos desde Aristóteles, entende-se como um ornamento formal, definido pelo desvio em relação ao uso neutro ou normal da linguagem". Sejam influências político-culturais ou limitações orçamentárias, os desvios desempenham funções importantes nos programas poéticos do artista. As constatações empíricas da apreciação serão a base de teste dos efeitos provocados pela obra, mesmo que se estabeleça algumas inferências sobre o leitormodelo programado e o endereçamento genérico proposto pelo discurso fílmico. Segundo Umberto Eco em Interpretação e superinterpretação (2005: 75-6), "mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar uma interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo seu resultado". Ainda que nos valhamos de algumas informações históricas, culturais ou sociais do cineasta em questão, o objeto de análise é o autor no texto, uma entidade "mentalizada" pelo leitor através de indícios que podem estar grafados no programa. A metodologia empregada assume o filme como um texto capaz de provocar efeitos sobre o apreciador, contudo o papel do analista é identificar o funcionamento da obra a partir de seu resultado, os efeitos que foram exercidos sobre o intérprete. Baseada no tratado sobre as artes poéticas de Aristóteles, a Poética do filme (GOMES, 1996, 2004a, 2004b)- método nomeado em homenagem ao filósofo grego-, mostrase como uma metodologia frutífera para os objetivos desta pesquisa, pois toma o texto como um critério, da mesma maneira em que autoriza a interpretação empírica do resultado contemplado. A disciplina emprega algumas intuições do filósofo grego, de certo modo adaptadas à análise filmica, concentrando esforços entre o texto e a apreciação empírica, para fornecer uma perspectiva analítica sobre o funcionamento geral da obra. 36 ESTUDOS DE CINEMA FLAS/1BACKS SENSACIONALISTAS: BESTIALIDADE E INSENSATEZ NA NARRATIVA O filme pode ser dividido basicamente em duas partes: a primeira, em preto e branco, é composta por vários relatos curto:; e se dedica a criar um padrão de situações que envolvam o uso de substâncias alucinógenas, ocasionando um evento de cunho violento, absurdo ou ridículo. Trata-se de notícias sensacionalistas narradas pelo psiquiatra incumbido da pesquisa, Dr. Sérgio, justificando-as como exemplos ilustrativos da formulação do problema de sua pesquisa: descobrir se o uso de entorpecentes é a causa da violência na sociedade paulista. Os jlashbacks das notícias são formuladores da idéia de que aquelas cenas doentias foram catalisadas por algum entorpecente. Para tanto as estratégias delineiam-se sobre imagens degradantes, para causar o incômodo de uma agonia, pois querem simbolizar uma auto-flagelação, sentido captado nos planos de detalhe de viciados tomando heroína no pé e no antebraço. As atrocidades realizadas após o ritual de uso da droga também adentram essa moldura de mal-estar, por convocar a antipatia e o repúdio do espectador através da violação de certas condutas morais: estupros, perversões sadomasoquistas, adultérios comprados, assédios machistas e assassinatos impunes, expressam o caráter vil e desumano do viciado. A impressão que sobra ao final desses curtos jlashbacks é que os personagens viciados sofrem de certa irracionalidade, algo que age como uma piada, um estímulo cognitivo de sarcasmo- toma-se risível, pelo óbvio rebaixamento dos personagens. Osjlashbacks constroem um padrão de personagens para representar o normal subvertido pela substância, delineado na dimensão do estranho, do insensato, do nonsense - e a música, algumas vezes, reforça essa idéia ao oferecer um sentido distinto ao conotado pelas imagens. As relações entre os personagens têm propósito único de gerar conseqüências negativas, para um dos lados, papel geralmente exercido pelas personagens femininas, talvez as únicas vítimas, em um filme marcadamente machista, sensação corroborada por doses de erotismo. Nota-se que desde o início quando uma personagem feminina é posta em cena, há um intuito erótico para, em seguida, atribuirlhe uma posição de vítima de seu vício ou dos maus-tratos de um viciado. A relação com a irracionalidade mencionada vai se intensificando gradualmente, ficando mais forte à medida que os relatos se sucedem e mostram relações com animais irracionais reais para parear os personagens a suas categorias, noção confirmada com o uso expressivo da linguagem: a montagem intercala algumas metáforas visuais para que o espectador transfira um animal e seu atributo para o lugar do personagem. Em um dosjlashbacks, o dono de uma agência de trabalhos domésticos, usuário de cocaína, seduz uma jovem que procura trabalho, sendo que a estratégia é evidenciar o abuso de poder correlacionado às características animalescas postas em cena (veja figura 1). Primeiro vê-se um porco comendo, quando a vítima TERROR, HORROR 37 sente nojo do empresário almoçando; em seguida a analogia visual é de um cachorro, por suas investidas sedutoras; e por fim surge um cavalo quando o viciado força a jovem a fazer-lhe sexo oral. A estratégia cognitiva indica uma rota associativa entre o uso de drogas, a bestialidade humana e as ações absurdas, violentas e sexuais: construções retóricas providas pelos flashbacks das notícias sensacionalistas que têm função sarcástica nessa primeira parte da narrativa. Figura 1: Metáforas visuais de bestialidade O som nessa seqüência desempenha um papel importante, primeiro por revelar os pensamentos e motivações dos personagens - adicionando-se um leve efeito de eco para 、ゥウエョァオセャッ@ do som da voz-, isto é, não se esconde as intenções perversas ou medrosas das personagens. Aludir ao caráter sarcástico da banda visual é uma questão ditada pelos ruídos onomatopéicos que incidem sobre as imagens de animais, como se fossem um barulho engraçado de desenho animado- "tooin!" -, pois eles funcionam como um bordão sonoro, indicando o momento do riso na gag, um apelo sonoro simplório que solicita a intervenção do apreciador para que ele ria da metáfora ou da estratégia sonora medíocre composta. Os váriosjlashbacks que compõem essa primeira parte da narrativa enfatizam o mesmo assunto com diversos exemplos, parecem não se desenrolar naturalmente, contemplando uma falta de economia narrativa pelo excesso de mostração dessas cenas ridículas e satíricas. A redundância que aparenta é privilegiada ao invés de uma sucessão mais harmoniosa e progressiva, uma mensagem enfática reafirmada de diversas maneiras pelo programa cognitivo. A ARRITMIA HIPERBÓLICA DO PESADELO PSICODÉLICO Na segunda parte da obra, o preto e branco que reinava no filme e conduzia a narrativa, dá lugar ao colorido saturado que ambienta os pesadelos lisérgicos dos quatro viciados. A maioria das imagens da segunda parte foi realizada em estúdio, ESTUDOS DE CINEMA 38 para privilegiar um uso mais alegórico da maquiagem e do cenário, onde a iluminação forte e carregada desempenhá papel importante na composição do quadro. Filtros amarelados e avermelhados incrementam os movimentos da câmera de ombro, que adiciona estranhamento às alucinações. A seqüência se delineia por estímulos sensoriais onde promove um espetáculo de cores, formas e ruídos, porém a desorganização narrativa, provida pela montagem desordenada dos pesadelos, estabelece uma desorientação da seqüência para solicitar a contemplação da maquiagem e dos cenários plásticos. Empenhados em dirigir a apreciação através da precariedade que as figuras deformadas e caricatas exprimem (veja figura 2), a representação do gore e do fantástico é feita de modo paupérrimo, o que agrega nuances risíveis à seqüência, principalmente pelo ritmo hiperbólico adotado na mostração. / Figura 2: Deformidade precária das figuras monstruosas do pesadelo Realizar, os delírios com filme colorido, possibilita não só segregar de modo expressivo o espaço onírico, mas também confere maior destaque para a apreciação das imagens deformadas. Um espaço configurado psicologicamente pela representação de Zé do Caixão que, nesse caso, toma-se um delírio e não é mais apenas o coveiro assassino das outras obras: é um monstro imaginado, o arquiteto do pesadelo. A atmosfera alegórica que a seqüência impõe não conduz a analogias ou metáforas, não parece sugerir outra representação simbólica que não seja sua própria artificialidade: a abstração indaga o falseado das cenas. Para tanto a saturação da cor acentua as silhuetas na cenografia estilizada e nas figuras disformes mostrando nitidamente a falsidade do artifício, disso decorre a percepção do risível que domina a seqüência, originado das formas caricaturais e desproporcionais, incumbidas em provocar o esdrúxulo da película. Pode-se perceber essa característica nas reestruturações anatômicas, de motivos surrealistas, vistas durante o ataque dos homens-nádegas. A maquüigem feita nas nádegas dos atores, aliada à eficiente fotografia e iluminação, deixam as figuras estranhas à primeira vista, quase irreconhecíveis devido à aparente desorganização anatômica, porém ainda conservam feições familiares. Trazem consigo elementos repulsivos e ao mesmo tempo requerem uma dose de humor. O progrania sensorial é empregado para destacar esse filme do universo genérico, transgredindo as convenções características do horror, para abrir espaço a estados emocionais conflitantes entre o asco, arepulsa, o risível e o ridículo, efeitos possíveis advindos das figuras monstruosas que desfilam pelos pesadelos dos viciados. TERROR, HORROR 39 O som toma-se confuso e desordenado pela sobreposição múltipla de músicas sombrias, ruídos de gritos, gemidos e gargalhadas. A desarmonia promovida pelo conflito sonoro alcança o exagero e evidencia o uso excessivo dos recursos filmicos: o acabamento mal feito dos cenários, as atuações amadoras, as maquiagens caricaturais, os efeitos explícitos de trucagem, a não narratividade, todos os materiais empregados improvisam falsamente o que já é naturalmente falso, ficcional. As imagens prolongamse na trama gratuitamente sem preocupação formal com a economia narrativa, exigindo que a percepção sensorial canalize atenção sobre os aspectos irreais. Algo que provoca certo humor pela contemplação das imperfeições que falseiam as estratégias da obra. Da evidência do fajuto inverossímil nas seqüências é que decorre o estímulo para solicitar a inferência do espectador. O desvelar filmico resolve-se através do rompimento com os modos apurados e tácitos de inspirar-se no real, para moldar uma estratégia que se apóia na articulação de uma realidade mal feita, artificializada para não se ancorar nos domínios verossímeis, degenerada para não ser crível em outro âmbito que não seja o da falsificação discrepante. O horroroso da obra é ofuscado pela pobreza das composições, apoiadas nos excessos cênicos e narrativos, fazendo com que o filme perca a seriedade que o gênero impõe e se defronte com a falsidade esquematizada nos recursos, deixando margem para encantos advindos com humor. Revela-se um filme que apela a seu próprio universo gera ti v o para distorcer o gênero e convocar outros estados de ânimo no apreciador, como o riso do burlesco e do ridículo. A superexposição da figura de Zé do Caixão e de Mojica deixa transparecer a solicitação da obra para que o espectador possua certa familiaridade com a filmografia do artista, ou melhor, pede algum cqnhecimento do estilo do cineasta para que ele possa desfrutar da irônica desarmonia estratégica dos recursos filmicos e apreciar a desfiguração do programa de horror. CONCLUSÃO: CONTRADIÇÃO COGNITIVA, AUTOPROMOÇÃO E REAPROVEITAMENTO Após a enxurrada alucinatória, o Dr. Sérgio mostra que ainda que os pesadelos pudessem ser de fato frutos do efeito químico com LSD, o experimento foi feito com água destilada ao invés de qualquer droga. Os delírios das cobaias foram auto-sugestões produzidas por um efeito placebo de Zé do Caixão. Uma experiência psicodélica com LSD consistiria em uma jornada a outros reinos da consciência. Entretanto, a droga não produz a experiência transcendental, ela age meramente como uma chave química capaz de liberar o sistema nervoso de seus padrões e estruturas normais. A chave química usada no experimento para atingir outros reinos da consciência, proposta pelo cientista, não é o LSD, mas o instinto humano -tema recorrente na filmografia de Mojica desde A meia-noite levarei sua alma (1964). Desmentir uma formulação estabelecida na primeira parte do filme é estratégia comum na obra de Mojica, mas 40 ESTUDOS DE CINEMA geralmente esse fator é trabalhado na punição do monstro moral, Zé do Caixão, e. na contradição de suas crenças e objetivos. Outra marca evidente que a obra invoca pode ser entendida como uma autopromoção: seja através dos inúmeros produtos do artista/ mostrados durante a narrativa, seja pela figura constante de Mojica desempenhando diversas funções cênicas. Quer dizer, Mojica é também um personagem nesse filme, consultor da pesquisa do Dr. Sérgio, ele participa do debate sobre o experimento no programa televisivo ficcional "Um clarão na escuridão 1', mostra-se como um cineasta controverso que faz questão de ser distinguido de sua criação. De fato há um personagem desempenhado por ele em cada tempo narrativo: antes dos créditos iniciais, Zé do Caixão profetiza e promete em seu monólogo a experiência estranha que será sua obra; depois temos o personagem Mojica, consultor e debatedor do programa televisivo ficcional; esse personagem também é visto por outro jlashback de uma entrevista real reaproveitada pela montagem, ocorridana TV Record em 1969 no programa Quem tem medo da verdade? Além disso, os reaproveitamentos compactuam com a aparência retalhada da película, isto é, aproveitar cenas de Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967), reciclado como um parâmetro de estímulo externo para as cobaias do experimento, é um modo de construir a mise-en-scene com sobras. Mostram-se também as revistas em quadrinhos do personagem Zé do Caixão- aliás, os créditos iniciais são sobrepostos à história em quadrinhos Noite Negra, publicada na revista O estranho mundo de Zé do Caixão n.l, de janeiro de 1969. Os pôsteres de seus filmes também completam essa composição narcisista, juntamente com uma marchinha de carnaval feita por Mojica na década de 1960- O castelo dos horrores-, executada por uma fonte justificada visualmente em um dosjlashbacks que correlacionam drogas às perversões sexuais. Essas representações recicladas de outras obras parecem uma homenagem a si mesmo e a seu trabalho. Tal característica ajuda a evidenciar as variações feitas no universo do gênero para eleger uma intenção mais pessoal, uma forma avessa de narrar a si mesmo barbaramente. A obra fala de seu cineasta, mas não de cinema, não é um discurso metalingüístico sobre a criação cinematográfica do autor. É um modo de representar a precariedade salientada na obra através de reciclagens do material do próprio autor, enquanto agente intertextual. O primitivismo das imagens não engana o apreciador, é uma prestidigitação espontaneamente deturpada cujo truque fomenta não só a percepção estética tosca da representação, como também a interpretação hilária estabelecida entre as estratégias do filme e a condição explicitamente promocional motivada pela overdose figurativa de Mojica e Zé do Caixão. 2. Além do filme reciclado na narrativa, Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967), desfilam pela tela outros artefatos artísticos como histórias em quadrinhos e discos musicais, e ainda mídias promocionais como pôsteres e cartazes. TERROR, HORROR 41 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Poética. 4.ed. Tradução de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional I Casa da Moeda, 1994. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 2.ed. Tradução de EloisaAraújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2006. BARCINSKJ, André; FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: 34, 1998. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 3.ed. Tradução de Consuelo Santiago e Cleonice Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 2006. ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 2.ed. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2005. GOMES, Wilson. "As.estratégias de produção do encanto. 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COELHO (PUC-SP/USP) I 2 NESTE ARTIG0, pretendo analisar a presença e o significado do tema órfico emA grande cidade (1966), de Cacá Diegues. Minha interpretação do filme se apóia na visão desta obra como uma reação ao famoso filme Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus. A inversão (e, às vezes, subversão) de certos elementos no filme de Diegues, como a centralidade da protagonista feminina (Luzia/Eurídice), a escolha de um nome como Jasão, para o frágil personagem masculino, a música de Villa Lobos e a visão realista do cotidiano da periferia, são índices, a meu ver, da crítica ao olhar estrangeiro presente no filme de Camus, que havia representado de modo idealizado a vida na periferia do Rio de Janeiro, ao levar para a tela o famoso casal Orfeu e Eurídice de maneira romântica e desvinculada de elementos da história, tal como transplantada para a favela carioca na peça 01jeu da Conceição. Vale notar que, recentemente, à época do lançamento de O maior amor do mundo (2005), ao ser perguntado sobre o tema órfico nos filmes A grande cidade, Orfeu e Um trem para as estrelas (lembremonos, aqui, do saxofonista Vinícius perambulando pela cidade do Rio em busca da namorada Nicinha), o diretor revelou "gosto muito deste mergulho no inferno, desse arriscar em nome do amor. Não se constrói a utopia sem risco nem sacrificio e acho que é isso que me atrai no Orfeu"(DIEGUES, 2007: s/p) Ao adaptar o antigo mito grego para o contexto da cidade do Rio de Janeiro nos anos sessenta, o diretor operou várias inversões, não apenas pela renomeação dos personagens mas pela troca de papéis, já que Luzia é a figura órfica a descer ao I. Doutora em Letras Clássicas e mestra em filosofia (USP). Este trabalho integra uma pesquisa mais ampla sobre estudos da antigüidade e cinema. 2. A primeira versão deste texto, apresentada na mesa Cinema e Periferia teve o nome A catá base de Luiza ao inferno de Jasão. 46 ESTUDOS DE CINEMA inferno para buscar seu noivo Jasã?. Destaca-se, de imediato, a mistura de matrizes culturais diversas nesta adaptação "antropofágica" e "selvagem" - termos utilizados não apenas pelo diretor, para se referir a sua releitura do mito grego (veja DIEGUES, 1968: 2, e CHAMIE, 1996: 109). Essas diferentes matrizes podem ser identificadas, creio, tanto pelo subtítulo do filme -As aventuras e desventuras de Luzia e seus três amigos vindos de longe-, que remete à literatura de cordel, como pela escolha dos nomes das personagens, que giram em torno da protagonista Luzia (Anecy Rocha). São eles Calunga (Antonio Pitanga), representando a matriz cultural africana, Inácio de Loyola (Joel Barcelos), representando a tradição ibérica (católica), e Jasão (Leonardo Vilar), representando a tradição grega (pagã), personagem cujos valores heróicos não se adaptam à cidade grande, como é o caso das duas outras personagens masculinas. Se, por um lado, todo mito permite adaptações e alterações, cada vez que é narrado (ritualizado)- e aí reside sua força, alguns elementos devem permanecer. No caso do mito de Orfeu, um elemento central é a presença do inferno, seja ele onde for - e no filme, esta referência é explícita nas falas das quatro personagens. Logo no início, Calunga, ao ser censurado por Luzia, por ter furtado dinheiro do dono de uma barraca de feira e ameaçado pela jovem, recém-chegada do interior de Alagoas (e que ele ciceroneia) de que iria ''para o inferno", responde: "já estou nele. Não está sentindo o cheiro? Bota o cheiro para dentro que você até se acostuma. Vira o que você pensar, até perfume francês. Respira! Bota o inferno para dentro de você." Inácio, ao contar sua história de retirante vindo da Paraíba, diz ter sido enxotado de lá por um "seca do inferno", mas paradoxalmente, deslocado na cidade, onde trabalha como pedreiro e se distrai ouvindo Roberto Carlos no seu rádio de pilha, sonha em voltar para o sertão, reencontrando paz para sua alma, atormentada pelos comportamentos pecaminosos da cidade. Jasão, por sua vez, é o mais eloqüente ao falar a Luzia que, por causa dela, "não queria mais ficar sepultado na poeira do inferno" (do sertão), porém, percebe logo que saiu de um inferno para viver em outro e, pior, de vaqueiro valente, transformou-se, na cidade, em bandido, a esconder-se na periferia. Se no início sua razão era apenas poder matar a fome, depois foi porque se impregnou com o sangue - assim como Eurídice ficou presa ao Hades após comer as sementes de romã- , bem como com a raiva que desenvolveu nele um ódio ao povo, contra o qual se revolta por sua incapacidade de mudar a estrutura de classe corrompida que faz a cidade funcionar. Luzia, com este nome de santa protetora dos olhos, vê tudo e transita entre estes três homens que vivem na periferia. No entanto, por ela trabalhar como doméstica em uma casa de classe alta, convive com os dois universos sociais e culturais, percebendo suas fissuras e interações. Sintomática é a cena em que serve aos convidados de seu patrão, um escritor, enquanto ele fala dos famosos crimes de um vaqueiro nordestino, que se transforma em mito, no discurso literário e jornalístico. A seus três amigos, Luzia fará sempre uma mesma pergunta: "Você tem medo?", ALTERIDADES 47 parecendo, ela mesma querer exorcizar seu próprio medo oriundo da tarefa que ela se põe a sim mesma: resgatar seu noivo Jasão para outra vida, fora do inferno da grande cidade. Jasão é uma personagem particularmente interessante, a começar pelo nome, que remete a uma figura tão famosa e polêmica da mitologia grega. Creio que é uma suposição adequada a de que o diretor não escolheu os nomes das personagens aleatoriamente. Se de fato, consultar o roteiro, escrito por Cacá Diegues e Leopoldo Serran, ver-se-á que na transposição para a tela, todos os nomes foram mantidos, exceto o de Luzia, que era chamada de Maria. Curiosamente, havia no roteiro uma personagem chamada Luiza, namorada de Calunga, que tanto no roteiro como no filme aparece em uma cena breve e muito semelhante à cena de Mira com Orfeu (enciumada com a chegada da jovem Eurídice no barracão de ensaio da escola de samba), presente nas adaptações de Camus e Diegues da peça de Vinícius. Voltemos, porém, ao comentário sobre os nomes. No caso de Jasão, lembremonos da mitologia grega: ele foi o chefe da expedição dos argonautas para buscar o velocino de ouro na Cólquida, tendo sido Orfeu um dos integrantes da nau Argó, encarregado de, por meio da música, afastar os perigos durante a expedição. Jasão foi ajudado em sua tarefa por Medéia, com quem ele retoma à Grécia. Por meio da famosa tragédia de Eurípides ou mesmo das adaptações desta peça para os palcos brasileiros- seja por Agostinho Olavo, na sua peça Além do rio-Medéia Negra, ou por Chico Buarque e Paulo Pontes, em Gota d'água, sabe-se que Jasão, apesar de herói, é um homem fraco. Ele quebrou um juramento (sagrado) ao aceitar novas núpcias, ainda que ele argumente que isso foi feito para o bem de Medéia e dos filhos. Esta fraqueza de caráter é muito bem construída por Diegues, desde o primeiro momento em que aparece. Jasão, ao ver Luzia chegando à escola de samba, foge, o que a deixa perplexa. Posteriormente, ele dirá à noiva que "teve vergonha dela". Como se constata no filme, ele é um vaqueiro cuja imagem aparece nas manchetes policiais do jornais, não nos livros de cordel. Em um encontro com Luzia no barraco onde ele mora, ela é veemente ao acusá-lo de traidor. Naquele mesmo local ela já havia, quando estivera ali pela primeira vez, notado que Jasão havia mudado, pois não havia santos nas paredes. Perguntando-lhe se havia deixado a religião, ela dependura na parede do barraco o crucifixo que levava no pescoço. Quanto à estrutura do filme no que se refere à união dos amantes (um dos elementos do mito), Luzia, após vários percalços para reencontrar Jasão, consegue fazer com que seu noivo acredite que é possível ele sair daquela situação infernal, mas como nas várias versões do cinema, há um olhar para trás, um voltar quando não se deve, inevitável, e que impossibilita o reencontro definitivo. No filme de Diegues, a famosa estação das barcas, no centro do Rio, é onde se dá este momento trágico. Apesar de alertada por Inácio para não encontrar Jasão, Luzia, acompanhada por Calunga, vai ao encontro fatal. Calunga também percebe que há uma armadilha, pois a polícia, que procurava Jasão pelo assassinato de um senador, havia descoberto o 48 ESTUDOS DE CINEMA encontro entre os amantes. Calunga tentará, então, evitá-lo, mas inevitavelmente, Luzia .é morta por um dos disparos dirigidos a Jasão, que também é atingido e morto. Ambos caem, separados por uma grade, e a câmera fecha nos olhos grandes e abertos de Luzia. Não creio que seja acaso que o cenário para este encontro fatal seja o mesmo da cena inicial do filme de Camus, quando Eurídice (MarpessaDawn) chega ao Rio, na estação das barcas (no caso do filme de Camus não há uma consistência geográfica nos deslocamentos dos personagens pela cidade). Há outros elementos que permitiriam estreitar o diálogo com o mito, mas, mais do que isso, meu interesse é estabelecer um diálogo com o Orfeu Negro, de Camus. Para isto é importante contextualizar A grande cidade, tanto no quadro das releituras do mito de Orfeu no cinema e teatro, como no do cinema novo e da filmografia de Diegues, um diretor cuja obra é marcadamente influenciada pela tentativa de articular o tema da catábase órfica e o do cinema com questões sociais e políticas do país. 3 Assim, no âmbito do comentário, gostaria de trazer alguns dados que corroboram minha interpretação. Lembre-se que este é o terceiro filme do diretor alagoano, após dirigir um dos episódios de Cinco Vezes F ave/a (1961) e Ganga Zumba (1964), ambos tematizando exclusão e opressão. Além disso, a recorrência do tratamento do mito de Orfeu em um período de aproximadamente 30 anos é notória: tem-se um grande número de adaptações, destacando-se nelas a associação do mito grego à questão da cultura de matriz africana: Tennessee Williams, Jean Paul Sartre, Mareei Camus, Vinícius de Moraes e Sidney Lumet irão, todos, discutir a questão do racismo e da exclusão por meio de seus trabalhos. 4 3 "Como se Manuel de Deus e o Diabo tivesse chegado ao mar, se o gaúcho de Os Fuzis tivesse formado sua consciência, Se Fabiano de Vidas Secas virasse o jornalista de O Desafio, impotente na cidade. A grande cidade está no limite entre o cinema nacional popular e o novo cinema novo. "(DIEGUES, 1968: 4) 4. A seguinte cronologia ajuda a visualizar a releitura do mito associado a temas políticos e culturais. 1940 Encenada Battle of Angels, de T. Williams, publicada apenas em 1945 1941 Encenada Eurydice, de Jean Anouilh 1948 Orphée No ir, poesia de afro-descententes (dentre eles, L. Segnor), lançada na França, com prefácio de Sartre. 1950 Orphée, filme de Jean Cocteau; 1954 Orfeu da Conceição, texto da peça de Vinícius de Moraes premiado em São Paulo 1956 Orfeu da Conceição é encenada no Rio de Janeiro 1956 Além do Rio- A Medéia Negra, texto da peça de Agostinho Olavo é lançado no Rio. 1957 Encenada Orpheus Descending (versão de Battle of Angels), de.T. Williams, publicada em 1956 1959 The Fugitive Kind, de S. Lumet, baseado em Orpheus Descending é lançado 1959 Orfeu do Carnaval, de M. Camus, Palma de Ouro em Cannes. 1966A Grande cidade (C. Diegues) 1966 O Ministério da Relações Exteriores proíbe o grupo do Teatro Experimental do Negro a apresentar a peça Além do Rio- A Medéia Negra no Primeiro Festival de Arte Negra do Senegal, organizado por pelo poeta L. Seghor, por não considerá-la representativa da cultura brasileira. ALTERIDADES 49 Em um texto de 1999, cujo título é "Um impacto inesquecível," Cacá Diegues informa que era um adolescente quando assistiu à estréia da peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, dirigida por Leo Justi, com música de Tom Jobim e Luiz Bonfá, cenários de Oscar Niemeyer e atores negros. Falando do mito grego nos morros cariocas, ele diz "Naquele mesmo ano eu já havia sofrido igual impacto emocional e estético ao ver Rio 40 graus", e continua "o Brasil aprendia a gostar de si mesmo ... os dois ・セーエ£」オャッウ@ marcaram definitivamente minha vida e tudo que eu viria a fazer pelo resto dela ... em 1959, metido na sopa primai do que seria o cinema novo, vi com muita decepção o filme Orfeu Negro ... visão exótica e turística que traía o sentido da peça ... Me senti, na verdade, pessoalmente ofendido"(1999: s/p, site do diretor). À luz dessas informações, retomo ao filme de 1966, enfatizando agora, não os temas da catábase de Luzia ao inferno e do destino dos retirantes, mas o da figura de Calunga. Este nome é muito significativo, pois remete ao nome dado a descendentes de escravos fugidos e libertos que formaram comunidades auto-suficientes e isoladas. No filme, é de se pensar na relação com o filme de Camus, Calunga é o antípoda de Orfeu (Breno Mello). Apesar do subtítulo do filme de Diegues centralizar a figura de Luzia, em tomo da qual circulam seus três amigos, a personagem de Calunga se faz presente ao longo de toda a narrativa, tendo sido até comparada a um corifeu de tragédia grega (CHAMIE, 1976: 104). Creio, porém, que sua figura está mais próxima da de Hermes (que no mito grego acompanha Orfeu em sua catábase), conduzindo Luzia pela metrópole, atuando como um mensageiro entre várias personagens e também negociando com algumas ·(uma das funções de Hermes): ele vende os sambas de Zé Keti, negocia o rádio de pilha com Inácio, o empréstimo com sua amante, e, de maneira particularmente interessante, negocia com o espectador. Lembre-se que a abertura do filme é uma imagem estereotipada da baía de Guanabara, ao som de uma partida de futebol. Sobre esta imagem, são transcritas citações do padre Simão de Vasconcelos, de 1663, louvando a beleza e grandiosidade do Rio de Janeiro, tópos que o diretor, aliás, faz questão de criticar também em relação ao Brasil. (DIEGUES, 1968: 2) Calunga, no iníçio do filme, literalmente salta para dentro do plano do "cartão postal" e o. faz de modo irônico, farsesco, falando da cidade; em seguida, mudando de cenário, corre pelo centro do Rio, passando por lugares conhecidos e interpelando pedestres na forma de uma entrevista com perguntas que parecem incômodas ao entrevistados: "A que horas o senhor acordou?; Quantas horas trabalha?; Quantas horas dorme?; O que faz no fim do dia?; Vai ao cinema?". Na cena seguinte, depois de ler algumas páginas, num tom informativo e de denúncia diz, olhando para a câmera: "A vida útil de uma pessoa de 50 anos é de 6 anos, pois o resto do tempo consome em coisas desagradáveis ou inúteis". Com os olhos fixos na câmera, ele repete para o telespectador as mesmas perguntas que fizera aos transeuntes. Como já observou 50 ESTUDOS DE CINEMA Louzada: Filho, no filme, mito e ideologia (sintomático é que ao comentar o filme em um breve artigo de jornal, Louzada utiliza cada um destes termos por doze vezes), são discutidos em uma abordagem brechtiana, de distanciamento crítico com um fmal sem solução. De fato, a meu ver, os tópoi clássicos, tanto da mitologia grega como as ideologias nacionais (o Rio de janeiro como a cidade maravilhosa, o negro trabalhador e romântico) são ironizados e desconstruídos no filme de Diegues, como uma reação da periferia ao olhar eurocêntrico (francês) sobre o Brasil. E Calunga, o anti"Orfeu, faz este papel de subversão da ideologia e mesmo da indústria que premiou o filme de Camus em Cannes. Atenção especial deve ser dada à trilha sonora do filme, se pensarmos no Oifeu Negro como o subtexto do filme de Diegues. Em lugar da melodiosa bossa nova, a trilha é feita com uma mistura de estilos diferentes, às vezes como uma intervenção agressiva e dissonante nas cenas. São utilizados variados estilos e registros: Villa Lobos, Heckel Tavares (folclorista e compositor alagoano, que transitava entre o erudito e popular), e a música diegética de Zé Keti, de Roberto Carlos e de repentistas (a mistura de repente com Villa tem já um precedente importante em Deus e o Diabo (1964), de Glauber (veja NAGIB, 1996)). Chamo atenção para uma seqüência muito impressionante, em que Inácio, na praia, tem delírios vendo Jasão cavalgando com Luzia, na garupa, e Calunga, rindo ao longe. A esta cena onírica misturam-se fotos de retirantes como se fosse um registro documental, confirmando aquilo que o diretor disse: o "filme como uma ponte entre o melodrama urbano e a violenta tragédia rural". (DIEGUES, 1968: 3). Curiosamente, parte desta cena foi identificada por Chamie (CHAMIE, 1996: 109) como referência a uma passagem em que há um cavalo em chamas na praia, na obra A invenção de Orfeu, poema épico-subjetivo do alagoano Jorge de Lima, de 1952. Retomando as inversões do mito órfico a que me referi no início, elas ocorrem em vários níveis. Primeiro há uma distopia do mito e da sua representação "estrangeíra, francesa." Em vez do olhar do que é considerado o centro, Diegues propõe a perspectiva da periferia- do Brasil, em relação à Europa. No entanto, tem-se, dentro do próprio Brasil, o olhar dos retirantes, dos migrantes sobre a grande cidade, do sertão sobre a cidade do litoral, dos empregados sobre seus patrões, do negro sobre a tradição da corte portuguesa (lembremos a cena de Calunga e Luzia, caminhando pelo passeio público, como se fossem a nobreza no seu jardim particular). Calunga é um "negro bem adaptado" ao Rio, veio da Bahia, com mais uns vinte familiares e percebe - assim como o espectador - que "não vale nada", como fica indicado na cena final, quando os policiais, após matar Jasão, deixam-no ir embora, pois ele "não conta." Sua moral é ambivalente por uma questão de sobrevivência, ele não toca violão, como Orfeu, mas é um atravessador, revende sambas. Estes elementos na construção do personagem e do roteiro permitem, como disse antes, ver A grande cidade, como uma reação ao filme de Camus. Concluindo, pode-se constatar um ALTERIDADES SI distanciamento em relação ao mito pelo fato do diretor se recusar a fazer referências imediatas a ele (como a utilização dos nomes Orfeu e Eurídice) para, historicizandoo e politizando-o (algo semelhante foi feito por Sidney Lumet, ao filmar a peça de Tenessee Williams, Orpheus Descending, em 1957, no contexto da sociedade racista sul estadunidense), tomá-lo mais poderoso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAMIE, Mário. "A fábula e seu caráter" e "A fábula é periférica". In: CHAMIE, M. A linguagem virtual. São Paulo: Quíron, 1976. p. 102-15 DIEGUES, Carlos. A grande cidade, 1966, 83 min. P&B, Brasil, cópia em VHS a partir de projeção na TV acabo NET/Globo. - - - - - · A grande cidade, roteiro doado pelo diretor à Cinemateca Brasileira em 24/07/1990, 116 p. (datilografado) - - - - - · "Carlos Diegues fala à Europa: geografia e cinema de um pais americano", Positif, 92, 2 (1·968). reproduzido em tradução no Boletim da Sociedade Amigos da Cinemateca,julho de 1968. - - - - - · Entrevista/Estado de São Paulo www.estadao.com.br/arteelazer/cinema! noticias/2006/set/06/337.htm?RSS, acesso em 01/10,2007 LOUZADA FILHO, O.C. "Consciência na Grande Cidade", Suplemento Literário, O Estado de São Paulo, 22/0411967. MAIA, G. "Orfeu e Orfeu: a música nas favelas de Mareei Camus e de Cacá. Diegues". Artcultura 7, 1O(2005), 95-109 NAGIB, Lúcia. "O Sertão está em toda parte: Glauber Rocha e a literatura Oral". In Imagem 6 ( 1996) 70-83 WARDEN, John. (Ed.) Orpheus: The Metamorphosis ofa Myth. Toronto U.P., 1982, 3-230 Racismo e anti-racismo no Cinema Novo NoEL oos SANTos A QUESTÃO RACIAL não ficou CARVALHO (UNICAMP) imune ao contexto de revisões críticas, invenções e demarcação de fronteiras que caracterizaram os movimentos culturais surgidos nos anos 1960. No que respeita ao cinema, especificamente ao Cinema Novo, o negro e aspectos da sua cultura e história aparecem representados na maioria dos filmes da sua primeira fase. É o caso de Aruanda (Linduarte Noronha, 1959-1960); Barravento (Glauber Rocha, 1962); Cinco vezes favela (Carlos Diegues, Leon Hirszman, Marcos Farias, Miguel Borges e Joaquim Pedro de Andreade, 1962); Bahia de todos os santos (Trigueirinho Neto, 1961); A grande feira (Roberto Pires, 1961); Ganga Zumba (Carlos Diegues, 1964) dentre outros; e também nos filmes que, embora rigorosamente pouco afinados com a patota cinemanovista, gozaram algum tempo da sua simpatia como: O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962) e Assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1962) (CARVALHO, 2005: 67-9). Em 1963, Glauber Rocha, no seu livro Revisão crítica do cinema brasileir,o identificou nos filmes do movimento "o inicio de um gênero, 'o filme negro'" (2003: 160), antecipando o texto de David Neves, apresentado em Roma dois anos depois. Após o Golpe de 64, os negros quase desaparecem dos filmes, que se voltaram para a crítica à classe média (XAVIER, 1985). Pescadores, moradores do morro, cangaceiros e camponeses foram substituídos por intelectuais histéricos e amargurados, figuração autocrítica das posições assumidas no passado (CARVALHO, 1999). A questão racial ganharia nova roupagem nos filmes a partir de meados da década de 70 quando as crenças nos poderes do povo foram renovadas, agora não mais na chave do nacional-populismo, mas na do pacto pela redemocratização impulsionado pelos movimentos sociais dos quais o movimento negro foi um dos mais expressivos. Neste artigo faço uma análise do modo como a temática racial aparece formulada nos contextos esboçados acima em dois artigos escritos por dois cardeais do· Cinema Novo: David Neves e Orlando Senna. 54 ESTUDOS DE CINEMA Em 1965 realizou-se na Itália, na cidade de Gênova, a V Resenha do Cinema Latino-Americano. O evento reuniu intelectuais da América Latina e África. Do Brasil participaram Glauber Rocha, Gustavo Dahl, David Neves, Paulo César Saraceni, Luís Carlos Saldanha e Sérgio Ricardo, além de intelectuais e artistas do porte de Antonio Candido, Arnaldo Carrilho e João Guimarães Rosa. O Cinema Novo recebeu mostra retrospectiva e mesas-redondas foram montadas para discutir o cinema feito nos países do que se entendia na época por Terceiro Mundo, a saber, África, América Latina e adjacências. Em um dos seminários, o cineasta e crítico David Neves apresentou a tese intitulada O cinema de assunto e autor negros no Brasil, em que expunha o modo como os cineastas do movimento entendiam a questão racial. Inicialmente o artigo reconhecia a ausência de filmes realizados por autores negros, mas chamava a atenção para existência de um cinema de assunto negro no Brasil. Em seguida, apontava os três modos como o negro fora representado no cinema brasileiro até aquele momento. O filme de autor negro é fenômeno desconhecido no panorama cinematográfico brasileiro, o que não acontece absolutamente com o filme de assunto negro que, na verdade, é quase sempre uma constante, quando não é um vício ou uma saída inevitável. A mentalidade brasileira a respeito do filme de assunto negro apresenta ramificações interessantes tanto no sentido da produção e de realização quanto do lado do público. O problema pode ser encarado como: a) base para uma concessão de caráter comercial através das possibilidades de um exotismo imanentes; b) base para um filme de autor onde a pesquisa de ordem cultural seja o fator preponderante; c) filme indiferente quanto às duas hipóteses anteriores; onde o assunto negro seja apenas um acidente dentro de seu contexto (NEVES, 1968: 75). Apostando no encontro entre o cinema de autor e a pesquisa cultural, o autor avança para a definição do que entende por "cinema negro". Para tanto, fixa-se em cinco filmes realizados até aquele momento. Pode-se ver que, culturalmente, a manifestação de um cinema negro quanto ao assunto foi até hoje episódica e só tem sido abordada como via de conseqüência. Digo foi porque, no panorama cinematográfico brasileiro, emergiram cinco filmes que serão, no método indutivo que proponho adotar aqui, as bases de uma modesta fenomenologia do cinema negro no Brasil. Os filmes são: Barravento, Ganga Zumba, Aruanda, Esse mundo é meu e Integração racial (idem: 75-6). Em tomo de Barravento e Ganga Zumba, Neves constrói a maior parte do argumento. Segundo ele, embora Barravento não tenha sido intencionalmente voltado para a discussão do tema negro, acaba fazendo-o por "via indireta". Atenta para o caráter religioso do filme, que remete diretamente ao negro e aos seus costumes. ALTERIDADES 55 Chama atenção ainda para uma certa essência telúrica presente no inconsciente e no "temperamento tão naturalista" de Glauber Rocha através do qual as teses negras afloram. Já Ganga Zumba é definido como o filme negro por excelência: "( ... ) inteiramente baseado e desenvolvido sobre o problema da cor. Nele, os personagens existem em função dela; vivem, lutam, morrem e se imortalizam por ela. Num sentido restrito esse é o único filme de assunto negro feito pelo Cinema Novo" (idem: 77-8). Por sua vez, Aruanda correspondia-se com Ganga Zumba quanto à temática do quilombo. Eram os únicos que tratavam do assunto no começo dos anos 1960. No entanto, Aruanda é identificado como uma obra primitiva: "Com uma simplicidade que lhe extirpa toda a lógica, porém, que lhe faz crescer o interesse transpirado, Aruanda progride tosco, fazendo como um leal nordestino, da humildade, a sua arma mais perigosa. Um quilombo no Brasil, hoje!" (idem: 79). Sobre Esse mundo é meu (Sérgio Ricardo, 1964), Neves destacou sua intenção de tratar de um tema anti-racista. Seleciona então quatro características do filme: "a) primitivismo formal; b) força natural e espontânea; c) musicalidade e ritmos contraditórios; d) problemas raciais" (idem: 79). Finalmente, sobre Integração racial (1964), documentário dirigido por Paulo César Saraceni sobre a formação racial brasileira, destacou a crítica à situação do negro no Brasil. Para Neves, o Cinema Novo inaugurou um novo tratamento cinematográfico na representação do negro em que se evitou a indiferença e a exploração do exotismo. Misto de texto analítico e manifesto, seu argumento é de fundação e constrói fronteiras entre o filme negro (os filmes acima), o filme indiferente à questão racial e o filme racista. Este último corresponderia à tradição iniciada pela Vera Cruz. Para ele, os filmes do Cinema Novo são anti-racistas porque: 1) não representavam o negro como fizeram os outros (chanchadas, Vera Cruz) até aquele momento; e 2) produziam uma identificação entre o realizador (branco) e os personagens negros, sem que a cor fizesse qualquer diferença. Para desenvolver esse segundo argumento o autor toma como exemplo o personagem Firmino (negro), de Barravento, que funcionaria como o porta-voz do cineasta (branco). Chama a atenção ainda para a identificação do público com um personagem negro: "Outro dado importante a ser notado é o fato de ter o elemento escolhido para porta-voz sido um elemento de cor e o complexo processo afetivo de identificação do público (das metrópoles, sobretudo) ter de funcionar relativamente ao destino de um líder negro" (idem: 77). Na genealogia cinematográfica construída por David Neves, "Moleque Tião (1943) e Também somos irmãos (1949) (dois filmes produzidos pela Atlântida) correspondem quanto ao tema a Barravento e Ganga Zumba. O elo de ligação é feito através da figura de Alinor Azevedo que, segundo Neves, contribuiu para a "transição do cinema tradicional para o Cinema Novo" (idem: 80). Curiosamente, ficam de fora os filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 graus (1954) e Rio zona 56 ESTUDOS DE CINEMA norte (1957), em que a representação do negro também recebeu um tratamento inovador e que foram desde o início reivindicados pelo movimento. Quatorze anos depois, Orlando Senna procurou sistematizar a representação do negro no artigo Preto-e-branco ou colorido: o negro e o cinema brasileiro (1979). Utilizando-se de metáforas raciais, dividiu a história do cinema no Brasil em três fases. A primeira corresponde ao Cinema Branco, e vai de 1898 até 1930. Foi marcada, principalmente, pelo etnocentrismo de um modelo branco europeu em que se evitou a representação do negro nos filmes (SENNA, 1979: 213 ). A segunda fase é a do Cinema Mulato, e ocorreu após a Revolução de 30. Foi influenciada pela emergência dos paradigmas postos na década de 1930 no que conceme à questão racial, sintetizados no livro de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, publicado em 1933. Seu ápice deu-se com os dramalhões e as chanchadas produzidas pela Atlântida. A avaliação desse período não é imparcial, e, como no texto de David Neves, aponta para o caráter comercial e de exploração do exotismo dos filmes produzidos nesse período. No alvorecer dos anos 50 o cinema brasileiro tem uma concepção meramente epidérmica do negro: principalmente a fêmea negra (como reflexo do machismo de nossa sociedade) é apresentada e oferecida como objeto de prazer. A incidência dessa utilização do corpo negro cresce geometricamente da chanchada da Atlântida até a pornochanchada dos anos 70, que ocorre na mesma época em que a 'indústria da mulataria' se organiza e aumenta seus lucros. Em toda uma linha de comédia a mulher negra é vista numa situação. de senzala, sempre servindo a um Senhor, satisfazendo sua luxúria, limpando a casa e fazendo a comida (a presença de um ator do porte de Grande Otelo nesta linha de comédia não é bastante para descaracterizar esse tratamento - mesmo porque a lucidez, o talento e a garra dos nossos grandes artistas negros nunca conseguiram furar o bloqueio que o cinema impõe às suas aspirações e reivindicações). Difundindo uma imagem colonial e estereotipada do negro - animal de carga ou objeto sexual - esta parcela do cinema brasileiro evoca e confirma o sentido pejorativo da palavra mulato (que vem de mula) (SENNA, 1979: 215). ·A próxima fase é a do Cinema Novo, denominada por ele de "negro/povo". Diferente de Neves, aqui a linha de continuidade é buscada nos filmes de Nelson Pereira dos Santos. Outra diferença é que, para Senna, os filmes do Cinema Novo não fizeram uma investigação da história e da cultura negra como se vê no texto de David Neves. Para Senna, o tema negro, tal como abordado nestes filmes, é utilizado como metáfora do povo pobre, favelado e oprimido. Explica: "No que diz respeito ao negro, a linha adotada pelo Cinema Novo é estabelecida em Rio zona norte, ou seja: denunciar a exploração de que é vítima o negro, mas sem se deter em uma análise racial, uma vez que o negro está englobado na massa multirracial dos pobres e oprimidos" (idem: ALTERIDADES 57 216). Não obstante, os filmes do movimento representam uma mudança substancial no tratamento da questão racial, principalmente quando comparados aos filmes comerciais - aqui a contraposição é outra vez feita com relação a chanchada e aos filmes da Vera Cruz. No entanto, o autor observa que se trata de um cinema de esquerda, em que as representações do negro estão submetidas às lutas políticas que marcaram o período: "Uma proposta essencialmente política onde qualquer preocupação diversificante (como a questão racial) poderia obscurecer o verdadeiro ponto a ser discutido - as classes sociais e a dependência" (idem: 217). Como fizera David Neves, Senna retoma Barravento e Ganga Zumba como as duas principais abordagens do negro feitas pelo Cinema Novo. Segundo ele: "Pelo próprio assunto e pelo tratamento que lhe é dado, pela imagem propositiva do negro em sua luta libertária, Ganga Zumba compõe (completa) com Barravento a indicação ideológica básica do Cinema Novo no que diz respeito ao Negro Brasileiro" (idem: 219). Embora o autor veja em Barravento uma discussão sobre a alienação (o que é a regra das interpretações sobre o filme na época), levanta uma interessante hipótese sobre o conflito entre os dois personagens afro-brasileiros principais do filme (Aruã e Firmino). Sugere que a luta de capoeira entre os dois poderia ser interpretada como um desafio deAruã à identidade negra de Firmino, que ficara ausente da aldeia morando na cidade. Seria, portanto, uma forma de a comunidade dos negros pescadores testar e manter sua identidade étnica. O conflito Aruã versus Firmino expressaria assim uma tensão entre a manutenção da identidade dos negros e a transformação advinda da cidade personificada em Firmino. Senna não desenvolve sua hipótese, mas convém destacar as observações do crítico Ismail Xavier, para quem Barravento não comporta um discurso unívoco do tipo revolucionário, nos termos cepecistas. Ao contrário, nele oscilam dois níveis discursivos e que atuam em pé de igualdade. A dimensão mágica e religiosa, isto é, o espaço simbólico das crenças da comunidade contamina a dimensão racional e revolucionária do personagem principal, Firmino. Se assim for, o dado racial não é inconsciente, nem tampouco secundário, como aponta Neves, mas está no centro do discurso político de Barravento. Escreve Xavier: ( ... ) quero evitar a idéia de que existe uma intenção racional que se manifesta no esqueleto da estória, mais consciente e controlável, contraposta à expressão de disposições inconscientes, descontroladas e irracionais, na textura de imagem e som. Quero sublinhar exatamente o oposto: é todo o filme que se contorce para que nele desfile a oscilação entre os valores da identidade cultural - solo tradicional da reconciliação, da permanência e da coesão - e os valores da consciência de classe - solo do conflito, da transformação, da luta política contra a exploração do trabalho (XAVIER, 1983: 41). ESTUDOS DE CINEMA 58 Já Ganga Zumba tem o mérito de fazer um "resgate pelo cinema (ou pela cultura dominante) do peso e da projeção histórica do negro na formação do país" (SENNA; 1979: 219). O texto de Senna está distante dos românticos anos 1960, seu contexto é o do final da década de 1970 em que se articulam lutas políticas gerais por democracia às demandas específicas dos movimentos sociais e das minorias em luta por representação (GONZALEZ & HASELBALG, 1982; GUIMARÃES, 2002). A influência dos movimentos negros que reivindicavam uma cultura negra faz-se presente quando o autor identifica uma tendência, a partir de 1976, do surgimento de filmes "preocupados com uma investigação da Cultura Negra como fator substantivo" (SENNA, 1979: 222). A polêmica gerada por Tenda dos milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1976), acusado de defender a mestiçagem e promover o embranquecimento, é sintomática do período. Debate semelhante seguiu-se ao lançamento de Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976), quando o sociólogo Carlos Hasenbalg e a historiadora e ativista do movimento negro, Beatriz Nascimento, investiram contra o filme, acusando-o de reproduzir estereótipos grosseiros e desrespeitar a luta do negro contra esse tipo de representação: "Não podemos concordar, entretanto, que o desconhecimento de um povo que justamente com o branco formou a nação brasileira esteja ausente em todos os momentos do filme, e que este se contente com o humor barato e grosseiro em cima dos estereótipos mais vulgares a respeito desse povo"(NASCJMENTO, 1976: 20). Senna acusa o cinema brasileiro de ser racista por fazer parte da indústria cultural, e ligado a uma cultura de classe média das quais o negro sempre esteve ausente. Daí sua presença como interprete, principalmente. Vê-se nos últimos anos, porém, uma mudança com o aparecimento de realizadores preocupados com a discussão racial e o surgimento de diretores negros. "A modificação deste panorama nos últimos três anos é sutil se levarmos em conta a gigantesca produção de filmes no Brasil... e a discriminação racial disseminada, em estado crônico, nas elites intelectuais. Um dos pontos que pode tornar menos sutil esta modificação é o surgimento de diretores negros - que nunca ocorrera antes (SENNA, 1979: 225). CONSIDERAÇÕES FINAIS Do que foi exposto acima nos dois textos, destaco que a representação racial não está deslocada da política geral dos artistas do movimento na condenação que fazem da chanchada e da Vera Cruz, ambas identificadas como produtoras de representações racistas. Já o anti-racismo propugnado pelo movimento está em: 1) condenar os estereótipos raciais dos filmes anteriores; 2) ignorar o conceito de raça e subsumi-la à categoria geral de povo; 3) tematizar aspectos da história, religiosidade e cultura do negro no sentido da sua integração à comunidade nacional, imaginada pelos cineastas. Evidentemente, a história e o negro aqui devem ser entendidos como ALTERIDADES 59 criações históricas de um contexto tenso marcado pelo nacionalismo, pelas lutas de descolonização africana e pelo movimento dos direitos civis dos negros brasileiros e estadunidenses. Observo que o texto de Senna reflete em parte as posições políticas dos movimentos negros da década de 1970, especialmente quando relativiza a identificação do negro com o povo. Já o texto de Neves afina-se com a posição do sociólogo Guerreiro Ramos, ativista negro e um dos principais intelectuais do ISEB, que afirmou nos anos 1950: "O negro é povo no Brasil" (1995: 200). Ramos e os outros ativistas do Teatro Experimental do Negro (TEN), entre os quais destaco Abdias do Nascimento, por exemplo, desde os anos 1940 advogavam a integração do negro na comunidade nacional. Suas demandas por integração passavam pela negação do estereótipo e da caricatura expressas no uso do blacliface, figuração inequívoca do racismo e da negação de auto-representação. Tal integração foi buscada pelos filmes do movimento na sua luta por uma teleologia revolucionária em que cabia ao negro o papel de vanguarda pela libertação dos deserdados da terra. Não esquecer o peso de um pensador como Franz Fanon na filmografia de Glauber Rocha, por exemplo. Finalmente, o Cinema Novo construiu no período novas possibilidades de simbolização do Brasil e do negro, e como conseqüência pavimentou o caminho para o ingresso de uma nova geração de atores afro-brasileiros no cinema sem reproduzir as velhas caricaturas. Alguns desses atores enveredariam para a direção poucos anos mais tarde, como Zózimo Bulbul, Antonio Pitanga e Valdir Onofre. Mas esta já é uma outra história. BIBLIOGRAFIA CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema Novo: imagens do populismo. Campinas. (Dissertação de mestrado) Instituto de Artes, UNICAMP, 1999. _ _ _ _ _ . "Esboço para uma história do negro no cinema brasileiro". In: DE, Jeferson. Dogma Feijoada, o cinema negro brasileiro, São Paulo: Imprensa Oficial, 2005, pp. 67-9. GONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34,2002. NASCIMENTO, Beatriz. A senzala vista da casa-grande. Opinião, Rio de Janeiro, p. 20, 15 out. 1976. NEVES, David. "O cinema de assunto e autor negros no Brasil". Cadernos brasileiros: 80 anos de abolição, Rio de Janeiro, Ano 1O, n. 47, 1968, pp. 75-81. RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995. 60 ESTUDOS DE CINEMA ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. SENNA, Orlando. "Preto-e-branco ou colorido: o negro e o cinema brasileiro." Revista de Cultura Vozes, São Paulo, vol. LXXIII, n. 3, 1979, pp. 211-26. XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983,p.41. _ _ _ _ ."Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor." In: XAVIER, Ismail; BERNARDET, Jean-Claude & PEREIRA, Miguel. O desafio do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Quanto vale ou é por quilo? A presença da raça no cinema brasileiro contemporâneo PEDRO VINICIUS ASTERITO LAPERA (UFF) INTRODUÇÃO "Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear quando passa na baixa do tubo o negão começa a gritar" 1 FOI-SE o TEMPO em que a raça era mobilizada apenas a partir do pitoresco, como presente na epígrafe. A sociedade brasileira assistiu na última década à politização das categorias raciais. Acompanhando a trajetória do movimento negro, cujas vitórias no campo político - cotas nas universidades para estudantes negros e pobres, comemorações cívicas ligadas à cultura negra, alçadas à categoria de feriados regionais, 2 aplicação do texto constitucional que prevê o racismo como crime inafiançável e imprescritível- reinscreveram a raça como categoria discursiva e identitária, os meios de comunicação não sairiam incólumes dessa discussão. Artigos na imprensa escrita, ações na Justiça em decorrência do comportamento de alguns programas televisivos, discussões em listas e em sites na internet, dentre outros, revelaram a nova tônica concedida à questão racial. Há, ainda, a maior presença I. Fricote, música composta por Luis Caldas e Paulinho Camafeu que, em 1985, acompanha a ascensão do movimento axé. Fonte: http://www.construindoosom.com.br!linha_do_tempo/ 1980_a_l989.htm 2. No Rio de Janeiro há os feriados de São Jorge e Zumbi dos Palmares. 62 ESTUDOS DE CINEMA de atores negros no cinema e na televisão, em virtude do trabalho de ONGs como Nós do morro eNós do Cinema. 3 O meio acadêmico também se viu imerso em grupos de estudos sobre a revisão do papel do negro e do índio na sociedade brasileira, o que conduziu as pesquisas nas áreas humanas, notadamente história e ciências sociais. Isso ajuda a revelar que a historiografia do cinema brasileiro necessita de estudos que avaliem como as categorias raciais mobilizadas no pensamento social e no cotidiano das massas fizeram-se presentes nas representações fílmicas 4 e, além disso, em quais práticas sociais essas representações estavam inseridas. 5 Afinal, a seqüência de Thesouro perdido (Humberto Mauro, 1927) em que se alternam planos de um sapo e uma criança negra - ambos com um cigarro na boca o filme A dupla do barulho (Carlos Manga, 1953) que reúne dois cômicos alternando representações de branquidade e negritude (Oscarito e Grande Othelo) e o documentário Mato eles? (Sérgio Bianchi, 1982), sobre uma reserva de índios invadida por uma madeireira, são apenas alguns exemplos retirados de um gigantesco panorama de representações raciais veiculadas audiovisualmente. Dotado de uma ambição muito pequena, este breve ensaio possuirá como parâmetro o cinema brasileiro contemporâneo para tentar responder, através do filme Quanto vale ou é por quilo? (Sérgio Bianchi, 2005), a seguinte questão: de que estratégias discursivas os filmes brasileiros atuais se valem para instaurar uma visibilidade das categorias raciais, afirmando ou contestando o lugar das práticas do pensamento social em tomo destas? Para tanto, partiremos da seguinte hipótese: as práticas discursivas ligadas à raça presentes no filme, contrariando uma tradição apaziguadora das relações raciais, ressaltam a dimensão do conflito (fílmico e extra-fílmico) em que elas são constituídas. Para auxiliá-la, lançam-se outras hipóteses secundárias: o filme, ao articular classe, raça e gênero, revisita certos discursos ligados às categorias raciais presentes no 3. Recordemos que Lázaro Ramos e Flávio Bauraqui, dois atores negros incorporados ao star system, tiveram suas trajetórias artísticas consolidadas em filmes como Madame Satã, O Homem que copiava e Quase dois irmãos, além do fato de que Fernando Meirelles e Kátia Lund, diretores de Cidade de Deus, realizaram uma série de oficinas visando a formação de jovens atores negros, o que revela o papel do cinema brasileiro contemporâneo como uma instância cultural legitimadora das conquistas do movimento negro. 4. Um dos raros estudos é O negro 「イ。ウゥャ・セッ@ e o cinema, do antropólogo João Carlos Rodrigues. 5. Lembremos que, nos EUA, houve a vigência de vários códigos de representação- sendo o mais famoso o Código Hays- que mencionavam explicitamente como as "raças" deveriam ser retratadas nos filmes. No Brasil, em virtude da incipiência da realização de filmes e da fluidez das categorias raciais, os códigos em torno das representações se tornavam implícitos, quando não "autorais", adotando inclusive estratégias de naturalização e invisibilidade, o que dificulta- mas não inviabiliza -uma abordagem "racial" da história do cinema brasileiro. ALTERIDADES 63 pensamento social brasileiro e brasilianista (leia-se Skidmore, Ianni, Florestan Fernandes, Ortiz) e desautorizam o lugar de uma outra tradição (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque); além disso, a imagem de Brasil construída nos filmes incorpora o conflito racial, revelando o lugar da própria nação enquanto instância legitimadora de certos tipos de identidade em detrimento de outros. USOS DO TEMPO NA NARRATIVA RACIAL Quanto vale ou é por quilo? é iniciado com uma expedição de capitães-domato para resgatar escravos fugidos, mostrada em uma fotografia muito escura e em planos fechados, sob os protestos de Joana (Zezé Motta) - negra alforriada que possui escravos - alegando que um dos escravos era seu. A câmera em movimentoS lentos e a montagem com poucos cortes revelam o protesto dela e de seus vizinhos diante da casa do mandante da expedição (Antônio Abujamra), cuja acusação sumária é "branco ladrão". Ao explicitar um fato pouco retratado nas narrativas sobre escravidão - o fato de negros libertos também possuírem escravos - e ao evidenciar claramente as categorias de raça, essa seqüência indica o tipo de narrativa que será construída ao longo de Quanto vale... : através de um jogo de ocultação/revelação, os vários tipos de linguagens articuladas no filme (publicidade, história, direito, vídeo, televisão, etc.) irão expor fragmentos de ações que ressaltam o aspecto do conflito nas relações de raça e de classe. É importante se frisar que Quanto vale... não possui um personagem que conduz toda a história, sendo que isso se reflete na forma como o passado é retratado: além de mudanças na fotografia (ora fica amarelada, ora escurecida), há uma instância extradiegética que se concede a autoridade de narrar a história: uma voice over (interpretada por Milton Gonçalves) cuja fala impostada e sem alteração de tom assume uin ar farsesco e cínico. Antes de se prosseguir, veja-se o conceito de representação de Stam e Shohat (2006: 267-8): As conotações de "representação" são ao mesmo tempo religiosas, estéticas, políticas e semióticas. (... )A representação também tem uma dimensão estética, pois a arte é uma forma de representação, uma mimese, nos termos platônicos e aristotélicos. ( ...) As artes narrativas e miméticas, na medida em que representam ethos (personagem) e ethnos (povo), são consideradas representativas não apenas da figura humana, mas também da visão antropomórfica. Além disso, poder-se-ia acrescentar que o conceito de representação também pode ser utilizado em relação ao passado, revelando como este é retratado e politizado 64 ESTUDOS DE CINEMA no tempo presente. Nada melhor do que um filme para ilustrar isso, uma vez que a mediação exercida por este instaura no espectador uma noção de temporalidade que articula o binômio "passado-presente". , Colocada a questão da representação, veja-se como o passado se insere na diegese dos filmes. Em Quanto vale... , vários fragmentos deste aparecem imersos em uma narrativa que se liga ao presente e ao cotidiano das grandes cidades e de um novo ator social, as ONGs. Há uma relação de contigüidade entre as duas temporalidades, construída a partir da questão racial. Essa postura é ratificada, por exemplo, .p.o elo entre a diretora de uma ONG e uma senhora que revende escravos (ambas interpretadas pela mesma atriz, Ana Lúcia Torre), e na seqüência em que há a exposição de objetos de tortura para escravos, durante a qual se revela, na montagem, o sonho da personagemArminda (Ana Carbatti), cuja presença em uma festa (realizada em uma favela) remete este trabalho ao tempo presente. Em resumo: Quanto vale ... evidencia uma temporalidade superposta. Recupera-se a discussão empreendida por Homi Bhabha a respeito das narrativas nacionais. Segundo o autor, a nação seria "uma forma obscura e oblíqua de viver a localidade da cultura. Essa localidade está mais em torno da temporalidade do que sobre a historicidade ( ... )" (2005: 199) [grifos do autor]. Além disso, a nação se constitui em uma ambivalência narrativa, entre os discursos da pedagogia e do performativo. O primeiro se pauta pela continuidade e pela construção de uma identidade ao longo da história; o segundo pela constante necessidade de ressignificar as narrativas nacionais no cotidiano, explicitando a instabilidade do jogo identitário. Nas palavras de Bhabha (2005: 211-12), cuja indagação pode nos auxiliar aqui: As contra-naiTativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras - tanto reais quanto conceituais - perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais as "comunidades imaginadas" recebem identidades essencialistas. ( ... ) Enquanto um limite firme é mantido entre os territórios e a ferida narcísica está contida, a agressividade será projetada no Outro ou no Exterior. Mas e se considerarmos, como venho fazendo, o povo como a articulação de uma duplicação da interpelação nacional, um movimento ambivalente entre os discursos da pedagogia e do performativo? ( ... )A nação não é mais o signo da modernidade sob o qual as diferenças culturais são homogeneizadas na visão "horizontal" da sociedade. A nação revela, em sua representação ambivalente e vacilante, uma etnografia de sua própria afirmação de ser a norma da contemporaneidade social. Deslocada da teleologia do progresso, a nação de Quanto vale ... é constituída através de um jogo de ironias que destitui o pedagógico de sua autoridade para conferir ao performativo um lugar de destaque na narrativa racial. Através do par "branconegro", o filme estabelece a construção das identidades e a presença da violência na "origem" das relações raciais. Volte-se à primeira seqüência do filme: a voice over lê ALTERIDADES 65 urna sentença que condena a negra alforriada Joana por ofensas morais e raciais a um senhor branco, configurando a primeira ironia do filme e contrariando a expectativa do espectador. A isso, reforça o fato com o peso do documento, trazido à diegese por meio da inserção de uma referência ao Arquivo Nacional. A relação de contigüidade temporal é superposta à contigüidade racial: o negro se constitui pelo olhar do branco e vice-versa; as instâncias de branquidade são explicitadas no filme. Dos senhores passa-se aos diretores de ONGs e à alta elite burocrática. A violência da escravidão é refigurada pela "mercantilização" da imagem das minorias: o olhar de Arrninda durante a gravação de um comercial sobre meninos negros e pobres, cuja fantasia os vê amarrados em fila - como escravos - ou, em outro momento, em que se vê um capitão-do-mato transitando em uma festa no Teatro Municipal de São Paulo, pode ser interpretado como a mise-en-scene do conflito racial. Aqui, o performativo filmico (dos personagens) remete diretamente ao extrafilmico (da sociedade brasileira): a necessidade de explicitar as categorias raciais na narrativa funda-se no desejo de se repensar a raça enquanto discurso identitário e, em contrapartida, "devolve" ao espectador um mal-estar ocasionado pelo desmascarar do mito da democracia racial. 6 Relacionando isso aos usos do passado, veja-se um exemplo. A voice over faz asserções sobre o uso de instrumentos de tortura na escravidão: "o tronco é indicado contra fuga de escravos reincidentes. Para colocar o escravo no tronco, abrem-se suas duas metades, colocando nos buracos o pescoço e os pulsos. O tronco estimula o espírito de humildade e subserviência, forçando a imobilidade e impedindo o escravo de se defender de moscas ou mesmo fazer suas necessidades fisiológicas". A narração é acompanhada de um movimento giratório do instrumento tronco, com a personagem Arrninda dentro dele, o que contrapõe a objetividade daquela à agonia desta. O performativo, nesse momento, explicita-se no choque entre imagem e som, o que concede à voice over um tom farsesco e se vale do discurso pseudo-moral e didático do século XIX para naturalizar a manutenção de uma ordem "racializada" e as atrocidades cometidas em prol do sistema escravocrata. A proximidade entre passado e presente é explicitada logo na seqüência seguinte, em que há um comercial protagonizado por crianças pobres (e, em sua maioria, negras) e a análise imediata de um gerente de marketing, Marco Aurélio (Herson Capri), em uma reunião cujo propósito é "captação de recursos". O comercial veicula, ao som de uma música instrumental melancólica, imagens de crianças sujas, dormindo 6. Utilizamos a palavra mito em duas acepções: na de Malinowski e o do funcionalismo, para os quais o mito tem uma função (no caso em questão, o mito como reprodutor de uma ideologia nacionalista que apazigua quaisquer conflitos); além do mito como lugar da farsa (tal como entendem os movimentos sociais de base étnica, que colocam a "raça" enquanto constituinte da hierarquia social no Brasil). 66 ESTUDOS DE CINEMA na rua, chorando, para uma campanha de uma empresa chamada "Sorriso de criança". A isso Marco Aurélio reage, afirmando que a "estratégia" está ultrapassada e que "a imagem do produto deve estar vinculada ao êxito". Reificando a miséria, 7 o discurso do personagem ratifica o marketing enquanto o lugar de afirmação das concepções de uma elite burocrática, intelectual e financeira na manutenção de uma ordem social que oblitera seu aspecto racial. Aliás, essa lógica da reificação aparece em vários momentos no filme, configurando uma "ponte" na relação passado-presente: na senhora que revende escravos (Ana Lúcia Torre), no momento da compra, tocando em dois escravos como se avaliasse um objeto; na diretora da ONG (interpretada pela mesma atriz) gravando depoimentos de mendigos que vomitam após ingerir um líquido verde (um suposto "extrato natural"), o que é corroborado na estética do próprio filme, pois a imagem que mostra o desespero de uma mendiga negra aparece em vídeo (ressaltando o aspecto de "registro"). Especificamente, Quanto vale ... , ao explicitar as instâncias nas quais o imaginário coletivo se constitui (televisão, publicidade, música popular, história, sistema educacional, etc.), revela a dimensão de código e de seleção assumida na encenação do passado nacional e, mais que isso, que tipos de interesse/ideologia pautam as narrativas e contra-narrativas nacionais. ENTRE O COTIDIANO E A POLÍTICA: REPRESENTAÇÕES DA RAÇA NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO No livro O Brasil visto de fora, o brasilianista Thomas Skidmore, por meio de uma revisão do pensamento social brasileiro que arregimentou o debate a respeito da formação, de uma identidade nacional nos séculos XIX e XX, confere às categorias raciais um lugar central em sua argumentação. Infere que a raça sempre esteve presente no pensamento teórico sobre a realidade brasileira, para tanto realiza um estudo desde os defensores da tese do branqueamento do século XIX e início do século XX (Romero; Nina Rodrigues; Oliveira Vianna; Paulo Prado) até a revisão do mito das três raças pela Escola Paulista (Florestan, Ianni, F emando Henrique Cardoso) e posteriormente reforçada por outros intelectuais (Darcy Ribeiro; DaMatta; Ortiz), passando pelos estudiosos, construtores deste mito (Freyre; Buarque) e seus difusores (Vianna Moog). Evidentemente, não o faz sem recordar ao leitor os usos políticos dessas teorias raciais. 7. Valemo-nos do conceito de reificação de Marx, tal qual explicado por Peter Berger e Thomas Lückmann em A construção social da realidade. ALTERIDADES 67 Uma discussão particularmente interessante a este trabalho refere-se à relação entre raça e classe. Retomando uma reflexão iniciada por Florestan Fernandes na década de 1960, Skidmore elenca algumas razões para o obscurecimento do estudo das relações raciais: a) a postura da elite em reafirmar o mito da democracia racial; b) a repressão oficial, encampada desde o governo Vargas até a ditadura militar, o que restringiu a atuação de movimentos ligados às minorias étnicas; c) a centralidade que a esquerda brasileira atribui à classe - tanto no estudo quanto na transformação da sociedade- e, por isso, rechaçando o debate sobre raça. Essa conjuntura foi expressa, por exemplo, na ausência do quesito raça no Censo de 1970, sendo até hoje reproduzida amplamente nos meios de comunicação, no sistema educacional e nas políticas públicas. Como os filmes aqui analisados ligam as práticas cotidianas e políticas às categorias raciais? Em Quanto vale ... , a seqüência sobre a gravação de um comercial em prol de crianças negras é clarividente: a personagem Lourdes (Lena Roque), diretora de projetos da fictícia ONG Stiner, após ouvir a palavra pedigree sendo usada por um membro da equipe de produção ao se referir a um garoto negro, interpela de modo virulento o diretor do comercial. Inicia-se uma calorosa discussão sobre raça. Lourdes afirma que o filme, colocando "75% de crianças negras, 15% brancas e 10% outros retrata a realidade do país"; ao que o diretor lança: "E não vem se fazer de vítima pra cima de mim só porque é negra! Eu não persigo negros!". O bate-boca é finalizado com o diretor gritando categoricamente: "Resistindo [a contratar negros]?! Que resistindo?! Você não pagou? Pois então: você venceu! Hoje, aqui neste set, negro é lindo!"; e virando para um membro da equipe: "Ô Bira! Pinta todos esses moleques de preto!". Ironizando o lema Black is beautiful, é construída cenicamente a catarse das personagens, enquanto responsável pela visibilidade das categorias raciais. É possível explanar que essa catarse fílmica remete-se diretamente ao universo extra-fílmico, vivenciado pelo espectador, uma vez que é também por meio de uma catarse que estas práticas discursivas são mobilizadas socialmente (fato comprovado nas entrevistas colhidas pelos cientistas sociais Luiz Cláudio Barcelos e Elielma Ayres Machado, em pesquisa sobre jovens universitários- por ocasião da aprovação da lei de cotas raciais - segundo as quais são comuns xingamentos de raça em discussões durante eventos desportivos ou casualmente empreendidas na rua e no trânsito). Ademais, poder-se-ia refletir sobre a seqüência de Quanto vale ... há pouco descrita. Ao descrever a pretensão de Lourdes em "mostrar a realidade do país" de modo quantitativo, o filme explicita seu próprio status de representação. Além disso, reforça o papel do cinema e dos meios de comunicação (no caso, a publicidade) enquanto lugar de (re)produção de ideologias e, portanto, capaz de encenar o jogo entre o pedagógico e o performativo na narrativa nacional (aliás, as seqüências em que se fala da questão de patrocínio às causas sociais são de imediato relacionadas ao próprio fazer cinematográfico atual, visto que este também sobrevive apenas quando 68 ESTUDOS DE CINEMA subvencionado pelo Estado e pela iniciativa privada). Para tanto, incorpora a essa narrativa as "rupturas" e descontinuidades ocasionadas pela imersão de diversas categorias identitárias, tais como raça, classe, gênero e geração. ·· A respeito das personagens negras de Quanto vale ... , Lourdes e Arrninda, eis como 'estas são postas na mise-en-scene: a primeira, um signo referente à classe média negra, é cínica e dotada de um discurso panfletário, cabendo a ela colocar em destaque a mercantilização da imagem do negro como minoria étnica; já a segunda, por meio da superposição entre passado e presente, tem seu olhar "misturado" entre os signos da escravidão e da estratificação social atual para evidenciar seu transitar na diegese e sua atuação "contra o sistema". Estabelece-se uma oposição entre cinismo e ativismo no campo político (que substitui o par retórico "alienação-consciência", caro à retórica de esquerda). Entretanto, a dimensão trágica 8 das narrativas fílmica e extra-fílmica são entrelaçadas: Lourdes é "punida" com a demissão; Arminda, curiosamente, é retratada em dois finais: no primeiro é assassinada por um matador de aluguel (Sílvio Guindane) em sua casa; no outro revela seu niilismo político ao cooptar o matador de aluguel para um plano de roubo e seqüestro. A centralidade das instituições ligadas à "branquidade" também se faz presente nos filmes. Quanto vale... , por exemplo, encena várias poses para fotografia: a negra alf9rriada Joana e seus libertos; as crianças de rua (na maioria, negras); a socialite Marta Figueiredo (Ariclê Perez) e as crianças da favela. Sobre esta última, veja-se como o filme a mostra. Plano geral com crianças negras tendo ao fundo uma favela. Escuta-se a voz de uma mulher: "Me dê os brinquedos, por favor". Marta aparece em seguida na imagem, distribuindo a seu bel-prazer os mesmos. Novamente vai para o espaço-fora-da-tela. Nele, afirma: "Você, não! Você, vem cá!". Eis que ela surge trazendo pela mão uma menina negra. Coloca o boné neste e exclama: "Lindo!". Pega na mão de duas outras crianças e se posiciona no meio delas para uma foto. Voice over feminina irônica narra: "Doar é um instrumento de poder. A superexposição de seres humanos em degradantes condições de vida faz extravasar sentimentos e emoções". Barulho da câmera fotográfica. Corte para plano médio centralizado em Marta. Voice over continua: "Sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade, e por fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência!". Novamente barulho de câmera fotográfica. A dinâmica centro-periferia assumida nas relações sociais é incorporada à imagem, sendo isso evidenciado em vários pontos: a) os personagens negros só ocupam 8. Aqui, trágico não aparece no sentido comumente usado (sinônimo de catástrofe), e sim a uma narrativa que desemboca em uma situação sem saída (na tragédia grega, cabia a um Deus ex machina dar uma solução ao conflito cênico; nas histórias atuais, entretanto, há pouco espaço para este). ALTERIDADES 69 a centralidade da imagem enquanto reprodutores das instituições da "branquidade" (no caso da negra alforriada), ou enquanto objeto das mesmas (crianças de rua, cuja seqüência de fotos é encerrada com barulho de moedas caindo); b) cabe ao poder ·branco a escolha de quem terá sua imagem veiculada (explicitada na seleção de Marta); c) mesmo quando o negro ascende socialmente (caso de Lourdes), este o faz muitas vezes reafirmando os valores dessas instituiÇões; d) a lógica da caridade é apontada no filme em seu aspecto perverso de manutenção de uma rede de dependência; e) a centralidade do poder branco é evidenciado em vários momentos (desde a foto de Marta até as cerimônias de premiação de talentos, cuja platéia e premiados são em sua grande maioria brancos). A essa centralidade, Quanto vale ... responde com a ironia mordaz da voice over para, através dela, contestar o lugar dessas instituições. CONCLUSÃO A análise reconhecidamente limitada que se deu neste ensaio apenas revela a necessidade de um estudo sobre a categoria "cinema brasileiro contemporâneo" e a construção por meio dela dos vários tipos de identidade. A obra aqui avaliada reitera o lugar conferido às categorias raciais na diegese de muitos filmes brasileiros atuais. Para tanto: a) evidenciam uma temporalidade superposta no conflito racial; e encenam b) uma hierarquia social que classifica racialmente os sujeitos e que, portanto, distribui bens e oportunidades de acordo com essa categorização; c) o caráter relaciona! do par "branco-negro", uma vez que estes não são percebidos ontologicamente, mas apenas na medida em que um constitui o outro nas práticas cotidianas e na disseminação do poder; d) as práxis políticas que mobilizam a raça em nome de projetos de transformação social. No tocante aos discursos raciais, é possível deduzir que existe um conjunto de filmes brasileiros atuais que se valem de sua diegese para explicitar o lugar destes na estratificação social brasileira, sendo que alguns títulos merecem destaque: Yndio do Brasil (Sylvio Back); Brava gente brasileira (Lúcia Murat); Narradores de Javé (Eliane Caffé); Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi); O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. BARCELOS, Luiz Cláudio & MACHADO, Elielma Ayres. "Relações raciais entre universitários no Rio de Janeiro". In: Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, n° 2, 2001. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005. BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. 70 ESTUDOS DE CINEMA BERGER, Peter & LÜCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes; 1995. CASTELLS, Manuel. 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Liderado por Adhemar Gonzaga, esse grupo tentava transplantar para o Brasil as suas reflexões sobre o cinema americano e promoveu o início de um star system brasileiro. Com o surgimento do cinema sonoro e da Cinédia, a comédia de costumes, inspirada nas comédias teatrais, foi um gênero bastante comum no cinema brasileiro. Maridinho de luxo é, por exemplo, baseado na peça teatral Compra-se um marido, de José Wanderley, cujos textos foram fundamento de muitos filmes, entre as décadas de 30 e 50. O próprio diretor de Maridinho de luxo, Luiz de Barros, era, antes de ser uma das figuras mais presentes no cinema brasileiro, um homem de teatro. Tendo estudado cenografia em Milão, paralelamente à sua carreira na produção cinematográfica, Luiz de Barros foi responsável por muitos cenários e figurinos do teatro de revista carioca, montou companhia teatrais e escreveu peças (RAMOS & MIRANDA, 2000). A presença importante da comédia de costumes no cinema brasileiro é também uma ressonância dos anos 30 em Hollywood, onde ocorreu, a partir de 1934, um "ponto de virada", na denominação de James Harvey ( 1987). São as comédias screwball, marcadas pelas disputas entre homens e mulheres, mas sem deixar de lado uma boa ESTUDOS DE CINEMA 72 dose de romance (1987). Esse jogo de disputa também faz parte de Maridinho de luxo e promoveria um certo questionamento do papel da figura feminina. Pretende-se, então, no presente trabalho, analisar o quanto essa representação da mulher tinha de vanguardista em relação às heroínas comuns de melodramas do star system, às próprias heroínas das comédias screwball e em relação à correspondente personagem da peça de teatro para se concluir, enfim, se a personagem de Luiz de Barros se constituiu ou não num avanço para a representação feminina no sentido da teoria feminista. MARIDINHO DE LUXO, STAR SYSTEM E COMÉDIAS SCREWBALL O antropólogo Edgar Morin (1972) situa entre os anos 30 e 60, a fase de ouro do star system hollywoodiano, que se caracterizava pela presença de uma star feminina possuidora do binômio beleza-juventude. A mulher estaria nesse sistema, segundo a teórica LauraMulvey (2003), submetida a um modelo que satisfizesse o olhar masculino, proporcionando-lhe um prazer visual através da codificação do erótico dentro da linguagem da ordem patriarcal dominante. Assim, as estrelas jovens, geralmente loiras, de lábios carnudos e vermelhos de batom, com uma elegância e cabelos impecáveis, seriam o arquétipo feminino ideal, objeto de um olhar voyeur masculino. Elas estariam na tela "para-serem-olhadas". A personagem principal de Maridinho de luxo, Patrícia (Maria Amaro), encaixase bem nesse modelo: tem apenas 19 anos (segundo Morin, a média de idade do star system ia de 20 a 25 anos), é loira (portanto, um padrão americano), bonita e elegante, com camisolas e vestidos que poderiam figurar em qualquer filme americano da época. Porém, logo no início, o filme mostra que é uma comédia e que toma a ironia dos valores como argumento. Patrícia é uma mocinha casadoira, mas, longe de sonhar corn o príncipe encantado, ela quer "comprar" um marido em quem possa mandar. O marido, no caso, é Marcos, vivido pelo ator cômico Mesquitinha, baixinho, franzino, portanto, sem nenhum atrativo físico de galã que pudesse provocar suspiros de uma jovem mocinha. Patrícia e sua tia fazem escárnio do amor romântico: "O amor é um velho lendário como Papai Noel", diz a tia, concordando com a decisão da sobrinha. Quando Marcos pergunta ao pai dela por que, sendo jovem e bonita, Patrícia preferiu se casar daquela maneira, ele responde que é "porque ela não acredita no amor, prefere comprar um marido". Assim, Patrícia não tem ilusões quanto ao casamento ideal, aspirado como bem-maior por todas as mocinhas, cinematográficas ou reais, da época (e, diria também, de grande parte das atuais). Diz, com toda convicção, que ele é um "mal necessário" e que por isso quer apenas um "marido convencional". Há em todas essas afirmações uma crítica à idéia do casamento como uma obrigação e que somente por meio do qual, a mulher teria uma função na sociedade. ALTERIDADES 73 Essa idéia está ainda mais presente na peça que originou o roteiro do filme, Comprase um marido, de José Wanderley, representada pela primeira vez em 1933. Nela, Patrícia é um pouco mais velha, tem 22 anos, idade em que, na época, as moças se arriscavam a ficarem "encalhadas", e portanto, sem aceitação social, caso não tivessem um pretendente em vista. Na peça, Patrícia afirma que o motivo principal para querer se casar é vingar-se de sua amiga de infância, Zélia, que zombava dela por ainda estar solteira. Zélia mesma casara-se com Ernesto, um tipo ridículo, só por medo de ficar solteira. Luiz de Barros deve ter preferido não evocar esse aspecto e dar mais importância à questão do dinheiro de Patrícia, que lhe permitia estar acima do bem e do mal para realizar sua vontade. Assim, ela se mostra bastante cínica quanto ao poder da riqueza sobre os sentimentos, afirmando que "com dinheiro tudo se compra, até um marido". Essa "sacudida" nos costumes pode ser considerada por si só como característica do gênero comédia, de que Maridinho de luxo faz parte, mas era, acima de tudo, um aspecto marcante das comédias screwball dos anos 30 em Hollywood, as quais serviram de modelo e inspiração para o filme de L · :de Barros. Screwball é uma gíria americana que significa "excêntrico, fanático, mL_;;o". Assim, essas comédias malucas tratavam de situações fora do contexto normal da época, de personagens excêntricos. Era comum que essas comédias partissem de um encontro amoroso que envolvesse um conflito de sexo e classe: muitas vezes a mulher era uma herdeira rica, excêntrica e determinada, que impunha suas decisões e seu ritmo ao homem, geralmente apresentado como anti-herói, por exemplo o jornalista desempregado interpretado por Clark Gable em It happened one night (1934), de Frank Capra (MOINE, 2003; HARVEY, 1987). É bem essa a situação do casal Patrícia-Marcos de Maridinho de luxo, em que Luiz de Barros traz como contribuição brasileira a figura do malandro da praça Tiradentes Mesquitinha, que, bem diferente de Clark Gable, estava completamente fora dos padrões de galã e toma a comédia da Cinédia mais escrachada que as comédias screwball de Hollywood. É diferente também neste aspecto da própria peça de José Wanderley. O Marcos da peça, por mais que a fala dos outros personagens indique que ele é feioso, está mais para Clark Gable que para Mesquitinha. É um bacharel em direito, desempregado, um tipo intelectual irônico e sofrido. Note-se bem a descrição que o autor da peça faz dele: "É um homem dos seus 30 anos. Veste com relativa elegância. Em suas feições inteligentes, há vestígios de noites mal dormidas e de· grandes decepções. Todo seu drama íntimo de revoltado vive e se agita em suas atitudes independentes e altivas. Apesar de tudo tem o segredo de transigir com a vida". A parte cômica da peça ficava muito mais com o personagem de Ernesto, marido de Zélia. No filme, Luiz de Barros diminuiu a "carga romântica" da situação e aumentou o seu componente cômico ao chamar Mesquitinha para dar vida a Marcos. ALTERIDADES 75 possuidora de um sex-appeal semelhante ao da femme fatale, mas que, ao final do filme, revela-se tão pura e generosa como uma virgem inocente e casadoira. Assim é Patrícia, que de bela megera cínica, transforma-se em crente adepta e sujeita ao amor romântico, cristalizado pelo casamento. O próprio happy end, característico do star system, corresponderia a uma visão androcêntrica. Anne Higonnet (2002) observa que os happy ends colocariam as mulheres no seu justo lugar na ordem patriarcal: na imagem final congelada do beijo, com a mulher sendo enlaçada pelo herói masculino. Luiz de Barros não chega a ir tão longe a ponto de mostrar a bela Maria Amaro sendo beijada por Mesquitinha (o que, mesmo sendo uma cena clássica de happy end, seria até bastante inovador por conta das características fora dos padrões desse par romântico), mas a partida dos dois no avião sugere, assim como o beijo, que os dois foram "felizes para sempre". De qualquer forma, não mostrando o beijo e nem declarações de amor entre os dois, Luiz de Barros teria "esfriado" um pouco o componente romântico, muito mais presente na peça de José Wanderley. Nela, não ocorre a perseguição até o aeroporto. Patrícia cai chorando sobre uma cadeira diante da iminência da partida de Marcos e pergunta, numa última tentativa, se não poderiam rasgar o programa (as condições de independência no casamento que eles deveriam respeitar) e fazer outro. Marcos aceita, contanto que ele organize o novo programa, ao que a peça se fecha com um "Marcos, meu amor!". Luiz de Barros poupa o espectador desse diálogo de "reorganização" dos papéis sexuais (o título de uma segunda refilmagem da peça em 1956, Hoje quem canta de galo sou eu, parece reforçar esse aspecto), só deixa que ele intua que houve um final feliz do casal, serp mostrar como exatamente eles chegaram à reconciliação. MARIDINHO DE LUXO E A TEORIA FEMINISTA Carolyn Byerly e Karen Ross (2006) observam que a partir dos anos 30-40 até os anos 60 os filmes produzidos por Hollywood poderiam ser colocados, em grande parte, sob a etiqueta de woman 's film. Era a tentativa de atrair um público feminino para o cinema. Esses filmes, como também Maridinho de Luxo, continham uma contradição inerente, pois mostravam mulheres, como Patrícia, com um modo de vida aparte das convenções da feminilidade respeitável, mas, ao mesmo tempo, deixavam claro para o seu público os erros desse caminho fora do padrão. Havia mesmo um Código de Produção que guiava a indústria cinematográfica da época e que era responsável pela manutenção da moral e da probidade sexual nos filmes. As autoras citam uma outra teórica, Molly Haskell que considerava ser o woman 's film circunscrito por uma estética conservadora que encorajava as espectadoras femininas muito mais a aceitarem do que a rejeitarem o seu status quo. O cinema seria, portanto, uma ferramenta de manutenção da moral da sociedade. 76 ESTUDOS DE CINEMA Parece mesmo que todos na casa de Patrícia já esperavam o enquadramento da moça nos padrões. O pai, a tia e os empregados espreitam sorridentes atrás da porta, aguardando o final feliz da farsa, como um público habitual de cinema que já pressupõe que a mocinha termine nos braços do mocinho ao fim do filme. É como se não houvesse uma alternativa possível para Patrícia e sua história que não fosse o casamento por amor e que esse happy end fosse apenas questão de tempo. Pode-se deduzir dessa espera ansiosa dos próprios personagens coadjuvantes do filme por um certo desfecho (e, por extensão do público tanto masculino quanto feminino), a dificuldade de se ter a possibilidade tanto de representações alternativas de personagens femininos no cinema, como de saídas diferentes da norma na vida real. O sociólogo Pierre Bourdieu (1998) considera que a ação da dimensão social sobre o indivíduo é tamanha, que ele pouco consegue resistir a ela. Em seu livro A dominação masculina, Bourdieu tenta entender o porquê da "surpreendente" constância de padrões na relação entre os sexos (por extensão, pensaríamos da mesma forma quanto à constância dos seus padrões de representação). Explica a causa desse fato com o conceito de "violência simbólica". Simbólica, porque é uma violência invisível para as suas vítimas, que se exerce pelas vias simbólicas da comunicação, do reconhecimento e do sentimento. Para Bourdieu, a dominação masculina se fundamenta numa visão de mundo que institui a diferença biológica entre os corpos como dado objetivo da divisão entre os sexos e da ordem sexual estabelecida. Assim, o que seria arbitrário e cultural tornase natural, "des-historicizado", dando a falsa impressão de que as estruturas sociais sejam eternas. Os principais agentes desse processo de transformação do arbitrário em natural seriam, segundo Bourdieu, a família, a Igreja, o Estado, a escola, assim como outras instituições como o esporte e as rnídias.Tanto mulheres como homens estariam submetidos, desde o seu nascimento, por todo um trabalho de incorporação dessa visão "des-historicisante", predecessora a eles. Assim, para desmantelar essa visão, Bourdieu considera que seria necessária uma verdadeira "revolução simbólica" que agisse na transformação radical das estruturas e das condições sociais de produção das disposições que levam os dominados (no caso, as mulheres) a adquirirem o ponto de vista dos dominadores. A teórica Judith Butler (2004), como Bourdieu, também não concorda que a diferença sexual entre homens e mulheres implique num comportamento primordial, natural, essencial. Com o seu conceito de "problema de gênero" (gender trouble ), o gênero problematizado, Butler promovia a contestação da própria diferença sexual. O "gênero" seria, na verdade, produzido por práticas performativas e de identificação. Butler confere também, maior complexidade ao questionamento de Bourdieu sobre o porquê da constância dos padrões ao analisar, em seu livro Undoing gender (2004), as escolhas que um indivíduo de um determinado gênero pode tomar frente à norma. Assim, Butler considera como real e factível a possibilidade de desfazer (undo) ALTERIDADES 77 um gênero. É o caso de indivíduos homossexuais, transexuais, intersexuais ou, simplesmente, indivíduos que queiram viver o seu gênero de uma maneira diferente da·regra. Seria, por exemplo, como se a personagem Patrícia tentasse manter até o fim o seu objetivo de vida independente com um marido de fachada. Butler analisa, então, as conseqüências de se desfazer um gênero. Para ela, essa experiência pode ser positiva ou negativa, dependendo da pessoa. Para uns, a concepção normativa de gênero é tão prejudicial para a sua vida, que a tomam impossível dentro da norma; nesse caso, o indivíduo abdica do sentimento reconfortante de ser reconhecido pela norma, buscando uma alternativa, uma nova maneira de se enxergar. Porém, em outros casos, a concepção normativa destruiu a tal ponto a sua personalidade, que os impossibilita a buscar uma vida alternativa. Nesse caso, desfazer o gênero não se revela uma boa saída, pois prevalece o desejo de reconhecimento pela norma. Desta forma, Patrícia, como tantas outras mulheres na vida real, preferem capitular e se enquadrar. É interessante que o próprio Luiz de Barros tenha dirigido um filme em 1977, Ele ... Ela... Quem?, sobre um intersexual, uma mulher (Elvira) que se descobre apaixonada por uma colega de pensionato e, ao fazer um exame médico por conta disso, constata-se que ela era, na verdade, um hermafrodita em que predominava a porção masculina. Longe de discutir a fundo a problemática, analisada por Judith Butler, de se desfazer um gênero ou a difícil situação dos hermafroditas, Luiz de Barros quer apenas divertir o público, como ele mesmo afirma. O seu "hermafrodita" é interpretado por um ator com características masculinas a não deixar dúvidas no público e tem direito a um final feliz. Não se quis explorar o impacto de uma mulher virar homem, apenas, explorar os inúmeros casos cômicos que essa situação proporciona. (... ) Será, sem dúvida, um filme agradável, isento de cenas sexuais, e o primeiro ator nunca será afeminado, e mesmo como moça, será uma garota bastante masculinizada" ( 1978) Assim, os gêneros são bem marcados e o hermafrodita Elvira/ Elviro é devidamente "corrigido" (situação bastante criticada por Butler no sentido de significar a imposição de um dado gênero a esse indivíduo). Como a Patrícia de Maridinho de luxo, Elvira é devidamente enquadrado como Elviro. CONCLUSÃO A representação da mulher em Maridinho de luxo segue a linha das comédias screwball, ou seja, com a valorização de características não convencionais da personagem feminina: Patrícia é rica e independente, quer mandar em seu marido e não acredita no amor romântico. Levando-se em conta as heroínas românticas do ESTUDOS DE CINEMA 78 star system, estar-se-ia tentado a dizer que foi um grande avanço na representação de mulheres, até mesmo bem à frente do seu tempo. Entretanto, o próprio significado da palavra screwball nos aponta que este trabalho que, na verdade, aquele comportamento seria de uma personagem maluca, excêntrica, portanto, não seria um exemplo válido para ser copiado, mas sim, para ser corrigido. Isso faz lembrar uma série de romances do século XIX, dos quais o diretor Luiz de Barros e o autor José Wanderley estão cronologicamente próximos, que tratavam de personagens femininas transgressoras dos costumes da época, geralmente através do adultério. São assim, por exemplo, Emma Bovary, de Gustave Flaubert e Effi Briest, de Theodor Fontane. Essa transgressão tinha um preço muito caro: o afastamento da personagem da sociedade dos moralmente adequados e, geralmente, a sua morte. Sendo Maridinho de luxo uma comédia, Patrícia é poupada do final trágico de Emma e Effi. A ela é dada a chance de readaptação à moral vigente, sendo premiada com um final feliz por ter optado em não tentar "desfazer" o seu gênero. ·REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros BARROS, Luiz de. Minhas memórias de cineasta. Rio de Janeiro: Artenova/ Embrafilme, 1978. BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998. BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004. BYERLY, Caro1yn & ROSS, Karen. Women & Media- A critica! introduction. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. HARVEY, James. 1934: Tuming Point. IN: Romantic comedy in Hollywoodfrom Lubitsch ToSturges. New York: AlfredA. Knopf, Inc., 1987. HIGONNET, Anne. Femmes, images et répresentations. IN: DUBY, Georges & PERROT, Michelle. H isto ire desfemmes en Occident. V. Le Xxe siecle. Paris: Plon, 2002. MOINE, Raphaelle. Lcs genres du cinéma .Paris: Nathan, 2003. MORIN, Edgar. Les stars. Paris: Seuil, 1972. MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. IN: XAVIER, Ismail (org. ). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 2003. RAMOS, Fernão & MIRANDA. Luiz Felipe (Org.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo, SENAC, 2000. ALTERIDADES 79 Filme Maridinho de luxo, 1938. Direção, roteiro, montagem e cenografia de Luiz de Barros. Produção de Adhemar Gonzaga, Cinédia. Peça Compra-se um marido, de José Wanderley. IN: Revista Teatro Brasileiro, no 21. V E RTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Nem pensar a gente quer, a gente quer é viverfocalização e dialogismo em Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado Luiz ANTONIO MousiNHO ((UFPB) As COMÉDIAS Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado, trazem um olhar a partir do universo adolescente. Vou observar aqui como se constroem discursivamente alguns aspectos desse olhar, detendo-me na questão da focalização, enquanto conceito que procura dar conta da regulação da informação narrativa, assinalando o lugar e o teor da percepção do personagem ou personagens que regulam e filtram os dados narrativos (GENETTE, s/d: 185). Em termos de ação narrativa, Houve uma vez dois verões constrói a trajetória do adolescente Chico, que tem sua iniciação sexual com uma garota, alguns anos mais velha a qual conhece por acaso numa praia de verão. Roza some, logo após o encontro e reaparece dizendo-se grávida, na verdade uma falsa gravidez, de um golpe recorrente que aplica na mesma praia de verão, onde o protagonista está veraneando. Contra todas as leis da vida, prática do mundo dos adultos- adultos ausentes do filme - e também do universo jovem ao qual pertence, Chico vai lutar pelo amor de Roza, que foge dele mesmo após assumir o golpe do aborto e devolver o dinheiro. No início do filme Chico reflete sobre a rotina de dificuldades financeiras de sua família, entediado na praia deserta do precário verão, com casa alugada fora da estação de férias por conta do preço. Em voz over posta em sistema com planos abertos da imensa praia, na fala dele, entram nas conjeturas de Chico um futuro de rotina familiar, contas, dívidas, coisas que vislumbra nos momentos em que se vê a praia deserta e interminável, o espaço desolado construído pela imagem e pela maneira como o olhar do garoto, sua expressão, sua fala e a montagem constroem aquela como sendo "a maior e talvez pior praia do mundo". Sem detalhe supérfluo, para falar com Barthes (1972: 44), a praia é o espaço de onde será principiada a travessia de Chico. 84 ESTUDOS DE CINEMA Em Houve uma vez dois verões vai ser mostrado o rito de passagem de Chico ao mtmdo adulto. Aproximando-se de Roza, mais velha, ele vai atravessar etapas sucessivas de um percurso iniciáti co que começa pelo rápido contato que resultou em sua iniciação sexual com ela no espaço da praia gaúcha, espaço narrativo que a partir dali vai se tomar significativo, heterogêneo em relação ao amorfo, ao sem-sentido construído antes em sua caracterização (ELIADE, 1996: 25). Acordando homem e só na praia, Chico segue os passos de Roza, que somem na grama. Ali começa a sua busca reiterada em reencontrá-la e em conquistá-la, mantê-la por perto- a desgarrada Roza, a golpista, a sem família, ao mesmo tempo a moça que luta sozinha e cuida do irmão pequeno. Essa travessia vai ser a da narrativa, a trajetória de Chico na narrativa. E pode-se lembrar o conceito de ação narrativa como envolvendo, "um ou mais sujeitos diversamente empenhados na ação, um tempo determinado em que ela se desenrola e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados (REIS E LOPES, 1988: 180). Além da amargura pragmática de Roza, um outro contraponto, ao romântico Chico, será o seu parceiro Juca, o amigo que encama o princípio de realidade a lhe abrir os olhos para o pólo forte do interesse masculino, com seus planos práticos. Isso mostrado nos diálogos, num coloquial frequentemente chulo que tomam vivíssimos os personagens, na concretude da linguagem diária, em seus lugares comuns reveladores. Ftmdado num à vontade que delineia uma visão interna do tmiverso jovem a partir do ponto de vista e da articulação da ação narrativa, Houve uma vez dois verões vai arquitetando a descoberta desse mundo através de vários elementos reiterados. Saraiva e Cannito já chamaram a atenção para a efetividade estética do elemento recorrente no filme, da ficha de flíper esquecida por Roza, guardada sentimentalmente por Chico e devolvida a Roza que, contrariando as aparências, também a guarda por motivos semelhantes. Jogos de flíper e vários outros, partidas que indicam ruína, tiques que apontam sorte, números num pedaço de cheque que, experimentados em combinações podem levar a reencontrar Roza são recorrentes no filme, tema e forma que estão na estrutura narrativa. No longa-metragem, os campos semânticos do acaso e da sorte são experimentados várias vezes na trajetória de Chico, configurando elementos isotópicos (RASTIER, 1975) . Vida, cálculo e jogo são postos em cena em vários elementos. Numa voz over, diz Chico: "se eu tivesse batido o recorde no tiro ao pato no dia em que eu conheci a Roza talvez eu não tivesse conhecido a Roza e a gente não teria um filho". (FURTADO: 50). Numa dada cena, Chico é visto em plano geral, no emaranhado labiríntico de uma quadra de minigolfe. Ele concentradamente mira uma tampinha de garrafa que chuta, acertando em cheio o alvo - quando a trilha inaugura um reggae surfistico e intercala expressão de alívio e leveza no rosto dele, sonhando a sorte. Noutra seqüência, o gelo em cubo sustentado pelo orifício num canudo se rompe e VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 85 cai no líquido, o refrigerante do copo, no exato instante no qual Roza reaparece, quebrando a tensão de uma espera pessimista, acenando a sorte. Na terceira seqüência da narrativa, Chico caminha com Juca na praia, na esperança de encontrar a Roza, recém-sumida pela primeira vez, quando o amigo canastrão tenta traduzir atrapalhadamente versos de Shakespeare, que estão escritos inglês em sua camisa e que afirmam a cegueira e a tolice dos amantes, elemento trabalhado em Houve uma vez e Meu tio matou um cara. Os versos ficam numa tradução comicamente truncada, seu sentido irrevelado, no entanto, antecipa dados da narrativa. Mais do que configurar uma prolepse (jlashforward) que arma a unidade narrativa, tal antecipação comenta o olhar talvez reticente dos outros personagens e do espectador ao ver Chico lutando contra todas as evidências pelo amor de Roza, ele tantas vezes ternamente, apaixonadamente tolo. Ela se afirma grávida três vezes, a primeira para extorquir, a segunda por afeto e esctúpulo, para afastá-lo, e a terceira falando a verdade. "Roza com z", dissera ela ao se apresentar a Chico. Chico se aproximaria dela pelo sem jeito dela com a máquina. Ao perder uma partida, no mesmo flíper, um ano depois, a máquina dá o ranking dos recordistas no jogo e lá está detendo, os recordes a mesma Roza com z que simulara não saber jogar, o que causou a aproximação dos dois, confirmando o golpe. Dois planos aproximados da bizarra figura de uma boneca de flíper descabelada, a segunda fazendo um esgar com a boca, efetivam em som e imagem o choque de Chico, pelo golpe confirmado. Nesse momento a instância narrativa se revela forte, através da angulação de câmera e na montagem, que destacam, ressaltam dados mesmo do espaço narrativo, retorcendo-o, revelando o sentimento interiorizado de Chico. Traduzem o olhar do mundo dos adultos e dos jovens práticos, dialogando tensamente com o romântico Chico, seu amor sem juízo, sua falta de cálculo. Recorrências de elementos e ressignificação do espaço vão integrar a arquitetura narrativa do filme de Furtado. Noutra cena, um sapatinho de bebê emerge em plano aproximado, no espaço caótico de uma loja de usados, no momento deprimente em que Chico vende seu amplificador para pagar o suposto aborto de Roza. Outro sapatinho surge na narrativa com sinal invertido, ressignificando tudo - o espaço, o tempo decorrido, o mundo -, na porta do quarto do bebê dos dois, prestes a nascer, no final feliz, assumido de maneira inequívoca. Ao final, Roza e Chico, após vários desencontros ou encontrões, casam, indenizados pela fábrica de anticoncepcionais, que vendera pílulas de farinha. Agora com Roza e com um filho no mundo, o mesmo espaço da praia, do início do filme vai ser ressignificado por um novo olhar, que se inaugura na relação da imagem com a voz over que vê o mesmo espaço antes monótono, amorfo, sem sentido, como repleto de sentidos, de acontecimentos ("impressionante como isto aqui melhorou; tem coisas pra fazer todo o tempo") , pensa Chico em voz over, completada sua árdua travessia. Como assinala Mircea Eliade, em 86 ESTUDOS DE CINEMA todos os rituais e simbolismos da 'passagem' exprimem uma concepção específica da existência humana: uma vez nascido, o homem ainda não está acabado; deve nascer uma segunda vez, espiritualmente; toma-se homem completo passando de um estado imperfeito, embrionário, a um estádo perfeito, de adulto. Numa palavra, pode-se dizer que a existência humana chega à plenitude ao longo de uma série de ritos de passagem, em suma, de iniciações sucessivas (...)A iniciação, como a morte, o êxtase místico, o conhecimento absoluto, a fé (no judaísmo-cristianismo), equivale a uma passagem de um modo de -ser a outro e opera uma verdadeira mutação ontológica (1996: 147-8). Tal mutação não se dá sem um percurso, realizado num processo necessário, freqüentemente penoso, mas inevitável. Eliade lembra que a simbologia da travessia é presentificada na figura da ponte, mais estreita que um fio de cabelo, mais cortante que a foice, ou coberta por pregos, lâminas, agulhas, etc, Ao final, junto com os créditos do filme, a música-tema comenta, matiza a trajetória de Chico que ignorou o bom-senso, resolveu apostar na alegria. Tudo é uma questão de manter, a niente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo - como assinala a música mantra de Walter Franco, regravada pela banda Patu Fu e incorporada à narrativa, sintetizando e comentando a travessia de Chico. Em Houve uma vez dois verões, o rito de passagem para o universo adulto, reflete a descoberta do mundo como em Houve uma vez um verão, ou Verão de 42, longa de Robert Mulligan. Porém, não vem no filme de Furtado o sentido nostálgico do adulto fazendo um balanço de sua vida. Trata-se do olhar contemporâneo aos acontecimentos, do olhar a partir do ponto de vista adolescente. O filme de Jorge Furtado se justifica por sua pertinêncill estética e por configurar um ruído positivo na tradição brasileira, ao representar questões ausentes no cinema brasileiro. Leandro Saraiva e Newton Canitto, em leitura bastante efetiva da obra de Furtado, chamam a atenção para essa novidade temática e lêem a travessia não pelo viés de filme saudável (jovens que tomam suco e não se drogam, etc), como atestou alguma crítica, mas apontando como na receita aparentemente ingênua do filme há "dinamite", com o filme sendo "uma ode ao amor fou de um filhinho de mamãe por uma putinha de praia! Fada-se o bom senso, o cinismo crítico e inteligente do amigo egoísta; ame loucamente, despreze as convenções" (SARAIVA E CANNITO, 2004: 40). Num projeto de produção bem maior, com atores conhecidos, Meu tio matou um cara é uma comédia, com toques de cinema noir, e inova tematicamente ao representar as relações familiares numa família brasileira negra e de classe média, harmônica e bem sucedida. O protagonista é o adolescente Duca. Seus monólogos interiores costuram a narrativa, em voz over ele é um contador de histórias que controla os dados da informação narrativa, ele que também detém o ponto de vista ao longo do filme. O personagem-narrador autodiegético (aquele que participa da história VERTENTES DO CINEMA BRAS-ILEIRO RECENTE 87 que conta como protagonista) 1 não escreve diário, não grava vídeo, não escreve carta. E a narrativa é toda atravessada pela forma como ele controla seus dados, pela maneira dele perceber. O contar histórias por Duca - para o espectador - e de Duca para os amigos e dos amigos de Duca para os outros amigos, constroem a visão de como boa parte da experiência humana é de ordem narrativa. E de como as pessoas precisam contar a história de suas vidas. Em Meu tio matou um cara, o convívio da turma de adolescentes e seu entorno na escola e as relações familiares vão ser mediadas o tempo todo, pelas histórias da vida diária que vão sendo contadas e vão fornecendo a matéria mesmo desse dia a dia, ligando mundo, lançando sentidos. Duca revela, mas também vela, no sentido de esconder seu mundo (o jogo que joga no computador, o amor por Isa) e no sentido de proteger os outros- o tio da decepção da namorada traiçoeira, Isa da escapada do namorado Kid. Duca vela, revela e também inventa, movido pelo ciúme, mas sem trair os amigos, numa narrativa onde amizade é matéria de salvação. Oscilando o olhar melancólico do apaixonado enrustido e o olhar de detetive perspicaz, Duca vai orientando a narrativa e os adultos atrapalhados, diante do que fazer com o evento do possível crime do tio do título. Nos créditos de abertura do filme o escaneamento, a ampliação e a reordenação de imagens de objetos numa possível cena de crime iconizam e caracterizam esse olhar de detetive e do mundo dos games. Olhar de quem pressente também a previsibilidade dos adultos e a tolice dos amantes, inclusive a dele próprio ("numa cidade desse tamanho fui me apaixonar justamente pela minha melhor amiga"). A narrativa em geral ratifica a previsibilidade e lugares-comuns, falseados, nos quais se vêem enredados os adultos e isso pode vir a ser percebido como um topos na obra de Jorge Furtado. Expressões fossilizadas da língua (para falar com Bakhtin) são colocadas em sua inadequação ao objeto ou no ridículo de suas feições. Em Meu tio matou um cara a propaganda do Robot Clear, da empresa do tio, é diretamente mostrada como tosca, assim como o filme publicitário da tênis Mike Double Air é caricato, no episódio Uólace e João Victor, do seriado Cidade dos homens, coroteirizado por Furtado. A enganação do detetive, contratado por Duca se ampara numa tautologia boçal, ao explicar que uma "investigação preliminar" se trata de "uma investigação prévia". O. panfleto da loja Siamarrô, na abertura do curta Ângelo anda sumido e a reiterada e esvaziada frase "ordens são ordens", em O dia em que Do rival encarou a guarda, também indicam para o sem sentido de certas rotinas da vida social, lugarescomuns enganadores. Esses automatismos da vida social, com a exploração de gestos 1. GENETTE, s/d, p. 188. 88 ESTUDOS DE CINEMA mecânicos, de percepções e atitudes mecanizadas estão no centro de algumas possibilidades de exploração do cômico, como assinala Henri Bergson (1980: 26-7). O "mecânico calcado no vivo" e "alguma rigidez qualquer aplicada à mobilidade da vida", do qual falam Bergson, parecem presentes nesses casos e também na cena de Meu tio no qual o guarda barra o acesso da menina Isa ao presídio por ela portar uma caneta do Pokémon. Ordéns são ordens. Meu tio matou um cara tem um momento forte de pausa narrativa, de digressão audiovisual, momento no qual uma narrativa investe no tempo do discurso, com suspensão do tempo da história, para posterior retomada (REIS, LOPES: 54). Isso ocorre quando Duca vai com Isa visitar o tio na cadeia. Ali é construída a violenta passagem da zona urbanizada à periferia da grande cidade brasileira. Se a cidade fosse minha, eu te amava mina/ eu te furava dizem alguns dos versos da trilha, temos, tensos, que supõem os contatos possíveis entre as várias cidades existentes numa só. Se a cidade fosse toda uma/ se a cidade fosse amada/ por todo mundo e cada. O filme termina mesmo não com esse beijo utópico da cidade auto-sitiada, mas com o beijo na boca do encontro da afetividade dos amigos de infância Duca e Isa. Daí sobem os créditos, entram os versos de Barato total, de Gilberto Gil; gravação dos anos 60 de Gal Costa; acrescida de participação da Nação Zumbi sobre o fonograma original. "Quando a gente tá contente a gente quer/ nem pensar a gente quer/a gente quer/ a gente quer/ a gente quer é viver". Essa homenagem às fundamentais experiências irrefletidas da vida adolescente, já gerou críticas aos dois filmes de Jorge Furtado, apontados como filmes de praia, ou pelo que representariam em termos de um suposto amaciamento das propostas das experiências, mais radicais dos filmes de curta-metragem gerados pela Casa de cinema de Porto Alegre. Como se os longas fossem tímidos na forma e maquiadores de tensões ou escamoteadores de problemas, como se a tematização de qualquer experiência humana fosse pouca coisa. Ou não エイッオク・ウセュ@ neles a trama social, pelo fato de não terem como tema central uma situação de esgarçamento social. Em ambos os casos, talvez valha uma investigação mais cuidadosa, para verificar se há essa distância entre as produções, que diferenças seriam essas. Isso quanto às escolhas e tratamento dos temas. Mas que não se parta do pressuposto que cinema narrativo é arte menor, nem que se tome por pecado tratar da classe média que faz e é público espectador dos filmes brasileiros. Houve uma vez e Meu tio terminam em finais felizes, dentro das características da comédia. Como assinala Northrop Frye, "o final cômico é em geral manobrado com uma reviravolta no enredo" (1957: 170). Mergulhando no mundo adolescente, os dois filmes trazem uma visão desde dentro desse universo, da alteridade proposta em relação ao mundo das certezas adultas, dos percursos feitos e suas por vezes frágeis estabilidades. Conciliando pontos de vista opostos ao fmal, bem dentro das características do cômico (SARAIVA; CANNITO, 2004: 95), os filmes se embebem na dor, na angústia e no prazer dos ritos de passagem fundamentais. Identidades e VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 89 alteridades emergem nessas experiências juvenis aparentemente tolas, pueris, mas constituintes, desenhadas por um olhar desde dentro. BIBLIOGRAFIA BERGSON, Henri. O riso. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1980. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano- a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,J996. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1983. FURTADO, Jorge. ROTEIRO Houve uma vez dois verões. Autoria: Jorge Furtado. Disponível em www.casacinepoa.com.br Acesso em 07 de março de 2008. GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega Universidade, s/d. RASTIER, François. Sistemática das isotopias. In: GREIMAS, A.J. Ensaios de semiótica poética. São Paulo: Cultura/Edusp, 1975.p.96-125. REIS, C. & LOPES, A. C. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SARAIVA, Leandro e CANNITO, Newton. Manual de roteiro- ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e tv. São Paulo: Conrad Editora, 2004. O chão de asfalto de Suely (ou a anti·Cabíria do sertão de Ainouz) ALESSANDRA BRANDÃO (UNISUL) GANHAR MUNDO, viajar, seguir destino, partir mundo afora. É essa idéia de fluxo, de deslocamento, de travessia e mobilidade que permeia O Céu de Suely, de Karirn Alnouz (2006). Assim, o filme soma-se a certa vertente contemporânea do cinema brasileiro, e mesmo latino-americano, com ênfase narrativa na viagem, explorada com maior ou menor intensidade na estrada, no entre-cidades e no trânsito. de personagens, rompendo fronteiras de identidades diversas - nacionalidade, gênero, cultura etc. Entre o discurso de (não) pertencimento e a desterritorialização de sujeitos itinerantes, que vai, por exemplo, de El viaje (Fernando Solanas, Argentina, 1992) a Amigomío (Alcides Chiesa e Janine Meerapfel, Argentina, 1994), passando por Y tu mamá también (Alfonso Cuarón, México, 2001) e Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, Brasil 2005), há um conjunto de filmes que deslocam questões de identidade e subjetividade na porosidade das fronteiras, gerando, com o fluxo da viagem, a via dupla do limiar, que sintetiza o espaço de (des )encontro do próprio e do alheio, intensificando o debate sobre os sujeitos que são produzidos na rede de imagens transculturais de certo cinema contemporâneo. Uma imagem constante no filme de A1nouz é a da perambulação da personagemtítulo, pelas ruas de lguatu, no interior do Ceará, para onde retoma já descrente do velho mito, que promete vida melhor em São Paulo, e de onde parte outra vez, agora descrente também do mito do amor, para dar continuidade a sua errância. Por um lado, o regresso a lguatu marca um reverso, uma outra face da tentativa nos grandes centros urbanos do eixo Rio-São Paulo e o vínculo que se tenta inutilmente retomar com a origem, como um ciclo que se pudesse fechar. No caso de Hermila!Suely, a trajetória é espiral, pois a volta a impulsiona para além do seu destino primeiro: ao mesmo tempo em que promove um reencontro, guarda o conflito da inadequação, 92 ESTUDOS DE CINEMA expondo suas transformações na experiência de 'outro' e sua inconformidade diante do entorno, que já não reconhece como seu. É preciso tornar a partir, continuar o fluxo como forma de se revalorizar e se reconfigurar, buscar um sentido na perspectiva de sujeito contemporâneo, esquizo e esquivo na experiência nômade, esparramada na movência que resiste à sobrevida. O filme é, pois, marcado pela idéia da partida como biopotência, como aquilo que reluta diante da conformidade, desterritorializando Suely no horizonte vasto e mutante do céu que o título sugere e que se lê aqui também em sua potência metafórica como chão, que coricede à personagem a mobilidade como enfrentamento e a desloca na estrada, compondo, no cinema, a rede de vidas e imagens que circulam erráticas na contemporaneidade. Na obstinação feminina empoderada de Hermila!Suely, 'abrese mão' de um novo relacionamento amoroso, renuncia-se à maternidade e capitalizase o próprio corpo pelo desejo insistente de partir do lugar nenhum, deixar para trás a aridez da vida em lguatu. Já não se trata de partir do sertão, como instância simbólica, mas recusar a imobilidade infértil que destoa da modernidade líquida, dinâmica e fluida da viagem, tomada aqui como experiência de biopotência, de luta pela potência da vida, e que coloca no indivíduo a responsabilidade de sua própria liberdade e mesmo utópica. Aqui, o sertão já não evoca a cumplicidade de uma olhar coletivo, historicamente alegórico, mas é fragmentado na trajetória individual. Do mesrho modo, resguardadas as marcas regionais, de sotaque, ambientação, e da música local que Hermila dança com sua amiga, Georgina, a personagem escorrega de afiliações locais, demonstrando desapego ao lugar e a sua existência periférica. Localizada no sertão do Ceará, a pequena lguatu dá-se como um lugar de passagem, um entre-lugar recortado por ruas e estradas que parecem antecipar o olhar para a possibilidade da partida e onde caminhoneiros que cortam o país fazem pouso. Contrário a uma visão de cidade que recusa a experiência das ruas para observá-la de cima, como um "Olho solar, que olha para baixo como um deus", segundo uma das formas de construir o espaço. da cidade que Michel de Certeau apresenta (1988: 92), o modo de apreensão que se tem de lguatu é dado ao rés-dochão, na prática de pedestre de Suely, cuja experiência do espaço, confundida com sua própria subjetividade, errante e confusa, dá-se na caminhada mesmo, conforme a outra maneira de praticar e construir o olhar da cidade que de Certeau oferece. Sem intentar reducionismos, pode-se dizer que o sertão do cinema brasileiro contemporâneo recusa a prática totalizante do olhar divino, que, nos grandes centros urbanos, tende a oferecer o panóptico das favelas, ou dos presídios, compactando-os num plano homogeneizador antes de estilhaçá-los no seu labirinto de 'monstros', em guerra contra Teseus uniformizados ( Carandiru, 2002 e Tropa de Elite, 2007). Por outro lado, as localidades do sertão contemporâneo têm se dado pelo olhar de baixo, na experiência andarilha, viajante, subjetivada na caminhada, no trânsito de personagens, que percorrem a cidade e a geografia descampada do entre-lugar do sertão, mapeando VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 93 subjetividades líquidas, como em Baile perfumado, Arido movie, Cinema, aspirinas e urubus, O caminho das nuvens, O céu de Suely. Nesse sentido, o filme de Alnouz não experimenta uma percepção totalizante, distanciada e despersonificada de lguatu, mas justamente um olhar que por meio deste trabalho convida à afetividade e é subjetivado na perambulação de Hermila. Como se fosse um corpo à deriva, ondulante, sem rumo certo, Hetmila vaga pelas ruas de lguatu na confusão da inadequação e da própria existência. Note-se um momento em que caminha distraidamente à noite e é abordada por um pretendente, João, em sua moto. Diz estar indo para casa e, quando aceita sua carona, o rapaz dá a volta e segue na direção oposta. Para onde mesmo ia Hermila? Assim, flutuante, desterrada e esquiva, Hermila parece 'nauseada' pelo choque de seu movimento de viagem contra a estática de lguatu. Não pertence (mais) à cidade e se recusa a fixarse na sua condição de sobrevida, sufocada pela rotina de lavar carros no posto de gasolina, vender rifas, drogar-se e sair para dançar com Georgina. lguatu não lhe oferece nenhuma outra experiência e essa clausura nauseante parece muito distante da promessa cambiante do fluxo, de partir, ser, sabe-se lá o quê. Perdida nos desvios da pequena cidade, parece, numa visão apocalíptica em que a vida é reduzida à força do capital, "desplugada do novo capitalismo em rede, que enaltece as conexões, a movência, a fluidez [mas também produz a] 'angústia do desligamento' (PELBART, "Biopolítica e biopotência no coração do império"), reduzindo a vida 'periférica' a uma mera sobrevida anódina, boiando sem órbita na esfera do capital midiático, espaço, nessa perspectiva reducionista, modulador de 'existência' para o sujeito contemporâneo". Nessa angústia projetada em seu contínuo movimento, no nomadismo mesmo, é que se constrói a subjetividade desterritorializada de Hermila, como o esquizo de que falam Deleuze e Guattari. Na analogia que estabelecem, "o nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. E que faz da própria desterritorialização um território subjetivo" (PELBART). Sempre no limite da estrada, em constante trânsito por lguatu, no limiar do asfalto que parece querer lançá-la sempre além da fronteira do local, a luta que Hermila trava é com o espaço, com seu aspecto periférico, inerte. Partir toma-se sua pequena revolução, contestação da vida infértil em lguatu, mas há uma negociação, uma estratégia que precisa ser ativada por Herrnila. Sua "valorização e autovalorização", para usar as expressões de Pelbart, são reinventadas na própria corporeidade. Para tecer sua trajetória existencial, nômade, como um esquizo no império atual, reinventa-se, ao rifar o corpo como dispositivo que mescla as esferas subjetiva e mercantil, por meio do capital, sem submeter-se à condição de refém de sua máquina voraz. Cabe ressaltar, pois, que a estratégia mercadológica empreendida por Hermila se dá pela compreensão de que a lógica do capital gera a movência, possibilita a partida de lguatu, mas não necessariamente a reduz a mera mercadoria do sistema 94 ESTUDOS DE CINEMA conexionista. É esse o ponto vital que a coloca como sujeito autônomo, "na contramão da serialização e das reterritorializações, propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual" (PELBART). Assim, a negociação do corpo com o intuito de financiar a viagem desestabiliza essa noção aprisionadora do capitalismo, oferecendo a possibilidade da via dupla, em que Hermila surge como devoradora dessa lógica ao utilizá-la como instrumento de seu desejo de partir. Em uma óticajiu-jitsu, apontada como estratégia de resistência em que se aplica a força do oponente contra a dominação, ou seja, apreende-se e captura-se a tática do dominante para reutilizá-la em beneficio próprio (SHOHAT e STAM, 1994: 328), Hermila não sujeita o seu corpo ao domínio do capital, preferindo reinventá-lo como estratégia diante do império. Desse modo, potencializa-se no fluxo assim mesmo desplugada, desconectada e errante, no desenho de uma "subjetividade antropofágica [... ] que desmistifica todo e qualquer valor a priori, que descentraliza e torna tudo igualmente bastardo[ ... ) e define-se por jamais aderir absolutamente a qualquer sistema de referência" (ROLNIK, 2005: 98-9). Aqui, desvencilha-se do determinismo que coloca o corpo nordestino, trapo ou mulambo da deformação social, como 'resistente' na ordem da sobrevivência naturalista. O corpo de Suely resiste, sim, na esfera do capital, mas (re)politizado na auto-valorização, em um "mapa de possíveis [em que] os possíveis agora reiventam e se redistribuem o tempo todo ao sabor de ondas de fluxos, que desmancham formas de realidade e geram outras, que acabam igualmente dispersando-se no oceano" (ROLNIK: 89). Na trajetória individual de Hermila, não há espaço para a conformidade do corpo feminino à antiga rede do mercado de prazeres, pregnante de vitimização e justificativas redentoras, como na Cabíria de Fellini. Consciente do valor capital de seu corpo em época tão afeita a um biopoder que o molda ao gozo dominante, Hermila o constrói como potência geradora de possibilidades. Recusa-se a ser puta, a redimir mazelas sociais na entrega resignada do corpo feminino como modulador atávico da sobrevivência. Anti-Cabíria em lguatu, Suely, a face capitalizada, mas não reduzida de Hermila, renuncia à ordem categorizadora de papéis redentores para reconfigurar seu corpo na lógica mercantil do biopoder e se reconstrói como um outro eu. É por conta do território subjetivo que aflora de sua 、・ウエイゥセッ。ャコ￧ ̄@ que Hermila decide o rumo de sua vida na mobilidade identitária do corpo rifado e da partida, da viagem que (re)nega uma possível estagnação. Decide agora que o destino é Porto Alegre, segundo ela "o lugar mais longe de lguatu", como se quisesse, nessa nova partida, estabelecer além da distância espacial, aquela da memória, da vida que não encontrou por lá. Note-se que seu novo itinerário a projeta para a região sul, para além de São Paulo, desestabilizando, assim, o centro que se coloca no fluxo migratório do retirante nordestino. Diferente do discurso sociologizante do estigma retirante ainda vigente (Cinema, aspirinas e urubus e O caminho das nuvens, por exemplo), o filme coloca a questão em um plano subjetivo: cabe a Hermila o impulso de partir, talvez de recuperar a 'vida' como potência a qualquer custo. Tendo compreendido VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 95 que a existência periférica em São Paulo dissolve as utopias, entende que ficar também sufoca a experiência de vida, reduzindo-a a mera sobrevivente. Com a migração em massa promovida pelos meios eletrônicos, como é lembrada por Arjun Appadurai, as margens se alargam. E é o capital midiático que faz escoar esse fluxo migratório, dissolvendo certas fronteiras de identificação na sedução do Império contemporâneo. Para Appadurai, é sob a forma de imagens na televisão, no cinema e no computador, na ubiqüidade dos meios eletrônicos na contemporaneidade que o trabalho de imaginação coletiva das comunidades se estende além das fronteiras locais, interferindo na subjetividade contemporânea. Nesse sentido, no filme de Alnouz o sertão já não se revela mítico como no cinema de outrora, mas uma pequena célula na rede de conexões e fluxo do mercado globalizado: Suely e o ex-namorado Mateus pretendiam montar um negócio de pirataria de DVDs na feira local. Na simultaneidade do moderno e do arcaico, a indústria cultural irrompe como capital na biopolítica que tanto agrega como exclui. Acreditar que a tecnologia em si basta e que isso toma lguatu um ponto qualquer na esfera do global pode ser um engodo, já que o âmbito da rnidia produz tanto formas de vida tomadas bens de consumo quanto diferenças e afiliações que são promovidas e legitimadas pelos meios. Ao contrário do látego retirante que marca ahistória do Nordeste brasileiro e em que tanto insiste o personagem Ranulpho, de Cinema, Aspirinas e Urubus, que, nos anos 40, vai para o Rio de Janeiro tentar a vida porque, "cansou desse buraco", o sertão contemporâneo de Hermila, vazio, estático, ainda estagnado no provincianismo, cerrado na impotência, não inspira mais uma adesão ao êxodo como promessa de transformação enraizada na metrópole, mas na movência rizomática,. desterrada e nômade. Aposta-se que seu desejo é de mudança, de liberdade que se traduz na mobilidade da estrada, do chão de asfalto, metaforizado pelo céu que compõe o título. Na errância subjetiva de Hermila/Suely, o céu traduz uma utopia "menor", pessoal e feminina; já não é mar que se busca (ou Marx que busca), é chão mesmo, é enfrentamento e a possibilidade de partir. Distante do sonho revolucionário de outrora, crivado com tinta marxista na estratégia estética da fome e no vigor alegórico do mar, totalizador de uma utopia, a penúria em O céu de Suely se dá no isolamento, na existência flutuante que urge encontrar o chão e seguir o fluxo para reencontrar-se como sujeito da/na lógica contemporânea. No filme, a utopia se compõe no devir, no constante tomar-se que a viagem oferece e nas fronteiras que vão se turvando pelo exercício nômade da desterritorialização. Entende-se a fronteira, aqui, "também [como] lugar do instável, de passagem e transição para o outro, o diferente" (FRANÇA, 2003: 21), portanto, como espaço de conflito entre eu/outro, espaço exterior/espaço interior e a multiplicidade de identidades que germinam dessas zonas de enfrentamento. É, também, espaço de passagem que tanto conecta como desloca, une e afasta, metaforizando ambigüidades e instabilidades geradoras de conflitos nos (des )encontros que promove. Dessa maneira, 96 ESTUDOS DE CINEMA a idéia de fronteira abraça o híbrido e o diferente, o estranho e o familiar, o 'eu' e o 'outro' no constante de vir de sujeitos cambiantes pela experiência do fluxo. No horizonte das fronteiras,· as identidades ganham mobilidade, desestabilizando conceitos nos conflitos da transição. Ao acompanhar os personagens no. cruzamento dessas zonas de confronto/encontro, os filmes de viagem exploram também as transformações que estes sujeitos itinerantes sofrem na passagem por novas paisagens, como Suely no trânsito entre São Paulo, lguatu e Porto Alegre. Assim, além da linha geográfica demarcatória de jogos de identidades e alteridades, à fronteira pode se estender, ainda, aos deslocamentos pessoais, determinando afiliações e tensões entre os personagens, moldando suas identidades ao longo do percurso. Nesse sentido, a fronteira alarga-se durante o trajeto, na medida em que as personagens permanecem diante do inusitado, do interregno que se transmuta em constante devir. Sob essa lógica, O céu de Sue!y acompanha a travessia de Hermila entre a desilusão amorosa e o investimento no sonho em São Paulo, e a consciência do valor do próprio corpo como horizonte de transformações. E é através da fronteira também do corpo feminino, entre a maternidade precoce e inepta, e a sexualidade latejante de seu corpo jovem, que o movimento itinerante de Hermila se sustenta na biopotência. Para Hermila, o corpo serve de instrumento para impulsionar sua viagem, agenciando a passagem por outra fronteira, que concede ao corpo mais que ganha pão, a esfera de autovalorização, a política de um sentido próprio que se configura na estratégia da comercialização de si mesma e passa a compor o quadro de forças vivas que Pelbart diz "serem elas mesmas um capital", recusando serem meras "reservas passivas". Hermila, então, parte-se no duplo de si mesma, ao metamorfosear-se em Suely, no momento em que decide rifar-se para financiar a nova viagem. O cabelo já antecipa esse duplo: metade loiro, metade castanho natural, indício de modismos adquiridos em São Paulo, mas sobretudo marca de bifurcação subjetiva na experiência de viagem. A viagem que transforma, que parte o sujeito nos espaços de identificação, entre o lá e o cá, o eu e o outro, potencializa a constante produção de identidades do sujeito contemporâneo, como propõe Stuart Hall, para quem a identidade é "uma questão de tornar-se tanto quanto de ser" e, portanto, está em contínuo processo de construção (2000: 706, grifo do autor). A viagem, pois, carrega em si a potência das transformações identitárias, expondo sujeitos cambiantes no fluxo das imagens que atingem o espectador como potência de afiliação desterritorializadora. · Quando Hermila/Suely chega a Iguatu trazendo a experiência da viagem para encontrar, violentamente, a inércia local, seu corpo em movimento choca-se com a estagnação da cidade. Como o cabelo bicolor, sua identidade se desdobra na transformação do próprio nome, tomando-se, temporária e estrategicamente, um corpomercadoria a quem chama Suely, em oposição à sua subjetividade anterior, romântica, entregue. O interstício entre Hermila e Suely é movido pela força do capital. O que de fato quer Suely? Ao rifar-se "como uma noite no paraíso", atenua a possibilidade de VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 97 prostituição, um eufemismo que lhe confere um certo pudor, por isso a identidade dupla: Hermila é mãe, neta, sobrinha, o pólo das identidades sociais valoradas na escala da família; Suely é sua face reinventada no capitalismo da biopolítica. Diz que não é puta, "pois puta trepa com todo mundo e eu só vou trepar com um cara". E emenda: "não quero ser puta. Não quero ser porra nenhuma". Assim, sem saber o que quer ser, mas sabendo que quer ir e por que meios pode voltar à estrada, Suely transita no entre-lugar que se toma Iguatu. As imagens que abrem o filme, memória de Hermila projetada através da janela do ônibus que a leva de volta a Iguatu, mostram o romance com Mateus, uma promessa de futuro perdida no passado granulado em super 8. O corte que interrompe essas imagens-memória, recusa um tom romântico ao filme, introduzindo a tela branca com luz estourada, que tanto pode sugerir o árido do sertão como a relação infértil que Hermila/Suely estabelecerá com Iguatu. O plano seguinte, close-up do rosto de Hermila em perfil, imagem-afecção que convida o olhar do espectador a sua subjetividade também vincula, por antecipação, as várias formas como esse rosto aparecerá em close-ups, sufocado nos enquadramentos, constituído em espaço filmico que se dá a ver Suely, como sujeito que emerge das novas modalidades de imaginar o fluxo contemporâneo, o deslocamento de identidades. O mesmo close-up que se vê no início do filme se reverte ao final, dando-se a outra face de Hermila. Dentro do ônibus que a levará a Porto Alegre, Suely, a anti-Cabíria do sertão de Ai"nouz, não olha para trás. Segue outra trajetória, não se sabe se mais ou menos feliz a se sequer será feliz, mas que a leva sempre adiante, como certo cinema que, assim mesmo, "menor" como a pequena utopia de Suely se faz crescer na singularidade, singeleza e, sobretudo, no afeto que o filme constrói. Ultrapassando bordas, fronteiras demarcatórias de identidades, assim mesmo, como Hermila, que devagar, aos poucos, recupera o sopro da peleja, deixando o filho para trás com a avó e a tia, para cruzar novos caminhos, tecer outras linhas imaginárias em sua perambulação desterrada, no chão de asfalto sempre em devir de Suely. BIBLIOGRAFIA CERTEAU, Michel de. The practice ofeveryday life. Los Angeles: University ofCalifomia Press, 1988. FRANÇA, Andréa. Terras efronteiras no cinema político contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003 HALL, Stuart. "Cultural Identity and Cinematic Representation". In: STAM, Robert e MILLER, Toby Miller. Film and Theory: An Introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 2000. 98 ESTUDOS DE CINEMA PELBART, Peter Pàl. "Biopolítica e biopotência no coração do império". Disponível em: http://squat.net/paradiso/article.php3?id_ article=5. Acesso em: 01 de março de 2008. ROLNIK, Suely. "SubjetividadeAntropofágica".ln: LINS, Daniel (org.). Razão nômade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Unthinking eurocentrism: multiculturalism and the media. London: Routledge, 1994. Do curta ao longa: relações estéticas no cinema contemporâneo de Pernambuco SAMUEL PAIVA (UFSCAR) CoMO PONTO DE partida para esta reflexão, poder-se-ia recorrer a uma pergunta antológica- "o que é o cinema?" (BAZIN, 1991) -,mas considerando um contexto específico e acrescentando: o que é o cinema pernambucano contemporâneo? Na verdade, pretendo responder a esta pergunta, estabelecendo um recorte bem preciso. Isso porque, sem dúvida, nas últimas décadas houve tal quantidade e diversidade na produção audiovisual pernambucana, sobretudo verificável na cidade do Recife, que seria impossível abranger de forma total o cinema que aqui está em questão. Eis, aliás, o primeiro ponto relacionado ao problema que eu proponho: de qual cinema pernambucano contemporâneo se está falando? Existindo esse cinema, o que o caracteriza? Tais questionamentos implicam um trajeto para a minha reflexão, um percurso orientado pela observação de alguns curtas e longas-metragens que são realizações ocorridas em um intervalo de tempo que vem desde a década de 1980 aos dias atuais. De algumas dessas produções eu mesmo participei, integrando a equipe técnica de curtas e também do longa-metragem Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997), marco inicial do "cinema. da retomada" (NAGIB, 2002) em Pernambuco. 1 Esta minha experiência, diga-se, orgânica, com o cinema do Recife, na verdade, começou bem antes da realização do Baile perfumado, e está intrinsecamente 1. Durante a graduação no curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco, trabalhei como assistente de produção do curta-metragem Morte no Capibaribe (Paulo Caldas, 1983) e como co-roteirista e continuísta do curta-metragem Henrique? (Cláudio Assis, 1986). Aproximadamente dez anos depois, atuei como vídeo-assiste do longa-metragem Baile perfUmado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997). 100 ESTUDOS DE CINEMA relacionada à formação de um grupo, cujos integrantes se encontraram pela primeira vez no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 1983, no curso de Comunicação Social. Ali se deu o surgimento do grupo Vanretrô - cujo nome foi concebido como uma contração de uma palavra composta: vanguarda-retrógrada. A idéia do Vanretrô era olhar para trás e simultaneamente para frente. Era assumir referências passadas e ao mesmo tempo propor uma estética vanguardista. O filme mais intenso do Vanretrô, em termos de um processo de discussão e debate, foi o Biu degradável, um curta-metragem, a história de um sujeito que se deixava consumir pelo consumo. Apesar das tantas discussões,· das dezenas de reuniões, das tentativas de captação de recursos, enfim, Biu degradável nunca saiu do roteiro. Nesse esforço autodidata, entretanto, ganhouse novo fôlego quando Cláudio Assis, então estudante de Economia na mesma UFPE, ganhou um edital da Embrafilme para realizar um curta sobre o padre Henrique, assessor de Dom Helder Câmera que fora assassinado pela repressão política em 1969. No Henrique? a maioria dos integrantes do Vanretrô logo passou a trabalhar em funções diversas, ainda que a coordenação das equipes de fotografia, som e montagem estivesse a cargo de profissionais de São Paulo, ligados à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Enquanto isso acontecia, vale lembrar que, no mesmo Centro de Artes e Comunicação da UFPE, um outro grupo de estudantes de Comunicação Social dedicavase eminentemente à música. Havia, por exemplo, uma banda punk que empolgava: Mundo Livre S/A. Havia também a produção de um programa radiofônico intitulado Décadas, dedicado à literatura, cinema e sobretudo às últimas referências do rock mundial. O Décadas era veiculado semanalmente pela Rádio Universitária, em um intervalo de tempo que compreendeu aproximadamente um ano e meio, entre 1984 e 1985. Por sua vez, na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), estudantes do curso de jornalismo também investiam em seu interesse pelo cinema, inclusive, observando os produtos do "ciclo do super-8" que, na década de 1970, tivera um importante papel como forma de resistência da classe média intelectualizada à ditadura no contexto da Universidade Católica que, militar (FIGUEIRÔA, 1990). Foi エセ「←ュ@ por volta de 1987, alguns estudantes criaram, a partir de uma proposta de Marcelo Gomes, o cineclube Jurando Vingar que, com as sessões na Fundação Joaquim Nabuco, passou a movimentar um circuito de cinéfilos no Recife, com atividades que aconteceram até o final daquela década. A homenagem ao filme de Ary Severo (Jurando vingar, 1925), um clássico do "ciclo do Recife", não deixava de constituir sutilmente uma espécie de resistência à própria idéia de um cinema que se constitui "com uma história em ciclos" (FIGUEIRÔA, 2000) .. Olhando retrospectivamente, hoje é curioso notar como os grupos, formados em um contexto universitário, passaram progressivamente a interagir de modos VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE IOI diversos. Os grupos ampliaram-se e os contatos diversificaram-se, com a inserção de novos atores sociais na cena da cidade. Considerando tal contexto, acho particularmente sintomáticas algumas reiterações temáticas e formais que podem ser observadas na decolagem de vários projetos culturais. É o caso de uma certa sintonia de propostas verificável, por exemplo, no ideal do Vanretrô, com seu interesse em se constituir como uma vanguarda-retrógrada, e o próprio Manguebeat, movimento cuja imagemícone- a "parabólica enfiada na lama"- também aponta para algo com uma dimensão de modernidáde ou pós-modernidade (a parabólica, antena para o mundo), e ao mesmo tempo para um dado primitivo, ancestral (o mangue e os caranguejos). As reiterações de interesses, sintonias, identificáveis nesses grupos que surgiram no contexto do Centro de Artes da UFPE e no curso de jornalismo da Unicap, sofreram transformações, dispersões, desvios, etc., mas continuaram agindo, envolvendo e fazendo interagir novos e diversos grupos existentes na cidade, fortalecendo uma cena que, tendo contado com as leis de incentivo e com a tecnologia digital que passou a revolucionar o audiovisual brasileiro a partir dos anos 1990, tem hoje um papel relevante no campo do cinema neste país. Mas, mesmo considerando a complexa "cartografia do novo território do cinema brasileiro" (SILVA, 2003: 217-24), no caso específico da história contemporânea da produção audiovisual em Pernambuco, como afirmei, um ponto de inflexão incontornável diz respeito à realização do longa-metragem Baile perfumado, projeto do qual participaram vários integrantes dos grupos dos anos 1980, como o pessoal do Centro de Artes da UFPE e do jornalismo da Universidade Católica. Este rápido quadro histórico, aqui desenhado de maneira esquemática, serve na verdade para que eu possa, ao menos em parte, tentar responder às perguntas lançadas no início desta argumentação: de qual cinema pernambucano se está falando e o que caracteriza esse cinema? As respostas estão, a meu ver, fortemente relacionadas à idéia de grupos que, atuando de maneira colaborativa, conseguem tanto superar os obstáculos de produção, quanto constituir seus projetos estéticos com traços recorrentes. Em termos de produção, a Parabólica Brasil e a REC Produtores têm um papel histórico. A Parabólica surgiu em 1993, em O linda, como iniciativa de Adelina Pontual, Cláudio Assis e Marcelo Gomes. Por sua vez, a REC iniciou suas atividades no Recife em 1998. Ambas permanecem em atividade até hoje, tendo desenvolvido um knowhow que, dos curtas aos longas, foi envolvendo cada vez mais profissionais formados na própria prática do trabalho com filmes e vídeos. Em termos de projeto estético, não há propriamente um planejamento que busca um fim determinado de um interesse coletivo. Tanto que as tentativas de classificação dessa produção segundo um rótulo - cinema "manguebeat" ou "árido movie", por exemplo-, foram deixadas de lado pelos próprios realizadores. Ainda assim, é perfeitamente verificável nos filmes uma reiteração de conceitos, tanto sob o 102 ESTUDOS DE CINEMA ponto de vista temático quanto formal, encontrados em um considerável conjunto de curtas-metragens e nos longas que desde Baile perfumado vêm compondo uma filmografia que inclui outros títulos, como O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas, Marcelo Luna, 2000), Amarelo manga (Cláudio Assis, 2002); Arido movie (Lírio Ferreira, 2005); Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005); Baixio das bestas (Cláudio Assis, 2007) e Deserto feliz (Paulo Caldas, 2007). Antes, porém, de refletir sobre essas reiterações temáticas e formais verificadas entre curtas e longas-metragens -, eu gostaria de fazer algumas considerações a propósito desse caráter de grupo que está aqui em questão como um fator fundamental do cinema pernambucano contemporâneo. Trata-se de uma rápida digressão sobre a questão do grupo, apoiada em um texto do professor Antônio Candido, no qual ele justamente discute a importância do grupo como fundamento para a criação de uma comunidade. Refiro-me ao ensaio "A literatura na evolução de uma comunidade", que constitui um capítulo do livro Literatura e sociedade (CANDIDO, 2006: 147-75). Nesse ensaio, Antonio Candido defende que uma obra literária pode ser única, ao brotar, como diz, de "um esforço de pensamento, um assomo de intuição". Entretanto, a literatura é coletiva, é o resultado de "afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento". Segundo Antonio Candido: ( ... ) não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre tenham consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma herança), que signifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo. (2006: 147). Seguindo esse caminho, o autor descobre o que lhe interessa descobrir nesse ensaio, ou seja, a existência de uma literatura paulista que ele admite existir, mas somente depois de alguns eventos históricos, como a Independência do Brasil ( 1822), e principalmente o surgimento da Faculdade de Direito de São Paulo (que surgiu em 1827). Como ele afirma, antes disso existira tão somente manifestações literárias, mas não propriamente uma literatura, porque até então não havia agrupamentos interagindo entre si e com a sociedade. 2 2. São cinco grupos. Primeiro: "um grupo virtual", em que se destaca em São Paulo, na segunda metade do séc. XVIII, as figuras de Pedro Taques de Almeida Paes Leme (Nobiliarquia) e frei Gaspar da Madre de Deus (Memórias para a história da capitania de São Vicente) em contato (daí a idéia de virtual) com Claudio Manuel da Costa (Vila Rica) e outros integrantes da Academia VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 103 Ora, por mais que seja possível a diferenciação entre literatura e cinema, neste ponto não seria um absurdo eu traçar aqui uma analogia entre a Faculdade de Direito, seu papel na criação de uma literatura paulista na primeira metade do século XIX, e as escolas de Comunicação do Recife e a sua relevância para a formação do cinema pernambucano nas últimas décadas do século XX. Há de fato inúmeras homologias, por mais distantes que os dois momentos estejam, pois esses ambientes universitários funcionaram como pontos de encontro para, digam-se, manifestações do espírito de grupo que levaram a criação de atitudes e idéias a expressões originais. Esses ambientes conduziram formas de sociabilidade artística e intelectual na relação com a cidade, considerando os diversos tipos de associação entre os estudantes e suas relações com a sociedade com estímulos recíprocos. Nesse sentido, e uma vez confirmada a existência de um cinema pernambucano organizado em grupos que interagem entre si e com a localidade, é possível retomar a segunda pergunta do meu percurso, ou seja: o que caracteriza esse cinema · pernambucano contemporâneo? A resposta para tal pergunta obviamente está relacionada à observação de vários curtas-metragens e longas-metragens pernambucanos produzidos desde os anos 1980, o que permite a constatação de pelo menos três figuras recorrentes: a morte, o estrangeiro e o próprio cinema. A morte está presente em vários curtas-metragens. Há suicídio e assassinato em Morte no Capibaribe (Paulo Caldas, 1983); há o assassinato do padre Henrique no primeiro filme de Cláudio Assis (Henrique?, 1987); há o atropelamento que finaliza a vida e as reflexões do poeta Carlos Pena Filho em Soneto do desmantelo blue (Cláudio Assis, 1993); há uma morte passional em O crime da imagem (Lírio Ferreira, 1994); há uma aposta com a morte em Cachaça (Adelina Pontual, 1995); há a descoberta da literatura e da morte em Clandestina felicidade (Marcelo Gomes e Beto Normal, 1998); há a morte encomendada em O pedido (Adelina Pontual; 1999); há a morte por todos os lados em Texas Hotel (Cláudio Assis, 1999). Aqui não há espaço para uma consideração pormenorizada sobre a figura da morte em cada um desses filmes separadamente. Porém, considerados em seu conjunto, é possível afirmar que a morte assume nesses curtas-metragens uma inflexão de ritual que encontra na própria cultura pernambucana, referências bem relevantes como, por exemplo, o poema "Morte e vida severina: auto de Natal pernambucano", de João Brasílica dos Renascidos. Segundo: "um grupo real" (por volta de 1830) às voltas com a criação da Faculdade de Direito (1827) e a Sociedade Fi1omática (fundada em 1833). Terceiro: "o grupo se justapõe à comunidade", os acadêmicos se sobrepõem à comunidade, com sua expressão de uma intelectualidade própria (segunda metade do século XIX). Quarto: "a comunidade absorve o grupo", entre 1890 e 191 O. Quinto: "o grupo se desprende da comunidade", sobre o Movimento Modernista (CANDIDO, 2006, p. 147-175). 104 ESTUDOS DE CINEMA Cabral de Melo Neto (1994: 169-202), poeta que, convém lembrar, é citado no longametragem Arido movie, quando alguns versos do poema "Sol de dois canos" vêm à tona na voz de Jonas, o protagonista, no momento em que ele chega à cidade do Recife. 3 Mas, no campo das referências propriamente cinematográficas, urna hipótese provável é que essa figura da morte esteja vinculada a certas concepções do Cinema Novo, por exemplo, a partir da "temática do definhamento", discutida por Jean-Claude Bernardet a propósito de um filme como A falecida (Leon Hirszman, 1965), ou a partir da questão das contradições da classe média, apontadas pelo mesmo autor em Brasil em tempo de cinema (1967) ao analisar o personagem Antônio das Mortes (Deus e o Diabo na terra do sol, Glauber Rocha, 1964). Nesse sentido, acho particularmente emblemático um dos planos de abertura do longa-metragem Baile perfumado, um longo plano-seqüência no qual observamos a morte do Padre Cícero, personagem interpretada por Jofre Soares (não por acaso um ator-ícone do Cinema Novo, que também atua no curta-metragem Maracatu, maracatus, de Marcelo Gomes, 1995). Esse plano do Baile traz urna evidente referência ao Cinema Novo, não só por ser um plano-sequência, ou pela presença de Jofre Soares, mas também pelo tema da superação da religiosidade como ponto de partida para a ação revolucionária, em um contexto nordestino, como ocorre com Manuel e Rosa, personagens de Deus e o diabo na terra do sol, ao superarem a "fase" do beato Sebastião (XAVIER, 2007: 85-143). Ao mesmo tempo, parece plausível interpretar esse plano como a superação do próprio Cinema Novo. Afinal, a cena se constitui como a morte do pai simbólico de Benjamin Abraão, protagonista do Baile perfumado, personagem que desse momento em diante sente-se liberado para seguir sua trajetória de cineasta, disposto a enfrentar todas as dificuldades para filmar Lampião. Certamente também é significativo o fato de que, daí por diante, todo o discurso do filme empreenda um esforço no sentido de subverter os signos consagrados pelo Cinema Novo, por exemplo, ao trabalhar a imagem de um sertão farto, verde, moderno, cheio de água. A propósito da água, há aspectos importantes a considerar no campo das questões que aqui estão em pauta. É provável que no âmbito específico da produção pernambucana, a dimensão barroca de afirmação da vida pela negociação com a morte adquira marcas próprias justamente em razão de sua proximidade com o mar. É o mar que se associa com elementos característicos do Recife, por exemplo, como o porto da cidade, os rios e as pontes. Além disso, é o mar que freqüentemente 2. "O sol em Pernambuco leva dois sóis/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o primeiro dos dois, o fuzil de fogo/ incendeia a terra; tiro de inimigo./ O sol em Pernambuco leva dois sóis,/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o segundo dos dois, o fuzil de luz,/revela real a terra: tiro de inimigo" (apud JAFFE, 2006: E!). VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE lOS constitui um caminho para a aproximação da figura do estrangeiro. No curta-metragem That a lero-lero (Lírio Ferreira e Amin Stepple, 1995), por exemplo, Orson Welles pára em uma ponte do Recife, em uma das cenas mais eloqüentes do filme, e sai do carro para observar, lá bem longe, uma jangada que avança pelo mar. No curtametragem Clandestina felicidade (Marcelo Gomes e Beto Normal, 1998), a família de migrantes de Clarice Lispector tem com o mar relações de alegria (como os dias de piquenique na praia) e tristeza (como revela a cena do porto, confirmação de uma perda afetiva e da condição de imigrante aip.da sem destino certo). Por sua vez, de filme a filme, a figura do estrangeiro assume diferentes conotações: o rock em oposição ao maracatu em Maracatu, maracatus (Marcelo Gomes, 1995); o cinema americano interferindo na produção de cinema local em Simião Martiniano, o camelô do cinema (Hilton Lacerda e Clara Angélia, 1998). Assim como nesses curtas, também nos longas-metragens a questão do estrangeiro é central. E pode estar relacionada à morte. Mais uma vez o plano-sequência da abertura do Baile perfumado pode ser recuperado como exemplo, pois, como afirmei, a morte do Padre Cícero é o ponto de partida para a trajetória de Benjamin Abraão, o libanês que é protagonista da história. Mas há também Johann, o alemão de Cinema, aspirinas e urubus, que foge da morte implicada na Segunda Guerra Mundial. Algo equivalente também é possível perceber a respeito do Arido movie, se considerar que o protagonista Jonas toma-se, dialeticamente, um estrangeiro no confronto com a sua própria origem, para a qual ele retoma devido à morte do pai. Mais recentemente, Deserto feliz (Paulo Caldas, 2007) repõe a questão do estrangeiro, estabelecendo a conexão entre o sertão e o mar. Com a figura do estrangeiro, ao que tudo indica se está diante de um aspecto de afirmação, de uma identidade constituída por um tipo de alteridade na qual o diverso é fator crucial para o reconhecimento de si. Não é o caso aqui de devorar simbolicamente o estrangeiro, como propõe a antropofagia de Oswald de Andrade, mas de conviver com ele, sem deixar de encará-lo com uma disposição permanente para algum embate, o que se observa, aliás, tanto no cinema quanto na música, inclusive, na grafia de suas marcas consagradas, por exemplo, "árido movi e" e "manguebeat". Além disso, nesses filmes pernambucanos, o estrangeiro está fortemente associado à cultura audiovisual e a certa idéia de modernidade que vem de fora para interagir com o local. Benjamin Abraão é cinegrafista. Johann é projecionista. Jonas é apresentador de televisão. Um dado relacionado às opções formais, e que envolve todos esses filmes em uma dimensão transnacional, diz respeito ao seu impulso para a incorporação do gênero, em especial, o road movie. Chega-se assim a outro ponto relevante desse percurso: o cinema. Vários curtas e longas-metragens realizados pelos autores do grupo aqui considerado têm o cinema como um aspecto central do seu discurso cinematográfico. É possível citar como exemplo de curta-metragem que trabalha na chave da metalinguagem: O bandido da sétima luz (Paulo Caldas, 1986); s ESTUDOS DE CINEMA 106 That's a lero-lero (Lírio Ferreira eAmin Stepple, l995);Maracatu maracatus (Marcelo Gomes, 1995); Simião Martiniano, o camelô do cinema (Hilton Lacerda e Clara Angélia, 1998); O pedido (Adelina Pontual, 1999) e Texas Hotel (Cláudio Assis, 1999). Com os longas-metragens, ocorre algo equivalente. Há pouco eu citei os estrangeiros Benjamin Abraão, Johann e Jonas. Mas há muitos outros personagens relacionados ao cinema: Ranulpho, em Cinema, aspirinas e urubus; Soledad, a videomaker interpretada por Giulia Gam no Arido movie; os bad boys que freqüentam o cinema abandonado no Baixio das bestas; todos levam o espectador a pensar em evoluções em torno de temas e formas de cinema. Percebida no conjunto, a representação do cinema nesses filmes parece assumir um caráter de resistência, associando-se à iminência da morte e à convivência com o estrangeiro. Concluindo, parece legítimo afirmar que a pesquisa sobre as estéticas do cinema pernambucano contemporâneo passam necessariamente por certa noção de grupo, no sentido de urna sociabilidade artística e intelectual de indivíduos que interagem intensamente entre si e com a cidade para viabilizar sua produção. No caso específico da geração que surgiu nos anos 1980, o resultado dessa relação de indivíduos e grupos com o lugar expressa, nos textos filmicos, a reiteração de três figuras que interferem urnas com as outras: a morte, o estrangeiro e o cinema. Estes dados certamente significam premissas consideráveis para a compreensão da história do cinema pernambucano na transição entre os séculos XX e XXI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BERNARDET, Jean-C1aude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. RiO de Janeiro: Revista Civilização Brasileira, 1967. CANDIDO, Antonio. "A literatura na evolução de uma comtmidade", in Literatura e sociedade. 9• ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, pp. 147-75. FIGUEIRÔA, Alexandre. O cinema super 8 em Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural. Dissertação de mestrado, ECA-USP, 1990. - - - - - · Cinema pernambucano: uma história em ciclos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000. JAFFE, Noemi. "Jonas, homem de um tempo". Folha de S.Paulo, 14abr2006, p. El. NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002. NETO,.João Cabral de Melo. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S. A., 1994. VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 107 SILVA, João Guilherme Barone Reis e. "Cartografia do novo território do cinema brasileiro", in CATANI, Afrânio Mendes et al (orgs.). Estudos Socine de cinema: ano IV. São Paulo: Ed. Panorama, 2003, pp. 217-24. XAVIER, Ismail. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paul9: Cosac Naify, 2007. O português redescoberto nas telas FERNANDO MORAIS DA COSTA (UNESA) JEAN-CLAUDE BERNARDEt afirmara, em 1978, que os documentários da década de 60 feitos com equipamento leve, o que os permitiu ir às ruas, bem como gravar som direto, fora dos estúdios e partir para regiões remotas do país, trouxeram "a afirmação da língua portuguesa pelo som direto" (BERNARDET, 1978: 11). Através de depoimentos dos imigrantes nordestinos em São Paulo, caso do Viramundo de Geraldo Sarno, dos habitantes dos sertões da Paraíba, da Bahia, de Pernambuco (Maioria absoluta, de Leon Hirzsman; Rastejador, s. m. de Sergio Muniz, produzido dentro do contexto da Caravana Farkas), dos trabalhadores que construíram a capital Brasília (Fala Brasília, de Nelson Pereira dos Santos), da população indígena (Iracema, de Jorge Bodanski e Orlando Senna, exemplo mais complexo e tardio), o português falado na tela ganhara dimensão muito maior do que os sotaques e os modos de falar das metrópoles do Brasil. Naquele momento, começava-se a colocar na tela os diversos modos de falar português espalhados pelo país. Estava sendo ampliada a questão, subjacente à história do cinema brasileiro, sobre a forma que deveria ter a língua portuguesa falada nas telas de cinema. Mais importante, estava sendo posto em xeque o dogma de uma impostação teatral imperativa, de um sotaque presumivelmente neutro, sob os quais se impunha um padrão elaborado, culto, urbano, que constituiu por muito tempo o modo de falar "desejável" para o cinema brasileiro. Bernardet indica pontos de um mapeamento dessa construção. Houve durante décadas a fio uma crítica ao cinema feito no Brasil, que dentro de uma reclamação maior, de que a realidade brasileira e os rostos brasileiros não davam bom material para cinema, afirmava que também a língua portuguesa não era cinematográfica. (1978: 19) Destrinchando-se esse argumento, chegar-se-ia à conclusão de que menos cinematográfico que o português como um todo deveria ser o português falado coloquialmente no Brasil. Assim, não é difícil 110 ESTUDOS DE CINEMA encontrar na história do cinema sonoro brasileiro, especialmente entre as décadas de 1930 e 1940, ecos de uma impostação e de um modo de falar que remetem à língua como é falada em Portugal, o que é explicado, em parte, pela presença constante de atores e atrizes portuguesas no teatro brasileiro, e, por conseguinte, no cinema. Bemardet comenta ainda que partiu das comédias populares produzidas no Rio de Janeiro, um passo no sentido de tomar mais coloquial o português falado nas telas. O mesmo movimento de busca por uma língua no cinema mais próxima do que se falava nas ruas, além do exemplo das chanchadas, citado por Bemardet, é encontrado por Alex Viany não nos documentários, mas na ficção do início dos anos 60. Para Viany, filmes como O pagador de promessas e Os cafajestes são importantes também por colocarem nas telas, diálogos coloquiais, ajudando a quebrar o mito da incapacidade cinematográfica da língua. (1999: 30) Para Ismail Xavier, outro passo na direção de um português cotidiano, pode ser encontrado na leva de adaptações de textos de Nelson Rodrigues para o cinema na década de 1960; como Boca de ouro, de 1962; Bonitinha mas ordinária, de 1963, Afalecida, de 1965. (2003: 175) Este trabalho demonstra que na produção recente do cinema brasileiro, são vários os filmes que trazem a diversidade da língua mais uma vez à baila. Em filmes como Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2001); 2000 nordestes (Vicente Amorim e David França Mendes, 2000); Desmundo (Alain Fresnot, 2001); Língua, vidas em português (Victor Lopes, 2003); Bocage, o triunfo do amor (Djalma Limongi Batista, 1996); Amélia (Ana Carolina, 2000); Fala tu (Guilherme Coelho, 2003), na produção recente do documentarista Eduardo Coutinho, com destaque para Babilônia 2000 e O fim e o princípio (2005), bem como em Estorvo (1997) e O veneno da madrugada (2006), do moçambicano Ruy Guerra, o uso cotidiano da língua toma-se questão relevante, ao possuir importâncias distintas, tratamentos particulares, mas sempre centrais para as respectivas tramas. Língua, vidas em português e Bocage, o triunfo do amor trazem para o cinema brasileiro, inclusive, as proximidades e distâncias entre a língua falada no Brasil, em Portugal, na África de língua portuguesa, em Goa, em Macau. A diretora, Eliane Caffé, destaca em entrevista para Lucia Nagib, a importância dei contato, em viagens pelo norte do estado de Minas Gerais e pelo sul da Bahia, com a fabulaÇão oral para a criação de Narradores de Javé: "Construímos o roteiro a partir de relatos ouvidos dos contadores de histórias. Viajei com um gravador, uma câmera e conforme encontrávamos contadores pelo caminho gravava as histórias, as encenações. Na oralidade eles representam, há toda uma dramatização no ato de narrar, por que esse é o oficio deles. Essas histórias formaram a base do roteiro". (2002: 134) VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 111 Luciana Corrêa de Araújo, no artigo Retrospecto em fragmentos, nota como o filme está impregnado de "uma outra sintaxe, fundado no comportamento dos personagens/intérpretes e na desenvoltura das narrativas orais, que percorrem uma via paralela à cultura letrada, sem se submeter completamente à conformação da escrita". O filme teria como proposta "capturar o que não se escreve: a sonoridade da fala" (CAETANO, 2004: 156) . Momentos nos quais fica clara a importância central da palavra falada são as seqüências que dão conta das várias versões da fundação do povoado, do papel duvidoso do pioneiro Indalécio; situações em que os não-atores falam diretamente para a câmera de vídeo da empresa que os desterrará; quando ocorre a dinâmica entre atores e não atores, a fala "profissional", para a câmera versus a fala sem os instrumentos de praxe, para encarar câmera e microfone. Em 2000 nordestes são colocados na tela os diferentes sotaques nordestinos, com a presumível boa intenção de tomar mais complexo o senso comum, tão presente no sul e no sudeste do Brasil, de que haveria um único sotaque idêntico para a toda a região. Garantiriam a representação de tal pluralidade, as entrevistas com pessoas vindas do estado do Ceará, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco, de diversas regiões da Bahia, vivendo no Rio de Janeiro e em São Paulo ou em suas próprias terras natais. Mariana Baltar, quando analisa o filme em sua dissertação de mestrado sobre a representação do nordestino no documentário contemporâneo, entende que ele falha em retratar o conjunto daquelas individualidades, suas diferenças. Baltar chama a atenção para o fato de, na maior parte das vezes, não serem dados nem mesmo nomes aos entrevistados, o que colaboraria para uma "universalidade do sentido", dentro do qual "cada conflito pessoal pode ser o conflito geral de todos os nordestinos emigrantes" (2003: 83). O filme não escapa ainda de levar à tela outro senso comum: o da falta de clareza, associada à fala nordestina, chegando a fazer graça com a questão. Há o imigrante em São Paulo, Edmário, que diz falar espanhol e inglês. Seu inglês terá espaço de destaque, câmera e microfone, caçoando do personagem. Por uma artimanha de montagem, Edmário "reagirá" em determinada passagem a um personagem de fala ininteligível, ao surgir na sua seqüência e dizer "ok. I understancf'. Há, usado também no sentido de parecer engraçado ao espectador, mesmo que involuntariamente, o habitante da cidade de Porto Seguro que repete as perguntas antes de dar as repostas. "Você é daqui de Porto Seguro?" pergunta o diretor. "Essa é uma pergunta que você faz, bem feita!" começa a responder. "Por que você saiu de Ilhéus?" segue o primeiro. "Essa é outra pergunta que você faz!". Como ressalva à dificuldade de compreensão de determinados trechos, diga-se que a . captação do som direto poderia buscar a clareza da voz de forma mais enfática. Não há sempre a preocupação de o microfone estar próximo de quem fala tanto quanto poderia. Muitas entrevistas ocorrem em lugares ruidosos, no meio da rua, dentro de ônibus. A falta de clareza não é apenas inerente à boca de quem fala, mas criada no seu contato com o aparato de gravação. 112 ESTUDOS DE CINEMA Em Amélia está colocada uma série de problemas lingüísticos, a partir do confronto das irmãs da falecida personagem-título com a diva Sarah Bemhardt, de passagem pelo Rio de Janeiro. Luciana Corrêa de Araújo, no artigo já citado, comenta a importância da dicção de Myriam Muniz para a obra de Ana Carolina, sua voz rascante, tão pouco cordial como representante do interior do país. O filme se baseia, no seu início, na leitura claudicante da carta deixada às irmãs por Amélia. A partir do contato delas com Sarah Bemhardt, surge o tema da incompreensão, o estrangeiro em contato com os matutos. A assistente da estrela, Vicentine, Betty Goffman, além do francês original, é fluente em espanhol, em italiano, mas não entende o português. Tentará comunicar-se em todas aquelas línguas. A comunicação mínima passará a ser ironizada, as irmãs mineiras começando a entender, uma outra palavra em francês. Estorvo, de Ruy Guerra (i 997), tem sido comentado por conta da cisão entre a voz do personagem quando narra e quando está em quadro. Tratam-se de duas vozes diferentes, a do cubano Jorge Perrugoria, que incorpora o personagem em quadro, e a do moçambicano Ruy Guerra, dono da voz over. Andréa França nota a estranheza criada pela situação do mesmo personagem apresentar, assim, dois sotaques distintos, um ao narrar, outro estando dentro do espaço da ação. (2003: 47) Essas vozes unidas às demais no percurso errático entre Rio de Janeiro, Havana, Lisboa, tomam, para França, a língua falada no filme uma terra de ninguém, um amálgama de sotaques que rompe fronteiras, impossível de ser resumido a um modo de falar homogêneo. Segundo ela, "o filme de Guerra mistura os sotaques natais (dos atores, do próprio diretor), transformando o terceiro mundo numa terra polifônica, cuja mistura de sotaques explicita a recusa obstinada a todas as forças de homogeneização" (idem: 48) . Sobre a relação das vozes com os demais sons, Estorvo demonstra, desde sua seqüência inicial, uma ação bem coordenada. A campainha que chama pelo personagem está colocada nas pausas deixadas, pela voz sussurrante de Guerra. Essa campainha e outros ruídos vão se tomando mais intensos, colaborando para a tensão que não se resolve enquanto ele não se decide por abrir a porta. Um terceiro elemento vem unirse a esse conjunto: a música, de Egberto Gismonti, também em diálogo com as vozes e com os ruídos. A primeira inserção da voz de Perrugoria, o segundo sotaque do mesmo personagem, só acontece aos dez minutos de filme, depois que já estávamos íntimos da voz de Guerra. Outras vozes de dificil compreensão: a do empregado que permaneceu no sítio, a da senhora cubana que se exaspera pelo filho acusado de assassinato. Na seqüência final, uma curiosa relação complementar entre voz e imagem. Voz over e cartelas com o texto escrito se alternam na construção das frases. "Ou é o túnel...", diz a voz, " ... ou morri", lê-se na cartela. Ruy Guerra mantém a noção de uma língua polimorfa, constituída por sotaques diversos, em O veneno da madrugada.. A diferença, que de certo modo radicaliza o procedimento, é que desta vez todos os modos de falar estão restritos a um mesmo lugar, um vilarejo. Há, na fala do pequeno grupo de seus habitantes, o português luso VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 113 falado pelo dono da birosca, o espanhol de Aristóteles, a voz lamentosa do alcaide, a fala penetrante da vidente que anuncia os momentos de quebras temporais. Sotaques, impostações, timbres variam. Guerra delega ainda grande importância para os sons fora de quadro, fundamentais para a construção da história que se repete sob pontos de vista ligeiramente diferentes: há a música de Nestor, oJJ.autista que será assassinado; os sons que anunciam a entrada dos personagens em quadro, como correntes que se arrastam, estampidos que a princípio não se justificam e que simulam o efeito geralmente delegado à música; os tiros quando o povoado é dizimado; a voz que anuncia a morte do alcaide. Consuelo Lins nota em Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, os livres usos que alguns personagens fazem da língua portuguesa, especificamente Cida e o autoexplicativo People. Lins comenta sobre a "possibilidade de criação em setores da sociedade bombardeados por uma multiplicidade de discursos". (2004: 128) Cida não tem pudor de inventar expressões, de comunicar-se de uma forma que está irreverentemente distante do vernáculo catalogado. People insere pitadas de inglês na conversa cotidiana, menos por domínio de tal língua do que por interesse afetivo pelas palavras estrangeiras: "sempre gostei da palavra people", explica. Cabe ressaltar que Cida e People representam parcelas extensas da população brasileira, seja no uso cotidiano da língua para além do que está no dicionário, seja na irreverência ao lidar com o inglês sem dominá-lo. Para Lins, o filme de Coutinho "captura a complexidade e a variedade de modulações no uso que fazem da língua os moradores do Morro da Babilônia". É o português sendo cotidianamente "reinventado", termo usado por ela. Arriscamo-nos a dizer que as formas diversas do oficial de lidar com o vocabulário e com a sintaxe viram tema ainda mais central para Coutinho em O fim e o princípio, de 2005. O realizador tomou pública em entrevistas à época do lançamento a tese advinda das filmagens no município de São João do Rio do Peixe, sertão da Paraíba. Ali, como em um sem número de pequenos lugares no interior do país, a falta de contato com a padronização da língua imposta décadas afora, pelos meios de comunicação de massa, que procuram um sotaque e uma sintaxe neutros, como se isso fosse possível, causou não um empobrecimento, mas, ao contrário, preservou uma riqueza na organização cotidiana das palavras que remonta a um período anterior a esse processo de padronização. Onde poderia se esperar uma dificuldade formal, descobre-se um esmero antigo rias construções verbais cotidianas. Voltando à representação da periferia das grandes cidades, pode-se dizer que Fala tu é, desde o título, calcado nos modos de falar dos entrevistados, especificamente daquele que tem maior destaque, Macarrão, o dono da expressão que empresta ao filme o nome. Em determinado momento, a equipe visita uma rádio comunitária que toca rap norte-americano. Os responsáveis pela rádio ressaltam a importância da mensagem afirmativa contida naquelas músicas estrangeiras. Perguntados se entendem as letras, dizem que não, mas que "dá para sentir a atitude afirmativa", que impõe 114 ESTUDOS DE CINEMA respeito. Argumentam que não sabem direito nem o português, que dirá o inglês. Passa ao largo dos entrevistados o fato de estarem em um filme que justamente não aceita sem questionar a marginalização lingüística dos que não estão inseridos no modo oficial de lidar com o idioma. Ao contrário, participam de um processo que legitima a língua falada fora das convenções padronizadas. A escolha do título resume tal posição. Em Desmundo, a questão de uma língua em formação é central. Ambientado em tomo de 1570, descreve o contato dos portugueses degredados, no que viria a ser o Brasil, com as mulheres também européias que são trazidas à terra para ter com eles, em lugar das nativas. A forja de uma nação e de um povo passa também pela criação de uma língua local, a partir das falas daqueles, de diferentes origens, que passam a coabitar o espaço. Para a língua a ser falada no filme, optou-se pela simulação de um português arcaico. Suas características são: a proximidade com o espanhol; a falta do gerúndio, marca lusa ("estar a ver. Estar a ouvir"); o uso também luso da segunda pessoa ("queres voar e não podes"); inversões formais ("uma besta, tu és!"), todas essas características não mais vigentes no português falado hoje no Brasil. Há ainda pitadas de francês, de italiano, do próprio espanhol, como na frase "de oit vem la criança?". São os oriundos de diversas regiões da Europa que trazem seus modos de falar para a terra brasileira. Dois personagens centrais são portugueses; Francisco de Albuquerque, personagem de Osmar Prado e a menina que virá a ser sua esposa, bribela (Simone Spoladore), que vem do norte de Portugal, da Covilhã. Somados aos sotaques europeus estão os idiomas, e seus usuários, indígenas e africanos. O escravo negro do português Ximenes Dias, (Caco Ciocler) fala uma língua incompreensível para todos. Ximenes fala línguas indígenas. Há diálogos entre ele e os índios, quando os falantes compreendem o que está sendo dito e os demais ouvintes não. Há diálogos reflexivos. Ximenes Dias relata a Albuquerque, o fato dos índios não quererem mais vasilhas. Reclamam do difícil diálogo com os locais, "que não conhecem a língua". Albuquerque diz: "mas conhecem a pólvora". Dias: "É a língua geral". Outra língua geral, poder-se-ia dizer, é o silêncio, polissêmico por natureza, mas muitas vezes claro ao passar a mensagem de quem escolhe responder calado. No decorrer do filme, Oribela recolhe-se em sua mudez, como defesa contra o péssimo diálogo e convívio com o marido obrigatório. Exemplo de comunicação sem palavras está na seqüência em que ela deve escolher uma das bugigangas trazidas por Ximenes, que Francisco quer lhe ofertar. A construção do romance velado e do ciúme do marido dá-se em silêncio, no jogo entre trocar olhares e se recusar a trocá-los. Francisco olhando, Ximenes recusa-se a olhar para Oribela. Ela fica, a olhar as tesouras em cima da mesa. Quando as escolhe, quase se tocam as mãos, suas e de Ximenes, mas a isto também se recusam. Neste jogo de desacontecimentos está acontecendo o romance. VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE 115 Filme que não pode deixar de ser citado sobre a experiência da língua reconfigurada nas telas é Língua- vidas em português. Aqui a questão ultrapassa as fronteiras nacionais e passa a ser o mundo da lusofonia que abrange Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor Leste, Macau, Goa. Eis o assunto tratado como tema central, a língua portuguesa, em impressionante polifonia, legado da expansão ultramarina cinco séculos antiga. Desfilam na tela o português falado em Goa, misturado com o sotaque hindu e com a influência inglesa; em Macau, inserido no modo de falar chinês; pelos angolanos em Lisboa, a língua com gingado, sincopada, rápida na boca de quem fala; pelos moçambicanos em Moçambique; pelo menino também moçambicano, mas que deseja ser rapper norte-americano, em ritmo e em métrica; nas rezas moçambicanas que misturam cantigas portuguesas e africanas; pelos dekaseguis no Japão; pelos vendedores nos ônibus do Rio de Janeiro, a ausência de pausas, a língua em moto continuo. Fala José Saramago o português matriz; Mia Couto, escritor moçambicano, cuja literatura é exemplo da volatilidade da língua lusa em contato com a vivência africana; Martinho da Vila, de Duas Barras, estado do Rio de Janeiro,sua música o ponto de contato entre as raízes africanas e as fazendas fluminenses, o jongo que viria a dar no samba; João Ubaldo Ribeiro, da ilha de ltaparica, Bahia, o tempo leve da língua, o jogo entre as palavras e as pausas. Cabe lembrar que Bocage, o triunfo do amor já abrangia os diferentes usos da língua nos países lusófonos. Trata-se de uma co-produção brasileira e portuguesa de 1996, lançado como um filme da recém-criada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Assim, acompanha-se as viagens do poeta Manuel Maria Barbosa Du Bocage pelas colônias lusas ao redor do mundo, e seu contato com os diversos sotaques. As filmagens no Ceará, em Pernambuco, na Amazônia, em Congonhas do Campo, nas cataratas de Foz do Iguaçu, em Portu&al, em Angola, em Goa, misturam os modos de falar lusitanos, diferentes dentro do perímetro português, sotaques brasileiros vários, o português falado na África, na Índia, uma língua indígena quando na floresta amazônica. Há ainda pequenos espaços para o francês, para o espanhol na passagem em que Bocage satiriza Dom Quixote. Há a voz over em latim, de dicção estranha. Há a curiosidade do falar do poeta ser presumidamente "neutro", para quem assiste ao filme no sudeste do Brasil, ou seja, não luso, mas familiar ao Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que pode ser considerado estranho e carregado de sotaque, para quem está mais próximo dos tantos outros modos de falar a língua. ESTUDOS DE CINEMA 116. BIBLIOGRAFIA BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das letras, 2003. BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. BALTAR, Mariana. Todos os nordestes - apagamentos e permanências do imaginário no documentário contemporâneo. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em Comunicação- Universidade Federal Fluminense, 2003. CAETANO, Daniel. (org.) Cinema brasileiro 1995-2005- Ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. ESCOREL, Eduardo. Adivinhadores de água. São Paulo: Cosac e Naify, 2004. FRANÇA, Andréa. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho- Televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. NAGIB, Lucia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002. VIANY, Alex. O processo do cinema novo, Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. XAVIER, lsmail. O olhare acena, São Paulo: Cosac e Naify, 2003. CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA O cinema novo segundo ffablemos de cine FABIÁN NúNEZ (UFF) 1 ESTE PRESENTE trabalho analisará como o Cinema Novo brasileiro é lido pela revista peruana Hablemos de cine (1965-1986), uma das principais publicações de cinema, que se dedicou ao debate do Nuevo Cine Latinoamericano (NCL). O cinema brasileiro ganha destaque, por ser interpretado como um dos fenômenos cinematográficos latino-americanos mais coerentes, mas não isento de contradições. Desse modo, a cinematografia latino-americana com maior espaço na publicação é a brasileira, com exceção, obviamente, do cinema peruano. Em seguida, em termos quantitativos, são os cinemas mexicano e cubano. Entretanto, por conta da baixa produção do cinema peruano até os anos 1970, não existe um grande número de artigos ou críticas a seu respeito, nas primeiras edições. Assim, seus redatores, bastante rígidos com o cinema realizado no Peru, buscam referências latino-americanas, tendo como primeiro alvo o cinema brasileiro. A revista propõe oferecer ao leitor informações de tal cinematografia, tanto por entrevistas como por artigos (alguns, traduzidos de revistas européias), que compõem dois grandes dossiês, além de outras notas e artigos isolados. Dessa forma, é possível reconhecer uma ampla simpatia pelos cineastas brasileiros, apesar de serem tecidas críticas a alguns de seus filmes, principalmente a partir do final dos anos 1960. Por outro lado, há todo um esforço para compreender os rumos do Cinema Novo, através de informações sobre as particularidades da cultura brasileira e do endurecimento do regime militar. Hablemos de cine surge em um período de boom do cineclubismo em Lima e se toma, depois de Buenos Aires e Montevidéu, a terceira cidade latino-americana com o maior número de cineclubes. Porém, a revista critica a ação dos cineclubes ao demonstrar o quanto é enganosa essa intensa atividade cineclubista. Em sua opinião, 1. Pesquisa realizada com o auxílio da Capes. 120 ESTUDOS DE CINEMA o público limenho não é cinéfilo, mas apenas curioso em se manter a par das novidades das cinematografias centrais, sem maiores preocupações culturais. Portanto, ao longo de sua existência, Hablemos de cine busca suprir as carências de informação sobre várias cinematografias (em especial, o NCL). Ressalta-se a duração da revista, que foi editada ao longo de vinte e um anos e de setenta e sete números publicados. Trata-se de uma notória exceção em relação às revistas de cinema na América Latina. Por outro lado, a sua periodicidade é bastante irregular, aspecto comum a essas publicações. Então, em 1965, Hablemos de cine foi uma publicação mimeografada e quinzenal, passando a ser mensal e impressa, no ano · seguinte (1966).Apartirdo n° 33, foi bimensal por quatro anos (1967-1971), contando, com edições duplas, i. e., referentes a quatro meses. No ano 1972, possui duas edições trimestrais. A partir do ano seguinte, passa a ser editado um único número por ano, com o agravante de que o no 69 é relativo aos anos 1977 e 1978. Desse modo, passa a ser publicada, geralmente, em período anuaJ.2 Frisa-se que, ao longo da sua existência (1965-1986), a revista continuou tendo praticamente o mesmo número de páginas (embora tenha ocorrido um gradual aumento de, no máximo, trinta páginas), apesar de a periodicidade ser cada vez mais espaçada. 3 Embora a diagramação tenha mudado, assim como o tamanho da revista e, em seus últimos números, a capa seja de foto colorida, a qualidade da impressão se mantém praticamente mesma. Pode-se identificar em Hablemos de cine, uma forte influência da crítica moderna francesa, sobretudo, dos Cahiers du cinéma. Portanto, em seus primeiros anos, reconhece-se uma declarada vertente "autorista", articulada a uma admiração pelo cinema clássico estadunidense. Entretanto, os redatores, em suas críticas e em artigos pontuais, sentem uma necessidade de "explicar" ao leitor que esse "americanismo" não é uma postura reacionária, mas, pelo contrário, se trata de um olhar isento de preconceitos e, por isso mesmo, de uma interpretação adequada e rigorosa de Hollywood. Em suma, a revista se espelha em suas congêneres, o que suscita uma apropriação da "política dos autores" e uma valorização de Hollywood, mas, por outro lado, certa necessidade de afirmar um pensamento esquerdista. 2. Não se teve acesso à coleção completa de Hablemos de cine. Ignora-se o seu primeiro ano (1965). Porém, no no 21 Ganeiro 1966), há um índice de artigos e críticas referentes ao ano anterior. A revista foi publicada até o n° 77 (março 1984). Após um período de desagregação, a equipe fundadora decide imprimir uma última edição, o que não chegou a ocorrer. Em setembro de 1986, a Hab/emos de cine é, oficialmente, declarada dissolvida. 3. Bedoya estabelece três fases. A primeira (no I ao 20; 1965) é marcada pela valorização do cinema clássico estadunidense. A segunda fase (no 21 ao 64; 1966-1972),já impressa, é caracterizada pela colaboração de redatores europeus e valoriza, além dos cineastas norte-americanos, o "cinema moderno". No início dos anos 1970, há uma aproximação com a semiologia. A última fase, iniciada a partir do no 65 ( 1973 ), possui análises mais extensas e uma equipe renovada, que abandona os jargões estruturalistas. CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 121 Entretanto, o "latino-americanismo" da revista não é apenas um contraponto à sua "hollywoodfilia" à francesa, mas, um forte reconhecimento de que as cinematografias do continente também estão à altura dos "cinemas novos" dos países centrais. Porém, até 1967, há pouca informação sobre o cinema latino-americano não por desinteresse, mas por desconhecimento, conforme sublinham os próprios redatores. É a partir de 1967, por ocasião do Festival de Vifia del Mar, no Chile, que a revista aumenta o seu espaço de divulgação ao cinema latino-americano, embora não abandone o "americanismo" e o "autorismo". E o primeiro alvo de interesse é, justamente, o Cinema Novo brasileiro. Ressalta-se que Hablemos de cine, apesar de sua admiração ao cinema clássico estadunidense, em seu início, também se esforça em refletir e divulgar os "cinemas novos". Portanto, é lícito afirmar que o interesse pelo Cinema Novo se enquadra nesse esforço, com a principal relevância de ser um movimento cinematográfico "nosso". Em suma, o esforço dos redatores é aproximá-lo aos demais "cinemas novos", em pé de igualdade, somado com a extrema importância de ser da América Latina. Houve dois grandes dossiês dedicados ao Cinema Novo, além de artigos, notas e entrevistas. 4 Frisa-se que o editor Isaac León Frias e o redator Federico de Cárdenas estabelecem laços pessoais com os seus realizadores, pois essas entrevistas são frutos de suas viagens ao Brasil. Assim, a principal fonte de informações sobre o Cinema Novo são os próprios cineastas. No entanto, essa intensa divulgação do movimento se concentra no período de 1967 a 1970. A partir dos anos 1970, devido à diminuição da periodicidade da revista e do aumento da produção, sobretudo de curta-metragem, favorecida pela legislação da época, o cinema peruano ocupa mais espaço, enquanto que o brasileiro, basicamente, desaparece de suas páginas. O primeiro dossiê é publicado nos n° 35 e 36, logo após a resenha do Festival de Vifia dei Mar, editada no número anterior. Portanto, trata-se da "virada" latinoamericanista da revista, i. e., quando aumenta a quantidade de informações sobre o NCL. Já no editorial do n° 35, a crítica latino-americana é conclamada a criar um diálogo com as novas produções do continente, o que não significa um louvor irrestrito. O texto de abertura do dossiê, redigido por León, sublinha a importância do movimento para o continente. Reconhecendo que se trata de um viés mais jornalístico do que crítico (que é prometido para posteriores publicações), o dossiê é formado por um dicionário de cineastas brasileiros, seguido das entrevistas com Glauber Rocha e 4. Hablemos de cine no 35 (maio-junho 1967) e 36 (julho-agosto 1967) formam o primeiro dossiê; os no 43-44 (setembro-outubro/novembro dezembro 1968) formam um complemento e o segundo dossiê se encontra nos no 47 (maio-junho 1969), 48 (julho-agosto 1969), 49 (setembro-outubro 1969) e 50-51 (novembro-dezembro 1969/janeiro-fevereiro 1970). Outras informações ou entrevistas são encontradas nos no 52 (março-abril1970), 53 (maio-junho 1970), 54 (julho-agosto 1970), 66 (1974) e 69 (1977/1978), salvo ocasionais criticas de filmes brasileiros. 122 ESTUDOS DE CINEMA Walter Lima Jr. Na edição seguinte (no 36), é publicada a tradução do artigo O velho e o novo, de Alex Viany, seguida das entrevistas com Carlos Diegues eArnaldo Jabor: Mais de um ano depois, na edição dupla n° 43/44, encontra-se as entrevistas com Domingos de Oliveira e Iberê Cavalcanti. Portanto, encontra-se um esforço em oferecer ao leitor peruano uma visão ampla do movimento (quem são os seus integrantes? quais são as origens do grupo e como se deu o desenvolvimento do movimento?) e informações atuais, além de buscar dar um esboço do perfil de seus cineastas, por intermédio das entrevistas. Em suma, como o próprio redator sublinha, é um olhar jornalístico e não crítico, uma vez que se trata de informar e não de aprofundar uma análise da obra fílmica. Ressalta-se que o espectador peruano desconhece a totalidade dos filmes cinemanovistas, algo que os redatores tanto reclamam. Por sua vez, o segundo dossiê, publicado em 1969/70, se caracteriza por um esforço crítico, embora o tom jornalístico não tenha sido abandonado. Ressalta-se que o espectador peruano ainda ignora, em sua imensa maioria, os filmes brasileiros. 5 O material publicado nessa segunda abordagem ao movimento é fruto da viagem de Cárdenas ao nosso país. Entretanto, além das entrevistas realizadas pelo redator, grande parte do material é constituído por traduções de artigos dos próprios realizadores. Portanto, a revista se constitui antes em um espaço de difusão da opinião e pensamento dos realizadores do que de reflexão do redator em relação ao movimento. O que explica essa postura não é apenas uma extrema admiração, mas, sobretudo,. uma cautela em relação a um objeto desconhecido (não apenas o Cinema Novo em si, mas o cinema brasileiro) e um respeito ao leitor peruano, uma vez que tais filmes brasileiros não foram exibidos no Peru. Assim, o próprio Cárdenas escreve que prefere deixar os cineastas se expressarem a monopolizar o debate, uma vez que ele é o único privilegiado em seu país por haver assistido aos filmes. O início do dossiê (n° 47) é consagrado a Glauber Rocha. O Cinema Novo é reiterado e explicitamente, definido como uma referência a seguir e Glauber, alçado ao "panteão" dos autores modernos, ao lado de Godard, Straub, Skolimowsky e Pasolini. Tal viés exultório resume a relação da revista com o movimento que, através das declarações de seus realizadores, encontra-se encurralado por um governo hostil e uma contradição interna entre as suas preocupações políticas e um maior diálogo com o público. Essa contradição salta aos olhos na entrevista de Glauber, 6 quando este elogia Martín fierro, de Leopoldo Torre Nilsson, por conciliar um cinema espetacular com uma tradição cultural autenticamente argentina. Essa afirmação 5. Apenas alguns filmes chegam a ser exibidos em Lima, em mostras. 6. Entrevista exclusiva a Hablemos de cine, concedida a Federico de Cárdenas e René Capriles. Há uma tradução, em Português, mas sem as perguntas In ROCHA, Glauber. A revolução do cinema novo. Rio de Janeiro: Alhambra!Embrafilme, 1981: 62-138 CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 123 demonstra as particularidades dos cinemanovistas, uma vez que o citado longa argentino era· desprezado pela esquerda, visto como conservador oficialista. Outro trecho relevante da entrevista é quando Glauber, praticamente, "define" o Cinema Novo como os esforços de uma produtora (Mapa Filmes) somados aos de uma distribuidora (Difilm), i. e., o movimento não é "definido" por critérios ideológicos e/ou estéticos, mas empresariais. Em suma, Glauber, nesta entrevista, espelha, de modo bem claro, a preocupação do movimento em se aglutinar e se articular para agir, de forma sistemática, no mercado. Ou seja, a militância política cinemanovista se encontra intimamente associada a um pensamento industrialista. Desse modo, apesar da admiração da revista pelo movimento, já se pode vislumbrar algumas discordâncias de seus redatores em relação a certos rumos tomados. E, atrelado a essas divergências, uma forte necessidade de justificar e compreender tais aspectos. Na verdade, podese afirmar algo muito mais profundo. Na virada dos anos 1960/1970, há duas posições principais no NCL, que podem ser identificadas na revista: uma vertente "industrialista", com os cinemanovistas brasileiros e os cubanos à frente e uma vertente "clandestina", a favor de uma produção militante por grupos coletivos de cinema, espalhados pelo continente. Em suma, o segundo dossiê é formado pelas declarações dos cineastas que, por sua vez, não encontram nenhum contraponto por parte dos redatores. Somente identificam-se algumas reações pasmas, que são respondidas com argumentos subjetivos e/ou contextuais (repressão do governo). Assim, passam por suas páginas, os seguintes nomes: no n° 48, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni e Luiz Carlos Barreto; no n° 49, Walter Lima Jr., Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman e ArnaldoJabor e na edição dupla n° 50-51, Gustavo Dahl, David Neves, Neville de Almeida e Julio Bressane. Nessa última edição, também é publicada a resenha do Festival de Vifía del Mar de 1969. O artigo sobre a seleção brasileira exibida no festival é escrito por León, que a considera inferior ao do festival anterior e afirma que tais filmes manifestam uma tendência, em seus termos, de "revestimento alegórico". Mas, os exemplares desta vertente possuem malogros e acertos. León defende O dragão da maldade contra o santo guerreiro em detrimento de Brasil ano 2000, considerado desordenado e "pouco convincente como expressão". Portanto, os filmes desse período são associados a um impulso alegórico, vinculado, conforme uma interpretação tradicional, ao recrudescimento político-ideológico do regime militar. Em suas declarações, os cineastas "justificam" seus filmes, cada vez mais "abstratos", como uma necessidade artística criadora de se mergulhar no caldeirão cultural que forma o país. Há breves notas, para o leitor peruano, sobre o que é o tropicalismo e o modernismo oswaldiano, buscando explicar o leitmotiv que sustenta tais filmes. Portanto, devido a uma preocupação com o leitor, que não possui acesso aos filmes nem ao contexto artístico do Brasil e tampouco a um maior conhecimento da cultura brasileira, os redatores e 124 ESTUDOS DE CINEMA asswnem wna posição informativa, para não dizer didática. Esse esforço de divulgação, calcado na mera exposição da opinião dos realizadores, sem wna maior reflexão acerca de suas obras, pode sugerir wna visão geral do movimento que, conforme reconhece o editor León, se define, nesse momento, pelo "revestimento alegórico". É, justamente essa impressão de totalidade que Bemardet, em uma carta à revista, datada de 24 de abril de 1970, contesta. Publicada no n° 52, ressalta a importância de analisar o contexto no qual se inserem esses filmes: La situación político-cultural es extremamente difícil en e! Brasil actual. Parece obvia, pero no lo es. Que no se crea que las dificultades son esencialmente de censura y de lo que ella implica. La censura es e! menor de los males en la medida en que es un hecho claro delante de! cual es simple tomar posición (incluso cuando se es vencido por ella). La dificultad de la situación proviene de! hecho de que un grupo de intelectuales, - los cineastas responsables de! cinema novo y sus continuadores ( ... ) - que algunos afios atrás habían encontrado (acertadamente o no) un papel para su trabajo en la evolución socio-cultural de! Brasil, e incluso de América Latina, hoy, estos mismos cineastas (existen excepciones) no saben más cuál es e! significado social de su trabajo, no saben qué realidad enfocar. Las cosas son confusas:·l,qué dramaturgia?, o l,qué es la rea!idad brasilera?, l,existe una realidad brasilera?, la expresión "realidad brasilera", (,tiene algún significado? Por eso me permito formular algunas reservas en relación a la divulgación de! cine brasilero que Hablemos de cine está haciendo. Repito que las entrevistas - en cuanto fales - son excelentes, pero desde una visión individualista: cine = autores + films. No se tiene así una visión de conjunto de un movimiento, o de que e! movimiento está en descomposición. No se tiene una visión de que estas autores y películas están en disminución, a causa de! bloqueo administrativo y económico que están sufriendo. No se tiene una visión de que estas films son cada vez más vacilantes, indecisos (y Brasil afio 2000 es un ejemplo de esto), porque los autores no :Saben más qué hace. No se tiene una visión de que estas autores son las muestras de la intelectualidad de una sociedad oprimida, de que ya no están fertilizados por e/ dinamismo de la estructura social (como fue e! cinema novo, cualquiera haya sido sus resultados y sus relaciones con e/ público), de que estas intelectuales que antes iban con la cabeza erguida comienzan a bajarla, de que estas intelectuales laboran, sino en e! exilio, por lo menos en un semi-exilio (.. .) (BERNARDET, Jean-Claude. "Cinema Novo: una voz disconforme". Hablemos de cine. Lima, n° 52, março-abrill970: 13). A revista aceita as objeções e reconhece que os mais aptos a analisarem a situação são os próprios brasileiros. E, desse modo, convida os amigos de outros países a colaborarem com suas reflexões em relação ao que é publicado acerca de suas respectivas cinematografias. É dentro desse esforço que se pode enquadrar o breve texto de Cosme Alves Neto, publicado no n° 54. Cosme esboça wn panorama CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 125 ,da situação atual da produção brasileira. Sublinha um maior número de produções regionais e o surgimento do Cinema Marginal, descrito como um grupo derivado do Cinema Novo, mas que se opõe a ele. Somente quatro anos depois, é publicado um artigo sobre cinema brasileiro. Um dos motivos é a carência de informações somado à mudança de periodicidade e da equipe redatora. É possível afirmar que o maior interesse pelo cinema peruano tenha "expulsado" outras cinematografias da pauta. Ou, simplesmente, talvez uma informação ou entrevista isolada não tenha sido o suficiente para ser publicado. Tanto que as poucas entrevistas realizadas com cineastas brasileiros, depois de 1970, são publicadas com anos de atraso. 7 Em suma, após 1970, tomam-se cada vez menos freqüentes as informações em relação ao movimento que, finalmente, é "declarado morto" em 1974. Em uma resenha sobre uma pequena mostra de filmes brasileiros em Lima, o redator Ricardo Bedoya afirma, com pesar, que assim como todos os movimentos cinematográficos da história, o brasileiro, infelizmente, encontrou o seu fim. Apesar do tom fünebre, o papel histórico e estético atribuído ao Cinema Novo é considerado de inestimável valor: E! cinema novo fue e! gran movimiento que e! tercer mundo aportá al cine mundial, pese a que los públicos europeos, especialmente los que asisten a los festivales, y los parisinos, fueron casi los únicos favorecidos. El mismo público brasilero no prestá a su cine el interés que este exigía. Y el resto de América Latina se vio prácticamente excluída de! conocimiento de las películas de! cinema novo. Así como sucediá con otros movimientos, así también sucediá con el cinema novo. El tiempo, la industria absorvente que el movimiento contribuyá a impulsar, y la dictadura han dejado sus huellas. Hoy, el cine brasilero es una inmensa fábrica que produce más que ningún otro país de América Latina y que compile en mediocridad y nulidad con e! cine mexicano y argentino. (BEDOYA, Ricardo. Hablemos de cine, Lima, n° 66, 1974: 22) Portanto, o esvaziamento do movimento é considerado como conseqüência da situação política do Brasil e da consolidação de um raciocínio comercialista. Então, o movimento já começa a ser visto com certas ressalvas no final dos 1960. Entretanto, não há uma aprofundada reflexão acerca da "morte" do Cinema Novo. Segundo o raciocínio de Bedoya, aparenta ser uma "lei natural" dos movimentos cinematográficos. O fato é que, ao longo dos anos 1970, as referências ao cinema brasileiro escasseiam. 7. No no 66 (1974) é publicada uma entrevista com Nelson Pereira dos Santos, datada de 1971. No no 69 (1977/1978), o artigo de Glauber Rocha data de 1971 enquanto que as entrevistas com Ruy Guerra são de 1970 e a com Leon Hirszman, é de 1972. 126 ESTUDOS DE CINEMA Talvez os rumos políticos divergentes tomados pelos dois países, no início dessa década, expliquem a menor circulação de filmes brasileiros em Lima, mesmo em mostras e festivais. Mas trata-se de um argumento frágil, pois a exibição de filmes . brasileiros no Peru sempre foi rara. Por outro lado, há uma maior atenção voltada a outras cinematografias, como a mexicana (o despontar de uma nova geração de· cineastas), a argentina e a uruguaia (um cinema militante), a boliviana (circunscrita ao Grupo Ukamau e, em especial, ao Jorge Sanjinés) e a colombiana (um boom na' produção de curtas-metragens, graças à uma legislação que guarda semelhanças com a peruana). Portanto, apesar da forte admiração por seus integrantes e dos laços pessoais e afetivos criados com eles (não se pode subestimar tal aspecto), o Cinema. Novo, considerado o movimento pioneiro de cinema terceiro-mundista a ser emulado, sucumbe por razões políticas e econômicas, sem maiores esclarecimentos. A decisão de oferecer espaço para a opinião dos próprios realizadores suscita, de certo modo, uma carência de análises mais aprofundadas do fenômeno em sua totalidade, pluralidade e ambigüidade. Por exemplo, o fato de não se interessar pelo Cinema Marginal e, por conseguinte, contrapô-lo ao Cinema Novo, determina um olhar somente voltado para certos filmes e realizadores, sem problematizá-los. Ao menos, poderia ceder o seu espaço para que louvem os cinemanovistas e denigram os "marginais", conforme se pode ver na revista venezuelana Cine al día e na uruguaia Cine de! tercer mundo. 8 Em suma, o tom jornalístico, mas longe de ser imparcial, pode ser considerado como a principal postura da publicação em relação ao Cinema Novo, que, por outro lado, não encontra um movimento substituto, mas apenas alguns esforços coletivos e, sobretudo, pessoais ao invés de um articulado "movimento cinematográfico". Talvez o cinema cubano possa ser interpretado por esse viés, porém, a singularidade da ilha a toma, simultaneamente, modelo e exceção, enquanto que o Cinema Novo era considerado, sem vacilações, uma referência possível às demais cinematografias do continente. BIBLIOGRAFIA Hablemos de cine, Lima, n° 21 ao 77 (números estudados). BEDOYA, Ricardo. 100 anos de cine en e! Perú: una historia crítica. Lima: Universidad de Lima/ICI, 1992. pp. 162-6. 8. AVELLAR; José Carlos. "Objetos no identificados",. Cine a! día. Caracas, no 14, novembro 1971. pp. 10-4. SÉRGIO AUGUSTO. "Cinema Novo brasilefio l,ellujo o la basura?". Cine de! tercer mundo. Montevidéu, no 2, novembro 1970. pp. 61-7. A recepção da crítica ao cinema brasileiro exibido em Portugal: 1960-1999 REGINA GoMES (UCSAL) 1 O DISCURSO da crítica comum de cinema, embora volátil e imediatista, é também um discurso datado, cujo registro histórico encontra-se nos jornais e revistas, e mais recentemente em publicações eletrônicas que dedicam espaços (diários ou semanais) para resenhas e comentários sobre filmes. Nesse sentido, a crítica de cinema pode (e deve) ser vista como um excelente elemento de investigação do alcance histórico do filme, ou seja, de sua recepção. A estética da recepção, corrente nascida na Escola de Konstanz, Alemanha, protagonizada por Hans Robert Jauss (1986, 2002) e Wolfgang Iser (1979), produziu uma profunda reflexão sobre o alcance histórico e estético das obras literárias, privilegiando a experiência estética do leitor como foco deterrninànte para a realização da obra de arte. Jauss (1986) compreende o contexto como parte fundamental para análise do horizonte em que a obra de arte se inscreveu e que pode revelar sua recepção. De fato, não há dúvida de que a atividade crítica opera como um rico registro das modalidades de recepção no cinema, e aqui, mais especificamente, como modalidade de recepção do cinema brasileiro exibido em Portugal.2 O crítico, ele próprio um I. Doutora em Ciências da Comunicação, especialidade de Cinema, pela Universidade Nova de Lisboa. Professora da Universidade Católica de Salvador e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Análise de Crítica de Cinema e do Curso de Especialização em Cinema da UCSal. Este texto contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia- FAPESB, e foi escrito a partir da tese O cinema brasileiro em Portugal, defendida em novembro de 2006 na Universidade Nova de Lisboa. 2. Este presente documento de trabalho se refere às críticas sobre filmes publicadas em jornais, diários e semanários, e revistas lisboetas entre 1960 e 1999, formadores do corpus da pesquisa. 128 ESTUDOS DE CINEMA espectador, é testemunho de uma época; não um mero leitor de seu tempo, diga-se, mas produtor de uma leitura mais acurada, atenciosa de uma obra desde já tida como objeto de análise seu. Na pesquisa, a critica de cinema, foi vista como um elemento do alcance histórico dos filmes, e, desta forma, refletiu-se sobre como os filmes brasileiros foram recebidos por parte da imprensa cinematográfica lisboeta mais especializada, dos chamados formadores de opinião, entre as décadas de 1960 a 1990. Por outro lado, a crítica de cinema também foi concebida como um objeto retórico, um produto simbólico e até mesmo como uma construção poética que evoca efeitos em seus destinatários. Esse tipo de discurso sobre filmes se utiliza de estratégias persuasivas para conseguir a adesão de seus leitores, estratégias estas que ajudam a reforçar ou negar pensamentos compactos como os estereótipos sobre uma dada obra. Neste campo conceitual - a retórica - foram imprescindíveis os trabalhos de Chaim Perelam ( 1999, 1996) sobre A nova retórica que nos discursos admite a lógica do preferível em detrimento da lógica do verdadeiro e que não prescinde da idéia de acordo entre orador e auditório, ou entre texto e leitor. Já a obra de David Bordwell (1991), Making meaning, propõe uma leitura atenciosa dos métodos de pensamento e escritura dos críticos de cinema. Embora nesta obra o autor focalize suas análises para as críticas produzidas em formatos acadêmicos- o chamado jilm criticism- Bordwell não deixa de revelar a importância das convenções retóricas utilizadas pelos críticos de cinema também em resenhas jornalísticas. A critica de cinema para Bordwell é uma prática discursiva cognitiva e retórica que se moldá pelas instituições que a albergam, seja ela um ensaio acadêmico ou uma resenha de jornal. Hoje, ela estaria mais longe do ideal de interpretação tomandose uma atividade essencialmente rotineira, sem invenção ou criatividade. É importante observar que essas duas abordagens não são excludentes, pelo contrário, há complementaridade entre elas. Os textos críticos por si só foram tomados como objetos retóricos e como luz histórica para entender o processo de recepção do filmes brasileiros exibidos em Lisboa. Além disso, a convicção deste presente trabalho, é que estes dois campos se aproximam tanto no que diz respeito ao exercício da atividade interpretativa (pensa-se que contextualizar um discurso é compreendê-lo e, logo, provê-lo de sentido), quanto na ênfase que ambos dão à dimensão estéticocomunicativa do discurso. A meu ver, por trás deste salutar encontro está a tentativa de pensar o cinema enquanto experiência e suas redes de discursos sociais como lugar de investigação desta experiência. O cinema, como arte coletiva que é, e com seu maquinário industrial e simbólico, depende também de uma rede de discursos sociais que promovem a obra e de certa forma reconstroem o acolhimento do público ao filme. Desse modo, uma perspectiva interdisciplinar norteou a investigação conduzindo-a para a criação de algumas categorias de análise denominadas de marcas retóricas e marcas contextuais identificadas nas criticas de cinema lusas. CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 129 Foi através do exame destas marcas que se verifica como o contexto histórico, juntamente com a função retórica inerente a estes discursos críticos, moldou a recepção das obras cinematográficas brasileiras em Portugal. A cada diferente contexto, ou década, novos "modos de ler" e novas "formas de 'argumentar" acerca do cinema brasileiro e as diferentes configurações se afirmavam no processo de interpretação dos filmes que nos anos 196011970 foram vistos com o olhar-argumentativo acolhedor da crítica e nas décadas de 1980/1990 este olhar passou a ser filtrado por um misto de decepção e desilusão. As novas realidades dos anos 1980 e 1990 colocaram a crítica de cinema numa posição desconfortável, de ruptura com o pacto anterior, além de contradizer (ou pelo menos reavaliar) suas concepções mais profundas influenciadas pela política dos autores e pela defesa de um cinema de cauções artísticas que manifestamente fosse crítico ao sistema industrial norte-americano. Com efeito, nos anos 1950, 1960, até 1970, parecia existir certa unidade na produção da cinematografia mundial. Compreendiam-se as propostas da Nouvelle Vague, do Cinema Novo, do cinema underground ou do Neo-realismo italiano. E, de certa forma, as coisas se conectavam em várias partes do mundo. Hoje, com os projetos assurnidamente mais pessoais, a crítica tem mais dificuldade em concentrarse numa direção específica. Ela acabou por manter seus referenciais, alguns os mesmos dos tempos cineclubistas, caindo no risco da apreciação baseada tão somente nos padrões das décadas anteriores. A pluralização do cinema moderno, que abriga os mais variados tipos de direção, estilos e de mistura de linguagens do audiovisual, às vezes até numa mesma obra, impõe certo desnorteamento às bases de reflexão da crítica de cinema atual. AS CONCLUSÕES DA PESQUISA Nos anos 1960/70 os sinais sobre a época e sobre as críticas, inscritas nos textos dos jornais, revistas, semanários e livros, indicaram a constituição de um terreno favorável ao cinema brasileiro em Portugal. As variadas vozes da crítica de cinema tinham em comum um horizonte que apontava para um cenário receptivo ao Cinema Novo brasileiro e às suas propostas políticas e estéticas baseadas na discussão sobre a identidade nacional, na montagem complexa e descontínua entre os planos, na iluminação natural, nas câmeras com ângulos que privilegiavam a paisagem natural, enfim, no desconforto com a linguagem clássica do cinema industrial americano. Isto quer dizer que, apesar do cisma interno vigente na crítica portuguesa do período, tanto a chamada crítica militante portuguesa, politizada e praticada na maioria dos jornais diários e na revista Seara Nova, quanto à crítica formalista, que seguia as diretrizes dos Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague, representada em Portugal pela revista O Tempo e o Modo e pelo Jornal de Letras e Artes, apoiaram o Cinema Novo e sobretudo a figura de Glauber Rocha, seu grande avatar. Os principais jornais e 130 ESTUDOS DE CINEMA revistas especializadas lisboetas tomaram-se espaços privilegiados de legitimação e promoção deste movimento cinematográfico, fato que já ocorria nas publicações francesas. Retoricamente, os juízos atribuídos aos filmes brasileiros na década de 1960 foram essencialmente positivos e justificados por argumentos da ordem do conteúdo dos filmes que visavam à mobilização do leitor através sobretudo do emprego de qualificativos. Neste momento, os argumentos voltaram-se para a narrativa filmica, tomando-a como resultado do olhar objetivo da realidade brasileira pelo cineasta. Nos anos 1970 as avaliações favoráveis remeteram aos filmes de Glauber Rocha; contudo, aqueles outros que romperam com o legado do Cinema Novo receberam juízos desfavoráveis. Os mecanismos retórico-persuasivos presentes nas resenhas foram marcados por textos mais incisivos e politizados e pela recorrência a argumentos pelo exemplo, com descrição de cenas e diálogos dos filmes reforçando o raciocínio indutivo desses escritos. Em fins dos anos 1970, importantes transformações sociais, políticas e econômicas, tanto no Brasil quanto em Portugal, impuseram rumos diferenciados quanto à boa recepção ao cinema brasileiro do período anterior. Os registros comuns nas resenhas era uma identidade discursiva que criticava e lamentava a aproximação do cinema brasileiro ao mercado, e o rompimento com a velha tradição experimentalista do Cinema Novo. E, aliado a isto, o fenômeno das telenovelas e o seu estabelecimento determinista de uma relação de semelhança com cinema brasileiro. Nos anos 1980, marcas de juízos negativos predominaram e foram justificadas por critérios de conteúdo e estéticos (distanciamento temático e estético do Cinema Novo e aproximação da estética televisiva), utilizando-se sempre um discurso de adjetivação e a descrição pormenorizada da narrativa do filme. Os julgamentos de valor predominantemente negativos na década de 1990 tiveram como critérios de justificação os paradigmas acima citados, e as estratégias de persuasão ganham características como a presença de informações acessórias ou extrínsecas à análise nas resenhas, evidenciando, mais que um texto de juízo e interpretação, um discurso de promoção e divulgação dos filmes. Estas duas últimas décadas foram marcadas pelas manobras argumentativas do contraponto ao colocar os filmes sempre em relação ora com o Cinema Novo, ora com as telenovelas. Observou-se claramente o argumento por modelo perelminiano, ou seja, aquele que propõe de imitação que embora seja um caso particular, apresentase como norma, e do antimodelo (caso das telenovelas) como exemplo a não seguir. O fato de os argumentos avaliativos acerca do cinema brasileiro basearem-se nas matrizes do Cinema Novo e da telenovela denotaram a cristalização de um modelo de expressão monossêmica que a crítica pode ter transformado em uma conclusão definitiva. É fato que os estereótipos também fazem parte da tradição, mas se está lidando com convenções que são repassadas para os leitores e que podem, por sua vez, condicionar previamente sua recepção para esta cinematografia. CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 131 É fato também que este é um problema situado historicamente e que parte de nossa pesquisa foi a busca e localização das raízes deste modelo. O contexto certamente tem um papel fundamental e interfere na recepção da obra, na sua boa ou má aceitação. Todavia, isto não exclui uma reflexão sobre a concepção de uma imagem do cinema brasileiro mais "adequada" para a crítica portuguesa. E esta imagem sempre esteve de acordo com uma espécie de "agenda estético-politizada" da crítica. Querer-se-á dizer com isto que a crítica produzida na imprensa escrita portuguesa desde meados dos anos 1960 acatou as influências da crítica francesa, seguiu o modernismo políticoestético que dava aval ao Cinema Novo e, desde fins dos anos 1970, questionou a quebra de continuidade com este movimento, quando o cinema brasileiro não mais correspondia às expectativas de um cinema periférico revolucionário. O mesmo se passou com a idéia de "influência do modelo de telenovela" na cinematografia brasileira, sobretudo a partir de finais dos anos 1970, tomando-se um exemplo invariável para analisar os filmes brasileiros desde então. O estabelecimento de relações, normalmente de semelhança, entre as telenovelas e o cinema brasileiro, alterou sobremaneira a imagem do cinema brasileiro em Portugal. Esta alteração passa pelo olhar da crítica de cinema lusa sobre a perda de qualidade dos filmes brasileiros, uma vez que, desde os atores inscritos numa rede de sistema de estrelas já consagrados na televisão, até a adoção de determinados efeitos estéticos como os fechados enquadramentos, serão, desde 1977 com a chegada de Gabriela à Portugal, associados ao cineína brasileiro como parte constituinte de uma indústria de banalização estética e comercial. Para a crítica de cinema lusa, o cinema brasileiro, que antes havia garantido seu lugar de arte conquistado nos os anos 1950/60, confundia-se agora com a vulgarização comercial da televisão. Em diversas críticas aos filmes brasileiros desde a década de 1970 até nos dias atuais, a relação estabelecida entre telenovela e cinema brasileiro é recorrente e considerada critério de desqualificação dos filmes que agora estão sujeitos e submissos a uma "estética televisiva" baseada na "visibilidade" da intriga dessas narrativas seriadas e num modelo de interpretação dos atores que privilegia dramaturgicamente o reduzido espaço da tela de TV. Outra questão diz respeito à crítica não levar em conta (não necessariamente aceitar de forma incondicional) a inevitável hibridação que existe entre as linguagens do cinema e as da TV, hibridação circular, na medida em que o cinema também fertiliza a linguagem da TV. O fato é que aquela velha estrutura bipolar entre a produção hollywoodiana e o cinema modernista ou de vanguarda não só permanece como se mantém viva no espaço da crítica cinematográfica na imprensa portuguesa (sobretudo na avaliação de filmes brasileiros). Fernando Mascarello (2000) defende que este legado modernista (diga-se que não só da crítica como também da própria teoria do cinema) de expressão dicotômica (cinemalcontracinema, prazer/desprazer, produção de ideologia/produção 132 ESTUDOS DE CINEMA de conhecimento) baseou-se na ofensiva à produção comercial de massa e no elogio e nostalgia pelo político. O autor afirma que este paradigma teórico modernista firmouse a partir de maio de 1968 até meados da década de 1970, sobretudo no espaço. editorial das revistas Cinéthique, Cahiers du Cinéma e da inglesa Screen, que se sustentavam na "triangulação de semiótica, marxismo e psicanálise que a um tempo oferece a crítica ao realismo clássico e a sustentação a uma vanguarda revolucionária" (MASCARELLO, 2000: 130)_3 A análise mais atenciosa às críticas publicadas na imprensa escrita portuguesa parece comprovar tal influência do paradigma modernista, presente na defesa de valores pautados no realismo crítico do Cinema Novo e no ataque ao ilusionismo da televisão. Esta nostalgia por uma revolução formal e política talvez tenha feito com que os critérios de avaliação dos filmes brasileiros se mantivessem pautados neste protótipo, comprovados pela recorrência aos referidos temas como uma constante nas resenhas analisadas. Estas também apresentavam outros sistemas de oposição de conceitos e noções típicos deste paradigma como: imagem realista x imagem maquiada, cenário natural x cenário de estúdio, fruição crítica x fruição desinteressada, crítica social x melodrama, cinema fácil x cinema difícil. Saliente-se que este enquadramento foi observado tanto nos jornais diários quanto nas revistas e semanários, embora nestes últimos, ironicamente publicações em que o rigor na análise das criticas foi mais evidente, os juízos negativos dados aos filmes brasileiros tenham sido dominantes. Além disso, os semanários portUgueses são tradicionalmente considerados como formadores de opinião tanto do públicoleitor como de outros jornais diários. O problema é que aqueles filmes que estão fora do círculo das "boas" convenções, acabam por receber tratamento qualitativo diferenciado, o que, inevitavelmente, influenciará a interpretação dos leitores das críticas. Ademais, não se deseja aqui imprimir um sentido de pura instrumentalidade no processo comunicativo entre a critica e seus leitores portugueses, que podem negar, corrigir, modificar ou simplesmente reproduzir estes modelos de apreciação, mas é inequívoca a dimensão de seu efeito. A crítica de cinema lusa deve refletir se quer continuar devota de parâmetros de avaliação que se estabeleceram em outras épocas e em condições históricas bem diversas, sob pena de pré-conceber e pré-julgar certos filmes de uma cinematografia. Sob pena de também cair na armadilha do saudosismo. É notório que o atual cinema brasileiro corresponda a uma estética, de certa forma, distante do modernismo político-estético de vanguarda dos anos 1960. A crítica 3. Esta questão estético-ideológica que norteou o cinema de pós-68 foi discutida por diversos autores. Entre eles destaca-se Francesco Casetti (1994), que também analisa esta tendência em revistas italianas como Cinema nuovo, Filmcritica, Ombre rosse e Cinema e Film, além das já citadas revistas francesas. CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA 133 não deve, então, repensar certos conceitos como os de ideologia, ética, verdade ou estética à luz de uma realidade que já não é mais aquela que forneceu as bases para o paradigma anterior? O crítico Luiz Zanin Oricchio (2003) chama o cinema contemporâneo brasileiro de "cinema impuro", ou aquele que não recusa diálogo com . as diferentes linguagens, aquele que não abre mão dos recursos do espetáculo em sua forma, e aquele que mostra a corrosão de um cânone, político e estético, materializado nos anos 1960 pelo Cinema Novo. Como ocorre com os movimentos de rupturas, o Cinema Novo "inventou" uma tradição mas, uma tradição deve inspirar, e não inibir. Cria-se a partir dela, talvez contra ela ou apesar dela. O que é vital, desde que a não tenhamos como peça de museu, fantasma assustador ou parâmetro inatingível em relação aos quais todas as comparações são desfavoráveis (2003: 229). Historicamente, a critica de cinema da imprensa escrita portuguesa compreendeu o cinema brasileiro, exclusivamente como o Cinema Novo, e desde então moldou seus parâmetros a partir deste movimento. E tendo a crítica também um papel de transmissão histórica de sentido para um leitor, cabe a ela estar atenta para evitar distorções e generalizações abusivas. O discurso da crítica de cinema constitui um meio socialmente efetivo da acolhida dos filmes, abrigo histórico dos filmes, produzindo expectativas de aprovação ou desaprovação no público-leitor. Lidas como consenso estético e político, as obras clássicas do Cinema Novo, em especial as de Glauber Rocha, demarcaram os parâmetros de avaliação sobre o todo o cinema brasileiro desde os anos 1960 até os dias atuais. Lidas como subprodutos da cultura popular de massas, as telenovelas delimitaram os padrões de rejeição ao cinema brasileiro desde finais da década de 1970. Por fim, outras conclusões a que chegou a pesquisa e que merecem ser mencionadas: • A presença da cinematografia brasileira em Portugal passa quase que inevitavelmente pelo circuito alternativo, o dos festivais e mostras na Cinemateca Portuguesa. • A Cinemateca Portuguesa e os festivais de cinema, neste contexto, serviram simultaneamente como espaço de divulgação e de legitimação das obras do Cinema Novo, em especial às de Glauber Rocha, com exibições recorrentes de filmes do diretor. • A década de 1970 foi a década de maior circulação em salas comerciais de filmes brasileiros, sobretudo no período posterior à Revolução dos Cravos, quando houve uma maior abertura de mercado aos produtos culturais brasileiros. ESTUDOS DE CINEMA'" 134 • Glauber Rocha foi o realizador brasileiro que mais exibiu filmes em Portugal . entre 1960 e 1999, tanto no circuito não-comercial como no comercial. " Diário de Lisboa, Diário Popular e República;• • Foi nos diários ーセイエオァ・ウL@ e na Revista Celulóide onde mais se produziram críticas sobre filmes brasileiros e Lauro António o crítico que mais publicou resenhas nos Diário. de Lisboa e Diário de Notícias. • A crítica francesa nos anos 1960/70, bastante influente em Portugal, criou um lastro de avaliação favorável e de reforço ao paradigma do "bom cinema de vanguarda moderno" e esse lastro se perpetuou ao longo das últimas décadas. • Foi nos espaços dedicados à crítica de cinema dos semanários (leia-se Expresso) onde os filmes brasileiros receberam a maior carga de juízos de valor negativos sobretudo a partir dos anos 1980. • É preciso entender que o juízo desfavorável ao cinema brasileiro mais recente não está alheio às convulsões midiáticas por que passou Portugal, sobretudo nos últimos 30 anos, com a popularização das telenovelas brasileiras e a transformação radical do padrão das ficções de audiovisual. 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PERELMAN, Chaim. O império retórico: retórica e argumentação. Lisboa: Asa, 1999. PERELMAN, Chaim & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. EM TORNO DA AMÉRICA LATINA O documentário chileno da atual democracia ANoREA MoLFETIA (UNICAMP) FUI A SANTIAGO do Chile pela primeira vez em maio de 1990. Em pleno movimento de abertura democrática, nós, jovens poetas chilenos e argentinos, organizamos o primeiro encontro de poesia em democracia, com apoio dos dois países. Tive contato com poetas e militares. Recitamos em várias universidades e fomos presos por pintar poemas na Faculdade de Direito da Universidade do Chile. Passados 18 anos, novas gerações crescem em meio a esta oposição que convive na experiência democrática, na qual adversários e propostas não são claramente definidos num simples jogo de exclusões. Na nova safra de documentários, a representação dos conflitos políticos, assim como as narrativas de reconstituição histórica, caracterizadas pelo modo expositivo da representação, deixaram de ocupar o papel protagônico no conjunto da produção local. A estética da Chile Filmes, dirigida por Littin, caracteriza-se como programa estético do que foi chamado Novo Cinema Chileno durante o governo de Allende (1971-1973). Hoje, após Pinochet, os realizadores olham para a sociedade sem necessidade de grandes julgamentos, balanços ou chamados à sociedade. O documentário atual, alinhado na estilística do cinema direto, que explora com inusual força expressiva urna câmera observacional, mostra a contemporaneidade do país transandino por meio de retratos parciais, porém profundos, de urna Santiago sob influência dos processos econômicos, sociais e culturais ligados à globalização, como se vê nos filmes Este ano no hay cosecha, de Vergara e Lavanderos (2000), ou Trago Dulce, Trago Amargo, de Evans (2003). Assim, no uso das técnicas de investigação, seguimento de personagens, câmeras leves, som direto, montagem profusa e zoom, o documentário chileno pós-Pinochet mostra as mais cruas contradições geradas pela economia nos indivíduos, retratados como personagens sociais de um cinema do presente. Este cinema se relaciona com o formato da reportagem: para além da entrevista 138 ESTUDOS DE CINEMA e sua interação, tem-se a observação de horas de gravação como incremento. Os filmes se referem assim, indiretamente, ao formato do informe especial, ou reportagem · em profundidade. Antes de prosseguir, devo dizer que trabalho com base na curadoria da Assoe. de Documentaristas Chilenos (ADOC), que organiza uma mostra anual itinerante com o apoio do Governo de Chile, levando para o exterior o melhor da produção recente. Tive o privilégio de trazer esta mostra para o Brasil no ano de 2006. Tal mostra é, por si mesma, um objeto representativo, porque foi curada por especialistas do setor e inclui várias gerações: de Chasquel à dupla OsnovikoffiPerut. Filmes como Este ano no hay cosecha, de Vergara e Lavanderos (2000) e Nema Problema, de Leighton (2001), são exemplos claros do Chile atual, urbano, sob o influxo da globalização e das políticas neoliberais. A primeira película mostra a vida de um conjunto de crianças de rua, expostas a situações de perigo, como o consumo de drogas. As imagens são de forte teor dramático, o que sensibiliza os espectadores devido à precária condição social e à ingenuidade desses jovens. O segundo filme, Nema Problema, mostra a chegada de um grupo de refugiados políticos da antiga Tchecoslováquia que não aceita as condições de moradia e trabalho de classe operária oferecidas pelo governo chileno. No final do processo de transição, alguns não se adaptam e escolhem retornar a sua terra, mesmo que ela esteja em ruínas, enquanto outros optam por uma nova vida na América do Sul. Pude perceber pelo menos dois sintomas que despertam a atenção: em primeiro lugar, freqüentemente, o posicionamento ideológico explícito do autor, assim como a reconstrução ou síntese histórica de grandes períodos de tempo que são abandonados, gerando uma série de relatos nos quais o conceptor atua como alguém que mostra o direto. presente, ocultando-se enquanto enunciador, manobra tradicional do セウエゥャY@ Muito representativa deste sintoma ou traço dominante do cinema-documentário chileno atual é a obra de Osnovikoff e Perut, Un Hombre Aparte (2002), ou El Astuto mono Pinochet contra La Moneda de los Cerdas (2003 ), filmes que analisarei logo abaixo. Um segundo sintoma ou traço estilístico dominante que detectei foi, de acordo com a tendência mundial, o modo performativo da representação, no qual o trabalho da memória e da consciência histórica do sujeito-realizador encontra no processo filmico um modo de escritura ou técnica de si (Foucault), mostrando seus processos e resultados, como em Algun Lugar de! Cielo, de Carmona (2003). Não assumir o lugar da enunciação traz uma conotação ideológica ligada ao cinema direto . Perder a chance de assumir um posicionamento político explícito algo que no Brasil já tem sido chamado de "silêncio dos intelectuais"- ou colocar na esfera do subjetivo a voz expositiva, como faz o performativo, são duas opções que rejeitam a narratividade clássica. Na década de 70, vivia na América Latina uma geração que projetou na arte filmica uma função expositiva e militante, como dispositivo de comunicação para a EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 139 transformação social, a partir de uma revisão histórica e da construção de fundamentos para o presente político, como os projetos sobre Balmaceda realizados durante o período da Chile Filmes dirigida por Littin. Hoje, temos um documentário que investe retoricamente na sensibilização do espectador diante dos dilemas de uma economia global, e que compreende a sua linguagem como a de um espaço audiovisual não-programático, sem proposta, destinado a oferecer a palavra à multiplicidade de vozes sociais, nem sempre representadas pelos discursos dos outros meios de comunicação. Alguns anos depois daquela primeira visita, já em Buenos Aires, percebi que a intensidade do movimento da vídeo-arte sul-americana nos anos 90 e a conexão entre poesia e novas mídias fizeram com que a produção chilena experimental começasse a crescer e também a ser divulgada na Argentina, isso por conta do apoio do governo da França, indubitavelmente necessário para o encontro destas nações vizinhas. No Chile nasceu, em 1984, o primeiro encontro de vídeo-arte da América Latina, denominado "Festival Franco-Chileno de Vídeo-Arte", impulsionado pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros da França, na figura de Pascal Gallet, que, de maneira política, abriu um novo pólo cultural aproveitando o espaço da embaixada. Logo depois, as obras ali exibidas tomaram-se objeto de meu doutorado." Retomei em 2001, para fazer o trabalho de campo, a uma Santiago economicamente fortalecida, que, graças à liberdade midiática, sente os estertores de antigas contradições políticas ainda presentes no horizonte mediático. Em 2006 realizei, com o apoio da FAPESP, minha mais recente viagem à citada nação andina, para pesquisar o que havia de inédito na produção do país, especialmente aquela vinculada aos modos performativos da narração documental; encontrei a capital cinematograficamente revigorada, cuja estrutura produtiva dispunha de maior organização (menos eletrônica e mais cinéfila, com novos espaços difusores), o que permitiu um acréscimo nas estréias anuais de longas-metragens. O "Festival Internacional de Cinema de Santiago", então com dois anos de vida, ao selecionar películas, não distinguia obras ficcionais de documentários e equalizava filmes ligados a produtoras televisivas daqueles independentes. Chamoume a atenção ver pessoas da minha geração, com idade média de 40 anos, filmando pontos de vista que revelam esta nova urbe imersa nos processos e problemas gerados pela globalização, como as migrações (internas e intercontinentais) e as condições sócio-trabalhistas impostas pelo neoliberalismo. Distingue-se claramente o período apresentado das décadas de 60 e 70, quando a base produtiva do cinema-documentário encontrava-se interna às universidades, numa institucionalização também ligada aos subsídios de fundações internacionais. A transformação dos alicerces econômicos alterou significativamente os modos de produção deste gênero cinematográfico que, potencializados pelo ambiente democrático, cederam lugar à manifestação dos distintos setores da sociedade. 140 ESTUDOS DE CINEMA O documental expositivo e militante da esquerda, posição dominante a partir dos anos 70, convive hoje com uma nova geração de cineastas para quem a tradição de compromisso político se transformou pelas vias da fidelidade ao indivíduo retratado, filmes de produção independente relacionados de modo direto com o mercado internacional, e uma estética do direto. Nesses filmes, o balanço histórico deixa de ser objetivo e passa a ser questionado como finalidade da arte, que está mais comprometida com o aprofundamento da sua visualidade. Se o cinema militante dos anos 60 e 70 utilizava todas as potências da montagem para nos fornecer grandes sínteses históricas, que no fundo apresentavam os objetivos programáticos do governo socialista (como exemplos, pode-se elencar La Hora de los Hornos (Argentina, 1968), ou La Batalla de Chile (Chile, 1973), a partir dos anos 90 são exploradas as possibilidades das câmeras leves para mostrar, no micro-mundo, a micro-política dos sujeitos desta história, seus detalhes, desorientações e contradições. Para proceder com tal desprendimento, esta nova geração consegue se desfazer dos compromissos criados pelas instâncias ideologizantes da produção, como partidos políticos e fundações humanistas, o que proporcionou aos realizadores documentais a conquista de um espaço de autonomia expressiva e liberdade de pensamento considerável. A ambiência tecnológica contemporânea, amplificada pela potência da distribuição digital das imagens na rede mundial de computadores, traz para o realizador novas dinâmicas de confecção e distribuição dos seus filmes, assim como, na perspectiva pós-colonial, projeta com autonomia para o interior do campo intelectual local, parâmetros estéticos e preocupações dos campos intelectuais centrais, modernizando progressivamente, não sem conflitos, o horizonte regional. Como fruto do encontro destas duas manifestações cinematógráficas, que representam alinhamentos ideológicos diversos, pude vislumbrar in loco a posição · que o debate da ética documentária ocupa na Santiago de hoje. Em sucessivas entrevistas a realizadores, percebi como a história de tal gênero está ainda marcada pelos compromissos dos anos 70 com o Estado, representante de uma política centralizadora e de recursos públicos exíguos, porém com o apoio das fundações internacionais. Fabián Nufíez (2006) nos explica a necessidade destes aparelhos governamentais i:J.os anos 70: "Para compreender essa exigência do governo à sua imatura empresa estatal, é necessário ressaltar que a maioria dos meios de comunicação estava nas mãos da oposição. Portanto, à Chile Films, assim como ao Canal Nacional de Chile, incumbese a tarefa de porta-vozes da UP (Unidade Popular) frente à maciça propaganda ideológica dos opositores. Por isso, se favorece a produção de curta-metragens documentais que vão da função pedagógica (como política sanitária ou combate ao alcoolismo) à de denúncia social, alguns bem panfletários". EMTORNO DA AMÉRICA LATINA 141 Relatar apenas os aspectos textual e estilístico desta cinematografia não é suficiente para entender o estado dela nesta primeira década. Assim como descrevi as mudanças no plano da produção e das instituições intervenientes, quero agora me debruçar sobre o terceiro aspecto diferencial: os discursos da crítica . Nos dias atuais, existem discussões mais do que reveladoras na constituição dos critérios estéticos e políticos aplicados pelos júris, comitês de seleção e pela crítica, por exemplo. Realizei numerosas entrevistas (Vivi Erpel, Ivan Osnovikoff, Pedro Chaskel, Patrício Guzman, Justo Pastor Mellado, Pablo Corro, Guillermo Cifuentes etc), posteriormente ânalisadas de maneira discursiva, com o isolamento das principais unidades de sentido. Ao mesmo tempo, acompanhei o debate da revista eletrônica Mabuse, e arquivei estes materiais, que foram objeto de novos estudos. Pude apreciar em ambos os documentos de campo um candente enfrentamento de posições; uma ligada historicamente à ética do humanismo, outra liberal e contemporânea, que reclama a autonomia do cineasta, em primeiro lugar como produtor, a seguir enquanto sujeito expressivo e cidadão singular. Foi chamativo o debate em tomo do filme Un Hombre Aparte, da dupla Osnovikoff/Perut, tal como aparece em "Los limites dei documental: mentiras verdaderas", de Jorge Morales, no citado periódico eletrônico. Neste artigo, o foco da discussão está nas relações de fidelidade e traição entre sujeito do filme, sujeito realizador e sujeito espectador, três instâncias que, discursivamente , surgem problematizadas. Morales diz: "Porque si algo caracteriza este trabajo es que acá no existe compasión. Los realizadores sólo observan indiferentes, pero con cercanía microscópica, la dolorosa autodestrucción de un ser humano. Morbosidad enfermiza de una cinta que no indaga las razones de la debacle de Liaiío sino solamente contempla su deterioro moral. Es cierto, Un hombre aparte atrapa, pero es una trampa. Una trampa que siendo justos- podrían hacernos no sólo los realizadores sino e! propio Liafío. Por que, (.CÓmo podemos responsabilizar dei todo a Peru! y Osnovikoff si e! ex promotor fue quien interesadamente -por vanidad o dinero- se prestó a esta exposición?. Ahí es cuándo la interrogante "(.Quién está usando a quién?" se torna poderosa". Pensando na experiência do cinema-verdade francês, perguntei para Vivi Erpel, presidente da ADOC, se a explicitação da instânCia discursiva dos cineastas, aspecto auto-reflexivo iniciado por Rouch e ausente neste filme, não contribuiria para desvendar este problema ético. Para ela, que manifestou claramente suas reservas sobre isto, a manipulação possível dos realizadores não necessariamente deve ser explicitada no campo da diegese. "Tiene que haber mucha justificativa para que un docurnentalista se transforme en su personaje. Porque yo ya sé por e! montaje lo que estoy determinando. Y como 142 ESTUDOS DE CINEMA está esta tendencia en Ia televisión, se la repite mucho. Es Ia generación Michael Moore. Pero pasa que no siempre se justifica que e! autor se convierta en un personaje" Constatou-se que os filmes do presente, ao mostrarem as contradições da experiência chilena, utilizam como base uma nova estrutura material que lhes garante autonomia e independência, na produção e nos compromissos institucionais; criam assim margem para o questionamento sócio-histórico, enfrentando as versões dominantes, posto que o poder dos meios massivos de comunicação continua bastante centralizado. Dada a predominância do modo performativo em questão, o que acompanha a tendência mundial, também o cinema da memória mostra um presente desorientado, sem perspectiva ou expectativa histórica, onde os protagonistas são, via de regra, jovens sem futuro. Nestas películas, as ideologias se dissipam diante da força da sobrevivência cotidiana e o impacto da globalização induz os sujeitos a novos posicionamentos perante o mundo. Indiretamente, este cinema cumpre a função de um credor histórico: Onde estão as filiações políticas e os compromissos atuais? Em que sentido os jovens se mobilizam hoje? Para falar desta juventude, passa-se à análise de E! Astuto mono Pinochet contra La Moneda de los Cerdos, de Osnovikoff e Perut (2003). Nele, a história política é recriada por grupos distintos de crianças e adolescentes, a partir de jogos de improvisação registrados por uma brilhante câmera. A base narrativa do filme é este papel documentarizante do processo destes jogos - como evoluem e as diferentes versões que são criadas para a mesma circunstância histórica quando, por exemplo, mostra-se a morte de Allende como suicídio, ou como assassinato . Na estilística do direto, a película apresenta o espaço onde é preparada (prófilmico ), e inexoravelmente o espectador é levado, ao longo de todas cenas, de volta a este lugar, à margem ou ao recuo de uma fruição juntamente narrativa e autoreflexiva. Tal distanciamento crítico, na linha do teatro brechtiano, transforma os realizadores em desenhistas de um dispositivo audiovisual lúdico, por meio do qual é recriado o conflito histórico surgido durante o governo da Unidade Popular. Em meio àos grupos de jovens, tem-se um filme sendo feito, o cinema dentro do cinema. Dos jogos de improvisação surge o roteiro, e ao mesmo tempo, por conta da função documentarizante, o conteúdo dos discursos feitos durante estes movimentos tomase um objeto histórico contrastante para os montadores, que mostram por meio deste documento de pesquisa, a sobrevivência dos ditos dos mais velhos na fala das crianças, como uma grande tecelagem. Assim, a agudeza da montagem é outra característica que Perut e Osnovikoff exercem com grande poder crítico, por vezes transformandose em algozes dos seus próprios protagonistas e construindo pontos de vista muito EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 143 :eloqüentes em termos expressivos, que ao público posicionam e distanciam, ao mesmo •tempo, tanto da história chilena quanto desses sujeitos contemporâneos, cujos discursos fazem com que nos tomemos entes observadores dos acontecimentos. O casal de realizadores já foi várias vezes atacado por críticos e pares por adotar a postura que beira a quebra da confiança na relação autor-sujeito no filme. Jorge Morales afirma que no caso de Um hombre a parte, os cineastas mentiram ao protagonista para obter imagens que, na montagem, manipularam com ironia seu próprio sujeito, que ingenuamente se colocou à disposição de um projeto filmico que em verdade desconhecia. Esta quebra de compromisso é, evidentemente, uma ruptura ética. Antes de analisá-la ou julgá-la, meu trabalho pretende demonstrar que isto é possível num campo intelectual cujo cinema é produzido dentro de um sistema ·independente em absoluto. A comunicação que ora faço quer destacar o aspecto ético atrelado a estas novas condições de produção, nas quais ocupa posição de evidência a importância das instâncias executiva e comercial na constituição ética da proposta audiovisual. O que chama a atenção é que esta geração pensa seu gênero de atuação como um campo amplo para experiências, promovendo relações entre vídeo-arte e documentário (Cifuenetes, Aravena), documentário e ficção (Perut, Osnovikoff); com este proceder introduz no celeiro intelectual de seu país uma noção radicalmente modernizada e ampliada do estatuto documentarista, em clara sintonia internacional, onde o realizador opta por assumir ou não os compromissos que surgem em seu processo. A opinião do autor centra-se na sua figura individual, porque sua instância produtiva assim lhe permite alavancar e assinar seus pareceres, não existe alinhamento político e pode haver a quebra dos compromissos com o sujeito, como em Um hombre aparte. Todavia, em nenhum dos exemplos desta estética surge o próprio realizador no pró-filmico, quando poderia assumir na representação esta liberdade, colocando-se explicitamente no lugar da enunciação- isto ocorrerá, de maneira inevitável, durante o trabalho da montagem. Já em Algun Lugar de! Cielo (2003), a presença do elocutor no pró-filmico é clara, permanente. Acompanha-se a personagem protagonista na intimidade da sua fabulação representativa do período histórico. Foucault (2004) apresenta dois conceitos bastante úteis à compreensão da estética documentária contemporânea na América Latina: A micro-política, em filmes onde observa-se a política nos mundos particulares. A técnica de si, em produções feitas a partir do sujeito-autor. Em matéria de processos criativos, tem-se um cinema que recoloca a importância do roteiro: escrever a partir das técnicas do direto significa, uma lidar com o acaso e, ao mesmo tempo, uma roteirização na montagem. O novo roteirista trabalha determinado pelos materiais. E esta elaboração poética (escolher dentro dos paradigmas para compor um sintagma) passa a ser uma técnica de si. Sabendo-se que o sujeito da . ESTUDOS DE CINEMA 144 enunciação e o sujeito do enunciado são duas instâncias distintas, é a presença do segundo com as marcas apagadas do primeiro o que chama a atenção como sintoma: em tempos democráticos, onde não haveria aparentemente censura, o sujeito da enunciação adere ao direto sem cogitar a reflexividade pessoal, e sim uma reflexividade do processo filmico em si, como se esta ausência pudesse se esquivar da política. REFERÊNCIAS AVELLAR, José Carlos. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjinés, Alea- teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. 34/Edusp, 1995. MORALES, Jorge "En los limites del documental: Mentiras verdadeiras", Revista Mabuse, http://www.mabuse.cl/1448/article-31406.html, Santiago de Chile, 2007. NÚNEZ, Fabián, "O Novo Cinema chileno: 1967-1973", Revista CINESTESIA. Cavallo, Ascanio, "El N uevo Cine Chileno es una entelequia" revista Mabuse. SOLANAS, Fernando E. e GETINO, Octavio. Cine, cultura y descolonización. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973 Artigo de Rodrigo González sobre Un hombre aparte con testimonios de Perut y Osnovikoff (La Tercera, 12 de Diciembre 2001 ). A estética da monotonia: desencanto, solidão e incomunicabilidade em Whisky FÁBIO .ALLAN MENDES RAMALHO (UFPE) I UM CERTO DESENCANTO LATINO-AMERICANO SE JEAN-Luc GüDARD, em Vivre sa vie (1962), em determinado momento enuncia que "a felicidade não é engraçada", talvez seja possível dizer, por sua vez, que a infelicidade pode ter certa graça - mesmo que provocando um riso inegavelmente incômodo. O tom de desencanto que permeia diversas obras do cinema latino-americano contemporâneo e que tem se desdobrado em narrativas marcadas por uma perspectiva por vezes nostálgica e melancólica, outras vezes fortemente irônica, aponta também, em determinadas produções, para a possibilidade de articulação entre estas duas vertentes a partir de uma abordagem intimista, cuja construção se dá em tomo de pequenos fatos, banalidades cotidianas que ganham visibilidade a partir de uma poética do detalhe e do ordinário. 2 Uma apreciação das duas obras realizadas conjuntamente pelos diretores Pablo Stoll e Juan Pablo Rebella, 25 Watts (2001) e Whisky (2004), evidenciam como uma de suas principais marcas este caráter fortemente subjetivo a partir do qual são postas em cena as vivências diárias de personagens marcados pela falta de perspectivas e pela desarticulação. Suas ações, embora ordenadas em rotinas e repetições, constituem o que se poderia entender como uma aparente "crise de sentido", na medida em que, 1. Pesquisa desenvolvida com apoio financeiro da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). 2. Um importante esforço no sentido de delinear, dentre o conjunto da produção audiovisual contemporânea- e em particular no cinema brasileiro- as recorrências discursivas e estéticas de obras que privilegiam este olhar voltado ao detalhe e ao ordinário- constituindo assim o que se poderia entender como uma poética do cotidiano- encontra-se em Lopes (2005). 146 ESTUDOS DE CINEMA longe de apresentarem-se como fatos articulados, apontam para um sentimento de desconexão e deriva. As esferas da cotidianidade - dentre elas os espaços da casa, do trabalho e da cidade, bem como as relações afetivas, quer sejam estas amorosas ou · familiares - são perpassadas pela disjunção entre a dinâmica que lhes é própria, suas demandas, e as carências e anseios dos indivíduos retratados. Tais problemas apontam, assim, para um estado de perplexidade que, em última instância, sugeriria uma possível falência de objetivos e interesses em um contexto de desolação e imobilidade. Neste artigo pretendemos discutir os modos pelos quais um olhar sensível a estas questões se constitui em tomo de micronarrativas centradas em pequenos acontecimentos - alguns deles aparentemente insignificantes, quando tomados pelo ponto de vista das narrativas clássicas - analisando, para tanto, de que modo tais preocupações se traduzem em recursos estéticos tais como ritmo, enquadramentos e mise-en-scene. Optamos por centrar nossa análise em Whisky, o último dos dois filmes resultantes desta parceria - interrompida prematuramente pela morte de Rebella, em 2006 -, por entendermos que este apresenta elementos que são de particular importância para esta investigação. Dentre os elementos do cotidiano possíveis de serem abordados, evidenciamos aqueles que, a mossa ver, sobressaem-se na construção da narrativa. Primeiramente, o âmbito do trabalho e suas rotinas, que se apresenta de forma recorrente no enunciado da obra. Em segundo lugar, consideramos a tematização de afetividades ambíguas, por diversas vezes apenas sugeridas entre os personagens e que, no entanto, ganham profundidade com o desenrolar da história, podendo apontar interessantes caminhos para a apreensão dos inúmeros sentidos possíveis sugeridos pelo filme. Pretendemos ainda, ao longo deste percurso, estabelecer conexões com obras realizadas no mesmo período, como tentativa de contribuir para o delineamento de linhas de convergência temática na produção recente dos países da região. Nosso objetivo neste trabalho é pensar como estas múltiplas esferas da cotidianidade permitem discursivizar subjetividades, articulando pontos de vista que, muitos particulares, propõem uma leitura bem pessoal e localizada de questões pensadas predominantemente sob a ótica das macronarrativas sociais. Neste desvio, constituemse modos de apreensão do real e de narrativização da experiência que, situadas no seu contexto de produção, sugerem interessantes formas de aproximação a questões latinoamericanas - para além do cinema militante e da alegoria política que por diversas vezes lhe têm sido associados. MONOTONIA NO TRABALHO: A REPETIÇÃO DOS GESTOS Falar do mundo do trabalho como instância de inserção social e atuação política, elemento de construção identitária e de estruturação de temporalidades, implica EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 147 inevitavelmente, deparar-se com as múltiplas transformações por ele sofridas nas últimas décadas. Exige até mesmo, de um modo mais radical, analisar sua permanência, questionar seus desdobramentos - os desvios, perdas e transmutações levadas a cabo pelas transformações históricas que alteraram as dinâmicas das atividades produtivas e de interação nos espaços urbanos -bem como as relaç,ões de força a elas estritamente relacionadas. Leva-nos ainda a enfrentar, mesmo que tangencialmente, as contradições e intensidades que esta discussão assume na América Latina, onde a discutida crise de centralidade do trabalho surge amplificada de maneira desconcertante pela posição periférica que ocupa esta região, à margem do capitalismo globalizado. Gonzalo Aguilar (2006: 07-9), logo na introdução de seu ensaio sobre o cinema argentino contemporâneo, aproxima-se destas e outras questões, ao interrogar sobre os modos pelos quais tais mudanças se delineiam e se permitem flagrar em obras recentes, a partir do que ele entende como "marcas do presente": formas pelas quais o cinema discute, representa e negocia as questões sociais de seu tempo. Ou, nas palavras do próprio autor, "o que os filmes fizeram com o tempo que lhes coube viver". No que diz respeito especificamente ao universo laboral, Aguilar reflete sobre como as significativas alterações no panorama político da região, somadas ao surgimento de novas ocupações, à precarização das condições de trabalho e às variações no próprio imaginário acerca do mesmo - os valores e sentidos a ele atribuídos desdobraram-se em formas bastante peculiares de problematização formal destas questões nos enunciados das obras (AGUILAR, 2006: 133-65). Aponta, assim, para uma preocupação estética dos realizadores em estabelecer uma aproximação entre a forma fílmica e os modos pelos quais o trabalho, de certo modo, organiza a vivência dos próprios personagens, sua temporalidade, rotinas e ações. Em suma, discute esta tentativa de traduzir na própria forma do filme, na estética. das obras, este lugar ocupado pelo trabalho como elemento-chave para a narração da experiência dos personagens. 3 No que diz respeito ao cinema de Rebella e Stoll, podemos afirmar que se os dois filmes mencionados anteriormente podem ser ambos caracterizados por um tempo arrastado, ao longo do qual nenhum acontecimento assume de fato relevância e em que as pequenas ações apresentadas apenas contribuem, em grande medida, para pontuar a apatia proporcionada por uma rotina maçante- estando este clima de desalento amplificado pela relação entre expectativas íntimas e a frustração pela sua nãoconsumação -, é certo que os termos a partir dos quais os personagens vi venciam sua dinâmica cotidiana constituem-se de modo sensivelmente diverso nas duas obras, e 3. Tal convergência entre a narrativa filmica e a narração ou estruturação do tempo cotidiano pela ótica do trabalho é analisada, por Aguilar, especialmente a partir do longa-metragem argentino Mundo grúa (1999), de Pablo Trapero, um dos filmes do cinema latino-americano que, nos anos 90, mais diretamente abordou esta questão (AGUILAR, 2006: 159-62). 148 ESTUDOS DE CINEMA tais diferenças tomam-se mais perceptíveis justamente no que conceme ao lugar ocupado pelo trabalho. Se a estranha leveza e a falta de propósitos bem defmidos, a partir dos quais os jovens de 25 watts assumem seus deslocamentos e interações no espaço urbano da. capital uruguaia, Montevidéu, aludem a uma falta de vínculos e perspectivas, pode-se dizer que esta deriva urbana se faz possível justamente pela possibilidade do ócio: à margem da dinâmica social representada pelos processos produtivos - mesmo que tentando inserir-se, como no caso de Javi, interpretado por Jorge Temponi, que desempenha uma atividade como motorista em um carro de anúncios -, suas motivações mostram-se tão variadas quanto incertas. É assim que as aulas de italiano de Leche, personagem de Daniel Hendler, parecem movê-lo mais pelo interesse em sua professora- de quem ele busca, sem sucesso, uma aproximação romântica- do que propriamente como um fim objetivo de aprendizado. Por sua vez, a movimentação na cidade acontece de forma quase aleatória, dando-se a partir de encontros fortuitos na rua, como quando Seba (Alfonso Tort) é confundido com seu irmão e termina no apartamento de desconhecidos consumindo drogas. No mais, essa busca constante aliada à falta de objetivos fmalísticos materializa-se em uma série de ações banais, como a brincadeira de tocar campainhas. Ações que sequer chegam a constituir um ato de delinqüência, ao contrário do que ocorre, por exemplo, em Rapado ( 1992), primeiro longa-metragem do diretor argentino Martín Rejtman, em que o protagonista rouba uma motocicleta como espécie de compensação: a primeira seqüência do filme mostra justamente este jovem, Lucio, tendo sua motocicleta e seus sapatos levados por um assaltante. No mais, a mesma aparente falta de sentido existente nos mais ínfimos atos cotidianos, dos jovens de 25 watts pode ser igualmente percebida no filme de Rejtman, como quando um rapaz oferece um cigarro a Lucio na parada de ônibus, mas logo em seguida, diz que não tem fogo para acendê-lo, de modo que os dois permanecem com os cigarros apagados nas mãos. Nestes dois filmes, o trabalho surge como uma espécie de ausência (des)estruturante: não-inseridos nos circuitos de produtividade, os jovens vivenciam formas alternativas de experimentar o tempo e a sociabilidade que não chegam, no entanto, a constituir um modo de vida organizado. Ou, como observa Beatriz Sarlo, ainda sobre o filme de Rejtman: E! mundo de! trabajo (o de la preparación sistemática para e! trabajo en la escuela) está ausente, cuestión que nos habla de! lugar que este ocupa en los noventa. El trabajo es un bien escaso. Aunque conserva un lugar clave desde e! punto de vista de la inserción social, ocupa una posición completamente subordinada desde e! punto de vista cultural, y no es un espacio de identificación. Hoy es dificil que un núcleo de construción de la identidad sea alguna ocupación profesional o laboral. (2003: 128) ·EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 149 , ·. Boa parte da ação, portanto, parece organizar-se em tomo desta falta- à exceção do :já mencionado personagem Javi, que se vincula à (sub)ocupação de dirigir um . carro de anúncios da qual, ironicamente, é despedido ao final do filme, o que sugeriria a impossibilidade de exercer até mesmo uma atividade não-especializada, informal e provisória. Além deste, um outro momento em que o trabalho insinua-se na narrativa, é quando Seba encontra um motociclista entregador de pizzas que foi despedido do antigo emprego, após um incidente ocasionado pelo fato de que este havia começado a ouvir vozes. Trabalhava muito, oito horas por dia, imóvel, e portanto tinha muito tempo para pensar. "Y un día la cabeza empieza a pensar só/a; y un día empiezan las voces. Bláblábláblá de un lado, bláblábláb/á de/ otro... ". É justamente em cenas como esta onde fica claro que não se trata apenas de uma tentativa de inserção: o problema não é simplesmente o de fazer parte, mas as próprias alternativas mostram-se invalidadas, insuficientes. O contraponto à falta de um trabalho não é a realização pessoal e profissional, a inserção atuante, mas o desgaste de uma atividade sacrificante, enlouquecedoramente monótona. Em Whisky, por sua vez, o tempo está ordenado em tomo de ações rotineiras, a maior parte delas vinculadas ao ambiente de trabalho - à sua presença. O espaço da fábrica não é o espaço da leveza: ele comporta o peso da repetição e da imutabilidade, traduzidos no funcionamento mecânico das máquinas e nos gestos quase automáticos reproduzidos diariamente, como a reiteração de um mesmo conjunto de seqüências e falas sugerem. A forma cíclica com que a dinâmica rigidamente estabelecida entre os personagens é demarcada toma-se evidente por meio da alternância de planos que apontam o caráter repetitivo desta movimentação. Destravar o cadeado, abrir o portão, acender as luzes e ligar as máquinas são algumas das ações detalhadamente exploradas ao longo da narrativa e que aludem a esta rotina. A monotonia que perpassa as horas transcorridas no espaço da fábrica está inscrita a partir de tempos mortos- instantes em que nada efetivamente acontece- e nos gestos que sutilmente traçam um mapa afetivo da solidão e do tédio na vida destes personagens. A lentidão e o cuidado com que são filmadas algumas ações mínimas como a primeira refeição do dia em um estabelecimento decadente, a pausa para um cigarro, durante o trabalho ou até mesmo a cautela com que se cobre com papel higiênico o assento do vaso sanitário de um banheiro público, antes de usá-lo, atuam no sentido de distender a temporalidade da narrativa até o limite de uma quaseestagnação, dada a banalidade do que é apresentado. Mas tais ações servem também para enfatizar a desordem cotidiana - suas rotinas mundanas, sua heterogeneidade e dispersão - como elementos de interesse narrativo, em contraposição à excepcionalidade dos acontecimentos extraordinários e à virtuosidade comumente valorizados pelas narrativas heróicas (FEATHERSTONE, 1997: 82). Percebe-se, assim, uma opção pela colocação em primeiro plano da esfera do ordinário, evidenciada ainda no fato de que o grande acontecimento que promove a 150 ESTUDOS DE CINEMA aproximação dos personagens e que, assim, intensifica as tensões entre os mesmos - · o matzeibe, cerimônia que constitui o motivo da visita de Herman (Jorge Bolani), irmão de Jacobo (Andrés Pazos) e, conseqüentemente, do convite (velado) feito por este último a Marta (Mirella Pascual), para que fmja ser sua esposa- nos é interditado. Nesta seqüência em particular, a câmera limita-se a filmar, em dois rápidos planos, o movimento quase coreografado dos corpos durante o momento dos cumprimentos formais após a cerimônia: um em que o ângulo de observação está voltado para o chão, mostrando apenas as pernas e os pés dos presentes, e outro em que a câmera está posicionada atrás dos irmãos, de modo que não é possível ver suas expressões. Com isso, esvazia-se o momento de todo seu potencial dramático, atribuindo-lhe uma natureza também distanciada, repetitiva, quase burocrática. Pode-se afirmar, de fato, que grande parte dos desdobramentos que são apresentados ao longo do filme e que estão centrados nos conflitos provenientes desta relação familiar são norteados por esta lógica de interdição ao universo de pensamentos e emoções dos personagens. Mesmo quando filmados de forma direta, detidamente, tais personagens demandam uma leitura nas entrelinhas, sustentada em nuances de expressões e gestos. AFETIVIDADES CONTIDAS: A SUTIL DIFERENÇA Embora o humor em Whisky contribua para atribuir um tom mais leve a uma história permeada por temas tão difíceis, quanto a solidão e a falta de perspectivas, bem como os desentendimentos familiares e as mágoas daí provenientes, é verdade também que o riso, neste caso, inscreve-se não como uma saída tuma recolocação dos problemas em outros termos, menos desfavoráveis - mas, pelo contrário, como uma forma de realçar a inadequação dos personagens. Trata-se, neste caso, de um humor que se alimenta de fragilidades, constrangimentos; um humor quase perverso, não fosse pela cumplicidade que estabelece com aqueles indivíduos e seus pequenos fracassos. É, enfim, um humor dúbio, que faz rir daquilo que ao mesmo tempo comove e que, por isso, não deixa de causar desconforto. Grande parte das situações que contribuem para acrescentar esta acidez à narrativa vem da visita de Herman, elemento desestabilizador cuja presença não apenas reaviva antigos ressentimentos entre os irmãos como também parece tornar evidente a decadência de Jacobo e de sua fábrica. No entanto, uma vez que, como dito anterior:mente, os sentimentos destes personagens nunca são diretamente verbalizados -o que, de fato, a mise-en-scene parece evidenciar é justamente este fracasso da linguagem como meio para a explicitação de emoções e recurso para a sociabilidadea compreensão dos motivos que ocasionam o desentendimento só pode ser realizada a partir de poucas informações sugeridas pelas conversas. A ausência de Herman durante todo o período de doença da mãe e o seu não-comparecimento ao enterro são 'EM TORNO DA AMÉRICA LATINA ISI ., indícios, possíveis razões para a hostilidade de Jacobo. Tudo isso, no entanto, pode ser apenas deduzido, uma vez que as conversas restringem-se quase sempre ao triviaL A importância recai sobretudo sobre o não-dito, sobre o silenciado. Assim, o que contribui para o agravamento da tensão- sufocada, não-assumida - é a descrença na possibilidade do entendimento. Se Herman, em atitudes mínimas, demonstra falta de jeito ou de cordialidade em relação ao irmão, são no entanto as atitudes de Jacobo as mais representativas desta amargura desesperançada que se traduz em um distanciamento e em uma rispidez que só podem ser contornados a partir de um esforço por parte do próprio espectador. Deste, exige-se um olhar cúmplice, uma sensibilidade capaz de transpor a aspereza superficial e apreender a delicadeza deste personagem. Marta, por sua vez, aparece como a figura que, transitando entre estes dois pólos da relação familiar, reservará a posição mais ambígua, incerta e, não obstante, mais esperançosa. É nela que se encontra, de forma mais evidente, a tensão entre, por um lado, a imersão no melancólico universo de um cotidiano desgastante e, ao mesmo tempo, o impulso, mesmo que insuficiente, para o descolamento desta realidade e a busca por um prazer tênue, fugidio. Afinal, de que outra forma poder-se-ia entender sua ida ao cinema ou o constante uso de fones de ouvido com os quais ela escuta música- seja no metrô, seja em frente à entrada da fábrica, onde espera a chegada de seu patrão - senão como formas de paliativo, fuga e sonho possíveis ao cotidiano austero com o qual ocupa grande parte de seu dia? Neste sentido, a própria brincadeira de inverter palavras aponta também, simultaneamente, para um tédio quase constitutivo da experiência- por remeter a um passado distante em que a cabeça, desocupada, já se detinha a jogos de banalidades-, e à constituição de um universo interior, contraponto e subterfúgio para um mundo solitário e desencantado. Neste contexto, a ida a Piriápolis representa, no presente, o momento em que ocorre, se não uma suspensão, pelo menos uma alteração desse cotidiano, que passa a ser temporariamente organizado não em tomo do tempo do trabalho, mas vivenciado a partir do lazer (embora as feições dos personagens mostrem-se ainda quase tão impassíveis quanto nos outros momentos da história!). Configurando este desvio, a viagem assinala então o ponto que demarca uma possibilidade de mudança. E é justamente nas atitudes de Marta ao longo deste passeio que estarão inscritos, de modo mais ambíguo, os seus interesses afetivos. Assim, se no início do filme parece possível pressupor algum tipo de interesse da personagem por Jacobo- pelo modo como sutilmente se sugere um envolvimento emocional da mesma na farsa do casamento, a partir de pequenos gestos, como a preocupação com os detalhes da história do casal, a obstinação com que opera uma silenciosa transformação no espaço da casa, dando-lhe vivacidade, e até mesmo a mudança no seu corte de cabelo 4 por 4. E também neste caso observa-se, como a repetição dos planos e falas no espaço da fábrica, serve também para demarcar a diferença: a mudança de Marta inscreve esta variação, seja pela discreta alteração na sua aparência ou até mesmo pela sua ausência, ao final da película. ESTUDOS DE CINEMA 152 outro lado, é principalmente a partir da cena do karaokê que se insinua um possível encantamento de Marta por Herman, no momento em que este cantá a mesma canção sempre ouvida por ela ao longo do filme. Nesta seqüência fica mais cÍara a muda obstinação com que Marta parece buscar essa quebra, romper o estado de solidão pe1manente que os rodeia, a partir de novas formas de aproximação/pertencimento. A cena do karaokê apresenta-se ainda como urna seqüência-chave por demarcar o momento em que Herman pretenderá (sem sucesso) "quitar sua dívida" com o irmão, tentativa realizada de forma literal na proposta de compensação financeira não apenas pelos prejuízos materiais advindos do tratamento de sua mãe, como também pelos anós em que permaneceu ausente. Às palavras rudes, econômicas, soma-se então a circulação de objetos e valores como elementos que, superficialmente, preencherão o vazio deixado pelos sentimentos não-explicitados. E se é possível afirmar, como dito anteriormente, que a narrativa do filme se organiza em sintonia coin o papel que o cotidiano e sua monotonia exercem como organizadores da própria experiência, cabe acrescentar também, neste ponto, e a partir dos elementos apresentados, que uma correspondência semelhante se estabelece entre a interdição aos sentimentos e emoções que pontuam as relações entre os personagens e a forma fílmica. Recupera-se esta ênfase no não-dito como elemento estruturador da miseen-scene, e tal recurso toma-se claro ao notar-se o modo como a história é conduzida, a um final em aberto: Marta entrega um bilhete a Herman cujo conteúdo não nos é revelado, de modo que o desfecho assume um caráter inconcluso, subentendido. É a figura feminina de Marta, então, que de alguma maneira representa um modo de agir que sutilmente inscreve, no encadeamento mecânico de palavras e gestos repetidos, a tímida diferença capaz de abrir o ciclo fechado da rotina às possibilidades (incertas) de transformação. A indefinição no que diz respeito às suas escolhas -sabemos apenas que não compareceu ao trabalho, que antes havia revelado a vontade de viajar, caso tivesse dinheiro, e que a quantia a ela destinada por Jacobo poderia significar a concretização deste sonho - os espectadores são convidados a criar a partir destes fios soltos. Elaborar um fmal para a história toma-se, desta forma, uma ação capaz de instaurar no espectador aquela mesma esperança - melancólica, frágil, improvável- na possibilidade de ruptura. · REFERÊNCIAS AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos: un ensayo sobre e! nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2006. FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997. HELLER,Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 153 LOPES, Denilson. "Nem favela, nem sertão ou por um cinema do cotidiano". Em: Afrânio Catani;Wilton Garcia, Mariarosaria Fabris. (Org.). Estudos Socine de Cinema: ano VI. I ed. São Paulo: Nojosa, 2005, p. 293-300. SANTIAGO, Silviano. "Ondas do cotidiano". Em: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.l51-159. SARLO, Beatriz. "Plano, repetición: sobreviviendo en la ciudad nueva". Em: Birgin, Alejandra y Trímboli, Javier (comps.). Imágenes de los noventa. Libros dei Zorzal: Buenos Aires, 2003, p. 125-150. A Caravana Farkas e o moderno documentário brasileiro: introdução aos contextos e aos conceitos dos filmes GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO (UNICAMP) ENTRE 1964 E 1981, o fotógrafo e empresário Thomaz Farkas produziu trinta e nove filmes, hoje conhecidos sob a expressão Caravana Farkas. São trinta e seis documentários erp. curta-metragem, um curta de ficção e dois filmes em longametragem, sendo um documentário e um de ficção. 1 Este artigo explora os filmes documentários. Dadas as particularidades dos processos de produção e de realização explicados mais adiante, os filmes podem ser divididos em três fases: Primeira Fase: Memória do cangaço (Paulo Gil Soares, 1965), Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), Nossa escola de samba (Manuel Horácio Gimenez, 1965) e Viramundo (Geraldo Samo, 1965); Segunda Fase: A morte do boi (1969-1970), A vaquejada (1969-1970), Frei Damião - trombeta dos aflitos e martelo dos hereges (1970); A erva bruxa (1969-1970), O homem de couro (1969-1970), A mão do homem (1979), Jaramataia (1970) - dirigidos por Paulo Gil Soares; A cantoria (1969-1970), Vitalino Lampião (1969), O engenho (1969-1970), Padre Cícero (1971), Casa de farinha (1969-1970); Os imaginários (1970), Jornal do sertão (1970), Viva Cariri (1969-1970), Região Cariri (1970) -dirigidos por Geraldo Sarno, Rastejador e Roda e Outras Histórias (Sérgio Muniz, 1969-1979) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escore!, 1970); Terceira Fase: A cuíca (1970), De Raízes & Rezas, entre outros (1972), Cheiro/Gosto, o Provador de café (1976), Um a um (1976), Andiamo ln'merica (1977-78), Beste (1977-78) e O Berimbau (1978) - dirigidos por Sérgio Muniz; A morte das Velas no Recôncavo (1970) e Feira da banana (1972-73) - dirigidos por I. Os filmes de ficção são o curta O homem descasado (direção de Rubens Junqueira, 1981) e o longa O Pica-pau Amarelo (direção de Geraldo Sarno, 1973174). 156 ESTUDOS DE CINEMA Guido Araujo, Paraíso Juarez (1971), Todomundo (1978-80) e Hermeto, Campeão (1981)- dirigidos por Thomaz Farkas, Trio Elétrico (Miguel Rio Branco, 1978), Ensaio (Roberto Duarte, 1975) e Certas Palavras (Mauricio Beru, 1979). Thomaz J. Farkas é a produtora responsável pelo financiamento de todos os filmes e Farkas, além de financiá-los e também participar de um sistema de coprodução na terceira fase, atuou como elemento aglutinador de um grupo de realizadores interessados em desenvolver projetos que resultariam em filmes sobre aspectos da realidade brasileira, em que sobressaiu o foco sobre o homem brasileiro, visto numa ampla perspectiva econômico-social, cultural e histórica. A expressão Caravana F arkas é atribuída a Eduardo Escorei, um dos integrantes da equipe, e foi cunhada posteriormente, nos anos 1990. A nomeação posterior, distanciada no tempo, permite delinear para o conjunto dos filmes o estabelecimento de certas diretrizes que norteiam o trabalho do grupo, em que se nota o início. e a interrupção de um projeto cinematográfico, demarcado pelas possibilidades técnicas que avançavam no tocante, às mediações com o material bruto à disposição, tomando o formato documentário brasileiro algo inovador em certas instâncias. No plano do conteúdo, verifica-se o recorrente mapeamento da geografia e da história nordestinas em busca de situações particulares. Além desse espaço recortado, há investimentos em outros lugares, como ocorre com filmes que se situam na região sudeste e um filme voltado para a imigração italiana, que capta momentos da vida social e econômica em São Paulo e no Rio Grande do Sul, além de recorrer à região do Veneta, na Itália, para a composição do quadro histórico mais preciso do fenômeno em questão. Num primeiro momento, apreendem-se dois aspectos amalgamados na articulação, expressão e conteúdo, diretamente conectados com o contexto estético e político da época dos filmes e o prolongamento do projeto também informa sobre os ditames técnicos, éticos e estéticos e o quadro ideológico que balizaram o período em que os filmes foram feitos. De um lado, a forma dos filmes, já no início, buscava apropriar-se de certos matizes do cinema verdade, notadamente um tipo de registro com uso de câmeras leves e som sincronizado, permitindo a realização de filmes com equipe reduzida e uma maior aproximação com o objeto a ser filmado. Nos filmes, são relevantes os usos da entrevista e do depoimento, procedimentos que ligam as obras ao cinema verdade e a penetração da câmera nos mais recônditos lugares acentua o firme propósito de captar situações autênticas da realidade, algo que sinaliza também a passagem de um modo de fazer documentário que privilegiava a encenação para a abertura e o registro dos fenômenos reais. Ainda do ponto de vista do. plano da expressão, insiste-se na voz o ver em sintonia com o ideal interpretativo que alimentava o projeto e nos registros dos acontecimentos fundem-se a captura de situações autênticas com expedientes de encenação, estas operadas por atores não profissionais na lide com seus oficios diante da câmera, outro elemento formal presente em alguns filmes é o uso de material de arquivo e também a migração de imagens entre os filmes, com enfoques diferentes. Cabe destacar a pesquisa sonora enfeixada por ·EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 157 músicas regionais ligadas às tradições folclóricas e um repertório que inclui canções, grupos e cantores da Música Popular Brasileira, como a Banda de Pífanos de Caruaru, Caetano Veloso e Gilberto Gil. O enfoque na realidade brasileira se ajusta ao quadro ideológico da geração de artistas e intelectuais da década de 1960 e sua preocupação social em fina sintonia com o pensamento sociológico brasileiro, como é o caso da influência das idéias de Otávio Ianni em Viramundo, notadamente na moldura discursiva. Para a segunda fase, podem-se destacar as idéias de Cândido Procópio, sobre cultura popular e outras referências podem vir à tona, já que se realizava intensamente a pesquisa sobre certos traços da cultura brasileira em ambientes institucionais, com destaque para a Universidade de São Paulo. Devido ao contexto de tal empreendimento, justifica-se o forte apelo às contradições provocadas pelo surto de industrialização e desenvolvimento ocorridas em solo brasileiro e a atenção às tensões desse processo. Em face desse cenário, os realizadores motivaram-se em registrar formas de trabalho e de organização social em vias de desaparecimento em face do processo modernizador em avanço no . país. Dado flagrante é a evocação à miséria e à alienação como marcas do subdesenvolvimento, as dessimetrias e disparidades encontradas no vasto solo brasileiro, a permanência de elementos arcaicos presentes na vida social, onde o nordeste brasileiro parecia ser o palco central dessa conjuntura. É moeqa corrente o acontecimento primordial que marca a introdução das técnicas do cinema verdade no Brasil, ou seja, a vinda do documentarista sueco Ame Sucksdorff, em 1962, para um seminário ocorrido no Rio de Janeiro. Vladimir Herzog, jovem realizador e jornalista, cuja efêmera passagem pelo grupo de Farkas, faz alguma diferença, participa do evento juntamente com Eduardo Escorei, outro membro do grupo. Além dessa experiência de Herzog, há também sua permanência, juntamente com Maurice Capovilla, para um estágio na Escuela Documental de Santa Fé, criada na Universidad Nacional de! Litoral, em Santa Fé, na Argentina. Em 1963, ocorre a vinda do cineasta Fernando Birri para um seminário em São Paulo, a convite de Paulo Emílio Salles Gomes. Além de dirigir filmes de forte presença, Birri, idealizador da Escuela Documental, publicara textos de forte impacto sobre a situação do cinema latino-americano, em que pesa nos argumentos a urgência sobre um tratamento realista nas imagens, herança das idéias zavattinianas do neo-realismo italiano, como também o tom nacionalista que visava o questionamento da situação colonizada e subdesenvolvida do cinema. Após o Golpe Militar no Brasil, Birri segue viagem para a Europa, exilando-se na Itália, permanecendo no país Horácio Gimenez e Edgardo Pallero, ambos argentinos e que tinham trabalhado com o realizador na produção de seus dois filmes impactantes, Tire Die (1958) e Los inundados (1962). Antes de sua partida, o arquiteto modernista VilanovaArtigas, amigo de Farkas, promove o encontro deste com todos esses realizadores, facilitando a troca de experiências que desembocariam nos projetos dos documentários. Além de Herzog, Capovilla, Birri, 158 ESTUDOS DE CINEMA Gimenez e Pallero,juntam-se ao grupo, compondo uma primeira fonnação, os baianos Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares, ambos ativos participantes da cena cultural cinematográfica soteropolitana, este ex-parceiro de Glauber Rocha, assumindo a assistência de direção de Deus e o Diabo na terra do sol ( 1963 ), e aquele, entre outras atividades, criou o Departamento de Cinema do Centro Popular de Cultura, tendo realizado alguns curtas. À reiterada influência de Fernando Birri, soma-se a de Jean Rouch, após contato travado depois de sua vinda ao Rio de Janeiro, em 1965, juntamente com Louis Marcorelles, Freddy Buache e Robert Benayon, para o primeiro Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro. Na ocasião foram projetados os quatro primeiros filmes produzidos por Farkas nos anos 64/65, sendo Memória do cangaço, Subterrâneos do futebol, Nossa escola de samba e Viramundo. Todos foram incorporados no longametragem Brasil Verdade. A abordagem cinematográfica desenvolvida para o tratamento dos temas é fruto de uma rede de influências transnacionais, resultado de encontros de idéias que são absorvidas e transfonnadas em método de trabalho. Mesmo nos percursos individuais, nota-se nas fonnações curriculares a aproximação a detenninadas idéias posterionnente amadurecidas e compartilhadas que oferecem uma noção de grupo coeso e afinado com propostas sólidas, o que pennite conjecturar, a proximidade dessa experiência como um movimento articulado, algo pertencente ao espírito modernista, do qual os anos 60 foram particulannente sensíveis no campo do cinema. Evidentemente, no Brasil, ao Cinema Novo é atribuído o papel relevante de ruptura no horizonte estético. Nesse sentido, cabe determinar certas coordenadas, primeiramente, no âmbito estético, que infonnem sobre as especificidades desses filmes e que efetivamente pesem e validem suas similaridades e diferenças no quadro geral da produção, continuando sua contribuição para o moderno documentário brasileiro. De acordo com Xavier (200 1: 14), o cinema moderno no país define-se a partir do seguinte: No quadro atual, quando a nossa atenção se volta para o processo que envolveu o Cinema Novo e o Cinema Marginal, entre o final da década de 1950 e meados dos anos 70, tal processo se apresenta como dotado de uma peculiar unidade. Foi, sem dúvida, o período estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro. As polêmicas da época formaram o que se percebe hoje como um movimento plural de estilos e idéias que, a exemplo de outras cinematografias, produziu aqui a convergência entre a "política dos autores", os filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem, traços que marcam o cinema moderno, por oposição ao clássico e mais plenamente industrial. Os três eixos política dos autores,jilmes de baixo orçamento e renovação da linguagem delineiam as coordenadas estéticas e avançam para o âmbito da produção. EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 159 Embora os filmes da Caravana se situem no amplo contexto do Cinema Novo, há um enfoque particular nos temas por parte do grupo. A proposta inicial do grupo, logo abortada, era filmar as ligas camponesas nordestinas, lideradas por Francisco Julião, idéia logo desencaminhada devido à censura do regime militar. O resultado da mudança de planos foi a realização de um projeto cunhado de A condição brasileira, inspirado na série de livros Brasiliana, que tinha o foco nas ciências sociais, sendo o material editado pela Companhia Editora Nacional. Nos filmes, a estratégia educativo-cultural passou a ser dominante, em contraste com o viés político preconizado. Para o conteúdo dos filmes desse primeiro momento é travado por um forte diálogo com professores da Universidade de São Paulo, em que participam ativamente Geraldo Samo, Leon Hirszman e, depois, Paulo Gil Soares. A primeira fase, portanto, é composta pelos quatro filmes que para facilitar o processo de distribuição e exibição, integraram o longa Brasil Verdade. Com locações na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo, esses filmes se reportam a temas como escola de samba, o futebol, o cangaço e a imigração nordestina. Com exceção de Memórias do cangaço, que já havia sido iniciado e depois foi incorporado ao projeto, os outros filmes foram concebidos e realizados sob o calor das idéias do grupo recém formado. Os filmes tiveram ampla repercussão em festivais e sua distribuição local (poucas salas e público minguado) ficou a cargo da Difilm. Para a continuidade do projeto, em 1965, Farkas, Sérgio Muniz, Edgardo Pallero e Affonso Beato juntam-se a Paulo Emílio Salles Gomes, a Francisco Ramalho Jr. e a Jean-Claude Bemardet para buscar apoio institucional. A Universidade de Brasília havia criado um curso de cinema, fato que os motivou a encarar a instituição como primeira opção, logo descartada devido à crise da mesma, alavancada após o Golpe de 1964. O apoio encontrado veio do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), vinculado à USP. Farkas e Muniz se imbuem, então, da tarefa de criação do Departamento de Produção de Filmes Documentários, contando com o apoio da professora e socióloga, Maria Isaura Pereira de Queiroz, ligada à sociologia rural. No ano seguinte, no final de 1966, é aprovado o projeto "Pesquisa e documentários sobre cultura popular do Nordeste", encaminhado por Farkas e Geraldo Samo, com proposta de co-produção de filmes. Em janeiro de 1967, partem para o Nordeste Samo, Farkas e Paulo Rufino com o objetivo de percorrer a região e levantar o material para os filmes, voltam com um farto material que iria resultar nos filmes Jornal do Sertão, Os imaginários e Vitalino Lampião. Esses filmes já integram o segundo momento de realização dos filmes produzidos por Farkas. Há que salientar que em 1968 o Departamento ligado ao IEB se desfez e a co-produção não se realizou, por questões financeiras. A pesquisa empreendida foi levada adiante, no mesmo ano, partem para o Nordeste Samo, Eduardo Escorei, Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz, Edgardo Pallero, Sidney Paiva Lopes, Affonso Beato e Farkas, este, agora, financiador solitário do projeto. O resultado dessa viagem é um conjunto de dezenove filmes, todos centrados na região nordestina e compõem a segunda fase de realização do núcleo. Há, sobretudo, 160 ESTUDOS DE CINEMA o olhar voltado para o registro de formas de organização de trabalho, de arte popular, de lazer e de misticismo religioso. Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia são os Estados percorridos pela Caravana. Os curtas-metragens seriam vendidos em escolas, atendendo a uma demanda desse setor que contava com projetores de 16 mm, mas careciam de material sobre o próprio país. A comercialização dos filmes teria essa fmalidade, algo que não se cumpriu efetivamente devido às restrições de aquisição de material nas escolas, sendo essas medidas outorgadas no contexto do Ato Institucional n. 05. Se, por um lado, agravava-se o processo de comercialização do material, por outro, adensava-se o conceito do projeto, tomando a experiência enriquecedora em relação ao procedimento de documentar a realidade brasileira. Nesse sentido, cabe um olhar particular sobre a experiência de linguagem desse conjunto de filmes. Essa singularidade enviesa-se a partir da noção de método articulado pela equipe, sendo a síntese desse percurso firmada na monografia ainda inédita Cinema documentário: um método de trabalho, tese de doutorado de Thomaz Farkas, apresentada à Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, em 1972, mas por questões políticas, só defendida em 1977. Uma estratégia encontrada para distribuir e exibir os filmes foi reunir os curtas Padre Cícero, Rastejador, Casa de farinha, Jaramataia e Erva Bruxa em um longa-metragem de 90 minutos intitulado Herança do Nordeste, tratando-se de uma solução comercial sem muito sucesso. Outra possibilidade seria vender os documentários para a televisão, no entanto, o conteúdo dos filmes, os recursos técnicos utilizados e a formatação do material não condiziam com o modelo de mercado então existente. Frei Damião chegou a ser exibido na TV Globo, sendo remontado e reduzido por seu diretor, Paulo Gil Soares. O terceiro momento de realização dos filmes caracteriza-se pela dispersão temática e surgem novas roupagens nos filmes, contrastando com a maneira pela qual articularam-se a primeira e a segunda fase. Aqui entram em cena Guido Araújo, Roberto Duarte, Rubens Junqueira, Miguel Rio Branco e Mauricio Beru, pará destacar os diretores, e é o momento de participação de Farkas como diretor, além da continuidade de Sérgio Muniz. Vale salientar que Farkas já realizara curtas-metragens na Escola Politécnica da USP, nos anos 1950. Em relação ao intento de percorrer o país, não ocorrem grandes avanços, ficando os filmes limitados aos Estados da Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. No que diz respeito aos temas apresentados, há a recuperação da questão da migração, desta vez com foco sobre a imigração italiana, permanecem as preocupações de registro de formas de trabalho em vias de desaparição, notadamente marcadas por métodos artesanais que contrastam com a industrialização já em pleno desenvolvimento e, por fim, essa última fase destoa das demais por colocar em primeiro plano manifestações artísticas como a música, aarquitetura e as artes plásticas, destacando processos e artistas pertencentes ao contexto urbano e à estética moderna. No âmbito da produção, EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 161 esse último momento apresenta relações de co-produção com a Embrafilme, a Prefeitura Municipal de São Paulo, a Saruê Filmes, de Geraldo Sarno, e Sérgio Muniz, que além de diretor também participa do financiamento de alguns projetos. Ao observar a trajetória dos filmes, fica explicitada a idéia da construção de um olhar sobre a cultura popular brasileira, em que se busca um desenho polimorfo do homem local, assentado nas relações entre cultura, economia e sociedade. Tais propósitos se atualizam sobre uma visualidade, que assume a corporeidade do real, no encontro da câmera com o objeto, e avança ao colocar em circulação outros signos visuais que enriquecem a amostragem, como é o caso da recuperação de gravuras e materiais de arquivo. No plano sonoro, estabelece-se uma polifonia derivada da voz autêntica dos sujeitos em sincronia com a imagem, de uma musicalidade extraída de sons regionais e outras referências e a insistência na voz over que, além de garantir o ideal interpretativo, busca também uma,certa articulação didática em sintonia com a finalidade social e educativa do filmes. Essa amostragem se edifica sobre uma tradição já firmada no campo do cinema, ou seja, os cineastas lançam mão de artifícios do cinema moderno, com realce para as descontinuidades entre som e imagem em muitos dos filmes. Em relação à autoria, fica flagrante a ausência de uma cartilha a ser guiada no tratamento dos filmes, abundam visões diferenciadas em que se percebe o peso do diretor nas escolhas e formatações dos temas. Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares e Sérgio Muniz são os diretores que mais se destacam, tanto pela quantidade de filmes que dirigem, quanto pelos traços estilísticos que impõem ao material. Nos três, o processo de documentação se coaduna ao de reflexão sobre o próprio ato de documentar, e encontram soluções particulares que os individualizam. Sàrno se empenha num tipo de realismo crítico, em que os fatos são interpretados por uma consciência de linguagem, sendo tal aspecto sintetizado numa frase da publicação da revista Filme Cultura, na edição de agosto de 1984: ''Na verdade, o que o documentário realmente documenta com veracidade é a minha maneira de documentar" (apud AVELLAR, 2003: 187). Gil Soares funde reportagem jornalística e a tradição do realismo, tal aspecto seria desdobrado em sua ativa participação na TV Globo, em que ele dá inicio, já nos anos 1970 ao Globo Repórter. Muniz é o realizador mais afeito a uma certa tradição do cinema experimental e ao uso de artifícios de linguagem, como comprovam os filmes feitos a partir de material de arquivo, seu projeto Cinema de Cordel e uma depositada crença em procedimentos de encenação nos filmes da última fase, embora também se possam encontrar filmes, bastante convencionais em sua filmografia. Quanto à renovação da linguagem, é interessante observar a maneira como os procedimentos inaugurados pelo cinema verdade, foram reincorporados a outras tradições, resultando num rico hibridismo. Um componente que se agrega a essa questão é a presença marcante em alguns filmes da reflexividade, firmemente atada ESTUDOS DE CINEMA 162 ao liso criativo da montagem, tal constatação vincula diretamente os filmes à idéia de' cinema moderno em que a articulação, imagem/som desvincula-se do procedimento clássico na lide com o Conteúdo e inscreve a visão subjetiva do cineasta no processo enunciativo .. · .. Finalmente, em relação à produção, trata-se de um caso de produção independente bastante relevante para história do cinema brasileiro, em particular para o desenvolvimento do documentário. A figura de Thomaz Farkas emerge na onda de novos produtores do Cinema Novo, nomes tais como Jarbas Barbosa, Luis Carlos Barreto e Zelito Viana que se devotaram à produção de ficção. A especificidade da experiência da Caravana poderia ser medida pelo desejo de realização de filmes de baixo orçamento, em que se articula um quadro conceitual, aqui são relevantes as pesquisas prévias de temas e a preocupação com a linguagem, para garantir a unidade do material que tinha fins específicos de distribuição e exibição. Para viabilizar da realização dos filmes tem destaque, Edgardo Pallero, produtor executivo da maioria deles. Em seu conjunto, os filmes produzidos por Farkas traduzem por seus meios expressivos facetas da realidade de um país, sustentado pela contraposição entre o moderno e o arcaico em suas mais variadas formas. O encontro do realizador com o objeto, seguida de sua restituição é uma operação que se coaduna ao princípio realista de reconstituição do fenômeno, avançando no território das medições em que a voz (e também o corpo) do cineasta, sua participação criativa se infiltra no material elaborado. BIBLIOGRAFIA AVELLAR, José Carlos. Geraldo Sarno. In: PARANAGUA, Paulo A (Org.) Cine Documental emAmerica Latina. Madri: Cátedra, 2003. FARKAS, Thomaz. Cinema documentário: um método de trabalho. Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Curso de Pós-Graduação em Jornalismo e Editoração, 1972. RAMOS, Fernão. Cinema Verdade no Brasil. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Org.) Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004. XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Alteridade, conflito e resistência no Barroco de Paul Leduc MAURÍCIO DE BRAGANÇA (UFF/FAPERJ) EM 1989, o diretor mexicano Paul Leduc adaptou o romance do cubano Alejo Carpentier, Concerto Barroco. O filme, Barroco, uma co-produção Espanha, México e Cuba, foi produzido para a TV Espanhola. Utilizando-se de procedimentos narrativos e estilísticos que já vinha desenvolvendo desde seu excepcional Frida, natureza viva, de 1984, Leduc, em Barroco, propõe para esta pesquisa uma discussão sobre a constituição das alteridades latino-americanas, marcadas pelas relações de poder inscritas desde o projeto expansionista ibérico do século XVL Nesta discussão, o filme evoca uma tradição do pensamento latino-americano pautado pela preocupação em tomo da afirmação do papel da América Latina na história, sua posição como modelo cultural e sua identidade, que tem, no século XX, uma linhagem que passa por Alfonso Reyes, Pedro Henriquez Urefia, Alejo Carpentier, Octavio Paz, Lezama Lima, Ángel Rama e Silviano Santiago, dentre muitos outros. As teorias em tomo da mestiçagem, do hibridismo ou do multiculturalismo apontam para a criação de um "entrelugar", no qual os conceitos de unidade e ーオイ・セ。@ são sistematicamente destruídos em prol da configuração de um projeto cujo movimento repousa no próprio desvio da norma, ativo e destruidor, "entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão" (SANTIAGO, 2000: 26), forjando aquilo que Octavio Paz (1984) classifica como a "tradição da ruptura". Esse lugar, ocupado pela América Latina como um "entrediscurso" da periferia, possibilita uma dinâmica em que o subcontinente pode devolver ao centro imagens sobre si mesmo que o centro nunca poderá produzir. O poder de desestabilização da periferia impõe suas narrativas ex-cêntricas (citando Bakhtin), ao redefinir os mapas literários e colocar os cânones sob suspeita. 164 ES I UDOS DI: CINEMA- Essa busca por modelos identitários na América Latina acarretou em ーイッ」・ウNセᄋ@ marcados pela questão do sujeito e sua representação, seja na dicotomia regionalismo, versus cosmopolitismo, seja no realismo fantástico, na antropofagia, no hibridismo' ou nas discussões acerca do conceito de fronteira, originando novas textualidades reatualizando questões bastante pertinentes, como a relação entre o cânone e o corpus, 1 · o diálogo crítico com novos paradigmas e a própria relativização dos parâmetros nas construções dos modelos de representação e de auto-representação na América Latina.': Assim, no interior deste descentramento encontram-se os projetos que suspeitam dé. dualidades rígidas como margem/centro, metrópole/colônia, europeu/indígena, e problematizam conceitos como metrópole, cópia, simulacro,· deslocamento e ョ。￧ ̄ッセᄋ@ A partir da militância estética das vanguardas latino-americanas da década de 1920, a mestiçagem se apresentou como uma das leituras possíveis de ruptura com os padrões alheios à realidade latino-americana. Não se pode deixar de lembrar, entretanto, a existência de outros projetos que de certa forma afastavam-se desta perspectiva, como o discurso da Indo-América de Haya de la Torre e Mariátegui, a negritude das Antilhas francesas ou o pretenso purismo do indigenismo nacionalista de Diego Rivera, por exemplo. Mas é através da chave da mestiçagem que se funda, a partir das estratégias de reorganização do poder nas primeiras décadas do século passado, uma nova maneira de viver o popular, numa busca acirrada pela autonomia do pensamento e da arte latino-americanos. Na base dos diversos discursos em prol da construção de identidades nacionais latino-americanas se encontra uma permanente tensão entre a presença de um olhar do colonizador e as diversas tentativas de resistência, de desvio e de desconstrução deste olhar. Como experiências marcadas por este desafio encontram-se tais discussões apropriadas de maneiras distintas na "raça cósmica" de José Vasconcelos, na sugestão de uma aluvionalidade da literatura hispano-americana, por Uslar Pietri, nos fenômenos de transculturação analisados por Fernando Ortiz (e posteriormente importados para a leitura de Ángel Rama sobre a transculturação narrativa na América Latina), no conceito de "inteligência americana" cunhado em 1936 por Alfonso Reyes, na "cultura bastarda" por Martínez Estrada, na idéia de superposição de culturas como busca de uma forma unitária por Leopoldo Zea, nas discussões de Lezama Lima sobre um "protoplasma incorporativo" presente na cultura hispanoamericana, no famoso "real maravilhoso" sugerido por Carpentier, e ainda na contribuição brasileira a estas discussões pelo Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e pelos ensaios de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda (COUTINHO, 2003). É claro que cada uma dessas abordagens apresenta posições de leitura muito distintas e, sob determinados aspectos, até mesmo conflitantes, mas todas comungam a idéia de uma heterogeneidade multicultural formadora de cruzamentos e apropriações que marcam a América Latina. e: fÊM'rORNO DA AMÉRICA LATINA 165 1;1;·· Porém, as abordagens do fenômeno histórico da mestiçagem pelos projetos nacionais, apesar de proporem novos paradigmas de leitura da identidade cultural ャ。エゥョッセュ・イ」@ que rompessem com a lógica da inferioridade e da submissão à cultiJra hegemôriica, acabavam por homogeneizar as experiências latino-americanas, sufocando as diversas vozes heterogêneas através de uma integração num conjunto uniforme, e de certa forma apassivador, que fazia apagar a própria condição de marginalização. Aqui encontram-se as discussões de García Canclini (2000), em tomo das ·culturas híbridas, e das críticas de Cornejo Polar (2000). Este, filiando-se ao pensamento mariateguiano, propõe, sob o viés das "totalidades contraditórias", uma reflexão sobre as literaturas heterogêneas, substituindo o termo "mestiço" (conotativo de síntese e fusão) pelo "migrante" (tradutor de um trânsito entre os espaços culturais). Também Alberto Moreiras (2001) apresenta sua crítica à transculturação de Ángel Rama, para quem a modernização, segundo Moreiras, apresenta-se como uma verdade ideológica capaz de sujeitar a cultura latino-americana à modernidade eurocêntrica. Neste ensaio propõe-se uma discussão em torno das alteridades latinoamericanas a partir de Barroco, de Leduc, que se insere nestas discussões ao adaptar o romance de Alejo Carpentier publicado em 1974. O romance apresenta a concepção da ópera Montezuma, de autoria de Antonio Vivaldi. Esta foi a primeira vez, dentre muitas outras que se seguirão ao longo da história, que a Conquista e o Novo Mundo teriam sido tomados como tema central de uma ópera. A música, uma das paixões de Carpentier, assume na obra literária um papel de detonador dos conflitos a partir do emblema do real maravilhoso no qual as múltiplas temporalidades entram em contato sob um viés bakhtinianamente carnavalizado. Não é nosso objetivo apresentar aqui um trabalho de adaptação cinematográfica da obra de Carpentier, mas de apresentar o Barroco de Leduc como um texto que pretende problematizar o multiculturalismo carpentieriano, propondo uma espécie de arquipelagização da cultura latino-americana, contra a continentalização reducionista de um multiculturalismo pacificador, presente numa certa leitura da tradição do pensamento latino-americano. Para isso, o Barroco latino-americano, segundo as acepções críticas de Irlemar Chiampi (na sua articulação com a modernidade) e na leitura de Lezama Lima, que o vê como obra da "contraconquista" - coloca-se como uma linguagem articuladora de um multiculturalismo problemático. O barroco colonial se estabelece "como paradigma, como un horizonte incompleto, irregular que debe quebrar líneas rectas y mesuras discursivas. Barroco como un campo de tensiones, un devenir intersticial y constante en las poéticas hispanoamericanas" (AMARO, 2002: 20). É nessa chave que o romance da nova narrativa latino-americana recupera as suas origens barrocas (em Alejo Carpentier, José Lezama Lima ou Severo Sarduy, por exemplo). O barroco é tomado como um elemento de identidade cultural no interior de uma prática da fragmentação, da celebração do novo através da ruptura e da experimentação na América Latina. J66 ESTUDOS DE CINEMA, Nos escritos de José Lezama Lima encontram-se os aportes teóricos necessários para orientar esta leitura da obra de Paul Leduc. A estratégia usada pelo ensaísta cubano consiste em detectar, nos caminhos·da colonização, duas categorias· estéticas diferenciais em relação ao barroco europeu .. Uma .é a tensão combinatória dos motivos da teocracia ocidental, com emblemas indígenas e africanos, destacados em seus ensaios nas imagens do indígena peruano Kondori e do brasileiro Aleijadinho que, "na noite, no crepúsculo da folhagem espessa e sombria, chega com a sua· mula, e aviva com novas chispas a pedra hispânica com a prata americana, chega com o espírito do mal, que conduzido pelo anjo, obra na graça" (1988: 106). Junto a esta tensão, articulam-se as imagens ligadas ao plutonismo, ao demoníaco, ao fáustico, ressaltando a tessitura que se constrói a partir da imagem do homem americano ligado à magia, ao prazer, à fome, à rebeldia, à malícia. É nessa fantástica imagem de Aleijadinho e seu "espírito do mal", em seu corpo em decomposição pela lepra, metáfora dolorosa de um devir, que Lezama problematiza seu barroco latino-americano. A lepra como impureza, não apenas física mas espiritual, como desfiguração irremediável, como contaminação, uma destruição marcada pela força da impureza. É essa contaminação que produz um corpo em eterno devir, em um processo de decomposição e de transformação. Na poética de Lezama Lima, uma versão multitemporal e anacrônica da América Latina: a lepra que se espalha pelos tecidos do corpo individual do escultor brasileiro assume, no ensaio do escritor cubano, a contaminação que se espalha sobre um corpo coletivo. Assim desvela a supremacia revolucionária desta estética do barroco americano, identificando nessa imagem a política subterrânea da contraconquista. As discussões sobre o barrocb orientadas a partir da década de 1950, apontam o multiculturalismo como traço essencial na conformação do caráter rebelde do barroco americano. Nesta perspectiva, o barroco que tomou corpo neste continente está para além da Contra-Reforma católica: é a Contra-Conquista do colonizado, é a "lepra criadora" como a diferença latino-americana. Sem diálogos, o filme de Paul Leduc privilegia a música e o corpo como formas de expressão, uma espécie de corporalidade que se manifesta em um espaço entendido como texto: América. Este corpo, que se transfigura em múltiplas performances, parece indicar um processo de constituição de identidades em eterno devir. O filme se amplia na dimensão da música, cuja referência se baseia na ópera composta por Vivaldi. Assim, apresenta-se em quatro partes: Andante, Contradanza (ma non troppo), Rondo (Cantabile) e Finale. Os corpos em movimento desenham a dimensão dos conflitos que pautam a narrativa (fílmica, poética e histórica). Podemos seíialar que e! cuerpo (en Barroco) predomina como cuerpo de baile, convertido en acontecimiento, religioso, estético, político. Este cuerpo de baile trabaja en una primera instancia como instaurador de un territorio poblado de IEM·TORNO DA AMÉRICA LATINA 167 movimientos, de sonidos, de colores, hasta de canciones. E! cuerpo de baile puede qevenir rápidamente en cuerpo político. Elbaile borra los límites, pero participa de un socius, un hacer social que lo estratifica. E! socius marca un gestus en e! que puede leerse toda una situación social (AMARO, 2002: 51). Nesse jogo imaginário de imagens, em danças e contradanças, duas personagens ,tentam responder à pergunta: "De dónde son los cantantes?", versos da popularíssiina ,trova cubana de autoria de Miguel Matamoros que diz: "Mamá yo quiero saber de 'dónde son los cantantes, que los encuentro galantes y los quiero conocer, con sus trovas fascinantes que me las quiero aprender." As palavras parecem perguntar o que as imagens tentam responder, e o ritmo do son cubano, da rumba, da trova, abre caminho como uma linha de fuga no concerto de Vivaldi, marcando o signo das alteridades em jogo na concepção do corpo americano. A canção, recorrente no filme de Leduc, apresenta uma outra referência cubana importante para a concepção do enredo filosófico do cineasta mexicano: Severo Sarduy (autor do romance De donde son los cantantes, de 1967) que, assim como Lezama Lima, especializou-se na arte da escritura neo-barroca da segunda metade do século XX e nos ensaios que apontavam para a releitura desafiadora do barroco latino-americano. Neles, a volta ao barroco insinua o início do grande debate, que viria a ser apontado como a pós-modernidade. A releitura· do barroco se inseriria, desta forma, numa fase _terminal da crise da modernidade, como uma espécie de encruzilhada de novos significados, indicando a intuição de uma nova arte no sistema cultural latinoamericano que se instalaria no bojo dos destroços espalhados pelo capitalismo avançado da era pós-industrial. Essa obsessão epistemológica pelos fragmentos e pelas fraturas sintomatizam o mal-estar desta cultura de restos, de sobras. Daí as engenhosas articulações, na concepção neo-barroca de Sarduy, citado em Leduc, da transformação da realidade em imagens onde estas funcionam como uma espécie de "estrelastravestis", já que incompletas, artificiosas, imagens pastiche de um original que nunca existiu. Na estruturação barroca de Sarduy e de Leduc, a fragmentação do tempo apresenta uma pérpetua sobreposição de multitemporalidades que problematizam a colonização, o conflito, a hegemonia, assim como a contraconquista e as práticas de resistência. Nas palavras do próprio Sarduy (1979: 178), o neo-barroco se apresenta como um "reflexo necessariamente pulverizado de um saber que já sabe que não está 'aprazivelmente' fechado sobre si mesmo. A arte do destronamento e da discussão". Uma frase emblemática abre o ensaio A expressão americana de Lezama Lima: "somente o difícil é estimulante". Esse difícil, presente na paisagem americana, é revelar a forma em devir, o processo, o "ir sendo" na construção do sentido. A visão histórica deste devir se dá mediante o contraponto, ou o "tecido entregue pela imagem", segundo palavras do próprio autor, onde estas imagens afastam-se da causalidade do 168 ESTUDOS DE CINEMA historicismo para ganhar uma dimensão histórica não pela razão, mas pelo lagos poético. Daí a proposição de um "contraponto de imagens" marcado por uma história formada por "eras imaginárias". A partir dei ensayo "Preludio a Ias eras imaginarias" (1958) comienza a esbozar su visión de la historia en imágenes (un hecho histórico se transforma en un dato poético que irradia significaciones, conectando series que para el discurso histórico lineal son divergentes), apresadas en un diagrama (construido por el lector), por la imagen, quien las hace transitar en la causalidad metafórica opuesta ai régimen causal establecido por la motivación linear de! discurso histórico (AMARO, 2002: 37). Nesta abordagem, as sociedades não se desintegram, e os imaginários podem reaparecer em outro momento, em outro lugar, potencializados no afloramento de imagens que os constituem. "Tudo terá que ser reconstruído, invencionado de novo, e os velhos mitos, ao reaparecerem de novo, nos oferecerão seus conjuros e seus enigmas com um rosto desconhecido. A ficção dos mitos são novos mitos, com novos cansaços e terrores" (LEZAMA LIMA, 1988: 57). Para Leduc, como para Lezama Lima, a história não. é linear, mas cíclica セ@ abismal, assim como a imagem, o mito e a poesia. Este "espaço americano" engendra um conhecimento que também é alimentado pelo· olhar :do outro, promovendo um deslocamento histórico e cultural das questões em tomo do centro e da periferia. O barroco latino-americano, presente tanto no romance de Carpentier quanto no filme de Leduc, apresenta um sujeito metafórico personificado por uma personagem alegórica, que passeia por um labirinto cultural formado pela simbiose produzida por diferentes elementos hispânicos, africanos, indígenas e lusitanos. Neste cenário, este sujeito metafórico se faz também sujeito histórico, um sujeito rebelde que resiste, numa espécie de movimento de contraconquista. Na tese da contraconquista, onde se faz presente um potencial contestatório das formas barrocas latino-americanas, motivado pela própria condição de colonizado, Lezama e Leduc apontam as estratégias políticas do modo americano de.apropriar-se da estética barroca do colonizador, assim como reforçam a engenhosidade dessa forma.artística de veicular discursos de resistência. Esse sujeito metafórico, justificado pela atuação do logos poético, adquire uma visão histórica livre das amarras do historicismo. Deste modo se afirma que "todo discurso histórico é, pela própria impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos, uma ficção, uma exposição poética, um produto necessário da imaginação do historiador" (CIDAMPI, 1988: 24-5), como indica a mise-en-scene operada na montagem da ópera Montezuma no Concerto Barroco de Carpentier e no filme-musical de Leduc, onde a imaginação barroca brinca com a história. EM TORNO DA AMÉRICA LATINA 169 O Barroco de Leduc pode ser percebido, então, como uma espécie de paródia à própria linguagem comunicativa, já que o próprio sentido fica escamoteado em meio aos diversos artificios que o encobrem, (como a imagem do travesti proposta por Severo Sarduy). O objeto desta linguagem paródica toma-se a própria linguagem paródica, numa espécie de reflexividade que produz novos artificios num processo em devir. Lembre-se que o tema de Carpentier é a encenação de uma ópera do episódio da Conquista na qual Montezuma é o personagem principal da tragédia. Isso vai ao encontro do que Carlos Fuentes (2001: 52) diz em O espelho enterrado: "O barroco é uma arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente, pode-se ver a nossa identidade em mudança". As sobreposições de imagens que se encontram no Barroco de Leduc, onde por exemplo a personagem do Super-homem convive num imaginário projetado por ancestralidades pré-hispânicas, apontam para um conceito lezamaniano de anacronia, segundo o qual um ou vários passados esquecidos, como espectros, desvelam outros e inusitados presentes e outros, inusitados futuros. O filme de Leduc, através dos seus efeitos de representação, propõe um multiculturalismo problemático, na conformação de um caráter rebelde do barroco latino-americano, apontando para discussões contemporâneas que percebam o multiculturalismo não como o espaço da pacificação, mas do conflito. O que está em jogo, enfim, no Barroco de Paul Leduc é, em última análise, a questão do olhar, representado pela visualidade dos procedimentos cinematográficos adotados pelo diretor. A arquitetura dos olhares (quem vê e quem é visto) determina o exato tamanho do "outro" representado na tela. A reflexividade dos espelhos espalhados pelas cenas metaforizam o conflito e embaralham qualquer tentativa de construção dicotômica das representações de identidades e dos processos de subjetividade na América. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARO, José Luiz Martinez. Tensiones discursivas entre elfilm Barroco de Paul Leduc y la Expresión Americana de José Lezama Lima. Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002. CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2000. CHIAMPI, Irlemar. "A História tecida pela imagem" In LEZAMALIMA, José. A expressão americana. São Paulo: Brasiliense, 1988. CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa- literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2000. COUTINHO, Eduardo F. Literatura comparada na América Latina. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. 170 ESTUDOS DE CINEMA- FUENTES, Carlos. O espelho enterrado: reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. São Paulo: Brasiliense, 1988. MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latinoamericanos. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2001. PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SARDUY, Severo. "O barroco e o neobarroco", in Moreno, César Fernández. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. IMAGEM E PODER Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira MARIAROSARIA FABRIS (USP) "Se algo não pode ser usado para mentir, então, também não pode ser usado para dizer a verdade" (Umberto Eco) SEGUNDO ÜIOVANNI De Luna, "a foto do general americano dando um tiro na cabeça do rapazinho vietcongue é incontestável, ela sozinha é um pedaço de História" (apud VALENTINI, 2004: 86). A memória traiu o historiador italiano, pois, na verdade, quem executa o vietcongue é o chefe da Polícia do Vietnã do Sul, 1 mas esse lapso não tem importância. O que importa é que, com essa "bala explodindo na cabeça, é toda a falência moral do regime sul-vietnamita, apoiado pelos Estados Unidos, a ser revelada" (PULTZ & MONDENARD, 1995: 102). O que importa também é que essa mesma foto é citada pelo personagem JohnH. Bradley (ex-combatente da Segunda Guerra Mundial), em A conquista da honra (Flags of our fathers, 2005), de Clint Eastwood, salientando que depois daquela imagem, a guerra do Vietnã estava perdida para seu país. Essa afirmação surge exatamente numa produção na qual o que está sendo discutido é o valor simbólico de outra fotografia, tirada por Joe Rosenthal a 23 de fevereiro de 1945, a da bandeira norte-americana sendo hasteada no topo do monte Suribachi, situado na ilha japonesa de lwo Jima. Uma foto acusada de ser posada, mas que, na verdade, correspondia a um segundo hasteamento do pavilhão ianque na ilha do Sul do Pacífico. 1. Trata-se da foto de Eddie Adams, O general Loan executando um vietcongue suspeito, tirada a 1° de fevereiro de 1968. Provavelmente o historiador italiano confundiu-se, em virtude da participação das tropas americanas na Guerra do Vietnã, e, quem sabe, pelo fato de trezentos civis terem sido massacrados por un1 comando ianque, na aldeia de My Lai, a 16 de março daquele mesmo ano. 174 ESTUDOS DE CINEMA, Esses dois "clichês"- o do Vietnã e o de Iwo Jima- deslocam o debate sobre o estatuto de uma imagem do campo do registro da realidade, do documento, para o' de símbolo de um acontecimento, o que a recarrega de novos significados. Apesar de poder ser considerada relativamente recente, a discussão ao redor da imagem como um instrumento a mais de que a História disporia para analisar determinado período ou acontecimento, outro historiador italiano, Sergio Luzzato, vem lembrar que a representação visual sempre foi um documento ao qual os pesquisadores recorreram para resgatar o passado (VALENTINI, 2004: 86). De fato, esculturas, pinturas, desenhos, tapeçarias, gravuras, charges, bem antes do advento da fotografia, do cinema e da televisão, já imortalizavam uma personagem ou um fato histórico, embora, na maioria das vezes, mais de forma simbólica, celebradora, exaltadora, do que enquanto mero registro. Fascículos ilustrados, fotografias e fitas da Grande Guerra, assim como fotos, cinejomais e filmes da Segunda Guerra Mundial ajudaram a preservar a memória desses acontecimentos; entretanto, foi a partir de 1965, com o início da luta armada no Vietnã, que os meios de comunicação de massa passaram a estar mais presentes: A guerra do Vietnã foi o primeiro conflito realmente midiatizado. Toda semana, uma revista como Life prestava contas das perdas humanas por meio de imagens de corpos feridos, destroçados, aniquilados. As autoridades militares facilitaram largamente o trabalho dos fotógrafos no local, acreditando ingenuamente que seus retratos só mostrariam o aspecto positivo do engajamento americano. De fato, isso se deu nos primeiros anos do conflito, mas, a partir de 1967, vários jornais e revistas publicaram imagens terríveis, que a América recebeu como uma chicotada e cuja difusão o governo dos Estados Unidos não foi capaz de controlar (PULTZ & MONDENARD, 1995: 102). Algumas dessas imagens - como a de Eddie Adams e Menina atingida por bombas de napalmfoge do vilarejo de Trang Bang, Vietnã do Sul, de Nick Ut, tirada a 8 de junho de 1972- ressurgiram num documentário de 1974, Corações e mentes (Hearts and minds), de Peter Davis, o primeiro a investigar os efeitos daquele conflito, dando a palavra até aos vietnamitas. 2 Não deve ser esquecido também o papel das 2. EmA guerra americana (2005), Harrell Fletcher, ao adotar a denominação dada pelos vietnamitas ao conflito, esposou o ponto de vista de quem o viveu no próprio território, e divulgou a memória de quem viu seu cotidiano devastado pelas tropas de ocupação. A instalação, apresentada na 6• Bienal do Mercosul (Porto Alegre, set-nov de 2007), está baseada no registro digital que o artista fez de imagens captadas por vietnamitas, tiradas de revistas e jornais norte-americanos ou provenientes dos arquivos de organizações internacionais envolvidas na resolução do conflito, expostas no Museu de Vestígios da Guerra, na cidade de Ho Chi Minh. (FABRIS & FABRIS, 2008:3) IMAGEM EPODER 175 reportagens televisivas na mobilização da sociedade civil contra a campanha no Sudeste Asiático, a partir do final dos anos 1960, que resultou na retirada progressiva das ,tropas americanas de 1970 em diante e no fim do conflito em 1975. O que o instantâneo de 1968 e o filme de 2005 trazem à baila é precisamente a questão de como uma imagem pode ser lida e que sentido atribuir-lhe a partir da época em que é feita essa leitura, se for pensado que a foto de Rosenthal já havia sido aproveitada no cartaz de uma realização de 1949, Iwo Jima, o portal da glória (Sands of Iwo Jima), no qual os três sobreviventes do hasteamento da bandeira fizeram uma ponta, interpretando a si mesmos quando da reconstituição daquele acontecimento. Diferentemente do filme de Eastwood, o de Allan Dwan não era um libelo contra a guerra, contra qualquer guerra, nem pretendia questionar o heroísmo congelado naquela foto. Ao contrário, era um hino à coragem dos fuzileiros navais, bem dentro do espírito que caracterizou toda uma série de produções que surgiram no período pós-bélico, voltadas a exaltar os feitos dos combatentes de cada país e a denegrir a imagem do inimigo/ o que muitas vezes servia também para justificar atrocidades (quase nunca apresentadas como tais) para pôr fim a um mal maior. 4 Resumindo: a guerra tinha uma lógica e ela precisava ser explicitada, ao contrário do que acontece em nossos tempos, em que conflitos armados parecem não ter mais lógica alguma. Como salienta Ando Gil ardi ( 1980: 42), "a representação da guerra resulta automaticamente numa promoção da própria guerra", mas essa exaltação poderia ser colocada em xeque pela focalização das vítimas. E, ao se pensar nos filmes de ficção que retrataram a Segunda Guerra Mundial, se constatará que, talvez, só em 1998, com O resgate do soldado Ryan (Saving private Ryan), de Steven Spielberg, o desembarque na Normandia, no dia D (7 de junho de 1944), foi representado em toda sua brutalidade, a ponto de sua visão se tomar quase insuportável. 3. Segundo Gilardi (1980, 42), há números específicos em relação aos inimigos a serem eliminados na tela: "No filme americano não bastam dez inimigos mortos para empatar a conta com um patrício. Dez, ou, melhor ainda, vinte índios para cada soldado a cavalo de Custer; para um mariner inflancionam-se os vietcongues; se se trata de alemães, bem menos: a cor da pele tem seus direitos. Curiosamente, no mundo socialista, mudam as regras: ( ... )quinze partisans de Tito para cada invasor nazista, [pois] não se considerava positivo atribuir ao invasor um sacrificio de sangue superior ao enfrentado pelos invadidos para libertar a pátria: o povo, isto é, os espectadores, devia perceber que o preço da liberdade é mais salgado do que o de sua negação. No cinema soviético( ... ), fica-se a meio caminho: o balanço dos mortos empata. No italiano, vai-se de um extremo a outro". Com Cartas de lwo lima (Letters from lwo lima, 2005), Eastwood tenta romper com uma visão estereotipada do inimigo japonês na Segunda Guerra Mundial. 4. Para Okubaro (2007, 262-63), a decisão do presidente Truman de autorizar o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki (6 e 9 de agosto de 1945) foi motivada pelo grande número de baixas (12 mil) do exército norte-americano na conquista da ilha de Okinawa. Isso fazia prever uma carnificina entre os militares dos Estados Unidos (um milhão de mortos), caso este país tivesse optado por um ataque maciço contra o Japão. 176 ESTUDOS DE CINEMA Essa digressão inicial serve para introduzir a discussão sobre um conjunto de imagens, bem menos conhecido e comentado do que a famosa foto tirada por J oe Rosenthal. Trata-se de um cinejornal ou, ao que tudo indica, de um fragmento dele, relativo ao resgate de Benito Mussolini de sua prisão, levado a cabo por forças alemãs a mando de Hitler em 1943. Sob o título de O rapto de Mussoline (com o sobrenome do duce grafado errado), 5 esse material está depositado na Cinemateca Brasileira, sem maiores referências, e tomei conhecimento dele, por acaso, em 2002. 6 Tendo reconhecido naqueles .fotogramas o fato histórico ali registrado, fiz uma pequena pesquisa, estabelecendo datas e arrolando alguns de seus protagonistas. Escrevi na época: "No dia 12 de setembro, aviadores alemães, chefiados pelo coronel Otto Skorzeny, libertam Mussolini de sua inexpugnável prisão no Gran Grasso, levando-o, em seguida, para o Quartel General Alemão" (FABRIS, 2002). A procura de outras fontes para poder entender melhor um acontecimento sobre o qual os livros de História eram tão lacônicos, levou-me a uma descoberta surpreendente: as imagens em movimento sobre a chamada "Operação Carvalho" (Fall Eiche), arquivadas na CinematecaBrasileira, provavelmente escondiam um "falso" histórico: Um "falso" não no sentido de _que aquele fato não aconteceu, mas por causa da "reconstrução" pela qual passou o momento que se pretendia registrar "reconstrução" determinada também por ordens preestabelecidas ao próprio acontecimento. Ao ser destituído do cargo de chefe do governo pelo Grande Conselho do Fascismo, em 25 de julho de 1943, Mussolini iniciou um périplo por diferentes prisões -em rッュ。セ@ nas ilhas de Ponza e da Madalena, em Assergi -, até que, em 2 de setembro, foi confmado em Campo Imperatore, estação de esqui situada no Gran Sasso d'Italia (Grande Maciço da Itália), ponto culminante da cadeia montanhosa dosApeninos. Em 11 de setembro, a Fali Eiche (iniciada no dia 26 de julho) é confiada ao major Harald Mors, sendo autorizada também à participação de um grupo de SS, dentre os quais Otto Skorzeny, um dos responsáveis pela localização das várias prisões do duce. A operação é concluída em doze horas no dia seguinte, e Mussolini, uma vez resgatado, é levado de avião para fora do país. Logo depois se encontra com Hitler, o qual já havia condecorado Skorzeny com aRitterkreuz. No dia 14 de setembro, o radiojornal transmitia a versão oficial sobre o resgate, consagrando-a. 5. Quanto ao título do cinejomal, é bem provável que seja este, pois o resgate de Mussolini foi apresentado como um "rapto" (PATRICELLI, 2002: 5). 6. O primeiro contato com O rapto de Mussoline deu-se nas reuniões do grupo de pesquisa "Cinema Brasileiro em Retrospectiva", da Cinemateca Brasileira. Uma reflexão inicial sobre o cinejomal foi apresentada na palestra Imagens "verdadeiras" e representações simbólicas, proferida em 21 de maio de 2007 no âmbito do grupo de pesquisa do CNPq "História e audiovisual: circularidades e fimnasde comunicação", da ECNUSP. IMAGEM EPODER 177 Toda a "Operação Carvalho" foi levada adiante por ordem expressa do Führer, interessado na libertação do duce, nem tanto pela admiração mútua e pela "amizade 1979: 137) que os unia, quanto para mostrar asolidariedade da brutal" HpetセcoL@ Alemanha para com seus aliados e evitar, assim, outras "deserções", como a da Itália, que mudara de lado. De fato, o país, depois da destituição de seu chefe do governo, embora continuasse na guerra como aliado da Alemanha e do Japão, intensificou as tratativas com os anglo-americanos. Em 8 de setembro, era anunciada a capitulação das forças italianas, com a conseqüente cessação das hostilidades contra as tropas anglo-americanas e a declaração de guerra à Alemanha, cinco dias depois. Com o centro e o norte do país ocupados pelÓ exército alemão, Mussolini, depois de liberar os soldados italianos do juramento de fidelidade ao rei- por meio de uma tramsmissão radiofônica feita de Munique, em 18 de setembro -, no dia 23 regressa à Itália e proclama a República Social Italiana (ou República de Saló), durante a qual se tomou praticamente prisioneiro de Hitler. Embora o resgate tenha resultado do esforço conjunto dos vários envolvidos, toda a glória pela façanha coube ao capitão Skorzeny (depois, promovido a coronel), como foi dito. Tanto a versão dele, quanto a versão de Mors foram divulgadas (ANNUSSEK, 2006; PATRICELLI, 2002),7 sem que se chegasse a um consenso. Mais do que tentar restabelecer a "verdade" dos acontecimentos, o que me interessa discutir a partir desse cinejomal são as razões que podem ter levado à glorificação do oficial austríaco. Além do fato de Skorzeny ser um integrante das SS, portanto da tropa seleta e fiel ao Führer, e Mors um militar que "prestou juramento ao presidente Hindenburg, não a Hitler", como ele mesmo dizia (apud PATRICELLI, 2002: 56), é bem provável que a escolha tenha recaído sobre aquele por corresponder ao ideal da raça ariana, encarnando com seu porte a própria imagem do Übermensch (Superhomem). Afmal, desde as realizações de Leni Riefenstahl, especialmente oャゥュー■。、セ@ (Olympiade: Fest ·der Schõnheit, Fest der Võlker, 1938), também na Alemanha o aspecto fisico passou a ser empregado para fins de propaganda política para atestar a supremacia dos arianos, representada por corpos sadios, dinâmicos e cheios de vigor (PULTZ & MONDENARD, 1995:. 86-95). Se a isso se juntar o fato de não ser mostrado o momento do resgate, mas o posterior, será possível constatar que tudo se encaixava no princípio da "estetização da guerra" (SCHWARZ, 1980: 3) Como ャ・セ「イ。@ Claudio Fontana ( 1980: 53), a respeito do emprego da fotografia na Primeira Guerra Mundial, os conflitos bélicos são registrados em suas pausas: "Fotografa-se entre ou depois, quase nunca durante. Fotografar durante significa reapresentar os eventos fotografar entre ou depois, significa 7. Devo aAnnateresa Fabris a localização das obras desses dois autores e dos artigos de LaRepubblica. 178 ESTUDOS DE CINEMA representar seus efeitos". E é o que O rapto de Mussoline faz, pois o que interessa não é tanto o fato em si, quanto mostrar ao mundo o pacto entre os dois ditadores e, conseqüentemente, lançar uma ameaça subliminar às outras nações. Afmal, como lembra Siegfried Kracauer (1977: 310), durante o Nazismo "à propaganda foram conferidos tamanhos poderes que ninguém· mais sabe se ela serve para modificar a realidade ou se é a realidade que precisa ser modificada para fins propagandísticos". Segundo Richard A. Maynard (1975: 27-9), havia três tipos de filmes de propaganda nazista: o primeiro voltado para a "glorificação de Adolf Hitler e dos princípios nazistas"; o segundo dedicado à disseminação do "anti-semitismo a fnn de atiçar um 'racial-nacionalismo' entre os alemães"; o terceiro, destinado a exaltar o poderio militar do país. Se os dois primeiros endereçavam-se ao público local, o ten:eiro dirigia-se a uma audiência estrangeira, sendo, portanto, mais sutil em suas colocações. O fato de uma cópia de O rapto de Mussolíne - que pertenceria ao terceiro tipo de filme de propaganda - ter vindo parar no Brasil atesta a importância dada a este cinejomal na propagação do ideário nacional-socialista. O cinegrafista anônimo da Ufa que registrou os momentos fmais da operação de resgate, セN@ posteriormente, o montador daquelas imagens em movimento parecem ter aplicado bem a lição que Leni Riefenstahljá havia aprendido de seus antecessores, ao transformarem um fato realmente acontecido na· mi(s)tificação do próprio acontecimento, numa operação em que os limites entre a verdade e a mentira se confundem, quando não se anulam. O comentário que em 1963 Robert Vas (1975: 11) fez a respeito de O triunfo da vontade (Der Triumph des Willens, 1934-36) "Realidade e símbolo andam pari passu num estrondoso ritmo de marcha, e, pela primeira vez, a ·história é empregada de forma direta para. moldar a história" - se aplica perfeitamente a esse cinejomal, pois ele também poderia ser considerado "um símbolo de como a propaganda contribuiu para a linguagem natural do cinema, deixando-a ao mesmo tempo à beira de um abismo de difíceis questões morais". Esse tipo de operação engendrado pela propaganda, toma-se possível graças ao estatuto de "serva da verdade" conferido à fotografia (SETTIM:ELLI, 1980: 69) e, por extensão, ao documentário. Clemente Ancona ( 1980: 61) lembra que a fotografia '"pode ser usada para mentir'( ... ), logo, por sua presumível fidelidade especular ao original, pode falseá-/o de mil modos". Os aparelhos fotográficos e cinematográficos, "sem nada mudar da realidade circundante, podem delimitar a seu bel prazer o campo visual e, portanto, isolar do contexto, o sujeito escolhido". E como afirma Wladimiro Settimelli (1980: 68): Segundo os postulados do pensamento positivo, a fotografia 'era um dado incontrovertível da realidade e, para as massas, representava a verdade. --se podia ser considerada assim, então não parecia dificil usá-la, instrumentalizando-a, para interesses precisos e necessidades contingentes ( ... ) apelando para a equação IIVIAGEM EPODER 179 fotografia-realidade e fotografia como dado incontestável da verdade de qualquer fato( ... ). Era só( ... ) ter à disposição um punhado de fotógrafos dispostos a mudar o enquadramento, a retratar certas coisas· e não outras, a fazer um uso "moderado" e mediato do aparelho fotográfico e a não utilizar plenamente as imensas possibilidades do meio, para obter tranqüilamente o mesmo resultado [das intervenções da censura] e, portanto, "realinhar" qualquer veleidade do antigo instrumento de Niépce e Daguerre. Não foram apenas os regimes totalitários de direita a se valerem de imagens ditas documentais para carregá-las de um valor simbólico. Mesmo um dos grandes mitos da Revolução Russa seria uma "invenção", segundo pesquisas recentes. O motim de um navio de guerra no porto de Odessa, a 14 de junho de 1905, deveria ter envolvido toda a frota imperial (assim como às greves daquele mesmo ano deveriam ter aderido todas as fábricas do país), mas terminou dez dias depois, com a rendição dos marinheiros, uma vez que a revolta não vingou. A pedido de Lênin, no entanto, Sergei Eisenstein fazia da reconstrução daquele episódio, 20 anos depois, o primeiro filme do regime bolchevique. Apresentado como um documentário para comemorar o vigésimo aniversário dos movimentos populares contra o tzar Nicolau 11, O encouraçado Potemkin, ao terminar com a insurreição alastrando-se por toda a nação, era uma apologia da revolução proletária que se afirmou em outubro de 1917, transformando uma derrota histórica num triunfo propagandístico - já na era de Stálin (VISETTI, 2005: 46; KURUKIN, 2005: 47). Diante disso, torna-se difícil não concordar com Angelo Schwarz· (1980: 67), quando afirma que os "meios de comunicação de massa são operadores de ideologia", os quais, ao favorecerem "a percepção de um estímulo fundamental"- aforma -, relegam à sombra os modos, os elementos constitutivos do entorno". J?isso resultaria uma deterioração da informação, o que o leva a concluir que um acontecimento é sempre algo exterior a qualquer forma de representação. É essa a lição que se extrai da revisão da "Operação Carvalho". E é essa a reflexão à qual nos convida Clint Eastwood com A conquista da honra e Cartas de Iwo Jima: realizar uma nova leitura dos "clichês" que a guerra delegou a este trabalho, que são antes indícios do que memória ou comprovação de um acontecimento, pois essas imagens silentes, 8 para reviverem, não podem dispensar os outros testemunhos, 8. Referindos-se aos discursos que se constroem sobre as fotografias, diz Ancona (1980: 61 ): "As fotos, aliás, são mudas; não podem dizer nem mentiras, nem a verdade. Quem pode 'mentir', portanto, são seus autores ou os que escrevem suas legendas. Estes, de fato, nada mais fazem do que colocar tais fotos em seu contexto significante original (se pretendem dizer a verdade), ou num contexto diferente (se pretendem mentir)". A partir da afirmação do autor, preferi o termo silente, por entender que, para além do discurso que se pode construir sobre urna foto, qualquer imagem em si vem carregada de significado(s), que lhe permite(m) romper a barreira do silêncio (expressão momentaneamente abafada), a cada nova leitura a que for submetida. ESTUDOS DE CINEMA 180 dos depoimentos às reportagens; das cartas aos livros de História, na tentativa de aproximar este objeto de estudo daquela ''verdade" que _cobra tanto delas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANCONA, Clemente. "Quel che significano, dicono e non dicono alcune foto del fondo Gatti sulla prima guerra mondiale". Rivista di storia e critica del/a fotografia. Venezia, ano I, n° 1, out. 1980, pp. 61-65 (fascículo "La guerra rappresentata"). ANNUSSEK, Greg. Hitler e o resgate de Mussolini. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. FABRIS, Annateresa & FABRIS, Mariarosaria. "O teatro da guerra". Texto inédito, a ser publicado pelo Jornal daABCA, São Paulo, 2008. 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"Ma quegli eroi furono un falso del regime". La Repubblica, cit., p. 4647. Documentário social inglês: problematizando a obra" de Grierson li PAUW MENEZES (USP) 1 Para Ana Lúcia QuANDO SE PENSA em documentário social inglês é impossível não se pensar em John Grierson. Não só por ele ter sido seu pai fundador, mas por ter ele tentado inserir o cinema na ponta de lança de propaganda do Empire Marketing :eoard, o . grande órgão do governo britânico responsável por "promover o comércio e o senso de unidade entre as suas várias partes" (BARNOUW, 1993: 87). Seu nome tomou-se, a partir disso, elemento "esclarecedor" das análises e interpretações que se fizeram dos filmes por ele realizados (poucos), ou produzidos (muitos). Nessa direção, o intuito desse artigo é discutir o que significa a generalização de uma entidade que se costumou chamar de "narrativa griersoniana". Foucault, em seu texto O que é um autor (1994: 789-821), joga alguma luz sobre essa questão. Segundo ele, pensar um autor - ou nome de autor, ou "obra" de um autor - significa adotar uma lógica interpretativa em relação aos discursos que pode desconsiderar ou colocar vem de fora deles, que lhes é exterior, que, no ャセエ・L@ em segundo plano suas próprias características discursivas. Nessa direção, olhar um autor, ou uma "obra", não significa olhar as condições, de funcionamento das práticas discursivas, pois o nome de um autor se diferencia de maneira radical de um nome próprio qualquer. Autor, portanto, acaba adquirindo uma função, acaba cumprindo um papel em relação a um discurso que um nome próprio não cumpre. Pensar-se 1. Agradeço à FAPESP e ao CNPq o apoio à realização dessa pesquisa. 184 ESTUDOS DE CINEMA autor e pensar-se "obra" significa assegurar uma função classificatória ao discurso, função essa que permite um agrupan1ento de textos narrativos que permite a criação de um campo de coerência conceitual e teórico, que, por sua vez, permitirá ao leitor inferências, homogeneidades, filiações e autenticações de uma obra em relação às outras, de um discurso em relação aos outros, permitindo que se constitua uma unidade estilística que pode não estar presente em uma análise detida das obras particulares. "Ele manifesta a ocorrência de certa unidade de discurso, e refere-se ao status deste discurso no interior de uma sociedade e no interior de uma cultura." (FOUCAULT, 1994: 798) Assim, o autor, ao contrário de ser pensado como uma entidade que explica os discursos a partir de fora, por uma unidade e coerência pressuposta, anterior e exterior a eles mesmos, mostra-se como uma "produção ideológica que afasta a proliferação de sentidos" (FOUCAULT, 1994: 811 ), variante como um princípio de constrangimento e não de esclarecimento, como uma coerção interpretativa à análise de discursos e de seus possíveis sentidos. Nessa direção, parl:!- analisar a "obra" de Grierson, para analisar a "narrativa griersoniana" é necessário se esquecer de Grierson como autor e "obra", é necessário sob sua égide não como "filmes de Grierson", mas como unidades se olhar os ヲゥャュ・セ@ discursivas próprias. A isso se soma um outro ponto de partida analítico, que irei tomar, como em Sorlin (1977: 237-45), de investigar um filme como uma unidade discursiva construída.pelo diretor, ou produtor (aqui a distinção não é relevante), que remete à necessidade de se buscar em suas imagens, sons e ruídos, compreender quais são os esquemas valorativos que comandam sua concepção e seus esquemas construtivos que organizam e posicionam sua "encenação social", nos termos de Sorlin, e;por meio dela, a construção social dos personagens e dos sistemas relacionais que estão materializados nas relações visuais do filme. Olhando-se esses filmes por esse novo prisma, um outro documentário social inglês aparece com várias coisas em comum de um filme para outro, mas também com muitas coisas diferentes, que são muito mais instigantes para o olhar investigativo. Grierson, que era um sociólogo formado pela Universidade de Glasgow, tem em Drifters sua obra seminal. Inicialmente, pelo estratagema peculiar por ele utilizado para conseguir o financiamento para realizá-lo. Ciente dos recursos investidos pelo EMB para dar publicidade aos grandes feitos do Império Britânico, que utilizava como meios de propaganda principalmente pôsteres, panfletos e exibições, e que tinha em seu comando o secretário das Finanças e Tesouro, Sir Arthur Michael Samuel, um notório opositor da utilização do cinema apelo império, Grierson propôs a ele que se fizesse um filme sobre a pesca do arenque no mar do Norte com o intuito de mostrar o poderio britânico em uma atividade econômica tradicional e de formas de produção bastante artesanais. Convencido da importância desse filme, Sir Arthur Samuel, que não por acaso era a maior autoridade na indústria do arenque da Inglaterra, aprovou o projeto de Grierson e destinou a ele a polpuda (na época) quantia de 2.500 libras, com a qual foi realizado o filme de aproximadamente 50 minutos. IMAGEM EPODER 185 Drifters (I 929) é de fato um filme seminal, evidentemente não só pela criação de um estratagema de obtenção de fmanciamento que Grierson sofisticaria nos anos seguintes, mas sobretudo por ter com ele criado um modelo de constituição de imagem que atraves·sou fronteiras nas décadas seguintes. De saída, Grierson constrói o trabalho da pesca em uma clivagem como o trabalho artesanal que povoava o imaginário urbano das primeiras décadas do século XX. Grierson é muito cuidadoso nessa constituição, pois, antes de mostrar as condições de trabalho, faz os olhos de o espectador passear pelas vilas onde habitam aquelas pessoas, vilas de casas brancas em torno de um grande terreno central, onde descansam calmamente inúmeras redes de pesca ao lado das quais passam os habitantes vestidos singelamente, circundados pelos seus cachorros. As imagens da vila dos pescadores contrastam com as imagens construídas do barco no qual eles pescam. Aqui, a diferença é substantiva. Se a vida cotidiana pode parecer à mesma, os objetos do trabalho já não o podem ser. De saída, a força motriz dos barcos não é mais apenas e somente o trabalho humano, nem os pequenos motores de popa, co!llo em áureas épocas, mas agora enormes motores movidos pela energia da Revolução Industrial: o vapor. Para acentuar a imagem de que este trabalho nada mais tem de artesanal, logo após a cena na qual se vê o carvoeiro alimentando a caldeira, o que demonstra a intimidade nada agressiva da máquina com o homem nesse tipo de trabalho, docemente se vê pegar com uma grande pá um punhado de carvão, agora em brasas, para acender, sem qualquer parcimônia, o cigarro que cuidadosamente descansa entre seus lábios sorridentes. As razões dessa necessidade não deixarão de aparecer nas cenas seguintes. Logo que o barco contorna a saída do porto, já se pode vislumbrar a necessidade de tanta força motriz. Inicialmente, por tomadas que vão mostrar a violência com que batem as ondas nas pedras da costa da Inglaterra. A seguir, pelo tamanho das ondas que as embarcações, agora diminutas, têm de enfrentar para conseguir chegar a mar aberto. Essas cenas, tomadas de longe, e às vezes de dentro de uma das embarcações, pelo movimento que fazem em relação à linha do horizonte, podem deixar enjoados os espectadores, como deveriam deixar enjoados os pescadores, não fosse a sua maestria e destreza que o filme não economiza em ressaltar. A isso se·associam as imagens da alllp.entação incessante nas fornalhas, da escura e espessa fumaça que escapa das chaminés dos barcos, entremeadas pelas recorrentes seqüências em que se vêem os trabalhos dos pistões e das engrenagens, em seus incessantes vaivéns, azeitados constantemente pelo óleo que escorre de seus movimentos, e que ao mesmo tempo deixam clara a sua importância para que se possam vencer mais facilmente as ondas, não apenas as do mar bravio, mas, e principalmente, aquelas que separam a produção artesapal e tradicional da iqdústria moderna. Grierson se utiliza de uma imagem recorrente que naquela época já havia se transformado em símbolo visual da indústria moderna: o movimento das engrenagens e especialmente dos pistões, como já havia 186 ESTUDOS DE CINEMA sido utilizado por Vertov em Um homem com uma câmera (1929), bem como por Ruttmann em Berlim, sinfonia da metrópole (1927), entre outros. Grierson constrói seu "épico de vapor e aço", como dizem os intertítulos no início do filme. As cenas dos pistões, das engrenagens, dos desenhos do óleo que escorre e lubrifica suas entranhas, ao giro poderoso das rodas das locomotivas, constituem para o espectador as mais poderosas imagens do que poderia haver de mais moderno na época, e que havia se tomado símbolo visual da indústria moderna. Ao mesmo tempo, e isso é o mais significativo, pois o difere substancialmente de Ruttmann, constrói por imagens, pela primeira vez na história do cinema, o trabalho humano e o trabalhador da indústria, e não a classe, como sujeitos filmicos. O homem aqui nunca é esquecido, como fora em Ruttrnann, onde as máquinas parecem se mover por pura e exclusiva vontade própria. Se, em Vertov, a força do trabalho humano está sempre presente no manuseio e comando das máquinas, aqui, em Grierson, a máquina e o tràbalho humano são elevados sem meias palavras às forças motrizes fundamentais da instituição da indústria moderna, como elementos essenciais do processo de produção de mercadorias e valores. Entretanto, o que é mérito é também o lócus do problemático. Se é louvável a elevação do trabalho humano à sua nova condição de sujeito filmico, escapando das visões edificantes e exotizantes em que ele apareceu nas telas por meio de filmes como Nannook, 2 Grierson, entretanto, não leva suas imagens às últimas conseqüências, como em alguns momentos levaram Vertov e Eisenstein. A visão do modo capitalista de produção em seu filme, que nunca é nomeada como tal, é fundada por meio de suas imagens em uma visão reformista, para as concepções políticas da época, da relação entre capital e trabalho. As inúmeras cenas da placidez e alegria com que os pescadores acordam felizes de madrugada para se dedicar ao trabalho, fazem as suas refeições sorridentes dentro do barco, enfrentam com coragem o mar bravio e lutam com a ajuda das máquinas para tirar da água as redes repletas de peixes, associadas à tranqüilidade de sua vida na vila e à perfeição e rapidez da comercialização de seus produtos no seu retomo, mostra para o espectador que a relação capital-trabalho pode se desenvolver na mais perfeita harmonia, não só nas relações homem-máquina, mas também nas relações homem-homem, nas relações de trabalho aqui não construídas como relações de dominação e expropriação, como se vê em A greve ( 1924) e Potemkin (1925). Conseqüentemente, o final do filme é apenas um corolário dessa proposição, pois se vê os peixes serem retirados dos barcos, serem limpos pelas mãos hábeis das 2. Para uma análise detalhada desse filme, remeto a análise realizada em outro lugar: Menezes, Paulo, "O nascimento do cinema documental e o processo não-civilizador", in: Martins, José de Souza; Novaes, Sylvia Caiuby & Eckert, Cornélia, O imaginário e o poético nas ciências sociais, Bauru, Edusc, pp. 27-78. IMAGEM EPODER 187 mulheres, serem embalados, pesados e transportados por carroças, trens e navios "para os mais longínquos confins da terra", como nos afirma um intertítulo, como a confirmar a potencialidade planetária desses procedimentos, dessas relações. Reproduz de forma filmica os momentos do processo de reprodução do capital expressas por Marx em O capital: produção, circulação, distribuição e consumo. Apenas com uma pequena mas extremamente significativa mudança: o processo e as relações de trabalho são vistas como não-conflituosas, como orgânicas e harmônicas, deixando explícito que, pelo menos nesse caso, o filmico, o desenvolvimento industrial é, finalmente, . para todos. Essa mesma visão harmônica será expressa em outro filme produzido por Grierson, mas dirigido por Basil Wright e Harry Watt (que tem o som realizado por Àlberto Cavalcanti). Em Night Ma i/ ( 1936), filmado com vários truques para simular o trabalho noturno do trem postal, podemos nos dar conta de que as correspondências que se recebe em casa não são obra de mágica ou do acaso, mas fruto de uma longa e incessante sucessão de trabalhos humanos, em que as máquinas auxiliam, mas não comandam, numa seqüência de imagens que termina, 'Como não poderia deixar de ser, em urna longa cena que mostra os campos ingleses banhados por uma luz matinal e por urna música alegre e suave, corolário do glorioso trabalho da madrugada. O ápice dessa perspectiva se pode encontrar em um filme com Industrial Britain (1933), este diretamente institucional, realizado por Grierson e Flaherty. Inicialmente o filme constitui urna di vagem entre o novo e o velho, a velha ordem dos moinhos de vento, das máquinas de fiar, de tecer, dos montes de feno e dos barcos, cisnes e caravelas, como mostram suas imagens primeiras. A nova ordem aparece por meio dos símbolos reconhecíveis da fumaça e vapor, como força motriz, advindas da indústria do carvão, base da indústria e do poderio do Império. O filme é realizado por blocos, sendo coerentemente, o das minas o mais escuro, com seus corredores apertados, com seus trabalhadores sem camisa, por causa do calor que a todos toma, com as máquinas e animais que os ajudam, tudo isso temperado e suavizado por outra alegre e suave música de fimdo. O processo de trabalho é construído didaticamente do simples ao complexo, do moleiro, que desde sempre faz "as mesmas coisas boas, com as mesmas ferramentas simples", como alerta o intertítulo, passando pelo vidro, o trabalho artesanal mais sofisticado que existe, ápice dos segredos das corporações de oficios, que guardavam desde o século XV a sete chaves suas combinações de cores, mostrado por meio do sopro que cria formas e pelo recorte humano que dá detalhe e beleza a essas formas genéricas. Chega-se por fim ao trabalho das lentes, dentre os vidros o mais sofisticado e elaborado, como os finos cristais, que vão municiar microscópios, telescópios e faróis marítimos. O bloco do aço muda as dimensões do que é proposto pelo filme. Fornalhas, fumaça, faíscas, e cadinhos imensos, barras de aço e rebites introduzem a fabricação de peças sofisticadas que não podem dispensar a sofisticação do trabalho humano, expresso nos olhos afiados 188 ESTUDOS DE CINEMA daquele que busca fissuras em peças de aeronáutica. O final recupera, por meio da música epopéica, a grandiosidade da indústria britânica, ressaltada pelas imagens da eletricidade, do transporte e dos aviões. Se for tomado como elemento analítico, apenas esses três filmes (dois deles realizados pelo próprio Grierson), ou seus assemelhados na lista dos filmes produzidos pela empreitada de Grierson, pode-se cogitar que existe um ponto comum que mobiliza, todos esses filmes e que poderia muito bem ser expresso pelo que se convencionou chamar de "narrativa griersoniana". Mas se, ao contrário disso, buscar-se ao invés da similitude os indícios da diferença, uma outra chave interpretativa vai surgir por ュセゥッ@ das imagens de filmes muito diferentes desses. Housing problems (1935), de Edgar Anstey e Arthur Elton, é um filme que permite a passagem de um lado para o outro. Seu fmanciamento foi conseguido pelo estratagema central de Grierson, de convencer empresas a realizar filmes sobre suas áreas de atuação, as quais acabavam se transformando em filmes que em muito . extrapolavam a mera propaganda dirigida, como pode-se ver até em Drifters e Night Mail, e menos em Industrial Britain. Aqui, Grierson convenceu a Gás Light and Coke Company a financiar o filme com o argumento de que ele seria um bom ponto de partida para convencer a população em geral das melhorias que o gás poderia levar às suas condições de vida. O local escolhido foi de uma região pobre de Londres, tomada de cortiços, que estava na mira dos grandes empreendedores imobiliários. O filme é construído para ressaltar nitidamente duas dimensões do problema. Na primeira parte ouve-se uma narração em tom formal a discorrer oficialmente sobre o problema: na voz de Concelor Lorder, ao mesmo tempo em que as imagens mostram tetos caídos, telhados deteriorados, janelas quebradas, rebocos arrebentados, escadas precárias, banheiros coletivos (a locução afirma serem para quatro famílias) que são apenas buracos no solo, roupas estendidas pelos corredores ou em minúsculos quintais. Esse contraste entre ao tom formal e solene da narração e a absoluta falta de pudor das imagens mostradas cria para o filme uma atmosfera muito diferente do que se" poderia pressupor apenas por meio de uma propaganda, da indústria do gás. O filme utiliza uma inovação filmica fundamental para o seu resultado sombrio: a entrevista direta com som sincronizado, mesmo que artificialmente, pois é somente no fmal da década de 1950, com o gravador Nagra, que a sincronia mecânica vai finalmente se セ・。ャゥコイN@ Mas o impacto é imediato. Diversos moradores são entrevistados para falarem sobre suas condições de vida. O interessante, e que contrasta com a solenidade inicial, é que esses moradores falam de suas mazelas sem o menor constrangimento, como se deveria esperar. Pelo contrário, falam de si e de seus problemas com a naturalidade de quem se estabilizou com aquilo, mas que não se acostumou com o que vive. As pessoas são altivas dentro de suas precárias condições, expondo sem meias palavras as precaríssimas condições de vida e de trabalho, da falta de luz que tudo estraga até a sujeira que a tudo toma pela inexistência de atenção às condições sanitárias por parte ·IMAGEM EPODER 189 das autoridades. As imagens que recheiam essas entrevistas são das mais contundentes, nunca antes vistas em filmes documentários, com baratas andando pelas paredes e .frestas, com as cozinhas transformadas também em dormitórios, os corredores escuros cheios de insetos ligando o precário ao insalubre. Uma verdadeira guided tour dos moradores sobre a própria miséria. Na seqüência aparece o momento propaganda do filme, com quatro entrevistas muito mais curtas, que mostram a população já reinstalada, em limpas e confortáveis residências, onde não se vêem mais ratos ou baratas, nem mesmo cantos escuros. ,Mas o interessante é que o filme termina com depoimentos em of! de outros moradores, .voltando às imagens dos corredores escuros e das condições precárias dos cortiços, de sua estreita passagem de entrada onde se empilham famílias, onde as crianças ·brincam no chão imundo rolando com os cachorros, e onde uma voz of! afirma que Íx>r ali podem ser encontrados "ratos do tamanho de beagles". Assim, o filme não se permite terminar na generalização da alegria dos novos residentes, mas retoma à miséria da maioria como a alertar que o problema é muito maior do que a solução até omomento proposta, por mais que para alguns ele tenha sido proveitoso. Nessa outra linha, Coa/ Face (1936), deAlberto Cavalcanti, é sem sombra de dúvidas o mais radical e tenebroso de todos. Como avança o nome, o filme trata da 'indústria do carvão, anunciada pelo narrador como "a base da indústria britânica". vPode o espectador, a partir dessa breve introdução, imaginar que vai assistir a um filme semelhante àquele que louvava a engenhosidade e a sofisticação da indústria britânica, tendo como base de geração de energia o mesmo carvão. Nada mais enganoso. De início, essa primeira locução é acompanhada de uma música grave e sombria, e por imagens dos montes de carvão, das máquinas e das esteiras sob um céu nublado, tomado pelo vento e escurecido pela proposta narrativa. Segue-se a isso uma sucessão de dados estatísticos secos, falados por uma voz mais soturna que a . anterior, acompanhada de uma sonoridade repleta de sons surdos de tambores, o que toma o ambiente no qual desfilam esses dados ainda mais sombrios, pelos quais sabeNセ・@ ser uma indústria que emprega algo em torno de 750 mil trabalhadores, demonstrando a imensidão de sua atuação espalhada por todo o território da Inglaterra. O bloco seguinte irá, por meio deste documento de pesquisa, fazer passear por dentro das minas de carvão, como o fez Industrial Britain três anos antes. Mas a narrativa é completamente diferente, mesmo que algumas cenas sejam as mesmas. As tomadas ·aqui são muito mais escuras que as utilizadas no filme anterior, e a música soturna de Benjamin Britten continua a acompanhar as cenas. Tudo é muito sujo, o que não deveria espantar ninguém por se tratar de uma mina de carvão; mas espanta por contraste com a "limpeza" com que a mina foi constituída filmicamente na película anterior. Aqui nada é cosmeticamente organizado, e as imagens mostram os operários andando e se arrastando por corredores baixos e estreitos, por onde passam carrinhos e animais, com o som dos tambores e uma iluminação à contraluz que aumenta de ESTUDOS DE CINEMA 190 maneira acentuada a dramaticidade da situação que se quer constituir. O ápice desse processo é a refeição que se presencia os operários realizarem à 01h30. A cena, semelhante à do filme anterior, mostra duas pessoas sem camisa, com o corpo e o rôsto tomados de fuligem, que comem em um ambiente completamente inóspito a sua tardia refeição. O filme termina com a saída da mina, que já apresenta chaminés sem fumaças, como a indicar o fim da jornada de trabalho. Um operário anda em direção à sua casa, em um conjunto de casas geminadas que surgem ao fundo, retomando às imagens das chaminés que despejam uma densa fumaça preta, em meio a muito vento, que balança as roupas no varal no fundo das casas, já tão sujas, imagina-se, como estavam antes de serem lavadas, tal a sujeira que essas imagens fazem sentir. Por fim, uma outra sucessão de dados frios, narrados nos mesmos moldes do começo do filme, fazem perceber que a produção de carvão, de 3 mil vagões de trem por dia, distribuem 251 toneladas nos mais variados setores da economia britânica. Na última cena, na qual se vê novamente o trabalhador andar em direção às casas, imersas na fumaça preta, com o mesmo som grave de antes, a mesma voz soturna anuncia, como no começo, que as minas de carvão eram à base da indústria britânica. Evidentemente, se isso no filme anterior aparecia como louvável, nesse filme parece se questionar a boa "saúde" de uma indústria que se funda em tal tipo de matriz energética que parece _estar levando seus trabalhadores à insalubridade geral. Por fim, com já se analisou de maneira detida e detalhada as propostas narrativas dos filmes realizados sob a égide de Grierson, sem se contentar com as generalizações que acabam por 」ッャセ@ a todos sob uma mesma perspectiva, viu-se imensas diferenças narrativas que mostram um empreendimento filmico muito menos homogêneo do que se esperava ricos em proposições díspares e em constituições visuais criticas, em contraste com o aspecto laudatório dos filmes mais oficiais. Com isso se recupera, como em Foucault, a capacidade de se ver o diferente no seio do sempre igual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARNOUW, E. Documentary: a history ofthe non-fictionfilm. NY: Oxford University Press, 1993. FOUCAULT, Michel. L 'ordre du discours. Gallimard, 1971. - - - - - · Qu'est-ce qu'un auteur. In: ___ . Dits et écrits I- 1954-1969. Paris: Gallimard, 1994,pp. 789-821. NICHOLS, Bill. Introduction to Documentary. Indiana University Press, 2001. - - - - - · Representing Reality. Indiana University Press, 1991. SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier, 1977. Ao sul da fronteira com Disney: O documentário "making o f" de Alô amigos DARLENE J. SADLIER (INDIANA UNIVERSITY) EM AGOSTO -de 1941, por convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos e com a be,p.ção de Nelson Rockefeller e sua Secretaria para Assuntos · Interamericanos, Walt Disney foi ao Rio de Janeiro com uma equipe de 18 desenhistas, músicos e escritores como parte de um programa de Boa Vizinhança para reforçar os laços entre os Estados Unidos e a América Latina. O resultado de sua turnê pela América Latina foi Saludos amigos, o famoso filme de animação que estreou como Alô amigos no dia 24 de Agosto de 1942 no Rio e cinco meses depois como Greetings Friends nos Estados Unidos. Apesar de existirem vários comentários crí'ticos sobre o filme de animação, menos atenção tem sido prestada a um filme proximamente relacionado que se desenvolveu da mesma turnê pela América Latina: Ao Sul da fronteira com Disney (South of the Border with Disney)- um documentário de viagem de meia hora co-produzido pela Disney e a Secretaria para Assuntos Interamericanos. Lançado em Novembro de 1942, e exibido nos Estados Unidos em livrarias, lojas como Bullock's em LosAngeles, e o YWCA, Ao sul da fronteira foi tanto um precursor dos documentários "making of' tão comuns no cinema pós-moderno, como um filme de propaganda destinado a apoiar a política de Boa Vizinhança em contextos quase-educativos. Como espero mostrar, o documentário e o filme de animação ambos usam em grande parte os documentários de Orson Welles sobre o Brasil na rádio e em filme abortado, que também foram financiados pela Secretaria para Assuntos Interamericanos. Na verdade, tanto Welles como Disney tinham unidades de produção na RKO Pictures, um estúdio parcialmente controlado por Rockefeller. Também gostaria de abordar o documentário como urna versão moderna de textos coloniais que representavam o Novo Mundo como um paraíso, repleto de índios amistosos, flora e fauna exóticas, e costumes pitorescos. Nos textos coloniais, como na Carta 192 ESTUDOS DE CINEMA de achamento de Pero Vaz de Caminha e nas Cartas do Brasil do Padre Manoel da Nóbrega, detalhadas descrições etnográficas foram usadas para criar uma visão do Éden que por sua vez foi usada para promover interesse na colonização do Novo Mundo. O documentário de Disney é ainda mais hábil com suas imagens tropicais: tende a minimizar imagens de habitantes locais, especialmente aqueles que são pobres e negros, a favor de imagens da natureza, costumes folclóricos, e cenas de cidadezinhas e do campo, muitas delas reproduzidas em aquarela pelos desenhistas da Disney. Em sua visão colorida, bucólica e frequentemente infantilizante da América Latina, dá conforto e confiança às audiências dos Estados Unidos no que diz a respeito a uma aliança com vizinhos ao sul, e ao mesmo tempo promove uma forma de colonização cultural em estilo de turista. Como talvez se lembrem, Alô amigos é composto de quatro segmentos animados: Pato Donald no Lago Titicaca na Bolívia; o aviãozinho chamado Pedro que sobrevoa os Andes carregando o correio; o Pateta como um cowboy texano que vira gaúcho nos pampas argentinos; e o Pato Donald e o Zé Carioca num encontro cultural no Rio. Os quatro desenhos animados são unidos por cenas filmadas em vários locais que Disney e sua equipe visitaram, enquanto viajavam de avião de um país a outro. Para orientar a audiência, um grande mapa colorido da América Latina aparece na tela em intervalos regulares para introduzir cada parada na turnê. A estrutura de Ao sul da fronteira é semelhante e os dois filmes compartilham várias seqüências de documentário. Embora muito mais curto, o documentário inclui oito seqüências geográficas diferentes que mostram Disney e sua equipe trabalhando e brincando no Brasil, onde o filme começa, na Argentina, e em vários lugares no continente, culminando na América Central e no México. Assim como em Alô amigos, imagens de viagem de avião e um grande mapa indicam cada parada na viagem. Entretanto, em contraste a Alô amigos, onde os personagens animados Pato Donald, Pateta e Zé Carioca dominam, Ao sul da fronteira centra-se no trabalho da Companhia Disney e sua "pesquisa" artística. Os únicos personagens animados que aparecem no documentário são os que estão sendo desenhados pela equipe de Disney como possível material para o desenho animado. Os simples desenhos a lápis, às vezes se animam e se movem como se estivessem à beira de se tomarem personagens completas. Esses incluem o malandro Zé Carioca, Pedro, o avião, uma lhama dançarina, e um tatuzinho cujas chapas de armadura soam como o tinir de latas. Pouco desses personagens animados e só cinco das oito nações que figuram em Ao sul da fronteira acabam figurando em Alô amigos. Outras seqüências e personagens animados baseados em episódios no Uruguai, Peru, Guatemala e México apareceram mais tarde no desenho animado da Disney Você já foi à Bahia? (Os Tres Cabal/eros) (1945) e em alguns lançamentos de desenho animados individuais. Enquanto Disney estava começando a trabalhar nos seus projetos de Boa VIzinhança, Orson Welles foi convidado por Rockefeller para fazer o seu próprio IMAGEM EPODER 193 filme sobre a América Latina, que seria chamado É tudo verdade (It's Ali True) e que :de começou no Brasil em 1942, mas nunca acabou. Em abril de 1942, Welles transmitiu ,4o Cassino da Urca no Rio dois programas de rádio sobre o Brasil, que se tomaram moldes para a sua série Alô americanos (Helio Americans) na rádio CBS em novembro do mesmo ano. Entre os temas que Welles selecionou para o seu filme e seus shows de rádio constam as festividades de carnaval que filmou semanas após chegar ao Rio e o samba cujo som comparou ao jazz norte-americano. Seu segundo show de rádio foi dedicado ao samba, que a certo ponto descreveu como "o- two-step com um sotaque sul-americano". Welles repetiu grande parte de seu show na rádio brasileira, que incluiu descrições físicas de instrumentos musicais como o reco reco, no segmento Gセaョ。エッュゥ@ do samba" para a primeira transmissão de Alô americanos nos Estados Unidos. É dificil imaginar dois embaixadores de Boa Vizinhança mais política e esteticamente diferentes que Disney e Welles. Disney era um ultra-conservador que estava lutando contra uma greve de seus próprios desenhistas pelaa sindicalização. Welles era um liberal de Roosevelt com interesses sociais esquerdistas. Como se sabe, as imagens do -documentário que Welles filmou no Brasil foram consideradas impróprias aos interesses da RKO e de Rockefeller (para começar, ele estava fotografando gente pobre e negra em demasiado) e o financiamento para É tudo verdade foi cancelado. Mesmo assim, é bem possível que Alô amigos tenha obtido algumas de suas mais convincentes seqüências de brasileiros comuns da metragem de carnaval em Technicolor que Welles mandou de volta para a RKO. Um segmento mais curto dessa seqüência também aparece no trailer de Alô amigos. O documentário curta-metragem de Disney Ao sul da fronteira canibalizou Welles mais sutilmente, adotando as mesmas descrições folclóricas do samba (Disney o chama "um two-step animado com pique") e figurando com instrumentos_ como o reco-reco e a cabaça, que se tomam os objetos de dois closes. Onde os dois produtores de filme divergem mais radicalmente é na concepção do que deveria ser um documentário sobre a América Latina. Welles fez um filme em grande parte sobre a população negra no Rio de Janeiro e no Nordeste, um projeto com o qual nem a RKO nem o Presidente do Brasil Getúlio Vargas ficaram satisfeitos. Disney, por outro lado, fez um documentário sobre o "making of' de Alô amigos; o propósito do documentário é publicidade própria, e o Brasil e outros países latinoamericanos simplesmente providenciam uma mise-en-scene colorida e exótica. Não se vêem negros no segmento de Disney no Rio, a não ser uma só mulher, bemvestida, que aparece brevemente numa cena de calçada fotografada de cima de um edifício. Na verdade, a não ser pela seqüência patriótica mostrando Villa Lobos conduzindo um coral de crianças e uma parada militar no dia de independência, que tem como objetivo dar confiança à audiência dos Estados Unidos sobre a preparação do Brasil para entrar na guerra, Disney dá pouca atenção aos habitantes locais. O seu 194 ESTUDOS DE CINEMA tema é paisagem, flora e fauna, e o trabalho de sua equipe de desenhistas em seu estúdio temporário no Rio. Ele se concentra em típicos sites de turismo como. Copacabana e Pão de Açúcar, mas mostra quase nenhuma figura humana. A vidá brasileira é representada por coisas "estranhas e exóticas," como orquídeas selvagens·. e papagaios, e vários tipos de diversão como o jogo acelerado de caixinha de fósforo;.· que é jogado não por brasileiros na rua, mas pelos próprios desenhistas de Disney em seu estúdio. Mesmo quando o samba é ilustrado, vê-se urna só instrutora de dança. ensinando os passos à equipe de Disney em seu quarto de hotel. A missão artística de Disney à América Latina tem afinidades impressionantes com as miríades de expedições artísticas e científicas que viajaram do século XVI , adiante para relatar as maravilhas edênicas do Novo Mundo. Ao sul da fronteira é repleto de imagens dos desenhistas da Disney pintando paisagens e desenhando flores· e árvores assim como seus predecessores, o holandês Albert Eckhout, o alemão Johannes Rugendas, o francês Jean Baptiste Debret e muitos outros que produziram portfólios pitorescos nos séculos XVIII e XIX. Ao sul da fronteira também revela• urna prosa ufanista ou hiperbólica que caracteriza grande parte das primeiras escrituras coloniais sobre o Brasil. Por exemplo, o documentário fala com entusiasmo sobre o tamanho, a cor e a beleza das orquídeas selvagens ("que são muito superiores às de estufa") e a vitória-régia, "cujas flores individuais são como bouquets inteiros." Assim como os primeiros exploradores que sabiam do potencial comercial na intensa promoção do exótico, Disney ressalta as maravilhosas e fantásticas espécies nativas, como as "árvores estranhas com raízes acima do solo," o tamanduá, a anta, e diversas aves·· tropicais. Talvez não seja surpreendente que o papagaio, um dos primeiros símbolos do Brasil colonial, atraia a atencão de Disney, e, como Zé Carioca, enfim assuma um lugar de honra ao lado do Pato Donald e do Pateta em Alô amigos. Até mesmo o grande mapa colorido e ilustrado que aparece em intervalos regulares no documentário faz lembrar os primeiros mapas coloniais da América do Sul, como os de Cantino e Lopo Homem, que tipicamente eram enfeitados com ícones representando mercadorias como o pau-brasil. Papagaios também figuravam na decoração dos mapas coloniais; assim como índios, que frequentemente eram retratados carregando pau-brasil ou praticando antropofagia. Disney aborda a cartografia latino-americana mais como um mapa para crianças escolares que soletram em grandes letras de bloco, os nomes de países e cidades e é decorado de vez em quando com uma cadeia de montanhas, um lago ou um espaço verde. Curiosamente, apesar da metragem do documentário mostrando cidades como o Rio e Buenos Aires, todas as capitais no mapa, assim como a cidade de São Paulo, são representadas iconograficamente usando pequenas estruturas de adobe, como se a América Latina não fosse mais do que uma coleção de aldeias camponesas. Esta representação cartográfica está de acordo com a visão colonial da América Latina como benigna e pastoral: um paraíso terrestre com abundantes recursos naturais. IMAGEM EPODER 195 A maior diferença entre Ao sul da .fronteira e as obras de artistas como Debret ou Eckhout é como tratam das pessoas. Como já mencionei, Disney não parece estar Mセョ・ュ@ um pouco interessado na população geral da América Latina, a não ser quando realça o cenário pitoresco através de alguma "performance". Um dos mais longos segmentos no documentário "making of' mostra vários casais argentinos em costumes tradicionais dançando "e! Gato" e o "zamba"; outras performances incluem broncobusting por gaúchos argentinos, a habilidade de navegador de bolivianos em barquinhos ·de balsa no Lago Ti ti caca, um desfile de solenes oficiais bolivianos em traje traditional, e uma parada de charros mexicanos. Esse enfoque se diferencia consideravelmente de Eckhout, Debret e outros artistas, que eram atraídos por diferenças de raças e produziram milhares de desenhos de índios, negros, e gente de raça mista. Além de ,breves relances a alguns artistas latinos, como Florencio Molina Campos, que foi contactado pelo seu conhecimento e suas caricaturas famosas do gaúcho, e duas mulheres que, em segmentos diferentes, dançam músicas latinas com Disney e sua equipe, o filme basicamente mantém os habitantes locais à distância. A única exceção de nota é o segmento sobre a Argentina, no qual um gaúcho de 85 anos chamado Sr. Ribeiro Sosa, vestido com seu melhor traje de vaqueiro, é tratado como se fosse um alienígena de Marte. Enquanto ele está sentado montado no seu cavalo, a câmera faz um zoom na sua cara escarpada e desce para um close de seu pé direito, que é erguido por um membro da equipe para mostrar à audiência que as botas do gaúcho, feitas com um único pedaço de couro, não têm (miraculosamente) costura. Na próxima cena, o velho fica de pé como um manequim enquanto um membro da equipe tira o seu chapéu de feltro e começa a examiná-lo como se fosse um artefato antigo. Num ensaio sobre os filmes latino-americanos de Disney que consta em Disney Discourse de Eric Smoodin, Julianne Burton-Carvajal comenta sobre essa cena em particular e seu relacionamento aos segmentos sobre animais. Como ela indica, em seu zelo por autêntico exotismo, Disney faz absolutamente nenhuma distinção ·entre humanos e não-humanos, ambos sendo tratados como objetos. Eu acrescentaria que humanos interessam ao Disney quando são pitorescos e cheios de vida e cor mas não quando a cor é preta. A única vista de perto de um rosto preto no documentário é a de um bonequinho ;;ouvenir vestido num traje de eminente oficial boliviano. O povo -indígena aparece de vez em quando nos segmentos sobre o Peru, Bolívia, Guatemala e México, mas a ênfase está nas mercadorias: o "festival de cores" criado pelos suas vestimentas e apretechos de feira, e a "comida simples de todo dia" que é "exposta artisticamente" nos mercados. Como diz Disney, o narrador do filme, a certo ponto: "Todo mundo concordou que este foi o perfeito tipo de pesquisa: divertida e instrutiva." Mas o documentário faz tudo virar entretenimento de Hollywood e material para os desenhistas da Disney. Numa cena somos instruídos nos "prazeres" de arar grandes campos rochosos com bois e um arado de madeira - uma cena que Disney chama uma das mais "pitorescas" na sua turnê da América Latina. 196 ESTUDOS DE CINEMA Como parte da máquina de propaganda da Boa Vizinhança, Ao sul da fronteira deixa claro a bondade do povo latino-americano para com Disney e sua equipe. Os sinais de amizade filmados incluem um bolo de aniversário sendo servido a Disney pelos garçons do hotel que são convidados a compartilhar da sobremesa. Apesar de que a narração fora de cena relata entusiasticamente esta mostra de amizade, os garçons olham sem jeito para a câmera enquanto comem o bolo. Numa outra parada na Argentina, um feriado nacional foi declarado em honra de Mickey Mouse. Crianças de escola rodeiam um dos desenhistas da Disney que, em estilo de bom vizinho, produz uma série de esboços para suas mãos ávidas. Amizade é também implícita num churrasco em honra de Disney e sua equipe nos pampas. Grandes porções de carne assando sobre um fogo são fatiadas e oferecidas a Disney num gesto de boa vontade. Como Disney declara no começo do filme: em todos os lugares que iam, o povo dava material para trazerem de volta aos Estados Unidos. O segmento final do filme faz os presentes virarem o alvo de uma piada quando Disney e sua equipe estão passando pela alfândega antes de re-entrar nos Estados Unidos. Um agente de alfândega extrai uma incrível quantidade de esboços, pinturas, e artesanatos de uma mala, que é em si engraçado. Quando ele ・ョ」セエイ。@ esporas, um freio e uma sela, ele vira para o Disney e pergunta porque eles não trouxeram .o cavalo. Um som de relincho faz o agente a se virar de volta para a mala, da qual uma cabeça de um cavalo verdadeiro parece emergir. Com a exceção do assustado agente de alfândega, todo mundo na cena ri- ninguém mais do que Disney, e com boa razão. Segundo o critico Neal Gabler, quando Disney voltou aos Estados Unidos, o Escritório Nacional deConciliação (National Conciliator's Office),já tinha interferido e resolvido a greve dos artistas que havia paralisado produção e ameaçado o meio de vida e a carreira de Disney. Alô amigos acabou sendo um sucesso no box office tanto nos Estados Unidos como na América Latina, e foi seguido dois anos mais tarde por Você já foi à Bahia? e vários documentários educacionais de tempo de guerra feitos sob os auspícios da Secretaria para Assuntos lnteramericanos, que ajudou a edificar_o império Disney que se conhece hoje. Ao sul da fronteira com Disney foi uma parte · importante do aparato educativo lançado pela Secretaria para Assuntos Interamericanos de Rockefeller. Infelizmente, apesar do passar de mais de 60 anos, a sua visão estereotipada da América Latina ainda carrega a verdade para muitos norte-americanos hoje.. IMAGEM EPODER 197 BIBLIOGRAFIA BURTON-CARVAJAL, Julianne. "Surprise Package: Looking Southward with Disney." Disney Discourse: Producing the Magic Kingdom. Eric Smoodin, ed. New York: Routledge, 1994,pp.l31-147. セgablerL@ Neal. Walt Disney: The Triumph oftheAmerican lmagination. New York. Alfred A. Knopf, 2006, pp. 373-376. PROJEÇÕES, PROJETOS E PROJÉTEIS: O NOME DE G￁fricaセ@ E A SUBJETIVAÇÃO IMPERIAL EM LAGRIMAS DO SOL (2003) MARCELO RODRIGUES SouzA RIBEIRO (UFSC) O CINEMA COMO RE-APRESENTAÇÃO DA GUERRA As RELAÇÕES ENTRE cinema e guerra podem ser estudadas com diferentes abordagens. Uma delas consiste na análise de filmes de guerra. A partir da consideração do cinema como representação, em encenação, da guerra, a leitura analítica pode mapear os estereótipos, os tipos de personagens, de ambientação e as circunstâncias da mise-en-scene, das formas narrativas, da montagem etc, a guerra como projeção cinematográfica. Uma outra abordagem da relação entre cinema e guerra pode ser encontrada no livro de 1984 intitulado Guerra e cinema, no qual Paul Virilio aborda a "utilização sistemática das técnicas cinematográficas nos conflitos do século XX" (2005: 15). Aqui, a relação entre cinema e guerra se dá nos "campos de percepção", tal como se modificam numa história da sensibilidade e da técnica. Não se trata da representação da guerra através das técnicas do cinema- o que implicaria, definir o filme de guerra mas do vínculo que conecta como gênero pelo conteúdo, como no parágrafo 。」セM o olho e a arma através das "máquinas da visão" - o que implica definir o filme de guerra como gênero pela forma sensível de sua mimese. O filme de guerra como gênero formal está relacionado à capacidade técnica das ュ£アセ。ウ@ da visão de criar surpresa psicológica: o cinema como projétil bélico. Entre a guerra como projeção cinematográfica e o cinema como projétil bélico, é importante pensar as condições de produção dos filmes de guerra, particularmente naquele país que é seu maior e mais ativo investidor, os Estados Unidos da América. É preciso considerar as relações institucionais entre guerra e cinema, no caso dos .EUA entre Pentágono e Hollywood, para propor uma análise de Lágrimas do Sol 200 ESTUDOS DE CINEMA . (2003). 1 O vínculo institucional torna possível tanto a utilização da técnica cinematográfica na guerra quanto a representação da guerra no cinema, que passa a envolver a exibição do aparato bélico como se fosse uma apresentação, um tomar presente. 2 Diferenciando representação como encenação (em alemão: Darstellung) e como delegação ou procuração (Vertretung)- como faz Gayatri Spivak (1988 e 1999)aponto o alinhamento institucional entre Hollywood e Pentágono como condição de possibilidade da encenação hollywoodiana da guerra contemporânea: a Vertretung como condição da Darstellung. Apenas entrando, numa relação de representação política com o Pentágono, Hollywood pode representar a guerra e seu aparato (porta-aviões, helicópteros, aviões, soldados, armamentos). Nessa condição, o cinema se dá como re-apre_sentação da guerra. Como diz Spivak, "the staging of the world in representation - its scene of writing, its Darstellung- dissimulates the choice of and need for "heroes", paternal proxies, agents of power- Vertretung." (1988: 279; 1999: 264). Sugiro que a representação como encenação (Darstellung) permanece inscrita no texto filmico, mas sob a rasura produzida pela representação como substituição por procuração (Vertretung), que é no entanto dissimulada por aquela encenação rasurada. Há uma dissimulação representacional (Darstellung) da rasura representativa (Vertretung) que nega e dá a ler a sua própria dissimulação representacional, Darstellung e Vertretung se relacionam numa dialética indecidível entre fundo e forma que tem efeitos políticos, simbólicos e ideológicos amplos. IDEOLOGIA: A PRODUÇÃO PERFORMATIVA DO "CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES" Se em filmes como, por exemplo, Falcão Negro em Perigo (2001), o aparato bélico se apresenta contundentemente, com a utilização do maior porta-aviões do mundo e de helicópteros Black Hawk, é em Lágrimas do Sol (2003), que se entrevê a amplitude da re-apresentação da guerra pelo cinema. Além do aparato bélico utilizado I. Dirigido por Antoine Fuqua, com roteiro de Alex Lasker e Patrick Cirillo, Lágrimas do Sol é protagonizado por Bruce Willis e Monica Bellucci. Mais informações: http://www.irndb.com/ title/tt0314353/ (acessado em 28/02/08). · 2. Devo essa discussão a Carlos Henrique Siqueira. Em um texto não-publicado, intitulado "O cinema é a guerra por outros meios", Siqueira argumenta que é necessário questionar as relações entre o Estado, a indústria cinematográfica e o complexo industrial militar dos EUA. Nesse sentido, a utilização do aparato bélico estadunidense nas filmagens de roteiros hollywoodianos indica um vínculo institucional que torna a representação cinematográfica da guerra equivalente à apresentação do aparato bélico, a sua exibição como uma atração por si. IMAGEM EPODER 201 com apoio do Pentágono, atuam no filme, refugiados africanos que vivem nos Estados Unidos. Para compreender o estatuto da aparição dos refugiados no filme, é necessária a análise de sua narrativa. O enredo remete ao que Samuel Huntington ( 1997) chamou de "choque de civilizações". Para ele, os conflitos mais importantes do mundo após a Guerra Fria seriam "civilizacionais" e "culturais", numa concepção essencialista desses termos. Nesse quadro ideológico, Lágrimas do Sol trata de um caso localizado e etnicizado de confronto entre cristãos e muçulmanos. Pode-se dizer que Lágrimas do Sol participa da produção performativa do "choque de civilizações". Como afirma Horni Bhabha (1998: 20): "Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente." A noção de "choque de civilizações" produz o referente que parece apenas descrever, a partir de uma posição· de sujeito interessada, entrelaçada intimamente com as forças imperiais dos Estados Unidos, sua "guerra ao terror" e sua defesa da democracia de mercado como -forma de organização político-econômica dominante. MOTIVO NARRATIVO: A TE(LE)OLOGIA POLÍTICA DA CULPA PÓS-COLONIAL Após a imagem de um sol crepusc_ular, avermelhad?, prefigurando cromaticamente o melodrama de guerra que o filme encena, a primeira seqüência de Lágrimas do Sol alinha o olhar espectatorial com o aparato televisivo ocidental: vê-se uma notícia jornalística sobre a situação daNigéria no filme. Uma voz feminina em off explica as imagens de confrontos: The tension that had been brewing for months in Nigeria exploded yesterday as exiled General Mustafa Yakubu orchestrated a swift and violent coup against the democratically elected government of President Samuel Azuka. In a land with 120 million people and over 250 ethnic groups, there'd been a long-standing history of ethnic enmity, particularly between the Fulani Muslims in the north and Christian lbo in the south. The victorious Fulani rebels have taken to the streets as periodic outbursts of violence continue ali over the country. Tens of thousands have been killed in the fighting or executed thereafter. Fearing ethnic cleansing, the majority of the Ibo have abandoned their homes, and are fleeing the city or searching for sanctuary wherever they may fmd it. For now, General Yakubu has taken control of most of the country and appears frrmly in charge. There's no word yet on the United Nations' reaction to the coup, but United States forces have already begun to evacuate its embassy. 202 ESTUDOS DE CINEMA A equipe Delta F orce é enviada pelo governo dos Estados Unidos para realizar resgate de uma médica, a Dra. Lena Kendricks, e de outros cidadãos estadunidenses 0 em atividade missionária no país africano que queiram deixá-lo. É na primeira cena de movimentação do aparato bélico, entrelaçada à cobertura jornalística, que o nome de 'África' se explícita no filme. Vemos um porta-aviões, aeronaves e helicópteros enquanto uma legenda anuncia: "Somewhere off the coast of Africa". Do portaaviões, um repórter dá as últimas informações. Aos poucos, passamos da cobertura jornalística aos preparativos da ação militar. Quando descreve a missão à equipe Delta Force, o capitão Bill Rhodes (sobrenome bastante significativo quando se trata da relação entre Ocidente e África) situa a ação militar num mapa da Nigéria. Não assistimos mais à cobertura televisiva, mas a projeção da figura de Rhodes diante do mapa da Nigéria, ecoa a experiência espectatorial moldada nas coberturas televisivas feitas por redes como a CNN e a NBS, de intervenções estadunidenses no mundo, sobretudo a partir da Guerra do Golfo: um oficial se agiganta sobre o mapa do território onde ocorre a intervenção, seu corpo fardado sobrepondo-se à representação cartográfica do território visado. A narrativa de Lágrimas do Sol capitaliza a referêncja à experiência espectatorial diante da televisão e acompanha o movimento pelo qual essa imagem de Rhodes, no início ganha o estatuto de uma alegorização do poder imperial globalizado. A fala de Rhodes também capitaliza uma referência à culpa estaduri.idense, diante de conflitos em que o país tem um papel ativo, muitas vezes causal, em outras partes do mundo, em geral no chamado Terceiro Mundo. O capitão admite o apoio dos Estados Unidos às tropas do General Yakubu: "we have been supplying them for far too many years". Quando a força especial chega ao meio da noite, a doutora Kendricks se nega sem os refugiados de que cuida no hospital da missão, que, sabe-se, deverá a ーセゥイ@ ser eq1 breve o alvo de um ataque. O comandante da força especial, Tenente A. K. Waters/ resolve adotar outra estratégia para finalizar o resgate de· acordo com as ordens: decide fingir que levará a médica e seus pacientes para fora da Nigéria até o momento em que pode colocá-la num dos dois helicópteros militares, que estão disponíveis para o- resgate e deixar "os nativos" para trás. No momento em que os soldados, Lena e os refugiados estão prestes a partir, deixando para trás o padre e as freiras da missão, que escolhem permanecer ali, o padre Gianni diz "Go with God!". O Tenente Waters responde "God already left Africa!", produzindo uma imagem da África como caos sem a transcendência da lei divina cristã, como lei do mundo. 3. O personagem foi interpretado por Bruce Willis, cuja visita às tropas estadunidenses no Afeganistão à época do lançamento do filme no Brasil envolveu até mesmo a promessa de uma recompensa a quem ajudasse a capturar Osama Bin Laden. IMAGEM EPODER 203 Em síntese, o filme se inicia capitalizando a referência à espectatorialidade televisiva, com imagens de conflitos e urna narração em off. Em seguida, ainda alinhando o olhar espectatorial ao olhar do espectador jornalístico, começa o desfile do aparato bélico estadunidense, enquanto um repórter dá as últimas informações de cima do porta-aviões. Quando o filme parece se descolar da cobertura jornalística, que lhe dá seu enquadramento inicial, urna forma de intertextualidade mais sorrateira vem habitar sua narrativa, na figura de Rhodes sobre o mapa da Nigéria. Aqui, é possível entrever a força motriz da econ.ornia narrativa de Lágrimas do Sol: a culpa pós-colonial. Quando o nome de Deus entra em cena, a culpa pós-colonial se inscreve, numa teologia e ·configuram-se os contornos iniciais da te(le )ologia política que governa o drama do filme como um todo. CONFLITO DRAMÁTICO E RESOLUÇÃO: DA CULPA PÓS--COLONIAL À REDEI!ÇÃO IMPERIAL Após carregar Lena à força até um helicóptero, enquanto outro sobrevoa a operação, o Tenente Waters ordena que a equipe parta e deixe os nativos para trás. No trajeto do vôo, diante da visão do massacre na missão, Lena chora, atordoada. Iniciase assim o conflito dramático do filme, apenas prefigurado até então: o Tenente Waters manda os pilotos dos helicópteros retomarem e decide que sua equipe levará aqueles que foram deixados para trás até a fronteira da Nigéria com Camarões. Uma frase da publicidade em língua inglesa do filme dá conta do drama que essa cena inicia e anuncia sua resolução: "He was trained to follow orders. He became a hero by defying them." O resgate militar se transforma numa jornada de salvação (dos nativos) e humanização (do soldado frio e seco no cumprimento objetivo de suas ordens), de (promessa de) restauração da ordem (cristã) da democracia representativa numa cruzada (anti-islâmica). Os "rebeldes muçulmanos" figuram a maldade radical, a desumanidade. Ao final da narrativa, antes dos créditos finais, uma citação enquadra retrospectivamente o filme com a seguinte frase de Edmund Burke: "The only thing necessary for the triumph of evil is for good men to do nothing." Esse maniqueísmo declarado (re)produz a estrutura da narrativa do "choque de civilizações" em feixes de subjetivação contrapostos em três níveis diferentes: General Mustafa Yakubu X :{>residente Sarnuel Azuka; fulanis X ibos; muçulmanos X cristãos. Quando Waters e sua equipe retomam com Lena para buscar os nativos que tinham sido deixados para trás,. uma mulher, Patience, agradece a Waters - "God bless you!"- e a possibilidade de Deus não ter abandonado a África se insinua a partir da volta da Delta F ore, em sua missão de salvação humanitária. O retomo da equipe liderada pelo personagem de Willis implica o desrespeito às ordens do comando da missão no exército estadunidense e desvincula a equipe dos Estados Unidos, em 204 ESTUDOS DE CINEMA termos logísticos e políticos: o envolvimento da equipe com os nativos, excede sua jurisdição própria e cria um conflito com o novo regime, liderado pelo General Yakubu; isso faz com que o exército se desencarregue dos soldados para evitar aprofundar a crise política que é conseqüência de seu envolvimento, o que significa que não há mais apoio logístico garantido a eles. O envolvimento constituiria um ato de heroísmo individual dos membros da Delta Force e não representaria o governo nacional dos EUA. Mas ao fmal do filme, uma reconciliação se consolida e faz coincidir a salvação dos refugiados com a demonstração do poderio militar dos EUA, explicitando a axiomática do imperialismo que perpassa a história - "The lives of many rest in the courage of a few", como diz outra frase publicitária, remetendo à ideologia do "fardo do homem branco". A fuga continua em direção à fronteira com Camarões, com os "rebeldes" perseguindo o grupo. O motivo da perseguição é Arthur Azuka, o filho do presidente assassinado e único membro da família que permaneceu vivo, o que faz dele um herdeiro do título de seu pai: "the tribal king", para se usar o vocabulário do coronel Okeze, que vem ajudando Arthur a fugir. A perseguição se devia a que os "rebeldes" queriam matar Arthur Azuka como último remanescente da família presidencial e como "rei" ibo. Ao saber disso através de Waters, o capitão Bill Rhodes, representando o exército e o governo dos EUA, questiona o envolvimento da equipe na política interna da Nigéria, sugerindo que Arthur e Okeze são "excesso de carga". Waters responde perguntando se isso significa que "ele não é humano" (no singular) e dizendo, com ・ク。ァセイ、@ grandiloqüência, que se trata do líder da tribo ibo. Pode-se dizer que, em geral, a nação nigeriana é tribalizada e etnicizada em Lágrimas do Sol, de Okeze a Waters, constituindo-a sob o mandato e a lição imperial: em uma cena, Arthur chora a morte de Okeze; Waters o aborda duramente dizendo que aquela não pode ser a atitude de um líder da tribo e da nação. A relação imperial entre os Estados Unidos como salvador e guia para a democracia e a África como continente que não pode existir sem ajuda exterior, personificada pelos personagens de Waters e Arthur, tem em um dos membros da equipe liderada por Waters uma importante caução. Trata-se de Zee, um soldado negro que aborda Waters a certa altura para enunciar uma identificação racializada transversal ao espaçamento imperial: "LT, those Africans are my people too. For all the years that we've been told to stand down and stand by, you're doing the right thing". Na economia narrativa do filme, Zee, como afro-americano, serve de caução para a projeção imperial dos Estados Unidos sobre a África, inscrevendo o nome de 'África' na denominação da nação imperial. Waters responde remetendo à te(le)ologia política da culpa pós-colonial: "For our sins". Assim, a culpa pós-colonial se encaminha para a redenção imperial. IMAGEM EPODER 205 A fuga ganha ares cada vez mais dramáticos à medida que os "rebeldes" se aproximam. Os nativos ficam no portão da fronteira, mantido fechado pelos soldados de Camarões, ,enquanto os soldados da Delta Force enfrentam os "rebeldes'?. Alguns dos soldados estadunidenses morrem, a situação se complica para todos. No entanto, o capitão Bill Rhodes dera ordens, poucos instantes antes, para que aviões dos EUA fossem até a região. A morte dos "rebeldes" se dá através da afirmação do poderio militar dos EUA, com aviões que atiram pesadamente e salvam Waters e vários de seus homens. Com a destruição dos "rebeldes" pelos aviões, Rhodes chega à fronteira de Camarões com um mandato para a abertura do portão e, enfim, os nativos e os soldados restantes da Delta Force, bem como a doutora Lena Kendricks, estão a salvo. Patience agradece a Waters: "God will never forget you, lieutenant". A redenção se insinua, em nome de Deus, através do reconhecimento de uma nigeriana-africananativa a Waters, inscrevendo o nome de 'África' sob o mandato imperial. Arthur Azuka é consagrado líder da nação ibo e grita: "Freedom!". Toda a seqüência final de redenção é acompanhada por uma música em que se canta repetidamente o nome de 'África', dando ao encerramento do filme um tom alegórico, na representação do continente: não se trata apenas da Nigéria, parece este trabalho dizer a orquestração da música africana ("África, África... ") com as imagens da . redenção, que é concomitantemente tribal, nativa, nacional e imperial; trata-se da África como um todo. A narrativa de Lágrimas do Sol destila, assim, um modelo alegórico das relações imperialistas dos Estados Unidos com toda a África. · O SUJEITO IMPERIAL E A FIGURA DO INFORMANTE NATIVO Lágrimas do Sol re-apresenta duplamente a guerra: não apenas seu aparato, mas seu resíduo estrutural, se assim podemos dizer, isto é, os イ・ヲオァゥ。、ッセN@ "No reconhecimento dado, na diegese filmica, pelos africanos "autênticos" aos soldados como heróis- como Informantes Nativos autorizando o texto imperial (SPIVAK, 1999) - o nome de 'África' constitui a usurpação da perspectiva do Informante Nativo. O filme expropria os refugiados de agência diegética e se apropria de sua figura para autorizar a te(le)ologia política ocidentalista do humanitarismo imperial. Na economia psíquica da narrativa que governa o "modo de endereçamento" (ELLSWORTH, 2001) de Lágrimas do Sol, o foco privilegiado de identificação espectatorial (METZ, 2003) é o sujeito imperial militarizado. O filme reitera um tropo recorrente do humanitarismo imperial contemporâneo: a pós-colonialidade em África aparece como condição de caos, ingovemabilidade e descontrole político, sem a lei da ordem e a sem a ordem da lei, sem Deus - como o personagem de Willis afirma no início: "Deus já abandonou a África." O personagem 206 ESTUDOS DE CINEMA de Willis faz soar a inscrição da imagem da África pós-colonial como pesadelo num regime de verdade teológico-religioso. A história narrada pelo filme passa pelo processo pelo qual a frase de Waters se destece a partir da atuação do sujeito imperial militarizado' dos EUA como arauto da salvação e representante do Bem contra o Mal. O nome dê. 'África' é re-apropriado pelo Ocidente cristão, no mesmo movimento pelo qual, na re-apresentação da guerra, a figura de refugiados re-apresentados como "reais" é· apropriada pela narrativa filmica. Essa é a economia narrativa que circunscreve 0 . nome de 'África' no filme, cujo horizonte te(le)o-ideo-lógico é a constituição do Ocidente como sujeito imperial a partir do qual a África pode se reconstituir 0 · humanitarismo pode investir o nome de 'humanidade' com valor moral e ético. Os refugiados substituem e representam - tanto em encenação, como atOres· figurantes, quanto por procuração, como "verdadeiros" refugiados de guerras e crises. africanas que vivem nos Estados Unidos, que é como aparecem em "Vozes da África" -a figura do Informante Nativo. Ao assumirem a posição de sujeito das "Vozes da África", um efeito de autenticidade investe os refugiados como figuras autóctones é figurações da originalidade da experiência africana de guerras étnicas. O nome de 'África' é a inscrição, na narrativa filmica, do valor de autenticidade como um efeito de usurpação da figura do Informante Nativo, de sua impossível perspectiva. Na' economia narrativa de Lágrimas do Sol, o nome de 'África' vem portanto tomar o lugar da figura do Informante Nativo- representá-la por procuração- e dar lugát a< suas "vozes". Um resto permanece sem horizontes de articulação: a instância subalterna:· da pura restância, a figura do Informante Nativo como opacidade inassirnilável é) deslizante, sempre deslocada na própria tentativa de circunscrever seu espaço. e As the historica1 narrative moves from co1ony to postco1ony to g1oba1ity, the native informant is thrown out - to use the Freudian concept-metaphor of Verwerfung into the discursive world as a cryptonym, inhabiting us so that we cannot claim the credit o f our proper name. (Spivak, 1999: 111) "1 Entre representação da guerra por encenação e representação do Pentágono. por procuração, entre o cinema como projeção da guerra e o cinema como projétil. bélico, entre o humanitarismo imperial e o cristianismo missionário como projetos ético-políticos no marco da economia política do capital, o cinema de Hollywood se dá como re-apresentação da guerra. Configura-se uma projeção da guerra na tela da representação, (parte de) um projeto para o mundo na economia política do capital e. um projétil violento na esfera da consciência humana. Entre projeção, projeto eprojétil, Lágrimas do Sol constitui o sujeito dominante sob o mandato do humanitarismo imperial, através da apropriação e usurpação da figura do Informante Nativo para investir o nome mesmo de 'humanidade' com valor moral e ético. IMAGEM EPODER 207 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS IJHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, 395 p. ELLSWORTH, Elizabeth. "Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também" [1997]. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 7-76. lJ{]NTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997,456 p. METZ, Christian. História/discurso (notas sobre dois voyeurismos). In: XAVIER, Ismail · (org.). A experiência do cinema. São Paulo: Graal Editora, 2003, p. 403-410. SIQUEIRA, Carlos Henrique. "O cinema é a guerra por outros meios". Texto não publicado, sem data, 4 p. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. "Can the Subaltem Speak?".ln: NELSON, Cary & Lawrence Grossberg. Urbana e Chicago: University oflllinois Press, 1988, p. 271-313. - - - - - · A Critique of Postcolonial Reason: Toward a History of the Vanishing Present. Cambridge e Londres: Harvard University Press, 1999,449 p. VIRILIO, Paul. Guerra e cinema: logística da percepção. São Paulo: Boi tempo, 2005, 208 p. CINEMA, AUTORIA E POLÍTICA Estranhamento e aproximação em Estamirada eloqüência da loucura ao trauma social MARIANA BALTAR (UFF) EM CERTO SENTIDO, Estamira é um filme difícil e parte dessa dificuldade vem do incômodo gerado pelo excesso da personagem, mas, sobretudo, do excesso do filme na exposição dessa personagem. Estamira é urna mulher de cerca de sessenta anos, que vive, há mais de vinte, do lixão do Jardim Gramacho. Dona de uma fala eloqüente, e mesmo raivosa, ela professa suas teorias cosmogônicas de criação do inundo e das pessoas, de perseguição e possessão, e de revelação. Sua performance 1 como personagem reitera a força de uma personalidade declaradamente perturbada. É possível perceber no filme todo um movimento de aproximação com a personagem que acaba por compor um discurso de entendimento e admiração a despeito dos elementos grotescos, de loucura e de perturbação que transbordam das falas de Estamira. Meu argumento é que um diálogo com a imaginação melodramática- sobretudo colocando, estrategicamente, em uso três categorias estéticas centrais a este universo - convida o espectador a estabelecer uma espécie de aproximação com a personagem marginalizada, subvertendo, de certa maneira, a partir do efeito afetivo de proximidade, o imaginário "marginalizante". Em Estamira, a presença da imaginação melodramática se dá não tanto para imputar um efeito de piedade, mas para reiterar uma associação entre poder e 1. Uso o termo performance a partir do conceito do sociólogo canadense Erving Goffman (1959 e 1967), conforme teorizado na tese de doutorado, desenvolvida com financiamento da Capes e finalizada em 2007, da qual esie artigo é oriundo. Segundo tal concepção, a performance é inerente . ao jogo de interações inter-subjetivas, conformando as negociações entre papéis sociais que atravessam a própria interação. Para aplicações do conceito de performance ao campo do documentário conferir a referida tese Baltar (2007). 212 ESTLIDOS.DE CINEMA eloqüência, consolidando o engajamento com a personagem que a autoriza como narradora. A imaginação melodramática está costurada em Estamira de maneira a desestabilizar a noção mais tradicional do melodrama clássico, afastando-se, com isso, dos eixos da piedade e de uma relação de causalidade mais fechada. Há, contudo, um movimento de articular no filme um sentimento de compaixão mobilizado, especialmente na segunda metade do documentário, por pequenas "circularidades" internas à narrativa que consolidam uma relação causal entre os diversos traumas sociais sofridos pela personagem e as explosões de sua performance, como que oferecendo uma explicação à declarada perturbação mental de Estamira. Dois elementos são fundamentais para tanto: - o primeiro é a organização da faixa sonora do filme (trilha musical e ruídos), que procura construir uma economia de símbolos para as falas da personagem que a envolvem em uma aura de força, sobretudo na primeira metade do documentário. -O segundo é a própria estrutura geral da montagem do filme que rejeita certa . linearidade, mas que ao mesmo tempo se baseia em um recurso de continuidade retórica, o que está mais presente na segunda metade do documentário. Nessa estrutura, Estamira vai oçupando outros papéis, diferentes dos que ocupava na primeira metade do filme. O filme investe em mostrar Estamira como "poder", igualando seus rompantes, simbolicamente, às forças da natureza, para depois, explicar a raiz de suas falas com base na rememoração dos diversos traumas e violências sofridos pela personagem, mostrando-a, muito particularmente, no papel de mãe e de filha. Estas duas estratégias se montam com a utilização de categorias presentes no universo do melodramático, operando de certa maneira a partir de um excesso estilístico visível nos recursos estéticos "manuseados" pelo aparato cinematográfico. Recursos como granulações de imagem, alternância do preto e branco para o colorido, a própria faixa sonora, com destaque para a trilha musical, e, mais especificamente, a reiteração do uso do primeiro plano que se aproxima do corpo da personagem. Esses recursos "presentificam" no plano imagético o efeito de proximidade, diria mesmo de intimidade, entre diretor e personagem, e correlatamente, o público. Tal efeito é fundamental para a lógica nuclear de Estamira, ao tomar como base o e intimidade para legitimar a personagem enquanto efeito de noção de ーイッセ、。・@ narradora. Estabelece-se, assim, uma rede que circunscreve estes sentimentos de um lugar de fala para o filme que o autoriza como um discurso maneira a ヲッイュセャ。@ sobre um outro socialmente marginalizado. Nesse sentido, o filme acaba por autorizar Estamira - essa personagem declaradamente perturbada, que grita, fala palavrões, arrota, aparece nua, tira as calças numa briga com seu neto e professa seu ódio por Deus - como legitima narradora e personagem passível de engajamento afetivo. Assim, o documentário corrobora a missão que Estamira se auto-imputa- a de revelar a verdade- sem a confmar no CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 213 papel estigmatizado da loucura ou da perturbação. Para isso, o diálogo com a imaginação melodramática, embora não signifique uma adesão ao cânone do melodrama, vai ser central. Esse conceito de imaginação melodramática é desenvolvido num contexto de revalorização do melodrama como gênero narrativo a partir dos anos 1970. Num mesmo momento, Peter Brooks (1995) e Thomas Elsaesser (1987) formulam o conceito buscando, na esteira dessa revalorização, pensar de maneira mais ampla as questões que estão articuladas no universo melodramático. Questões que dizem respeito a uma "publicização" da esfera privada e uma "pedagogização" dos sentimentos num contexto de formação da subjetividade moderna. Nesse contexto, as instâncias da intimidade e da moral são fundamentais como reguladoras da vida social; como se o cotidiano (e com ele o privado e o íntimo) se constituísse o palco privilegiado para uma pedagogia moralizante frente às novas relações sociais e políticas de uma sociedade laica e de mercado. A idéia de imaginação, especialmente a formulada por Brooks (1995), pretende justamente dar conta de narrativas que não são tradicionalmente conformadas no universo do melodrama canônico, reconhecendo que a existência do gênero (primeiro teatral e depois em outros regimes narrativos) é sintomática de um contexto histórico maior, vinculado aos adensamentos do projeto de modernidade. Assim, a análise, seguindo uma base intertextual, do diálogo com a imaginação melodramática procura ressaltar em que medida os discursos que não se estruturam na adesão a um modo de excesso do melodrama clássico acabam por se utilizar, em momentos-chave, das categorias que balizam tal excesso para afirmar um engajamento afetivo. Minha preocupação é, portanto, com as implicações (discursivas e políticas) dessas utilizações. Três categorias fazem "reconhecer" a presença dialógica da imaginação melodramática, pois as reencontraremos nas narrativas que parecem "atravessadas" por esse universo. As categorias são: a antecipação (como maneira de ativar um estado de suspensão e comoção), a simbolização ・セ」イ「。、@ e a obviedade, no sentido sobretudo da reiteração constante. As três, em conjunto e operadas repetidas vezes, organizam no melodrama canônico, o modo de excesso; ao passo que, no interior das narrativas contaminadas pela imaginação melodramática, estas categorias comparecem como instrumentos eficazes para a articulação do engajamento afetivo. São estas categorias que se encontram, na análise de Estamira, que articulam os efeitos de proximidade e intimidade para com a personagem, consolidando o engajamento que reforça a associação entre a performance da personagem e a idéia de poder/força/autoridade. No caso de Estamira, elas se colocam como uma poderosa e importante estratégia de engajamento e proximidade que se monta para justamente não confinK a personagem em um lugar estigmatizado. Dessa maneira, Estamira não esláfiD.-- 214 ESTUDOS DE CINEMA na esfera da loucura, nem na da marginalização social, mas em um pouco de cada uma, transparecendo no todo, uma imagem simbolicamente associada ao poder. Dessa maneira, são colocadas em cena nesse documentário as tensões que dizem respeito à lógica de privatização da vida pública, às encenações da memória e da intimidade, mas, sobretudo, que dizem respeito à autoridade do sujeito em encarnar o público e o social, em si. Questões concentradas na performance de Estamira para a câmera e no pacto que se estabelece entre elas. O dilema de Estamira é, portanto, incutir um sentimento de aproximação a despeito do incômodo, e a arma para tanto será um diálogo muito palpável com a imaginação melodramática. Os mecanismos de circularidade interna na narrativa (dados pelas estratégias de obviedade e antecipação) e os usos dos constantes símbolos de aproximação física para com a personagem, além dos que circunscrevem uma esfera de definição para ela associada à força de sua performance, são constantemente articulados para gestar tal efeito de proximidade e, correlatamente, engajamento. Para tanto, não se fez necessária à presença fisica do diretor. Marcos Prado não aparece nem uma única vez ao longo do filme, mas sua presença como instância mediadora, como um olhar para o qual a performance de Estamira é dirigida se faz visível constantemente através de uma coreografia de troca de olhares entre o plano ponto-de-vista do diretor e a personagem. O que é reforçado pelos vários momentos em que Estamira dirige-se diretamente à câmera, ao diretor e correlatamente aos espectadores. Além disso, Estamira toma o poder da condução da narrativa, sendo a "protagonista" e narradora do filme. Um poder que é, de certa maneira, "concedido" logo no início do documentário. A primeira seqüência, imagem em preto e branco, extremamente granulado, mostra-nos planos de detalhes de garrafas ao chão, um cachorro que descansa, e, então, lentamente imagens de partes do corpo de Estamira, o tronco, os olhos, as mãos. Uma música que trabalha mais intensamente em cima dos instrumentos de cordas e de sons de palavras incompreensíveis (um tema musical que vai percorrer o filme e que se vincula diretamente aos tons da performance de Estamira), pontua constantemente os cinco minutos da seqüência desta abertura. Nela, vemos Estamira a esperar o ônibus, os planos se abrem e se vai acompanhando o trajeto da personagem até o Gramacho, que fica a um km, como indica uma placa enquadrada pela câmera. Uma constante alternância entre o plano geral e o plano médio marca a seqüência, em que a personagem vai se aproximando do aterro para mais um dia de trabalho. Aos poucos, vê-se Estamira se despir e vestir roupas de trabalho. Nesse momento, a música sobe o tom e ela, agora vestida para trabalhar, levanta a cabeça e encara a câmera. Um primeiro plano de seu rosto mostra um leve balançar de cabeça, gesto que, finalizando a seqüência, tem um sentido, ao mesmo tempo, de apresentação, aquiescência,e de desafio. CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA '215 Faz-se, então, um fade para a imagem do céu muito azul e a voz off de Estamira que diz: "A minha missão, além de eu ser a Estamira, é revelar, é, a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem." A seqüência seguinte é um desnudamento quase literal da personagem, que em meio ao lixão vai se banhando enquanto a voz off segue declamando sua missão, usando, em mais de uma vez a palavra vocês: "vocês é comum, eu não sou comum ( ... )vou explicarpra vocês tudinho agora, pro mundo inteiro. Eles cegaram o cérebro, o gravador sanguino de vocês e o meu eles não conseguiram ... ". Dessa maneira, a personagem se apresenta em sua missão, em sua performance, em seu poder de narração, não de maneira acidental, apresentando também o próprio filme; expondo a consciência de que toda essa apresentação (de si e do filme) é dirigida a um alguém externo/público circunscrito na presença constante do "vocês". "Vocês" somos nós, espectadores, que a partir daí entram-se no universo da personagem através do filme. Esse é um dos primeíros momentos em que se percebe a instância da negociação transparente no filme, a despeito da não presença fisica do diretor ou da equipe. Percebe-se a negociação pela interação destemida de Estamira com o aparato filmico, o qual se dirige claramente à câmera e a uma instância por trás dela, instância que, ao mesmo tempo, é o diretor e os espectadores. A voz de Estamira conduz a montagem por certo momento, pequeno, mas sua missão de revelar a カ・セ、。L@ diz: "ó lá, importante. Sua voz off, depois de ーイセヲ・ゥ@ os morro, a serra, as montanhas. Paisagem e Estamira" As imagens são exatamente a ilustração de sua fala - primeiro um plano geral, do pôr do sol avermelhado que transforma em silhueta a serra; depois, Estamira em meio à paisagem do lixão. Nesse ·momento, assim, Estamira é o poder, é a voz da autoridade do filme, a legítima narração em voz off que tem, seguindo os preceitos estabelecidos pelo documentário clássico, o estatuto de voz da autoridade. Essa pequena inserção autoriza a fala da personagem e vai reverber:ar ao longo do filme, declarando, desde já que, não obstante a aparente perturbação dos delírios cosmogônicos, Estamira é a autoridade no filme. Ela se autoriza, sua missão é "revelar a verdade a vocês", disse a personagem cenas antes, e então o discurso filmico corrobora. Mais do que legitimar a personagem, essa passagem tem por função fazer presente a instância da negociação, na qual a performance de si da personagem acaba por ser correlata ao discurso filmico, corroborada por ele. Assim, autoridade e proximidade se encerram aqui. Esse efeito de proximidade também se faz presente no uso reiterado de primeirosplanos que se aproximam do corpo da personagem. A maneira como a câmera inva4e a geografia da vida de Estamira, formulando quadros que quase penetram na pele de tão próximos, reitera, a um só tempo, a sensação de proximidade e a presença do diretor e do aparato filmico como instâncias mediadoras do olhar público sobre a 216 ESTUDOS DE CINEMA personagem. O que se afirma assim é a necessidade de um contado direto, visceral, sobretudo na primeira metade do filme, o que acaba "presentificando", no discurso filmico, na esfera da obviedade a sensação de proximidade. Assim, tal contato visceral - proporcionado pela câmera em relação ao corpo · da personagem- acaba exercendo outra função em relação a certo pacto de intimidade que acaba sendo propOsto ao longo do filme, e que reforça o efeito de proximidade e engajamento. Ele mostra, de um lado, a instância da negociação, e assim, a colaboração de Estamira, sua aceitação em relação à presença do aparato filmico, diante de sua performance; de outro, incute-se uma relação com a personagem, que afasta qualquer noção de medo ou de estranhamento. Outra das grandes estratégias de fazer valer o sentimento de engajamento é marcar, ;1través de uma constante economia de simbolizações, uma relação sinonímica entrt? o poder e a personagem. Estamira no filme é dotada de força e de autoridade que corroboram a força explosiva de sua fala. Assim é que, ao longo dos primeiros 45 minutos de filme, ela é constantemente igualada à imagem do raio e sua fala é associada · ao som da tempestade, sobretudo montando, coreograficamente, o gestual de Estamira e os ruídos do trovão e vento. Tais imagens e, sobretudo, tais sons marcam um efeito simbolicamente exacerbado, de presentificação da força explosiva da personalidade de Estamira. Lugar onde reside ao mesmo tempo sua perturbação mental e seu apelo enquanto personagem; o que, tal como as tempestades, faz presente o fascínio e a apreensão, sumarizando assim o que parece ser a própria visão do filme sobre Estamira. São ao todo 14 inserções, entre imagens e, mais fortemente, o som dos trovões associado à presença da trilha musical. Tais inserções preparam o terreno, antecipam, a própria fala de Estamira que, aos 40 minutos de filme, se iguala a um toró. Assim, Estamira se diz tempestade, afirmando o que o filme já antecipara nos vários momentos em que suas explosões discursivas vinham pontuadas por imagens, sons de raios e trovões. Como se o discurso filmico corroborasse o poder de sua protagonista, afrrmando que suas perturbações são algo mais do que manifestações de loucura, pois que, dotadas desse poder explosivo, são também ·manifestações de uma força interior. É interessante notar que é justamente a partir desse momento que o filme passa a recontar um pouco mais linearmente a história da vida de Estamira, incorporando depoimentos dos seus filhos a rememorar ·os traumas pelos quais ela passou. Essas passagens, entrecortadas pelo discurso da personagem, são orgaruzadas seguindo o preceito do que Bill Nichols (1991) chama de continuidade retórica, estabelecendo assim, discursos de explicação para as perturbações da personagem. A partir desse momento, o filme abandona um pouco o uso da rede simbólica que vincula Estamira à tempestade, em prol de um discurso mais explicativo, ウ・、ゥュセエ。ョッL@ com isso, a idéia de que aqueles rompantes de força têm uma razão de CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 217 será retomada na seqüência final, em que se verá Estamira a ser. Tal 。ウセ」ゥ￧ ̄ッ@ enfrentar as ondas do mar, numa imagem em preto e branco, pontuada pela mesma trilha ュオウゥセ。ャ@ que atravessa o filme. Há uma seqüência exemplar do que estou aqui apontando. Aos quase 45 minutos, o depoimento da filha Carolina, conta detalhes dos estupros sofridos pela mãe, de como Estamira clamava por Deus na hora do sofrimento. Carolina declara que acredita que esse episódio é a raiz das manifestações mais fortes da perturbação de Estamira: "naquele dia eu acho que ela desistiu mesmo de Deus, e agora é só eu e eu, o poder dela acabou", finaliza Carolina. A imagem que cobre essa cena mostra as folhas de um coqueiro a balançar violentamente ao sabor do vento, como um prenúncio de tempestade que recupera, e reitera, assim, as metáforas visuais para a força interna de Estarnira construídas no filme até então. A cena imediatamente seguinte mostra mais um episódio de revolta de Estamira. No início da seqüência, a câmera alta enquadra a personagem muito de perto, sentada dentro de casa, que a se balançar diz: "Trocadilho safado, canalha, assaltante de poder, manjado, desmascarado". Ela cospe no chão. Um corte e, em princípio através de um primeiro plano do rosto e depois em plano médio, vê-se Estamira proferir seu discurso para a câmera num tom cada vez mais agressivo: "me trata como eu trato que eu te trato. Me trata com o teu trato que eu te devolvo, eu trato, e faço questão de te devolver em triplo. Onde já se viu uma coisa dessa. A pessoa não pode andar nem na rua que mora. Nem trabalhar dentro de _casa, nem trabalhar em lugar ntênhum. Que Deus é esse, que Jesus é esse?( ... ) Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer. Largou? Quem anda com Deus, dia e noite, noite e dia, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, largou de morrer? Largou de passar fome? ... " Pelos vínculos óbvios com o depoimento de Carolina - estabelecidos através · da montagem em continuidade retórica e da recuperação do símbolo da força da tempestade, reiterado ao longo do filme- a fala de Estarnira acaba sendo revestida de uma eloqüência coerente. Como se o germe da loucura fosse transformado em claridade, tal qual um raio que irrompe e ilumina o céu escuro da tempestade. BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Perry. The Origins ofpostmodernitiy. NY, Verso, 2002. BALTAR, Mariana. Realidade lacrimosa: diálogos entre o universo do documentório e a imaginação melodramática. Orientador: João Luiz Vieira. Tese (Doulomdo) Universidade Federal Fluminense, Curso de Pós-Graduação em cッュオョゥ」。￧ ̄Lセᆳ BROOKS, Peter. 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Social representation in the cinema e other media. Bloornington, Indianapolis, Indiana University Press, 1981. RABINOWITZ, Paula. Sentimental contracts: dreams and documents ofAmerican Labor. In. WALDMAN, Diane and WALKER,-Janet (orgs.)- Ferninism and Documentary. Minneapolis, Uni v. ofMinnesota Press, 1999. Collection Visible Evidence Vol. 5 RENOV, Michael. The Subject of Documentary. Minneapolis, Uni v. ofMinnesota Press, 2004. Collection Visible Evidence Vol. 16. From ,cinema, to ,film:n the representation of reality and the place of political engagement in the film theory o f Pier Paolo Pasolini STEFANO CIAMMARONI (NEw YoRK UN!VERSITY) ÜNE COMPONENT OF the film theory field has always been a prescriptive strain of discourses outlining not what films are, but what they should be or make do. A fundamental question that this particular strain of thought likes to raise is whether a filmrnaker has the ethical obligation to keep reality inviolate, as impermeable as possible to a medium that can be technologically equipped to make the world knowable in a tendentiously preconceived manner. Dziga Vertov, among the first to intervene in the discussion, proposes that -human artistries such as acting, costuming, scripting and framing be removed from the production process, thereby allowing the non-cognizant cinematographic lens to record reality in its un-deciphered authenticity. However, continues Vertov, a humanly mediated interpretation of the mechanically recorded footage must be the primary purpose o f post-production, the stage at which the primacy o f machinic objectivity yields to the exigencies of subjective politics, and man-made editorial manipulations are mobilized in order to achieve "a communist decoding o f the world" (VERTO V, 1984, p. 42). As a proposed. forro of societal organization, Communism is a product of human intentionality. lt cannot exist without Man nor, manifestly, can it pre-date Man. We must therefore consider the "Communist decoding o f the world" strictly contingent upon a voluntaristic agency, the cultural endpoint of a chronology that includes the existence of the world (or of reality), the evolution of Man, Man's invention of Communism, and a man-made effort to interpellate reality communistically. Reality, however, or "life" (to use Vertov's term), enjoys a greater deal of autarchy: it needs no initiative on the part ofMan's political conscience in order to be 220 ESTUDOS DE CINEMA manifest. Nor, consequently, does the pre-hermeneutical recording of life "as it is" require the support ofman-made expository techniques (such as a script, ora framing choice dictated by narrative purposes). But "catching life unawares," as the Vertovian motto goes, is but the embryonic stage o f a larger and more interventionist project. In order to prognose the future and offer a socio-política! recipe for improvement, one must first achieve an objective diagnosis o f present reality, hence the recommendation that the profilmic remain untampered by human talents. In light of this preliminary aspect of bis theorizing, Vertov has erroneously gone down in history as a rnisanthrope enamoured with the machine, the victim o f a modernistic euphoria of sorts. In fact, like all Marxists, Vertov is a humanist, and as such he ascribes serious epistemologicallirnits to the recording device. This is evident in bis valorization o f editing, by means ofwhich Man intervenes a posteriori to create order out o f chaos, interpreting politically the data gathered by the apparatus. In this respect, Vertov stands diametrically opposed to the likes of Siegfried Kracauer and André Bazin, a pair of equally prescriptive fllm theorists who much more rnisanthropically, in my view, warn against the tendentious adulteration of nature in the raw, suggesting, accordingly, that the fmdings ofthe apparatus be left unstructured and indeterminate as to meaning. Dziga Vertov's pioneering reflections on what a socially emancipative cinema should privilege ( whether the mute objectivity o f the machine or the poli ti cal vocality inherent in man-made photographic or editorialmanipulations) never did stop to define the preoccupations of prescriptive fllm thought. After the mid l960s, however, the discussion truly became a terrain ofideological struggle. When linguists and sernioticians began asking whether there existed a "language" o f film, arbitrarily devised by Man for the purpose of conveying propositional knowledge, it became most evident that the extent to which the persuasive quality of such language was going to be tolerated quried enormous political repercussions. Within the liberationist Left, two approaches arguably collided. On the one hand, a "historical-materialist" school of thought espoused the necessity to force order onto the indeterrninateness and inarticulateness of reality in the raw, thereby deeming liberationist a cinema à thiwe in which an arsenal of linguistic means is mobilized in order to suture the viewer inside a narrative progression that closes in on the política! message. Contrary to what historical materialism is usually believed to concede to the vitality ofhuman voluntarism, I would define this approach trustful of Man's agency. On the other hand, a camp that is commonly defmed "post-structuralist" despite a fetishistic reverence for the sacredness o f the machine's de-centring of the subjecf placed narrative ordering and closure in metaphors of política! repression, considering more anti-authoritarian the possibility ofkeeping the continuum ofreality ãs·irioràinate and open-ended as it is revealed to us by the recording device's optical 2únconscious, over which Man's intentionality should have very little jurisdiction. CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 221 Most exemplary of the dialectical relationship established by these competing approaches is the film theory of Pier Paolo Pasolini, which went from idealistically valorizing the apparatus 's unrefleetive consciousness to pragmatically confiding in the manipulative tongile that Man can afford film. The bulk of Pasolini's theorizing revolves around the problem of gaining knowledge through cinema. Very unstably, however, Pasolini fluctuates between believing that such knowledge _shall be transmitted by authorial induction (as the tenets of a Marxian praxis would require) and conceding that it could actually be acquired through spectatorial intuition (as Bazin, partly, would have it). In his most famous essay, ''The Cinema of Poetry," published in 1965, Pasolini contends that filmmakers and audiences communicate on a purely intuitive levei, relying on a common repertory of pre-linguistic images stored in a collective unconscious. There is consequently no need for the employment of a cinematic grammar modelled on the hwnan language. In :fact, continues Pasolini, one major asset of cinema is that it can circumvent language, in virtue of an expressivity that is innately pre-morphological and pre-grammatical, "animal-like," as Pasolini has often liked to defme it with the usual penchant for excess. In these terms, cinema is the medíum best suited to penetrate and render faithfully the pre-human nature of most animate and inanimate realities recordable on earth by the eye of the apparatus. In truth, "Cinema of Poetry" contains no mention of the recording device, in fact no mention of cinema as a product o f technology and modernity. Yet it could be said that an argument singing the praises of the medium's anti-linguism and pre-lapsarian purity cannot but betray a fascination for the de-humanized apparatus, which Man invents . and activates, but which Man can also refrain from equipping linguistically with a set of arbitrary signs stemming :from the conventions of human language-systems. In an essay entitled "Quips on the Cinema," published in 1966, Pasolini further elaborates on the idea that a cinema deprived of a lexicon could be ゥョ、・ーセエ@ of Man 's mediation, and thus provi de a more immediate perception of reality. To refer to such pre-linguistic aggregate of images, Pasolini relinquishes the phrase "cinema of poetry," privileging mstead the much simpler "cinema" .so what, exactly, is "cinema?" For Pasolini, "cinema" is a completely hypothetical, superhuman accomplishment. It is the whole ofreality recorded in unedited forro, the entirety of our actions recorded twenty-four hours a day by an omnipotent camera filming our every move from every possible angle. ''No matter how infmite and continuous reality is, an ideal camera will always be able to reproduce it in all its infinity and continuity. As a primordial and archetypal concept, cinema is therefore a continuous and infinite sequence shot .. .a reproduction ofreality as unbroken and fluidas realty" (PASOLINI, 1988, pp. 225226). Notably, Pasolini reduces the long take to a pre-lexical utterance, the manifestation of the c"inematic image in its virginal, most untouched state. This allows Pasolini to describe "cinema" as a mythical category that, temporally, precedes the development ofMan's language and communicative drive. Lack oflexicon, argues Pasolini, means 222 ESTUDOS DE CINEMA freedom to roam beyond the oppressive wall that linguistic structures erect around the attempt to gain knowledge o f a reality that is in fact incoherent and unstructured, decipherable only by a consciousness that has not yet been corrupted by reason. Here, Pasolini draws on the cultural tradition that, since the Frankfurt School, has condernned rationalist thought as typically bourgeois. But can a line o f think:ing so inimical to reason, language, and anything symptomatic of Man's drive to decipher, systematize, and analyze reality contribute to the formation of a politically engaged consciousness? If taken as an endpoint rather than a premise, can the notion of a reality recorded in continuous, unreflective and unselective fashion serve in any way the Marxist idea that knowledge ofthe world should develop from merely natural to political and cultural? Evidently not, as Pasolini himself would soon come to admit. But at this stage, Pasolini's theorizing is closer to Bazin, for whom the mystery of reality should be kept sheltered from the ulterior designs ofMan 's hermeneutics, than it isto Verto v, whom in tum encourages the subjective design ofMan to make political sense out of the apparatus 's findings. Yet only one year after the publication of "Quips on the Cinema," Pasolini's theorizations would, quite clearly, abandon the Bazinian camp and cross into Vertovian territory. According to many accounts, it was in conjunction with a trip to New York City in the year 1967 that Pasolini carne to question the political valence of "cinema," namely, to repeat, the infinite and continuous long take recording the whole of reality and of Man's life actions. In New York, Pasolini encountered the work of Andy Warhol, whose experiments with the uninterrupted long take seemed to offer the concretization ofthe ltalian theorist's hypothetical idea of"cinema." Warhol's singleshot film showing the Empire State Building from early evening through the night (Empire, 1964) or the footage of poet John Giomo asleep for five hours (in Sleep, 1963) not only were devoid of po1itical consciousness -they did not facilitate that greater perception o f reality that Pasolini thought the absence o f a film lexicon would provi de. Paso1ini condernned the long takes ofWarhol's filrns for being "long, foolish, inordinate, unnatural, mute" (PASOLINI, 1988, p. 241). The choice ofadjectives is especially significant here, for only a few months earlier Pasolini had entrusted precisely to the senselessness and muteness of a pre-linguistic "cinema" the liberationist task. o f defying the tenets of bourgeois rationalism. In 1967, Pasolini writes "Observations on the Sequence Shot." Here, the Italian · theorist relinquishes the myth of the unedited long take, considering it o f little use when at stake is the necessity to politicize a found state ofthings. In this way, Pasolini repudiates the non-interpretive aspects of "cinema" in favour of the ideological assertiveness ofwhat he calls "film." So what, exactly, is "filrn?" Put it simply, "film" is what we see at the movies. Contrary to "cinema," "film" is not an archetypal notion, a mythical and super-human category that under the aúspices of a poetic· licence, Pasolini can legitimately describe as unaffected by Man's agency. As a man- CINEMA, AUTORIA EPOLÍTICA 223 rnade artefact, "film" inevitably bears the traces ofMan's ingeniousness, artistry and politics. If "cinema" speaks the language of reality, a tongue that Man cannot (and should not) decipher, "filrn" speaks the language of Man, courtesy of an imagistic gramrnar that is intelligible because it draws on the conventions of human language systems. Perhaps "cinema" corresponds to the Vertovian phase in which Man entrusts with the machine the groundwork for an objective diagnosis ofreality. It is through "film," however, that Man's hermeneutics finds a voice. Specifically, it is the synthetic potentials of montage that guarantee a cause-and-effect logic linking the delivery o f the message with the movement ofhistory in a progressive (or, shall we say, Marxist) direction. In short, "film" produces ideological sense out o f the raw, iriarticulate, and intrinsically un-deciphered phenomena that constitute reality, thereby successfully correcting "cinema's" inherent incapacity to become politically engaged in any intelligible and asserted way. Transitioning from "cinema" to "film," Pasolini turns to Vertov, but also to Antonio Gramsci, whose understanding of culture ascribes to the agency of the comrnitted subject a fundamental role in the process o f transforming reality. In order to illustrate the epistemologicallimits of"cinema," Pasolini cites the uselessness ofthe famous Zapruder film in unveiling the truth behind the assassination of John F. Kennedy. Should we have at our disposal footage of the event shot from every conceivable angle, and an infinite number of screens onto which the footage shot form every single vantage point were to be projected, would the truth spontaneously manifest itself? Pasolini says no, for only an editor, an ornniscient narrator that Pasolini calls a "dever analytical mind" (PASOLINI, 1988, p. 23 5) could work the unintelligibly unstructured material into coherent and plausible narrative form. Only by virtue o f such conscious intervention would the imperturbable, mute disengagement of"cinema" give way to the understandable, pointed politics of"film." To elaborate further on the ways in which the "dever analytical mind" successfully brings about the transition from "cinema" to "film" it may be worth invoking a famous scene from Patrício Guzmán's The Battle ofChile, a documentary chroniding the coup d'état that on September 11, 1973, led to the overthrow ofthe democratically elected government. The scene contains the footage shot by an Argentine journalist as a Chilean army soldier shoots in the direction of the camera, killing the cameraman. In Guzmán 's film, twice we are shown the same footage. First, we see it as "cinema," then we experience it as "film." In order to gain knowledge of areality that has been recorded and then presented to us for fruition, we are initially asked to rely but on one source: the non-cognizant apparatus, whose optical recordings bear almost no trace of the flesh-and-bone subjects (we can call them authors and not be ashamed of it) responsible for activating the device and rendering its fmdings public. At first,.that is, Guzmán refrains from equipping the found footage with a lexicon, a film gramrnar that would give speech capabilities to the images and their makers, so as to facilitate the viewer's understanding of what the images show and why it is 224 ESTUDOS DE CINEMA important to circulate them. Our preliminary exposure to the death of the Argentine cameraman occurs under the auspices of "cinema," as Pasolini would call it: a linguistically inarticulate and politically illegible long tak:e that, because it defies being coerced into a coherent and signifying whole, teUs us virtually nothing about the incident. In the shot, we fully embody the point ofview ofthe dying cameraman. Yet, uninstructed by a narrator figure that tak:es over and domesticates the unprocessed fooiage, we can barely realize that what we are witnessing is murder, let alone being able to make up, exactly, who is shooting whom. It is only upon viewing the same found footage a second time, with Guzmán intervening with a vengeance to fulfli the role of the genial analytical mind, that narrative and political sense can be construed, and the precise mechanics and historical valence o f the incident fmally understood. Through slow-motion, the blackening of the frame's edges as to direct spectatorial attention and, most irnportantly, through voice-over narration, Guzmán successfully transforrr:lS the recorded reality from dispassionately material to belligerently conceptual. This is most evident when the voice-over narration contends the following about the Argentine cameraman: "He doesn't just record his own death ... he also records, two months before the fmal coup ... the true face of a sector ofthe Chilean army." This political interpretation can only be inscribed froin above and without the found footage. That is, when shown as "cinema," the image ofthe Chilean army soldier can only be tak:eli in its singularity and afforded an iconic meaning: all that the image shows is a soldier shooting. Yet, when interpellated by the language of "film," that very same army soldier tak:es on a whole new -and arbitrary- meaning, standing in, like in a synecdoche, for the criminal and political responsibilities of an entire sector of the Chilean army. It has tak:en the emotionalism of a flesh-and-blood agent to overcome the irnperturbability of the machine and make the epistemological uselessness of · "cinema" develop into the political engagement of"film." Admittedly, it is very uncharacteristic for Pasolini to embrace the suturing function of the narrator figure. Practically, this only happens in "Observations on the Sequence Shot," which is one reason why this essay stands out as rather significant in the corpus of Pasolini's theoretical writings. In general, as mentioned, Pasolini does position himselfwithin a tradition that is inimical to narrative ordering, closure, and the idea that meaning is induced from above, at the production end, instead of being spontaneously construed from below, at the receiving end. Within the cultural Left, this tradition has been successful because of its explicit anti-Stalinist bent. Stalin, of course, was partly responsible for reducing the historicist theses of Marxism to a classically ordered grand-narrative that only an omnipotent orchestrator can pilot from above and press to its edifying closure. Yet despite the spectre ofStalinism, and the attempts of many cultural initiatives to de-legitimize the vanguard potentials of a masterful subject exercising control, a political cinema eschewing the narrative orgailization and rhetorical manipulativeness of verbal and visual signs has yet to be CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 225 uncontradictorily conceived. One can certainly set out to avoid interpreting the real through the lens of a pre-formed set of values. This is a proposed policy. But is it politics? BIBLIOGRAPHY PASOLINI, Pier Pao1o. Heretical Empiricism. Ed. Louise K. Barnett, Trans. Ben Lawton and Louise Barnett, Indiana University Press, 1988, 317 p. VERTOV, Dziga. Kino-Eye: The Writings ofDziga Vertov. Ed. Annette Michelson, Trans. Kevin O'Brien, University ofCalifornia Press, 1984, 344 p. Um cinema desenquadrado: a política da linguagem e a linguagem da política em Duas ou três coisas que eu sei dela CECILIA SAYAD (UNIVERSIDAD DE CHICAGO) O CINEMA e a crítica de Jean-Luc Godard foram centrais na transição da cinefilia para a política, que marcou a trajetória dos Cahiers du cinéma, nos anos 60. Partidário, num primeiro momento, do "neoformalismo", característico da política de autores que privilegiaria a estética em detrimento da postura ideológica do filme, Godard em seguida aderiu à proposta, articulada por Jacques Rivette, de "desenquadrar" (décadrer) o cinema, ou de olhar para além dos limites da tela. O cinema e sua critica deveriam expandir-se para além da pura cinefilia e deixar-se contaminar pelas ciências humanas. Logo a sétima arte passaria a ser objeto da crítica literária, da lingüística, da psicanálise -Barthes, Brecht e Lacan viram referência, Metz propõe que seqüências sejam lidas como sintagmas, 1 retomando a discussão sobre a relação entre cinema e linguagem que os russos vinham explorando desde os anos 20. O cinema como forma de expressão individual, visão tida como politicamente conservadora, perde terreno; ele passa a ser analisado como a manifestação involuntária de estruturas ideológicas. Para diretores como Godard, as formas de representação dominantes refletem um sistema ideológico dominante - portanto a política, no cinema, se faz por meio do questionamento da linguagem. Mas não é apenas dessa perspectiva que analiso certos aspectos de Duas ou três coisas que eu sei dela, de 1967. O filme constitui um exemplo claro da crença de que é pela ruptura entre a aparente continuidade entre imagem e realidade, que o cinema político se faz mais eficaz- e não pelo realismo mimético ou pela clareza da 1. O primeiro volume de Essais sur la signification au cinéma é de 1967. 228 ESTUDOS DE CINEMA mensagem, que requerem uma linguagem amplamente aceita (questionavelmente denominada "transparente", sendo que a idéia de transparência é também uma convenção). A escolha de Duas ou três coisas como objeto de análise se faz principalmente pelo fato de o filme colocar em xeque a oposição entre, por um lado, o cinema de autor, que se propõe a expressar a visão de mundo de um indivíduo, e por outro o cinema político concebido na década de 60, em que o filme é visto como espelho do sistema capitalista que determina suas formas de produção. Essa oposição parte do pressuposto de que a voz do autor é sufocada pelas armadilhas das convenções da linguagem - é o sistema que fala por meio do filme. O ponto-de-vista autoral desapareceria também em meio ao processo colaborativo, à inevitabilidade da citação, e em vista da agência do leitor ou espectador, cujo papel é explorado por Roland Barthes em "A morte do autor". 2 O que eu argumento é que na obra de Godard o autor inscrito no filme toma-se veículo para o questionamento político- apesar de integrar o universo filmado como narrador em voz over, o diretor não se fecha dentro do texto. Pelo contrário, ele é o agente de ruptura da diegese, que no caso de Duas ou três coisas ele deixa contaminar por elementos externos ao enredo. Ao mesmo tempo, essa militância centrada na figura do autor circunscreve o ato político à autoria em si e ao problema da representação. Longe de se propor a medir a eficácia do filme como projeto político, este ensaio retoma a figura do autor expressivo nos anos 60 como agente não alienador, mas de engajamento. Godard reflete a abertura do cinema para outros campos de estudo e expressão por meio do caráter multimediático de seus filmes- das citações de obras da filosofia, da literatura, da pintura, da música, da fotografia. Mas o cinema para além do quadro, do plano ou da tela encontra eco também na abertura da fronteira entre a prática e a teoria. Ao dizer repetidamente que faz cinema, e não filmes, Godard reafirma-se como cineasta-teórico, como poeta, filósofo e crítico. Seu cinema extrapola os limites de cada filme tomado individualmente. Cada trabalho defme-se como parte de um processo, de um pensamento abrangente sobre o cinema, que se projeta ainda em outros formatos (como livro e CD, no caso deHistoire(s) du cinéma) e fornece material para o discurso crítico e filosófico do próprio diretor, teórico de sua própria obra. Ao mesmo tempo, Godard inverte esse movimento de dentro para fora sugerido na idéia de "expandir o quadro" ao incluir-se no universo do filme. Ele passa e integra esse universo por meio da narração em voz over ou mesmo de sua própria imagem, emitindo sempre comentários metalingüísticos. Em suma, o diretor imprime tanto ao universo retratado quanto a si mesmo um olhar que remete às formas de representação, e que é em larga medida um olhar auto-crítico. 2. Publicado em O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira São Paulo: Martim Fontes, 2004: 57-65. CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 229 Afinal, um dos lemas de Godard é "mostrar e mostrar-se mostrando", que 0 aproxima da figura do ensaísta, como bem notou Colin MacCabe (2003: 241). Esse lema remete a uma outra fronteira violada pelo diretor: aquela entre documentário e ficção. Filme-ensaio por excelência, Duas ou três coisas parte de um artigo sobre o fenômeno da prostituição entre francesas de classe média, desejando aumentar seu poder aquisitivo. O aspecto documental do filme, porém, não se define pela veracidade dos fatos que inspiraram a narrativa - Duas ou três coisas documenta também o processo, as preocupações e o pensamento do próprio Godard, além de constituir um claro exemplo do que o diretor definiu como uma prática dedicada não à mera representação, mas à produção de "documentários sobre os atores". Complicando ainda mais a fronteira entre documentário e ficção, pode-se dizer que, além de documentar as reflexões do diretor, Duas ou três coisas também lhes serve como palco. Por mais que revelem preocupações reais, essas reflexões são cuidadosamente encenadas, a começar pela escolha de sussurrar os comentários feitos em voz over. Seguindo a linha encabeçada por Bemard Dort na crítica francesa da década de 60, o cinema político de Godard aderiu à metodologia de Bertolt Brecht. Em Duas ou três coisas, Brecht se faz presente por meio do que David Bordwell chama de "literalização" da forma dramática, que, para usar a linguagem de Platão, é predominantemente mimética (1985:17). Essa inserção de elementos discursivos ou enunciativos (desprezados como "literários" pelos defensores de um cinema puro) se dá nos comentários e reflexões de Godard sussurrados em voz over, no uso de intertítulos, e nos discursos dos próprios personagens sobre si mesmos, quando atores explicam (narram) motivações ou simplesmente verbalizam suas reflexões para o espectador, a quem se dirigem diretamente, olhando para a câmera - estratégias que interrompem a ação dramática e abrem o plano, derrubando a quarta parede. Essa interrupção do fluxo narrativo cumpre a proposta Brechtiana de distanciar o espectador, o que Godard julga necessário à incitação da reflexão sobre os códigos de representação, e portanto sobre o sistema ideológico que dita tais códigos. UM FILME DE IDÉIAS A narrativa minimalista que serve de pretexto e ponto de partida para a meditação política, filosófica e metalingüística de Duas ou três coisas dá conta de um dia na vida tanto de Juliette (uma dona-de-casa que se prostitui nos intervalos de suas tarefas domésticas) quanto de Paris (o "ela" do título é também a capital francesa). Porém, ainda que Juliette e os outros habitantes da cidade sigam suas rotinas, eles não encarnam os papéis que lhes são designados. Eles vivenciam os eventos superficialmente e distraidamente. Vendedoras, manicures e freqüentadores de um café, por exemplo, têm sua participação reduzida ao ato de produzir depoimentos que constituem detalhes no enredo, mas que ao mesmo tempo incrementam o tratado sociológico delineado 230 ESTUDOS DE CINEMA pelo filme. Porém, mais do que dar vida às personagens ou provar uma tese, os atores de Duas ou três coisas dão voz às meditações de Godard, servindo de veículo para o discurso tanto metalingüístico quanto político do filme, construído em grande parte por meio de citações. Através desse esboço de enredo Godardreflete sobre a sociedade de consumo e também sobre a linguagem do cinema. Referências ao projeto de urbanização de Paris, à guerra do Vietnam e ao imperialismo norte-americano, bem como as imagens, recorrentes em Godard, de logos de companhias e marcas como TWA, Coca-Cola, ou Mobil convivem com meditações sobre formas de representação, como quando o diretor pergunta "como mostrar ou dizer que por volta das 16h10 daquela tarde Juliette e Marianne fonim à oficina mecânica onde trabalha o marido de Juliette?", ou quando indaga, "mas são essas as palavras e imagens a serem usadas?" Duas ou três coisas aproxima-se, assim, do que Mikhail Bakhtin definiu como romance de idéias, onde, no resumo dessa teoria por Robert Stam, a diversidade de discursos assumidos, transmitidos, refutados ou intemalizados por personagens ou narradores é mais relevante do que a integridade e a coerência psicológica das personagens (2005: 192). Os textos flutuam entre os atores, sem preocupação com plausibilidade e independentemente de discrepâncias entre sujeito e discurso --<:orno atesta o improvável sonho alegórico do pequeno filho de Juliette sobre o Vietnam, onde irmãos gêmeos (os dois Vietnams) resoivem se unir ao se depararem com a beira de um precipício. À primeira vista, Duas ou três coisas remete ao conceito de polifonia elaborado por Bakhtin, onde idéias abstratas são transformadas em ponto-de-vista, consciência, voz. Discorrendo sobre Dostoievski, Bakhtin sugere que na obra do escritor russo cada idéia toma a forma de uma personagem. Todavia, o conceito de polifonia é útil apenas em parte para o entendimento desse filme construído a partir de citações. Afinal, é Godard quem fala e medita por meio das citações - é muitas vezes do próprio diretor o discurso entoado pelas personagens do filme. O legendário plano da xícara de café conectando um simples objeto ao universo, por exemplo, espelha a conexão entre Godard e as personagens de Duas ou três coisas. A narração de Godard diz que o mundo é seu "igual", seu "irmão", enquanto no plano da imagem as bolhas do café invocam o cosmos. Juliette ecoa o discurso do diretor ao declarar ter a impressão de "ser o mundo" e de sentir-se conectada a ele, enquanto a câmera traça uma panorâmica de 360 graus que parte da atriz para revelar a paisagem urbana que a envolve. Heroína e diretor são, assim, unidos num romântico desejo de integração cósmica, paradoxalmente manifestado como auto-suficiência, visto que ambos acreditam conter o mundo dentro de si mesmos -assim como a xícara contém o cosmos e um rosto constitui uma paisagem, como afirma Juliette. Esse anseio pela integração é Ílo entanto contrabalanceado pelo impulso de ruptura. As meditações metalingüísticas na voz over de Godard constituem o principal elemento de interrupção da narrativa. Essa ruptura se faz também no plano da edição CINEMA, AUTORIA E POlÍTICA 231 de som - o discurso sussurrado do diretor contrasta com os ruídos estridentes da Paris retratada no filme, mesmo porque todo som desaparece quando a voz do diretor irrompe. A intrusão de Godard se faz sentir ainda no plano visual, quando as personagens ínterrompem suas ações para responder às perguntas de um entrevistador invisível e ínaudível, que se sabe ser o próprio cineasta posicionado ao lado ou atrás da câmera. Ao violar o espaço selado da diegese, Godard abre o filme para o que lhe é externo para o processo de construção da narrativa, para notícias do mundo real (principalmente da guerra do Vietnam e do projeto de urbanização de Paris), para outras artes e para as vozes dos autores que cita. O diretor toma-se então veículo para o rompimento com as convenções da línguagem cinematográfica que favorecem a linearidade narrativa e a continuidade éspacial e temporal - ele encama essa ruptura, se faz agente dela, mas de forma a conectar o filme ao mundo externo, ou o autor ao cosmos. Se concomitantemente com a produção de Duas ou três coisas, a figura do autor era rejeitada como sintoma . de um cinema que expressaria a alma de um artista e seria politicamente desengajado, Godard, que pouco depois mergulharia na direção coletiva com o grupo Dziga Vertov, transforma o diretor em agente de desestabilização dos códigos de representação dominantes, colocando em xeque a figura do autor como sintoma de alienação. Godard · obviamente abraçou a luta pela democratização do fazer cinematográfico institucionalizada com a criação dos Estados Gerais do Cinema em 1968, que defendia _que técnicos e artistas tivessem os mesmos direitos e o mesmo salário. No entanto o ·diretor não tardou em mostrar-se cético com relação tanto à autoria coletiva quanto à possibilidade de falar para as massas e em nome de uma idéia generalizada de "povo". Se mais tarde, nos anos 90, Godard ridicularizou a demagogia dos que atacam a política dos autores em nome de uma concepção supostamente democrática da feitura do filme, afirmando que dessa forma até o maquinista mereceria crédito como "o autor de 'pisar no pedal'" (2006:. 31 ), já na época do Dziga Vertov o diretor argumentava que fazia filmes em nome não dos trabalhadores, mas de si mesmo, como declarou , no documentário Politique et bonheur, de Patrick Camus, em 1972. Dado que o cinema político dos anos 60 coloca ênfase no caráter documental daquilo que ele procura denunciar, vale retomar a tênue fronteira entre ficção e documentário em Duas ou três coisas. Afinal, é o próprio Godard quem fala por meio do narrador do filme, subvertendo a sagrada distinção entre autor e narrador que há ·muito preocupa a teoria literária. Mais próximo do ensaio do que da narrativa ficcional, o filme nos apresenta o ponto-de-vista do próprio autor. Anunciando que examina セー・ウッ。@ como um biólogo, Godard enfatiza o caráter etnográfico de Duas ou três ·coisas. Essa observação, todavia, resulta de um impulso de auto-expressão: em texto de apresentação do filme, o diretor anuncia que Duas ou três coisas é produto da "raiva da expressão" e da "paixão pela definição" (2006: 80). Assim, a narração de Godard não possui a dimensão fictícia do narrador que representa um ponto de vista 232 ESTUDOS DE CINEMA diferente daquele do autor, e que portanto é uma espécie de "personagem", mesmo quando não faz parte do enredo. Da mesma forma, suas meditações sobre códigos de representação não requerem a distinção entre o projeto artístico e o ser humano que concebe esse projeto (a figura do autor implícito concebida por Wayne Booth é aqui desnecessária). 3 Ainda que constitua apenas um aspecto do filme, que convive com fotografia, edição, direção de arte, etc., o narrador de Godard claramente representa a voz do autor - ou, para citar Paul Ricoeur via Tom Gunning, o narrador constitui a imagem do autor no texto (1991: 25). Há então uma relação de continuidade entre narrador e autor que se harmoniza com a continuidade entre o ato de representação e o universo visualizado na tela. No início de Duas ou três coisas Godard introduz Marina Vlady primeiro como atriz e depois como Juliette, confundindo vida real com ficção por meio da simetria dos planos de composição quase idêntica revelando atriz e personagem no mesmo espaço. Em ambos os planos, Godard produz praticamente o mesmo discurso, descrevendo primeiro Vlady e depois Juliette: a sua vestimenta, a cor de seus cabelos, seus movimentos. O espaço do documentário é portanto o espaço da representação - o que Godard "documenta" é o processo de concepção do filme, que inclui suas reflexões sobre o fazer cinematográfico. Para Godard, fazer cinema não é um ato de contemplação da realidade, mas de questionamento tanto do universo retratado quanto da forma de representação desse universo. Entre as famosas lamentações de Godard, que não são poucas, está a de que o cinema não é valorizado como instrumento de reflexão. Romântico incorrigível, Godard coloca-se como intermediário dessa reflexão, já que ela se traduz em um olhar sobre as escolhas do diretor, ou em um olhar sobre si mesmo. Godard reflete sobre o sistema ideológico que dita códigos dominantes de linguagem através da dissecação de seu próprio processo artístico. O autor, para Godard, é portanto não obstáculo, mas veículo para a reflexão política- é o autor que rompe com os limites do quadro, expõe o cinema à realidade que o produz, questiona as formas convencionais de representação. Claro, a contrapartida da reflexão política por meio da metalinguagem é que, paradoxalmente, ela muitas vezes resulta em um cinema autocentrado, o que em tese contradiria o projeto de desenquadrá-lo. Mas a opção parece ser entre o isolamento do universo narrativo e o isolamento do universo metalingüistico: entre, por um lado, o ilusionismo e a narrativa sólida, com início, meio e fun claramente demarcados e concatenados pelas regras da causalidade, e por outro, o distanciamento e a reflexão sobre a linguagem. Godard obviamente opta pelo problema da forma, que no seu entender abre o filme para a reflexão política de maneira mais profunda do que a 3. Ver BOOTH, Wayne. The Rhetoric ofFiction. Chicago: University ofChicago Press, 1983, 552 p. CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 233 representação menos intrusiva, menos discursiva e mais mimética- afinal, essa :última pode até questionar certos mecanismos, mas se submete aos códigos por eles determinados. Marginal em relação à produção mais comercial, Godard preza, ainda que por vezes amarguradamente, o seu status de "desenquadrado" no mundo do cinema, romantizando até a sua condição de "fora de lugar". Já como um dos diretores mais "populares" entre acadêmicos (Hitchcock talvez seja o único que se compare a ele em termos de publicações dedicadas ao seu trabalho), Godard segue firme em sua proposta de desenquadrar o seu cinema, abrindo-o não apenas para outros campos de investigação teórica e para outras artes, mas para inúmeros questionamentos e revisões. BIBLIOGRAFIA BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: University o f Wisconsin Press, 1985,370p. GODARD, Jean-Luc. "Deux ou trois choses que je sais d'elle." Jean-Luc Godard: Documents. 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Serge Daney As narrativas do audiovisual contemporâneo, nos âmbitos do cinema, da televisão e da internet apelam cada vez mais intensamente à produção e dramatização da realidade, renovando seus códigos realistas e intensificando seus efeitos de real, quando a linguagem, segundo Roland Barthes (2004), desapareceria como construção para surgir confundida com as coisas, quando é o próprio real que pareceria "falar". Nesse panorama, interessa a este trabalho compreender as implicações estéticas e políticas dessas práticas audiovisuais, que, ao visarem obliterar a distânCia entre a experiência direta e sua mediação, isto é, ao visarem simular um espetáculo que não mais simule, sempre em nome da "vida real" e da "realidade", produzem conseqüências políticas nada inocentes, revelando-se estratégias biopolíticas (FOUCAULT, 1997) 1 de legitimação, naturalização e desresponsabilização dessas narrativas e imagens. RENOVADAS I. Grosso modo, o conceit<> de biopolítica, postulado por Michel Foucault em 1976, pode ser compreendido como os modos pelos quais a política, os dispositivos sócio-técnicos e, hoje, a dinâmica neoliberal do capitalismo avançado se voltam aos processos vitais,·moleculares e sociais da existência humana. Para uma abordagem inicial, ver FOUCAULT, M. História da sexualidade, vol.l, A vontade de saber. 236 ESTUDOS DE CINEMA Como se vê na proliferação de reality shows, imagens amadoras utilizadas pelo telejornalismo, acontecimentos não-ficcionais incorporados pela teledramaturgia e toda sorte de flagras picantes, flagrantes policiais e vídeos caseiros disponíveis na internet, além de inúmeros títulos, do cinema brasileiro recente e de um cinema contemporâneo prestigiado no circuito de festivais internacionais, essas operações narrativas, marcadas, sobremaneira, por um apelo realista, reduzem muitas vezes a imagem à sua indicialidade, vascularizando pelo corpo social o boom, de um tipo de "realismo" vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras. No entanto, longe de uma tentativa de homogeneização de objetos tão diversos, cabe a este artigo investigar a relação entre distintas narrativas audiovisuais que conformam, nos âmbitos da produção cinematográfica, da produção televisiva e da produção amadora para a internet, um regime de visibilidade caracterizado pela produção e intensificação de efeitos de real cada vez mais críveis e pregnantes. Por isso, privilegiamos não objetos isolados e particularizados por meio de análises pormenorizadas, mas, sobretudo, as relações que se estabelecem entre eles, já que se interessa compreender de que modo uma ampla gama de distintos objetos audiovisuais, produzidos para diferentes mídias e com diferentes intenções, são consumidos e valorados em função do alto grau de seus naturalizados efeitos de verdade, os quais legitimam, autorizam e justificam previamente uma série de práticas, procedimentos e efeitos estéticos. Assimilando, reformatando e renovando os códigos realistas, que não se confundem com o engajado realismo "crítico" ou "revelatório" do passado (XAVIER, 2005), essas renovadas narrativas do espetáculo (DEBORD, 2000)- pautadas pelo permanente incremento dos efeitos de adesão e identificação, bem como por uma função de mediação social por elas exercida- não dizem respeito a uma organização formal da imagem, que seria "espetacular'', mas à construção de uma impressão de autenticidade cada vez mais intensa e eficiente, a partir da "precariedade" das formas, do gesto amador e da produção de novas transparências. Vale notar que, contemporaneamente, o conceito de transparência é radicalmente distinto do que o fora para o cinema clássico e contra o qual lutaram os cinemas modernos, que pleiteavam a opacidade da imagem a partir de procedimentos reflexivos. Hoje, a reflexividade e suas marcas - como rastros da filmagem, presença da equipe, tematização do dispositivo etc. - torna-se condição da própria transparência. Evidentemente, essa ampla gama de narrativas セオ、ゥッカウ。@ insere-se como um estratégico, e algumas vezes rentável, nicho de mercado cinematográfico no Brasil e no mundo. Se tomarmos o caso do cinema brasileiro da última década, mais exatamente de 1995 para cá, com a "retomada" do ciclo de produção e, posteriormente, com a criação da Globo Filmes, braço das organizações Globo para a produção cinematográfica, comprometido com a construção e defesa de uma identidade e de um "conteúdo nacional" (BUTCHER, 2006), perceberemos a evidência de tal apelo CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 237 realista, o que por isso nos ajudaria a compreender, a emergência da produção nacional de documentários, que só em 2007 constituiu cerca de 50% dos lançamentos de filmes brasileiros em circuito comercial. Sendo assim, dos filmes independentes brasileiros, isto é, sem a participação da Globo Filmes e das majors, como Casa de Alice (Chico Teixeira, 2007), Mutum (Sandra Kogut, 2007); Serras da Desordem (Andréa Tonacci, 2006); Contra todos (Roberto Moreira, 2004); Cama de gato (Alexandre Stockler, 2004); Diários de motocicleta (Walter Salles, 2003); Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1996) e Terra estrangeira (Walter Salles, 1995), à produção mainstream, co-produzida pela Globo Filmes, como Cidade dos homens (Paulo Morelli, 2007); Antônia (Tata Amaral, 2006); Dois filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005); Cazuza (Sandra Werneck, 2004); Carandiru (Hector Babenco, 2003); Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e recentemente Tropa de Elite (José Padilha, 2007), este sem a participação da Globo Filmes, nota-se, a despeito das especificidades e dos efeitos estéticos e políticos de セ、。@ trabalho, um evidente compromisso com o vínculo a uma realidade pré-existente. ' Incorporando imagens documentais e registros amadores, fazendo dos códigos estéticos mais "selvagens", que um dia foram a marca de um cinema moderno, uma ·nova convenção, re-encenando acontecimentos não-ficcionais já dados previamente muitas vezes, da alta sofisticação tecnológica, oferecida pelas tecnologias e se セエゥャコ。ョ、ッL@ digitais de captação e finalização de imagens e sons, para promover produções marcadas por uma impressão de improviso, de "urgência", de "precariedade" formal e de amadorismo, muitas vezes, simulando um espetáculo que simule sua não-encenação, o cinema vem assim estreitando seu diálogo com a produção audiovisual. Nesse processo de mútua contaminação, o que está em jogo é o compromisso dos produtos audiovisuais, sobretudo brasileiros, com uma intensificação dos efeitos de real por meio da permanente recodificação das marcas estilísticas consideradas "realistas", cujo efeito almejado é a produção de uma impressão de autenticidade e de um valor de verdade que sejam tomados como inequívocos e inquestionáveis. Aqui, cabe lembrar os dizeres do cartaz do filme Tropa de Elite: "Uma guerra tem muitas versões. Esta é a verdadeira". Frase que faz referência tanto à pirataria de que o filme foi vítima, quanto ao lugar de verdade por ele pleiteado. Porém, tal apelo realista da produção cinematográfica brasileira não é apenas efeito de uma tendência estética e de mercado, sendo também determinado pelo modo de produção hegemônico dessa cinematografia. Produzida com dinheiro público captado em grandes empresas via leis de incentivo -, que precisa ser socialmente justificado, essa produção responde a uma demanda por maior inserção de sua dramaturgia na realidade na qual está inserida, bem como a uma demanda de "responsabilidade social", por parte das empresas fmanciadoras. Também é necessário esclarecer que, no âmbito deste texto, não cabe indicar, minuciosamente, os recorrentes procedimentos de linguagem empregados pelos filmes citados (como a utilização de 238 ESTUDOS DE CINEMA longos planos-sequência ou de cortes excessivos, de uma câmera instável e trêmula, da inserção ou simulação de imagens indiciais etc.), a fim de ancorá-los em uma realidade previamente dada e socialmente justificada, o que nos demandaria um texto de fôlego. Já no caso do cinema internacional, o apelo realista caracteriza um universo mais segmentado e prestigiado de filmes premiados em festivais internacionais, desde Festa de família (Thomas Vitemberg, 1998), ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1998, reconhecimento que o tomou um marco do movimento· Dogma 95, passando pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que, com Rosetta (1999) e A criança (2005), ganharam a Palma de Outro no Festival de Cannes de 1999 e 2005, até Quatro meses, três semanas e dois dias (2007), do romeno Cristian Mungiu, ganhador da Palma de Ouro de 2007 e, ainda, Redacted (2007), filme de Brian De Palma, sobre a invasão norte-americana no Iraque, vencedor do Leão 、セ@ Prata no Festival de Veneza de 2007. Neste último caso, a linguagem, considerada "chocante" pela crítica estrangeira, incorpora, na verdade simulando, vídeos amadores disponíveis no Youtube e em blogs de soldados, trechos de telejornais e de documentários, imagens da televigilância e cenas de execuções de reféns, o que o' toma um filme paradigmático, tanto pela mistura de suportes tecnológicos quanto pela vinculação a imagens que aparentemente lhe pré-existem, cujo caráter amador, precário, urgente e político garantiria à obra uma construção dramatúrgica e estétiCá. pautada por um efeito de "choque do real" (JAGUARIBE, 2007). Também a produção televisiva brasileira, sobretudo a da Rede Globo, mas não restrita a ela, na corrida pela manutenção de sua hegemonia, simbólica e comercial, qa produção e controle do imaginário nacional, tem sabido incorporar e desenvolver os cada vez mais intensos e eficazes efeitos de real. Poderíamos tomar como exemplos significativos dessa tendência: os diversos reality shows, em especial aqueles de confinamento, mais comprometidos com um efeito de verdade efetivado pelo dispositivo da vigilância, caso do Big Brother Brasil, produzido pela Rede Globo, desde 2001; as imagens caseiras, capturadas por câmeras de telefone celular e empregadas, de forma cada vez mais recorrente, em telej ornais de diferentes emissoras como forma de validar e atestar a "verdade", daquilo que está sendo noticiado; a incorporação de depoimentos reais de pessoas anônimas ao final de cada capítulo da telenovela Páginas da Vida (Manuel Carlos, Globo, 2006), como forma de legitimar, ancorando na realidade, a construção melodramática do conteúdo encenado e como forma de compensar a impotência e a ausência de autonomia da ficção; e are-encenação de acontecimentos não-ficcionais, marcados por grande repercussão midiática, cuja vinculação a uma realidade pré-existente tanto legitima a pleiteada importância social da ficção televisiva quanto mobiliza espectadores e opinião pública, caso novamente CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 239 · de Páginas da Vida, 2 mas também da telenovela da emissora concorrente, Vidas . Opostas (Marcílio Moraes, r・」ッイセ@ 2006). Como disse Roberto Irineu Marinho, nas comemorações, em 2005, de 40 anos da emissora mais importante e influente do · país, a Rede Globo, "de fábrica de produção de sonhos", teria passado a ser "uma usina de realidades". O apelo realista dessas renovadas narrativas do audiovisual não se restringe, conforme já mencionado, ao cinema e à televisão, atravessando, de forma capilarizada, . a produção audiovisual amadora disponibilizada em canais de exibição virtuais, como oYoutube, e em programas de compartilhamento de arquivos pessoais na internet; como o E-mule, estimulada pela disseminação das novas tecnologias digitais de captação e produção de imagens e sons e pelas novas tecnologias de .finalização (como os programas de edição caseiros). O que nos permitiria aventar que esse desenvolvimento . tecnológico está, historicamente, atrelado ao desenvolvimento de "gêneros do real", como fora o caso, em nosso recente passado, da criação de câmeras em 35mm, mais leves e da invenção do Nagra, aparelho que inaugura a até então inédita possibilidade da sincronia do som com a imagem. Tal capacitação tecnológica permitiu, em fins dos anos 50, que o cinema do pós-guerra (seja o assumidamente ficcional ou o documental) se libertasse dos grandes . esquemas de produção e fosse às ruas, ao encontro da vida "cotidiana" e de seus homens e mulheres "reais". Como postulava Zavattini, teórico de um realismo revelatório, conhecido por sua "fome de realidade", à época do movimento neo. realista italiano: "Um retomo ao homem, à criatura que em si mesma é 'todo espetáculo': isto deveria liberar-nos. Colocar a câmera nas ruas, em uma sala, olhar com insaciável paciência, treinar na contemplação de nosso semelhante em suas ações elementares". (ZAVATTINI apud XAVIER, 2005: 72). Hoje, porém, nosso contexto histórico, cultural e econômico é outro e as inventividades estéticas que marcaram a dramaturgia e o cinema modernos foram capturadas pela lógica do espetáculo, pelas novas tecnologias de produção audiovisual e pelas demandas da televigilância, fascinada pela ilusão da transparência total - tudo ver, tudo mostrar, nada esconder. Cabe lembrar, porém, que a lógica econômica, estética e moral da contemporânea produção doméstica de imagens e sons não é a mesma da produção cinematográfica e televisiva, essas últimas, muito menos permissivas e mais controladas por diversas 2. Lembremos aqui da menção na novela Páginas da Vida- seja através de diálogos entre personagens, da utilização de imagens reais ou dare-encenação de fatos- ao atentado às Torres Gêmeas em 200 I nos EUA, ao desastre da abertura da cratera do metrô de São Paulo em 2006, à tragédia do menino João Hélio, no Rio, no mesmo ano, ao atentado incendiário ao ônibus de viagem na Via Washington Luiz, e, por fim, à problemática da síndrome de Down, tema-cei:Jtral da telenovela de Manuel Carlos. i4o ESTUDOS DE CINEMA instâncias de poder. No entanto, o que se percebe hoje é a tentativa, por parte do cinema e da televisão, de incorporar uma espécie de produção audiovisual menos domesticada, justamente pelo valor de mercado que um tipo de "realismo-naturalista" tem adquirido. Vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras, à exposição de uma suposta intimidade e à indexicalidade dos espaços, do tempo e da presença do aparato, essa espécie de "realismo-naturalista" repaginado, comprometido historicamente com a aproximação descritiva das aparências do real, mas não com a expressão de um significado crítico da realidade (para se usar os termos da históríca, querela entre naturalismo e realismo crítico), inclui, predominantemente, além dos registros caseiros- em que a vida ordinária e cotidiana adquire uma importância e um valor de mercado inauditos -, a nova pornografia, marcada pela simulação de flagras e de imagens supostamente roubadas. Dos flagras picantes aos flagrantes policiais, caso, por exemplo, das célebres imagens da modelo brasileira Daniela Cicarelli, filmada por um paparazzo em apimentadas cenas de amor em uma praia espanhola, em 2006, ou dos momentos que precederam a execução de Saddam Hussein, captados por uma câmera de telefone celular, no mesmo ano, o que se evidencia é a entrada da "vida real", da "realidade" e da experiência cotidiana, no âmago dessa produção audiovisual - por isso aqui considerada biopolítica -, bem como a utilização libidinal e policial dos dispositivos tecnológicos, empenhados na construção e na administração de efeitos de real, de autenticidade e de verdade que naturalizem e legitimem seus métodos. Não à toa, tais operações narrativas servem, a um simultâneo processo de "imagetização" do capital e capitalização da imagem, sobretudo de imagens que apelam à expressão de momentos de impactante "autenticidade". Em um momento histórico marcado pela saturação midiática, pela hipertrofia dos campos da comunicação e do audiovisual, pelo contínuo incremento de uma convergência de mídias e pela paulatina indistinção das fronteiras que historicamente e demarcavam os âmbitos do público e do privado, do real e do ficcional, da ー・ウッセ@ do personagem, o apelo realista, das cada vez mais hibridizadas narrativas contemporâneas, se afiguraria como um modo simbólico de "reengajamento" ·e "reintegração" dos sujeitos (produtores, consumidores e portadores das imagens) à realidade. Realidade essa produzida e dramatizada por códigos estéticos e suportes audiovisuais cujas fronteiras também estariam se tornando indistintas. Nesse sentido, vale lembrar que as diversas estéticas do realismo ainda constituem as formas culturalmente engendradas de apreensão e apresentação da realidade, pois o realismo, desde meados do ·século XIX, transformou-se em uma linguagem hegemônica de codificação do cotidiano moderno. Nessa disputa, simbólica e comercial, pela produção, detenção e validação de determinadas verdades e visões de mundo sobre nossa evocada - e capitalizada realidade, tais procedimentos de linguagem nos sinalizam, a atualização de uma secular CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA 241 "vontade de verdade", como bem identificou Nietzsche (1992; 2001), que marcara a alta modernidade e o próprio surgimento de uma cultura visual das sensações em fms do século XIX. Verdade, segundo o filósofo, não mais compreendida como um sentido oculto, profundo, que subjazeria por trás das aparências, mas, antes, alocada nas superfícies das imagens e identificada ao próprio efeito construído- efeito de verdade. Engendrado então por artificios narrativos e ficcionais, o efeito de verdade orienta, contemporaneamente, uma demanda tanto por um artificio captador de uma (suposta) autenticidade quanto por uma autenticidade gerada pelo próprio artificio. Assim, se a ''vontade de verdade" toma-se vontade de artificio, na medida em que a verdade é efeito de uma construção, de uma perspectiva, de uma avaliação, o apelo realista, do mesmo modo, não seria pautado por um apelo ao real tão-somente, mas por um apelo ao real como um efeito, como um semblante ficcional, porque agora organizado e intensificado. Se, como enfatiza Jean-Louis Comolli (2002), as realidades tomaram-se a tal ponto ficcionais que as ficções não podem mais prescindir de uma boa dose de realidade, multiplicando indefinidamente seus efeitos de real, então, é nosso desafio, problematizar e suspeitar desse atual regime de visibilidade, cuja estratégia é produzir uma verdade que simule sua própria não-simulação, já que a intensificação e explicitação autoreflexiva dos artificios, muitas vezes em nome de um "choque do real", criam novas ilusões de transparência e novos ilusionismos. Podemos então afirmar que, em diversos sentidos, "as estéticas do realismo aguçam os paradoxos do momento contemporâneo" (JAGUARIBE, 2007: 30). Dentre os paradoxos que nos constituem, o mais notável é, sem dúvida, o paradoxo da vida, pois, quanto mais instrumentalizada e reduzida a sua condição biológica, tomando-se matéria prima e núcleo vital da política, da produção estética e da organização dos fluxos capitalistas, mais é investida por uma infinidade de poderes, dispositivos e tecnologias. Nesse sentido, as imagens e sons que conformam o audiovisual contemporâneo estão intimamente ligados ao modo como a política opera sobre a vida, justamente porque tanto a vida ordinária quanto a experiência cotidiana se tomaram operadoras da política, que, como acredita Jacques Ranciere (2004), operaria esteticamente. O que significa apostar que o apelo realista das renovadas narrativas do audiovisual contemporâneo afigura-se hoje como a tônica dominante de um capitalismo imaterial, 3 imagético e biopolítico, que faz da própria vida, dos corpos, 3. O regime de produção "pós-fordista", "pós-industrial" ensejou, segundo diversos autores, um novo modo de agenciamento capitalista, denominado "capitalismo imaterial" ou "cognitivo", cujo núcleo da produção econômica é a própria vida, o conhecimento, a criatividade, o imaginário, a comunicação e a informação. Ver: COCCO, G Capitalismo cognitivo- trabalho, redes e inovação; bem como NEGRI, A. e LAZZARATO, M. Trabalho imaterial. ESTUDOS DE CINEMA 242 do imaginário, da comunicação, da informação e da experiência dita real sua matériaprima universal, fonte de inesgotável lucratividade. O apelo realista afigura-se, assim, como a expressão estética de uma linguagem audiovisual biopolítica, no âmbito de uma produção capitalista imaterial. 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INTERFACES COM OUTRAS ARTES Galáxias: uma poética do arquivo em constelações ressonantes LUIZ CLÁUDIO DA COSTA (UERJ) REcRIANDO GALAXIAS, de Haroldo de Campos em seu díptico videográfico.Galáxia Albina (1992) e Infernalário: logodédalo- Galáxia Dark (1993) -,Júlio Bressane produz "equívocos", que são flagrados 1 pelo próprio poeta na seqüência do roteiro, em ato encenado em Galáxia Albina. O cineasta pretende matar a personagemtítulo, cujo fim não é esse no poema. O que surpreende no vídeo, porém, não é essa traição, mas os estratos criativos que acrescenta - as camadas que deposita na transcriação, através das apropriações indevidas das obras de outros artistas-, revelando a "consistência arqueológica" operada por Bressane, como bem notou Francisco E. Teixeira. 2 Bressane suscita problemas singulares à sua prática- singularidade que nada tem a ver com pureza. Ao contrário, é uma prática de sedimentação impura, onde ocorrem interferências, apropriações, transferências, reciprocidades, envolvida 1. Para Haroldo, a permuta dos signos na recriação de um texto literário envolve autonomia indispensáveL Tal reciprocidade, porém, não implica reverência ou respeito invioláveL Há traição na prática do tradutor, mesmo que involuntariamente. Numa definição por si mesma contraditória, a recriação implica urna fidelidade desleal. É o que Haroldo chama de "equívoco flagrante" ao falar de Pound, seu exemplo máximo de tradutor-recriador. Para o teórico e poeta, Po'fthd trai a letra do original e ao mesmo tempo é fiel ao 'espírito', ao 'clima' particular da peça traduzida, "acrescentalhe, corno numa contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o original autoriza em sua linha de invenção" ( 1992: 3 7). 2. O fragmento completo retirado do texto de Teixeira é: "O cruzamento de Melville e Shakespeare, Orson com Macbeth e Moby Dick, o momento de reação de sua criação no cinema que o leva ao teatro, a peça dentro da peça, o embrião do filme televisivo etc., etc. Todo esse campo significante, ora atualizado, ora virtualizado no corpo do vídeo Galáxia Albina, vem revelar a consistência arqueológica, estratificada, os embasamentos que fundam a criação cinevideográfica de Bressane" (2003: 120). 248 ESTUDOS DE CINEMA pelo engano da traição fiel. Com essa prática, Bressane promove o cinema e/ou o vídeo ao estatuto de arquivo do tempo. Os dois vídeos de Bressane parecem nunca passar do prólogo de uma narração continuamente fragmentada pela intensidade das imagens poéticas, bem como pela freqüente reflexão crítica voltada para o processo da produção. A pedagogia em Galáxia Albina e Dark é singular por se configurarem como uma leitura crítica do poema. O aspecto ensaístico e reflexivo dos vídeos de Bressane pressupõem uma leitura penetrante e atenta da obra de Haroldo de Campos. Ao mesmo tempo em que refletem o poema, processando a tradução da obra literária, Galáxia Albina e Dark problematizam a escrita videográfica, tematizando alguns momentos e instâncias da produção, as materialidades envolvidas e os procedimentos trabalhados no processo da produção. Os dois vídeos, entretanto, se interessam e, por conseqüência, tematizam problemas distintos desse processo. Essa diferença do foco de interesse da reflexividade crítica levou o crítico Francisco Elinaldo Teixeira a afirmar que Galáxia Albina e Dark apresentam "grandes diferenças de concepção" (2003:122). Há, com efeito, diferenças quanto às questões processuais tematizadas, mas ambos concebem a forma crítica e ensaística como essencial, para uma arte que se revela como pensamento. O roteiro é colocado em ato em Galáxia Albina pelos autores Haroldo e Bressane, que se tornam personagens quando Giulia Gam e Beth Coelho assumem seus papéis. Essa metamorfose é exposta em cena e revela em ato o problema do autor como personagem e sujeito da narrativa, terna vastarnente discutido pelas teorias da linguagem e pela narratologia. A filmagem, por outro lado, é o foco em Galáxia Dark, revelando criticamente a distância ou a "nãoidentidade", entre o objeto da filmagem e sua exposição, corno argumentava Adorno, ainda que essa dicotomia entre forma e conteúdo seja mais problemática que a dicotomia dialética possa explicar. As diferenças do foco sobre o qual recai a reflexão crítica dos dois vídeos são, com efeito, muitas. Pode-se lembrar ainda outros exemplos. Giulia Gam aparece no Galáxia Albina primeiro lendo, confortavelmente deitada, o livro de Haroldo, enquanto, aos poucos, vai se caracterizando e se transformando em sua personagem. Nessa caracterização, há um momento de extrema beleza poética e com grande efeito para a vídeos. Giulia Gam-a atriz- e Albina- a personagem- aparecem problemática セッウ@ ao イョセso@ tempo em uma única figura dividida. A divisão e a não-identidade não o_cof.!"êm apenas entre a coisa e sua exposição, mas na própria coisa ou no sujeito que a expõe. O nome mesmo pelo qual a coisa é exposta e unificada é objeto de reflexão em: Galáxia Dark. Beth Coelho, caracterizada em sua personagem sem nome, aparece イ・ーエゥョセ￴。@ voz segura de Haroldo que sobressai em volume nos ensaios vocais. Essa ヲAセGョ ̄ッ@ nomeada produz uma tríade com outras duas atrizes. Todas vestidas de · preto,. apresentam símbolos religiosos do Cristianismo, corno o crucifixo, mas executam danças com temas e movimentos orientais que se assemelham à dança·do INTERFACES COM OUTRAS PARTES 249 ventre. Elas não são nomeadas, nem são personificadas. Sem precisão, antes paradoxalmente, vinculam-se a sentidos de fertilidade e religiosidade da Antiguidade. Por isso podem simbolizar muitas trindades da cultura da imagem, incluindo as de viés religioso. Sugerindo sentidos não diretamente direcionados pelo vídeo, as três mulheres são antes figuras do tempo, imagens mais que nomes. Como os três lados de um triângulo do tempo, promovem, no sentido, a liberdade do devir, esgarçando 0 tempo do presente tecnológico ao passado da origem da civilização cristã, dada a referência à Terra Santa em Galáxia Dark. As questões refletidas são variadas, incluindo a materialidade do suporte da exposição que recebe tratamento distinto nos dois vídeos. A dupla trilha da imagem e do som é problematizada em Galáxia Albina. Nesse vídeo, a direção mantém todas ou quase todas as vozes, separadas de suas fontes na boca dos personagens. Mesmo quando o som é proveniente de um filme apropriado, como Macbeth, de Orson Welles, por exemplo. Galáxia Dark, ao contrário, mantém a sincronia. A fixidez do fotograma, contraposto ao movimento das outras imagens, é lançada ao conhecimento critico em Galáxia Albina, ao passo que os grãos produzidos pela baixa quantidade luminosa revela a materialidade e a ausência da luz no Galáxia Dark. Os vídeos, apesar de formarem um dípticn, são de fato autônomos, mas há um problema comum que os vincula: o que é a imagem artística? Seja literária, cinematográfica, videográfica ou plástica a questão dos dois vídeos de Bressane é conceitual e teórica. Mais que problematizar um gênero de arte e praticar a intertextualidade crítica, positivando as vozes distantes e as práticas diferenciadas, Galáxia Albina e Dark colocam o problema da condição mesma da arte como imagem. Nesse sentido, os vídeos, ainda que com grandes diferenças de composição e reflexão material, colocam um mesmo problema conceitual. É imensa a quantidade de material mobilizado nos dois vídeos e Francisco Elinaldo Teixeira já inventariou esse conjunto. Segundo o crítico paulista, Galáxia Albina ao mobilizar esse vasto material de múltiplas procedências e suportes toma-se "videocinema, videovídeo, videofotografia, videopintura, videoesculturalinstalação" (2003: 115). De procedência literária, os poemas incluídos no Galáxias Albina são, o fragmento 40 (onde aparece a personagem da Albina), o fragmento 32 (éujo tema central é a morte de Marilyn Monroe), Cal! me Ishmael (lido e inscrito na tela, sobreposto ao desenho de um caçador com arpão), Toura (sobre o devir-toura da Albina). Há, ainda, não mencionados por Elinaldo, alguns outros fragmentos do Galáxias de Haroldo, como o terceiro formante, em que aparece a famosa frase de Macbeth "multidinous seas incardine". O fragmento é lido por Haroldo entre colunas de uma ruína, logo após o trecho com a frase de Shakespeare dita por Welles em seu próprio filme. Ainda é lido o fragmento 46 do poema no qual a personagem da "mulher-livro" aparece. Segue ainda na lista a leitura do fragmento 41, onde o tema oriental ("tudo isto tem que ver com um suplício chinês") é ainda presente. É desse fragmento que 250 ESTUDOS DE CINEMA surge a frase "vai daí a cabeça rompido o equilíbrio descabeça e cai" transposto para o vídeo na personagem de uma japonesa com quimono cuja cabeça cai ao fim da leitura do fragmento por Haroldo. Outros textos literários são ouvidos nos vídeo Galáxia Albina. Haroldo lê a parte final do capítulo "A brancura da Baleia", do romance Moby Dick, de Hermann Melville, na tradução de Péricles Eugenio da Silva Ramos. O trecho lido por Haroldo do capítulo de Moby Dickremete ao "grande princípio da luz" que pinta a natureza, finalizando com o tema-título, central no vídeo: "de todas essas coisas a baleia branca constitui o símbolo". Os outros suportes materiais utilizados no vídeo Galáxia Albina são, as telas e objetos de Alex Fleming, Luiz Pizarro, Ângelo Venosa, Celeida Tostes e Thel Castilho, o vídeo Paulo Leminski - Um coração de Poeta, produzido pela TVE (em que o poeta fala sobre seus sonhos dirigidos por cineastas americanos), trechos de Moby Dick (1956), de John Huston com Gregory Peck; Macbeth (I 948), de Orson Welles; Matou a família e foi ao cinema ( 1969, evocado no diálogo entre o poeta e o cineasta, "Tinha que ter sangue Júlio? No meu texto a Albina não morre!" I "É, ir ao cinema"), O rei do baralho (1973, com cenas da personagem de uma atriz de chanchada, cujos cabelos louros prateados se assemelham aos da Marilyn tematizada). À complexa malha sonora e musical que inclui silêncios e vozes dos atores dos filmes apropriados, somam-se as canções My funny valentine, de Richard Rodgers e Lorenz Hart; Bye Bye Baby, de Bob Crewe and Bob Gaudio, executada pela própria Marilyn Monroe no filme Os homens preferem as loiras (1953), de Howard Hawks. Os materiais mobilizados no Galáxia Dark também são variados. Do poema Galáxias, o vídeo utiliza o fragmento 04, no qual aparece o tema do "jomalário infemalário de miúdas nugas de intrigas tricas de nicas". Ainda são lidos outros poemas: O azar é um dançarino, do próprio Haroldo de Campos e, dois outros por ele trariscriados, E! Desdichado, de Nerval e O Carbúncujo e o coração, de Novalis. Além da matéria literária, há ainda um documentário de televisão sobre Elvis Presley, onde o intérprete canta I want you I need you I lave you (de Maurice Mysels and Ira Kosloff). Do cinema, três filmes: Um corpo que cai, de Hitchcock (1958); À meia noite levarei a sua alma, de José Mojica Marins (1964); Alphaville, de Godard (1965). Há ainda a canção Just one of those things, de Cole Porter, executada por Louis Armstrong e algumas intervenções musicais, como o instrumental de Friz Freleng, tema do filme de Blake Ewards, A Pantera cor de rosa. As interferências musicais criam sentidos importantes na narrativa do vídeo, mas alguns momentos especialmente significantes estão vinculados aos de temas orientais, incluindo lamentos de tonalidade islâmica nas cenas em que as três mulheres de negro, vestindo roupas como religiosas, encontram-se na Terra Santa, como explica a voz of! do diretor. Em Galáxias Albina e Dark, de Julio Bressane, o problema central da pedagogia crítica não é a própria obra, ainda que todo o processo de construção e produção do vídeo seja também objeto da reflexão e das imagens poéticas. As apropriações de INTERFACES COM OUTRAS PARTES 251 vasto material e suportes aparecem fisicamente em profusão nos vídeos de Bressane, revelando uma intertextualidade, sobretudo, de caráter arquivístico. Bressane pratica uma verdadeira poética do arquivo apropriando-se de materiais da cultura audiovisual, literária, plástica, musical e sonora. Nesses vídeos se vê fragmentos tanto da cultura artística quanto da de massa, o que problematiza a separação hierárquica da autonomia entre essas esferas. Mas se há não- identidade entre ambas, a estratificação de espaços e tempos, operada pelos vídeos, não cria uma descontinuidade absoluta, mas comunicação e confluência que as toma permeáveis. Os estratos, campos do conhecimento, gêneros artísticos e tempos históricos de nossa cultura da imagem se superpõem e se comunicam. Se em Galáxia Albina, a digitalização da imagem e os efeitos de edição permitem que Macbeth/Welles, invocando as bruxas durante uma tempestade, acabe por ter nas mãos um arpão/espada colorido, em Galáxia Dark, alude-se à época em que as imagens eram proibidas, ao colocar as três personagens femininas na "Terra Santa" contra grades. Se o tema da luz (entre outras vias, através de Alphavílle e de Moby Dick) aparece em Galáxia Albina, o tema da escuridão surge em Jnfernalário: Logodédalo- Galáxia Dark. A luz que permite ver imagens e a escuridão que as proíbe é, entretanto, complexa, no que diz respeito a nossa era de máquinas de visão. Afinal, Galáxia Dark associa a época do "infemalário jornalário" a Dédalo - referência ao pai de !caro na mitologia grega e ao labirinto por ele criado para o Rei Minos, lugar em que acabara aprisionado com seu filho. Nossa era midiática e técnica não é a era da luz e do conhecimento, mas uma época cuja lógica obscurecida talvez nos proíba ver. Não se pode, entretanto, opor assim à luz ao escuro, nem associar a técnica ao obscurantismo. Afinal, o criminoso e obscuro Macbeth aparece com sua espada digital numa homenagem à cultura de massa que criou ainda figuras como Elvis Presley, Marilyn Monroe e antes, Louis Armstrong. A luz e o escuro são forças ou valores limites ainda presentes em nossa cultura da imagem, agora marcada pelo arquivo. Desde a fotografia e o cinema, a idéia do museu e da galeria (o cubo branco), como lugar de exposição e guarda de nossas imagens, parece assombrada pela função do arquivo. Por isso a importância da seqüência de Um corpo que cai escolhida por Bressane para o vídeo Galáxia Albina. Nessa cena, o detetive Scottie (James Stewart) observa a Madeleine (Kim Novak) num museu, observando o quadro com a mulher que ela duplica. O tema do duplo, da imagem, presente nos dois vídeos de Bressane, toma inflexões institucionais. O museu foi desde o século XIX um dos princípios institucionais da cultura artística, em especial da imagem no suporte pintura. Mas o lugar do museu vem sendo problematizado, primeiro pela própria técnica da fotografia, cujo lugar de guarda é antes o arquivo que a exposição na parede branca do museu. Rosalind Krauss, articulou a idéia de uma arte de arquivo na crítica contemporânea em "O espaço discursivo da fotografia". A pensadora americana afirma que a fotografia não pertence originalmente ao espaço discursivo da arte, ESTUDOS DE CINEMA 252 cujos conceitos fundamentais eram a obra, o sujeito autor e o gênero. A historiadora mostra que a fotografia pertencia até meados do século XIX ao discurso topográfico da geologia e não ao saber estético, cujo código visual de representação aplainada e comprimida transformou as vistas em paisagens. As primeiras, ao contrário das últimas; não eram expostas em paredes de museus, mas guardadas e expostas em móveisarquivos. Foi depois de 1860 que a fotografia entrou para a instituição Arte e passou a ter lugar no discurso da História da Arte e nas paredes das galerias. Mais contemporaneamente, entretanto, segundo a autora, os especialistas da fotografia aplicaram aqueles "conceitos fundamentais do discurso estético ao arquivo visual". A noção de "arquivo visual" no texto de Krauss remete tanto ao móvel onde se guardava e expunha as vistas como à noção de "formação histórica" proveniente da teoria foucaultiana sobre os discursos e visibilidades (2002: TPセUYIN@ Bressane articula os vídeo Galáxia Dark e Albina, como arquivos virtuais em que se sedimentam, de maneira impura e heterogênea, apropriações e transferências da cultura visual, literária e cinematográfica, promovendo o cinema e/ou o vídeo ao estatuto de arquivos do tempo. Se com a fotografia, o arquivo era fisico e material, com o cinema, ele toma-se temporal, mas ainda fisico. Na era do digital, o arquivo permite operações transversais de caráter temporal e concede aos objetos a plasticidade do tempo, essa capacidade de modular coisas, fazendo-as variar, criando para elas novos matizes, diversificando-as em contínuas metamorfoses. BIBLIOGRAFIA ADORNO, THEODOR W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2003. BASBAUM, Ricardo. "Within the Organic Line and after". In: ALBERRO, Alexander. BUCHMANN, Sabeth (Ed.) Art after conceptual art. Camridge, London: MIT Press, 2006. BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. : a política dos autores (França, Brasil anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense: USP, 1994. CAMPOS, HAROLDO. "Da tradução como criação e como crítica". In: CAMPOS, Haroldo; Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (Org. ). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. HILLIER, Jim (Org.). 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A intenção, como no poema Galáxias, de Haroldo de Campos, é voltar-se para si, apontar os processos da própria arte que compõem os vídeos. Esse procedimento havia ocorrido nas artes plásticas, bem no início do século XX (em tomo de 1907 a 14), marcadamente com a introdução da colagem- por Braque e Picasso - na pintura cubista analítica, e com o início do cubismo sintético. Não importava mais retratar a aparência, mas as relações entre as coisas, inclusive os materiais que as compunham. Responde Cézanne à questão: "Mas a natureza e a arte não são diferentes?" "-Eu gostaria de tomá-las uma coisa só. A arte é uma percepção pessoal. Eu coloco essa percepção no sentimento e peço à inteligência que a organize em uma obra". 1 A obra de arte, nos termos propostos por Cézanne, deve ser pensada como constituinte também da natureza; natureza na visão do artista. Ou seja, essa deveria ser a função da nova arte pós-Cézanne: registrar inter-relações estabelecidas pelos artistas a partir de linhas, formatos, cores e materiais abstraídos da natureza, do mundo material. Assim, o cerne plástico expressivo passa a ser, seus elementos compósitos. Movimentos e tensões deveriam, então, ser também retratados. A pintura cubista passa a compreender inclusive a passagem do tempo. Tempo-espaço エセュ。Mウ・@ uno na tela. I . GOODING, M. Arte Abstrata. São Paulo: Cosac&Naify, 2002, p. 35. 256 ESTUDOS DE CINEMA A vanguarda, do início do século XX, afasta-se da mimesis, em busca de criar "algo válido em seus próprios termos'? Nessa busca, volta-se para o meio de seu oficio. O crítico de arte e literatura, C. Greenberg, coloca muito bem essa situação, nas palavras "O não-figurativo ou 'abstrato', para ter alguma validade estética, não pode ser arbitrário ou acidental, mas deve derivar da obediência a alguma limitação ou original adequado. Esta limitação, uma vez que se renunciou ao mundo da experiência comum externa, só pode ser encontrada nos próprios processos ou disciplinas através dos quais, a arte e a literatura já o imitaram. Eles mesmos tomam-se o tema da arte e da literatura. Se, para continuar com Aristóteles, toda arte e literatura é imitação, então o que se tem aqui é a "imitação do ato de imitar'. 3 O procedimepto de Bressane- construção do filme via apresentação de pedaços metonimicos - vai mais fundo do que o apontado. Pensa-se aqui no making of O making of pode ser tomado por uma experiência de registro de uma ação, de um ato artístico realizado que, se não fora nele recuperado, estaria para sempre perdido. Caso da performance, da instalaç_ão, do parangolé, por ex-típicos representantes da arte dos anos 60 - e da grande maioria dos roteiros cinematográficos que, pronto o filme, são esquecidos, jogados fora muitas vezes. Rompendo com essa tradição, Bressane e Haroldo inserem o próprio roteiro no fazer videográfico em Galáxia Albina (1991), a exemplo do que o próprio Bressane e Godard, respectivamente, haviam feito em Tabu e Passion, de 1982, por ex. Logo no início de Albina" Haroldo e Julio aparecem relatando os episódios que transcorrerão a seguir, com o modo relacional por eles empreendido no processo de criação. Já na Dark são os inúmeros ensaios e as pausas para descanso que comparecem como parte integrante da trama Novo tipo de notação, novo modo de roteirizar pode estar a indiciar uma nova forma estética, e vice-versa, seguindo aqui H. R. Zeller, falando sobre Um Coup de Dés, citado por Haroldo de Campos (1977: 23): " ... questões de forma se converteram em questões de notação, e, vice-versa, a solução de problemas de técnica de notação ... pode exercer um influxo imediato sobre a evolução de novos tipos de formas". 5 2. 3. 4. 5. GREENBERG, C. Arte e Cultura. São Paulo: Ática, 1996, p. 24. GREENBERG, C. Op. Cit., p. 25. Segundo relato de Julio, essa seqüência foi à última a ser filmada. Em 1978-79 a TVE do Rio de Janeiro produziu uma pequena série (de oito ou nove programas) sobre o Rio, através de Nelson Pereira do Santos, e coube a Julio fazer um capítulo sobre o lliP pré-histórico, que se chamou Cidade Pagã. Para realizá-lo o diretor inspirou-se no texto Pica-Pau de Julio Ribeiro (que se encontra no volume Língua Nacional). Ao relatar isso, Julio não mencionou espécie alguma de roteiro. Parece-me que o trabalho de roteirização para ele consiste mais numa elaboração mental de imagens (formas, cores, diversos tipos de som e o silêncio) e na montagem das mesmas, tarefa que parece prescindir do verbal, enquanto texto descritivo, linear e com anotações técnicas- como usualmente é feito um roteiro. Se assim for, esse procedimento não é INTERFACES COM OUTRAS PARTES 257 Julio fala neste presente trabalho de sua experiência de filmar quando adolescente, e da frustração em não reconhecer nas imagens reveladas, os sentimentos que o haviam impelido a filmá-las. Essa afirmação abriu-se para várias suposições. Seguindo Nietzsche, muda-se a cada segundo; assim, o Julio pós revelação do filme não era mais exatamente - somente o Julio da filmagem: 6 "Em cada agora começa o ser: em tomo do aqui rola a esfera do acolá. O meio está em toda parte. Recurvo é o caminho da eternidade". Para Aby Warburg/ a imagem é a memória inconsciente do tempo. Roland Barthes discute em A câmera clarcl' o poder, que algumas fotos têm de captar a "alma" do fotografado, ou, ainda, em O óbvio e o obtuso, 9 como alguns fotogramas podem encerrar uma significância, enquanto outros geram somente significados e significações, o que implicaria em ambos os casos atribuir a carência à percepção de Julio da vida (própria) das imagens. Essas linhas de análise, entretanto, têm em comum o fato de apontar para as imagens enquanto possíveis possuidoras de expressão própria; melhor dizendo, além das mensagens referenciais, elas podem carregar conteúdos latentes que é preciso saber ver/ouvir/ler: introjetar. típico das Galáxias; vem de longa data, é um princípio construtivo de Bressane. Criar a partir da matéria, da forma, dos tons, do movimento, e das associações por esses suscitadas, e não do argumento lógico, do enredo. Uma vez (cerca de 1990) Julio me disse começar a criar um filme pela trilha sonora, pelos ritmos (até me presenteou, na ocasião, com uma fita k7 com a trilha da qual resultou o filme Agonia). O teórico Arlindo Machado fala que sugestões icônicas de cores e formas das imagens aproximam as imagens em movimento da música. A frase "cinema é a música da luz", de Abel Gance, que tem sido usada como um mote por Julio, parece indiciar isso: cinema como movimento das sombras (tons (musicais e plásticos) e formas concretas). O roteiro em papel de Agonia aponta o mesmo traço . . "( ... )assaltando a mão armada". ela de peruca loura. O Antena tem um companheiro Mudo. Noel cantando malandro medroso: é escuro o barraco 3 corpos deitados no mesmo chão. partes de corpos. é tudo muito escuro. tudo em tudo no filme todo. escuro e claro. a Agonia é um pisca-pisca de fotogramas em sucessão passando à luz do projetor. e o filme é projeção da "agonia" das sombras." (Agonia;p. 1). Nessa mesma direção, Haroldo mais de uma vez afirmou que sua criação estava próxima da musical. 6 . Cf. NIETZSCHE. Vontade de Potência. Rio de Janeiro: Edições dl" Ouro, 1966. La voluntad de domínio. Buenos Aires: M. Aguilar, 1947. E em Assim falava Zaratustra, apud NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2002, p. 70: "Em cada agora começa o ser: em torno do aqui rola a esfera do acolá. O meio está em toda parte. Recurvo é o caminho da eternidade." (grifo meu). 7. Aby Warburg apud MICHAUD, P-A. Aby Warburg and the image in motion. New York: Zone Books, 2007. 8. BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. 9. Cf. In O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. 258 ESTUDOS DE CINEMA Posteriormente, conhecedor desse potencial da imagem, Julio pode ter sido impulsionado a reutilizar o filmado, introduzindo-o em meio à outra narrativa em criação, a fim, talvez, de 'duplicar', fazer refletir entre si as imagens registradas, ou seja, provocar o diálogo entre figuras advindas de diferentes contextos, nas quais ele via aproximações possíveis; além de buscar proceder ao resgate de um tempo (de uma parte do 'eu') perdido. Missão impossível, segundo Bergson: "Para o fisico, a mesma causa produz sempre o mesmo efeito; para um psicólogo que não se deixa enganar pelas aparentes analogias, uma causa interna profunda dá seu efeito uma vez, e esse jamais se reproduzirá''. 10 Em 1996, em seu livro Alguns, Bressane, plenamente consciente dos poderes abstratos do som, da voz e do traço, ao discorrer sobre o intérprete de música popular brasileira Vassourinha, por ex. disse em dois momentos: "Tem Vassourinha uma vozmosaico, voz-manta-de-detalhes, voz-ônibus, voz-metáfora... " e "Antigos sinais de inscrições rupestres (é a 'outra' voz) que indicavam, por ex., fonte d'água, caça, cataclismas ou tempestades, continham no sinal uma qualidade ou qualquer qualidade da coisa que representavam, mas tudo estava 'dito' na emoção transmitida pelo traço, pelo sinal, que era a condensação, em laconismo máximo, da idéia que queriam exprimir. É o mesmo com a voz. Na voz de Vassourinha, lá, está dito tudo: nos traços da voz estão o quê e o como! O que canta é o melhor repertório-critica da época. Agora, o como canta é para além da época, tal sua originalidade monstruosa" (p. 8 e 10) A personagem Mário Reis, no filme O Mandarim, também aborda essa questão, ao falar sobre Sinhô. O desenvolvimento dessa idéia, parece-me, culminou na definição de Noosmancia ("são as sugestões e intuições falantes da sabedoria, da inteligência, do conhecimento, da observação metódica e experimental. A forma sensível como signo de uma realidade invisível"), e no conceber o cinema dentro desse pensamento, como sistema de reflexão e prática similar às práticas divinatórias, concepção que se encontra em Cinemancia (2000: 77-85): " ... imagem imaginante, cinema é eterno deslimite, a fixação sensível e a revelação química de uma mancha-pensamento." Seja como for, esse procedimento é utilizado por ele já em 1969 no filme O anjo nasceu, ao introduzir algumas seqüências de um filme caseiro que registram um casal de noivos sendo fotografado em uma praça, imiscuído na diegese então em construção; e em 1970, em Família do barulho, filme no qual se vê cenas domésticas - captadas na adolescência de Julio servindo de contraponto à trama principal. Com a diferença que se os noivos parecem ter sido registrados ao léu, como em um documentário, as crianças, além de serem familiares de Julio, foram instruídas para 10. BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. In: Oeuvres. Paris: PUF, 1970, p. 132. INTERFACES COM OUTRAS PARTES 259 encenar. O documentário ficcionaliza-se; a ficção toma-se documental. Deve-se ter em mente aqui que Julio, desde suas filmagens amadoras na adolescência, documentava cenas domésticas, enquanto filmava pequenas ficções (tendo os primos como atores). Assim, a inserção na diegese de registros visuais anteriormente realizados por ele próprio (caso dos filmes acima mencionados e também de O monstro caraíba, de 1975, e de Miramar, de 1997), por outros cineastas (como em Tabu (de 1982), Galáxia Albina e Galáxia Dark (1991 e 1992)); ou ainda do uso de trilhas sonoras de filmes famosos (qual em O anjo nasceu e Galáxia Dark, por ex.), tomou-se uma recorrência na obra de Bressane. E, ao lado desse traço, note-se, foi sendo desenvolvida por Julio uma outra espécie de 'recriação' da criação. Um exemplo do que estou falando encontra-se em uma seqüência(s), conseguida numa espécie de 'documentário', realizado pelo próprio cineasta (chamado Sob o sol, sob o céu, Salvador, 1987), traduzida posteriormente como ficção, em outro momento (no filme O mandarim (1995)). Retomando aqui, a questão de o roteiro aparecer, inserido na própria diegese em Galáxias, pode-se dizer, como hipótese, que isso tem a ver com a imaginação material de Julio- mencionada anteriormente. Ele realiza no exercício prático (caso de Sob o sol, sob o céu, Salvador), o que será repetido posteriormente no filme O mandarim (seqüência do encontro de Sinhô com Mário Reis; na casa daquele. No exercício, ela foi realizada por Gilberto Gil e o próprio Bressane; no filme, por Gil e o ator que interpretava Mário Reis). O exercício pode ser visto como uma roteirização do que será feito posteriormente. Outro modo similar desse operar está em Agonia (1978), filme-homenagem a Limite, de M. Peixoto. A exacerbação desse proceder encontra-se em Galáxias- já que quase todos os procedimentos anteriormente empregados por Julio em sua filmografia ali aparecem juntos. Na Albina, pelo fato de um dos seus princípios construtores ser a união num mesmo plano de imagens provindas de diversas fontes: por ex., vê-se ao fundo imagens , e sons de Macbeth e de Moby Dick, à frente Giulia Gam sendo filmada por Bressane: princípio gerador do diálogo entre essas obras, de diferentes diretores e contextos históricos, que trazem em comum, à primeira vista, apenas o fato de terem sido realizadas nas décadas de 50/60: E também na Dark, na qual as personagens estão quase constantemente agindo em confronto com outra informação passada seja por Haroldo que oraliza poemas de Nerval e Novalis e um de sua autoria; seja por quadros; pelo som da cítara de Marsicano (esse último já presente no filme Sermões, 1989, de Bressane); pela trilha sonora e imagens do filme Lawrence da Arábia (de David Lean, 1962), entre inúmeros outros exemplos que poderiam ser mencionados. 260 ESTUDOS DE CINEMA Ainda, Haroldo dubla a si próprio, na seqüência (improvisada, segundo Julio) em que lê as Galáxias, sentado em um pátio, rodeado por colunas." A referência à dublagem foi-se fornecida pelo diretor, não é perceptível ao se assistir ao filme, mas, de qualquer forma, o espelhamento é criado também pelo fato do poeta ler em meio a falsas colunas gregas e, ainda, vestido com uma camisa vermelha que pode ser vista como 'figurino' de Galáxia Albina (a cor vermelha está muito presente nesse vídeo, nas várias referências ao sangue e à cor dos olhos da baleia Moby Dick, por ex.). Essa seqüência tem um caráter documental, realista (o poeta autor do texto lendo-o em meio à trama), que se confunde com o falso, a representação, o diegético dado seu figurino, cenário e dublagem. Além dessas características, tem-se o registro do fazer cinema (uma espécie de making of dentro do filme) -desde Matou a família e foi ao cinema (1969), passando pelas Galáxias, até Filme de amor (2005)- insistentemente em uso. Claquetes, o cineasta filmando, dando instruções aos atores, movimentando uma luz em frente da personagem Albina etc ... A obra e seu processo de feitura juntos no resultado final, assim como os excertos de um filme em outro, indicam um fazer reflexivo; na unidade e em sua globalidade a obra de Julio mantém constantemente em sua estrutura (a metalinguagem). Imagens (sonoro-visuais em ação) carregam altas cargas dé sentidos, evidentes e latentes. Pulsam. Por isso merecem ser vistas, em realização e realizadas; ter o seu caráter, por definição, duplo, percebido. E essas imagens são retomadas, para que uma pista, uma ponta de uma delas leve a outra obra do próprio cineasta, e desta a outras, apontando sua irmandade, como numa constelação. Parece querer dizer a este trabalho Julio. O projeto de Bressane cresceu, complexificou-se; foi muito mais longe do que somente expor o filme em realização, como forma de apontar o caráter duplo das imagens sonoras e visuais. O mar como intervalo; operações montadas por semelhança, não regidas pela subordinação umas às outras; e a assincronia presente por vezes nas seqüências, por ex., deixa exposto seu modelo de processo criativo, a estrutura de seu filme- em Miramar. Seu modo construtivo global é revelado, desde seu título m que vai e volta, r que volta e vai; ir e vir, mar e mirar, amar e rir (amor/humor) em espelhamento (a lembrar Ver navios, poema de Haroldo); sugere movimento e inconstância, diversidade (até certo ponto, posto que a narrativa acompanhe o amadurecer do jovem-cineasta) de ações/pessoas que se sucedem e que interferem ll. A voz de Haroldo havia sido gravada em som direto, mas, ao ver/ouvir a gravação ele não ficou satisfeitó com o resultàdo. Achou sua leitura meio 'travada'. Muita conversa rolou nessa hora e Haroldo resolveu ler o trecho novamente. Agora sim, havia oralizado de forma satisfatória. Julio resolveu então gravá-lo e foi desta gravação que o diretor recolheu a trilha para a seqüência. INTERFACES COM OUTRAS PARTES 261 na personagem, apesar desta, por vezes, aparentar ser imutável - como o mar e a paisagem. Proceder a semelhante já havia sido exposto em Galáxias. Na Albina vê-se a personagem em processo de anamorfose, sua cabeça viajando pelo/com o livro conforme havia sido predito, pelos autores no início do vídeo. Entretanto o que vemos/ ouvimos vai muito além do relato deles. Recebe-se ali uma noção do todo, mas as possibilidades de leitura abertas pelas imagens (sonoro-visuais) são inúmeras. "A montagem pictórica e a citação textual têm função semelhante: acabam com a leitura unívoca do texto", seguindo aqui W. Benjamin em Haxixe (2003: 61). Em Galáxia Albina é feita uma sintese da trama logo no seu começo, como em O anjo nasceu. Em ambos os trabalhos (assim como em Miramar) têm-se também a busca, o percurso da( s) personagem (ns), enquanto mote desencadeador da narrativa. Só que em Galáxias o desenrolar da trajetória vai abrindo n probabilidades de leitura, devido às suas múltiplas possibilidades associativas, o que não ocorre em O anjo nasceu, apesar de sua trilha musical riquíssima, de seus aspectos paródicos e de seu diálogo com o Cinema Novo. Vide-se, para todos os itens elencados, as seqüências finais do filme: a saída de cena dos dois bandidos, estrada afora; o quadro em negro com a diversificada trilha sonora rolando; a estrada de volta com os letreiros do filme. (Análises perfeitas desse filme e de Matou a família ... podem ser lidas no texto de Ismail Xavier: Estéticas do subdesenvolvimento)Y O anjo nasceu apresenta várias cadeias de leitura, mas não 'infinitas', como acontece em Albina e Dark. Ainda, nas Galáxias, a justaposição de elementos se passa dentro da mesma seqüência; enquanto em O anjo nasceu é estabelecida primordialmente de seqüência para seqüência, num procedimento mais 'fácil' de ser apreendido, posto que se esteja, enquanto espectadores, mais habituados ao processo de montagem eisensteiniano. Miramar é autobiográfico e alude à vida, à formação e ao primeiro cinema de Julio. Jorge Luis Borges indicou para este trabalho, essa pista de leitura da obra de Bressane ao afirmar que a tradição neo-barroca não vem do surrealismo, mas sim do abstrato, ou do concreto, conforme se queira denominar esse movimento. Julio parte da tradição dos concretos ao empregar as imagens sonoro-visuais enquanto metonímias. O que se quer apontar aqui foi que Julio parte da construção própria do abstrato e alça o neo-barroco, a modo ainda de Haroldo de Campos, ao fazer com que suas imagens mostrem também a si mesmas, dialoguem entre si, ou, curvem-se para dentro, recurvem-se, num espelhar para dentro. 12. São Paulo: Brasiliense, 1993. ESTUDOS DE CINEMA 262 Espelhos a espelhar de baixo para cima (ou, de dentro para fora)- I o momento - e de cima para baixo (de fora para dentro) - 2° momento - simultaneamente; céu e mar espelhando-se mutuamente: eis o neo-barroco instaurado nas imagens de Bressane. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. _ _ _ _ _.O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. BENJAMIN, W. O poema do haxixe. Lisboa: Aquariana, 2003. BERGSON, H. Essai sur 1es données immédiates de la conscience. In: Oeuvres. Paris: PUF, 1970. BRESSANE, J. Alguns. Rio de Janeiro: Imago, 1996. MセᄋN@ Cinemancia. Rio de Janeiro: Imago, 2000. 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O dragão da maldade contra o santo guerreiro: a encenação do desafio 1 SYLVIA REGINA BASTOS NEMER (FCRB) INTRODUÇÃO O SEGUNDO FILME de Glauber Rocha dedicado à temática sertaneja não é apenas um retomo às questões apresentadas anteriormente, em Deus e o diabo na terra do sol, mas aos mesmos personagens que reaparecem como efeito de encenação ou na imaginação do herói que surge como que por eiicarito para retomar a luta de seus predecessores. O monólogo de Coirana, proferido em uma das primeiras cenas de O dragão da maldade contra o santo guerreiro quando o personagem, junto com um bando de cangaceiros e beatos, invade a cidade de Jardim das Piranhas, lembra uma representação teatral: Eu vim aparecido. Não tenho família nem nome. Eu vim tangendo o vento pra espantar os últimos dias da fome. Eu trago comigo o povo desse ·sertão brasileiro e boto de novo na testa um chapéu de cangaceiro. Quero ver aparecer os homens dessa cidade, o orgulho e a riqueza do Dragão da Maldade. 1. O texto é parte de pesquisa desenvolvida no doutorado da ECO-UFRJ, com apoio da CAPES (através de bolsa de doutorado e bolsa de doutorado sanduíche na Universidade Paris X). ESTUDOS DE CINEMA 264 Hoje eu vou embora mas um dia eu vou voltar. E nesse dia, sem piedade, nenhuma pedra vai restar. Porque a vingança tem duas cruz. A cruz do ódio e a cruz do amor. Três vez reze padre-nosso, Lampião Nosso Senhor! Como espaço da dúvida, do impasse, do encontro catastrófico entre o antigo e o novo, o sertão, na representação de 1964, pode ter alguma relação com o modelo da tragédia. Mas o filme de 1969 é uma forma de expressão diferente. Marcado pelo descompasso entre uma aspiração e uma realidade desencantada, O dragão da maldade contra o santo guerreiro se situa numa encruzilhada entre os ideais estéticos do Cinema Novo e alguma coisa outra. DESAFIO E PERFORMANCE POPULAR (A PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO) Presentes em Deus e o diabo na terra do sol, a esperança, a utopia, a mistura de mito, de conto, de fábula e de história desaparecem em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, onde a ilusão, como observou Walter Benjamin a respeito do drama barroco, "deixa o mundo para se refugiar no palco" (BENJAMIN, 1982). Caracterizado pela retomada crítica de certos mitos do cinema, esse filme é uma espécie de continuação do primeiro grande sucesso de Glauber Rocha, voltado, nesse caso, para a figura de Antonio das Mortes, que reaparece para cumprir sua clássica tarefa de matador de cangaceiro. No centro da praça, cercados por cangaceiros, beatos e pelo povo da vila, Antonio das Mortes e Coirana andam em círculos, se encaram. Depois de alguns instantes, Coirana resolve falar: Tenho mais de mil cobrança pra fazer, mas se eu falar de todas a terra vai estremecer. Quero só cobrar as preferida do testamento de Lampião. Quem é homem vira mulher, quem é mulher pede perdão. INTERFACES COM OUTRAS PARTES 265 Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai pra cadeia. Mulher dama casa na igreja com véu de noiva na Lua cheia. Quero dinheiro pra minha miséria, quero comida pro meu povo, se não atenderem meu pedido vou vortar aqui de novo. Antonio responde ao desafio, lançando ao adversário uma pergunta provocativa : Tu é verdade ou é assombração? Diga logo, cabra da peste! Eu de minha parte não acredito nessa roupa que tu veste. Coirana responde com uma nova pergunta e uma nova ameaça: Primeiro diga você seu nome, fantasiado. Quem abre assim a boca fica logo condenado. Antonio diz o seu nome e em seguida desfecha o golpe final às ameaças do oponente: Pois aprepare seus ouvido e ouça. Meu nome é Antonio das Morte, pra espanto da covardia e desgraça da sua sorte. Mas uma coisa eu digo: no território brasileiro, nem no Céu nem no Inferno, tem lugar pra cangaceiro. Realizado antes da luta na qual o cangaceiro sairá mortalmente ferido, o duelo verbal entre Coirana e Antonio das Mortes lembra a prática do desafio, comum em algumas regiões do Nordeste. Também conhecido como cantoria, repente ou peleja, 266 ESTUDOS DE CINEMA 0 desafio é uma performance oral normalmente cantada que tem como base a improvisação. Idelette Muzart o caracteriza como "poesia do instante", já que aí a criação se faz no momento da realização do embate entre os dois poetas (MUZART, 1997: 27). Ao contrário do romance de cordel, no qual a criação é anterior à sua reprodução pelo folheto, o desafio, embora algumas vezes recriado por escrito e impresso nos meios tradicionais, é uma espécie de jogo verbal em que dois oponentes se enfrentam em falas alternadas, durante horas, às vezes durante dias, até que um, ao deixar o outro sem resposta, é considerado vencedor. A peleja entre dois cantadores toca em um ponto importante do desafio: a presença de um público que interfere na evolução da cantoria. Seja torcendo por um dos cantadores (o que intimida o adversário e precipita sua derrota), seja sugerindo glosas (cujo objetivo é testar a perícia dos dois poetas), a participação do público é fundamental para a completa realização da performance. No filme que ora se estuda, o diálogo com a cantoria se manifesta no início da narrativa, quando Coirana se apresenta ao povo de Jardim das Piranhas nos termos da tradição popular sertaneja. Trata-se de um verso rimado (citado no começo deste texto) por meio do qual o personagem entra na história, falando sobre sua origem e o motivo de sua aparição: Eu vim aparecido I não tenho família nem nome. I Eu vim tangendo o vento I pra espantar os últimos dias da fome ... Muito comum nas cantorias nordestinas, essa fala que antece o desafio serve para introduzir o tema e para que cada um dos participantes tenha oportunidade de exaltar sua reputação como cantador. À apresentação dos cantadores, segue-se o desafio propriamente dito. Neste, as ameaças e insultos são acompanhadas das provas de conhecimento dos cantadores e da capacidade dos mesmos em lidar com as modalidades e convenções do gênero. "Aqui, a noção de originalidade, tal como a veicula a cultura letrada, é quase totalmente ausente, sendo a criação não inovação, mas variação a partir de um modelo dado" (MUZART, 1997: 33). O importante nesse caso é a habilidade do cantador em aliar a criatividade ao já conhecido pelo público, que assim participa mais ativamente da performance. Em O dragão da maldade, a ênfase na participação do público é um aspecto que deve ser ressaltado. Considere-se, por exemplo, duas cenas já comentadas: a de Coirana em sua entrada no Jardim das Piranhas, e a do duelo entre este e Antonio das Mortes. Nessas cenas, a presença do povo, entoando cânticos e batendo palmas, lembra-se de que se está diante de uma representação, de uma performance. Quais são as características desse tipo de performance? Paul Zumthor as analisa ressaltando a importância da voz e dos gestos dos participantes, por um lado, e a situação de escuta por outro (ZUMTHOR, 1983). Ação dupla entre emissor e receptor, a performance oral se processa a partir de uma série de meios (o modo de recitação de certos cantos impostos pelo costume, o ritmo lento ou rápido de uma melodia, as INTERFACES COM OUTRAS PARTES 267 repetições e os gestos que a acompanham) que formam um contexto, uma situação de comunicação culturalmente motivada. Em relação a O dragão da maldade, a chegada de Coirana ao. Jardim das Piranhas dá lugar a uma manifestação espontânea, do povo que sai às ruas para acompanhar o cortejo liderado pelo cangaceiro e pela Santa. Ao som de cânticos que lembram os ritmos africanos, os líderes seguem à frente, dançando e balançando estandartes com as imagens de São Jorge e do Dragão. Logo em seguida vem o povo cantando e batendo palmas. A perfomance segue seu curso até o centro da cidade onde, acompanhado pela Santa e por Antão, Coirana se apresenta ao povo e aos poderosos do local. O monólogo proferido pelo cangaceiro reporta-se a Lampião, citado nos versos da música entoada durante a procissão, e na aula do professor que, na praça da cidade, pouco antes da entrada do cortejo, lembrava a seus alunos as datas importantes da história do Brasil. Repetido inúmeras vezes durante as primeiras cenas do filme, o nome de Lampião reforça o sentido não oficial da manifestação, dirigida por Coirana. E mais: estreita os laços de pertencimento do povo com o seu passado. Dedicada à memória do cangaceiro morto em 1938 (como lembrou o professor), a performance (para se usar o termo de Zumthor) liderada pelo cangaceiro aparece como um momento de comunhão coletiva. Sem data ou local programados, ela surge de repente, espontaneamente, no meio do povo como resposta às vozes e aos gestos que a lideram. Neste sentido, o povo que faz parte da performance contribui tanto quanto o intérprete à sua realização. "A poesia é assim aquilo que é recebido: mas sua recepção é um ato único, fugitivo, irreversível... e individual, pois duvida-se que uma mesma performance seja experimentada de maneira idêntica por dois ouvintes" (ZUMTHOR. 1983). Colocando em relevo procedimentos correntes nas sociedades tradicionais, o filme procura destacar a relação entre os protagonistas da performance e os que nela estão envolvidos. Nesse sentido, o povo que participa cantando, dançando, batendo palmas, não é apenas objeto da representação, mas o sujeito de uma performance que remete ao universo das tradições orais, no qual a base da participação do indivíduo é o pertencimento a uma coletividade, a um passado comum. Nesse contexto, ou seja, no contexto das tradições compartilhadas, Zumthor chama a atenção para o caráter impessoal da voz que profere o canto, e para a relação de reciprocidade existente entre o intérprete e o público. Essa é a característica da performance protagonizada por Coirana que tem como contraponto o desfile de Sete de Setembro mostrado na seqüência seguinte, na cena do encontro entre Matos e Antonio das Mortes. Extremamente formal do ponto de vista da música, dos gestos, das vestimentas dos participantes, na comemoração do Sete de Setembro, o que chama atenção é o comportamento automatizado dos que executam a marcha e a passividade dos que a 268 ESTUDOS DE CINEMA assistem. Em contraste com a manifestação de Jardim das Piranhas, focada sobre a liberdade dos corpos, dos gestos, o desfile da Independência expõe os símbolos do poder, o mundo da ordem representado pelos alunos uniformizados, empunhando bandeiras e marchando em movimentos rigidamente coordenados ao som de uma banda militar. Tudo ali é marcado, controlado, ordenado segundo regras estabelecidas. Nesse jogo de posições defmidas, o delegado Matos, representante do interior em visita à capital, acompanha o desfile entre as autoridades do alto de uma sacada, enquanto Antonio das Mortes, do outro lado da ma, assiste à marcha misturado no meio do povo. Logo os dois estarão juntos para dar continuidade ao duelo entre os poderosos de Jardim das Piranhas e os seguidores do cangaceiro e da Santa. Mas o fora-da-lei, contratado pelo delegado para colocar fim às desordens provocadas pelo bando de Coirana, acaba mudando de lado. Antes, porém, assiste-se a um longo processo de transformação. Ponto de virada da história do personagem, o duelo contra Coirana levará Antonio das Mortes à revisão de seu papel de matador. Mas a idéia de luta, de luta encenada como a que caracteriza o desafio, continuará informando a estrutura do filme, cujas imagens fortemente estilizadas lembram este trabalho que seu objeto é a própria representação. O WESTBRN VISTO POR GLAUBER ROCHA (0 TEATRO DA VIOLÊNCIA E O NOVO ESPECTADOR) Mo filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, a preocupação com o campo da representação está associada a um diálogo com o western que se caracteriza pela extração das imagens do discurso cinematográfico habitualmente aceito e sua transformação, a partir de elementos da cultura popular, em outras tantas interrogações fundadoras. No espírito do western, Glauber reencontrou o sertão brasileiro, inaugurando um cinema agônico, onde a violência é sentida como um processo. Mas a violência em O dragão da maldade não diz respeito (pelo menos de forma determinante), como em outros trabalhos do cineasta, à dialética da montagem. Nesse filme, ao contrário, por exemplo, de Deus e o diabo, fortemente influenciado pelo princípio eisensteiniano do choque (AUMONT, 1996 : 111-29), a violência se concentra no plano, na mise-en-scene. lvana Bentes chama a atenção para esse aspecto comentando sobre a teatralidade de Terra em transe e do Dragão e sua radicalização nos filmes posteriores, feitos fora do Brasil, O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas (BENTES, 1997: 43). No último trabalho realizado pelo cineasta antes de sua partida para o exílio, o teatro de Brecht aparece como referência. Admirável adaptação das teorias do dramaturgo alemão ao contexto brasileiro, O dragão da maldade transpõe para a realidade do Nordeste o efeito de distanciamento brechtiano, provocando, por meio INTERFACES COM OUTRAS PARTES 269 do impacto visual e auditivo das cenas, uma ruptura com aquilo que se admite como regra dos filmes de suspense e ação. Se o cinema convencional visa a um efeito de realidade pelo qual o espectador é pego pelo seu desejo de ver, de saber e de desfrutar da ação, o "distanciamento" consiste em frustrar esse desejo pela redução do movimento, pela apresentação de um texto e de atores em uma paisagem, pela total exterioridade das figuras e do lugar. A ocupação do espaço, a entrada e apresentação dos protagonistas, sua participação na ação, a figura do coletivo e a sonoridade transgridem as convenções do gênero a que, a princípio, o filme de Glauber parecia se vincular. A violência no western clássico surge como um dado natural da ação, não do pensamento. Nesses filmes se age de forma violenta contra a lei, na defesa da lei e os personagens sofrem a violência ou agem violentamente sem que o espectador sofra qualquer sobressalto moral por isso. Pois quem é bom, mata em nome da lei, e quem é mau mata em nome da sua "maldade" ou sentimento de vingança individual. (BENTES, 2003) Glauber transcende essas convenções, mas as transcende ao mesmo tempo em que as enriquece com uma mitologia própria. É isso, por exemplo, que está em jogo em relação ao personagem de Antonio das Mortes: (... ) ele está ligado à sua própria tradição cultural que é a de um matador, e ele se reporta também a toda uma tradição do western (... )Em um western americano existe já urna convenção estabelecida. Quando o herói aparece nós já sabemos quem ele é por seu cavalo, por sua roupa: ele já porta todas as informações. Aqui, o herói não pode portar informações porque nós não temos tradição cinematográfica ou literária que fale disso. E isso talvez seja um limite para o cinema (DELAHAYE, KAST & NARBONI, 1969: 34). Nesse comentário, Glauber se refere a um herói estereotipado, cujo modelo está sujeito a infinitas repetições. O herói de seu filme não pertence a essa linhagem, embora se reporte a duas tradições enraizadas na memória popular: a do western e a dos heróis imortalizados nas narrativas que circulam pelo sertão. Não há, no entanto, o envolvimento do espectador, como acontece nos filmes do gênero. Daniel Dayan, em sua análise de O tempo das diligências (Stagecoach, de John Ford, 1939) comenta sobre esse envolvimento informando a este trabalho sobre vários procedimentos de enunciação voltados para tal objetivo, ou seja, programar o espectador (1984: 137-49). Em Stagecoach, o desejo de conhecer o verdadeiro caráter do per::.onagem é uma estratégia para manter o espectador interessado no desenrolar da história. Em contrapartida, o que O dragão da maldade estabelece com o espectador é menos uma relação de suspense do que uma relação de crítica face às imagens. A violência 270 ESTUDOS DE CINEMA aqui não diz respeito à trama. Ela se endereça ao espectador que, diante do inusitado concerto de formas, cores e sons, reage de modo diferente do espectador convencional. Quanto ao enunciador, seu papel não é o de afetar emocionalmente o espectador, levá-lo a se envolver com a história, com os personagens, mas de provocá-lo em suas convicções, como ocorre, por exemplo, na cena da invasão do Jardim das Piranhas pelo bando de cangaceiros e beatos seguida pelo desafio de Coirana aos poderosos locais. Citada no começo do presente texto, essa cena mostra Coirana na condição de desafiante, porém, sua atuação não lhe permite cumprir os protocolos do desafio. Ocorrido na praça central da cidade, o desafio protagonizado pelo cangaceiro é precedido por um cortejo em que os movimentos dos participantes lembram experiências rituais. Entre estes destacam-se a Santa, o Negro Antão e Coirana, a quem caberá a tarefa de falar aos habitantes do vilarejo. A introdução de elementos da esfera ritual na cena do desafio rompe, antes mesmo do seu início, com o efeito de violência que caracteriza esse tipo de representação. A cena é montada como uma espécie de teatro ao ar livre. Como se estivessem em um palco, os personagens principais (a Santa, o negro, o professor, o delegado) entram e saem do campo, caminhando silenciosamente de um lado para o outro ao redor de Coirana, que no centro da praça aguarda o momento de falar. A câmera fixa, posicionada frontalmente para os personagens, por um breve momento se desloca em panorâmica sobre a praça mostrando o povo, que assiste calado ao episódio, e o coronel que, apoiado em seu capanga, procura entender o que se passa. O plano é interrompido, dando lugar a um quadro fixo em que Coirana, entre a Santa e o negro, fala ao povo proclamando villgança aos seus inimigos. As palavras do cangaceiro são endereçadas aos representantes do mal. Mas não há oponente direto. Não há violência explícita. Não há ação nem suspense. Não há vitória nem derrota. Marcado pela ausência de movimento, pelo excesso de gestos, pela ênfase na palavra declamada, o desafio de Coirana aparece como uma recusa às regras do desafio, ou melhor, da representação cinematográfica do desafio. O modo como a cena é montada sugere uma aproximação com a técnica desenvolvida pelos poetas populares durante suas disputas poéticas. Uma das práticas correntes no desafio de cordel é a apresentação dos dois participantes antes de iniciada a disputa. Dirigida ao público mais do que ao próprio adversário, a apresentação é o momento da performance em que os poetas falam de suas proezas ao mesmo tempo em que insultam o oponente chamando-o de fraco, covarde, como, etc. Dependendo da capacidade de improviso dos poetas, os insultos se estendem, o público se envolve, dá risadas, apóia um dos cantadores, enfim, entra no jogo. Na verdade, tudo se passa mesmo nesse nível, do jogo, do duelo verbal, da violência simulada, o que remete este presente trabalho ao desafio de Coirana. INTERFACES COM OUTRAS PARTES 271 Em O dragão da maldade, o diálogo com uma instância de representação estranha ao universo das convenções cinematográficas provoca no espectador um efeito estranhamento, uma desorientação em relação à história contada. Trata-se de um western? Trata-se da história de um vilão que vai se transformar em herói? O filme é isso? O filme é só isso? O que é o filme? CONCLUSÃO Tentar descrever uma obra tão rica em referências quanto a que se está analisando é tarefa quase impossível. Um ponto, entretanto, parece a este trabalho, muito claro (praticamente todos os autores que escreveram sobre o filme o comentaram embora sem uma análise específica à questão): o uso do cordel como elemento articulador da narrativa. Isso tanto em relação a O dragão da maldade quanto em relação a Deus e o diabo, onde a história narrada visa à repetição da história mostrada por meio das imagens. Aqui, entretanto, não é isso que está em jogo, mas um recurso à tradição popular do cordel, no caso, ao desafio de cordel, visando modificar o sentido do desafio representado. Ponto alto dos filmes de faroeste, o desafio constitui um elemento de referência para Glauber Rocha, que o representa, representando outra tradição: a do desafio popular. Não se trata, portanto, de representação, mas de representação da representação; uma espécie de teatralização do desafio. Por meio do cordel, Glauber Rocha coloca em destaque o artifício da representação, provocando a desmontagem do espetáculo convencional e as convicções do espectador em relação ao seu conteúdo. É nesse sentido que Brecht é apropriado pelo cineasta; uma apropriação que passando ao largo do próprio Brecht (em certos filmes, critica Glauber, os atores ficam imóveis por vários minutos a fim de provocar um incômodo no espectador) se dirige para tradições de hoje que, por sua vez, são também desmontadas e apropriadas com novo significado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jacques. "Eisenstein chez les autres" in AUMONT, Jacques (dir.). Pour un cinéma comparé- influences et répetitions. Conférences du College d'histoire de I 'art cinématographique, Cinématheque Française, 1996. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 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Introduction à la poésie ora/e. Paris: Seuil, 1983. 300 torsos torneados RAMAYANA LIRA DE SousA (UFSC) O SITE Internet Movie Database oferece alguns números a respeito de 300, de Zack Snyder: • • • • • • • Lançado em março de 2007 117 minutos de duração Filmado a 50 e 150 frames por segundo 1523 cortes 1006 planos com efeitos visuais Mais de 500 mortes A palavra Esparta e seus derivados são citados mais de 70 vezes, ou seja, uma vez a cada minuto e meio • 300 torsos torneados. É a evidente ortopedia dos torsos: nus e musculosos, desenhados nos corpos dos atores, através de treinamento espartano por seis semanas antes das filmagens. E ainda a ortopedia digital: desenhados e redesenhados pelos tratamentos de imagem. Baseado na graphic novel de Frank Miller, o filme de Zack Snyder tem como paradigma narrativo a história- real, mas aqui fantasiada- da Batalha de Termópilas, no ano 480 a.C. Tomando partido por Esparta, a débil trama acompanha o rei Leônidas e seu grupo de 300 homens defendendo sua terra contra o exército persa de Xerxes. A despeito dessa tênue linha narrativa que celebra democracia e liberdade, o filme se torna uma festa visual de tons fascistas permeada por jingoísmo, orientalismo, machismo, homofobia e eugenia. Busca-se neste artigo entender 300 como instância paradigmática da ambígua direção que toma a cultura contemporânea: de um lado, a celebração dos simulacros midiáticos espetaculares e a comunicação imediata; do outro, a fascinação com o real 274 ESTUDOS DE CINEMA abjeto do corpo, da dor, da violência. 300 desafia o olhar do(a) espectador(a) contemporânea ao dar corpo a imagens de exclusão/inclusão da "vida nua". O cinema como arte e entretenimento sempre esteve nessa encruzilhada: como lidar com sua natureza fluida, erradia e ao mesmo tempo entorpecente e transgressiva; disciplina do olhar e instância de libertação do corpo. E o uso da conjunção e não é acidental: não se trata de escolher uma ou outra função/qualidade, mas de entender o que é esse fenômeno que engaja corações, corpos e mentes no desenrolar de imagens em movimento. Ver o cinema como narrativa e visibilidade, perceber a tensão entre o poder da apresentação artística e a doxa da representação, olhando a fundo esses elementos constitutivos do fílmico, observando os resíduos representativos que persistem em cada obra, buscando o visível que excede à narrativa- essa tem sido uma importante colaboração de Jacques Ranciere para os estudos de cinema. O regime da visibilidade, tão caro à arte cinematográfica, não se desenvolve como "contrário", excludente da estrutura narrativa, mas por causa dela, em contradição a ela. A relação entre os dois elementos é, ao mesmo tempo, colaborativa e conflitual, uma relação às vezes latente, às vezes violenta, mas que dá ao cinema muito de sua força. O contraste entre o relativo fechamento do significado dentro da narrativa e a abertura do visível acontece na própria imagem, e não necessariamente no intervalo entre elas. Esses dois pólos não produziriam essencialmente dois tipos de imagem, mas aspectos conflitantes de uma mesma imagem. Dois filmes que se misturam em um só: um que conta uma história; outro que nos dá a experiência visual. Em 300 é possível observar que a progressão dramática do esquema Aristotélico é traída quando a câmera aprende informações e evoca sensações que vão, ao mesmo tempo, contra essa progressão e em direções além do planejado pelos autores da obra, e que têm pouco a ver com a narrativa. Tal tensão fica ainda mais evidente quando se pensa, com Leo Bersani e Ulysses Dutoit, como a narratividade tem caracterizado a cultura humanista ocidental. A narratividade, segundo os autores, sustém o glamour da violência histórica. Ela produz uma noção. de violência como algo isolado e identificável. A tradição humanista liberal nos treina para localizar a violência historicamente, como uma excrescência, uma erupção no plano de fundo de uma experiência humana geralmente não violenta (os autores falam de uma "cumplicidade" entre violência e narratividade). Sob este ponto de vista, a violência poderia ser compreendida através das circunstâncias em que ocorre. A violência é então reduzida a uma trama, uma cadeia de eventos, que pode ser isolada, entendida e, quem sabe, dominada e eliminada. Ao se condicionar a pensar na violência em termos da narrativa, espera-se que esse domínio aconteça como resultado do poder pacificador das convenções narrativas, como, por exemplo, começos, explanações que vêm no meio da história e fins climáticos (BERSANI & DlJTOIT, 1985: 47-51). INTERFACES COM OUTRAS PARTES 275 A cultura de muitos tende a seqüestrar a violência, imobilizando e centralizando os atos históricos violentos e as produções estéticas. As relações atrofiadas dessas imagens "privilegiadas" de violência com atividades adjacentes bloqueiam a possibilidade de se relacionar com tais atividades e limitam a mobilidade e fluidez de nossa atenção e interesse. A crítica da violência, na medida em que esta é concebida em termos de cenas que podem ser privilegiadas, pode acabar por promover a redução e esvaziamento que ela própria procurava expor ou afastar. Assim, a recepção da violência gravita entre estes dois modos de atenção: uma visão narrativa que organiza as formas como elementos de uma história, e uma visão mais agitada e errática, que substitui a integridade estática e a unidade do ser por fragmentos em constante mutação. Dessa forma, ao perceber que de tão implicados que somos na violência não temos escolha entre o violento e o não violento, Bersani e Dutoit propõem que nos restam, de um lado, os deslocamentos de um desejo móvel (dislocations of mobile desire) e, do outro, uma fixação destrutiva pela violência (p. 22). O que procuram os autores são estratégias de ver a violência que não coagulem a recepção na fascinação imóvel e potencialmente fascista com a violência, mas formas de visão que façam deslizar o desejo, empurrando-o para outras experiências não-miméticas. Daí o desafio de falar dos corpos de 300. São corpos presos a uma narrativa que dialoga claramente com estruturas do videogame. A trama se resume a uma série de batalhas nas quais os protagonistas são levados a confrontos cada vez mais complexos, como se estivessem "passando de fase", até chegar ao inimigo final (Xerxes). A aproximação com os videogames fica ainda mais patente ao se observar que os efeitos especiais são onipresentes: no tratamento dos corpos, na distribuição da luz e da sombra, no trabalho da cor, na organização da temporalidade dos movimentos, na definição dos lugares que servem de fundo. O paradigma fotográfico mescla-se à imagem fabricada, ficcionada. Falta-lhe a interatividade, é certo, mas a estrutura formal e sua apresentação em imagens são bastante familiares para os usuários de Playstations e Xboxes. Planos inteiros e planos médios aproximam o espectador dessas batalhas, explicitando a regra do jogo: fique atento para como se elimina, não um a um, mas às centenas, os antagonistas. O que poderia restar da trama, sejam as articulações políticas da Rainha Gorgo, sejam as seqüências do acampamento de Xerxes, não passa de "planos de cobertura" as imagens cinematográficas não interativas nos games que constituem um interlúdio entre a "verdadeira ação". Assim, o filme progride com o exército de Leônidas, marchando por sobre tudo, impulsionado pelo desejo de triunfo final que vem em forma de martírio heróico. É nessa narrativa acumuladora de cadáveres que se tem corpos de torsos perfeitos, esses dos espartanos no filme de Snyder. Sim, o filme é um balé supermasculinizado, uma celebração de decapitações, abdómens 、・ウョセ。ッL@ empalamentos e monstruosidades. Talvez seja um dos filmes mais agressivos na 276 ESTUDOS DE CINEMA memória recente: a maior parte das falas é gritada ou grunhida por entre os dentes, os problemas se resolvem a punhaladas. O corpo masculino é uma festa para os olhos: seminu, suado, sem pêlos, liso, pétreo. Sem esquecer, vale repetir, que é uma imagem ciborgue: meio mecânica, meio digital, figurando o macho perfeito, o corpo construído - em inglês, ainda mais flagrantemente, pelo uso da expressão body-builders. Há um óbvio débito com os filmes de gladiadores dos anos 1950 e 1960, os chamados sword and sandals movies, 1cujo maior atrativo eram os homens de peito nu, em sumaríssimas saias, não raro, vermelhas, flexionando os músculos e franzindo o cenho enquanto lembravam de suas falas. Vários dos atores protagonistas destes filmes eram fisiculturistas, dando corpo ao movimento de cultura física responsável por grande parte da reinvenção do corpo masculino após a Segunda Guerra Mundial. Havia, no entanto, nesses antecessores de 300, uma relação com a cultura gay estadunidense, já que publicações de fisicultora associadas ao público gay (por exemplo, Physique Pictorial) emprestavam não apenas a estética do corpo construído, mas também os modelos que se tomavam atores nesses filmes. Esse pertencimento a uma subcultura não parece ser característico de 300. Não há espaço para 'deslizamentos' do desejo: as imagens dos corpos produzem sujeitos heterossexuais que desprezam os "boy lovers" atenienses. Se, por um lado, 300 mostra os torsos torneados que atraem, entre outras, a platéia adolescente masculina através de corpos masculinos violentos e sexy, por outro parece dizer para essa mesma platéia que não há problema nenhum em ser homofóbico. A tensão entre· visibilidade e narrativa permite ver que 300 quer ser um filme "sarado": corpinho bem definido, sim, mas nunca "doente". Excitar com as imagens do corpo desejável, mas negar narrativamente que esse desejo seja apropriado pelo "patológico" homossexual. Presentear com a imunização contra o corpo teratológico. Pois é no corpo dos inimigos que se apresentam as deformidades mais evidentes. Os traidores, os corruptos, os maus, todos possuem no corpo as marcas da vilania de suas personalidades. Para isso têm servido as figuras dos monstros em nossa cultura: para amalgamar os dejetos do não-aceito: sexualidade, nacionalidade, classe. A fúria uterina da vampira lésbica, o exílio forçado de Frankenstein, a fala raptada de Caliban são exemplos dessas produções culturais que redefinem um outro que não pode ser humano, que é menos que humano. De forma semelhante, o corpo 'feminilizado" é destruído em nome da masculinização do universo diegético. A curvilínea rainha Gorgo, única personagem 1. Os filmes de "espadas e sandálias" (sword and sanda[), também conhecidos por Peplum, em referência às curtas saias utilizadas pelos personagens, constituíram um gênero cult nas décadas de 1950 e 1960, explorando a cultura física e temas históricos relacionados a gladiadores e semideuses gregos, como Hércules. INTERFACES COM OUTRAS PARTES 277 feminina com falas, é estuprada em episódio interpolado à graphic novel de Frank Miller. Mas talvez a mais representativa instância de problematização desse corpo "feminilizado" esteja na caracterização de Xerxes e seu séqüito. A drag queen criada no corpo de Rodrigo Santoro é diametralmente oposta à "masculinidade" de Gerard Butler. Xerxes é, literalmente, produzido "como maior do que a vida", balangandãs dourados adornando sua figura bem-defmida, mas esguia em comparação aos guerreiros espartanos. Seu encontro com Leônidas é praticamente uma sedução, com promessas de glória sussurradas ao pé do ouvido. A ambígua caracterização de Xerxes, ao mesmo tempo tão lindo e tão decadente, sedutor e autoritário, acaba, porém, na afirmação de sua condição de estrangeiro. Comandante das hostes bárbaras que se engargalam nas Termópilas, é preciso desbancá-lo. Afinal, estes são tempos em que o sentido de comunidade se afasta, fecha-se ao reconhecimento do outro, reforçando a fortaleza que o isola do contágio do outro. A estrutura que determina a eliminação do inimigo remete às preocupações de Roberto Espósito a respeito da imunização na política contemporânea. De acordo com o filósofo italiano, tem-se, de um lado, todo o aparato institucional, a partir do Estado, das formas jurídicas. De outro, toda a organização territorial, as comunidades étnicas identificadas por um elemento comum, seja o território, a língua, a religião, a cultura. Estes grupos, culturalmente ou territorialmente definidos, tendem a se fechar, a se imunizar com respeito ao exterior. Em entrevista ao si te Educa, Espósito explica que o eu de fato traz consigo um caráter de constante desenraizamento, que a modernidade procurou apagar com uma dialética destrutiva do eu e do outro que continua a determinar a dinâmica sociopolítica em grande parte do mundo. A idéia do estrangeiro assume conotação de perigo, de risco, não só social, mas também simbólico e médico. De onde vem a percepção "imuno-lógica" da relação desse outro com a promiscuidade, a contaminação, o contágio com o imigrante, a idéia do risco jurídico de ataque à propriedade. Esta corrente de metáforas do "outro", como infecção que vem do exterior, tem efeitos que se revelam destrutivos do outro, mas também autodestrutivos. Em 300 não é só a Esparta, diegética, mas os corpos são imunizados desse contato com o outro, o estrangeiro, o medo do que vem de fora. São os escudos que rechaçam o contato/contágio. Metáforas para um corpo que cada vez mais se fecha em si mesmo. Corpos sarados. 300, acredito, participa da construção de um imaginário que retoma/vinga a biopolítica no sentido foucaultinano. Se é possível pensar a biopotência em termos positivos, o filme obriga o retomo ao sentido primeiro. Peter Pal Pelbart entende o biopoder, a partir de Foucault, como uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, sobre a população enquanto massa global afetada por processos de conjunto. Por outro lado, fala de uma inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault: biopolítica não mais como o poder sobre a 278 ESTUDOS DE CINEMA vida, mas como a potência da vida. A biopolítica como poder sobre a vida tomaria a vida como um fato, natural, biológico, como vida nua, segundo Agamben, como sobrevida. Em contrapartida, a biopolítica concebida como potência de variação de formas de vida equivale à biopotência da multidão, tal como referida acima. 300 figura a vingança da biopolítica, imaginando o seqüestro do corpo pela norma. Apresenta, assim, uma forma de divisão do sensível que pode ser entendida a Os atos estéticos configuram experiências que partir das formulações de r。ョ」ゥエセイ・N@ "ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas de subjetividade política", (RANCIERE, 2005: 11) sendo a política "a atividade que tem por princípio a igualdade · e o princípio da igualdade transforma-se em repartição das parcelas de comunidade ao modo do embaraço", um "embaraço que é próprio da política" (RANCIERE, 1996: 11). Tal concepção do sensível remete a um regime de verdade, que traz a estética como base para a política: uma "partilha do sensível", isto é "uma partilha de espaços, tempo e tipos de atividades", que torna visível quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce (RANCIERE, 2005: 16). Os enunciados estéticos (ou políticos) fazem efeito no real por meio da definição de modelos de palavra ou ação e de regimes de intensidade sensível, traçando mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível e relações entre os modos de ser, fazer ou dizer, definindo variações de intensidade sensíveis, das percepções e capacidade dos corpos. O estético, assim, não toma o lugar do político. Não se trata exatamente de uma estetização da política que se opõe à politização da arte, já que ambas, arte e política, estão engajadas na abertura ou no reforço do consenso de que há uma única realidade, um espaço, um tempo: o espaço tempo do mercado. A ópera que é 300 (pois é tão historicamente verossímil quanto a Aída de Giuseppe Verdi e produz tanto "efeito de realidade" quanto os estertores de Violeta em La Traviata) nos põe diante dessa tarefa que nunca acaba, que nos precede e nos ultrapassará na sua importância e urgência para os modos de ver e de viver. A tarefa de ver a produção da cultura dando corpo ao que se faz como pÓlítica, dividindo espaços entre os que podem ser e aparecer e os que não. Tomando visíveis essas formas de inclusão e exclusão, o cinema se revela em sua ambigüidade. Narrativas que imobilizam o olhar e fetichizam a violência, corpos que modelam - mas nunca modulam- uma masculinidade. Talvez seja este o grande desafio. Ver além dessa modelagem e buscar nas imagens possibilidades de deslizamentos. Corpos que se mostram e se contam de formas diversas. INTERFACES COM OUTRAS PARTES 279 BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, G. H orno saccer: o poder Soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, UFMG, 2002 BERSANI, Leo; DUTOIT, Ulysses. The Forms ofViolence: Narrative in Assyrian Art and Modern Culture. New York: Schocken, 1985. ESPOSITO, Roberto. Jmmunitas - protección y negación de la vida. Buenos Aires: Arnorrortu, 2005. _ _ _ _ _ . "Recuperemos a comunidade". Entrevista disponível em: <http:// www.cidade. usp.br/educar/?2003/modl/esposito>. Acesso em 1o mar 2008. INTERNETMOVIE DATABASE. Disponível em www.imdb.com. Acesso em 17 junh 2008. PELBART, Peter Pàl. "Biopolítica e biopotência no coração do império". Multitudes. Disponível em <http://multitudes.samizdat.net/article.php3?id_ article=41>. Acesso em l 0 mar2008. RANCIERE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. _ _ _ _ _ .Lafablecinématographique. Paris: Éditions du Seuil, 2001. VISUALIDADES Recursos poéticos em Amor à Flor da Pele GENILDA AzERÊDO (UFPB) AMOR À FLOR DA PELE (2000), de Wong Kar-Wai, é um filme que se impõe como objeto estético, construído a partir de signos que chamam inicialmente a atenção sobre si próprios (em vez de primeiramente apontarem para uma realidade fora deles). Dentre os vários recursos poéticos utilizados no filme, destacam-se sobretudo aqueles associados à plasticidade; ao movimento das imagens; à utilização da música no processo de revelação da interioridade dos personagens; ao investimento, de um lado, na elipse, e, de outro, na reiteração e redundância. Como tentaremos mostrar ao longo do texto, a ênfase nestes aspectos será responsável pelo adensamento da ambigüidade e flutuação de significados, de modo a demandar do espectador um olhar demorado e repetido. Falar em função poética da linguagem significa trazer à tona as considerações de Roman Jakobson (1995) e Jan Mukarovsky (1978), contidas em "Lingüística e poética" e em "A denominação poética e a função estética da língua", respectivamente. Em ambos os textos, há uma preocupação por parte dos teóricos em caracterizar e defmir a função poética ou estética, levando-se em conta alguns fatores: primeiro, a função poética não se restringe à linguagem verbal; como diz Jakobson, "numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda teoria dos signos, à semiótica geral" (199 5: 119). Segundo, a função poética deve ser considerada sempre em diálogo com as outras funções, inclusive numa relação de interdependência para que seu significado possa ser enriquecido, adensado. Terceiro, e sobretudo com base na inter-relação entre as funções, a função poética se define pelo seu modo de inserção no contexto. Nas palavras de Mukarovsky, "contrariamente ao que acontece na língua comunicativa, há na poesia uma destruição da hierarquia das relações: naquela, a atenção concentra-se na relação, importante do ponto de vista prático, entre a denominação e a realidade; nesta, é a relação entre a denominação e o contexto 284 ESTUDOS DE CINEMA abrangente que está em primeiro lugar" (1978: 161 ). Considerando tais fatores, chega a ser redundante falar em função poética quando tratamos do objeto artístico, uma vez que é esta função a responsável pelo próprio status desse objeto enquanto artístico; assim sendo, estará presente em todo texto que se defina como tal. Porém, é através do processo de análise que a função poética pode não apenas ser desnudada e ressaltada em relação às demais, mas também revelada em seu modo de concretização; sobretudo no presente caso, quando se trata .de um filme em que paradigma e sintagma, ou metáfora e metonímia, são tão eloqüentes em suas justaposições e modos de articulação e montagem. Quando pensamos em função poética no cinema, lembramos imediatamente de cineastas, que não só desenvolveram um "cinema de poesia" (para usar a expressão de Pasolini), mas que também refletiram teoricamente, metalingüisticamente, sobre o que seria esse cinema dito poético: além do próprio Pasolini, nomes como Eisenstein, Epstein e Bufiuel constituem referências. 1 Porém, para além de uma definição do cinema de poesia, quando nos debruçamos sobre as reflexões desses cineastas, concluímos que suas preocupações e argumentos contribuem de modo decisivo para o aproveitamento e experimentação das próprias potencialidades e peculiaridades da linguagem filmica. O texto "Cinema: instrumento de poesia", de Bufiuel, constitui exatamente uma reivindicação veemente para que o cinema assuma a sua vocação para a produção e criação de textos que "ampliem a realidade tangível", através sobretudo da exploração da "afetividade presente nos objetos" (1983: 33 7) e da "articulação entre o fantástico, o misterioso e a realidade cotidiana", a fim de tomar visíveis os "problemas fundamentais do homem moderno" (idem: 337). A utilização do cinema como expressão artística, como instrumento de poesia, para Bufiuel, deve ser compreendida "com todas as possíveis implicações desta palavra [poesia], no sentido libertador, de subversão da realidade, de limiar do mundo maravilhoso do subcónsciente, de inconformismo com a estreita sociedade que nos cerca" (idem: 333-4). Em termos específicos da linguagem fílmica, o poético vai encontrar セ。エ・イゥャコ￧ ̄ッ@ em recursos diversos, a exemplo de um tipo de montagem que valoriza, ão modo de Eisenstein, a colisão e o conflito, a chamada montagem expressiva. Para Eisenstein, é a tensão, "o conflito [que] está na base de toda arte" (1992: 133): conflito entre planos, volumes, profundidades, temporalidades; conflito entre o evento e sua duraÇão; conflito entre imagem, situação ótica e sonoridade (idem: 134). Não é à toa セオ・@ na raiz deste raciocínio está o princípio representacional da cultura japonesa, セクイ・ウッ@ pelo ideograma, pelos haikais e seus efeitos imagísticos. L ·Na área de cinema (d)e poesia, é importante registrar as contribuições, no Brasil, de pesquisadores {' Vll!iados, a exemplo de CANIZAL (1996), MACIEL (2004), SAVERNINI (2004) e AGRA _ (2005). Ver referências bibliográficas. VISUALIDADES 285 Um outro recurso que serve de ancoragem para a poeticidade no cinema reside na concepção de fotogenia, desenvolvida por Epstein a partir de Canudo e Delluc (apud Salles, 1988: 60). Referindo-se às características do cinema de Epstein, Salles menciona a "personalização da imagem" (idem: 59) como princípio primeiro, ou seja, a propriedade de dotar "as aparências captadas pela câmera de uma densidade psicológica e sentimental" (idem: 59). Esta seria uma das formas de compreensão da fotogenia: personalizar a imagem de modo a "encharcar a própria aparência da realidade, nos seus aspectos mais prosaicos e veristas, de um halo de emoção humana" (idem: 59). Na verdade, a preocupação de Epstein com o "valor psicológico da imagem" serve de transição para a atribuição do seu valor estético, culminando na própria noção de fotogenia que, para conCretizar-se, além da personalização, depende da mobilidade do objeto no espaço-tempo (idem: 60). Essas considerações teóricas iniciais se fazem pertinentes para uma primeira aproximação com o filme Amor à Flor da Pele, que se constrói a partir de uma linguagem densamente diferenciada quanto à manipulação dos recursos cinemáticos. De fato, trata-se de um filme em que o modo de estruturação é inicialmente mais visível e eloqüente que sua temática (disso decorre a prevalência da função poética e a tendência à interiorização da experiência), embora tal sofisticação se justifique exatamente em sua funcionalidade para a expressão das implicações psicológicas e ideológicas suscitadas no I pelo filme. É o caso, por exemplo, da utilização recorrente da câmera lenta; de enquadramentos não convencionais (a exemplo da recusa ao campo-contracampo), que desnorteiam o espectador; do uso de repetição de cenas, por um lado, e de elipses, por outro; da ênfase na visualidade - ou o que Deleuze define como "situações puramente óticas" (2005: 9-36); da tensão que é criada entre a contenção verbal, no que se refere ao silêncio dos personagens centrais, e o transbordamento emotivo provocado pela música (sobretudo aquelas de tradição latina, a exemplo de "Aqueles olhos verdes"). escrito na tela, no início do filme. O texto diz assim: Há a presença de um texto カ・イ「。セ@ O encontro foi constrangedor Ela ficou de cabeça baixa Esperando ele se aproximar. Ele não veio, faltou coragem E então, ela se foi. Este texto introdutório, que pode ser visto como tendo uma função de prólogo, alude a um encontro amoroso que não aconteceu. O texto também faz referência aos sentimentos de constrangimento pela espera de alguém que não veio e à falta de coragem como responsável pelo não encontro entre um homem e uma mulher, culminando na separação de ambos. Embora lacônico e reticente, quando considerado 286 ESTUDOS DE CINEMA (numa leitura retroativa) em relação ao contexto geral do filme, tal texto introduz elementos embrionários que serão desenvolvidos ao longo da narrativa: a trajetória de cumplicidade e eventual paixão entre o casal protagonista, que não se materializa na realização do desejo. A esse respeito, é interessante observar a adequação do título, In the moodfor love, dado ao filme em inglês, na medida em que flagra a experiência em sua possibilidade de vir-a-ser, enquanto potencialidade. ; A história diegética do filme se passa na Hong Kong de 1962 e constrói-se a partir do envolvimento gradual entre um casal (senhor Chow e senhora Chan), que aos poucos descobre que seus respectivos parceiros estão viveneiando uma relação desde o início, por não mostrar o casal de amantes, que só clandestina. O filme ッーエセ@ "aparece" ou apenas através da voz, ou de costas (no caso da mulher), portanto, de forma reduzida, metonimizada; o casal de amantes também se faz "presente" de modo indireto, através das .reações de seus respectivos companheiros. Tal escolha de estratégia- que poderíamos denominar de "elipse de estrutura" (MARTIN; 2003: 77) -já indicia o olhar que será lançado sobre o conflito: não são os amantes que têm visibilidade na narrativa, mas o casal que se sente enganado. Trata-se, na verdade, de uma elipse gue possui-motivações atreladas ao próprio modo de estruturação do enredo. Essa troca deparceiros é metaforicamente sugerida (e antecipada), através da troca dos objetos pertenéente·s aos dois casais. Numa das cenas iniciais do filme, que mostram as duas famílias se mudando para quartos alugados no mesmo prédio, há uma constante confusão em relação aos objetos que cada casal possui. Frases do tipo, "o quarto não é esse, erramos de: novo"; "esses sapatos não são meus, devem ser da vizinha"; "esse armário não é meu"; "esses livros não são meus; errado de novo" já constituem um foreshadoWing, ,da miscibilidade existente (embora ainda velada para dois dos envolvidos), entre aquelas vidas. O uso dos objetos como metonímia para representar o envolvimento. entre o casal de amantes ainda se fará presente através do reconhecimento (em momento posterior), por parte do casal enganado, da bolsa e da gravata repetidas, iguais. O· processo de desconfiança e a eventual descoberta do casal de que está sendo enganado por seus respectivos parceiros acontecem de modo simultâneo e são facilitados pelos comentários dos habitantes do prédio em que passam a morar. Em crítica sobre o filme, Almir Freitas (2001: 39) se refere ao contexto histórico daquela Hong Kong (década de 60), em que, devido aos problemas políticos e econômicos (transição entre "fim da tutela britânica e a conseqüente anexação por Pequim"), os imigrantes de Xangai se viam obrigados a alugar quartos, algo que, no caso deste filme, ganha realce quanto ao emaranhado entre o contexto público e o conflito privado. A proximidade entre os moradores favorece a intromissão de um na vida do outro. Sempre há algum morador que menciona algo do tipo, "não sei se devo lhe contar. Vi sua mulher na rua ontem. Estava com um homem". Percebe-se que são sujeitos socialmente guiados por códigos de comportamento bastante convencionais, VISUALIDADES 287 tradicionais, moralistas. E há um controle e constante vigilância, por parte dos vizinhos, quanto ao horário que se chega e se sai de casa, quanto à rotina que cada um vi vencia. A este respeito, dois aspectos são relevantes: a recorrência da imagem do relógio de parede, muitas vezes justaposto aos diálogos dos personagens, como índice de temporalidade física, cronológica, real (algo que pode ser mensurado, controlado); e a inversão do drama que as "vítimas" agora vão experienciar. Quando se descobrem abandonados por seus parceiros, passam a se sentir iguais em sua dor, algo que favorece a cumplicidade e a eventual reciprocidade de sentimento entre eles. Porém, como conseqüência, o foco da vigilância por parte dos vizinhos agora desloca-se para eles que, de vítimas de "traição", passam a se sentir como passíveis de realizar o mesmo ato, ou seja, de também desenvolverem uma relação amorosa clandestina. Uma das características mais marcantes deste filme é a substituição- ao modo de Deleuze- de "situações sensório-motoras", que defmem a relação imagern-ação do filme realista, por."situações puramente óticas e sonoras" (2005: 12). 2 Na verdade, as palavras de Deleuze reverberam parte do que diz Epstein a respeitó da fotogenia: "( ... ) os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônoma que os faz valer por si mesmos.( ... ) não só o espectador mas também os protagonistas precisam investir os meios e os objetos pelo olhar( ... )" (DELEUZE, 2005: 13). Ou seja, se na tradição realista clássica, a situação se materializa através da ação, num filme como Amor à Flor da Pele, são antes os sentidos que precisam ser investidos, explorados, tomados canais de conhecimento. O cineasta Karim Alnouz afirma que "os filmes orientais [a exemplo de Amor à Flor da Pele] recuperaram o tempo de permanência do olhar. Eles permitem que o espectador passeie os olhos pela tela ( ... )". Ainda segundo Alnouz, "o cinema parecia ter perdido a capacidade de observar o mundo; os orientais conseguiram trazê-la de volta" (apud CALIL, 2005: 40). 3 Para exemplificar essa escolha estética, são várias as cenas do filme que expressam situações em que muito pouco é falado, muito pouco acontece, em detrimento do que é visualmente expresso. De novo, creio que podemos fazer uso da consideração de Deleuze a respeito dos silêncios e vazios: "tempos mortos que recolhem o efeito de alguma coisa importante" (2005: 24). Por exemplo, a utilização da câmera lenta neste filme, usada de modo recorrente, acaba por dotar o recurso de valor simbólico. Quase sempre acionada para registrar o percurso da personagem para comprar comida, reflete a lentidão do passar do tempo para alguém que, embora casada, não só passa 2. Embora a discussão de Deleuze tenha como foco as diferenças entre o realismo e o neo-realismo, creio que várias de suas reflexões contribuem para nma compreensão da proposta estética, presente em Amor à Flor da Pele e em filmes que com ele se alinham esteticamente. 3. O filme, O céu de Suely, deArnouz, serve como ilustração desse investimento estético na lentidão e nas situações óticas, e da conseqüente permanência do olhar. ESTUDOS DE CINEMA 288 a maior parte do tempo sozinha, mas também faz as refeições sozinha. As imagens em câmera lenta são também pontuadas pela mesma música - lenta, potente e triste (constituindo um refrão) - adensando, desse modo, a carga dramática da situação em que vive, estoicamente, a personagem. Um outro exemplo diz respeito às cenas recorrentes no mesmo espaço da rua e do beco escuro, quando os personagens estão a caminho de casa, geralmente ao final do dia. De novo, são situações aparentemente sem ação, sem movimento, marcadas pela estagnação. Às vezes, a presença da chuva os força a esperar, e a presença de grades cercando o local, bem como o modo de enquadramento dos personagens, acabam por dotar aquele espaço de significações dramáticas, metafóricas, que denotam o caráter de confmamento e opressão de suas vidas. Outro elemento que afeta substancialmente o caráter poético desse filme diz respeito às manipulações temporais, sobretudo aquelas que apontam para um tempo futuro, ou que tentam reconstruir situações passadas: em três momentos específicos, o casal (já claramente vivendo uma situação de paixão) ensaia e encena situaçõeslimite, que nunca vêm a acontecer de fato; no entanto, como o espectador não dispõe de nenhum elemento de transição entre um tempo e outro, e de início não há nada que indique tratar-se de um ensaio, ele é pego de surpresa, e por um momento acredita na "veracidade" da imagem e da situação que a imagem revela. Os ensaios inicialmente dramatizam diálogos que imitam o tipo de conversa que o casal de amantes teria tido: "É tarde. Sua mulher não vai reclamar?" "Ela está acostumada. Ela não liga." "E seu marido?" "Ele deve estar dormindo." A encenação dos diálogos mostra - a exemplo da lição da psicanálise - que verbalizar é vivenciar, que linguagem é ato, experiência; neste caso, os protagonistas não conseguem atingir o distanciamento advindo do fingimento; como conseqüência, seus diálogos "ensaiados" são acompanhados das emoções de sofrimento que estão por trás das sensações de abandono e rejeição, uma vez que o trauma, sendo de novo acionado, faz com que a experiência seja outra vez revivida, ressignificada. Outro efeito que a encenação dos diálogos provoca é o deslocamento da ação de "trair". Num primeiro momento, o conteúdo dos diálogos parece referir-se ao casal de amantes; porém, à medida que a narrativa se desenvolve e a relação de cumplicidade entre o senhor Chow e a senhora Chan se aprofunda, é como se agora os diálogos - embora ensaiados- dissessem respeito aos seus próprios sentimentos, tomando-se, portanto (tal como no diálogo psicanalítico), um modo de (re)conhecimento deles próprios. De acordo com fala do próprio personagem: "Só queria saber como tinham começado. Agora já sei. As emoções podem nos pegar de surpresa". Desse momento em diante, os ensaios defmitivamente dramatizam seus próprios sentimentos, e agora possuem a função de prepará-los para a despedida definitiva. Ironicamente, quando o senhor VISUALIDADES 289 Chow a consola (este é um momento único, de máximo transbordamento emotivo no filme), dizendo, "É só um ensaio. Isto não é real", o choro e o abraço contradizem sua constatação. E quando, no táxi, já estão a caminho de casa, e ela confessa, "não quero ir para casa hoje", o detalhe visual das mãos entrelaçadas ainda reforça uma vez mais o extremo da situação irônica em que foram enredados. A utilização de músicas da tradição latina (por exemplo, "Aqueles olhos verdes" e "Quizás, quizás, quizás") também é marcante num filme que possui um tom de contenção e que cria significados de modo tão alusivo e oblíquo. As músicas com letra, em seu transbordamento melodramático, servem de contraponto ao tom contido e ao comportamento conservador do casal, que, como eles próprios informam, "são pegos de surpresa em suas emoções". É como se as músicas revelassem seus sentimentos, dizendo-nos aquilo que eles não ousam expressar. De modo significativo, o recurso às canções é ressaltado quando o envolvimento entre o senhor Chow e a senhora Chan já transcendeu a relação de amizade, e eles já se sentem arrebatados por uma intimidade afetiva e de desejo. Toda a tensão entre ação (amantes "reais") e não-ação ("não seremos como eles") por parte dos dois casais; visibilidade (amantes em potencial) e invisibilidade (amantes de fato); ênfase nas situações óticas (imagens eloqüentes, embora marcadas pelo silêncio e "tempos mortos") e ausência de ação I situações motoras; deslocamento da sensualidade e do desejo para as canções- tudo isso é, em certo sentido, arrematado ao final do filme com a lenda sobre o segredo. Diz o senhor Chow: "Antigamente, se alguém tinha um segredo e não queria contar a alguém, sabe o que ele fazia? Ia a uma montanha, achava uma árvore, fazia um buraco nela e sussurrava o segredo no buraco. Depois cobria o buraco com barro e o segredo ficava lá para sempre". A história sobre o segredo é primeiramente narrada. Num segundo momento, o espectador se depara com a visualização e dramatização da história. E há um contraste efetivo entre a vulnerabilidade do senhor Chow, a contar seu segredo à parede do templo (de novo, o ato de verbalizar como catarse), e a imponência e perenidade daquele espaço, marcado pela presença de pedras grandiosas, das paredes ancestrais de um templo e da própria montanha que as abriga. Em determinado momento, a visão do espectador coincide com a visão de um monge, que observa senhor Chow lá do alto, e a perspectiva em plongée, que reduz o tamanho do senhor Chow, contribui para adensar ainda mais sua impotência e desamparo. A música agora tem conotações religiosas, transcendentais e constitui mais um elemento para que consideremos a verbalização do segredo, como um ritual. Um ritual de passagem para outro tempo, já que "aquele tempo passou. Nada do que pertence a ele existe mais". E é com outro trecho verbal, de novo escrito na tela, que o filme conclui: Ele se lembra dos anos passados Como se olhasse por uma janela embaçada 290 ESTUDOS DE CINEMA O passado é uma coisa que ele vê mas não toca E tudo que ele vê é borrado e indistinto. Não ouvimos (apenas vemos) o senhor Chow contando seu segredo. E nem é necessário. Essa é mais uma elipse que se coaduna com o cinema de Wong Kar-Wai; um cinema, segundo Walter Salles (2003), do não-dito, um "cinema sussurrado e poético". BIBLIOGRAFIA AGRA, Anacã Rupert. 2001: uma odisséia da palavra à imagem poética. João Pessoa: UFPB I Programa de Pós-graduação em Letras, dissertação de mestrado, 2005. BuNuEL, Luis. "Cinema: instrumento de poesia". In: XAVIER, Ismail. (org. ). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal!Embrafilme, 1983. CANIZAL, Eduardo Pefiuela. "Cinema e poesia". In: XAVIER, Ismail. ( org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. CALIL, Ricardo. "Expresso do Oriente". Bravo! 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Efeitos visuais como marcas de falsificação na obra de Sokúrov ELIANNE Ivo BARROSO (UFF) O ESPECTADOR, ao assistir às imagens do russo Aleksandr Sokúrov, não consegue ficar indiferente. Trata-se de um contato visceral e muito perturbador. Cada plano lembra uma pintura, adensada por luzes e cores. Em alguns casos, a imagem fica distorcida, re-interpretada em função de superficies refletoras, ora, as suas cores e sombras são propositalmente acentuadas, redimensionando o espaço filmico. Além da marca pictórica do cinema de Sokúrov, as histórias são tênues e se atêm, às vezes, apenas ao título e à sucessão dos poucos e duradouros planos. Esta fragilidade narrativa aliada à penúria ou ao excesso dos elementos cinematográficos leva o espectador a um estado catártico enquanto a adulteração e a acentuação dos efeitos visuais acrescidos das interferências sonoras provocam no espectador um "transe estético" (MACHADO, 2002: 45). Para discorrer sobre estas questões, este trabalho apresenta duas obras do diretor: Mãe e filho (Mat i Syn, 1997) e Arca russa (Russkiy Kovcheg, 2002). PERDA DA MATERIALIDADE E IMPLICAÇÃO EMOCIONAL DO ESPECTADOR Na filmografia de Sokúrov, Mãe e filho aparece como um díptico a Pai e filho (Otiels i syn, 2003). O primeiro título se passa no campo e os únicos personagens são mãe e filho. Ela aparenta estar gravemente enferma. A relação dos dois é afetuosa, mas mergulhada em uma atmosfera melancólica e fúnebre. O cenário do segundo longa-metragem é urbano e o elenco não se restringe ao pai e filho. A enfermidade é substituída por uma virilidade com corpos musculosos e saudáveis que se tocam, se acariciam, se chocam, mas que temem igualmente a 292 ESTUDOS DE CINEMA perda de um e de outro. Nas duas obras, a tentativa é registrar o sentimento etéreo que liga os pais aos filhos. Tanto um como o outro lança mão de efeitos óticos. Mãe e filho chama a atenção pela fotografia sem relevo e distorcida, renegando a tridimensionalidade da tela cinematográfica. A intervenção na imagem é feita ainda na filmagem com a utilização de espelhos e de prismas. 1 A cena inicial é marcante neste sentido, já que o plano parece deformado em relação à perspectiva. A imobilidade da mãe e do filho deitados na cama durante alguns segundos reforça uma falsa sensação de fixidez. A imagem é planar. A fonte luminosa provém de uma luz natural, advinda de uma janela. Escutamos acordes musicais e o estalar da madeira no fogo. O que vemos foi certamente adulterado em relação à cena original. A captação da imagem foi intetrnediada por acessórios óticos que "perturbam" um registro fotográfico mais acadêmico. Há um incômodo na representação tridimensional do visível que se opera pela sua distorção e que gera uma perda de materialidade e leva à cumplicidade emocional do espectador (ARNAUD, 2002, p.344). Seguem-se planos da casa e do campo em tons primaveris. Destaca-se, ao fundo de uma das paisagens, uma fumaça de trem que é identificado apenas pelo som do motor de uma locomotiva que se mistura ao vento e ao som dos pássaros. Uma panorâmica lenta, que vai de algumas árvores à entràda da casa, deixa entrever o filho que desce a escada com a mãe ao colo. Ele a deita em um banco e mais uma vez a imagem sem nenhum volume mostra o gesto singelo do filho levantando a cabeça da mãe para lhe fazer repousar sobre seu braço. O rapaz lê o verso de postais antigos. A mulher suspira e, incomodada por algum sofrimento, pede para sair dali. Os dois passeiam em meio à paisagem, a relva é fortemente esverdeada e o céu encoberto pelas nuvens. As imagens da natureza são vigorosas e imponentes. O espectador é submetido a unia suspeição e mal-estar. Há um esvaziamento narrativo e se é confrontado com um profundo e doloroso silêncio dos personagens. Nada se passa. A mãe está depauperada e o filho consumido pela eminência da perda. Mostra-se apenas a .singularidade de alguns gestos que ecoam diante da ausência ou apagamento de qualquer ação mais efetiva. As imagens são explicitamente influenciadas pelo romantismo de Caspar David Friedrich. O pintor do romantismo alemão é reconhecido por suas paisagens que estão em Mãe e filho. Elas estão ali como uma reminiscência, uma presença em ' ·l. Segui:ldo Boullay (1985, p. 75), espelho é uma superficie refletora e plana na qual a imagem se forrna simetricamente. Já o prisma é um bloco ótico, transparente, pouco dispersivo e limitado P,?r ヲセ・ウ@ planas. Uma das delas é usada para a entrada do feixe luminoso e outra para a sua reflexão. As multi-facetas servem de superficies refletoras. VISUALIDADES 293 movimento. Apesar do tempo, a obra de Friedrich ainda permanece viva e fresca para sempre, se reinventando no cinema de Sokúrov. Parafraseando o próprio cineasta em Elegia de uma viagem (Eléguia dorógui, 2001), ao final do filme, logo depois de deslizar sua mão pelo nome do pintor Pieter Saenredam e pela data de 1765, projeta sua sombra sobre a tela do mesmo autor, Praça de Santa Maria em Utrecht, e diz: "Mas a tela ainda está quente". Sokúrov é atormentado por um passado distante, por lembranças de um tempo não vivido que insistentemente se re-atualizam em seu cinema. Tanto o filme como as pinturas de Friedrich não pertencem à categoria do belo, eles são mais do que belas, são sublimes. A paisagem é grandiosa, mas misteriosa e hostil. A alma é diminuta e impotente diante da magnitude celestial. Na obra do pintor alemão, o campo, o mar e as nuvens ocupam proporções incomensuráveis diante da figura humana. A luz solar que resplandece por trás da neblina invade a paisagem ora a obscurecendo, ora a revelando em múltiplos matizes. Em Sokúrov, além da desproporcionalidade entre figura e fundo, juntam-se elementos que apenas o cinema seria capaz de acrescentar, ou seja, a combinação do movimento dos corpos, com a agitação do vento, a velocidade das nuvens, o ruído dos pássaros e dos trovões. São pouco mais de 50 planos durante 72 minutos de filme. Cada um deles adulterado, grifado pela visão e ótica de Sokúrov; seja em relação à cumplicidade da mãe e do filho, pela grandiloqüência dos elementos naturais ou pela angústia da existência humana. Retoque pictórico sob camadas do tempo Arca russa faz parte do ciclo de filmes históricos de Sokúrov. Não trata especificamente de um personagem, mas de vários ícones da história de seu país. Foi rodado em um único plano-seqüência com auxílio de um steadycam 2 (2) especialmente adaptado para a ocasião e segundo as necessidades do seu operador, Tilman Büttner. Em razão da especificidade do filme, Büttner acumulou também a função de fotógrafo, pois, tratando-se de um plano sem cortes, era necessário montar e memorizar a iluminação do percurso para não errar no enquadramento. No filme, há um mestre de cerimônia que guia o "espetáculo" inspirado no marquês Adolfo de Custine, diplomata francês do século XIX que esteve na Rússia e deixou duas publicações sobre sua viagem. Nos créditos finais, não há indicação à 2. Segundo Boullay (1985, p. 75), espelho é uma superfície refletora e plana na qual a imagem se forma simetricamente. Já o prisma é um bloco ótico, transparente, pouco dispersivo e limitado por faces planas. Uma das delas é usada para a entrada do feixe luminoso e outra para a sua reflexão. As multi-facetas servem de superfícies refletoras. 294 ESTUDOS DE CINEMA referência bibliográfica, mas é possível fazer esta conexão em razão da ascendência do personagem e a semelhança de seus comentários com os livros assinados pelo nobre francês. (DEPAULE, 2003: 29) Ouve-se, logo depois dos créditos, sobre cartela preta, a voz, ou melhor o sussurrar em off de Sokúrov que diz não se lembrar exatamente quando esteve ali. Fala de uma vaga lembrança. Ele se refere ao incêndio de 183 7 ou a invasão do Palácio de Inverno na noite de 25 de outubro de 1917 pelos bolchevistas? Jamais se saberá. Bruno Latour (1994), ao analisar a modernidade, explica que, a partir deste momento, instituiu-se potencialmente a idéia de novo, de invenção total. Ele diagnostica a necessidade de desapego ao passado, um desejo permanente de ruptura com o que ficou para trás e o momento em que se instalou uma cronologia arbitrária, onde os tempos não co-existem e só são admitidos numa escala subseqüente: passado, presente e futuro. No caso da modernidade, valorizou-se o futuro e esqueceu-se que, na realidade, se é uma condensação de momentos diversos, uma mistura de passado, presente e futuro. "Jamais fomos modernos." O que faz Sokúrov em Arca russa é subverter este preceito moderno, que tanto se está habituado a observar em filmes de época. Ele colocou na imagem uma sucessão de fatos da história do seu país, misturados entre si como se tudo estivesse naquela arca-museu. É importante dizer que o cenário é o museu do Herrnitage em São Petersburgo. A construção data do século XVIII, mas a estrutura arquitetônica sofreu alterações ainda no século XIX. No filme, vê-se apenas uma única vez a fachada do palácio, logo na abertura. Adiante iremos percorrer diversos cômodos, épocas e sobretudo ver passar inúmeros figurantes. A voz offde Sokúrov acompanha a câmera e encontra logo no início o marquês De Custine, único personagem a ter interlocução com o autor. A mesma amnésia parcial do narrador contagia o personagem francês. "Que língua falamos?" "Eu, russo." "Estranho, eu não falava russo antes". A primeira figura histórica percebida por De Custine é Pedro, o Grande ( 16721725). Aqui, diferente de Mãe e filho, a tela cinematográfica ganha profundidade e o detalhe mais distante é iluminado justamente para ressaltar o local em que o mesmo Pedro esbofeteia um oficial. Depaule fala do anacronismo da cena já que o cenário é o Palácio de Inverno que só foi construído em 1754 por Catarina 11, depois da morte de Pedro. A própria soberana aparece logo depois assistindo a uma encenação no teatro que ela própria mandou erguer em 1783. O passeio do marquês segue por outras salas. Vemos nossos contemporâneos que se reconhece pelos figurinos dos dias de hoje. Reencontramos, adiante, Catarina 11 mais velha que desaparece em meio ao pátio externo coberto pela neve. De Custine reconhece Nicolau I que, em uma solenidade recebe o chá da Pérsia. Nosso guia é retirado do local e acaba se deparando com a preparação do banquete daquela cerimônia, VISUALIDADES 295 chama-lhe atenção às peças em porcelana de Sevres cuidadosamente arrumadas nas mesas. De Custine é convidado a se retirar do recinto e prossegue no labirinto do Hermitage encontrando ex-três diretores do museu, representados por si próprios. São gerações que conseguiram manter intacta uma coleção de arte, apesar das intempéries, das guerras e do tempo. O que preservar? Como fazer a arte ser perene? O marquês lamenta: "Todo mundo conhece o futuro, mas ninguém conhece o passado". O filme termina em um baile suntuoso e repleto de convidados. De Custine diz à câmera e a seu anfitrião invisível, que ficará no palácio, enquanto que todos os outros deixam o Hermitage. O plano acompanha a retirada dos figurantes e, por fim, enquadra uma janela. Ao fundo, vê-se o mar. Não mais realista, mas uma imagem enevoada ao som de ondas revoltas. Sokúrov recorre a algumas simbologias bíblicas em seus filmes. No caso de Arca russa, há uma analogia com o feito de Noé que constrói uma embarcação para salvar a si e aos outros do dilúvio. O objetivo era se refugiar na embarcação e manterse vivo, flutuando sobre as águas, obedecendo à risca o preceito divino. De Custine e seu duplo, a voz de Sokúrov, estão sempre à procura de portas, obrigados a se retirar das salas, a se perder à procura de personagens que desaparecem da cena. Há sempre a idéia de flanar e de percurso, à espreita, talvez, de uma saída. "Por isso, a pergunta que atravessa todo o filme é: pode a Rússia retomar o impulso histórico que a mobilizou no século XVIII, reativar a aspiração de seus monarcas de fazer dela uma nação européia?" (SANTOS, 2002: 85). O filme-arca é por assim dizer um alerta para que não se seja refém do futuro e que o passado possa ser aprendido e apreendido para que não se perca a noção do tempo como travessia. A voz grave de Sokúrov encerra Arca russa com as seguintes palavras: "Nós somos destinados a navegar eternamente e a viver eternamente". Impossível parar o tempo e a História. É importante frisar que o uso do steadycam em Arca russa não reproduz o olhar humano. Segundo o operador Larry McConkey, que trabalhou com M. Scorcese em Bons companheiros ( Goodfellas, 1990) no qual fez vários planos-seqüência, ( ... ) toda dificuldade [na operação do steac.ry] está na gestão do tempo morto, o espectador não deve jamais se entediar na memorização das idéias que se encadeiam e na resolução dos problemas técnicos. (MORRISSEY) 3 É exatamente o que faz Sokúrov ao preencher todos os espaços e compô-los de maneira encadeada e surpreendente. Basta lembrar dos bastidores do teatro barroco 3. Tradução da autora."( ... ) Toute la dificulté tient dans la gestion du temps morts, !e spectateur ne devantjamais s'ennuyer, dans la mémorisation des idées que s'encha!nent et dans la résolution des probli:mes techniques." 296 ESTUDOS DE CINEMA que precede ao palco que, por sua vez, mostra a orquestra e, somente depois, revela Catarina 11 em seu camarote imperial. A experimentação do belo aqui não lembra mais a sensação de sublime. A beleza advém de uma composição clássica, fiel aos preceitos renascentistas, na riqueza de detalhes, na harmonia das cores, na dosagem "científica" da luz natural e artificial. O museu Hermitage serve de palco para este deslumbramento visual. O encantamento do espectador não se restringe ao aspecto arquitetônico e cenográfico. Pode-se destacar a mise-en-scene rigorosa de um "batalhão" de figurantes - cerca de 1500 pessoas. Há também o fausto das indumentárias de época: nobres, militares, artesãos, comediantes, religiosos etc. Para obtenção de um resultado tão simétrico e harmônico como um espetáculo de dança, houve, sem dúvida, muita preparação entre todos estes elementos e a câmera. Além disso, pode efetuar uma rigorosa correção de cor e luz na pós-produção, retrabalhando minuciosamente cada detalhe. Sokúrov, com o plano-seqüência de Arca russa, abole definitivamente a união de planos, traz o conceito de justaposição e montagem para dentro da imagem. O ato de cortar ou unir foto gramas limita a montagem de imagem a uma intervenção apenas "horizontal" no filme. Toda e qualquer transição, efeito ou trucagem de ou entre os planos era apenas realizado na filmagem ou executado em truca. Walter Murch (2003:135) comenta que, com a edição digital, aparece a possibilidade de o editor interferir "verticalmente" na imagem. Além do desafio de se construir o tempo filmico através dos planos, agora fica ao alcance de quem edita o recurso dos efeitos visuais. A assinatura de Sokúrov em Arca russa se dá desta forma na pós-produção com auxílio da tecnologia digital que permitiu que o diretor "reinventasse" a fotografia. A nosso ver, os .dois filmes aqui analisados, e porque não dizer a obra de Sokúrov, ao adotar certas interferências redimensionam os conceitos técnicos e também estéticos dos efeitos visuais. O autor busca inspiração na arte, na pintura mais especificamente como uma ferramenta de resistência e combate à figuração pura e simples da realidade no cinema. Ele entende uma lição com os mestres do passado e traz um alerta contra o dogmatismo da representação esquemática. Sokúrov reluta contra o mimetismo das formas. Os objetos óticos ou a interferência digital são usados como o pincel, espátula e esfumatto do realizador. A visão do real é definitivamente subjetivada pelo autor."( ...) A criação da imagem inclui certo trabalho com a óptica, com a luz. Trabalha-se então na cor com o auxílio da eletrônica, com os computadores mais avançados ( ... ) O trabalho da arte cinematográfica não consiste em rodar- consiste em compor". (SOKÚROV citado por SANTOS, 2002: 65). Orson Welles, paraO. Deleuze (1985: 181), foi o primeiro a transpor no cinema urna imagem direta do tempo sob os auspícios da potência do falso. O curioso é que isto se verificou a tal ponto que muitas das impressões ditas realistas de profundidade VISUALIDADES 297 de campo em Cidadão Kane ( Citizen Kane, 1941) são, na realidade, trucagens (matte shot). Como a cena em que Kane (Welles) em primeiro plano reescreve a crítica de Jed Leland (Joseph Cotten), localizado ao fundo na redação do jornaL Tudo fazia supor que se tratava de uma imagem em perspectiva. No entanto, nada mais era do que a superposição de dois planos a partir do emprego de máscaras no registro de uma e depois da outra imagem. Se a contemporaneidade do cinema está repleta de efeitos especiais, aprisionados em um mundo das aparências, na busca por uma verossimilhança, Sokúrov reitera a condição de Welles, não mais o truque camuflado imitando o real, mas do efeito visual e subjetivo que anula todo um viés maquínico, relançando a idéia de falsificação, da trucagem como uma estratégia para evitar um cinema desumano sem as marcas de nossa imperfeição. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros ARNAUD, Diane. "Vague à l'âme: l'animation mélancolique dans Elégie de la traversée d' Alexadre Sokurov". In: GAGNEBIN, Murielle (org.). L 'ombre de l 'image. Paris: Champ Vallon, 2002. BOULLAY, Albert DanieL Le livre des trucages au cinéma. Paris: Dreamland, 2006. DELEUZE, Gilles. Cinéma 2. L 'image-temps. Paris: Les Editions de Minuit, 1985. LATOUR, Bruno. Nunca fomos modernos. Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. MACHADO, Alvaro. "O planeta Sokúrov". In: MACHADO, Álvaro (org.). 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"'J'avais l'impression de marcher tres tranquillement vers mon éxecution.' Entretien avec Tilman Bütner, steadicamer et chef-opérateur de Arche Russe". Veritigo. Esthétique et histoire du cinéma. Le steadycam a-t-il une âme? Paris, no 24, outono 2003. Perto demais se vê de menos: a questão do ponto de vista na adaptação de Closer MARCEL VIEIRA BARRETO SILVA (Uff) EsTE ARTIGO TEM o intuito de discutir algumas questões, envolvendo a relação entre cinema, teatro e literatura dramática, partindo do exemplo de Closer, peça de Patrick Marber de 1997, levada ao cinema em 2004, por Mike Nichols. Para isso, pretendemos analisar comparativamente a construção da cena no texto dramático e no filme, pensando em como no cinema- a partir de sua própria estrutura espectatorial - a cena é construída, na verdade, a partir de um jogo de olhares sobre a cena. A câmera, enquanto instrumento narrativo, cria uma série modulada de olhares que introduzem o espectador no espaço da cena, num tenso e permanente jogo de mostrar/ esconder, que envolve esse espectador ao atiçar com isso o seu desejo voyeurista. Esse jogo de mostrar e esconder a cena é possibilitado pela capacidade da narrativa filmica de transitar pelos pontos de vista da autoridade narrativa, dos personagens e do espectador. O interesse despertado pelo texto dramático de Closer e, conseqüentemente, sua adaptação cinematográfica, reside na maneira como a questão do olhar estrutura a forma de construção da subjetividade dos personagens, inseridos em um contexto de constante fluxo informacional e imagético, que faz com que o olhar seja a matriz maior de envolvimento afetivo. Trata-se da história de Daniel (Jude Law),Alice (Natalie Portman), Anna (Julia Roberts) e Larry (Clive Owen), quatro personagens que se conhecem, relacionam-se e mutuamente se enganam, num movimento de aproximação e afastamento semelhante ao denominado por Zygmunt Bauman (2004) de amor líquido. Nesse imbróglio de envolvimento afetivo, o olhar desempenha papel crucial, pois revela e resvala desejo a cada espiada furtiva. Tanto é assim, que as personagens femininas estão nos pólos opostos de um jogo escopofilico: Anna é uma fotógrafa, cujo principal interesse é capturar imagens de estranhos (ou seja, ela trabalha ativamente com olhar), e Alice é uma stripper que se despe para estranhos (sua atUação, portanto, é em ser olhada). 300 ESTUDOS DE CINEMA Nosso objetivo, aqui, será analisar comparativamente como essa questão do olhar é construída na peça e no filme, enfatizando os procedimentos estilísticos específicos de cada meio. Para tal, escolheu-se a segunda cena do primeiro ato da peça, em que Anna fotografa Daniel, para a capa do livro dele. Essa cena é relevante porque denota claramente como a construção da cena no cinema narrativorepresentativo se materializa a partir do manejo e da modulação de olhares dentro da cena - movimento esse, autorizado pela capacidade historicamente estabelecida do narrador fílmico em transitar a câmera pelos espaços da situação dramática, posicionando-se, inclusive, no olhar dos personagens, numa estrutura que Edward Branigan ( 1984) denomina de plano ponto-de-vista.' CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS Antes de discorrermos com a análise, é importante aduzir a relação intertextual entre cinema e teatro, ressaltando como cada meio organiza sua forma de construção simbólica. Assim, é fundamental apontar para a formatação de teatro e cinema enquanto espetáculos exibicionistas, numa sala escura, com a ilusão cênica e o efeito-janela, mas com estruturas espectatoriais diferentes: no teatro, o espectador imóvel acompanha a cena de seu ponto fixo de visão; no cinema, pela capacidade da câmera de manipular tempo e espaço diegéticos, o espectador é levado, através de processos de identificação narrativa, para dentro da cena, tendo acesso à história a partir de como o narrador filmico oferece ou oculta esses olhares. Desta feita, o que defme a construção da cena no cinema narrativo-representativo é a capacidade da câmera em administrar os pontos de vista, criando constantes fluxos de significado, na mobilidade e no posicionamento dos olhares sobre o universo dramático representado. No caso de Closer, a estrutura de envolvimento afetivo fundada no olhar, que constitui o conteúdo expressivo da peça e do filme, está intrinsecamente vinculada ao modo como é construída a cena, seus contornos de representação e posicionamentos narrativos. Além dessa compressão da estrutura representacional do cinema clássiconarrativo- em relação ao teatro e sua forma particular de representação-, devemos explicitar duas outras premissas que norteiam a metodologia de análise deste presente trabalho. A primeira consiste numa reflexão do processo de adaptação cinematográfica, processo esse, sucintamente definido, como a transposição de uma obra literária para uma narrativa filmica. Observando mais atentamente, percebe-se que a adaptação congrega, no entanto, uma série de questões práticas e teóricas que devem ser 1. ;N() inglês, convencionou-se chamar de POV shot. De forma análoga, sintetizar-se-á, doravante, em PPV. VISUALIDADES 301 consideradas, seja a tentativa de fidelidade em relação ao texto-fonte (e aqui a palavra "tentativa" evidencia a motivação da empreitada, não a materialidade do resultado), seja a recriação deliberada de certos elementos em outros contextos, ou ainda questões teoricamente mais profundas, como tensões entre sistemas de representação, poéticas de gêneros e pontos de vista narrativos e ideológicos. Essa compreensão implica em uma atitude metodológica fundamental, isto é, entender a adaptação como uma relação entre dois sistemas simbólicos, pois o textofonte foi escrito num determinado período, influenciado por uma série de códigos de representação e por um momento histórico delimitado, e a adaptação fílmica dessa obra também foi criada num contexto de produção particular, e está dialogando não só com o texto primevo, mas com uma série de outras referências, inclusive cinematográficas. Além da diferença entre contexto de realização de livro e de filme adaptado, também as formas de cada um são diferentes, com meios próprios de representação, que contribuem para compreender a adaptação como uma relação intertextual. Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança de meio. A alteração de um meio verbal single-track como o romance, para um meio multitrack como o filme, que pode representar não só com palavras (escritas ou faladas) mas também com música, efeitos sonoros, e imagens fotográficas em movimento, explica a improbabilidade, e eu diria mesmo a "indesejabilidade", da adaptação literal (STAM, 2005:. 03-4). 2 A segunda premissa que norteia investigação deste trabalho é, na verdade, uma reflexão teórica em tomo do ponto de vista como uma categoria na análise comparativa de cinema, teatro e literatura. Desde sua formulação nas artes plásticas, a partir do conceito de perspectiva na pintura renascentista, passando por sua formalização em um certo artifício estilístico do romance moderno (em Flaubert e Henry James, principalmente), até a sua assimilação na teoria do cinema, o conceito de ponto de vista tomou-se uma categoria extremamente relevante para o estudo da narrativa. Na história do desenvolvimento da narrativa fílmica, inclusive, a questão do ponto de vista, ocupa lugar privilegiado. A transição de um ponto de vista único, no cinema dos primeiros tempos, para um ponto de vista múltiplo e articulado, representou o esforço no manejo das estruturas simbólicas, a fim de criar novas possibilidades narrativas. 2. Original em inglês. Tradução literal: "An adaptation is automatically different and original dueto the change of medium. The shift from a single-track verbal medium such as the novel to a multitrack medium like film, which can play not only with words (written or spoken) but also with music, sound effects, and moving photographic images, explains the unlikelihood, and I would suggest even the undesirability, ofliteral adaptation". 302 ESTUDOS DE CINEMA No ponto de vista único, o espectador tende a observar a cena; no ponto de vista múltiplo, ele participa narrativamente da cena, por identificação, fluindo pelo espaço e pelo tempo, e partilhando da subjetividade dos personagens. "O ponto de vista e, sobretudo, os múltiplos jogos entre ponto de vista visual ou representativo e ponto de vista narrativo são parte constitutiva do cinema" (MAGNY, 2001: 63). 3 As principais teorias do ponto de vista no cinema, e aqui, vai-se destacar as obras de Edward Branigan e de François Jost, tentaram pensar a funcionalidade e a amplitude do ponto de vista no cinema narrativo representativo. Em Jost (1989), temos uma apropriação do conceito de focalização, tal como desenvolvido por Gérard Genette (1972), para falar de ponto de vista na literatura, e, em seguida, a elaboração de dois novos termos específicos do estudo do cinema: ocularização, que diz respeito à relação entre o que a câmera mostra e aquilo que o personagem vê: "é próprio de a ocularização transformar o lugar da câmera em uma posição perceptiva do personagem" (JOST, op. cit: 50). 4 E auricularização, que diz respeito ao ponto de escuta, àquilo que o personagem ouve, e como o som e os ruídos de cena são construídos para representar a subjetividade dos personagens. 5 Assim como a narrativa, tanto a ocularização quanto a auricularização só ganham sentidos, através da progressão espaço-temporal: não se pode ver num plano apenas (como uma foto em still) qual o tipo de ocularização ou de auricularização. Apenas na combinação sucessiva de planos se pode avaliar a perspectiva ou que construção de subjetividade som e imagem pretendem abarcar. Num outro extremo, Edward Branigan (op. cit., 01-02) propõe que o ponto de vista, enquanto categoria narratológica, deva ser entendido a partir de sua correlação com outras quatro categorias: primeiramente, há o ponto de vista do autor, que se refere às opiniões particulares expressas pelo diretor do filme, bem como suas questões ideológicas e político-partidárias. De maneira diversa, existe o ponto de vista do narrador, que é também comumente conhecido como foco narrativo ou focalização: nesse caso, está relacionado à voz narrativa, isto é, a quem conta a história e por qual perspectiva. Além disso, existe ainda o ponto de vista do personagem, que está diretamente ligado ao narrador, pois se refere aos momentos em que este cede sua voz, para que os personagens se expressem eles mesmos (como no PPV), ou quando o próprio 3. Original em francês. Tradução livre: "Le point de vue et surtout les multiple jeux entre point de vue visuel ou représentatif et point de vue narratif sont partie constitutive du cinema". 4. Original em francês. Tradução livre : "Le propre de l'ocularisation, c 'est de transformer la place de la cãmera en une position perceptive du personnage". 5. As categorias elaboradas por François Jost são extensas e não cabe aqui, tendo em vista o tamanho e a estrutura desse artigo, a discussão das variantes de ocularização e auricularização propostas pelo autor. VISUALIDADES 303 narrador incorpora polifonicamente o olhar dos personagens no decorrer da narrativa. E, fechando o circuito de representação cinematográfica, há por fim o ponto de vista de espectador, que diz respeito às questões de espectatorialidade, e da recepção da platéia no momento da projeção fílmica. Essa diferenciação é necessária para a elaboração de uma teoria do ponto de vista no cinema, pois variam substancialmente (às vezes tomando-se até contraditórios) os pontos de vista de autor, narrador, personagem e espectador. De acordo com a teoria proposta por Branigan, no entanto, ponto de vista no cinema está diretamente ligado ao conceito de subjetividade, isto é, à forma através da qual o filme apresenta ou retrata um personagem ou uma história. "Subjetividade, então, é o processo de conhecer uma história- contá-la e percebê-la" (op. cit: 01). 6Não se trata do que a história conta (do seu conteúdo), mas da maneira como é contada, ou, para dizer mais propriamente, de como é estabelecida uma lógica de leitura. Na teoria de subjetividade, proposta por Branigan, sujeito que vê e objeto que é visto são elementos integrantes da estrutura de representação, em que o sujeito é o produtor da narração enquanto processo de percepção do objeto, e este, por conseguinte, é o ponto de atração da atenção do sujeito. Nesse sentido, ponto de vista vai ser o conjunto de estratégias estilísticas (posicionamento de câmera, som, montagem, fotografia, construção de cena, etc.) criado para representar a subjetividade dos personagens. CLOSER E A CONSTRUÇÃO DO OLHAR Diante disso, o nosso interesse agora é ver como a construção do olhar, no cinema narrativo-representativo defme a relação entre os personagens dentro da diegese, e o envolvimento entre filme e espectadores. No caso de Closer, o olhar cria dependências, hierarquias e níveis narrativos que se entrecruzam no processo de representação da história. Na peça, há várias referências ao olhar dos personagens, tanto nos diálogos, quanto nas rubricas que indicam a movimentação dos atores no palco. No filme, é através do olhar - juntamente com o som -, e, diríamos, da orquestração de olhares, que a platéia tem acesso aos cmitomos da cena, assimilando assim a história narrada/representada. Para exemplificar expressamente como funciona isso, vamos analisar um trecho do filme, em que a questão dos pontos de vista desempenha função primordial no desenvolvimento da ação. O caso de Closer interessa a este trabalho, particularmente, porque a questão do olhar funda a estrutura de construção da subjetividade dos personagens, uma vez que eles se inserem num contexto de constante fluxo 6. Original em inglês. Tradução livre: "Subjectivity, then, is the process ofknowing a story- telling it and perceiving it". 304 ESTUDOS DE CINEMA informacional e imagético, que faz com que o olhar seja a matriz maior de envolvimento afetivo. Assim, o olhar é transposto, no processo de adaptação cinematográfica de Closer, para dentro da estrutura da narrativa cinematográfica, de maneira que a ação dramática seja constantemente deslocada para os olhares que compõem a cena: do narrador ou dos personagens. O trecho que comentaremos é a segunda cena do primeiro ato, tanto da peça quanto do filme. Estamos no estúdio de Anna, no momento em que ela fotografa e conversa com Daniel. No diálogo e nas rubricas, estão embutidas referências ao olhar e ao aparato de captação fotográfica de imagens, de forma a criar um ritmo de leitura que denota o jogo de olhares estabelecido entre os personagens. Dan: Você é bonita. Anna: Não, eu não sou. (Anna olha para a lente da câmera). Levante o queixo, você está parecendo desleixado. (Dispara). 7 Dan: Você não o achou obsceno? Anna: O quê? Dan: O livro. Anna: Não, eu o achei ... preciso (Dispara). Dan: Quanto a que? Anna: Quanto ao sexo. Quanto ao amor (Dispara). Dan: Em que sentido? Anna: Foi você que escreveu. Dan: Mas foi você que leu. Até às quatro da manhã. (Dan olha para ela, Anna olha para as lentes). Anna: Não erga suas sobrancelhas, você parece afetado. (Dispara). Levante-se. (Dan se levanta). Dan: Alguma crítica? (Anna considera). Anna: O título é ruim. Dan: Você tem um melhor? Anna: Sério? Dan:Sim... Anna: O Aquário (Eles se olham). (MARBER: 18). Esse movimento criado pela intercalação, entre os diálogos, de rubricas que se referem ao olhar e ao ato de tirar fotografias, é um aspecto fundamental da construção dessa cena nÕ texto dramático de Closer. Ele tem a função de não apenas conduzir as falas .dos personagens (foco decisivo do envolvimento espectatorial), mas também levar a atenção para os olhos, ampliando o panorama da ação dramática. Dessa forma, 7; Em inglês, o termo utilizado é shot, e se refere ao ato de tirar uma fotografia. VISUALIDADES 305 enfatiza o papel desempenhando pelo olhar, na maneira como os personagens se relacionam, construindo espaços de proximidade e distanciamento, nos processos de envolvimento afetivo. Num outro extremo, ao transpor essa cena para o cinema, através das formas clássicas de representação do cinema narrativo-representativo, o filme constrói um complexo jogo de olhares (definido pelos posicionamentos de câmera e pela montagem), em que está implicada uma série de pontos de vista narrativos que, tomados conjuntamente, organizam uma orquestração de olhares sobre a cena. Aqui, os modos de envolvimento entre a platéia e a narrativa condensam uma situação lirrútrofe, entre mostrar e narrar a história, já que na conformação final dos planos e em sua organização concreta pela montagem estão imbricados, posicionamentos da instância narrativa: ou seja, ao acompanhar uma cena a partir de pontos específicos de visão (que podem ser fixos ou móveis), o filme implica nessas imagens uma série de significados latentes. Nessa cena, a câmera vai não apenas apresentar o estúdio de Anna, no momento em que ela fotografa e conversa com Daniel, mas, sobretudo, vai criar um movimento seguro e bastante calculado de pontos de vista. Esse movimento agrega os olhares do narrador sobre a cena e os olhares dos personagens dentro da cena. Assim, o ritmo criado no texto dramático entre os diálogos dos personagens e as rubricas textuais, é transformado, no processo dialógico de adaptação cinematográfica, no jogo de olhares que caracteriza a construção da cena nó cinema narrativo-representativo. Primeiro plano, com a imagem centrada em uma câmera fotográfica: ênfase no aparato de construção imagética. 306 ESTUDOS DE CINEMA Após o corte, surge a personagem que maneja a câmera. Ela olha diretamente para o visor do aparelho, de maneira a confundir o seu olhar com o da câmera. No mesmo plano, Anna ergue o rosto e olha para o lugar a que aponta. a câmera. Em sua fala ("Bom. Vou trocar o filme"), já se entrevê outro personagem, objeto do olhar de Anna. VISUALIDADES O plano seguinte apresenta Daniel, que ostensivamente retribui o olhar de Anna, abrangendo o jogo de olhares, a partir do qual a cena é construída. Após o corte , a imagem sobre o ombro de Daniel estabelece um ponto de · associativo: nesse momento, Anna e Daniel se tornam sujeitos e objetos do ".2! セ@ cena. . 307 308 ESTUDOS DE CINEMA Um novo corte amplia o espaço da representação e troca o ponto de vista: fica claro, então, como a cena é construída por um jogo de olhares (personagens, narrador e, finalmente , espectadores). Prestemos atenção no primeiro plano dessa seqüência: vê-se a câmera fotográfica , diretamente focada na lente; e o som lança o ruído que denuncia o disparo da máquina. Nesse simples plano estão envolvidos cinco olhares em confluência, ainda que a cognição contextual se complete através dos planos seguintes: primeiramente, há o olhar do narrador, que, em sua maleabilidade diegética, posiciona o quadro da forma como o apreendemos; em seguida, temos o olhar da câmera fotográfica, reconhecidamente caracterizada como aparato de captação de imagens; esse olliar da câmera, no entanto, representa, por contingência do signo, o olliar de quem a manuseia, ou seja, Anna, a fotógrafa; além disso, diante da câmera que captura as imagens, está Daniel, que, como objeto do olhar de Anna, olha para a lente (dessa maneira, o olhar do narrador se confunde com o olhar de Daniel, o que configura a forma mais clássica do PPV); e, por fim, há o olhar do espectador, para quem é articulado esse jogo, e que, no momento da projeção, tem que desvendar esse conjunto de pontos de vista, a fim de fechar o circuito e se inserir no desenvolvimento da cena. A aparente simplicidade desse único plano congrega uma mais internalizada complexidade, cuja forma está embutida nos procedimentos estéticos do cinema narrativo-representativo. O olliar aqui desempenha um papel crucial na dinâmica da representação simbólica e, como é o caso particular deste traballio de apreciação, na construção da cena, comparativamente, a um texto dramático. Dessa maneira, tomase indispensável a ênfase na questão do ponto de vista como categoria determinante no estudo comparativo entre cinema, teatro e literatura, uma vez que, no cinema narrativo-representativo, a informação tende a se tomar olhar. No decorrer da projeção, é estabelecida uma forma instável de representação, que transita entre uma pretensa autonomia da imagem, que indica uma ausência de mediação no manejo das cenas, e VISUALIDADES 309 a manipulação formal, denunciada, dessas imagens, tanto nos posicionamentos de câmera que implicam pontos específicos de visão, quanto na montagem que concatena os planos e estabelece implicações diegéticas e discursivas. Nas· três imagens seguintes, que encerram a cena que se está comentando, estão sintetizadas efetivamente as reflexões do presente trabalho acerca da construção do olhar em Closer. Daniel olha para a câmera fotográfica , que é o olhar da câmera cinematográfica, que é também o olhar de Anna, o olhar do narrador e, por fim, o olhar do espectador: um conjunto multi-laminado de olhares sintetizados num único plano. O corte apresenta a mâo de Anna, no momento do disparo da máquina. O movimento do dedo e o som do aparelho indicam a execução da fotografia. ESTUDOS DE CINEMA 310 Numa mudança rápida de plano, a imagem inicial da cena é retomada , evidenciando, inclusive, a abertura e o fechamento do obturador. Esses procedimentos de elaporação da cena, além de apontarem para a prevalência do olhar como principal estratégia de articulação dos planos e de concepção da imagem, concentram uma importante forma de observar os processos de adaptação de um texto dramático para o cinema. Na medida em que amplia a diegese, introduzindo pontos de vista diversos, habitando o espaço e inserindo o espectador dentro da cena, o filme Closer consegue estabelecer muito claramente o seu lugar num sistema particular de representação: o cinema narrativo-representativo. Com isso, toma patentes os artifícios utilizados na adaptação fílmica: apropria-se de uma questão muito pertinente ao texto dramático (o problema do olhar e sua relação com as formas de envolvimento afetivo entre os personagens), a leva ao nível da estrutura - a dinâmica do olhar, portanto, serve não apenas como conteúdo para o filme, mas, sobretudo, como forma de representação simbólica. BIBLIOGRAFIA BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BRANlGAN, Edwa.rd. Point ofview in the cinema: A Theory of Na.rration and Subjectivity in Classical Film. New York: Mouton Publishers, 1984. GENETTE, Géra.rd. Figures lJl. Paris: Éditions du Seuil, 1972. JOST, François. L'oeil-caméra: Entre Film et Roman. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1987. VISUALIDADES 311 MAGNY, Jõel. Point de vue: de Ia vision du cinéaste au regard du spectateur. Paris: Cahiers du cinéma, 2001. STAM, Robert. Literature through film: Realism, Magic, and the Art of Adaptation. Malden (USA): Blackwell Publishing, 2005. EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO E NA TV Arte e vida: novos caminhos para o cinema nos anos 1960 EL1ZABETt1 REAL (UFF) O FINAL DA DÉCADA de 1960 foi marcado, no Brasil, pelo Tropicalismo- ou Tropicália, talvez um termo mais apropriado se quiser estendê-lo a um espectro mais amplo das artes naquele momento, significando não o movimento musical, mas uma série de manifestações que dialogavam entre si, compartilhavam os mesmos anseios e idéias. Escolhido como título para a canção-manifesto de Caetano Veloso, o nome Tropicália designava um projeto ambiental montado pelo artista plástico Hélio Oiticica, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAMIRJ), em 1967, na exposição coletiva Nova Objetividade Brasileira. Silviano Santiago chama atenção para um aspecto fundamental na obra de Oiticica e que surgia nos shows dos músicos tropicalistas: a intenção de provocar uma participação mais ativa do espectador. O movimento tropicalista incorporava, na música, elementos não-musicais: reunia o corpo, a roupa, a dança, a música e a voz. Segundo Celso Favaretto, Caetano e Gil, mas principalmente o primeiro, faziam do corpo "uma espécie de escultura viva" (1996: 30). Ao jogar com o corpo e o movimento, a roupa, a música, a voz, a letra, Caetano Veloso atuava no palco "como se fosse um quebra-cabeça que só pudesse ser organizado na cabeça dos espectadores." (SANTIAGO, apudFAVARETTO, 1996: 31). Nessejogo,afloravamquestõespróprias do universo da contracultura - do discurso das questões negras, marcado pela aproximação de Gilberto Gil com a vestimenta e a música de origem africana, à liberação da sensualidade. A heterogeneidade do ambiente cultural brasileiro- a "geléia geral", como definiu Décio Pignatari- era ressaltada nas produções. Caetano comparou a forma de compor dos tropicalistas, o uso do sampler e de combinações musicais diversas, a readymades formados por ritmos de tendências e épocas diversas, incluindo o samba e a marcha, a bossa nova, o bolero, o mambo e o rock (DUNN, 2005: 65). Nas letras das 316 ESTUDOS DE CINEMA canções, colagens de elementos urbanos e modernos e de elementos da cultura popular expunham as contradições brasileiras, o desejo de modernidade justaposto à situação política opressora e à desigualdade social. Os músicos Rogério Duprat e Júlio Medaglia, figuras fundamentais do Tropicalismo, faziam experimentações que procuravam alinhar a música brasileira às vanguardas cosmopolitas, integrando elementos de duas tendências da música contemporânea, que partiam de Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen - de quem foram alunos em um curso de verão na Alemanha, no início da década de 1960 - e John Cage. Era flagrante o diálogo que se estabeleceu entre os vários campos artísticos a experiência brasileiranaquele momento, assim como a relação antropofágica ・ョエイセ@ a partir principalmente da retomada critica da tradição cultural popular- e movimentos artísticos internacionais. Podemos entender a Tropicália não como um movimento artístico marcado por características comuns, mas como um poderoso momento de experimentação. Momento em que as separações entre as diferentes categorias e gêneros artísticos aboliram-se e conceitos mais amplos aproximaram as diferentes artes, inclusive o cinema. Câncer - filmado em poucos dias, enquanto Glauber Rocha aguardava as filmagens de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro- nunca foi exibido em circuito comercial. E nem era esta a intenção do diretor. Segundo Glauber, seu objetivo, na verdade, era realizar uma "experiência" cinematográfica com a câmera 16 mm, a fim de explorar os resultados que poderia obter com a extensão, ao limite, de planosseqüência. A filmagem foi em agosto de 1968, no Rio de Janeiro, e a montagem só aconteceu em 1972, em Cuba. Para realizar o filme, Glauber convocou alguns atores que participariam do Dragão e montou urna pequena equipe de pessoas mais próximas. Além de Antonio Pitanga, Hugo Carvana e Odete Lara, presentes nos papéis principais, participaram de Câncer duas figuras fundamentais no quadro cultural daquele momento - o artista plástico Hélio Oiticica e Rogério Duarte, artista gráfico e poeta. Sem roteiro, o filme se organiza em tomo de algumas proposições do diretor para os atores. Em vários momentos do filme, sua voz intervém, ora inserida posteriormente, como no início, quando "fala" os créditos e situa o filme no quadro político e cultural em que foi rodado, ora em som direto, com a intenção de provocar os atores em cena. O papel do intelectual, o racismo, a situação da mulher na sociedade, a religião, a burocracia, a esquerda, a ditadura, a democracia, o desemprego e, sobretudo, a violência. São esses temas contemporâneos, colocados no alvo dos movimentos contraculturais, que detonam as situações. Duas seqüências são documentais: o debate no MAM e o desfile de modas. Nelas, sem som direto, Glauber grava, sobre a imagem, sua voz comentando o que se passava na cena e contextualizando a situação política da época. Nas outras seqüências, EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 317 ficcionais, é dada aos atores a tarefa de improvisar a partir de uma determinada situação proposta pelo diretor do filme. Em geral, tem-se a mistura de atores profissionais, artistas de outras áreas e atores não-profissionais. Os atores olham para Glauber e, em alguns casos, o diretor interfere na cena, como no caso do "Doutor Zelito", a quem Glauber dirige provocações. Nesse caso, quando a participação do ator parece se esgotar, o diretor pede então a ele que se retire. Há ainda um outro tipo de encenação proposta no filme, que parece uma espécie de teatro de rua e em que não se sabe mais qual o limite entre a ficção e a realidade. A primeira seqüência é a filmagem de um debate no MAM I RJ, que, a partir da segunda metade da década de 1960, representou papel significativo na articulação da resistência cultural e política. Presentes à reunião, tanto as figuras sentadas atrás de uma longa mesa quanto a grande platéia que assiste ao debate, estão personalidades conhecidas no quadro cultural brasileiro, entre intelectuais e artistas. Mas o que se discutia ali? Segundo Glauber, a arte revolucionária, em meio ao surgimento do Tropicalismo. Uma questão que os artistas de todas as áreas se colocavam nesse momento era sobre a possibilidade do desenvolvimento de uma arte de vanguarda em um país subdesenvolvido, como o Brasil: qual o seu papel, como conciliar experimentação e comprometimento do artista em um projeto político e social mais amplo, coletivo, particularmente sob um regime ditatorial? Tal discussão mobilizava totalmente a sociedade brasileira naquele momento, a partir de temas que gravitavam em tomo do núcleo duro da ditadura e do estado de dependência econômica e cultural do país, entre os quais o nacionalismo, o subdesenvolvimento, o imperialismo norteamericano. Em 1966, Helio Oiticica escreveu o texto Situação da vanguarda no Brasil, apresentado no seminário paulista Propostas 66. Nele afirmava a existência de uma vanguarda brasileira independente de quaisquer movimentos estrangeiros- americano ou europeu -, mas não negava vínculos com eles, pois compreendia que, em arte, nada existe desligado de um contexto internacional. Enfatizava o deslocamento conceitual que se efetuava em relação ao espectador, que, de seu papel de "contemplador" da obra realizada pelo artista, passava a "participador" das proposições criativas mediadas pelo artista, abrindo-se, para ele, a possibilidade de experimentar ou vivenciar a criação. Característica da vanguarda brasileira, para Oiticica, seria a adoção da noção de "objeto" em um projeto mais amplo, de arte ambiental, que envolvesse todo um "conjunto perceptivo sensorial" (PEDROSA, 2006: 144), contraposto a categorias artísticas estabelecidas tradicionalmente, como pintura ou escultura. Essas eram idéias que já vinham sendo elaboradas desde o Neoconcretismo. No texto Teoria do nãoobjeto, publicado paralelamente à li Exposição Neoconcreta, realizada em 1960, Ferreira Gullar concluía que "a pintura e a escultura atuais convergem para um ponto comum, afastando-se cada vez mais de suas origens". Elas se tomam não-objetos "para os ESTUDOS DE CINEMA 318 quais as denominações de pintura e escultura já talvez não tenham mais propriedade" (2007: 3). No Esquema geral da Nova Objetividade, Oiticica afirmava "a necessidade de tomada de posição em relação aos problemas políticos, sociais e éticos, necessidade essa que se acentua a cada dia e pede uma formulação urgente" (2006: 163). O Esquema consta no catálogo da mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada em abril de 1967, no MAM I RJ, e é subdividido em seis itens através dos quais o autor procura sistematizar as características da arte brasileira de vanguarda daquele momento, que ele define como "Nova Objetividade". Segundo ele, não se tratava de um movimento articulado, mas de várias tendências que possuíam pontos em comum, visões múltiplas que compunham uma unidade. No primeiro item, Oiticica destacava a "vontade construtiva geral", que seria uma característica comum a todos os movimentos inovadores do Brasil, incluindo o Modernismo de 1922, com o sentido de se manter a busca pelo que é verdadeiramente brasileiro e que se diferencia do europeu ou do americano. Sendo a antropofagia oswaldiana a "redução imediata de todas as influências externas a modelos nacionais" (2006: 155), Oiticica defende a "superantropofagia" a fim de abolir o colonialismo cultural. No segundo item, Hélio constatava a "tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete" à qual já nos referimos. Nesse item, ele faz uma análise dos artistas que expuseram na mostra e aponta pessoas, grupos ou correntes que foram importantes para a formulação do Esquema, como a seguir: Neoconcreto { Grupo Poesia Participante (Gullar) Grupo Opinião (Teatro) Cinema Novo LygiaClark Realismo Carioca Popcreto Realismo Mágico Parangolé }Nova Objetividade (2006: 162) No terceiro item, aparece a "participação do espectador" em oposição à "pura contemplação transcendental" e, no quarto, a "tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos", em que condenava "a velha posição esteticista". O quinto item diz respeito à "tendência a uma arte coletiva" e, finalmente, no sexto item, "o ressurgimento do problema da antiarte". Nesse último item, Oiticica retoma a questão do relacionamento do artista com o público e da possibilidade de fazer arte de vanguarda em um país subdesenvolvido. O artista vê-se diante da necessidade não de apenas criar, mas. comunicar-se, propor: "É essa a tecla fundamental do novo . conceito de antiarte: não apenas martelar contra a arte do passado ou contra os conceitos EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA lV 319 antigos, (... ) mas criar novas condições experimentais, em que o artista assume o papel de proposicionista" (2006: 167). Na mostra Nova Objetividade Brasileira, Hélio Oiticica montou o seu projeto ambiental Tropicália. Para ele, as sensações provocadas por Tropicália remetiam às que tinha ao caminhar pela favela. Entrar e sair, dobrando "pelas quebradas" da Tropicália, lembravam as caminhadas pelo morro" (FAVARETTO, 1992: 138). Tratavase de uma espécie de labirinto por onde os espectadores circulavam e viviam diversas experiências sensoriais, com cores, areia e som. Em Oiticica, era forte o sentido da "vivência", deslocando a arte do domínio da imagem para o da "experiência", na qual o corpo tomava-se não suporte, mas parte integrante da obra. A atitude assumida pelo artista é não mais a do criador absoluto, mas a do "motivador para a criação". Esta se completa com a participação ativa do também não mais "espectador", mas "participador". Ao abrir-se a esta participação, multiplicamse as possibilidades, incorporando também o imprevisto. No cinema, há uma mudança na relação com o espectador quando ocorre uma quebra nos códigos narrativos clássicos. Em Câncer, isso acontece não apenas com a extensão dos planos ao limite ou com a negação de uma teleologia narrativa, mas com o próprio processo de criação. O improviso que se abre à participação de atores e não-atores, a idéia de proposição de um tema central em tomo do qual se desenrola a seqüência, inclusive com a provocação direta de Glauber em alguns momentos, ligam-se às experiências que se realizavam nas artes plásticas e no teatro, a partir dos anos 50. Há duas seqüências em que os bandidos, Carvana e Pitanga, discutem sobre o "objeto" roubado por um deles de um americano. Eles não sabem do que se trata e o levam para vender ao Doutor Zelito. Os três, apesar de ainda não saberem o que era aquele objeto, negociam um valor. Pode-se pensar a partir disso sobre o que se trata: que tipo de objeto é negociado? Uma obra de arte? Um dispositivo tecnológico? Como valorizá-lo? De toda forma, é o objeto que provoca a ação dos personagens, ou dos atores, que têm que improvisar a partir dele, propor significados para ele. Pode-se pensá-lo como desempenhando o mesmo papel que o "objeto" como estava proposto pelos artistas plásticos- tem o sentido de incitar à participação, deixar para o outro a tarefa de completar o sentido. Ao longo da seqüência, a voz de Glauber interfere repetidamente, provocando os atores. Paralelamente a essa ação, enquanto os três negociam, um homem, deitado em um canto da sala, é espancado por Carvana e depois por Pitanga. A violência é tratada com banalidade, como algo dentro do normal. Até que, no final da seqüência, o homem reage e passa a bater em Pitanga. O racismo, que está presente como provocação ao longo do filme, aparece também nesta seqüência: Pitanga, ao final, que foi quem conseguira o objeto, é acusado pelo parceiro de ter ficado com o dinheiro. Nas seqüências ficcionais de Câncer, pode-se constatar que se estabelece uma espécie de jogo entre o que é previsto, proposto pelo diretor, e aquilo que é o imprevisto, 320 ESTUDOS DE CINEMA que deve ser completado pelo ator. Essa mescla realizada por Glauber, a ambigüidade das situações propostas, o esfumaçamento da fronteira entre ficção e documentário, acabam por gerar um novo tipo de relação com o espectador, que é desafiado a dar ordem ou a tentar entender o que está se passando. Ao falar sobre O leão de sete cabeças e a forma como foi realizado, Glauber enfatiza que o filme fora baseado fundamentalmente no improviso e no modo próprio de representação do teatro africano, com a total cumplicidade dos atores que criaram, inclusive, os diálogos. Para simbolizar os elementos em conflito na luta contra a colonização, o diretor lançou mão de personagens: a mulher loura que representa o imperialismo, o agente da CIA, o padre, o guerrilheiro latino-americano, o chefe revolucionário negro etc. Negando que tais personagens fossem "sirnbolos alegóricos abstratos" que não estivessem baseados na realidade, ele referencia o processo de criação como inspirado no teatro de Brecht (2002). Glauber rejeita as convenções narrativas do cinema que, segundo ele, foram criadas dentro de uma lógica da dramaturgia burguesa de origem européia e critica o estabelecimento de separações entre as artes, em especial entre o cinema e o teatro. Se o teatro é uma representação no palco, o cinema é uma representação na tela... Diz Glauber: "As pessoas dizem: isso é cinema! Isso não é cinema!, porque o cinema imperialista criou um tipo de narrativa dizendo que aquilo era cinema" (2002: 109). No processo de criação, o que se destaca é a importância da participação coletiva na construção do filme: O diretor de cinema, de Stroheim a Visconti, sempre foi um mestre de cerimônia em função de um interesse da cultura, de certa tradição, a tal ponto que o cinema se converteu numa mecânica completamente ridícula e inútil de convenções dramáticas, de close up para dizer "eu te amo". Uma coisa completamente absurda que não reflete verdadeiramente o comportamento do homem verdadeiro. É toda uma coisa mistificadora, não? Então hoje só a criação coletiva, só a participação coletiva na criação de um filme ou de uma peça de teatro, pode fornecer aos artistas, aos diretores e aos cenógrafos os dados de uma linguagem nova. (ROCHA, 2002: 45-6). Ao mesclar tipos diversos de encenações, utilizando-se de recursos originados de outras artes, como a performance e o teatro, inserindo cenas documentais e incorporando a participação de não-atores e de artistas de outros campos, Glauber propõe um novo relacionamento com a linguagem que ultrapassa a tentativa de experimentar estritamente a partir dos códigos cinematográficos usuais, como a montagem e o enquadramento, por exemplo. Essa experiência de Glauber, em Câncer, e suas idéias remetem a um contexto mais amplo do que ocorria nas artes, naquele período. O improviso, a criação coletiva, a busca de utilizar-se de linguagens de outros campos, além do cinema, a ligação com a realidade e o cotidiano são preocupações presentes nas pesquisas de artistas de EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 321 várias áreas, em todo o mundo, que começaram a tomar força a partir de meados da década de 1950. O compositor americano John Cage foi figura fundamental na virada ocorrida nas artes, nos Estados Unidos, nos anos 1950. Experimentando com os ruídos produzidos pelos mais inusitados "instrumentos", Cage encontrou na filosofia e na música orientais a inspiração para suas composições, que partiam de noções de acaso e indeterminação. "Tal música, dizia ele, deixaria mais claro ao ouvinte que 'a audição da peça é a ação própria dele - que a música, por assim dizer, é dele mais que do compositor"' (ARCHER, 2001: 106). Segundo Arthur Danto, as experiências de Cage situavam-se no limiar entre música e ruído, entre arte e vida (2002: 24). Na dança, o bailarino Merce Cunningham desenvolvia as mesmas idéias, abandonando o estilo tradicional para adotar movimentos inspirados nos gestos cotidianos. Cage, na música, e Merce Cunningham, na dança, formaram uma parceria em diversos projetos. Suas experiências, que culminam no surgimento do conceito da live art, foram fundamentais para o aparecimento, em 1962, do Fluxus, que reunia artistas de nacionalidades diversas em uma série de atividades - performances, happenings, publicação de livros, realização de filmes e vídeos. Na verdade, tratavase mais de "uma tênue associação de artistas com idéias mais ou menos similares do que um grupo bem definido" (ARCHER, 2001: 33). Suas ações coletivas, que procuravam juntar arte e cotidiano e destruir convenções estabelecidas, reavivaram o espírito dadaísta. Seu principal articulador foi o lituano radicado nos Estados Unidos, George Maciunas, mas vários outros artistas fundamentais para a arte contemporânea fizeram parte dessa história. Maciunas, em 1963, escreveu o Manifesto Fluxus, no qual explicitava a intenção do movimento de "purgar o mundo da doença burguesa, 'intelectual', cultura profissional e comercializada, PURGAR o mundo da arte morta, imitação, arte artificial, arte abstrata, arte ilusionista, arte matemática, - PURGAR O MUNDO DO 'EUROPANISMO'!" (2002: 94). Posicionando-se contra a arte como mercadoria, os artistas passaram a se valer do próprio corpo como material, abrindo mão da produção de objetos que pudessem ser comercializados. A ênfase da arte voltou-se para o processo de criação em que o que importava era a comunicação de idéias e conceitos. A performance tomou-se um importante meio para a expressão de tais idéias, uma forma de traduzir conceitos em obras ao vivo. Performers vinham de diferentes áreas -poesia, música, dança, pintura, escultura ou teatro - e utilizavam suas ações para reduzir o espaço entre artista e espectador, que muitas vezes era convidado a participar. Em Câncer, a proposta de Glauber aos atores e aos outros participantes assemelha-se à realização de performances. Em algumas seqüências, percebe-se que suas estratégias coincidem com obras de alguns artistas. A apropriação da cidade, por exemplo, cujas ruas são percorridas de carro por Glauber e equipe, foi experimentada ESTUDOS DE CINEMA 322 por Vito Acconci, em 1969, que, em seu trabalho Following Piece (parte de Street Works IV) seguia pessoas pelas ruas até que chegassem ao seu destino. Yoko Ono, em 1970, propunha ao espectador que fizesse um mapa imaginário e depois que caminhasse por uma rua da cidade, seguindo o mapa. Havia um tipo de performance, conhecida como autobiográfica, em que o artista se valia de sua própria história pessoal. Segundo RosaLee Goldberg, "vários artistas recriaram episódios de suas próprias vidas, manipulando e transformando o material numa série de performances através de cinema, vídeo, som e solilóquio" (GOLDBERG, 2006: 141 ). É o que parece acontecer no momento do desabafo de Odete Lara em uma seqüência de Câncer. Se em Câncer o diretor se faz presente através da voz, provocando os atores ou falando diretamente para o espectador, em Claro, filmado em 1975, em Roma, o próprio Glauber aparece ao lado da atriz francesa Juliet Berto, que era sua mulher na época. Feito em 16 mm, bitola não apropriada ao circuito comercial de salas de exibição, Câncer parece representar um ponto de inflexão no cinema de Glauber Rocha que, no lançamento do filme, afirmava que "o caminho do cinema são todos os caminhos". Em seus trabalhos seguintes, o diretor aprofundou-se nesse processo de criação aberto à participação dos atores, atuando cada vez mais como um "propositor", e na proposta de um cinema que lançasse ao espectador o desafio de completar o sentido do filme e pensar sobre os limites da arte. BIBLIOGRAFIA ARCHER, Michael. Arte contemporânea. Uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DANTO, Arthur. 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Ao final, será levantado outro aspecto da questão, o diferencial desse programa em relação à produção para cinema e televisão que há cerca de duas décadas apresenta a combinação paradoxal entre elementos modernistas ou de vanguarda com a tradição da narrativa clássica. Falar da presença de traços do cinema moderno e de vanguarda na TV pode provocar a lembrança de programas de Godard para a TV francesa, como Histoire(s) du Cinéma, ou de Greenaway para a BBC, como TV Dante; no campo nacional, pode-se recordar dos quadros de Glauber Rocha no programa Abertura, ou a recente microssérie Pedra do reino, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. 1 Esses programas utilizaram de forma extensiva aquilo que Noel Burch chamou de "estruturas de agressão" (1992: 149-63), a fim de desestabilizar expectativas do público, um dos traços fundamentais das poéticas modernista e de vanguarda, cada qual com seus objetivos. Cena aberta coloca problemas de outra ordem. Pode-se apontar como indício da complexidade envolvida as reações diante da produção de Furtado e Arraes. O professor Juremír Machado, por exemplo, afirmou que 1. A publicidade da exibição Pedra do reino nos cinemas assumiu os adjetivos em geral atribuídos aos filmes modernistas brasileiros, como os de Glauber Rocha. Num folheto promocional, por exemplo, lê-se: "incompreensível", "extraordinária", "hermética", "barroca", "selvagem", "obra de arte". ESTUDOS DE CINEMA 326 Furtado é um bom publicitário que vendeu uma imagem de rebelde jamais demonstrada. Não por acaso ele se tornou um dos grandes valores da Rede Globo, pois a sua linguagem cinematográfica corresponde exatamente ao padrão Globo de televisão: o folhetim por camadas sociais. Enquanto Guel Arraes representa o humor tosco, Furtado lapida a sua arte de dar profundidade aparente ao profundamente superficial (2003). Em outras palavras, Furtado estaria na lista de diretores que pretendem ser comerciais e de vanguarda ao mesmo tempo, tudo fazendo de forma calculada para vender. Embora realize algumas experimentações, Furtado logo se acomodaria nas fórmulas da mídia, ou seja, na espetacularização. "Comercial e de vanguarda"- essa combinação surge, segundo esse ponto de vista, como um sinal de artimanhas retrógradas e mercantilistas. Por outro lado, mesmo defensores de Furtado e Arraes incorrem em problemas que têm a mesma raiz que a de seus críticos. No artigo "O Núcleo Guel Arraes e sua 'pedagogia dos meios"', de Yvana Fechine (2007), faz-se um histórico do Núcleo Guel Arraes e procede-se à descrição de seus produtos, tratando-os como um conjunto singular na produção televisual em vista da idéia de TV de qualidade. A "pedagogia dos meios" (ou seja, a exposição paradidática sobre os meios audiovisuais) é a característica exaltada. Enquanto a produção da Globo é quase sempre naturalista, ou seja, procura construir a impressão de realidade, a produção do Núcleo, Cena aberta em especial, operaria no sentido de ilustrar o público quanto ao processo de produção ficcional da TV. Estes resumos são muito breves, mas indicam características centrais das duas linhas de avaliação crítica. Em comum há problemas teóricos. No caso do discurso desqualificador, de inspiração frankfurtiana, com aportes de Debord, Cena aberta não passaria de um logro. Não é contemplada a possibilidade de haver ocorrências diferenciadas, alheias à conceituação habitual (arte erudita x espetáculo) que obrigassem à reflexão sobre programas como Cena aberta, O discurso em apoio a Cena aberta, por sua vez, constitui-se como um estudo de caso, metodologia que apenas se completa quando a pesquisa aponta para uma realidade não evidente, o que só pode ser alcançado com auxílio teórico (BRAGA, 2007). Não se questiona, por exemplo, quais relações Cena aberta mantém com as tradições do audiovisual, com os estilos narrativos (que são entidades teóricas). Há um passo adiante em relação à outra postura, pois não se recusa a priori o exame do programa, porém é necessário avançar a investigação. 2 . Anomalias teóricas, em termos da filosofia da ciência. EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 327 Propõe-se aqui um quadro conceitual que evite abordar Cena aberta e congêneres como aberrações 2 ou como ocorrências felizes e eventuais, sem que 0 tratamento signifique a rejeição ou aprovação a priori do programa. - ASPECTOS FAMILIARES Destaque-se em Cena aberta a confluência de tradições heterogêneas. Em primeiro lugar, os componentes familiares. Os quatro capítulos que compõem o programa exibem o processo de adaptação de obras literárias para a TV, com traços do formato de making of 1) A hora da estrela, baseado na história homônima de Clarice Lispector, expõe a escolha da moça que interpretará o papel de Macabéa, além de revelar a direção de atores (com Regina Casé dirigindo as candidatas) e o trabalho de edição; 2) O negro Bonifácio, do conto de Simões Lopes Neto, mostra a preparação de atores para a composição de personagens regionais, no caso, gaúchos, com o treinamento de sotaque, gestualidade e outras particularidades; 3) Ópera de sabão, do romance de Marcos Rey, apresenta a criação do roteiro e o trabalho da retaguarda de produção: maquiador, faxineira, etc.; 4) As três palavras divinas, do conto de Tolstói, revela como é feita a utilização de não-atores, além expor a criação de cenários e truques, como o da neve artificial e do vôo do anjo. Trata-se de falsos making of's, pois não existem os produtos finais a que se referiria o "of' dessa expressão: não foram realizados A hora da estrela, Negro Bonifácio e as outras histórias enquanto programas integrais, como o making of de Titanic tem como referencial o filme Titanic. O mesmo poderia ser dito de uma possível associação com o Vídeo show. Em Cena aberta há também a exposição do trabalho de encenação, erros de gravação etc., mas, ao contrário do Vídeo show, que toma por objeto as telenovelas, seriados, minisséries, enfim produtos da programação da Globo, nunca foram completados os quatro capítulos ficcionais. É provável que a semelhança com verdadeiros making of s e quadros do Vídeo show permita a sensação de familiaridade de grande parte dos espectadores, primeiro passo para uma relação de aprendizado sobre a criação televisual. Por outro lado, pode-se muito bem imaginar como seriam os quatro produtos ficcionais caso se concretizassem integralmente e pudessem um dia ter sido encontrados na grade da emissora. A partir dos testes e ensaios, percebe-se que o resultado seriam produções naturalistas, à maneira da imensa maioria do que se faz na ficção televisual ESTUDOS DE CINEMA 328 brasileira. Procura-se uma moça com traços de nordestina para interpretar Macabéa; 0 baiano Lázaro Ramos e a carioca Carolina Dieckmann aprendem o obscuro vocabulário do interior gaúcho; a peruca da protagonista de Ópera de sabão precisa ser convincente; o cenário de As três palavras divinas deve coincidir com o que o senso comum aceita como um ambiente rural russo de séculos passados. As liberdades que se tomam em relação aos textos originais, como a introdução do happy end em Ópera de sabão (não há o aborto, o casal termina junto), também atuam no sentido da busca da aceitação por parte de um público amplo, habituado a soluções desse tipo. Além do mais, nos trechos em que se vislumbra o que seriam os produtos finais, os recursos técnicos, como edição, iluminação e enquadramentos, seguem as prescrições do estilo narrativo clássico, que os espectadores conhecem do cinema e da ficção televisual brasileira e internacional. MODERNISMO E VANGUARDA Cena aberta possui também aspectos pouco familiares ao grande público. As entrevistas das moças poderiam se restringir ao que a própria Regina Casé costuma fazer em seus programas. Todavia, há uma estranha conjunção de encenação e realidade, de modo que não é evidente, a cada momento, se as moças estão encenando ou falando delas próprias. Esse efeito tem uma longa história no audiovisual. Pode ser identificado, por exemplo, em cenas de Masculino-Feminino (1966), de Godard, quando os personagens (ou atores) entrevistam-se uns aos outros, e em especial quando um deles entrevista uma jovem que não é atriz, mas exatamente aquilo que diz ser, uma moça comum, que ganhara um prêmio de beleza juvenil. A agressividade dos entrevistadores cria tensão, pondo em xeque os entrevistados, que são vistos em câmera imóvel, planos longuíssimos e incômodos a qualquer público habituado à narração clássica, seja nos anos 1960 ou atualmente. Em Cena aberta, ainda que haja a fusão entre real e ficcional, o estranhamento é amenizado, inclusive devido aos planos curtos das várias entrevistadas. Os elementos de conhecimento público estão mesclados a procedimentos que reciclam a metalinguagem modernista, no sentido jakobsoniano, característica privilegiada de textos modernistas (como da própria Clarice Lispector), que se traduz em referências à linguagem audiovisual da maior parte da programação da Globo. A "pedagogia dos meios" possui tanta semelhança com making of's e Vídeo show quanto se vincula a uma pedagogia cinematográfica vanguardista que remonta a Um homem com uma câmera (1929). Vertov também, à sua maneira, expôs como se faz um filme, abrindo ao grande público a cena cinematográfica, por exemplo, na célebre seqüência em que exibe a montagem do próprio filme. Não há em Cena aberta equivalente perfeito ao trecho em que se congela a imagem da carruagem e EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA 1V 329 passa-se à sala de montagem em que os segmentos do próprio Um homem com uma câmera são manipulados pela montadora. Não teria sido impossível fazê-lo, de modo a revelar-se o trabalho na ilha de edição. Em Cena aberta, porém, optou-se pela discrição, fazendo-se o vínculo, neste caso, com a proposta auto-reflexiva do cinema moderno. Tome-se como exemplo a seqüência de Cena aberta em que Macabéa sai do quarto de pensão desce a escada, fecha o portão e caminha na rua. A estrutura de edição é clássica, portanto familiar ao grande público, com um elemento contraditório, condição para o rompimento do ilusionismo: três cortes compõem as quatro cenas em continuidade espaciotemporal, mas Macabéa é interpretada por quatro moças diferentes, as candidatas ao papel. Revela-se a descontinuidade. Pode-se arriscar a dizer que não é necessário um repertório erudito para captar esse trabalho de edição, mesmo porque àquela altura já era do conhecimento do espectador que as moças faziam testes para desempenhar o papel de Macabéa. É possível admitir que muitos espectadores compreendam que os quatro planos foram pinçados dos testes, editandose o plano inicial, dentro do quarto de pensão, usando o teste da primeira moça com o plano da escada do teste da segunda, e assim sucessivamente. PÓS-MODERNISMO Jean-Claude Bernardet certa vez escreveu que o cinema dos anos 1960 denunciava aos espectadores: "Eis o esqueleto do monstro de produzir ilusões" (1985: 79). Referia-se a filmes como os de Glauber Rocha e Sganzerla, elaborados para, entre outros objetivos, denunciar o ilusionismo do cinema clássico, ideal modernista. Como escreveu o crítico Clement Greenberg, para os modernistas, ilusão é embuste (1997: 68). Numa realização como Cena aberta, a perspectiva é diferente, embora também passe pela revelação do mecanismo que produz a impressão de realidade: mostra-se o esqueleto, mas o monstro não é tão feio. A combinação de aparência esdrúxula entre procedimentos naturalistas e antinaturalistas, em rápida alternância, manifesta o que Linda Hutcheon chamou de caráter paradoxal do pós-modernismo (1991: 60-83). É a essa poética que se relaciona o programa de Arraes, Furtado e Casé. Por que a expressão "pós-modernismo" e não outra qualquer para designar esse fenômeno cultural e artístico? É provável que ninguém tenha dado melhor resposta à questão do que Paolo Portoghesi, arquiteto e teórico italiano, que chamou a palavra "pós-modernismo" de o mais incômodo e paradoxal dos adjetivos, porém o único a exprimir a recusa de certa continuidade, a do modernismo (2002: 25-6). Este se baseia no axioma de que só tem valor o que é novo, daí o requisito fundamental de originalidade, o que, disse Portoghesi, constitui a subscrição de uma "espécie de seguro" em favot do caráter perpétuo e insubstituível do modernismo: ESTUDOS DE CINEMA 330 Premissa 1: O que é novo é moderno. Premissa 2: O que é moderno é novo. Conclusão: Nada de diferente do moderno jamais poderá surgir no horizonte da história da arte. Eis contra o que se coloca o pós-modernismo, na acepção aqui indicada, com a qual se refutam avaliações como a apontada no início: vanguarda e comercial como indício de falcatrua artística. 3 Cena aberta quebra o hermetismo da proposta modernista. Na medida em que a originalidade deixa de ser o ideal a ser perseguido a todo custo, incrementa-se a possibilidade de denominadores comuns entre o programa e o repertório do grande público. A proposta de propiciar o conhecimento do processo de produção da ilusão naturalista poderia ser identificada ao ideal das vanguardas históricas das primeiras décadas do século XX, que, diferentemente do modernismo em geral, sempre defenderam a inclusão da arte na vida cotidiana. Contudo, seria uma equiparação superficial: toda vanguarda executa uma espécie de tratamento de choque, mesmo em Vertov, possivelmente o mais pedagógico dos vanguardistas do cinema. Por isso, o pós-modernismo não é um simples revival de tradições. O caráter paradoxal envolve, segundo Hutcheon, a superação das antíteses típicas dos que teorizaram sobre o pós-modernismo, que em geral colocaram a oposição entre modernismo e pós-modernismo na forma de duas colunas de características aparentemente inconciliáveis, reproduzida, por exemplo, em HARVEY ( 1996: 48): MODERNO PÓS-MODERNO Propósito Jogo Determinação Indeterminação Transcendência Imanência Hierarquia Anarquia Distância Participação Metafísica Ironia 3 . Uma exposição sobre diferentes concepções acerca do pós-modernismo pode ser encontrada em PUCCI JR. (2006). . EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 331 Para Hutcheon, o pós-modernismo não seria o lado direito desse esquema, mas a combinação entre as duas colunas: jogo càm propósito, por exemplo, que resultaria no caráter simultaneamente lúdico e critico da produção pós-modernista (1991: 74). Em Cena aberta, há a combinação entre naturalismo e antinaturalismo, entre comercial e vanguarda. "Comercial" porque voltado para a comunicação com o grande público; "vanguarda" porque não opera apenas com a espetacularização, mas também a desconstrói. O caráter paradoxal esteve presente no pós-modernismo cinematográfico brasileiro desde o início dos anos 1980 em filmes como Cidade oculta (Francisco Botelho, 1986), Anjos da noite (Wilson Barros, 1987) A dama do cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1988). Na televisão brasileira, com características audiovisuais e narrativas um tanto diferenciadas em relação ao cinema pós-moderno (sumiu o neon, símbolo do fake), surgiu na mesma época o pós-modernismo com Armação ilimitada, seriado dirigido por Guel Arraes (PUCCI JR., 2007). Partia-se para a superação do divórcio entre cinema e TV no Brasil: elementos dos programas do Núcleo Guel Arraes passando ao cinema, como em Carlota Joaquina, ou nas minisséries Auto da compadecida e A invenção do Brasil, que foram transformadas em filme. Cena aberta é mais um episódio desse processo. CONCLUSÃO Ainda um último aspecto de Cena aberta merece comentário, em vista da relevância para o mapeamento do pós-modernismo no audiovisual brasileiro. Normalmente, a "pedagogia dos meios" se fez no pós-modernismo de forma integrada à narrativa. Um exemplo: o trecho de Anjos da noite em que um casal está na Avenida Paulista e quer ir ao apartamento da mulher (interpretada por Marília Pêra). O rapaz (Guilherme Leme) diz que vai chamar um táxi; .a mulher fala que não é necessário, que farão "como no cinema". Dão-se as mãos, fecham os olhos, contam até três. Corte seco e surgem no apartamento. O rapaz solta uma exclamação ambígua, que se pode referir tanto a um suposto e inexplicável teletransporte como ao aspecto luxuoso da decoração (sugerindo a ocorrência uma elipse temporal). Em suma, é possível, embora não exclusiva, a leitura metalingüística (PUCCI JR., 2003: 62-3). Em Cena aberta, a exposição dos procedimentos narrativos e das técnicas é simultaneamente mais complexa e mais acessível. Vai-se aos bastidores, mostra-se o processo de produção do ilusionismo, exibem-se partes de seu resultado, ressaltamse notas destoantes, como a caracterização de Wagner Moura como Olímpico, em A hora da estrela (a interpretação é naturalista, ele faz com perfeição o nordestino arrogante e mau-caráter que namora Macabéa; contudo, não está vestido como um nordestino humilde que tentasse se aculturar no Rio de,. Janeiro, e sim como Wagner Moura). É um ensaio de gravação- eis a justificativa para os que só pensam em ESTUDOS DE CINEMA 332 termos de making of; mas também é possível ver, quase ao mesmo tempo, como nas célebres figuras de gestalt, a 。ャエセュ¬ョ」ゥ@ entre personagem e ator. A exposição do processo de criação de programas de TV, combinada com a fusão de realidade e ficção, leva Cena aberta a um caminho no mínimo incomum. Talvez se possa dizer que o pós-modernismo na televisão brasileira chegou com 0 programa a um patamar diferenciado. 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O valor estético dos videoclipes para canções de filmes: marcas autorais como diferencial expressivo RoDRIGO RIBEIRO BARRETO (UfBA) 1 QUER ESTEJAM avaliando o terreno da arte ou do que se considera mero entretenimento, os analistas contemporâneos deparam-se com uma inafastável realidade pronta a diluir o estabelecimento de polaridades mais radicais no contexto cultural: a já estabelecida interseção entre os diversos campos de produção. Basta lembrar, em termos financeiros, a progressiva concentração de empresas- marcadamente a partir dos anos 1990- voltadas para a produção, veiculação, divulgação e até mesmo venda direta de bens culturais. Tais conglomerados, como Time Warner Inc., Sony Corporation ou Viacom, unem os campos musical, televisivo, cinematográfico, jornalístico, literário, etc., tirando o máximo proveito da sinergia, definida por Peter Fraser como o "processo através do qual um produto midiático pode ser usado para ajudar a vender um outro, frequentemente da mesma companhia" (FRASER, 2005: 74). Essa maximização dos efeitos de venda, no entanto, não impede que certos realizadores- imersos neste universo de grande competitividade- fujam do já visto e repetido, buscando sublinhar a sua capacidade expressiva e artística mesmo em produtos audiovisuais situados no cerne de todo esse interesse mercadológico, a exemplo dos videoclipes. O leitmotiv deste artigo reside precisamente na identificação de investimentos artisticamente ambiciosos, de artistas musicais e diretores, neste formato, por serem estas as instâncias que mais claramente permitem tecer considerações a respeito do estabelecimento de novas posições autorais no próprio contexto de produção dos clipes. Sem pretender fugir de sua vinculação comercial, e lidando diretamente com a interseção com outros campos de produção artística, faz-se aqui a opção pela , I. A pesquisa do autor/doutorando é apoiada pelo CNPq na condição de bolsista. ESTUDOS DE CINEMA ,334 avaliação do valor estético de um subtipo de vídeo musical que está duplamente entranhado nesta lógica de divulgação e inter-influência: o clipe para canções incluídas em filmes. Há quase três décadas, a elaboração de clipes para canções de filmes atende a interesses tanto da indústria musical quanto da cinematográfica.2 Para cumprir esta função promocional, no entanto, os videoclipes precisam valer-se como produto cultural per se, evoluindo para além do mero papel de trailers ou anúncios dos longasmetragens. Como afirma Andrew Goodwin, somam-se a esta dupla demanda econômica novas exigências narrativas:"( ... ) o clipe tem que vender um filme assim como um álbum e deve permitir que a narrativa cinemática seja experimentada sem dela entregar demais" (GOODWIN, 1992: 163). É precisamente na operação de incorporações originais e inusitadas do material filmico à sua disposição que diretores e artistas musicais demarcam seu diferencial criativo. Tal originalidade, em última análise, garante um maior grau de atratividade para as emissoras de TV e público, e assim o sucesso desses vídeos musicais. CLASSIFICAÇÃO DOS VIDEOCLIPES PARA CANÇÕES DE FILMES Partindo do contexto de produção para a manifestação textual da incidência filmica, neste tipo específico de videoclipes notam-se diferentes graus de reorganização do material oriundo dos longas-metragens em questão. A classificação aqui proposta resume- em três categorias-, um percurso no qual o papel do diretor cinematográfico na construção de sentido destes vídeos musicais vai sendo gradualmente substituído pela contribuição/colaboração do diretor de clipes e do artista musical para o formato. Embora esse processo trate-se - na perspectiva de uma progressiva autonomização do campo do videoclipe - de uma evidente evolução, não se deve perder de vista que representantes de cada um dos três grupos descritos continuam a ser produzidos e veiculados. A primeira das categorias propostas seria a dos clipes exógenos, nos quais todo o visual exibido pelo vídeo musical vem do filme promovido, tendo sido, portanto, inteiramente filmado pelo diretor de cinema. O máximo de trabalho demonstrado na organização de clipes exógenos é a reedição de diferentes cenas do longa-metragem 2. Além da gravadora, a produção de um videoclipe para canção de filme tem, portanto, coriló especificidade o acréscimo da influência das instâncias de marketing cinematográficas. Lara M. Schwartz (2007: 42) sinaliza o papel ativo dos departamentos musicais ("soundtrack department'') dos estúdios de cinema na criação do videoclipe. A liberação do material filmico, que fará parte da composição de muitos destes clipes, é feita inclusive através destes departamentos. EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 335 de modo coerente com o ritmo musical e a atmosfera sugerida pela canção. Contudo, há ainda os casos em que até mesmo o trabalho de um editor para o vídeo é dispensado, optando-se pela apresentação de todo um trecho do filme na íntegra, algo possível especialmente quando a origem é uma obra cinematográfica musical. Nessa categoria, o artista musical só estará presente no videoclipe caso ele ou ela seja também um dos intérpretes/participantes do filme: mantém-se assim a característica do clipe exógeno de não trazer qualquer material original e exclusivo. Para Caro! Vemallis, videoclipes assim são"( ... ) os mais francamente semelhantes a anúncios (... ) esses vídeos são considerados [pelos fãs] como manipuladores e fáceis demais, não sendo encarados como 'verdadeiros' vídeos" (2004: 204). Os clipes mistos constituem a maioria dos vídeos para canções de filmes. Neste diversificado grupo vê-se a reconfiguração de cenas do filme associadas a material, originalmente captado para o videoclipe, o qual, via de regra, traz o(a) cantor(a) ou banda em performances musical (canto ou instrumental), dramática, interpretando um papel, e/ou coreográfica. A junção das imagens filmicas e videoclípicas pode ser realizada de diferentes modos - edição paralela, colagens, incrustações, projeções, sobreposições, etc. - e nota-se ainda que variam a proporção, o grau de diálogo, a importância, enfim, a hierarquia entre o material filmico e o material exclusivo do clipe. Em todos os casos, no entanto, as participações do artista musical e do diretor do vídeo são realçadas em relação à categoria anterior. Por sua vez, nos clipes originais, o destaque das instâncias diretiva e performática próprias do formato é pleno, seja na concepção/seleção do conceito do videoclipe ou no protagonismo nele evidenciado. Os videoclipes originais são inteiramente compostos de material novo, sem a inclusão de cenas dos filmes, ainda que freqüentemente façam alusão à temática, à ambiência e a personagens da obra cinematográfica com que se relacionam. Algumas vezes eles apontam a ligação com o produto audiovisual extraclipe ao trazer a participação de atores dos filmes divulgados; estes aparecem, no entanto, em situações inéditas, não vistas no cinema ou mesmo "fora" de seus personagens ("como eles mesmos"). Alguns cantores e diretores conseguem, portanto, driblar interesses puramente comerciais, transformando mesmo os videoclipes para canções de filmes em obras afinadas a seus projetos pessoais de criação. Os motivos para esta relevância podem ser localizados em modificações históricas e contextuais próprias do campo de produção dos videoclipes; dentre elas, a persistência e popularidade dos videoclipes como produto de divulgação de canções, o interesse de músicos na esfera visual, o investimento dos diretores no formato como exercício e satisfação estética, a valorização da novidade e diversidade nos clipes, além da criação de esferas de reconhecimento e consagração específicas para os vídeos musicais. Através da análise de um videoclipe misto (Deadweight) e outro original (Die Another Day), nos quais se destacam, respectivamente, um diretor (Michel Gondry) ··336 ESTUDOS DE CINEMA e uma cantora (Madonna), pretende-se esclarecer os pontos apresentados acima, além de aprofundar a argumentação sobre as possibilidades autorais no campo dos clipes. DEADWE/GlfT: O FILME A SERVIÇO DO VIDEOCLIPE Com uma trilha musical que alterna o passado e a atualidade pop-rock, o filme Por uma vida menos ordinária (DANNY BOYLE, 1997) manteve, na sua divulgação, esse mesmo tipo de investimento. Enquanto o trailer trazia Beyond the sea, gravada em 1959 por Bobby Dario, o videoclipe com cenas do filme aposta na novidade de Deadweight, composta por Beck especialmente para o longa-metragem. Dirigido por Michel Gondry (1997), Deadweight é um caso de clipe misto com todos os elementos funcionando em sintonia, uma vez que: 1) é dada atenção à canção, levando-se em conta a heterogeneidade de suas ocorrências instrumentais/efeitos, além de algumas sugestões de sua letra; 2) tira-se bom proveito da imagem, sempre trabalhada por Beck, sua "aura às vezes angustiada, às vezes cômica" (AUSTERLITZ, 2007: 134), 3) evita-se a obviedade na inserção do material filmico com a cuidadosa seleção de cenas do filme, aparecendo como devaneios ou delírios do protagonista do clipe; e 4) organiza-se um vídeo atraente, visual e narrativamente, com trama e ambiência próprias. O enredo específico do videoclipe Deadweight tem como premissa um jogo de inversões: na construção de uma atmosfera absurda e onírica, universos polarizados confluem, confundem-se e/ou trocam de lugar. É interessante notar que essa transformação da normalidade no clipe não remete diretamente, como seria esperado, ao tom também fantasioso de Por uma vida menos ordinária. Gondry assume ter se inspirado no curta-metragem Il était une chaise (Claude Jutra & Norman McLaren, 1957), o qual mostra a disputa entre um homem e uma cadeira, que, pura e simplesmente, resiste em deixá-lo sentar-se. Em Deadweight, Beck aparece cantando e, ao mesmo tempo, envolvido em diferentes situações. Inicialmente, ele é visto à mesa de trabalho, até ser revelado que seu escritório (com direito a arquivo e cabide de pé) está "montado" em meio às brincadeiras e passatempos de pessoas em uma praia. Seguindo a mesma (des)orientação, o personagem irá posteriormente passar suas férias - sentado em uma cadeira de praia e drinque tropical na mão- em meio à balbúrdia de um escritório de verdade. A "inabitualidade" do clipe completa-se com outros acontecimentos. No lar do protagonista, fotos familiares cobrem as paredes, enquanto amostras de papel de parede ocupam porta-retratos. Durante uma viagem de avião, o passageiro no interior do avião sofre com a instabilidade do tempo, ao passo que, do lado de fora, uma ave está pousada placidamente. Na rua, Beck vê um homem carregar seu carro nas costas. Estas e outras idéias permeiam completamente a obra, criando um conjunto de circunstâncias que renderiam suficientemente todo um videoclipe: é sintomático, EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 337 por exemplo, que, por si só, uma dessas situações- a imagem da sombra, que assume o controle e conduz o protagonista - tenha sido pensada para um outro trabalho não concretizado do diretor. 3 Apesar disso, Gondry faz jus à "encomenda" de um videoclipe para canção de filme, utilizando o material filmico e unindo-o a suas idéias originais de uma maneira que não poderia ser mais bem ajustada. O protagonista de Deadweight - assim como os demais personagens - reage com bastante naturalidade ao singular mundo do clipe até que a introdução das cenas de Por uma vida menos ordinária demarca a virada desse comportamento: a partir daí, o desequilíbrio exibido é construído como originado da relação de Beck com as imagens do filme e não com o seu inusitado ambiente. Como acontece em alguns sonhos, 4 há um grau de estranheza aceitável e administrável e um outro nível- exibido como uma espécie de alucinação do personagem de Beck -, que é causa de seu desconforto e desnorteamento. Tais delírios são exatamente os trechos emprestados do filme, que são antecipados por reações involuntárias e incontroláveis do protagonista do clipe. Em certo momento, por exemplo, vê-se Beck cair de uma cadeira e a cena seguinte, retirada do filme, mostra o personagem de Ewan McGregor ser jogado no chão. A imagem do protagonista do clipe, abrindo a boca durante um sonho, toma outro sentido ao estar associada com um close-up de Stanley Tucci, um dentista na trama cinematográfica. Além dessa relação de causa e efeito, que bem poderia ser exemplificada por outras situações do vídeo musical, os materiais filmico e videoclípico aproximam-se pela construção de equivalências nas ações de seus respectivos personagens ou na mis-en-scene exibida. A conclusão de Deadweight é particularmente representativa da sua bem urdida manobra entre o clipe e o filme. Nela, em mais um momento estranho, os sapatos de Beck caminham à sua frente, conduzindo-o para uma sala de cinema onde está em cartaz justamente Por uma vida menos ordinária: o letreiro anuncia o título, o cartaz do filme é apresentado, e as fotos ilustrativas em sua volta trazem as imagens que sobressaltaram o protagonista no decorrer do clipe. Dessa maneira, além de fazer uma detalhada divulgação do filme, Gondry consegue construir um protagonista, que, neste ponto, está colocado em lugar semelhante ao do espectador, na época do lançamento do clipe e do filme, isto é, na posição de alguém submetido a certas cenas mesmo antes de ter assistido à obra cinematográfica. O último toque irônico do diretor do videoclipe é que, ao entrar no cinema, Beck não assiste ao filme, prevalecendo, no 3. Informação presente no encarte da coletânea oficial de videoclipes de Michel Gondry. Ele atribui essa idéia a um de seus parceiros, o poeta islandês Sjón Sigurdsson, co-compositor das canções Joga e Bachelorette, interpretadas por Bjõrk, para as quais Gondry dirigiu os respectivos clipes. 4. Tal possibilidade de interpretação onírica é demarcada pelo aparecimento de Beck, cochilando de maneira pouco confortável ou acordando bruscamente. 338 ESTUDOS DE CINEMA fmal, a trama original do clipe com uma última inversão: no espaço fisico destinado à ficção cinematográfica, o personagem encontra conforto ao assistir uma versão normalizada de suas desventuras, na qual ele finalmente pode trabalhar em um escritório e relaxar em uma praia. DIE ANOTI1ER DAY: NO LUGAR DE JAMES BOND Se, em Deadweight, o universo próprio do diretor Michel Gond.ty contamina positivamente o videoclipe para a canção do filme, o vídeo Die another day (Traktor, 2002) trata-se de uma bem-sucedida tentativa de associar a grife James Bond ao destaque e poder musicais de Madonna. 5 O convite feito à cantora se dá em um duplo momento de celebração, no qual se comemorava os 40 anos da série cinematográfica e a produção do seu 20° filme, 007 - Um novo dia para morrer (Lee Tamahori, 2002). Com um grau de liberdade ancorado em sua posição no campo musical, Madonna distingue-se de cantoras anteriores de bond themes por não aparecer apenas como intérprete, mas também como compositora e produtora: trabalho realizado junto com seu parceiro Mirwais e sem a interferência dos habituais produtores e arranjadores da série. 6 Para completar, a artista negociou uma breve participação como atriz no filme: de modo coerente com a lógica de subversão de estereótipos femininos constante em sua carreira, Madonna faz uma ponta como Verity, uma esgrimista lésbica mais interessada na bond girl do que no famoso agente conquistador. Uma chave possível de interpretação de Die another day é justamente este ajuste do videoclipe à constante reinvenção da imagem de Madonna. Como emBeautiful stranger (Brett Rattner, 1999),7 ela já havia encarnado o papel de charmosa e sexy espiã- um dos arquétipos femininos desde Mata Hari- a cantora desvia-se da imagem de objeto de desejo para adotar arquétipos masculinos emDie another day. A coreografia vigorosa do clipe, exibida como dança e luta, busca, por exemplo, enfatizar esse lado atlético. Acompanha-se a protagonista ocupar o lugar de um James Bond, resistindo a uma longa sessão de tortura, da qual escapa de modo tão espetacular quanto faria o famoso personagem. Ao final do clipe, a silhueta de Madonna é inclusive mostrada dentro da recorrente íris (diafragma fotográfico), uma das marcas da série que, nas aberturas dos filmes, enquadra 007. A escolha por esta posição de herói de ação tem 5. Tanto a trilha sonora, que tinha como bônus o videoclipe de Madonna, quanto o single alcançaram · os primeiros lugares das parada geral e dance nos EUA e Grã Bretanha. ·· 6. Algo que pode explicar mais um diferencial da canção de Madonna, o fato de tratar-se de uma música do gênero dance e não uma balada grandiloqüente, como temas anteriores de 007. · 7. Outro clipe original para a canção do filmeAustin Powers The Spy who Shagged Me, uma paródia à série James Bond. EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 339 urna outra explicação também relacionada à trajetória de Madonna: na mesma época da criação da canção e do clipe, a artista estava explorando a temática da violência em outros trabalhos (fase American life). Inteiramente apoiado nas performances vocal, coreográfica e dramática de Madonna, Die another day pertence à categoria de clipes originais, não trazendo qualquer cena do filme 007- Um novo dia para morrer. O videoclipe é, no entanto, francamente inspirado na seqüência de tortura que precede a abertura deste longarnetragern. A idéia desenvolvida pelo Traktor- coletivo de criação responsável pelo clipe - avança, entretanto, deste nível de ação externa entre a protagonista e seus algozes para uma dimensão psicológica da personagem na qual urna Madonna de branco e outra de negro lutam ferozmente em meio a urna espécie de museu dedicado às aventuras de Jarnes Bond. A construção visual desta disputa íntima entre bem e mal parte do conteúdo verbal da canção - que fala de análise pessoal, destruição do ego, pecados, etc. -, faz apelo à memória do espectador e serve ainda para homenagear vátios momentos da série 007, através de referências a personagens (vilões e bond girls), figurinos e acessórios utilizados pelo espião e seus inimigos. Entre os filmes citados estão: 007 contra o Satânico Dr. No (1962); Moscou contra 007 (1963) e 007 contra Goldfinger ( 1964). Em Di e another day, a importância da série cinematográfica em pleno período de comemoração é ressaltada, portanto, pelo esmero característico do Traktor, instância diretiva que costuma investir grande parte do orçamento dos clipes no departamento de arte (cenografia, figurino e elementos de cena). Procedimento comum nos vídeos musicais, essas citações intertextuais intensificam - nos clipes para canção de filme - a relação com a obra- divulgada. CONCLUSÃO No seu arrazoado sobre a relação entre o cinema e a videoarte, Philippe Dubois afirma que "cabe também perguntar qual é o cinema que o vídeo convoca e qual o papel que ele desempenha na trama: quem, cinema ou vídeo, impõe seu jogo ao outro" (2004: 234). Questionamentos assim parecem pertinentes ao avaliar os videoclipes para canções de filmes, especialmente quando se percebe que muitas obras neste formato deixam de estar completamente atreladas às necessidades e interesses promocionais da indústria do cinema. Nos casos analisados, percebe-se a não-imposição de urna forma sobre a outra, ou seja, o estabelecimento de urna associação sirnbiótica, em que o rnateriaVinspiração filmica- com freqüência colocado culturalmente em um patamar superior de valorização - não obscurece o instigante material videoclípico. Por serem obras com abordagens específicas - visuais, narrativas, temáticas - e com público apreciador próprio, esses vídeos musicais continuam a ser assistidos e procurados muito tempo depois do arrefecimento da função comercial, que o campo ESTUDOS DE CINEMA 340 cinematográfico lhes atribuiu. Isso fica evidente na sua petmanência prolongada na programação dos canais televisivos especializados e na sua inclusão nas coletâneas oficiais em DVD de cantores, bandas e diretores. Na verdade, esta prova do tempo nem é o único meio para o reconhecimento da qualidade destes clipes, uma vez que tal consagração pode ser contemporânea ao lançamento das obras, partindo de instâncias já estabelecidas nos próprios campos musical e do videoclipe. Ainda utilizando os clipes analisados como exemplos, podem ser lembrados os prêmios, que tanto Deadweight quanto Die another day conquistaram da Music Vídeo Production Association (MVPA Awards 1998 e 2003), além das indicações, nos mesmos anos, para os Video Music Awards da MTV Certamente, tal situação afigura-se como decorrente da presença de realizadores de clipes - diretores e performers- com uma trajetória marcada pela busca de independência e controle sobre seus investimentos artístico-expressivos; figuras autorais que, inclusive, não põem limites em sua participação no audiovisual, dividindo-se entre álbuns, longas de ficção, documentários, videoclipes e atuando, deste modo, em campos cada vez mais interpenetrados. BIBLIOGRAFIA AUSTERLITZ, Saul. Video Follies. In: . Money for Nothing: A History of the Music Video fi'om the Beatles to the White Stripes. New York: Continuum. 2007, pp. 99-134. BARRETO, Rodrigo Ribeiro. A fabricação do ídolo pop: a análise textual de videoclipes e a construção da imagem de Madonna. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea - Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005. - - - - -· A percepção dos diretores de videoclipes como autores: do contexto específico de produção à interseção com o cinema. In: MACHADO Jr. , Rubens et a!. (org.) Estudos de cinema Socine, ano VIII. São Paulo: Annablume, 2007, pp. 57-65 . DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. FRASER, Pete. Teaching Music Video . London: BFI Education, 2005. GOODWIN, Andrew. Dancing in the distraction factory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. MACHADO, Arlindo. O diálogo entre cinema e vídeo. In: _ _ . Pré-cinemas & póscinemas. Campinas: Papirus Editora, 1997, pp. 202-20. MUNDY, John. Popular Music on Screen. Manchester: Manchester University Press, 1999. SCHWARTZ, Lara M. Making Music Videos. New York: Billboard Books, 2007 . VERNALLIS, Caro!. Experiencing music video- Aesthetics and cultural context. New York: Columbia University Press. 2004. Interfaces do cinema multimidiático de Peter Greenaway DENISE AzEVEDO DUARTE GUIMARÃES (UTP) INTRODUÇÃO EsTE TRABALHO é um recorte de uma pesquisa mais abrangente, na qual investigo de que modo as iconografias eletrônicas se. combinam, para quantificar e qualificar a informação, tanto na TV, quanto no cinema, gerando processos de "transdução" ou de transcriação, que criam inéditas relações de percepção e novos significados. Embora consciente do muito que já se escreveu sobre Prospero 's Books (1991 ), 1 tomo como objeto de estudo este filme de Peter Greenaway, para focalizar seu diálogo ゥョエ・イクオ。セ@ com a TV Dante (série televisual por ele dirigida). Traduzido no Brasil como A última tempestade, o filme consagrou-se como uma das primeiras obras cinematográficas em que se toma visível uma radical manipulação das imagens em movimento, sob a perspectiva de uma experimentação exacerbada. Mesmo sabendo · ser ainda tecnologicamente inviável, o diretor procurou :fàzer algo absolutamente . diferente (como afirma em várias entrevistas), acoplando ao seu filme recursos tidos como televisivos e/ou próprios do videoclipe, sem perder de vista as possibilidades estéticas de uma reínvenção do cinema. No intuito de apreender a dimensão experimental e o estranhamento provocado, naquele início da década de 90, pelas obras de Greenaway, procuro um viés que me I . O contexto: 1956 a 1987, as imagens eletrônicas eram armazenadas em vídeo-tape analógico. Em 1987 surgiu a gravação eletrônica digital em baixa definição. Greenaway inicia suas experiências com os recursos eletrônicos e digitais, em 1988, com a mini-série TV Dante, com oito episódios que vão até I 989. A seguir, lança o filme Prospero 's Books, em 1991. Do mesmo ano é o programa televisivo Mfor Man, for Movement andfor Mozart, ao qual o diretor imprime a mesma atmosfera neobarroca das duas obras anteriores. 342 ESTUDOS DE CINEMA permita flagrar alguns momentos criativos, nos quais seja possível verificar uma simbiose entre a mente inventiva do cineasta britânico e os recursos tecnológicos, então emergentes na televisão, que foram por ele transpostos para o cinema e vice:. versa. Apresentarei, portanto, um estudo comparativo das interfaces do filme com a televisão, o teatro, a dança e a pintura em termos de intertextualidade, dialogismo e polifonia -, de modo a privilegiar os recursos como superposições, transparências, grafismos e similares, que, a meu ver, fazem de cada obra de Greenaway uma espécie de espetáculo performático neobarroco 2 - conceito aqui explorado com o aporte teórico de Ornar Calabrase, Jean François Lyotard, Eduardo Subirats, entre outros. Todos estes recursos e efeitos podem ser considerados multimidiáticos, no sentido de uma dinâmica diferente dos filmes ou programas de TV, digamos convencionais, ou seja, produzidos antes do advento da computação gráfica, que veio proporcionar movimentos bem mais complexos aos elementos audiovisuais nas telas da contemporaneidade. O CINEMA MORREU? NUNCA EXISTIU? OU ... UMA POSSÍVEL REINVENÇÃO DO CINEMA? Acredito que Greenaway testou as possibilidades técnicas do cinema, ao radicalizar a exploração de recursos até então limitados à televisão, ao recriar a peça de Shakespeare em seu filme. A obra apropria-se das potencialidades plásticas da informação digital e das imagens de síntese, sem no entanto, deixar-se levar apenas pela sedução das tecnologias mais recentes. Nesse sentido, valho-me das palavras de Katia Maciel, que, em artigo de 1993, debruça-se sobre um "cinema que se pergunta se ainda é cinema" e considera a existência de uma nova geração de "filmes softwares", que têm em vista apenas efeitos especiais. No entanto, a autora faz uma importante ressalva, que vem corroborar minha opinião sobre o pioneirismo da obra cinematográfica de Greenaway, diz ela: ( ... ) Há todavia outra tendência no uso das novas tecnologias pelo cinema que, ao contrário, potencializa a imagem cinematográfica através da reinvenção da própria linguagem do cinema. É o exemplo de Peter Greenaway em A última Tempestade, utilizando o Harriet e o HDTV para recriar a montagem do quadro no quadro, utilizando as novas possibilidades tecnológicas para inserir o extra-campo no campo, seja no som ou na imagem.( MACIEL apud PARENTE, 1993: 256-7) 2. Este conceito não significa uma retomada daquele período; a defmição de Barroco para Calabrese, não se reduz a um período específico da cultura mas a uma atitude generalizada e uma quantidade · formal de objetos que o exprimem. A analogia refere-se ao "clima", podendo haver um Barroco em qualquer época EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA lV 343 Considerando que o referido ensaio é publicado apenas dois anos após 0 lançamento do filme, fica demonstrada a inovação que ele representou no contexto da época. Muito embora reconheça que diversas tentativas incipientes foram realizadas antes, na mesma direção, julgo que nenhuma delas atingiu o patamar de radicalização experimental alcançado pelo cineasta britânico. Outro fato relevante para corroborar meu argumento é a apublicação, em 1997, do livro de Arlindo Machado Pré-cinemas e pós-cinemas, que traz na capa experimentos pré-cinematográficos de Muybridge, processados numa Painibox computadorizada para o filme "pós-cinematográfico" de Peter Greenaway Prospero 's Books. É inegável que a escolha remete ao pioneirismo do cineasta britânico, no que concerne ao conceito de pós-cinema, desenvolvido por Machado. Referindo-se à virada epistemológica ocasionada pela rect:pção de filmes em videocassetes, o autor explica que: "A imagem se oferece, portanto, como um "texto" para ser decifrado ou "lido" pelo espectador (os vídeos e filmes de Peter Greenaway são a própria evidência disso) e não mais como paisagem a ser contemplada". (idem: 210) Ao apontar exemplos de cineastas que conseguiram progressos consideráveis para a síntese do cinema com o vídeo, numa primeira etapa, e com a informática, numa etapa posterior, explica Machado: Uma boa demonstração do estágio de maturidade a que já chegou essa síntese é o aparecimento recente de filmes que integram magistralmente as imagens eletrônicas às imagens fotoquímicas convencionais, como é o caso de Prospero 's Books (A última tempestade/1991) obra de um diretor (Peter Greenaway) que já teve uma passagem inovadora pelos universo do vídeo e da televisão e que aqui experimenta as possibilidades gráficas da paleta eletrônica de alta resolução (idem: 213). O pensamento do autor encontra eco em artigo recente de Bernadette Lyra, que assinala que Prospero 's Books é o primeiro filme no qual Greenaway "experimenta procedimentos computadorizados para alterar as imagens" (2007: 41). O referido artigo tem como aporte teórico Karl Luddwig Pfeiffer, autor que pensa a comunicação como "uma performance posta em movimento por meio de vários significantes materializados" (idem: 35). É exatamente sob o viés dessa questão da materialização dos significantes que me interessa refletir sobre a experiência performática radical, efetuada, tanto no filme de 1991, quanto nos programas televisuais para a BBC produzidos pelo diretor, na mesma época. Acredito que o caráter performático em muitos momentos, operístico em outros, encontraram a forma ideal para afastarem-se do cinema de ilusão naturalista, na exploração de recursos computadorizados. Parece, portanto, que as ferramentas foram utilizadas de modo a resultarem no artificialismo; aliás, uma estratégia compositiva procurada pelo diretor ao longo de sua carreira. 344 ESTUDOS DE CINEMA Não é dificil constatar que o artificialismo dos significantes materializados em suas obras resulta numa estética do excesso, do rebuscamento, responsável pelas aflorações passíveis de serem consideradas neobarrocas nas produções audiovisuais de Greenaway. Sem dúvida, a arte barroca antecipou, nunca é demais repetir, elementos expressivos da (per)formatividade moderna, ao introduzir na criação plástica a perspectiva em diagonal e a ilusão do movimento vertiginoso- a chamada trompe I 'oeil. Além disso, as afinidades observadas entre o estilo barroco e a arte contemporânea inserem-se no debate teórico desenvolvido em torno do conceito de neobarroco como uma alternativa, frente ao conceito de pós-moderno, para dar conta dos fenômenos culturais de nossa época. Não cabe aqui um aprofundamento da questão, muito menos uma discussão teminológica, pois basta a este trabalho a constatação de que, tanto as diferentes linhas de estudos pós-modernos, quanto os estudiosos do neobarroco, reconhecem os traços de uma pulsão rítmica do excesso e da vertigem, em nossa época, que tem expressado em seus objetos culturais a perda da integridade e da ordem, em termos da instabilidade e mutabilidadde das formas. Nesse sentido, o grande theathrum mundibarroco revela-se análogo ao grande happening ·do mundo hodierno, ambos ·presentes nas obras de Greenaway aqui comentadas. Penso que, de certo modo, neobarroco e pós-modernidade estariam unidos por um mesmo projeto: a reivindicação daquilo que a modernidade escamoteou; a reabilitação do esquecido, do reprimido ou do interdito, na opção pela coincidentia oppositorum; além de que, uma mesma estratégia os vincularia: a proposta de esquemas de análises adequados à compreensão dos objetos culturais contemporâneos e o entendimento de aspectos determinantes das políticas, dos dispositivos e dos efeitos das imagens hodiernas, em meio à enorme velocidade em que os produtos culturais são produzidos para serem logo transformados e/ou descartados. Considero, portanto, apropriado identificar o projeto audiovisual de Peter Greenaway ao chamado neobarroco contemporâneo, em sua busca do artificialismo como um esforço experimental na direção da desagregação, do fragmentarismo perceptivo, de um discurso filmico necessariamente "estranho" em relação aos métodos convencionais de se fazer cinema ou televisão. Penso que tais estratégias poderiam ser consideradas "metabarrocas", devido à sua proposta de recriação crítico-inventiva que vem se opor ao contexto vigente da denotação e da clareza da comunicação, em favor da incorporação do ecletismo, das antíteses e, até mesmo, de uma certa entropia, com relação às produções culturais hodiernas. Assim, é no contexto pós-modernista que Greenaway vai encontrar condições tecnológicas que lhe permitem a variabilidade de ângulos da percepção das imagens visuais. Essas, por sua vez, integradas à polifonia auditiva que chega ao limite dos · ruídos informacionais, tornam-se geradoras de efeitos labirínticos, na exuberância da . intensificação dos significantes hiperbólicos, muito próximas ao espírito barroco. EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 345 Para o multiartista britânico, os procedimentos computadorizados tomam viáveis a desconstrução dos códigos anteriores, em favor de uma comunicação audiovisual plurívoca, multissignificativa e renovada. Isso permite que o corte e a montagem sejam redimensionados, com a articulação dos planos e dos elementos visuais no espaço da tela, num jogo de superposições e de janelas, além do reiterado aproveitamento de efeitos gráficos/caligráftcos e das infinitas condições de manipulação da imagem. DA TV AO CINEMA E VICE--VERSA Para continuar fundamentando meu raciocínio, lembro que Peter Greenaway, em 1991 (ano das filmagens de Prospero 's Books) trabalhava também para a BBC londrina. Ele tinha, portanto, o know how necessário para aventurar-se na utilização de imagens criadas pelas tecnologias mais recentes, à época. Entre 1988 e 1989, o cineasta dirigiu a TV Dante; 3 uma mini- série com oito episódios, correspondentes aos Cantos I a VIII , da parte O inferno, da obra Divina Comédia (1321), de Dante Alighieri. A produção foi do Charme! Four/ BBC e teve a colaboração de Tom Philips (autor e ilustrador de uma versão atualizada de O Inferno, de Dante). No programa, foram utilizados todos os recursos então disponíveis, com a incorporação de sistemas de computação gráfica sofisticados e imagens pictóricas, além de citações literárias e comentários de especialistas sob a forma de cabeças falantes. Essas talking heads apareciam em janelas sobrepostas, criando um jogo de molduras sobre molduras, num tipo de pseudo-documentários. Lembro que a referida adaptação dos oito cantos do inferno dantesco foi destaque principal da Mostra Internacional de vídeo da Fotóptica, no MIS de São Paulo, em novembro de 1990. Revendo, para este estudo, o episódio O Inferno, da TV Dante, consegui perceber, de modo inequí;roco, as raízes do filme Prospero 's Books, na dinâmica da espacialidade barroca, em constante transformação. Assim como a pintura barroca, as obras de Greenaway exploram de forma enfática os corpos em movimento, com seu jogo de luz e sombra, de formas que se expandem por elipse, numa espécie de impulso alegórico, que aparece também nas produções audiovisuais da segunda metade do século XX. Como a formação artística multifacetada do cineasta permitiu um diálogo extremamente criativo com outras artes, suas obras apresentam-se como um turbilhão de signos que se sobrepõem, se perpassam, se interpenetram, num tempo iconizado pelo excesso de imagens e pela multiplicidade de associações intertextuais engendradas. 3. Arlindo Machado, em sua lista dos DEZ PROGRAMAS MAIS IMPORTANTES DA HISTÓRIA DA TELEVISÃO, coloca a TV Dante em primeiro lugar. (MACHADO, 1998: 16) 346 ESTUDOS DE CINEMA São tamanhas as identidades, que optei por captar frames do programa de televisão e do filme, colocando-os lado a lado, estaticamente, para que se possa ter uma idéia de como o realizador incorporou as técnicas televisuais da TV Dante, de 1989, ao seu filme de 1991. Um dos melhores exemplos de procedimentos recorrentes, tanto no programa televisivo quanto no filme, é a reprodução de quadros famosos em movimento, além das reiteradas justaposições, fusões e imagens virtuais simultâneas, que fazem da tela um verdadeiro caleidoscópio. O visual saturado de informações sígnicas dos mais diferentes tipos e o caráter palimpséstico de muitas cenas confirmam o neobarroquismo percebido nas referidas obras, em seqüências bastante similares.Chamo a atenção para as molduras, telas dentro das telas, num dinâmico processo de superposições e transparências, que aparecem tanto na TV Dante quanto em Prospero 's Books. É nesse sentido que considero o filme como um macrossigno cinésico, composto de imagens híbridas, fluidas e "deslizantes", altamente sugestivas. Assim como as obras de Greenaway, a pintura barroca, entendida como a arte do movimento, caracteriza-se por um olhar anamórfico, que é um modo de extensão da potência ocular, resultante de uma inversão da perspectiva e que resulta numa figura aumentada e deformada. Essa reviravolta do olhar "prenuncia a visão ambulante contemporânea", segundo Nelson Brissac Peixoto, que explica: ( ... ) o movimento que transforma o ponto em linha estabelece conexões que vão além de uma simples relação entre duas coisas, determinando o lugar onde elas ganham velocidade. No tecido textual, o movimento corresponde à conjunção "e... e... e" ; é algo que acontece entre os elementos, mas que não se reduz aos seus termos. Diferente da lógica binária é uma justaposição ilimitada de conjuntos. (PEIXOTO apud PARENTE, 1996: 240) É significativo que o diretor tenha praticado uma experiência de mão dupla, pois, logo em seguida ao filme, ele realizou o intrigante Mfor Mozart um vídeoprograma performático-experimental, misto de entretenimento, teatro, dança e animação, em homenagem ao compositor Wolfgang Amadeus Mozart. Trata-se de um programa televisivo no qual é possível identificar claramente o diálogo explícito com o filme Prospero 's Books, pois há cenas praticamente idênticas, tanto em sua dimensão audiovisual, quanto nos recursos tecnológicos utilizados . Dentre os muitos exemplos que mostrei na apresentação da SOCINE, destaco as imagens reiteradas de um bailarino nu, sem cabelos e sem pêlos no corpo (no vídeo) que são muito similares à dança performática realizada por Caliban, em sua primeira aparição no filme. EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV 347 CONSIDERAÇÕES FINAIS Creio, portanto, ser válido afirmar que o filme Prospero 's Books (1991), aqui tomado como objeto de estudo, juntamente com seu predecesssor imediato na televisão londrina, a mini-série TV Dante ( 1988-9), podem ser considerados obras audiovisuais realmente fundantes, porque Peter Greenaway, longe se se conformar aos padrões estabelecidos pelas tecnologias da época, foi hábil em se apropriar delas para reinventar radicalmente sua produtividade comercialmente programada, em favor de uma dimensão estética. Além disso, o cineasta reafirma imediatamente as duas propostas anteriores, no programa televisivo M is for Man, Movement and Mozart (também de 1991 ), fechando ciclicamente um projeto multimidiático extremamente inovador, tanto na telinha quanto na tela grande. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGAN, Giulio Carlo.lmagem e persuasão. Ensaios sobre o barroco. Org. Bruno Contardi. Tradução Maurício S. Dias. 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PESQUISA, PÚBLICO E POLÍTICAS AUDIOVISUAIS O pensamento industrial cinematográfico em tempos neoliberais (1990-1993) ARTIIUR AUTRAN (UFSCAR) EsTE ARTIGO se liga diretamente às constatações e inquietações geradas pela minha tese de doutoramento, O pensamento industrial cinematográfico brasileiro (AUTRAN, 2004). Na tese optei por um recorte historiográfico que cobria o período de 1924 a 1990 e analisei os principais eixos do pensamento industrial cinematográfico entre as produções, concluindo sobre a importância central deste tipo de pensamento na manutenção da unificação ideológica da corporação cinematográfica. Isto porque a industrialização da atividade assumiu o caráter ideológico de objetivo central a ser alcançado pela corporação, posto que a falta de industrialização fosse a principal causa responsável pela descontinuidade da produção de filmes. Papel central no pensamento industrial coube ao Estado, identificado desde os anos 1950 como o principal vetor que possibilitaria a industrialização do cinema, dado que o mercado ocupado pelo produto norte-americano impossibilitava que a produção brasileira competisse em condições de igualdade e se tomasse economicamente viável. O Cinema Independente nos anos 1950 e posteriormente o Cinema Novo tiveram ação destacada na forma pela qual o Estado foi pensado como motor da industrialização, pois ambos associaram a luta contra a invasão cultural estrangeira, com a luta econômica pelo mercado, gerando um amálgama entre as duas perspectivas a partir de um ideário politicamente de esquerda. Esta acepção será central para a Embrafilme, a partir do momento em que o grupo ligado por origem ao Cinema Novo passa a dominá-la em meados dos anos 1970. No entanto, tal acepção já não possuía nenhum solo histórico pois, segundo José Mário Ortiz Ramos, se nos anos 1960 era ainda possível a esquerda do meio cinematográfico pensar um "todo nacional" lutando contra o imperialismo,já na década seguinte isto não fazia mais sentido, posto que o próprio Estado ditatorial apropriavase do discurso nacionalista no campo da cultura ao mesmo tempo em que aprofundava 352 ESTUDOS DE CINEMA a dependência do país via internacionalização da economia brasileira, descolando assim uma coisa da outra e tomando aquele discurso "mera justificativa ideológica" ( 1983: 93). Ademais, havia outro curto-circuito ideológico no discurso da corporação cinematográfica: esta num momento se voltava para a reivindicação, junto ao governo de medidas de caráter econômico, com a explicação de que tal se fazia necessário em defesa de elementos como identidade nacional, cultura brasileira, preservação da nacionalidade etc. No entanto, não existia da parte da fração da corporação que passou a dominar a Embrafilme aprofundamento .em tomo da questão da cultura brasileira expressa nos filmes e quando isto era polemizado por setores descontentes com a política oficial, estes eram desqualificados em nome da "frente única" na luta pelo mercado e contra o imperialismo econômico. Por outro lado, quando os filmes tinham sua baixa performance, no mercado contestada argumentava-se que valia a expressão da cultura brasileira. Destarte, a discussão passou a mover-se em círculos. A confusão ideológica entre cultura e mercado chegou a tal ponto que marcou a própria estrutura da Embrafilme, empresa cujas atividades incluíam desde a produção e a distribuição de filmes comerciais voltados para as massas até a publicação de livros sobre a história do cinema brasileiro, direcionados para um público extremamente restrito. O processo de desgaste da Embrafilme ao longo dos anos 1980 - de par com a crise econômica quase permanente do cinema brasileiro, ao longo desta década foi enorme, o que pode ser aferido pelos constantes ataques à empresa, não apenas por parte de setores da corporação descontentes com a distribuição de recursos, mas ainda pelas freqüentes denúncias em jornais de malversação de dinheíro público com destaque para a campanha desencadeada em 1986 pela Folha de S. Paulo, denominada maliciosamente de "Este milhão é meu". Ao final da década de 1980, conforme constata lucidamente Eduardo Escorei, o cinema brasileiro havia perdido toda a sua "legitimidade social" (2005: 13), de maneira que não custou muito a Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direto após mais de vinte anos de ditadura militar, acabar com a Embrafilme em 1990, num dos atos iniciais do seu governo. Dentre as posições em destaque naquele momento, a de Ipojuca Pontes, cineasta guindado por Collor ao cargo de secretário especial de Cultura e encarregado do desmonte do aparato federal de cultura que incluía órgãos como a Embrafilme, o Concine, a Pró-Memória ou a Funarte, é exemplar pela crença irrestrita nos valores do Estado mínimo e do livre mercado. Significativo deste tipo de ideário neo-liberal furioso da época é a seguinte asserção: Assim, como recomendam os novos tempos, é chegada a hora de acabar com a concepção arcaica e antidemocrática do intervencionismo estatal no campo cultural. Numa democracia real, cabe à sociedade - e não ao Estado - formular livremente o encaminhamento de suas próprias relações de criatividade, independentemente de critérios discriminatórios e projetos governamentais. É criminosa, e contradiz a PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 353 democracia, a pretensão de se fomentar ou criar cultura a partir de ministério ou qualquer tipo de repartição centralizadora. "(PONTES, 1990: 2) Sabemos todos o que foram aqueles "novos tempos", os quais, no campo do cinema, se traduziram numa absoluta ausência de políticas públicas. A evidente mediocridade das idéias de Ipojuca Pontes foi criticada amplamente na época, por intelectuais como Sábato Magaldi, que lembrava a importância do Estado na produção cultural· de países tão diversos como os Estados Unidos, a França e a Alemanha Ocidental. Ainda segundo o critico teatral, o governo Collor buscava "impor no Brasil a indigência mental" (MAGALDI, 1990: 2). Quanto ao campo cinematográfico, havia posições bastante díspares. Entre aqueles que tentavam se adaptar à nova situação, estava o produtor Luiz Carlos Barreto, que chega a declarar para a jornalista Susana Schild estar interessado na privatização da Embrafilme como intermediário de um grupo financeiro (SCHILD, 1990). Segundo Barreto: A Embrafilme detém hoje o direito de comercialização e distribuição de 300 títulos. Com a demanda nacional e internacional de títulos, este patrimônio é um excelente negócio, desde que vinculado a uma distribuidora eficiente e com penetração internacional. [ ...] O cinema do ano 2000 forma a indústria mais internacionalizada do mundo. Esta distribuidora permitiria que o cinema brasileiro alcançasse justamente o que ainda lhe faltaria, a "internacionalização efetiva". Mas atenção, porque os filmes resultantes dos lucros desta distribuidora deveriam ser: "A criação de um produto culturalmente nacional mas industrialmente internacional". Ou seja, a percepção clara do grau de internacionalização da produção audiovisual não era suficiente para afastar o fantasma da "cultura nacional'', esta, na percepção de Barreto, deve continuar a ser expressa no produto de circulação pretensamente mundial. Walter Lima Ir. reverbera algumas questões levantadas por Barreto, ao defender, por exemplo, que o acervo de filmes produzidos pela Embrafilme teria valor comercial devido às necessidades de programação das redes de televisão de todo o mundo. Para o diretor, o "ciclo Embrafilme" havia chegado ao fim, fora correta, portanto, a atitude de extinguir a empresa. Tal "ciclo" diferia dos outros que compõem a história do cinema brasileiro pelo fato de ele ter gerado "vícios, fraquezas, compromissos, cinismo, passividade e muita complacência". Na busca pelas qualidades que marcaram os outros "ciclos", volta-se decididamente para o passado e defende-se o retomo da possibilidade legal de o distribuidor estrangeiro investir na produção nacional parte do imposto cobrado sobre a remessa de lucros, tal como ocorrera na segunda metade dos anos 1960. O paradoxal no texto de Walter Lima Jr. é ele defender que se deve 354 ESTUDOS DE CINEMA "tirar o cinema brasileiro da bolha nacionalista onde tem sobrevivido e levá-lo ao convívio da comunidade cinematográfica internacional", mas reconhecer que nos anos 1960 a legislação que buscava promover a associação do produtor nacional com 0 distribuidor estrangeiro não levou à penetração do filme brasileiro no mercado internacional (1990: 8). Arnaldo Jabor, um tanto confusamente, defendia que: "A grande revolução cultural seria econômica". A cultura deveria ser proveniente de um mercado que a ativasse; ao Estado caberia criar condições para tanto, estimulando a formação de empresas privadas na área cultural que visassem o lucro. E mais uma vez surge a utopia do mercado internacional, pois segundo o autor, assim como o país já exportava sapato e laranja, poderia exportar arte, mas uma arte "neo-antropofágica, que devolva para o exterior nosso produto transformado" (1990: 3). Seja pela via de uma Embrafilme privatizada, ou por meio das distribuidoras estrangeiras- estas últimas anteriormente sempre combatidas pelos egressos do Cinema Novo-, ou ainda através de modernos empresários, o ponto comum destes discursos é a necessidade de o cinema brasileiro ser alàvancado no mercado mundial, mas isto numa situação de crise absoluta da produção, de total falta de inserção do produto brasileiro em quaisquer mercados e da insistência na idéia de produto "culturalmente nacional" ou "neo-antropofágico" num contexto já marcado pelo processo de mundialização cultural. Um movimento de reflexão mais profunda efetuado no momento mesmo da crise foi buscado por Jean-Claude Bernardet e por Eduardo Escorei, ambos evitando recorrer a soluções quase milagrosas naquele contexto, tais como a internacionalização do filme brasileiro. Os dois ensaístas identificam que a crise da Embrafilme já se configurara claramente desde a gestão de Celso Furtado à frente do Ministério da Cultura, que promoveu em 1987 uma reforma administrativa na empresa, reforma incapaz de resolver minimamente os seus problemas, condenando-a em definitivo. Para Bernardet, a crise então atravessada pelo cinema brasileiro era "estrutural", pois ela se relacionava com a forma mesma como cinema e Estado desenvolveram suas relações desde os anos 1930; a seu ver, somente a mudança na "mentalidade" dos profissionais de cinema proporcionaria uma saída para a situação e neste sentido ele defende o abandono do modelo do cinema de autor e o reforço da figura do produtor (1990: 3). Já Eduardo Escorei entendia que os cineastas não haviam conseguido construir um novo "projeto de cinema" frente à crise dos últimos anos, fixados que estavam no "favorecimento estatal" que sofria do mais completo descrédito junto à sociedade. Isso explicava a facilidade com a qual a Embrafilme fora desmontada. Apesar de tal quadro, Escorei considerava um erro a forma pela qual o governo havia encaminhado a extinção da empresa, teria sido mais adequado um fim programado que levasse em セッョエ。@ as necessidades do cinema brasileiro ( 1990: 11 ). PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 355 Com ou sem a Embrafilme, a ação do Estado continua a ser indispensável como complemento e apoio à iniciativa privada para, primeiro, regular o mercado, segundo, assegurar termos justos na competição do filme brasileiro com o importado; e, terceiro lugar, fazer investimentos que pela própria natureza da atividade são de retorno muito lento. Assim como qualquer outro setor industrial nascente, o cinema brasileiro precisa contar com a proteção do Estado para não ser esmagado pela força prodigiosa da concorrência estrangeira. [ ... ]. Sem a presença do Estado, o país ficará reduzido à mera condição de mercado consumidor controlado pelo monopólio das grandes redes de televisão e pelo oligopólio de distribuidores a serviço do cinema importado. Teremos perdido a batalha pelo domínio da linguagem audiovisual de ponta que continua a ser a do cinema. Seremos um povo com mais uma carência cultural básica a impedir o nosso ingresso num estágio superior de civilização, (ESCOREL, op ... cit). No que pese o refinamento da argumentação de Eduardo Escorei, há clara reincidência em algumas idéias tradicionais do pensamento industrial cinematográfico, as quais, a meu ver, estavam na base da crise. Neste sentido pode-se destacar: a caracterização do cinema como "indústria nascente" e que deveria ser equiparada a outras indústrias; e principalmente uma perspectiva que isola a televisão do cinema brasileiro, sem buscar nenhum tipo de relação mais efetiva entre os dois setores. Mas há algumas pistas presentes nos textos de Jean-Claude Bernardet e Eduardo Escorei que parecem interessantes no sentido de se tentar compreender o pensamento industrial cinematográfico e suas transformações: a crítica à matriz de financiamento do cinema brasileiro baseada num modelo superado de relação com o Estado; a crítica à dimensão hipertrofiada da figura do autor-diretor; a necessidade premente de criar um "projeto de cinema" que socialmente seja reconhecido como legítimo; o papel do cinema como laboratório de ponta da linguagem audiovisual. O que se pode notar no momento mais agudo da crise de produção do cinema brasileiro é uma verdadeira ebulição de idéias no campo do pensamento industrial, mas tudo sem grandes conseqüências. O que caracteriza este período do início dos anos 1990 é certa descrença da própria corporação em relação ao Estado como vetor da industrialização, mas, ao mesmo tempo, não se avança em direção a nenhuma plataforma nova. A sobrevivência pífia da produção brasileira durante os anos do governo Collor levou a corporação a se voltar decisivamente para o Estado, mas desta feita através da defesa das leis de incentivo para o setor e não mais através de um órgão estatal que concentrasse as decisões sobre o investimento do dinheiro público na produção. Ou seja, o dinheiro público continuou a financiar a produção, mas gerido de forma privada. Aliás, possivelmente nunca antes a produção brasileira no seu conjunto teve tamanha sustentação por parte dos fundos publicos, posto que quase a totalidade dela hoje dependa das leis de incentivo - cuja principal é, sem dúvida, a Lei do Audiovisual- e premiações governamentais. ESTUDOS DE CINEMA Não deixa de ser curioso o seguinte texto de Arnaldo Jabor publicado pouco antes de a Lei do Audiovisual ser promulgada. É a Carta Magna do Cinema, moderna, sem dependências do Estado. É a única solução. [... ]. Passou por todos os técnicos do Executivo. Foi levada de mão em mão por produtores guiados pelo Antônio Houaiss e Ruy Solberg. Foi assinada pela Procuradoria-Geral da Fazenda, pela Receita Federal, pela Assessoria Jurídica da Casa Civil, e agora repousa na mesa de FHC. Talvez o cinema dos anos 90 possa começar. Talvez tenha chegado o fim do labirinto. (1993: 8) Falar em independência em relação ao Estado quando se tem de esperar por todas estas assinaturas de pessoas ligadas ao governo para que o cinema brasileiro pudesse sair do "labirinto" é no mínimo incoerente; sem deixar de lembrar que os recursos da Lei do Audiovisual provêm de imposto devido ao Estado, ou seja, trata-se de dinheiro público. Mas esta confusão do texto diz muito a respeito da nova estrutura de fomento ao cinema brasileiro que começava então a ser constituída, tendo por base principal a renúncia fiscal por parte do Estado. Cabe-me na pesquisa que estou fazendo no momento verificar as continuidades, as modificações e eventualmente as novas formas do pensamento industrial cinematográfico desenvolvido nestes últimos quinze anos. É possível adiantar, para além da permanência do Estado como eixo central em tomo do qual este pensamento gira, algumas outras continuidades bastante claras como a insistência no discurso "culturalista", nas justificativas para o suporte do Estado e que continua a enxergar o cinema brasileiro como repositório da nacionalidade; além da visão romântica a respeito do público, que se mistura com a noção de povo, conforme se pode notar de forma eloqüente em Tapete vermelho (Luis Alberto Pereira, 2006) - no qual o espectador caipira chega a falar em "meu filme" para se referir à fita de Mazzaroppi que ele deseja assistir e não consegue. Por outro lado, parece ter havido um avanço considerável no entendimento da necessidade de ampliação das relações com a televisão, vide o projeto da ANCINAV e a determinação com que parcela do meio cinematográfico buscou por meio de legislação vincular o cinema à televisão. Também interessa investigar aqueles poucos ensaístas, dentre os quais se destacam Jean-Claude Bemardet, Carlos Augusto Calil e Eduardo Escorei, que problematizam a forma como está estruturada a produção cinematográfica atual, por perceberem que ela não possibilita a industrialização do cinema brasileiro e nem mesmo avanços substanciais de mercado. Finalmente, talvez caiba perguntar se a industrialização deixou de cumprir o papel de laço ideológico da corporação cinematográfica, para figurar de maneira decorativa entre as razões eternamente arroladas pelas quais o Estado deve apoiar o cinema brasileiro. PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS 357 BIBLIOGRAFIA AUTRAN, Arthur. 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No entanto, é esse o público que realmente se quer alcançar no cinema brasileiro atual? · Discutir essas questões é adentrar na própria concepção do que é o popular e das traduções que esse popular ganhou em suas aproximações com a indústria cultural, justamente porque essa busca por um público mais amplo leva o cinema a dialogar com elementos daquela indústria, em especial aqueles de mídias que possuem maior acesso como a televisão e o rádio. Daí a demanda que o cinema cada vez mais encontra de ser pautado por outros meios de comunicação. Essa prática não é nova no nosso cinema. É o caso, por exemplo, de músicos reconhecidos como populares e que acabaram se tomando astros de cil}.ema ou temas I. Esse texto faz parte das discussões da pesquisa "Convergências tecnológicas e traduções intersemióticas entre imagens audiovisuais: as aproximações entre cinema e tevê", apoiada pelo CNPq e desenvolvida junto ao PPG em Comunicação e Informação da Fabico!UFRGS. Participam do projeto a pesquisadora de cinema Profa. Ora. Fatimarlei Lunardelli (UFRGS/Unisinos ), e os alunos de Iniciação Científica: Julia Bertoluci de Souza (PIBIC), Aline Rocha (BIC-CNPq); Aline Almeida Duvoisin (BIC-UFRGS) e Gustavo Coltry (!C Voluntário). 2. Pesquisadora do CNPq. 360 ESTUDOS DE CINEMA de fihne que iguahnente arrastaram multidões para as salas escuras. Mais recentemente, diálogo vem se dando com a tevê e as séries televisivas, e seus correspondentes cinematográficos. Para discutir as concepções de popular no cinema, este trabalho vai recorrer a dois livros clássicos na historiografia que se dedicam ao tema no Brasil: as pesquisas de Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, que abarcam esse conceito no cinema até os anos 1960; e a pesquisa de José Mário Ortiz Ramos, que abarca os anos 1970 e 1980. Por fim, ver-se-á como essas concepções podem ser atualizadas dos anos 1990 para cá, analisando as interfaces entre cinema e tevê propostas pela Rede Globo de Televisão e por sua empresa voltada para o campo cinematográfico, a Globo Filmes. 0 REVENDO AS CONCEPÇÕES DE POPULAR NO CINEMA NACIONAL No livro de Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, Cinema: repercussões em caixa de eco ideológico (1983), os autores procuraram mapear as diferentes. concepções de popular que atravessaram a história do cinema brasileiro nos seus primeiros sessenta anos. de existência. No primeiro capítulo do livro, Nosso. Nosso?, escrito por ambos os autores, vê-se que até os anos 1910, popular é sinônimo de muito freqüentado e muito visto pelo público, sem especificar o tipo de público ou a temática do produto. Nos anos 1920, essa concepção já ganha uma conotação nova, e popular começa a se referir às condições de produção do produto, ou seja, o cinema popular era aquele "pobre e vagabundo" (1983: 31). Ao mesmo tempo em que o popular passa a se referir a um tipo de produto mal-acabado tecnicamente (e essa comparação é feita em especial em relação ao cinema americano), popular também passa a definir o público a quem o filme se destina (as camadas mais pobres da população) e os seus espaços de exibição (salas pobres de bairros pobres, ou cinemas do interior). Ao lado dessa concepção preconceituosa e elitista de popular, vai surgindo outra, que vê o popular enquanto temática, ou seja, filmes que retratam os hábitos do povo brasileiro mas de modo refinado e poético, como o faz Humberto Mauro. Essa concepção de popular torna-se corrente nos anos 1950, e é um dos elementos de análise, por exemplo, dos filmes da Vera Cruz: aqueles que retratavam o povo e seus do que hábitos (como os filmes de Mazzaropi, por exemplo) são mais ーッオャ。イ・セ@ aqueles que retratam os hábitos da burguesia (por exemplo, Floradas na serra, 1954, de Luciano Salce). O povo, assim, torna-se objeto e destinatário dos filmes ditos populares. A diferenciação entre essas concepções acirra-se nos anos 1960. No capítulo "Nacionalpopular. Nacional-popular?", assinado por Maria Rita Galvão, a autora explica que: . PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 361 embora não haja em textos sobre o cinema a preocupação específica com explicações dessa ordem, é claramente perceptível a distinção entre um "cinema popular", entendido como algo que direta. ou indiretamente vem do povo, e o "cinema popular" dos anos 50 e 60, que pretende dirigir-se ao povo, com intenções didáticas ou destituído delas (1983: 139) Aquela noção e!itista de popular, que começa a se criar nos anos 1920, então se ratifica para alguns tipos de produtos: aqueles que efetivamente eram feitos pelas camadas populares e que possuíam uma narrativa e uma estética chulas ou vulgares na concepção dos cineastas que provinham das camadas altas ou médias da população. O bom filme seria, por conseqüência, como dizem Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bemardet, aquele que usava na sua temática a "matéria-prima popular (que vem do povo)" (1983: 39), mas sem os aspectos negativos do popular. Um popular para elevar a consciência do povo e não para diverti-lo.· No entanto, essa visão simplificadora da cultura e do popular vai entrar em choque com as necessidades impostas pelo mercado da indústria cultural que está se estruturando no Brasil na mesma época. Tanto é que nos anos 1950 há um novo aspecto que se insinua para se pensar o popular no cinema: o filme seria popular se tivesse aceitação do público. E, para conseguir essa aceitação, o público precisava não apenas estar na tela, mas ver na tela aqueles elementos que o interessavam. Nesse sentido, pode-se ver a intensificação de uma prática de produção que se ramificará em outras vertentes do cinema popular brasileiro: a participação nos filmes de astros populares de outras mídias. Na verdade, já era comum nas chanchadas cariocas convidar-se cantores, em especial do rádio, para participarem de projetos cinematográficos ou para serem astros principais. Personalidades como Vicente Celestino ou Carmem Miranda tiveram importante participação na popularização de determinados filmes ou gêneros cinematográficos, como os musicais ou as comédias musicais e os melodramas. Enfocar a história de cantores populares também era outra estratégia utilizada, e um exemplo é o filme sobre Zequinha de Abreu, Tico-tico no fubá, de 1952, de Adolfo Celi, produzido pela Vera Cruz, e que foi um grande sucesso de público na época. No Rio Grande do Sul, dois exemplos seguiriam essa trilha: nos anos 1960 e 1970, os cantores populares Teixeirinha e José Mendes fizeram muito sucesso no cinema em função de seus trabalhos 。ョエセイゥッ・ウ@ na música. José Mendes morreu no auge do sucesso, ainda no início dos anos 1970, e participou de apenas três filmes. Teixeirinha, que faleceu nos anos 1980, chegou a fazer 12 filmes, sendo que alguns deles ainda constam da lista da Ancine sobre as maiores bilheterias do Brasil desde os anos 1970. Portanto, nessa busca pelo popular, o cinema acabou mesclando um pouco das concepções anteriores mapeadas por Galvão e Bemardet: para ser popular um ESTUDOS DE CINEMA 362 filme precisa atingir um grande número de pessoas, mas também precisa ter uma temática que corresponda aos anseios desse público. Quando o cinema dialoga com músicos que são sucesso no rádio (utilizando-se de uma estratégia de cross-media), ele também busca para si, o prestígio da outra mídia e do seu conteúdo. Por outro lado, muitos desses filmes possuem um acabamento estético e narrativo que muito deixa a desejar para um público que busca no filme também um prazer estético. Os filmes de Teixeirinha são exemplos dessa perspectiva de se compreender o popular. 3 O cantor era produtor de seus filmes, e por isso influenciava em todos os aspectos de concepção e realização do projeto, pois tinha em mente os desejos do "seu púbkco", como costumava dizer. Não permitia requintes técnicos e/ou narrativos, com medo de não ser entendido. Isso porque, para ele, eram claros os espaços de exibição de seus filmes: cinemas de bairro ou do interior; circos e salas improvisadas na periferia das cidades, o que vem a confirmar a visão que se generaliza a partir dos anos 1930 sobre o popular. Porém, essa concepção de popular como produtos mal-feitos, realizados para um público popular que não exigiria requintes de acabamento do produto filmico, foise diluindo ao longo dos anos 1980 e 1990, a fim de ganhar seus novos contornos no cinema da chamada pós-retomada. CONCEPÇÕES EM MOVIMENTO Para se perceber uma das fases dessa transformação, é interessante resgatar a pesquisa de José Mário Ortiz Ramos, relançada há poucos anos com o título de Cinema, televisão, publicidade: cultura popular e de massa no Brasil dos anos 70 e 80 (2004). 4 A pesquisa de Ramos, de uma certa forma, continua aquela de Galvão e Bemardet, que foi até os anos 1960. Ao avançar mais duas décadas na concepção de popular no cinema, o autor já percebe o novo cenário da indústria cultural brasileira. Agora, ao invés do rádio, o meio que mais dialoga com o cinema (ou busca dialogar) é a televisão. As aproximações entre os dois meios audiovisuais, no entanto, são conflituosas pelas próprias características do entendimento, do que é fazer cinema e do que é fazer televisão. O cinema brasileiro dos anos 1960, marcadamente autoral, procurava apagar a herança de posturas industrializantes do cinema anterior, que eram consideradas alienadas ou alienantes, como, por exemplo: o roteiro estruturado, a fotografia impecável, os assuntos considerados burgueses, a montagem invisível. E no campo 3.' .Sobre o assunto ver: ROSSINI, Miriam de Souza. Teixeirinha e o cinema gaúcho. Porto Alegre: ·:. :Fumproarte, 1996. 4 .. Ç> título anterior do livro era: Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995, . :293p. PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 363 da filmagem, diz o autor, preferia-se adotar uma "total liberdade", que afmal é contrária às práticas planificadas de ação dos sets de filmagens dos grandes estúdios. Por outro lado, como a sua atualização tecnológica é demorada e o cinema nacional nunca conseguiu constituir-se enquanto indústria, o modo de produção artesanal foi incorporado às próprias características do nosso cinema. Essas posturas, porém, começam a ser contestadas a partir dos anos 1970, quando se busca equiparar a qualidade técnica dos produtos audiovisuais brasileiros (televisivos, cinematográficos, publicitários) a fim de se conquistar novos públicos para as salas de cinema: A autonomia das duas esferas, televisiva e cinematográfica, é quebrada diante das necessidades da produção da ficção popular de massa, que não despreza nenhuma contribuição na sua voraz obsessão por amplos públicos. Se anteriormente já foi ultrapassada a barreira com os autores de teatro, agora vemos um processo análogo com os cineastas. (RAMOS, 2004: 89). Essa busca, observa-se, é para obter maior sucesso de bilheteria, ou seja, para buscar aquilo que Ramos chama de "o público popular de massa", que é um público habituado à nova produção televisiva e que vinha renegando as produÇões cinematográficas mal-acabadas, técnica e esteticamente produzidas no país. Apesar de tal demanda, a maioria dos profissionais de cinema no Brasil continuava vendo, como prejudicial para a sua arte a produção de filmes com maior apelo de público, e nesse sentido qualquer tentativa de aproximação com a televisãoseja com seus modos de produção e de narração, ou com suas estéticas visuais e sonoras- era vista como perniciosa. Após uma tentativa frustrada da Embrafilme de aproximar cineastas e produtores de televisão, Walter Lima Jr. comenta que os cineastas costumam idealizar seus projetos, enquanto a "tevê é uma coisa apavorante, aquilo é meio fábríca" (LIMA JR. apud RAMOS, 2004: 84). Por isso, poucos cineastas que já buscavam fazer filmes mais atraentes para o público, como Antonio Calmon, acabaram indo para a televisão. Enquanto o cinema debate-se com suas posturas herdadas dos anos 1960, a tevê, em especial a Rede Globo, trilha um percurso que busca a eficiência das práticas produtivas e administrativas a fim de obter um produto audiovisual bem acabado estética e narrativamente. Além do mais, o capital financeiro que a televisão movimenta, e a atualização tecnológica que isso permite, deixa claro o estado de miséria do cinema nacional. O choque entre esses dois universos, que possuem concepções opostas em todos os aspectos, vai fazer com que a tevê, em especial a Rede Globo, busque sua própria forma de chegar ao cinema após desenvolver váríos núcleos de dramaturgia. O apoio ou a co-produção de filmes feitos por membros de sua equipe técnica e artística é uma dessas estratégias. Assim, o quarteto de comediantes que forma Os 364 ESTUDOS DE CINEMA Trapalhões e a apresentadora infantil Xuxa Meneghel, por exemplo, são dois grandes ícones de uma mídia com grande alcance e penetração - a tevê -, e que farão sua passagem para o cinema, agregando aos seus produtos cinematográficos as características de populares porque muito vistos e conhecidos. Embora muito de seu público seja infantil (em especial o da Xuxa), eles levam multidões ao cinema, e, em épocas de crise, como a dos anos 1990, eles mantiveram seus produtos nas duas mídias. Porém, ao contrário dos antigos filmes populares, o acabamento estético e narrativo de seus produtos filmicos vai melhorando, e inovações tecnológicas vão sendo incorporadas à produção. Não podem mais ser compreendidos como populares, portanto, porque mal-feitos, ou porque o povo é o tema da narrativa. Nessa nova fase, a aceitação do público é o que conta, e ela está vinculada às injunções da indústria cultural. Ao mesmo tempo, esse público também mudou e refinou sua percepção estética sobre produtos audiovisuais, já que os absorve constantemente através da programação televisiva. A criação da Globo Filmes, em 1998, vai ser a consolidação desse novo filão de cinema popular brasileiro. Resgatando a idéia de um popular que atraia o público, e cujos temas o interessem, ver-se-á que a Globo Filmes vai explorar aquilo que ela tem de mais popular (no sentido de mais visto): os programas de sua grade de programação que possuem maior audiência, e os astros e estrelas que neles atuam. É assim, por exemplo, que se compreende o sucesso de filmes como Os normais, de 2003, de José Alvarenga Jr., e A grande família, de 2007, de Mauricio Faria, que se baseiam em séries narrativas que ficaram (ou ainda estão) no ar há muitas temporadas, e que por isso já possuem o reconhecimento do público. Se o público que foi vê-los no cinema é aquele que antes se pensava como popular, essa é uma outra questão e que demanda um outro tipo de pesquisa, voltada para recepção. Porém, se lembrarmos que esses filmes passaram principalmente em salas de shoppins centers que possuem preços elevados, talvez já se possa perceber que se está lidando também com uma nova· concepção de público popular (ou talvez de popularidade de um produto). Ou seja, como Ramos já percebera, a aposta da Rede Globo num padrão de qualidade estética e narrativa para os seus produtos televisivos passou a marcar os demais produtos audiovisuais brasileiros; e essa mudança é visível nos filmes 「イ。ウゥャ・ッセ@ Segundo o crítico de cinema Pedro Butcher (2005), a ascensão da mídia televisiva modificou todas as cinematografias mundiais, porém no Brasil, diz ele, tal fenômeno produziu algumas peculiaridades, já que a tevê que maior projeção obteve nessa vinculação com o cinema é a Rede Globo, que desde os anos 1970 tem como objetivo estabelecer o padrão Globo de qualidade. Por isso, afirma o autor, "todos os filmes feitos no Brasil a partir dos anos 1990 não escapam desse novo referencial. Eles podem ser observados como adesões ou reações à nova hegemonia que se formou no campo audiovisual brasileiro, o 'padrão Globo de qualidade'" (BUTCHER, 2005: 69): PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 365 A entrada da Globo Filmes no mercado cinematográfico vem concretizar aquela idéia prevista por Ramos, provocando uma revisão nas concepções de popular que havia no cinema nacional. A tela da tevê tornou-se a nova fazedora de ídolos, onde transitam até mesmo os ídolos das outras mídias em busca de maior reconhecimento e afirmação. Músicas populares ainda existem, e ainda fazem sucesso no mercado fonográfico e radiofônico; porém é na tevê que eles fazem suas aparições mais glamourosas e/ou emocionadas, em programas como Amigos (1995), ou Tributo a Leandro (2003), exibidos pela Rede Globo e contando com a participação de vários músicos sertanejos. E é através da tevê que muitas vezes eles partem para o cinema, onde reencontram seu público popular em produtos que não são mais mal-feitos ou pobres. Está aí para provar o filme sobre a biografia da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano, 2 filhos de Francisco, de 2005, de Breno Silveira, grande sucesso do cinema brasileiro, com mais de cinco milhões de espectadores, e que tem como uma de suas produtoras a Globo Filmes. Esse embaralhamento de fronteiras nos mostra como é complexo pensar o que é popular no cinema brasileiro hoje. Percebe-se também que há ainda um imaginário negativo sobre o que é esse popular e para quem são feitos esses produtos, mas não há uma situação real e atual que dê conta daquelas concepções passadas. Afinal, o popular não é mais sinônimo de filmes ruins, chulos ou mal-feitos, exibidos em espaços tão marginais quanto seu público. A idéia de um popular que tenha o povo como objeto, sem pensar numa forma comunicativa de expressar seu conteúdo, também não se aplica mais. A baixa bilheteira de um filme como Antonia, de 2007, de Tata Amaral, é um exemplo disso. Porém, se o filme não foi bem aceito, sua versão televisiva, a minissérie Antonia, de 2006, produzida pela Rede Globo e contando com o mesmo elenco do filme, foi um grande sucesso de audiência. A distância que houve entre o produto cinematográfico e o televisivo nos permite perceber ainda aquela diferença de concepção entre os meios de que falava Ramos, e que é a própria marca de um tipo de cinema brasileiro. Refletir sobre essas mudanças e sobre essas permanências ajudam este trabalho a dar respostas mais complexas ao atual panorama do cinema nacional, do que apenas "engrossar o coro" dos que são contra a entrada da Rede Globo no campo cinematográfico brasileiro, afirmando que os filmes assinados pela Globo Filmes não são cinema nacional. 5 5. No texto "A narrativa seriada e suas adaptações para cinema e tevê", apresentado na Intercom realizada em Santos, em 2007 ,junto à mesa temática "Entre o audiovisual e as audiovisual idades: questões culturais, estéticas, tecnológicas e de linguagem", discuti o modo como a Globo Filmes procura apoiar diferentes propostas cinematográficas, e não apenas filmes feitos a partir de sua grade de programação, capitalizando com isso diferentes capitais simbólicos, vindas tanto do cinema quanto da tevê. ESTUDOS DE CINEMA 366 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005. GALVÃO, Maria Rita & BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1983. ORTIZ, José Ramos. Cinema, televisão, publicidade: cultura popular de massa no Brasil nos anos 1970-1980. 2ed. São Paulo: Annablume, 2004. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988. RAMOS, Fernão & MIRANDA, Luiz Felipe de. Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000. ROSSINI, Miriam de Souza. Teixeirinha e o cinema gaúcho. Porto Alegre: Fumproarte, 1996. ROSSINI, Miriam de Souza. A narrativa seriada e suas adaptações para cinema e tevê. Intercom, 2007, manuscrito. SANTAELLA, Lúcia. (Arte) & (Cultura): equívocos do elitismo. 2" ed., São Paulo: Cortez, 1990. Cinema e identidade cultural: o debate contemporâneo sobre as políticas públicas do audiovisual no Brasil LIA BAHIA CESÁRIO (UFF) No FINAL do século XX, o neoliberalismo e a globalização alteram os fluxos e as contradições entre a dominação cultural e a produção nacional do cinema. Na América Latina, os filmes de Hollywood ocupam em tomo de 85% do tempo de exibição, até mesmo em nações que recuperaram na década de 90 sua produção nacional, como o México, Brasil e Argentina. O predomínio mundial do cinema norteamericano do pós-guerra em diante converteu-se em oligopólio a partir da década de 1980, ao controlar simultaneamente a produção, distribuição e exibição em mais de uma centena de países. "Numa operação mais extensiva do que em qualquer outro campo cultural, Hollywood impôs um formato de filmes quase único( ... ) com temas de fácil repercussão em todos os continentes" (GARCIA CANCLINI, 2005: 245). Diante disso, o cinema de cada país vai procurar estabelecer relações fortes com códigos de identificação de sua nacionalidade: a língua, as locações, os tipos dos personagens, as vestimentas, as músicas e as referências literárias que caracterizam a nacionalidade de um filme. É preciso se perguntar em que medida os cinemas nacionais não são formas de resistência à hegemonia audiovisual norte-americana e ao processo da internacionalização da cultura. Enquanto as trocas simbólicas apresentam equidade, a nação não tem necessidade de afirmar e defender· sua cultura. Em momentos de crise e desequilíbrio cultural os países criam ações pró-ativas no intuito de garantir a permanência de valores e tradições. O filme é um produto entre outros e sua difusão é altamente influenciada pela evolução dos sentimentos em face do fato nacional. Paradoxalmente, o processo de globalização neoliberal resulta em um cinema em constante diálogo com o mercado nacional e internacional, dependente de empresas estrangeiras para sobreviver. As políticas de desregulamentação dos governos latino-americanos, a partir da década de 1990, propiciaram altos investimentos 368 ESTUDOS DE CINEMA norte-americanos na cadeia produtiva do audiovisual desses países. As majors e o circuito de exibição norte-americano se tomam relevantes para a sobrevivência do cinema nacional, ao mesmo tempo, impõem um modelo mercadológico que deixa pouco espaço para produções nacionais. Assim, "( ... ) os capitais transnacionais submetem a programação à uniformidade da oferta internacional mais bem sucedida e subtraem tempo de exibição a outras cinematografias" (GARCIA CANCLINI, idem: 248). O contexto global é um sistema de poder assimétrico e globalizado, desigual, dominando pelos conglomerados internacionais, diante da lógica do livre mercado. Essa lógica configura urna troca desigual de bens simbólicos entre regiões do mundo. O cinema se torna o emblema das relações de força que vão marcar a internacionalização da produção cultural, sob a lógica da defesa da identidade nacional, ainda no período das Grandes Guerras Mundiais. Na contemporaneidade, os cinemas não encontram mais fronteiras sólidas entre nacional e estrangeiro; a discussão ganha novos contornos com a participação efetiva de empresas transnacionais no setor e com o desenvolvimento de mídias de entretenimento audiovisuais. O sistema de produção, comercialização e consumo cinematográfico não pode ser explicado em termos de homogeneização, nem de localização. A consolidação do sistema se atinge articulando ambos os aspectos. A persistência ou ressurgimento do local é agora atravessado por estruturas e fluxos internacionais. As temáticas permanecem nacionais, mas os modos de produção transitam entre o nacional e o internacional. Essa dinâmica interfere diretamente no conteúdo fma!.da obra audiovisual. A interface nacional-transnacional encontra respaldo nas leis e políticas públicas adotadas para o setor e transforma os modos de produção que compõem a cadeia produtiva do audiovisual no Brasil. POLÍTICAS PÚBLICAS rARA O AUDIOVISUAL NO BRASIL: ENTRE O NACIONAL E O INTERNACIONAL As políticas públicas para o audiovisual no Brasil surgem para fomentar e proteger a produção nacional e regular o mercado interno em tempo de mundialização da cultura. Na história recente do cinema nacional, várias medidas como a criação da Lei Rouanet (1991)- agora Artigo I • A- Lei do Audiovisual ( 1993) -, implantação da Ancine através da MP 2228-1 (200 1) e a implantação dos Funcines (2003) corroboram a"tendência de um recrudescimento da indústria audiovisual nacional. A partir de meados dos anos 1990, o Estado brasileiro recupera o sentido da importância social, política, econômica da produção cinematográfica, tomando-a como estratégia para a conformação da identidade cultural nacional e como setor industrial a ser fomentado e.protegido pelo Estado . . • Há crescimento macro da atividade cinematográfica, a partir de meados dos anos de '1990. Toda a cadeia produtiva do audiovisual no Brasil é beneficiada com _as PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS 369 novas leis de incentivo: o volume de público do filme brasileiro atinge uma marca razoável (com uma média de 11% a 15% de participação no mercado nos últimos anos), o número de títulos nacionais e o investimento para os mesmos crescem ano a ano, a participação das majors no mercado brasileiro aumenta e o parque exibidor se expande no país. Evolução dos filmes nacionais lançados 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2006 2006 Fonte: Filme B, Database 2006. Novos parâmetros de ação do Estado e de sua relação com a sociedade são traçados a partir das leis de incentivo e de agência reguladora (Ancine). Se na época da Embrafilme o Estado era produtor direto do cinema nacional- cinema de Estado, a partir da Lei do Audiovisual ( 1993 ), o Governo se retira como figura do produtor estatal, permitindo uma relação direta e obrigatória do produtor de cinema com o investidor e empresas estrangeiras. "A gestão cultural do Estado na sociedade contemporânea ocorre de forma diversa dos momentos anteriores, quando assumia um caráter intervencionista, procurando orientar e conduzir a organização da produção". (ORTIZ RAMOS e BUENO, 2001: 10). Atualmente sua ação se restringe a fornecer subsídios e suporte, que serão organizados e distribuídos pelo mercado, sem interferir diretamente sobre os conteúdos. O modelo de políticas pública para o audiovisual no Brasil e sua interpenetração nacional-internacional reflete diferentes abordagens sobre o tema. As reflexões 370 ESTUDOS DE CINEMA correntes sobre o produto cinematográfico consideram a importância da identidade nacional para a indústria cultural. Segundo pronunciamento do executivo da FOX, Marcos Oliveira, durante o Festival do Rio 2005, sua empresa acredita que a força de mercado de um país está relacionada diretamente à sua produção interna. Tal postulado tem como conseqüência que o fortalecimento do cinema nacional é fundamental para o desenvolvimento do mercado do cinema no Brasil como um todo. Esse apelo ao nacional emanado de uma multinacional do cinema é digno de nota, na medida em que o cinema hollywoodiano domina o mercado brasileiro e cada vez mais empresas estrangeiras participam da produção e divulgação do produto nacional. As atuais políticas para a promoção do setor cinematográfico carregam consigo contradições: por um lado, os incentivos fiscais garantem a todos o direito de produzir, por outro, mimetizam um modelo liberal para audiovisual, uma vez que se delega a decisão às grandes empresas. O Estado abdica do compromisso de construir um painel cinematográfico, marcado pela diversidade de custos, profissionais, linguagens e discursos ao deixar a decisão da escolha dos projetos de produção nas mãos das empresas. Em conseqüência, o mercado é dominado por um pequeno número de pessoas, restando pouco espaço para a inovação e diversidade. No Brasil, são as políticas públicas culturais e leis federais que direcionam a produção audiovisual nacional.' São as empresas estatais as que mais investem pelas leis de incentivo. No ano de 2006, no que se refere à Lei Rouanet (atual Artigo 1oA), 84% de um total de R$ 37.876.981,00, aportado pelos 20 maiores incentivadores são empresas estatais; pelo Artigo 1o da Lei do audiovisual, esse valor se reduz para 31% para as empresas estatais (de um total de R$ 53.589.100,00) (Fonte: Dados Ancine, 2007). Então, se, por um lado, as políticas públicas para o audiovisual no país são baseadas na idéia nacional da renúncia fiscal e este mecanismo é utilizado, em sua maioria, por empresas estatais, por outro, a distribuição desses investimentos nas regiões do Brasil se mostram bastante desiguais. Observa-se uma alta concentração de valores aportados nas empresas produtoras nas regiões geográficas do Brasil que lançaram filmes no ano de 2006. A tabela abaixo expõe a concentração de investimento em produtoras dos filmes nacionais lançados em 2006, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. I. Os incentivos estaduais e municipais para o audiovisual ainda são pouco representativos se comparado ao montante investido pelas leis federais. PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 371 Filmes lançados em 2006 por UF - valores captados e público 100.000.000 80.000.000 60.000.000 40.000.000 a Total Captado 20.000.000 l!l Público total SP Fonte: Ancine 2007. Estas disparidades estão presentes em todos os setores da cadeia produtiva do cinema. As políticas e as leis de incentivo à produção audiovisual, com a finalidade de proteger, fomentar a produção nacional e corrigir as desigualdades do setor, atingem, com maior ou menor ênfase, todos os setores da cadeia produtiva do cinema (produção, distribuição e exibição) e vêm diversificando e ampliando sua atuação. A taxação sobre a remessa de lucro das distribuidoras estrangeiras (Artigo 3° da Lei do Audiovisual), a obrigatoriedade de o exibi dor programar filmes nacionais em suas salas (cota de telas) e o Prêmio Adicional de Renda são exemplos de leis que estão sendo adotadas no país. A política pública para o audiovisual no Brasil, contudo, se volta mais fortemente para o setor da produção ainda que de maneira desigual. Os demais setores básicos da cadeia produtiva distribuição e exibição - ficam nas mãos de empresas estrangeiras. Um dos questionamentos mais freqüentes ao modelo brasileiro de incentivos ao audiovisual é que este "( ... ) aponta sua incapacidade de englobar a atividade cinematográfica em seu todo. Ele não percebe que produzir apenas é insuficiente para gerar a autosustentabilidade da atividade cinematográfica e, por fim, uma indústria" (ALMEIDA e BUTCHER, 2003: 32). No que se refere à distribuição, o investimento estrangeiro das majors em filmes nacionais cresce a cada ano. De 2002 a 2006 houve um crescimento de 252% do total de recursos oriundos do Artigo 3° da Lei do Audiovisual: um aumento de R$ 18.319 milhões em 2001 para 64.414 em 2006. É importante enfatizar que esse aumento significativo da participação das majors no orçamento das produções nacionais ESTUDOS DE CINEMA 372 e do marlcet share do público nacional é resultado do amadurecimento do Artigo 3o da Lei do Audiovisual. 2 Neste mesmo ano, dos 70 filmes nacionais lançados 26 tiveram recursos fmanceiros de empresas distribuidoras internacionais (dados Ancine, 2006). Junto a isso a participação das majors no público de filme nacional cresceu de 38% em 2002, para 84% em 2006 (ver figura abaixo). Em relação ao número de títulos, em tomo de 60% dos filmes nacionais foram lançadas por distribuidoras brasileiras independentes, as. majors foram responsáveis somente por 23% do total de títulos. Market share distribuidoras filme nacional público 2006 Fox 46,2% UIP 0,9% Sony 2,3% 6,3% 10,6% 23,9% Fonte: Database Filme B 2006. Junto a essa concentração de público em filmes nacionais distribuídos por majors (e não de variedade de títulos) ocorre uma defasagem entre os elos da cadeia produtiva no cinema nacional. Muitos filmes nacionais chegam a ser fmalizados, mas não são exibidos nas telas de cinema por falta de distribuidor. E, quando o produto 2. Artigo 3° da Lei do Audiovisual permite que a empresa estrangeira, contribuinte do Imposto de Renda paga sobre o crédito ou a remessa de rendimentos decorrentes da exploração de obras audiovisuais no mercado brasileiro, abata 70% do imposto de renda devido, desde que invista o referido valor em: desenvolvimento de projetos de produção de obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem de produção independente; co-produção de obras cinematográficas brasileiras de curta, média e longa metragens, de produção independente; co-produção de telefilmes e minisséries brasileiras de produção independente. PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS 373 brasileiro chega ao cinema, ele não consegue seguir a cadeia produtiva que se subdivide nas seguintes janelas: cinema;.home-vídeo, televisão paga; televisão aberta e outras mídias. O filme brasileiro fica restrito ao mercado interno e raras vezes chega às televisões abertas e fechadas; estes são exibidos, em sua maioria, em salas de arte. Quando se consegue apoio de uma distribuidora norte-americana e de emissora de televisão, o filme pode vir a se tomar uma grande produção nacional. O filme passa, então, a fazer parte de um circuito de exibição mais amplo, atingindo maior número de espectadores. A exibição no Brasil, como toda a cadeia produtiva do cinema, é dotada de contradições. As novas dinâmicas do audiovisual acabam por criar novas formas de comunicação e novos hábitos culturais. A cadeia comunicacional dos filmes se alonga, transmitindo o valor simbólico do produto para um maior número de pessoas. A tela de cinema é hoje: "( ... ) apenas a vitrine mais luxuosa de um grande conjunto que ainda passa por vídeo, televisão por assinatura e TV aberta. Essas múltiplas possibilidades de exploração de um filme se inter-relacionam" (ALMEIDA e BUTCHER, idem: 19). Rodrigo Satumino Braga, da Columbia, chama atenção para o vício de informação ao focalizar o cinema somente nas salas de exibição - que representam aproximadamente 25% da receita da atividade cinematográfica. Ele considera que é preciso se levar em conta os outros veículos de comunicação que exibem os produtos audiovisuais. Estes são meios eficazes, uma vez que alcançam um maior número de espectadores e garantem que a fala simbólica, o discurso contido no filme, possa chegar a diferentes públicos. A sobrevivência do cinema não depende apenas das projeções nas grandes telas de cinema, mas do desempenho conjunto do campo audiovisual. "Os filmes de hoje são produtos multimídias, que devem ser financiados pelos diversos circuitos que os exibem" (GARCIA CANCLINI, 2000: 193). Ao mesmo tempo em que se abrem novas janelas para a divulgação da obra audiovisual, o setor de exibição e toda sua cadeia - como a distribuição no Brasil está concentrado fia forte participação das empresas estrangeiras. A chegada dos multiplex no país, em 1997, - depois da vertiginosa diminuição das salas de cinemas no país nos anos de 1980 - proporciona novo vigor ao cinema. A entrada do capital estrangeiro na indústria cinematográfica transforma a dinâmica interna do setor e o comportamento de seu público. 3 Há um número grande de salas, geralmente em 3. A dominação de filmes norte-americanos no mercado brasileiro é evidente. Grandes produções são lançadas com um número de cópias que ocupam grande parte das salas de exibição no Brasil. Os filmes nacionais e outros filmes estrangeiros encontram, então, dificuldades de chegar às salas de exibição. Quando conseguem, são exibidos em salas menores, atingindo um pequeno número de espectadores. No interior do país essa distorção aumenta. O número de salas de cinema nas cidades do interior é reduzido, impossibilitando que alguns filmes consigam ser exibidos uma única vez. ESTUDOS DE CINEMA 37.4 shoppings, de tamanhos diferenciados, com uma variedade de filmes para que o espectador faça sua escolha. Isso cria um novo hábito do público de cinema. "Antes do multiplex, o único atrativo do espectador era o próprio filme. Depois dele passou a ser, sobretudo, o próprio espaço" (ALMEIDA e BUTCHER, ibidem: 65). A construção desses complexos dentro dos shoppings, ilhas de consumo, e a conseqüente elevação do preço de ingresso promovem uma elitização do hábito de ir ao cinema. Houve um aumento significativo no preço do ingresso no Brasil: nos anos 70, o preço médio do ingresso variou de 0,33 a 0,59 dólares. Mas é a partir da década de 90 que o ingresso atinge seu maior valor (gráfico abaixo): Preço médio ingresso no Brasil por ano (US$) 5,00' 4,50 ::: +--/',..,....------\----__-_____-__-_____-____-__-____-____-____-____-____--:------__ _ 3-.60 3,00 2.50 I I KMGィN]fZQセ _ _ __ エMセBッNLZ]^⦅@ 2,00 KMセTG] 1,50 +----------------------- 0,50 +-----------------------------1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Fonte: Database Filme B 2006. Dentro da lógica da participação do capital estrangeiro na atividade cinematográfica, o mercado exibidor no Brasil é dominado pelo grupo Cinemark que representa 16% do total de salas no país, seguido pelo Grupo Severiano Ribeiro, com 7% de participação do total de 2.045 salas em 2006. O advento dos multiplex é acompanhado por uma queda abrupta nos cinemas de ruas e pela concentração das salas em localidades centrais do país. Na afirmação de Silva, "o cinema torna-se um negócio não apenas urbano como dirigido para os grandes centros urbanos" (2007: 107). Somente 8,7% dos municípios brasileiros têm salas de exibição de cinema (Fonte: Muni c, IBGE, 2006). O desenvolvimento do setor cinematográfico está diretamente relacionado ao desenvolvimento socioeconômico e, portanto, ao poder de consumo da população. O parque exibidor brasileiro está PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS 375 concentrado na região sudeste, que dispõe de 59,2% do total de salas. A região Sul fica com 15,8% das salas, seguida por Nordeste com 11,2%, Centro-Oeste com 9,5 e finalmente, Norte, com apenas 3,2% das salas do país (Database Filme B, 2006). Cabe ao exibidor o poder de decidir o que vai ser projetado nas telas, por isso, sua relação com as empresas de distribuição é estreita. Exibidores e distribuidores formam uma estrutura comercial capaz de decidir a atividade cinematográfica do país. A distribuição cinematográfica é o setor intermediário, entre produtor e exibi dor; este último controla os filmes mais relevantes ou lucrativos da produção mundial, portanto, a concentração das empresas transnacionais na atividade cinematográfica é decisiva para que o cinema se tome um negócio pouco voltado para o interesse público. O grande desafio das indústrias de cinema e audiovisual no Brasil e na América Latina, neste novo século, não é deslocar as grandes companhias internacionais da região, mas sim ocupar um espaço justo e eqüitativo dentro da mesma, onde possa haver circulação democrática, tanto econômica quanto cultural, das imagens locais. A integração mundial dos mercados e culturas não acaba com as tensões entre a homogeneização e a afirmação dos efeitos particulares, nem com as desigualdades entre os países e indivíduos. As contradições só se intensificam e ganham força neste mundo desterritorializado. A globalização opera com duas vertentes: há forças dominantes de homogeneização cultural, mas junto a isso estão os processos que sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levantando a disseminação da diferença cultuai em todo o globo. As tendências contra-hegemônicas têm a capacidade de subverter, traduzir e negociar, fazendo com que se assimile o assalto cultural global sobre as culturas menos favorecidas. As culturas, sentindo-se ameaçadas pelas forças da globalização, fecham-se em tomo de instituições nacionalistas e há um movimento de reinvenção do passado no presente. Há a possibilidade de reapropriação e reorientação dos meios de comunicação. Na reflexão contemporânea, reorientar eticamente estes meios parece implicar leválos para além dos interesses imediatos do mercado em direção de uma comunidade coletiva e de coexistência das diferenças. As diferenças das culturas nacionais muitas vezes persistem sobre as transnacionais, mas o modo como o mercado neoliberal reorganiza a produção e o consumo converte, muitas vezes, as diferenças em desigualdades. Muitos afirmam ainda que essas medidas estejam sendo distorcidas, em favor das majors, dos grandes produtores nacionais ou dos exibidores, gerando concentração e desigualdade no setor. 4 4. Alguns dados disponíveis indicam a dominação e concentração de alguns produtores, distribuidores e exibidores no mercado cinematográfico brasileiro. Apenas 13 empresas produtoras de um total de 144 responderam por 43,2% do público que acorreu às salas de exibição no período 1995 a 2004. Uma concentração ainda mais intensa é observada em relaçãoàs empresas distribuidoras: 14 distribuidoras de um total de 35 foram responsáveis pela presença de 91, I% do público total no ESTUDOS DE CINEMA 376 A indústria cultural cria novas fonnas de dominação ideológica, que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo tempo, fómece instrumental para a construção, fortalecimento de resistência e luta contra as fonnas vigentes de dominação. A indústria cultural é, portanto, um terreno de lutas sociais importantes e ideologias políticas rivais. Essas disputas são vivenciadas por meio de imagens, discursos, mitos e espetáculos veiculados pelos meios de comunicação. Os cinemas nacionais contemporâneos se inserem dentro dessa luta. Não existe identidade nacional que não possa ser narrada, o reconhecimento e a narrativa da diversidade tomam-se definitivos na sociedade moderna. Os cinemas nacionais na América Latina se configuram como uma possibilidade de luta e resistência dentro da sociedade da internacionalização da cultura. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Paulo Sérgio e BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003. Relatórios Ancine, 2007. GARCIA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiçultura(s da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. -----··Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005 .. Database Filme B, 2006. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001. MUNIC, Perfil dos municípios brasileiros, IBGE, 2006. ORTIZ RAMOS, José Mario e BUENO, Maria Lucia. "Cultura audiovisuaL e arte. contemporânea". São Paulo Perspec., Julho/Setembro. vol.l5, n°.3, 2001, pp.l 0-17. SILVA, Denise Mota da. Vizinhos distantes: circulação cinematowáficano lv{ercosul, São Paulo: Annablume, 2007. mesmo período. No setor de exibição, no ano de 2004, os dez maiores exibidores ,concentranim · 1.033 salas de exibição (52% do total das 1.997 salas de exibição distribuídas peloBrasil). A predominância destes no mercado tende a privilegiar um modelo ou tipo de obra a ser セG_ョ、ッ@ pelo público. (Sumário Executivo Ancine, 2004). ·. . , ! · ' Cinema independente no Brasil: anos 1950 Luís ALBERTO RocHA MELO (UFF) NA HISTÓRIA do cinema brasileiro referente aos anos 1950, os filmes que não foram produzidos pelos grandes estúdios paulistas (Vera Cruz, Maristela) ou pelo monopólio de Luiz Severiano Ribeiro (Atlântida) são em geral divididos em duas vertentes opostas. De um lado, temo-se o grupo de realizadores e criticas ligados ao Partido Comunista Brasileiro, responsáveis por alguns filmes conhecidos como precursores do cinema novo dos anos 1960. Entre esses filmes, pode-se citar O saci (dir.: Rodolfo Nanni; prod.: Brasiliense, 1951-53); Agulha no palheiro (dir.: Alex Viany; prod.: Flama,l953); Rio, 40 graus (dir.: Nelson Pereira dos Santos; prod.: Equipe Moacyr Fenelon, 1955) e O grande momento (dir.: Roberto Santos, prod.: Nelson Pereira dos Santos, 1958). São os chamados "independentes". De outro, agrupam-se os produtores-distribuidores de comédias musicais populares; (conhecidas como "chanchadas") produzidas em grande número, anualmente; refiro-me a títulos como Depois eu conto (dir.: José Carlos Burle; prod.: Produções Watson Macedo/Cinedistri, 1956); É de chuá! (dir.: Victor Lima; prod.: Herbert Richers, 1957); Na corda bamba (dir.: Eurides Ramos; prod.: Cinelândia Filmes/ Cinedistri, 1957) e Quem roubou meu samba? (dir.: José Carlos Burle; prod.: Cinedistri/ Cinelândia Filmes, 1958), entre muitos outros. Estes não são considerados "independentes". No entanto, em Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz, Roberto Santos cineasta alinhado ao grupo dos "independentes"- afirma que [ ... ] objetivamente falando- e deixando de lado a questão da temática-, em termos de produção, nós aqui em São Paulo não fizemos nada mais do que retomar o sistema de produção da chanchada (SANTOS, apud GALVÃO, 1981: 218). 378 ESTUDOS DE CINEMA O trecho acima transcrito indica que é possível enxergar no modelo de produção das comédias musicais, uma fonte de inspiração para a produção independente tentada pelo grupo dito precursor do cinema novo. Mas é importante ressaltar que, para os referidos pequenos produtores e distribuidores, que em geral realizavam um volume bastante grande de comédias musicais populares, o uso do termo "produção independente" tinha um sentido bem distante da carga ideológica atribuída pelo grupo dos cineastas ligados à esquerda. Para os produtores de filmes objetivamente "comerciais", a "independência" estava ligada às formas de produção, distribuição e exibição desvinculadas dos grandes estúdios e do monopólio de Severiano Ribeiro, mas não abrangiam questões estéticas e temáticas. Já para os cineastas e críticos ligados ao PCB, o "cinema independente" era necessariamente um cinema de preocupações sociais e políticas, que exigiam temática e tratamento estético diferenciados. Em relação a esses cineastas ligados à esquerda, deve-se chamar a atenção para duas utilizações distintas do termo "independente", correspondentes a dois períodos bem determinados, ambos já cristalizados pela história vigente do cinema brasileiro. No primeiro período, situado entre os anos 1951-54, o "cinema independente" insere-se num programa de ação política motivado por um movimento contraditório, ao mesmo tempo de defesa da industrialização do cinema brasileiro e de crítica aos modelos existentes, considerados industriais, representados pelos estúdios paulistas (Vera Cruz, Maristela). Em um segundo momento, que se pode localizar entre os anos 1955-63, temse a utilização do termo "independente" associado ao cinema de autor como princípio ético e político do cinema novo, um cinema que se pretendia socialmente revolucionário, incluindo em suas premissas a franca e contundente negação de uma indústria cinematográfica no Brasil. Os anos 1951-54 serão marcados pela atuação política do grupo ligado ao PCB, notadamente nos congressos de cinema realizados em 19 52-53 e na realização de filmes. A partir do livro Revisão crítica do cinema brasileiro, de Glauber Rocha ( 1963 ), será comum enxergar o "cinema independente" como uma tradição originária do cinema novo. O cinema novo é então assumido como parâmetro a partir do qual se organizaria toda a história passada, considerada como uma espécie de pré-história do cinema modemo. 1 I. Esse discurso histórico é característico da geração cinemanovista, como é possível constatar num depoimento de Eduardo Coutinho sobre o cinema brasileiro, em 1962: "Em certo sentido, é preciso limpar todo o passado cinematográfico brasileiro para construir um cinema digno de nosso tempo e de nossas necessidades. Pouco do que existe pode ser aproveitado" (COUTINHO apud VIANY, 1999: 38) . PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 379 Em seu já citado depoimento a Maria Rita Galvão, Roberto Santos, logo de início, procura explicitar o significado da expressão "independente". Para ele, trata-se do cinema que parte do realizador. e não da empresa. Um "filme independente" é aquele que expressa as idéias de seu realizador; logo, é aquele em que o realizador é de fato um autor. Na contraposição "cinema independente" versus "cinema empresarial" Roberto Santos identifica uma série de contradíções. A começar pelo fato de que os "novos temas" que os independentes perseguiam e buscavam realizar - temas brasileiros, com nítidas preocupações sociais - tinham como modelo técnico e formal o aparato dos grandes estúdios, isto é, do cinema "empresarial" ou "industrial": produções bemcuidadas e tecnicamente impecáveis. Um modelo "empresarial" ou "industrial" pressupõe um corpo adminístrativo compatível. No caso do cinema, esse corpo tem o produtor como figura central. Acontece que o produtor, para a maior parte dos realizadores de esquerda ligados ao ideário independente, sempre foi visto como uma espécie de inimigo. Em uma conferência proferida no CEC (Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte), em 1953, Alex Viany denunciou a "estreiteza de concepção" dos produtores, referindo-se, no caso, aos "produtores financiadores". [ ... ] além de não reconhecerem a necessidade de um mínimo de tempo eficaz para a completa preparação de um roteiro técnico e demais providências preparatórias, reduzem ainda elementos imprescindíveis à boa consecução dos trabalhos. Veja-se, por exemplo, o caso dos refletores em Agulha no palheiro: para se conseguir uniformidade fotográfica e perfeita caracterização dos atores, um mínimo de iluminação é exigido; no entanto, o produtor, em verdadeira intromissão a setor que não lhe afeta, julgou que com a metade se conseguiu o mesmo efeito; conclusão - cenas mal iluminadas, imagens difusas, desarmonia entre os diversos "shots". A uma planificação desordenada, segue-se uma direção eivada de contratempos, com estúdios mal montados, carência de materiais indispensáveis, compressão de despesas prejudicial e o produtor - sempre o produtor - a exigir aceleração nos trabalhos (1953: 10). Depreende-se do discurso de Viany a tensão entre a exigência de seguir o padrão mínimo de qualidade (a preocupação com a "produção bem-cuidada"), e a improvisação forçada pelo próprio produtor-financiador. Por outro lado, a experiência, narrada por Viany, refere-se a um filme identificado ao "cinema independente", mas produzido justamente por uma pequena produtora de comédias musicais populares, a Flama Produtora Cinematográfica. No caso particular do cinema carioca, há que se ressaltar as intrincadas relações entre as pequenas produtoras-distribuidoras em atividade nos anos 1950, o grupo dos "independentes" e a aceitação popular das comédias musicais. A presença da Atlântida ·380 ESTUDOS DE CINEMA e a influência de Luiz Severiano Ribeiro no meio cinematográfico são, sem dúvida, dados diferenciadores a nortear e a configurar essas relações. Um dos nomes centrais daquele momento era o diretor e produtor Moacyr Fenelon. Sua atuação política e sua trajetória profissional o tomam estreitamente ligado ao grupo dos independentes, representado por Alex Viany e por Nelson Pereira dos Santos, ao mesmo tempo em que o aproximam da prática dos produtores comerciais das chanchadas. Tendo sido um dos fundadores da Atlântida, em 1941, Fenelon retirou-se da empresa em 1948, logo após a entrada de Luiz Severiano Ribeiro como acionista majoritário. Fora daAtlântida, fundou a Cine-Produções Fenelon e, associando-se aos estúdios da Cinédia, de Adhemar Gonzaga, produziu filmes como Obrigado, doutor (1948) e Poeira de estrelas (1948), ambos dirigidos pelo próprio Fenelon, além de Estou aí (1949); Todos por um (1950) e O falso detetive (1951), três comédias dirigidas por Cajado Filho. Em seguida, associando-se com o empresário de comunicações Rubens Berardo Carneiro, fundou a Flama, produzindo desde o melodrama Milagre de amor (Moacyr Fenelon, 1951), até a comédia musical carnavalesca Tudo azul (Moacyr Fenelon, 1952) e a comédia dramática Agulha no palheiro, de Alex Viany, esta última, como se vê um dos marcos do cinema independente, considerado precursor do cinema novo. É significativo o fato de que, após a morte de Moacyr Fenelon, em 1953, Nelson Pereira dos Santos o tenha homenageado escolhendo o nome de "Equipe Moacyr Fenelon" para a cooperativa que realizou Rio, 40 graus. A Flama brigava pelo mesmo público fiel às comédias da Atlântida. Não por acaso, os filmes produzidos pelo pequeno estúdio de Berardo e de Fenelon buscavam .seguir a receita do sucesso popular: melodramas, policiais, musicais carnavalescos. A Flama procurava, portanto, uma alternativa nos campos da produção, da distribuição .e da exibição. Para tanto, Fenelon e Berardo vão se associar aos circuitos exibidores de Vital Ramos de Castro e Pathé, no Rio de Janeiro, além de Francisco Serrador, em São Paulo, que eram concorrentes de Luiz Severiano Ribeiro. (AUGUSTO, 1989: 125-6) A estratégia da Flama pressupunha, portanto, a existência de uma rede de .relações entre produtores, distribuidores e exibidores atuantes no Rio de Janeiro durante os anos 1950, circuito do qual se aproximavam diretores afinados com o ideário de esquerda, tais como Moacyr Fenelon e Alex Viany. Em relação aos produtores de chanchadas, o caso de Watson Macedo é ,_exemplar. Em 1953, tendo dirigido oito filmes para a Atlântida, fundou sua própria produtora, a Produções Watson Macedo, e realizou diversas comédias de sucesso, .entre elas É fogo na roupa (Watson Macedo, 1952); O petróleo é nosso (Watson Macedo, 1954); Carnaval em Marte (Watson Macedo, 1955) e Depois eu conto (José Carlos Burle, 1956). Uma reportagem publicada no Jornal do Cinema traça a PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 381 trajetória de Watson Macedo como a de um "produtor independente" que "rompe definitivamente com a Atlântida", e entra em "concorrência" com Luiz Severiano Ribeiro. Segundo a reportagem, [... ] Watson nada tinha que temer ao querer se tomar independente. Para tanto, na verdade, o pior era o circuito de exibição, o primeiro entrave a vencer. Mas, esse ficou logo resolvido com a Unida, a única distribuidora, até então, de filmes brasileiros. Resultou desse acordo que as produções seriam distribuídas por ela, através dos cinemas não ligados à empresa Severiano Ribeiro, o chamado circuito independente. (GONÇALVES, 1957: 15) Ou seja, nos anos 1950 a idéia de "independência" poderia inclusive ultrapassar o círculo dos produtores-diretores, ganhando o terreno dos distribuidores e dos exibidores (o "circuito independente"). Nesse sentido, um distribuidor como o italiano Mario Falaschi, dono da Unida Filmes, citada no trecho transcrito acima, vem ocupar um lugar de primeiro plano no "cinema independente" realizado naquele período. A trajetória desse italiano de Pisa, que chegou ao Brasil em 1925, é uma das mais curiosas. Na virada do cinema mudo para o sonoro, empregou-se no setor de distribuição da Warner Brothers, em São Paulo. Em fms de 1930, tornou-se distribuidor da Sonofilmes, trabalhando a seguir na DFB (Distribuidora de Filmes Brasileiros) e na UFA (Universum Film Aktiengesellschaft), distribuidora alemã da qual saiu com a Segunda Guerra Mundial. Em 1943, integrou a Cooperativa Cinematográfica Brasileira, que distribuiu os dois primeiros filmes da Atlântida, Moleque Tião (José Carlos Burle, 1943) e É proibido sonhar (Moacyr Fenelon, 1943). Quando Severiano Ribeiro assumiu a maior parte das ações daAtlântida, em 1947, Falaschi organizou a UCB e, em 1952, transferiu-se para a Unida Filmes, da qual passou a ser diretor, a partir de 1954. Com a Unida, Falaschi distribuiu os filmes da Flama, da Produções Watson Macedo e de outras pequenas produtoras, como a Brasiliense Filmes (produtora do filme independente O saci, de Rodolfo Nanni, 1952), o Estúdio Pinto Filho (Queridinha do meu bairro, Felipe Ricci, 1954), a Brasil Vita Filmes (Rua sem sol, Alex Viany, 1954) e até mesmo a "Equipe Moacyr Fenelon", cooperativa de Nelson Pereira dos Santos que realizou Rio, 40 graus, filme-manifesto do grupo dos "independentes". Foi, porém, com os filmes carnavalescos da Produções Watson Macedo que a Unida Filmes se capitalizou. Portanto, produtores e distribuidores de comédias musicais populares e realizadores dos filmes ligados à esquerda, não eram grupos que existiram em separado, sem qualquer tipo de relação. Tomo como exemplo disso que acabo de afirmar o caso de Lamparina, projeto que Alex Viany desenvolveu com Alinor Azevedo a partir de uma notícia de jornal sobre um episódio passado em um morro carioca. Um "contrato particular de trabalho e cessão de direitos autorais", de 1955, entre a Unida Filmes S/ A (contratante) e Alex Viany (contratado), dizia, entre outras coisas, o seguinte: ESTUDOS DE CINEMA 382 O contratado, proprietário da história, argumento cinematográfico, palavras, diálogos e roteiro técnico da obra intitulada Lamparina, pelo presente instrumento vende, cede e dá todos e quaisquer direitos para o contratante explorar comercialmente, no Brasil e em todos os países do mundo, o citado argumento em sua forma cinematográfica, em 35 e I 6 mm [... ] Para a execução dos trabalhos aqui estabelecidos, o contratado compromete-se a ficar à disposição do contratante por prazo indeterminado, devendo acompanhar todas as fases da produção até que seja por ele e pelo contratante aprovada a primeira cópia definitiva do filme. O contratado não poderá escolher artistas e técnicos, bem assim como tomar outras providências referentes à produção, sem consulta prévia e aprovação do contratante. 2 Os termos do acordo entre a "contratante" Unida Filmes e.o "contratado" Alex Viany indicam o grau de interferência que a produtora-distribUidora procurava ter na concepção artística do projeto. Por outro lado, isso deve ter gerado uma tensão quase insolúvel entre o pragmatismo empresarial e o ideal independente. Não custa lembrar que Lamparina não foi realizado, fato que não deve ser visto como meramente casual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A. E. T. [pseud.]. "A conferência de A! ex Viany no CEC". Correio do Dia, Belo Horizonte, 08dez 1953. AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso fera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Embrafilme, 1981. - - - - - · " O desenvolvimento das idéias sobre cinema independente". 30 anos de cinema paulista, 1950-1980. São Paulo: Cinemateca Brasileira, Cadernos da Cinemateca, n. 4, 1980. GONÇALVES, Célio. "A história dos milhões de Watson Macedo;'. Jornal do Cinema [número extra], Rio de Janeiro, dez 1957. PACHECO, Matos. "Produzem-se grandes filmes em um estúdio bem pequeno". Última Hora, Rio de Janeiro, OI nov 1952 "UM italiano (carioca) prepara uma porção de filmes". Jornal do Cinema, n. 37, Rio de Janeiro,jull955. VlANY, Alex. O processo do Cinema Novo. AVELLAR, José Carlos. (org. ). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. 2. "Contrato particular de trabalho e cessão de direitos autorais". Rio de Janeiro: 12 mai 1955 (datil.). Documento pertencente ao Acervo Alex Viany, depositado na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Acervos documentais de arquivos audiovisuais: desafios e propostas RAFAEL DE LUNA FREIRE (UFF) A FUNÇÃO de uma cinemateca ou de um arquivo de filmes é salvaguardar o patrimônio fílmico, preservando, de acordo com suas políticas de acervo, um determinado conjunto de obras cinematográficas, e garantindo -no presente e no futuro- seu acesso nas condições mais próximas daquelas em que foram concebidas. A integridade de uma obra cinematográfica não está ligada à preservação de um objeto apenas - os rolos de negativo de uma câmera, por exemplo -, mas a um amplo conjunto de materiais relacionados a essa obra, tais como intemegativos e másteres, copiões e sobras de montagem, diferentes cópias de exibição, trailers e teasers, etc. Obviamente, o escopo é ainda mais amplo e devem incluir como materiais constituintes de uma obra- de um longa-metragem em 35 mm, por exemplo- objetos de outra natureza além da película cinematográfica, como aqueles em suportes magnéticos e digitais, possivelmente presentes em diferentes etapas na realização, finalização e exibição da obra. Mais além, essa visão deve ser ampliada para todo um universo de documentos que também se relacionam com uma determinada obra e que, numa cinemateca, costumam ser definidos por diferentes termos, tais como "documentos não-filmicos", "documentos especiais" ou "documentos diversos", que já espelham seu papel coadjuvante na hierarquia de prioridades do arquivo. Dentre os diversos materiais incluídos nessa categoria, podem-se citar aqueles ligados diretamente à realização do filme (roteiros, planilhas de produção, boletins de câmeras, bands de marcação de luz, etc.), ao lançamento do filme (pôsteres, fotocartazes, fotos still de divulgação, press releases, postais, discos e cds da trilha sonora, brindes promocionais, etc.) e à recepção do filme (críticas e reportagens dos jornais, livros e revistas especializadas, documentos · de censura, programas de salas de exibição, borderôs de bilheterias, etc.). 384 ESTUDOS DE CINEMA Esses materiais citados são de importância fundamental, inclusive para a preservação do contexto de uma obra e dela mesmo em si -lembrando, por exemplo, de seu papel nos complexos processos de restauração - ou até mesmo dando alguma informação sobre obras que se perderam definitivamente. Particularmente em relação ao cinema brasileiro, diante do fato de não ter chegado aos dias de hoje absolutamente nenhum fragmento das centenas de filmes realizados pioneiramente entre 1898 e 1909 (data dos materiais mais antigos preservados atualmente), as importantes notícias de jornais, anúncios publicitários, programas de salas de exibição, ingressos de sessões de cinema e livros memorialísticos se ampliam enormemente ao se constituírem como as principais fontes de informação sobre parte de um passado cinematográfico recente. Essa documentação, que inclui materiais de formatos, dimensões e aspectos os mais variados (de uma crítica de jornal a um banner em material plástico, de um slide fotográfico a uma carta escrita em papel de seda, de um postal de cartolina a uma camiseta de algodão), são responsáveis por conferir informações que de outra maneira, através do exame somente do próprio "filme" (de sua cópia ou negativo), não seria possível obter. Dados como datas de filmagem, finalização e lançamento, circuito de exibição, recepção pela crítica e pelos espectadores em diferentes momentos, público-alvo focado pela campanha de divulgação, entre outros, somente podem ser alcançados através da pesquisa desses documentos. A relevância desse "papel" é ainda maior quando se recorda a importância de se preservar não apenas a produção cinematográfica (os filmes), mas também diferentes aspectos da atividade cinematográfica como um todo- exibição, distribuição, crítica, recepção, tecnologia, economia, etc. -e que amplia significativamente o universo de documentos que devem ser conservados por uma cinemateca. A desvalorização da "documentação não-filmica" dentro de uma cinemateca pode advir de duas questões básicas: a primeira é o monopólio das atenções do arquivo pelo acervo de películas (sejam de nitrato, acetato ou poliéster), cujas complexas características físico-químicas demandam esforços especiais e exigem para sua adequada conservação manuseio e reprodução de grande parte dos recursos financeiros disponíveis. A segunda questão, relacionada com a primeira, deve-se à concepção generalizada de que a função de uma cinemateca é simplesmente "preservar filmes de cinema", enquanto outras instituições, como bibliotecas e arquivos públicos, já teriam como tarefa primordial conservar livros, revistas e outros materiais dessa natureza. Em relação a esse segundo ponto, é necessário dizer que há documentos preservados pelas cinematecas que não interessariam a qualquer outro arquivo -tais como coleções particulares de personalidades ligadas ao cinema, materiais publicitários de filmes, documentos técnico-administrativos de empresas da atividade cinematográfica, etc. - e que se encaminhariam para a destruição caso não fossem acolhidos pelos arquivos audiovisuais. Por outro lado, uma parte significativa do acervo dos setores de documentação das cinematecas é constituída por materiais como reportagens e documentos veiculados PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS 385 pela imprensa que também são preservados, por exemplo, pela Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para citar a instituição mais conhecida. Entretanto, cabe ressaltar que a organização da informação num arquivo audiovisual está voltada para seu público principal- grosso modo, aquele voltado para o cinema e assuntos afins-, num esforço para que essa informação não apenas seja conservada, como seja facilmente disponibilizada e direcionada, lembrando que a preservação e acesso são faces da mesma moeda. Como alguém pode encontrar uma crítica de um jornal sobre um determinado filme numa hemeroteca tradicional se ele não souber a data exata de seu lançamento no circuito de salas de exibição? E mesmo que tenha essa data, como tomará conhecimento de possíveis relançamentos comerciais ou exibições especiais em mostras e festivais quando também teriam sido publicadas outras críticas sobre esse mesmo filme? bibliotecas e museus, uma cinemateca Combinando características de 。イアオゥカセウL@ consiste no lugar privilegiado para a preservação e o estudo do cinema, uma vez que a própria disposição de seu acervo documental é pensada para este fim. Além disso, um arquivo de filmes deve assumir um papel de referência para a sociedade nessa questão. Um exemplo desse aspecto foi o grande número de pessoas que se encaminharam ao Setor de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) em busca de materiais de estudo para o concurso da Ancine, em 2005, cuja prova destinada a contadores, economistas e administradores incluíam "conhecimentos específicos" sobre a história do cinema brasileiro. Ouvi o relato de muitos candidatos que estavam completamente desorientadas sobre onde estudar para o concurso antes de irem à Cinemateca. Entretanto, grandes dificuldades se impõem às cinematecas para a incorporação, catalogação e guarda do número gigantesco de documentos que chegam- ou deveriam chegar- aos arquivos diariamente. Um exemplo de uma maneira de tentar enfrentar esse desafio foi o estabelecimento de uma parceria estratégica entre a Cinemateca do MAM e o Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, cristalizada na incorporação ao currículo obrigatório do curso de graduação em cinema da disciplina "Preservação, Restauração e Políticas Audiovisuais"; oferecida no ambiente da própria Cinemateca. Uma experiência notável se deu no segundo semestre de 2005, quando o foco dessa disciplina, então oferecida pelo professor João Luiz Vieira, foi o Setor de Documentação da Cinemateca. Depois de serem apresentados às diversas atividades realizadas no setor, lidando diretamente com os materiais e se incorporando à rotina de trabalho da instituição, os alunos foram convidados a partirem para a prospecção de materiais para o acervo. Uma lista com o contato de diversas produtoras e cineastas cariocas foi feita, e cada grupo de alunos ficou encarregado de estabelecer contato para solicitar a doação de documentos para o acervo da Cinemateca do MAM. O resultado não poderia ser mais instrutivo para os estudantes. Enquanto uma grande produtora afirmou a alguns alunos não ter nenhum material para doar de 386 ESTUDOS DE CINEMA nenhum de seus filmes recentes, outros tiveram mais sorte e conseguiram cartazes, dvds e materiais promocionais de diversas produções. Os diferentes resultados práticos dessa atividade levaram os alunos a diversas conclusões, como a de que freqüentemente é mais dificil obter materiais de grandes produções nacionais distribuídas pelas majors americanas- que gastam milhões em publicidade, mas cujas fotos, cartazes e releases desaparecem imediatamente após a carreira comercial do filme -, do que de longasmetragens realizados e lançados em esquemas muito mais precários, mas cujos responsáveis são de algum modo mais acessíveis, através de contatos pessoais. Desse modo' percebiam a necessidade de uma cinemateca, estabelecer uma rede de contatos· -baseada na confiança e respeito mútuos- que se renovava justamente através daqueles alunos, futuros cineastas, produtores, críticos e técnicos de cinema. A conscientização dos alunos ia além dessa constatação quando muitos questionavam a necessidade de se coletar materiais de filmes que eles consideravam "ruins", como os da Xuxa ou do Padre Marcelo Rossi. Ao final, entretanto, eles se convenciam do equívoco que representava se atar a esse tipo de valoração subjetiva que implicaria numa seleção pouco criteriosa, motivados, por exemplo, pela surpresa de lerem uma crítica publicada no início dos anos 1970, em que um de seus atuais professores- no passado, crítico de um grande jornal- "esculachava" (nas palavras dos alunos) um filme então recém-lançado e hoje considerado um dos "dez mais" do cinema brasileiro, sobretudo para as novas gerações. A lição oferecida era não apenas da importância desse trabalho, mas de sua urgência, tomada clara, por exemplo, diante de um caso verificado pelos alunos de um longa-metragem, então, recém-saído de circuito, cujos cartazes já tinham sido totalmente destruídos, com exceção de um ou dois emoldurados na parede da produtora. Mais ainda do que quando se refere ao acervo de películas - os rolos de. negativos, materiais intermediários, cópias, etc. -, os objetos dos setores de documentação das cinematecas revelam a necessidade de uma política de prospecção, ativa e descentralizada por parte dos arquivos audiovisuais. Uma política de prospecção deve ser ativa por se tratar de um material facilmente destruído, cujo valor tanto pode ser considerado nulo (às vezes pelos próprios realizadores que perguntam: "Mas isso te interessa mesmo?") quanto alto (atraindo fãs, colecionadores e comerciantes que podem se tomar adversários ou aliados nessa tarefa), e que é produzido em grande escala. Uma política deve ser descentralizada pela constatação que em nível nacional uma só instituição não é absolutamente capaz de dar conta de tudo que é necessário, devendo agir em conjunto com outras instituições através da divisão de tarefas e de uma mútua troca e colaboração. É mais fácil para a Cinemateca doMAM coletar um programa de um cineclube carioca, para a Cinemateca de o Capitólio conseguir um cartazete de um curta-metragem gaúcho, para a Cinemateca de Curitiba receber a doação da biblioteca de um cineasta amador paranaense, ou para a Cinemateca Brasileira obter um catálogo da Mostra PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 387 Internacional de Cinema de São Paulo, do que um só arquivo ficar responsável por tudo que circula em nosso país. Com o avanço irrefreável da internet e da informatização, surgem novos desafios para as cinematecas, assim como também para os responsáveis pelos setores de documentação dos arquivos audiovisuais. Atualmente, as fotos de divulgação de longasmetragens são enviadas por e-mail, e assim como podem ser repassadas e copiadas com um clique, também são apagadas com a mesma facilidade, rapidez e freqüência. Além disso, uma das mais importantes formas de divulgação de um longa-metragem em seu lançamento comercial é seu site na internet, freqüentemente repleto de informações que urgem ser conservadas, como entrevistas com diretores, dados de bastidores, clipping de críticas e reportagens, fotos e vídeos, etc. Quem está coletando esses documentos, que embora aparentemente impalpáveis, existem fisicamente dentro de um HD de computador? O si te de um filme como Deus é brasileiro não está mais on-line, nem disponível no portal da Columbia Pictures como em 2002. Quem entrar no domínio do filme Cidade de Deus (www.cidadededeus.com.br) vai ser deslocado para o portal da Globo Filmes, onde se encontra uma versão diferente e reduzida do site original que estava na internet quando o filme foi lançado. Um exemplo ainda mais recente é o do site do filme Querô, lançado em 2007, que contava com um blog mantido pelo elenco de jovens atores selecionados em oficinas realizadas em comunidades da Baixada Santista, onde eles comentavam sobre a repercussão do filme em suas vidas. Esse site, que podia ser consultado na internet na época de realização do XI Encontro da Socine, na PUC-RJ, em outubro de 2007, já não estava mais disponível na rede no começo de 2008. Como um pesquisador poderá ter acesso a esses importantes depoimentos num trabalho futuro? Onde estão esses documentos hoje? Mais importante ainda: onde estarão daqui a cinco anos? Eles ainda existirão daqui a dez anos? Em relação ao blog do si te do filme Querô, este trabalho se refere aos chamados born digital documents. Mas e quando se fala de documentos em formato analógico que estão sendo digitalizados? Há um grande número de projetos na área de cinema voltados para a digitalização de acervos documentais e sua disponibilização em sites na internet. Dentre eles, pode-se citar o projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro (www.memoriacinebr.com.br), o Projeto Biblioteca Digital das Artes dos Espetáculos: revistas A Scena Muda e Cinearte (http://www.bjksdigital. museusegall. org.br) e a disponibilização do acervo documental de Alex Viany (http://www.alexviany.com.br). A facilidade de acesso à documentação através da internet proporcionada por essas iniciativas é inquestionável. No entanto, não se deve deixar de atentar para a necessidade de adequada preservação dos documentos originais, assim como dos recém-criados arquivos digitais. Os arquivos ou organizações responsáveis por projetos como esse terão capacidade de conservar esses arquivos digitais nos anos vindouros, fazendo, inclusive, as regulares migrações de formato que a informatização exige? 388 ESTUDOS DE CINEMA As próprias cinematecas aprenderam uma lição com a destruição de películas em nitrato, material altamente inflamável, depois de elas já terem sido copiadas para películas de acetato, material de segurança, em procedimentos empreendidos sistematicamente nos anos 1980, numa campanha mundial cujo slogan era nitrate won 't wait. 1 Embora tenha se alardeado que nenhum nitrato chegaria ao ano 2000, posteriormente se verificou que muitos materiais em nitrato, quando guardados adequadamente, permaneciam em boas condições, enquanto parte daquelas primeiras cópias em acetato se deterioraram devido a então incipiente "síndrome de vinagre". Outro exemplo semelhante foi à sistemática microfilmagem de coleções de periódicos realizada nas décadas passadas, que resultou hoje, em muitos casos, na necessidade de digitalizar novamente os mesmos jornais e revistas diante do mau estado atual dos microfilmes. Independente das vantagens e dos alertas, os projetos de digitalização citados apontam para uma outra questão importante, que é a parceria entre a academia e os arquivos audiovisuais. A maior parte desses projetos é encaminhada ou acompanhada por pesquisadores e professores, responsáveis pela condução do trabalho ou da realização de publicações a partir das informações obtidas dos respectivos acervos. Diante do gigantesco volume de trabalho do setor de documentação de uma cinemateca, como sugeriu Nancy Goldman, chefe da Comissão de Catalogação e Documentação da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), o interesse dos pesquisadores deve ser sempre aproveitado pelos arquivos no auxilio às suas atividades internas, como na organização e classificação de documentos. Desse modo, esses projetos são muito bem-vindos, possibilitando o aporte de recursos e pessoal que os arquivos não obteriam de outras maneiras. Por outro lado, a excepcionalidade dessas iniciativas revela a distância atual, entre dois universos que deveriam manter um maior intercâmbio. Nos últimos anos, a pesquisa tem se circunscrito cada vez mais exclusivamente ao ambiente universitário. Praticamente não existem mais bolsas de pesquisa desvinculadas da universidade, como as oferecidas pela Embrafilme, nas duas edições do Programa Cinetema, por exemplo, e hoje em dia são pouquíssimas as possibilidades de se conseguir algum apoio financeiro das agências de fomento para trabalhos que não estejam inseridos no universo acadêmico ou não sejam encabeçados por professores doutores. Por outro lado, a rotina atual na academia demanda uma "produtividade" que dificulta a realização de um trabalho de pesquisa profundo, laborioso e demorado em meio-à exigência de artigos, publicações e participações em congressos. Enquanto 1.. No caso brasileiro, conferir o seguinte documento: http://www.ctac.gov.br/otelo/acervo/img/ texcor0047.00.pdf, disponibilizado no site do Projeto Grande Othelo 90 anos, que incluiu a digitalização de seu acervo pessoal. PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS 389 isso, é cada vez mais comum que funcionários de arquivos audiovisuais sejam obrigados a ingressar em programas de pós-graduação para desenvolverem pesquisas que poderiam ser feitas de forma mais proveitosa no próprio ambiente de trabalho se fosse possível obter algum tipo de apoio. Esse divórcio entre academia e arquivos audiovisuais gera prejuízos - ou, no mínimo, deixa de gerar dividendos - seja para o compromisso de preservação da memória da atividade cinematográfica, seja para os estudos de cinema, particularmente àqueles ligados à história do cinema brasileiro. 2 Símbolo dessa distância é a presença ainda tímida- embora as existentes sejam de grande vigor - de trabalhos oriundos de um diálogo intenso, proveitoso e conseqüente entre arquivos audiovisuais e a universidade e seus respectivos funcionários. Cabe a todos investir nesse caminho promissor e necessário. BIBLIOGRAFIA BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume, 1995. EDMONDSON, Ray. Audiovisual archiving: philosophy and principies, UNESCO, 2004. Disponível em: http://portal.unesco.org/ci/en/ev.php-URL_ID=l5592&URL_ DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=20l.html GARCÍA, Alfonso Del Amo. Classificar para preservar. México: Cineteca Nacional, 2006. GOLDMAN, Nancy. Encontro com Nancy Goldman- chefe da comissão de catalogação e documentação da FIAF, Cinemateca Brasileira, São Paulo, lO a 13 de agosto de 2004. Notas de aula. HEFFNER, Hemani. Entrevista oferecida a Ruy Gardnier, Rio de Janeiro, 22 jul2000. In: Contracampo: revista de cinema, n. 19, 2000. Disponível em: http:// www.contracampo.com.br/19/frarnes.htrn 2. Conforme sugeriu a professora Hilda Machado, essa aproximação entre academia e cinematecas também representa urna superação da divisão entre trabalho mental e manual, sendo o primeiro valorizado em relação ao segundo, visto como algo menor.