Esther Hamburger/Gustavo Souza/Leandro Mendonça/Tunico Amancio
(ÜRGS.)
ESTUDOS
DE CINEMA
§COJCCIIMIE
O|nセ@
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ConHiho hャ」ッョセ@
tlll DeHnvoMmento
Cientifico • T«nológlco
C A P E S
Ministério
da Cultura
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GOVERNO FEDERAL
H185
Infóthes lnforrnacão e Tesauro
Hamburger, Esther, Org.; Souza, Gustavo, Org.; Mendonça Leandro, Org.;
Amancio Tunico, Org.
Estudos de Cinema. I Organização de Esther Hamburger, -Gustavo Souza,
Leandro Mendonça e Tunico Amancio. -- São Paulo, AnnablUip.e; Fapesp;
Socine, 2008. (Estudos do Cinema - Socine, IX).
390 p. ; 16 x 23 em.
Encontro Socine, 11°, Rio de Janeiro (RJ), 17 a 20 de outubro de 2007.
ISBN 978-85-7419-864-4
I. Cinema. 2. Cinema Brasileiro. 3. Cinema Latino-americano. 4.
Audiovisual. 5. Documentário. 6. Sociologia do Cinema. I. Título. Il. Série. III.
Socine. IV. Encontro Socine, 11°. Rio de Janeiro (RJ), 17 a 20 de outubro de
2007.
CDU 791.43
CDD 791
Ficha elaborada por Wanda Lucia Schmidt - CRB-8-1922
ESTUDOS DE CINEMA SOCINE
Coordenação editorial
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Capa
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Diagramação
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Norval Baitello Junior
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Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoríam)
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D' Aléssio Ferrara
1• edição: outubro de 2008
© Socine - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual
ANNABLUME editora . comunicação
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da Costa, Flávia Cesarino Costa, João Guilherme Barone, João Luiz Vieira, Luciana Corrêa de
Araújo, Marcius Freire, Mariarosaria Fabris, Miguel Serpa Pereira, Rosana de Lima Soares,
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Comissão de Publicação:
Esther Hamburger, Gustavo Souza, Leandro Mendonça, Tunico Amâncio
www.socine.org.br
socine@gmail.com
ENCONTROS ANUAiS DA SOCINE
I
11
III
IV
v
VI
VII
VIII
IX
X
XI
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Univers_idade de São Paulo (São Paulo-SP)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ)
Universidade de Brasília (Brasília-DF)
Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis-Se)
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PortoAlegre-RS)
Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ)
Universidade Federal da Bahia (Salvador-BA)
Universidade Católica de Pernambuco (Recife-PE)
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo-RS)
Socine- Estalagem de Minas Gerais (Ouro Preto-MG)
Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(Rio de Janeiro-RJ)
SUMÁRIO
11
APRESENTAÇÃO
Esther Hamburger, Gustavo Souza, Leandro Mendonça, Tunico Amancio
TERROR, HORROR
15 0
ESTUDANTE DE PRAGA: O DUPLO, O ESPELHO, O AUTOR
Adalberto Mu/ler
25 0
CINEMA E AS MUTAÇÕES DE DRÁCULA
Mauro Pommer
33
BAD TRIP: AS ESTRATÉGIAS AUTORAIS DE PRODUÇÃO DE ENCANTO DE JOSÉ MOJICA
MAR!NS EM
0
DESPERTAR DA BESTA
(1969)
Klaus Bragança
ALTERIDADES
45
REVENDO A GRANDE CIDADE, DE CACÁ DlEGUES: O ORFISMO ÀS AVESSAS DA PERIFERIA
Maria Cecília Coelho
53
RAciSMO E ANTI-RACISMo NO CINEMA Novo
Noel Carvalho
61
QUANTO VALE OU É POR QUILO? A PRESENÇA DA RAÇA NO CINEMA BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO
Pedro Lapera
71
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM À1ARIDINHO DE LUXO
(1938),
DE LUIZ DE BARROS
Luiza Beatriz A. M A/vim
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
83
NEM PENSAR A GENTE QUER, A GENTE QUER É VfVER - FOCALIZAÇÃO E DIALOGISMO
91
Luiz Antonio Mousinho
0 CHÃO DE ASFALTO DE SUELY (OU
Alessandra Brandão
99
Do CURTA AO LONGA: RELAÇÕES ESTÉTICAS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO DE
EM HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES E MEU TIO MATOU UM CARA, DE JORGE FURTADO
A ANTI-CABÍRIA DO SERTÃO DE ArNOUZ)
PERNAMBUCO
Samuel Paiva
109 0
PORTUGUÊS REDESCOBERTO NAS TELAS
Fernando Morais da Costa
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
119 0
CINEMA NOVO SEGUNDO HABLEMOS DE CINE
Fabián Núiíez
127
A RECEPÇÃO DA CRÍTICA AO CINEMA BRASILEIRO EXIBIDO EM PORTUGAL:
1960-1999
Regina Gomes
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
137 0
DOCUMENTÁRIO CHILENO DA ATUAL DEMOCRACIA
Andrea Molfetta
145
A ESTÉTICA DA MONOTONIA: DESENCANTO, SOLIDÃO E INCOMUNICABILIDADE EM WHISKY
Fábio Mendes
155
A CARAVANA FARKAS E O MODERNO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO: INTRODUÇÃO AOS
CONTEXTOS E AOS CONCEITOS DOS FILMES
Gilberto A. Sobrinho
163
ALTERIDADE, CONFLITO E RESISTÊNCIA NO BARROCO DE PAUL. LEDUC
Maurício de Bragança
IMAGEM E PODER
173
NEM TUDO É VERDADE, NEM TUDO É MENTIRA
Mariarosaria Fabris
183
DOCUMENTÁRIO SOCIAL INGLÊS: PROBLEMATIZANDO A "OBRA" DE ÜRIERSON
Paulo Menezes
191
Ao SUL DA FRONTEIRA COMDISNEY:
0
DOCUMENTÁRIO "MAKING OF" DEAL6AMIGOS
DarIene J. Sad/ier
199
PROJEÇÕES, PROJETOS E PROJÉTEIS: O NOME DE 'ÁfRICA' E A SUBJETIVAÇÃO IMPERIAL
EM LAGRIMAS DO SOL (2003)
Marcelo R. Souza Ribeiro
CINEMA, AUTORIA E POLÍTICA
211
ESTRANHAMENTO E APROXIMAÇÃO EM ESTAMIRA- DA ELOQÜÊNCIA DA LOUCURA AO
TRAUMA SOCIAL
Mariana Baltar
219
FROM "CINEMA" TO "FILM:" THE REPRESENTATION OF REALITY AND THE PLACE OF
POLITICAL ENGAGEMENT IN THE FILM THEORY OF PIER PAOLO PASOLINI
Stefano Ciammaroni
227
UM CINEMA DESENQUADRADO: A POLÍTICA DA LINGUAGEM E A LINGUAGEM DA POLÍTICA
EM DUAS OU TRÊS COISAS QUE EU SEI DELA
Cecilia Sayad
235 0
APELO REALISTA: UMA EXPRESSÃO ESTÉTICA DA BIOPOLÍTICA
I/ana Feldman
INTERFACES COM OUTRAS ARTES
247
GALÁXIAS: UMA POÉTICA DO ARQUIVO EM CONSTELAÇÕES RESSONANTES
Luiz Cláudio da Costa
255
BRESSANE E A PINTURA- UMA LEITURA DAS IMAGENS NA OBRA BRESSANEANA, SOB A
ÓTICA DAS GALÁXIAS
Josette Monzani
263
0
DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO: A ENCENAÇÃO DO DESAFIO
Sylvia R. Bastos Nemer
273 300 TORSOS TORNEADOS
Ramayana Lira
VISUALIDADES
283
RECURSOS POÉTICOS EM AMOR
291
EFEITOS VISUAIS COMO MARCAS DE FALSIFICAÇÃO NA OBRA DE SOKÚROV
A FLOR
DA PELE
Genilda Azeredo
Elianne Ivo Barroso
299
PERTO DEMAIS SE VÊ DE MENOS: A QUESTÃO DO PONTO DE VISTA NA ADAPTAÇÃO DE
CLOSER
Mareei Vieira
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO E NA TV
315
ARTE E VIDA: NOVOS CAMINHOS PARA O CINEMA NOS ANOS
1960
Elizabeth Real
325
CINEMA MODERNO E DE VANGUARDA NA
TV:
O PARADOXO PÓS-MODERNO DE CENA
• ABERTA
333
Renato Luiz Pucci Jr
0 VALOR ESTÉTICO DOS
VIDEOCLIPES PARA CANÇÕES DE FILMES: MARCAS AUTORAIS
COMO DIFERENCIAL EXPRESSIVO
Rodrigo Ribeiro Barreto
341
INTERFACES DO CINEMA MULTIMIDIÁTICO DE PETER GREENAWAY
Denise Duarte Guimarães
PESQIDSA, PÚBLICO E POLÍTICAS AUDIOVISUAIS
351
0
PENSAMENTO INDUSTRIAL CINEMATOGRÁFICO EM TEMPOS NEOLIBERAIS
1993)
Arthur Autran
359
DIFERENTES CONCEPÇÕES DO POPULAR NO CINEMA BRASILEIRO
Miriam de Souza Rossini
(1990-
367
CINEMA E IDENTIDADE CULTURAL: O DEBATE CONTEMPORÂNEO SOBRE AS POLÍTICAS
PÚBLICAS DO AUDIOVISUAL NO BRASIL
Lia Bahia
377
CINEMA INDEPENDENTE NO BRASIL: ANOS
1950
Luís Alberto Rocha Melo
383
ACERVOS DOCUMENTAIS DE ARQUIVOS AUDIOVISUAIS: DESAFIOS E PROPOSTAS
Rafael de Luna Freire
APRESENTAÇÃO
EsTE VOLUME traz uma seleção variada feita dentre as duas centenas e meia de
trabalhos apresentados no XI Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema
e Audiovisual, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em
outubro de 2007. A reunião foi a maior até agora realizada pela entidade e contou com
participação internacional.
Os textos selecionados confirmam a proeminência da SOCINE no campo da
pesquisa sobre as mais diversas relações entre a imagem e som. O volume sugere o
estado avançado da reflexão sobre o campo do audiovisual no Brasil, que vai se
afirmando de maneira específica, entrecortado pelo estudo de múltiplos suportes e
meios de difusão, diversas abordagens e recortes teóricos e disciplinares.
Para este número e sofisticando o método utilizado anteriormente, os trabalhos
inscritos foram selecionados por uma ampla comissão de pareceristas que destacou
proposições e leituras originais e aprofundadas sobre o vasto campo de cobertura do
Encontro. Uma certa organicidade difusa expressa os muitos caminhos tangenciados
pelo pensamento cinematográfico em busca da conformação e visibilidade de um
campo próprio abrigado na SOCINE.
.
Os textos publicados reafirmam o interesse permanente em maior escala pelo
cinema brasileiro, pensado aqui em algumas de suas vertentes contemporâneas, num
largo espectro que contempla expressões de alteridades, repercussões críticas no
exterior e inevitáveis interfaces que estabelece com um certo cinema da América
Latina. Outros temas contemplados com sessões específicas incluem o cinema
internacional, o vigor do documentário, processos de autoria e subjetivação política,
visualidades singulares que perpassam do filme de horror ao apagamento de fronteiras
com outras artes e outros suportes ou meios. Há também uma perspectiva histórica e
um olhar sobre modos de gestão e de recepção.
No momento em que a SOCINE se prepara para incrementar sua estrutura virtual,
definindo procedimentos de divulgação e participação via digital, este volume, ainda em
forma de livro, atesta a excelência de alguns dos debates ocorridos no ano passado e se
propõe como elemento incentivador de novos olhares sobre o cinema e o audiovisual.
ESTHER HAMBURGER
GusTAVO SouzA
LEANDRO MENDONÇA
TUNJCO AMANCIO
TERROR, HORROR
O estudante de Praga: o duplo, o espelho, o autor
ADALBERTO MüLLER
(UNB) 1
Socorro/Perdi minha imagem!
Offenbach, Contos de Hoffman, VI, 21.
O ESTUDANTE DE PRAGA (Der Student von Prag,1913) é considerado um dos
precursores do Expressionismo Alemão e dos filmes de horror. Narrando a história de
um personagem que se confronta com o seu duplo, o filme é contemporâneo de
outras produções que, de alguma forma, tocam em questões semelhantes, como O
outro (Max Mack, 1913) e O golem (Paul Wegener, 1915).
Ao mesmo tempo, é um filme que antecipa muitas das questões relacionadas a
cinema e psicanálise, particularmente as que abrangem os temas de narcisismo e
identidade, urna vez que o filme inspirou o estudo do psicanalista Otto Rank, Der
Doppelgânger (1914). Original e criativo, esse filme se situa num cruzamento de
contos e romances sobre o duplo (como os de E.T.A Hoffmann, Edgar A. Poe,
Robertson, Dostoiévski, Maupassant), e antecipa filmes sobre o tema. Ao mesmo
tempo, levanta questões atualíssimas sobre o conceito de autor, uma vez que sua
autoria pode ser atribuída ao seu diretor (Stellan Rye), ao roteirista (Hanns Heinz
Elwers), a até mesmo ao próprio ator, Paul Wegener. Trata-se, pois, de um filme
seminal para compreender a história do cinema entre 191 O e 1920, e os seus
desdobramentos.
O estudante de Praga conta a infeliz história do estudante universitário Balduíno,
jovem impulsivo e perdulário. Numa certa tarde, em que se divertia com a garçonete
Lyudusha, numa praça de Praga, Balduíno conhece Scalpinelli, um estranho forasteiro,
1. Este trabalho foi realizado com apoio da FINATEC.
16
ESTUDOS DE CINEMA
a quem Balduíno se queixa de suas desventuras financeiras. Quando passeiam pelos
bosques próximos a um palácio, Balduíno salva a vida de uma Condessa, Margit, cujo
cavalo desenfreara durante uma caça à raposa, da qual também participava seu primo
e pretendente, o Barão Waldis-Schwarzenberg. Dias depois, quando se encontra em
seu quarto, Balduíno recebe a visita inesperada de Scalpinelli, e este lhe faz uma
proposta estranha: em troca de um objeto qualquer de seu quarto, Balduíno receberia
uma grande soma de dinheiro, capaz de tomá-lo um homem rico. O estudante assina
o pacto, e Scapinelli elege, dentre todas as coisas do seu quarto, a mais inesperada: a
sua imagem, refletida num espelho. Como por milagre, a imagem de Balduíno se
toma seu duplo, e passa a persegui-lo, onde quer que se encontre, atrapalhando seus
planos de se casar com a Condessa Margit- para o que também contribuiu a dançarina
Lyudusha, que, assim como seu duplo, passa a criar intrigas para afastá-lo de sua
amada Condessa. Em várias ocasiões, o duplo passa a surgir e atrapalhar os planos de
felicidade de Balduíno. O desfecho da história do amor acaba em desastre: o pretendente
de Margit, sentindo-se desonrado, desafia Balduíno para um duelo; este promete a
todos não ferir o Barão. No entanto, o duplo chega primeiro e mata o Barão no duelo.
Desesperado, decide pôr fim à sua existência, mas atira no duplo, que desaparece. A
felicidade de Balduíno dura pouco: seu peito começa a sangrar no mesmo local em
que o duplo recebera o tiro, e Balduíno morre. Sobre seu cadáver, Scalpinelli vem
rasgar o contrato. Na versão original do filme, vemos um plano final em que o duplo
aparece sentado na tumba de Balduíno, sorrindo sarcasticamente.
As pesquisas sobre o contexto em que surge um filme como O estudante de
Praga ( 1913) têm levantado importantes debates teóricos e historio gráficos entre
pesquisadores do cinema alemão. Por um lado, trata-se de repensar, como faz Thomas
Elsaesser, as duas grandes interpretações do chamado Expressionismo alemão (ou
cinema de Weimar), a saber, as de Siegfried Krakauer (De caligari a Hitler ) e de
Lotte Eisner (A tela demoníaca). Esse questionamento se encaminha na direção de
afirmar que filmes como O estudante de Praga (que Krakauer apenas menciona, por
considerá-lo perdido quando escreveu seu livro) e toda a produção do período
guilhermino (antes de 1914) poderiam desmentir a tese de que o cinema alemão do
período pós-1918 prefigura os anos sombrios do nazismo, tomando-se um modo de
compreender a psicologia "demoníaca" de uma nação inteira. Menos preocupados
em definir um "caráter nacional", pesquisadores como Elsaesser (1999), Diederichs
(1985) e Corina Müller (1988) lançaram outras luzes sobre a história do cinema
silencioso alemão, sobretudo através de uma reavaliação do período pré-1918, e pelo
estudo de filmes que não se enquadram no perfil traçado por Krakauer e Eisner.
Segundo Elsaesser, é preciso ter cuidado para não reduzir o cinema alemão do
período guilhermino a um mero "antecedente" do Expressionismo. O cinema realizado
entre 1908 e 1914 constitui um conjunto de várias camadas superpostas: desde os
prestigiosos Autorenjilme (sobre os quais falaremos a seguir), até os gêneros populares
TERROR, HORROR
17
(filmes de detetive, melodramas e comédias). Quando se desvela essas várias camadas,
fica ainda mais complexo reduzir o cinema desse período a considerações como as de
Krakauer, para quem o cinema de Weimar seria um fenômeno político a ser entendido
dentro de uma história ideológica, segundo a qual o cinema refletiria valores autoritários,
nacionalistas ou racistas. Trata-se, sobretudo, de compreender esse cinema fora de
uma moldura "traumática", característica de pensadores judeus que sobreviveram ao
nazismo, como Krakauer e Eisner.
Questões como autoria, público e gêneros populares têm despertado assim o
interesse pelo cinema do período compreendido entre 1908 e 1914, quando o cinema
alemão começa a ser produzido e distribuído internamente em escala comparável ao
cinema francês e americano, e quando se forma uma "consciência crítica" do cinema,
com o surgimento de várias colunas dedicadas à crítica cinematográfica nos grandes
jornais, e até revistas especializadas em cinema, como a Kinematograph: É nesse
contexto que surgem os conceito de Kunstfilm e Autorenfilm. O Kunstfilm é o
equivalente alemão do "film d'art" francês, e consistiu em algumas modificações
promovidas pela nascente indústria na estrutura de produção e exibição dos filmes,
instalada em Neubabelsberg: a contratação de escritores, dramaturgos e atores
reconhecidos para a produção de filmes, a modificação na duração dos filmes (dos
curtas de 1O minutos exibidos em série numa sessão aos longa-metragem de I hora e
meia a duas horas, exibidos isoladamente).
Se nas revistas como Kinematograph e Spektator discute-se a "estética"do
cinema, o investimento nos Kunstfilme traria para o cinema uma série de escritores
renomados, dando origem a um tipo de filmes chamados de Autorenfilme, levados à
tela por diretores como Gerhart Hauptmann, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmansthal,
Paul Lindau e Hanns Heinz Ewers. Os Autorenfilme são a conseqüência de uma
estratégia adotada pela indústria para tomar o cinema uma diversão "saudável" dentro
do conjunto de uma sociedade bastante conservadora, tornando-o palatável para o
gosto das classes intelectualizadas. Segundo Thomas Elsaesser, a indústria esforçouse por elevar o cinema a "high culture":
Para ser reconhecida como parte da alta cultura, a indústria cinematográfica precisava
produzir filmes, cujos valores estivessem sustentados por conceitos que tornavam
as outras artes confiáveis: originalidade, autoria individual, especificidade estilística
e coerência eram os critérios que permitiam comparar os filmes com outros
acontecimentos culturais, como as obras primas do passado ou a arte de vanguarda
do presente. (Elsaesser, 1999: 65)
Por outro lado, por mais tentador que seja ver nos Autorenfilm um prenúncio
do "cinema d'auteur" da nouvelle vague, é preciso entender o conceito de autoria
dentro da especificidade do cinema guilhermino. Em primeiro lugar, deve-se destacar
18
ESTUDOS DE CINEMA
que Autor em alemão, no contexto de cinema, tanto pode ser traduzido como autor
quanto como roteirista ("Drehbuchautor" ou "Autor"). Corinna Müller, no excelente
artigo "Das 'andere' Kino? Autorenfilme in der Vorkriegsãra", inicia suas reflexões
sobre os Autorenfilm com uma definição retirada da Spektator, de 1913: "Filmes
cujos manuscritos ou argumentos provêm de autores famosos" (Müller, 1998:153).
Isso significa dizer que a importância do roteirista ou "Autor" na produção do filme se
tomava equivafente à do diretor do mesmo, fato que, veremos, no caso de O estudante
de Praga, é de grande relevância. A questão da autoria se tomaria ainda mais complexa,
na medida em que renomados atores e atrizes de teatro como Paul Weggener e Asta
Nielsen passam a influir diretamente sobre a produção de filmes, tomando-se, muitas
vezes, o nome principal do mesmo.
Segundo o minucioso estudo de Helmut Diederichs (1985), toma-se difícil
atribuir com clareza a autoria desse filme ao diretor (Stellan Rye), ao roteirista e
idealizador (Hanns Heinz Ewers) ou ao ator (Paul Wegener). Também foi fundamental
para o filme a contribuição do fotógrafo e operador de câmera Guido Seeber, a quem
se deve o truque-efeito de "dupla exposição" com o uso de máscaras diante da
objetiva da câmera. Enfim, trata-se de um fenômeno complexo de autoria, que só
pode ser deslindado através de uma análise da história de sua produção. Essa se inicia
com as histórias particulares de cada um de seus quatro "autores". Paul Wegener, que
ficaria ainda mais famoso com o filme O Golem (1915), do qual ele também é um dos
"autores", iniciara sua carreira teatral na trupe de Max Reinhard. O dinamarquês
Stellan Rye fizera sua carreira de ator e dramaturgo em Copenhague, onde iniciara sua
. carreira como poeta histriônico e excêntrico. Suas peças acabaram sendo acusadas
de indecentes, e o levaram a um processo judicial que o levou ao exílio em Berlim,
onde se dedicaria ao cinema. Finalmente, Hanns Heinz Ewers, ou Dr. Ewers, depois
de formar-se em Direito, dedicou-se à literatura, traduzindo obras de Edgar Poe e
Oscar Wilde, organizando e comentando obras como as de E. T.A Hoffmann,
escrevendo obras decadentistas e tardo-românticas. O filme foi rodado parcialmente
(as externas) em Praga, por se tratar da cidade universitária de maior prestígio entre
os países de língua alemã.
Quando escreve o roteiro de O estudante de Praga, o Dr. Ewers leva em
consideração uma longa tradição de textos românticos sobre a questão do duplo, mas
também foram importantes as experiências de Paul Wegener e Guido Seeber com a
dupla exposição da imagem e algumas incursões de Stellan Rye pelo tema do duplo.
Portanto, todos os "autores" do filme (incluindo-se aí o cinegrafista Seeber) estavam
preparados para o tema e para a forma de O estudante de Praga. Mas nada seria
como é se o roteiro de Ewers não tivesse colocado todos os pingos nos is.
Esse roteiro é na verdade uma verdadeira colcha de retalhos de livros sobre o
duplo, o que faz pensar que a relação entre literatura e cinema nem sempre deve ser
vista de modo direto - o modo que considera a adaptação de uma obra para o cinema
TERROR, HORROR
19
- mas ganha muito quando se pensa nas relações entre a mídia literatura (p. ex., a
questão do duplo na literatura) e a mídia cinema (que, no caso de O estudante de
Praga, envolvem questões como a produção dos filmes de Neubabelsberg em função
de técnicas de produção específicas , tais como a parada de câmera, a dupla exposição,
a filmagem em estúdio combinada com locações externas, o sistema de contratação
de escritores e de atores de teatro, etc.). Ao invés da adaptação, a palavra-chave
passa a ser então a intermidialidade.
Do ponto de vista da relação do filme com a mídia literatura, Hanns Heinz
Ewers partiu de uma série de textos, analisados por Otto Rank em seu excelente
estudo sobre O estudante de Praga. Entre esses textos, destacam-se as obras de
Adelbert von Chamisso (Peter Schlemilhs wundérsame Geschichte), e de E.T.A.
Hoffman (Die Geschichte vom verlorenen Spiegelbild), em que se narram as histórias
de personagens assediados por um duplo que se origina da imagem de um protagonista
refletida no espelho. Esses duplos são tratados como projeções do "Eu" dos
personagens, um tema caro à literatura romântica alemã, que encontra reflexos na
filosofia de Fichte sobre o Sujeito e nas considerações de Jean Paul sobre a
personalidade. O Scalpinelli de O estudante de Praga é também um eco do Mefistófeles
de Goethe, uma vez que propõe ao estudante Balduíno um pacto (nesse sentido, o
Fausto de Murnau deve muito ao filme de Ewers/Rye), mas também lembra o Dr.
Caligari. Além disso, uma das fontes literárias mais relevantes, e citada explicitamente
no filme, é o poema "La nuit de décembre", do poeta romântico francês Alfred de
Musset, na qual o narrador-eu lírico passa a ser assediado por um duplo de si mesmo.
Numa das cartelas do filme, lemos a seguinte inscrição, retirada do poema de Musset:
Partout ou j 'ai voulu dormir,
Partout ou j 'ai voulu mourir,
Partout ou j 'ai touché la terre,
Sur ma route est venu s'asseoir
Un malheureux vêtu de noir,
Qui me ressemblait comme um frere.
· Je ne suis ni dieu ni démon;
Et tu m'as nomé par mon nom
Quand tu m'as appelé ton frere;
Ou tu vas, j 'y serais toujours,
Jusqu'au demier de tes jours,
ouj'irai m'asseoir surta Pierre.
Na versão original do filme- que não é a que circula no DVD americanovemos um plano final em que o duplo senta-se ao lado da tumba de Balduíno sorridente.
É esse ingrediente que transforma o duplo em algo ainda mais exasperado r, sobretudo
20
ESTUDOS DE CINEMA
para a platéia, e que certamente levou tardiamente alguns críticos a considerar O
estudante de Praga como um precursor dos filmes de horror. Mas a questão do
gênero do filme não é menos complexa que a questão da autoria.
Para o espectador da época, O estudante de Praga não é "o precursor dos
filmes de horror", e muito menos um "precursor do Expressionismo alemão", mas
um Kunstfilm, ou seja, um filme que segue os preceitos dos "film d'art" dos estúdios
Pathé, que inclusive tinham uma duração bem maior do que a dos filmes convencionais
da época (cf. Müller, 1998). Ao mesmo tempo, tratava-se de um Autorenfilm , ou
seja, um tipo de filme produzido com a colaboração de um escritor ou literato, e com
a participação de nomes importantes da cena teatral. O filme tinha além disso um
subtítulo que nos aponta para o caráter intermidiático dos gêneros cinematográficos
do primeiro cinema: "Ein romantisches Drama". Drama romântico aqui não deve ser
entendido como hoje entendemos a palavra, ou seja, como aqueles filmes de intrigas
amorosas (embora esse elemento esteja presente em O estudante de Praga). O adjetivo
"romantich" tem em alemão uma acepção menos ligada a histórias de sentimento
(histórias afetivas) e mais a questões de cunho filosófico e reflexivo. O termo "drama
romântico" foi empregado por Friedrich Schlegel para distinguir o drama clássico, de
gosto francês, da dramaturgia nascente desde o Sturm und Drang, que incluía nomes
como Schiller e Lessing, e que recebera forte influência do teatro shakespeariano teatro em que, aliás, não faltam fantasmas, bruxas e elementos sobrenaturais.
Para Hanns Heins Ewers, o elemento romântico de O estudante de Praga
associa-se ao elemento sobrenatural e inquietante do "doppelganger", cuja fonte são
autores românticos como Hoffmmann, Chemisso, Poe, Musset, ou tardo-românticos
Maupassant e Wilde. Mas a tradição crítica posterior ao filme o consideraria como
um dos mais importantes filmes de terror de que se tem notícia. Mas em que medida
essa apreciação é correta? Como vimos, ela só pode ser entendida fora do contexto
do cinema guilhermino, em que O estudante de Praga é um Kunstfilm, ou, para ser
mais preciso, um Autorenfilm. Mas o subtítulo dado por Ewers ao filme já abre a
possibilidade de associá-lo ao gênero de horror gótico, uma vez que o gótico é
caracteristicamente um gênero romântico- gênero literário que, aliás, sofreu influência
dos espetáculos de fantasmagoria do século XVill. Assim, poderíamos considerar
que, a posteriori, O estudante de Praga é um filme de terror, uma vez que nele se
apresentam algumas características desse gênero cinematográfico. Segundo Rick
Altman (que usa uma terminologia lingüística para descrever os gêneros
cinematográficos),
os filmes de horror tomam emprestada da tradição literária do século XIX sua
dependência em relação à presença do monstro. Ao fazê-lo, perpetuam claramente o
significado lingüístico do monstro como "ser inumano ameaçador", ao desenrolar
novos laços sintáticos, geram uma importante série de novos significados textuais.
TERROR, HORROR
21
No século XIX, a aparição do monstro encontra-se invariavelmente ligada a uma
ruptura de limites de caráter romântico, com a tentativa de um cientista humano de
contrapor-se à ordem divina. Em textos como Frankenstein de Mary Shelley, La
recherche de l'absolu de Balzac, Dr. Jeckyll and Mr. Hyde de Stevenson, uma
estudada sintaxe iguala o homem e o monstro, atribuindo a ambos a monstruosidade
de estar fora da natureza, tal como a definem a religião e a ciência estabelecidas. No
cinema de terror, um outro tipo de sintaxe iguala rapidamente a monstruosidade não
com o excesso de atividade de uma mente do ·século XIX, mas com o excesso de
atividade de um corpo do século XX. Uma e outra vez, o monstro se identifica com
o apetite sexual insatisfeito de sua contrapartida humana; estabelecem-se assim,
com os mesmos materiais "lingüísticos" primários (o monstro, o terror, a perseguição,
a morte) significados textuais totalmente novos, de caráter mais fálico que científico.
(Altman:2000: 302-3)
Como vemos, Rick Altman constrói sua definição do terror e do monstro em
tennos psicanalíticos (apetite sexual insatisfeito, caráter fálico). De fato, num filme
como O estudante de Praga, é o próprio gênero terror que é posto em causa, uma vez
que o monstro não é ou não parece ser "inumano", mas, sim, tem forma não apenas
humana, mas idêntica à do protagonista.
Em 1914, menos de um ano depois do lançamento do filme, o psicanalista Otto
Rank, um dos discípulos de Freud, publica na revista /mago o texto Der Doppelganger
[O Duplo], que se toma o primeiro texto psicanalítico sobre cinema de que tenho
notícia. Trata-se de um estudo de peso, que tenta levantar fontes literárias e míticas
para explicar a questão do duplo, e com vistas a constituir uma teoria da personalidade.
Para a teoria psicanalítica de Otto Rank, o Duplo evidencia um distúrbio neurótico de
personalidade, que se constitui através de uma "divisão" [Spaltung], da personalidade,
provocada por um excessivo amor próprio [eigenes Lieben], de raiz narcisística.
Essa configuração psicológica está relacionada a uma incapacidade para amar, e ao
mesmo tempo para um impulso de morte [Todesbetrieb]. Para explicitar esse tipo de
patologia psíquica, Otto Rank recorre ao filme O estudante de Praga, e ao mesmo
tempo busca as bases literárias e folclóricas da questão do duplo.
Do ponto de vista literário, as fontes são quase todas oriundas da literatura
romântica: do Peter Schlehrnil de Adelbert von Chemisso, o "homem que perdeu sua
sombra", ou melhor, que "vendeu sua sombra/sua alma"ao diabo, passando por
diversas narrativas de E.T.A. Hoffmann, como "Die Geschichte vom verlorenen
Speigelbild", cujo protagonista, Erasmus Spikher, depois de envolver-se com uma
jovem na Itália, vê sua imagem no espelho definhar até desaparecer. Vale lembrar,
como destacará Otto Rank no seu estudo, que alma, sombra e imagem refletida
[Spiegelbild] são termos sinônimos em muitas culturas. E.T.A Hoffman desenvolveu
ao longo de suas narrativas uma reflexão profunda sobre a personalidade, sob influência
de Jean Paul(?) e sua crítica à filosofia do Eu de Fichte. Numa das saborosas epígrafes
TERROR, HORROR
23
BIBLIOGRAFIA
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von 1925. Wien:TuriaundKant, 1993.
O cinema e as mutações de Drácula
MAURO PoMMER
(UFSC)
A HISTÓRIA de Drácula e o cinema nascem na mesma época. Um dos textos
literários mais adaptados para as telas, Drácula desenvolve, com a versão dele feita
por Murnau, certa característica peculiar: uma mortal fragilidade diante da luz solar, o
que faz com que sua passagem ao meio cinematográfico seja marcada por uma quase
simbiose com essa nova forma narrativa. A trajetória de adaptações posteriores constitui
em boa parte um diálogo com essa conversão transmidiática.
É tendo em mente essa mudança no caráter do personagem que se pode dar
conta de que Drácula, o vampiro inventado literariamente por Bram Stoker, faz no
contexto do romance algo que horrorizaria os espectadores de cinema: caminhar à luz
do dia. A luz solar não o destrói, apenas reduz consideravelmente seus poderes razão pela qual ele costuma passar os períodos diurnos em estado de letargia. Já os
vampiros cinematográficos, todos eles derivados daquela mesma fonte literária, são
tão sensíveis à luz do sol quanto o é a própria emulsão da película. Essa nova forma
de fragilidade, constituída por uma analogia (que é uma das formas operatórias do
universo mágico) de caráter simultaneamente técnico e metafórico, é uma criação de
Murnau e de seu roteirista Henrik Galeen, em Nosferatu ( 1922). Nosfera tu não constitui
a primeira adaptação do romance Drácula para o cinema. Porém, a primeira versão
para o texto de Stoker, o filme húngaro Drakula (1920), consiste em uma adaptação
não-autorizada da qual não restou nenhuma cópia conhecida. 1 Desse modo, as
inovações introduzidas por Mumau e Galeen tornaram-se a referência duradoura para
as futuras adaptações.
Um elemento central do estilo estético adotado por Murnau nesse filme foi a
utilização sistemática das trucagens para indicar ou mimetizar as características
I. Ver BIGNELL, 2000: 114-30.
TERROR, HORROR
29
reforça o caráter de confluência entre as qualidades do vampiro e a natureza do
aparelho cinematográfico. Esse ser das sombras desaparece tão completamente quanto
a imagem num filme superexposto.
Essa reconformação introduzida no mito do vampiro, tal como visto em
Nosferatu, tomar-se-á a base de suas inúmeras adaptações futuras para o cinema.
Gostaria de mencionar aqui três dessas adaptações para efeito comparativo. Uma
delas é a versão realizada por Terence Fisher para a produtora inglesa Hammer, em
1958, The Horror of Dracula, que se tomou uma espécie de paradigma da releitura
dessa história no contexto dos anos 1950, marcando o início da dominação da
produtora sobre o cinema de horror até o início dos anos 1970. Primeira versão
cinematográfica em cores, permite que o vermelho do sangue assuma um lugar
proeminente em sua direção de arte. O dado curioso sobre essa adaptação está na
busca de uma "naturalização" do vampiro, de tal modo que a vertente "cientificista"
presente na obra original é não apenas retomada, mas até ultrapassada. Exemplar
dessa tendência é a observação gravada por Van Helsing em seu dictaphone: 4 "É uma
falácia comum considerar que os vampiros podem transformar-se em morcegos e
lobos". Assim sendo, e tendo sido eliminada qualquer relação com o sobrenatural (o
que tenderia a engendrar correlativamente questões de natureza moral e mesmo
religiosa), a condição a que está submetido o Conde Drácula reduz-se a uma espécie
de doença ainda desconhecida, mas possível de ser combatida caso se possam
repertoriar algumas de suas características. É então, em meio a uma cenografia de
marcante caráter teatralizado e atemporal- onde as aspirações sanitárias próprias aos
anos 1950, de forte urbanização e abandono da "sujeira" rural se fazem dominantes,
em forte contraste com o decadente castelo de Nosferatu -, que a ambígua
caracterização dessa nova versão do vampiro se faz presente. Ele inexplicavelmente
teme as cruzes, mesmo se sua afecção constitui apenas uma doença, embora
desconhecida; e sabe-se de sua mortal sensibilidade à luz do sol, qúando a ciência
parece mostrar-se capaz de um dia explicar tal fenômeno, fora de qualquer conotação
religiosa. No final, é graças a esse conhecimento que o vampiro é aniquilado,
transformando-se em pó graças ao ardil de Van Helsing, que o detém com um crucifixo,
e depois o ataca com a abertura de uma grossa cortina, deixando entrar a luz do dia.
De modo que o filme caminha entre duas vertentes, fazendo com que os instrumentos
"científicos" da derrota do vampiro (a cruz e a luz solar) impliquem, pelas suas
derivações conotativas, na condenação moral de seu comportamento, já que ele continua
uma criatUra das trevas, e anticristão.
4. A presença desse aparelho elétrico, recém-inventado, no contexto da história, é marca importante
da presença da ciência e de suas derivações tecnológicas no contexto da obra de Stoker, recuperada
no filme de Fisher.
26
ESTUDOS DE CINEMA
sobrenaturais do vampiro, produzindo com isso uma interação da criatura com o
aparelho cinematográfico, de repercussões tanto narrativas quanto simbólicas.
O vampiro é apresentado como sombra, tanto nos intertítulos ("Tome cuidado
para que a sombra dele não venha perturbar seu sono com horríveis pesadelos"),
quanto visualmente, como no caso da sua sombra sobre Hutter (no livro, Harker),
desmaiado, ou da sombra no topo da escada, em direção ao quarto de Ellen (ou
Mina). Assim, o vampiro se apresenta, constitutivamente, como o inverso da luz.
Considerada tal caracteristica em termos especificamente cinematográficos, ele se
apresenta como uma criatura que só pode impressionar a película pelo contraste com
o que efetivamente existe, já que a película não registra as sombras por si mesmas.
Trata-se de uma decorrência visual, de sua ambígua natureza de morto-vivo.
,Nessa mesma linha de raciocínio, vê-se impor sua presença por sobre os objetos
existentes no mundo material, como na cena passada no porão do navio: um marujo
doente, estendido em uma rede, vislumbra a figura do vampiro, que aparece em
sobreimpressão acima das caixas de terra, que ele próprio embarcara naquela nave.
Essa imagem é oportunamente mostrada como uma subjetiva do marujo, acentuando
a ambigüidade presente entre a existência efetiva do vampiro como um ser concreto
(embora de natureza diversa da humana) e a percepção que dele se pode ter. Tal
contraposição objetividade/subjetividade aparece como algo próprio a um estado alterado
da consciência- no caso, o estado alucinatório derivado da febre que consome aqueles
marinheiros por causa da infecção que grassa a bordo. De modo que o vampiro é
mostrado por vezes como constituindo um efeito do olhar, do foco da atenção, do
interesse subjetivo.
Outros usos de trucagens para marcar sua manifestação ocorrem quando o
capitão do navio ameaça atacá-lo com uma machadinha, após abrir o caixão onde ele
se acha deitado sobre a terra. Nosferatu então ergue-se ao ar mantendo sua postura
de rigidez cadavérica, por uma força de natureza mágica - para a qual se utiliza a
"magia" dos efeitos especiais; e ainda quando, ao entrar em sua nova residência, na
cidade portuária, "seu ser se dissolve" ao passar peia porta fechada, através de uma
sobreimpressão em fade-out.
Esse conjunto de procedimentos estéticos, concebidos que são para representar
a parte incorpórea, presente na natureza de uma criatura que transita entre dois mundos,
pode ser também tomado como uma metáfora do cinema, em sua capacidade de
manter em estado de suspensão animada um conjunto de momentos eventuais
capturados pela via da luz refletida. Enquanto espectadores de cinema, habitualmente
vivencia-se o presente narrativo veiculado em suas histórias, abstraindo o fato de
serem imagens por sua natureza intrínseca pertencentes ao passado. Na concepção
de Mumau, o caráter fantasmagórico próprio ao cinema reencontra uma permanente
atualização, pertinente a um dispositivo capaz de transformar uma performance em
repetição mecânica. É o domínio de uma ritualidade de tipo novo, baseada sobre à
TERROR, HORROR
27
reprodução da morte como vida - triunfo de um estilo civilizatório que a obra de
Murnau, em seu conjunto, demonstra abominar. De modo que o cinema, forma artística
de eleição para Mumau, não obstante é por ele caracterizado como um instrumento constituinte
da mesma lógica vampirizadora intrínseca à civilização que gerou tal dispositivo.
Nesse registro, a própria característica da impressão da imagem em preto e
branco é utilizada por Mumau como suporte de um procedimento artístico pleno de
conotações, pela via da manipulação empregada na seqüência da chegada de Hutter ao
castelo, na carruagem do Conde. Montando a tomada em negativo, Mumau cria uma
imagem de inversão capaz de apontar em muitas direções simultaneamente. De um
lado, marca a passagem a um território onde deixam de vigorar as normas e costumes
da civilização européia dos anos 20, como explicitamente no caso do homoerotismo,
então considerado crime. Em adição a isso, note-se ainda que num contexto repressivo
das manifestações da sexualidade, o sutil deslocamento provocado no contexto do
filme em relação à sexualidade - que aí opera em caráter sugestivo, e não de forma
explícita- remete a uma reerotização de todas as relações envolvidas no contexto da
história. Por outro lado, tal inversão prenuncia o projeto de Mumau de elogio à
autencidade da tradição, presente nas imagens do castelo e de seus arredores rurais,
colocada contra a sugerida corrupção urbana, representada pela cidade como local
propício à disseminação da pestilência. Que Nosferatu seja o indutor da epidemia
urbana é apenas uma forma de cumprir seu papel desagregador, com referência àquilo
que já se encontra intrinsecamente corrompido. Esse tipo de oposição rural/urbano
será retomado de forma recorrente depois da ida de Mumau aos Estados Unidos,
constituindo um tema chave no conjunto de sua obra- vide Aurora, City Girl, Tabu,
onde o urbano é visto como local de decadência.
Na base de tal inversão encontra-se ainda um movimento que subverte o cerne
da obra original de Stoker, já que este aponta a técnica (supra-sumo do urbano) como
salvação, confrontada aos males inerentes ao primitivismo representado pelo vampiro.
Em Nosferatu, a própria mecanização da arte trazida pelo cinema é utilizada como
suporte (via trucagens fotográficas, montagem e efeitos especiais, como se vê) para
uma sutil denúncia da desumanização que a civilização mecânica promove. Pois o
vampirismo constitui uma privilegiada metáfora do cinema: "rouba" a alma das pessoas,
ao transformá-las em mortos-vivos, movendo-se nas telas. 2 Aqui, a representação da
vida pela via mecanizada, amplifica, busca flagrar o senso comum da vida cotidiana
como ritual vazio, repetição inconsciente de uma visão de mundo restrita.
2. A utilização do princípio estético de que a imagem cinematográfica pode ser doadora de vida ou
promotora da morte do personagem retratado continuará a ser sistematicamente desenvolvida por
Murnau em sua obra posterior. Em Der Letzte Mann, por exemplo, ele faz com que a decupagem
e o enquadramento prenunciem a queda em desgraça do porteiro antes mesmo que esse fato ocorra
na narrativa (Cf. POMMER, 2000: 170-1).
28
ESTUDOS DE CINEMA
Murnau demonstra simpatia pelo vampiro - capaz de revelar aos outros
personagens suas verdades profundas-, opostamente a Stoker, que combina fascinação
com aversão. Para Stoker, o Conde representa o atraso rural, com sua ameaça centroeuropéia à civilização inglesa, enquanto resultado da mistura de estranhas tradições,
avessas à cultura cristã. 3
O próprio Nosferatu acaba sendo destruído pela luz do sol porque, levado por
uma espécie de arroubo "romântico", ele se esquece da passagem do tempo enquanto
suga o sangue de Ellen. Esta age em concordância com o que lera, no livro trazido por
seu marido, acerca dos poderes do vampiro: "Ninguém pode salvá-lo a menos que
uma moça sem pecado faça o vampiro esquecer-se do primeiro canto do galo, dandolhe o seu sangue deliberadamente". Essa sua disposição ao sacrificio tem sua cota de
ambigüidade, já que ela demonstra por seu sonambulismo estar sob a influência de
Nosferatu. Nesse sentido, a personagem Ellen constitui uma fusão dos caracteres
literários de Mina (a devota) e sua prima Lucy (a sensual). Inclusive na cena em que
Ellen borda numa toalha as palavr;1s "Ich liebe Dich" ("Eu te amd'), ela lança ao além
um olhar melancólico, de natureza enigmática. Se o contexto da história aponta Hutter
como o destinatário de tal declaração, a seqüência apresentada pela montagem dá a
entender que é o vampiro quem mobiliza seus pensamentos. De certo modo, a revelação
de um resto de humanidade nesse personagem - a ponto de mostrá-lo digno da
compaixão de Ellen- termina por redimi-lo na versão de Murnau. Já na concepção
original de Stoker, o vampiro é tratado como uma anomalia da natureza, da qual todo
traço humano foi esvaziado.
A destruição de Drácula se dá na obra de Stoker num contexto em que seus
perseguidores, baseados em evidências de caráter "científico" coletadas por Van Helsing
em fontes diversas, buscam tirar proveito da fragilidade do vampiro durante as horas
em que o sol está acima do horizonte. Trata-se de uma operação de caráter praticamente
sanitário, levada a termo com o mesmo grau de deliberação e busca de eficácia com
se levaria a efeito, por exemplo, uma desratização. Mas Nosferatu tem sua peculiar
relação com a luz tratada de modo poético e sutil. Ela é mostrada por uma trucagem
fotográfica, levada a efeito quando o vampiro entra à noite no quarto de Ruth, a
cunhada de Hutter (ocupando estruturalmente no filme o lugar de Lucy no romance).
A chegada do morto-vivo no quarto é anunciada por uma viragem na cópia, do tom
sépia para o azulado, como se mesmo a penumbra fosse contagiada por sua presença.
Conhecedora da relação do vampiro com a luz, Ellen decide entregar-se a ele para
destruí-lo, fazendo com que Nosferatu não perceba que o sol está nascendo. É assim
por causa da luz excessiva do sol, que o vampiro é aniquilado, transformando-se em
fumaça. A trucagem empregada na cena, umfade-out em sobre-impressão, novamente
3. Ver CONDOURIOTIS, 2000: 143-59.
22
ESTUDOS DE CINEMA
do livro de Rank, encontramos essa passagem de E.Th. A. Hoffman, que ilustra o
pensamento do psicanalista sobre a questão do duplo: "Penso que meu Eu seja como
um espelho multiplicado; todas as formas que se movem ao meu redor são Eus, e me
irrito com que fazem e deixam de fazer." (Rank, 1993: 13). Outra fonte importante
para Rank é a obra cômica-romântica de Ferdinand Raimund, que depois de descobrir
que seu reflexo (Spiegenbild) foi libertado do espelho, passa a sentir-se perseguido
por uma "maldita duplicidade" [verdaemmte Doppelgaengerei] (Rank, 1993:24). Rank
ainda elenca vários outros escritos célebres sobre a questão do duplo na literatura,
como o de Alfred de Musset ("la nuit de décembre", o conto "William Wilson" de
Edgar Poe (adaptado por Louis Malle), a narrativa "Le Horla", de Guy de Maupassant,
e as novelas O duplo, de Dostoievski, e O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. A
impressão que se tem, ao ler o estudo comparativo de Rank, é que Ewers aproveitouse de todas essas narrativas, constituindo um patchwork de narrativas.
Mas não apenas a literatura é fonte de pesquisa para Rank. Ele também se vale
de informações do folclore. Primeiro, em relação à questão da sombra. Em muitas
culturas, a sombra é considerada como alma [Seele], e o fato de perder sua sombra
ou não conseguir vê-la em determinadas ocasiões está associado a prenúncios de
morte. Em muitas culturas arcaicas, a palavra que designa sombra, imagem e alma é
a mesma. Para os nativos das ilhas Fiji, a palavra "yalo" (alma) quando duplicada
"yaloyalo" passa a significar "sombra". Também em muitas culturas antigas, os mortos
e algumas entidades sobrenaturais (como os fantasmas, os elfos e os bruxos) não
produzem sombra.
Também faz parte do folclore associar a imagem refletida [Spiegelbid] à alma,
e muitas são as lendas e crenças que se referem a esse tipo de imagem. Os gregos
acreditavam que ver em sonho a sua imagem refletida era um prenúncio de morte.
Entre os mesmos gregos surgiu o mito de Narciso, tão fundamental para a questão do
duplo e para o seu significado psicanalítico. Uma das versões do mito assevera que
Tirésias teria previsto que Narciso não deveria jamais olhar para a sua imagem, pois
isso o levaria à morte. Esse mito é um dos fundamentos da teoria psicanalítica de
Rank, para quem o narcisismo não apenas está associado à sexualidade, mas ao
impulso de morte. O narcisismo é um "ersatz" do impulso da morte, e como tal, O
Estudante de Praga pode ser tomado como a primeira "ilustração" das grandes teorias
psicanalíticas derivadas do círculo freudiano, e que viriam a ser um dos pilares da
cultura e do pensamento do século XX. Rever esse filme antigo e semi-olvidado,
portanto, não mero exercício de necrofilia, mas quiçá uma necessidade para quem
quer compreender o frutífero diálogo entre arte, tecnologia e psicanálise.
30
ESTUDOS DE CINEMA
s
Curiosamente, é na versão de Francis Coppola, intitulada Eram Stoker Dracula
( 1992), que é feita a primeira tentativa conseqüente de recristianização do personagem.
Enfatizando o princípio dramatúrgico de que todo personagem tem suas razões, Coppola
e seu roteirista James Hart optam por dotar a história de um preâmbulo onde se
apresenta a guerra comandada pelo Conde contra a invasão otomana no século XV, e
se narra sua paixão pela noiva, morta de forma trágica e absurda em função dos
desdobramentos desse combate. Por causa desse infortúnio, Drácula renega o
cristianismo e consagra-se a uma espécie de vingança contra Deus, fazendo um pacto
com as forças malignas capaz de .garantir-lhe a eternidade na Terra desde que se
nutrisse do sangue dos vivos. Posteriormente, tendo-se tomado imortal, ele vem a
descobrir, no final do século XIX, que sua amada se reencamara na figura de Mina
Murray, a noiva de Harker, o agente imobiliário londrino que viaja até a Transilvânia
com o objetivo de concluir negócios referentes à aquisição de uma propriedade em Londres.
Em função das opções autorais que Coppola assume, sua adaptação recoloca
em termos bastante distintos, daqueles originalmente utilizados por Stoker, a forma
como é tratada a questão da modernidade, assim como o papel nesse contexto
desempenhado pela tradição. O cineasta realiza um filme no qual deliberadamente
emprega apenas as possibilidades de trucagens existentes na própria época em que
sua história transcorre, e exibe a então recente invenção que era o cinematógrafo
como elemento interno à própria narrativa, colocando o próprio Conde presente a
uma das sessões pioneiras com o aparelho. Dessa forma, o vampiro aparece como
despido do ar empoeirado com que o vestira o cinema precedentemente, seja nas
adaptações derivadas da visão de Murnau, que insiste em imagens que remetem ao
passado, seja naquelas inspiradas pelo estilo Hammer, que apesar de privilegiarem
certa atemporalidade no tratamento cenográfico, colocavam ênfase no provinciano e
no rural. O vampiro de Coppola é uma criatura decididamente urbana; nesse sentido,
sua decisão de instalar-se em Londres, então a maior metrópole do mundo, surge
como um passo natural. O filme recupera a idéia original sobre a possibilidade dessa
criatura não propriamente ser destruída pela exposição ao sol, mas apenas perder
temporariamente o uso de seus poderes. Utilizar óculos escuros mesmo na fraca e
difusa luz londrina, é a única e sutil menção à sua afecção.
É em outro plano que aparece a questão do vampirismo nesse filme - como
doença contagiante (nos mesmos moldes em que se vê no filme de Fischer), e não
enquanto repercussão do Mal. De forma surpreendente, essa infecção assume um
papel de signo modemizante em dois planos diferentes na história, tal qual contada
por Coppola. Na medida em que o lado negativo da modernidade se encontra vinculado
ao papel mecânico que o ser humano é chamado a desempenhar, ao adaptar-se ao
ritmo das máquinas na busca de fazê-las funcionarem adequadamente, a marca por
excelência da manutenção de um espaço humanizado passa a interiorizar-se na forma
do amor romântico. Em sua busca da atualização do mito do vampiro, Coppola substitui
TERROR, HORROR
31
sua luxúria original (que engendrava a condenação suprema que a criatura poderia
sofrer no contexto vitoriano de seu surgimento) por um amor apaixonado, que ao ter
sido contrariado, colocou-se tanto na origem de sua revolta contra a tradição cristã da
piedade quanto de seu posterior reencontro com esses valores ao perceber a
inevitabilidade da morte.
O espaço da subjetividade constitui então o reduto onde o humano se abriga, já
que sua ação exterior cotidiana se apresenta configurada pelo tempo e pela ação
mecanizados. Não é de se espantar que seja portanto Drácula, um membro da nobreza,
quem é capaz de manter-se "integrado com sua natureza humana" (ou seja, o filme
defende essa idéia pela via do paradoxo: um morto-vivo como símbolo da humanidade),
na medida em que sua condição social o libera do trabalho escravizante. Além disso,
tal modernização atinge um caráter contemporâneo também porque a narrativa introduz
similaridades analógicas entre o contágio vampiresco e aquele proveniente da Aids. A
cena em que Mina se entrega ao vampiro, e decididamente bebe o sangue dele, é
nesse ponto exemplar. Afirma-se o predomínio da paixão sobre o da autopreservação,
numa atitude que deliberadamente confronta as discussões na época da produção do
filme sobre essa infecção. Trata-se da repercussão, num plano contemporâneo, da
epidemia de sífilis ocorrida no final do século XIX em Londres, inspiradora da história
original. Num contexto em que o emprego da transfusão de sangue constituía um
grande avanço científico, a presença de uma doença transmissível em decorrência
desse procedimento médico coloca simultaneamente em cheque os hábitos de uma
coletividade. Tal manifestação infecciosa, cujo combate assumiu tanto um caráter de
controle da saúde pública quanto de questionamento moral, constitui na verdade o
fundamento inexplícito sobre o qual a história de Drácula foi construída.
A busca de uma justificação capaz de resgatar as razões próprias a um
personagem sanguinário não constitui novidade na obra de Coppola. O autor já
empregara tratamento análogo na busca de um perdão para os Corleone, pa trilogia de
O poderoso chefão. Ali, os mafiosos "do bem" aparecem sobretudo como vítimas de
um contexto agrário tradicional, capaz de deixar raízes tão profundas no
comportamento e nos valores de uma comunidade no sentido de sua corrupção moral,
que nem mesmo seu transporte para o contexto urbano seria capaz de erradicar.
Nessa medida, Don Corleone, tal qual o Conde Drácula, apresentam-se como
personagens inextricavelmente conectados com seu antigo país, representantes dos
aspectos arcaicos da velha Europa. A terra e o sangue nos dois casos formam uma
unidade indistinguível, pois tanto os nobres da Transilvânia quanto os líderes locais
das fraternidades secretas da Sicília têm em comum o fato de que o sangue de seus
ancestrais misturou-se com a terra em que habitam, na defesa de seus territórios
contra os invasores estrangeiros.
A própria etimologia do nome Drácula ("o filho do dragão") remete aos mitos
fundadores da civilização na Europa Central, onde o dragão aparece como metonímia
ESTUDOS DE CINEMA
32
do poder vital da Terra. Habitando os subterrâneos de uma caverna, essa criatura
representa a perene continuidade da vida através da quase imortalidade que lhe é
conferida pela rara qualidade de seu sangue. É dessa forma que Siegfried, por ter se
banhado no sangue do dragão, toma-se invulnerável, exceto por um pequeno pedaço
de suas costas que o sangue não cobriu. A conexão profunda entre a vida subterrânea,
o sangue e a imortalidade recoloca Drácula (aquele que só pode repousar em um
caixão com sua terra natal encharcada pelo sangue de seus ancestrais), como
representante da antiga ordem da nobreza agrária, caracterizada por uma união fusional
com a terra, de natureza sagrada. No contexto do sucesso da Revolução Industrial
inglesa, em que foi concebida a narrativa de Drácula, "ser um com a terra" constitui
uma qualidade que se opõe frontalmente ao capitalismo triunfante, império do fluxo
financeiro e da transitoriedade.
Entretanto, tal revisão cinematográfica do mito, longe de vacinar os vampiros
contra os poderes da luz sobre eles, representou apenas um intervalo nostálgico.
Acerca da permanência de sua sensibilidade à luz, enquanto emblema da pirotecnia
cinematográfica, é exemplar a versão extremamente contemporânea que John
Carpenter constrói em Vampires ( 1998), narrando a caça efetuada por especialistas ao
temido Valek, que durante séculos procura por uma cruz negra com a finalidade de
executar um ritual: a complementação de um exorcismo ocorrido na Idade Média,
que, por mal realizado, o transformara num vampiro. Uma vez retomado o ritual, ele
iria imunizá-lo contra os efeitos da luz do dia. Ao serem encontrados, empalados, e
arrastados das sombras para a luz do sol, Valek e seus seguidores queimam rápido
como a emulsão de brometo de prata dos antigos filmes. Eles são mostrados como
tão impuros e profundamente conectados à terra que a luz do sol acelera o processo
de sua purificação até uma velocidade intolerável. Em sua química profunda, continuam
um registro de luz, assim como inventado em Nosferatu.
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Bad trip: as estratégias autorais de produção
de encanto de José Mojica Marins em
O despertar da besta ( 1969)
KLAus'BERG NIPPES BRAGANÇA
(UFBA)
O QUARTO FILME de horror de Mojica é ao mesmo tempo, um marco e uma
cicatriz em sua carreira: primeiro por ser uma obra bastante singular, pois fora criado
para mostrar horrores, existentes na cidade grande, inspirado em modelos retirados
de páginas de jornal e de relatos de conhecidos. O roteirista do filme Rubens Francisco
Lucchetti, que já havia trabalhado com Mojica em O estranho mundo de Zé do Caixão
(1968) e em dois programas de tevê, trouxe a possibilidade de realizar narrativas com
a mesma intensidade visual das primeiras obras de Mojica, sem precisar apoiar-se
exclusivamente em seu personagem, deixando margem para a participação ativa de
personagens inspirados em modelos espectatoriais.
Talvez devido a isso, o filme tenha sido censurado por quase quinze anos,
sendo exibido pela primeira vez em 1983, além de que, nunca foi distribuído em
circuito comercial, apenas em mostras e festivais como o Rio-C in e Festival. 1 O censor
Antônio de Pádua Carvalho Alves, da comissão examinadora de Ritual dos Sádicos,
explica o motivo da censura: "o filme [... ] é uma sucessão de fatos e situações, [... ]
da prática do vício, de bacanais, orgias, rituais sadomasoquistas, taras, anormalidades,
morbidez, [... ] enfim, uma gama infindável de aspectos que caracterizam a total
degenerescência humana" (In: BARCINSKI; FINOTTI, 1998: 268).
Ao contrário de seus três primeiros filmes de horror, que se ambientam em
cidadezinhas de interior sem uma data precisa, O despertar da besta não cria nenhum
mundo alternativo, mas explora o espaço da Grande São Paulo do final da década de
1. Edição de 1986. O despertar da Besta I Ritual dos sádicos recebeu os prêmios de melhor roteiro é
melhor ator para José Mojica Marins.
34
ESTUDOS DE CINEMA
1960, período não só da ditadura militar no Brasil, como também do movimento
internacional de contracultura. A referência à contracultura fica explícita junto aos
hippies, que são personagens e figurantes constantes do filme, com comportamentos
liberais, trajes característicos, músicas engajadas e o uso de drogas que ofereçam
estados alterados de consciência, como uma afronta às regras e aos valores morais
correntes. A associação entre esse grupo, as drogas e as ações violentas ou absurdas
são pontos de posicionamento da obra, pois expõe os indivíduos viciados e suas
reações a certos estímulos, que os levem a cometer violências físicas ou atitudes
ridículas e insanas.
Depois de maio de 1993, quando Mike Vraney- o fundador da distribuidora
norte-americana Something Weird, segmentada no ramo de filmes B dos anos 1950 e
1960- resolveu lançar de Seattle, nove longas-metragens de Mojica, um novo público,
jovem e ávido por novidades da indústria do cinema B, descobriu algo espetacular em
velhos filmes de horror brasileiros. Cerca de cinco mil fitas foram vendidas com
apenas um ano no mercado, o que levou a toda uma comunidade consumidora e
divulgadora de cultura underground e cinema B a conhecer o personagem tupiniquim
Zé do Caixão, rebatizado de Coffin Joe. A revalorização concedida ao cineasta a partir
da década de 1990 põe em evidência o problema pragmático que é enfrentado nessa
pesquisa, isto é, a retomada de um artista e de obras que conseguiram uma "preservação
através da ruína do tempo" (COMPAGNON, 2006: 245). Essa canonização tardia
abre portas para obras antes marginalizadas receberem o prestígio, relegado aos "textos
centrais".
Celebrado através de alguns documentários como Maldito - O estranho mundo
de José Mojica Marins de André Barcinski e Ivan Finotti (2001); livros como José
Mojica Marins- 50 anos de carreira, organizado por Eugênio Puppo (2007, Heco
Produções); e mostras a exemplo de José Mojica Marins- Retrospectiva e obra
ocorrida no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo em novembro de 2007, o
cineasta Mojica foi tardiamente reconhecido por uma geração que não presenciou o
início de sua carreira, familiarizada apenas com seu personagem monstruoso em
algumas participações na televisão, como no Cine Trash exibido em 1996 pela Rede
Bandeirantes.
Concede-se valor às obras artísticas que apresentam desvios únicos em relação
ao universo que as concentra, porém dado que os desvios aqui analisados foram
tomando-se familiares com o passar dos anos e com a diversidade de filmes que
possam ter recorrido a esses desvios como referência ou citação, entende-se que o
atual valor de culto dedicado ao cineasta provém do reencontro com essas marcas
características que recebem uma atualização perceptiva do novo leitor e ganha ares
de um novo "veiho desvio". Quer dizer, "a obra de valor é a obra que se continua a
admirar, porque ela contém uma pluralidade de níveis capazes de satisfazer uma
· variedade de leitores" (COMPAGNON, 2006: 229).
TERROR, HORROR
35
Resultado de uma canonização emergida entre as marcas do passado e sua
perduração fora do contexto de origem, as obras de Mojica ainda possuem pertinência
e funcionamento, para a apreciação contemporânea. As condições de leitura são
permeadas pelos fatores de consagração, que tanto o artista quanto as obras
conquistaram historicamente. Percebidas como "clássicas", as obras são analisadas
conjugando as propriedades herdadas pelo tempo e os efeitos percebidos pelo atual
momento de apreciação, portanto, "se os clássicos mudam, é à margem, através de
um jogo, analisável, entre o centro e a periferia. Há entradas e saídas, mas elas não
são tão numerosas assim, nem completamente imprevisíveis" (idem: 254).
Marcas que em outro cineasta talvez fossem interpretadas como problemas ou
incompetências de produção, no caso de Mojica ganham o estatuto de estilo autoral,
principalmente se relevado a recorrência nas obras. Antoine Compagnon (2006, p.l68)
propõe que o estilo deve ser pensado como ornamento e desvio, inseparavelmente,
quer dizer, "o estilo, pelo menos desde Aristóteles, entende-se como um ornamento
formal, definido pelo desvio em relação ao uso neutro ou normal da linguagem".
Sejam influências político-culturais ou limitações orçamentárias, os desvios
desempenham funções importantes nos programas poéticos do artista.
As constatações empíricas da apreciação serão a base de teste dos efeitos
provocados pela obra, mesmo que se estabeleça algumas inferências sobre o leitormodelo programado e o endereçamento genérico proposto pelo discurso fílmico.
Segundo Umberto Eco em Interpretação e superinterpretação (2005: 75-6), "mais do
que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar uma interpretação, o
texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular de
validar-se com base no que acaba sendo seu resultado". Ainda que nos valhamos de
algumas informações históricas, culturais ou sociais do cineasta em questão, o objeto
de análise é o autor no texto, uma entidade "mentalizada" pelo leitor através de indícios
que podem estar grafados no programa.
A metodologia empregada assume o filme como um texto capaz de provocar
efeitos sobre o apreciador, contudo o papel do analista é identificar o funcionamento
da obra a partir de seu resultado, os efeitos que foram exercidos sobre o intérprete.
Baseada no tratado sobre as artes poéticas de Aristóteles, a Poética do filme (GOMES,
1996, 2004a, 2004b)- método nomeado em homenagem ao filósofo grego-, mostrase como uma metodologia frutífera para os objetivos desta pesquisa, pois toma o
texto como um critério, da mesma maneira em que autoriza a interpretação empírica
do resultado contemplado. A disciplina emprega algumas intuições do filósofo grego,
de certo modo adaptadas à análise filmica, concentrando esforços entre o texto e a
apreciação empírica, para fornecer uma perspectiva analítica sobre o funcionamento
geral da obra.
36
ESTUDOS DE CINEMA
FLAS/1BACKS SENSACIONALISTAS: BESTIALIDADE E
INSENSATEZ NA NARRATIVA
O filme pode ser dividido basicamente em duas partes: a primeira, em preto e
branco, é composta por vários relatos curto:; e se dedica a criar um padrão de situações
que envolvam o uso de substâncias alucinógenas, ocasionando um evento de cunho
violento, absurdo ou ridículo. Trata-se de notícias sensacionalistas narradas pelo
psiquiatra incumbido da pesquisa, Dr. Sérgio, justificando-as como exemplos ilustrativos
da formulação do problema de sua pesquisa: descobrir se o uso de entorpecentes é a
causa da violência na sociedade paulista. Os jlashbacks das notícias são formuladores
da idéia de que aquelas cenas doentias foram catalisadas por algum entorpecente.
Para tanto as estratégias delineiam-se sobre imagens degradantes, para causar o
incômodo de uma agonia, pois querem simbolizar uma auto-flagelação, sentido captado
nos planos de detalhe de viciados tomando heroína no pé e no antebraço.
As atrocidades realizadas após o ritual de uso da droga também adentram essa
moldura de mal-estar, por convocar a antipatia e o repúdio do espectador através da
violação de certas condutas morais: estupros, perversões sadomasoquistas, adultérios
comprados, assédios machistas e assassinatos impunes, expressam o caráter vil e
desumano do viciado. A impressão que sobra ao final desses curtos jlashbacks é que
os personagens viciados sofrem de certa irracionalidade, algo que age como uma
piada, um estímulo cognitivo de sarcasmo- toma-se risível, pelo óbvio rebaixamento
dos personagens.
Osjlashbacks constroem um padrão de personagens para representar o normal
subvertido pela substância, delineado na dimensão do estranho, do insensato, do nonsense - e a música, algumas vezes, reforça essa idéia ao oferecer um sentido distinto
ao conotado pelas imagens. As relações entre os personagens têm propósito único de
gerar conseqüências negativas, para um dos lados, papel geralmente exercido pelas
personagens femininas, talvez as únicas vítimas, em um filme marcadamente machista,
sensação corroborada por doses de erotismo. Nota-se que desde o início quando uma
personagem feminina é posta em cena, há um intuito erótico para, em seguida, atribuirlhe uma posição de vítima de seu vício ou dos maus-tratos de um viciado.
A relação com a irracionalidade mencionada vai se intensificando gradualmente,
ficando mais forte à medida que os relatos se sucedem e mostram relações com
animais irracionais reais para parear os personagens a suas categorias, noção
confirmada com o uso expressivo da linguagem: a montagem intercala algumas
metáforas visuais para que o espectador transfira um animal e seu atributo para o
lugar do personagem. Em um dosjlashbacks, o dono de uma agência de trabalhos
domésticos, usuário de cocaína, seduz uma jovem que procura trabalho, sendo que a
estratégia é evidenciar o abuso de poder correlacionado às características animalescas
postas em cena (veja figura 1). Primeiro vê-se um porco comendo, quando a vítima
TERROR, HORROR
37
sente nojo do empresário almoçando; em seguida a analogia visual é de um cachorro,
por suas investidas sedutoras; e por fim surge um cavalo quando o viciado força a
jovem a fazer-lhe sexo oral. A estratégia cognitiva indica uma rota associativa entre o
uso de drogas, a bestialidade humana e as ações absurdas, violentas e sexuais:
construções retóricas providas pelos flashbacks das notícias sensacionalistas que
têm função sarcástica nessa primeira parte da narrativa.
Figura 1: Metáforas visuais de bestialidade
O som nessa seqüência desempenha um papel importante, primeiro por revelar
os pensamentos e motivações dos personagens - adicionando-se um leve efeito de
eco para 、ゥウエョァオセャッ@
do som da voz-, isto é, não se esconde as intenções perversas
ou medrosas das personagens. Aludir ao caráter sarcástico da banda visual é uma
questão ditada pelos ruídos onomatopéicos que incidem sobre as imagens de animais,
como se fossem um barulho engraçado de desenho animado- "tooin!" -, pois eles
funcionam como um bordão sonoro, indicando o momento do riso na gag, um apelo
sonoro simplório que solicita a intervenção do apreciador para que ele ria da metáfora
ou da estratégia sonora medíocre composta.
Os váriosjlashbacks que compõem essa primeira parte da narrativa enfatizam
o mesmo assunto com diversos exemplos, parecem não se desenrolar naturalmente,
contemplando uma falta de economia narrativa pelo excesso de mostração dessas
cenas ridículas e satíricas. A redundância que aparenta é privilegiada ao invés de uma
sucessão mais harmoniosa e progressiva, uma mensagem enfática reafirmada de
diversas maneiras pelo programa cognitivo.
A ARRITMIA HIPERBÓLICA
DO PESADELO PSICODÉLICO
Na segunda parte da obra, o preto e branco que reinava no filme e conduzia a
narrativa, dá lugar ao colorido saturado que ambienta os pesadelos lisérgicos dos
quatro viciados. A maioria das imagens da segunda parte foi realizada em estúdio,
ESTUDOS DE CINEMA
38
para privilegiar um uso mais alegórico da maquiagem e do cenário, onde a iluminação
forte e carregada desempenhá papel importante na composição do quadro. Filtros
amarelados e avermelhados incrementam os movimentos da câmera de ombro, que
adiciona estranhamento às alucinações. A seqüência se delineia por estímulos sensoriais
onde promove um espetáculo de cores, formas e ruídos, porém a desorganização
narrativa, provida pela montagem desordenada dos pesadelos, estabelece uma
desorientação da seqüência para solicitar a contemplação da maquiagem e dos cenários
plásticos. Empenhados em dirigir a apreciação através da precariedade que as figuras
deformadas e caricatas exprimem (veja figura 2), a representação do gore e do
fantástico é feita de modo paupérrimo, o que agrega nuances risíveis à seqüência,
principalmente pelo ritmo hiperbólico adotado na mostração.
/
Figura 2: Deformidade precária das figuras monstruosas do pesadelo
Realizar, os delírios com filme colorido, possibilita não só segregar de modo
expressivo o espaço onírico, mas também confere maior destaque para a apreciação
das imagens deformadas. Um espaço configurado psicologicamente pela representação
de Zé do Caixão que, nesse caso, toma-se um delírio e não é mais apenas o coveiro
assassino das outras obras: é um monstro imaginado, o arquiteto do pesadelo. A
atmosfera alegórica que a seqüência impõe não conduz a analogias ou metáforas, não
parece sugerir outra representação simbólica que não seja sua própria artificialidade: a
abstração indaga o falseado das cenas. Para tanto a saturação da cor acentua as
silhuetas na cenografia estilizada e nas figuras disformes mostrando nitidamente a
falsidade do artifício, disso decorre a percepção do risível que domina a seqüência,
originado das formas caricaturais e desproporcionais, incumbidas em provocar o
esdrúxulo da película.
Pode-se perceber essa característica nas reestruturações anatômicas, de motivos
surrealistas, vistas durante o ataque dos homens-nádegas. A maquüigem feita nas
nádegas dos atores, aliada à eficiente fotografia e iluminação, deixam as figuras estranhas
à primeira vista, quase irreconhecíveis devido à aparente desorganização anatômica,
porém ainda conservam feições familiares. Trazem consigo elementos repulsivos e
ao mesmo tempo requerem uma dose de humor. O progrania sensorial é empregado
para destacar esse filme do universo genérico, transgredindo as convenções
características do horror, para abrir espaço a estados emocionais conflitantes entre o
asco, arepulsa, o risível e o ridículo, efeitos possíveis advindos das figuras monstruosas
que desfilam pelos pesadelos dos viciados.
TERROR, HORROR
39
O som toma-se confuso e desordenado pela sobreposição múltipla de músicas
sombrias, ruídos de gritos, gemidos e gargalhadas. A desarmonia promovida pelo
conflito sonoro alcança o exagero e evidencia o uso excessivo dos recursos filmicos:
o acabamento mal feito dos cenários, as atuações amadoras, as maquiagens caricaturais,
os efeitos explícitos de trucagem, a não narratividade, todos os materiais empregados
improvisam falsamente o que já é naturalmente falso, ficcional. As imagens prolongamse na trama gratuitamente sem preocupação formal com a economia narrativa, exigindo
que a percepção sensorial canalize atenção sobre os aspectos irreais. Algo que provoca
certo humor pela contemplação das imperfeições que falseiam as estratégias da obra.
Da evidência do fajuto inverossímil nas seqüências é que decorre o estímulo para
solicitar a inferência do espectador.
O desvelar filmico resolve-se através do rompimento com os modos apurados
e tácitos de inspirar-se no real, para moldar uma estratégia que se apóia na articulação
de uma realidade mal feita, artificializada para não se ancorar nos domínios verossímeis,
degenerada para não ser crível em outro âmbito que não seja o da falsificação
discrepante. O horroroso da obra é ofuscado pela pobreza das composições, apoiadas
nos excessos cênicos e narrativos, fazendo com que o filme perca a seriedade que o
gênero impõe e se defronte com a falsidade esquematizada nos recursos, deixando
margem para encantos advindos com humor. Revela-se um filme que apela a seu
próprio universo gera ti v o para distorcer o gênero e convocar outros estados de ânimo
no apreciador, como o riso do burlesco e do ridículo. A superexposição da figura de
Zé do Caixão e de Mojica deixa transparecer a solicitação da obra para que o espectador
possua certa familiaridade com a filmografia do artista, ou melhor, pede algum
cqnhecimento do estilo do cineasta para que ele possa desfrutar da irônica desarmonia
estratégica dos recursos filmicos e apreciar a desfiguração do programa de horror.
CONCLUSÃO: CONTRADIÇÃO COGNITIVA,
AUTOPROMOÇÃO E REAPROVEITAMENTO
Após a enxurrada alucinatória, o Dr. Sérgio mostra que ainda que os pesadelos
pudessem ser de fato frutos do efeito químico com LSD, o experimento foi feito com
água destilada ao invés de qualquer droga. Os delírios das cobaias foram auto-sugestões
produzidas por um efeito placebo de Zé do Caixão. Uma experiência psicodélica com
LSD consistiria em uma jornada a outros reinos da consciência. Entretanto, a droga
não produz a experiência transcendental, ela age meramente como uma chave química
capaz de liberar o sistema nervoso de seus padrões e estruturas normais. A chave
química usada no experimento para atingir outros reinos da consciência, proposta
pelo cientista, não é o LSD, mas o instinto humano -tema recorrente na filmografia
de Mojica desde A meia-noite levarei sua alma (1964). Desmentir uma formulação
estabelecida na primeira parte do filme é estratégia comum na obra de Mojica, mas
40
ESTUDOS DE CINEMA
geralmente esse fator é trabalhado na punição do monstro moral, Zé do Caixão, e. na
contradição de suas crenças e objetivos.
Outra marca evidente que a obra invoca pode ser entendida como uma
autopromoção: seja através dos inúmeros produtos do artista/ mostrados durante a
narrativa, seja pela figura constante de Mojica desempenhando diversas funções
cênicas. Quer dizer, Mojica é também um personagem nesse filme, consultor da
pesquisa do Dr. Sérgio, ele participa do debate sobre o experimento no programa
televisivo ficcional "Um clarão na escuridão 1', mostra-se como um cineasta
controverso que faz questão de ser distinguido de sua criação. De fato há um
personagem desempenhado por ele em cada tempo narrativo: antes dos créditos iniciais,
Zé do Caixão profetiza e promete em seu monólogo a experiência estranha que será
sua obra; depois temos o personagem Mojica, consultor e debatedor do programa
televisivo ficcional; esse personagem também é visto por outro jlashback de uma
entrevista real reaproveitada pela montagem, ocorridana TV Record em 1969 no
programa Quem tem medo da verdade?
Além disso, os reaproveitamentos compactuam com a aparência retalhada da
película, isto é, aproveitar cenas de Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967),
reciclado como um parâmetro de estímulo externo para as cobaias do experimento, é
um modo de construir a mise-en-scene com sobras. Mostram-se também as revistas
em quadrinhos do personagem Zé do Caixão- aliás, os créditos iniciais são sobrepostos
à história em quadrinhos Noite Negra, publicada na revista O estranho mundo de Zé
do Caixão n.l, de janeiro de 1969. Os pôsteres de seus filmes também completam
essa composição narcisista, juntamente com uma marchinha de carnaval feita por
Mojica na década de 1960- O castelo dos horrores-, executada por uma fonte justificada
visualmente em um dosjlashbacks que correlacionam drogas às perversões sexuais.
Essas representações recicladas de outras obras parecem uma homenagem a
si mesmo e a seu trabalho. Tal característica ajuda a evidenciar as variações feitas no
universo do gênero para eleger uma intenção mais pessoal, uma forma avessa de
narrar a si mesmo barbaramente. A obra fala de seu cineasta, mas não de cinema, não
é um discurso metalingüístico sobre a criação cinematográfica do autor. É um modo
de representar a precariedade salientada na obra através de reciclagens do material do
próprio autor, enquanto agente intertextual. O primitivismo das imagens não engana o
apreciador, é uma prestidigitação espontaneamente deturpada cujo truque fomenta
não só a percepção estética tosca da representação, como também a interpretação
hilária estabelecida entre as estratégias do filme e a condição explicitamente promocional
motivada pela overdose figurativa de Mojica e Zé do Caixão.
2. Além do filme reciclado na narrativa, Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967), desfilam pela
tela outros artefatos artísticos como histórias em quadrinhos e discos musicais, e ainda mídias
promocionais como pôsteres e cartazes.
TERROR, HORROR
41
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CORPUS FÍLMICO
O despertar da besta I Ritual dos sádicos (1969), Brasil, P/B e colorido, 91 min.
Direção: José Mojica Marins
Roteiro: Rubens F. Lucchetti e José Mojica Marins (argumento)
Produtor: José Mojica Marins, GiorgioAttili e George Mishel Serkeis (Multi Filmes)
Editor: Luiz Elias
Diretor de fotografia: Giorgio Attili
ALTERIDADES
Revendo A grande cidade, de Cacá Diegues:
o orfismo às avessas da periferia
MARIA CECÍLIA DE MIRANDA
N.
COELHO
(PUC-SP/USP) I
2
NESTE ARTIG0, pretendo analisar a presença e o significado do tema órfico
emA grande cidade (1966), de Cacá Diegues. Minha interpretação do filme se apóia
na visão desta obra como uma reação ao famoso filme Orfeu Negro (1959), de Marcel
Camus. A inversão (e, às vezes, subversão) de certos elementos no filme de Diegues,
como a centralidade da protagonista feminina (Luzia/Eurídice), a escolha de um nome
como Jasão, para o frágil personagem masculino, a música de Villa Lobos e a visão
realista do cotidiano da periferia, são índices, a meu ver, da crítica ao olhar estrangeiro
presente no filme de Camus, que havia representado de modo idealizado a vida na
periferia do Rio de Janeiro, ao levar para a tela o famoso casal Orfeu e Eurídice de
maneira romântica e desvinculada de elementos da história, tal como transplantada
para a favela carioca na peça 01jeu da Conceição. Vale notar que, recentemente, à
época do lançamento de O maior amor do mundo (2005), ao ser perguntado sobre o
tema órfico nos filmes A grande cidade, Orfeu e Um trem para as estrelas (lembremonos, aqui, do saxofonista Vinícius perambulando pela cidade do Rio em busca da
namorada Nicinha), o diretor revelou "gosto muito deste mergulho no inferno, desse
arriscar em nome do amor. Não se constrói a utopia sem risco nem sacrificio e acho
que é isso que me atrai no Orfeu"(DIEGUES, 2007: s/p)
Ao adaptar o antigo mito grego para o contexto da cidade do Rio de Janeiro
nos anos sessenta, o diretor operou várias inversões, não apenas pela renomeação
dos personagens mas pela troca de papéis, já que Luzia é a figura órfica a descer ao
I. Doutora em Letras Clássicas e mestra em filosofia (USP). Este trabalho integra uma pesquisa mais
ampla sobre estudos da antigüidade e cinema.
2. A primeira versão deste texto, apresentada na mesa Cinema e Periferia teve o nome A catá base de
Luiza ao inferno de Jasão.
46
ESTUDOS DE CINEMA
inferno para buscar seu noivo Jasã?. Destaca-se, de imediato, a mistura de matrizes
culturais diversas nesta adaptação "antropofágica" e "selvagem" - termos utilizados
não apenas pelo diretor, para se referir a sua releitura do mito grego (veja DIEGUES,
1968: 2, e CHAMIE, 1996: 109). Essas diferentes matrizes podem ser identificadas,
creio, tanto pelo subtítulo do filme -As aventuras e desventuras de Luzia e seus três
amigos vindos de longe-, que remete à literatura de cordel, como pela escolha dos
nomes das personagens, que giram em torno da protagonista Luzia (Anecy Rocha).
São eles Calunga (Antonio Pitanga), representando a matriz cultural africana, Inácio
de Loyola (Joel Barcelos), representando a tradição ibérica (católica), e Jasão (Leonardo
Vilar), representando a tradição grega (pagã), personagem cujos valores heróicos não
se adaptam à cidade grande, como é o caso das duas outras personagens masculinas.
Se, por um lado, todo mito permite adaptações e alterações, cada vez que é
narrado (ritualizado)- e aí reside sua força, alguns elementos devem permanecer. No
caso do mito de Orfeu, um elemento central é a presença do inferno, seja ele onde for
- e no filme, esta referência é explícita nas falas das quatro personagens. Logo no
início, Calunga, ao ser censurado por Luzia, por ter furtado dinheiro do dono de uma
barraca de feira e ameaçado pela jovem, recém-chegada do interior de Alagoas (e que
ele ciceroneia) de que iria ''para o inferno", responde: "já estou nele. Não está
sentindo o cheiro? Bota o cheiro para dentro que você até se acostuma. Vira o que
você pensar, até perfume francês. Respira! Bota o inferno para dentro de você."
Inácio, ao contar sua história de retirante vindo da Paraíba, diz ter sido enxotado de lá
por um "seca do inferno", mas paradoxalmente, deslocado na cidade, onde trabalha
como pedreiro e se distrai ouvindo Roberto Carlos no seu rádio de pilha, sonha em
voltar para o sertão, reencontrando paz para sua alma, atormentada pelos
comportamentos pecaminosos da cidade. Jasão, por sua vez, é o mais eloqüente ao
falar a Luzia que, por causa dela, "não queria mais ficar sepultado na poeira do inferno"
(do sertão), porém, percebe logo que saiu de um inferno para viver em outro e, pior,
de vaqueiro valente, transformou-se, na cidade, em bandido, a esconder-se na periferia.
Se no início sua razão era apenas poder matar a fome, depois foi porque se impregnou
com o sangue - assim como Eurídice ficou presa ao Hades após comer as sementes
de romã- , bem como com a raiva que desenvolveu nele um ódio ao povo, contra o
qual se revolta por sua incapacidade de mudar a estrutura de classe corrompida que
faz a cidade funcionar.
Luzia, com este nome de santa protetora dos olhos, vê tudo e transita entre
estes três homens que vivem na periferia. No entanto, por ela trabalhar como doméstica
em uma casa de classe alta, convive com os dois universos sociais e culturais,
percebendo suas fissuras e interações. Sintomática é a cena em que serve aos
convidados de seu patrão, um escritor, enquanto ele fala dos famosos crimes de um
vaqueiro nordestino, que se transforma em mito, no discurso literário e jornalístico. A
seus três amigos, Luzia fará sempre uma mesma pergunta: "Você tem medo?",
ALTERIDADES
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parecendo, ela mesma querer exorcizar seu próprio medo oriundo da tarefa que ela se
põe a sim mesma: resgatar seu noivo Jasão para outra vida, fora do inferno da grande
cidade. Jasão é uma personagem particularmente interessante, a começar pelo nome,
que remete a uma figura tão famosa e polêmica da mitologia grega. Creio que é uma
suposição adequada a de que o diretor não escolheu os nomes das personagens
aleatoriamente. Se de fato, consultar o roteiro, escrito por Cacá Diegues e Leopoldo
Serran, ver-se-á que na transposição para a tela, todos os nomes foram mantidos,
exceto o de Luzia, que era chamada de Maria. Curiosamente, havia no roteiro uma
personagem chamada Luiza, namorada de Calunga, que tanto no roteiro como no
filme aparece em uma cena breve e muito semelhante à cena de Mira com Orfeu
(enciumada com a chegada da jovem Eurídice no barracão de ensaio da escola de
samba), presente nas adaptações de Camus e Diegues da peça de Vinícius.
Voltemos, porém, ao comentário sobre os nomes. No caso de Jasão, lembremonos da mitologia grega: ele foi o chefe da expedição dos argonautas para buscar o
velocino de ouro na Cólquida, tendo sido Orfeu um dos integrantes da nau Argó,
encarregado de, por meio da música, afastar os perigos durante a expedição. Jasão
foi ajudado em sua tarefa por Medéia, com quem ele retoma à Grécia. Por meio da
famosa tragédia de Eurípides ou mesmo das adaptações desta peça para os palcos
brasileiros- seja por Agostinho Olavo, na sua peça Além do rio-Medéia Negra, ou
por Chico Buarque e Paulo Pontes, em Gota d'água, sabe-se que Jasão, apesar de
herói, é um homem fraco. Ele quebrou um juramento (sagrado) ao aceitar novas
núpcias, ainda que ele argumente que isso foi feito para o bem de Medéia e dos filhos.
Esta fraqueza de caráter é muito bem construída por Diegues, desde o primeiro
momento em que aparece. Jasão, ao ver Luzia chegando à escola de samba, foge, o
que a deixa perplexa. Posteriormente, ele dirá à noiva que "teve vergonha dela". Como
se constata no filme, ele é um vaqueiro cuja imagem aparece nas manchetes policiais
do jornais, não nos livros de cordel. Em um encontro com Luzia no barraco onde ele
mora, ela é veemente ao acusá-lo de traidor. Naquele mesmo local ela já havia, quando
estivera ali pela primeira vez, notado que Jasão havia mudado, pois não havia santos
nas paredes. Perguntando-lhe se havia deixado a religião, ela dependura na parede do
barraco o crucifixo que levava no pescoço.
Quanto à estrutura do filme no que se refere à união dos amantes (um dos
elementos do mito), Luzia, após vários percalços para reencontrar Jasão, consegue
fazer com que seu noivo acredite que é possível ele sair daquela situação infernal, mas
como nas várias versões do cinema, há um olhar para trás, um voltar quando não se
deve, inevitável, e que impossibilita o reencontro definitivo. No filme de Diegues, a
famosa estação das barcas, no centro do Rio, é onde se dá este momento trágico.
Apesar de alertada por Inácio para não encontrar Jasão, Luzia, acompanhada por
Calunga, vai ao encontro fatal. Calunga também percebe que há uma armadilha, pois
a polícia, que procurava Jasão pelo assassinato de um senador, havia descoberto o
48
ESTUDOS DE CINEMA
encontro entre os amantes. Calunga tentará, então, evitá-lo, mas inevitavelmente,
Luzia .é morta por um dos disparos dirigidos a Jasão, que também é atingido e
morto. Ambos caem, separados por uma grade, e a câmera fecha nos olhos grandes
e abertos de Luzia. Não creio que seja acaso que o cenário para este encontro fatal
seja o mesmo da cena inicial do filme de Camus, quando Eurídice (MarpessaDawn)
chega ao Rio, na estação das barcas (no caso do filme de Camus não há uma
consistência geográfica nos deslocamentos dos personagens pela cidade).
Há outros elementos que permitiriam estreitar o diálogo com o mito, mas,
mais do que isso, meu interesse é estabelecer um diálogo com o Orfeu Negro, de
Camus. Para isto é importante contextualizar A grande cidade, tanto no quadro das
releituras do mito de Orfeu no cinema e teatro, como no do cinema novo e da
filmografia de Diegues, um diretor cuja obra é marcadamente influenciada pela
tentativa de articular o tema da catábase órfica e o do cinema com questões sociais
e políticas do país. 3 Assim, no âmbito do comentário, gostaria de trazer alguns
dados que corroboram minha interpretação. Lembre-se que este é o terceiro filme
do diretor alagoano, após dirigir um dos episódios de Cinco Vezes F ave/a (1961) e
Ganga Zumba (1964), ambos tematizando exclusão e opressão. Além disso, a
recorrência do tratamento do mito de Orfeu em um período de aproximadamente
30 anos é notória: tem-se um grande número de adaptações, destacando-se nelas a
associação do mito grego à questão da cultura de matriz africana: Tennessee Williams,
Jean Paul Sartre, Mareei Camus, Vinícius de Moraes e Sidney Lumet irão, todos,
discutir a questão do racismo e da exclusão por meio de seus trabalhos. 4
3 "Como se Manuel de Deus e o Diabo tivesse chegado ao mar, se o gaúcho de Os Fuzis tivesse
formado sua consciência, Se Fabiano de Vidas Secas virasse o jornalista de O Desafio, impotente
na cidade. A grande cidade está no limite entre o cinema nacional popular e o novo cinema novo.
"(DIEGUES, 1968: 4)
4. A seguinte cronologia ajuda a visualizar a releitura do mito associado a temas políticos e culturais.
1940 Encenada Battle of Angels, de T. Williams, publicada apenas em 1945
1941 Encenada Eurydice, de Jean Anouilh
1948 Orphée No ir, poesia de afro-descententes (dentre eles, L. Segnor), lançada na França, com
prefácio de Sartre.
1950 Orphée, filme de Jean Cocteau;
1954 Orfeu da Conceição, texto da peça de Vinícius de Moraes premiado em São Paulo
1956 Orfeu da Conceição é encenada no Rio de Janeiro
1956 Além do Rio- A Medéia Negra, texto da peça de Agostinho Olavo é lançado no Rio.
1957 Encenada Orpheus Descending (versão de Battle of Angels), de.T. Williams, publicada em
1956
1959 The Fugitive Kind, de S. Lumet, baseado em Orpheus Descending é lançado
1959 Orfeu do Carnaval, de M. Camus, Palma de Ouro em Cannes.
1966A Grande cidade (C. Diegues)
1966 O Ministério da Relações Exteriores proíbe o grupo do Teatro Experimental do Negro a
apresentar a peça Além do Rio- A Medéia Negra no Primeiro Festival de Arte Negra do Senegal,
organizado por pelo poeta L. Seghor, por não considerá-la representativa da cultura brasileira.
ALTERIDADES
49
Em um texto de 1999, cujo título é "Um impacto inesquecível," Cacá Diegues
informa que era um adolescente quando assistiu à estréia da peça Orfeu da Conceição,
de Vinícius de Moraes, dirigida por Leo Justi, com música de Tom Jobim e Luiz
Bonfá, cenários de Oscar Niemeyer e atores negros. Falando do mito grego nos
morros cariocas, ele diz "Naquele mesmo ano eu já havia sofrido igual impacto
emocional e estético ao ver Rio 40 graus", e continua "o Brasil aprendia a gostar de
si mesmo ... os dois ・セーエ£」オャッウ@
marcaram definitivamente minha vida e tudo que eu
viria a fazer pelo resto dela ... em 1959, metido na sopa primai do que seria o cinema
novo, vi com muita decepção o filme Orfeu Negro ... visão exótica e turística que traía
o sentido da peça ... Me senti, na verdade, pessoalmente ofendido"(1999: s/p, site do
diretor).
À luz dessas informações, retomo ao filme de 1966, enfatizando agora, não os
temas da catábase de Luzia ao inferno e do destino dos retirantes, mas o da figura de
Calunga. Este nome é muito significativo, pois remete ao nome dado a descendentes
de escravos fugidos e libertos que formaram comunidades auto-suficientes e isoladas.
No filme, é de se pensar na relação com o filme de Camus, Calunga é o antípoda de
Orfeu (Breno Mello). Apesar do subtítulo do filme de Diegues centralizar a figura de
Luzia, em tomo da qual circulam seus três amigos, a personagem de Calunga se faz
presente ao longo de toda a narrativa, tendo sido até comparada a um corifeu de
tragédia grega (CHAMIE, 1976: 104). Creio, porém, que sua figura está mais próxima
da de Hermes (que no mito grego acompanha Orfeu em sua catábase), conduzindo
Luzia pela metrópole, atuando como um mensageiro entre várias personagens e também
negociando com algumas ·(uma das funções de Hermes): ele vende os sambas de Zé
Keti, negocia o rádio de pilha com Inácio, o empréstimo com sua amante, e, de
maneira particularmente interessante, negocia com o espectador. Lembre-se que a
abertura do filme é uma imagem estereotipada da baía de Guanabara, ao som de uma
partida de futebol. Sobre esta imagem, são transcritas citações do padre Simão de
Vasconcelos, de 1663, louvando a beleza e grandiosidade do Rio de Janeiro, tópos que
o diretor, aliás, faz questão de criticar também em relação ao Brasil. (DIEGUES,
1968: 2)
Calunga, no iníçio do filme, literalmente salta para dentro do plano do "cartão
postal" e o. faz de modo irônico, farsesco, falando da cidade; em seguida, mudando
de cenário, corre pelo centro do Rio, passando por lugares conhecidos e interpelando
pedestres na forma de uma entrevista com perguntas que parecem incômodas ao
entrevistados: "A que horas o senhor acordou?; Quantas horas trabalha?; Quantas
horas dorme?; O que faz no fim do dia?; Vai ao cinema?". Na cena seguinte, depois de
ler algumas páginas, num tom informativo e de denúncia diz, olhando para a câmera:
"A vida útil de uma pessoa de 50 anos é de 6 anos, pois o resto do tempo consome em
coisas desagradáveis ou inúteis". Com os olhos fixos na câmera, ele repete para o
telespectador as mesmas perguntas que fizera aos transeuntes. Como já observou
50
ESTUDOS DE CINEMA
Louzada: Filho, no filme, mito e ideologia (sintomático é que ao comentar o filme em
um breve artigo de jornal, Louzada utiliza cada um destes termos por doze vezes),
são discutidos em uma abordagem brechtiana, de distanciamento crítico com um
fmal sem solução. De fato, a meu ver, os tópoi clássicos, tanto da mitologia grega
como as ideologias nacionais (o Rio de janeiro como a cidade maravilhosa, o negro
trabalhador e romântico) são ironizados e desconstruídos no filme de Diegues, como
uma reação da periferia ao olhar eurocêntrico (francês) sobre o Brasil. E Calunga, o
anti"Orfeu, faz este papel de subversão da ideologia e mesmo da indústria que premiou
o filme de Camus em Cannes.
Atenção especial deve ser dada à trilha sonora do filme, se pensarmos no
Oifeu Negro como o subtexto do filme de Diegues. Em lugar da melodiosa bossa
nova, a trilha é feita com uma mistura de estilos diferentes, às vezes como uma
intervenção agressiva e dissonante nas cenas. São utilizados variados estilos e registros:
Villa Lobos, Heckel Tavares (folclorista e compositor alagoano, que transitava entre o
erudito e popular), e a música diegética de Zé Keti, de Roberto Carlos e de repentistas
(a mistura de repente com Villa tem já um precedente importante em Deus e o Diabo
(1964), de Glauber (veja NAGIB, 1996)). Chamo atenção para uma seqüência muito
impressionante, em que Inácio, na praia, tem delírios vendo Jasão cavalgando com
Luzia, na garupa, e Calunga, rindo ao longe. A esta cena onírica misturam-se fotos de
retirantes como se fosse um registro documental, confirmando aquilo que o diretor
disse: o "filme como uma ponte entre o melodrama urbano e a violenta tragédia rural".
(DIEGUES, 1968: 3). Curiosamente, parte desta cena foi identificada por Chamie
(CHAMIE, 1996: 109) como referência a uma passagem em que há um cavalo em
chamas na praia, na obra A invenção de Orfeu, poema épico-subjetivo do alagoano
Jorge de Lima, de 1952.
Retomando as inversões do mito órfico a que me referi no início, elas ocorrem
em vários níveis. Primeiro há uma distopia do mito e da sua representação "estrangeíra,
francesa." Em vez do olhar do que é considerado o centro, Diegues propõe a
perspectiva da periferia- do Brasil, em relação à Europa. No entanto, tem-se, dentro
do próprio Brasil, o olhar dos retirantes, dos migrantes sobre a grande cidade, do
sertão sobre a cidade do litoral, dos empregados sobre seus patrões, do negro sobre
a tradição da corte portuguesa (lembremos a cena de Calunga e Luzia, caminhando
pelo passeio público, como se fossem a nobreza no seu jardim particular). Calunga é
um "negro bem adaptado" ao Rio, veio da Bahia, com mais uns vinte familiares e
percebe - assim como o espectador - que "não vale nada", como fica indicado na
cena final, quando os policiais, após matar Jasão, deixam-no ir embora, pois ele "não
conta." Sua moral é ambivalente por uma questão de sobrevivência, ele não toca
violão, como Orfeu, mas é um atravessador, revende sambas. Estes elementos na
construção do personagem e do roteiro permitem, como disse antes, ver A grande
cidade, como uma reação ao filme de Camus. Concluindo, pode-se constatar um
ALTERIDADES
SI
distanciamento em relação ao mito pelo fato do diretor se recusar a fazer referências
imediatas a ele (como a utilização dos nomes Orfeu e Eurídice) para, historicizandoo e politizando-o (algo semelhante foi feito por Sidney Lumet, ao filmar a peça de
Tenessee Williams, Orpheus Descending, em 1957, no contexto da sociedade racista
sul estadunidense), tomá-lo mais poderoso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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linguagem virtual. São Paulo: Quíron, 1976. p. 102-15
DIEGUES, Carlos. A grande cidade, 1966, 83 min. P&B, Brasil, cópia em VHS a partir de
projeção na TV acabo NET/Globo.
- - - - - · A grande cidade, roteiro doado pelo diretor à Cinemateca Brasileira em
24/07/1990, 116 p. (datilografado)
- - - - - · "Carlos Diegues fala à Europa: geografia e cinema de um pais americano",
Positif, 92, 2 (1·968). reproduzido em tradução no Boletim da Sociedade Amigos da
Cinemateca,julho de 1968.
- - - - - · Entrevista/Estado de São Paulo www.estadao.com.br/arteelazer/cinema!
noticias/2006/set/06/337.htm?RSS, acesso em 01/10,2007
LOUZADA FILHO, O.C. "Consciência na Grande Cidade", Suplemento Literário, O Estado
de São Paulo, 22/0411967.
MAIA, G. "Orfeu e Orfeu: a música nas favelas de Mareei Camus e de Cacá. Diegues".
Artcultura 7, 1O(2005), 95-109
NAGIB, Lúcia. "O Sertão está em toda parte: Glauber Rocha e a literatura Oral". In Imagem
6 ( 1996) 70-83
WARDEN, John. (Ed.) Orpheus: The Metamorphosis ofa Myth. Toronto U.P., 1982, 3-230
Racismo e anti-racismo no Cinema Novo
NoEL oos SANTos
A
QUESTÃO RACIAL não ficou
CARVALHO (UNICAMP)
imune ao contexto de revisões críticas, invenções
e demarcação de fronteiras que caracterizaram os movimentos culturais surgidos nos
anos 1960. No que respeita ao cinema, especificamente ao Cinema Novo, o negro e
aspectos da sua cultura e história aparecem representados na maioria dos filmes da
sua primeira fase. É o caso de Aruanda (Linduarte Noronha, 1959-1960); Barravento
(Glauber Rocha, 1962); Cinco vezes favela (Carlos Diegues, Leon Hirszman, Marcos
Farias, Miguel Borges e Joaquim Pedro de Andreade, 1962); Bahia de todos os santos
(Trigueirinho Neto, 1961); A grande feira (Roberto Pires, 1961); Ganga Zumba
(Carlos Diegues, 1964) dentre outros; e também nos filmes que, embora rigorosamente
pouco afinados com a patota cinemanovista, gozaram algum tempo da sua simpatia
como: O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962) e Assalto ao trem pagador
(Roberto Farias, 1962) (CARVALHO, 2005: 67-9).
Em 1963, Glauber Rocha, no seu livro Revisão crítica do cinema brasileir,o
identificou nos filmes do movimento "o inicio de um gênero, 'o filme negro'" (2003:
160), antecipando o texto de David Neves, apresentado em Roma dois anos depois.
Após o Golpe de 64, os negros quase desaparecem dos filmes, que se voltaram para
a crítica à classe média (XAVIER, 1985). Pescadores, moradores do morro,
cangaceiros e camponeses foram substituídos por intelectuais histéricos e amargurados,
figuração autocrítica das posições assumidas no passado (CARVALHO, 1999). A
questão racial ganharia nova roupagem nos filmes a partir de meados da década de 70
quando as crenças nos poderes do povo foram renovadas, agora não mais na chave
do nacional-populismo, mas na do pacto pela redemocratização impulsionado pelos
movimentos sociais dos quais o movimento negro foi um dos mais expressivos.
Neste artigo faço uma análise do modo como a temática racial aparece formulada nos
contextos esboçados acima em dois artigos escritos por dois cardeais do· Cinema
Novo: David Neves e Orlando Senna.
54
ESTUDOS DE CINEMA
Em 1965 realizou-se na Itália, na cidade de Gênova, a V Resenha do Cinema
Latino-Americano. O evento reuniu intelectuais da América Latina e África. Do Brasil
participaram Glauber Rocha, Gustavo Dahl, David Neves, Paulo César Saraceni, Luís
Carlos Saldanha e Sérgio Ricardo, além de intelectuais e artistas do porte de Antonio
Candido, Arnaldo Carrilho e João Guimarães Rosa. O Cinema Novo recebeu mostra
retrospectiva e mesas-redondas foram montadas para discutir o cinema feito nos
países do que se entendia na época por Terceiro Mundo, a saber, África, América
Latina e adjacências.
Em um dos seminários, o cineasta e crítico David Neves apresentou a tese
intitulada O cinema de assunto e autor negros no Brasil, em que expunha o modo
como os cineastas do movimento entendiam a questão racial. Inicialmente o artigo
reconhecia a ausência de filmes realizados por autores negros, mas chamava a atenção
para existência de um cinema de assunto negro no Brasil. Em seguida, apontava os
três modos como o negro fora representado no cinema brasileiro até aquele momento.
O filme de autor negro é fenômeno desconhecido no panorama cinematográfico
brasileiro, o que não acontece absolutamente com o filme de assunto negro que, na
verdade, é quase sempre uma constante, quando não é um vício ou uma saída
inevitável. A mentalidade brasileira a respeito do filme de assunto negro apresenta
ramificações interessantes tanto no sentido da produção e de realização quanto do
lado do público. O problema pode ser encarado como: a) base para uma concessão
de caráter comercial através das possibilidades de um exotismo imanentes; b) base
para um filme de autor onde a pesquisa de ordem cultural seja o fator preponderante;
c) filme indiferente quanto às duas hipóteses anteriores; onde o assunto negro seja
apenas um acidente dentro de seu contexto (NEVES, 1968: 75).
Apostando no encontro entre o cinema de autor e a pesquisa cultural, o autor
avança para a definição do que entende por "cinema negro". Para tanto, fixa-se em
cinco filmes realizados até aquele momento.
Pode-se ver que, culturalmente, a manifestação de um cinema negro quanto ao
assunto foi até hoje episódica e só tem sido abordada como via de conseqüência.
Digo foi porque, no panorama cinematográfico brasileiro, emergiram cinco filmes
que serão, no método indutivo que proponho adotar aqui, as bases de uma modesta
fenomenologia do cinema negro no Brasil. Os filmes são: Barravento, Ganga Zumba,
Aruanda, Esse mundo é meu e Integração racial (idem: 75-6).
Em tomo de Barravento e Ganga Zumba, Neves constrói a maior parte do
argumento. Segundo ele, embora Barravento não tenha sido intencionalmente voltado
para a discussão do tema negro, acaba fazendo-o por "via indireta". Atenta para o
caráter religioso do filme, que remete diretamente ao negro e aos seus costumes.
ALTERIDADES
55
Chama atenção ainda para uma certa essência telúrica presente no inconsciente e no
"temperamento tão naturalista" de Glauber Rocha através do qual as teses negras
afloram.
Já Ganga Zumba é definido como o filme negro por excelência: "( ... )
inteiramente baseado e desenvolvido sobre o problema da cor. Nele, os personagens
existem em função dela; vivem, lutam, morrem e se imortalizam por ela. Num sentido
restrito esse é o único filme de assunto negro feito pelo Cinema Novo" (idem: 77-8).
Por sua vez, Aruanda correspondia-se com Ganga Zumba quanto à temática
do quilombo. Eram os únicos que tratavam do assunto no começo dos anos 1960. No
entanto, Aruanda é identificado como uma obra primitiva: "Com uma simplicidade
que lhe extirpa toda a lógica, porém, que lhe faz crescer o interesse transpirado,
Aruanda progride tosco, fazendo como um leal nordestino, da humildade, a sua arma
mais perigosa. Um quilombo no Brasil, hoje!" (idem: 79).
Sobre Esse mundo é meu (Sérgio Ricardo, 1964), Neves destacou sua intenção
de tratar de um tema anti-racista. Seleciona então quatro características do filme: "a)
primitivismo formal; b) força natural e espontânea; c) musicalidade e ritmos
contraditórios; d) problemas raciais" (idem: 79). Finalmente, sobre Integração racial
(1964), documentário dirigido por Paulo César Saraceni sobre a formação racial
brasileira, destacou a crítica à situação do negro no Brasil.
Para Neves, o Cinema Novo inaugurou um novo tratamento cinematográfico
na representação do negro em que se evitou a indiferença e a exploração do exotismo.
Misto de texto analítico e manifesto, seu argumento é de fundação e constrói fronteiras
entre o filme negro (os filmes acima), o filme indiferente à questão racial e o filme
racista. Este último corresponderia à tradição iniciada pela Vera Cruz. Para ele, os
filmes do Cinema Novo são anti-racistas porque: 1) não representavam o negro como
fizeram os outros (chanchadas, Vera Cruz) até aquele momento; e 2) produziam uma
identificação entre o realizador (branco) e os personagens negros, sem que a cor
fizesse qualquer diferença. Para desenvolver esse segundo argumento o autor toma
como exemplo o personagem Firmino (negro), de Barravento, que funcionaria como
o porta-voz do cineasta (branco). Chama a atenção ainda para a identificação do
público com um personagem negro: "Outro dado importante a ser notado é o fato de
ter o elemento escolhido para porta-voz sido um elemento de cor e o complexo processo
afetivo de identificação do público (das metrópoles, sobretudo) ter de funcionar
relativamente ao destino de um líder negro" (idem: 77).
Na genealogia cinematográfica construída por David Neves, "Moleque Tião
(1943) e Também somos irmãos (1949) (dois filmes produzidos pela Atlântida)
correspondem quanto ao tema a Barravento e Ganga Zumba. O elo de ligação é feito
através da figura de Alinor Azevedo que, segundo Neves, contribuiu para a "transição
do cinema tradicional para o Cinema Novo" (idem: 80). Curiosamente, ficam de fora
os filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 graus (1954) e Rio zona
56
ESTUDOS DE CINEMA
norte (1957), em que a representação do negro também recebeu um tratamento
inovador e que foram desde o início reivindicados pelo movimento.
Quatorze anos depois, Orlando Senna procurou sistematizar a representação
do negro no artigo Preto-e-branco ou colorido: o negro e o cinema brasileiro (1979).
Utilizando-se de metáforas raciais, dividiu a história do cinema no Brasil em três
fases. A primeira corresponde ao Cinema Branco, e vai de 1898 até 1930. Foi marcada,
principalmente, pelo etnocentrismo de um modelo branco europeu em que se evitou a
representação do negro nos filmes (SENNA, 1979: 213 ). A segunda fase é a do Cinema
Mulato, e ocorreu após a Revolução de 30. Foi influenciada pela emergência dos
paradigmas postos na década de 1930 no que conceme à questão racial, sintetizados
no livro de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, publicado em 1933. Seu ápice
deu-se com os dramalhões e as chanchadas produzidas pela Atlântida. A avaliação
desse período não é imparcial, e, como no texto de David Neves, aponta para o
caráter comercial e de exploração do exotismo dos filmes produzidos nesse período.
No alvorecer dos anos 50 o cinema brasileiro tem uma concepção meramente
epidérmica do negro: principalmente a fêmea negra (como reflexo do machismo de
nossa sociedade) é apresentada e oferecida como objeto de prazer. A incidência
dessa utilização do corpo negro cresce geometricamente da chanchada da Atlântida
até a pornochanchada dos anos 70, que ocorre na mesma época em que a 'indústria
da mulataria' se organiza e aumenta seus lucros. Em toda uma linha de comédia a
mulher negra é vista numa situação. de senzala, sempre servindo a um Senhor,
satisfazendo sua luxúria, limpando a casa e fazendo a comida (a presença de um ator
do porte de Grande Otelo nesta linha de comédia não é bastante para descaracterizar
esse tratamento - mesmo porque a lucidez, o talento e a garra dos nossos grandes
artistas negros nunca conseguiram furar o bloqueio que o cinema impõe às suas
aspirações e reivindicações). Difundindo uma imagem colonial e estereotipada do
negro - animal de carga ou objeto sexual - esta parcela do cinema brasileiro evoca
e confirma o sentido pejorativo da palavra mulato (que vem de mula) (SENNA, 1979:
215).
·A próxima fase é a do Cinema Novo, denominada por ele de "negro/povo".
Diferente de Neves, aqui a linha de continuidade é buscada nos filmes de Nelson
Pereira dos Santos. Outra diferença é que, para Senna, os filmes do Cinema Novo não
fizeram uma investigação da história e da cultura negra como se vê no texto de David
Neves.
Para Senna, o tema negro, tal como abordado nestes filmes, é utilizado como
metáfora do povo pobre, favelado e oprimido. Explica: "No que diz respeito ao negro,
a linha adotada pelo Cinema Novo é estabelecida em Rio zona norte, ou seja: denunciar
a exploração de que é vítima o negro, mas sem se deter em uma análise racial, uma
vez que o negro está englobado na massa multirracial dos pobres e oprimidos" (idem:
ALTERIDADES
57
216). Não obstante, os filmes do movimento representam uma mudança substancial
no tratamento da questão racial, principalmente quando comparados aos filmes
comerciais - aqui a contraposição é outra vez feita com relação a chanchada e aos
filmes da Vera Cruz. No entanto, o autor observa que se trata de um cinema de
esquerda, em que as representações do negro estão submetidas às lutas políticas que
marcaram o período: "Uma proposta essencialmente política onde qualquer preocupação
diversificante (como a questão racial) poderia obscurecer o verdadeiro ponto a ser
discutido - as classes sociais e a dependência" (idem: 217).
Como fizera David Neves, Senna retoma Barravento e Ganga Zumba como as
duas principais abordagens do negro feitas pelo Cinema Novo. Segundo ele: "Pelo
próprio assunto e pelo tratamento que lhe é dado, pela imagem propositiva do negro
em sua luta libertária, Ganga Zumba compõe (completa) com Barravento a indicação
ideológica básica do Cinema Novo no que diz respeito ao Negro Brasileiro" (idem:
219).
Embora o autor veja em Barravento uma discussão sobre a alienação (o que é
a regra das interpretações sobre o filme na época), levanta uma interessante hipótese
sobre o conflito entre os dois personagens afro-brasileiros principais do filme (Aruã e
Firmino). Sugere que a luta de capoeira entre os dois poderia ser interpretada como
um desafio deAruã à identidade negra de Firmino, que ficara ausente da aldeia morando
na cidade. Seria, portanto, uma forma de a comunidade dos negros pescadores testar
e manter sua identidade étnica. O conflito Aruã versus Firmino expressaria assim uma
tensão entre a manutenção da identidade dos negros e a transformação advinda da
cidade personificada em Firmino.
Senna não desenvolve sua hipótese, mas convém destacar as observações do
crítico Ismail Xavier, para quem Barravento não comporta um discurso unívoco do
tipo revolucionário, nos termos cepecistas. Ao contrário, nele oscilam dois níveis
discursivos e que atuam em pé de igualdade. A dimensão mágica e religiosa, isto é, o
espaço simbólico das crenças da comunidade contamina a dimensão racional e
revolucionária do personagem principal, Firmino. Se assim for, o dado racial não é
inconsciente, nem tampouco secundário, como aponta Neves, mas está no centro do
discurso político de Barravento. Escreve Xavier:
( ... ) quero evitar a idéia de que existe uma intenção racional que se manifesta no
esqueleto da estória, mais consciente e controlável, contraposta à expressão de
disposições inconscientes, descontroladas e irracionais, na textura de imagem e
som. Quero sublinhar exatamente o oposto: é todo o filme que se contorce para que
nele desfile a oscilação entre os valores da identidade cultural - solo tradicional da
reconciliação, da permanência e da coesão - e os valores da consciência de classe
- solo do conflito, da transformação, da luta política contra a exploração do trabalho
(XAVIER, 1983: 41).
ESTUDOS DE CINEMA
58
Já Ganga Zumba tem o mérito de fazer um "resgate pelo cinema (ou pela
cultura dominante) do peso e da projeção histórica do negro na formação do país"
(SENNA; 1979: 219).
O texto de Senna está distante dos românticos anos 1960, seu contexto é o do
final da década de 1970 em que se articulam lutas políticas gerais por democracia às
demandas específicas dos movimentos sociais e das minorias em luta por representação
(GONZALEZ & HASELBALG, 1982; GUIMARÃES, 2002). A influência dos
movimentos negros que reivindicavam uma cultura negra faz-se presente quando o
autor identifica uma tendência, a partir de 1976, do surgimento de filmes "preocupados
com uma investigação da Cultura Negra como fator substantivo" (SENNA, 1979:
222). A polêmica gerada por Tenda dos milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1976),
acusado de defender a mestiçagem e promover o embranquecimento, é sintomática
do período. Debate semelhante seguiu-se ao lançamento de Xica da Silva (Carlos
Diegues, 1976), quando o sociólogo Carlos Hasenbalg e a historiadora e ativista do
movimento negro, Beatriz Nascimento, investiram contra o filme, acusando-o de
reproduzir estereótipos grosseiros e desrespeitar a luta do negro contra esse tipo de
representação: "Não podemos concordar, entretanto, que o desconhecimento de um
povo que justamente com o branco formou a nação brasileira esteja ausente em todos
os momentos do filme, e que este se contente com o humor barato e grosseiro em
cima dos estereótipos mais vulgares a respeito desse povo"(NASCJMENTO, 1976: 20).
Senna acusa o cinema brasileiro de ser racista por fazer parte da indústria
cultural, e ligado a uma cultura de classe média das quais o negro sempre esteve
ausente. Daí sua presença como interprete, principalmente. Vê-se nos últimos anos,
porém, uma mudança com o aparecimento de realizadores preocupados com a
discussão racial e o surgimento de diretores negros. "A modificação deste panorama
nos últimos três anos é sutil se levarmos em conta a gigantesca produção de filmes
no Brasil... e a discriminação racial disseminada, em estado crônico, nas elites
intelectuais. Um dos pontos que pode tornar menos sutil esta modificação é o
surgimento de diretores negros - que nunca ocorrera antes (SENNA, 1979: 225).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do que foi exposto acima nos dois textos, destaco que a representação racial
não está deslocada da política geral dos artistas do movimento na condenação que
fazem da chanchada e da Vera Cruz, ambas identificadas como produtoras de
representações racistas. Já o anti-racismo propugnado pelo movimento está em: 1)
condenar os estereótipos raciais dos filmes anteriores; 2) ignorar o conceito de raça e
subsumi-la à categoria geral de povo; 3) tematizar aspectos da história, religiosidade
e cultura do negro no sentido da sua integração à comunidade nacional, imaginada
pelos cineastas. Evidentemente, a história e o negro aqui devem ser entendidos como
ALTERIDADES
59
criações históricas de um contexto tenso marcado pelo nacionalismo, pelas lutas de
descolonização africana e pelo movimento dos direitos civis dos negros brasileiros e
estadunidenses. Observo que o texto de Senna reflete em parte as posições políticas
dos movimentos negros da década de 1970, especialmente quando relativiza a
identificação do negro com o povo.
Já o texto de Neves afina-se com a posição do sociólogo Guerreiro Ramos,
ativista negro e um dos principais intelectuais do ISEB, que afirmou nos anos 1950:
"O negro é povo no Brasil" (1995: 200). Ramos e os outros ativistas do Teatro
Experimental do Negro (TEN), entre os quais destaco Abdias do Nascimento, por
exemplo, desde os anos 1940 advogavam a integração do negro na comunidade
nacional. Suas demandas por integração passavam pela negação do estereótipo e da
caricatura expressas no uso do blacliface, figuração inequívoca do racismo e da
negação de auto-representação. Tal integração foi buscada pelos filmes do movimento
na sua luta por uma teleologia revolucionária em que cabia ao negro o papel de vanguarda
pela libertação dos deserdados da terra. Não esquecer o peso de um pensador como
Franz Fanon na filmografia de Glauber Rocha, por exemplo.
Finalmente, o Cinema Novo construiu no período novas possibilidades de
simbolização do Brasil e do negro, e como conseqüência pavimentou o caminho para
o ingresso de uma nova geração de atores afro-brasileiros no cinema sem reproduzir
as velhas caricaturas. Alguns desses atores enveredariam para a direção poucos anos
mais tarde, como Zózimo Bulbul, Antonio Pitanga e Valdir Onofre. Mas esta já é uma
outra história.
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Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Quanto vale ou é por quilo? A presença
da raça no cinema brasileiro contemporâneo
PEDRO VINICIUS ASTERITO LAPERA
(UFF)
INTRODUÇÃO
"Nega do cabelo duro,
que não gosta de pentear
quando passa na baixa do tubo
o negão começa a gritar" 1
FOI-SE o TEMPO em que a raça era mobilizada apenas a partir do pitoresco,
como presente na epígrafe. A sociedade brasileira assistiu na última década à politização
das categorias raciais. Acompanhando a trajetória do movimento negro, cujas vitórias
no campo político - cotas nas universidades para estudantes negros e pobres,
comemorações cívicas ligadas à cultura negra, alçadas à categoria de feriados regionais, 2
aplicação do texto constitucional que prevê o racismo como crime inafiançável e
imprescritível- reinscreveram a raça como categoria discursiva e identitária, os meios
de comunicação não sairiam incólumes dessa discussão.
Artigos na imprensa escrita, ações na Justiça em decorrência do comportamento
de alguns programas televisivos, discussões em listas e em sites na internet, dentre
outros, revelaram a nova tônica concedida à questão racial. Há, ainda, a maior presença
I. Fricote, música composta por Luis Caldas e Paulinho Camafeu que, em 1985, acompanha a
ascensão do movimento axé. Fonte: http://www.construindoosom.com.br!linha_do_tempo/
1980_a_l989.htm
2. No Rio de Janeiro há os feriados de São Jorge e Zumbi dos Palmares.
62
ESTUDOS DE CINEMA
de atores negros no cinema e na televisão, em virtude do trabalho de ONGs como Nós
do morro eNós do Cinema. 3
O meio acadêmico também se viu imerso em grupos de estudos sobre a revisão
do papel do negro e do índio na sociedade brasileira, o que conduziu as pesquisas nas
áreas humanas, notadamente história e ciências sociais. Isso ajuda a revelar que a
historiografia do cinema brasileiro necessita de estudos que avaliem como as categorias
raciais mobilizadas no pensamento social e no cotidiano das massas fizeram-se
presentes nas representações fílmicas 4 e, além disso, em quais práticas sociais essas
representações estavam inseridas. 5
Afinal, a seqüência de Thesouro perdido (Humberto Mauro, 1927) em que se
alternam planos de um sapo e uma criança negra - ambos com um cigarro na boca o filme A dupla do barulho (Carlos Manga, 1953) que reúne dois cômicos alternando
representações de branquidade e negritude (Oscarito e Grande Othelo) e o documentário
Mato eles? (Sérgio Bianchi, 1982), sobre uma reserva de índios invadida por uma
madeireira, são apenas alguns exemplos retirados de um gigantesco panorama de
representações raciais veiculadas audiovisualmente.
Dotado de uma ambição muito pequena, este breve ensaio possuirá como
parâmetro o cinema brasileiro contemporâneo para tentar responder, através do filme
Quanto vale ou é por quilo? (Sérgio Bianchi, 2005), a seguinte questão: de que
estratégias discursivas os filmes brasileiros atuais se valem para instaurar uma
visibilidade das categorias raciais, afirmando ou contestando o lugar das práticas do
pensamento social em tomo destas?
Para tanto, partiremos da seguinte hipótese: as práticas discursivas ligadas à
raça presentes no filme, contrariando uma tradição apaziguadora das relações raciais,
ressaltam a dimensão do conflito (fílmico e extra-fílmico) em que elas são constituídas.
Para auxiliá-la, lançam-se outras hipóteses secundárias: o filme, ao articular classe,
raça e gênero, revisita certos discursos ligados às categorias raciais presentes no
3. Recordemos que Lázaro Ramos e Flávio Bauraqui, dois atores negros incorporados ao star system,
tiveram suas trajetórias artísticas consolidadas em filmes como Madame Satã, O Homem que
copiava e Quase dois irmãos, além do fato de que Fernando Meirelles e Kátia Lund, diretores de
Cidade de Deus, realizaram uma série de oficinas visando a formação de jovens atores negros, o
que revela o papel do cinema brasileiro contemporâneo como uma instância cultural legitimadora
das conquistas do movimento negro.
4. Um dos raros estudos é O negro 「イ。ウゥャ・セッ@
e o cinema, do antropólogo João Carlos Rodrigues.
5. Lembremos que, nos EUA, houve a vigência de vários códigos de representação- sendo o mais
famoso o Código Hays- que mencionavam explicitamente como as "raças" deveriam ser retratadas
nos filmes. No Brasil, em virtude da incipiência da realização de filmes e da fluidez das categorias
raciais, os códigos em torno das representações se tornavam implícitos, quando não "autorais",
adotando inclusive estratégias de naturalização e invisibilidade, o que dificulta- mas não inviabiliza
-uma abordagem "racial" da história do cinema brasileiro.
ALTERIDADES
63
pensamento social brasileiro e brasilianista (leia-se Skidmore, Ianni, Florestan Fernandes,
Ortiz) e desautorizam o lugar de uma outra tradição (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque);
além disso, a imagem de Brasil construída nos filmes incorpora o conflito racial,
revelando o lugar da própria nação enquanto instância legitimadora de certos tipos de
identidade em detrimento de outros.
USOS DO TEMPO NA NARRATIVA RACIAL
Quanto vale ou é por quilo? é iniciado com uma expedição de capitães-domato para resgatar escravos fugidos, mostrada em uma fotografia muito escura e em
planos fechados, sob os protestos de Joana (Zezé Motta) - negra alforriada que
possui escravos - alegando que um dos escravos era seu. A câmera em movimentoS
lentos e a montagem com poucos cortes revelam o protesto dela e de seus vizinhos
diante da casa do mandante da expedição (Antônio Abujamra), cuja acusação sumária
é "branco ladrão".
Ao explicitar um fato pouco retratado nas narrativas sobre escravidão - o fato
de negros libertos também possuírem escravos - e ao evidenciar claramente as
categorias de raça, essa seqüência indica o tipo de narrativa que será construída ao
longo de Quanto vale... : através de um jogo de ocultação/revelação, os vários tipos de
linguagens articuladas no filme (publicidade, história, direito, vídeo, televisão, etc.)
irão expor fragmentos de ações que ressaltam o aspecto do conflito nas relações de
raça e de classe.
É importante se frisar que Quanto vale... não possui um personagem que
conduz toda a história, sendo que isso se reflete na forma como o passado é retratado:
além de mudanças na fotografia (ora fica amarelada, ora escurecida), há uma instância
extradiegética que se concede a autoridade de narrar a história: uma voice over
(interpretada por Milton Gonçalves) cuja fala impostada e sem alteração de tom assume
uin ar farsesco e cínico.
Antes de se prosseguir, veja-se o conceito de representação de Stam e Shohat
(2006: 267-8):
As conotações de "representação" são ao mesmo tempo religiosas, estéticas,
políticas e semióticas. (... )A representação também tem uma dimensão estética, pois
a arte é uma forma de representação, uma mimese, nos termos platônicos e
aristotélicos. ( ...) As artes narrativas e miméticas, na medida em que representam
ethos (personagem) e ethnos (povo), são consideradas representativas não apenas
da figura humana, mas também da visão antropomórfica.
Além disso, poder-se-ia acrescentar que o conceito de representação também
pode ser utilizado em relação ao passado, revelando como este é retratado e politizado
64
ESTUDOS DE CINEMA
no tempo presente. Nada melhor do que um filme para ilustrar isso, uma vez que a
mediação exercida por este instaura no espectador uma noção de temporalidade que
articula o binômio "passado-presente".
, Colocada a questão da representação, veja-se como o passado se insere na
diegese dos filmes. Em Quanto vale... , vários fragmentos deste aparecem imersos
em uma narrativa que se liga ao presente e ao cotidiano das grandes cidades e de um
novo ator social, as ONGs. Há uma relação de contigüidade entre as duas
temporalidades, construída a partir da questão racial. Essa postura é ratificada, por
exemplo, .p.o elo entre a diretora de uma ONG e uma senhora que revende escravos
(ambas interpretadas pela mesma atriz, Ana Lúcia Torre), e na seqüência em que há a
exposição de objetos de tortura para escravos, durante a qual se revela, na montagem,
o sonho da personagemArminda (Ana Carbatti), cuja presença em uma festa (realizada
em uma favela) remete este trabalho ao tempo presente. Em resumo: Quanto vale ...
evidencia uma temporalidade superposta.
Recupera-se a discussão empreendida por Homi Bhabha a respeito das narrativas
nacionais. Segundo o autor, a nação seria "uma forma obscura e oblíqua de viver a
localidade da cultura. Essa localidade está mais em torno da temporalidade do que
sobre a historicidade ( ... )" (2005: 199) [grifos do autor]. Além disso, a nação se
constitui em uma ambivalência narrativa, entre os discursos da pedagogia e do
performativo. O primeiro se pauta pela continuidade e pela construção de uma identidade
ao longo da história; o segundo pela constante necessidade de ressignificar as narrativas
nacionais no cotidiano, explicitando a instabilidade do jogo identitário. Nas palavras
de Bhabha (2005: 211-12), cuja indagação pode nos auxiliar aqui:
As contra-naiTativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras
totalizadoras - tanto reais quanto conceituais - perturbam aquelas manobras
ideológicas através das quais as "comunidades imaginadas" recebem identidades
essencialistas. ( ... ) Enquanto um limite firme é mantido entre os territórios e a ferida
narcísica está contida, a agressividade será projetada no Outro ou no Exterior. Mas
e se considerarmos, como venho fazendo, o povo como a articulação de uma
duplicação da interpelação nacional, um movimento ambivalente entre os discursos
da pedagogia e do performativo? ( ... )A nação não é mais o signo da modernidade
sob o qual as diferenças culturais são homogeneizadas na visão "horizontal" da
sociedade. A nação revela, em sua representação ambivalente e vacilante, uma
etnografia de sua própria afirmação de ser a norma da contemporaneidade social.
Deslocada da teleologia do progresso, a nação de Quanto vale ... é constituída
através de um jogo de ironias que destitui o pedagógico de sua autoridade para conferir
ao performativo um lugar de destaque na narrativa racial. Através do par "branconegro", o filme estabelece a construção das identidades e a presença da violência na
"origem" das relações raciais. Volte-se à primeira seqüência do filme: a voice over lê
ALTERIDADES
65
urna sentença que condena a negra alforriada Joana por ofensas morais e raciais a um
senhor branco, configurando a primeira ironia do filme e contrariando a expectativa
do espectador. A isso, reforça o fato com o peso do documento, trazido à diegese por
meio da inserção de uma referência ao Arquivo Nacional.
A relação de contigüidade temporal é superposta à contigüidade racial: o negro
se constitui pelo olhar do branco e vice-versa; as instâncias de branquidade são
explicitadas no filme. Dos senhores passa-se aos diretores de ONGs e à alta elite
burocrática. A violência da escravidão é refigurada pela "mercantilização" da imagem
das minorias: o olhar de Arrninda durante a gravação de um comercial sobre meninos
negros e pobres, cuja fantasia os vê amarrados em fila - como escravos - ou, em
outro momento, em que se vê um capitão-do-mato transitando em uma festa no
Teatro Municipal de São Paulo, pode ser interpretado como a mise-en-scene do conflito
racial. Aqui, o performativo filmico (dos personagens) remete diretamente ao extrafilmico (da sociedade brasileira): a necessidade de explicitar as categorias raciais na
narrativa funda-se no desejo de se repensar a raça enquanto discurso identitário e, em
contrapartida, "devolve" ao espectador um mal-estar ocasionado pelo desmascarar
do mito da democracia racial. 6
Relacionando isso aos usos do passado, veja-se um exemplo. A voice over faz
asserções sobre o uso de instrumentos de tortura na escravidão: "o tronco é indicado
contra fuga de escravos reincidentes. Para colocar o escravo no tronco, abrem-se
suas duas metades, colocando nos buracos o pescoço e os pulsos. O tronco estimula
o espírito de humildade e subserviência, forçando a imobilidade e impedindo o escravo
de se defender de moscas ou mesmo fazer suas necessidades fisiológicas". A narração
é acompanhada de um movimento giratório do instrumento tronco, com a personagem
Arrninda dentro dele, o que contrapõe a objetividade daquela à agonia desta. O
performativo, nesse momento, explicita-se no choque entre imagem e som, o que
concede à voice over um tom farsesco e se vale do discurso pseudo-moral e didático
do século XIX para naturalizar a manutenção de uma ordem "racializada" e as
atrocidades cometidas em prol do sistema escravocrata.
A proximidade entre passado e presente é explicitada logo na seqüência seguinte,
em que há um comercial protagonizado por crianças pobres (e, em sua maioria,
negras) e a análise imediata de um gerente de marketing, Marco Aurélio (Herson
Capri), em uma reunião cujo propósito é "captação de recursos". O comercial veicula,
ao som de uma música instrumental melancólica, imagens de crianças sujas, dormindo
6. Utilizamos a palavra mito em duas acepções: na de Malinowski e o do funcionalismo, para os
quais o mito tem uma função (no caso em questão, o mito como reprodutor de uma ideologia
nacionalista que apazigua quaisquer conflitos); além do mito como lugar da farsa (tal como
entendem os movimentos sociais de base étnica, que colocam a "raça" enquanto constituinte da
hierarquia social no Brasil).
66
ESTUDOS DE CINEMA
na rua, chorando, para uma campanha de uma empresa chamada "Sorriso de criança".
A isso Marco Aurélio reage, afirmando que a "estratégia" está ultrapassada e que "a
imagem do produto deve estar vinculada ao êxito".
Reificando a miséria, 7 o discurso do personagem ratifica o marketing enquanto
o lugar de afirmação das concepções de uma elite burocrática, intelectual e financeira
na manutenção de uma ordem social que oblitera seu aspecto racial. Aliás, essa lógica
da reificação aparece em vários momentos no filme, configurando uma "ponte" na
relação passado-presente: na senhora que revende escravos (Ana Lúcia Torre), no
momento da compra, tocando em dois escravos como se avaliasse um objeto; na
diretora da ONG (interpretada pela mesma atriz) gravando depoimentos de mendigos
que vomitam após ingerir um líquido verde (um suposto "extrato natural"), o que é
corroborado na estética do próprio filme, pois a imagem que mostra o desespero de
uma mendiga negra aparece em vídeo (ressaltando o aspecto de "registro").
Especificamente, Quanto vale ... , ao explicitar as instâncias nas quais o imaginário
coletivo se constitui (televisão, publicidade, música popular, história, sistema
educacional, etc.), revela a dimensão de código e de seleção assumida na encenação
do passado nacional e, mais que isso, que tipos de interesse/ideologia pautam as
narrativas e contra-narrativas nacionais.
ENTRE O COTIDIANO E A POLÍTICA:
REPRESENTAÇÕES DA RAÇA NO CINEMA
BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
No livro O Brasil visto de fora, o brasilianista Thomas Skidmore, por meio de
uma revisão do pensamento social brasileiro que arregimentou o debate a respeito da
formação, de uma identidade nacional nos séculos XIX e XX, confere às categorias
raciais um lugar central em sua argumentação. Infere que a raça sempre esteve presente
no pensamento teórico sobre a realidade brasileira, para tanto realiza um estudo desde
os defensores da tese do branqueamento do século XIX e início do século XX (Romero;
Nina Rodrigues; Oliveira Vianna; Paulo Prado) até a revisão do mito das três raças
pela Escola Paulista (Florestan, Ianni, F emando Henrique Cardoso) e posteriormente
reforçada por outros intelectuais (Darcy Ribeiro; DaMatta; Ortiz), passando pelos
estudiosos, construtores deste mito (Freyre; Buarque) e seus difusores (Vianna Moog).
Evidentemente, não o faz sem recordar ao leitor os usos políticos dessas teorias
raciais.
7. Valemo-nos do conceito de reificação de Marx, tal qual explicado por Peter Berger e Thomas
Lückmann em A construção social da realidade.
ALTERIDADES
67
Uma discussão particularmente interessante a este trabalho refere-se à relação
entre raça e classe. Retomando uma reflexão iniciada por Florestan Fernandes na
década de 1960, Skidmore elenca algumas razões para o obscurecimento do estudo
das relações raciais: a) a postura da elite em reafirmar o mito da democracia racial; b)
a repressão oficial, encampada desde o governo Vargas até a ditadura militar, o que
restringiu a atuação de movimentos ligados às minorias étnicas; c) a centralidade que
a esquerda brasileira atribui à classe - tanto no estudo quanto na transformação da
sociedade- e, por isso, rechaçando o debate sobre raça. Essa conjuntura foi expressa,
por exemplo, na ausência do quesito raça no Censo de 1970, sendo até hoje reproduzida
amplamente nos meios de comunicação, no sistema educacional e nas políticas públicas.
Como os filmes aqui analisados ligam as práticas cotidianas e políticas às
categorias raciais? Em Quanto vale ... , a seqüência sobre a gravação de um comercial
em prol de crianças negras é clarividente: a personagem Lourdes (Lena Roque), diretora
de projetos da fictícia ONG Stiner, após ouvir a palavra pedigree sendo usada por um
membro da equipe de produção ao se referir a um garoto negro, interpela de modo
virulento o diretor do comercial. Inicia-se uma calorosa discussão sobre raça. Lourdes
afirma que o filme, colocando "75% de crianças negras, 15% brancas e 10% outros
retrata a realidade do país"; ao que o diretor lança: "E não vem se fazer de vítima pra
cima de mim só porque é negra! Eu não persigo negros!". O bate-boca é finalizado
com o diretor gritando categoricamente: "Resistindo [a contratar negros]?! Que
resistindo?! Você não pagou? Pois então: você venceu! Hoje, aqui neste set, negro é
lindo!"; e virando para um membro da equipe: "Ô Bira! Pinta todos esses moleques de
preto!".
Ironizando o lema Black is beautiful, é construída cenicamente a catarse das
personagens, enquanto responsável pela visibilidade das categorias raciais. É possível
explanar que essa catarse fílmica remete-se diretamente ao universo extra-fílmico,
vivenciado pelo espectador, uma vez que é também por meio de uma catarse que
estas práticas discursivas são mobilizadas socialmente (fato comprovado nas
entrevistas colhidas pelos cientistas sociais Luiz Cláudio Barcelos e Elielma Ayres
Machado, em pesquisa sobre jovens universitários- por ocasião da aprovação da lei
de cotas raciais - segundo as quais são comuns xingamentos de raça em discussões
durante eventos desportivos ou casualmente empreendidas na rua e no trânsito).
Ademais, poder-se-ia refletir sobre a seqüência de Quanto vale ... há pouco
descrita. Ao descrever a pretensão de Lourdes em "mostrar a realidade do país" de
modo quantitativo, o filme explicita seu próprio status de representação. Além disso,
reforça o papel do cinema e dos meios de comunicação (no caso, a publicidade)
enquanto lugar de (re)produção de ideologias e, portanto, capaz de encenar o jogo
entre o pedagógico e o performativo na narrativa nacional (aliás, as seqüências em
que se fala da questão de patrocínio às causas sociais são de imediato relacionadas ao
próprio fazer cinematográfico atual, visto que este também sobrevive apenas quando
68
ESTUDOS DE CINEMA
subvencionado pelo Estado e pela iniciativa privada). Para tanto, incorpora a essa
narrativa as "rupturas" e descontinuidades ocasionadas pela imersão de diversas
categorias identitárias, tais como raça, classe, gênero e geração.
·· A respeito das personagens negras de Quanto vale ... , Lourdes e Arrninda, eis
como 'estas são postas na mise-en-scene: a primeira, um signo referente à classe
média negra, é cínica e dotada de um discurso panfletário, cabendo a ela colocar em
destaque a mercantilização da imagem do negro como minoria étnica; já a segunda,
por meio da superposição entre passado e presente, tem seu olhar "misturado" entre
os signos da escravidão e da estratificação social atual para evidenciar seu transitar na
diegese e sua atuação "contra o sistema". Estabelece-se uma oposição entre cinismo
e ativismo no campo político (que substitui o par retórico "alienação-consciência",
caro à retórica de esquerda). Entretanto, a dimensão trágica 8 das narrativas fílmica e
extra-fílmica são entrelaçadas: Lourdes é "punida" com a demissão; Arminda,
curiosamente, é retratada em dois finais: no primeiro é assassinada por um matador
de aluguel (Sílvio Guindane) em sua casa; no outro revela seu niilismo político ao
cooptar o matador de aluguel para um plano de roubo e seqüestro.
A centralidade das instituições ligadas à "branquidade" também se faz presente
nos filmes. Quanto vale... , por exemplo, encena várias poses para fotografia: a negra
alf9rriada Joana e seus libertos; as crianças de rua (na maioria, negras); a socialite
Marta Figueiredo (Ariclê Perez) e as crianças da favela. Sobre esta última, veja-se
como o filme a mostra. Plano geral com crianças negras tendo ao fundo uma favela.
Escuta-se a voz de uma mulher: "Me dê os brinquedos, por favor". Marta aparece em
seguida na imagem, distribuindo a seu bel-prazer os mesmos. Novamente vai para o
espaço-fora-da-tela. Nele, afirma: "Você, não! Você, vem cá!". Eis que ela surge
trazendo pela mão uma menina negra. Coloca o boné neste e exclama: "Lindo!". Pega
na mão de duas outras crianças e se posiciona no meio delas para uma foto. Voice
over feminina irônica narra: "Doar é um instrumento de poder. A superexposição de
seres humanos em degradantes condições de vida faz extravasar sentimentos e
emoções". Barulho da câmera fotográfica. Corte para plano médio centralizado em
Marta. Voice over continua: "Sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade, e
por fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência!". Novamente barulho de
câmera fotográfica.
A dinâmica centro-periferia assumida nas relações sociais é incorporada à
imagem, sendo isso evidenciado em vários pontos: a) os personagens negros só ocupam
8. Aqui, trágico não aparece no sentido comumente usado (sinônimo de catástrofe), e sim a uma
narrativa que desemboca em uma situação sem saída (na tragédia grega, cabia a um Deus ex
machina dar uma solução ao conflito cênico; nas histórias atuais, entretanto, há pouco espaço
para este).
ALTERIDADES
69
a centralidade da imagem enquanto reprodutores das instituições da "branquidade"
(no caso da negra alforriada), ou enquanto objeto das mesmas (crianças de rua, cuja
seqüência de fotos é encerrada com barulho de moedas caindo); b) cabe ao poder
·branco a escolha de quem terá sua imagem veiculada (explicitada na seleção de Marta);
c) mesmo quando o negro ascende socialmente (caso de Lourdes), este o faz muitas
vezes reafirmando os valores dessas instituiÇões; d) a lógica da caridade é apontada
no filme em seu aspecto perverso de manutenção de uma rede de dependência; e) a
centralidade do poder branco é evidenciado em vários momentos (desde a foto de
Marta até as cerimônias de premiação de talentos, cuja platéia e premiados são em sua
grande maioria brancos). A essa centralidade, Quanto vale ... responde com a ironia
mordaz da voice over para, através dela, contestar o lugar dessas instituições.
CONCLUSÃO
A análise reconhecidamente limitada que se deu neste ensaio apenas revela a
necessidade de um estudo sobre a categoria "cinema brasileiro contemporâneo" e a
construção por meio dela dos vários tipos de identidade.
A obra aqui avaliada reitera o lugar conferido às categorias raciais na diegese
de muitos filmes brasileiros atuais. Para tanto: a) evidenciam uma temporalidade
superposta no conflito racial; e encenam b) uma hierarquia social que classifica
racialmente os sujeitos e que, portanto, distribui bens e oportunidades de acordo com
essa categorização; c) o caráter relaciona! do par "branco-negro", uma vez que estes
não são percebidos ontologicamente, mas apenas na medida em que um constitui o
outro nas práticas cotidianas e na disseminação do poder; d) as práxis políticas que
mobilizam a raça em nome de projetos de transformação social.
No tocante aos discursos raciais, é possível deduzir que existe um conjunto de
filmes brasileiros atuais que se valem de sua diegese para explicitar o lugar destes na
estratificação social brasileira, sendo que alguns títulos merecem destaque: Yndio do
Brasil (Sylvio Back); Brava gente brasileira (Lúcia Murat); Narradores de Javé (Eliane
Caffé); Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi); O prisioneiro da grade de ferro (Paulo
Sacramento).
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Éditions du Seuil, 1984.
SCHWARCZ, Li lia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
SKJDMORE, Thomas. O Brasil visto de fora. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocéntrica. São Paulo: Cosac e
Naify, 2006.
A representação da mulher em
Maridinho de luxo ( 1938), de Luiz de Bàrros
LuízA BEATRIZ AMORIM MELO ALVIM
(UFF)
INTRODUÇÃO
MARIDINHO DE LUXO é uma comédia realizada por Luiz de Barros, na Cinédia,
em 1938. O Brasil começara, a partir da criação dessa produtora em 1930, a realização
de filmes em estúdio, inspirando-se no modelo americano de Hollywood, que vivia
então a fase de consolidação de sua estrutura e modo de produção.
A Cinédia foi desenvolvida a partir do grupo que criara a revista de cinema
Cinearte em 1926. Liderado por Adhemar Gonzaga, esse grupo tentava transplantar
para o Brasil as suas reflexões sobre o cinema americano e promoveu o início de um
star system brasileiro.
Com o surgimento do cinema sonoro e da Cinédia, a comédia de costumes,
inspirada nas comédias teatrais, foi um gênero bastante comum no cinema brasileiro.
Maridinho de luxo é, por exemplo, baseado na peça teatral Compra-se um marido, de
José Wanderley, cujos textos foram fundamento de muitos filmes, entre as décadas
de 30 e 50. O próprio diretor de Maridinho de luxo, Luiz de Barros, era, antes de ser
uma das figuras mais presentes no cinema brasileiro, um homem de teatro. Tendo
estudado cenografia em Milão, paralelamente à sua carreira na produção
cinematográfica, Luiz de Barros foi responsável por muitos cenários e figurinos do
teatro de revista carioca, montou companhia teatrais e escreveu peças (RAMOS &
MIRANDA, 2000).
A presença importante da comédia de costumes no cinema brasileiro é também
uma ressonância dos anos 30 em Hollywood, onde ocorreu, a partir de 1934, um
"ponto de virada", na denominação de James Harvey ( 1987). São as comédias screwball,
marcadas pelas disputas entre homens e mulheres, mas sem deixar de lado uma boa
ESTUDOS DE CINEMA
72
dose de romance (1987). Esse jogo de disputa também faz parte de Maridinho de
luxo e promoveria um certo questionamento do papel da figura feminina.
Pretende-se, então, no presente trabalho, analisar o quanto essa representação
da mulher tinha de vanguardista em relação às heroínas comuns de melodramas do
star system, às próprias heroínas das comédias screwball e em relação à correspondente
personagem da peça de teatro para se concluir, enfim, se a personagem de Luiz de
Barros se constituiu ou não num avanço para a representação feminina no sentido da
teoria feminista.
MARIDINHO DE LUXO, STAR SYSTEM
E COMÉDIAS SCREWBALL
O antropólogo Edgar Morin (1972) situa entre os anos 30 e 60, a fase de ouro
do star system hollywoodiano, que se caracterizava pela presença de uma star feminina
possuidora do binômio beleza-juventude. A mulher estaria nesse sistema, segundo a
teórica LauraMulvey (2003), submetida a um modelo que satisfizesse o olhar masculino,
proporcionando-lhe um prazer visual através da codificação do erótico dentro da
linguagem da ordem patriarcal dominante. Assim, as estrelas jovens, geralmente loiras,
de lábios carnudos e vermelhos de batom, com uma elegância e cabelos impecáveis,
seriam o arquétipo feminino ideal, objeto de um olhar voyeur masculino. Elas estariam
na tela "para-serem-olhadas".
A personagem principal de Maridinho de luxo, Patrícia (Maria Amaro), encaixase bem nesse modelo: tem apenas 19 anos (segundo Morin, a média de idade do star
system ia de 20 a 25 anos), é loira (portanto, um padrão americano), bonita e elegante,
com camisolas e vestidos que poderiam figurar em qualquer filme americano da época.
Porém, logo no início, o filme mostra que é uma comédia e que toma a ironia dos
valores como argumento. Patrícia é uma mocinha casadoira, mas, longe de sonhar
corn o príncipe encantado, ela quer "comprar" um marido em quem possa mandar.
O marido, no caso, é Marcos, vivido pelo ator cômico Mesquitinha, baixinho,
franzino, portanto, sem nenhum atrativo físico de galã que pudesse provocar suspiros
de uma jovem mocinha. Patrícia e sua tia fazem escárnio do amor romântico: "O
amor é um velho lendário como Papai Noel", diz a tia, concordando com a decisão da
sobrinha. Quando Marcos pergunta ao pai dela por que, sendo jovem e bonita, Patrícia
preferiu se casar daquela maneira, ele responde que é "porque ela não acredita no
amor, prefere comprar um marido".
Assim, Patrícia não tem ilusões quanto ao casamento ideal, aspirado como
bem-maior por todas as mocinhas, cinematográficas ou reais, da época (e, diria
também, de grande parte das atuais). Diz, com toda convicção, que ele é um "mal
necessário" e que por isso quer apenas um "marido convencional".
Há em todas essas afirmações uma crítica à idéia do casamento como uma
obrigação e que somente por meio do qual, a mulher teria uma função na sociedade.
ALTERIDADES
73
Essa idéia está ainda mais presente na peça que originou o roteiro do filme, Comprase um marido, de José Wanderley, representada pela primeira vez em 1933. Nela,
Patrícia é um pouco mais velha, tem 22 anos, idade em que, na época, as moças se
arriscavam a ficarem "encalhadas", e portanto, sem aceitação social, caso não tivessem
um pretendente em vista. Na peça, Patrícia afirma que o motivo principal para querer
se casar é vingar-se de sua amiga de infância, Zélia, que zombava dela por ainda estar
solteira. Zélia mesma casara-se com Ernesto, um tipo ridículo, só por medo de ficar solteira.
Luiz de Barros deve ter preferido não evocar esse aspecto e dar mais importância
à questão do dinheiro de Patrícia, que lhe permitia estar acima do bem e do mal para
realizar sua vontade. Assim, ela se mostra bastante cínica quanto ao poder da riqueza
sobre os sentimentos, afirmando que "com dinheiro tudo se compra, até um marido".
Essa "sacudida" nos costumes pode ser considerada por si só como
característica do gênero comédia, de que Maridinho de luxo faz parte, mas era,
acima de tudo, um aspecto marcante das comédias screwball dos anos 30 em
Hollywood, as quais serviram de modelo e inspiração para o filme de L · :de Barros.
Screwball é uma gíria americana que significa "excêntrico, fanático, mL_;;o". Assim,
essas comédias malucas tratavam de situações fora do contexto normal da época, de
personagens excêntricos.
Era comum que essas comédias partissem de um encontro amoroso que
envolvesse um conflito de sexo e classe: muitas vezes a mulher era uma herdeira rica,
excêntrica e determinada, que impunha suas decisões e seu ritmo ao homem, geralmente
apresentado como anti-herói, por exemplo o jornalista desempregado interpretado
por Clark Gable em It happened one night (1934), de Frank Capra (MOINE, 2003;
HARVEY, 1987).
É bem essa a situação do casal Patrícia-Marcos de Maridinho de luxo, em que
Luiz de Barros traz como contribuição brasileira a figura do malandro da praça
Tiradentes Mesquitinha, que, bem diferente de Clark Gable, estava completamente
fora dos padrões de galã e toma a comédia da Cinédia mais escrachada que as comédias
screwball de Hollywood.
É diferente também neste aspecto da própria peça de José Wanderley. O Marcos
da peça, por mais que a fala dos outros personagens indique que ele é feioso, está
mais para Clark Gable que para Mesquitinha. É um bacharel em direito, desempregado,
um tipo intelectual irônico e sofrido. Note-se bem a descrição que o autor da peça faz
dele: "É um homem dos seus 30 anos. Veste com relativa elegância. Em suas feições
inteligentes, há vestígios de noites mal dormidas e de· grandes decepções. Todo seu
drama íntimo de revoltado vive e se agita em suas atitudes independentes e altivas.
Apesar de tudo tem o segredo de transigir com a vida". A parte cômica da peça ficava
muito mais com o personagem de Ernesto, marido de Zélia. No filme, Luiz de Barros
diminuiu a "carga romântica" da situação e aumentou o seu componente cômico ao
chamar Mesquitinha para dar vida a Marcos.
ALTERIDADES
75
possuidora de um sex-appeal semelhante ao da femme fatale, mas que, ao final do
filme, revela-se tão pura e generosa como uma virgem inocente e casadoira. Assim é
Patrícia, que de bela megera cínica, transforma-se em crente adepta e sujeita ao amor
romântico, cristalizado pelo casamento.
O próprio happy end, característico do star system, corresponderia a uma
visão androcêntrica. Anne Higonnet (2002) observa que os happy ends colocariam as
mulheres no seu justo lugar na ordem patriarcal: na imagem final congelada do beijo,
com a mulher sendo enlaçada pelo herói masculino.
Luiz de Barros não chega a ir tão longe a ponto de mostrar a bela Maria Amaro
sendo beijada por Mesquitinha (o que, mesmo sendo uma cena clássica de happy end,
seria até bastante inovador por conta das características fora dos padrões desse par
romântico), mas a partida dos dois no avião sugere, assim como o beijo, que os dois
foram "felizes para sempre".
De qualquer forma, não mostrando o beijo e nem declarações de amor entre os
dois, Luiz de Barros teria "esfriado" um pouco o componente romântico, muito mais
presente na peça de José Wanderley. Nela, não ocorre a perseguição até o aeroporto.
Patrícia cai chorando sobre uma cadeira diante da iminência da partida de Marcos e
pergunta, numa última tentativa, se não poderiam rasgar o programa (as condições de
independência no casamento que eles deveriam respeitar) e fazer outro. Marcos aceita,
contanto que ele organize o novo programa, ao que a peça se fecha com um "Marcos,
meu amor!".
Luiz de Barros poupa o espectador desse diálogo de "reorganização" dos papéis
sexuais (o título de uma segunda refilmagem da peça em 1956, Hoje quem canta de
galo sou eu, parece reforçar esse aspecto), só deixa que ele intua que houve um final
feliz do casal, serp mostrar como exatamente eles chegaram à reconciliação.
MARIDINHO DE LUXO E A TEORIA FEMINISTA
Carolyn Byerly e Karen Ross (2006) observam que a partir dos anos 30-40 até
os anos 60 os filmes produzidos por Hollywood poderiam ser colocados, em grande
parte, sob a etiqueta de woman 's film. Era a tentativa de atrair um público feminino
para o cinema. Esses filmes, como também Maridinho de Luxo, continham uma
contradição inerente, pois mostravam mulheres, como Patrícia, com um modo de
vida aparte das convenções da feminilidade respeitável, mas, ao mesmo tempo,
deixavam claro para o seu público os erros desse caminho fora do padrão. Havia
mesmo um Código de Produção que guiava a indústria cinematográfica da época e
que era responsável pela manutenção da moral e da probidade sexual nos filmes.
As autoras citam uma outra teórica, Molly Haskell que considerava ser o
woman 's film circunscrito por uma estética conservadora que encorajava as
espectadoras femininas muito mais a aceitarem do que a rejeitarem o seu status quo.
O cinema seria, portanto, uma ferramenta de manutenção da moral da sociedade.
76
ESTUDOS DE CINEMA
Parece mesmo que todos na casa de Patrícia já esperavam o enquadramento
da moça nos padrões. O pai, a tia e os empregados espreitam sorridentes atrás da
porta, aguardando o final feliz da farsa, como um público habitual de cinema que já
pressupõe que a mocinha termine nos braços do mocinho ao fim do filme. É como se
não houvesse uma alternativa possível para Patrícia e sua história que não fosse o
casamento por amor e que esse happy end fosse apenas questão de tempo.
Pode-se deduzir dessa espera ansiosa dos próprios personagens coadjuvantes
do filme por um certo desfecho (e, por extensão do público tanto masculino quanto
feminino), a dificuldade de se ter a possibilidade tanto de representações alternativas
de personagens femininos no cinema, como de saídas diferentes da norma na vida real.
O sociólogo Pierre Bourdieu (1998) considera que a ação da dimensão social
sobre o indivíduo é tamanha, que ele pouco consegue resistir a ela. Em seu livro A
dominação masculina, Bourdieu tenta entender o porquê da "surpreendente" constância
de padrões na relação entre os sexos (por extensão, pensaríamos da mesma forma
quanto à constância dos seus padrões de representação). Explica a causa desse fato
com o conceito de "violência simbólica". Simbólica, porque é uma violência invisível
para as suas vítimas, que se exerce pelas vias simbólicas da comunicação, do
reconhecimento e do sentimento.
Para Bourdieu, a dominação masculina se fundamenta numa visão de mundo
que institui a diferença biológica entre os corpos como dado objetivo da divisão entre
os sexos e da ordem sexual estabelecida. Assim, o que seria arbitrário e cultural tornase natural, "des-historicizado", dando a falsa impressão de que as estruturas sociais
sejam eternas. Os principais agentes desse processo de transformação do arbitrário
em natural seriam, segundo Bourdieu, a família, a Igreja, o Estado, a escola, assim
como outras instituições como o esporte e as rnídias.Tanto mulheres como homens
estariam submetidos, desde o seu nascimento, por todo um trabalho de incorporação
dessa visão "des-historicisante", predecessora a eles. Assim, para desmantelar essa
visão, Bourdieu considera que seria necessária uma verdadeira "revolução simbólica"
que agisse na transformação radical das estruturas e das condições sociais de produção
das disposições que levam os dominados (no caso, as mulheres) a adquirirem o ponto
de vista dos dominadores.
A teórica Judith Butler (2004), como Bourdieu, também não concorda que a
diferença sexual entre homens e mulheres implique num comportamento primordial,
natural, essencial. Com o seu conceito de "problema de gênero" (gender trouble ), o
gênero problematizado, Butler promovia a contestação da própria diferença sexual. O
"gênero" seria, na verdade, produzido por práticas performativas e de identificação.
Butler confere também, maior complexidade ao questionamento de Bourdieu
sobre o porquê da constância dos padrões ao analisar, em seu livro Undoing gender
(2004), as escolhas que um indivíduo de um determinado gênero pode tomar frente à
norma. Assim, Butler considera como real e factível a possibilidade de desfazer (undo)
ALTERIDADES
77
um gênero. É o caso de indivíduos homossexuais, transexuais, intersexuais ou,
simplesmente, indivíduos que queiram viver o seu gênero de uma maneira diferente
da·regra. Seria, por exemplo, como se a personagem Patrícia tentasse manter até o
fim o seu objetivo de vida independente com um marido de fachada.
Butler analisa, então, as conseqüências de se desfazer um gênero. Para ela,
essa experiência pode ser positiva ou negativa, dependendo da pessoa. Para uns, a
concepção normativa de gênero é tão prejudicial para a sua vida, que a tomam
impossível dentro da norma; nesse caso, o indivíduo abdica do sentimento
reconfortante de ser reconhecido pela norma, buscando uma alternativa, uma nova
maneira de se enxergar. Porém, em outros casos, a concepção normativa destruiu a
tal ponto a sua personalidade, que os impossibilita a buscar uma vida alternativa.
Nesse caso, desfazer o gênero não se revela uma boa saída, pois prevalece o desejo
de reconhecimento pela norma. Desta forma, Patrícia, como tantas outras mulheres
na vida real, preferem capitular e se enquadrar.
É interessante que o próprio Luiz de Barros tenha dirigido um filme em 1977,
Ele ... Ela... Quem?, sobre um intersexual, uma mulher (Elvira) que se descobre
apaixonada por uma colega de pensionato e, ao fazer um exame médico por conta
disso, constata-se que ela era, na verdade, um hermafrodita em que predominava a
porção masculina. Longe de discutir a fundo a problemática, analisada por Judith
Butler, de se desfazer um gênero ou a difícil situação dos hermafroditas, Luiz de
Barros quer apenas divertir o público, como ele mesmo afirma. O seu "hermafrodita"
é interpretado por um ator com características masculinas a não deixar dúvidas no
público e tem direito a um final feliz.
Não se quis explorar o impacto de uma mulher virar homem, apenas, explorar os
inúmeros casos cômicos que essa situação proporciona. (... ) Será, sem dúvida, um
filme agradável, isento de cenas sexuais, e o primeiro ator nunca será afeminado, e
mesmo como moça, será uma garota bastante masculinizada" ( 1978)
Assim, os gêneros são bem marcados e o hermafrodita Elvira/ Elviro é
devidamente "corrigido" (situação bastante criticada por Butler no sentido de significar
a imposição de um dado gênero a esse indivíduo). Como a Patrícia de Maridinho de
luxo, Elvira é devidamente enquadrado como Elviro.
CONCLUSÃO
A representação da mulher em Maridinho de luxo segue a linha das comédias
screwball, ou seja, com a valorização de características não convencionais da
personagem feminina: Patrícia é rica e independente, quer mandar em seu marido e
não acredita no amor romântico. Levando-se em conta as heroínas românticas do
ESTUDOS DE CINEMA
78
star system, estar-se-ia tentado a dizer que foi um grande avanço na representação de
mulheres, até mesmo bem à frente do seu tempo.
Entretanto, o próprio significado da palavra screwball nos aponta que este
trabalho que, na verdade, aquele comportamento seria de uma personagem maluca,
excêntrica, portanto, não seria um exemplo válido para ser copiado, mas sim, para
ser corrigido.
Isso faz lembrar uma série de romances do século XIX, dos quais o diretor
Luiz de Barros e o autor José Wanderley estão cronologicamente próximos, que
tratavam de personagens femininas transgressoras dos costumes da época, geralmente
através do adultério. São assim, por exemplo, Emma Bovary, de Gustave Flaubert e
Effi Briest, de Theodor Fontane. Essa transgressão tinha um preço muito caro: o
afastamento da personagem da sociedade dos moralmente adequados e, geralmente,
a sua morte.
Sendo Maridinho de luxo uma comédia, Patrícia é poupada do final trágico de
Emma e Effi. A ela é dada a chance de readaptação à moral vigente, sendo premiada
com um final feliz por ter optado em não tentar "desfazer" o seu gênero.
·REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARROS, Luiz de. Minhas memórias de cineasta. Rio de Janeiro: Artenova/ Embrafilme,
1978.
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ALTERIDADES
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Filme
Maridinho de luxo, 1938.
Direção, roteiro, montagem e cenografia de Luiz de Barros. Produção de Adhemar
Gonzaga, Cinédia.
Peça
Compra-se um marido, de José Wanderley. IN: Revista Teatro Brasileiro, no 21.
V E RTENTES
DO CINEMA
BRASILEIRO RECENTE
Nem pensar a gente quer, a gente quer é viverfocalização e dialogismo em Houve uma vez dois
verões e Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado
Luiz ANTONIO MousiNHO
((UFPB)
As COMÉDIAS Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, de Jorge
Furtado, trazem um olhar a partir do universo adolescente. Vou observar aqui como
se constroem discursivamente alguns aspectos desse olhar, detendo-me na questão
da focalização, enquanto conceito que procura dar conta da regulação da informação
narrativa, assinalando o lugar e o teor da percepção do personagem ou personagens
que regulam e filtram os dados narrativos (GENETTE, s/d: 185).
Em termos de ação narrativa, Houve uma vez dois verões constrói a trajetória
do adolescente Chico, que tem sua iniciação sexual com uma garota, alguns anos
mais velha a qual conhece por acaso numa praia de verão. Roza some, logo após o
encontro e reaparece dizendo-se grávida, na verdade uma falsa gravidez, de um golpe
recorrente que aplica na mesma praia de verão, onde o protagonista está veraneando.
Contra todas as leis da vida, prática do mundo dos adultos- adultos ausentes do filme
- e também do universo jovem ao qual pertence, Chico vai lutar pelo amor de Roza,
que foge dele mesmo após assumir o golpe do aborto e devolver o dinheiro.
No início do filme Chico reflete sobre a rotina de dificuldades financeiras de
sua família, entediado na praia deserta do precário verão, com casa alugada fora da
estação de férias por conta do preço. Em voz over posta em sistema com planos
abertos da imensa praia, na fala dele, entram nas conjeturas de Chico um futuro de
rotina familiar, contas, dívidas, coisas que vislumbra nos momentos em que se vê a
praia deserta e interminável, o espaço desolado construído pela imagem e pela maneira
como o olhar do garoto, sua expressão, sua fala e a montagem constroem aquela
como sendo "a maior e talvez pior praia do mundo". Sem detalhe supérfluo, para falar
com Barthes (1972: 44), a praia é o espaço de onde será principiada a travessia de
Chico.
84
ESTUDOS DE CINEMA
Em Houve uma vez dois verões vai ser mostrado o rito de passagem de Chico
ao mtmdo adulto. Aproximando-se de Roza, mais velha, ele vai atravessar etapas
sucessivas de um percurso iniciáti co que começa pelo rápido contato que resultou em
sua iniciação sexual com ela no espaço da praia gaúcha, espaço narrativo que a partir
dali vai se tomar significativo, heterogêneo em relação ao amorfo, ao sem-sentido
construído antes em sua caracterização (ELIADE, 1996: 25). Acordando homem e só
na praia, Chico segue os passos de Roza, que somem na grama. Ali começa a sua
busca reiterada em reencontrá-la e em conquistá-la, mantê-la por perto- a desgarrada
Roza, a golpista, a sem família, ao mesmo tempo a moça que luta sozinha e cuida do
irmão pequeno. Essa travessia vai ser a da narrativa, a trajetória de Chico na narrativa.
E pode-se lembrar o conceito de ação narrativa como envolvendo, "um ou mais
sujeitos diversamente empenhados na ação, um tempo determinado em que ela se
desenrola e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros
estados (REIS E LOPES, 1988: 180).
Além da amargura pragmática de Roza, um outro contraponto, ao romântico
Chico, será o seu parceiro Juca, o amigo que encama o princípio de realidade a lhe
abrir os olhos para o pólo forte do interesse masculino, com seus planos práticos.
Isso mostrado nos diálogos, num coloquial frequentemente chulo que tomam
vivíssimos os personagens, na concretude da linguagem diária, em seus lugares comuns
reveladores.
Ftmdado num à vontade que delineia uma visão interna do tmiverso jovem a
partir do ponto de vista e da articulação da ação narrativa, Houve uma vez dois verões
vai arquitetando a descoberta desse mundo através de vários elementos reiterados.
Saraiva e Cannito já chamaram a atenção para a efetividade estética do elemento
recorrente no filme, da ficha de flíper esquecida por Roza, guardada sentimentalmente
por Chico e devolvida a Roza que, contrariando as aparências, também a guarda por
motivos semelhantes.
Jogos de flíper e vários outros, partidas que indicam ruína, tiques que apontam
sorte, números num pedaço de cheque que, experimentados em combinações podem
levar a reencontrar Roza são recorrentes no filme, tema e forma que estão na estrutura
narrativa. No longa-metragem, os campos semânticos do acaso e da sorte são
experimentados várias vezes na trajetória de Chico, configurando elementos isotópicos
(RASTIER, 1975) . Vida, cálculo e jogo são postos em cena em vários elementos.
Numa voz over, diz Chico: "se eu tivesse batido o recorde no tiro ao pato no dia em
que eu conheci a Roza talvez eu não tivesse conhecido a Roza e a gente não teria um
filho". (FURTADO: 50). Numa dada cena, Chico é visto em plano geral, no emaranhado
labiríntico de uma quadra de minigolfe. Ele concentradamente mira uma tampinha de
garrafa que chuta, acertando em cheio o alvo - quando a trilha inaugura um reggae
surfistico e intercala expressão de alívio e leveza no rosto dele, sonhando a sorte.
Noutra seqüência, o gelo em cubo sustentado pelo orifício num canudo se rompe e
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
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cai no líquido, o refrigerante do copo, no exato instante no qual Roza reaparece,
quebrando a tensão de uma espera pessimista, acenando a sorte.
Na terceira seqüência da narrativa, Chico caminha com Juca na praia, na
esperança de encontrar a Roza, recém-sumida pela primeira vez, quando o amigo
canastrão tenta traduzir atrapalhadamente versos de Shakespeare, que estão escritos
inglês em sua camisa e que afirmam a cegueira e a tolice dos amantes, elemento
trabalhado em Houve uma vez e Meu tio matou um cara. Os versos ficam numa
tradução comicamente truncada, seu sentido irrevelado, no entanto, antecipa dados
da narrativa. Mais do que configurar uma prolepse (jlashforward) que arma a unidade
narrativa, tal antecipação comenta o olhar talvez reticente dos outros personagens e
do espectador ao ver Chico lutando contra todas as evidências pelo amor de Roza, ele
tantas vezes ternamente, apaixonadamente tolo. Ela se afirma grávida três vezes, a
primeira para extorquir, a segunda por afeto e esctúpulo, para afastá-lo, e a terceira
falando a verdade.
"Roza com z", dissera ela ao se apresentar a Chico. Chico se aproximaria dela
pelo sem jeito dela com a máquina. Ao perder uma partida, no mesmo flíper, um ano
depois, a máquina dá o ranking dos recordistas no jogo e lá está detendo, os recordes
a mesma Roza com z que simulara não saber jogar, o que causou a aproximação dos
dois, confirmando o golpe. Dois planos aproximados da bizarra figura de uma boneca
de flíper descabelada, a segunda fazendo um esgar com a boca, efetivam em som e
imagem o choque de Chico, pelo golpe confirmado. Nesse momento a instância narrativa
se revela forte, através da angulação de câmera e na montagem, que destacam,
ressaltam dados mesmo do espaço narrativo, retorcendo-o, revelando o sentimento
interiorizado de Chico. Traduzem o olhar do mundo dos adultos e dos jovens práticos,
dialogando tensamente com o romântico Chico, seu amor sem juízo, sua falta de
cálculo.
Recorrências de elementos e ressignificação do espaço vão integrar a arquitetura
narrativa do filme de Furtado. Noutra cena, um sapatinho de bebê emerge em plano
aproximado, no espaço caótico de uma loja de usados, no momento deprimente em
que Chico vende seu amplificador para pagar o suposto aborto de Roza. Outro sapatinho
surge na narrativa com sinal invertido, ressignificando tudo - o espaço, o tempo
decorrido, o mundo -, na porta do quarto do bebê dos dois, prestes a nascer, no final
feliz, assumido de maneira inequívoca. Ao final, Roza e Chico, após vários desencontros
ou encontrões, casam, indenizados pela fábrica de anticoncepcionais, que vendera
pílulas de farinha. Agora com Roza e com um filho no mundo, o mesmo espaço da
praia, do início do filme vai ser ressignificado por um novo olhar, que se inaugura na
relação da imagem com a voz over que vê o mesmo espaço antes monótono, amorfo,
sem sentido, como repleto de sentidos, de acontecimentos ("impressionante como
isto aqui melhorou; tem coisas pra fazer todo o tempo") , pensa Chico em voz over,
completada sua árdua travessia. Como assinala Mircea Eliade,
em
86
ESTUDOS DE CINEMA
todos os rituais e simbolismos da 'passagem' exprimem uma concepção específica
da existência humana: uma vez nascido, o homem ainda não está acabado; deve
nascer uma segunda vez, espiritualmente; toma-se homem completo passando de
um estado imperfeito, embrionário, a um estádo perfeito, de adulto. Numa palavra,
pode-se dizer que a existência humana chega à plenitude ao longo de uma série de
ritos de passagem, em suma, de iniciações sucessivas (...)A iniciação, como a morte,
o êxtase místico, o conhecimento absoluto, a fé (no judaísmo-cristianismo), equivale
a uma passagem de um modo de -ser a outro e opera uma verdadeira mutação
ontológica (1996: 147-8).
Tal mutação não se dá sem um percurso, realizado num processo necessário,
freqüentemente penoso, mas inevitável. Eliade lembra que a simbologia da travessia é
presentificada na figura da ponte, mais estreita que um fio de cabelo, mais cortante
que a foice, ou coberta por pregos, lâminas, agulhas, etc,
Ao final, junto com os créditos do filme, a música-tema comenta, matiza a
trajetória de Chico que ignorou o bom-senso, resolveu apostar na alegria. Tudo é uma
questão de manter, a niente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo - como
assinala a música mantra de Walter Franco, regravada pela banda Patu Fu e incorporada
à narrativa, sintetizando e comentando a travessia de Chico.
Em Houve uma vez dois verões, o rito de passagem para o universo adulto,
reflete a descoberta do mundo como em Houve uma vez um verão, ou Verão de 42,
longa de Robert Mulligan. Porém, não vem no filme de Furtado o sentido nostálgico
do adulto fazendo um balanço de sua vida. Trata-se do olhar contemporâneo aos
acontecimentos, do olhar a partir do ponto de vista adolescente. O filme de Jorge
Furtado se justifica por sua pertinêncill estética e por configurar um ruído positivo na
tradição brasileira, ao representar questões ausentes no cinema brasileiro. Leandro
Saraiva e Newton Canitto, em leitura bastante efetiva da obra de Furtado, chamam a
atenção para essa novidade temática e lêem a travessia não pelo viés de filme saudável
(jovens que tomam suco e não se drogam, etc), como atestou alguma crítica, mas
apontando como na receita aparentemente ingênua do filme há "dinamite", com o
filme sendo "uma ode ao amor fou de um filhinho de mamãe por uma putinha de
praia! Fada-se o bom senso, o cinismo crítico e inteligente do amigo egoísta; ame
loucamente, despreze as convenções" (SARAIVA E CANNITO, 2004: 40).
Num projeto de produção bem maior, com atores conhecidos, Meu tio matou
um cara é uma comédia, com toques de cinema noir, e inova tematicamente ao
representar as relações familiares numa família brasileira negra e de classe média,
harmônica e bem sucedida. O protagonista é o adolescente Duca. Seus monólogos
interiores costuram a narrativa, em voz over ele é um contador de histórias que
controla os dados da informação narrativa, ele que também detém o ponto de vista ao
longo do filme. O personagem-narrador autodiegético (aquele que participa da história
VERTENTES DO CINEMA BRAS-ILEIRO RECENTE
87
que conta como protagonista) 1 não escreve diário, não grava vídeo, não escreve
carta. E a narrativa é toda atravessada pela forma como ele controla seus dados, pela
maneira dele perceber.
O contar histórias por Duca - para o espectador - e de Duca para os amigos e
dos amigos de Duca para os outros amigos, constroem a visão de como boa parte da
experiência humana é de ordem narrativa. E de como as pessoas precisam contar a
história de suas vidas. Em Meu tio matou um cara, o convívio da turma de adolescentes
e seu entorno na escola e as relações familiares vão ser mediadas o tempo todo, pelas
histórias da vida diária que vão sendo contadas e vão fornecendo a matéria mesmo
desse dia a dia, ligando mundo, lançando sentidos.
Duca revela, mas também vela, no sentido de esconder seu mundo (o jogo que
joga no computador, o amor por Isa) e no sentido de proteger os outros- o tio da
decepção da namorada traiçoeira, Isa da escapada do namorado Kid. Duca vela, revela
e também inventa, movido pelo ciúme, mas sem trair os amigos, numa narrativa onde
amizade é matéria de salvação.
Oscilando o olhar melancólico do apaixonado enrustido e o olhar de detetive
perspicaz, Duca vai orientando a narrativa e os adultos atrapalhados, diante do que
fazer com o evento do possível crime do tio do título. Nos créditos de abertura do
filme o escaneamento, a ampliação e a reordenação de imagens de objetos numa
possível cena de crime iconizam e caracterizam esse olhar de detetive e do mundo
dos games. Olhar de quem pressente também a previsibilidade dos adultos e a tolice
dos amantes, inclusive a dele próprio ("numa cidade desse tamanho fui me apaixonar
justamente pela minha melhor amiga").
A narrativa em geral ratifica a previsibilidade e lugares-comuns, falseados, nos
quais se vêem enredados os adultos e isso pode vir a ser percebido como um topos na
obra de Jorge Furtado. Expressões fossilizadas da língua (para falar com Bakhtin)
são colocadas em sua inadequação ao objeto ou no ridículo de suas feições. Em Meu
tio matou um cara a propaganda do Robot Clear, da empresa do tio, é diretamente
mostrada como tosca, assim como o filme publicitário da tênis Mike Double Air é
caricato, no episódio Uólace e João Victor, do seriado Cidade dos homens, coroteirizado por Furtado. A enganação do detetive, contratado por Duca se ampara
numa tautologia boçal, ao explicar que uma "investigação preliminar" se trata de "uma
investigação prévia".
O. panfleto da loja Siamarrô, na abertura do curta Ângelo anda sumido e a
reiterada e esvaziada frase "ordens são ordens", em O dia em que Do rival encarou a
guarda, também indicam para o sem sentido de certas rotinas da vida social, lugarescomuns enganadores. Esses automatismos da vida social, com a exploração de gestos
1. GENETTE, s/d, p. 188.
88
ESTUDOS DE CINEMA
mecânicos, de percepções e atitudes mecanizadas estão no centro de algumas
possibilidades de exploração do cômico, como assinala Henri Bergson (1980: 26-7).
O "mecânico calcado no vivo" e "alguma rigidez qualquer aplicada à mobilidade da
vida", do qual falam Bergson, parecem presentes nesses casos e também na cena de
Meu tio no qual o guarda barra o acesso da menina Isa ao presídio por ela portar uma
caneta do Pokémon. Ordéns são ordens.
Meu tio matou um cara tem um momento forte de pausa narrativa, de digressão
audiovisual, momento no qual uma narrativa investe no tempo do discurso, com
suspensão do tempo da história, para posterior retomada (REIS, LOPES: 54). Isso
ocorre quando Duca vai com Isa visitar o tio na cadeia. Ali é construída a violenta
passagem da zona urbanizada à periferia da grande cidade brasileira. Se a cidade fosse
minha, eu te amava mina/ eu te furava dizem alguns dos versos da trilha, temos,
tensos, que supõem os contatos possíveis entre as várias cidades existentes numa só.
Se a cidade fosse toda uma/ se a cidade fosse amada/ por todo mundo e cada.
O filme termina mesmo não com esse beijo utópico da cidade auto-sitiada, mas
com o beijo na boca do encontro da afetividade dos amigos de infância Duca e Isa.
Daí sobem os créditos, entram os versos de Barato total, de Gilberto Gil; gravação
dos anos 60 de Gal Costa; acrescida de participação da Nação Zumbi sobre o fonograma
original. "Quando a gente tá contente a gente quer/ nem pensar a gente quer/a gente
quer/ a gente quer/ a gente quer é viver". Essa homenagem às fundamentais
experiências irrefletidas da vida adolescente, já gerou críticas aos dois filmes de Jorge
Furtado, apontados como filmes de praia, ou pelo que representariam em termos de
um suposto amaciamento das propostas das experiências, mais radicais dos filmes de
curta-metragem gerados pela Casa de cinema de Porto Alegre. Como se os longas
fossem tímidos na forma e maquiadores de tensões ou escamoteadores de problemas,
como se a tematização de qualquer experiência humana fosse pouca coisa. Ou não
エイッオク・ウセュ@
neles a trama social, pelo fato de não terem como tema central uma
situação de esgarçamento social. Em ambos os casos, talvez valha uma investigação
mais cuidadosa, para verificar se há essa distância entre as produções, que diferenças
seriam essas. Isso quanto às escolhas e tratamento dos temas. Mas que não se parta
do pressuposto que cinema narrativo é arte menor, nem que se tome por pecado
tratar da classe média que faz e é público espectador dos filmes brasileiros.
Houve uma vez e Meu tio terminam em finais felizes, dentro das características
da comédia. Como assinala Northrop Frye, "o final cômico é em geral manobrado
com uma reviravolta no enredo" (1957: 170). Mergulhando no mundo adolescente,
os dois filmes trazem uma visão desde dentro desse universo, da alteridade proposta
em relação ao mundo das certezas adultas, dos percursos feitos e suas por vezes
frágeis estabilidades. Conciliando pontos de vista opostos ao fmal, bem dentro das
características do cômico (SARAIVA; CANNITO, 2004: 95), os filmes se embebem
na dor, na angústia e no prazer dos ritos de passagem fundamentais. Identidades e
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
89
alteridades emergem nessas experiências juvenis aparentemente tolas, pueris, mas
constituintes, desenhadas por um olhar desde dentro.
BIBLIOGRAFIA
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano- a essência das religiões. São Paulo: Martins
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Disponível em www.casacinepoa.com.br Acesso em 07 de março de 2008.
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SARAIVA, Leandro e CANNITO, Newton. Manual de roteiro- ou Manuel, o primo
pobre dos manuais de cinema e tv. São Paulo: Conrad Editora, 2004.
O chão de asfalto de Suely
(ou a anti·Cabíria do sertão de Ainouz)
ALESSANDRA BRANDÃO (UNISUL)
GANHAR MUNDO, viajar, seguir destino, partir mundo afora. É essa idéia de
fluxo, de deslocamento, de travessia e mobilidade que permeia O Céu de Suely, de
Karirn Alnouz (2006). Assim, o filme soma-se a certa vertente contemporânea do
cinema brasileiro, e mesmo latino-americano, com ênfase narrativa na viagem, explorada
com maior ou menor intensidade na estrada, no entre-cidades e no trânsito. de
personagens, rompendo fronteiras de identidades diversas - nacionalidade, gênero,
cultura etc. Entre o discurso de (não) pertencimento e a desterritorialização de sujeitos
itinerantes, que vai, por exemplo, de El viaje (Fernando Solanas, Argentina, 1992) a
Amigomío (Alcides Chiesa e Janine Meerapfel, Argentina, 1994), passando por Y tu
mamá también (Alfonso Cuarón, México, 2001) e Cinema, Aspirinas e Urubus
(Marcelo Gomes, Brasil 2005), há um conjunto de filmes que deslocam questões de
identidade e subjetividade na porosidade das fronteiras, gerando, com o fluxo da
viagem, a via dupla do limiar, que sintetiza o espaço de (des )encontro do próprio e do
alheio, intensificando o debate sobre os sujeitos que são produzidos na rede de imagens
transculturais de certo cinema contemporâneo.
Uma imagem constante no filme de A1nouz é a da perambulação da personagemtítulo, pelas ruas de lguatu, no interior do Ceará, para onde retoma já descrente do
velho mito, que promete vida melhor em São Paulo, e de onde parte outra vez, agora
descrente também do mito do amor, para dar continuidade a sua errância. Por um
lado, o regresso a lguatu marca um reverso, uma outra face da tentativa nos grandes
centros urbanos do eixo Rio-São Paulo e o vínculo que se tenta inutilmente retomar
com a origem, como um ciclo que se pudesse fechar. No caso de Hermila!Suely, a
trajetória é espiral, pois a volta a impulsiona para além do seu destino primeiro: ao
mesmo tempo em que promove um reencontro, guarda o conflito da inadequação,
92
ESTUDOS DE CINEMA
expondo suas transformações na experiência de 'outro' e sua inconformidade diante
do entorno, que já não reconhece como seu. É preciso tornar a partir, continuar o
fluxo como forma de se revalorizar e se reconfigurar, buscar um sentido na perspectiva
de sujeito contemporâneo, esquizo e esquivo na experiência nômade, esparramada na
movência que resiste à sobrevida.
O filme é, pois, marcado pela idéia da partida como biopotência, como aquilo
que reluta diante da conformidade, desterritorializando Suely no horizonte vasto e
mutante do céu que o título sugere e que se lê aqui também em sua potência metafórica
como chão, que coricede à personagem a mobilidade como enfrentamento e a desloca
na estrada, compondo, no cinema, a rede de vidas e imagens que circulam erráticas
na contemporaneidade. Na obstinação feminina empoderada de Hermila!Suely, 'abrese mão' de um novo relacionamento amoroso, renuncia-se à maternidade e capitalizase o próprio corpo pelo desejo insistente de partir do lugar nenhum, deixar para trás a
aridez da vida em lguatu. Já não se trata de partir do sertão, como instância simbólica,
mas recusar a imobilidade infértil que destoa da modernidade líquida, dinâmica e
fluida da viagem, tomada aqui como experiência de biopotência, de luta pela potência
da vida, e que coloca no indivíduo a responsabilidade de sua própria liberdade e
mesmo utópica. Aqui, o sertão já não evoca a cumplicidade de uma olhar coletivo,
historicamente alegórico, mas é fragmentado na trajetória individual. Do mesrho modo,
resguardadas as marcas regionais, de sotaque, ambientação, e da música local que
Hermila dança com sua amiga, Georgina, a personagem escorrega de afiliações locais,
demonstrando desapego ao lugar e a sua existência periférica.
Localizada no sertão do Ceará, a pequena lguatu dá-se como um lugar de
passagem, um entre-lugar recortado por ruas e estradas que parecem antecipar o
olhar para a possibilidade da partida e onde caminhoneiros que cortam o país fazem
pouso. Contrário a uma visão de cidade que recusa a experiência das ruas para
observá-la de cima, como um "Olho solar, que olha para baixo como um deus",
segundo uma das formas de construir o espaço. da cidade que Michel de Certeau
apresenta (1988: 92), o modo de apreensão que se tem de lguatu é dado ao rés-dochão, na prática de pedestre de Suely, cuja experiência do espaço, confundida com
sua própria subjetividade, errante e confusa, dá-se na caminhada mesmo, conforme a
outra maneira de praticar e construir o olhar da cidade que de Certeau oferece.
Sem intentar reducionismos, pode-se dizer que o sertão do cinema brasileiro
contemporâneo recusa a prática totalizante do olhar divino, que, nos grandes centros
urbanos, tende a oferecer o panóptico das favelas, ou dos presídios, compactando-os
num plano homogeneizador antes de estilhaçá-los no seu labirinto de 'monstros', em
guerra contra Teseus uniformizados ( Carandiru, 2002 e Tropa de Elite, 2007). Por
outro lado, as localidades do sertão contemporâneo têm se dado pelo olhar de baixo,
na experiência andarilha, viajante, subjetivada na caminhada, no trânsito de personagens,
que percorrem a cidade e a geografia descampada do entre-lugar do sertão, mapeando
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
93
subjetividades líquidas, como em Baile perfumado, Arido movie, Cinema, aspirinas
e urubus, O caminho das nuvens, O céu de Suely.
Nesse sentido, o filme de Alnouz não experimenta uma percepção totalizante,
distanciada e despersonificada de lguatu, mas justamente um olhar que por meio
deste trabalho convida à afetividade e é subjetivado na perambulação de Hermila.
Como se fosse um corpo à deriva, ondulante, sem rumo certo, Hetmila vaga pelas
ruas de lguatu na confusão da inadequação e da própria existência. Note-se um
momento em que caminha distraidamente à noite e é abordada por um pretendente,
João, em sua moto. Diz estar indo para casa e, quando aceita sua carona, o rapaz dá
a volta e segue na direção oposta. Para onde mesmo ia Hermila? Assim, flutuante,
desterrada e esquiva, Hermila parece 'nauseada' pelo choque de seu movimento de
viagem contra a estática de lguatu. Não pertence (mais) à cidade e se recusa a fixarse na sua condição de sobrevida, sufocada pela rotina de lavar carros no posto de
gasolina, vender rifas, drogar-se e sair para dançar com Georgina.
lguatu não lhe oferece nenhuma outra experiência e essa clausura nauseante
parece muito distante da promessa cambiante do fluxo, de partir, ser, sabe-se lá o
quê. Perdida nos desvios da pequena cidade, parece, numa visão apocalíptica em que
a vida é reduzida à força do capital, "desplugada do novo capitalismo em rede, que
enaltece as conexões, a movência, a fluidez [mas também produz a] 'angústia do
desligamento' (PELBART, "Biopolítica e biopotência no coração do império"), reduzindo
a vida 'periférica' a uma mera sobrevida anódina, boiando sem órbita na esfera do
capital midiático, espaço, nessa perspectiva reducionista, modulador de 'existência'
para o sujeito contemporâneo".
Nessa angústia projetada em seu contínuo movimento, no nomadismo mesmo,
é que se constrói a subjetividade desterritorializada de Hermila, como o esquizo de
que falam Deleuze e Guattari. Na analogia que estabelecem, "o nômade, como o
esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. E que
faz da própria desterritorialização um território subjetivo" (PELBART). Sempre no
limite da estrada, em constante trânsito por lguatu, no limiar do asfalto que parece
querer lançá-la sempre além da fronteira do local, a luta que Hermila trava é com o
espaço, com seu aspecto periférico, inerte. Partir toma-se sua pequena revolução,
contestação da vida infértil em lguatu, mas há uma negociação, uma estratégia que
precisa ser ativada por Herrnila. Sua "valorização e autovalorização", para usar as
expressões de Pelbart, são reinventadas na própria corporeidade. Para tecer sua
trajetória existencial, nômade, como um esquizo no império atual, reinventa-se, ao
rifar o corpo como dispositivo que mescla as esferas subjetiva e mercantil, por meio
do capital, sem submeter-se à condição de refém de sua máquina voraz.
Cabe ressaltar, pois, que a estratégia mercadológica empreendida por Hermila
se dá pela compreensão de que a lógica do capital gera a movência, possibilita a
partida de lguatu, mas não necessariamente a reduz a mera mercadoria do sistema
94
ESTUDOS DE CINEMA
conexionista. É esse o ponto vital que a coloca como sujeito autônomo, "na contramão
da serialização e das reterritorializações, propostas a cada minuto pela economia material
e imaterial atual" (PELBART). Assim, a negociação do corpo com o intuito de financiar
a viagem desestabiliza essa noção aprisionadora do capitalismo, oferecendo a
possibilidade da via dupla, em que Hermila surge como devoradora dessa lógica ao
utilizá-la como instrumento de seu desejo de partir. Em uma óticajiu-jitsu, apontada
como estratégia de resistência em que se aplica a força do oponente contra a dominação,
ou seja, apreende-se e captura-se a tática do dominante para reutilizá-la em beneficio
próprio (SHOHAT e STAM, 1994: 328), Hermila não sujeita o seu corpo ao domínio
do capital, preferindo reinventá-lo como estratégia diante do império. Desse modo,
potencializa-se no fluxo assim mesmo desplugada, desconectada e errante, no desenho
de uma "subjetividade antropofágica [... ] que desmistifica todo e qualquer valor a
priori, que descentraliza e torna tudo igualmente bastardo[ ... ) e define-se por jamais
aderir absolutamente a qualquer sistema de referência" (ROLNIK, 2005: 98-9).
Aqui, desvencilha-se do determinismo que coloca o corpo nordestino, trapo
ou mulambo da deformação social, como 'resistente' na ordem da sobrevivência
naturalista. O corpo de Suely resiste, sim, na esfera do capital, mas (re)politizado na
auto-valorização, em um "mapa de possíveis [em que] os possíveis agora reiventam
e se redistribuem o tempo todo ao sabor de ondas de fluxos, que desmancham formas
de realidade e geram outras, que acabam igualmente dispersando-se no oceano"
(ROLNIK: 89). Na trajetória individual de Hermila, não há espaço para a conformidade
do corpo feminino à antiga rede do mercado de prazeres, pregnante de vitimização e
justificativas redentoras, como na Cabíria de Fellini. Consciente do valor capital de
seu corpo em época tão afeita a um biopoder que o molda ao gozo dominante, Hermila
o constrói como potência geradora de possibilidades. Recusa-se a ser puta, a redimir
mazelas sociais na entrega resignada do corpo feminino como modulador atávico da
sobrevivência. Anti-Cabíria em lguatu, Suely, a face capitalizada, mas não reduzida
de Hermila, renuncia à ordem categorizadora de papéis redentores para reconfigurar
seu corpo na lógica mercantil do biopoder e se reconstrói como um outro eu.
É por conta do território subjetivo que aflora de sua 、・ウエイゥセッ。ャコ ̄@
que
Hermila decide o rumo de sua vida na mobilidade identitária do corpo rifado e da
partida, da viagem que (re)nega uma possível estagnação. Decide agora que o destino
é Porto Alegre, segundo ela "o lugar mais longe de lguatu", como se quisesse, nessa
nova partida, estabelecer além da distância espacial, aquela da memória, da vida que
não encontrou por lá. Note-se que seu novo itinerário a projeta para a região sul, para
além de São Paulo, desestabilizando, assim, o centro que se coloca no fluxo migratório
do retirante nordestino. Diferente do discurso sociologizante do estigma retirante
ainda vigente (Cinema, aspirinas e urubus e O caminho das nuvens, por exemplo), o
filme coloca a questão em um plano subjetivo: cabe a Hermila o impulso de partir,
talvez de recuperar a 'vida' como potência a qualquer custo. Tendo compreendido
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
95
que a existência periférica em São Paulo dissolve as utopias, entende que ficar também
sufoca a experiência de vida, reduzindo-a a mera sobrevivente.
Com a migração em massa promovida pelos meios eletrônicos, como é lembrada
por Arjun Appadurai, as margens se alargam. E é o capital midiático que faz escoar
esse fluxo migratório, dissolvendo certas fronteiras de identificação na sedução do
Império contemporâneo. Para Appadurai, é sob a forma de imagens na televisão, no
cinema e no computador, na ubiqüidade dos meios eletrônicos na contemporaneidade
que o trabalho de imaginação coletiva das comunidades se estende além das fronteiras
locais, interferindo na subjetividade contemporânea. Nesse sentido, no filme de Alnouz
o sertão já não se revela mítico como no cinema de outrora, mas uma pequena célula
na rede de conexões e fluxo do mercado globalizado: Suely e o ex-namorado Mateus
pretendiam montar um negócio de pirataria de DVDs na feira local. Na simultaneidade
do moderno e do arcaico, a indústria cultural irrompe como capital na biopolítica que
tanto agrega como exclui. Acreditar que a tecnologia em si basta e que isso toma
lguatu um ponto qualquer na esfera do global pode ser um engodo, já que o âmbito da
rnidia produz tanto formas de vida tomadas bens de consumo quanto diferenças e
afiliações que são promovidas e legitimadas pelos meios.
Ao contrário do látego retirante que marca ahistória do Nordeste brasileiro e
em que tanto insiste o personagem Ranulpho, de Cinema, Aspirinas e Urubus, que,
nos anos 40, vai para o Rio de Janeiro tentar a vida porque, "cansou desse buraco",
o sertão contemporâneo de Hermila, vazio, estático, ainda estagnado no provincianismo,
cerrado na impotência, não inspira mais uma adesão ao êxodo como promessa de
transformação enraizada na metrópole, mas na movência rizomática,. desterrada e
nômade. Aposta-se que seu desejo é de mudança, de liberdade que se traduz na
mobilidade da estrada, do chão de asfalto, metaforizado pelo céu que compõe o título.
Na errância subjetiva de Hermila/Suely, o céu traduz uma utopia "menor", pessoal e
feminina; já não é mar que se busca (ou Marx que busca), é chão mesmo, é
enfrentamento e a possibilidade de partir. Distante do sonho revolucionário de outrora,
crivado com tinta marxista na estratégia estética da fome e no vigor alegórico do mar,
totalizador de uma utopia, a penúria em O céu de Suely se dá no isolamento, na
existência flutuante que urge encontrar o chão e seguir o fluxo para reencontrar-se
como sujeito da/na lógica contemporânea. No filme, a utopia se compõe no devir, no
constante tomar-se que a viagem oferece e nas fronteiras que vão se turvando pelo
exercício nômade da desterritorialização.
Entende-se a fronteira, aqui, "também [como] lugar do instável, de passagem
e transição para o outro, o diferente" (FRANÇA, 2003: 21), portanto, como espaço
de conflito entre eu/outro, espaço exterior/espaço interior e a multiplicidade de
identidades que germinam dessas zonas de enfrentamento. É, também, espaço de
passagem que tanto conecta como desloca, une e afasta, metaforizando ambigüidades
e instabilidades geradoras de conflitos nos (des )encontros que promove. Dessa maneira,
96
ESTUDOS DE CINEMA
a idéia de fronteira abraça o híbrido e o diferente, o estranho e o familiar, o 'eu' e o
'outro' no constante de vir de sujeitos cambiantes pela experiência do fluxo. No horizonte
das fronteiras,· as identidades ganham mobilidade, desestabilizando conceitos nos
conflitos da transição. Ao acompanhar os personagens no. cruzamento dessas zonas
de confronto/encontro, os filmes de viagem exploram também as transformações
que estes sujeitos itinerantes sofrem na passagem por novas paisagens, como Suely
no trânsito entre São Paulo, lguatu e Porto Alegre. Assim, além da linha geográfica
demarcatória de jogos de identidades e alteridades, à fronteira pode se estender, ainda,
aos deslocamentos pessoais, determinando afiliações e tensões entre os personagens,
moldando suas identidades ao longo do percurso. Nesse sentido, a fronteira alarga-se
durante o trajeto, na medida em que as personagens permanecem diante do inusitado,
do interregno que se transmuta em constante devir.
Sob essa lógica, O céu de Sue!y acompanha a travessia de Hermila entre a
desilusão amorosa e o investimento no sonho em São Paulo, e a consciência do valor
do próprio corpo como horizonte de transformações. E é através da fronteira também
do corpo feminino, entre a maternidade precoce e inepta, e a sexualidade latejante de
seu corpo jovem, que o movimento itinerante de Hermila se sustenta na biopotência.
Para Hermila, o corpo serve de instrumento para impulsionar sua viagem, agenciando
a passagem por outra fronteira, que concede ao corpo mais que ganha pão, a esfera
de autovalorização, a política de um sentido próprio que se configura na estratégia da
comercialização de si mesma e passa a compor o quadro de forças vivas que Pelbart
diz "serem elas mesmas um capital", recusando serem meras "reservas passivas".
Hermila, então, parte-se no duplo de si mesma, ao metamorfosear-se em Suely,
no momento em que decide rifar-se para financiar a nova viagem. O cabelo já antecipa
esse duplo: metade loiro, metade castanho natural, indício de modismos adquiridos
em São Paulo, mas sobretudo marca de bifurcação subjetiva na experiência de viagem.
A viagem que transforma, que parte o sujeito nos espaços de identificação, entre o lá
e o cá, o eu e o outro, potencializa a constante produção de identidades do sujeito
contemporâneo, como propõe Stuart Hall, para quem a identidade é "uma questão de
tornar-se tanto quanto de ser" e, portanto, está em contínuo processo de construção
(2000: 706, grifo do autor). A viagem, pois, carrega em si a potência das
transformações identitárias, expondo sujeitos cambiantes no fluxo das imagens que
atingem o espectador como potência de afiliação desterritorializadora. ·
Quando Hermila/Suely chega a Iguatu trazendo a experiência da viagem para
encontrar, violentamente, a inércia local, seu corpo em movimento choca-se com a
estagnação da cidade. Como o cabelo bicolor, sua identidade se desdobra na
transformação do próprio nome, tomando-se, temporária e estrategicamente, um corpomercadoria a quem chama Suely, em oposição à sua subjetividade anterior, romântica,
entregue. O interstício entre Hermila e Suely é movido pela força do capital. O que de
fato quer Suely? Ao rifar-se "como uma noite no paraíso", atenua a possibilidade de
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
97
prostituição, um eufemismo que lhe confere um certo pudor, por isso a identidade
dupla: Hermila é mãe, neta, sobrinha, o pólo das identidades sociais valoradas na
escala da família; Suely é sua face reinventada no capitalismo da biopolítica. Diz que
não é puta, "pois puta trepa com todo mundo e eu só vou trepar com um cara". E
emenda: "não quero ser puta. Não quero ser porra nenhuma". Assim, sem saber o que
quer ser, mas sabendo que quer ir e por que meios pode voltar à estrada, Suely
transita no entre-lugar que se toma Iguatu.
As imagens que abrem o filme, memória de Hermila projetada através da janela
do ônibus que a leva de volta a Iguatu, mostram o romance com Mateus, uma promessa
de futuro perdida no passado granulado em super 8. O corte que interrompe essas
imagens-memória, recusa um tom romântico ao filme, introduzindo a tela branca
com luz estourada, que tanto pode sugerir o árido do sertão como a relação infértil
que Hermila/Suely estabelecerá com Iguatu. O plano seguinte, close-up do rosto de
Hermila em perfil, imagem-afecção que convida o olhar do espectador a sua
subjetividade também vincula, por antecipação, as várias formas como esse rosto
aparecerá em close-ups, sufocado nos enquadramentos, constituído em espaço filmico
que se dá a ver Suely, como sujeito que emerge das novas modalidades de imaginar o
fluxo contemporâneo, o deslocamento de identidades. O mesmo close-up que se vê
no início do filme se reverte ao final, dando-se a outra face de Hermila. Dentro do
ônibus que a levará a Porto Alegre, Suely, a anti-Cabíria do sertão de Ai"nouz, não olha
para trás. Segue outra trajetória, não se sabe se mais ou menos feliz a se sequer será
feliz, mas que a leva sempre adiante, como certo cinema que, assim mesmo, "menor"
como a pequena utopia de Suely se faz crescer na singularidade, singeleza e, sobretudo,
no afeto que o filme constrói. Ultrapassando bordas, fronteiras demarcatórias de
identidades, assim mesmo, como Hermila, que devagar, aos poucos, recupera o sopro
da peleja, deixando o filho para trás com a avó e a tia, para cruzar novos caminhos,
tecer outras linhas imaginárias em sua perambulação desterrada, no chão de asfalto
sempre em devir de Suely.
BIBLIOGRAFIA
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SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Unthinking eurocentrism: multiculturalism and the media.
London: Routledge, 1994.
Do curta ao longa: relações estéticas
no cinema contemporâneo de Pernambuco
SAMUEL PAIVA
(UFSCAR)
CoMO PONTO DE partida para esta reflexão,
poder-se-ia recorrer a uma pergunta
antológica- "o que é o cinema?" (BAZIN, 1991) -,mas considerando um contexto
específico e acrescentando: o que é o cinema pernambucano contemporâneo? Na
verdade, pretendo responder a esta pergunta, estabelecendo um recorte bem preciso.
Isso porque, sem dúvida, nas últimas décadas houve tal quantidade e diversidade na
produção audiovisual pernambucana, sobretudo verificável na cidade do Recife, que
seria impossível abranger de forma total o cinema que aqui está em questão. Eis,
aliás, o primeiro ponto relacionado ao problema que eu proponho: de qual cinema
pernambucano contemporâneo se está falando? Existindo esse cinema, o que o
caracteriza? Tais questionamentos implicam um trajeto para a minha reflexão, um
percurso orientado pela observação de alguns curtas e longas-metragens que são
realizações ocorridas em um intervalo de tempo que vem desde a década de 1980 aos
dias atuais. De algumas dessas produções eu mesmo participei, integrando a equipe
técnica de curtas e também do longa-metragem Baile perfumado (Lírio Ferreira e
Paulo Caldas, 1997), marco inicial do "cinema. da retomada" (NAGIB, 2002) em
Pernambuco. 1
Esta minha experiência, diga-se, orgânica, com o cinema do Recife, na verdade,
começou bem antes da realização do Baile perfumado, e está intrinsecamente
1. Durante a graduação no curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco,
trabalhei como assistente de produção do curta-metragem Morte no Capibaribe (Paulo Caldas,
1983) e como co-roteirista e continuísta do curta-metragem Henrique? (Cláudio Assis, 1986).
Aproximadamente dez anos depois, atuei como vídeo-assiste do longa-metragem Baile perfUmado
(Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997).
100
ESTUDOS DE CINEMA
relacionada à formação de um grupo, cujos integrantes se encontraram pela primeira
vez no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), em 1983, no curso de Comunicação Social. Ali se deu o surgimento do
grupo Vanretrô - cujo nome foi concebido como uma contração de uma palavra
composta: vanguarda-retrógrada. A idéia do Vanretrô era olhar para trás e
simultaneamente para frente. Era assumir referências passadas e ao mesmo tempo
propor uma estética vanguardista. O filme mais intenso do Vanretrô, em termos de
um processo de discussão e debate, foi o Biu degradável, um curta-metragem, a
história de um sujeito que se deixava consumir pelo consumo. Apesar das tantas
discussões,· das dezenas de reuniões, das tentativas de captação de recursos, enfim,
Biu degradável nunca saiu do roteiro. Nesse esforço autodidata, entretanto, ganhouse novo fôlego quando Cláudio Assis, então estudante de Economia na mesma UFPE,
ganhou um edital da Embrafilme para realizar um curta sobre o padre Henrique,
assessor de Dom Helder Câmera que fora assassinado pela repressão política em
1969. No Henrique? a maioria dos integrantes do Vanretrô logo passou a trabalhar
em funções diversas, ainda que a coordenação das equipes de fotografia, som e
montagem estivesse a cargo de profissionais de São Paulo, ligados à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Enquanto isso acontecia, vale lembrar que, no mesmo Centro de Artes e
Comunicação da UFPE, um outro grupo de estudantes de Comunicação Social dedicavase eminentemente à música. Havia, por exemplo, uma banda punk que empolgava:
Mundo Livre S/A. Havia também a produção de um programa radiofônico intitulado
Décadas, dedicado à literatura, cinema e sobretudo às últimas referências do rock
mundial. O Décadas era veiculado semanalmente pela Rádio Universitária, em um
intervalo de tempo que compreendeu aproximadamente um ano e meio, entre 1984 e
1985.
Por sua vez, na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), estudantes do
curso de jornalismo também investiam em seu interesse pelo cinema, inclusive,
observando os produtos do "ciclo do super-8" que, na década de 1970, tivera um
importante papel como forma de resistência da classe média intelectualizada à ditadura
no contexto da Universidade Católica que,
militar (FIGUEIRÔA, 1990). Foi エセ「←ュ@
por volta de 1987, alguns estudantes criaram, a partir de uma proposta de Marcelo
Gomes, o cineclube Jurando Vingar que, com as sessões na Fundação Joaquim Nabuco,
passou a movimentar um circuito de cinéfilos no Recife, com atividades que
aconteceram até o final daquela década. A homenagem ao filme de Ary Severo (Jurando
vingar, 1925), um clássico do "ciclo do Recife", não deixava de constituir sutilmente
uma espécie de resistência à própria idéia de um cinema que se constitui "com uma
história em ciclos" (FIGUEIRÔA, 2000) ..
Olhando retrospectivamente, hoje é curioso notar como os grupos, formados
em um contexto universitário, passaram progressivamente a interagir de modos
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
IOI
diversos. Os grupos ampliaram-se e os contatos diversificaram-se, com a inserção de
novos atores sociais na cena da cidade. Considerando tal contexto, acho particularmente
sintomáticas algumas reiterações temáticas e formais que podem ser observadas na
decolagem de vários projetos culturais. É o caso de uma certa sintonia de propostas
verificável, por exemplo, no ideal do Vanretrô, com seu interesse em se constituir
como uma vanguarda-retrógrada, e o próprio Manguebeat, movimento cuja imagemícone- a "parabólica enfiada na lama"- também aponta para algo com uma dimensão
de modernidáde ou pós-modernidade (a parabólica, antena para o mundo), e ao mesmo
tempo para um dado primitivo, ancestral (o mangue e os caranguejos).
As reiterações de interesses, sintonias, identificáveis nesses grupos que surgiram
no contexto do Centro de Artes da UFPE e no curso de jornalismo da Unicap, sofreram
transformações, dispersões, desvios, etc., mas continuaram agindo, envolvendo e
fazendo interagir novos e diversos grupos existentes na cidade, fortalecendo uma
cena que, tendo contado com as leis de incentivo e com a tecnologia digital que
passou a revolucionar o audiovisual brasileiro a partir dos anos 1990, tem hoje um
papel relevante no campo do cinema neste país.
Mas, mesmo considerando a complexa "cartografia do novo território do cinema
brasileiro" (SILVA, 2003: 217-24), no caso específico da história contemporânea da
produção audiovisual em Pernambuco, como afirmei, um ponto de inflexão
incontornável diz respeito à realização do longa-metragem Baile perfumado, projeto
do qual participaram vários integrantes dos grupos dos anos 1980, como o pessoal do
Centro de Artes da UFPE e do jornalismo da Universidade Católica.
Este rápido quadro histórico, aqui desenhado de maneira esquemática, serve
na verdade para que eu possa, ao menos em parte, tentar responder às perguntas
lançadas no início desta argumentação: de qual cinema pernambucano se está falando
e o que caracteriza esse cinema? As respostas estão, a meu ver, fortemente relacionadas
à idéia de grupos que, atuando de maneira colaborativa, conseguem tanto superar os
obstáculos de produção, quanto constituir seus projetos estéticos com traços
recorrentes.
Em termos de produção, a Parabólica Brasil e a REC Produtores têm um papel
histórico. A Parabólica surgiu em 1993, em O linda, como iniciativa de Adelina Pontual,
Cláudio Assis e Marcelo Gomes. Por sua vez, a REC iniciou suas atividades no Recife
em 1998. Ambas permanecem em atividade até hoje, tendo desenvolvido um knowhow que, dos curtas aos longas, foi envolvendo cada vez mais profissionais formados
na própria prática do trabalho com filmes e vídeos.
Em termos de projeto estético, não há propriamente um planejamento que
busca um fim determinado de um interesse coletivo. Tanto que as tentativas de
classificação dessa produção segundo um rótulo - cinema "manguebeat" ou "árido
movie", por exemplo-, foram deixadas de lado pelos próprios realizadores. Ainda
assim, é perfeitamente verificável nos filmes uma reiteração de conceitos, tanto sob o
102
ESTUDOS DE CINEMA
ponto de vista temático quanto formal, encontrados em um considerável conjunto de
curtas-metragens e nos longas que desde Baile perfumado vêm compondo uma
filmografia que inclui outros títulos, como O rap do Pequeno Príncipe contra as
almas sebosas (Paulo Caldas, Marcelo Luna, 2000), Amarelo manga (Cláudio Assis,
2002); Arido movie (Lírio Ferreira, 2005); Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo
Gomes, 2005); Baixio das bestas (Cláudio Assis, 2007) e Deserto feliz (Paulo Caldas,
2007).
Antes, porém, de refletir sobre essas reiterações temáticas e formais verificadas
entre curtas e longas-metragens -, eu gostaria de fazer algumas considerações a
propósito desse caráter de grupo que está aqui em questão como um fator fundamental
do cinema pernambucano contemporâneo. Trata-se de uma rápida digressão sobre a
questão do grupo, apoiada em um texto do professor Antônio Candido, no qual ele
justamente discute a importância do grupo como fundamento para a criação de uma
comunidade. Refiro-me ao ensaio "A literatura na evolução de uma comunidade", que
constitui um capítulo do livro Literatura e sociedade (CANDIDO, 2006: 147-75).
Nesse ensaio, Antonio Candido defende que uma obra literária pode ser única, ao
brotar, como diz, de "um esforço de pensamento, um assomo de intuição". Entretanto,
a literatura é coletiva, é o resultado de "afinidades profundas que congregam os homens
de um lugar e de um momento". Segundo Antonio Candido:
( ... ) não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal,
manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal),
segundo um estilo (embora nem sempre tenham consciência dele); enquanto não
houver um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua
atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância
a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma
transmissão e uma herança), que signifique a integridade do espírito criador na
dimensão do tempo. (2006: 147).
Seguindo esse caminho, o autor descobre o que lhe interessa descobrir nesse
ensaio, ou seja, a existência de uma literatura paulista que ele admite existir, mas
somente depois de alguns eventos históricos, como a Independência do Brasil ( 1822),
e principalmente o surgimento da Faculdade de Direito de São Paulo (que surgiu em
1827). Como ele afirma, antes disso existira tão somente manifestações literárias,
mas não propriamente uma literatura, porque até então não havia agrupamentos
interagindo entre si e com a sociedade. 2
2. São cinco grupos. Primeiro: "um grupo virtual", em que se destaca em São Paulo, na segunda
metade do séc. XVIII, as figuras de Pedro Taques de Almeida Paes Leme (Nobiliarquia) e frei
Gaspar da Madre de Deus (Memórias para a história da capitania de São Vicente) em contato (daí
a idéia de virtual) com Claudio Manuel da Costa (Vila Rica) e outros integrantes da Academia
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
103
Ora, por mais que seja possível a diferenciação entre literatura e cinema, neste
ponto não seria um absurdo eu traçar aqui uma analogia entre a Faculdade de Direito,
seu papel na criação de uma literatura paulista na primeira metade do século XIX, e as
escolas de Comunicação do Recife e a sua relevância para a formação do cinema
pernambucano nas últimas décadas do século XX. Há de fato inúmeras homologias,
por mais distantes que os dois momentos estejam, pois esses ambientes universitários
funcionaram como pontos de encontro para, digam-se, manifestações do espírito de
grupo que levaram a criação de atitudes e idéias a expressões originais. Esses ambientes
conduziram formas de sociabilidade artística e intelectual na relação com a cidade,
considerando os diversos tipos de associação entre os estudantes e suas relações com
a sociedade com estímulos recíprocos.
Nesse sentido, e uma vez confirmada a existência de um cinema pernambucano
organizado em grupos que interagem entre si e com a localidade, é possível retomar
a segunda pergunta do meu percurso, ou seja: o que caracteriza esse cinema
· pernambucano contemporâneo? A resposta para tal pergunta obviamente está
relacionada à observação de vários curtas-metragens e longas-metragens
pernambucanos produzidos desde os anos 1980, o que permite a constatação de pelo
menos três figuras recorrentes: a morte, o estrangeiro e o próprio cinema.
A morte está presente em vários curtas-metragens. Há suicídio e assassinato
em Morte no Capibaribe (Paulo Caldas, 1983); há o assassinato do padre Henrique
no primeiro filme de Cláudio Assis (Henrique?, 1987); há o atropelamento que finaliza
a vida e as reflexões do poeta Carlos Pena Filho em Soneto do desmantelo blue
(Cláudio Assis, 1993); há uma morte passional em O crime da imagem (Lírio Ferreira,
1994); há uma aposta com a morte em Cachaça (Adelina Pontual, 1995); há a
descoberta da literatura e da morte em Clandestina felicidade (Marcelo Gomes e
Beto Normal, 1998); há a morte encomendada em O pedido (Adelina Pontual; 1999);
há a morte por todos os lados em Texas Hotel (Cláudio Assis, 1999).
Aqui não há espaço para uma consideração pormenorizada sobre a figura da
morte em cada um desses filmes separadamente. Porém, considerados em seu conjunto,
é possível afirmar que a morte assume nesses curtas-metragens uma inflexão de
ritual que encontra na própria cultura pernambucana, referências bem relevantes como,
por exemplo, o poema "Morte e vida severina: auto de Natal pernambucano", de João
Brasílica dos Renascidos. Segundo: "um grupo real" (por volta de 1830) às voltas com a criação
da Faculdade de Direito (1827) e a Sociedade Fi1omática (fundada em 1833). Terceiro: "o grupo se
justapõe à comunidade", os acadêmicos se sobrepõem à comunidade, com sua expressão de uma
intelectualidade própria (segunda metade do século XIX). Quarto: "a comunidade absorve o
grupo", entre 1890 e 191 O. Quinto: "o grupo se desprende da comunidade", sobre o Movimento
Modernista (CANDIDO, 2006, p. 147-175).
104
ESTUDOS DE CINEMA
Cabral de Melo Neto (1994: 169-202), poeta que, convém lembrar, é citado no longametragem Arido movie, quando alguns versos do poema "Sol de dois canos" vêm à
tona na voz de Jonas, o protagonista, no momento em que ele chega à cidade do
Recife. 3
Mas, no campo das referências propriamente cinematográficas, urna hipótese
provável é que essa figura da morte esteja vinculada a certas concepções do Cinema
Novo, por exemplo, a partir da "temática do definhamento", discutida por Jean-Claude
Bernardet a propósito de um filme como A falecida (Leon Hirszman, 1965), ou a
partir da questão das contradições da classe média, apontadas pelo mesmo autor em
Brasil em tempo de cinema (1967) ao analisar o personagem Antônio das Mortes
(Deus e o Diabo na terra do sol, Glauber Rocha, 1964).
Nesse sentido, acho particularmente emblemático um dos planos de abertura
do longa-metragem Baile perfumado, um longo plano-seqüência no qual observamos
a morte do Padre Cícero, personagem interpretada por Jofre Soares (não por acaso
um ator-ícone do Cinema Novo, que também atua no curta-metragem Maracatu,
maracatus, de Marcelo Gomes, 1995). Esse plano do Baile traz urna evidente referência
ao Cinema Novo, não só por ser um plano-sequência, ou pela presença de Jofre
Soares, mas também pelo tema da superação da religiosidade como ponto de partida
para a ação revolucionária, em um contexto nordestino, como ocorre com Manuel e
Rosa, personagens de Deus e o diabo na terra do sol, ao superarem a "fase" do beato
Sebastião (XAVIER, 2007: 85-143). Ao mesmo tempo, parece plausível interpretar
esse plano como a superação do próprio Cinema Novo. Afinal, a cena se constitui
como a morte do pai simbólico de Benjamin Abraão, protagonista do Baile perfumado,
personagem que desse momento em diante sente-se liberado para seguir sua trajetória
de cineasta, disposto a enfrentar todas as dificuldades para filmar Lampião. Certamente
também é significativo o fato de que, daí por diante, todo o discurso do filme empreenda
um esforço no sentido de subverter os signos consagrados pelo Cinema Novo, por
exemplo, ao trabalhar a imagem de um sertão farto, verde, moderno, cheio de água.
A propósito da água, há aspectos importantes a considerar no campo das
questões que aqui estão em pauta. É provável que no âmbito específico da produção
pernambucana, a dimensão barroca de afirmação da vida pela negociação com a
morte adquira marcas próprias justamente em razão de sua proximidade com o mar.
É o mar que se associa com elementos característicos do Recife, por exemplo, como
o porto da cidade, os rios e as pontes. Além disso, é o mar que freqüentemente
2. "O sol em Pernambuco leva dois sóis/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o primeiro dos dois, o
fuzil de fogo/ incendeia a terra; tiro de inimigo./ O sol em Pernambuco leva dois sóis,/ sol de dois
canos, de tiro repetido;/ o segundo dos dois, o fuzil de luz,/revela real a terra: tiro de inimigo"
(apud JAFFE, 2006: E!).
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
lOS
constitui um caminho para a aproximação da figura do estrangeiro. No curta-metragem
That a lero-lero (Lírio Ferreira e Amin Stepple, 1995), por exemplo, Orson Welles
pára em uma ponte do Recife, em uma das cenas mais eloqüentes do filme, e sai do
carro para observar, lá bem longe, uma jangada que avança pelo mar. No curtametragem Clandestina felicidade (Marcelo Gomes e Beto Normal, 1998), a família
de migrantes de Clarice Lispector tem com o mar relações de alegria (como os dias de
piquenique na praia) e tristeza (como revela a cena do porto, confirmação de uma
perda afetiva e da condição de imigrante aip.da sem destino certo).
Por sua vez, de filme a filme, a figura do estrangeiro assume diferentes
conotações: o rock em oposição ao maracatu em Maracatu, maracatus (Marcelo
Gomes, 1995); o cinema americano interferindo na produção de cinema local em
Simião Martiniano, o camelô do cinema (Hilton Lacerda e Clara Angélia, 1998).
Assim como nesses curtas, também nos longas-metragens a questão do estrangeiro é
central. E pode estar relacionada à morte. Mais uma vez o plano-sequência da abertura
do Baile perfumado pode ser recuperado como exemplo, pois, como afirmei, a morte
do Padre Cícero é o ponto de partida para a trajetória de Benjamin Abraão, o libanês
que é protagonista da história. Mas há também Johann, o alemão de Cinema, aspirinas
e urubus, que foge da morte implicada na Segunda Guerra Mundial. Algo equivalente
também é possível perceber a respeito do Arido movie, se considerar que o protagonista
Jonas toma-se, dialeticamente, um estrangeiro no confronto com a sua própria origem,
para a qual ele retoma devido à morte do pai. Mais recentemente, Deserto feliz (Paulo
Caldas, 2007) repõe a questão do estrangeiro, estabelecendo a conexão entre o sertão
e o mar.
Com a figura do estrangeiro, ao que tudo indica se está diante de um aspecto
de afirmação, de uma identidade constituída por um tipo de alteridade na qual o diverso
é fator crucial para o reconhecimento de si. Não é o caso aqui de devorar
simbolicamente o estrangeiro, como propõe a antropofagia de Oswald de Andrade,
mas de conviver com ele, sem deixar de encará-lo com uma disposição permanente
para algum embate, o que se observa, aliás, tanto no cinema quanto na música, inclusive,
na grafia de suas marcas consagradas, por exemplo, "árido movi e" e "manguebeat".
Além disso, nesses filmes pernambucanos, o estrangeiro está fortemente
associado à cultura audiovisual e a certa idéia de modernidade que vem de fora para
interagir com o local. Benjamin Abraão é cinegrafista. Johann é projecionista. Jonas é
apresentador de televisão. Um dado relacionado às opções formais, e que envolve
todos esses filmes em uma dimensão transnacional, diz respeito ao seu impulso para
a incorporação do gênero, em especial, o road movie. Chega-se assim a outro ponto
relevante desse percurso: o cinema. Vários curtas e longas-metragens realizados pelos
autores do grupo aqui considerado têm o cinema como um aspecto central do seu
discurso cinematográfico. É possível citar como exemplo de curta-metragem que
trabalha na chave da metalinguagem: O bandido da sétima luz (Paulo Caldas, 1986);
s
ESTUDOS DE CINEMA
106
That's a lero-lero (Lírio Ferreira eAmin Stepple, l995);Maracatu maracatus (Marcelo
Gomes, 1995); Simião Martiniano, o camelô do cinema (Hilton Lacerda e Clara
Angélia, 1998); O pedido (Adelina Pontual, 1999) e Texas Hotel (Cláudio Assis, 1999).
Com os longas-metragens, ocorre algo equivalente. Há pouco eu citei os
estrangeiros Benjamin Abraão, Johann e Jonas. Mas há muitos outros personagens
relacionados ao cinema: Ranulpho, em Cinema, aspirinas e urubus; Soledad, a
videomaker interpretada por Giulia Gam no Arido movie; os bad boys que freqüentam
o cinema abandonado no Baixio das bestas; todos levam o espectador a pensar em
evoluções em torno de temas e formas de cinema. Percebida no conjunto, a
representação do cinema nesses filmes parece assumir um caráter de resistência,
associando-se à iminência da morte e à convivência com o estrangeiro.
Concluindo, parece legítimo afirmar que a pesquisa sobre as estéticas do cinema
pernambucano contemporâneo passam necessariamente por certa noção de grupo,
no sentido de urna sociabilidade artística e intelectual de indivíduos que interagem
intensamente entre si e com a cidade para viabilizar sua produção. No caso específico
da geração que surgiu nos anos 1980, o resultado dessa relação de indivíduos e grupos
com o lugar expressa, nos textos filmicos, a reiteração de três figuras que interferem
urnas com as outras: a morte, o estrangeiro e o cinema. Estes dados certamente
significam premissas consideráveis para a compreensão da história do cinema
pernambucano na transição entre os séculos XX e XXI.
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2007.
O português redescoberto nas telas
FERNANDO MORAIS DA COSTA (UNESA)
JEAN-CLAUDE BERNARDEt afirmara, em 1978, que os documentários da década
de 60 feitos com equipamento leve, o que os permitiu ir às ruas, bem como gravar
som direto, fora dos estúdios e partir para regiões remotas do país, trouxeram "a
afirmação da língua portuguesa pelo som direto" (BERNARDET, 1978: 11). Através
de depoimentos dos imigrantes nordestinos em São Paulo, caso do Viramundo de
Geraldo Sarno, dos habitantes dos sertões da Paraíba, da Bahia, de Pernambuco
(Maioria absoluta, de Leon Hirzsman; Rastejador, s. m. de Sergio Muniz, produzido
dentro do contexto da Caravana Farkas), dos trabalhadores que construíram a capital
Brasília (Fala Brasília, de Nelson Pereira dos Santos), da população indígena (Iracema,
de Jorge Bodanski e Orlando Senna, exemplo mais complexo e tardio), o português
falado na tela ganhara dimensão muito maior do que os sotaques e os modos de falar
das metrópoles do Brasil.
Naquele momento, começava-se a colocar na tela os diversos modos de falar
português espalhados pelo país. Estava sendo ampliada a questão, subjacente à história
do cinema brasileiro, sobre a forma que deveria ter a língua portuguesa falada nas
telas de cinema. Mais importante, estava sendo posto em xeque o dogma de uma
impostação teatral imperativa, de um sotaque presumivelmente neutro, sob os quais
se impunha um padrão elaborado, culto, urbano, que constituiu por muito tempo o
modo de falar "desejável" para o cinema brasileiro. Bernardet indica pontos de um
mapeamento dessa construção. Houve durante décadas a fio uma crítica ao cinema
feito no Brasil, que dentro de uma reclamação maior, de que a realidade brasileira e os
rostos brasileiros não davam bom material para cinema, afirmava que também a língua
portuguesa não era cinematográfica. (1978: 19) Destrinchando-se esse argumento,
chegar-se-ia à conclusão de que menos cinematográfico que o português como um
todo deveria ser o português falado coloquialmente no Brasil. Assim, não é difícil
110
ESTUDOS DE CINEMA
encontrar na história do cinema sonoro brasileiro, especialmente entre as décadas de
1930 e 1940, ecos de uma impostação e de um modo de falar que remetem à língua
como é falada em Portugal, o que é explicado, em parte, pela presença constante de
atores e atrizes portuguesas no teatro brasileiro, e, por conseguinte, no cinema. Bemardet
comenta ainda que partiu das comédias populares produzidas no Rio de Janeiro, um
passo no sentido de tomar mais coloquial o português falado nas telas. O mesmo
movimento de busca por uma língua no cinema mais próxima do que se falava nas
ruas, além do exemplo das chanchadas, citado por Bemardet, é encontrado por Alex
Viany não nos documentários, mas na ficção do início dos anos 60. Para Viany, filmes
como O pagador de promessas e Os cafajestes são importantes também por colocarem
nas telas, diálogos coloquiais, ajudando a quebrar o mito da incapacidade
cinematográfica da língua. (1999: 30) Para Ismail Xavier, outro passo na direção de
um português cotidiano, pode ser encontrado na leva de adaptações de textos de
Nelson Rodrigues para o cinema na década de 1960; como Boca de ouro, de 1962;
Bonitinha mas ordinária, de 1963, Afalecida, de 1965. (2003: 175)
Este trabalho demonstra que na produção recente do cinema brasileiro, são
vários os filmes que trazem a diversidade da língua mais uma vez à baila. Em filmes
como Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2001); 2000 nordestes (Vicente Amorim e
David França Mendes, 2000); Desmundo (Alain Fresnot, 2001); Língua, vidas em
português (Victor Lopes, 2003); Bocage, o triunfo do amor (Djalma Limongi Batista,
1996); Amélia (Ana Carolina, 2000); Fala tu (Guilherme Coelho, 2003), na produção
recente do documentarista Eduardo Coutinho, com destaque para Babilônia 2000 e
O fim e o princípio (2005), bem como em Estorvo (1997) e O veneno da madrugada
(2006), do moçambicano Ruy Guerra, o uso cotidiano da língua toma-se questão
relevante, ao possuir importâncias distintas, tratamentos particulares, mas sempre
centrais para as respectivas tramas. Língua, vidas em português e Bocage, o triunfo
do amor trazem para o cinema brasileiro, inclusive, as proximidades e distâncias entre
a língua falada no Brasil, em Portugal, na África de língua portuguesa, em Goa, em
Macau.
A diretora, Eliane Caffé, destaca em entrevista para Lucia Nagib, a importância
dei contato, em viagens pelo norte do estado de Minas Gerais e pelo sul da Bahia, com
a fabulaÇão oral para a criação de Narradores de Javé:
"Construímos o roteiro a partir de relatos ouvidos dos contadores de histórias.
Viajei com um gravador, uma câmera e conforme encontrávamos contadores pelo
caminho gravava as histórias, as encenações. Na oralidade eles representam, há
toda uma dramatização no ato de narrar, por que esse é o oficio deles. Essas histórias
formaram a base do roteiro". (2002: 134)
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
111
Luciana Corrêa de Araújo, no artigo Retrospecto em fragmentos, nota como o
filme está impregnado de "uma outra sintaxe, fundado no comportamento dos
personagens/intérpretes e na desenvoltura das narrativas orais, que percorrem uma
via paralela à cultura letrada, sem se submeter completamente à conformação da
escrita". O filme teria como proposta "capturar o que não se escreve: a sonoridade
da fala" (CAETANO, 2004: 156) . Momentos nos quais fica clara a importância
central da palavra falada são as seqüências que dão conta das várias versões da
fundação do povoado, do papel duvidoso do pioneiro Indalécio; situações em que os
não-atores falam diretamente para a câmera de vídeo da empresa que os desterrará;
quando ocorre a dinâmica entre atores e não atores, a fala "profissional", para a
câmera versus a fala sem os instrumentos de praxe, para encarar câmera e microfone.
Em 2000 nordestes são colocados na tela os diferentes sotaques nordestinos,
com a presumível boa intenção de tomar mais complexo o senso comum, tão presente
no sul e no sudeste do Brasil, de que haveria um único sotaque idêntico para a toda a
região. Garantiriam a representação de tal pluralidade, as entrevistas com pessoas
vindas do estado do Ceará, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco, de
diversas regiões da Bahia, vivendo no Rio de Janeiro e em São Paulo ou em suas
próprias terras natais. Mariana Baltar, quando analisa o filme em sua dissertação de
mestrado sobre a representação do nordestino no documentário contemporâneo,
entende que ele falha em retratar o conjunto daquelas individualidades, suas diferenças.
Baltar chama a atenção para o fato de, na maior parte das vezes, não serem dados
nem mesmo nomes aos entrevistados, o que colaboraria para uma "universalidade do
sentido", dentro do qual "cada conflito pessoal pode ser o conflito geral de todos os
nordestinos emigrantes" (2003: 83). O filme não escapa ainda de levar à tela outro
senso comum: o da falta de clareza, associada à fala nordestina, chegando a fazer
graça com a questão. Há o imigrante em São Paulo, Edmário, que diz falar espanhol e
inglês. Seu inglês terá espaço de destaque, câmera e microfone, caçoando do
personagem. Por uma artimanha de montagem, Edmário "reagirá" em determinada
passagem a um personagem de fala ininteligível, ao surgir na sua seqüência e dizer
"ok. I understancf'. Há, usado também no sentido de parecer engraçado ao espectador,
mesmo que involuntariamente, o habitante da cidade de Porto Seguro que repete as
perguntas antes de dar as repostas. "Você é daqui de Porto Seguro?" pergunta o
diretor. "Essa é uma pergunta que você faz, bem feita!" começa a responder. "Por
que você saiu de Ilhéus?" segue o primeiro. "Essa é outra pergunta que você faz!".
Como ressalva à dificuldade de compreensão de determinados trechos, diga-se que a .
captação do som direto poderia buscar a clareza da voz de forma mais enfática. Não
há sempre a preocupação de o microfone estar próximo de quem fala tanto quanto
poderia. Muitas entrevistas ocorrem em lugares ruidosos, no meio da rua, dentro de
ônibus. A falta de clareza não é apenas inerente à boca de quem fala, mas criada no
seu contato com o aparato de gravação.
112
ESTUDOS DE CINEMA
Em Amélia está colocada uma série de problemas lingüísticos, a partir do
confronto das irmãs da falecida personagem-título com a diva Sarah Bemhardt, de
passagem pelo Rio de Janeiro. Luciana Corrêa de Araújo, no artigo já citado, comenta
a importância da dicção de Myriam Muniz para a obra de Ana Carolina, sua voz
rascante, tão pouco cordial como representante do interior do país. O filme se baseia,
no seu início, na leitura claudicante da carta deixada às irmãs por Amélia. A partir do
contato delas com Sarah Bemhardt, surge o tema da incompreensão, o estrangeiro
em contato com os matutos. A assistente da estrela, Vicentine, Betty Goffman, além
do francês original, é fluente em espanhol, em italiano, mas não entende o português.
Tentará comunicar-se em todas aquelas línguas. A comunicação mínima passará a ser
ironizada, as irmãs mineiras começando a entender, uma outra palavra em francês.
Estorvo, de Ruy Guerra (i 997), tem sido comentado por conta da cisão entre
a voz do personagem quando narra e quando está em quadro. Tratam-se de duas
vozes diferentes, a do cubano Jorge Perrugoria, que incorpora o personagem em
quadro, e a do moçambicano Ruy Guerra, dono da voz over. Andréa França nota a
estranheza criada pela situação do mesmo personagem apresentar, assim, dois sotaques
distintos, um ao narrar, outro estando dentro do espaço da ação. (2003: 47) Essas
vozes unidas às demais no percurso errático entre Rio de Janeiro, Havana, Lisboa,
tomam, para França, a língua falada no filme uma terra de ninguém, um amálgama de
sotaques que rompe fronteiras, impossível de ser resumido a um modo de falar
homogêneo. Segundo ela, "o filme de Guerra mistura os sotaques natais (dos atores,
do próprio diretor), transformando o terceiro mundo numa terra polifônica, cuja mistura
de sotaques explicita a recusa obstinada a todas as forças de homogeneização" (idem:
48) . Sobre a relação das vozes com os demais sons, Estorvo demonstra, desde sua
seqüência inicial, uma ação bem coordenada. A campainha que chama pelo personagem
está colocada nas pausas deixadas, pela voz sussurrante de Guerra. Essa campainha
e outros ruídos vão se tomando mais intensos, colaborando para a tensão que não se
resolve enquanto ele não se decide por abrir a porta. Um terceiro elemento vem unirse a esse conjunto: a música, de Egberto Gismonti, também em diálogo com as vozes
e com os ruídos. A primeira inserção da voz de Perrugoria, o segundo sotaque do
mesmo personagem, só acontece aos dez minutos de filme, depois que já estávamos
íntimos da voz de Guerra. Outras vozes de dificil compreensão: a do empregado que
permaneceu no sítio, a da senhora cubana que se exaspera pelo filho acusado de
assassinato. Na seqüência final, uma curiosa relação complementar entre voz e imagem.
Voz over e cartelas com o texto escrito se alternam na construção das frases. "Ou é
o túnel...", diz a voz, " ... ou morri", lê-se na cartela.
Ruy Guerra mantém a noção de uma língua polimorfa, constituída por sotaques
diversos, em O veneno da madrugada.. A diferença, que de certo modo radicaliza o
procedimento, é que desta vez todos os modos de falar estão restritos a um mesmo
lugar, um vilarejo. Há, na fala do pequeno grupo de seus habitantes, o português luso
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
113
falado pelo dono da birosca, o espanhol de Aristóteles, a voz lamentosa do alcaide, a
fala penetrante da vidente que anuncia os momentos de quebras temporais. Sotaques,
impostações, timbres variam. Guerra delega ainda grande importância para os sons
fora de quadro, fundamentais para a construção da história que se repete sob pontos
de vista ligeiramente diferentes: há a música de Nestor, oJJ.autista que será assassinado;
os sons que anunciam a entrada dos personagens em quadro, como correntes que se
arrastam, estampidos que a princípio não se justificam e que simulam o efeito geralmente
delegado à música; os tiros quando o povoado é dizimado; a voz que anuncia a morte
do alcaide.
Consuelo Lins nota em Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, os livres usos
que alguns personagens fazem da língua portuguesa, especificamente Cida e o autoexplicativo People. Lins comenta sobre a "possibilidade de criação em setores da
sociedade bombardeados por uma multiplicidade de discursos". (2004: 128) Cida não
tem pudor de inventar expressões, de comunicar-se de uma forma que está
irreverentemente distante do vernáculo catalogado. People insere pitadas de inglês na
conversa cotidiana, menos por domínio de tal língua do que por interesse afetivo
pelas palavras estrangeiras: "sempre gostei da palavra people", explica. Cabe ressaltar
que Cida e People representam parcelas extensas da população brasileira, seja no uso
cotidiano da língua para além do que está no dicionário, seja na irreverência ao lidar
com o inglês sem dominá-lo. Para Lins, o filme de Coutinho "captura a complexidade
e a variedade de modulações no uso que fazem da língua os moradores do Morro da
Babilônia". É o português sendo cotidianamente "reinventado", termo usado por ela.
Arriscamo-nos a dizer que as formas diversas do oficial de lidar com o
vocabulário e com a sintaxe viram tema ainda mais central para Coutinho em O fim e
o princípio, de 2005. O realizador tomou pública em entrevistas à época do lançamento
a tese advinda das filmagens no município de São João do Rio do Peixe, sertão da
Paraíba. Ali, como em um sem número de pequenos lugares no interior do país, a
falta de contato com a padronização da língua imposta décadas afora, pelos meios de
comunicação de massa, que procuram um sotaque e uma sintaxe neutros, como se
isso fosse possível, causou não um empobrecimento, mas, ao contrário, preservou
uma riqueza na organização cotidiana das palavras que remonta a um período anterior
a esse processo de padronização. Onde poderia se esperar uma dificuldade formal,
descobre-se um esmero antigo rias construções verbais cotidianas.
Voltando à representação da periferia das grandes cidades, pode-se dizer que
Fala tu é, desde o título, calcado nos modos de falar dos entrevistados, especificamente
daquele que tem maior destaque, Macarrão, o dono da expressão que empresta ao
filme o nome. Em determinado momento, a equipe visita uma rádio comunitária que
toca rap norte-americano. Os responsáveis pela rádio ressaltam a importância da
mensagem afirmativa contida naquelas músicas estrangeiras. Perguntados se entendem
as letras, dizem que não, mas que "dá para sentir a atitude afirmativa", que impõe
114
ESTUDOS DE CINEMA
respeito. Argumentam que não sabem direito nem o português, que dirá o inglês.
Passa ao largo dos entrevistados o fato de estarem em um filme que justamente não
aceita sem questionar a marginalização lingüística dos que não estão inseridos no
modo oficial de lidar com o idioma. Ao contrário, participam de um processo que
legitima a língua falada fora das convenções padronizadas. A escolha do título resume
tal posição.
Em Desmundo, a questão de uma língua em formação é central. Ambientado
em tomo de 1570, descreve o contato dos portugueses degredados, no que viria a ser
o Brasil, com as mulheres também européias que são trazidas à terra para ter com
eles, em lugar das nativas. A forja de uma nação e de um povo passa também pela
criação de uma língua local, a partir das falas daqueles, de diferentes origens, que
passam a coabitar o espaço.
Para a língua a ser falada no filme, optou-se pela simulação de um português
arcaico. Suas características são: a proximidade com o espanhol; a falta do gerúndio,
marca lusa ("estar a ver. Estar a ouvir"); o uso também luso da segunda pessoa
("queres voar e não podes"); inversões formais ("uma besta, tu és!"), todas essas
características não mais vigentes no português falado hoje no Brasil. Há ainda pitadas
de francês, de italiano, do próprio espanhol, como na frase "de oit vem la criança?".
São os oriundos de diversas regiões da Europa que trazem seus modos de falar para
a terra brasileira. Dois personagens centrais são portugueses; Francisco de
Albuquerque, personagem de Osmar Prado e a menina que virá a ser sua esposa,
bribela (Simone Spoladore), que vem do norte de Portugal, da Covilhã. Somados aos
sotaques europeus estão os idiomas, e seus usuários, indígenas e africanos. O escravo
negro do português Ximenes Dias, (Caco Ciocler) fala uma língua incompreensível
para todos. Ximenes fala línguas indígenas. Há diálogos entre ele e os índios, quando
os falantes compreendem o que está sendo dito e os demais ouvintes não. Há diálogos
reflexivos. Ximenes Dias relata a Albuquerque, o fato dos índios não quererem mais
vasilhas. Reclamam do difícil diálogo com os locais, "que não conhecem a língua".
Albuquerque diz: "mas conhecem a pólvora". Dias: "É a língua geral".
Outra língua geral, poder-se-ia dizer, é o silêncio, polissêmico por natureza,
mas muitas vezes claro ao passar a mensagem de quem escolhe responder calado. No
decorrer do filme, Oribela recolhe-se em sua mudez, como defesa contra o péssimo
diálogo e convívio com o marido obrigatório. Exemplo de comunicação sem palavras
está na seqüência em que ela deve escolher uma das bugigangas trazidas por Ximenes,
que Francisco quer lhe ofertar. A construção do romance velado e do ciúme do marido
dá-se em silêncio, no jogo entre trocar olhares e se recusar a trocá-los. Francisco
olhando, Ximenes recusa-se a olhar para Oribela. Ela fica, a olhar as tesouras em
cima da mesa. Quando as escolhe, quase se tocam as mãos, suas e de Ximenes, mas
a isto também se recusam. Neste jogo de desacontecimentos está acontecendo o
romance.
VERTENTES DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE
115
Filme que não pode deixar de ser citado sobre a experiência da língua
reconfigurada nas telas é Língua- vidas em português. Aqui a questão ultrapassa
as fronteiras nacionais e passa a ser o mundo da lusofonia que abrange Portugal,
Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor Leste, Macau, Goa. Eis o assunto
tratado como tema central, a língua portuguesa, em impressionante polifonia, legado
da expansão ultramarina cinco séculos antiga. Desfilam na tela o português falado
em Goa, misturado com o sotaque hindu e com a influência inglesa; em Macau,
inserido no modo de falar chinês; pelos angolanos em Lisboa, a língua com gingado,
sincopada, rápida na boca de quem fala; pelos moçambicanos em Moçambique;
pelo menino também moçambicano, mas que deseja ser rapper norte-americano,
em ritmo e em métrica; nas rezas moçambicanas que misturam cantigas portuguesas
e africanas; pelos dekaseguis no Japão; pelos vendedores nos ônibus do Rio de
Janeiro, a ausência de pausas, a língua em moto continuo. Fala José Saramago o
português matriz; Mia Couto, escritor moçambicano, cuja literatura é exemplo da
volatilidade da língua lusa em contato com a vivência africana; Martinho da Vila, de
Duas Barras, estado do Rio de Janeiro,sua música o ponto de contato entre as
raízes africanas e as fazendas fluminenses, o jongo que viria a dar no samba; João
Ubaldo Ribeiro, da ilha de ltaparica, Bahia, o tempo leve da língua, o jogo entre as
palavras e as pausas.
Cabe lembrar que Bocage, o triunfo do amor já abrangia os diferentes usos
da língua nos países lusófonos. Trata-se de uma co-produção brasileira e portuguesa
de 1996, lançado como um filme da recém-criada Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP). Assim, acompanha-se as viagens do poeta Manuel Maria Barbosa
Du Bocage pelas colônias lusas ao redor do mundo, e seu contato com os diversos
sotaques. As filmagens no Ceará, em Pernambuco, na Amazônia, em Congonhas
do Campo, nas cataratas de Foz do Iguaçu, em Portu&al, em Angola, em Goa,
misturam os modos de falar lusitanos, diferentes dentro do perímetro português,
sotaques brasileiros vários, o português falado na África, na Índia, uma língua
indígena quando na floresta amazônica. Há ainda pequenos espaços para o francês,
para o espanhol na passagem em que Bocage satiriza Dom Quixote. Há a voz over
em latim, de dicção estranha. Há a curiosidade do falar do poeta ser presumidamente
"neutro", para quem assiste ao filme no sudeste do Brasil, ou seja, não luso, mas
familiar ao Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que pode ser considerado estranho
e carregado de sotaque, para quem está mais próximo dos tantos outros modos de
falar a língua.
ESTUDOS DE CINEMA
116.
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CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
O cinema novo segundo ffablemos de cine
FABIÁN
NúNEZ (UFF) 1
ESTE PRESENTE trabalho analisará como o Cinema Novo brasileiro é lido pela
revista peruana Hablemos de cine (1965-1986), uma das principais publicações de
cinema, que se dedicou ao debate do Nuevo Cine Latinoamericano (NCL). O cinema
brasileiro ganha destaque, por ser interpretado como um dos fenômenos
cinematográficos latino-americanos mais coerentes, mas não isento de contradições.
Desse modo, a cinematografia latino-americana com maior espaço na publicação é a
brasileira, com exceção, obviamente, do cinema peruano. Em seguida, em termos
quantitativos, são os cinemas mexicano e cubano. Entretanto, por conta da baixa
produção do cinema peruano até os anos 1970, não existe um grande número de
artigos ou críticas a seu respeito, nas primeiras edições. Assim, seus redatores, bastante
rígidos com o cinema realizado no Peru, buscam referências latino-americanas, tendo
como primeiro alvo o cinema brasileiro. A revista propõe oferecer ao leitor informações
de tal cinematografia, tanto por entrevistas como por artigos (alguns, traduzidos de
revistas européias), que compõem dois grandes dossiês, além de outras notas e artigos
isolados. Dessa forma, é possível reconhecer uma ampla simpatia pelos cineastas
brasileiros, apesar de serem tecidas críticas a alguns de seus filmes, principalmente a
partir do final dos anos 1960. Por outro lado, há todo um esforço para compreender
os rumos do Cinema Novo, através de informações sobre as particularidades da cultura
brasileira e do endurecimento do regime militar.
Hablemos de cine surge em um período de boom do cineclubismo em Lima e
se toma, depois de Buenos Aires e Montevidéu, a terceira cidade latino-americana
com o maior número de cineclubes. Porém, a revista critica a ação dos cineclubes ao
demonstrar o quanto é enganosa essa intensa atividade cineclubista. Em sua opinião,
1. Pesquisa realizada com o auxílio da Capes.
120
ESTUDOS DE CINEMA
o público limenho não é cinéfilo, mas apenas curioso em se manter a par das novidades
das cinematografias centrais, sem maiores preocupações culturais. Portanto, ao longo
de sua existência, Hablemos de cine busca suprir as carências de informação sobre
várias cinematografias (em especial, o NCL).
Ressalta-se a duração da revista, que foi editada ao longo de vinte e um anos e
de setenta e sete números publicados. Trata-se de uma notória exceção em relação às
revistas de cinema na América Latina. Por outro lado, a sua periodicidade é bastante
irregular, aspecto comum a essas publicações. Então, em 1965, Hablemos de cine foi
uma publicação mimeografada e quinzenal, passando a ser mensal e impressa, no ano ·
seguinte (1966).Apartirdo n° 33, foi bimensal por quatro anos (1967-1971), contando,
com edições duplas, i. e., referentes a quatro meses. No ano 1972, possui duas
edições trimestrais. A partir do ano seguinte, passa a ser editado um único número por
ano, com o agravante de que o no 69 é relativo aos anos 1977 e 1978. Desse modo,
passa a ser publicada, geralmente, em período anuaJ.2 Frisa-se que, ao longo da sua
existência (1965-1986), a revista continuou tendo praticamente o mesmo número de
páginas (embora tenha ocorrido um gradual aumento de, no máximo, trinta páginas),
apesar de a periodicidade ser cada vez mais espaçada. 3 Embora a diagramação tenha
mudado, assim como o tamanho da revista e, em seus últimos números, a capa seja
de foto colorida, a qualidade da impressão se mantém praticamente mesma.
Pode-se identificar em Hablemos de cine, uma forte influência da crítica
moderna francesa, sobretudo, dos Cahiers du cinéma. Portanto, em seus primeiros
anos, reconhece-se uma declarada vertente "autorista", articulada a uma admiração
pelo cinema clássico estadunidense. Entretanto, os redatores, em suas críticas e em
artigos pontuais, sentem uma necessidade de "explicar" ao leitor que esse
"americanismo" não é uma postura reacionária, mas, pelo contrário, se trata de um
olhar isento de preconceitos e, por isso mesmo, de uma interpretação adequada e
rigorosa de Hollywood. Em suma, a revista se espelha em suas congêneres, o que
suscita uma apropriação da "política dos autores" e uma valorização de Hollywood,
mas, por outro lado, certa necessidade de afirmar um pensamento esquerdista.
2. Não se teve acesso à coleção completa de Hablemos de cine. Ignora-se o seu primeiro ano (1965).
Porém, no no 21 Ganeiro 1966), há um índice de artigos e críticas referentes ao ano anterior. A
revista foi publicada até o n° 77 (março 1984). Após um período de desagregação, a equipe
fundadora decide imprimir uma última edição, o que não chegou a ocorrer. Em setembro de 1986,
a Hab/emos de cine é, oficialmente, declarada dissolvida.
3. Bedoya estabelece três fases. A primeira (no I ao 20; 1965) é marcada pela valorização do cinema
clássico estadunidense. A segunda fase (no 21 ao 64; 1966-1972),já impressa, é caracterizada pela
colaboração de redatores europeus e valoriza, além dos cineastas norte-americanos, o "cinema
moderno". No início dos anos 1970, há uma aproximação com a semiologia. A última fase, iniciada
a partir do no 65 ( 1973 ), possui análises mais extensas e uma equipe renovada, que abandona os
jargões estruturalistas.
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
121
Entretanto, o "latino-americanismo" da revista não é apenas um contraponto à sua
"hollywoodfilia" à francesa, mas, um forte reconhecimento de que as cinematografias
do continente também estão à altura dos "cinemas novos" dos países centrais. Porém,
até 1967, há pouca informação sobre o cinema latino-americano não por desinteresse,
mas por desconhecimento, conforme sublinham os próprios redatores. É a partir de
1967, por ocasião do Festival de Vifia del Mar, no Chile, que a revista aumenta o seu
espaço de divulgação ao cinema latino-americano, embora não abandone o
"americanismo" e o "autorismo". E o primeiro alvo de interesse é, justamente, o
Cinema Novo brasileiro.
Ressalta-se que Hablemos de cine, apesar de sua admiração ao cinema clássico
estadunidense, em seu início, também se esforça em refletir e divulgar os "cinemas
novos". Portanto, é lícito afirmar que o interesse pelo Cinema Novo se enquadra
nesse esforço, com a principal relevância de ser um movimento cinematográfico
"nosso". Em suma, o esforço dos redatores é aproximá-lo aos demais "cinemas novos",
em pé de igualdade, somado com a extrema importância de ser da América Latina.
Houve dois grandes dossiês dedicados ao Cinema Novo, além de artigos, notas
e entrevistas. 4 Frisa-se que o editor Isaac León Frias e o redator Federico de Cárdenas
estabelecem laços pessoais com os seus realizadores, pois essas entrevistas são frutos
de suas viagens ao Brasil. Assim, a principal fonte de informações sobre o Cinema
Novo são os próprios cineastas. No entanto, essa intensa divulgação do movimento
se concentra no período de 1967 a 1970. A partir dos anos 1970, devido à diminuição
da periodicidade da revista e do aumento da produção, sobretudo de curta-metragem,
favorecida pela legislação da época, o cinema peruano ocupa mais espaço, enquanto
que o brasileiro, basicamente, desaparece de suas páginas.
O primeiro dossiê é publicado nos n° 35 e 36, logo após a resenha do Festival
de Vifia dei Mar, editada no número anterior. Portanto, trata-se da "virada" latinoamericanista da revista, i. e., quando aumenta a quantidade de informações sobre o
NCL. Já no editorial do n° 35, a crítica latino-americana é conclamada a criar um
diálogo com as novas produções do continente, o que não significa um louvor irrestrito.
O texto de abertura do dossiê, redigido por León, sublinha a importância do movimento
para o continente. Reconhecendo que se trata de um viés mais jornalístico do que
crítico (que é prometido para posteriores publicações), o dossiê é formado por um
dicionário de cineastas brasileiros, seguido das entrevistas com Glauber Rocha e
4. Hablemos de cine no 35 (maio-junho 1967) e 36 (julho-agosto 1967) formam o primeiro dossiê; os
no 43-44 (setembro-outubro/novembro dezembro 1968) formam um complemento e o segundo
dossiê se encontra nos no 47 (maio-junho 1969), 48 (julho-agosto 1969), 49 (setembro-outubro
1969) e 50-51 (novembro-dezembro 1969/janeiro-fevereiro 1970). Outras informações ou
entrevistas são encontradas nos no 52 (março-abril1970), 53 (maio-junho 1970), 54 (julho-agosto
1970), 66 (1974) e 69 (1977/1978), salvo ocasionais criticas de filmes brasileiros.
122
ESTUDOS DE CINEMA
Walter Lima Jr. Na edição seguinte (no 36), é publicada a tradução do artigo O velho
e o novo, de Alex Viany, seguida das entrevistas com Carlos Diegues eArnaldo Jabor:
Mais de um ano depois, na edição dupla n° 43/44, encontra-se as entrevistas com
Domingos de Oliveira e Iberê Cavalcanti. Portanto, encontra-se um esforço em oferecer
ao leitor peruano uma visão ampla do movimento (quem são os seus integrantes?
quais são as origens do grupo e como se deu o desenvolvimento do movimento?) e
informações atuais, além de buscar dar um esboço do perfil de seus cineastas, por
intermédio das entrevistas. Em suma, como o próprio redator sublinha, é um olhar
jornalístico e não crítico, uma vez que se trata de informar e não de aprofundar uma
análise da obra fílmica. Ressalta-se que o espectador peruano desconhece a totalidade
dos filmes cinemanovistas, algo que os redatores tanto reclamam.
Por sua vez, o segundo dossiê, publicado em 1969/70, se caracteriza por um
esforço crítico, embora o tom jornalístico não tenha sido abandonado. Ressalta-se
que o espectador peruano ainda ignora, em sua imensa maioria, os filmes brasileiros. 5
O material publicado nessa segunda abordagem ao movimento é fruto da viagem de
Cárdenas ao nosso país. Entretanto, além das entrevistas realizadas pelo redator, grande
parte do material é constituído por traduções de artigos dos próprios realizadores.
Portanto, a revista se constitui antes em um espaço de difusão da opinião e pensamento
dos realizadores do que de reflexão do redator em relação ao movimento. O que
explica essa postura não é apenas uma extrema admiração, mas, sobretudo,. uma
cautela em relação a um objeto desconhecido (não apenas o Cinema Novo em si, mas
o cinema brasileiro) e um respeito ao leitor peruano, uma vez que tais filmes brasileiros
não foram exibidos no Peru. Assim, o próprio Cárdenas escreve que prefere deixar os
cineastas se expressarem a monopolizar o debate, uma vez que ele é o único privilegiado
em seu país por haver assistido aos filmes.
O início do dossiê (n° 47) é consagrado a Glauber Rocha. O Cinema Novo é
reiterado e explicitamente, definido como uma referência a seguir e Glauber, alçado
ao "panteão" dos autores modernos, ao lado de Godard, Straub, Skolimowsky e
Pasolini. Tal viés exultório resume a relação da revista com o movimento que, através
das declarações de seus realizadores, encontra-se encurralado por um governo hostil
e uma contradição interna entre as suas preocupações políticas e um maior diálogo
com o público. Essa contradição salta aos olhos na entrevista de Glauber, 6 quando
este elogia Martín fierro, de Leopoldo Torre Nilsson, por conciliar um cinema
espetacular com uma tradição cultural autenticamente argentina. Essa afirmação
5. Apenas alguns filmes chegam a ser exibidos em Lima, em mostras.
6. Entrevista exclusiva a Hablemos de cine, concedida a Federico de Cárdenas e René Capriles. Há
uma tradução, em Português, mas sem as perguntas In ROCHA, Glauber. A revolução do cinema
novo. Rio de Janeiro: Alhambra!Embrafilme, 1981: 62-138
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
123
demonstra as particularidades dos cinemanovistas, uma vez que o citado longa argentino
era· desprezado pela esquerda, visto como conservador oficialista. Outro trecho
relevante da entrevista é quando Glauber, praticamente, "define" o Cinema Novo
como os esforços de uma produtora (Mapa Filmes) somados aos de uma distribuidora
(Difilm), i. e., o movimento não é "definido" por critérios ideológicos e/ou estéticos,
mas empresariais. Em suma, Glauber, nesta entrevista, espelha, de modo bem claro,
a preocupação do movimento em se aglutinar e se articular para agir, de forma
sistemática, no mercado. Ou seja, a militância política cinemanovista se encontra
intimamente associada a um pensamento industrialista. Desse modo, apesar da
admiração da revista pelo movimento, já se pode vislumbrar algumas discordâncias
de seus redatores em relação a certos rumos tomados. E, atrelado a essas divergências,
uma forte necessidade de justificar e compreender tais aspectos. Na verdade, podese afirmar algo muito mais profundo. Na virada dos anos 1960/1970, há duas posições
principais no NCL, que podem ser identificadas na revista: uma vertente "industrialista",
com os cinemanovistas brasileiros e os cubanos à frente e uma vertente "clandestina",
a favor de uma produção militante por grupos coletivos de cinema, espalhados pelo
continente.
Em suma, o segundo dossiê é formado pelas declarações dos cineastas que,
por sua vez, não encontram nenhum contraponto por parte dos redatores. Somente
identificam-se algumas reações pasmas, que são respondidas com argumentos
subjetivos e/ou contextuais (repressão do governo). Assim, passam por suas páginas,
os seguintes nomes: no n° 48, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Paulo
César Saraceni e Luiz Carlos Barreto; no n° 49, Walter Lima Jr., Joaquim Pedro de
Andrade, Leon Hirszman e ArnaldoJabor e na edição dupla n° 50-51, Gustavo Dahl,
David Neves, Neville de Almeida e Julio Bressane.
Nessa última edição, também é publicada a resenha do Festival de Vifía del Mar
de 1969. O artigo sobre a seleção brasileira exibida no festival é escrito por León, que
a considera inferior ao do festival anterior e afirma que tais filmes manifestam uma
tendência, em seus termos, de "revestimento alegórico". Mas, os exemplares desta
vertente possuem malogros e acertos. León defende O dragão da maldade contra o
santo guerreiro em detrimento de Brasil ano 2000, considerado desordenado e "pouco
convincente como expressão". Portanto, os filmes desse período são associados a
um impulso alegórico, vinculado, conforme uma interpretação tradicional, ao
recrudescimento político-ideológico do regime militar. Em suas declarações, os
cineastas "justificam" seus filmes, cada vez mais "abstratos", como uma necessidade
artística criadora de se mergulhar no caldeirão cultural que forma o país. Há breves
notas, para o leitor peruano, sobre o que é o tropicalismo e o modernismo oswaldiano,
buscando explicar o leitmotiv que sustenta tais filmes. Portanto, devido a uma
preocupação com o leitor, que não possui acesso aos filmes nem ao contexto artístico
do Brasil e tampouco a um maior conhecimento da cultura brasileira, os redatores
e
124
ESTUDOS DE CINEMA
asswnem wna posição informativa, para não dizer didática. Esse esforço de divulgação,
calcado na mera exposição da opinião dos realizadores, sem wna maior reflexão acerca
de suas obras, pode sugerir wna visão geral do movimento que, conforme reconhece
o editor León, se define, nesse momento, pelo "revestimento alegórico". É, justamente
essa impressão de totalidade que Bemardet, em uma carta à revista, datada de 24 de
abril de 1970, contesta. Publicada no n° 52, ressalta a importância de analisar o contexto
no qual se inserem esses filmes:
La situación político-cultural es extremamente difícil en e! Brasil actual. Parece obvia,
pero no lo es. Que no se crea que las dificultades son esencialmente de censura y de
lo que ella implica. La censura es e! menor de los males en la medida en que es un
hecho claro delante de! cual es simple tomar posición (incluso cuando se es vencido
por ella). La dificultad de la situación proviene de! hecho de que un grupo de
intelectuales, - los cineastas responsables de! cinema novo y sus continuadores ( ... )
- que algunos afios atrás habían encontrado (acertadamente o no) un papel para su
trabajo en la evolución socio-cultural de! Brasil, e incluso de América Latina, hoy,
estos mismos cineastas (existen excepciones) no saben más cuál es e! significado
social de su trabajo, no saben qué realidad enfocar. Las cosas son confusas:·l,qué
dramaturgia?, o l,qué es la rea!idad brasilera?, l,existe una realidad brasilera?, la
expresión "realidad brasilera", (,tiene algún significado?
Por eso me permito formular algunas reservas en relación a la divulgación de!
cine brasilero que Hablemos de cine está haciendo. Repito que las entrevistas - en
cuanto fales - son excelentes, pero desde una visión individualista: cine = autores
+ films. No se tiene así una visión de conjunto de un movimiento, o de que e!
movimiento está en descomposición. No se tiene una visión de que estas autores y
películas están en disminución, a causa de! bloqueo administrativo y económico
que están sufriendo. No se tiene una visión de que estas films son cada vez más
vacilantes, indecisos (y Brasil afio 2000 es un ejemplo de esto), porque los autores
no :Saben más qué hace. No se tiene una visión de que estas autores son las
muestras de la intelectualidad de una sociedad oprimida, de que ya no están
fertilizados por e/ dinamismo de la estructura social (como fue e! cinema novo,
cualquiera haya sido sus resultados y sus relaciones con e/ público), de que estas
intelectuales que antes iban con la cabeza erguida comienzan a bajarla, de que
estas intelectuales laboran, sino en e! exilio, por lo menos en un semi-exilio (.. .)
(BERNARDET, Jean-Claude. "Cinema Novo: una voz disconforme". Hablemos de
cine. Lima, n° 52, março-abrill970: 13).
A revista aceita as objeções e reconhece que os mais aptos a analisarem a
situação são os próprios brasileiros. E, desse modo, convida os amigos de outros
países a colaborarem com suas reflexões em relação ao que é publicado acerca de
suas respectivas cinematografias. É dentro desse esforço que se pode enquadrar o
breve texto de Cosme Alves Neto, publicado no n° 54. Cosme esboça wn panorama
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
125
,da situação atual da produção brasileira. Sublinha um maior número de produções
regionais e o surgimento do Cinema Marginal, descrito como um grupo derivado do
Cinema Novo, mas que se opõe a ele.
Somente quatro anos depois, é publicado um artigo sobre cinema brasileiro.
Um dos motivos é a carência de informações somado à mudança de periodicidade e
da equipe redatora. É possível afirmar que o maior interesse pelo cinema peruano
tenha "expulsado" outras cinematografias da pauta. Ou, simplesmente, talvez uma
informação ou entrevista isolada não tenha sido o suficiente para ser publicado. Tanto
que as poucas entrevistas realizadas com cineastas brasileiros, depois de 1970, são
publicadas com anos de atraso. 7 Em suma, após 1970, tomam-se cada vez menos
freqüentes as informações em relação ao movimento que, finalmente, é "declarado
morto" em 1974. Em uma resenha sobre uma pequena mostra de filmes brasileiros
em Lima, o redator Ricardo Bedoya afirma, com pesar, que assim como todos os
movimentos cinematográficos da história, o brasileiro, infelizmente, encontrou o seu
fim. Apesar do tom fünebre, o papel histórico e estético atribuído ao Cinema Novo é
considerado de inestimável valor:
E! cinema novo fue e! gran movimiento que e! tercer mundo aportá al cine mundial,
pese a que los públicos europeos, especialmente los que asisten a los festivales, y
los parisinos, fueron casi los únicos favorecidos. El mismo público brasilero no
prestá a su cine el interés que este exigía. Y el resto de América Latina se vio
prácticamente excluída de! conocimiento de las películas de! cinema novo.
Así como sucediá con otros movimientos, así también sucediá con el cinema novo.
El tiempo, la industria absorvente que el movimiento contribuyá a impulsar, y la
dictadura han dejado sus huellas. Hoy, el cine brasilero es una inmensa fábrica
que produce más que ningún otro país de América Latina y que compile en
mediocridad y nulidad con e! cine mexicano y argentino. (BEDOYA, Ricardo.
Hablemos de cine, Lima, n° 66, 1974: 22)
Portanto, o esvaziamento do movimento é considerado como conseqüência da
situação política do Brasil e da consolidação de um raciocínio comercialista. Então, o
movimento já começa a ser visto com certas ressalvas no final dos 1960. Entretanto,
não há uma aprofundada reflexão acerca da "morte" do Cinema Novo. Segundo o
raciocínio de Bedoya, aparenta ser uma "lei natural" dos movimentos cinematográficos.
O fato é que, ao longo dos anos 1970, as referências ao cinema brasileiro escasseiam.
7. No no 66 (1974) é publicada uma entrevista com Nelson Pereira dos Santos, datada de 1971. No no
69 (1977/1978), o artigo de Glauber Rocha data de 1971 enquanto que as entrevistas com Ruy
Guerra são de 1970 e a com Leon Hirszman, é de 1972.
126
ESTUDOS DE CINEMA
Talvez os rumos políticos divergentes tomados pelos dois países, no início dessa
década, expliquem a menor circulação de filmes brasileiros em Lima, mesmo em
mostras e festivais. Mas trata-se de um argumento frágil, pois a exibição de filmes .
brasileiros no Peru sempre foi rara. Por outro lado, há uma maior atenção voltada a
outras cinematografias, como a mexicana (o despontar de uma nova geração de·
cineastas), a argentina e a uruguaia (um cinema militante), a boliviana (circunscrita ao
Grupo Ukamau e, em especial, ao Jorge Sanjinés) e a colombiana (um boom na'
produção de curtas-metragens, graças à uma legislação que guarda semelhanças com
a peruana). Portanto, apesar da forte admiração por seus integrantes e dos laços
pessoais e afetivos criados com eles (não se pode subestimar tal aspecto), o Cinema.
Novo, considerado o movimento pioneiro de cinema terceiro-mundista a ser emulado,
sucumbe por razões políticas e econômicas, sem maiores esclarecimentos. A decisão
de oferecer espaço para a opinião dos próprios realizadores suscita, de certo modo,
uma carência de análises mais aprofundadas do fenômeno em sua totalidade, pluralidade
e ambigüidade. Por exemplo, o fato de não se interessar pelo Cinema Marginal e, por
conseguinte, contrapô-lo ao Cinema Novo, determina um olhar somente voltado para
certos filmes e realizadores, sem problematizá-los. Ao menos, poderia ceder o seu
espaço para que louvem os cinemanovistas e denigram os "marginais", conforme se
pode ver na revista venezuelana Cine al día e na uruguaia Cine de! tercer mundo. 8 Em
suma, o tom jornalístico, mas longe de ser imparcial, pode ser considerado como a
principal postura da publicação em relação ao Cinema Novo, que, por outro lado, não
encontra um movimento substituto, mas apenas alguns esforços coletivos e, sobretudo,
pessoais ao invés de um articulado "movimento cinematográfico". Talvez o cinema
cubano possa ser interpretado por esse viés, porém, a singularidade da ilha a toma,
simultaneamente, modelo e exceção, enquanto que o Cinema Novo era considerado,
sem vacilações, uma referência possível às demais cinematografias do continente.
BIBLIOGRAFIA
Hablemos de cine, Lima, n° 21 ao 77 (números estudados).
BEDOYA, Ricardo. 100 anos de cine en e! Perú: una historia crítica. Lima: Universidad
de Lima/ICI, 1992. pp. 162-6.
8. AVELLAR; José Carlos. "Objetos no identificados",. Cine a! día. Caracas, no 14, novembro 1971.
pp. 10-4. SÉRGIO AUGUSTO. "Cinema Novo brasilefio l,ellujo o la basura?". Cine de! tercer
mundo. Montevidéu, no 2, novembro 1970. pp. 61-7.
A recepção da crítica ao cinema brasileiro
exibido em Portugal: 1960-1999
REGINA GoMES
(UCSAL) 1
O DISCURSO da crítica comum de cinema, embora volátil e imediatista, é também
um discurso datado, cujo registro histórico encontra-se nos jornais e revistas, e mais
recentemente em publicações eletrônicas que dedicam espaços (diários ou semanais)
para resenhas e comentários sobre filmes. Nesse sentido, a crítica de cinema pode (e
deve) ser vista como um excelente elemento de investigação do alcance histórico do
filme, ou seja, de sua recepção.
A estética da recepção, corrente nascida na Escola de Konstanz, Alemanha,
protagonizada por Hans Robert Jauss (1986, 2002) e Wolfgang Iser (1979), produziu
uma profunda reflexão sobre o alcance histórico e estético das obras literárias,
privilegiando a experiência estética do leitor como foco deterrninànte para a realização
da obra de arte. Jauss (1986) compreende o contexto como parte fundamental para
análise do horizonte em que a obra de arte se inscreveu e que pode revelar sua recepção.
De fato, não há dúvida de que a atividade crítica opera como um rico registro
das modalidades de recepção no cinema, e aqui, mais especificamente, como modalidade
de recepção do cinema brasileiro exibido em Portugal.2 O crítico, ele próprio um
I. Doutora em Ciências da Comunicação, especialidade de Cinema, pela Universidade Nova de
Lisboa. Professora da Universidade Católica de Salvador e coordenadora do Grupo de Pesquisa
em Análise de Crítica de Cinema e do Curso de Especialização em Cinema da UCSal. Este texto
contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia- FAPESB, e foi
escrito a partir da tese O cinema brasileiro em Portugal, defendida em novembro de 2006 na
Universidade Nova de Lisboa.
2. Este presente documento de trabalho se refere às críticas sobre filmes publicadas em jornais,
diários e semanários, e revistas lisboetas entre 1960 e 1999, formadores do corpus da pesquisa.
128
ESTUDOS DE CINEMA
espectador, é testemunho de uma época; não um mero leitor de seu tempo, diga-se, mas
produtor de uma leitura mais acurada, atenciosa de uma obra desde já tida como objeto
de análise seu. Na pesquisa, a critica de cinema, foi vista como um elemento do alcance
histórico dos filmes, e, desta forma, refletiu-se sobre como os filmes brasileiros foram
recebidos por parte da imprensa cinematográfica lisboeta mais especializada, dos
chamados formadores de opinião, entre as décadas de 1960 a 1990.
Por outro lado, a crítica de cinema também foi concebida como um objeto
retórico, um produto simbólico e até mesmo como uma construção poética que evoca
efeitos em seus destinatários. Esse tipo de discurso sobre filmes se utiliza de estratégias
persuasivas para conseguir a adesão de seus leitores, estratégias estas que ajudam a
reforçar ou negar pensamentos compactos como os estereótipos sobre uma dada obra.
Neste campo conceitual - a retórica - foram imprescindíveis os trabalhos de
Chaim Perelam ( 1999, 1996) sobre A nova retórica que nos discursos admite a lógica
do preferível em detrimento da lógica do verdadeiro e que não prescinde da idéia de
acordo entre orador e auditório, ou entre texto e leitor.
Já a obra de David Bordwell (1991), Making meaning, propõe uma leitura
atenciosa dos métodos de pensamento e escritura dos críticos de cinema. Embora
nesta obra o autor focalize suas análises para as críticas produzidas em formatos
acadêmicos- o chamado jilm criticism- Bordwell não deixa de revelar a importância
das convenções retóricas utilizadas pelos críticos de cinema também em resenhas
jornalísticas. A critica de cinema para Bordwell é uma prática discursiva cognitiva e
retórica que se moldá pelas instituições que a albergam, seja ela um ensaio acadêmico
ou uma resenha de jornal. Hoje, ela estaria mais longe do ideal de interpretação tomandose uma atividade essencialmente rotineira, sem invenção ou criatividade.
É importante observar que essas duas abordagens não são excludentes, pelo
contrário, há complementaridade entre elas. Os textos críticos por si só foram tomados
como objetos retóricos e como luz histórica para entender o processo de recepção do
filmes brasileiros exibidos em Lisboa. Além disso, a convicção deste presente trabalho,
é que estes dois campos se aproximam tanto no que diz respeito ao exercício da
atividade interpretativa (pensa-se que contextualizar um discurso é compreendê-lo e,
logo, provê-lo de sentido), quanto na ênfase que ambos dão à dimensão estéticocomunicativa do discurso. A meu ver, por trás deste salutar encontro está a tentativa
de pensar o cinema enquanto experiência e suas redes de discursos sociais como
lugar de investigação desta experiência. O cinema, como arte coletiva que é, e com
seu maquinário industrial e simbólico, depende também de uma rede de discursos
sociais que promovem a obra e de certa forma reconstroem o acolhimento do público
ao filme.
Desse modo, uma perspectiva interdisciplinar norteou a investigação
conduzindo-a para a criação de algumas categorias de análise denominadas de marcas
retóricas e marcas contextuais identificadas nas criticas de cinema lusas.
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
129
Foi através do exame destas marcas que se verifica como o contexto histórico,
juntamente com a função retórica inerente a estes discursos críticos, moldou a recepção
das obras cinematográficas brasileiras em Portugal. A cada diferente contexto, ou
década, novos "modos de ler" e novas "formas de 'argumentar" acerca do cinema
brasileiro e as diferentes configurações se afirmavam no processo de interpretação
dos filmes que nos anos 196011970 foram vistos com o olhar-argumentativo acolhedor
da crítica e nas décadas de 1980/1990 este olhar passou a ser filtrado por um misto
de decepção e desilusão. As novas realidades dos anos 1980 e 1990 colocaram a
crítica de cinema numa posição desconfortável, de ruptura com o pacto anterior,
além de contradizer (ou pelo menos reavaliar) suas concepções mais profundas
influenciadas pela política dos autores e pela defesa de um cinema de cauções artísticas
que manifestamente fosse crítico ao sistema industrial norte-americano.
Com efeito, nos anos 1950, 1960, até 1970, parecia existir certa unidade na
produção da cinematografia mundial. Compreendiam-se as propostas da Nouvelle
Vague, do Cinema Novo, do cinema underground ou do Neo-realismo italiano. E, de
certa forma, as coisas se conectavam em várias partes do mundo. Hoje, com os
projetos assurnidamente mais pessoais, a crítica tem mais dificuldade em concentrarse numa direção específica. Ela acabou por manter seus referenciais, alguns os mesmos
dos tempos cineclubistas, caindo no risco da apreciação baseada tão somente nos
padrões das décadas anteriores. A pluralização do cinema moderno, que abriga os
mais variados tipos de direção, estilos e de mistura de linguagens do audiovisual, às
vezes até numa mesma obra, impõe certo desnorteamento às bases de reflexão da
crítica de cinema atual.
AS CONCLUSÕES DA PESQUISA
Nos anos 1960/70 os sinais sobre a época e sobre as críticas, inscritas nos
textos dos jornais, revistas, semanários e livros, indicaram a constituição de um terreno
favorável ao cinema brasileiro em Portugal. As variadas vozes da crítica de cinema
tinham em comum um horizonte que apontava para um cenário receptivo ao Cinema
Novo brasileiro e às suas propostas políticas e estéticas baseadas na discussão sobre
a identidade nacional, na montagem complexa e descontínua entre os planos, na
iluminação natural, nas câmeras com ângulos que privilegiavam a paisagem natural,
enfim, no desconforto com a linguagem clássica do cinema industrial americano.
Isto quer dizer que, apesar do cisma interno vigente na crítica portuguesa do
período, tanto a chamada crítica militante portuguesa, politizada e praticada na maioria
dos jornais diários e na revista Seara Nova, quanto à crítica formalista, que seguia as
diretrizes dos Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague, representada em Portugal pela
revista O Tempo e o Modo e pelo Jornal de Letras e Artes, apoiaram o Cinema Novo
e sobretudo a figura de Glauber Rocha, seu grande avatar. Os principais jornais e
130
ESTUDOS DE CINEMA
revistas especializadas lisboetas tomaram-se espaços privilegiados de legitimação e
promoção deste movimento cinematográfico, fato que já ocorria nas publicações
francesas.
Retoricamente, os juízos atribuídos aos filmes brasileiros na década de 1960
foram essencialmente positivos e justificados por argumentos da ordem do conteúdo
dos filmes que visavam à mobilização do leitor através sobretudo do emprego de
qualificativos. Neste momento, os argumentos voltaram-se para a narrativa filmica,
tomando-a como resultado do olhar objetivo da realidade brasileira pelo cineasta. Nos
anos 1970 as avaliações favoráveis remeteram aos filmes de Glauber Rocha; contudo,
aqueles outros que romperam com o legado do Cinema Novo receberam juízos
desfavoráveis. Os mecanismos retórico-persuasivos presentes nas resenhas foram
marcados por textos mais incisivos e politizados e pela recorrência a argumentos pelo
exemplo, com descrição de cenas e diálogos dos filmes reforçando o raciocínio indutivo
desses escritos.
Em fins dos anos 1970, importantes transformações sociais, políticas e
econômicas, tanto no Brasil quanto em Portugal, impuseram rumos diferenciados
quanto à boa recepção ao cinema brasileiro do período anterior. Os registros comuns
nas resenhas era uma identidade discursiva que criticava e lamentava a aproximação
do cinema brasileiro ao mercado, e o rompimento com a velha tradição experimentalista
do Cinema Novo. E, aliado a isto, o fenômeno das telenovelas e o seu estabelecimento
determinista de uma relação de semelhança com cinema brasileiro.
Nos anos 1980, marcas de juízos negativos predominaram e foram justificadas
por critérios de conteúdo e estéticos (distanciamento temático e estético do Cinema
Novo e aproximação da estética televisiva), utilizando-se sempre um discurso de
adjetivação e a descrição pormenorizada da narrativa do filme. Os julgamentos de
valor predominantemente negativos na década de 1990 tiveram como critérios de
justificação os paradigmas acima citados, e as estratégias de persuasão ganham
características como a presença de informações acessórias ou extrínsecas à análise
nas resenhas, evidenciando, mais que um texto de juízo e interpretação, um discurso
de promoção e divulgação dos filmes.
Estas duas últimas décadas foram marcadas pelas manobras argumentativas
do contraponto ao colocar os filmes sempre em relação ora com o Cinema Novo, ora
com as telenovelas. Observou-se claramente o argumento por modelo perelminiano,
ou seja, aquele que propõe de imitação que embora seja um caso particular, apresentase como norma, e do antimodelo (caso das telenovelas) como exemplo a não seguir.
O fato de os argumentos avaliativos acerca do cinema brasileiro basearem-se
nas matrizes do Cinema Novo e da telenovela denotaram a cristalização de um modelo
de expressão monossêmica que a crítica pode ter transformado em uma conclusão
definitiva. É fato que os estereótipos também fazem parte da tradição, mas se está
lidando com convenções que são repassadas para os leitores e que podem, por sua
vez, condicionar previamente sua recepção para esta cinematografia.
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
131
É fato também que este é um problema situado historicamente e que parte de
nossa pesquisa foi a busca e localização das raízes deste modelo. O contexto certamente
tem um papel fundamental e interfere na recepção da obra, na sua boa ou má aceitação.
Todavia, isto não exclui uma reflexão sobre a concepção de uma imagem do cinema
brasileiro mais "adequada" para a crítica portuguesa. E esta imagem sempre esteve de
acordo com uma espécie de "agenda estético-politizada" da crítica. Querer-se-á dizer
com isto que a crítica produzida na imprensa escrita portuguesa desde meados dos
anos 1960 acatou as influências da crítica francesa, seguiu o modernismo políticoestético que dava aval ao Cinema Novo e, desde fins dos anos 1970, questionou a
quebra de continuidade com este movimento, quando o cinema brasileiro não mais
correspondia às expectativas de um cinema periférico revolucionário.
O mesmo se passou com a idéia de "influência do modelo de telenovela" na
cinematografia brasileira, sobretudo a partir de finais dos anos 1970, tomando-se um
exemplo invariável para analisar os filmes brasileiros desde então. O estabelecimento
de relações, normalmente de semelhança, entre as telenovelas e o cinema brasileiro,
alterou sobremaneira a imagem do cinema brasileiro em Portugal. Esta alteração passa
pelo olhar da crítica de cinema lusa sobre a perda de qualidade dos filmes brasileiros,
uma vez que, desde os atores inscritos numa rede de sistema de estrelas já consagrados
na televisão, até a adoção de determinados efeitos estéticos como os fechados
enquadramentos, serão, desde 1977 com a chegada de Gabriela à Portugal, associados
ao cineína brasileiro como parte constituinte de uma indústria de banalização estética
e comercial.
Para a crítica de cinema lusa, o cinema brasileiro, que antes havia garantido
seu lugar de arte conquistado nos os anos 1950/60, confundia-se agora com a
vulgarização comercial da televisão. Em diversas críticas aos filmes brasileiros desde
a década de 1970 até nos dias atuais, a relação estabelecida entre telenovela e cinema
brasileiro é recorrente e considerada critério de desqualificação dos filmes que agora
estão sujeitos e submissos a uma "estética televisiva" baseada na "visibilidade" da
intriga dessas narrativas seriadas e num modelo de interpretação dos atores que privilegia
dramaturgicamente o reduzido espaço da tela de TV.
Outra questão diz respeito à crítica não levar em conta (não necessariamente
aceitar de forma incondicional) a inevitável hibridação que existe entre as linguagens
do cinema e as da TV, hibridação circular, na medida em que o cinema também
fertiliza a linguagem da TV.
O fato é que aquela velha estrutura bipolar entre a produção hollywoodiana e o
cinema modernista ou de vanguarda não só permanece como se mantém viva no
espaço da crítica cinematográfica na imprensa portuguesa (sobretudo na avaliação de
filmes brasileiros). Fernando Mascarello (2000) defende que este legado modernista
(diga-se que não só da crítica como também da própria teoria do cinema) de expressão
dicotômica (cinemalcontracinema, prazer/desprazer, produção de ideologia/produção
132
ESTUDOS DE CINEMA
de conhecimento) baseou-se na ofensiva à produção comercial de massa e no elogio
e nostalgia pelo político. O autor afirma que este paradigma teórico modernista firmouse a partir de maio de 1968 até meados da década de 1970, sobretudo no espaço.
editorial das revistas Cinéthique, Cahiers du Cinéma e da inglesa Screen, que se
sustentavam na "triangulação de semiótica, marxismo e psicanálise que a um tempo
oferece a crítica ao realismo clássico e a sustentação a uma vanguarda revolucionária"
(MASCARELLO, 2000: 130)_3
A análise mais atenciosa às críticas publicadas na imprensa escrita portuguesa
parece comprovar tal influência do paradigma modernista, presente na defesa de
valores pautados no realismo crítico do Cinema Novo e no ataque ao ilusionismo da
televisão. Esta nostalgia por uma revolução formal e política talvez tenha feito com
que os critérios de avaliação dos filmes brasileiros se mantivessem pautados neste
protótipo, comprovados pela recorrência aos referidos temas como uma constante
nas resenhas analisadas. Estas também apresentavam outros sistemas de oposição de
conceitos e noções típicos deste paradigma como: imagem realista x imagem maquiada,
cenário natural x cenário de estúdio, fruição crítica x fruição desinteressada, crítica
social x melodrama, cinema fácil x cinema difícil.
Saliente-se que este enquadramento foi observado tanto nos jornais diários
quanto nas revistas e semanários, embora nestes últimos, ironicamente publicações
em que o rigor na análise das criticas foi mais evidente, os juízos negativos dados aos
filmes brasileiros tenham sido dominantes. Além disso, os semanários portUgueses
são tradicionalmente considerados como formadores de opinião tanto do públicoleitor como de outros jornais diários.
O problema é que aqueles filmes que estão fora do círculo das "boas"
convenções, acabam por receber tratamento qualitativo diferenciado, o que,
inevitavelmente, influenciará a interpretação dos leitores das críticas. Ademais, não se
deseja aqui imprimir um sentido de pura instrumentalidade no processo comunicativo
entre a critica e seus leitores portugueses, que podem negar, corrigir, modificar ou
simplesmente reproduzir estes modelos de apreciação, mas é inequívoca a dimensão
de seu efeito. A crítica de cinema lusa deve refletir se quer continuar devota de
parâmetros de avaliação que se estabeleceram em outras épocas e em condições
históricas bem diversas, sob pena de pré-conceber e pré-julgar certos filmes de uma
cinematografia. Sob pena de também cair na armadilha do saudosismo.
É notório que o atual cinema brasileiro corresponda a uma estética, de certa
forma, distante do modernismo político-estético de vanguarda dos anos 1960. A crítica
3. Esta questão estético-ideológica que norteou o cinema de pós-68 foi discutida por diversos autores.
Entre eles destaca-se Francesco Casetti (1994), que também analisa esta tendência em revistas
italianas como Cinema nuovo, Filmcritica, Ombre rosse e Cinema e Film, além das já citadas
revistas francesas.
CINEMA BRASILEIRO LÁ FORA
133
não deve, então, repensar certos conceitos como os de ideologia, ética, verdade ou
estética à luz de uma realidade que já não é mais aquela que forneceu as bases para o
paradigma anterior? O crítico Luiz Zanin Oricchio (2003) chama o cinema
contemporâneo brasileiro de "cinema impuro", ou aquele que não recusa diálogo com
. as diferentes linguagens, aquele que não abre mão dos recursos do espetáculo em sua
forma, e aquele que mostra a corrosão de um cânone, político e estético, materializado
nos anos 1960 pelo Cinema Novo. Como ocorre com os movimentos de rupturas, o
Cinema Novo "inventou" uma tradição mas,
uma tradição deve inspirar, e não inibir. Cria-se a partir dela, talvez contra ela ou
apesar dela. O que é vital, desde que a não tenhamos como peça de museu, fantasma
assustador ou parâmetro inatingível em relação aos quais todas as comparações
são desfavoráveis (2003: 229).
Historicamente, a critica de cinema da imprensa escrita portuguesa compreendeu
o cinema brasileiro, exclusivamente como o Cinema Novo, e desde então moldou
seus parâmetros a partir deste movimento. E tendo a crítica também um papel de
transmissão histórica de sentido para um leitor, cabe a ela estar atenta para evitar
distorções e generalizações abusivas. O discurso da crítica de cinema constitui um
meio socialmente efetivo da acolhida dos filmes, abrigo histórico dos filmes, produzindo
expectativas de aprovação ou desaprovação no público-leitor.
Lidas como consenso estético e político, as obras clássicas do Cinema Novo,
em especial as de Glauber Rocha, demarcaram os parâmetros de avaliação sobre o
todo o cinema brasileiro desde os anos 1960 até os dias atuais. Lidas como subprodutos
da cultura popular de massas, as telenovelas delimitaram os padrões de rejeição ao
cinema brasileiro desde finais da década de 1970.
Por fim, outras conclusões a que chegou a pesquisa e que merecem ser
mencionadas:
• A presença da cinematografia brasileira em Portugal passa quase que
inevitavelmente pelo circuito alternativo, o dos festivais e mostras na
Cinemateca Portuguesa.
• A Cinemateca Portuguesa e os festivais de cinema, neste contexto, serviram
simultaneamente como espaço de divulgação e de legitimação das obras do
Cinema Novo, em especial às de Glauber Rocha, com exibições recorrentes
de filmes do diretor.
• A década de 1970 foi a década de maior circulação em salas comerciais de
filmes brasileiros, sobretudo no período posterior à Revolução dos Cravos,
quando houve uma maior abertura de mercado aos produtos culturais
brasileiros.
ESTUDOS DE CINEMA'"
134
• Glauber Rocha foi o realizador brasileiro que mais exibiu filmes em Portugal
. entre 1960 e 1999, tanto no circuito não-comercial como no comercial. "
Diário de Lisboa, Diário Popular e República;•
• Foi nos diários ーセイエオァ・ウL@
e na Revista Celulóide onde mais se produziram críticas sobre filmes
brasileiros e Lauro António o crítico que mais publicou resenhas nos Diário.
de Lisboa e Diário de Notícias.
• A crítica francesa nos anos 1960/70, bastante influente em Portugal, criou
um lastro de avaliação favorável e de reforço ao paradigma do "bom cinema
de vanguarda moderno" e esse lastro se perpetuou ao longo das últimas
décadas.
• Foi nos espaços dedicados à crítica de cinema dos semanários (leia-se
Expresso) onde os filmes brasileiros receberam a maior carga de juízos de
valor negativos sobretudo a partir dos anos 1980.
• É preciso entender que o juízo desfavorável ao cinema brasileiro mais recente
não está alheio às convulsões midiáticas por que passou Portugal, sobretudo
nos últimos 30 anos, com a popularização das telenovelas brasileiras e a
transformação radical do padrão das ficções de audiovisual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORDWELL, David. Making Meaning: Inference and Rhetoric in The Interpretation of
cinema. USA: Harvard University Press, 1991.
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EM TORNO DA
AMÉRICA LATINA
O documentário chileno da atual democracia
ANoREA MoLFETIA (UNICAMP)
FUI A SANTIAGO do Chile pela primeira vez em maio de 1990. Em pleno
movimento de abertura democrática, nós, jovens poetas chilenos e argentinos,
organizamos o primeiro encontro de poesia em democracia, com apoio dos dois
países. Tive contato com poetas e militares. Recitamos em várias universidades e
fomos presos por pintar poemas na Faculdade de Direito da Universidade do Chile.
Passados 18 anos, novas gerações crescem em meio a esta oposição que convive
na experiência democrática, na qual adversários e propostas não são claramente
definidos num simples jogo de exclusões. Na nova safra de documentários, a
representação dos conflitos políticos, assim como as narrativas de reconstituição
histórica, caracterizadas pelo modo expositivo da representação, deixaram de ocupar
o papel protagônico no conjunto da produção local.
A estética da Chile Filmes, dirigida por Littin, caracteriza-se como programa
estético do que foi chamado Novo Cinema Chileno durante o governo de Allende
(1971-1973). Hoje, após Pinochet, os realizadores olham para a sociedade sem
necessidade de grandes julgamentos, balanços ou chamados à sociedade. O
documentário atual, alinhado na estilística do cinema direto, que explora com inusual
força expressiva urna câmera observacional, mostra a contemporaneidade do país
transandino por meio de retratos parciais, porém profundos, de urna Santiago sob
influência dos processos econômicos, sociais e culturais ligados à globalização, como
se vê nos filmes Este ano no hay cosecha, de Vergara e Lavanderos (2000), ou Trago
Dulce, Trago Amargo, de Evans (2003). Assim, no uso das técnicas de investigação,
seguimento de personagens, câmeras leves, som direto, montagem profusa e zoom,
o documentário chileno pós-Pinochet mostra as mais cruas contradições geradas pela
economia nos indivíduos, retratados como personagens sociais de um cinema do
presente. Este cinema se relaciona com o formato da reportagem: para além da entrevista
138
ESTUDOS DE CINEMA
e sua interação, tem-se a observação de horas de gravação como incremento. Os
filmes se referem assim, indiretamente, ao formato do informe especial, ou reportagem
·
em profundidade.
Antes de prosseguir, devo dizer que trabalho com base na curadoria da Assoe.
de Documentaristas Chilenos (ADOC), que organiza uma mostra anual itinerante com
o apoio do Governo de Chile, levando para o exterior o melhor da produção recente.
Tive o privilégio de trazer esta mostra para o Brasil no ano de 2006. Tal mostra é, por
si mesma, um objeto representativo, porque foi curada por especialistas do setor e
inclui várias gerações: de Chasquel à dupla OsnovikoffiPerut.
Filmes como Este ano no hay cosecha, de Vergara e Lavanderos (2000) e
Nema Problema, de Leighton (2001), são exemplos claros do Chile atual, urbano, sob
o influxo da globalização e das políticas neoliberais. A primeira película mostra a vida
de um conjunto de crianças de rua, expostas a situações de perigo, como o consumo
de drogas. As imagens são de forte teor dramático, o que sensibiliza os espectadores
devido à precária condição social e à ingenuidade desses jovens. O segundo filme,
Nema Problema, mostra a chegada de um grupo de refugiados políticos da antiga
Tchecoslováquia que não aceita as condições de moradia e trabalho de classe operária
oferecidas pelo governo chileno. No final do processo de transição, alguns não se
adaptam e escolhem retornar a sua terra, mesmo que ela esteja em ruínas, enquanto
outros optam por uma nova vida na América do Sul.
Pude perceber pelo menos dois sintomas que despertam a atenção: em primeiro
lugar, freqüentemente, o posicionamento ideológico explícito do autor, assim como a
reconstrução ou síntese histórica de grandes períodos de tempo que são abandonados,
gerando uma série de relatos nos quais o conceptor atua como alguém que mostra o
direto.
presente, ocultando-se enquanto enunciador, manobra tradicional do セウエゥャY@
Muito representativa deste sintoma ou traço dominante do cinema-documentário
chileno atual é a obra de Osnovikoff e Perut, Un Hombre Aparte (2002), ou El Astuto
mono Pinochet contra La Moneda de los Cerdas (2003 ), filmes que analisarei logo abaixo.
Um segundo sintoma ou traço estilístico dominante que detectei foi, de acordo
com a tendência mundial, o modo performativo da representação, no qual o trabalho
da memória e da consciência histórica do sujeito-realizador encontra no processo
filmico um modo de escritura ou técnica de si (Foucault), mostrando seus processos
e resultados, como em Algun Lugar de! Cielo, de Carmona (2003).
Não assumir o lugar da enunciação traz uma conotação ideológica ligada ao
cinema direto . Perder a chance de assumir um posicionamento político explícito algo que no Brasil já tem sido chamado de "silêncio dos intelectuais"- ou colocar na
esfera do subjetivo a voz expositiva, como faz o performativo, são duas opções que
rejeitam a narratividade clássica.
Na década de 70, vivia na América Latina uma geração que projetou na arte
filmica uma função expositiva e militante, como dispositivo de comunicação para a
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
139
transformação social, a partir de uma revisão histórica e da construção de fundamentos
para o presente político, como os projetos sobre Balmaceda realizados durante o
período da Chile Filmes dirigida por Littin.
Hoje, temos um documentário que investe retoricamente na sensibilização do
espectador diante dos dilemas de uma economia global, e que compreende a sua
linguagem como a de um espaço audiovisual não-programático, sem proposta, destinado
a oferecer a palavra à multiplicidade de vozes sociais, nem sempre representadas
pelos discursos dos outros meios de comunicação.
Alguns anos depois daquela primeira visita, já em Buenos Aires, percebi que a
intensidade do movimento da vídeo-arte sul-americana nos anos 90 e a conexão entre
poesia e novas mídias fizeram com que a produção chilena experimental começasse a
crescer e também a ser divulgada na Argentina, isso por conta do apoio do governo
da França, indubitavelmente necessário para o encontro destas nações vizinhas.
No Chile nasceu, em 1984, o primeiro encontro de vídeo-arte da América
Latina, denominado "Festival Franco-Chileno de Vídeo-Arte", impulsionado pelo
Ministério de Assuntos Estrangeiros da França, na figura de Pascal Gallet, que, de
maneira política, abriu um novo pólo cultural aproveitando o espaço da embaixada.
Logo depois, as obras ali exibidas tomaram-se objeto de meu doutorado." Retomei em
2001, para fazer o trabalho de campo, a uma Santiago economicamente fortalecida,
que, graças à liberdade midiática, sente os estertores de antigas contradições políticas
ainda presentes no horizonte mediático.
Em 2006 realizei, com o apoio da FAPESP, minha mais recente viagem à citada
nação andina, para pesquisar o que havia de inédito na produção do país, especialmente
aquela vinculada aos modos performativos da narração documental; encontrei a capital
cinematograficamente revigorada, cuja estrutura produtiva dispunha de maior
organização (menos eletrônica e mais cinéfila, com novos espaços difusores), o que
permitiu um acréscimo nas estréias anuais de longas-metragens.
O "Festival Internacional de Cinema de Santiago", então com dois anos de
vida, ao selecionar películas, não distinguia obras ficcionais de documentários e
equalizava filmes ligados a produtoras televisivas daqueles independentes. Chamoume a atenção ver pessoas da minha geração, com idade média de 40 anos, filmando
pontos de vista que revelam esta nova urbe imersa nos processos e problemas gerados
pela globalização, como as migrações (internas e intercontinentais) e as condições
sócio-trabalhistas impostas pelo neoliberalismo.
Distingue-se claramente o período apresentado das décadas de 60 e 70, quando
a base produtiva do cinema-documentário encontrava-se interna às universidades,
numa institucionalização também ligada aos subsídios de fundações internacionais. A
transformação dos alicerces econômicos alterou significativamente os modos de
produção deste gênero cinematográfico que, potencializados pelo ambiente
democrático, cederam lugar à manifestação dos distintos setores da sociedade.
140
ESTUDOS DE CINEMA
O documental expositivo e militante da esquerda, posição dominante a partir
dos anos 70, convive hoje com uma nova geração de cineastas para quem a tradição
de compromisso político se transformou pelas vias da fidelidade ao indivíduo retratado,
filmes de produção independente relacionados de modo direto com o mercado
internacional, e uma estética do direto. Nesses filmes, o balanço histórico deixa de ser
objetivo e passa a ser questionado como finalidade da arte, que está mais comprometida
com o aprofundamento da sua visualidade.
Se o cinema militante dos anos 60 e 70 utilizava todas as potências da montagem
para nos fornecer grandes sínteses históricas, que no fundo apresentavam os objetivos
programáticos do governo socialista (como exemplos, pode-se elencar La Hora de
los Hornos (Argentina, 1968), ou La Batalla de Chile (Chile, 1973), a partir dos anos
90 são exploradas as possibilidades das câmeras leves para mostrar, no micro-mundo,
a micro-política dos sujeitos desta história, seus detalhes, desorientações e contradições.
Para proceder com tal desprendimento, esta nova geração consegue se desfazer dos
compromissos criados pelas instâncias ideologizantes da produção, como partidos
políticos e fundações humanistas, o que proporcionou aos realizadores documentais
a conquista de um espaço de autonomia expressiva e liberdade de pensamento
considerável.
A ambiência tecnológica contemporânea, amplificada pela potência da
distribuição digital das imagens na rede mundial de computadores, traz para o realizador
novas dinâmicas de confecção e distribuição dos seus filmes, assim como, na
perspectiva pós-colonial, projeta com autonomia para o interior do campo intelectual
local, parâmetros estéticos e preocupações dos campos intelectuais centrais,
modernizando progressivamente, não sem conflitos, o horizonte regional.
Como fruto do encontro destas duas manifestações cinematógráficas, que
representam alinhamentos ideológicos diversos, pude vislumbrar in loco a posição
· que o debate da ética documentária ocupa na Santiago de hoje. Em sucessivas
entrevistas a realizadores, percebi como a história de tal gênero está ainda marcada
pelos compromissos dos anos 70 com o Estado, representante de uma política
centralizadora e de recursos públicos exíguos, porém com o apoio das fundações
internacionais.
Fabián Nufíez (2006) nos explica a necessidade destes aparelhos governamentais
i:J.os anos 70:
"Para compreender essa exigência do governo à sua imatura empresa estatal, é
necessário ressaltar que a maioria dos meios de comunicação estava nas mãos da
oposição. Portanto, à Chile Films, assim como ao Canal Nacional de Chile, incumbese a tarefa de porta-vozes da UP (Unidade Popular) frente à maciça propaganda
ideológica dos opositores. Por isso, se favorece a produção de curta-metragens
documentais que vão da função pedagógica (como política sanitária ou combate ao
alcoolismo) à de denúncia social, alguns bem panfletários".
EMTORNO DA AMÉRICA LATINA
141
Relatar apenas os aspectos textual e estilístico desta cinematografia não é
suficiente para entender o estado dela nesta primeira década. Assim como descrevi as
mudanças no plano da produção e das instituições intervenientes, quero agora me
debruçar sobre o terceiro aspecto diferencial: os discursos da crítica . Nos dias atuais,
existem discussões mais do que reveladoras na constituição dos critérios estéticos e
políticos aplicados pelos júris, comitês de seleção e pela crítica, por exemplo.
Realizei numerosas entrevistas (Vivi Erpel, Ivan Osnovikoff, Pedro Chaskel,
Patrício Guzman, Justo Pastor Mellado, Pablo Corro, Guillermo Cifuentes etc),
posteriormente ânalisadas de maneira discursiva, com o isolamento das principais
unidades de sentido. Ao mesmo tempo, acompanhei o debate da revista eletrônica
Mabuse, e arquivei estes materiais, que foram objeto de novos estudos. Pude apreciar
em ambos os documentos de campo um candente enfrentamento de posições; uma
ligada historicamente à ética do humanismo, outra liberal e contemporânea, que reclama
a autonomia do cineasta, em primeiro lugar como produtor, a seguir enquanto sujeito
expressivo e cidadão singular.
Foi chamativo o debate em tomo do filme Un Hombre Aparte, da dupla
Osnovikoff/Perut, tal como aparece em "Los limites dei documental: mentiras
verdaderas", de Jorge Morales, no citado periódico eletrônico. Neste artigo, o foco
da discussão está nas relações de fidelidade e traição entre sujeito do filme, sujeito
realizador e sujeito espectador, três instâncias que, discursivamente , surgem
problematizadas. Morales diz:
"Porque si algo caracteriza este trabajo es que acá no existe compasión. Los
realizadores sólo observan indiferentes, pero con cercanía microscópica, la dolorosa
autodestrucción de un ser humano. Morbosidad enfermiza de una cinta que no
indaga las razones de la debacle de Liaiío sino solamente contempla su deterioro
moral. Es cierto, Un hombre aparte atrapa, pero es una trampa. Una trampa que siendo justos- podrían hacernos no sólo los realizadores sino e! propio Liafío. Por
que, (.CÓmo podemos responsabilizar dei todo a Peru! y Osnovikoff si e! ex promotor
fue quien interesadamente -por vanidad o dinero- se prestó a esta exposición?. Ahí
es cuándo la interrogante "(.Quién está usando a quién?" se torna poderosa".
Pensando na experiência do cinema-verdade francês, perguntei para Vivi Erpel,
presidente da ADOC, se a explicitação da instânCia discursiva dos cineastas, aspecto
auto-reflexivo iniciado por Rouch e ausente neste filme, não contribuiria para desvendar
este problema ético. Para ela, que manifestou claramente suas reservas sobre isto, a
manipulação possível dos realizadores não necessariamente deve ser explicitada no
campo da diegese.
"Tiene que haber mucha justificativa para que un docurnentalista se transforme en
su personaje. Porque yo ya sé por e! montaje lo que estoy determinando. Y como
142
ESTUDOS DE CINEMA
está esta tendencia en Ia televisión, se la repite mucho. Es Ia generación Michael
Moore. Pero pasa que no siempre se justifica que e! autor se convierta en un
personaje"
Constatou-se que os filmes do presente, ao mostrarem as contradições da
experiência chilena, utilizam como base uma nova estrutura material que lhes garante
autonomia e independência, na produção e nos compromissos institucionais; criam
assim margem para o questionamento sócio-histórico, enfrentando as versões
dominantes, posto que o poder dos meios massivos de comunicação continua bastante
centralizado.
Dada a predominância do modo performativo em questão, o que acompanha a
tendência mundial, também o cinema da memória mostra um presente desorientado,
sem perspectiva ou expectativa histórica, onde os protagonistas são, via de regra,
jovens sem futuro. Nestas películas, as ideologias se dissipam diante da força da
sobrevivência cotidiana e o impacto da globalização induz os sujeitos a novos
posicionamentos perante o mundo. Indiretamente, este cinema cumpre a função de
um credor histórico: Onde estão as filiações políticas e os compromissos atuais? Em
que sentido os jovens se mobilizam hoje?
Para falar desta juventude, passa-se à análise de E! Astuto mono Pinochet
contra La Moneda de los Cerdos, de Osnovikoff e Perut (2003). Nele, a história
política é recriada por grupos distintos de crianças e adolescentes, a partir de jogos de
improvisação registrados por uma brilhante câmera. A base narrativa do filme é este
papel documentarizante do processo destes jogos - como evoluem e as diferentes
versões que são criadas para a mesma circunstância histórica quando, por exemplo,
mostra-se a morte de Allende como suicídio, ou como assassinato .
Na estilística do direto, a película apresenta o espaço onde é preparada (prófilmico ), e inexoravelmente o espectador é levado, ao longo de todas cenas, de volta
a este lugar, à margem ou ao recuo de uma fruição juntamente narrativa e autoreflexiva.
Tal distanciamento crítico, na linha do teatro brechtiano, transforma os
realizadores em desenhistas de um dispositivo audiovisual lúdico, por meio do qual é
recriado o conflito histórico surgido durante o governo da Unidade Popular. Em meio
àos grupos de jovens, tem-se um filme sendo feito, o cinema dentro do cinema. Dos
jogos de improvisação surge o roteiro, e ao mesmo tempo, por conta da função
documentarizante, o conteúdo dos discursos feitos durante estes movimentos tomase um objeto histórico contrastante para os montadores, que mostram por meio deste
documento de pesquisa, a sobrevivência dos ditos dos mais velhos na fala das crianças,
como uma grande tecelagem. Assim, a agudeza da montagem é outra característica
que Perut e Osnovikoff exercem com grande poder crítico, por vezes transformandose em algozes dos seus próprios protagonistas e construindo pontos de vista muito
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
143
:eloqüentes em termos expressivos, que ao público posicionam e distanciam, ao mesmo
•tempo, tanto da história chilena quanto desses sujeitos contemporâneos, cujos
discursos fazem com que nos tomemos entes observadores dos acontecimentos.
O casal de realizadores já foi várias vezes atacado por críticos e pares por
adotar a postura que beira a quebra da confiança na relação autor-sujeito no filme.
Jorge Morales afirma que no caso de Um hombre a parte, os cineastas mentiram ao
protagonista para obter imagens que, na montagem, manipularam com ironia seu
próprio sujeito, que ingenuamente se colocou à disposição de um projeto filmico que
em verdade desconhecia. Esta quebra de compromisso é, evidentemente, uma ruptura
ética. Antes de analisá-la ou julgá-la, meu trabalho pretende demonstrar que isto é
possível num campo intelectual cujo cinema é produzido dentro de um sistema
·independente em absoluto. A comunicação que ora faço quer destacar o aspecto ético
atrelado a estas novas condições de produção, nas quais ocupa posição de evidência
a importância das instâncias executiva e comercial na constituição ética da proposta
audiovisual.
O que chama a atenção é que esta geração pensa seu gênero de atuação como
um campo amplo para experiências, promovendo relações entre vídeo-arte e
documentário (Cifuenetes, Aravena), documentário e ficção (Perut, Osnovikoff); com
este proceder introduz no celeiro intelectual de seu país uma noção radicalmente
modernizada e ampliada do estatuto documentarista, em clara sintonia internacional,
onde o realizador opta por assumir ou não os compromissos que surgem em seu
processo. A opinião do autor centra-se na sua figura individual, porque sua instância
produtiva assim lhe permite alavancar e assinar seus pareceres, não existe alinhamento
político e pode haver a quebra dos compromissos com o sujeito, como em Um hombre
aparte.
Todavia, em nenhum dos exemplos desta estética surge o próprio realizador no
pró-filmico, quando poderia assumir na representação esta liberdade, colocando-se
explicitamente no lugar da enunciação- isto ocorrerá, de maneira inevitável, durante
o trabalho da montagem.
Já em Algun Lugar de! Cielo (2003), a presença do elocutor no pró-filmico é
clara, permanente. Acompanha-se a personagem protagonista na intimidade da sua
fabulação representativa do período histórico. Foucault (2004) apresenta dois conceitos
bastante úteis à compreensão da estética documentária contemporânea na América
Latina: A micro-política, em filmes onde observa-se a política nos mundos particulares.
A técnica de si, em produções feitas a partir do sujeito-autor.
Em matéria de processos criativos, tem-se um cinema que recoloca a importância
do roteiro: escrever a partir das técnicas do direto significa, uma lidar com o acaso e,
ao mesmo tempo, uma roteirização na montagem. O novo roteirista trabalha
determinado pelos materiais. E esta elaboração poética (escolher dentro dos paradigmas
para compor um sintagma) passa a ser uma técnica de si. Sabendo-se que o sujeito da
.
ESTUDOS DE CINEMA
144
enunciação e o sujeito do enunciado são duas instâncias distintas, é a presença do
segundo com as marcas apagadas do primeiro o que chama a atenção como sintoma:
em tempos democráticos, onde não haveria aparentemente censura, o sujeito da
enunciação adere ao direto sem cogitar a reflexividade pessoal, e sim uma reflexividade
do processo filmico em si, como se esta ausência pudesse se esquivar da política.
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A estética da monotonia: desencanto,
solidão e incomunicabilidade em Whisky
FÁBIO .ALLAN MENDES RAMALHO
(UFPE) I
UM CERTO DESENCANTO LATINO-AMERICANO
SE JEAN-Luc GüDARD, em Vivre sa vie (1962), em determinado momento
enuncia que "a felicidade não é engraçada", talvez seja possível dizer, por sua vez, que
a infelicidade pode ter certa graça - mesmo que provocando um riso inegavelmente
incômodo. O tom de desencanto que permeia diversas obras do cinema latino-americano
contemporâneo e que tem se desdobrado em narrativas marcadas por uma perspectiva
por vezes nostálgica e melancólica, outras vezes fortemente irônica, aponta também,
em determinadas produções, para a possibilidade de articulação entre estas duas
vertentes a partir de uma abordagem intimista, cuja construção se dá em tomo de
pequenos fatos, banalidades cotidianas que ganham visibilidade a partir de uma poética
do detalhe e do ordinário. 2
Uma apreciação das duas obras realizadas conjuntamente pelos diretores Pablo
Stoll e Juan Pablo Rebella, 25 Watts (2001) e Whisky (2004), evidenciam como uma
de suas principais marcas este caráter fortemente subjetivo a partir do qual são postas
em cena as vivências diárias de personagens marcados pela falta de perspectivas e
pela desarticulação. Suas ações, embora ordenadas em rotinas e repetições, constituem
o que se poderia entender como uma aparente "crise de sentido", na medida em que,
1. Pesquisa desenvolvida com apoio financeiro da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior).
2. Um importante esforço no sentido de delinear, dentre o conjunto da produção audiovisual
contemporânea- e em particular no cinema brasileiro- as recorrências discursivas e estéticas de
obras que privilegiam este olhar voltado ao detalhe e ao ordinário- constituindo assim o que se
poderia entender como uma poética do cotidiano- encontra-se em Lopes (2005).
146
ESTUDOS DE CINEMA
longe de apresentarem-se como fatos articulados, apontam para um sentimento de
desconexão e deriva. As esferas da cotidianidade - dentre elas os espaços da casa, do
trabalho e da cidade, bem como as relações afetivas, quer sejam estas amorosas ou ·
familiares - são perpassadas pela disjunção entre a dinâmica que lhes é própria, suas
demandas, e as carências e anseios dos indivíduos retratados. Tais problemas apontam,
assim, para um estado de perplexidade que, em última instância, sugeriria uma possível
falência de objetivos e interesses em um contexto de desolação e imobilidade.
Neste artigo pretendemos discutir os modos pelos quais um olhar sensível a
estas questões se constitui em tomo de micronarrativas centradas em pequenos
acontecimentos - alguns deles aparentemente insignificantes, quando tomados pelo
ponto de vista das narrativas clássicas - analisando, para tanto, de que modo tais
preocupações se traduzem em recursos estéticos tais como ritmo, enquadramentos e
mise-en-scene. Optamos por centrar nossa análise em Whisky, o último dos dois filmes
resultantes desta parceria - interrompida prematuramente pela morte de Rebella, em
2006 -, por entendermos que este apresenta elementos que são de particular
importância para esta investigação.
Dentre os elementos do cotidiano possíveis de serem abordados, evidenciamos
aqueles que, a mossa ver, sobressaem-se na construção da narrativa. Primeiramente,
o âmbito do trabalho e suas rotinas, que se apresenta de forma recorrente no enunciado
da obra. Em segundo lugar, consideramos a tematização de afetividades ambíguas,
por diversas vezes apenas sugeridas entre os personagens e que, no entanto, ganham
profundidade com o desenrolar da história, podendo apontar interessantes caminhos
para a apreensão dos inúmeros sentidos possíveis sugeridos pelo filme. Pretendemos
ainda, ao longo deste percurso, estabelecer conexões com obras realizadas no mesmo
período, como tentativa de contribuir para o delineamento de linhas de convergência
temática na produção recente dos países da região.
Nosso objetivo neste trabalho é pensar como estas múltiplas esferas da
cotidianidade permitem discursivizar subjetividades, articulando pontos de vista que,
muitos particulares, propõem uma leitura bem pessoal e localizada de questões pensadas
predominantemente sob a ótica das macronarrativas sociais. Neste desvio, constituemse modos de apreensão do real e de narrativização da experiência que, situadas no seu
contexto de produção, sugerem interessantes formas de aproximação a questões latinoamericanas - para além do cinema militante e da alegoria política que por diversas
vezes lhe têm sido associados.
MONOTONIA NO TRABALHO: A REPETIÇÃO
DOS GESTOS
Falar do mundo do trabalho como instância de inserção social e atuação política,
elemento de construção identitária e de estruturação de temporalidades, implica
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
147
inevitavelmente, deparar-se com as múltiplas transformações por ele sofridas nas
últimas décadas. Exige até mesmo, de um modo mais radical, analisar sua permanência,
questionar seus desdobramentos - os desvios, perdas e transmutações levadas a cabo
pelas transformações históricas que alteraram as dinâmicas das atividades produtivas
e de interação nos espaços urbanos -bem como as relaç,ões de força a elas estritamente
relacionadas. Leva-nos ainda a enfrentar, mesmo que tangencialmente, as contradições
e intensidades que esta discussão assume na América Latina, onde a discutida crise de
centralidade do trabalho surge amplificada de maneira desconcertante pela posição
periférica que ocupa esta região, à margem do capitalismo globalizado.
Gonzalo Aguilar (2006: 07-9), logo na introdução de seu ensaio sobre o cinema
argentino contemporâneo, aproxima-se destas e outras questões, ao interrogar sobre os
modos pelos quais tais mudanças se delineiam e se permitem flagrar em obras recentes,
a partir do que ele entende como "marcas do presente": formas pelas quais o cinema
discute, representa e negocia as questões sociais de seu tempo. Ou, nas palavras do
próprio autor, "o que os filmes fizeram com o tempo que lhes coube viver".
No que diz respeito especificamente ao universo laboral, Aguilar reflete sobre
como as significativas alterações no panorama político da região, somadas ao
surgimento de novas ocupações, à precarização das condições de trabalho e às variações
no próprio imaginário acerca do mesmo - os valores e sentidos a ele atribuídos desdobraram-se em formas bastante peculiares de problematização formal destas
questões nos enunciados das obras (AGUILAR, 2006: 133-65). Aponta, assim, para
uma preocupação estética dos realizadores em estabelecer uma aproximação entre a
forma fílmica e os modos pelos quais o trabalho, de certo modo, organiza a vivência
dos próprios personagens, sua temporalidade, rotinas e ações. Em suma, discute esta
tentativa de traduzir na própria forma do filme, na estética. das obras, este lugar
ocupado pelo trabalho como elemento-chave para a narração da experiência dos
personagens. 3
No que diz respeito ao cinema de Rebella e Stoll, podemos afirmar que se os
dois filmes mencionados anteriormente podem ser ambos caracterizados por um tempo
arrastado, ao longo do qual nenhum acontecimento assume de fato relevância e em
que as pequenas ações apresentadas apenas contribuem, em grande medida, para
pontuar a apatia proporcionada por uma rotina maçante- estando este clima de desalento
amplificado pela relação entre expectativas íntimas e a frustração pela sua nãoconsumação -, é certo que os termos a partir dos quais os personagens vi venciam sua
dinâmica cotidiana constituem-se de modo sensivelmente diverso nas duas obras, e
3. Tal convergência entre a narrativa filmica e a narração ou estruturação do tempo cotidiano pela
ótica do trabalho é analisada, por Aguilar, especialmente a partir do longa-metragem argentino
Mundo grúa (1999), de Pablo Trapero, um dos filmes do cinema latino-americano que, nos anos
90, mais diretamente abordou esta questão (AGUILAR, 2006: 159-62).
148
ESTUDOS DE CINEMA
tais diferenças tomam-se mais perceptíveis justamente no que conceme ao lugar
ocupado pelo trabalho.
Se a estranha leveza e a falta de propósitos bem defmidos, a partir dos quais os
jovens de 25 watts assumem seus deslocamentos e interações no espaço urbano da.
capital uruguaia, Montevidéu, aludem a uma falta de vínculos e perspectivas, pode-se
dizer que esta deriva urbana se faz possível justamente pela possibilidade do ócio: à
margem da dinâmica social representada pelos processos produtivos - mesmo que
tentando inserir-se, como no caso de Javi, interpretado por Jorge Temponi, que
desempenha uma atividade como motorista em um carro de anúncios -, suas
motivações mostram-se tão variadas quanto incertas.
É assim que as aulas de italiano de Leche, personagem de Daniel Hendler, parecem
movê-lo mais pelo interesse em sua professora- de quem ele busca, sem sucesso, uma
aproximação romântica- do que propriamente como um fim objetivo de aprendizado.
Por sua vez, a movimentação na cidade acontece de forma quase aleatória, dando-se a
partir de encontros fortuitos na rua, como quando Seba (Alfonso Tort) é confundido
com seu irmão e termina no apartamento de desconhecidos consumindo drogas. No
mais, essa busca constante aliada à falta de objetivos fmalísticos materializa-se em uma
série de ações banais, como a brincadeira de tocar campainhas. Ações que sequer chegam
a constituir um ato de delinqüência, ao contrário do que ocorre, por exemplo, em
Rapado ( 1992), primeiro longa-metragem do diretor argentino Martín Rejtman, em que
o protagonista rouba uma motocicleta como espécie de compensação: a primeira
seqüência do filme mostra justamente este jovem, Lucio, tendo sua motocicleta e seus
sapatos levados por um assaltante. No mais, a mesma aparente falta de sentido existente
nos mais ínfimos atos cotidianos, dos jovens de 25 watts pode ser igualmente percebida
no filme de Rejtman, como quando um rapaz oferece um cigarro a Lucio na parada de
ônibus, mas logo em seguida, diz que não tem fogo para acendê-lo, de modo que os
dois permanecem com os cigarros apagados nas mãos.
Nestes dois filmes, o trabalho surge como uma espécie de ausência
(des)estruturante: não-inseridos nos circuitos de produtividade, os jovens vivenciam
formas alternativas de experimentar o tempo e a sociabilidade que não chegam, no
entanto, a constituir um modo de vida organizado. Ou, como observa Beatriz Sarlo,
ainda sobre o filme de Rejtman:
E! mundo de! trabajo (o de la preparación sistemática para e! trabajo en la escuela)
está ausente, cuestión que nos habla de! lugar que este ocupa en los noventa. El
trabajo es un bien escaso. Aunque conserva un lugar clave desde e! punto de vista
de la inserción social, ocupa una posición completamente subordinada desde e!
punto de vista cultural, y no es un espacio de identificación. Hoy es dificil que un
núcleo de construción de la identidad sea alguna ocupación profesional o laboral.
(2003: 128)
·EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
149
, ·.
Boa parte da ação, portanto, parece organizar-se em tomo desta falta- à exceção
do :já mencionado personagem Javi, que se vincula à (sub)ocupação de dirigir um
. carro de anúncios da qual, ironicamente, é despedido ao final do filme, o que sugeriria
a impossibilidade de exercer até mesmo uma atividade não-especializada, informal e
provisória. Além deste, um outro momento em que o trabalho insinua-se na narrativa,
é quando Seba encontra um motociclista entregador de pizzas que foi despedido do
antigo emprego, após um incidente ocasionado pelo fato de que este havia começado
a ouvir vozes. Trabalhava muito, oito horas por dia, imóvel, e portanto tinha muito
tempo para pensar. "Y un día la cabeza empieza a pensar só/a; y un día empiezan las
voces. Bláblábláblá de un lado, bláblábláb/á de/ otro... ".
É justamente em cenas como esta onde fica claro que não se trata apenas de
uma tentativa de inserção: o problema não é simplesmente o de fazer parte, mas as
próprias alternativas mostram-se invalidadas, insuficientes. O contraponto à falta de
um trabalho não é a realização pessoal e profissional, a inserção atuante, mas o desgaste
de uma atividade sacrificante, enlouquecedoramente monótona.
Em Whisky, por sua vez, o tempo está ordenado em tomo de ações rotineiras,
a maior parte delas vinculadas ao ambiente de trabalho - à sua presença. O espaço da
fábrica não é o espaço da leveza: ele comporta o peso da repetição e da imutabilidade,
traduzidos no funcionamento mecânico das máquinas e nos gestos quase automáticos
reproduzidos diariamente, como a reiteração de um mesmo conjunto de seqüências e
falas sugerem. A forma cíclica com que a dinâmica rigidamente estabelecida entre os
personagens é demarcada toma-se evidente por meio da alternância de planos que
apontam o caráter repetitivo desta movimentação. Destravar o cadeado, abrir o portão,
acender as luzes e ligar as máquinas são algumas das ações detalhadamente exploradas
ao longo da narrativa e que aludem a esta rotina.
A monotonia que perpassa as horas transcorridas no espaço da fábrica está
inscrita a partir de tempos mortos- instantes em que nada efetivamente acontece- e
nos gestos que sutilmente traçam um mapa afetivo da solidão e do tédio na vida destes
personagens. A lentidão e o cuidado com que são filmadas algumas ações mínimas
como a primeira refeição do dia em um estabelecimento decadente, a pausa para um
cigarro, durante o trabalho ou até mesmo a cautela com que se cobre com papel
higiênico o assento do vaso sanitário de um banheiro público, antes de usá-lo, atuam
no sentido de distender a temporalidade da narrativa até o limite de uma quaseestagnação, dada a banalidade do que é apresentado. Mas tais ações servem também
para enfatizar a desordem cotidiana - suas rotinas mundanas, sua heterogeneidade e
dispersão - como elementos de interesse narrativo, em contraposição à
excepcionalidade dos acontecimentos extraordinários e à virtuosidade comumente
valorizados pelas narrativas heróicas (FEATHERSTONE, 1997: 82).
Percebe-se, assim, uma opção pela colocação em primeiro plano da esfera do
ordinário, evidenciada ainda no fato de que o grande acontecimento que promove a
150
ESTUDOS DE CINEMA
aproximação dos personagens e que, assim, intensifica as tensões entre os mesmos - ·
o matzeibe, cerimônia que constitui o motivo da visita de Herman (Jorge Bolani),
irmão de Jacobo (Andrés Pazos) e, conseqüentemente, do convite (velado) feito por
este último a Marta (Mirella Pascual), para que fmja ser sua esposa- nos é interditado.
Nesta seqüência em particular, a câmera limita-se a filmar, em dois rápidos planos, o
movimento quase coreografado dos corpos durante o momento dos cumprimentos
formais após a cerimônia: um em que o ângulo de observação está voltado para o
chão, mostrando apenas as pernas e os pés dos presentes, e outro em que a câmera
está posicionada atrás dos irmãos, de modo que não é possível ver suas expressões.
Com isso, esvazia-se o momento de todo seu potencial dramático, atribuindo-lhe uma
natureza também distanciada, repetitiva, quase burocrática.
Pode-se afirmar, de fato, que grande parte dos desdobramentos que são
apresentados ao longo do filme e que estão centrados nos conflitos provenientes
desta relação familiar são norteados por esta lógica de interdição ao universo de
pensamentos e emoções dos personagens. Mesmo quando filmados de forma direta,
detidamente, tais personagens demandam uma leitura nas entrelinhas, sustentada em
nuances de expressões e gestos.
AFETIVIDADES CONTIDAS: A SUTIL DIFERENÇA
Embora o humor em Whisky contribua para atribuir um tom mais leve a uma
história permeada por temas tão difíceis, quanto a solidão e a falta de perspectivas,
bem como os desentendimentos familiares e as mágoas daí provenientes, é verdade
também que o riso, neste caso, inscreve-se não como uma saída tuma recolocação
dos problemas em outros termos, menos desfavoráveis - mas, pelo contrário, como
uma forma de realçar a inadequação dos personagens. Trata-se, neste caso, de um
humor que se alimenta de fragilidades, constrangimentos; um humor quase perverso,
não fosse pela cumplicidade que estabelece com aqueles indivíduos e seus pequenos
fracassos. É, enfim, um humor dúbio, que faz rir daquilo que ao mesmo tempo
comove e que, por isso, não deixa de causar desconforto.
Grande parte das situações que contribuem para acrescentar esta acidez à
narrativa vem da visita de Herman, elemento desestabilizador cuja presença não apenas
reaviva antigos ressentimentos entre os irmãos como também parece tornar evidente
a decadência de Jacobo e de sua fábrica. No entanto, uma vez que, como dito
anterior:mente, os sentimentos destes personagens nunca são diretamente verbalizados
-o que, de fato, a mise-en-scene parece evidenciar é justamente este fracasso da
linguagem como meio para a explicitação de emoções e recurso para a sociabilidadea compreensão dos motivos que ocasionam o desentendimento só pode ser realizada
a partir de poucas informações sugeridas pelas conversas. A ausência de Herman
durante todo o período de doença da mãe e o seu não-comparecimento ao enterro são
'EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
ISI
., indícios, possíveis razões para a hostilidade de Jacobo. Tudo isso, no entanto, pode
ser apenas deduzido, uma vez que as conversas restringem-se quase sempre ao triviaL
A importância recai sobretudo sobre o não-dito, sobre o silenciado.
Assim, o que contribui para o agravamento da tensão- sufocada, não-assumida
- é a descrença na possibilidade do entendimento. Se Herman, em atitudes mínimas,
demonstra falta de jeito ou de cordialidade em relação ao irmão, são no entanto as
atitudes de Jacobo as mais representativas desta amargura desesperançada que se
traduz em um distanciamento e em uma rispidez que só podem ser contornados a
partir de um esforço por parte do próprio espectador. Deste, exige-se um olhar cúmplice,
uma sensibilidade capaz de transpor a aspereza superficial e apreender a delicadeza
deste personagem.
Marta, por sua vez, aparece como a figura que, transitando entre estes dois
pólos da relação familiar, reservará a posição mais ambígua, incerta e, não obstante,
mais esperançosa. É nela que se encontra, de forma mais evidente, a tensão entre, por
um lado, a imersão no melancólico universo de um cotidiano desgastante e, ao mesmo
tempo, o impulso, mesmo que insuficiente, para o descolamento desta realidade e a
busca por um prazer tênue, fugidio. Afinal, de que outra forma poder-se-ia entender
sua ida ao cinema ou o constante uso de fones de ouvido com os quais ela escuta
música- seja no metrô, seja em frente à entrada da fábrica, onde espera a chegada de
seu patrão - senão como formas de paliativo, fuga e sonho possíveis ao cotidiano
austero com o qual ocupa grande parte de seu dia? Neste sentido, a própria brincadeira
de inverter palavras aponta também, simultaneamente, para um tédio quase constitutivo
da experiência- por remeter a um passado distante em que a cabeça, desocupada, já
se detinha a jogos de banalidades-, e à constituição de um universo interior, contraponto
e subterfúgio para um mundo solitário e desencantado.
Neste contexto, a ida a Piriápolis representa, no presente, o momento em que
ocorre, se não uma suspensão, pelo menos uma alteração desse cotidiano, que passa
a ser temporariamente organizado não em tomo do tempo do trabalho, mas vivenciado
a partir do lazer (embora as feições dos personagens mostrem-se ainda quase tão
impassíveis quanto nos outros momentos da história!). Configurando este desvio, a
viagem assinala então o ponto que demarca uma possibilidade de mudança. E é
justamente nas atitudes de Marta ao longo deste passeio que estarão inscritos, de
modo mais ambíguo, os seus interesses afetivos. Assim, se no início do filme parece
possível pressupor algum tipo de interesse da personagem por Jacobo- pelo modo
como sutilmente se sugere um envolvimento emocional da mesma na farsa do
casamento, a partir de pequenos gestos, como a preocupação com os detalhes da
história do casal, a obstinação com que opera uma silenciosa transformação no espaço
da casa, dando-lhe vivacidade, e até mesmo a mudança no seu corte de cabelo 4 por
4. E também neste caso observa-se, como a repetição dos planos e falas no espaço da fábrica, serve
também para demarcar a diferença: a mudança de Marta inscreve esta variação, seja pela discreta
alteração na sua aparência ou até mesmo pela sua ausência, ao final da película.
ESTUDOS DE CINEMA
152
outro lado, é principalmente a partir da cena do karaokê que se insinua um possível
encantamento de Marta por Herman, no momento em que este cantá a mesma canção
sempre ouvida por ela ao longo do filme. Nesta seqüência fica mais cÍara a muda
obstinação com que Marta parece buscar essa quebra, romper o estado de solidão
pe1manente que os rodeia, a partir de novas formas de aproximação/pertencimento.
A cena do karaokê apresenta-se ainda como urna seqüência-chave por demarcar
o momento em que Herman pretenderá (sem sucesso) "quitar sua dívida" com o
irmão, tentativa realizada de forma literal na proposta de compensação financeira não
apenas pelos prejuízos materiais advindos do tratamento de sua mãe, como também
pelos anós em que permaneceu ausente. Às palavras rudes, econômicas, soma-se
então a circulação de objetos e valores como elementos que, superficialmente,
preencherão o vazio deixado pelos sentimentos não-explicitados. E se é possível afirmar,
como dito anteriormente, que a narrativa do filme se organiza em sintonia coin o
papel que o cotidiano e sua monotonia exercem como organizadores da própria
experiência, cabe acrescentar também, neste ponto, e a partir dos elementos
apresentados, que uma correspondência semelhante se estabelece entre a interdição
aos sentimentos e emoções que pontuam as relações entre os personagens e a forma
fílmica. Recupera-se esta ênfase no não-dito como elemento estruturador da miseen-scene, e tal recurso toma-se claro ao notar-se o modo como a história é conduzida,
a um final em aberto: Marta entrega um bilhete a Herman cujo conteúdo não nos é
revelado, de modo que o desfecho assume um caráter inconcluso, subentendido.
É a figura feminina de Marta, então, que de alguma maneira representa um
modo de agir que sutilmente inscreve, no encadeamento mecânico de palavras e
gestos repetidos, a tímida diferença capaz de abrir o ciclo fechado da rotina às
possibilidades (incertas) de transformação. A indefinição no que diz respeito às suas
escolhas -sabemos apenas que não compareceu ao trabalho, que antes havia revelado
a vontade de viajar, caso tivesse dinheiro, e que a quantia a ela destinada por Jacobo
poderia significar a concretização deste sonho - os espectadores são convidados a
criar a partir destes fios soltos. Elaborar um fmal para a história toma-se, desta forma,
uma ação capaz de instaurar no espectador aquela mesma esperança - melancólica,
frágil, improvável- na possibilidade de ruptura. ·
REFERÊNCIAS
AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos: un ensayo sobre e! nuevo cine argentino. Buenos
Aires: Santiago Arcos Editor, 2006.
FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e
identidade. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997.
HELLER,Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
153
LOPES, Denilson. "Nem favela, nem sertão ou por um cinema do cotidiano". Em: Afrânio
Catani;Wilton Garcia, Mariarosaria Fabris. (Org.). Estudos Socine de Cinema: ano VI.
I ed. São Paulo: Nojosa, 2005, p. 293-300.
SANTIAGO, Silviano. "Ondas do cotidiano". Em: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões
político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.l51-159.
SARLO, Beatriz. "Plano, repetición: sobreviviendo en la ciudad nueva". Em: Birgin,
Alejandra y Trímboli, Javier (comps.). Imágenes de los noventa. Libros dei Zorzal:
Buenos Aires, 2003, p. 125-150.
A Caravana Farkas e o moderno documentário
brasileiro: introdução aos contextos
e aos conceitos dos filmes
GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO (UNICAMP)
ENTRE 1964 E 1981, o fotógrafo e empresário Thomaz Farkas produziu
trinta e nove filmes, hoje conhecidos sob a expressão Caravana Farkas. São trinta e
seis documentários erp. curta-metragem, um curta de ficção e dois filmes em longametragem, sendo um documentário e um de ficção. 1 Este artigo explora os filmes
documentários. Dadas as particularidades dos processos de produção e de realização
explicados mais adiante, os filmes podem ser divididos em três fases: Primeira Fase:
Memória do cangaço (Paulo Gil Soares, 1965), Subterrâneos do futebol (Maurice
Capovilla, 1965), Nossa escola de samba (Manuel Horácio Gimenez, 1965) e
Viramundo (Geraldo Samo, 1965); Segunda Fase: A morte do boi (1969-1970), A
vaquejada (1969-1970), Frei Damião - trombeta dos aflitos e martelo dos hereges
(1970); A erva bruxa (1969-1970), O homem de couro (1969-1970), A mão do homem
(1979), Jaramataia (1970) - dirigidos por Paulo Gil Soares; A cantoria (1969-1970),
Vitalino Lampião (1969), O engenho (1969-1970), Padre Cícero (1971), Casa de
farinha (1969-1970); Os imaginários (1970), Jornal do sertão (1970), Viva Cariri
(1969-1970), Região Cariri (1970) -dirigidos por Geraldo Sarno, Rastejador e Roda
e Outras Histórias (Sérgio Muniz, 1969-1979) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escore!,
1970); Terceira Fase: A cuíca (1970), De Raízes & Rezas, entre outros (1972),
Cheiro/Gosto, o Provador de café (1976), Um a um (1976), Andiamo ln'merica
(1977-78), Beste (1977-78) e O Berimbau (1978) - dirigidos por Sérgio Muniz; A
morte das Velas no Recôncavo (1970) e Feira da banana (1972-73) - dirigidos por
I. Os filmes de ficção são o curta O homem descasado (direção de Rubens Junqueira, 1981) e o longa
O Pica-pau Amarelo (direção de Geraldo Sarno, 1973174).
156
ESTUDOS DE CINEMA
Guido Araujo, Paraíso Juarez (1971), Todomundo (1978-80) e Hermeto, Campeão
(1981)- dirigidos por Thomaz Farkas, Trio Elétrico (Miguel Rio Branco, 1978),
Ensaio (Roberto Duarte, 1975) e Certas Palavras (Mauricio Beru, 1979).
Thomaz J. Farkas é a produtora responsável pelo financiamento de todos os
filmes e Farkas, além de financiá-los e também participar de um sistema de coprodução na terceira fase, atuou como elemento aglutinador de um grupo de realizadores
interessados em desenvolver projetos que resultariam em filmes sobre aspectos da
realidade brasileira, em que sobressaiu o foco sobre o homem brasileiro, visto numa
ampla perspectiva econômico-social, cultural e histórica. A expressão Caravana F arkas
é atribuída a Eduardo Escorei, um dos integrantes da equipe, e foi cunhada
posteriormente, nos anos 1990. A nomeação posterior, distanciada no tempo, permite
delinear para o conjunto dos filmes o estabelecimento de certas diretrizes que norteiam
o trabalho do grupo, em que se nota o início. e a interrupção de um projeto
cinematográfico, demarcado pelas possibilidades técnicas que avançavam no tocante,
às mediações com o material bruto à disposição, tomando o formato documentário
brasileiro algo inovador em certas instâncias. No plano do conteúdo, verifica-se o
recorrente mapeamento da geografia e da história nordestinas em busca de situações
particulares. Além desse espaço recortado, há investimentos em outros lugares, como
ocorre com filmes que se situam na região sudeste e um filme voltado para a imigração
italiana, que capta momentos da vida social e econômica em São Paulo e no Rio
Grande do Sul, além de recorrer à região do Veneta, na Itália, para a composição do
quadro histórico mais preciso do fenômeno em questão.
Num primeiro momento, apreendem-se dois aspectos amalgamados na
articulação, expressão e conteúdo, diretamente conectados com o contexto estético e
político da época dos filmes e o prolongamento do projeto também informa sobre os
ditames técnicos, éticos e estéticos e o quadro ideológico que balizaram o período em
que os filmes foram feitos. De um lado, a forma dos filmes, já no início, buscava
apropriar-se de certos matizes do cinema verdade, notadamente um tipo de registro
com uso de câmeras leves e som sincronizado, permitindo a realização de filmes com
equipe reduzida e uma maior aproximação com o objeto a ser filmado. Nos filmes,
são relevantes os usos da entrevista e do depoimento, procedimentos que ligam as
obras ao cinema verdade e a penetração da câmera nos mais recônditos lugares acentua
o firme propósito de captar situações autênticas da realidade, algo que sinaliza também
a passagem de um modo de fazer documentário que privilegiava a encenação para a
abertura e o registro dos fenômenos reais. Ainda do ponto de vista do. plano da
expressão, insiste-se na voz o ver em sintonia com o ideal interpretativo que alimentava
o projeto e nos registros dos acontecimentos fundem-se a captura de situações
autênticas com expedientes de encenação, estas operadas por atores não profissionais
na lide com seus oficios diante da câmera, outro elemento formal presente em alguns
filmes é o uso de material de arquivo e também a migração de imagens entre os
filmes, com enfoques diferentes. Cabe destacar a pesquisa sonora enfeixada por
·EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
157
músicas regionais ligadas às tradições folclóricas e um repertório que inclui canções,
grupos e cantores da Música Popular Brasileira, como a Banda de Pífanos de Caruaru,
Caetano Veloso e Gilberto Gil.
O enfoque na realidade brasileira se ajusta ao quadro ideológico da geração de
artistas e intelectuais da década de 1960 e sua preocupação social em fina sintonia
com o pensamento sociológico brasileiro, como é o caso da influência das idéias de
Otávio Ianni em Viramundo, notadamente na moldura discursiva. Para a segunda
fase, podem-se destacar as idéias de Cândido Procópio, sobre cultura popular e outras
referências podem vir à tona, já que se realizava intensamente a pesquisa sobre certos
traços da cultura brasileira em ambientes institucionais, com destaque para a
Universidade de São Paulo. Devido ao contexto de tal empreendimento, justifica-se o
forte apelo às contradições provocadas pelo surto de industrialização e desenvolvimento
ocorridas em solo brasileiro e a atenção às tensões desse processo. Em face desse
cenário, os realizadores motivaram-se em registrar formas de trabalho e de organização
social em vias de desaparecimento em face do processo modernizador em avanço no
. país. Dado flagrante é a evocação à miséria e à alienação como marcas do
subdesenvolvimento, as dessimetrias e disparidades encontradas no vasto solo
brasileiro, a permanência de elementos arcaicos presentes na vida social, onde o
nordeste brasileiro parecia ser o palco central dessa conjuntura.
É moeqa corrente o acontecimento primordial que marca a introdução das
técnicas do cinema verdade no Brasil, ou seja, a vinda do documentarista sueco Ame
Sucksdorff, em 1962, para um seminário ocorrido no Rio de Janeiro. Vladimir Herzog,
jovem realizador e jornalista, cuja efêmera passagem pelo grupo de Farkas, faz alguma
diferença, participa do evento juntamente com Eduardo Escorei, outro membro do
grupo. Além dessa experiência de Herzog, há também sua permanência, juntamente
com Maurice Capovilla, para um estágio na Escuela Documental de Santa Fé, criada
na Universidad Nacional de! Litoral, em Santa Fé, na Argentina. Em 1963, ocorre a
vinda do cineasta Fernando Birri para um seminário em São Paulo, a convite de Paulo
Emílio Salles Gomes. Além de dirigir filmes de forte presença, Birri, idealizador da
Escuela Documental, publicara textos de forte impacto sobre a situação do cinema
latino-americano, em que pesa nos argumentos a urgência sobre um tratamento realista
nas imagens, herança das idéias zavattinianas do neo-realismo italiano, como também
o tom nacionalista que visava o questionamento da situação colonizada e
subdesenvolvida do cinema. Após o Golpe Militar no Brasil, Birri segue viagem para a
Europa, exilando-se na Itália, permanecendo no país Horácio Gimenez e Edgardo
Pallero, ambos argentinos e que tinham trabalhado com o realizador na produção de
seus dois filmes impactantes, Tire Die (1958) e Los inundados (1962). Antes de sua
partida, o arquiteto modernista VilanovaArtigas, amigo de Farkas, promove o encontro
deste com todos esses realizadores, facilitando a troca de experiências que
desembocariam nos projetos dos documentários. Além de Herzog, Capovilla, Birri,
158
ESTUDOS DE CINEMA
Gimenez e Pallero,juntam-se ao grupo, compondo uma primeira fonnação, os baianos
Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares, ambos ativos participantes da cena cultural
cinematográfica soteropolitana, este ex-parceiro de Glauber Rocha, assumindo a
assistência de direção de Deus e o Diabo na terra do sol ( 1963 ), e aquele, entre outras
atividades, criou o Departamento de Cinema do Centro Popular de Cultura, tendo
realizado alguns curtas.
À reiterada influência de Fernando Birri, soma-se a de Jean Rouch, após contato
travado depois de sua vinda ao Rio de Janeiro, em 1965, juntamente com Louis
Marcorelles, Freddy Buache e Robert Benayon, para o primeiro Festival Internacional
do Filme do Rio de Janeiro. Na ocasião foram projetados os quatro primeiros filmes
produzidos por Farkas nos anos 64/65, sendo Memória do cangaço, Subterrâneos do
futebol, Nossa escola de samba e Viramundo. Todos foram incorporados no longametragem Brasil Verdade.
A abordagem cinematográfica desenvolvida para o tratamento dos temas é
fruto de uma rede de influências transnacionais, resultado de encontros de idéias que
são absorvidas e transfonnadas em método de trabalho. Mesmo nos percursos
individuais, nota-se nas fonnações curriculares a aproximação a detenninadas idéias
posterionnente amadurecidas e compartilhadas que oferecem uma noção de grupo
coeso e afinado com propostas sólidas, o que pennite conjecturar, a proximidade
dessa experiência como um movimento articulado, algo pertencente ao espírito
modernista, do qual os anos 60 foram particulannente sensíveis no campo do cinema.
Evidentemente, no Brasil, ao Cinema Novo é atribuído o papel relevante de ruptura no
horizonte estético. Nesse sentido, cabe determinar certas coordenadas, primeiramente,
no âmbito estético, que infonnem sobre as especificidades desses filmes e que
efetivamente pesem e validem suas similaridades e diferenças no quadro geral da
produção, continuando sua contribuição para o moderno documentário brasileiro.
De acordo com Xavier (200 1: 14), o cinema moderno no país define-se a
partir do seguinte:
No quadro atual, quando a nossa atenção se volta para o processo que envolveu o
Cinema Novo e o Cinema Marginal, entre o final da década de 1950 e meados dos
anos 70, tal processo se apresenta como dotado de uma peculiar unidade. Foi, sem
dúvida, o período estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro. As
polêmicas da época formaram o que se percebe hoje como um movimento plural de
estilos e idéias que, a exemplo de outras cinematografias, produziu aqui a
convergência entre a "política dos autores", os filmes de baixo orçamento e a
renovação da linguagem, traços que marcam o cinema moderno, por oposição ao
clássico e mais plenamente industrial.
Os três eixos política dos autores,jilmes de baixo orçamento e renovação da
linguagem delineiam as coordenadas estéticas e avançam para o âmbito da produção.
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
159
Embora os filmes da Caravana se situem no amplo contexto do Cinema Novo, há um
enfoque particular nos temas por parte do grupo.
A proposta inicial do grupo, logo abortada, era filmar as ligas camponesas
nordestinas, lideradas por Francisco Julião, idéia logo desencaminhada devido à censura
do regime militar. O resultado da mudança de planos foi a realização de um projeto
cunhado de A condição brasileira, inspirado na série de livros Brasiliana, que tinha o
foco nas ciências sociais, sendo o material editado pela Companhia Editora Nacional.
Nos filmes, a estratégia educativo-cultural passou a ser dominante, em contraste com
o viés político preconizado. Para o conteúdo dos filmes desse primeiro momento é
travado por um forte diálogo com professores da Universidade de São Paulo, em que
participam ativamente Geraldo Samo, Leon Hirszman e, depois, Paulo Gil Soares. A
primeira fase, portanto, é composta pelos quatro filmes que para facilitar o processo
de distribuição e exibição, integraram o longa Brasil Verdade. Com locações na Bahia,
no Rio de Janeiro e em São Paulo, esses filmes se reportam a temas como escola de
samba, o futebol, o cangaço e a imigração nordestina. Com exceção de Memórias do
cangaço, que já havia sido iniciado e depois foi incorporado ao projeto, os outros
filmes foram concebidos e realizados sob o calor das idéias do grupo recém formado.
Os filmes tiveram ampla repercussão em festivais e sua distribuição local (poucas
salas e público minguado) ficou a cargo da Difilm. Para a continuidade do projeto, em
1965, Farkas, Sérgio Muniz, Edgardo Pallero e Affonso Beato juntam-se a Paulo
Emílio Salles Gomes, a Francisco Ramalho Jr. e a Jean-Claude Bemardet para buscar
apoio institucional. A Universidade de Brasília havia criado um curso de cinema, fato
que os motivou a encarar a instituição como primeira opção, logo descartada devido
à crise da mesma, alavancada após o Golpe de 1964. O apoio encontrado veio do IEB
(Instituto de Estudos Brasileiros), vinculado à USP. Farkas e Muniz se imbuem, então,
da tarefa de criação do Departamento de Produção de Filmes Documentários, contando
com o apoio da professora e socióloga, Maria Isaura Pereira de Queiroz, ligada à
sociologia rural. No ano seguinte, no final de 1966, é aprovado o projeto "Pesquisa e
documentários sobre cultura popular do Nordeste", encaminhado por Farkas e Geraldo
Samo, com proposta de co-produção de filmes. Em janeiro de 1967, partem para o
Nordeste Samo, Farkas e Paulo Rufino com o objetivo de percorrer a região e levantar
o material para os filmes, voltam com um farto material que iria resultar nos filmes
Jornal do Sertão, Os imaginários e Vitalino Lampião. Esses filmes já integram o
segundo momento de realização dos filmes produzidos por Farkas. Há que salientar
que em 1968 o Departamento ligado ao IEB se desfez e a co-produção não se realizou,
por questões financeiras. A pesquisa empreendida foi levada adiante, no mesmo ano,
partem para o Nordeste Samo, Eduardo Escorei, Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz,
Edgardo Pallero, Sidney Paiva Lopes, Affonso Beato e Farkas, este, agora, financiador
solitário do projeto.
O resultado dessa viagem é um conjunto de dezenove filmes, todos centrados
na região nordestina e compõem a segunda fase de realização do núcleo. Há, sobretudo,
160
ESTUDOS DE CINEMA
o olhar voltado para o registro de formas de organização de trabalho, de arte popular,
de lazer e de misticismo religioso. Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia são os Estados
percorridos pela Caravana. Os curtas-metragens seriam vendidos em escolas,
atendendo a uma demanda desse setor que contava com projetores de 16 mm, mas
careciam de material sobre o próprio país. A comercialização dos filmes teria essa
fmalidade, algo que não se cumpriu efetivamente devido às restrições de aquisição de
material nas escolas, sendo essas medidas outorgadas no contexto do Ato Institucional
n. 05.
Se, por um lado, agravava-se o processo de comercialização do material, por
outro, adensava-se o conceito do projeto, tomando a experiência enriquecedora em
relação ao procedimento de documentar a realidade brasileira. Nesse sentido, cabe
um olhar particular sobre a experiência de linguagem desse conjunto de filmes. Essa
singularidade enviesa-se a partir da noção de método articulado pela equipe, sendo a
síntese desse percurso firmada na monografia ainda inédita Cinema documentário:
um método de trabalho, tese de doutorado de Thomaz Farkas, apresentada à Escola
de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, em 1972, mas por questões
políticas, só defendida em 1977. Uma estratégia encontrada para distribuir e exibir os
filmes foi reunir os curtas Padre Cícero, Rastejador, Casa de farinha, Jaramataia e
Erva Bruxa em um longa-metragem de 90 minutos intitulado Herança do Nordeste,
tratando-se de uma solução comercial sem muito sucesso. Outra possibilidade seria
vender os documentários para a televisão, no entanto, o conteúdo dos filmes, os
recursos técnicos utilizados e a formatação do material não condiziam com o modelo
de mercado então existente. Frei Damião chegou a ser exibido na TV Globo, sendo
remontado e reduzido por seu diretor, Paulo Gil Soares.
O terceiro momento de realização dos filmes caracteriza-se pela dispersão
temática e surgem novas roupagens nos filmes, contrastando com a maneira pela
qual articularam-se a primeira e a segunda fase. Aqui entram em cena Guido Araújo,
Roberto Duarte, Rubens Junqueira, Miguel Rio Branco e Mauricio Beru, pará destacar
os diretores, e é o momento de participação de Farkas como diretor, além da
continuidade de Sérgio Muniz. Vale salientar que Farkas já realizara curtas-metragens
na Escola Politécnica da USP, nos anos 1950.
Em relação ao intento de percorrer o país, não ocorrem grandes avanços,
ficando os filmes limitados aos Estados da Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. No
que diz respeito aos temas apresentados, há a recuperação da questão da migração,
desta vez com foco sobre a imigração italiana, permanecem as preocupações de registro
de formas de trabalho em vias de desaparição, notadamente marcadas por métodos
artesanais que contrastam com a industrialização já em pleno desenvolvimento e, por
fim, essa última fase destoa das demais por colocar em primeiro plano manifestações
artísticas como a música, aarquitetura e as artes plásticas, destacando processos e
artistas pertencentes ao contexto urbano e à estética moderna. No âmbito da produção,
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
161
esse último momento apresenta relações de co-produção com a Embrafilme, a Prefeitura
Municipal de São Paulo, a Saruê Filmes, de Geraldo Sarno, e Sérgio Muniz, que além
de diretor também participa do financiamento de alguns projetos.
Ao observar a trajetória dos filmes, fica explicitada a idéia da construção de um
olhar sobre a cultura popular brasileira, em que se busca um desenho polimorfo do
homem local, assentado nas relações entre cultura, economia e sociedade. Tais
propósitos se atualizam sobre uma visualidade, que assume a corporeidade do real, no
encontro da câmera com o objeto, e avança ao colocar em circulação outros signos
visuais que enriquecem a amostragem, como é o caso da recuperação de gravuras e
materiais de arquivo. No plano sonoro, estabelece-se uma polifonia derivada da voz
autêntica dos sujeitos em sincronia com a imagem, de uma musicalidade extraída de
sons regionais e outras referências e a insistência na voz over que, além de garantir o
ideal interpretativo, busca também uma,certa articulação didática em sintonia com a
finalidade social e educativa do filmes. Essa amostragem se edifica sobre uma tradição
já firmada no campo do cinema, ou seja, os cineastas lançam mão de artifícios do
cinema moderno, com realce para as descontinuidades entre som e imagem em muitos
dos filmes.
Em relação à autoria, fica flagrante a ausência de uma cartilha a ser guiada no
tratamento dos filmes, abundam visões diferenciadas em que se percebe o peso do
diretor nas escolhas e formatações dos temas. Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares e
Sérgio Muniz são os diretores que mais se destacam, tanto pela quantidade de filmes
que dirigem, quanto pelos traços estilísticos que impõem ao material. Nos três, o
processo de documentação se coaduna ao de reflexão sobre o próprio ato de
documentar, e encontram soluções particulares que os individualizam. Sàrno se
empenha num tipo de realismo crítico, em que os fatos são interpretados por uma
consciência de linguagem, sendo tal aspecto sintetizado numa frase da publicação da
revista Filme Cultura, na edição de agosto de 1984: ''Na verdade, o que o documentário
realmente documenta com veracidade é a minha maneira de documentar" (apud
AVELLAR, 2003: 187). Gil Soares funde reportagem jornalística e a tradição do
realismo, tal aspecto seria desdobrado em sua ativa participação na TV Globo, em que
ele dá inicio, já nos anos 1970 ao Globo Repórter. Muniz é o realizador mais afeito a
uma certa tradição do cinema experimental e ao uso de artifícios de linguagem, como
comprovam os filmes feitos a partir de material de arquivo, seu projeto Cinema de
Cordel e uma depositada crença em procedimentos de encenação nos filmes da última
fase, embora também se possam encontrar filmes, bastante convencionais em sua
filmografia.
Quanto à renovação da linguagem, é interessante observar a maneira como os
procedimentos inaugurados pelo cinema verdade, foram reincorporados a outras
tradições, resultando num rico hibridismo. Um componente que se agrega a essa
questão é a presença marcante em alguns filmes da reflexividade, firmemente atada
ESTUDOS DE CINEMA
162
ao liso criativo da montagem, tal constatação vincula diretamente os filmes à idéia de'
cinema moderno em que a articulação, imagem/som desvincula-se do procedimento
clássico na lide com o Conteúdo e inscreve a visão subjetiva do cineasta no processo
enunciativo ..
· .. Finalmente, em relação à produção, trata-se de um caso de produção
independente bastante relevante para história do cinema brasileiro, em particular para
o desenvolvimento do documentário. A figura de Thomaz Farkas emerge na onda de
novos produtores do Cinema Novo, nomes tais como Jarbas Barbosa, Luis Carlos
Barreto e Zelito Viana que se devotaram à produção de ficção. A especificidade da
experiência da Caravana poderia ser medida pelo desejo de realização de filmes de
baixo orçamento, em que se articula um quadro conceitual, aqui são relevantes as
pesquisas prévias de temas e a preocupação com a linguagem, para garantir a unidade
do material que tinha fins específicos de distribuição e exibição. Para viabilizar da
realização dos filmes tem destaque, Edgardo Pallero, produtor executivo da maioria
deles.
Em seu conjunto, os filmes produzidos por Farkas traduzem por seus meios
expressivos facetas da realidade de um país, sustentado pela contraposição entre o
moderno e o arcaico em suas mais variadas formas. O encontro do realizador com o
objeto, seguida de sua restituição é uma operação que se coaduna ao princípio realista
de reconstituição do fenômeno, avançando no território das medições em que a voz (e
também o corpo) do cineasta, sua participação criativa se infiltra no material elaborado.
BIBLIOGRAFIA
AVELLAR, José Carlos. Geraldo Sarno. In: PARANAGUA, Paulo A (Org.) Cine Documental
emAmerica Latina. Madri: Cátedra, 2003.
FARKAS, Thomaz. Cinema documentário: um método de trabalho. Tese (Doutorado),
Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Curso de Pós-Graduação
em Jornalismo e Editoração, 1972.
RAMOS, Fernão. Cinema Verdade no Brasil. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Org.)
Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus Editorial,
2004.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Alteridade, conflito e resistência
no Barroco de Paul Leduc
MAURÍCIO DE BRAGANÇA (UFF/FAPERJ)
EM 1989, o diretor mexicano Paul Leduc adaptou o romance do cubano Alejo
Carpentier, Concerto Barroco. O filme, Barroco, uma co-produção Espanha, México
e Cuba, foi produzido para a TV Espanhola. Utilizando-se de procedimentos narrativos
e estilísticos que já vinha desenvolvendo desde seu excepcional Frida, natureza viva,
de 1984, Leduc, em Barroco, propõe para esta pesquisa uma discussão sobre a
constituição das alteridades latino-americanas, marcadas pelas relações de poder
inscritas desde o projeto expansionista ibérico do século XVL Nesta discussão, o
filme evoca uma tradição do pensamento latino-americano pautado pela preocupação
em tomo da afirmação do papel da América Latina na história, sua posição como
modelo cultural e sua identidade, que tem, no século XX, uma linhagem que passa
por Alfonso Reyes, Pedro Henriquez Urefia, Alejo Carpentier, Octavio Paz, Lezama
Lima, Ángel Rama e Silviano Santiago, dentre muitos outros.
As teorias em tomo da mestiçagem, do hibridismo ou do multiculturalismo
apontam para a criação de um "entrelugar", no qual os conceitos de unidade e ーオイ・セ。@
são sistematicamente destruídos em prol da configuração de um projeto cujo movimento
repousa no próprio desvio da norma, ativo e destruidor, "entre o sacrifício e o jogo,
entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a
obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão" (SANTIAGO, 2000: 26),
forjando aquilo que Octavio Paz (1984) classifica como a "tradição da ruptura".
Esse lugar, ocupado pela América Latina como um "entrediscurso" da periferia,
possibilita uma dinâmica em que o subcontinente pode devolver ao centro imagens
sobre si mesmo que o centro nunca poderá produzir. O poder de desestabilização da
periferia impõe suas narrativas ex-cêntricas (citando Bakhtin), ao redefinir os mapas
literários e colocar os cânones sob suspeita.
164
ES I UDOS DI: CINEMA-
Essa busca por modelos identitários na América Latina acarretou em ーイッ」・ウNセᄋ@
marcados pela questão do sujeito e sua representação, seja na dicotomia regionalismo,
versus cosmopolitismo, seja no realismo fantástico, na antropofagia, no hibridismo'
ou nas discussões acerca do conceito de fronteira, originando novas textualidades
reatualizando questões bastante pertinentes, como a relação entre o cânone e o corpus,
1
· o diálogo crítico com novos paradigmas e a própria relativização dos parâmetros nas
construções dos modelos de representação e de auto-representação na América Latina.':
Assim, no interior deste descentramento encontram-se os projetos que suspeitam dé.
dualidades rígidas como margem/centro, metrópole/colônia, europeu/indígena, e
problematizam conceitos como metrópole, cópia, simulacro,· deslocamento e ョ。 ̄ッセᄋ@
A partir da militância estética das vanguardas latino-americanas da década de
1920, a mestiçagem se apresentou como uma das leituras possíveis de ruptura com
os padrões alheios à realidade latino-americana. Não se pode deixar de lembrar,
entretanto, a existência de outros projetos que de certa forma afastavam-se desta
perspectiva, como o discurso da Indo-América de Haya de la Torre e Mariátegui, a
negritude das Antilhas francesas ou o pretenso purismo do indigenismo nacionalista
de Diego Rivera, por exemplo. Mas é através da chave da mestiçagem que se funda,
a partir das estratégias de reorganização do poder nas primeiras décadas do século
passado, uma nova maneira de viver o popular, numa busca acirrada pela autonomia
do pensamento e da arte latino-americanos.
Na base dos diversos discursos em prol da construção de identidades nacionais
latino-americanas se encontra uma permanente tensão entre a presença de um olhar
do colonizador e as diversas tentativas de resistência, de desvio e de desconstrução
deste olhar. Como experiências marcadas por este desafio encontram-se tais
discussões apropriadas de maneiras distintas na "raça cósmica" de José Vasconcelos,
na sugestão de uma aluvionalidade da literatura hispano-americana, por Uslar Pietri,
nos fenômenos de transculturação analisados por Fernando Ortiz (e posteriormente
importados para a leitura de Ángel Rama sobre a transculturação narrativa na
América Latina), no conceito de "inteligência americana" cunhado em 1936 por
Alfonso Reyes, na "cultura bastarda" por Martínez Estrada, na idéia de superposição
de culturas como busca de uma forma unitária por Leopoldo Zea, nas discussões
de Lezama Lima sobre um "protoplasma incorporativo" presente na cultura hispanoamericana, no famoso "real maravilhoso" sugerido por Carpentier, e ainda na
contribuição brasileira a estas discussões pelo Manifesto Antropófago de Oswald
de Andrade e pelos ensaios de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda
(COUTINHO, 2003). É claro que cada uma dessas abordagens apresenta posições
de leitura muito distintas e, sob determinados aspectos, até mesmo conflitantes,
mas todas comungam a idéia de uma heterogeneidade multicultural formadora de
cruzamentos e apropriações que marcam a América Latina.
e:
fÊM'rORNO DA AMÉRICA LATINA
165
1;1;··
Porém, as abordagens do fenômeno histórico da mestiçagem pelos projetos
nacionais, apesar de proporem novos paradigmas de leitura da identidade cultural
ャ。エゥョッセュ・イ」@
que rompessem com a lógica da inferioridade e da submissão à
cultiJra hegemôriica, acabavam por homogeneizar as experiências latino-americanas,
sufocando as diversas vozes heterogêneas através de uma integração num conjunto
uniforme, e de certa forma apassivador, que fazia apagar a própria condição de
marginalização. Aqui encontram-se as discussões de García Canclini (2000), em tomo
das ·culturas híbridas, e das críticas de Cornejo Polar (2000). Este, filiando-se ao
pensamento mariateguiano, propõe, sob o viés das "totalidades contraditórias", uma
reflexão sobre as literaturas heterogêneas, substituindo o termo "mestiço" (conotativo
de síntese e fusão) pelo "migrante" (tradutor de um trânsito entre os espaços culturais).
Também Alberto Moreiras (2001) apresenta sua crítica à transculturação de Ángel
Rama, para quem a modernização, segundo Moreiras, apresenta-se como uma verdade
ideológica capaz de sujeitar a cultura latino-americana à modernidade eurocêntrica.
Neste ensaio propõe-se uma discussão em torno das alteridades latinoamericanas a partir de Barroco, de Leduc, que se insere nestas discussões ao adaptar
o romance de Alejo Carpentier publicado em 1974. O romance apresenta a concepção
da ópera Montezuma, de autoria de Antonio Vivaldi. Esta foi a primeira vez, dentre
muitas outras que se seguirão ao longo da história, que a Conquista e o Novo Mundo
teriam sido tomados como tema central de uma ópera. A música, uma das paixões de
Carpentier, assume na obra literária um papel de detonador dos conflitos a partir do
emblema do real maravilhoso no qual as múltiplas temporalidades entram em contato
sob um viés bakhtinianamente carnavalizado.
Não é nosso objetivo apresentar aqui um trabalho de adaptação cinematográfica
da obra de Carpentier, mas de apresentar o Barroco de Leduc como um texto que
pretende problematizar o multiculturalismo carpentieriano, propondo uma espécie de
arquipelagização da cultura latino-americana, contra a continentalização reducionista
de um multiculturalismo pacificador, presente numa certa leitura da tradição do
pensamento latino-americano. Para isso, o Barroco latino-americano, segundo as
acepções críticas de Irlemar Chiampi (na sua articulação com a modernidade) e na
leitura de Lezama Lima, que o vê como obra da "contraconquista" - coloca-se como
uma linguagem articuladora de um multiculturalismo problemático. O barroco colonial
se estabelece "como paradigma, como un horizonte incompleto, irregular que debe
quebrar líneas rectas y mesuras discursivas. Barroco como un campo de tensiones,
un devenir intersticial y constante en las poéticas hispanoamericanas" (AMARO, 2002:
20). É nessa chave que o romance da nova narrativa latino-americana recupera as
suas origens barrocas (em Alejo Carpentier, José Lezama Lima ou Severo Sarduy, por
exemplo). O barroco é tomado como um elemento de identidade cultural no interior
de uma prática da fragmentação, da celebração do novo através da ruptura e da
experimentação na América Latina.
J66
ESTUDOS DE CINEMA,
Nos escritos de José Lezama Lima encontram-se os aportes teóricos
necessários para orientar esta leitura da obra de Paul Leduc. A estratégia usada pelo
ensaísta cubano consiste em detectar, nos caminhos·da colonização, duas categorias·
estéticas diferenciais em relação ao barroco europeu .. Uma .é a tensão combinatória
dos motivos da teocracia ocidental, com emblemas indígenas e africanos, destacados
em seus ensaios nas imagens do indígena peruano Kondori e do brasileiro Aleijadinho
que, "na noite, no crepúsculo da folhagem espessa e sombria, chega com a sua·
mula, e aviva com novas chispas a pedra hispânica com a prata americana, chega
com o espírito do mal, que conduzido pelo anjo, obra na graça" (1988: 106).
Junto a esta tensão, articulam-se as imagens ligadas ao plutonismo, ao
demoníaco, ao fáustico, ressaltando a tessitura que se constrói a partir da imagem
do homem americano ligado à magia, ao prazer, à fome, à rebeldia, à malícia. É
nessa fantástica imagem de Aleijadinho e seu "espírito do mal", em seu corpo em
decomposição pela lepra, metáfora dolorosa de um devir, que Lezama problematiza
seu barroco latino-americano. A lepra como impureza, não apenas física mas espiritual,
como desfiguração irremediável, como contaminação, uma destruição marcada pela
força da impureza. É essa contaminação que produz um corpo em eterno devir, em
um processo de decomposição e de transformação. Na poética de Lezama Lima,
uma versão multitemporal e anacrônica da América Latina: a lepra que se espalha
pelos tecidos do corpo individual do escultor brasileiro assume, no ensaio do escritor
cubano, a contaminação que se espalha sobre um corpo coletivo. Assim desvela a
supremacia revolucionária desta estética do barroco americano, identificando nessa
imagem a política subterrânea da contraconquista. As discussões sobre o barrocb
orientadas a partir da década de 1950, apontam o multiculturalismo como traço
essencial na conformação do caráter rebelde do barroco americano. Nesta perspectiva,
o barroco que tomou corpo neste continente está para além da Contra-Reforma
católica: é a Contra-Conquista do colonizado, é a "lepra criadora" como a diferença
latino-americana.
Sem diálogos, o filme de Paul Leduc privilegia a música e o corpo como
formas de expressão, uma espécie de corporalidade que se manifesta em um espaço
entendido como texto: América. Este corpo, que se transfigura em múltiplas
performances, parece indicar um processo de constituição de identidades em eterno
devir. O filme se amplia na dimensão da música, cuja referência se baseia na ópera
composta por Vivaldi. Assim, apresenta-se em quatro partes: Andante, Contradanza
(ma non troppo), Rondo (Cantabile) e Finale. Os corpos em movimento desenham
a dimensão dos conflitos que pautam a narrativa (fílmica, poética e histórica).
Podemos seíialar que e! cuerpo (en Barroco) predomina como cuerpo de baile,
convertido en acontecimiento, religioso, estético, político. Este cuerpo de baile
trabaja en una primera instancia como instaurador de un territorio poblado de
IEM·TORNO DA AMÉRICA LATINA
167
movimientos, de sonidos, de colores, hasta de canciones. E! cuerpo de baile puede
qevenir rápidamente en cuerpo político. Elbaile borra los límites, pero participa de
un socius, un hacer social que lo estratifica. E! socius marca un gestus en e! que
puede leerse toda una situación social (AMARO, 2002: 51).
Nesse jogo imaginário de imagens, em danças e contradanças, duas personagens
,tentam responder à pergunta: "De dónde son los cantantes?", versos da popularíssiina
,trova cubana de autoria de Miguel Matamoros que diz: "Mamá yo quiero saber de
'dónde son los cantantes, que los encuentro galantes y los quiero conocer, con sus
trovas fascinantes que me las quiero aprender." As palavras parecem perguntar o que
as imagens tentam responder, e o ritmo do son cubano, da rumba, da trova, abre
caminho como uma linha de fuga no concerto de Vivaldi, marcando o signo das
alteridades em jogo na concepção do corpo americano. A canção, recorrente no filme
de Leduc, apresenta uma outra referência cubana importante para a concepção do
enredo filosófico do cineasta mexicano: Severo Sarduy (autor do romance De donde
son los cantantes, de 1967) que, assim como Lezama Lima, especializou-se na arte da
escritura neo-barroca da segunda metade do século XX e nos ensaios que apontavam
para a releitura desafiadora do barroco latino-americano.
Neles, a volta ao barroco insinua o início do grande debate, que viria a ser
apontado como a pós-modernidade. A releitura· do barroco se inseriria, desta forma,
numa fase _terminal da crise da modernidade, como uma espécie de encruzilhada de
novos significados, indicando a intuição de uma nova arte no sistema cultural latinoamericano que se instalaria no bojo dos destroços espalhados pelo capitalismo avançado
da era pós-industrial. Essa obsessão epistemológica pelos fragmentos e pelas fraturas
sintomatizam o mal-estar desta cultura de restos, de sobras. Daí as engenhosas
articulações, na concepção neo-barroca de Sarduy, citado em Leduc, da transformação
da realidade em imagens onde estas funcionam como uma espécie de "estrelastravestis", já que incompletas, artificiosas, imagens pastiche de um original que nunca
existiu.
Na estruturação barroca de Sarduy e de Leduc, a fragmentação do tempo
apresenta uma pérpetua sobreposição de multitemporalidades que problematizam a
colonização, o conflito, a hegemonia, assim como a contraconquista e as práticas de
resistência. Nas palavras do próprio Sarduy (1979: 178), o neo-barroco se apresenta
como um "reflexo necessariamente pulverizado de um saber que já sabe que não está
'aprazivelmente' fechado sobre si mesmo. A arte do destronamento e da discussão".
Uma frase emblemática abre o ensaio A expressão americana de Lezama Lima:
"somente o difícil é estimulante". Esse difícil, presente na paisagem americana, é
revelar a forma em devir, o processo, o "ir sendo" na construção do sentido. A visão
histórica deste devir se dá mediante o contraponto, ou o "tecido entregue pela imagem",
segundo palavras do próprio autor, onde estas imagens afastam-se da causalidade do
168
ESTUDOS DE CINEMA
historicismo para ganhar uma dimensão histórica não pela razão, mas pelo lagos
poético. Daí a proposição de um "contraponto de imagens" marcado por uma história
formada por "eras imaginárias".
A partir dei ensayo "Preludio a Ias eras imaginarias" (1958) comienza a esbozar su
visión de la historia en imágenes (un hecho histórico se transforma en un dato
poético que irradia significaciones, conectando series que para el discurso histórico
lineal son divergentes), apresadas en un diagrama (construido por el lector), por la
imagen, quien las hace transitar en la causalidad metafórica opuesta ai régimen causal
establecido por la motivación linear de! discurso histórico (AMARO, 2002: 37).
Nesta abordagem, as sociedades não se desintegram, e os imaginários podem
reaparecer em outro momento, em outro lugar, potencializados no afloramento de
imagens que os constituem. "Tudo terá que ser reconstruído, invencionado de novo,
e os velhos mitos, ao reaparecerem de novo, nos oferecerão seus conjuros e seus
enigmas com um rosto desconhecido. A ficção dos mitos são novos mitos, com
novos cansaços e terrores" (LEZAMA LIMA, 1988: 57).
Para Leduc, como para Lezama Lima, a história não. é linear, mas cíclica セ@
abismal, assim como a imagem, o mito e a poesia. Este "espaço americano" engendra
um conhecimento que também é alimentado pelo· olhar :do outro, promovendo um
deslocamento histórico e cultural das questões em tomo do centro e da periferia.
O barroco latino-americano, presente tanto no romance de Carpentier quanto
no filme de Leduc, apresenta um sujeito metafórico personificado por uma personagem
alegórica, que passeia por um labirinto cultural formado pela simbiose produzida por
diferentes elementos hispânicos, africanos, indígenas e lusitanos. Neste cenário, este
sujeito metafórico se faz também sujeito histórico, um sujeito rebelde que resiste,
numa espécie de movimento de contraconquista.
Na tese da contraconquista, onde se faz presente um potencial contestatório
das formas barrocas latino-americanas, motivado pela própria condição de colonizado,
Lezama e Leduc apontam as estratégias políticas do modo americano de.apropriar-se
da estética barroca do colonizador, assim como reforçam a engenhosidade dessa
forma.artística de veicular discursos de resistência. Esse sujeito metafórico, justificado
pela atuação do logos poético, adquire uma visão histórica livre das amarras do
historicismo.
Deste modo se afirma que "todo discurso histórico é, pela própria
impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos, uma ficção, uma exposição poética,
um produto necessário da imaginação do historiador" (CIDAMPI, 1988: 24-5), como
indica a mise-en-scene operada na montagem da ópera Montezuma no Concerto Barroco
de Carpentier e no filme-musical de Leduc, onde a imaginação barroca brinca com a
história.
EM TORNO DA AMÉRICA LATINA
169
O Barroco de Leduc pode ser percebido, então, como uma espécie de paródia
à própria linguagem comunicativa, já que o próprio sentido fica escamoteado em
meio aos diversos artificios que o encobrem, (como a imagem do travesti proposta
por Severo Sarduy). O objeto desta linguagem paródica toma-se a própria linguagem
paródica, numa espécie de reflexividade que produz novos artificios num processo
em devir. Lembre-se que o tema de Carpentier é a encenação de uma ópera do episódio
da Conquista na qual Montezuma é o personagem principal da tragédia. Isso vai ao
encontro do que Carlos Fuentes (2001: 52) diz em O espelho enterrado: "O barroco
é uma arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente,
pode-se ver a nossa identidade em mudança". As sobreposições de imagens que se
encontram no Barroco de Leduc, onde por exemplo a personagem do Super-homem
convive num imaginário projetado por ancestralidades pré-hispânicas, apontam para
um conceito lezamaniano de anacronia, segundo o qual um ou vários passados
esquecidos, como espectros, desvelam outros e inusitados presentes e outros,
inusitados futuros.
O filme de Leduc, através dos seus efeitos de representação, propõe um
multiculturalismo problemático, na conformação de um caráter rebelde do barroco
latino-americano, apontando para discussões contemporâneas que percebam o
multiculturalismo não como o espaço da pacificação, mas do conflito. O que está em
jogo, enfim, no Barroco de Paul Leduc é, em última análise, a questão do olhar,
representado pela visualidade dos procedimentos cinematográficos adotados pelo
diretor. A arquitetura dos olhares (quem vê e quem é visto) determina o exato tamanho
do "outro" representado na tela. A reflexividade dos espelhos espalhados pelas cenas
metaforizam o conflito e embaralham qualquer tentativa de construção dicotômica
das representações de identidades e dos processos de subjetividade na América.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002.
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americana. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa- literatura e cultura latino-americanas.
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COUTINHO, Eduardo F. Literatura comparada na América Latina. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2003.
170
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PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SARDUY, Severo. "O barroco e o neobarroco", in Moreno, César Fernández. América
Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.
IMAGEM E PODER
Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira
MARIAROSARIA FABRIS
(USP)
"Se algo não pode ser usado para mentir,
então, também não pode ser usado para
dizer a verdade" (Umberto Eco)
SEGUNDO ÜIOVANNI De Luna, "a foto do general americano dando um tiro na
cabeça do rapazinho vietcongue é incontestável, ela sozinha é um pedaço de História"
(apud VALENTINI, 2004: 86). A memória traiu o historiador italiano, pois, na verdade,
quem executa o vietcongue é o chefe da Polícia do Vietnã do Sul, 1 mas esse lapso não
tem importância. O que importa é que, com essa "bala explodindo na cabeça, é toda
a falência moral do regime sul-vietnamita, apoiado pelos Estados Unidos, a ser revelada"
(PULTZ & MONDENARD, 1995: 102). O que importa também é que essa mesma
foto é citada pelo personagem JohnH. Bradley (ex-combatente da Segunda Guerra
Mundial), em A conquista da honra (Flags of our fathers, 2005), de Clint Eastwood,
salientando que depois daquela imagem, a guerra do Vietnã estava perdida para seu país.
Essa afirmação surge exatamente numa produção na qual o que está sendo
discutido é o valor simbólico de outra fotografia, tirada por Joe Rosenthal a 23 de
fevereiro de 1945, a da bandeira norte-americana sendo hasteada no topo do monte
Suribachi, situado na ilha japonesa de lwo Jima. Uma foto acusada de ser posada,
mas que, na verdade, correspondia a um segundo hasteamento do pavilhão ianque na
ilha do Sul do Pacífico.
1. Trata-se da foto de Eddie Adams, O general Loan executando um vietcongue suspeito, tirada a 1°
de fevereiro de 1968. Provavelmente o historiador italiano confundiu-se, em virtude da participação
das tropas americanas na Guerra do Vietnã, e, quem sabe, pelo fato de trezentos civis terem sido
massacrados por un1 comando ianque, na aldeia de My Lai, a 16 de março daquele mesmo ano.
174
ESTUDOS DE CINEMA,
Esses dois "clichês"- o do Vietnã e o de Iwo Jima- deslocam o debate sobre
o estatuto de uma imagem do campo do registro da realidade, do documento, para o'
de símbolo de um acontecimento, o que a recarrega de novos significados.
Apesar de poder ser considerada relativamente recente, a discussão ao redor
da imagem como um instrumento a mais de que a História disporia para analisar
determinado período ou acontecimento, outro historiador italiano, Sergio Luzzato,
vem lembrar que a representação visual sempre foi um documento ao qual os
pesquisadores recorreram para resgatar o passado (VALENTINI, 2004: 86). De fato,
esculturas, pinturas, desenhos, tapeçarias, gravuras, charges, bem antes do advento
da fotografia, do cinema e da televisão, já imortalizavam uma personagem ou um fato
histórico, embora, na maioria das vezes, mais de forma simbólica, celebradora,
exaltadora, do que enquanto mero registro.
Fascículos ilustrados, fotografias e fitas da Grande Guerra, assim como fotos,
cinejomais e filmes da Segunda Guerra Mundial ajudaram a preservar a memória
desses acontecimentos; entretanto, foi a partir de 1965, com o início da luta armada
no Vietnã, que os meios de comunicação de massa passaram a estar mais presentes:
A guerra do Vietnã foi o primeiro conflito realmente midiatizado. Toda semana, uma
revista como Life prestava contas das perdas humanas por meio de imagens de
corpos feridos, destroçados, aniquilados. As autoridades militares facilitaram
largamente o trabalho dos fotógrafos no local, acreditando ingenuamente que seus
retratos só mostrariam o aspecto positivo do engajamento americano. De fato, isso
se deu nos primeiros anos do conflito, mas, a partir de 1967, vários jornais e revistas
publicaram imagens terríveis, que a América recebeu como uma chicotada e cuja
difusão o governo dos Estados Unidos não foi capaz de controlar (PULTZ &
MONDENARD, 1995: 102).
Algumas dessas imagens - como a de Eddie Adams e Menina atingida por
bombas de napalmfoge do vilarejo de Trang Bang, Vietnã do Sul, de Nick Ut, tirada
a 8 de junho de 1972- ressurgiram num documentário de 1974, Corações e mentes
(Hearts and minds), de Peter Davis, o primeiro a investigar os efeitos daquele conflito,
dando a palavra até aos vietnamitas. 2 Não deve ser esquecido também o papel das
2. EmA guerra americana (2005), Harrell Fletcher, ao adotar a denominação dada pelos vietnamitas
ao conflito, esposou o ponto de vista de quem o viveu no próprio território, e divulgou a memória
de quem viu seu cotidiano devastado pelas tropas de ocupação. A instalação, apresentada na 6•
Bienal do Mercosul (Porto Alegre, set-nov de 2007), está baseada no registro digital que o artista
fez de imagens captadas por vietnamitas, tiradas de revistas e jornais norte-americanos ou
provenientes dos arquivos de organizações internacionais envolvidas na resolução do conflito,
expostas no Museu de Vestígios da Guerra, na cidade de Ho Chi Minh. (FABRIS & FABRIS,
2008:3)
IMAGEM EPODER
175
reportagens televisivas na mobilização da sociedade civil contra a campanha no Sudeste
Asiático, a partir do final dos anos 1960, que resultou na retirada progressiva das
,tropas americanas de 1970 em diante e no fim do conflito em 1975.
O que o instantâneo de 1968 e o filme de 2005 trazem à baila é precisamente a
questão de como uma imagem pode ser lida e que sentido atribuir-lhe a partir da
época em que é feita essa leitura, se for pensado que a foto de Rosenthal já havia sido
aproveitada no cartaz de uma realização de 1949, Iwo Jima, o portal da glória (Sands
of Iwo Jima), no qual os três sobreviventes do hasteamento da bandeira fizeram uma
ponta, interpretando a si mesmos quando da reconstituição daquele acontecimento.
Diferentemente do filme de Eastwood, o de Allan Dwan não era um libelo
contra a guerra, contra qualquer guerra, nem pretendia questionar o heroísmo congelado
naquela foto. Ao contrário, era um hino à coragem dos fuzileiros navais, bem dentro
do espírito que caracterizou toda uma série de produções que surgiram no período
pós-bélico, voltadas a exaltar os feitos dos combatentes de cada país e a denegrir a
imagem do inimigo/ o que muitas vezes servia também para justificar atrocidades
(quase nunca apresentadas como tais) para pôr fim a um mal maior. 4 Resumindo: a
guerra tinha uma lógica e ela precisava ser explicitada, ao contrário do que acontece
em nossos tempos, em que conflitos armados parecem não ter mais lógica alguma.
Como salienta Ando Gil ardi ( 1980: 42), "a representação da guerra resulta
automaticamente numa promoção da própria guerra", mas essa exaltação poderia ser
colocada em xeque pela focalização das vítimas. E, ao se pensar nos filmes de ficção
que retrataram a Segunda Guerra Mundial, se constatará que, talvez, só em 1998,
com O resgate do soldado Ryan (Saving private Ryan), de Steven Spielberg, o
desembarque na Normandia, no dia D (7 de junho de 1944), foi representado em toda
sua brutalidade, a ponto de sua visão se tomar quase insuportável.
3. Segundo Gilardi (1980, 42), há números específicos em relação aos inimigos a serem eliminados na
tela: "No filme americano não bastam dez inimigos mortos para empatar a conta com um patrício.
Dez, ou, melhor ainda, vinte índios para cada soldado a cavalo de Custer; para um mariner
inflancionam-se os vietcongues; se se trata de alemães, bem menos: a cor da pele tem seus direitos.
Curiosamente, no mundo socialista, mudam as regras: ( ... )quinze partisans de Tito para cada
invasor nazista, [pois] não se considerava positivo atribuir ao invasor um sacrificio de sangue
superior ao enfrentado pelos invadidos para libertar a pátria: o povo, isto é, os espectadores,
devia perceber que o preço da liberdade é mais salgado do que o de sua negação. No cinema
soviético( ... ), fica-se a meio caminho: o balanço dos mortos empata. No italiano, vai-se de um
extremo a outro". Com Cartas de lwo lima (Letters from lwo lima, 2005), Eastwood tenta
romper com uma visão estereotipada do inimigo japonês na Segunda Guerra Mundial.
4. Para Okubaro (2007, 262-63), a decisão do presidente Truman de autorizar o lançamento das
bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki (6 e 9 de agosto de 1945) foi motivada pelo grande
número de baixas (12 mil) do exército norte-americano na conquista da ilha de Okinawa. Isso fazia
prever uma carnificina entre os militares dos Estados Unidos (um milhão de mortos), caso este
país tivesse optado por um ataque maciço contra o Japão.
176
ESTUDOS DE CINEMA
Essa digressão inicial serve para introduzir a discussão sobre um conjunto de
imagens, bem menos conhecido e comentado do que a famosa foto tirada por J oe
Rosenthal. Trata-se de um cinejornal ou, ao que tudo indica, de um fragmento dele,
relativo ao resgate de Benito Mussolini de sua prisão, levado a cabo por forças alemãs
a mando de Hitler em 1943. Sob o título de O rapto de Mussoline (com o sobrenome
do duce grafado errado), 5 esse material está depositado na Cinemateca Brasileira, sem
maiores referências, e tomei conhecimento dele, por acaso, em 2002. 6 Tendo
reconhecido naqueles .fotogramas o fato histórico ali registrado, fiz uma pequena
pesquisa, estabelecendo datas e arrolando alguns de seus protagonistas. Escrevi na
época: "No dia 12 de setembro, aviadores alemães, chefiados pelo coronel Otto
Skorzeny, libertam Mussolini de sua inexpugnável prisão no Gran Grasso, levando-o,
em seguida, para o Quartel General Alemão" (FABRIS, 2002).
A procura de outras fontes para poder entender melhor um acontecimento
sobre o qual os livros de História eram tão lacônicos, levou-me a uma descoberta
surpreendente: as imagens em movimento sobre a chamada "Operação Carvalho"
(Fall Eiche), arquivadas na CinematecaBrasileira, provavelmente escondiam um "falso"
histórico: Um "falso" não no sentido de _que aquele fato não aconteceu, mas por
causa da "reconstrução" pela qual passou o momento que se pretendia registrar
"reconstrução" determinada também por ordens preestabelecidas ao próprio
acontecimento.
Ao ser destituído do cargo de chefe do governo pelo Grande Conselho do
Fascismo, em 25 de julho de 1943, Mussolini iniciou um périplo por diferentes prisões
-em rッュ。セ@
nas ilhas de Ponza e da Madalena, em Assergi -, até que, em 2 de
setembro, foi confmado em Campo Imperatore, estação de esqui situada no Gran
Sasso d'Italia (Grande Maciço da Itália), ponto culminante da cadeia montanhosa
dosApeninos. Em 11 de setembro, a Fali Eiche (iniciada no dia 26 de julho) é confiada
ao major Harald Mors, sendo autorizada também à participação de um grupo de SS,
dentre os quais Otto Skorzeny, um dos responsáveis pela localização das várias prisões
do duce. A operação é concluída em doze horas no dia seguinte, e Mussolini, uma vez
resgatado, é levado de avião para fora do país. Logo depois se encontra com Hitler,
o qual já havia condecorado Skorzeny com aRitterkreuz. No dia 14 de setembro, o
radiojornal transmitia a versão oficial sobre o resgate, consagrando-a.
5. Quanto ao título do cinejomal, é bem provável que seja este, pois o resgate de Mussolini foi
apresentado como um "rapto" (PATRICELLI, 2002: 5).
6. O primeiro contato com O rapto de Mussoline deu-se nas reuniões do grupo de pesquisa "Cinema
Brasileiro em Retrospectiva", da Cinemateca Brasileira. Uma reflexão inicial sobre o cinejomal foi
apresentada na palestra Imagens "verdadeiras" e representações simbólicas, proferida em 21 de
maio de 2007 no âmbito do grupo de pesquisa do CNPq "História e audiovisual: circularidades e
fimnasde comunicação", da ECNUSP.
IMAGEM EPODER
177
Toda a "Operação Carvalho" foi levada adiante por ordem expressa do Führer,
interessado na libertação do duce, nem tanto pela admiração mútua e pela "amizade
1979: 137) que os unia, quanto para mostrar asolidariedade da
brutal" HpetセcoL@
Alemanha para com seus aliados e evitar, assim, outras "deserções", como a da Itália,
que mudara de lado. De fato, o país, depois da destituição de seu chefe do governo,
embora continuasse na guerra como aliado da Alemanha e do Japão, intensificou as
tratativas com os anglo-americanos. Em 8 de setembro, era anunciada a capitulação
das forças italianas, com a conseqüente cessação das hostilidades contra as tropas
anglo-americanas e a declaração de guerra à Alemanha, cinco dias depois. Com o
centro e o norte do país ocupados pelÓ exército alemão, Mussolini, depois de liberar
os soldados italianos do juramento de fidelidade ao rei- por meio de uma tramsmissão
radiofônica feita de Munique, em 18 de setembro -, no dia 23 regressa à Itália e
proclama a República Social Italiana (ou República de Saló), durante a qual se tomou
praticamente prisioneiro de Hitler.
Embora o resgate tenha resultado do esforço conjunto dos vários envolvidos,
toda a glória pela façanha coube ao capitão Skorzeny (depois, promovido a coronel),
como foi dito. Tanto a versão dele, quanto a versão de Mors foram divulgadas
(ANNUSSEK, 2006; PATRICELLI, 2002),7 sem que se chegasse a um consenso.
Mais do que tentar restabelecer a "verdade" dos acontecimentos, o que me interessa
discutir a partir desse cinejomal são as razões que podem ter levado à glorificação do
oficial austríaco. Além do fato de Skorzeny ser um integrante das SS, portanto da
tropa seleta e fiel ao Führer, e Mors um militar que "prestou juramento ao presidente
Hindenburg, não a Hitler", como ele mesmo dizia (apud PATRICELLI, 2002: 56), é
bem provável que a escolha tenha recaído sobre aquele por corresponder ao ideal da
raça ariana, encarnando com seu porte a própria imagem do Übermensch (Superhomem). Afmal, desde as realizações de Leni Riefenstahl, especialmente oャゥュー■。、セ@
(Olympiade: Fest ·der Schõnheit, Fest der Võlker, 1938), também na Alemanha o
aspecto fisico passou a ser empregado para fins de propaganda política para atestar a
supremacia dos arianos, representada por corpos sadios, dinâmicos e cheios de vigor
(PULTZ & MONDENARD, 1995:. 86-95).
Se a isso se juntar o fato de não ser mostrado o momento do resgate, mas o
posterior, será possível constatar que tudo se encaixava no princípio da "estetização
da guerra" (SCHWARZ, 1980: 3) Como ャ・セ「イ。@
Claudio Fontana ( 1980: 53), a respeito
do emprego da fotografia na Primeira Guerra Mundial, os conflitos bélicos são
registrados em suas pausas: "Fotografa-se entre ou depois, quase nunca durante.
Fotografar durante significa reapresentar os eventos fotografar entre ou depois, significa
7. Devo aAnnateresa Fabris a localização das obras desses dois autores e dos artigos de LaRepubblica.
178
ESTUDOS DE CINEMA
representar seus efeitos". E é o que O rapto de Mussoline faz, pois o que interessa
não é tanto o fato em si, quanto mostrar ao mundo o pacto entre os dois ditadores e,
conseqüentemente, lançar uma ameaça subliminar às outras nações. Afmal, como
lembra Siegfried Kracauer (1977: 310), durante o Nazismo "à propaganda foram
conferidos tamanhos poderes que ninguém· mais sabe se ela serve para modificar a
realidade ou se é a realidade que precisa ser modificada para fins propagandísticos".
Segundo Richard A. Maynard (1975: 27-9), havia três tipos de filmes de
propaganda nazista: o primeiro voltado para a "glorificação de Adolf Hitler e dos
princípios nazistas"; o segundo dedicado à disseminação do "anti-semitismo a fnn de
atiçar um 'racial-nacionalismo' entre os alemães"; o terceiro, destinado a exaltar o
poderio militar do país. Se os dois primeiros endereçavam-se ao público local, o
ten:eiro dirigia-se a uma audiência estrangeira, sendo, portanto, mais sutil em suas
colocações. O fato de uma cópia de O rapto de Mussolíne - que pertenceria ao
terceiro tipo de filme de propaganda - ter vindo parar no Brasil atesta a importância
dada a este cinejomal na propagação do ideário nacional-socialista.
O cinegrafista anônimo da Ufa que registrou os momentos fmais da operação
de resgate, セN@ posteriormente, o montador daquelas imagens em movimento parecem
ter aplicado bem a lição que Leni Riefenstahljá havia aprendido de seus antecessores,
ao transformarem um fato realmente acontecido na· mi(s)tificação do próprio
acontecimento, numa operação em que os limites entre a verdade e a mentira se
confundem, quando não se anulam. O comentário que em 1963 Robert Vas (1975:
11) fez a respeito de O triunfo da vontade (Der Triumph des Willens, 1934-36) "Realidade e símbolo andam pari passu num estrondoso ritmo de marcha, e, pela
primeira vez, a ·história é empregada de forma direta para. moldar a história" - se
aplica perfeitamente a esse cinejomal, pois ele também poderia ser considerado "um
símbolo de como a propaganda contribuiu para a linguagem natural do cinema,
deixando-a ao mesmo tempo à beira de um abismo de difíceis questões morais".
Esse tipo de operação engendrado pela propaganda, toma-se possível graças
ao estatuto de "serva da verdade" conferido à fotografia (SETTIM:ELLI, 1980: 69) e,
por extensão, ao documentário. Clemente Ancona ( 1980: 61) lembra que a fotografia
'"pode ser usada para mentir'( ... ), logo, por sua presumível fidelidade especular ao
original, pode falseá-/o de mil modos". Os aparelhos fotográficos e cinematográficos,
"sem nada mudar da realidade circundante, podem delimitar a seu bel prazer o campo
visual e, portanto, isolar do contexto, o sujeito escolhido". E como afirma Wladimiro
Settimelli (1980: 68):
Segundo os postulados do pensamento positivo, a fotografia 'era um dado
incontrovertível da realidade e, para as massas, representava a verdade. --se podia
ser considerada assim, então não parecia dificil usá-la, instrumentalizando-a, para
interesses precisos e necessidades contingentes ( ... ) apelando para a equação
IIVIAGEM EPODER
179
fotografia-realidade e fotografia como dado incontestável da verdade de qualquer
fato( ... ). Era só( ... ) ter à disposição um punhado de fotógrafos dispostos a mudar o
enquadramento, a retratar certas coisas· e não outras, a fazer um uso "moderado" e
mediato do aparelho fotográfico e a não utilizar plenamente as imensas possibilidades
do meio, para obter tranqüilamente o mesmo resultado [das intervenções da censura]
e, portanto, "realinhar" qualquer veleidade do antigo instrumento de Niépce e Daguerre.
Não foram apenas os regimes totalitários de direita a se valerem de imagens
ditas documentais para carregá-las de um valor simbólico. Mesmo um dos grandes
mitos da Revolução Russa seria uma "invenção", segundo pesquisas recentes. O
motim de um navio de guerra no porto de Odessa, a 14 de junho de 1905, deveria ter
envolvido toda a frota imperial (assim como às greves daquele mesmo ano deveriam
ter aderido todas as fábricas do país), mas terminou dez dias depois, com a rendição
dos marinheiros, uma vez que a revolta não vingou. A pedido de Lênin, no entanto,
Sergei Eisenstein fazia da reconstrução daquele episódio, 20 anos depois, o primeiro
filme do regime bolchevique. Apresentado como um documentário para comemorar
o vigésimo aniversário dos movimentos populares contra o tzar Nicolau 11, O
encouraçado Potemkin, ao terminar com a insurreição alastrando-se por toda a nação,
era uma apologia da revolução proletária que se afirmou em outubro de 1917,
transformando uma derrota histórica num triunfo propagandístico - já na era de
Stálin (VISETTI, 2005: 46; KURUKIN, 2005: 47).
Diante disso, torna-se difícil não concordar com Angelo Schwarz· (1980: 67),
quando afirma que os "meios de comunicação de massa são operadores de ideologia",
os quais, ao favorecerem "a percepção de um estímulo fundamental"- aforma -,
relegam à sombra os modos, os elementos constitutivos do entorno". J?isso resultaria
uma deterioração da informação, o que o leva a concluir que um acontecimento é
sempre algo exterior a qualquer forma de representação.
É essa a lição que se extrai da revisão da "Operação Carvalho". E é essa a
reflexão à qual nos convida Clint Eastwood com A conquista da honra e Cartas de
Iwo Jima: realizar uma nova leitura dos "clichês" que a guerra delegou a este trabalho,
que são antes indícios do que memória ou comprovação de um acontecimento, pois
essas imagens silentes, 8 para reviverem, não podem dispensar os outros testemunhos,
8. Referindos-se aos discursos que se constroem sobre as fotografias, diz Ancona (1980: 61 ): "As
fotos, aliás, são mudas; não podem dizer nem mentiras, nem a verdade. Quem pode 'mentir',
portanto, são seus autores ou os que escrevem suas legendas. Estes, de fato, nada mais fazem do
que colocar tais fotos em seu contexto significante original (se pretendem dizer a verdade), ou num
contexto diferente (se pretendem mentir)". A partir da afirmação do autor, preferi o termo silente,
por entender que, para além do discurso que se pode construir sobre urna foto, qualquer imagem
em si vem carregada de significado(s), que lhe permite(m) romper a barreira do silêncio (expressão
momentaneamente abafada), a cada nova leitura a que for submetida.
ESTUDOS DE CINEMA
180
dos depoimentos às reportagens; das cartas aos livros de História, na tentativa de
aproximar este objeto de estudo daquela ''verdade" que _cobra tanto delas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANNUSSEK, Greg. Hitler e o resgate de Mussolini. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
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publicado pelo Jornal daABCA, São Paulo, 2008.
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Quercia. Milano: Mondadori, 2002.
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personale di Mussolini. Milano: Mondadori, 1979.
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1995.
.
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critica del/a fotografia, pp. 66-7.
SCHWARZ2, Angelo. "La retorica del realismo fotógrafico". Rivista di storia e critica
del/a fotografia, p. 3-9.
SETTIMELLI, Wladimiro. "La guerra a dispense". Rivista di storia e critica del/a fotografia,
pp.68-73.
IMAGEM EPODER
181
VALENTINI, Chiara. "I partigiani della memoria". L 'Espresso, Roma, v. L, n. 4, 29 gen. 2004,
. pp. 85-6.
VAS, Robert. "Sorcerers or apprentices: some aspects of the propaganda film". In:
MAYNARD, RichardA. (org.). Propaganda on film: a nation at war Roudelle Park:
HaydenBookCompany, QYセULーN@
7-15
VISETTI, Giampaolo. "Ma quegli eroi furono un falso del regime". La Repubblica, cit., p.
4647.
Documentário social inglês:
problematizando a obra" de Grierson
li
PAUW MENEZES
(USP) 1
Para Ana Lúcia
QuANDO SE PENSA em documentário social inglês é impossível não se pensar
em John Grierson. Não só por ele ter sido seu pai fundador, mas por ter ele tentado
inserir o cinema na ponta de lança de propaganda do Empire Marketing :eoard, o .
grande órgão do governo britânico responsável por "promover o comércio e o senso
de unidade entre as suas várias partes" (BARNOUW, 1993: 87). Seu nome tomou-se,
a partir disso, elemento "esclarecedor" das análises e interpretações que se fizeram
dos filmes por ele realizados (poucos), ou produzidos (muitos). Nessa direção, o
intuito desse artigo é discutir o que significa a generalização de uma entidade que se
costumou chamar de "narrativa griersoniana".
Foucault, em seu texto O que é um autor (1994: 789-821), joga alguma luz
sobre essa questão. Segundo ele, pensar um autor - ou nome de autor, ou "obra" de
um autor - significa adotar uma lógica interpretativa em relação aos discursos que
pode desconsiderar ou colocar
vem de fora deles, que lhes é exterior, que, no ャセエ・L@
em segundo plano suas próprias características discursivas. Nessa direção, olhar um
autor, ou uma "obra", não significa olhar as condições, de funcionamento das práticas
discursivas, pois o nome de um autor se diferencia de maneira radical de um nome
próprio qualquer. Autor, portanto, acaba adquirindo uma função, acaba cumprindo
um papel em relação a um discurso que um nome próprio não cumpre. Pensar-se
1. Agradeço à FAPESP e ao CNPq o apoio à realização dessa pesquisa.
184
ESTUDOS DE CINEMA
autor e pensar-se "obra" significa assegurar uma função classificatória ao discurso,
função essa que permite um agrupan1ento de textos narrativos que permite a criação
de um campo de coerência conceitual e teórico, que, por sua vez, permitirá ao leitor
inferências, homogeneidades, filiações e autenticações de uma obra em relação às
outras, de um discurso em relação aos outros, permitindo que se constitua uma unidade
estilística que pode não estar presente em uma análise detida das obras particulares.
"Ele manifesta a ocorrência de certa unidade de discurso, e refere-se ao status deste
discurso no interior de uma sociedade e no interior de uma cultura." (FOUCAULT,
1994: 798) Assim, o autor, ao contrário de ser pensado como uma entidade que
explica os discursos a partir de fora, por uma unidade e coerência pressuposta, anterior
e exterior a eles mesmos, mostra-se como uma "produção ideológica que afasta a
proliferação de sentidos" (FOUCAULT, 1994: 811 ), variante como um princípio de
constrangimento e não de esclarecimento, como uma coerção interpretativa à análise
de discursos e de seus possíveis sentidos.
Nessa direção, parl:!- analisar a "obra" de Grierson, para analisar a "narrativa
griersoniana" é necessário se esquecer de Grierson como autor e "obra", é necessário
sob sua égide não como "filmes de Grierson", mas como unidades
se olhar os ヲゥャュ・セ@
discursivas próprias. A isso se soma um outro ponto de partida analítico, que irei
tomar, como em Sorlin (1977: 237-45), de investigar um filme como uma unidade
discursiva construída.pelo diretor, ou produtor (aqui a distinção não é relevante), que
remete à necessidade de se buscar em suas imagens, sons e ruídos, compreender
quais são os esquemas valorativos que comandam sua concepção e seus esquemas
construtivos que organizam e posicionam sua "encenação social", nos termos de
Sorlin, e;por meio dela, a construção social dos personagens e dos sistemas relacionais
que estão materializados nas relações visuais do filme.
Olhando-se esses filmes por esse novo prisma, um outro documentário social
inglês aparece com várias coisas em comum de um filme para outro, mas também
com muitas coisas diferentes, que são muito mais instigantes para o olhar investigativo.
Grierson, que era um sociólogo formado pela Universidade de Glasgow, tem
em Drifters sua obra seminal. Inicialmente, pelo estratagema peculiar por ele utilizado
para conseguir o financiamento para realizá-lo. Ciente dos recursos investidos pelo
EMB para dar publicidade aos grandes feitos do Império Britânico, que utilizava como
meios de propaganda principalmente pôsteres, panfletos e exibições, e que tinha em
seu comando o secretário das Finanças e Tesouro, Sir Arthur Michael Samuel, um
notório opositor da utilização do cinema apelo império, Grierson propôs a ele que se
fizesse um filme sobre a pesca do arenque no mar do Norte com o intuito de mostrar
o poderio britânico em uma atividade econômica tradicional e de formas de produção
bastante artesanais. Convencido da importância desse filme, Sir Arthur Samuel, que
não por acaso era a maior autoridade na indústria do arenque da Inglaterra, aprovou o
projeto de Grierson e destinou a ele a polpuda (na época) quantia de 2.500 libras, com
a qual foi realizado o filme de aproximadamente 50 minutos.
IMAGEM EPODER
185
Drifters (I 929) é de fato um filme seminal, evidentemente não só pela criação
de um estratagema de obtenção de fmanciamento que Grierson sofisticaria nos anos
seguintes, mas sobretudo por ter com ele criado um modelo de constituição de imagem
que atraves·sou fronteiras nas décadas seguintes.
De saída, Grierson constrói o trabalho da pesca em uma clivagem como o
trabalho artesanal que povoava o imaginário urbano das primeiras décadas do século
XX. Grierson é muito cuidadoso nessa constituição, pois, antes de mostrar as condições
de trabalho, faz os olhos de o espectador passear pelas vilas onde habitam aquelas
pessoas, vilas de casas brancas em torno de um grande terreno central, onde descansam
calmamente inúmeras redes de pesca ao lado das quais passam os habitantes vestidos
singelamente, circundados pelos seus cachorros. As imagens da vila dos pescadores
contrastam com as imagens construídas do barco no qual eles pescam. Aqui, a
diferença é substantiva. Se a vida cotidiana pode parecer à mesma, os objetos do
trabalho já não o podem ser. De saída, a força motriz dos barcos não é mais apenas e
somente o trabalho humano, nem os pequenos motores de popa, co!llo em áureas
épocas, mas agora enormes motores movidos pela energia da Revolução Industrial: o
vapor. Para acentuar a imagem de que este trabalho nada mais tem de artesanal, logo
após a cena na qual se vê o carvoeiro alimentando a caldeira, o que demonstra a
intimidade nada agressiva da máquina com o homem nesse tipo de trabalho, docemente
se vê pegar com uma grande pá um punhado de carvão, agora em brasas, para
acender, sem qualquer parcimônia, o cigarro que cuidadosamente descansa entre
seus lábios sorridentes.
As razões dessa necessidade não deixarão de aparecer nas cenas seguintes.
Logo que o barco contorna a saída do porto, já se pode vislumbrar a necessidade de
tanta força motriz. Inicialmente, por tomadas que vão mostrar a violência com que
batem as ondas nas pedras da costa da Inglaterra. A seguir, pelo tamanho das ondas
que as embarcações, agora diminutas, têm de enfrentar para conseguir chegar a mar
aberto. Essas cenas, tomadas de longe, e às vezes de dentro de uma das embarcações,
pelo movimento que fazem em relação à linha do horizonte, podem deixar enjoados os
espectadores, como deveriam deixar enjoados os pescadores, não fosse a sua maestria
e destreza que o filme não economiza em ressaltar. A isso se·associam as imagens da
alllp.entação incessante nas fornalhas, da escura e espessa fumaça que escapa das
chaminés dos barcos, entremeadas pelas recorrentes seqüências em que se vêem os
trabalhos dos pistões e das engrenagens, em seus incessantes vaivéns, azeitados
constantemente pelo óleo que escorre de seus movimentos, e que ao mesmo tempo
deixam clara a sua importância para que se possam vencer mais facilmente as ondas,
não apenas as do mar bravio, mas, e principalmente, aquelas que separam a produção
artesapal e tradicional da iqdústria moderna. Grierson se utiliza de uma imagem
recorrente que naquela época já havia se transformado em símbolo visual da indústria
moderna: o movimento das engrenagens e especialmente dos pistões, como já havia
186
ESTUDOS DE CINEMA
sido utilizado por Vertov em Um homem com uma câmera (1929), bem como por
Ruttmann em Berlim, sinfonia da metrópole (1927), entre outros.
Grierson constrói seu "épico de vapor e aço", como dizem os intertítulos no
início do filme. As cenas dos pistões, das engrenagens, dos desenhos do óleo que
escorre e lubrifica suas entranhas, ao giro poderoso das rodas das locomotivas,
constituem para o espectador as mais poderosas imagens do que poderia haver de
mais moderno na época, e que havia se tomado símbolo visual da indústria moderna.
Ao mesmo tempo, e isso é o mais significativo, pois o difere substancialmente de
Ruttmann, constrói por imagens, pela primeira vez na história do cinema, o trabalho
humano e o trabalhador da indústria, e não a classe, como sujeitos filmicos. O homem
aqui nunca é esquecido, como fora em Ruttrnann, onde as máquinas parecem se
mover por pura e exclusiva vontade própria. Se, em Vertov, a força do trabalho humano
está sempre presente no manuseio e comando das máquinas, aqui, em Grierson, a
máquina e o tràbalho humano são elevados sem meias palavras às forças motrizes
fundamentais da instituição da indústria moderna, como elementos essenciais do
processo de produção de mercadorias e valores.
Entretanto, o que é mérito é também o lócus do problemático. Se é louvável a
elevação do trabalho humano à sua nova condição de sujeito filmico, escapando das
visões edificantes e exotizantes em que ele apareceu nas telas por meio de filmes
como Nannook, 2 Grierson, entretanto, não leva suas imagens às últimas conseqüências,
como em alguns momentos levaram Vertov e Eisenstein. A visão do modo capitalista
de produção em seu filme, que nunca é nomeada como tal, é fundada por meio de
suas imagens em uma visão reformista, para as concepções políticas da época, da
relação entre capital e trabalho. As inúmeras cenas da placidez e alegria com que os
pescadores acordam felizes de madrugada para se dedicar ao trabalho, fazem as suas
refeições sorridentes dentro do barco, enfrentam com coragem o mar bravio e lutam
com a ajuda das máquinas para tirar da água as redes repletas de peixes, associadas à
tranqüilidade de sua vida na vila e à perfeição e rapidez da comercialização de seus
produtos no seu retomo, mostra para o espectador que a relação capital-trabalho
pode se desenvolver na mais perfeita harmonia, não só nas relações homem-máquina,
mas também nas relações homem-homem, nas relações de trabalho aqui não construídas
como relações de dominação e expropriação, como se vê em A greve ( 1924) e Potemkin
(1925). Conseqüentemente, o final do filme é apenas um corolário dessa proposição,
pois se vê os peixes serem retirados dos barcos, serem limpos pelas mãos hábeis das
2. Para uma análise detalhada desse filme, remeto a análise realizada em outro lugar: Menezes, Paulo,
"O nascimento do cinema documental e o processo não-civilizador", in: Martins, José de Souza;
Novaes, Sylvia Caiuby & Eckert, Cornélia, O imaginário e o poético nas ciências sociais, Bauru,
Edusc, pp. 27-78.
IMAGEM EPODER
187
mulheres, serem embalados, pesados e transportados por carroças, trens e navios
"para os mais longínquos confins da terra", como nos afirma um intertítulo, como a
confirmar a potencialidade planetária desses procedimentos, dessas relações. Reproduz
de forma filmica os momentos do processo de reprodução do capital expressas por
Marx em O capital: produção, circulação, distribuição e consumo. Apenas com uma
pequena mas extremamente significativa mudança: o processo e as relações de trabalho
são vistas como não-conflituosas, como orgânicas e harmônicas, deixando explícito
que, pelo menos nesse caso, o filmico, o desenvolvimento industrial é, finalmente,
. para todos.
Essa mesma visão harmônica será expressa em outro filme produzido por
Grierson, mas dirigido por Basil Wright e Harry Watt (que tem o som realizado por
Àlberto Cavalcanti). Em Night Ma i/ ( 1936), filmado com vários truques para simular
o trabalho noturno do trem postal, podemos nos dar conta de que as correspondências
que se recebe em casa não são obra de mágica ou do acaso, mas fruto de uma longa
e incessante sucessão de trabalhos humanos, em que as máquinas auxiliam, mas não
comandam, numa seqüência de imagens que termina, 'Como não poderia deixar de
ser, em urna longa cena que mostra os campos ingleses banhados por uma luz matinal
e por urna música alegre e suave, corolário do glorioso trabalho da madrugada.
O ápice dessa perspectiva se pode encontrar em um filme com Industrial
Britain (1933), este diretamente institucional, realizado por Grierson e Flaherty.
Inicialmente o filme constitui urna di vagem entre o novo e o velho, a velha ordem dos
moinhos de vento, das máquinas de fiar, de tecer, dos montes de feno e dos barcos,
cisnes e caravelas, como mostram suas imagens primeiras. A nova ordem aparece
por meio dos símbolos reconhecíveis da fumaça e vapor, como força motriz, advindas
da indústria do carvão, base da indústria e do poderio do Império. O filme é realizado
por blocos, sendo coerentemente, o das minas o mais escuro, com seus corredores
apertados, com seus trabalhadores sem camisa, por causa do calor que a todos toma,
com as máquinas e animais que os ajudam, tudo isso temperado e suavizado por outra
alegre e suave música de fimdo. O processo de trabalho é construído didaticamente
do simples ao complexo, do moleiro, que desde sempre faz "as mesmas coisas boas,
com as mesmas ferramentas simples", como alerta o intertítulo, passando pelo vidro,
o trabalho artesanal mais sofisticado que existe, ápice dos segredos das corporações
de oficios, que guardavam desde o século XV a sete chaves suas combinações de
cores, mostrado por meio do sopro que cria formas e pelo recorte humano que dá
detalhe e beleza a essas formas genéricas. Chega-se por fim ao trabalho das lentes,
dentre os vidros o mais sofisticado e elaborado, como os finos cristais, que vão
municiar microscópios, telescópios e faróis marítimos. O bloco do aço muda as
dimensões do que é proposto pelo filme. Fornalhas, fumaça, faíscas, e cadinhos
imensos, barras de aço e rebites introduzem a fabricação de peças sofisticadas que
não podem dispensar a sofisticação do trabalho humano, expresso nos olhos afiados
188
ESTUDOS DE CINEMA
daquele que busca fissuras em peças de aeronáutica. O final recupera, por meio da
música epopéica, a grandiosidade da indústria britânica, ressaltada pelas imagens da
eletricidade, do transporte e dos aviões.
Se for tomado como elemento analítico, apenas esses três filmes (dois deles
realizados pelo próprio Grierson), ou seus assemelhados na lista dos filmes produzidos
pela empreitada de Grierson, pode-se cogitar que existe um ponto comum que mobiliza,
todos esses filmes e que poderia muito bem ser expresso pelo que se convencionou
chamar de "narrativa griersoniana". Mas se, ao contrário disso, buscar-se ao invés da
similitude os indícios da diferença, uma outra chave interpretativa vai surgir por ュセゥッ@
das imagens de filmes muito diferentes desses.
Housing problems (1935), de Edgar Anstey e Arthur Elton, é um filme que
permite a passagem de um lado para o outro. Seu fmanciamento foi conseguido pelo
estratagema central de Grierson, de convencer empresas a realizar filmes sobre suas
áreas de atuação, as quais acabavam se transformando em filmes que em muito .
extrapolavam a mera propaganda dirigida, como pode-se ver até em Drifters e Night
Mail, e menos em Industrial Britain. Aqui, Grierson convenceu a Gás Light and
Coke Company a financiar o filme com o argumento de que ele seria um bom ponto
de partida para convencer a população em geral das melhorias que o gás poderia levar
às suas condições de vida. O local escolhido foi de uma região pobre de Londres,
tomada de cortiços, que estava na mira dos grandes empreendedores imobiliários. O
filme é construído para ressaltar nitidamente duas dimensões do problema. Na primeira
parte ouve-se uma narração em tom formal a discorrer oficialmente sobre o problema:
na voz de Concelor Lorder, ao mesmo tempo em que as imagens mostram tetos
caídos, telhados deteriorados, janelas quebradas, rebocos arrebentados, escadas
precárias, banheiros coletivos (a locução afirma serem para quatro famílias) que são
apenas buracos no solo, roupas estendidas pelos corredores ou em minúsculos quintais.
Esse contraste entre ao tom formal e solene da narração e a absoluta falta de pudor
das imagens mostradas cria para o filme uma atmosfera muito diferente do que se"
poderia pressupor apenas por meio de uma propaganda, da indústria do gás. O filme
utiliza uma inovação filmica fundamental para o seu resultado sombrio: a entrevista
direta com som sincronizado, mesmo que artificialmente, pois é somente no fmal da
década de 1950, com o gravador Nagra, que a sincronia mecânica vai finalmente se
セ・。ャゥコイN@
Mas o impacto é imediato. Diversos moradores são entrevistados para falarem
sobre suas condições de vida. O interessante, e que contrasta com a solenidade inicial,
é que esses moradores falam de suas mazelas sem o menor constrangimento, como
se deveria esperar. Pelo contrário, falam de si e de seus problemas com a naturalidade
de quem se estabilizou com aquilo, mas que não se acostumou com o que vive. As
pessoas são altivas dentro de suas precárias condições, expondo sem meias palavras
as precaríssimas condições de vida e de trabalho, da falta de luz que tudo estraga até
a sujeira que a tudo toma pela inexistência de atenção às condições sanitárias por parte
·IMAGEM EPODER
189
das autoridades. As imagens que recheiam essas entrevistas são das mais contundentes,
nunca antes vistas em filmes documentários, com baratas andando pelas paredes e
.frestas, com as cozinhas transformadas também em dormitórios, os corredores escuros
cheios de insetos ligando o precário ao insalubre. Uma verdadeira guided tour dos
moradores sobre a própria miséria.
Na seqüência aparece o momento propaganda do filme, com quatro entrevistas
muito mais curtas, que mostram a população já reinstalada, em limpas e confortáveis
residências, onde não se vêem mais ratos ou baratas, nem mesmo cantos escuros.
,Mas o interessante é que o filme termina com depoimentos em of! de outros moradores,
.voltando às imagens dos corredores escuros e das condições precárias dos cortiços,
de sua estreita passagem de entrada onde se empilham famílias, onde as crianças
·brincam no chão imundo rolando com os cachorros, e onde uma voz of! afirma que
Íx>r ali podem ser encontrados "ratos do tamanho de beagles". Assim, o filme não se
permite terminar na generalização da alegria dos novos residentes, mas retoma à
miséria da maioria como a alertar que o problema é muito maior do que a solução até
omomento proposta, por mais que para alguns ele tenha sido proveitoso.
Nessa outra linha, Coa/ Face (1936), deAlberto Cavalcanti, é sem sombra de
dúvidas o mais radical e tenebroso de todos. Como avança o nome, o filme trata da
'indústria do carvão, anunciada pelo narrador como "a base da indústria britânica".
vPode o espectador, a partir dessa breve introdução, imaginar que vai assistir a um
filme semelhante àquele que louvava a engenhosidade e a sofisticação da indústria
britânica, tendo como base de geração de energia o mesmo carvão. Nada mais
enganoso. De início, essa primeira locução é acompanhada de uma música grave e
sombria, e por imagens dos montes de carvão, das máquinas e das esteiras sob um
céu nublado, tomado pelo vento e escurecido pela proposta narrativa. Segue-se a isso
uma sucessão de dados estatísticos secos, falados por uma voz mais soturna que a
. anterior, acompanhada de uma sonoridade repleta de sons surdos de tambores, o que
toma o ambiente no qual desfilam esses dados ainda mais sombrios, pelos quais sabeNセ・@
ser uma indústria que emprega algo em torno de 750 mil trabalhadores,
demonstrando a imensidão de sua atuação espalhada por todo o território da Inglaterra.
O bloco seguinte irá, por meio deste documento de pesquisa, fazer passear por dentro
das minas de carvão, como o fez Industrial Britain três anos antes. Mas a narrativa
é completamente diferente, mesmo que algumas cenas sejam as mesmas. As tomadas
·aqui são muito mais escuras que as utilizadas no filme anterior, e a música soturna de
Benjamin Britten continua a acompanhar as cenas. Tudo é muito sujo, o que não
deveria espantar ninguém por se tratar de uma mina de carvão; mas espanta por
contraste com a "limpeza" com que a mina foi constituída filmicamente na película
anterior. Aqui nada é cosmeticamente organizado, e as imagens mostram os operários
andando e se arrastando por corredores baixos e estreitos, por onde passam carrinhos
e animais, com o som dos tambores e uma iluminação à contraluz que aumenta de
ESTUDOS DE CINEMA
190
maneira acentuada a dramaticidade da situação que se quer constituir. O ápice desse
processo é a refeição que se presencia os operários realizarem à 01h30. A cena,
semelhante à do filme anterior, mostra duas pessoas sem camisa, com o corpo e o
rôsto tomados de fuligem, que comem em um ambiente completamente inóspito a
sua tardia refeição.
O filme termina com a saída da mina, que já apresenta chaminés sem fumaças,
como a indicar o fim da jornada de trabalho. Um operário anda em direção à sua casa,
em um conjunto de casas geminadas que surgem ao fundo, retomando às imagens
das chaminés que despejam uma densa fumaça preta, em meio a muito vento, que
balança as roupas no varal no fundo das casas, já tão sujas, imagina-se, como estavam
antes de serem lavadas, tal a sujeira que essas imagens fazem sentir. Por fim, uma
outra sucessão de dados frios, narrados nos mesmos moldes do começo do filme,
fazem perceber que a produção de carvão, de 3 mil vagões de trem por dia, distribuem
251 toneladas nos mais variados setores da economia britânica. Na última cena, na
qual se vê novamente o trabalhador andar em direção às casas, imersas na fumaça
preta, com o mesmo som grave de antes, a mesma voz soturna anuncia, como no
começo, que as minas de carvão eram à base da indústria britânica. Evidentemente,
se isso no filme anterior aparecia como louvável, nesse filme parece se questionar a
boa "saúde" de uma indústria que se funda em tal tipo de matriz energética que parece
_estar levando seus trabalhadores à insalubridade geral.
Por fim, com já se analisou de maneira detida e detalhada as propostas narrativas
dos filmes realizados sob a égide de Grierson, sem se contentar com as generalizações
que acabam por 」ッャセ@
a todos sob uma mesma perspectiva, viu-se imensas diferenças
narrativas que mostram um empreendimento filmico muito menos homogêneo do
que se esperava ricos em proposições díspares e em constituições visuais criticas,
em contraste com o aspecto laudatório dos filmes mais oficiais. Com isso se recupera,
como em Foucault, a capacidade de se ver o diferente no seio do sempre igual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARNOUW, E. Documentary: a history ofthe non-fictionfilm. NY: Oxford University
Press, 1993.
FOUCAULT, Michel. L 'ordre du discours. Gallimard, 1971.
- - - - - · Qu'est-ce qu'un auteur. In: ___ . Dits et écrits I- 1954-1969. Paris:
Gallimard, 1994,pp. 789-821.
NICHOLS, Bill. Introduction to Documentary. Indiana University Press, 2001.
- - - - - · Representing Reality. Indiana University Press, 1991.
SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier, 1977.
Ao sul da fronteira com Disney:
O documentário "making o f" de Alô amigos
DARLENE
J.
SADLIER (INDIANA UNIVERSITY)
EM AGOSTO -de 1941, por convite do Departamento de Estado dos Estados
Unidos e com a be,p.ção de Nelson Rockefeller e sua Secretaria para Assuntos ·
Interamericanos, Walt Disney foi ao Rio de Janeiro com uma equipe de 18 desenhistas,
músicos e escritores como parte de um programa de Boa Vizinhança para reforçar os
laços entre os Estados Unidos e a América Latina. O resultado de sua turnê pela
América Latina foi Saludos amigos, o famoso filme de animação que estreou como
Alô amigos no dia 24 de Agosto de 1942 no Rio e cinco meses depois como Greetings
Friends nos Estados Unidos. Apesar de existirem vários comentários crí'ticos sobre
o filme de animação, menos atenção tem sido prestada a um filme proximamente
relacionado que se desenvolveu da mesma turnê pela América Latina: Ao Sul da
fronteira com Disney (South of the Border with Disney)- um documentário de viagem
de meia hora co-produzido pela Disney e a Secretaria para Assuntos Interamericanos.
Lançado em Novembro de 1942, e exibido nos Estados Unidos em livrarias, lojas
como Bullock's em LosAngeles, e o YWCA, Ao sul da fronteira foi tanto um precursor
dos documentários "making of' tão comuns no cinema pós-moderno, como um
filme de propaganda destinado a apoiar a política de Boa Vizinhança em contextos
quase-educativos.
Como espero mostrar, o documentário e o filme de animação ambos usam em
grande parte os documentários de Orson Welles sobre o Brasil na rádio e em filme
abortado, que também foram financiados pela Secretaria para Assuntos
Interamericanos. Na verdade, tanto Welles como Disney tinham unidades de produção
na RKO Pictures, um estúdio parcialmente controlado por Rockefeller. Também
gostaria de abordar o documentário como urna versão moderna de textos coloniais
que representavam o Novo Mundo como um paraíso, repleto de índios amistosos,
flora e fauna exóticas, e costumes pitorescos. Nos textos coloniais, como na Carta
192
ESTUDOS DE CINEMA
de achamento de Pero Vaz de Caminha e nas Cartas do Brasil do Padre Manoel da
Nóbrega, detalhadas descrições etnográficas foram usadas para criar uma visão do
Éden que por sua vez foi usada para promover interesse na colonização do Novo
Mundo. O documentário de Disney é ainda mais hábil com suas imagens tropicais:
tende a minimizar imagens de habitantes locais, especialmente aqueles que são pobres
e negros, a favor de imagens da natureza, costumes folclóricos, e cenas de cidadezinhas
e do campo, muitas delas reproduzidas em aquarela pelos desenhistas da Disney. Em
sua visão colorida, bucólica e frequentemente infantilizante da América Latina, dá
conforto e confiança às audiências dos Estados Unidos no que diz a respeito a uma
aliança com vizinhos ao sul, e ao mesmo tempo promove uma forma de colonização
cultural em estilo de turista.
Como talvez se lembrem, Alô amigos é composto de quatro segmentos
animados: Pato Donald no Lago Titicaca na Bolívia; o aviãozinho chamado Pedro que
sobrevoa os Andes carregando o correio; o Pateta como um cowboy texano que vira
gaúcho nos pampas argentinos; e o Pato Donald e o Zé Carioca num encontro cultural
no Rio. Os quatro desenhos animados são unidos por cenas filmadas em vários locais
que Disney e sua equipe visitaram, enquanto viajavam de avião de um país a outro.
Para orientar a audiência, um grande mapa colorido da América Latina aparece na tela
em intervalos regulares para introduzir cada parada na turnê.
A estrutura de Ao sul da fronteira é semelhante e os dois filmes compartilham
várias seqüências de documentário. Embora muito mais curto, o documentário inclui
oito seqüências geográficas diferentes que mostram Disney e sua equipe trabalhando
e brincando no Brasil, onde o filme começa, na Argentina, e em vários lugares no
continente, culminando na América Central e no México. Assim como em Alô amigos,
imagens de viagem de avião e um grande mapa indicam cada parada na viagem.
Entretanto, em contraste a Alô amigos, onde os personagens animados Pato Donald,
Pateta e Zé Carioca dominam, Ao sul da fronteira centra-se no trabalho da Companhia
Disney e sua "pesquisa" artística. Os únicos personagens animados que aparecem no
documentário são os que estão sendo desenhados pela equipe de Disney como possível
material para o desenho animado. Os simples desenhos a lápis, às vezes se animam e
se movem como se estivessem à beira de se tomarem personagens completas. Esses
incluem o malandro Zé Carioca, Pedro, o avião, uma lhama dançarina, e um tatuzinho
cujas chapas de armadura soam como o tinir de latas. Pouco desses personagens
animados e só cinco das oito nações que figuram em Ao sul da fronteira acabam
figurando em Alô amigos. Outras seqüências e personagens animados baseados em
episódios no Uruguai, Peru, Guatemala e México apareceram mais tarde no desenho
animado da Disney Você já foi à Bahia? (Os Tres Cabal/eros) (1945) e em alguns
lançamentos de desenho animados individuais.
Enquanto Disney estava começando a trabalhar nos seus projetos de Boa
VIzinhança, Orson Welles foi convidado por Rockefeller para fazer o seu próprio
IMAGEM EPODER
193
filme sobre a América Latina, que seria chamado É tudo verdade (It's Ali True) e que
:de começou no Brasil em 1942, mas nunca acabou. Em abril de 1942, Welles transmitiu
,4o Cassino da Urca no Rio dois programas de rádio sobre o Brasil, que se tomaram
moldes para a sua série Alô americanos (Helio Americans) na rádio CBS em novembro
do mesmo ano. Entre os temas que Welles selecionou para o seu filme e seus shows
de rádio constam as festividades de carnaval que filmou semanas após chegar ao Rio
e o samba cujo som comparou ao jazz norte-americano. Seu segundo show de rádio
foi dedicado ao samba, que a certo ponto descreveu como "o- two-step com um
sotaque sul-americano". Welles repetiu grande parte de seu show na rádio brasileira,
que incluiu descrições físicas de instrumentos musicais como o reco reco, no segmento
Gセaョ。エッュゥ@
do samba" para a primeira transmissão de Alô americanos nos Estados
Unidos.
É dificil imaginar dois embaixadores de Boa Vizinhança mais política e
esteticamente diferentes que Disney e Welles. Disney era um ultra-conservador que
estava lutando contra uma greve de seus próprios desenhistas pelaa sindicalização.
Welles era um liberal de Roosevelt com interesses sociais esquerdistas. Como se
sabe, as imagens do -documentário que Welles filmou no Brasil foram consideradas
impróprias aos interesses da RKO e de Rockefeller (para começar, ele estava
fotografando gente pobre e negra em demasiado) e o financiamento para É tudo
verdade foi cancelado. Mesmo assim, é bem possível que Alô amigos tenha obtido
algumas de suas mais convincentes seqüências de brasileiros comuns da metragem
de carnaval em Technicolor que Welles mandou de volta para a RKO. Um segmento
mais curto dessa seqüência também aparece no trailer de Alô amigos. O documentário
curta-metragem de Disney Ao sul da fronteira canibalizou Welles mais sutilmente,
adotando as mesmas descrições folclóricas do samba (Disney o chama "um two-step
animado com pique") e figurando com instrumentos_ como o reco-reco e a cabaça,
que se tomam os objetos de dois closes.
Onde os dois produtores de filme divergem mais radicalmente é na concepção
do que deveria ser um documentário sobre a América Latina. Welles fez um filme em
grande parte sobre a população negra no Rio de Janeiro e no Nordeste, um projeto
com o qual nem a RKO nem o Presidente do Brasil Getúlio Vargas ficaram satisfeitos.
Disney, por outro lado, fez um documentário sobre o "making of' de Alô amigos; o
propósito do documentário é publicidade própria, e o Brasil e outros países latinoamericanos simplesmente providenciam uma mise-en-scene colorida e exótica. Não
se vêem negros no segmento de Disney no Rio, a não ser uma só mulher, bemvestida, que aparece brevemente numa cena de calçada fotografada de cima de um
edifício. Na verdade, a não ser pela seqüência patriótica mostrando Villa Lobos
conduzindo um coral de crianças e uma parada militar no dia de independência, que
tem como objetivo dar confiança à audiência dos Estados Unidos sobre a preparação
do Brasil para entrar na guerra, Disney dá pouca atenção aos habitantes locais. O seu
194
ESTUDOS DE CINEMA
tema é paisagem, flora e fauna, e o trabalho de sua equipe de desenhistas em seu
estúdio temporário no Rio. Ele se concentra em típicos sites de turismo como.
Copacabana e Pão de Açúcar, mas mostra quase nenhuma figura humana. A vidá
brasileira é representada por coisas "estranhas e exóticas," como orquídeas selvagens·.
e papagaios, e vários tipos de diversão como o jogo acelerado de caixinha de fósforo;.·
que é jogado não por brasileiros na rua, mas pelos próprios desenhistas de Disney em
seu estúdio. Mesmo quando o samba é ilustrado, vê-se urna só instrutora de dança.
ensinando os passos à equipe de Disney em seu quarto de hotel.
A missão artística de Disney à América Latina tem afinidades impressionantes
com as miríades de expedições artísticas e científicas que viajaram do século XVI ,
adiante para relatar as maravilhas edênicas do Novo Mundo. Ao sul da fronteira é
repleto de imagens dos desenhistas da Disney pintando paisagens e desenhando flores·
e árvores assim como seus predecessores, o holandês Albert Eckhout, o alemão
Johannes Rugendas, o francês Jean Baptiste Debret e muitos outros que produziram
portfólios pitorescos nos séculos XVIII e XIX. Ao sul da fronteira também revela•
urna prosa ufanista ou hiperbólica que caracteriza grande parte das primeiras escrituras
coloniais sobre o Brasil. Por exemplo, o documentário fala com entusiasmo sobre o
tamanho, a cor e a beleza das orquídeas selvagens ("que são muito superiores às de
estufa") e a vitória-régia, "cujas flores individuais são como bouquets inteiros." Assim
como os primeiros exploradores que sabiam do potencial comercial na intensa promoção
do exótico, Disney ressalta as maravilhosas e fantásticas espécies nativas, como as
"árvores estranhas com raízes acima do solo," o tamanduá, a anta, e diversas aves··
tropicais. Talvez não seja surpreendente que o papagaio, um dos primeiros símbolos
do Brasil colonial, atraia a atencão de Disney, e, como Zé Carioca, enfim assuma um
lugar de honra ao lado do Pato Donald e do Pateta em Alô amigos. Até mesmo o
grande mapa colorido e ilustrado que aparece em intervalos regulares no documentário
faz lembrar os primeiros mapas coloniais da América do Sul, como os de Cantino e
Lopo Homem, que tipicamente eram enfeitados com ícones representando mercadorias
como o pau-brasil. Papagaios também figuravam na decoração dos mapas coloniais;
assim como índios, que frequentemente eram retratados carregando pau-brasil ou
praticando antropofagia. Disney aborda a cartografia latino-americana mais como um
mapa para crianças escolares que soletram em grandes letras de bloco, os nomes de
países e cidades e é decorado de vez em quando com uma cadeia de montanhas, um
lago ou um espaço verde. Curiosamente, apesar da metragem do documentário
mostrando cidades como o Rio e Buenos Aires, todas as capitais no mapa, assim
como a cidade de São Paulo, são representadas iconograficamente usando pequenas
estruturas de adobe, como se a América Latina não fosse mais do que uma coleção de
aldeias camponesas. Esta representação cartográfica está de acordo com a visão
colonial da América Latina como benigna e pastoral: um paraíso terrestre com
abundantes recursos naturais.
IMAGEM EPODER
195
A maior diferença entre Ao sul da .fronteira e as obras de artistas como Debret
ou Eckhout é como tratam das pessoas. Como já mencionei, Disney não parece estar
Mセョ・ュ@
um pouco interessado na população geral da América Latina, a não ser quando
realça o cenário pitoresco através de alguma "performance". Um dos mais longos
segmentos no documentário "making of' mostra vários casais argentinos em costumes
tradicionais dançando "e! Gato" e o "zamba"; outras performances incluem broncobusting por gaúchos argentinos, a habilidade de navegador de bolivianos em barquinhos
·de balsa no Lago Ti ti caca, um desfile de solenes oficiais bolivianos em traje traditional,
e uma parada de charros mexicanos. Esse enfoque se diferencia consideravelmente
de Eckhout, Debret e outros artistas, que eram atraídos por diferenças de raças e
produziram milhares de desenhos de índios, negros, e gente de raça mista. Além de
,breves relances a alguns artistas latinos, como Florencio Molina Campos, que foi
contactado pelo seu conhecimento e suas caricaturas famosas do gaúcho, e duas
mulheres que, em segmentos diferentes, dançam músicas latinas com Disney e sua
equipe, o filme basicamente mantém os habitantes locais à distância. A única exceção
de nota é o segmento sobre a Argentina, no qual um gaúcho de 85 anos chamado Sr.
Ribeiro Sosa, vestido com seu melhor traje de vaqueiro, é tratado como se fosse um
alienígena de Marte. Enquanto ele está sentado montado no seu cavalo, a câmera faz
um zoom na sua cara escarpada e desce para um close de seu pé direito, que é
erguido por um membro da equipe para mostrar à audiência que as botas do gaúcho,
feitas com um único pedaço de couro, não têm (miraculosamente) costura. Na
próxima cena, o velho fica de pé como um manequim enquanto um membro da
equipe tira o seu chapéu de feltro e começa a examiná-lo como se fosse um artefato
antigo. Num ensaio sobre os filmes latino-americanos de Disney que consta em
Disney Discourse de Eric Smoodin, Julianne Burton-Carvajal comenta sobre essa
cena em particular e seu relacionamento aos segmentos sobre animais. Como ela
indica, em seu zelo por autêntico exotismo, Disney faz absolutamente nenhuma distinção
·entre humanos e não-humanos, ambos sendo tratados como objetos. Eu acrescentaria
que humanos interessam ao Disney quando são pitorescos e cheios de vida e cor mas não quando a cor é preta. A única vista de perto de um rosto preto no documentário
é a de um bonequinho ;;ouvenir vestido num traje de eminente oficial boliviano. O
povo -indígena aparece de vez em quando nos segmentos sobre o Peru, Bolívia,
Guatemala e México, mas a ênfase está nas mercadorias: o "festival de cores" criado
pelos suas vestimentas e apretechos de feira, e a "comida simples de todo dia" que é
"exposta artisticamente" nos mercados. Como diz Disney, o narrador do filme, a
certo ponto: "Todo mundo concordou que este foi o perfeito tipo de pesquisa: divertida
e instrutiva." Mas o documentário faz tudo virar entretenimento de Hollywood e
material para os desenhistas da Disney. Numa cena somos instruídos nos "prazeres"
de arar grandes campos rochosos com bois e um arado de madeira - uma cena que
Disney chama uma das mais "pitorescas" na sua turnê da América Latina.
196
ESTUDOS DE CINEMA
Como parte da máquina de propaganda da Boa Vizinhança, Ao sul da fronteira
deixa claro a bondade do povo latino-americano para com Disney e sua equipe. Os
sinais de amizade filmados incluem um bolo de aniversário sendo servido a Disney
pelos garçons do hotel que são convidados a compartilhar da sobremesa. Apesar de
que a narração fora de cena relata entusiasticamente esta mostra de amizade, os
garçons olham sem jeito para a câmera enquanto comem o bolo. Numa outra parada
na Argentina, um feriado nacional foi declarado em honra de Mickey Mouse. Crianças
de escola rodeiam um dos desenhistas da Disney que, em estilo de bom vizinho,
produz uma série de esboços para suas mãos ávidas. Amizade é também implícita
num churrasco em honra de Disney e sua equipe nos pampas. Grandes porções de
carne assando sobre um fogo são fatiadas e oferecidas a Disney num gesto de boa
vontade. Como Disney declara no começo do filme: em todos os lugares que iam, o
povo dava material para trazerem de volta aos Estados Unidos.
O segmento final do filme faz os presentes virarem o alvo de uma piada quando
Disney e sua equipe estão passando pela alfândega antes de re-entrar nos Estados
Unidos. Um agente de alfândega extrai uma incrível quantidade de esboços, pinturas,
e artesanatos de uma mala, que é em si engraçado. Quando ele ・ョ」セエイ。@
esporas, um
freio e uma sela, ele vira para o Disney e pergunta porque eles não trouxeram .o
cavalo. Um som de relincho faz o agente a se virar de volta para a mala, da qual uma
cabeça de um cavalo verdadeiro parece emergir. Com a exceção do assustado agente
de alfândega, todo mundo na cena ri- ninguém mais do que Disney, e com boa razão.
Segundo o critico Neal Gabler, quando Disney voltou aos Estados Unidos, o Escritório
Nacional deConciliação (National Conciliator's Office),já tinha interferido e resolvido
a greve dos artistas que havia paralisado produção e ameaçado o meio de vida e a
carreira de Disney. Alô amigos acabou sendo um sucesso no box office tanto nos
Estados Unidos como na América Latina, e foi seguido dois anos mais tarde por Você
já foi à Bahia? e vários documentários educacionais de tempo de guerra feitos sob
os auspícios da Secretaria para Assuntos lnteramericanos, que ajudou a edificar_o
império Disney que se conhece hoje. Ao sul da fronteira com Disney foi uma parte ·
importante do aparato educativo lançado pela Secretaria para Assuntos Interamericanos
de Rockefeller. Infelizmente, apesar do passar de mais de 60 anos, a sua visão
estereotipada da América Latina ainda carrega a verdade para muitos norte-americanos
hoje..
IMAGEM EPODER
197
BIBLIOGRAFIA
BURTON-CARVAJAL, Julianne. "Surprise Package: Looking Southward with Disney."
Disney Discourse: Producing the Magic Kingdom. Eric Smoodin, ed. New York:
Routledge, 1994,pp.l31-147.
セgablerL@
Neal. Walt Disney: The Triumph oftheAmerican lmagination. New York. Alfred
A. Knopf, 2006, pp. 373-376.
PROJEÇÕES, PROJETOS E PROJÉTEIS: O NOME
DE Gfricaセ@
E A SUBJETIVAÇÃO IMPERIAL EM
LAGRIMAS DO SOL (2003)
MARCELO RODRIGUES
SouzA RIBEIRO (UFSC)
O CINEMA COMO RE-APRESENTAÇÃO DA GUERRA
As RELAÇÕES ENTRE cinema e guerra podem ser estudadas com diferentes
abordagens. Uma delas consiste na análise de filmes de guerra. A partir da consideração
do cinema como representação, em encenação, da guerra, a leitura analítica pode
mapear os estereótipos, os tipos de personagens, de ambientação e as circunstâncias
da mise-en-scene, das formas narrativas, da montagem etc, a guerra como projeção
cinematográfica.
Uma outra abordagem da relação entre cinema e guerra pode ser encontrada
no livro de 1984 intitulado Guerra e cinema, no qual Paul Virilio aborda a "utilização
sistemática das técnicas cinematográficas nos conflitos do século XX" (2005: 15).
Aqui, a relação entre cinema e guerra se dá nos "campos de percepção", tal como se
modificam numa história da sensibilidade e da técnica. Não se trata da representação
da guerra através das técnicas do cinema- o que implicaria, definir o filme de guerra
mas do vínculo que conecta
como gênero pelo conteúdo, como no parágrafo 。」セM
o olho e a arma através das "máquinas da visão" - o que implica definir o filme de
guerra como gênero pela forma sensível de sua mimese. O filme de guerra como
gênero formal está relacionado à capacidade técnica das ュ£アセ。ウ@
da visão de criar
surpresa psicológica: o cinema como projétil bélico.
Entre a guerra como projeção cinematográfica e o cinema como projétil bélico,
é importante pensar as condições de produção dos filmes de guerra, particularmente
naquele país que é seu maior e mais ativo investidor, os Estados Unidos da América.
É preciso considerar as relações institucionais entre guerra e cinema, no caso dos
.EUA entre Pentágono e Hollywood, para propor uma análise de Lágrimas do Sol
200
ESTUDOS DE CINEMA
. (2003). 1 O vínculo institucional torna possível tanto a utilização da técnica
cinematográfica na guerra quanto a representação da guerra no cinema, que passa a
envolver a exibição do aparato bélico como se fosse uma apresentação, um tomar
presente. 2
Diferenciando representação como encenação (em alemão: Darstellung) e como
delegação ou procuração (Vertretung)- como faz Gayatri Spivak (1988 e 1999)aponto o alinhamento institucional entre Hollywood e Pentágono como condição de
possibilidade da encenação hollywoodiana da guerra contemporânea: a Vertretung como
condição da Darstellung. Apenas entrando, numa relação de representação política
com o Pentágono, Hollywood pode representar a guerra e seu aparato (porta-aviões,
helicópteros, aviões, soldados, armamentos). Nessa condição, o cinema se dá como
re-apre_sentação da guerra.
Como diz Spivak, "the staging of the world in representation - its scene of
writing, its Darstellung- dissimulates the choice of and need for "heroes", paternal
proxies, agents of power- Vertretung." (1988: 279; 1999: 264). Sugiro que a
representação como encenação (Darstellung) permanece inscrita no texto filmico,
mas sob a rasura produzida pela representação como substituição por procuração
(Vertretung), que é no entanto dissimulada por aquela encenação rasurada. Há uma
dissimulação representacional (Darstellung) da rasura representativa (Vertretung) que
nega e dá a ler a sua própria dissimulação representacional, Darstellung e Vertretung
se relacionam numa dialética indecidível entre fundo e forma que tem efeitos políticos,
simbólicos e ideológicos amplos.
IDEOLOGIA: A PRODUÇÃO PERFORMATIVA
DO "CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES"
Se em filmes como, por exemplo, Falcão Negro em Perigo (2001), o aparato
bélico se apresenta contundentemente, com a utilização do maior porta-aviões do
mundo e de helicópteros Black Hawk, é em Lágrimas do Sol (2003), que se entrevê
a amplitude da re-apresentação da guerra pelo cinema. Além do aparato bélico utilizado
I. Dirigido por Antoine Fuqua, com roteiro de Alex Lasker e Patrick Cirillo, Lágrimas do Sol é
protagonizado por Bruce Willis e Monica Bellucci. Mais informações: http://www.irndb.com/
title/tt0314353/ (acessado em 28/02/08).
·
2. Devo essa discussão a Carlos Henrique Siqueira. Em um texto não-publicado, intitulado "O
cinema é a guerra por outros meios", Siqueira argumenta que é necessário questionar as relações
entre o Estado, a indústria cinematográfica e o complexo industrial militar dos EUA. Nesse
sentido, a utilização do aparato bélico estadunidense nas filmagens de roteiros hollywoodianos
indica um vínculo institucional que torna a representação cinematográfica da guerra equivalente à
apresentação do aparato bélico, a sua exibição como uma atração por si.
IMAGEM EPODER
201
com apoio do Pentágono, atuam no filme, refugiados africanos que vivem nos Estados
Unidos.
Para compreender o estatuto da aparição dos refugiados no filme, é necessária
a análise de sua narrativa. O enredo remete ao que Samuel Huntington ( 1997) chamou
de "choque de civilizações". Para ele, os conflitos mais importantes do mundo após a
Guerra Fria seriam "civilizacionais" e "culturais", numa concepção essencialista desses
termos.
Nesse quadro ideológico, Lágrimas do Sol trata de um caso localizado e
etnicizado de confronto entre cristãos e muçulmanos. Pode-se dizer que Lágrimas do
Sol participa da produção performativa do "choque de civilizações". Como afirma
Horni Bhabha (1998: 20): "Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo
ou afiliação, são produzidos performativamente." A noção de "choque de civilizações"
produz o referente que parece apenas descrever, a partir de uma posição· de sujeito
interessada, entrelaçada intimamente com as forças imperiais dos Estados Unidos,
sua "guerra ao terror" e sua defesa da democracia de mercado como -forma de
organização político-econômica dominante.
MOTIVO NARRATIVO: A TE(LE)OLOGIA POLÍTICA DA
CULPA PÓS-COLONIAL
Após a imagem de um sol crepusc_ular, avermelhad?, prefigurando
cromaticamente o melodrama de guerra que o filme encena, a primeira seqüência de
Lágrimas do Sol alinha o olhar espectatorial com o aparato televisivo ocidental: vê-se
uma notícia jornalística sobre a situação daNigéria no filme. Uma voz feminina em
off explica as imagens de confrontos:
The tension that had been brewing for months in Nigeria exploded yesterday as
exiled General Mustafa Yakubu orchestrated a swift and violent coup against the
democratically elected government of President Samuel Azuka. In a land with 120
million people and over 250 ethnic groups, there'd been a long-standing history of
ethnic enmity, particularly between the Fulani Muslims in the north and Christian
lbo in the south. The victorious Fulani rebels have taken to the streets as periodic
outbursts of violence continue ali over the country. Tens of thousands have been
killed in the fighting or executed thereafter. Fearing ethnic cleansing, the majority of
the Ibo have abandoned their homes, and are fleeing the city or searching for
sanctuary wherever they may fmd it. For now, General Yakubu has taken control of
most of the country and appears frrmly in charge. There's no word yet on the United
Nations' reaction to the coup, but United States forces have already begun to
evacuate its embassy.
202
ESTUDOS DE CINEMA
A equipe Delta F orce é enviada pelo governo dos Estados Unidos para realizar
resgate
de uma médica, a Dra. Lena Kendricks, e de outros cidadãos estadunidenses
0
em atividade missionária no país africano que queiram deixá-lo. É na primeira cena de
movimentação do aparato bélico, entrelaçada à cobertura jornalística, que o nome de
'África' se explícita no filme. Vemos um porta-aviões, aeronaves e helicópteros
enquanto uma legenda anuncia: "Somewhere off the coast of Africa". Do portaaviões, um repórter dá as últimas informações. Aos poucos, passamos da cobertura
jornalística aos preparativos da ação militar.
Quando descreve a missão à equipe Delta Force, o capitão Bill Rhodes
(sobrenome bastante significativo quando se trata da relação entre Ocidente e África)
situa a ação militar num mapa da Nigéria. Não assistimos mais à cobertura televisiva,
mas a projeção da figura de Rhodes diante do mapa da Nigéria, ecoa a experiência
espectatorial moldada nas coberturas televisivas feitas por redes como a CNN e a
NBS, de intervenções estadunidenses no mundo, sobretudo a partir da Guerra do
Golfo: um oficial se agiganta sobre o mapa do território onde ocorre a intervenção,
seu corpo fardado sobrepondo-se à representação cartográfica do território visado. A
narrativa de Lágrimas do Sol capitaliza a referêncja à experiência espectatorial diante
da televisão e acompanha o movimento pelo qual essa imagem de Rhodes, no início
ganha o estatuto de uma alegorização do poder imperial globalizado.
A fala de Rhodes também capitaliza uma referência à culpa estaduri.idense,
diante de conflitos em que o país tem um papel ativo, muitas vezes causal, em outras
partes do mundo, em geral no chamado Terceiro Mundo. O capitão admite o apoio
dos Estados Unidos às tropas do General Yakubu: "we have been supplying them for
far too many years".
Quando a força especial chega ao meio da noite, a doutora Kendricks se nega
sem os refugiados de que cuida no hospital da missão, que, sabe-se, deverá
a ーセゥイ@
ser eq1 breve o alvo de um ataque. O comandante da força especial, Tenente A. K.
Waters/ resolve adotar outra estratégia para finalizar o resgate de· acordo com as
ordens: decide fingir que levará a médica e seus pacientes para fora da Nigéria até o
momento em que pode colocá-la num dos dois helicópteros militares, que estão
disponíveis para o- resgate e deixar "os nativos" para trás. No momento em que os
soldados, Lena e os refugiados estão prestes a partir, deixando para trás o padre e as
freiras da missão, que escolhem permanecer ali, o padre Gianni diz "Go with God!".
O Tenente Waters responde "God already left Africa!", produzindo uma imagem da
África como caos sem a transcendência da lei divina cristã, como lei do mundo.
3. O personagem foi interpretado por Bruce Willis, cuja visita às tropas estadunidenses no Afeganistão
à época do lançamento do filme no Brasil envolveu até mesmo a promessa de uma recompensa a
quem ajudasse a capturar Osama Bin Laden.
IMAGEM EPODER
203
Em síntese, o filme se inicia capitalizando a referência à espectatorialidade
televisiva, com imagens de conflitos e urna narração em off. Em seguida, ainda alinhando
o olhar espectatorial ao olhar do espectador jornalístico, começa o desfile do aparato
bélico estadunidense, enquanto um repórter dá as últimas informações de cima do
porta-aviões. Quando o filme parece se descolar da cobertura jornalística, que lhe dá
seu enquadramento inicial, urna forma de intertextualidade mais sorrateira vem habitar
sua narrativa, na figura de Rhodes sobre o mapa da Nigéria. Aqui, é possível entrever
a força motriz da econ.ornia narrativa de Lágrimas do Sol: a culpa pós-colonial. Quando
o nome de Deus entra em cena, a culpa pós-colonial se inscreve, numa teologia e
·configuram-se os contornos iniciais da te(le )ologia política que governa o drama do
filme como um todo.
CONFLITO DRAMÁTICO E RESOLUÇÃO:
DA CULPA PÓS--COLONIAL À REDEI!ÇÃO IMPERIAL
Após carregar Lena à força até um helicóptero, enquanto outro sobrevoa a
operação, o Tenente Waters ordena que a equipe parta e deixe os nativos para trás. No
trajeto do vôo, diante da visão do massacre na missão, Lena chora, atordoada. Iniciase assim o conflito dramático do filme, apenas prefigurado até então: o Tenente Waters
manda os pilotos dos helicópteros retomarem e decide que sua equipe levará aqueles
que foram deixados para trás até a fronteira da Nigéria com Camarões. Uma frase da
publicidade em língua inglesa do filme dá conta do drama que essa cena inicia e
anuncia sua resolução: "He was trained to follow orders. He became a hero by defying
them."
O resgate militar se transforma numa jornada de salvação (dos nativos) e
humanização (do soldado frio e seco no cumprimento objetivo de suas ordens), de
(promessa de) restauração da ordem (cristã) da democracia representativa numa
cruzada (anti-islâmica). Os "rebeldes muçulmanos" figuram a maldade radical, a
desumanidade. Ao final da narrativa, antes dos créditos finais, uma citação enquadra
retrospectivamente o filme com a seguinte frase de Edmund Burke: "The only thing
necessary for the triumph of evil is for good men to do nothing." Esse maniqueísmo
declarado (re)produz a estrutura da narrativa do "choque de civilizações" em feixes
de subjetivação contrapostos em três níveis diferentes: General Mustafa Yakubu X
:{>residente Sarnuel Azuka; fulanis X ibos; muçulmanos X cristãos.
Quando Waters e sua equipe retomam com Lena para buscar os nativos que
tinham sido deixados para trás,. uma mulher, Patience, agradece a Waters - "God
bless you!"- e a possibilidade de Deus não ter abandonado a África se insinua a partir
da volta da Delta F ore, em sua missão de salvação humanitária. O retomo da equipe
liderada pelo personagem de Willis implica o desrespeito às ordens do comando da
missão no exército estadunidense e desvincula a equipe dos Estados Unidos, em
204
ESTUDOS DE CINEMA
termos logísticos e políticos: o envolvimento da equipe com os nativos, excede sua
jurisdição própria e cria um conflito com o novo regime, liderado pelo General Yakubu;
isso faz com que o exército se desencarregue dos soldados para evitar aprofundar a
crise política que é conseqüência de seu envolvimento, o que significa que não há
mais apoio logístico garantido a eles. O envolvimento constituiria um ato de heroísmo
individual dos membros da Delta Force e não representaria o governo nacional dos
EUA. Mas ao fmal do filme, uma reconciliação se consolida e faz coincidir a salvação
dos refugiados com a demonstração do poderio militar dos EUA, explicitando a
axiomática do imperialismo que perpassa a história - "The lives of many rest in the
courage of a few", como diz outra frase publicitária, remetendo à ideologia do "fardo
do homem branco".
A fuga continua em direção à fronteira com Camarões, com os "rebeldes"
perseguindo o grupo. O motivo da perseguição é Arthur Azuka, o filho do presidente
assassinado e único membro da família que permaneceu vivo, o que faz dele um
herdeiro do título de seu pai: "the tribal king", para se usar o vocabulário do coronel
Okeze, que vem ajudando Arthur a fugir. A perseguição se devia a que os "rebeldes"
queriam matar Arthur Azuka como último remanescente da família presidencial e
como "rei" ibo.
Ao saber disso através de Waters, o capitão Bill Rhodes, representando o exército
e o governo dos EUA, questiona o envolvimento da equipe na política interna da
Nigéria, sugerindo que Arthur e Okeze são "excesso de carga". Waters responde
perguntando se isso significa que "ele não é humano" (no singular) e dizendo, com
・ク。ァセイ、@
grandiloqüência, que se trata do líder da tribo ibo. Pode-se dizer que, em
geral, a nação nigeriana é tribalizada e etnicizada em Lágrimas do Sol, de Okeze a
Waters, constituindo-a sob o mandato e a lição imperial: em uma cena, Arthur chora
a morte de Okeze; Waters o aborda duramente dizendo que aquela não pode ser a
atitude de um líder da tribo e da nação.
A relação imperial entre os Estados Unidos como salvador e guia para a
democracia e a África como continente que não pode existir sem ajuda exterior,
personificada pelos personagens de Waters e Arthur, tem em um dos membros da
equipe liderada por Waters uma importante caução. Trata-se de Zee, um soldado
negro que aborda Waters a certa altura para enunciar uma identificação racializada
transversal ao espaçamento imperial: "LT, those Africans are my people too. For all
the years that we've been told to stand down and stand by, you're doing the right
thing". Na economia narrativa do filme, Zee, como afro-americano, serve de caução
para a projeção imperial dos Estados Unidos sobre a África, inscrevendo o nome de
'África' na denominação da nação imperial. Waters responde remetendo à te(le)ologia
política da culpa pós-colonial: "For our sins". Assim, a culpa pós-colonial se encaminha
para a redenção imperial.
IMAGEM EPODER
205
A fuga ganha ares cada vez mais dramáticos à medida que os "rebeldes" se
aproximam. Os nativos ficam no portão da fronteira, mantido fechado pelos soldados
de Camarões, ,enquanto os soldados da Delta Force enfrentam os "rebeldes'?. Alguns
dos soldados estadunidenses morrem, a situação se complica para todos. No entanto,
o capitão Bill Rhodes dera ordens, poucos instantes antes, para que aviões dos EUA
fossem até a região. A morte dos "rebeldes" se dá através da afirmação do poderio
militar dos EUA, com aviões que atiram pesadamente e salvam Waters e vários de
seus homens.
Com a destruição dos "rebeldes" pelos aviões, Rhodes chega à fronteira de
Camarões com um mandato para a abertura do portão e, enfim, os nativos e os
soldados restantes da Delta Force, bem como a doutora Lena Kendricks, estão a
salvo. Patience agradece a Waters: "God will never forget you, lieutenant". A redenção
se insinua, em nome de Deus, através do reconhecimento de uma nigeriana-africananativa a Waters, inscrevendo o nome de 'África' sob o mandato imperial.
Arthur Azuka é consagrado líder da nação ibo e grita: "Freedom!". Toda a
seqüência final de redenção é acompanhada por uma música em que se canta
repetidamente o nome de 'África', dando ao encerramento do filme um tom alegórico,
na representação do continente: não se trata apenas da Nigéria, parece este trabalho
dizer a orquestração da música africana ("África, África... ") com as imagens da
. redenção, que é concomitantemente tribal, nativa, nacional e imperial; trata-se da
África como um todo. A narrativa de Lágrimas do Sol destila, assim, um modelo
alegórico das relações imperialistas dos Estados Unidos com toda a África. ·
O SUJEITO IMPERIAL E A FIGURA
DO INFORMANTE NATIVO
Lágrimas do Sol re-apresenta duplamente a guerra: não apenas seu aparato,
mas seu resíduo estrutural, se assim podemos dizer, isto é, os イ・ヲオァゥ。、ッセN@
"No
reconhecimento dado, na diegese filmica, pelos africanos "autênticos" aos soldados
como heróis- como Informantes Nativos autorizando o texto imperial (SPIVAK,
1999) - o nome de 'África' constitui a usurpação da perspectiva do Informante
Nativo. O filme expropria os refugiados de agência diegética e se apropria de sua
figura para autorizar a te(le)ologia política ocidentalista do humanitarismo imperial.
Na economia psíquica da narrativa que governa o "modo de endereçamento"
(ELLSWORTH, 2001) de Lágrimas do Sol, o foco privilegiado de identificação
espectatorial (METZ, 2003) é o sujeito imperial militarizado.
O filme reitera um tropo recorrente do humanitarismo imperial contemporâneo:
a pós-colonialidade em África aparece como condição de caos, ingovemabilidade e
descontrole político, sem a lei da ordem e a sem a ordem da lei, sem Deus - como o
personagem de Willis afirma no início: "Deus já abandonou a África." O personagem
206
ESTUDOS DE CINEMA
de Willis faz soar a inscrição da imagem da África pós-colonial como pesadelo num
regime de verdade teológico-religioso. A história narrada pelo filme passa pelo processo
pelo qual a frase de Waters se destece a partir da atuação do sujeito imperial militarizado'
dos EUA como arauto da salvação e representante do Bem contra o Mal. O nome dê.
'África' é re-apropriado pelo Ocidente cristão, no mesmo movimento pelo qual, na
re-apresentação da guerra, a figura de refugiados re-apresentados como "reais" é·
apropriada pela narrativa filmica. Essa é a economia narrativa que circunscreve 0 .
nome de 'África' no filme, cujo horizonte te(le)o-ideo-lógico é a constituição do
Ocidente como sujeito imperial a partir do qual a África pode se reconstituir 0 ·
humanitarismo pode investir o nome de 'humanidade' com valor moral e ético.
Os refugiados substituem e representam - tanto em encenação, como atOres·
figurantes, quanto por procuração, como "verdadeiros" refugiados de guerras e crises.
africanas que vivem nos Estados Unidos, que é como aparecem em "Vozes da África"
-a figura do Informante Nativo. Ao assumirem a posição de sujeito das "Vozes da
África", um efeito de autenticidade investe os refugiados como figuras autóctones é
figurações da originalidade da experiência africana de guerras étnicas. O nome de
'África' é a inscrição, na narrativa filmica, do valor de autenticidade como um efeito
de usurpação da figura do Informante Nativo, de sua impossível perspectiva. Na'
economia narrativa de Lágrimas do Sol, o nome de 'África' vem portanto tomar o
lugar da figura do Informante Nativo- representá-la por procuração- e dar lugát a<
suas "vozes". Um resto permanece sem horizontes de articulação: a instância subalterna:·
da pura restância, a figura do Informante Nativo como opacidade inassirnilável é)
deslizante, sempre deslocada na própria tentativa de circunscrever seu espaço.
e
As the historica1 narrative moves from co1ony to postco1ony to g1oba1ity, the native
informant is thrown out - to use the Freudian concept-metaphor of Verwerfung into the discursive world as a cryptonym, inhabiting us so that we cannot claim the
credit o f our proper name. (Spivak, 1999: 111)
"1
Entre representação da guerra por encenação e representação do Pentágono.
por procuração, entre o cinema como projeção da guerra e o cinema como projétil.
bélico, entre o humanitarismo imperial e o cristianismo missionário como projetos
ético-políticos no marco da economia política do capital, o cinema de Hollywood se
dá como re-apresentação da guerra. Configura-se uma projeção da guerra na tela da
representação, (parte de) um projeto para o mundo na economia política do capital e.
um projétil violento na esfera da consciência humana. Entre projeção, projeto eprojétil,
Lágrimas do Sol constitui o sujeito dominante sob o mandato do humanitarismo
imperial, através da apropriação e usurpação da figura do Informante Nativo para
investir o nome mesmo de 'humanidade' com valor moral e ético.
IMAGEM EPODER
207
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VIRILIO, Paul. Guerra e cinema: logística da percepção. São Paulo: Boi tempo, 2005, 208 p.
CINEMA, AUTORIA E POLÍTICA
Estranhamento e aproximação em Estamirada eloqüência da loucura ao trauma social
MARIANA BALTAR
(UFF)
EM CERTO SENTIDO, Estamira é um filme difícil e parte dessa dificuldade vem
do incômodo gerado pelo excesso da personagem, mas, sobretudo, do excesso do
filme na exposição dessa personagem. Estamira é urna mulher de cerca de sessenta
anos, que vive, há mais de vinte, do lixão do Jardim Gramacho. Dona de uma fala
eloqüente, e mesmo raivosa, ela professa suas teorias cosmogônicas de criação do
inundo e das pessoas, de perseguição e possessão, e de revelação. Sua performance 1
como personagem reitera a força de uma personalidade declaradamente perturbada.
É possível perceber no filme todo um movimento de aproximação com a
personagem que acaba por compor um discurso de entendimento e admiração a despeito
dos elementos grotescos, de loucura e de perturbação que transbordam das falas de
Estamira.
Meu argumento é que um diálogo com a imaginação melodramática- sobretudo
colocando, estrategicamente, em uso três categorias estéticas centrais a este universo
- convida o espectador a estabelecer uma espécie de aproximação com a personagem
marginalizada, subvertendo, de certa maneira, a partir do efeito afetivo de proximidade,
o imaginário "marginalizante".
Em Estamira, a presença da imaginação melodramática se dá não tanto para
imputar um efeito de piedade, mas para reiterar uma associação entre poder e
1. Uso o termo performance a partir do conceito do sociólogo canadense Erving Goffman (1959 e
1967), conforme teorizado na tese de doutorado, desenvolvida com financiamento da Capes e
finalizada em 2007, da qual esie artigo é oriundo. Segundo tal concepção, a performance é inerente
. ao jogo de interações inter-subjetivas, conformando as negociações entre papéis sociais que
atravessam a própria interação. Para aplicações do conceito de performance ao campo do
documentário conferir a referida tese Baltar (2007).
212
ESTLIDOS.DE CINEMA
eloqüência, consolidando o engajamento com a personagem que a autoriza como
narradora.
A imaginação melodramática está costurada em Estamira de maneira a
desestabilizar a noção mais tradicional do melodrama clássico, afastando-se, com
isso, dos eixos da piedade e de uma relação de causalidade mais fechada. Há, contudo,
um movimento de articular no filme um sentimento de compaixão mobilizado,
especialmente na segunda metade do documentário, por pequenas "circularidades"
internas à narrativa que consolidam uma relação causal entre os diversos traumas
sociais sofridos pela personagem e as explosões de sua performance, como que
oferecendo uma explicação à declarada perturbação mental de Estamira.
Dois elementos são fundamentais para tanto:
- o primeiro é a organização da faixa sonora do filme (trilha musical e ruídos),
que procura construir uma economia de símbolos para as falas da personagem que a
envolvem em uma aura de força, sobretudo na primeira metade do documentário.
-O segundo é a própria estrutura geral da montagem do filme que rejeita certa
.
linearidade, mas que ao mesmo tempo se baseia em um recurso de continuidade
retórica, o que está mais presente na segunda metade do documentário. Nessa
estrutura, Estamira vai oçupando outros papéis, diferentes dos que ocupava na primeira
metade do filme. O filme investe em mostrar Estamira como "poder", igualando seus
rompantes, simbolicamente, às forças da natureza, para depois, explicar a raiz de
suas falas com base na rememoração dos diversos traumas e violências sofridos pela
personagem, mostrando-a, muito particularmente, no papel de mãe e de filha.
Estas duas estratégias se montam com a utilização de categorias presentes no
universo do melodramático, operando de certa maneira a partir de um excesso estilístico
visível nos recursos estéticos "manuseados" pelo aparato cinematográfico. Recursos
como granulações de imagem, alternância do preto e branco para o colorido, a própria
faixa sonora, com destaque para a trilha musical, e, mais especificamente, a reiteração
do uso do primeiro plano que se aproxima do corpo da personagem.
Esses recursos "presentificam" no plano imagético o efeito de proximidade,
diria mesmo de intimidade, entre diretor e personagem, e correlatamente, o público.
Tal efeito é fundamental para a lógica nuclear de Estamira, ao tomar como base o
e intimidade para legitimar a personagem enquanto
efeito de noção de ーイッセ、。・@
narradora. Estabelece-se, assim, uma rede que circunscreve estes sentimentos de
um lugar de fala para o filme que o autoriza como um discurso
maneira a ヲッイュセャ。@
sobre um outro socialmente marginalizado.
Nesse sentido, o filme acaba por autorizar Estamira - essa personagem
declaradamente perturbada, que grita, fala palavrões, arrota, aparece nua, tira as calças
numa briga com seu neto e professa seu ódio por Deus - como legitima narradora e
personagem passível de engajamento afetivo. Assim, o documentário corrobora a
missão que Estamira se auto-imputa- a de revelar a verdade- sem a confmar no
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
213
papel estigmatizado da loucura ou da perturbação. Para isso, o diálogo com a
imaginação melodramática, embora não signifique uma adesão ao cânone do
melodrama, vai ser central.
Esse conceito de imaginação melodramática é desenvolvido num contexto de
revalorização do melodrama como gênero narrativo a partir dos anos 1970. Num
mesmo momento, Peter Brooks (1995) e Thomas Elsaesser (1987) formulam o
conceito buscando, na esteira dessa revalorização, pensar de maneira mais ampla as
questões que estão articuladas no universo melodramático. Questões que dizem respeito
a uma "publicização" da esfera privada e uma "pedagogização" dos sentimentos num
contexto de formação da subjetividade moderna. Nesse contexto, as instâncias da
intimidade e da moral são fundamentais como reguladoras da vida social; como se o
cotidiano (e com ele o privado e o íntimo) se constituísse o palco privilegiado para
uma pedagogia moralizante frente às novas relações sociais e políticas de uma sociedade
laica e de mercado.
A idéia de imaginação, especialmente a formulada por Brooks (1995), pretende
justamente dar conta de narrativas que não são tradicionalmente conformadas no
universo do melodrama canônico, reconhecendo que a existência do gênero (primeiro
teatral e depois em outros regimes narrativos) é sintomática de um contexto histórico
maior, vinculado aos adensamentos do projeto de modernidade.
Assim, a análise, seguindo uma base intertextual, do diálogo com a imaginação
melodramática procura ressaltar em que medida os discursos que não se estruturam
na adesão a um modo de excesso do melodrama clássico acabam por se utilizar, em
momentos-chave, das categorias que balizam tal excesso para afirmar um engajamento
afetivo. Minha preocupação é, portanto, com as implicações (discursivas e políticas)
dessas utilizações.
Três categorias fazem "reconhecer" a presença dialógica da imaginação
melodramática, pois as reencontraremos nas narrativas que parecem "atravessadas"
por esse universo. As categorias são: a antecipação (como maneira de ativar um
estado de suspensão e comoção), a simbolização ・セ」イ「。、@
e a obviedade, no sentido
sobretudo da reiteração constante. As três, em conjunto e operadas repetidas vezes,
organizam no melodrama canônico, o modo de excesso; ao passo que, no interior das
narrativas contaminadas pela imaginação melodramática, estas categorias
comparecem como instrumentos eficazes para a articulação do engajamento afetivo.
São estas categorias que se encontram, na análise de Estamira, que articulam
os efeitos de proximidade e intimidade para com a personagem, consolidando o
engajamento que reforça a associação entre a performance da personagem e a idéia de
poder/força/autoridade.
No caso de Estamira, elas se colocam como uma poderosa e importante
estratégia de engajamento e proximidade que se monta para justamente não confinK
a personagem em um lugar estigmatizado. Dessa maneira, Estamira não esláfiD.--
214
ESTUDOS DE CINEMA
na esfera da loucura, nem na da marginalização social, mas em um pouco de cada
uma, transparecendo no todo, uma imagem simbolicamente associada ao poder.
Dessa maneira, são colocadas em cena nesse documentário as tensões que
dizem respeito à lógica de privatização da vida pública, às encenações da memória e
da intimidade, mas, sobretudo, que dizem respeito à autoridade do sujeito em encarnar
o público e o social, em si. Questões concentradas na performance de Estamira para
a câmera e no pacto que se estabelece entre elas.
O dilema de Estamira é, portanto, incutir um sentimento de aproximação a
despeito do incômodo, e a arma para tanto será um diálogo muito palpável com a
imaginação melodramática. Os mecanismos de circularidade interna na narrativa (dados
pelas estratégias de obviedade e antecipação) e os usos dos constantes símbolos de
aproximação física para com a personagem, além dos que circunscrevem uma esfera
de definição para ela associada à força de sua performance, são constantemente
articulados para gestar tal efeito de proximidade e, correlatamente, engajamento.
Para tanto, não se fez necessária à presença fisica do diretor. Marcos Prado
não aparece nem uma única vez ao longo do filme, mas sua presença como instância
mediadora, como um olhar para o qual a performance de Estamira é dirigida se faz
visível constantemente através de uma coreografia de troca de olhares entre o plano
ponto-de-vista do diretor e a personagem. O que é reforçado pelos vários momentos
em que Estamira dirige-se diretamente à câmera, ao diretor e correlatamente aos
espectadores. Além disso, Estamira toma o poder da condução da narrativa, sendo a
"protagonista" e narradora do filme. Um poder que é, de certa maneira, "concedido"
logo no início do documentário.
A primeira seqüência, imagem em preto e branco, extremamente granulado,
mostra-nos planos de detalhes de garrafas ao chão, um cachorro que descansa, e,
então, lentamente imagens de partes do corpo de Estamira, o tronco, os olhos, as
mãos. Uma música que trabalha mais intensamente em cima dos instrumentos de
cordas e de sons de palavras incompreensíveis (um tema musical que vai percorrer
o filme e que se vincula diretamente aos tons da performance de Estamira), pontua
constantemente os cinco minutos da seqüência desta abertura. Nela, vemos Estamira
a esperar o ônibus, os planos se abrem e se vai acompanhando o trajeto da
personagem até o Gramacho, que fica a um km, como indica uma placa enquadrada
pela câmera.
Uma constante alternância entre o plano geral e o plano médio marca a seqüência,
em que a personagem vai se aproximando do aterro para mais um dia de trabalho. Aos
poucos, vê-se Estamira se despir e vestir roupas de trabalho. Nesse momento, a
música sobe o tom e ela, agora vestida para trabalhar, levanta a cabeça e encara a
câmera. Um primeiro plano de seu rosto mostra um leve balançar de cabeça, gesto
que, finalizando a seqüência, tem um sentido, ao mesmo tempo, de apresentação,
aquiescência,e de desafio.
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
'215
Faz-se, então, um fade para a imagem do céu muito azul e a voz off de Estamira
que diz: "A minha missão, além de eu ser a Estamira, é revelar, é, a verdade, somente
a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara ou então ensinar a
mostrar o que eles não sabem."
A seqüência seguinte é um desnudamento quase literal da personagem, que em
meio ao lixão vai se banhando enquanto a voz off segue declamando sua missão,
usando, em mais de uma vez a palavra vocês: "vocês é comum, eu não sou comum
( ... )vou explicarpra vocês tudinho agora, pro mundo inteiro. Eles cegaram o cérebro,
o gravador sanguino de vocês e o meu eles não conseguiram ... ". Dessa maneira, a
personagem se apresenta em sua missão, em sua performance, em seu poder de
narração, não de maneira acidental, apresentando também o próprio filme; expondo a
consciência de que toda essa apresentação (de si e do filme) é dirigida a um alguém
externo/público circunscrito na presença constante do "vocês". "Vocês" somos nós,
espectadores, que a partir daí entram-se no universo da personagem através do filme.
Esse é um dos primeíros momentos em que se percebe a instância da negociação
transparente no filme, a despeito da não presença fisica do diretor ou da equipe.
Percebe-se a negociação pela interação destemida de Estamira com o aparato filmico,
o qual se dirige claramente à câmera e a uma instância por trás dela, instância que, ao
mesmo tempo, é o diretor e os espectadores.
A voz de Estamira conduz a montagem por certo momento, pequeno, mas
sua missão de revelar a カ・セ、。L@
diz: "ó lá,
importante. Sua voz off, depois de ーイセヲ・ゥ@
os morro, a serra, as montanhas. Paisagem e Estamira" As imagens são exatamente a
ilustração de sua fala - primeiro um plano geral, do pôr do sol avermelhado que
transforma em silhueta a serra; depois, Estamira em meio à paisagem do lixão. Nesse
·momento, assim, Estamira é o poder, é a voz da autoridade do filme, a legítima
narração em voz off que tem, seguindo os preceitos estabelecidos pelo documentário
clássico, o estatuto de voz da autoridade.
Essa pequena inserção autoriza a fala da personagem e vai reverber:ar ao longo
do filme, declarando, desde já que, não obstante a aparente perturbação dos delírios
cosmogônicos, Estamira é a autoridade no filme. Ela se autoriza, sua missão é "revelar
a verdade a vocês", disse a personagem cenas antes, e então o discurso filmico
corrobora. Mais do que legitimar a personagem, essa passagem tem por função fazer
presente a instância da negociação, na qual a performance de si da personagem acaba
por ser correlata ao discurso filmico, corroborada por ele. Assim, autoridade e
proximidade se encerram aqui.
Esse efeito de proximidade também se faz presente no uso reiterado de primeirosplanos que se aproximam do corpo da personagem. A maneira como a câmera inva4e
a geografia da vida de Estamira, formulando quadros que quase penetram na pele de
tão próximos, reitera, a um só tempo, a sensação de proximidade e a presença do
diretor e do aparato filmico como instâncias mediadoras do olhar público sobre a
216
ESTUDOS DE CINEMA
personagem. O que se afirma assim é a necessidade de um contado direto, visceral,
sobretudo na primeira metade do filme, o que acaba "presentificando", no discurso
filmico, na esfera da obviedade a sensação de proximidade.
Assim, tal contato visceral - proporcionado pela câmera em relação ao corpo ·
da personagem- acaba exercendo outra função em relação a certo pacto de intimidade
que acaba sendo propOsto ao longo do filme, e que reforça o efeito de proximidade e
engajamento. Ele mostra, de um lado, a instância da negociação, e assim, a colaboração
de Estamira, sua aceitação em relação à presença do aparato filmico, diante de sua
performance; de outro, incute-se uma relação com a personagem, que afasta qualquer
noção de medo ou de estranhamento.
Outra das grandes estratégias de fazer valer o sentimento de engajamento é
marcar, ;1través de uma constante economia de simbolizações, uma relação sinonímica
entrt? o poder e a personagem. Estamira no filme é dotada de força e de autoridade que
corroboram a força explosiva de sua fala. Assim é que, ao longo dos primeiros 45
minutos de filme, ela é constantemente igualada à imagem do raio e sua fala é associada
· ao som da tempestade, sobretudo montando, coreograficamente, o gestual de Estamira
e os ruídos do trovão e vento.
Tais imagens e, sobretudo, tais sons marcam um efeito simbolicamente
exacerbado, de presentificação da força explosiva da personalidade de Estamira. Lugar
onde reside ao mesmo tempo sua perturbação mental e seu apelo enquanto personagem;
o que, tal como as tempestades, faz presente o fascínio e a apreensão, sumarizando
assim o que parece ser a própria visão do filme sobre Estamira.
São ao todo 14 inserções, entre imagens e, mais fortemente, o som dos trovões
associado à presença da trilha musical. Tais inserções preparam o terreno, antecipam,
a própria fala de Estamira que, aos 40 minutos de filme, se iguala a um toró.
Assim, Estamira se diz tempestade, afirmando o que o filme já antecipara nos
vários momentos em que suas explosões discursivas vinham pontuadas por imagens,
sons de raios e trovões. Como se o discurso filmico corroborasse o poder de sua
protagonista, afrrmando que suas perturbações são algo mais do que manifestações
de loucura, pois que, dotadas desse poder explosivo, são também ·manifestações de
uma força interior.
É interessante notar que é justamente a partir desse momento que o filme
passa a recontar um pouco mais linearmente a história da vida de Estamira,
incorporando depoimentos dos seus filhos a rememorar ·os traumas pelos quais ela
passou. Essas passagens, entrecortadas pelo discurso da personagem, são orgaruzadas
seguindo o preceito do que Bill Nichols (1991) chama de continuidade retórica,
estabelecendo assim, discursos de explicação para as perturbações da personagem.
A partir desse momento, o filme abandona um pouco o uso da rede simbólica
que vincula Estamira à tempestade, em prol de um discurso mais explicativo,
ウ・、ゥュセエ。ョッL@
com isso, a idéia de que aqueles rompantes de força têm uma razão de
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
217
será retomada na seqüência final, em que se verá Estamira a
ser. Tal 。ウセ」ゥ ̄ッ@
enfrentar as ondas do mar, numa imagem em preto e branco, pontuada pela mesma
trilha ュオウゥセ。ャ@
que atravessa o filme.
Há uma seqüência exemplar do que estou aqui apontando. Aos quase 45 minutos,
o depoimento da filha Carolina, conta detalhes dos estupros sofridos pela mãe, de
como Estamira clamava por Deus na hora do sofrimento. Carolina declara que acredita
que esse episódio é a raiz das manifestações mais fortes da perturbação de Estamira:
"naquele dia eu acho que ela desistiu mesmo de Deus, e agora é só eu e eu, o poder
dela acabou", finaliza Carolina. A imagem que cobre essa cena mostra as folhas de um
coqueiro a balançar violentamente ao sabor do vento, como um prenúncio de tempestade
que recupera, e reitera, assim, as metáforas visuais para a força interna de Estarnira
construídas no filme até então.
A cena imediatamente seguinte mostra mais um episódio de revolta de Estamira.
No início da seqüência, a câmera alta enquadra a personagem muito de perto, sentada
dentro de casa, que a se balançar diz: "Trocadilho safado, canalha, assaltante de
poder, manjado, desmascarado". Ela cospe no chão. Um corte e, em princípio através
de um primeiro plano do rosto e depois em plano médio, vê-se Estamira proferir seu
discurso para a câmera num tom cada vez mais agressivo: "me trata como eu trato
que eu te trato. Me trata com o teu trato que eu te devolvo, eu trato, e faço questão de
te devolver em triplo. Onde já se viu uma coisa dessa. A pessoa não pode andar nem
na rua que mora. Nem trabalhar dentro de _casa, nem trabalhar em lugar ntênhum. Que
Deus é esse, que Jesus é esse?( ... ) Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de
morrer. Largou? Quem anda com Deus, dia e noite, noite e dia, largou de morrer?
Quem fez o que ele mandou, largou de morrer? Largou de passar fome? ... "
Pelos vínculos óbvios com o depoimento de Carolina - estabelecidos através ·
da montagem em continuidade retórica e da recuperação do símbolo da força da
tempestade, reiterado ao longo do filme- a fala de Estarnira acaba sendo revestida de
uma eloqüência coerente. Como se o germe da loucura fosse transformado em
claridade, tal qual um raio que irrompe e ilumina o céu escuro da tempestade.
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From ,cinema, to ,film:n the representation
of reality and the place of political engagement
in the film theory o f Pier Paolo Pasolini
STEFANO CIAMMARONI (NEw
YoRK UN!VERSITY)
ÜNE COMPONENT OF the film theory field has always been a prescriptive strain
of discourses outlining not what films are, but what they should be or make do. A
fundamental question that this particular strain of thought likes to raise is whether a
filmrnaker has the ethical obligation to keep reality inviolate, as impermeable as possible
to a medium that can be technologically equipped to make the world knowable in a
tendentiously preconceived manner.
Dziga Vertov, among the first to intervene in the discussion, proposes that
-human artistries such as acting, costuming, scripting and framing be removed from
the production process, thereby allowing the non-cognizant cinematographic lens to
record reality in its un-deciphered authenticity. However, continues Vertov, a humanly
mediated interpretation of the mechanically recorded footage must be the primary
purpose o f post-production, the stage at which the primacy o f machinic objectivity
yields to the exigencies of subjective politics, and man-made editorial manipulations
are mobilized in order to achieve "a communist decoding o f the world" (VERTO V,
1984, p. 42).
As a proposed. forro of societal organization, Communism is a product of
human intentionality. lt cannot exist without Man nor, manifestly, can it pre-date
Man. We must therefore consider the "Communist decoding o f the world" strictly
contingent upon a voluntaristic agency, the cultural endpoint of a chronology that
includes the existence of the world (or of reality), the evolution of Man, Man's
invention of Communism, and a man-made effort to interpellate reality
communistically.
Reality, however, or "life" (to use Vertov's term), enjoys a greater deal of
autarchy: it needs no initiative on the part ofMan's political conscience in order to be
220
ESTUDOS DE CINEMA
manifest. Nor, consequently, does the pre-hermeneutical recording of life "as it is"
require the support ofman-made expository techniques (such as a script, ora framing
choice dictated by narrative purposes). But "catching life unawares," as the Vertovian
motto goes, is but the embryonic stage o f a larger and more interventionist project. In
order to prognose the future and offer a socio-política! recipe for improvement, one
must first achieve an objective diagnosis o f present reality, hence the recommendation
that the profilmic remain untampered by human talents.
In light of this preliminary aspect of bis theorizing, Vertov has erroneously
gone down in history as a rnisanthrope enamoured with the machine, the victim o f a
modernistic euphoria of sorts. In fact, like all Marxists, Vertov is a humanist, and as
such he ascribes serious epistemologicallirnits to the recording device. This is evident
in bis valorization o f editing, by means ofwhich Man intervenes a posteriori to create
order out o f chaos, interpreting politically the data gathered by the apparatus. In this
respect, Vertov stands diametrically opposed to the likes of Siegfried Kracauer and
André Bazin, a pair of equally prescriptive fllm theorists who much more
rnisanthropically, in my view, warn against the tendentious adulteration of nature in
the raw, suggesting, accordingly, that the fmdings ofthe apparatus be left unstructured
and indeterminate as to meaning.
Dziga Vertov's pioneering reflections on what a socially emancipative cinema
should privilege ( whether the mute objectivity o f the machine or the poli ti cal vocality
inherent in man-made photographic or editorialmanipulations) never did stop to define
the preoccupations of prescriptive fllm thought. After the mid l960s, however, the
discussion truly became a terrain ofideological struggle. When linguists and sernioticians
began asking whether there existed a "language" o f film, arbitrarily devised by Man
for the purpose of conveying propositional knowledge, it became most evident that
the extent to which the persuasive quality of such language was going to be tolerated
quried enormous political repercussions.
Within the liberationist Left, two approaches arguably collided. On the one
hand, a "historical-materialist" school of thought espoused the necessity to force
order onto the indeterrninateness and inarticulateness of reality in the raw, thereby
deeming liberationist a cinema à thiwe in which an arsenal of linguistic means is
mobilized in order to suture the viewer inside a narrative progression that closes in on
the política! message. Contrary to what historical materialism is usually believed to
concede to the vitality ofhuman voluntarism, I would define this approach trustful of
Man's agency. On the other hand, a camp that is commonly defmed "post-structuralist"
despite a fetishistic reverence for the sacredness o f the machine's de-centring of the
subjecf placed narrative ordering and closure in metaphors of política! repression,
considering more anti-authoritarian the possibility ofkeeping the continuum ofreality
ãs·irioràinate and open-ended as it is revealed to us by the recording device's optical
2únconscious, over which Man's intentionality should have very little jurisdiction.
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
221
Most exemplary of the dialectical relationship established by these competing
approaches is the film theory of Pier Paolo Pasolini, which went from idealistically
valorizing the apparatus 's unrefleetive consciousness to pragmatically confiding in
the manipulative tongile that Man can afford film. The bulk of Pasolini's theorizing
revolves around the problem of gaining knowledge through cinema. Very unstably,
however, Pasolini fluctuates between believing that such knowledge _shall be transmitted
by authorial induction (as the tenets of a Marxian praxis would require) and conceding
that it could actually be acquired through spectatorial intuition (as Bazin, partly, would
have it). In his most famous essay, ''The Cinema of Poetry," published in 1965,
Pasolini contends that filmmakers and audiences communicate on a purely intuitive
levei, relying on a common repertory of pre-linguistic images stored in a collective
unconscious. There is consequently no need for the employment of a cinematic
grammar modelled on the hwnan language. In :fact, continues Pasolini, one major
asset of cinema is that it can circumvent language, in virtue of an expressivity that is
innately pre-morphological and pre-grammatical, "animal-like," as Pasolini has often
liked to defme it with the usual penchant for excess. In these terms, cinema is the
medíum best suited to penetrate and render faithfully the pre-human nature of most
animate and inanimate realities recordable on earth by the eye of the apparatus. In
truth, "Cinema of Poetry" contains no mention of the recording device, in fact no
mention of cinema as a product o f technology and modernity. Yet it could be said that
an argument singing the praises of the medium's anti-linguism and pre-lapsarian purity
cannot but betray a fascination for the de-humanized apparatus, which Man invents .
and activates, but which Man can also refrain from equipping linguistically with a set
of arbitrary signs stemming :from the conventions of human language-systems.
In an essay entitled "Quips on the Cinema," published in 1966, Pasolini further
elaborates on the idea that a cinema deprived of a lexicon could be ゥョ、・ーセエ@
of
Man 's mediation, and thus provi de a more immediate perception of reality. To refer to
such pre-linguistic aggregate of images, Pasolini relinquishes the phrase "cinema of
poetry," privileging mstead the much simpler "cinema" .so what, exactly, is "cinema?"
For Pasolini, "cinema" is a completely hypothetical, superhuman accomplishment. It
is the whole ofreality recorded in unedited forro, the entirety of our actions recorded
twenty-four hours a day by an omnipotent camera filming our every move from
every possible angle. ''No matter how infmite and continuous reality is, an ideal camera
will always be able to reproduce it in all its infinity and continuity. As a primordial and
archetypal concept, cinema is therefore a continuous and infinite sequence shot .. .a
reproduction ofreality as unbroken and fluidas realty" (PASOLINI, 1988, pp. 225226). Notably, Pasolini reduces the long take to a pre-lexical utterance, the manifestation
of the c"inematic image in its virginal, most untouched state. This allows Pasolini to
describe "cinema" as a mythical category that, temporally, precedes the development
ofMan's language and communicative drive. Lack oflexicon, argues Pasolini, means
222
ESTUDOS DE CINEMA
freedom to roam beyond the oppressive wall that linguistic structures erect around
the attempt to gain knowledge o f a reality that is in fact incoherent and unstructured,
decipherable only by a consciousness that has not yet been corrupted by reason.
Here, Pasolini draws on the cultural tradition that, since the Frankfurt School, has
condernned rationalist thought as typically bourgeois. But can a line o f think:ing so
inimical to reason, language, and anything symptomatic of Man's drive to decipher,
systematize, and analyze reality contribute to the formation of a politically engaged
consciousness? If taken as an endpoint rather than a premise, can the notion of a
reality recorded in continuous, unreflective and unselective fashion serve in any way
the Marxist idea that knowledge ofthe world should develop from merely natural to
political and cultural? Evidently not, as Pasolini himself would soon come to admit.
But at this stage, Pasolini's theorizing is closer to Bazin, for whom the mystery of
reality should be kept sheltered from the ulterior designs ofMan 's hermeneutics, than
it isto Verto v, whom in tum encourages the subjective design ofMan to make political
sense out of the apparatus 's findings.
Yet only one year after the publication of "Quips on the Cinema," Pasolini's
theorizations would, quite clearly, abandon the Bazinian camp and cross into Vertovian
territory. According to many accounts, it was in conjunction with a trip to New York
City in the year 1967 that Pasolini carne to question the political valence of "cinema,"
namely, to repeat, the infinite and continuous long take recording the whole of reality
and of Man's life actions. In New York, Pasolini encountered the work of Andy
Warhol, whose experiments with the uninterrupted long take seemed to offer the
concretization ofthe ltalian theorist's hypothetical idea of"cinema." Warhol's singleshot film showing the Empire State Building from early evening through the night
(Empire, 1964) or the footage of poet John Giomo asleep for five hours (in Sleep,
1963) not only were devoid of po1itical consciousness -they did not facilitate that
greater perception o f reality that Pasolini thought the absence o f a film lexicon would
provi de. Paso1ini condernned the long takes ofWarhol's filrns for being "long, foolish,
inordinate, unnatural, mute" (PASOLINI, 1988, p. 241). The choice ofadjectives is
especially significant here, for only a few months earlier Pasolini had entrusted precisely
to the senselessness and muteness of a pre-linguistic "cinema" the liberationist task.
o f defying the tenets of bourgeois rationalism.
In 1967, Pasolini writes "Observations on the Sequence Shot." Here, the Italian ·
theorist relinquishes the myth of the unedited long take, considering it o f little use
when at stake is the necessity to politicize a found state ofthings. In this way, Pasolini
repudiates the non-interpretive aspects of "cinema" in favour of the ideological
assertiveness ofwhat he calls "film." So what, exactly, is "filrn?" Put it simply, "film"
is what we see at the movies. Contrary to "cinema," "film" is not an archetypal
notion, a mythical and super-human category that under the aúspices of a poetic·
licence, Pasolini can legitimately describe as unaffected by Man's agency. As a man-
CINEMA, AUTORIA EPOLÍTICA
223
rnade artefact, "film" inevitably bears the traces ofMan's ingeniousness, artistry and
politics. If "cinema" speaks the language of reality, a tongue that Man cannot (and
should not) decipher, "filrn" speaks the language of Man, courtesy of an imagistic
gramrnar that is intelligible because it draws on the conventions of human language
systems. Perhaps "cinema" corresponds to the Vertovian phase in which Man entrusts
with the machine the groundwork for an objective diagnosis ofreality. It is through
"film," however, that Man's hermeneutics finds a voice. Specifically, it is the synthetic
potentials of montage that guarantee a cause-and-effect logic linking the delivery o f
the message with the movement ofhistory in a progressive (or, shall we say, Marxist)
direction. In short, "film" produces ideological sense out o f the raw, iriarticulate, and
intrinsically un-deciphered phenomena that constitute reality, thereby successfully
correcting "cinema's" inherent incapacity to become politically engaged in any intelligible
and asserted way. Transitioning from "cinema" to "film," Pasolini turns to Vertov, but
also to Antonio Gramsci, whose understanding of culture ascribes to the agency of
the comrnitted subject a fundamental role in the process o f transforming reality.
In order to illustrate the epistemologicallimits of"cinema," Pasolini cites the
uselessness ofthe famous Zapruder film in unveiling the truth behind the assassination
of John F. Kennedy. Should we have at our disposal footage of the event shot from
every conceivable angle, and an infinite number of screens onto which the footage
shot form every single vantage point were to be projected, would the truth
spontaneously manifest itself? Pasolini says no, for only an editor, an ornniscient
narrator that Pasolini calls a "dever analytical mind" (PASOLINI, 1988, p. 23 5) could
work the unintelligibly unstructured material into coherent and plausible narrative
form. Only by virtue o f such conscious intervention would the imperturbable, mute
disengagement of"cinema" give way to the understandable, pointed politics of"film."
To elaborate further on the ways in which the "dever analytical mind"
successfully brings about the transition from "cinema" to "film" it may be worth
invoking a famous scene from Patrício Guzmán's The Battle ofChile, a documentary
chroniding the coup d'état that on September 11, 1973, led to the overthrow ofthe
democratically elected government. The scene contains the footage shot by an Argentine
journalist as a Chilean army soldier shoots in the direction of the camera, killing the
cameraman. In Guzmán 's film, twice we are shown the same footage. First, we see
it as "cinema," then we experience it as "film." In order to gain knowledge of areality
that has been recorded and then presented to us for fruition, we are initially asked to
rely but on one source: the non-cognizant apparatus, whose optical recordings bear
almost no trace of the flesh-and-bone subjects (we can call them authors and not be
ashamed of it) responsible for activating the device and rendering its fmdings public.
At first,.that is, Guzmán refrains from equipping the found footage with a lexicon, a
film gramrnar that would give speech capabilities to the images and their makers, so
as to facilitate the viewer's understanding of what the images show and why it is
224
ESTUDOS DE CINEMA
important to circulate them. Our preliminary exposure to the death of the Argentine
cameraman occurs under the auspices of "cinema," as Pasolini would call it: a
linguistically inarticulate and politically illegible long tak:e that, because it defies being
coerced into a coherent and signifying whole, teUs us virtually nothing about the
incident. In the shot, we fully embody the point ofview ofthe dying cameraman. Yet,
uninstructed by a narrator figure that tak:es over and domesticates the unprocessed
fooiage, we can barely realize that what we are witnessing is murder, let alone being
able to make up, exactly, who is shooting whom. It is only upon viewing the same
found footage a second time, with Guzmán intervening with a vengeance to fulfli the
role of the genial analytical mind, that narrative and political sense can be construed,
and the precise mechanics and historical valence o f the incident fmally understood.
Through slow-motion, the blackening of the frame's edges as to direct spectatorial
attention and, most irnportantly, through voice-over narration, Guzmán successfully
transforrr:lS the recorded reality from dispassionately material to belligerently conceptual.
This is most evident when the voice-over narration contends the following about the
Argentine cameraman: "He doesn't just record his own death ... he also records, two
months before the fmal coup ... the true face of a sector ofthe Chilean army." This
political interpretation can only be inscribed froin above and without the found footage.
That is, when shown as "cinema," the image ofthe Chilean army soldier can only be
tak:eli in its singularity and afforded an iconic meaning: all that the image shows is a
soldier shooting. Yet, when interpellated by the language of "film," that very same
army soldier tak:es on a whole new -and arbitrary- meaning, standing in, like in a
synecdoche, for the criminal and political responsibilities of an entire sector of the
Chilean army. It has tak:en the emotionalism of a flesh-and-blood agent to overcome
the irnperturbability of the machine and make the epistemological uselessness of ·
"cinema" develop into the political engagement of"film."
Admittedly, it is very uncharacteristic for Pasolini to embrace the suturing
function of the narrator figure. Practically, this only happens in "Observations on the
Sequence Shot," which is one reason why this essay stands out as rather significant
in the corpus of Pasolini's theoretical writings. In general, as mentioned, Pasolini
does position himselfwithin a tradition that is inimical to narrative ordering, closure,
and the idea that meaning is induced from above, at the production end, instead of
being spontaneously construed from below, at the receiving end. Within the cultural
Left, this tradition has been successful because of its explicit anti-Stalinist bent. Stalin,
of course, was partly responsible for reducing the historicist theses of Marxism to a
classically ordered grand-narrative that only an omnipotent orchestrator can pilot
from above and press to its edifying closure. Yet despite the spectre ofStalinism, and
the attempts of many cultural initiatives to de-legitimize the vanguard potentials of a
masterful subject exercising control, a political cinema eschewing the narrative
orgailization and rhetorical manipulativeness of verbal and visual signs has yet to be
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
225
uncontradictorily conceived. One can certainly set out to avoid interpreting the real
through the lens of a pre-formed set of values. This is a proposed policy. But is it
politics?
BIBLIOGRAPHY
PASOLINI, Pier Pao1o. Heretical Empiricism. Ed. Louise K. Barnett, Trans. Ben Lawton
and Louise Barnett, Indiana University Press, 1988, 317 p.
VERTOV, Dziga. Kino-Eye: The Writings ofDziga Vertov. Ed. Annette Michelson, Trans.
Kevin O'Brien, University ofCalifornia Press, 1984, 344 p.
Um cinema desenquadrado: a política
da linguagem e a linguagem da política
em Duas ou três coisas que eu sei dela
CECILIA SAYAD (UNIVERSIDAD DE CHICAGO)
O CINEMA e a crítica de Jean-Luc Godard foram centrais na transição da
cinefilia para a política, que marcou a trajetória dos Cahiers du cinéma, nos anos 60.
Partidário, num primeiro momento, do "neoformalismo", característico da política de
autores que privilegiaria a estética em detrimento da postura ideológica do filme,
Godard em seguida aderiu à proposta, articulada por Jacques Rivette, de "desenquadrar"
(décadrer) o cinema, ou de olhar para além dos limites da tela. O cinema e sua critica
deveriam expandir-se para além da pura cinefilia e deixar-se contaminar pelas ciências
humanas. Logo a sétima arte passaria a ser objeto da crítica literária, da lingüística, da
psicanálise -Barthes, Brecht e Lacan viram referência, Metz propõe que seqüências
sejam lidas como sintagmas, 1 retomando a discussão sobre a relação entre cinema e
linguagem que os russos vinham explorando desde os anos 20. O cinema como
forma de expressão individual, visão tida como politicamente conservadora, perde
terreno; ele passa a ser analisado como a manifestação involuntária de estruturas
ideológicas. Para diretores como Godard, as formas de representação dominantes
refletem um sistema ideológico dominante - portanto a política, no cinema, se faz
por meio do questionamento da linguagem.
Mas não é apenas dessa perspectiva que analiso certos aspectos de Duas ou
três coisas que eu sei dela, de 1967. O filme constitui um exemplo claro da crença de
que é pela ruptura entre a aparente continuidade entre imagem e realidade, que o
cinema político se faz mais eficaz- e não pelo realismo mimético ou pela clareza da
1. O primeiro volume de Essais sur la signification au cinéma é de 1967.
228
ESTUDOS DE CINEMA
mensagem, que requerem uma linguagem amplamente aceita (questionavelmente
denominada "transparente", sendo que a idéia de transparência é também uma
convenção). A escolha de Duas ou três coisas como objeto de análise se faz
principalmente pelo fato de o filme colocar em xeque a oposição entre, por um lado,
o cinema de autor, que se propõe a expressar a visão de mundo de um indivíduo, e
por outro o cinema político concebido na década de 60, em que o filme é visto como
espelho do sistema capitalista que determina suas formas de produção. Essa oposição
parte do pressuposto de que a voz do autor é sufocada pelas armadilhas das convenções
da linguagem - é o sistema que fala por meio do filme. O ponto-de-vista autoral
desapareceria também em meio ao processo colaborativo, à inevitabilidade da citação,
e em vista da agência do leitor ou espectador, cujo papel é explorado por Roland
Barthes em "A morte do autor". 2 O que eu argumento é que na obra de Godard o autor
inscrito no filme toma-se veículo para o questionamento político- apesar de integrar
o universo filmado como narrador em voz over, o diretor não se fecha dentro do
texto. Pelo contrário, ele é o agente de ruptura da diegese, que no caso de Duas ou
três coisas ele deixa contaminar por elementos externos ao enredo. Ao mesmo tempo,
essa militância centrada na figura do autor circunscreve o ato político à autoria em si
e ao problema da representação. Longe de se propor a medir a eficácia do filme como
projeto político, este ensaio retoma a figura do autor expressivo nos anos 60 como
agente não alienador, mas de engajamento.
Godard reflete a abertura do cinema para outros campos de estudo e expressão
por meio do caráter multimediático de seus filmes- das citações de obras da filosofia,
da literatura, da pintura, da música, da fotografia. Mas o cinema para além do quadro,
do plano ou da tela encontra eco também na abertura da fronteira entre a prática e a
teoria. Ao dizer repetidamente que faz cinema, e não filmes, Godard reafirma-se como
cineasta-teórico, como poeta, filósofo e crítico. Seu cinema extrapola os limites de
cada filme tomado individualmente. Cada trabalho defme-se como parte de um processo,
de um pensamento abrangente sobre o cinema, que se projeta ainda em outros formatos
(como livro e CD, no caso deHistoire(s) du cinéma) e fornece material para o discurso
crítico e filosófico do próprio diretor, teórico de sua própria obra. Ao mesmo tempo,
Godard inverte esse movimento de dentro para fora sugerido na idéia de "expandir o
quadro" ao incluir-se no universo do filme. Ele passa e integra esse universo por meio
da narração em voz over ou mesmo de sua própria imagem, emitindo sempre
comentários metalingüísticos. Em suma, o diretor imprime tanto ao universo retratado
quanto a si mesmo um olhar que remete às formas de representação, e que é em larga
medida um olhar auto-crítico.
2. Publicado em O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira São Paulo: Martim Fontes, 2004: 57-65.
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
229
Afinal, um dos lemas de Godard é "mostrar e mostrar-se mostrando", que 0
aproxima da figura do ensaísta, como bem notou Colin MacCabe (2003: 241). Esse
lema remete a uma outra fronteira violada pelo diretor: aquela entre documentário e
ficção. Filme-ensaio por excelência, Duas ou três coisas parte de um artigo sobre o
fenômeno da prostituição entre francesas de classe média, desejando aumentar seu
poder aquisitivo. O aspecto documental do filme, porém, não se define pela veracidade
dos fatos que inspiraram a narrativa - Duas ou três coisas documenta também o
processo, as preocupações e o pensamento do próprio Godard, além de constituir um
claro exemplo do que o diretor definiu como uma prática dedicada não à mera
representação, mas à produção de "documentários sobre os atores". Complicando
ainda mais a fronteira entre documentário e ficção, pode-se dizer que, além de
documentar as reflexões do diretor, Duas ou três coisas também lhes serve como
palco. Por mais que revelem preocupações reais, essas reflexões são cuidadosamente
encenadas, a começar pela escolha de sussurrar os comentários feitos em voz over.
Seguindo a linha encabeçada por Bemard Dort na crítica francesa da década
de 60, o cinema político de Godard aderiu à metodologia de Bertolt Brecht. Em Duas
ou três coisas, Brecht se faz presente por meio do que David Bordwell chama de
"literalização" da forma dramática, que, para usar a linguagem de Platão, é
predominantemente mimética (1985:17). Essa inserção de elementos discursivos ou
enunciativos (desprezados como "literários" pelos defensores de um cinema puro) se
dá nos comentários e reflexões de Godard sussurrados em voz over, no uso de
intertítulos, e nos discursos dos próprios personagens sobre si mesmos, quando
atores explicam (narram) motivações ou simplesmente verbalizam suas reflexões para
o espectador, a quem se dirigem diretamente, olhando para a câmera - estratégias
que interrompem a ação dramática e abrem o plano, derrubando a quarta parede. Essa
interrupção do fluxo narrativo cumpre a proposta Brechtiana de distanciar o espectador,
o que Godard julga necessário à incitação da reflexão sobre os códigos de representação,
e portanto sobre o sistema ideológico que dita tais códigos.
UM FILME DE IDÉIAS
A narrativa minimalista que serve de pretexto e ponto de partida para a meditação
política, filosófica e metalingüística de Duas ou três coisas dá conta de um dia na vida
tanto de Juliette (uma dona-de-casa que se prostitui nos intervalos de suas tarefas
domésticas) quanto de Paris (o "ela" do título é também a capital francesa). Porém,
ainda que Juliette e os outros habitantes da cidade sigam suas rotinas, eles não encarnam
os papéis que lhes são designados. Eles vivenciam os eventos superficialmente e
distraidamente. Vendedoras, manicures e freqüentadores de um café, por exemplo,
têm sua participação reduzida ao ato de produzir depoimentos que constituem detalhes
no enredo, mas que ao mesmo tempo incrementam o tratado sociológico delineado
230
ESTUDOS DE CINEMA
pelo filme. Porém, mais do que dar vida às personagens ou provar uma tese, os atores
de Duas ou três coisas dão voz às meditações de Godard, servindo de veículo para o
discurso tanto metalingüístico quanto político do filme, construído em grande parte
por meio de citações. Através desse esboço de enredo Godardreflete sobre a sociedade
de consumo e também sobre a linguagem do cinema. Referências ao projeto de
urbanização de Paris, à guerra do Vietnam e ao imperialismo norte-americano, bem
como as imagens, recorrentes em Godard, de logos de companhias e marcas como
TWA, Coca-Cola, ou Mobil convivem com meditações sobre formas de representação,
como quando o diretor pergunta "como mostrar ou dizer que por volta das 16h10
daquela tarde Juliette e Marianne fonim à oficina mecânica onde trabalha o marido de
Juliette?", ou quando indaga, "mas são essas as palavras e imagens a serem usadas?"
Duas ou três coisas aproxima-se, assim, do que Mikhail Bakhtin definiu como
romance de idéias, onde, no resumo dessa teoria por Robert Stam, a diversidade de
discursos assumidos, transmitidos, refutados ou intemalizados por personagens ou
narradores é mais relevante do que a integridade e a coerência psicológica das
personagens (2005: 192). Os textos flutuam entre os atores, sem preocupação com
plausibilidade e independentemente de discrepâncias entre sujeito e discurso --<:orno
atesta o improvável sonho alegórico do pequeno filho de Juliette sobre o Vietnam,
onde irmãos gêmeos (os dois Vietnams) resoivem se unir ao se depararem com a
beira de um precipício.
À primeira vista, Duas ou três coisas remete ao conceito de polifonia elaborado
por Bakhtin, onde idéias abstratas são transformadas em ponto-de-vista, consciência,
voz. Discorrendo sobre Dostoievski, Bakhtin sugere que na obra do escritor russo
cada idéia toma a forma de uma personagem. Todavia, o conceito de polifonia é útil
apenas em parte para o entendimento desse filme construído a partir de citações.
Afinal, é Godard quem fala e medita por meio das citações - é muitas vezes do
próprio diretor o discurso entoado pelas personagens do filme. O legendário plano da
xícara de café conectando um simples objeto ao universo, por exemplo, espelha a
conexão entre Godard e as personagens de Duas ou três coisas. A narração de Godard
diz que o mundo é seu "igual", seu "irmão", enquanto no plano da imagem as bolhas
do café invocam o cosmos. Juliette ecoa o discurso do diretor ao declarar ter a
impressão de "ser o mundo" e de sentir-se conectada a ele, enquanto a câmera traça
uma panorâmica de 360 graus que parte da atriz para revelar a paisagem urbana que
a envolve. Heroína e diretor são, assim, unidos num romântico desejo de integração
cósmica, paradoxalmente manifestado como auto-suficiência, visto que ambos
acreditam conter o mundo dentro de si mesmos -assim como a xícara contém o
cosmos e um rosto constitui uma paisagem, como afirma Juliette.
Esse anseio pela integração é Ílo entanto contrabalanceado pelo impulso de
ruptura. As meditações metalingüísticas na voz over de Godard constituem o principal
elemento de interrupção da narrativa. Essa ruptura se faz também no plano da edição
CINEMA, AUTORIA E POlÍTICA
231
de som - o discurso sussurrado do diretor contrasta com os ruídos estridentes da
Paris retratada no filme, mesmo porque todo som desaparece quando a voz do diretor
irrompe. A intrusão de Godard se faz sentir ainda no plano visual, quando as personagens
ínterrompem suas ações para responder às perguntas de um entrevistador invisível e
ínaudível, que se sabe ser o próprio cineasta posicionado ao lado ou atrás da câmera.
Ao violar o espaço selado da diegese, Godard abre o filme para o que lhe é externo para o processo de construção da narrativa, para notícias do mundo real (principalmente
da guerra do Vietnam e do projeto de urbanização de Paris), para outras artes e para as
vozes dos autores que cita.
O diretor toma-se então veículo para o rompimento com as convenções da
línguagem cinematográfica que favorecem a linearidade narrativa e a continuidade
éspacial e temporal - ele encama essa ruptura, se faz agente dela, mas de forma a
conectar o filme ao mundo externo, ou o autor ao cosmos. Se concomitantemente
com a produção de Duas ou três coisas, a figura do autor era rejeitada como sintoma
. de um cinema que expressaria a alma de um artista e seria politicamente desengajado,
Godard, que pouco depois mergulharia na direção coletiva com o grupo Dziga Vertov,
transforma o diretor em agente de desestabilização dos códigos de representação
dominantes, colocando em xeque a figura do autor como sintoma de alienação. Godard ·
obviamente abraçou a luta pela democratização do fazer cinematográfico
institucionalizada com a criação dos Estados Gerais do Cinema em 1968, que defendia
_que técnicos e artistas tivessem os mesmos direitos e o mesmo salário. No entanto o
·diretor não tardou em mostrar-se cético com relação tanto à autoria coletiva quanto à
possibilidade de falar para as massas e em nome de uma idéia generalizada de "povo".
Se mais tarde, nos anos 90, Godard ridicularizou a demagogia dos que atacam a
política dos autores em nome de uma concepção supostamente democrática da feitura
do filme, afirmando que dessa forma até o maquinista mereceria crédito como "o
autor de 'pisar no pedal'" (2006:. 31 ), já na época do Dziga Vertov o diretor argumentava
que fazia filmes em nome não dos trabalhadores, mas de si mesmo, como declarou
, no documentário Politique et bonheur, de Patrick Camus, em 1972.
Dado que o cinema político dos anos 60 coloca ênfase no caráter documental
daquilo que ele procura denunciar, vale retomar a tênue fronteira entre ficção e
documentário em Duas ou três coisas. Afinal, é o próprio Godard quem fala por meio
do narrador do filme, subvertendo a sagrada distinção entre autor e narrador que há
·muito preocupa a teoria literária. Mais próximo do ensaio do que da narrativa ficcional,
o filme nos apresenta o ponto-de-vista do próprio autor. Anunciando que examina
セー・ウッ。@
como um biólogo, Godard enfatiza o caráter etnográfico de Duas ou três
·coisas. Essa observação, todavia, resulta de um impulso de auto-expressão: em texto
de apresentação do filme, o diretor anuncia que Duas ou três coisas é produto da
"raiva da expressão" e da "paixão pela definição" (2006: 80). Assim, a narração de
Godard não possui a dimensão fictícia do narrador que representa um ponto de vista
232
ESTUDOS DE CINEMA
diferente daquele do autor, e que portanto é uma espécie de "personagem", mesmo
quando não faz parte do enredo. Da mesma forma, suas meditações sobre códigos de
representação não requerem a distinção entre o projeto artístico e o ser humano que
concebe esse projeto (a figura do autor implícito concebida por Wayne Booth é aqui
desnecessária). 3 Ainda que constitua apenas um aspecto do filme, que convive com
fotografia, edição, direção de arte, etc., o narrador de Godard claramente representa
a voz do autor - ou, para citar Paul Ricoeur via Tom Gunning, o narrador constitui
a imagem do autor no texto (1991: 25).
Há então uma relação de continuidade entre narrador e autor que se harmoniza
com a continuidade entre o ato de representação e o universo visualizado na tela. No
início de Duas ou três coisas Godard introduz Marina Vlady primeiro como atriz e
depois como Juliette, confundindo vida real com ficção por meio da simetria dos
planos de composição quase idêntica revelando atriz e personagem no mesmo espaço.
Em ambos os planos, Godard produz praticamente o mesmo discurso, descrevendo
primeiro Vlady e depois Juliette: a sua vestimenta, a cor de seus cabelos, seus
movimentos. O espaço do documentário é portanto o espaço da representação - o
que Godard "documenta" é o processo de concepção do filme, que inclui suas reflexões
sobre o fazer cinematográfico.
Para Godard, fazer cinema não é um ato de contemplação da realidade, mas de
questionamento tanto do universo retratado quanto da forma de representação desse
universo. Entre as famosas lamentações de Godard, que não são poucas, está a de
que o cinema não é valorizado como instrumento de reflexão. Romântico incorrigível,
Godard coloca-se como intermediário dessa reflexão, já que ela se traduz em um
olhar sobre as escolhas do diretor, ou em um olhar sobre si mesmo. Godard reflete
sobre o sistema ideológico que dita códigos dominantes de linguagem através da
dissecação de seu próprio processo artístico. O autor, para Godard, é portanto não
obstáculo, mas veículo para a reflexão política- é o autor que rompe com os limites
do quadro, expõe o cinema à realidade que o produz, questiona as formas convencionais
de representação.
Claro, a contrapartida da reflexão política por meio da metalinguagem é que,
paradoxalmente, ela muitas vezes resulta em um cinema autocentrado, o que em tese
contradiria o projeto de desenquadrá-lo. Mas a opção parece ser entre o isolamento
do universo narrativo e o isolamento do universo metalingüistico: entre, por um lado,
o ilusionismo e a narrativa sólida, com início, meio e fun claramente demarcados e
concatenados pelas regras da causalidade, e por outro, o distanciamento e a reflexão
sobre a linguagem. Godard obviamente opta pelo problema da forma, que no seu
entender abre o filme para a reflexão política de maneira mais profunda do que a
3. Ver BOOTH, Wayne. The Rhetoric ofFiction. Chicago: University ofChicago Press, 1983, 552 p.
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
233
representação menos intrusiva, menos discursiva e mais mimética- afinal, essa
:última pode até questionar certos mecanismos, mas se submete aos códigos por eles
determinados.
Marginal em relação à produção mais comercial, Godard preza, ainda que por
vezes amarguradamente, o seu status de "desenquadrado" no mundo do cinema,
romantizando até a sua condição de "fora de lugar". Já como um dos diretores mais
"populares" entre acadêmicos (Hitchcock talvez seja o único que se compare a ele em
termos de publicações dedicadas ao seu trabalho), Godard segue firme em sua proposta
de desenquadrar o seu cinema, abrindo-o não apenas para outros campos de
investigação teórica e para outras artes, mas para inúmeros questionamentos e revisões.
BIBLIOGRAFIA
BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: University o f Wisconsin
Press, 1985,370p.
GODARD, Jean-Luc. "Deux ou trois choses que je sais d'elle." Jean-Luc Godard:
Documents. Catálogo para a retrospectiva e exposição no Centre Pompidou. Paris:
Editions Centre Pompidou, 2006, 448 p.
.GODARD, Jean-Luc. "Parole de Godard." Les inrockuptibles hors série, Paris, número
especial, 2006, 98 p.
GUNNING, Tom. D. W Griffith and the origins of American narrative film: the early years
at Biograph. Urbana: University ofillinois Press, 1991, 316 p.
MACCABE, Colin. Godard: a portrait ofthe artist at seventy. Nova York: Farrar, Straus &
Giroux, 2003,432 p.
STAM, Robert. Literature through film: realism, magic, and the art of adaptation. Malden:
Blackwell, 2005, 388 p.
O apelo realista: uma expressão
estética da biopolítica
ILANA FELDMAN
(USP)
No auge do triunfo do espetáculo, espera-se um espetáculo que não mais simule.
Jean-Louis Comolli
Nada mais acontece aos humanos, é com a imagem que tudo acontece.
Serge Daney
As
narrativas do audiovisual contemporâneo, nos âmbitos do
cinema, da televisão e da internet apelam cada vez mais intensamente à produção e
dramatização da realidade, renovando seus códigos realistas e intensificando seus
efeitos de real, quando a linguagem, segundo Roland Barthes (2004), desapareceria
como construção para surgir confundida com as coisas, quando é o próprio real que
pareceria "falar". Nesse panorama, interessa a este trabalho compreender as implicações
estéticas e políticas dessas práticas audiovisuais, que, ao visarem obliterar a distânCia
entre a experiência direta e sua mediação, isto é, ao visarem simular um espetáculo
que não mais simule, sempre em nome da "vida real" e da "realidade", produzem
conseqüências políticas nada inocentes, revelando-se estratégias biopolíticas
(FOUCAULT, 1997) 1 de legitimação, naturalização e desresponsabilização dessas
narrativas e imagens.
RENOVADAS
I. Grosso modo, o conceit<> de biopolítica, postulado por Michel Foucault em 1976, pode ser
compreendido como os modos pelos quais a política, os dispositivos sócio-técnicos e, hoje, a
dinâmica neoliberal do capitalismo avançado se voltam aos processos vitais,·moleculares e sociais
da existência humana. Para uma abordagem inicial, ver FOUCAULT, M. História da sexualidade,
vol.l, A vontade de saber.
236
ESTUDOS DE CINEMA
Como se vê na proliferação de reality shows, imagens amadoras utilizadas pelo
telejornalismo, acontecimentos não-ficcionais incorporados pela teledramaturgia e toda
sorte de flagras picantes, flagrantes policiais e vídeos caseiros disponíveis na internet,
além de inúmeros títulos, do cinema brasileiro recente e de um cinema contemporâneo
prestigiado no circuito de festivais internacionais, essas operações narrativas, marcadas,
sobremaneira, por um apelo realista, reduzem muitas vezes a imagem à sua indicialidade,
vascularizando pelo corpo social o boom, de um tipo de "realismo" vinculado à
impressão de autenticidade das imagens amadoras.
No entanto, longe de uma tentativa de homogeneização de objetos tão diversos,
cabe a este artigo investigar a relação entre distintas narrativas audiovisuais que
conformam, nos âmbitos da produção cinematográfica, da produção televisiva e da
produção amadora para a internet, um regime de visibilidade caracterizado pela produção
e intensificação de efeitos de real cada vez mais críveis e pregnantes. Por isso,
privilegiamos não objetos isolados e particularizados por meio de análises
pormenorizadas, mas, sobretudo, as relações que se estabelecem entre eles, já que se
interessa compreender de que modo uma ampla gama de distintos objetos audiovisuais,
produzidos para diferentes mídias e com diferentes intenções, são consumidos e
valorados em função do alto grau de seus naturalizados efeitos de verdade, os quais
legitimam, autorizam e justificam previamente uma série de práticas, procedimentos e
efeitos estéticos.
Assimilando, reformatando e renovando os códigos realistas, que não se
confundem com o engajado realismo "crítico" ou "revelatório" do passado (XAVIER,
2005), essas renovadas narrativas do espetáculo (DEBORD, 2000)- pautadas pelo
permanente incremento dos efeitos de adesão e identificação, bem como por uma
função de mediação social por elas exercida- não dizem respeito a uma organização
formal da imagem, que seria "espetacular'', mas à construção de uma impressão de
autenticidade cada vez mais intensa e eficiente, a partir da "precariedade" das formas,
do gesto amador e da produção de novas transparências. Vale notar que,
contemporaneamente, o conceito de transparência é radicalmente distinto do que o
fora para o cinema clássico e contra o qual lutaram os cinemas modernos, que
pleiteavam a opacidade da imagem a partir de procedimentos reflexivos. Hoje, a
reflexividade e suas marcas - como rastros da filmagem, presença da equipe,
tematização do dispositivo etc. - torna-se condição da própria transparência.
Evidentemente, essa ampla gama de narrativas セオ、ゥッカウ。@
insere-se como
um estratégico, e algumas vezes rentável, nicho de mercado cinematográfico no Brasil
e no mundo. Se tomarmos o caso do cinema brasileiro da última década, mais
exatamente de 1995 para cá, com a "retomada" do ciclo de produção e, posteriormente,
com a criação da Globo Filmes, braço das organizações Globo para a produção
cinematográfica, comprometido com a construção e defesa de uma identidade e de
um "conteúdo nacional" (BUTCHER, 2006), perceberemos a evidência de tal apelo
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
237
realista, o que por isso nos ajudaria a compreender, a emergência da produção nacional
de documentários, que só em 2007 constituiu cerca de 50% dos lançamentos de
filmes brasileiros em circuito comercial.
Sendo assim, dos filmes independentes brasileiros, isto é, sem a participação
da Globo Filmes e das majors, como Casa de Alice (Chico Teixeira, 2007), Mutum
(Sandra Kogut, 2007); Serras da Desordem (Andréa Tonacci, 2006); Contra todos
(Roberto Moreira, 2004); Cama de gato (Alexandre Stockler, 2004); Diários de
motocicleta (Walter Salles, 2003); Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1996) e Terra
estrangeira (Walter Salles, 1995), à produção mainstream, co-produzida pela Globo
Filmes, como Cidade dos homens (Paulo Morelli, 2007); Antônia (Tata Amaral, 2006);
Dois filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005); Cazuza (Sandra Werneck, 2004);
Carandiru (Hector Babenco, 2003); Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e
recentemente Tropa de Elite (José Padilha, 2007), este sem a participação da Globo
Filmes, nota-se, a despeito das especificidades e dos efeitos estéticos e políticos de
セ、。@
trabalho, um evidente compromisso com o vínculo a uma realidade pré-existente.
'
Incorporando imagens documentais e registros amadores, fazendo dos códigos
estéticos mais "selvagens", que um dia foram a marca de um cinema moderno, uma
·nova convenção, re-encenando acontecimentos não-ficcionais já dados previamente
muitas vezes, da alta sofisticação tecnológica, oferecida pelas tecnologias
e se セエゥャコ。ョ、ッL@
digitais de captação e finalização de imagens e sons, para promover produções marcadas
por uma impressão de improviso, de "urgência", de "precariedade" formal e de
amadorismo, muitas vezes, simulando um espetáculo que simule sua não-encenação,
o cinema vem assim estreitando seu diálogo com a produção audiovisual. Nesse
processo de mútua contaminação, o que está em jogo é o compromisso dos produtos
audiovisuais, sobretudo brasileiros, com uma intensificação dos efeitos de real por
meio da permanente recodificação das marcas estilísticas consideradas "realistas",
cujo efeito almejado é a produção de uma impressão de autenticidade e de um valor de
verdade que sejam tomados como inequívocos e inquestionáveis. Aqui, cabe lembrar
os dizeres do cartaz do filme Tropa de Elite: "Uma guerra tem muitas versões. Esta é
a verdadeira". Frase que faz referência tanto à pirataria de que o filme foi vítima,
quanto ao lugar de verdade por ele pleiteado.
Porém, tal apelo realista da produção cinematográfica brasileira não é apenas
efeito de uma tendência estética e de mercado, sendo também determinado pelo modo
de produção hegemônico dessa cinematografia. Produzida com dinheiro público captado em grandes empresas via leis de incentivo -, que precisa ser socialmente
justificado, essa produção responde a uma demanda por maior inserção de sua
dramaturgia na realidade na qual está inserida, bem como a uma demanda de
"responsabilidade social", por parte das empresas fmanciadoras. Também é necessário
esclarecer que, no âmbito deste texto, não cabe indicar, minuciosamente, os recorrentes
procedimentos de linguagem empregados pelos filmes citados (como a utilização de
238
ESTUDOS DE CINEMA
longos planos-sequência ou de cortes excessivos, de uma câmera instável e trêmula,
da inserção ou simulação de imagens indiciais etc.), a fim de ancorá-los em uma
realidade previamente dada e socialmente justificada, o que nos demandaria um texto
de fôlego.
Já no caso do cinema internacional, o apelo realista caracteriza um universo
mais segmentado e prestigiado de filmes premiados em festivais internacionais, desde
Festa de família (Thomas Vitemberg, 1998), ganhador do Prêmio Especial do Júri no
Festival de Cannes de 1998, reconhecimento que o tomou um marco do movimento·
Dogma 95, passando pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que, com Rosetta
(1999) e A criança (2005), ganharam a Palma de Outro no Festival de Cannes de
1999 e 2005, até Quatro meses, três semanas e dois dias (2007), do romeno Cristian
Mungiu, ganhador da Palma de Ouro de 2007 e, ainda, Redacted (2007), filme de
Brian De Palma, sobre a invasão norte-americana no Iraque, vencedor do Leão 、セ@
Prata no Festival de Veneza de 2007. Neste último caso, a linguagem, considerada
"chocante" pela crítica estrangeira, incorpora, na verdade simulando, vídeos amadores
disponíveis no Youtube e em blogs de soldados, trechos de telejornais e de
documentários, imagens da televigilância e cenas de execuções de reféns, o que o'
toma um filme paradigmático, tanto pela mistura de suportes tecnológicos quanto
pela vinculação a imagens que aparentemente lhe pré-existem, cujo caráter amador,
precário, urgente e político garantiria à obra uma construção dramatúrgica e estétiCá.
pautada por um efeito de "choque do real" (JAGUARIBE, 2007).
Também a produção televisiva brasileira, sobretudo a da Rede Globo, mas não
restrita a ela, na corrida pela manutenção de sua hegemonia, simbólica e comercial, qa
produção e controle do imaginário nacional, tem sabido incorporar e desenvolver os
cada vez mais intensos e eficazes efeitos de real. Poderíamos tomar como exemplos
significativos dessa tendência: os diversos reality shows, em especial aqueles de
confinamento, mais comprometidos com um efeito de verdade efetivado pelo
dispositivo da vigilância, caso do Big Brother Brasil, produzido pela Rede Globo,
desde 2001; as imagens caseiras, capturadas por câmeras de telefone celular e
empregadas, de forma cada vez mais recorrente, em telej ornais de diferentes emissoras
como forma de validar e atestar a "verdade", daquilo que está sendo noticiado; a
incorporação de depoimentos reais de pessoas anônimas ao final de cada capítulo da
telenovela Páginas da Vida (Manuel Carlos, Globo, 2006), como forma de legitimar,
ancorando na realidade, a construção melodramática do conteúdo encenado e como
forma de compensar a impotência e a ausência de autonomia da ficção; e are-encenação
de acontecimentos não-ficcionais, marcados por grande repercussão midiática, cuja
vinculação a uma realidade pré-existente tanto legitima a pleiteada importância social
da ficção televisiva quanto mobiliza espectadores e opinião pública, caso novamente
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
239
· de Páginas da Vida, 2 mas também da telenovela da emissora concorrente, Vidas
. Opostas (Marcílio Moraes, r・」ッイセ@
2006). Como disse Roberto Irineu Marinho, nas
comemorações, em 2005, de 40 anos da emissora mais importante e influente do
· país, a Rede Globo, "de fábrica de produção de sonhos", teria passado a ser "uma
usina de realidades".
O apelo realista dessas renovadas narrativas do audiovisual não se restringe,
conforme já mencionado, ao cinema e à televisão, atravessando, de forma capilarizada,
. a produção audiovisual amadora disponibilizada em canais de exibição virtuais, como
oYoutube, e em programas de compartilhamento de arquivos pessoais na internet;
como o E-mule, estimulada pela disseminação das novas tecnologias digitais de captação
e produção de imagens e sons e pelas novas tecnologias de .finalização (como os
programas de edição caseiros). O que nos permitiria aventar que esse desenvolvimento
. tecnológico está, historicamente, atrelado ao desenvolvimento de "gêneros do real",
como fora o caso, em nosso recente passado, da criação de câmeras em 35mm, mais
leves e da invenção do Nagra, aparelho que inaugura a até então inédita possibilidade
da sincronia do som com a imagem.
Tal capacitação tecnológica permitiu, em fins dos anos 50, que o cinema do
pós-guerra (seja o assumidamente ficcional ou o documental) se libertasse dos grandes
. esquemas de produção e fosse às ruas, ao encontro da vida "cotidiana" e de seus
homens e mulheres "reais". Como postulava Zavattini, teórico de um realismo
revelatório, conhecido por sua "fome de realidade", à época do movimento neo. realista italiano: "Um retomo ao homem, à criatura que em si mesma é 'todo espetáculo':
isto deveria liberar-nos. Colocar a câmera nas ruas, em uma sala, olhar com insaciável
paciência, treinar na contemplação de nosso semelhante em suas ações elementares".
(ZAVATTINI apud XAVIER, 2005: 72). Hoje, porém, nosso contexto histórico, cultural
e econômico é outro e as inventividades estéticas que marcaram a dramaturgia e o
cinema modernos foram capturadas pela lógica do espetáculo, pelas novas tecnologias
de produção audiovisual e pelas demandas da televigilância, fascinada pela ilusão da
transparência total - tudo ver, tudo mostrar, nada esconder.
Cabe lembrar, porém, que a lógica econômica, estética e moral da contemporânea
produção doméstica de imagens e sons não é a mesma da produção cinematográfica
e televisiva, essas últimas, muito menos permissivas e mais controladas por diversas
2. Lembremos aqui da menção na novela Páginas da Vida- seja através de diálogos entre personagens,
da utilização de imagens reais ou dare-encenação de fatos- ao atentado às Torres Gêmeas em 200 I
nos EUA, ao desastre da abertura da cratera do metrô de São Paulo em 2006, à tragédia do menino
João Hélio, no Rio, no mesmo ano, ao atentado incendiário ao ônibus de viagem na Via Washington
Luiz, e, por fim, à problemática da síndrome de Down, tema-cei:Jtral da telenovela de Manuel
Carlos.
i4o
ESTUDOS DE CINEMA
instâncias de poder. No entanto, o que se percebe hoje é a tentativa, por parte do
cinema e da televisão, de incorporar uma espécie de produção audiovisual menos
domesticada, justamente pelo valor de mercado que um tipo de "realismo-naturalista"
tem adquirido. Vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras, à
exposição de uma suposta intimidade e à indexicalidade dos espaços, do tempo e da
presença do aparato, essa espécie de "realismo-naturalista" repaginado, comprometido
historicamente com a aproximação descritiva das aparências do real, mas não com a
expressão de um significado crítico da realidade (para se usar os termos da históríca,
querela entre naturalismo e realismo crítico), inclui, predominantemente, além dos
registros caseiros- em que a vida ordinária e cotidiana adquire uma importância e um
valor de mercado inauditos -, a nova pornografia, marcada pela simulação de flagras
e de imagens supostamente roubadas.
Dos flagras picantes aos flagrantes policiais, caso, por exemplo, das célebres
imagens da modelo brasileira Daniela Cicarelli, filmada por um paparazzo em
apimentadas cenas de amor em uma praia espanhola, em 2006, ou dos momentos que
precederam a execução de Saddam Hussein, captados por uma câmera de telefone
celular, no mesmo ano, o que se evidencia é a entrada da "vida real", da "realidade" e
da experiência cotidiana, no âmago dessa produção audiovisual - por isso aqui
considerada biopolítica -, bem como a utilização libidinal e policial dos dispositivos
tecnológicos, empenhados na construção e na administração de efeitos de real, de
autenticidade e de verdade que naturalizem e legitimem seus métodos. Não à toa, tais
operações narrativas servem, a um simultâneo processo de "imagetização" do capital
e capitalização da imagem, sobretudo de imagens que apelam à expressão de momentos
de impactante "autenticidade".
Em um momento histórico marcado pela saturação midiática, pela hipertrofia
dos campos da comunicação e do audiovisual, pelo contínuo incremento de uma
convergência de mídias e pela paulatina indistinção das fronteiras que historicamente
e
demarcavam os âmbitos do público e do privado, do real e do ficcional, da ー・ウッセ@
do personagem, o apelo realista, das cada vez mais hibridizadas narrativas
contemporâneas, se afiguraria como um modo simbólico de "reengajamento" ·e
"reintegração" dos sujeitos (produtores, consumidores e portadores das imagens) à
realidade. Realidade essa produzida e dramatizada por códigos estéticos e suportes
audiovisuais cujas fronteiras também estariam se tornando indistintas. Nesse sentido,
vale lembrar que as diversas estéticas do realismo ainda constituem as formas
culturalmente engendradas de apreensão e apresentação da realidade, pois o realismo,
desde meados do ·século XIX, transformou-se em uma linguagem hegemônica de
codificação do cotidiano moderno.
Nessa disputa, simbólica e comercial, pela produção, detenção e validação de
determinadas verdades e visões de mundo sobre nossa evocada - e capitalizada realidade, tais procedimentos de linguagem nos sinalizam, a atualização de uma secular
CINEMA, AUTORIA EPOlÍTICA
241
"vontade de verdade", como bem identificou Nietzsche (1992; 2001), que marcara a
alta modernidade e o próprio surgimento de uma cultura visual das sensações em fms
do século XIX. Verdade, segundo o filósofo, não mais compreendida como um sentido
oculto, profundo, que subjazeria por trás das aparências, mas, antes, alocada nas
superfícies das imagens e identificada ao próprio efeito construído- efeito de verdade.
Engendrado então por artificios narrativos e ficcionais, o efeito de verdade orienta,
contemporaneamente, uma demanda tanto por um artificio captador de uma (suposta)
autenticidade quanto por uma autenticidade gerada pelo próprio artificio. Assim, se a
''vontade de verdade" toma-se vontade de artificio, na medida em que a verdade é
efeito de uma construção, de uma perspectiva, de uma avaliação, o apelo realista, do
mesmo modo, não seria pautado por um apelo ao real tão-somente, mas por um apelo
ao real como um efeito, como um semblante ficcional, porque agora organizado e
intensificado.
Se, como enfatiza Jean-Louis Comolli (2002), as realidades tomaram-se a tal
ponto ficcionais que as ficções não podem mais prescindir de uma boa dose de realidade,
multiplicando indefinidamente seus efeitos de real, então, é nosso desafio, problematizar
e suspeitar desse atual regime de visibilidade, cuja estratégia é produzir uma verdade
que simule sua própria não-simulação, já que a intensificação e explicitação autoreflexiva dos artificios, muitas vezes em nome de um "choque do real", criam novas
ilusões de transparência e novos ilusionismos. Podemos então afirmar que, em diversos
sentidos, "as estéticas do realismo aguçam os paradoxos do momento contemporâneo"
(JAGUARIBE, 2007: 30).
Dentre os paradoxos que nos constituem, o mais notável é, sem dúvida, o
paradoxo da vida, pois, quanto mais instrumentalizada e reduzida a sua condição
biológica, tomando-se matéria prima e núcleo vital da política, da produção estética e
da organização dos fluxos capitalistas, mais é investida por uma infinidade de poderes,
dispositivos e tecnologias. Nesse sentido, as imagens e sons que conformam o
audiovisual contemporâneo estão intimamente ligados ao modo como a política opera
sobre a vida, justamente porque tanto a vida ordinária quanto a experiência cotidiana
se tomaram operadoras da política, que, como acredita Jacques Ranciere (2004),
operaria esteticamente. O que significa apostar que o apelo realista das renovadas
narrativas do audiovisual contemporâneo afigura-se hoje como a tônica dominante de
um capitalismo imaterial, 3 imagético e biopolítico, que faz da própria vida, dos corpos,
3. O regime de produção "pós-fordista", "pós-industrial" ensejou, segundo diversos autores, um
novo modo de agenciamento capitalista, denominado "capitalismo imaterial" ou "cognitivo", cujo
núcleo da produção econômica é a própria vida, o conhecimento, a criatividade, o imaginário, a
comunicação e a informação. Ver: COCCO, G Capitalismo cognitivo- trabalho, redes e inovação;
bem como NEGRI, A. e LAZZARATO, M. Trabalho imaterial.
ESTUDOS DE CINEMA
242
do imaginário, da comunicação, da informação e da experiência dita real sua matériaprima universal, fonte de inesgotável lucratividade. O apelo realista afigura-se, assim,
como a expressão estética de uma linguagem audiovisual biopolítica, no âmbito de
uma produção capitalista imaterial.
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INTERFACES COM
OUTRAS ARTES
Galáxias: uma poética do arquivo
em constelações ressonantes
LUIZ CLÁUDIO DA COSTA
(UERJ)
REcRIANDO GALAXIAS, de Haroldo de Campos em seu díptico videográfico.Galáxia Albina (1992) e Infernalário: logodédalo- Galáxia Dark (1993) -,Júlio
Bressane produz "equívocos", que são flagrados 1 pelo próprio poeta na seqüência do
roteiro, em ato encenado em Galáxia Albina. O cineasta pretende matar a personagemtítulo, cujo fim não é esse no poema. O que surpreende no vídeo, porém, não é essa
traição, mas os estratos criativos que acrescenta - as camadas que deposita na
transcriação, através das apropriações indevidas das obras de outros artistas-, revelando
a "consistência arqueológica" operada por Bressane, como bem notou Francisco E.
Teixeira. 2 Bressane suscita problemas singulares à sua prática- singularidade que
nada tem a ver com pureza. Ao contrário, é uma prática de sedimentação impura,
onde ocorrem interferências, apropriações, transferências, reciprocidades, envolvida
1. Para Haroldo, a permuta dos signos na recriação de um texto literário envolve autonomia
indispensáveL Tal reciprocidade, porém, não implica reverência ou respeito invioláveL Há traição
na prática do tradutor, mesmo que involuntariamente. Numa definição por si mesma contraditória,
a recriação implica urna fidelidade desleal. É o que Haroldo chama de "equívoco flagrante" ao falar
de Pound, seu exemplo máximo de tradutor-recriador. Para o teórico e poeta, Po'fthd trai a letra do
original e ao mesmo tempo é fiel ao 'espírito', ao 'clima' particular da peça traduzida, "acrescentalhe, corno numa contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o
original autoriza em sua linha de invenção" ( 1992: 3 7).
2. O fragmento completo retirado do texto de Teixeira é: "O cruzamento de Melville e Shakespeare,
Orson com Macbeth e Moby Dick, o momento de reação de sua criação no cinema que o leva ao
teatro, a peça dentro da peça, o embrião do filme televisivo etc., etc. Todo esse campo significante,
ora atualizado, ora virtualizado no corpo do vídeo Galáxia Albina, vem revelar a consistência
arqueológica, estratificada, os embasamentos que fundam a criação cinevideográfica de Bressane"
(2003: 120).
248
ESTUDOS DE CINEMA
pelo engano da traição fiel. Com essa prática, Bressane promove o cinema e/ou o
vídeo ao estatuto de arquivo do tempo.
Os dois vídeos de Bressane parecem nunca passar do prólogo de uma narração
continuamente fragmentada pela intensidade das imagens poéticas, bem como pela
freqüente reflexão crítica voltada para o processo da produção. A pedagogia em Galáxia
Albina e Dark é singular por se configurarem como uma leitura crítica do poema. O
aspecto ensaístico e reflexivo dos vídeos de Bressane pressupõem uma leitura penetrante
e atenta da obra de Haroldo de Campos.
Ao mesmo tempo em que refletem o poema, processando a tradução da obra
literária, Galáxia Albina e Dark problematizam a escrita videográfica, tematizando
alguns momentos e instâncias da produção, as materialidades envolvidas e os
procedimentos trabalhados no processo da produção. Os dois vídeos, entretanto, se
interessam e, por conseqüência, tematizam problemas distintos desse processo. Essa
diferença do foco de interesse da reflexividade crítica levou o crítico Francisco Elinaldo
Teixeira a afirmar que Galáxia Albina e Dark apresentam "grandes diferenças de
concepção" (2003:122). Há, com efeito, diferenças quanto às questões processuais
tematizadas, mas ambos concebem a forma crítica e ensaística como essencial, para
uma arte que se revela como pensamento. O roteiro é colocado em ato em Galáxia
Albina pelos autores Haroldo e Bressane, que se tornam personagens quando Giulia
Gam e Beth Coelho assumem seus papéis. Essa metamorfose é exposta em cena e
revela em ato o problema do autor como personagem e sujeito da narrativa, terna
vastarnente discutido pelas teorias da linguagem e pela narratologia. A filmagem, por
outro lado, é o foco em Galáxia Dark, revelando criticamente a distância ou a "nãoidentidade", entre o objeto da filmagem e sua exposição, corno argumentava Adorno,
ainda que essa dicotomia entre forma e conteúdo seja mais problemática que a dicotomia
dialética possa explicar.
As diferenças do foco sobre o qual recai a reflexão crítica dos dois vídeos são,
com efeito, muitas. Pode-se lembrar ainda outros exemplos. Giulia Gam aparece no
Galáxia Albina primeiro lendo, confortavelmente deitada, o livro de Haroldo, enquanto,
aos poucos, vai se caracterizando e se transformando em sua personagem. Nessa
caracterização, há um momento de extrema beleza poética e com grande efeito para a
vídeos. Giulia Gam-a atriz- e Albina- a personagem- aparecem
problemática セッウ@
ao イョセso@
tempo em uma única figura dividida. A divisão e a não-identidade não
o_cof.!"êm apenas entre a coisa e sua exposição, mas na própria coisa ou no sujeito que
a expõe. O nome mesmo pelo qual a coisa é exposta e unificada é objeto de reflexão
em: Galáxia Dark. Beth Coelho, caracterizada em sua personagem sem nome, aparece
イ・ーエゥョセ。@
voz segura de Haroldo que sobressai em volume nos ensaios vocais. Essa
ヲAセGョ ̄ッ@
nomeada produz uma tríade com outras duas atrizes. Todas vestidas de
· preto,. apresentam símbolos religiosos do Cristianismo, corno o crucifixo, mas
executam danças com temas e movimentos orientais que se assemelham à dança·do
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
249
ventre. Elas não são nomeadas, nem são personificadas. Sem precisão, antes
paradoxalmente, vinculam-se a sentidos de fertilidade e religiosidade da Antiguidade.
Por isso podem simbolizar muitas trindades da cultura da imagem, incluindo as de
viés religioso. Sugerindo sentidos não diretamente direcionados pelo vídeo, as três
mulheres são antes figuras do tempo, imagens mais que nomes. Como os três lados
de um triângulo do tempo, promovem, no sentido, a liberdade do devir, esgarçando 0
tempo do presente tecnológico ao passado da origem da civilização cristã, dada a
referência à Terra Santa em Galáxia Dark.
As questões refletidas são variadas, incluindo a materialidade do suporte da
exposição que recebe tratamento distinto nos dois vídeos. A dupla trilha da imagem e
do som é problematizada em Galáxia Albina. Nesse vídeo, a direção mantém todas
ou quase todas as vozes, separadas de suas fontes na boca dos personagens. Mesmo
quando o som é proveniente de um filme apropriado, como Macbeth, de Orson Welles,
por exemplo. Galáxia Dark, ao contrário, mantém a sincronia. A fixidez do fotograma,
contraposto ao movimento das outras imagens, é lançada ao conhecimento critico
em Galáxia Albina, ao passo que os grãos produzidos pela baixa quantidade luminosa
revela a materialidade e a ausência da luz no Galáxia Dark. Os vídeos, apesar de
formarem um dípticn, são de fato autônomos, mas há um problema comum que os
vincula: o que é a imagem artística? Seja literária, cinematográfica, videográfica ou
plástica a questão dos dois vídeos de Bressane é conceitual e teórica. Mais que
problematizar um gênero de arte e praticar a intertextualidade crítica, positivando as
vozes distantes e as práticas diferenciadas, Galáxia Albina e Dark colocam o problema
da condição mesma da arte como imagem. Nesse sentido, os vídeos, ainda que com
grandes diferenças de composição e reflexão material, colocam um mesmo problema
conceitual.
É imensa a quantidade de material mobilizado nos dois vídeos e Francisco
Elinaldo Teixeira já inventariou esse conjunto. Segundo o crítico paulista, Galáxia
Albina ao mobilizar esse vasto material de múltiplas procedências e suportes toma-se
"videocinema, videovídeo, videofotografia, videopintura, videoesculturalinstalação"
(2003: 115). De procedência literária, os poemas incluídos no Galáxias Albina são, o
fragmento 40 (onde aparece a personagem da Albina), o fragmento 32 (éujo tema
central é a morte de Marilyn Monroe), Cal! me Ishmael (lido e inscrito na tela,
sobreposto ao desenho de um caçador com arpão), Toura (sobre o devir-toura da
Albina). Há, ainda, não mencionados por Elinaldo, alguns outros fragmentos do Galáxias
de Haroldo, como o terceiro formante, em que aparece a famosa frase de Macbeth
"multidinous seas incardine". O fragmento é lido por Haroldo entre colunas de uma
ruína, logo após o trecho com a frase de Shakespeare dita por Welles em seu próprio
filme. Ainda é lido o fragmento 46 do poema no qual a personagem da "mulher-livro"
aparece. Segue ainda na lista a leitura do fragmento 41, onde o tema oriental ("tudo
isto tem que ver com um suplício chinês") é ainda presente. É desse fragmento que
250
ESTUDOS DE CINEMA
surge a frase "vai daí a cabeça rompido o equilíbrio descabeça e cai" transposto para
o vídeo na personagem de uma japonesa com quimono cuja cabeça cai ao fim da
leitura do fragmento por Haroldo. Outros textos literários são ouvidos nos vídeo
Galáxia Albina. Haroldo lê a parte final do capítulo "A brancura da Baleia", do romance
Moby Dick, de Hermann Melville, na tradução de Péricles Eugenio da Silva Ramos. O
trecho lido por Haroldo do capítulo de Moby Dickremete ao "grande princípio da luz"
que pinta a natureza, finalizando com o tema-título, central no vídeo: "de todas essas
coisas a baleia branca constitui o símbolo".
Os outros suportes materiais utilizados no vídeo Galáxia Albina são, as telas e
objetos de Alex Fleming, Luiz Pizarro, Ângelo Venosa, Celeida Tostes e Thel Castilho,
o vídeo Paulo Leminski - Um coração de Poeta, produzido pela TVE (em que o
poeta fala sobre seus sonhos dirigidos por cineastas americanos), trechos de Moby
Dick (1956), de John Huston com Gregory Peck; Macbeth (I 948), de Orson Welles;
Matou a família e foi ao cinema ( 1969, evocado no diálogo entre o poeta e o cineasta,
"Tinha que ter sangue Júlio? No meu texto a Albina não morre!" I "É, ir ao cinema"),
O rei do baralho (1973, com cenas da personagem de uma atriz de chanchada, cujos
cabelos louros prateados se assemelham aos da Marilyn tematizada). À complexa
malha sonora e musical que inclui silêncios e vozes dos atores dos filmes apropriados,
somam-se as canções My funny valentine, de Richard Rodgers e Lorenz Hart; Bye
Bye Baby, de Bob Crewe and Bob Gaudio, executada pela própria Marilyn Monroe no
filme Os homens preferem as loiras (1953), de Howard Hawks.
Os materiais mobilizados no Galáxia Dark também são variados. Do poema
Galáxias, o vídeo utiliza o fragmento 04, no qual aparece o tema do "jomalário
infemalário de miúdas nugas de intrigas tricas de nicas". Ainda são lidos outros poemas:
O azar é um dançarino, do próprio Haroldo de Campos e, dois outros por ele
trariscriados, E! Desdichado, de Nerval e O Carbúncujo e o coração, de Novalis.
Além da matéria literária, há ainda um documentário de televisão sobre Elvis Presley,
onde o intérprete canta I want you I need you I lave you (de Maurice Mysels and Ira
Kosloff). Do cinema, três filmes: Um corpo que cai, de Hitchcock (1958); À meia
noite levarei a sua alma, de José Mojica Marins (1964); Alphaville, de Godard (1965).
Há ainda a canção Just one of those things, de Cole Porter, executada por Louis
Armstrong e algumas intervenções musicais, como o instrumental de Friz Freleng,
tema do filme de Blake Ewards, A Pantera cor de rosa. As interferências musicais
criam sentidos importantes na narrativa do vídeo, mas alguns momentos especialmente
significantes estão vinculados aos de temas orientais, incluindo lamentos de tonalidade
islâmica nas cenas em que as três mulheres de negro, vestindo roupas como religiosas,
encontram-se na Terra Santa, como explica a voz of! do diretor.
Em Galáxias Albina e Dark, de Julio Bressane, o problema central da pedagogia
crítica não é a própria obra, ainda que todo o processo de construção e produção do
vídeo seja também objeto da reflexão e das imagens poéticas. As apropriações de
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
251
vasto material e suportes aparecem fisicamente em profusão nos vídeos de Bressane,
revelando uma intertextualidade, sobretudo, de caráter arquivístico. Bressane pratica
uma verdadeira poética do arquivo apropriando-se de materiais da cultura audiovisual,
literária, plástica, musical e sonora. Nesses vídeos se vê fragmentos tanto da cultura
artística quanto da de massa, o que problematiza a separação hierárquica da autonomia
entre essas esferas. Mas se há não- identidade entre ambas, a estratificação de espaços
e tempos, operada pelos vídeos, não cria uma descontinuidade absoluta, mas
comunicação e confluência que as toma permeáveis. Os estratos, campos do
conhecimento, gêneros artísticos e tempos históricos de nossa cultura da imagem se
superpõem e se comunicam. Se em Galáxia Albina, a digitalização da imagem e os
efeitos de edição permitem que Macbeth/Welles, invocando as bruxas durante uma
tempestade, acabe por ter nas mãos um arpão/espada colorido, em Galáxia Dark,
alude-se à época em que as imagens eram proibidas, ao colocar as três personagens
femininas na "Terra Santa" contra grades. Se o tema da luz (entre outras vias, através
de Alphavílle e de Moby Dick) aparece em Galáxia Albina, o tema da escuridão
surge em Jnfernalário: Logodédalo- Galáxia Dark. A luz que permite ver imagens e
a escuridão que as proíbe é, entretanto, complexa, no que diz respeito a nossa era de
máquinas de visão. Afinal, Galáxia Dark associa a época do "infemalário jornalário" a
Dédalo - referência ao pai de !caro na mitologia grega e ao labirinto por ele criado
para o Rei Minos, lugar em que acabara aprisionado com seu filho. Nossa era midiática
e técnica não é a era da luz e do conhecimento, mas uma época cuja lógica obscurecida
talvez nos proíba ver. Não se pode, entretanto, opor assim à luz ao escuro, nem
associar a técnica ao obscurantismo. Afinal, o criminoso e obscuro Macbeth aparece
com sua espada digital numa homenagem à cultura de massa que criou ainda figuras
como Elvis Presley, Marilyn Monroe e antes, Louis Armstrong. A luz e o escuro são
forças ou valores limites ainda presentes em nossa cultura da imagem, agora marcada
pelo arquivo.
Desde a fotografia e o cinema, a idéia do museu e da galeria (o cubo branco),
como lugar de exposição e guarda de nossas imagens, parece assombrada pela função
do arquivo. Por isso a importância da seqüência de Um corpo que cai escolhida por
Bressane para o vídeo Galáxia Albina. Nessa cena, o detetive Scottie (James Stewart)
observa a Madeleine (Kim Novak) num museu, observando o quadro com a mulher
que ela duplica. O tema do duplo, da imagem, presente nos dois vídeos de Bressane,
toma inflexões institucionais. O museu foi desde o século XIX um dos princípios
institucionais da cultura artística, em especial da imagem no suporte pintura. Mas o
lugar do museu vem sendo problematizado, primeiro pela própria técnica da fotografia,
cujo lugar de guarda é antes o arquivo que a exposição na parede branca do museu.
Rosalind Krauss, articulou a idéia de uma arte de arquivo na crítica
contemporânea em "O espaço discursivo da fotografia". A pensadora americana
afirma que a fotografia não pertence originalmente ao espaço discursivo da arte,
ESTUDOS DE CINEMA
252
cujos conceitos fundamentais eram a obra, o sujeito autor e o gênero. A historiadora
mostra que a fotografia pertencia até meados do século XIX ao discurso topográfico
da geologia e não ao saber estético, cujo código visual de representação aplainada e
comprimida transformou as vistas em paisagens. As primeiras, ao contrário das últimas;
não eram expostas em paredes de museus, mas guardadas e expostas em móveisarquivos. Foi depois de 1860 que a fotografia entrou para a instituição Arte e passou
a ter lugar no discurso da História da Arte e nas paredes das galerias. Mais
contemporaneamente, entretanto, segundo a autora, os especialistas da fotografia
aplicaram aqueles "conceitos fundamentais do discurso estético ao arquivo visual". A
noção de "arquivo visual" no texto de Krauss remete tanto ao móvel onde se guardava
e expunha as vistas como à noção de "formação histórica" proveniente da teoria
foucaultiana sobre os discursos e visibilidades (2002: TPセUYIN@
Bressane articula os vídeo Galáxia Dark e Albina, como arquivos virtuais em
que se sedimentam, de maneira impura e heterogênea, apropriações e transferências
da cultura visual, literária e cinematográfica, promovendo o cinema e/ou o vídeo ao
estatuto de arquivos do tempo. Se com a fotografia, o arquivo era fisico e material,
com o cinema, ele toma-se temporal, mas ainda fisico. Na era do digital, o arquivo
permite operações transversais de caráter temporal e concede aos objetos a plasticidade
do tempo, essa capacidade de modular coisas, fazendo-as variar, criando para elas
novos matizes, diversificando-as em contínuas metamorfoses.
BIBLIOGRAFIA
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Bressane e a pintura- Uma leitura das imagens
na obra bressaneana, sob a ótica das Galáxias
JosmE MoNZANI (UFSCAR)
EM GAL/ÍXIAS ALBINA e Dark não há realismo. A representação das atrizes é
teatralizada, não naturalista; cenários, figurinos, adereços e ilwninação: tudo é estilizado,
evidentemente não-mimético. A intenção, como no poema Galáxias, de Haroldo de
Campos, é voltar-se para si, apontar os processos da própria arte que compõem os
vídeos.
Esse procedimento havia ocorrido nas artes plásticas, bem no início do século
XX (em tomo de 1907 a 14), marcadamente com a introdução da colagem- por
Braque e Picasso - na pintura cubista analítica, e com o início do cubismo sintético.
Não importava mais retratar a aparência, mas as relações entre as coisas, inclusive os
materiais que as compunham.
Responde Cézanne à questão: "Mas a natureza e a arte não são diferentes?"
"-Eu gostaria de tomá-las uma coisa só. A arte é uma percepção pessoal. Eu coloco
essa percepção no sentimento e peço à inteligência que a organize em uma obra". 1
A obra de arte, nos termos propostos por Cézanne, deve ser pensada como
constituinte também da natureza; natureza na visão do artista. Ou seja, essa deveria
ser a função da nova arte pós-Cézanne: registrar inter-relações estabelecidas pelos
artistas a partir de linhas, formatos, cores e materiais abstraídos da natureza, do
mundo material. Assim, o cerne plástico expressivo passa a ser, seus elementos
compósitos. Movimentos e tensões deveriam, então, ser também retratados. A pintura
cubista passa a compreender inclusive a passagem do tempo. Tempo-espaço エセュ。Mウ・@
uno na tela.
I . GOODING, M. Arte Abstrata. São Paulo: Cosac&Naify, 2002, p. 35.
256
ESTUDOS DE CINEMA
A vanguarda, do início do século XX, afasta-se da mimesis, em busca de criar
"algo válido em seus próprios termos'? Nessa busca, volta-se para o meio de seu
oficio. O crítico de arte e literatura, C. Greenberg, coloca muito bem essa situação,
nas palavras "O não-figurativo ou 'abstrato', para ter alguma validade estética, não
pode ser arbitrário ou acidental, mas deve derivar da obediência a alguma limitação ou
original adequado. Esta limitação, uma vez que se renunciou ao mundo da experiência
comum externa, só pode ser encontrada nos próprios processos ou disciplinas
através dos quais, a arte e a literatura já o imitaram. Eles mesmos tomam-se o tema da
arte e da literatura. Se, para continuar com Aristóteles, toda arte e literatura é imitação,
então o que se tem aqui é a "imitação do ato de imitar'. 3
O procedimepto de Bressane- construção do filme via apresentação de pedaços
metonimicos - vai mais fundo do que o apontado. Pensa-se aqui no making of
O making of pode ser tomado por uma experiência de registro de uma ação, de
um ato artístico realizado que, se não fora nele recuperado, estaria para sempre perdido.
Caso da performance, da instalaç_ão, do parangolé, por ex-típicos representantes da
arte dos anos 60 - e da grande maioria dos roteiros cinematográficos que, pronto o
filme, são esquecidos, jogados fora muitas vezes. Rompendo com essa tradição,
Bressane e Haroldo inserem o próprio roteiro no fazer videográfico em Galáxia Albina
(1991), a exemplo do que o próprio Bressane e Godard, respectivamente, haviam
feito em Tabu e Passion, de 1982, por ex.
Logo no início de Albina" Haroldo e Julio aparecem relatando os episódios que
transcorrerão a seguir, com o modo relacional por eles empreendido no processo de
criação. Já na Dark são os inúmeros ensaios e as pausas para descanso que
comparecem como parte integrante da trama
Novo tipo de notação, novo modo de roteirizar pode estar a indiciar uma nova
forma estética, e vice-versa, seguindo aqui H. R. Zeller, falando sobre Um Coup de
Dés, citado por Haroldo de Campos (1977: 23): " ... questões de forma se converteram
em questões de notação, e, vice-versa, a solução de problemas de técnica de notação ...
pode exercer um influxo imediato sobre a evolução de novos tipos de formas". 5
2.
3.
4.
5.
GREENBERG, C. Arte e Cultura. São Paulo: Ática, 1996, p. 24.
GREENBERG, C. Op. Cit., p. 25.
Segundo relato de Julio, essa seqüência foi à última a ser filmada.
Em 1978-79 a TVE do Rio de Janeiro produziu uma pequena série (de oito ou nove programas)
sobre o Rio, através de Nelson Pereira do Santos, e coube a Julio fazer um capítulo sobre o lliP
pré-histórico, que se chamou Cidade Pagã. Para realizá-lo o diretor inspirou-se no texto Pica-Pau
de Julio Ribeiro (que se encontra no volume Língua Nacional). Ao relatar isso, Julio não mencionou
espécie alguma de roteiro. Parece-me que o trabalho de roteirização para ele consiste mais numa
elaboração mental de imagens (formas, cores, diversos tipos de som e o silêncio) e na montagem
das mesmas, tarefa que parece prescindir do verbal, enquanto texto descritivo, linear e com
anotações técnicas- como usualmente é feito um roteiro. Se assim for, esse procedimento não é
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
257
Julio fala neste presente trabalho de sua experiência de filmar quando adolescente,
e da frustração em não reconhecer nas imagens reveladas, os sentimentos que o
haviam impelido a filmá-las. Essa afirmação abriu-se para várias suposições. Seguindo
Nietzsche, muda-se a cada segundo; assim, o Julio pós revelação do filme não era
mais exatamente - somente o Julio da filmagem: 6 "Em cada agora começa o ser: em
tomo do aqui rola a esfera do acolá. O meio está em toda parte. Recurvo é o caminho
da eternidade". Para Aby Warburg/ a imagem é a memória inconsciente do tempo.
Roland Barthes discute em A câmera clarcl' o poder, que algumas fotos têm de captar
a "alma" do fotografado, ou, ainda, em O óbvio e o obtuso, 9 como alguns fotogramas
podem encerrar uma significância, enquanto outros geram somente significados e
significações, o que implicaria em ambos os casos atribuir a carência à percepção de
Julio da vida (própria) das imagens.
Essas linhas de análise, entretanto, têm em comum o fato de apontar para as
imagens enquanto possíveis possuidoras de expressão própria; melhor dizendo, além
das mensagens referenciais, elas podem carregar conteúdos latentes que é preciso
saber ver/ouvir/ler: introjetar.
típico das Galáxias; vem de longa data, é um princípio construtivo de Bressane. Criar a partir da
matéria, da forma, dos tons, do movimento, e das associações por esses suscitadas, e não do
argumento lógico, do enredo. Uma vez (cerca de 1990) Julio me disse começar a criar um filme pela
trilha sonora, pelos ritmos (até me presenteou, na ocasião, com uma fita k7 com a trilha da qual
resultou o filme Agonia). O teórico Arlindo Machado fala que sugestões icônicas de cores e formas
das imagens aproximam as imagens em movimento da música. A frase "cinema é a música da luz",
de Abel Gance, que tem sido usada como um mote por Julio, parece indiciar isso: cinema como
movimento das sombras (tons (musicais e plásticos) e formas concretas). O roteiro em papel de
Agonia aponta o mesmo traço .
. "( ... )assaltando a mão armada". ela de peruca loura.
O Antena tem um companheiro Mudo.
Noel cantando malandro medroso: é escuro o barraco 3 corpos deitados no mesmo chão. partes de
corpos. é tudo muito escuro. tudo em tudo no filme todo. escuro e claro. a Agonia é um pisca-pisca
de fotogramas em sucessão passando à luz do projetor. e o filme é projeção da "agonia" das
sombras." (Agonia;p. 1).
Nessa mesma direção, Haroldo mais de uma vez afirmou que sua criação estava próxima da
musical.
6 . Cf. NIETZSCHE. Vontade de Potência. Rio de Janeiro: Edições dl" Ouro, 1966. La voluntad de
domínio. Buenos Aires: M. Aguilar, 1947. E em Assim falava Zaratustra, apud NUNES, B. O
tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2002, p. 70: "Em cada agora começa o ser: em torno do
aqui rola a esfera do acolá. O meio está em toda parte. Recurvo é o caminho da eternidade." (grifo
meu).
7. Aby Warburg apud MICHAUD, P-A. Aby Warburg and the image in motion. New York: Zone
Books, 2007.
8. BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
9. Cf. In O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
258
ESTUDOS DE CINEMA
Posteriormente, conhecedor desse potencial da imagem, Julio pode ter sido
impulsionado a reutilizar o filmado, introduzindo-o em meio à outra narrativa em
criação, a fim, talvez, de 'duplicar', fazer refletir entre si as imagens registradas, ou
seja, provocar o diálogo entre figuras advindas de diferentes contextos, nas quais ele
via aproximações possíveis; além de buscar proceder ao resgate de um tempo (de
uma parte do 'eu') perdido. Missão impossível, segundo Bergson: "Para o fisico, a
mesma causa produz sempre o mesmo efeito; para um psicólogo que não se deixa
enganar pelas aparentes analogias, uma causa interna profunda dá seu efeito uma vez,
e esse jamais se reproduzirá''. 10
Em 1996, em seu livro Alguns, Bressane, plenamente consciente dos poderes
abstratos do som, da voz e do traço, ao discorrer sobre o intérprete de música popular
brasileira Vassourinha, por ex. disse em dois momentos: "Tem Vassourinha uma vozmosaico, voz-manta-de-detalhes, voz-ônibus, voz-metáfora... " e "Antigos sinais de
inscrições rupestres (é a 'outra' voz) que indicavam, por ex., fonte d'água, caça,
cataclismas ou tempestades, continham no sinal uma qualidade ou qualquer qualidade
da coisa que representavam, mas tudo estava 'dito' na emoção transmitida pelo traço,
pelo sinal, que era a condensação, em laconismo máximo, da idéia que queriam exprimir.
É o mesmo com a voz. Na voz de Vassourinha, lá, está dito tudo: nos traços da voz
estão o quê e o como! O que canta é o melhor repertório-critica da época. Agora, o
como canta é para além da época, tal sua originalidade monstruosa" (p. 8 e 10) A
personagem Mário Reis, no filme O Mandarim, também aborda essa questão, ao falar
sobre Sinhô. O desenvolvimento dessa idéia, parece-me, culminou na definição de
Noosmancia ("são as sugestões e intuições falantes da sabedoria, da inteligência, do
conhecimento, da observação metódica e experimental. A forma sensível como signo
de uma realidade invisível"), e no conceber o cinema dentro desse pensamento, como
sistema de reflexão e prática similar às práticas divinatórias, concepção que se encontra
em Cinemancia (2000: 77-85): " ... imagem imaginante, cinema é eterno deslimite, a
fixação sensível e a revelação química de uma mancha-pensamento."
Seja como for, esse procedimento é utilizado por ele já em 1969 no filme O
anjo nasceu, ao introduzir algumas seqüências de um filme caseiro que registram um
casal de noivos sendo fotografado em uma praça, imiscuído na diegese então em
construção; e em 1970, em Família do barulho, filme no qual se vê cenas domésticas
- captadas na adolescência de Julio servindo de contraponto à trama principal. Com
a diferença que se os noivos parecem ter sido registrados ao léu, como em um
documentário, as crianças, além de serem familiares de Julio, foram instruídas para
10. BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. In: Oeuvres. Paris: PUF,
1970, p. 132.
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
259
encenar. O documentário ficcionaliza-se; a ficção toma-se documental. Deve-se ter
em mente aqui que Julio, desde suas filmagens amadoras na adolescência,
documentava cenas domésticas, enquanto filmava pequenas ficções (tendo os primos
como atores).
Assim, a inserção na diegese de registros visuais anteriormente realizados por
ele próprio (caso dos filmes acima mencionados e também de O monstro caraíba, de
1975, e de Miramar, de 1997), por outros cineastas (como em Tabu (de 1982),
Galáxia Albina e Galáxia Dark (1991 e 1992)); ou ainda do uso de trilhas sonoras de
filmes famosos (qual em O anjo nasceu e Galáxia Dark, por ex.), tomou-se uma
recorrência na obra de Bressane.
E, ao lado desse traço, note-se, foi sendo desenvolvida por Julio uma outra
espécie de 'recriação' da criação. Um exemplo do que estou falando encontra-se em
uma seqüência(s), conseguida numa espécie de 'documentário', realizado pelo próprio
cineasta (chamado Sob o sol, sob o céu, Salvador, 1987), traduzida posteriormente
como ficção, em outro momento (no filme O mandarim (1995)).
Retomando aqui, a questão de o roteiro aparecer, inserido na própria diegese
em Galáxias, pode-se dizer, como hipótese, que isso tem a ver com a imaginação
material de Julio- mencionada anteriormente. Ele realiza no exercício prático (caso
de Sob o sol, sob o céu, Salvador), o que será repetido posteriormente no filme O
mandarim (seqüência do encontro de Sinhô com Mário Reis; na casa daquele. No
exercício, ela foi realizada por Gilberto Gil e o próprio Bressane; no filme, por Gil e o
ator que interpretava Mário Reis). O exercício pode ser visto como uma roteirização
do que será feito posteriormente.
Outro modo similar desse operar está em Agonia (1978), filme-homenagem a
Limite, de M. Peixoto.
A exacerbação desse proceder encontra-se em Galáxias- já que quase todos
os procedimentos anteriormente empregados por Julio em sua filmografia ali aparecem
juntos.
Na Albina, pelo fato de um dos seus princípios construtores ser a união num
mesmo plano de imagens provindas de diversas fontes: por ex., vê-se ao fundo imagens
, e sons de Macbeth e de Moby Dick, à frente Giulia Gam sendo filmada por Bressane:
princípio gerador do diálogo entre essas obras, de diferentes diretores e contextos
históricos, que trazem em comum, à primeira vista, apenas o fato de terem sido
realizadas nas décadas de 50/60: E também na Dark, na qual as personagens estão
quase constantemente agindo em confronto com outra informação passada seja por
Haroldo que oraliza poemas de Nerval e Novalis e um de sua autoria; seja por quadros;
pelo som da cítara de Marsicano (esse último já presente no filme Sermões, 1989, de
Bressane); pela trilha sonora e imagens do filme Lawrence da Arábia (de David
Lean, 1962), entre inúmeros outros exemplos que poderiam ser mencionados.
260
ESTUDOS DE CINEMA
Ainda, Haroldo dubla a si próprio, na seqüência (improvisada, segundo Julio)
em que lê as Galáxias, sentado em um pátio, rodeado por colunas." A referência à
dublagem foi-se fornecida pelo diretor, não é perceptível ao se assistir ao filme, mas,
de qualquer forma, o espelhamento é criado também pelo fato do poeta ler em meio a
falsas colunas gregas e, ainda, vestido com uma camisa vermelha que pode ser vista
como 'figurino' de Galáxia Albina (a cor vermelha está muito presente nesse vídeo,
nas várias referências ao sangue e à cor dos olhos da baleia Moby Dick, por ex.).
Essa seqüência tem um caráter documental, realista (o poeta autor do texto lendo-o
em meio à trama), que se confunde com o falso, a representação, o diegético dado
seu figurino, cenário e dublagem.
Além dessas características, tem-se o registro do fazer cinema (uma espécie
de making of dentro do filme) -desde Matou a família e foi ao cinema (1969),
passando pelas Galáxias, até Filme de amor (2005)- insistentemente em uso. Claquetes,
o cineasta filmando, dando instruções aos atores, movimentando uma luz em frente
da personagem Albina etc ...
A obra e seu processo de feitura juntos no resultado final, assim como os
excertos de um filme em outro, indicam um fazer reflexivo; na unidade e em sua
globalidade a obra de Julio mantém constantemente em sua estrutura (a metalinguagem).
Imagens (sonoro-visuais em ação) carregam altas cargas dé sentidos, evidentes
e latentes. Pulsam. Por isso merecem ser vistas, em realização e realizadas; ter o seu
caráter, por definição, duplo, percebido. E essas imagens são retomadas, para que
uma pista, uma ponta de uma delas leve a outra obra do próprio cineasta, e desta a
outras, apontando sua irmandade, como numa constelação. Parece querer dizer a este
trabalho Julio.
O projeto de Bressane cresceu, complexificou-se; foi muito mais longe do que
somente expor o filme em realização, como forma de apontar o caráter duplo das
imagens sonoras e visuais. O mar como intervalo; operações montadas por semelhança,
não regidas pela subordinação umas às outras; e a assincronia presente por vezes nas
seqüências, por ex., deixa exposto seu modelo de processo criativo, a estrutura de
seu filme- em Miramar. Seu modo construtivo global é revelado, desde seu título m que vai e volta, r que volta e vai; ir e vir, mar e mirar, amar e rir (amor/humor) em
espelhamento (a lembrar Ver navios, poema de Haroldo); sugere movimento e
inconstância, diversidade (até certo ponto, posto que a narrativa acompanhe o
amadurecer do jovem-cineasta) de ações/pessoas que se sucedem e que interferem
ll. A voz de Haroldo havia sido gravada em som direto, mas, ao ver/ouvir a gravação ele não ficou
satisfeitó com o resultàdo. Achou sua leitura meio 'travada'. Muita conversa rolou nessa hora e
Haroldo resolveu ler o trecho novamente. Agora sim, havia oralizado de forma satisfatória. Julio
resolveu então gravá-lo e foi desta gravação que o diretor recolheu a trilha para a seqüência.
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
261
na personagem, apesar desta, por vezes, aparentar ser imutável - como o mar e a
paisagem.
Proceder a semelhante já havia sido exposto em Galáxias. Na Albina vê-se a
personagem em processo de anamorfose, sua cabeça viajando pelo/com o livro
conforme havia sido predito, pelos autores no início do vídeo. Entretanto o que vemos/
ouvimos vai muito além do relato deles. Recebe-se ali uma noção do todo, mas as
possibilidades de leitura abertas pelas imagens (sonoro-visuais) são inúmeras. "A
montagem pictórica e a citação textual têm função semelhante: acabam com a leitura
unívoca do texto", seguindo aqui W. Benjamin em Haxixe (2003: 61).
Em Galáxia Albina é feita uma sintese da trama logo no seu começo, como
em O anjo nasceu. Em ambos os trabalhos (assim como em Miramar) têm-se também
a busca, o percurso da( s) personagem (ns), enquanto mote desencadeador da narrativa.
Só que em Galáxias o desenrolar da trajetória vai abrindo n probabilidades de leitura,
devido às suas múltiplas possibilidades associativas, o que não ocorre em O anjo
nasceu, apesar de sua trilha musical riquíssima, de seus aspectos paródicos e de seu
diálogo com o Cinema Novo. Vide-se, para todos os itens elencados, as seqüências
finais do filme: a saída de cena dos dois bandidos, estrada afora; o quadro em negro
com a diversificada trilha sonora rolando; a estrada de volta com os letreiros do filme.
(Análises perfeitas desse filme e de Matou a família ... podem ser lidas no texto de
Ismail Xavier: Estéticas do subdesenvolvimento)Y
O anjo nasceu apresenta várias cadeias de leitura, mas não 'infinitas', como
acontece em Albina e Dark. Ainda, nas Galáxias, a justaposição de elementos se
passa dentro da mesma seqüência; enquanto em O anjo nasceu é estabelecida
primordialmente de seqüência para seqüência, num procedimento mais 'fácil' de ser
apreendido, posto que se esteja, enquanto espectadores, mais habituados ao processo
de montagem eisensteiniano.
Miramar é autobiográfico e alude à vida, à formação e ao primeiro cinema de
Julio.
Jorge Luis Borges indicou para este trabalho, essa pista de leitura da obra de
Bressane ao afirmar que a tradição neo-barroca não vem do surrealismo, mas sim do
abstrato, ou do concreto, conforme se queira denominar esse movimento. Julio parte
da tradição dos concretos ao empregar as imagens sonoro-visuais enquanto metonímias.
O que se quer apontar aqui foi que Julio parte da construção própria do abstrato
e alça o neo-barroco, a modo ainda de Haroldo de Campos, ao fazer com que suas
imagens mostrem também a si mesmas, dialoguem entre si, ou, curvem-se para dentro,
recurvem-se, num espelhar para dentro.
12. São Paulo: Brasiliense, 1993.
ESTUDOS DE CINEMA
262
Espelhos a espelhar de baixo para cima (ou, de dentro para fora)- I o momento
- e de cima para baixo (de fora para dentro) - 2° momento - simultaneamente; céu e
mar espelhando-se mutuamente: eis o neo-barroco instaurado nas imagens de Bressane.
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NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2002.
XAVIER, I. Estéticas do subdesenvolvimento.São Paulo: Brasiliense, 1993.
O dragão da maldade contra o santo
guerreiro: a encenação do desafio 1
SYLVIA REGINA BASTOS NEMER
(FCRB)
INTRODUÇÃO
O SEGUNDO FILME de Glauber Rocha dedicado à temática sertaneja não é apenas
um retomo às questões apresentadas anteriormente, em Deus e o diabo na terra do
sol, mas aos mesmos personagens que reaparecem como efeito de encenação ou na
imaginação do herói que surge como que por eiicarito para retomar a luta de seus
predecessores.
O monólogo de Coirana, proferido em uma das primeiras cenas de O dragão
da maldade contra o santo guerreiro quando o personagem, junto com um bando de
cangaceiros e beatos, invade a cidade de Jardim das Piranhas, lembra uma representação
teatral:
Eu vim aparecido.
Não tenho família nem nome.
Eu vim tangendo o vento
pra espantar os últimos dias da fome.
Eu trago comigo o povo desse ·sertão brasileiro
e boto de novo na testa um chapéu de cangaceiro.
Quero ver aparecer os homens dessa cidade,
o orgulho e a riqueza do Dragão da Maldade.
1. O texto é parte de pesquisa desenvolvida no doutorado da ECO-UFRJ, com apoio da CAPES
(através de bolsa de doutorado e bolsa de doutorado sanduíche na Universidade Paris X).
ESTUDOS DE CINEMA
264
Hoje eu vou embora
mas um dia eu vou voltar.
E nesse dia, sem piedade,
nenhuma pedra vai restar.
Porque a vingança tem duas cruz.
A cruz do ódio e a cruz do amor.
Três vez reze padre-nosso,
Lampião Nosso Senhor!
Como espaço da dúvida, do impasse, do encontro catastrófico entre o antigo e
o novo, o sertão, na representação de 1964, pode ter alguma relação com o modelo da
tragédia. Mas o filme de 1969 é uma forma de expressão diferente. Marcado pelo
descompasso entre uma aspiração e uma realidade desencantada, O dragão da maldade
contra o santo guerreiro se situa numa encruzilhada entre os ideais estéticos do Cinema
Novo e alguma coisa outra.
DESAFIO E PERFORMANCE POPULAR
(A PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO)
Presentes em Deus e o diabo na terra do sol, a esperança, a utopia, a mistura
de mito, de conto, de fábula e de história desaparecem em O dragão da maldade
contra o santo guerreiro, onde a ilusão, como observou Walter Benjamin a respeito do
drama barroco, "deixa o mundo para se refugiar no palco" (BENJAMIN, 1982).
Caracterizado pela retomada crítica de certos mitos do cinema, esse filme é uma
espécie de continuação do primeiro grande sucesso de Glauber Rocha, voltado, nesse
caso, para a figura de Antonio das Mortes, que reaparece para cumprir sua clássica
tarefa de matador de cangaceiro.
No centro da praça, cercados por cangaceiros, beatos e pelo povo da vila,
Antonio das Mortes e Coirana andam em círculos, se encaram. Depois de alguns
instantes, Coirana resolve falar:
Tenho mais de mil cobrança pra fazer,
mas se eu falar de todas a terra vai estremecer.
Quero só cobrar as preferida
do testamento de Lampião.
Quem é homem vira mulher,
quem é mulher pede perdão.
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
265
Prisioneiro vai ficar livre,
carcereiro vai pra cadeia.
Mulher dama casa na igreja
com véu de noiva na Lua cheia.
Quero dinheiro pra minha miséria,
quero comida pro meu povo,
se não atenderem meu pedido
vou vortar aqui de novo.
Antonio responde ao desafio, lançando ao adversário uma pergunta provocativa :
Tu é verdade ou é assombração?
Diga logo, cabra da peste!
Eu de minha parte não acredito
nessa roupa que tu veste.
Coirana responde com uma nova pergunta e uma nova ameaça:
Primeiro diga você
seu nome, fantasiado.
Quem abre assim a boca
fica logo condenado.
Antonio diz o seu nome e em seguida desfecha o golpe final às ameaças do
oponente:
Pois aprepare seus ouvido e ouça.
Meu nome é Antonio das Morte,
pra espanto da covardia
e desgraça da sua sorte.
Mas uma coisa eu digo:
no território brasileiro,
nem no Céu nem no Inferno,
tem lugar pra cangaceiro.
Realizado antes da luta na qual o cangaceiro sairá mortalmente ferido, o duelo
verbal entre Coirana e Antonio das Mortes lembra a prática do desafio, comum em
algumas regiões do Nordeste. Também conhecido como cantoria, repente ou peleja,
266
ESTUDOS DE CINEMA
0 desafio é uma performance oral normalmente cantada que tem como base a
improvisação. Idelette Muzart o caracteriza como "poesia do instante", já que aí a
criação se faz no momento da realização do embate entre os dois poetas (MUZART,
1997: 27). Ao contrário do romance de cordel, no qual a criação é anterior à sua
reprodução pelo folheto, o desafio, embora algumas vezes recriado por escrito e
impresso nos meios tradicionais, é uma espécie de jogo verbal em que dois oponentes
se enfrentam em falas alternadas, durante horas, às vezes durante dias, até que um,
ao deixar o outro sem resposta, é considerado vencedor.
A peleja entre dois cantadores toca em um ponto importante do desafio: a
presença de um público que interfere na evolução da cantoria. Seja torcendo por um
dos cantadores (o que intimida o adversário e precipita sua derrota), seja sugerindo
glosas (cujo objetivo é testar a perícia dos dois poetas), a participação do público é
fundamental para a completa realização da performance.
No filme que ora se estuda, o diálogo com a cantoria se manifesta no início da
narrativa, quando Coirana se apresenta ao povo de Jardim das Piranhas nos termos da
tradição popular sertaneja. Trata-se de um verso rimado (citado no começo deste
texto) por meio do qual o personagem entra na história, falando sobre sua origem e o
motivo de sua aparição: Eu vim aparecido I não tenho família nem nome. I Eu vim
tangendo o vento I pra espantar os últimos dias da fome ...
Muito comum nas cantorias nordestinas, essa fala que antece o desafio serve
para introduzir o tema e para que cada um dos participantes tenha oportunidade de
exaltar sua reputação como cantador.
À apresentação dos cantadores, segue-se o desafio propriamente dito. Neste,
as ameaças e insultos são acompanhadas das provas de conhecimento dos cantadores
e da capacidade dos mesmos em lidar com as modalidades e convenções do gênero.
"Aqui, a noção de originalidade, tal como a veicula a cultura letrada, é quase totalmente
ausente, sendo a criação não inovação, mas variação a partir de um modelo dado"
(MUZART, 1997: 33). O importante nesse caso é a habilidade do cantador em aliar a
criatividade ao já conhecido pelo público, que assim participa mais ativamente da
performance.
Em O dragão da maldade, a ênfase na participação do público é um aspecto
que deve ser ressaltado. Considere-se, por exemplo, duas cenas já comentadas: a de
Coirana em sua entrada no Jardim das Piranhas, e a do duelo entre este e Antonio das
Mortes. Nessas cenas, a presença do povo, entoando cânticos e batendo palmas,
lembra-se de que se está diante de uma representação, de uma performance.
Quais são as características desse tipo de performance? Paul Zumthor as analisa
ressaltando a importância da voz e dos gestos dos participantes, por um lado, e a
situação de escuta por outro (ZUMTHOR, 1983). Ação dupla entre emissor e receptor,
a performance oral se processa a partir de uma série de meios (o modo de recitação
de certos cantos impostos pelo costume, o ritmo lento ou rápido de uma melodia, as
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
267
repetições e os gestos que a acompanham) que formam um contexto, uma situação
de comunicação culturalmente motivada.
Em relação a O dragão da maldade, a chegada de Coirana ao. Jardim das
Piranhas dá lugar a uma manifestação espontânea, do povo que sai às ruas para
acompanhar o cortejo liderado pelo cangaceiro e pela Santa. Ao som de cânticos que
lembram os ritmos africanos, os líderes seguem à frente, dançando e balançando
estandartes com as imagens de São Jorge e do Dragão. Logo em seguida vem o povo
cantando e batendo palmas. A perfomance segue seu curso até o centro da cidade
onde, acompanhado pela Santa e por Antão, Coirana se apresenta ao povo e aos
poderosos do local. O monólogo proferido pelo cangaceiro reporta-se a Lampião,
citado nos versos da música entoada durante a procissão, e na aula do professor que,
na praça da cidade, pouco antes da entrada do cortejo, lembrava a seus alunos as
datas importantes da história do Brasil.
Repetido inúmeras vezes durante as primeiras cenas do filme, o nome de Lampião
reforça o sentido não oficial da manifestação, dirigida por Coirana. E mais: estreita os
laços de pertencimento do povo com o seu passado. Dedicada à memória do cangaceiro
morto em 1938 (como lembrou o professor), a performance (para se usar o termo de
Zumthor) liderada pelo cangaceiro aparece como um momento de comunhão coletiva.
Sem data ou local programados, ela surge de repente, espontaneamente, no meio do
povo como resposta às vozes e aos gestos que a lideram. Neste sentido, o povo que
faz parte da performance contribui tanto quanto o intérprete à sua realização. "A
poesia é assim aquilo que é recebido: mas sua recepção é um ato único, fugitivo,
irreversível... e individual, pois duvida-se que uma mesma performance seja
experimentada de maneira idêntica por dois ouvintes" (ZUMTHOR. 1983).
Colocando em relevo procedimentos correntes nas sociedades tradicionais, o
filme procura destacar a relação entre os protagonistas da performance e os que nela
estão envolvidos. Nesse sentido, o povo que participa cantando, dançando, batendo
palmas, não é apenas objeto da representação, mas o sujeito de uma performance que
remete ao universo das tradições orais, no qual
a base da participação do indivíduo é o pertencimento a uma coletividade, a um
passado comum.
Nesse contexto, ou seja, no contexto das tradições compartilhadas, Zumthor
chama a atenção para o caráter impessoal da voz que profere o canto, e para a relação
de reciprocidade existente entre o intérprete e o público. Essa é a característica da
performance protagonizada por Coirana que tem como contraponto o desfile de Sete
de Setembro mostrado na seqüência seguinte, na cena do encontro entre Matos e
Antonio das Mortes.
Extremamente formal do ponto de vista da música, dos gestos, das vestimentas
dos participantes, na comemoração do Sete de Setembro, o que chama atenção é o
comportamento automatizado dos que executam a marcha e a passividade dos que a
268
ESTUDOS DE CINEMA
assistem. Em contraste com a manifestação de Jardim das Piranhas, focada sobre a
liberdade dos corpos, dos gestos, o desfile da Independência expõe os símbolos do
poder, o mundo da ordem representado pelos alunos uniformizados, empunhando
bandeiras e marchando em movimentos rigidamente coordenados ao som de uma
banda militar. Tudo ali é marcado, controlado, ordenado segundo regras estabelecidas.
Nesse jogo de posições defmidas, o delegado Matos, representante do interior em
visita à capital, acompanha o desfile entre as autoridades do alto de uma sacada,
enquanto Antonio das Mortes, do outro lado da ma, assiste à marcha misturado no
meio do povo. Logo os dois estarão juntos para dar continuidade ao duelo entre os
poderosos de Jardim das Piranhas e os seguidores do cangaceiro e da Santa. Mas o
fora-da-lei, contratado pelo delegado para colocar fim às desordens provocadas pelo
bando de Coirana, acaba mudando de lado. Antes, porém, assiste-se a um longo
processo de transformação.
Ponto de virada da história do personagem, o duelo contra Coirana levará
Antonio das Mortes à revisão de seu papel de matador. Mas a idéia de luta, de luta
encenada como a que caracteriza o desafio, continuará informando a estrutura do
filme, cujas imagens fortemente estilizadas lembram este trabalho que seu objeto é a
própria representação.
O WESTBRN VISTO POR GLAUBER ROCHA
(0 TEATRO DA VIOLÊNCIA E O NOVO ESPECTADOR)
Mo filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, a preocupação com
o campo da representação está associada a um diálogo com o western que se caracteriza
pela extração das imagens do discurso cinematográfico habitualmente aceito e sua
transformação, a partir de elementos da cultura popular, em outras tantas interrogações
fundadoras.
No espírito do western, Glauber reencontrou o sertão brasileiro, inaugurando
um cinema agônico, onde a violência é sentida como um processo. Mas a violência
em O dragão da maldade não diz respeito (pelo menos de forma determinante),
como em outros trabalhos do cineasta, à dialética da montagem. Nesse filme, ao
contrário, por exemplo, de Deus e o diabo, fortemente influenciado pelo princípio
eisensteiniano do choque (AUMONT, 1996 : 111-29), a violência se concentra no plano,
na mise-en-scene. lvana Bentes chama a atenção para esse aspecto comentando sobre
a teatralidade de Terra em transe e do Dragão e sua radicalização nos filmes posteriores,
feitos fora do Brasil, O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas (BENTES, 1997: 43).
No último trabalho realizado pelo cineasta antes de sua partida para o exílio, o
teatro de Brecht aparece como referência. Admirável adaptação das teorias do
dramaturgo alemão ao contexto brasileiro, O dragão da maldade transpõe para a
realidade do Nordeste o efeito de distanciamento brechtiano, provocando, por meio
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
269
do impacto visual e auditivo das cenas, uma ruptura com aquilo que se admite como
regra dos filmes de suspense e ação.
Se o cinema convencional visa a um efeito de realidade pelo qual o espectador
é pego pelo seu desejo de ver, de saber e de desfrutar da ação, o "distanciamento"
consiste em frustrar esse desejo pela redução do movimento, pela apresentação de
um texto e de atores em uma paisagem, pela total exterioridade das figuras e do lugar.
A ocupação do espaço, a entrada e apresentação dos protagonistas, sua
participação na ação, a figura do coletivo e a sonoridade transgridem as convenções
do gênero a que, a princípio, o filme de Glauber parecia se vincular.
A violência no western clássico surge como um dado natural da ação, não do
pensamento. Nesses filmes se age de forma violenta contra a lei, na defesa da lei e os
personagens sofrem a violência ou agem violentamente sem que o espectador sofra
qualquer sobressalto moral por isso. Pois quem é bom, mata em nome da lei, e quem
é mau mata em nome da sua "maldade" ou sentimento de vingança individual.
(BENTES, 2003)
Glauber transcende essas convenções, mas as transcende ao mesmo tempo
em que as enriquece com uma mitologia própria. É isso, por exemplo, que está em
jogo em relação ao personagem de Antonio das Mortes:
(... ) ele está ligado à sua própria tradição cultural que é a de um matador, e ele se
reporta também a toda uma tradição do western (... )Em um western americano existe
já urna convenção estabelecida. Quando o herói aparece nós já sabemos quem ele é
por seu cavalo, por sua roupa: ele já porta todas as informações. Aqui, o herói não
pode portar informações porque nós não temos tradição cinematográfica ou literária
que fale disso. E isso talvez seja um limite para o cinema (DELAHAYE, KAST &
NARBONI, 1969: 34).
Nesse comentário, Glauber se refere a um herói estereotipado, cujo modelo
está sujeito a infinitas repetições. O herói de seu filme não pertence a essa linhagem,
embora se reporte a duas tradições enraizadas na memória popular: a do western e a
dos heróis imortalizados nas narrativas que circulam pelo sertão. Não há, no entanto,
o envolvimento do espectador, como acontece nos filmes do gênero.
Daniel Dayan, em sua análise de O tempo das diligências (Stagecoach, de John
Ford, 1939) comenta sobre esse envolvimento informando a este trabalho sobre vários
procedimentos de enunciação voltados para tal objetivo, ou seja, programar o espectador
(1984: 137-49).
Em Stagecoach, o desejo de conhecer o verdadeiro caráter do per::.onagem é
uma estratégia para manter o espectador interessado no desenrolar da história. Em
contrapartida, o que O dragão da maldade estabelece com o espectador é menos
uma relação de suspense do que uma relação de crítica face às imagens. A violência
270
ESTUDOS DE CINEMA
aqui não diz respeito à trama. Ela se endereça ao espectador que, diante do inusitado
concerto de formas, cores e sons, reage de modo diferente do espectador convencional.
Quanto ao enunciador, seu papel não é o de afetar emocionalmente o
espectador, levá-lo a se envolver com a história, com os personagens, mas de
provocá-lo em suas convicções, como ocorre, por exemplo, na cena da invasão do
Jardim das Piranhas pelo bando de cangaceiros e beatos seguida pelo desafio de
Coirana aos poderosos locais. Citada no começo do presente texto, essa cena mostra
Coirana na condição de desafiante, porém, sua atuação não lhe permite cumprir os
protocolos do desafio.
Ocorrido na praça central da cidade, o desafio protagonizado pelo cangaceiro
é precedido por um cortejo em que os movimentos dos participantes lembram
experiências rituais. Entre estes destacam-se a Santa, o Negro Antão e Coirana, a
quem caberá a tarefa de falar aos habitantes do vilarejo. A introdução de elementos da
esfera ritual na cena do desafio rompe, antes mesmo do seu início, com o efeito de
violência que caracteriza esse tipo de representação.
A cena é montada como uma espécie de teatro ao ar livre. Como se estivessem
em um palco, os personagens principais (a Santa, o negro, o professor, o delegado)
entram e saem do campo, caminhando silenciosamente de um lado para o outro ao
redor de Coirana, que no centro da praça aguarda o momento de falar. A câmera fixa,
posicionada frontalmente para os personagens, por um breve momento se desloca
em panorâmica sobre a praça mostrando o povo, que assiste calado ao episódio, e o
coronel que, apoiado em seu capanga, procura entender o que se passa. O plano é
interrompido, dando lugar a um quadro fixo em que Coirana, entre a Santa e o negro,
fala ao povo proclamando villgança aos seus inimigos.
As palavras do cangaceiro são endereçadas aos representantes do mal. Mas
não há oponente direto. Não há violência explícita. Não há ação nem suspense. Não
há vitória nem derrota. Marcado pela ausência de movimento, pelo excesso de gestos,
pela ênfase na palavra declamada, o desafio de Coirana aparece como uma recusa às
regras do desafio, ou melhor, da representação cinematográfica do desafio.
O modo como a cena é montada sugere uma aproximação com a técnica
desenvolvida pelos poetas populares durante suas disputas poéticas. Uma das práticas
correntes no desafio de cordel é a apresentação dos dois participantes antes de iniciada
a disputa.
Dirigida ao público mais do que ao próprio adversário, a apresentação é o
momento da performance em que os poetas falam de suas proezas ao mesmo tempo
em que insultam o oponente chamando-o de fraco, covarde, como, etc. Dependendo
da capacidade de improviso dos poetas, os insultos se estendem, o público se envolve,
dá risadas, apóia um dos cantadores, enfim, entra no jogo. Na verdade, tudo se passa
mesmo nesse nível, do jogo, do duelo verbal, da violência simulada, o que remete este
presente trabalho ao desafio de Coirana.
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
271
Em O dragão da maldade, o diálogo com uma instância de representação
estranha ao universo das convenções cinematográficas provoca no espectador um
efeito estranhamento, uma desorientação em relação à história contada. Trata-se de
um western? Trata-se da história de um vilão que vai se transformar em herói? O
filme é isso? O filme é só isso? O que é o filme?
CONCLUSÃO
Tentar descrever uma obra tão rica em referências quanto a que se está
analisando é tarefa quase impossível. Um ponto, entretanto, parece a este trabalho,
muito claro (praticamente todos os autores que escreveram sobre o filme o comentaram
embora sem uma análise específica à questão): o uso do cordel como elemento
articulador da narrativa. Isso tanto em relação a O dragão da maldade quanto em
relação a Deus e o diabo, onde a história narrada visa à repetição da história mostrada
por meio das imagens. Aqui, entretanto, não é isso que está em jogo, mas um recurso
à tradição popular do cordel, no caso, ao desafio de cordel, visando modificar o
sentido do desafio representado. Ponto alto dos filmes de faroeste, o desafio constitui
um elemento de referência para Glauber Rocha, que o representa, representando
outra tradição: a do desafio popular. Não se trata, portanto, de representação, mas de
representação da representação; uma espécie de teatralização do desafio.
Por meio do cordel, Glauber Rocha coloca em destaque o artifício da
representação, provocando a desmontagem do espetáculo convencional e as convicções
do espectador em relação ao seu conteúdo. É nesse sentido que Brecht é apropriado
pelo cineasta; uma apropriação que passando ao largo do próprio Brecht (em certos
filmes, critica Glauber, os atores ficam imóveis por vários minutos a fim de provocar
um incômodo no espectador) se dirige para tradições de hoje que, por sua vez, são
também desmontadas e apropriadas com novo significado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUMONT, Jacques. "Eisenstein chez les autres" in AUMONT, Jacques (dir.). Pour un
cinéma comparé- influences et répetitions. Conférences du College d'histoire de
I 'art cinématographique, Cinématheque Française, 1996.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1982.
_ _ _ _ _ Obras escolhidas 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1993.
BENTES, lvana. Cartas ao mundo: Glauber Rocha. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
272
ESTUDOS DE CINEMA
_;__ _ _ _ "Estéticas da violência no cinema". Revista Semiosfera, dez.2003. Disponível
em: http://www.eco. ufrj. br/semiosfera/anteriores/especial2003/conteudo_ ibentes.htm
DAYAN, Daniel. "Le spectateur performé". Hors Cadre-2- Cinénarrable-2, Presses et
publications de l'Université Paris VIII, Vincennes-St.Dennis, 1984.
DELAHAYE, Michel; KAST, Pierre & NARBONI, Jean. "Entretien avec Glauber Rocha".
Cahiers du Cinéma, n. 214, jul/ag, 1969.
GARDIES,André. Le récitjilmique. Paris: Hachette, 1993.
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. La littérature de cordel au Brésil- Mémoire de
voix, grenierd'histoires. Paris: L'Harmattan, 1997.
_ _ _ _ _ . Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento
Armaria/. Campinas: Ed. Unicamp, 1999.
ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie ora/e. Paris: Seuil, 1983.
300 torsos torneados
RAMAYANA LIRA DE SousA
(UFSC)
O SITE Internet Movie Database oferece alguns números a respeito de 300, de
Zack Snyder:
•
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•
•
•
•
Lançado em março de 2007
117 minutos de duração
Filmado a 50 e 150 frames por segundo
1523 cortes
1006 planos com efeitos visuais
Mais de 500 mortes
A palavra Esparta e seus derivados são citados mais de 70 vezes, ou seja,
uma vez a cada minuto e meio
• 300 torsos torneados. É a evidente ortopedia dos torsos: nus e musculosos,
desenhados nos corpos dos atores, através de treinamento espartano por
seis semanas antes das filmagens. E ainda a ortopedia digital: desenhados e
redesenhados pelos tratamentos de imagem.
Baseado na graphic novel de Frank Miller, o filme de Zack Snyder tem como
paradigma narrativo a história- real, mas aqui fantasiada- da Batalha de Termópilas,
no ano 480 a.C. Tomando partido por Esparta, a débil trama acompanha o rei Leônidas
e seu grupo de 300 homens defendendo sua terra contra o exército persa de Xerxes.
A despeito dessa tênue linha narrativa que celebra democracia e liberdade, o filme se
torna uma festa visual de tons fascistas permeada por jingoísmo, orientalismo,
machismo, homofobia e eugenia.
Busca-se neste artigo entender 300 como instância paradigmática da ambígua
direção que toma a cultura contemporânea: de um lado, a celebração dos simulacros
midiáticos espetaculares e a comunicação imediata; do outro, a fascinação com o real
274
ESTUDOS DE CINEMA
abjeto do corpo, da dor, da violência. 300 desafia o olhar do(a) espectador(a)
contemporânea ao dar corpo a imagens de exclusão/inclusão da "vida nua".
O cinema como arte e entretenimento sempre esteve nessa encruzilhada: como
lidar com sua natureza fluida, erradia e ao mesmo tempo entorpecente e transgressiva;
disciplina do olhar e instância de libertação do corpo. E o uso da conjunção e não é
acidental: não se trata de escolher uma ou outra função/qualidade, mas de entender o
que é esse fenômeno que engaja corações, corpos e mentes no desenrolar de imagens
em movimento.
Ver o cinema como narrativa e visibilidade, perceber a tensão entre o poder da
apresentação artística e a doxa da representação, olhando a fundo esses elementos
constitutivos do fílmico, observando os resíduos representativos que persistem em
cada obra, buscando o visível que excede à narrativa- essa tem sido uma importante
colaboração de Jacques Ranciere para os estudos de cinema. O regime da visibilidade,
tão caro à arte cinematográfica, não se desenvolve como "contrário", excludente da
estrutura narrativa, mas por causa dela, em contradição a ela. A relação entre os dois
elementos é, ao mesmo tempo, colaborativa e conflitual, uma relação às vezes latente,
às vezes violenta, mas que dá ao cinema muito de sua força.
O contraste entre o relativo fechamento do significado dentro da narrativa e a
abertura do visível acontece na própria imagem, e não necessariamente no intervalo
entre elas. Esses dois pólos não produziriam essencialmente dois tipos de imagem,
mas aspectos conflitantes de uma mesma imagem. Dois filmes que se misturam em
um só: um que conta uma história; outro que nos dá a experiência visual.
Em 300 é possível observar que a progressão dramática do esquema
Aristotélico é traída quando a câmera aprende informações e evoca sensações que
vão, ao mesmo tempo, contra essa progressão e em direções além do planejado
pelos autores da obra, e que têm pouco a ver com a narrativa. Tal tensão fica ainda
mais evidente quando se pensa, com Leo Bersani e Ulysses Dutoit, como a
narratividade tem caracterizado a cultura humanista ocidental. A narratividade,
segundo os autores, sustém o glamour da violência histórica. Ela produz uma noção.
de violência como algo isolado e identificável. A tradição humanista liberal nos treina
para localizar a violência historicamente, como uma excrescência, uma erupção no
plano de fundo de uma experiência humana geralmente não violenta (os autores
falam de uma "cumplicidade" entre violência e narratividade). Sob este ponto de
vista, a violência poderia ser compreendida através das circunstâncias em que ocorre.
A violência é então reduzida a uma trama, uma cadeia de eventos, que pode ser
isolada, entendida e, quem sabe, dominada e eliminada. Ao se condicionar a pensar
na violência em termos da narrativa, espera-se que esse domínio aconteça como
resultado do poder pacificador das convenções narrativas, como, por exemplo,
começos, explanações que vêm no meio da história e fins climáticos (BERSANI &
DlJTOIT, 1985: 47-51).
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
275
A cultura de muitos tende a seqüestrar a violência, imobilizando e centralizando
os atos históricos violentos e as produções estéticas. As relações atrofiadas dessas
imagens "privilegiadas" de violência com atividades adjacentes bloqueiam a possibilidade
de se relacionar com tais atividades e limitam a mobilidade e fluidez de nossa atenção
e interesse. A crítica da violência, na medida em que esta é concebida em termos de
cenas que podem ser privilegiadas, pode acabar por promover a redução e esvaziamento
que ela própria procurava expor ou afastar. Assim, a recepção da violência gravita
entre estes dois modos de atenção: uma visão narrativa que organiza as formas como
elementos de uma história, e uma visão mais agitada e errática, que substitui a integridade
estática e a unidade do ser por fragmentos em constante mutação.
Dessa forma, ao perceber que de tão implicados que somos na violência não
temos escolha entre o violento e o não violento, Bersani e Dutoit propõem que nos
restam, de um lado, os deslocamentos de um desejo móvel (dislocations of mobile
desire) e, do outro, uma fixação destrutiva pela violência (p. 22). O que procuram os
autores são estratégias de ver a violência que não coagulem a recepção na fascinação
imóvel e potencialmente fascista com a violência, mas formas de visão que façam
deslizar o desejo, empurrando-o para outras experiências não-miméticas.
Daí o desafio de falar dos corpos de 300. São corpos presos a uma narrativa
que dialoga claramente com estruturas do videogame. A trama se resume a uma série
de batalhas nas quais os protagonistas são levados a confrontos cada vez mais
complexos, como se estivessem "passando de fase", até chegar ao inimigo final
(Xerxes).
A aproximação com os videogames fica ainda mais patente ao se observar que
os efeitos especiais são onipresentes: no tratamento dos corpos, na distribuição da luz
e da sombra, no trabalho da cor, na organização da temporalidade dos movimentos,
na definição dos lugares que servem de fundo. O paradigma fotográfico mescla-se à
imagem fabricada, ficcionada. Falta-lhe a interatividade, é certo, mas a estrutura formal
e sua apresentação em imagens são bastante familiares para os usuários de Playstations
e Xboxes. Planos inteiros e planos médios aproximam o espectador dessas batalhas,
explicitando a regra do jogo: fique atento para como se elimina, não um a um, mas às
centenas, os antagonistas. O que poderia restar da trama, sejam as articulações políticas
da Rainha Gorgo, sejam as seqüências do acampamento de Xerxes, não passa de
"planos de cobertura" as imagens cinematográficas não interativas nos games que
constituem um interlúdio entre a "verdadeira ação". Assim, o filme progride com o
exército de Leônidas, marchando por sobre tudo, impulsionado pelo desejo de triunfo
final que vem em forma de martírio heróico.
É nessa narrativa acumuladora de cadáveres que se tem corpos de torsos
perfeitos, esses dos espartanos no filme de Snyder. Sim, o filme é um balé
supermasculinizado, uma celebração de decapitações, abdómens 、・ウョセ。ッL@
empalamentos e monstruosidades. Talvez seja um dos filmes mais agressivos na
276
ESTUDOS DE CINEMA
memória recente: a maior parte das falas é gritada ou grunhida por entre os dentes, os
problemas se resolvem a punhaladas.
O corpo masculino é uma festa para os olhos: seminu, suado, sem pêlos, liso,
pétreo. Sem esquecer, vale repetir, que é uma imagem ciborgue: meio mecânica, meio
digital, figurando o macho perfeito, o corpo construído - em inglês, ainda mais
flagrantemente, pelo uso da expressão body-builders. Há um óbvio débito com os
filmes de gladiadores dos anos 1950 e 1960, os chamados sword and sandals
movies, 1cujo maior atrativo eram os homens de peito nu, em sumaríssimas saias, não
raro, vermelhas, flexionando os músculos e franzindo o cenho enquanto lembravam
de suas falas. Vários dos atores protagonistas destes filmes eram fisiculturistas, dando
corpo ao movimento de cultura física responsável por grande parte da reinvenção do
corpo masculino após a Segunda Guerra Mundial. Havia, no entanto, nesses
antecessores de 300, uma relação com a cultura gay estadunidense, já que publicações
de fisicultora associadas ao público gay (por exemplo, Physique Pictorial) emprestavam
não apenas a estética do corpo construído, mas também os modelos que se tomavam
atores nesses filmes.
Esse pertencimento a uma subcultura não parece ser característico de 300.
Não há espaço para 'deslizamentos' do desejo: as imagens dos corpos produzem
sujeitos heterossexuais que desprezam os "boy lovers" atenienses. Se, por um lado,
300 mostra os torsos torneados que atraem, entre outras, a platéia adolescente masculina
através de corpos masculinos violentos e sexy, por outro parece dizer para essa
mesma platéia que não há problema nenhum em ser homofóbico. A tensão entre·
visibilidade e narrativa permite ver que 300 quer ser um filme "sarado": corpinho bem
definido, sim, mas nunca "doente". Excitar com as imagens do corpo desejável, mas
negar narrativamente que esse desejo seja apropriado pelo "patológico" homossexual.
Presentear com a imunização contra o corpo teratológico.
Pois é no corpo dos inimigos que se apresentam as deformidades mais evidentes.
Os traidores, os corruptos, os maus, todos possuem no corpo as marcas da vilania de
suas personalidades. Para isso têm servido as figuras dos monstros em nossa cultura:
para amalgamar os dejetos do não-aceito: sexualidade, nacionalidade, classe. A fúria
uterina da vampira lésbica, o exílio forçado de Frankenstein, a fala raptada de Caliban
são exemplos dessas produções culturais que redefinem um outro que não pode ser
humano, que é menos que humano.
De forma semelhante, o corpo 'feminilizado" é destruído em nome da
masculinização do universo diegético. A curvilínea rainha Gorgo, única personagem
1. Os filmes de "espadas e sandálias" (sword and sanda[), também conhecidos por Peplum, em
referência às curtas saias utilizadas pelos personagens, constituíram um gênero cult nas décadas
de 1950 e 1960, explorando a cultura física e temas históricos relacionados a gladiadores e
semideuses gregos, como Hércules.
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
277
feminina com falas, é estuprada em episódio interpolado à graphic novel de Frank
Miller. Mas talvez a mais representativa instância de problematização desse corpo
"feminilizado" esteja na caracterização de Xerxes e seu séqüito. A drag queen criada
no corpo de Rodrigo Santoro é diametralmente oposta à "masculinidade" de Gerard
Butler. Xerxes é, literalmente, produzido "como maior do que a vida", balangandãs
dourados adornando sua figura bem-defmida, mas esguia em comparação aos guerreiros
espartanos. Seu encontro com Leônidas é praticamente uma sedução, com promessas
de glória sussurradas ao pé do ouvido. A ambígua caracterização de Xerxes, ao mesmo
tempo tão lindo e tão decadente, sedutor e autoritário, acaba, porém, na afirmação de
sua condição de estrangeiro. Comandante das hostes bárbaras que se engargalam nas
Termópilas, é preciso desbancá-lo. Afinal, estes são tempos em que o sentido de
comunidade se afasta, fecha-se ao reconhecimento do outro, reforçando a fortaleza
que o isola do contágio do outro.
A estrutura que determina a eliminação do inimigo remete às preocupações de
Roberto Espósito a respeito da imunização na política contemporânea. De acordo
com o filósofo italiano, tem-se, de um lado, todo o aparato institucional, a partir do
Estado, das formas jurídicas. De outro, toda a organização territorial, as comunidades
étnicas identificadas por um elemento comum, seja o território, a língua, a religião, a
cultura. Estes grupos, culturalmente ou territorialmente definidos, tendem a se fechar,
a se imunizar com respeito ao exterior.
Em entrevista ao si te Educa, Espósito explica que o eu de fato traz consigo um
caráter de constante desenraizamento, que a modernidade procurou apagar com uma
dialética destrutiva do eu e do outro que continua a determinar a dinâmica sociopolítica
em grande parte do mundo. A idéia do estrangeiro assume conotação de perigo, de
risco, não só social, mas também simbólico e médico. De onde vem a percepção
"imuno-lógica" da relação desse outro com a promiscuidade, a contaminação, o
contágio com o imigrante, a idéia do risco jurídico de ataque à propriedade. Esta
corrente de metáforas do "outro", como infecção que vem do exterior, tem efeitos
que se revelam destrutivos do outro, mas também autodestrutivos.
Em 300 não é só a Esparta, diegética, mas os corpos são imunizados desse
contato com o outro, o estrangeiro, o medo do que vem de fora. São os escudos que
rechaçam o contato/contágio. Metáforas para um corpo que cada vez mais se fecha
em si mesmo. Corpos sarados.
300, acredito, participa da construção de um imaginário que retoma/vinga a
biopolítica no sentido foucaultinano. Se é possível pensar a biopotência em termos
positivos, o filme obriga o retomo ao sentido primeiro. Peter Pal Pelbart entende o
biopoder, a partir de Foucault, como uma das modalidades de exercício do poder
sobre a vida, sobre a população enquanto massa global afetada por processos de
conjunto. Por outro lado, fala de uma inversão, em parte inspirada em Deleuze, do
sentido do termo forjado por Foucault: biopolítica não mais como o poder sobre a
278
ESTUDOS DE CINEMA
vida, mas como a potência da vida. A biopolítica como poder sobre a vida tomaria a
vida como um fato, natural, biológico, como vida nua, segundo Agamben, como
sobrevida. Em contrapartida, a biopolítica concebida como potência de variação de
formas de vida equivale à biopotência da multidão, tal como referida acima.
300 figura a vingança da biopolítica, imaginando o seqüestro do corpo pela
norma. Apresenta, assim, uma forma de divisão do sensível que pode ser entendida a
Os atos estéticos configuram experiências que
partir das formulações de r。ョ」ゥエセイ・N@
"ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas de subjetividade política",
(RANCIERE, 2005: 11) sendo a política "a atividade que tem por princípio a igualdade ·
e o princípio da igualdade transforma-se em repartição das parcelas de comunidade
ao modo do embaraço", um "embaraço que é próprio da política" (RANCIERE, 1996:
11). Tal concepção do sensível remete a um regime de verdade, que traz a estética
como base para a política: uma "partilha do sensível", isto é "uma partilha de espaços,
tempo e tipos de atividades", que torna visível quem pode tomar parte no comum em
função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce
(RANCIERE, 2005: 16).
Os enunciados estéticos (ou políticos) fazem efeito no real por meio da definição
de modelos de palavra ou ação e de regimes de intensidade sensível, traçando mapas
do visível, trajetórias entre o visível e o dizível e relações entre os modos de ser, fazer
ou dizer, definindo variações de intensidade sensíveis, das percepções e capacidade
dos corpos.
O estético, assim, não toma o lugar do político. Não se trata exatamente de
uma estetização da política que se opõe à politização da arte, já que ambas, arte e
política, estão engajadas na abertura ou no reforço do consenso de que há uma única
realidade, um espaço, um tempo: o espaço tempo do mercado.
A ópera que é 300 (pois é tão historicamente verossímil quanto a Aída de
Giuseppe Verdi e produz tanto "efeito de realidade" quanto os estertores de Violeta em
La Traviata) nos põe diante dessa tarefa que nunca acaba, que nos precede e nos
ultrapassará na sua importância e urgência para os modos de ver e de viver. A tarefa
de ver a produção da cultura dando corpo ao que se faz como pÓlítica, dividindo
espaços entre os que podem ser e aparecer e os que não. Tomando visíveis essas
formas de inclusão e exclusão, o cinema se revela em sua ambigüidade. Narrativas
que imobilizam o olhar e fetichizam a violência, corpos que modelam - mas nunca
modulam- uma masculinidade. Talvez seja este o grande desafio. Ver além dessa
modelagem e buscar nas imagens possibilidades de deslizamentos. Corpos que se
mostram e se contam de formas diversas.
INTERFACES COM OUTRAS PARTES
279
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VISUALIDADES
Recursos poéticos em Amor à Flor da Pele
GENILDA AzERÊDO
(UFPB)
AMOR À FLOR DA PELE (2000), de Wong Kar-Wai, é um filme que se impõe
como objeto estético, construído a partir de signos que chamam inicialmente a atenção
sobre si próprios (em vez de primeiramente apontarem para uma realidade fora deles).
Dentre os vários recursos poéticos utilizados no filme, destacam-se sobretudo aqueles
associados à plasticidade; ao movimento das imagens; à utilização da música no
processo de revelação da interioridade dos personagens; ao investimento, de um lado,
na elipse, e, de outro, na reiteração e redundância. Como tentaremos mostrar ao
longo do texto, a ênfase nestes aspectos será responsável pelo adensamento da
ambigüidade e flutuação de significados, de modo a demandar do espectador um
olhar demorado e repetido.
Falar em função poética da linguagem significa trazer à tona as considerações
de Roman Jakobson (1995) e Jan Mukarovsky (1978), contidas em "Lingüística e
poética" e em "A denominação poética e a função estética da língua", respectivamente.
Em ambos os textos, há uma preocupação por parte dos teóricos em caracterizar e
defmir a função poética ou estética, levando-se em conta alguns fatores: primeiro, a
função poética não se restringe à linguagem verbal; como diz Jakobson, "numerosos
traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda teoria dos
signos, à semiótica geral" (199 5: 119). Segundo, a função poética deve ser considerada
sempre em diálogo com as outras funções, inclusive numa relação de interdependência
para que seu significado possa ser enriquecido, adensado. Terceiro, e sobretudo com
base na inter-relação entre as funções, a função poética se define pelo seu modo de
inserção no contexto. Nas palavras de Mukarovsky, "contrariamente ao que acontece
na língua comunicativa, há na poesia uma destruição da hierarquia das relações: naquela,
a atenção concentra-se na relação, importante do ponto de vista prático, entre a
denominação e a realidade; nesta, é a relação entre a denominação e o contexto
284
ESTUDOS DE CINEMA
abrangente que está em primeiro lugar" (1978: 161 ). Considerando tais fatores, chega
a ser redundante falar em função poética quando tratamos do objeto artístico, uma
vez que é esta função a responsável pelo próprio status desse objeto enquanto artístico;
assim sendo, estará presente em todo texto que se defina como tal. Porém, é através
do processo de análise que a função poética pode não apenas ser desnudada e ressaltada
em relação às demais, mas também revelada em seu modo de concretização; sobretudo
no presente caso, quando se trata .de um filme em que paradigma e sintagma, ou
metáfora e metonímia, são tão eloqüentes em suas justaposições e modos de articulação
e montagem.
Quando pensamos em função poética no cinema, lembramos imediatamente
de cineastas, que não só desenvolveram um "cinema de poesia" (para usar a expressão
de Pasolini), mas que também refletiram teoricamente, metalingüisticamente, sobre o
que seria esse cinema dito poético: além do próprio Pasolini, nomes como Eisenstein,
Epstein e Bufiuel constituem referências. 1 Porém, para além de uma definição do
cinema de poesia, quando nos debruçamos sobre as reflexões desses cineastas,
concluímos que suas preocupações e argumentos contribuem de modo decisivo para
o aproveitamento e experimentação das próprias potencialidades e peculiaridades da
linguagem filmica. O texto "Cinema: instrumento de poesia", de Bufiuel, constitui
exatamente uma reivindicação veemente para que o cinema assuma a sua vocação
para a produção e criação de textos que "ampliem a realidade tangível", através
sobretudo da exploração da "afetividade presente nos objetos" (1983: 33 7) e da
"articulação entre o fantástico, o misterioso e a realidade cotidiana", a fim de tomar
visíveis os "problemas fundamentais do homem moderno" (idem: 337). A utilização
do cinema como expressão artística, como instrumento de poesia, para Bufiuel, deve
ser compreendida "com todas as possíveis implicações desta palavra [poesia], no
sentido libertador, de subversão da realidade, de limiar do mundo maravilhoso do
subcónsciente, de inconformismo com a estreita sociedade que nos cerca" (idem: 333-4).
Em termos específicos da linguagem fílmica, o poético vai encontrar
セ。エ・イゥャコ ̄ッ@
em recursos diversos, a exemplo de um tipo de montagem que valoriza,
ão modo de Eisenstein, a colisão e o conflito, a chamada montagem expressiva. Para
Eisenstein, é a tensão, "o conflito [que] está na base de toda arte" (1992: 133): conflito
entre planos, volumes, profundidades, temporalidades; conflito entre o evento e sua
duraÇão; conflito entre imagem, situação ótica e sonoridade (idem: 134). Não é à toa
セオ・@
na raiz deste raciocínio está o princípio representacional da cultura japonesa,
セクイ・ウッ@
pelo ideograma, pelos haikais e seus efeitos imagísticos.
L ·Na área de cinema (d)e poesia, é importante registrar as contribuições, no Brasil, de pesquisadores
{' Vll!iados, a exemplo de CANIZAL (1996), MACIEL (2004), SAVERNINI (2004) e AGRA
_ (2005). Ver referências bibliográficas.
VISUALIDADES
285
Um outro recurso que serve de ancoragem para a poeticidade no cinema reside
na concepção de fotogenia, desenvolvida por Epstein a partir de Canudo e Delluc
(apud Salles, 1988: 60). Referindo-se às características do cinema de Epstein, Salles
menciona a "personalização da imagem" (idem: 59) como princípio primeiro, ou seja,
a propriedade de dotar "as aparências captadas pela câmera de uma densidade
psicológica e sentimental" (idem: 59). Esta seria uma das formas de compreensão da
fotogenia: personalizar a imagem de modo a "encharcar a própria aparência da realidade,
nos seus aspectos mais prosaicos e veristas, de um halo de emoção humana" (idem:
59). Na verdade, a preocupação de Epstein com o "valor psicológico da imagem"
serve de transição para a atribuição do seu valor estético, culminando na própria
noção de fotogenia que, para conCretizar-se, além da personalização, depende da
mobilidade do objeto no espaço-tempo (idem: 60).
Essas considerações teóricas iniciais se fazem pertinentes para uma primeira
aproximação com o filme Amor à Flor da Pele, que se constrói a partir de uma
linguagem densamente diferenciada quanto à manipulação dos recursos cinemáticos.
De fato, trata-se de um filme em que o modo de estruturação é inicialmente mais
visível e eloqüente que sua temática (disso decorre a prevalência da função poética e
a tendência à interiorização da experiência), embora tal sofisticação se justifique
exatamente em sua funcionalidade para a expressão das implicações psicológicas e
ideológicas suscitadas no I pelo filme. É o caso, por exemplo, da utilização recorrente
da câmera lenta; de enquadramentos não convencionais (a exemplo da recusa ao
campo-contracampo), que desnorteiam o espectador; do uso de repetição de cenas,
por um lado, e de elipses, por outro; da ênfase na visualidade - ou o que Deleuze
define como "situações puramente óticas" (2005: 9-36); da tensão que é criada entre
a contenção verbal, no que se refere ao silêncio dos personagens centrais, e o
transbordamento emotivo provocado pela música (sobretudo aquelas de tradição latina,
a exemplo de "Aqueles olhos verdes").
escrito na tela, no início do filme. O texto diz assim:
Há a presença de um texto カ・イ「。セ@
O encontro foi constrangedor
Ela ficou de cabeça baixa
Esperando ele se aproximar.
Ele não veio, faltou coragem
E então, ela se foi.
Este texto introdutório, que pode ser visto como tendo uma função de prólogo,
alude a um encontro amoroso que não aconteceu. O texto também faz referência aos
sentimentos de constrangimento pela espera de alguém que não veio e à falta de
coragem como responsável pelo não encontro entre um homem e uma mulher,
culminando na separação de ambos. Embora lacônico e reticente, quando considerado
286
ESTUDOS DE CINEMA
(numa leitura retroativa) em relação ao contexto geral do filme, tal texto introduz
elementos embrionários que serão desenvolvidos ao longo da narrativa: a trajetória de
cumplicidade e eventual paixão entre o casal protagonista, que não se materializa na
realização do desejo. A esse respeito, é interessante observar a adequação do título, In
the moodfor love, dado ao filme em inglês, na medida em que flagra a experiência em
sua possibilidade de vir-a-ser, enquanto potencialidade.
; A história diegética do filme se passa na Hong Kong de 1962 e constrói-se a
partir do envolvimento gradual entre um casal (senhor Chow e senhora Chan), que
aos poucos descobre que seus respectivos parceiros estão viveneiando uma relação
desde o início, por não mostrar o casal de amantes, que só
clandestina. O filme ッーエセ@
"aparece" ou apenas através da voz, ou de costas (no caso da mulher), portanto, de
forma reduzida, metonimizada; o casal de amantes também se faz "presente" de modo
indireto, através das .reações de seus respectivos companheiros. Tal escolha de
estratégia- que poderíamos denominar de "elipse de estrutura" (MARTIN; 2003: 77)
-já indicia o olhar que será lançado sobre o conflito: não são os amantes que têm
visibilidade na narrativa, mas o casal que se sente enganado. Trata-se, na verdade, de
uma elipse gue possui-motivações atreladas ao próprio modo de estruturação do enredo.
Essa troca deparceiros é metaforicamente sugerida (e antecipada), através da troca
dos objetos pertenéente·s aos dois casais. Numa das cenas iniciais do filme, que mostram
as duas famílias se mudando para quartos alugados no mesmo prédio, há uma constante
confusão em relação aos objetos que cada casal possui. Frases do tipo, "o quarto não
é esse, erramos de: novo"; "esses sapatos não são meus, devem ser da vizinha"; "esse
armário não é meu"; "esses livros não são meus; errado de novo" já constituem um
foreshadoWing, ,da miscibilidade existente (embora ainda velada para dois dos
envolvidos), entre aquelas vidas. O uso dos objetos como metonímia para representar
o envolvimento. entre o casal de amantes ainda se fará presente através do
reconhecimento (em momento posterior), por parte do casal enganado, da bolsa e da
gravata repetidas, iguais.
O· processo de desconfiança e a eventual descoberta do casal de que está
sendo enganado por seus respectivos parceiros acontecem de modo simultâneo e são
facilitados pelos comentários dos habitantes do prédio em que passam a morar. Em
crítica sobre o filme, Almir Freitas (2001: 39) se refere ao contexto histórico daquela
Hong Kong (década de 60), em que, devido aos problemas políticos e econômicos
(transição entre "fim da tutela britânica e a conseqüente anexação por Pequim"), os
imigrantes de Xangai se viam obrigados a alugar quartos, algo que, no caso deste
filme, ganha realce quanto ao emaranhado entre o contexto público e o conflito privado.
A proximidade entre os moradores favorece a intromissão de um na vida do outro.
Sempre há algum morador que menciona algo do tipo, "não sei se devo lhe contar. Vi
sua mulher na rua ontem. Estava com um homem". Percebe-se que são sujeitos
socialmente guiados por códigos de comportamento bastante convencionais,
VISUALIDADES
287
tradicionais, moralistas. E há um controle e constante vigilância, por parte dos vizinhos,
quanto ao horário que se chega e se sai de casa, quanto à rotina que cada um vi vencia.
A este respeito, dois aspectos são relevantes: a recorrência da imagem do relógio de
parede, muitas vezes justaposto aos diálogos dos personagens, como índice de
temporalidade física, cronológica, real (algo que pode ser mensurado, controlado); e
a inversão do drama que as "vítimas" agora vão experienciar. Quando se descobrem
abandonados por seus parceiros, passam a se sentir iguais em sua dor, algo que
favorece a cumplicidade e a eventual reciprocidade de sentimento entre eles. Porém,
como conseqüência, o foco da vigilância por parte dos vizinhos agora desloca-se
para eles que, de vítimas de "traição", passam a se sentir como passíveis de realizar o
mesmo ato, ou seja, de também desenvolverem uma relação amorosa clandestina.
Uma das características mais marcantes deste filme é a substituição- ao modo
de Deleuze- de "situações sensório-motoras", que defmem a relação imagern-ação
do filme realista, por."situações puramente óticas e sonoras" (2005: 12). 2 Na verdade,
as palavras de Deleuze reverberam parte do que diz Epstein a respeitó da fotogenia:
"( ... ) os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônoma que os faz
valer por si mesmos.( ... ) não só o espectador mas também os protagonistas precisam
investir os meios e os objetos pelo olhar( ... )" (DELEUZE, 2005: 13).
Ou seja, se na tradição realista clássica, a situação se materializa através da
ação, num filme como Amor à Flor da Pele, são antes os sentidos que precisam ser
investidos, explorados, tomados canais de conhecimento. O cineasta Karim Alnouz
afirma que "os filmes orientais [a exemplo de Amor à Flor da Pele] recuperaram o
tempo de permanência do olhar. Eles permitem que o espectador passeie os olhos pela
tela ( ... )". Ainda segundo Alnouz, "o cinema parecia ter perdido a capacidade de
observar o mundo; os orientais conseguiram trazê-la de volta" (apud CALIL, 2005:
40). 3 Para exemplificar essa escolha estética, são várias as cenas do filme que expressam
situações em que muito pouco é falado, muito pouco acontece, em detrimento do que
é visualmente expresso. De novo, creio que podemos fazer uso da consideração de
Deleuze a respeito dos silêncios e vazios: "tempos mortos que recolhem o efeito de
alguma coisa importante" (2005: 24). Por exemplo, a utilização da câmera lenta neste
filme, usada de modo recorrente, acaba por dotar o recurso de valor simbólico. Quase
sempre acionada para registrar o percurso da personagem para comprar comida,
reflete a lentidão do passar do tempo para alguém que, embora casada, não só passa
2. Embora a discussão de Deleuze tenha como foco as diferenças entre o realismo e o neo-realismo,
creio que várias de suas reflexões contribuem para nma compreensão da proposta estética, presente
em Amor à Flor da Pele e em filmes que com ele se alinham esteticamente.
3. O filme, O céu de Suely, deArnouz, serve como ilustração desse investimento estético na lentidão
e nas situações óticas, e da conseqüente permanência do olhar.
ESTUDOS DE CINEMA
288
a maior parte do tempo sozinha, mas também faz as refeições sozinha. As imagens
em câmera lenta são também pontuadas pela mesma música - lenta, potente e triste
(constituindo um refrão) - adensando, desse modo, a carga dramática da situação em
que vive, estoicamente, a personagem. Um outro exemplo diz respeito às cenas
recorrentes no mesmo espaço da rua e do beco escuro, quando os personagens estão
a caminho de casa, geralmente ao final do dia. De novo, são situações aparentemente
sem ação, sem movimento, marcadas pela estagnação. Às vezes, a presença da chuva
os força a esperar, e a presença de grades cercando o local, bem como o modo de
enquadramento dos personagens, acabam por dotar aquele espaço de significações dramáticas,
metafóricas, que denotam o caráter de confmamento e opressão de suas vidas.
Outro elemento que afeta substancialmente o caráter poético desse filme diz
respeito às manipulações temporais, sobretudo aquelas que apontam para um tempo
futuro, ou que tentam reconstruir situações passadas: em três momentos específicos,
o casal (já claramente vivendo uma situação de paixão) ensaia e encena situaçõeslimite, que nunca vêm a acontecer de fato; no entanto, como o espectador não dispõe
de nenhum elemento de transição entre um tempo e outro, e de início não há nada que
indique tratar-se de um ensaio, ele é pego de surpresa, e por um momento acredita na
"veracidade" da imagem e da situação que a imagem revela. Os ensaios inicialmente
dramatizam diálogos que imitam o tipo de conversa que o casal de amantes teria tido:
"É tarde. Sua mulher não vai reclamar?"
"Ela está acostumada. Ela não liga." "E seu marido?"
"Ele deve estar dormindo."
A encenação dos diálogos mostra - a exemplo da lição da psicanálise - que
verbalizar é vivenciar, que linguagem é ato, experiência; neste caso, os protagonistas
não conseguem atingir o distanciamento advindo do fingimento; como conseqüência,
seus diálogos "ensaiados" são acompanhados das emoções de sofrimento que estão
por trás das sensações de abandono e rejeição, uma vez que o trauma, sendo de novo
acionado, faz com que a experiência seja outra vez revivida, ressignificada. Outro
efeito que a encenação dos diálogos provoca é o deslocamento da ação de "trair".
Num primeiro momento, o conteúdo dos diálogos parece referir-se ao casal de amantes;
porém, à medida que a narrativa se desenvolve e a relação de cumplicidade entre o
senhor Chow e a senhora Chan se aprofunda, é como se agora os diálogos - embora
ensaiados- dissessem respeito aos seus próprios sentimentos, tomando-se, portanto
(tal como no diálogo psicanalítico), um modo de (re)conhecimento deles próprios.
De acordo com fala do próprio personagem: "Só queria saber como tinham começado.
Agora já sei. As emoções podem nos pegar de surpresa". Desse momento em diante,
os ensaios defmitivamente dramatizam seus próprios sentimentos, e agora possuem a
função de prepará-los para a despedida definitiva. Ironicamente, quando o senhor
VISUALIDADES
289
Chow a consola (este é um momento único, de máximo transbordamento emotivo no
filme), dizendo, "É só um ensaio. Isto não é real", o choro e o abraço contradizem
sua constatação. E quando, no táxi, já estão a caminho de casa, e ela confessa, "não
quero ir para casa hoje", o detalhe visual das mãos entrelaçadas ainda reforça uma vez
mais o extremo da situação irônica em que foram enredados.
A utilização de músicas da tradição latina (por exemplo, "Aqueles olhos verdes"
e "Quizás, quizás, quizás") também é marcante num filme que possui um tom de
contenção e que cria significados de modo tão alusivo e oblíquo. As músicas com
letra, em seu transbordamento melodramático, servem de contraponto ao tom contido
e ao comportamento conservador do casal, que, como eles próprios informam, "são
pegos de surpresa em suas emoções". É como se as músicas revelassem seus
sentimentos, dizendo-nos aquilo que eles não ousam expressar. De modo significativo,
o recurso às canções é ressaltado quando o envolvimento entre o senhor Chow e a
senhora Chan já transcendeu a relação de amizade, e eles já se sentem arrebatados por
uma intimidade afetiva e de desejo.
Toda a tensão entre ação (amantes "reais") e não-ação ("não seremos como
eles") por parte dos dois casais; visibilidade (amantes em potencial) e invisibilidade
(amantes de fato); ênfase nas situações óticas (imagens eloqüentes, embora marcadas
pelo silêncio e "tempos mortos") e ausência de ação I situações motoras; deslocamento
da sensualidade e do desejo para as canções- tudo isso é, em certo sentido, arrematado
ao final do filme com a lenda sobre o segredo. Diz o senhor Chow: "Antigamente, se
alguém tinha um segredo e não queria contar a alguém, sabe o que ele fazia? Ia a uma
montanha, achava uma árvore, fazia um buraco nela e sussurrava o segredo no buraco.
Depois cobria o buraco com barro e o segredo ficava lá para sempre". A história
sobre o segredo é primeiramente narrada. Num segundo momento, o espectador se
depara com a visualização e dramatização da história. E há um contraste efetivo entre
a vulnerabilidade do senhor Chow, a contar seu segredo à parede do templo (de novo,
o ato de verbalizar como catarse), e a imponência e perenidade daquele espaço, marcado
pela presença de pedras grandiosas, das paredes ancestrais de um templo e da própria
montanha que as abriga. Em determinado momento, a visão do espectador coincide
com a visão de um monge, que observa senhor Chow lá do alto, e a perspectiva em
plongée, que reduz o tamanho do senhor Chow, contribui para adensar ainda mais
sua impotência e desamparo. A música agora tem conotações religiosas, transcendentais
e constitui mais um elemento para que consideremos a verbalização do segredo, como
um ritual. Um ritual de passagem para outro tempo, já que "aquele tempo passou.
Nada do que pertence a ele existe mais". E é com outro trecho verbal, de novo escrito
na tela, que o filme conclui:
Ele se lembra dos anos passados
Como se olhasse por uma janela embaçada
290
ESTUDOS DE CINEMA
O passado é uma coisa que ele vê mas não toca
E tudo que ele vê é borrado e indistinto.
Não ouvimos (apenas vemos) o senhor Chow contando seu segredo. E nem é
necessário. Essa é mais uma elipse que se coaduna com o cinema de Wong Kar-Wai;
um cinema, segundo Walter Salles (2003), do não-dito, um "cinema sussurrado e poético".
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SAVERNINI, Érika. Índices de um cinema de poesia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
Efeitos visuais como marcas de
falsificação na obra de Sokúrov
ELIANNE
Ivo
BARROSO
(UFF)
O ESPECTADOR, ao assistir às imagens do russo Aleksandr Sokúrov, não
consegue ficar indiferente. Trata-se de um contato visceral e muito perturbador. Cada
plano lembra uma pintura, adensada por luzes e cores. Em alguns casos, a imagem
fica distorcida, re-interpretada em função de superficies refletoras, ora, as suas cores
e sombras são propositalmente acentuadas, redimensionando o espaço filmico.
Além da marca pictórica do cinema de Sokúrov, as histórias são tênues e se
atêm, às vezes, apenas ao título e à sucessão dos poucos e duradouros planos. Esta
fragilidade narrativa aliada à penúria ou ao excesso dos elementos cinematográficos
leva o espectador a um estado catártico enquanto a adulteração e a acentuação dos
efeitos visuais acrescidos das interferências sonoras provocam no espectador um
"transe estético" (MACHADO, 2002: 45).
Para discorrer sobre estas questões, este trabalho apresenta duas obras do
diretor: Mãe e filho (Mat i Syn, 1997) e Arca russa (Russkiy Kovcheg, 2002).
PERDA DA MATERIALIDADE E IMPLICAÇÃO
EMOCIONAL DO ESPECTADOR
Na filmografia de Sokúrov, Mãe e filho aparece como um díptico a Pai e filho
(Otiels i syn, 2003). O primeiro título se passa no campo e os únicos personagens são
mãe e filho. Ela aparenta estar gravemente enferma. A relação dos dois é afetuosa,
mas mergulhada em uma atmosfera melancólica e fúnebre.
O cenário do segundo longa-metragem é urbano e o elenco não se restringe ao
pai e filho. A enfermidade é substituída por uma virilidade com corpos musculosos e
saudáveis que se tocam, se acariciam, se chocam, mas que temem igualmente a
292
ESTUDOS DE CINEMA
perda de um e de outro. Nas duas obras, a tentativa é registrar o sentimento etéreo
que liga os pais aos filhos.
Tanto um como o outro lança mão de efeitos óticos. Mãe e filho chama a
atenção pela fotografia sem relevo e distorcida, renegando a tridimensionalidade da
tela cinematográfica. A intervenção na imagem é feita ainda na filmagem com a utilização
de espelhos e de prismas. 1
A cena inicial é marcante neste sentido, já que o plano parece deformado em
relação à perspectiva. A imobilidade da mãe e do filho deitados na cama durante
alguns segundos reforça uma falsa sensação de fixidez. A imagem é planar. A fonte
luminosa provém de uma luz natural, advinda de uma janela. Escutamos acordes
musicais e o estalar da madeira no fogo.
O que vemos foi certamente adulterado em relação à cena original. A captação
da imagem foi intetrnediada por acessórios óticos que "perturbam" um registro
fotográfico mais acadêmico. Há um incômodo na representação tridimensional do
visível que se opera pela sua distorção e que gera uma perda de materialidade e leva à
cumplicidade emocional do espectador (ARNAUD, 2002, p.344).
Seguem-se planos da casa e do campo em tons primaveris. Destaca-se, ao
fundo de uma das paisagens, uma fumaça de trem que é identificado apenas pelo som
do motor de uma locomotiva que se mistura ao vento e ao som dos pássaros. Uma
panorâmica lenta, que vai de algumas árvores à entràda da casa, deixa entrever o filho
que desce a escada com a mãe ao colo. Ele a deita em um banco e mais uma vez a
imagem sem nenhum volume mostra o gesto singelo do filho levantando a cabeça da
mãe para lhe fazer repousar sobre seu braço. O rapaz lê o verso de postais antigos. A
mulher suspira e, incomodada por algum sofrimento, pede para sair dali. Os dois
passeiam em meio à paisagem, a relva é fortemente esverdeada e o céu encoberto
pelas nuvens.
As imagens da natureza são vigorosas e imponentes. O espectador é submetido
a unia suspeição e mal-estar. Há um esvaziamento narrativo e se é confrontado com
um profundo e doloroso silêncio dos personagens. Nada se passa. A mãe está
depauperada e o filho consumido pela eminência da perda. Mostra-se apenas a
.singularidade de alguns gestos que ecoam diante da ausência ou apagamento de qualquer
ação mais efetiva.
As imagens são explicitamente influenciadas pelo romantismo de Caspar David
Friedrich. O pintor do romantismo alemão é reconhecido por suas paisagens que
estão em Mãe e filho. Elas estão ali como uma reminiscência, uma presença em
'
·l. Segui:ldo Boullay (1985, p. 75), espelho é uma superficie refletora e plana na qual a imagem se
forrna simetricamente. Já o prisma é um bloco ótico, transparente, pouco dispersivo e limitado
P,?r ヲセ・ウ@
planas. Uma das delas é usada para a entrada do feixe luminoso e outra para a sua
reflexão. As multi-facetas servem de superficies refletoras.
VISUALIDADES
293
movimento. Apesar do tempo, a obra de Friedrich ainda permanece viva e fresca para
sempre, se reinventando no cinema de Sokúrov. Parafraseando o próprio cineasta em
Elegia de uma viagem (Eléguia dorógui, 2001), ao final do filme, logo depois de
deslizar sua mão pelo nome do pintor Pieter Saenredam e pela data de 1765, projeta
sua sombra sobre a tela do mesmo autor, Praça de Santa Maria em Utrecht, e diz:
"Mas a tela ainda está quente".
Sokúrov é atormentado por um passado distante, por lembranças de um tempo
não vivido que insistentemente se re-atualizam em seu cinema. Tanto o filme como as
pinturas de Friedrich não pertencem à categoria do belo, eles são mais do que belas,
são sublimes. A paisagem é grandiosa, mas misteriosa e hostil. A alma é diminuta e
impotente diante da magnitude celestial. Na obra do pintor alemão, o campo, o mar e
as nuvens ocupam proporções incomensuráveis diante da figura humana. A luz solar
que resplandece por trás da neblina invade a paisagem ora a obscurecendo, ora a
revelando em múltiplos matizes.
Em Sokúrov, além da desproporcionalidade entre figura e fundo, juntam-se
elementos que apenas o cinema seria capaz de acrescentar, ou seja, a combinação do
movimento dos corpos, com a agitação do vento, a velocidade das nuvens, o ruído
dos pássaros e dos trovões.
São pouco mais de 50 planos durante 72 minutos de filme. Cada um deles
adulterado, grifado pela visão e ótica de Sokúrov; seja em relação à cumplicidade da
mãe e do filho, pela grandiloqüência dos elementos naturais ou pela angústia da
existência humana.
Retoque pictórico sob camadas do tempo
Arca russa faz parte do ciclo de filmes históricos de Sokúrov. Não trata
especificamente de um personagem, mas de vários ícones da história de seu país. Foi
rodado em um único plano-seqüência com auxílio de um steadycam 2 (2) especialmente
adaptado para a ocasião e segundo as necessidades do seu operador, Tilman Büttner.
Em razão da especificidade do filme, Büttner acumulou também a função de fotógrafo,
pois, tratando-se de um plano sem cortes, era necessário montar e memorizar a
iluminação do percurso para não errar no enquadramento.
No filme, há um mestre de cerimônia que guia o "espetáculo" inspirado no
marquês Adolfo de Custine, diplomata francês do século XIX que esteve na Rússia e
deixou duas publicações sobre sua viagem. Nos créditos finais, não há indicação à
2. Segundo Boullay (1985, p. 75), espelho é uma superfície refletora e plana na qual a imagem se
forma simetricamente. Já o prisma é um bloco ótico, transparente, pouco dispersivo e limitado
por faces planas. Uma das delas é usada para a entrada do feixe luminoso e outra para a sua
reflexão. As multi-facetas servem de superfícies refletoras.
294
ESTUDOS DE CINEMA
referência bibliográfica, mas é possível fazer esta conexão em razão da ascendência
do personagem e a semelhança de seus comentários com os livros assinados pelo
nobre francês. (DEPAULE, 2003: 29)
Ouve-se, logo depois dos créditos, sobre cartela preta, a voz, ou melhor o sussurrar
em off de Sokúrov que diz não se lembrar exatamente quando esteve ali. Fala de uma
vaga lembrança. Ele se refere ao incêndio de 183 7 ou a invasão do Palácio de Inverno na
noite de 25 de outubro de 1917 pelos bolchevistas? Jamais se saberá.
Bruno Latour (1994), ao analisar a modernidade, explica que, a partir deste
momento, instituiu-se potencialmente a idéia de novo, de invenção total. Ele diagnostica
a necessidade de desapego ao passado, um desejo permanente de ruptura com o que
ficou para trás e o momento em que se instalou uma cronologia arbitrária, onde os
tempos não co-existem e só são admitidos numa escala subseqüente: passado, presente
e futuro. No caso da modernidade, valorizou-se o futuro e esqueceu-se que, na
realidade, se é uma condensação de momentos diversos, uma mistura de passado,
presente e futuro. "Jamais fomos modernos."
O que faz Sokúrov em Arca russa é subverter este preceito moderno, que tanto
se está habituado a observar em filmes de época. Ele colocou na imagem uma sucessão
de fatos da história do seu país, misturados entre si como se tudo estivesse naquela
arca-museu.
É importante dizer que o cenário é o museu do Herrnitage em São Petersburgo.
A construção data do século XVIII, mas a estrutura arquitetônica sofreu alterações
ainda no século XIX. No filme, vê-se apenas uma única vez a fachada do palácio,
logo na abertura. Adiante iremos percorrer diversos cômodos, épocas e sobretudo
ver passar inúmeros figurantes.
A voz offde Sokúrov acompanha a câmera e encontra logo no início o marquês
De Custine, único personagem a ter interlocução com o autor. A mesma amnésia
parcial do narrador contagia o personagem francês. "Que língua falamos?" "Eu, russo."
"Estranho, eu não falava russo antes".
A primeira figura histórica percebida por De Custine é Pedro, o Grande ( 16721725). Aqui, diferente de Mãe e filho, a tela cinematográfica ganha profundidade e o
detalhe mais distante é iluminado justamente para ressaltar o local em que o mesmo
Pedro esbofeteia um oficial. Depaule fala do anacronismo da cena já que o cenário é
o Palácio de Inverno que só foi construído em 1754 por Catarina 11, depois da morte
de Pedro. A própria soberana aparece logo depois assistindo a uma encenação no
teatro que ela própria mandou erguer em 1783.
O passeio do marquês segue por outras salas. Vemos nossos contemporâneos
que se reconhece pelos figurinos dos dias de hoje. Reencontramos, adiante, Catarina
11 mais velha que desaparece em meio ao pátio externo coberto pela neve. De Custine
reconhece Nicolau I que, em uma solenidade recebe o chá da Pérsia. Nosso guia é
retirado do local e acaba se deparando com a preparação do banquete daquela cerimônia,
VISUALIDADES
295
chama-lhe atenção às peças em porcelana de Sevres cuidadosamente arrumadas nas
mesas.
De Custine é convidado a se retirar do recinto e prossegue no labirinto do
Hermitage encontrando ex-três diretores do museu, representados por si próprios.
São gerações que conseguiram manter intacta uma coleção de arte, apesar das
intempéries, das guerras e do tempo. O que preservar? Como fazer a arte ser perene?
O marquês lamenta: "Todo mundo conhece o futuro, mas ninguém conhece o passado".
O filme termina em um baile suntuoso e repleto de convidados. De Custine diz
à câmera e a seu anfitrião invisível, que ficará no palácio, enquanto que todos os
outros deixam o Hermitage. O plano acompanha a retirada dos figurantes e, por fim,
enquadra uma janela. Ao fundo, vê-se o mar. Não mais realista, mas uma imagem
enevoada ao som de ondas revoltas.
Sokúrov recorre a algumas simbologias bíblicas em seus filmes. No caso de
Arca russa, há uma analogia com o feito de Noé que constrói uma embarcação para
salvar a si e aos outros do dilúvio. O objetivo era se refugiar na embarcação e manterse vivo, flutuando sobre as águas, obedecendo à risca o preceito divino.
De Custine e seu duplo, a voz de Sokúrov, estão sempre à procura de portas,
obrigados a se retirar das salas, a se perder à procura de personagens que desaparecem
da cena. Há sempre a idéia de flanar e de percurso, à espreita, talvez, de uma saída.
"Por isso, a pergunta que atravessa todo o filme é: pode a Rússia retomar o impulso
histórico que a mobilizou no século XVIII, reativar a aspiração de seus monarcas de
fazer dela uma nação européia?" (SANTOS, 2002: 85).
O filme-arca é por assim dizer um alerta para que não se seja refém do futuro
e que o passado possa ser aprendido e apreendido para que não se perca a noção do
tempo como travessia. A voz grave de Sokúrov encerra Arca russa com as seguintes
palavras: "Nós somos destinados a navegar eternamente e a viver eternamente".
Impossível parar o tempo e a História.
É importante frisar que o uso do steadycam em Arca russa não reproduz o
olhar humano. Segundo o operador Larry McConkey, que trabalhou com M. Scorcese
em Bons companheiros ( Goodfellas, 1990) no qual fez vários planos-seqüência, ( ... )
toda dificuldade [na operação do steac.ry] está na gestão do tempo morto, o espectador
não deve jamais se entediar na memorização das idéias que se encadeiam e na resolução
dos problemas técnicos. (MORRISSEY) 3
É exatamente o que faz Sokúrov ao preencher todos os espaços e compô-los
de maneira encadeada e surpreendente. Basta lembrar dos bastidores do teatro barroco
3. Tradução da autora."( ... ) Toute la dificulté tient dans la gestion du temps morts, !e spectateur ne
devantjamais s'ennuyer, dans la mémorisation des idées que s'encha!nent et dans la résolution
des probli:mes techniques."
296
ESTUDOS DE CINEMA
que precede ao palco que, por sua vez, mostra a orquestra e, somente depois, revela
Catarina 11 em seu camarote imperial.
A experimentação do belo aqui não lembra mais a sensação de sublime. A beleza
advém de uma composição clássica, fiel aos preceitos renascentistas, na riqueza de
detalhes, na harmonia das cores, na dosagem "científica" da luz natural e artificial.
O museu Hermitage serve de palco para este deslumbramento visual. O
encantamento do espectador não se restringe ao aspecto arquitetônico e cenográfico.
Pode-se destacar a mise-en-scene rigorosa de um "batalhão" de figurantes - cerca de
1500 pessoas. Há também o fausto das indumentárias de época: nobres, militares,
artesãos, comediantes, religiosos etc.
Para obtenção de um resultado tão simétrico e harmônico como um espetáculo
de dança, houve, sem dúvida, muita preparação entre todos estes elementos e a câmera.
Além disso, pode efetuar uma rigorosa correção de cor e luz na pós-produção, retrabalhando minuciosamente cada detalhe.
Sokúrov, com o plano-seqüência de Arca russa, abole definitivamente a união
de planos, traz o conceito de justaposição e montagem para dentro da imagem. O ato
de cortar ou unir foto gramas limita a montagem de imagem a uma intervenção apenas
"horizontal" no filme. Toda e qualquer transição, efeito ou trucagem de ou entre os
planos era apenas realizado na filmagem ou executado em truca. Walter Murch
(2003:135) comenta que, com a edição digital, aparece a possibilidade de o editor
interferir "verticalmente" na imagem. Além do desafio de se construir o tempo filmico
através dos planos, agora fica ao alcance de quem edita o recurso dos efeitos visuais.
A assinatura de Sokúrov em Arca russa se dá desta forma na pós-produção com
auxílio da tecnologia digital que permitiu que o diretor "reinventasse" a fotografia.
A nosso ver, os .dois filmes aqui analisados, e porque não dizer a obra de
Sokúrov, ao adotar certas interferências redimensionam os conceitos técnicos e também
estéticos dos efeitos visuais. O autor busca inspiração na arte, na pintura mais
especificamente como uma ferramenta de resistência e combate à figuração pura e
simples da realidade no cinema. Ele entende uma lição com os mestres do passado e
traz um alerta contra o dogmatismo da representação esquemática.
Sokúrov reluta contra o mimetismo das formas. Os objetos óticos ou a
interferência digital são usados como o pincel, espátula e esfumatto do realizador. A
visão do real é definitivamente subjetivada pelo autor."( ...) A criação da imagem inclui
certo trabalho com a óptica, com a luz. Trabalha-se então na cor com o auxílio da
eletrônica, com os computadores mais avançados ( ... ) O trabalho da arte
cinematográfica não consiste em rodar- consiste em compor". (SOKÚROV citado
por SANTOS, 2002: 65).
Orson Welles, paraO. Deleuze (1985: 181), foi o primeiro a transpor no cinema
urna imagem direta do tempo sob os auspícios da potência do falso. O curioso é que
isto se verificou a tal ponto que muitas das impressões ditas realistas de profundidade
VISUALIDADES
297
de campo em Cidadão Kane ( Citizen Kane, 1941) são, na realidade, trucagens (matte
shot). Como a cena em que Kane (Welles) em primeiro plano reescreve a crítica de
Jed Leland (Joseph Cotten), localizado ao fundo na redação do jornaL Tudo fazia
supor que se tratava de uma imagem em perspectiva. No entanto, nada mais era do
que a superposição de dois planos a partir do emprego de máscaras no registro de
uma e depois da outra imagem.
Se a contemporaneidade do cinema está repleta de efeitos especiais, aprisionados
em um mundo das aparências, na busca por uma verossimilhança, Sokúrov reitera a
condição de Welles, não mais o truque camuflado imitando o real, mas do efeito visual
e subjetivo que anula todo um viés maquínico, relançando a idéia de falsificação, da
trucagem como uma estratégia para evitar um cinema desumano sem as marcas de
nossa imperfeição.
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Le steadycam a-t-il une âme? Paris, no 24, outono, 2003.
298
ESTUDOS DE CINEMA
NEYRAT, Cyril. "Éloge de la traversée". Veritigo. Esthétique et histoire du cinéma. Le
steadycam a-t-il une âme? Paris, no 24, outono, 2003.
_ _ _ _ _ , AUBRON, Hervé e PRODROMES, François. "'J'avais l'impression de
marcher tres tranquillement vers mon éxecution.' Entretien avec Tilman Bütner,
steadicamer et chef-opérateur de Arche Russe". Veritigo. Esthétique et histoire du
cinéma. Le steadycam a-t-il une âme? Paris, no 24, outono 2003.
Perto demais se vê de menos: a questão
do ponto de vista na adaptação de Closer
MARCEL VIEIRA BARRETO SILVA
(Uff)
EsTE ARTIGO TEM o intuito de discutir algumas questões, envolvendo a relação
entre cinema, teatro e literatura dramática, partindo do exemplo de Closer, peça de
Patrick Marber de 1997, levada ao cinema em 2004, por Mike Nichols. Para isso,
pretendemos analisar comparativamente a construção da cena no texto dramático e
no filme, pensando em como no cinema- a partir de sua própria estrutura espectatorial
- a cena é construída, na verdade, a partir de um jogo de olhares sobre a cena. A
câmera, enquanto instrumento narrativo, cria uma série modulada de olhares que
introduzem o espectador no espaço da cena, num tenso e permanente jogo de mostrar/
esconder, que envolve esse espectador ao atiçar com isso o seu desejo voyeurista.
Esse jogo de mostrar e esconder a cena é possibilitado pela capacidade da narrativa
filmica de transitar pelos pontos de vista da autoridade narrativa, dos personagens e
do espectador.
O interesse despertado pelo texto dramático de Closer e, conseqüentemente,
sua adaptação cinematográfica, reside na maneira como a questão do olhar estrutura
a forma de construção da subjetividade dos personagens, inseridos em um contexto
de constante fluxo informacional e imagético, que faz com que o olhar seja a matriz
maior de envolvimento afetivo. Trata-se da história de Daniel (Jude Law),Alice (Natalie
Portman), Anna (Julia Roberts) e Larry (Clive Owen), quatro personagens que se
conhecem, relacionam-se e mutuamente se enganam, num movimento de aproximação
e afastamento semelhante ao denominado por Zygmunt Bauman (2004) de amor
líquido. Nesse imbróglio de envolvimento afetivo, o olhar desempenha papel crucial,
pois revela e resvala desejo a cada espiada furtiva. Tanto é assim, que as personagens
femininas estão nos pólos opostos de um jogo escopofilico: Anna é uma fotógrafa,
cujo principal interesse é capturar imagens de estranhos (ou seja, ela trabalha ativamente
com olhar), e Alice é uma stripper que se despe para estranhos (sua atUação, portanto,
é em ser olhada).
300
ESTUDOS DE CINEMA
Nosso objetivo, aqui, será analisar comparativamente como essa questão do
olhar é construída na peça e no filme, enfatizando os procedimentos estilísticos
específicos de cada meio. Para tal, escolheu-se a segunda cena do primeiro ato da
peça, em que Anna fotografa Daniel, para a capa do livro dele. Essa cena é relevante
porque denota claramente como a construção da cena no cinema narrativorepresentativo se materializa a partir do manejo e da modulação de olhares dentro da
cena - movimento esse, autorizado pela capacidade historicamente estabelecida do
narrador fílmico em transitar a câmera pelos espaços da situação dramática,
posicionando-se, inclusive, no olhar dos personagens, numa estrutura que Edward
Branigan ( 1984) denomina de plano ponto-de-vista.'
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
Antes de discorrermos com a análise, é importante aduzir a relação intertextual
entre cinema e teatro, ressaltando como cada meio organiza sua forma de construção
simbólica. Assim, é fundamental apontar para a formatação de teatro e cinema enquanto
espetáculos exibicionistas, numa sala escura, com a ilusão cênica e o efeito-janela,
mas com estruturas espectatoriais diferentes: no teatro, o espectador imóvel acompanha
a cena de seu ponto fixo de visão; no cinema, pela capacidade da câmera de manipular
tempo e espaço diegéticos, o espectador é levado, através de processos de identificação
narrativa, para dentro da cena, tendo acesso à história a partir de como o narrador
filmico oferece ou oculta esses olhares. Desta feita, o que defme a construção da
cena no cinema narrativo-representativo é a capacidade da câmera em administrar os
pontos de vista, criando constantes fluxos de significado, na mobilidade e no
posicionamento dos olhares sobre o universo dramático representado. No caso de
Closer, a estrutura de envolvimento afetivo fundada no olhar, que constitui o conteúdo
expressivo da peça e do filme, está intrinsecamente vinculada ao modo como é
construída a cena, seus contornos de representação e posicionamentos narrativos.
Além dessa compressão da estrutura representacional do cinema clássiconarrativo- em relação ao teatro e sua forma particular de representação-, devemos
explicitar duas outras premissas que norteiam a metodologia de análise deste presente
trabalho. A primeira consiste numa reflexão do processo de adaptação cinematográfica,
processo esse, sucintamente definido, como a transposição de uma obra literária para
uma narrativa filmica. Observando mais atentamente, percebe-se que a adaptação
congrega, no entanto, uma série de questões práticas e teóricas que devem ser
1. ;N() inglês, convencionou-se chamar de POV shot. De forma análoga, sintetizar-se-á, doravante, em
PPV.
VISUALIDADES
301
consideradas, seja a tentativa de fidelidade em relação ao texto-fonte (e aqui a palavra
"tentativa" evidencia a motivação da empreitada, não a materialidade do resultado),
seja a recriação deliberada de certos elementos em outros contextos, ou ainda questões
teoricamente mais profundas, como tensões entre sistemas de representação, poéticas
de gêneros e pontos de vista narrativos e ideológicos.
Essa compreensão implica em uma atitude metodológica fundamental, isto é,
entender a adaptação como uma relação entre dois sistemas simbólicos, pois o textofonte foi escrito num determinado período, influenciado por uma série de códigos de
representação e por um momento histórico delimitado, e a adaptação fílmica dessa
obra também foi criada num contexto de produção particular, e está dialogando não
só com o texto primevo, mas com uma série de outras referências, inclusive
cinematográficas. Além da diferença entre contexto de realização de livro e de filme
adaptado, também as formas de cada um são diferentes, com meios próprios de
representação, que contribuem para compreender a adaptação como uma relação
intertextual.
Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança de meio. A
alteração de um meio verbal single-track como o romance, para um meio multitrack
como o filme, que pode representar não só com palavras (escritas ou faladas) mas
também com música, efeitos sonoros, e imagens fotográficas em movimento, explica
a improbabilidade, e eu diria mesmo a "indesejabilidade", da adaptação literal (STAM,
2005:. 03-4). 2
A segunda premissa que norteia investigação deste trabalho é, na verdade, uma
reflexão teórica em tomo do ponto de vista como uma categoria na análise comparativa
de cinema, teatro e literatura. Desde sua formulação nas artes plásticas, a partir do
conceito de perspectiva na pintura renascentista, passando por sua formalização em
um certo artifício estilístico do romance moderno (em Flaubert e Henry James,
principalmente), até a sua assimilação na teoria do cinema, o conceito de ponto de
vista tomou-se uma categoria extremamente relevante para o estudo da narrativa. Na
história do desenvolvimento da narrativa fílmica, inclusive, a questão do ponto de
vista, ocupa lugar privilegiado. A transição de um ponto de vista único, no cinema dos
primeiros tempos, para um ponto de vista múltiplo e articulado, representou o esforço
no manejo das estruturas simbólicas, a fim de criar novas possibilidades narrativas.
2. Original em inglês. Tradução literal: "An adaptation is automatically different and original dueto
the change of medium. The shift from a single-track verbal medium such as the novel to a
multitrack medium like film, which can play not only with words (written or spoken) but also
with music, sound effects, and moving photographic images, explains the unlikelihood, and I
would suggest even the undesirability, ofliteral adaptation".
302
ESTUDOS DE CINEMA
No ponto de vista único, o espectador tende a observar a cena; no ponto de vista
múltiplo, ele participa narrativamente da cena, por identificação, fluindo pelo espaço
e pelo tempo, e partilhando da subjetividade dos personagens. "O ponto de vista e,
sobretudo, os múltiplos jogos entre ponto de vista visual ou representativo e ponto de
vista narrativo são parte constitutiva do cinema" (MAGNY, 2001: 63). 3
As principais teorias do ponto de vista no cinema, e aqui, vai-se destacar as
obras de Edward Branigan e de François Jost, tentaram pensar a funcionalidade e a
amplitude do ponto de vista no cinema narrativo representativo. Em Jost (1989),
temos uma apropriação do conceito de focalização, tal como desenvolvido por Gérard
Genette (1972), para falar de ponto de vista na literatura, e, em seguida, a elaboração
de dois novos termos específicos do estudo do cinema: ocularização, que diz respeito
à relação entre o que a câmera mostra e aquilo que o personagem vê: "é próprio de a
ocularização transformar o lugar da câmera em uma posição perceptiva do
personagem" (JOST, op. cit: 50). 4 E auricularização, que diz respeito ao ponto de
escuta, àquilo que o personagem ouve, e como o som e os ruídos de cena são
construídos para representar a subjetividade dos personagens. 5 Assim como a narrativa,
tanto a ocularização quanto a auricularização só ganham sentidos, através da progressão
espaço-temporal: não se pode ver num plano apenas (como uma foto em still) qual o
tipo de ocularização ou de auricularização. Apenas na combinação sucessiva de planos
se pode avaliar a perspectiva ou que construção de subjetividade som e imagem
pretendem abarcar.
Num outro extremo, Edward Branigan (op. cit., 01-02) propõe que o ponto de
vista, enquanto categoria narratológica, deva ser entendido a partir de sua correlação
com outras quatro categorias: primeiramente, há o ponto de vista do autor, que se
refere às opiniões particulares expressas pelo diretor do filme, bem como suas questões
ideológicas e político-partidárias. De maneira diversa, existe o ponto de vista do
narrador, que é também comumente conhecido como foco narrativo ou focalização:
nesse caso, está relacionado à voz narrativa, isto é, a quem conta a história e por qual
perspectiva.
Além disso, existe ainda o ponto de vista do personagem, que está diretamente
ligado ao narrador, pois se refere aos momentos em que este cede sua voz, para que
os personagens se expressem eles mesmos (como no PPV), ou quando o próprio
3. Original em francês. Tradução livre: "Le point de vue et surtout les multiple jeux entre point de
vue visuel ou représentatif et point de vue narratif sont partie constitutive du cinema".
4. Original em francês. Tradução livre : "Le propre de l'ocularisation, c 'est de transformer la place de
la cãmera en une position perceptive du personnage".
5. As categorias elaboradas por François Jost são extensas e não cabe aqui, tendo em vista o tamanho
e a estrutura desse artigo, a discussão das variantes de ocularização e auricularização propostas
pelo autor.
VISUALIDADES
303
narrador incorpora polifonicamente o olhar dos personagens no decorrer da narrativa.
E, fechando o circuito de representação cinematográfica, há por fim o ponto de vista
de espectador, que diz respeito às questões de espectatorialidade, e da recepção da
platéia no momento da projeção fílmica.
Essa diferenciação é necessária para a elaboração de uma teoria do ponto de
vista no cinema, pois variam substancialmente (às vezes tomando-se até contraditórios)
os pontos de vista de autor, narrador, personagem e espectador. De acordo com a
teoria proposta por Branigan, no entanto, ponto de vista no cinema está diretamente
ligado ao conceito de subjetividade, isto é, à forma através da qual o filme apresenta
ou retrata um personagem ou uma história. "Subjetividade, então, é o processo de
conhecer uma história- contá-la e percebê-la" (op. cit: 01). 6Não se trata do que a
história conta (do seu conteúdo), mas da maneira como é contada, ou, para dizer
mais propriamente, de como é estabelecida uma lógica de leitura. Na teoria de
subjetividade, proposta por Branigan, sujeito que vê e objeto que é visto são elementos
integrantes da estrutura de representação, em que o sujeito é o produtor da narração
enquanto processo de percepção do objeto, e este, por conseguinte, é o ponto de
atração da atenção do sujeito. Nesse sentido, ponto de vista vai ser o conjunto de
estratégias estilísticas (posicionamento de câmera, som, montagem, fotografia,
construção de cena, etc.) criado para representar a subjetividade dos personagens.
CLOSER E A CONSTRUÇÃO DO OLHAR
Diante disso, o nosso interesse agora é ver como a construção do olhar, no
cinema narrativo-representativo defme a relação entre os personagens dentro da diegese,
e o envolvimento entre filme e espectadores. No caso de Closer, o olhar cria
dependências, hierarquias e níveis narrativos que se entrecruzam no processo de
representação da história. Na peça, há várias referências ao olhar dos personagens,
tanto nos diálogos, quanto nas rubricas que indicam a movimentação dos atores no
palco. No filme, é através do olhar - juntamente com o som -, e, diríamos, da
orquestração de olhares, que a platéia tem acesso aos cmitomos da cena, assimilando
assim a história narrada/representada.
Para exemplificar expressamente como funciona isso, vamos analisar um trecho
do filme, em que a questão dos pontos de vista desempenha função primordial no
desenvolvimento da ação. O caso de Closer interessa a este trabalho, particularmente,
porque a questão do olhar funda a estrutura de construção da subjetividade dos
personagens, uma vez que eles se inserem num contexto de constante fluxo
6. Original em inglês. Tradução livre: "Subjectivity, then, is the process ofknowing a story- telling
it and perceiving it".
304
ESTUDOS DE CINEMA
informacional e imagético, que faz com que o olhar seja a matriz maior de envolvimento
afetivo. Assim, o olhar é transposto, no processo de adaptação cinematográfica de
Closer, para dentro da estrutura da narrativa cinematográfica, de maneira que a ação
dramática seja constantemente deslocada para os olhares que compõem a cena: do
narrador ou dos personagens.
O trecho que comentaremos é a segunda cena do primeiro ato, tanto da peça
quanto do filme. Estamos no estúdio de Anna, no momento em que ela fotografa e
conversa com Daniel. No diálogo e nas rubricas, estão embutidas referências ao olhar
e ao aparato de captação fotográfica de imagens, de forma a criar um ritmo de leitura
que denota o jogo de olhares estabelecido entre os personagens.
Dan: Você é bonita.
Anna: Não, eu não sou. (Anna olha para a lente da câmera). Levante o queixo, você
está parecendo desleixado. (Dispara). 7
Dan: Você não o achou obsceno?
Anna: O quê?
Dan: O livro.
Anna: Não, eu o achei ... preciso (Dispara).
Dan: Quanto a que?
Anna: Quanto ao sexo. Quanto ao amor (Dispara).
Dan: Em que sentido?
Anna: Foi você que escreveu.
Dan: Mas foi você que leu. Até às quatro da manhã. (Dan olha para ela, Anna olha
para as lentes).
Anna: Não erga suas sobrancelhas, você parece afetado. (Dispara). Levante-se.
(Dan se levanta).
Dan: Alguma crítica? (Anna considera).
Anna: O título é ruim.
Dan: Você tem um melhor?
Anna: Sério?
Dan:Sim...
Anna: O Aquário (Eles se olham). (MARBER: 18).
Esse movimento criado pela intercalação, entre os diálogos, de rubricas que se
referem ao olhar e ao ato de tirar fotografias, é um aspecto fundamental da construção
dessa cena nÕ texto dramático de Closer. Ele tem a função de não apenas conduzir as
falas .dos personagens (foco decisivo do envolvimento espectatorial), mas também
levar a atenção para os olhos, ampliando o panorama da ação dramática. Dessa forma,
7; Em inglês, o termo utilizado é shot, e se refere ao ato de tirar uma fotografia.
VISUALIDADES
305
enfatiza o papel desempenhando pelo olhar, na maneira como os personagens se
relacionam, construindo espaços de proximidade e distanciamento, nos processos de
envolvimento afetivo.
Num outro extremo, ao transpor essa cena para o cinema, através das formas
clássicas de representação do cinema narrativo-representativo, o filme constrói um
complexo jogo de olhares (definido pelos posicionamentos de câmera e pela montagem),
em que está implicada uma série de pontos de vista narrativos que, tomados
conjuntamente, organizam uma orquestração de olhares sobre a cena. Aqui, os modos
de envolvimento entre a platéia e a narrativa condensam uma situação lirrútrofe, entre
mostrar e narrar a história, já que na conformação final dos planos e em sua organização
concreta pela montagem estão imbricados, posicionamentos da instância narrativa:
ou seja, ao acompanhar uma cena a partir de pontos específicos de visão (que podem
ser fixos ou móveis), o filme implica nessas imagens uma série de significados latentes.
Nessa cena, a câmera vai não apenas apresentar o estúdio de Anna, no momento
em que ela fotografa e conversa com Daniel, mas, sobretudo, vai criar um movimento
seguro e bastante calculado de pontos de vista. Esse movimento agrega os olhares do
narrador sobre a cena e os olhares dos personagens dentro da cena. Assim, o ritmo
criado no texto dramático entre os diálogos dos personagens e as rubricas textuais, é
transformado, no processo dialógico de adaptação cinematográfica, no jogo de olhares
que caracteriza a construção da cena nó cinema narrativo-representativo.
Primeiro plano, com a imagem centrada em uma câmera fotográfica: ênfase no
aparato de construção imagética.
306
ESTUDOS DE CINEMA
Após o corte, surge a personagem que maneja a câmera. Ela olha diretamente para
o visor do aparelho, de maneira a confundir o seu olhar com o da câmera.
No mesmo plano, Anna ergue o rosto e olha para o lugar a que aponta. a câmera. Em
sua fala ("Bom. Vou trocar o filme"), já se entrevê outro personagem, objeto do olhar
de Anna.
VISUALIDADES
O plano seguinte apresenta Daniel, que ostensivamente retribui o olhar de Anna,
abrangendo o jogo de olhares, a partir do qual a cena é construída.
Após o corte , a imagem sobre o ombro de Daniel estabelece um ponto de ·
associativo: nesse momento, Anna e Daniel se tornam sujeitos e objetos do ".2! セ@
cena.
. 307
308
ESTUDOS DE CINEMA
Um novo corte amplia o espaço da representação e troca o ponto de vista: fica
claro, então, como a cena é construída por um jogo de olhares (personagens,
narrador e, finalmente , espectadores).
Prestemos atenção no primeiro plano dessa seqüência: vê-se a câmera
fotográfica , diretamente focada na lente; e o som lança o ruído que denuncia o disparo
da máquina. Nesse simples plano estão envolvidos cinco olhares em confluência,
ainda que a cognição contextual se complete através dos planos seguintes:
primeiramente, há o olhar do narrador, que, em sua maleabilidade diegética, posiciona
o quadro da forma como o apreendemos; em seguida, temos o olhar da câmera
fotográfica, reconhecidamente caracterizada como aparato de captação de imagens;
esse olliar da câmera, no entanto, representa, por contingência do signo, o olliar de
quem a manuseia, ou seja, Anna, a fotógrafa; além disso, diante da câmera que captura
as imagens, está Daniel, que, como objeto do olhar de Anna, olha para a lente (dessa
maneira, o olhar do narrador se confunde com o olhar de Daniel, o que configura a
forma mais clássica do PPV); e, por fim, há o olhar do espectador, para quem é
articulado esse jogo, e que, no momento da projeção, tem que desvendar esse conjunto
de pontos de vista, a fim de fechar o circuito e se inserir no desenvolvimento da cena.
A aparente simplicidade desse único plano congrega uma mais internalizada
complexidade, cuja forma está embutida nos procedimentos estéticos do cinema
narrativo-representativo. O olliar aqui desempenha um papel crucial na dinâmica da
representação simbólica e, como é o caso particular deste traballio de apreciação, na
construção da cena, comparativamente, a um texto dramático. Dessa maneira, tomase indispensável a ênfase na questão do ponto de vista como categoria determinante
no estudo comparativo entre cinema, teatro e literatura, uma vez que, no cinema
narrativo-representativo, a informação tende a se tomar olhar. No decorrer da projeção,
é estabelecida uma forma instável de representação, que transita entre uma pretensa
autonomia da imagem, que indica uma ausência de mediação no manejo das cenas, e
VISUALIDADES
309
a manipulação formal, denunciada, dessas imagens, tanto nos posicionamentos de
câmera que implicam pontos específicos de visão, quanto na montagem que concatena
os planos e estabelece implicações diegéticas e discursivas.
Nas· três imagens seguintes, que encerram a cena que se está comentando,
estão sintetizadas efetivamente as reflexões do presente trabalho acerca da construção
do olhar em Closer.
Daniel olha para a câmera fotográfica , que é o olhar da câmera cinematográfica, que
é também o olhar de Anna, o olhar do narrador e, por fim, o olhar do espectador: um
conjunto multi-laminado de olhares sintetizados num único plano.
O corte apresenta a mâo de Anna, no momento do disparo da máquina. O movimento
do dedo e o som do aparelho indicam a execução da fotografia.
ESTUDOS DE CINEMA
310
Numa mudança rápida de plano, a imagem inicial da cena é retomada , evidenciando,
inclusive, a abertura e o fechamento do obturador.
Esses procedimentos de elaporação da cena, além de apontarem para a
prevalência do olhar como principal estratégia de articulação dos planos e de concepção
da imagem, concentram uma importante forma de observar os processos de adaptação
de um texto dramático para o cinema. Na medida em que amplia a diegese, introduzindo
pontos de vista diversos, habitando o espaço e inserindo o espectador dentro da cena,
o filme Closer consegue estabelecer muito claramente o seu lugar num sistema
particular de representação: o cinema narrativo-representativo. Com isso, toma patentes
os artifícios utilizados na adaptação fílmica: apropria-se de uma questão muito pertinente
ao texto dramático (o problema do olhar e sua relação com as formas de envolvimento
afetivo entre os personagens), a leva ao nível da estrutura - a dinâmica do olhar,
portanto, serve não apenas como conteúdo para o filme, mas, sobretudo, como forma
de representação simbólica.
BIBLIOGRAFIA
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
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STAM, Robert. Literature through film: Realism, Magic, and the Art of Adaptation.
Malden (USA): Blackwell Publishing, 2005.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA,
NO VÍDEO E NA
TV
Arte e vida: novos caminhos
para o cinema nos anos 1960
EL1ZABETt1 REAL
(UFF)
O FINAL DA DÉCADA de 1960 foi marcado, no Brasil, pelo Tropicalismo- ou
Tropicália, talvez um termo mais apropriado se quiser estendê-lo a um espectro mais
amplo das artes naquele momento, significando não o movimento musical, mas uma
série de manifestações que dialogavam entre si, compartilhavam os mesmos anseios
e idéias. Escolhido como título para a canção-manifesto de Caetano Veloso, o nome
Tropicália designava um projeto ambiental montado pelo artista plástico Hélio Oiticica,
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAMIRJ), em 1967, na exposição
coletiva Nova Objetividade Brasileira.
Silviano Santiago chama atenção para um aspecto fundamental na obra de
Oiticica e que surgia nos shows dos músicos tropicalistas: a intenção de provocar
uma participação mais ativa do espectador. O movimento tropicalista incorporava, na
música, elementos não-musicais: reunia o corpo, a roupa, a dança, a música e a voz.
Segundo Celso Favaretto, Caetano e Gil, mas principalmente o primeiro, faziam do
corpo "uma espécie de escultura viva" (1996: 30). Ao jogar com o corpo e o
movimento, a roupa, a música, a voz, a letra, Caetano Veloso atuava no palco "como
se fosse um quebra-cabeça que só pudesse ser organizado na cabeça dos espectadores."
(SANTIAGO, apudFAVARETTO, 1996: 31). Nessejogo,afloravamquestõespróprias
do universo da contracultura - do discurso das questões negras, marcado pela
aproximação de Gilberto Gil com a vestimenta e a música de origem africana, à
liberação da sensualidade.
A heterogeneidade do ambiente cultural brasileiro- a "geléia geral", como definiu
Décio Pignatari- era ressaltada nas produções. Caetano comparou a forma de compor
dos tropicalistas, o uso do sampler e de combinações musicais diversas, a readymades formados por ritmos de tendências e épocas diversas, incluindo o samba e a
marcha, a bossa nova, o bolero, o mambo e o rock (DUNN, 2005: 65). Nas letras das
316
ESTUDOS DE CINEMA
canções, colagens de elementos urbanos e modernos e de elementos da cultura popular
expunham as contradições brasileiras, o desejo de modernidade justaposto à situação
política opressora e à desigualdade social.
Os músicos Rogério Duprat e Júlio Medaglia, figuras fundamentais do
Tropicalismo, faziam experimentações que procuravam alinhar a música brasileira às
vanguardas cosmopolitas, integrando elementos de duas tendências da música
contemporânea, que partiam de Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen - de quem
foram alunos em um curso de verão na Alemanha, no início da década de 1960 - e
John Cage.
Era flagrante o diálogo que se estabeleceu entre os vários campos artísticos
a experiência brasileiranaquele momento, assim como a relação antropofágica ・ョエイセ@
a partir principalmente da retomada critica da tradição cultural popular- e movimentos
artísticos internacionais.
Podemos entender a Tropicália não como um movimento artístico marcado
por características comuns, mas como um poderoso momento de experimentação.
Momento em que as separações entre as diferentes categorias e gêneros artísticos
aboliram-se e conceitos mais amplos aproximaram as diferentes artes, inclusive o
cinema.
Câncer - filmado em poucos dias, enquanto Glauber Rocha aguardava as
filmagens de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro- nunca foi exibido em
circuito comercial. E nem era esta a intenção do diretor. Segundo Glauber, seu objetivo,
na verdade, era realizar uma "experiência" cinematográfica com a câmera 16 mm, a
fim de explorar os resultados que poderia obter com a extensão, ao limite, de planosseqüência. A filmagem foi em agosto de 1968, no Rio de Janeiro, e a montagem só
aconteceu em 1972, em Cuba. Para realizar o filme, Glauber convocou alguns atores
que participariam do Dragão e montou urna pequena equipe de pessoas mais próximas.
Além de Antonio Pitanga, Hugo Carvana e Odete Lara, presentes nos papéis principais,
participaram de Câncer duas figuras fundamentais no quadro cultural daquele momento
- o artista plástico Hélio Oiticica e Rogério Duarte, artista gráfico e poeta.
Sem roteiro, o filme se organiza em tomo de algumas proposições do diretor
para os atores. Em vários momentos do filme, sua voz intervém, ora inserida
posteriormente, como no início, quando "fala" os créditos e situa o filme no quadro
político e cultural em que foi rodado, ora em som direto, com a intenção de provocar
os atores em cena. O papel do intelectual, o racismo, a situação da mulher na sociedade,
a religião, a burocracia, a esquerda, a ditadura, a democracia, o desemprego e,
sobretudo, a violência. São esses temas contemporâneos, colocados no alvo dos
movimentos contraculturais, que detonam as situações.
Duas seqüências são documentais: o debate no MAM e o desfile de modas.
Nelas, sem som direto, Glauber grava, sobre a imagem, sua voz comentando o que se
passava na cena e contextualizando a situação política da época. Nas outras seqüências,
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
317
ficcionais, é dada aos atores a tarefa de improvisar a partir de uma determinada
situação proposta pelo diretor do filme. Em geral, tem-se a mistura de atores
profissionais, artistas de outras áreas e atores não-profissionais. Os atores olham
para Glauber e, em alguns casos, o diretor interfere na cena, como no caso do "Doutor
Zelito", a quem Glauber dirige provocações. Nesse caso, quando a participação do
ator parece se esgotar, o diretor pede então a ele que se retire. Há ainda um outro tipo
de encenação proposta no filme, que parece uma espécie de teatro de rua e em que
não se sabe mais qual o limite entre a ficção e a realidade.
A primeira seqüência é a filmagem de um debate no MAM I RJ, que, a partir da
segunda metade da década de 1960, representou papel significativo na articulação da
resistência cultural e política. Presentes à reunião, tanto as figuras sentadas atrás de
uma longa mesa quanto a grande platéia que assiste ao debate, estão personalidades
conhecidas no quadro cultural brasileiro, entre intelectuais e artistas. Mas o que se
discutia ali? Segundo Glauber, a arte revolucionária, em meio ao surgimento do
Tropicalismo. Uma questão que os artistas de todas as áreas se colocavam nesse
momento era sobre a possibilidade do desenvolvimento de uma arte de vanguarda em
um país subdesenvolvido, como o Brasil: qual o seu papel, como conciliar
experimentação e comprometimento do artista em um projeto político e social mais
amplo, coletivo, particularmente sob um regime ditatorial? Tal discussão mobilizava
totalmente a sociedade brasileira naquele momento, a partir de temas que gravitavam
em tomo do núcleo duro da ditadura e do estado de dependência econômica e cultural
do país, entre os quais o nacionalismo, o subdesenvolvimento, o imperialismo norteamericano.
Em 1966, Helio Oiticica escreveu o texto Situação da vanguarda no Brasil,
apresentado no seminário paulista Propostas 66. Nele afirmava a existência de uma
vanguarda brasileira independente de quaisquer movimentos estrangeiros- americano
ou europeu -, mas não negava vínculos com eles, pois compreendia que, em arte,
nada existe desligado de um contexto internacional. Enfatizava o deslocamento
conceitual que se efetuava em relação ao espectador, que, de seu papel de
"contemplador" da obra realizada pelo artista, passava a "participador" das proposições
criativas mediadas pelo artista, abrindo-se, para ele, a possibilidade de experimentar
ou vivenciar a criação.
Característica da vanguarda brasileira, para Oiticica, seria a adoção da noção
de "objeto" em um projeto mais amplo, de arte ambiental, que envolvesse todo um
"conjunto perceptivo sensorial" (PEDROSA, 2006: 144), contraposto a categorias
artísticas estabelecidas tradicionalmente, como pintura ou escultura. Essas eram idéias
que já vinham sendo elaboradas desde o Neoconcretismo. No texto Teoria do nãoobjeto, publicado paralelamente à li Exposição Neoconcreta, realizada em 1960, Ferreira
Gullar concluía que "a pintura e a escultura atuais convergem para um ponto comum,
afastando-se cada vez mais de suas origens". Elas se tomam não-objetos "para os
ESTUDOS DE CINEMA
318
quais as denominações de pintura e escultura já talvez não tenham mais propriedade"
(2007: 3).
No Esquema geral da Nova Objetividade, Oiticica afirmava "a necessidade de
tomada de posição em relação aos problemas políticos, sociais e éticos, necessidade
essa que se acentua a cada dia e pede uma formulação urgente" (2006: 163). O
Esquema consta no catálogo da mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada em
abril de 1967, no MAM I RJ, e é subdividido em seis itens através dos quais o autor
procura sistematizar as características da arte brasileira de vanguarda daquele momento,
que ele define como "Nova Objetividade". Segundo ele, não se tratava de um movimento
articulado, mas de várias tendências que possuíam pontos em comum, visões múltiplas
que compunham uma unidade.
No primeiro item, Oiticica destacava a "vontade construtiva geral", que seria
uma característica comum a todos os movimentos inovadores do Brasil, incluindo o
Modernismo de 1922, com o sentido de se manter a busca pelo que é verdadeiramente
brasileiro e que se diferencia do europeu ou do americano. Sendo a antropofagia
oswaldiana a "redução imediata de todas as influências externas a modelos nacionais"
(2006: 155), Oiticica defende a "superantropofagia" a fim de abolir o colonialismo
cultural.
No segundo item, Hélio constatava a "tendência para o objeto ao ser negado e
superado o quadro de cavalete" à qual já nos referimos. Nesse item, ele faz uma
análise dos artistas que expuseram na mostra e aponta pessoas, grupos ou correntes
que foram importantes para a formulação do Esquema, como a seguir:
Neoconcreto {
Grupo
Poesia Participante
(Gullar)
Grupo Opinião
(Teatro)
Cinema Novo
LygiaClark
Realismo Carioca
Popcreto
Realismo Mágico
Parangolé
}Nova
Objetividade
(2006: 162)
No terceiro item, aparece a "participação do espectador" em oposição à "pura
contemplação transcendental" e, no quarto, a "tomada de posição em relação a
problemas políticos, sociais e éticos", em que condenava "a velha posição esteticista".
O quinto item diz respeito à "tendência a uma arte coletiva" e, finalmente, no sexto
item, "o ressurgimento do problema da antiarte". Nesse último item, Oiticica retoma
a questão do relacionamento do artista com o público e da possibilidade de fazer arte
de vanguarda em um país subdesenvolvido. O artista vê-se diante da necessidade não
de apenas criar, mas. comunicar-se, propor: "É essa a tecla fundamental do novo
. conceito de antiarte: não apenas martelar contra a arte do passado ou contra os conceitos
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA lV
319
antigos, (... ) mas criar novas condições experimentais, em que o artista assume o
papel de proposicionista" (2006: 167).
Na mostra Nova Objetividade Brasileira, Hélio Oiticica montou o seu projeto
ambiental Tropicália. Para ele, as sensações provocadas por Tropicália remetiam às
que tinha ao caminhar pela favela. Entrar e sair, dobrando "pelas quebradas" da
Tropicália, lembravam as caminhadas pelo morro" (FAVARETTO, 1992: 138). Tratavase de uma espécie de labirinto por onde os espectadores circulavam e viviam diversas
experiências sensoriais, com cores, areia e som. Em Oiticica, era forte o sentido da
"vivência", deslocando a arte do domínio da imagem para o da "experiência", na qual
o corpo tomava-se não suporte, mas parte integrante da obra.
A atitude assumida pelo artista é não mais a do criador absoluto, mas a do
"motivador para a criação". Esta se completa com a participação ativa do também
não mais "espectador", mas "participador". Ao abrir-se a esta participação, multiplicamse as possibilidades, incorporando também o imprevisto.
No cinema, há uma mudança na relação com o espectador quando ocorre uma
quebra nos códigos narrativos clássicos. Em Câncer, isso acontece não apenas com
a extensão dos planos ao limite ou com a negação de uma teleologia narrativa, mas
com o próprio processo de criação. O improviso que se abre à participação de atores
e não-atores, a idéia de proposição de um tema central em tomo do qual se desenrola
a seqüência, inclusive com a provocação direta de Glauber em alguns momentos, ligam-se
às experiências que se realizavam nas artes plásticas e no teatro, a partir dos anos 50.
Há duas seqüências em que os bandidos, Carvana e Pitanga, discutem sobre o
"objeto" roubado por um deles de um americano. Eles não sabem do que se trata e o
levam para vender ao Doutor Zelito. Os três, apesar de ainda não saberem o que era
aquele objeto, negociam um valor. Pode-se pensar a partir disso sobre o que se trata:
que tipo de objeto é negociado? Uma obra de arte? Um dispositivo tecnológico? Como
valorizá-lo? De toda forma, é o objeto que provoca a ação dos personagens, ou dos
atores, que têm que improvisar a partir dele, propor significados para ele. Pode-se
pensá-lo como desempenhando o mesmo papel que o "objeto" como estava proposto
pelos artistas plásticos- tem o sentido de incitar à participação, deixar para o outro a
tarefa de completar o sentido. Ao longo da seqüência, a voz de Glauber interfere
repetidamente, provocando os atores. Paralelamente a essa ação, enquanto os três
negociam, um homem, deitado em um canto da sala, é espancado por Carvana e
depois por Pitanga. A violência é tratada com banalidade, como algo dentro do normal.
Até que, no final da seqüência, o homem reage e passa a bater em Pitanga. O racismo,
que está presente como provocação ao longo do filme, aparece também nesta seqüência:
Pitanga, ao final, que foi quem conseguira o objeto, é acusado pelo parceiro de ter
ficado com o dinheiro.
Nas seqüências ficcionais de Câncer, pode-se constatar que se estabelece uma
espécie de jogo entre o que é previsto, proposto pelo diretor, e aquilo que é o imprevisto,
320
ESTUDOS DE CINEMA
que deve ser completado pelo ator. Essa mescla realizada por Glauber, a ambigüidade
das situações propostas, o esfumaçamento da fronteira entre ficção e documentário,
acabam por gerar um novo tipo de relação com o espectador, que é desafiado a dar
ordem ou a tentar entender o que está se passando.
Ao falar sobre O leão de sete cabeças e a forma como foi realizado, Glauber
enfatiza que o filme fora baseado fundamentalmente no improviso e no modo próprio
de representação do teatro africano, com a total cumplicidade dos atores que criaram,
inclusive, os diálogos. Para simbolizar os elementos em conflito na luta contra a
colonização, o diretor lançou mão de personagens: a mulher loura que representa o
imperialismo, o agente da CIA, o padre, o guerrilheiro latino-americano, o chefe
revolucionário negro etc. Negando que tais personagens fossem "sirnbolos alegóricos
abstratos" que não estivessem baseados na realidade, ele referencia o processo de
criação como inspirado no teatro de Brecht (2002).
Glauber rejeita as convenções narrativas do cinema que, segundo ele, foram
criadas dentro de uma lógica da dramaturgia burguesa de origem européia e critica o
estabelecimento de separações entre as artes, em especial entre o cinema e o teatro.
Se o teatro é uma representação no palco, o cinema é uma representação na tela... Diz
Glauber: "As pessoas dizem: isso é cinema! Isso não é cinema!, porque o cinema
imperialista criou um tipo de narrativa dizendo que aquilo era cinema" (2002: 109).
No processo de criação, o que se destaca é a importância da participação coletiva na
construção do filme:
O diretor de cinema, de Stroheim a Visconti, sempre foi um mestre de cerimônia em
função de um interesse da cultura, de certa tradição, a tal ponto que o cinema se
converteu numa mecânica completamente ridícula e inútil de convenções dramáticas,
de close up para dizer "eu te amo". Uma coisa completamente absurda que não
reflete verdadeiramente o comportamento do homem verdadeiro. É toda uma coisa
mistificadora, não? Então hoje só a criação coletiva, só a participação coletiva na
criação de um filme ou de uma peça de teatro, pode fornecer aos artistas, aos diretores
e aos cenógrafos os dados de uma linguagem nova. (ROCHA, 2002: 45-6).
Ao mesclar tipos diversos de encenações, utilizando-se de recursos originados
de outras artes, como a performance e o teatro, inserindo cenas documentais e
incorporando a participação de não-atores e de artistas de outros campos, Glauber
propõe um novo relacionamento com a linguagem que ultrapassa a tentativa de
experimentar estritamente a partir dos códigos cinematográficos usuais, como a
montagem e o enquadramento, por exemplo.
Essa experiência de Glauber, em Câncer, e suas idéias remetem a um contexto
mais amplo do que ocorria nas artes, naquele período. O improviso, a criação coletiva,
a busca de utilizar-se de linguagens de outros campos, além do cinema, a ligação com
a realidade e o cotidiano são preocupações presentes nas pesquisas de artistas de
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
321
várias áreas, em todo o mundo, que começaram a tomar força a partir de meados da
década de 1950.
O compositor americano John Cage foi figura fundamental na virada ocorrida
nas artes, nos Estados Unidos, nos anos 1950. Experimentando com os ruídos
produzidos pelos mais inusitados "instrumentos", Cage encontrou na filosofia e na
música orientais a inspiração para suas composições, que partiam de noções de acaso
e indeterminação. "Tal música, dizia ele, deixaria mais claro ao ouvinte que 'a audição
da peça é a ação própria dele - que a música, por assim dizer, é dele mais que do
compositor"' (ARCHER, 2001: 106). Segundo Arthur Danto, as experiências de
Cage situavam-se no limiar entre música e ruído, entre arte e vida (2002: 24).
Na dança, o bailarino Merce Cunningham desenvolvia as mesmas idéias,
abandonando o estilo tradicional para adotar movimentos inspirados nos gestos
cotidianos. Cage, na música, e Merce Cunningham, na dança, formaram uma parceria
em diversos projetos. Suas experiências, que culminam no surgimento do conceito
da live art, foram fundamentais para o aparecimento, em 1962, do Fluxus, que reunia
artistas de nacionalidades diversas em uma série de atividades - performances,
happenings, publicação de livros, realização de filmes e vídeos. Na verdade, tratavase mais de "uma tênue associação de artistas com idéias mais ou menos similares do
que um grupo bem definido" (ARCHER, 2001: 33). Suas ações coletivas, que
procuravam juntar arte e cotidiano e destruir convenções estabelecidas, reavivaram o
espírito dadaísta. Seu principal articulador foi o lituano radicado nos Estados Unidos,
George Maciunas, mas vários outros artistas fundamentais para a arte contemporânea
fizeram parte dessa história.
Maciunas, em 1963, escreveu o Manifesto Fluxus, no qual explicitava a intenção
do movimento de "purgar o mundo da doença burguesa, 'intelectual', cultura
profissional e comercializada, PURGAR o mundo da arte morta, imitação, arte artificial,
arte abstrata, arte ilusionista, arte matemática, - PURGAR O MUNDO DO
'EUROPANISMO'!" (2002: 94).
Posicionando-se contra a arte como mercadoria, os artistas passaram a se
valer do próprio corpo como material, abrindo mão da produção de objetos que
pudessem ser comercializados. A ênfase da arte voltou-se para o processo de criação
em que o que importava era a comunicação de idéias e conceitos. A performance
tomou-se um importante meio para a expressão de tais idéias, uma forma de traduzir
conceitos em obras ao vivo. Performers vinham de diferentes áreas -poesia, música,
dança, pintura, escultura ou teatro - e utilizavam suas ações para reduzir o espaço
entre artista e espectador, que muitas vezes era convidado a participar.
Em Câncer, a proposta de Glauber aos atores e aos outros participantes
assemelha-se à realização de performances. Em algumas seqüências, percebe-se que
suas estratégias coincidem com obras de alguns artistas. A apropriação da cidade, por
exemplo, cujas ruas são percorridas de carro por Glauber e equipe, foi experimentada
ESTUDOS DE CINEMA
322
por Vito Acconci, em 1969, que, em seu trabalho Following Piece (parte de Street
Works IV) seguia pessoas pelas ruas até que chegassem ao seu destino. Yoko Ono,
em 1970, propunha ao espectador que fizesse um mapa imaginário e depois que
caminhasse por uma rua da cidade, seguindo o mapa. Havia um tipo de performance,
conhecida como autobiográfica, em que o artista se valia de sua própria história
pessoal. Segundo RosaLee Goldberg, "vários artistas recriaram episódios de suas
próprias vidas, manipulando e transformando o material numa série de performances
através de cinema, vídeo, som e solilóquio" (GOLDBERG, 2006: 141 ). É o que parece
acontecer no momento do desabafo de Odete Lara em uma seqüência de Câncer.
Se em Câncer o diretor se faz presente através da voz, provocando os atores
ou falando diretamente para o espectador, em Claro, filmado em 1975, em Roma, o
próprio Glauber aparece ao lado da atriz francesa Juliet Berto, que era sua mulher na
época.
Feito em 16 mm, bitola não apropriada ao circuito comercial de salas de exibição,
Câncer parece representar um ponto de inflexão no cinema de Glauber Rocha que, no
lançamento do filme, afirmava que "o caminho do cinema são todos os caminhos".
Em seus trabalhos seguintes, o diretor aprofundou-se nesse processo de criação aberto
à participação dos atores, atuando cada vez mais como um "propositor", e na proposta
de um cinema que lançasse ao espectador o desafio de completar o sentido do filme e
pensar sobre os limites da arte.
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Dirigida por J. Guinburg.
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Cinema moderno e de vanguarda na TV:
o paradoxo pós-moderno de Cena aberta
RENATO
Luiz Pucc1
JR.
(UTP)
INTRODUÇÃO
O OBJETIVO deste artigo é apontar numa parcela da produção da TV brasileira
a existência de elementos de duas tradições cinematográficas: a modernista e a de
vanguarda. Será examinado o programa Cena aberta, dirigido por Jorge Furtado,
Guel Arraes e Regina Casé, exibido na Rede Globo em 2003. Ao final, será levantado
outro aspecto da questão, o diferencial desse programa em relação à produção para
cinema e televisão que há cerca de duas décadas apresenta a combinação paradoxal
entre elementos modernistas ou de vanguarda com a tradição da narrativa clássica.
Falar da presença de traços do cinema moderno e de vanguarda na TV pode
provocar a lembrança de programas de Godard para a TV francesa, como Histoire(s)
du Cinéma, ou de Greenaway para a BBC, como TV Dante; no campo nacional,
pode-se recordar dos quadros de Glauber Rocha no programa Abertura, ou a recente
microssérie Pedra do reino, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. 1 Esses programas
utilizaram de forma extensiva aquilo que Noel Burch chamou de "estruturas de agressão"
(1992: 149-63), a fim de desestabilizar expectativas do público, um dos traços
fundamentais das poéticas modernista e de vanguarda, cada qual com seus objetivos.
Cena aberta coloca problemas de outra ordem. Pode-se apontar como indício
da complexidade envolvida as reações diante da produção de Furtado e Arraes. O
professor Juremír Machado, por exemplo, afirmou que
1. A publicidade da exibição Pedra do reino nos cinemas assumiu os adjetivos em geral atribuídos aos
filmes modernistas brasileiros, como os de Glauber Rocha. Num folheto promocional, por exemplo,
lê-se: "incompreensível", "extraordinária", "hermética", "barroca", "selvagem", "obra de arte".
ESTUDOS DE CINEMA
326
Furtado é um bom publicitário que vendeu uma imagem de rebelde jamais
demonstrada. Não por acaso ele se tornou um dos grandes valores da Rede Globo,
pois a sua linguagem cinematográfica corresponde exatamente ao padrão Globo de
televisão: o folhetim por camadas sociais. Enquanto Guel Arraes representa o humor
tosco, Furtado lapida a sua arte de dar profundidade aparente ao profundamente
superficial (2003).
Em outras palavras, Furtado estaria na lista de diretores que pretendem ser
comerciais e de vanguarda ao mesmo tempo, tudo fazendo de forma calculada para
vender. Embora realize algumas experimentações, Furtado logo se acomodaria nas
fórmulas da mídia, ou seja, na espetacularização. "Comercial e de vanguarda"- essa
combinação surge, segundo esse ponto de vista, como um sinal de artimanhas
retrógradas e mercantilistas.
Por outro lado, mesmo defensores de Furtado e Arraes incorrem em problemas
que têm a mesma raiz que a de seus críticos. No artigo "O Núcleo Guel Arraes e sua
'pedagogia dos meios"', de Yvana Fechine (2007), faz-se um histórico do Núcleo
Guel Arraes e procede-se à descrição de seus produtos, tratando-os como um
conjunto singular na produção televisual em vista da idéia de TV de qualidade. A
"pedagogia dos meios" (ou seja, a exposição paradidática sobre os meios audiovisuais)
é a característica exaltada. Enquanto a produção da Globo é quase sempre naturalista,
ou seja, procura construir a impressão de realidade, a produção do Núcleo, Cena
aberta em especial, operaria no sentido de ilustrar o público quanto ao processo de
produção ficcional da TV.
Estes resumos são muito breves, mas indicam características centrais das
duas linhas de avaliação crítica. Em comum há problemas teóricos. No caso do discurso
desqualificador, de inspiração frankfurtiana, com aportes de Debord, Cena aberta
não passaria de um logro. Não é contemplada a possibilidade de haver ocorrências
diferenciadas, alheias à conceituação habitual (arte erudita x espetáculo) que obrigassem
à reflexão sobre programas como Cena aberta,
O discurso em apoio a Cena aberta, por sua vez, constitui-se como um estudo
de caso, metodologia que apenas se completa quando a pesquisa aponta para uma
realidade não evidente, o que só pode ser alcançado com auxílio teórico (BRAGA,
2007). Não se questiona, por exemplo, quais relações Cena aberta mantém com as
tradições do audiovisual, com os estilos narrativos (que são entidades teóricas). Há
um passo adiante em relação à outra postura, pois não se recusa a priori o exame do
programa, porém é necessário avançar a investigação.
2 . Anomalias teóricas, em termos da filosofia da ciência.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
327
Propõe-se aqui um quadro conceitual que evite abordar Cena aberta e
congêneres como aberrações 2 ou como ocorrências felizes e eventuais, sem que 0
tratamento signifique a rejeição ou aprovação a priori do programa. -
ASPECTOS FAMILIARES
Destaque-se em Cena aberta a confluência de tradições heterogêneas. Em
primeiro lugar, os componentes familiares. Os quatro capítulos que compõem o
programa exibem o processo de adaptação de obras literárias para a TV, com traços
do formato de making of
1) A hora da estrela, baseado na história homônima de Clarice Lispector, expõe
a escolha da moça que interpretará o papel de Macabéa, além de revelar a
direção de atores (com Regina Casé dirigindo as candidatas) e o trabalho de
edição;
2) O negro Bonifácio, do conto de Simões Lopes Neto, mostra a preparação
de atores para a composição de personagens regionais, no caso, gaúchos,
com o treinamento de sotaque, gestualidade e outras particularidades;
3) Ópera de sabão, do romance de Marcos Rey, apresenta a criação do roteiro
e o trabalho da retaguarda de produção: maquiador, faxineira, etc.;
4) As três palavras divinas, do conto de Tolstói, revela como é feita a utilização
de não-atores, além expor a criação de cenários e truques, como o da neve
artificial e do vôo do anjo.
Trata-se de falsos making of's, pois não existem os produtos finais a que se
referiria o "of' dessa expressão: não foram realizados A hora da estrela, Negro
Bonifácio e as outras histórias enquanto programas integrais, como o making of de
Titanic tem como referencial o filme Titanic.
O mesmo poderia ser dito de uma possível associação com o Vídeo show. Em
Cena aberta há também a exposição do trabalho de encenação, erros de gravação
etc., mas, ao contrário do Vídeo show, que toma por objeto as telenovelas, seriados,
minisséries, enfim produtos da programação da Globo, nunca foram completados os
quatro capítulos ficcionais.
É provável que a semelhança com verdadeiros making of s e quadros do Vídeo
show permita a sensação de familiaridade de grande parte dos espectadores, primeiro
passo para uma relação de aprendizado sobre a criação televisual.
Por outro lado, pode-se muito bem imaginar como seriam os quatro produtos
ficcionais caso se concretizassem integralmente e pudessem um dia ter sido encontrados
na grade da emissora. A partir dos testes e ensaios, percebe-se que o resultado seriam
produções naturalistas, à maneira da imensa maioria do que se faz na ficção televisual
ESTUDOS DE CINEMA
328
brasileira. Procura-se uma moça com traços de nordestina para interpretar Macabéa;
0 baiano Lázaro Ramos e a carioca Carolina Dieckmann aprendem o obscuro
vocabulário do interior gaúcho; a peruca da protagonista de Ópera de sabão precisa
ser convincente; o cenário de As três palavras divinas deve coincidir com o que o
senso comum aceita como um ambiente rural russo de séculos passados.
As liberdades que se tomam em relação aos textos originais, como a introdução
do happy end em Ópera de sabão (não há o aborto, o casal termina junto), também
atuam no sentido da busca da aceitação por parte de um público amplo, habituado a
soluções desse tipo.
Além do mais, nos trechos em que se vislumbra o que seriam os produtos
finais, os recursos técnicos, como edição, iluminação e enquadramentos, seguem as
prescrições do estilo narrativo clássico, que os espectadores conhecem do cinema e
da ficção televisual brasileira e internacional.
MODERNISMO E VANGUARDA
Cena aberta possui também aspectos pouco familiares ao grande público. As
entrevistas das moças poderiam se restringir ao que a própria Regina Casé costuma
fazer em seus programas. Todavia, há uma estranha conjunção de encenação e realidade,
de modo que não é evidente, a cada momento, se as moças estão encenando ou
falando delas próprias. Esse efeito tem uma longa história no audiovisual. Pode ser
identificado, por exemplo, em cenas de Masculino-Feminino (1966), de Godard,
quando os personagens (ou atores) entrevistam-se uns aos outros, e em especial
quando um deles entrevista uma jovem que não é atriz, mas exatamente aquilo que diz
ser, uma moça comum, que ganhara um prêmio de beleza juvenil. A agressividade dos
entrevistadores cria tensão, pondo em xeque os entrevistados, que são vistos em
câmera imóvel, planos longuíssimos e incômodos a qualquer público habituado à
narração clássica, seja nos anos 1960 ou atualmente. Em Cena aberta, ainda que haja
a fusão entre real e ficcional, o estranhamento é amenizado, inclusive devido aos
planos curtos das várias entrevistadas.
Os elementos de conhecimento público estão mesclados a procedimentos que
reciclam a metalinguagem modernista, no sentido jakobsoniano, característica
privilegiada de textos modernistas (como da própria Clarice Lispector), que se traduz
em referências à linguagem audiovisual da maior parte da programação da Globo.
A "pedagogia dos meios" possui tanta semelhança com making of's e Vídeo
show quanto se vincula a uma pedagogia cinematográfica vanguardista que remonta a
Um homem com uma câmera (1929). Vertov também, à sua maneira, expôs como se
faz um filme, abrindo ao grande público a cena cinematográfica, por exemplo, na
célebre seqüência em que exibe a montagem do próprio filme. Não há em Cena
aberta equivalente perfeito ao trecho em que se congela a imagem da carruagem e
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA 1V
329
passa-se à sala de montagem em que os segmentos do próprio Um homem com uma
câmera são manipulados pela montadora. Não teria sido impossível fazê-lo, de modo
a revelar-se o trabalho na ilha de edição. Em Cena aberta, porém, optou-se pela
discrição, fazendo-se o vínculo, neste caso, com a proposta auto-reflexiva do cinema
moderno. Tome-se como exemplo a seqüência de Cena aberta em que Macabéa sai
do quarto de pensão desce a escada, fecha o portão e caminha na rua. A estrutura de
edição é clássica, portanto familiar ao grande público, com um elemento contraditório,
condição para o rompimento do ilusionismo: três cortes compõem as quatro cenas
em continuidade espaciotemporal, mas Macabéa é interpretada por quatro moças
diferentes, as candidatas ao papel. Revela-se a descontinuidade. Pode-se arriscar a
dizer que não é necessário um repertório erudito para captar esse trabalho de edição,
mesmo porque àquela altura já era do conhecimento do espectador que as moças
faziam testes para desempenhar o papel de Macabéa. É possível admitir que muitos
espectadores compreendam que os quatro planos foram pinçados dos testes, editandose o plano inicial, dentro do quarto de pensão, usando o teste da primeira moça com
o plano da escada do teste da segunda, e assim sucessivamente.
PÓS-MODERNISMO
Jean-Claude Bernardet certa vez escreveu que o cinema dos anos 1960
denunciava aos espectadores: "Eis o esqueleto do monstro de produzir ilusões" (1985:
79). Referia-se a filmes como os de Glauber Rocha e Sganzerla, elaborados para,
entre outros objetivos, denunciar o ilusionismo do cinema clássico, ideal modernista.
Como escreveu o crítico Clement Greenberg, para os modernistas, ilusão é embuste
(1997: 68).
Numa realização como Cena aberta, a perspectiva é diferente, embora também
passe pela revelação do mecanismo que produz a impressão de realidade: mostra-se o
esqueleto, mas o monstro não é tão feio. A combinação de aparência esdrúxula entre
procedimentos naturalistas e antinaturalistas, em rápida alternância, manifesta o que
Linda Hutcheon chamou de caráter paradoxal do pós-modernismo (1991: 60-83). É a
essa poética que se relaciona o programa de Arraes, Furtado e Casé.
Por que a expressão "pós-modernismo" e não outra qualquer para designar
esse fenômeno cultural e artístico? É provável que ninguém tenha dado melhor resposta
à questão do que Paolo Portoghesi, arquiteto e teórico italiano, que chamou a palavra
"pós-modernismo" de o mais incômodo e paradoxal dos adjetivos, porém o único a
exprimir a recusa de certa continuidade, a do modernismo (2002: 25-6). Este se
baseia no axioma de que só tem valor o que é novo, daí o requisito fundamental de
originalidade, o que, disse Portoghesi, constitui a subscrição de uma "espécie de
seguro" em favot do caráter perpétuo e insubstituível do modernismo:
ESTUDOS DE CINEMA
330
Premissa 1: O que é novo é moderno.
Premissa 2: O que é moderno é novo.
Conclusão: Nada de diferente do moderno jamais poderá
surgir no horizonte da história da arte.
Eis contra o que se coloca o pós-modernismo, na acepção aqui indicada, com
a qual se refutam avaliações como a apontada no início: vanguarda e comercial como
indício de falcatrua artística. 3
Cena aberta quebra o hermetismo da proposta modernista. Na medida em que
a originalidade deixa de ser o ideal a ser perseguido a todo custo, incrementa-se a
possibilidade de denominadores comuns entre o programa e o repertório do grande
público. A proposta de propiciar o conhecimento do processo de produção da ilusão
naturalista poderia ser identificada ao ideal das vanguardas históricas das primeiras
décadas do século XX, que, diferentemente do modernismo em geral, sempre
defenderam a inclusão da arte na vida cotidiana. Contudo, seria uma equiparação
superficial: toda vanguarda executa uma espécie de tratamento de choque, mesmo
em Vertov, possivelmente o mais pedagógico dos vanguardistas do cinema. Por isso,
o pós-modernismo não é um simples revival de tradições.
O caráter paradoxal envolve, segundo Hutcheon, a superação das antíteses
típicas dos que teorizaram sobre o pós-modernismo, que em geral colocaram a oposição
entre modernismo e pós-modernismo na forma de duas colunas de características
aparentemente inconciliáveis, reproduzida, por exemplo, em HARVEY ( 1996: 48):
MODERNO
PÓS-MODERNO
Propósito
Jogo
Determinação
Indeterminação
Transcendência
Imanência
Hierarquia
Anarquia
Distância
Participação
Metafísica
Ironia
3 . Uma exposição sobre diferentes concepções acerca do pós-modernismo pode ser encontrada em
PUCCI JR. (2006).
.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
331
Para Hutcheon, o pós-modernismo não seria o lado direito desse esquema,
mas a combinação entre as duas colunas: jogo càm propósito, por exemplo, que
resultaria no caráter simultaneamente lúdico e critico da produção pós-modernista
(1991: 74). Em Cena aberta, há a combinação entre naturalismo e antinaturalismo,
entre comercial e vanguarda. "Comercial" porque voltado para a comunicação com o
grande público; "vanguarda" porque não opera apenas com a espetacularização, mas
também a desconstrói.
O caráter paradoxal esteve presente no pós-modernismo cinematográfico
brasileiro desde o início dos anos 1980 em filmes como Cidade oculta (Francisco
Botelho, 1986), Anjos da noite (Wilson Barros, 1987) A dama do cine Shangai
(Guilherme de Almeida Prado, 1988). Na televisão brasileira, com características
audiovisuais e narrativas um tanto diferenciadas em relação ao cinema pós-moderno
(sumiu o neon, símbolo do fake), surgiu na mesma época o pós-modernismo com
Armação ilimitada, seriado dirigido por Guel Arraes (PUCCI JR., 2007). Partia-se
para a superação do divórcio entre cinema e TV no Brasil: elementos dos programas
do Núcleo Guel Arraes passando ao cinema, como em Carlota Joaquina, ou nas
minisséries Auto da compadecida e A invenção do Brasil, que foram transformadas
em filme. Cena aberta é mais um episódio desse processo.
CONCLUSÃO
Ainda um último aspecto de Cena aberta merece comentário, em vista da
relevância para o mapeamento do pós-modernismo no audiovisual brasileiro.
Normalmente, a "pedagogia dos meios" se fez no pós-modernismo de forma integrada
à narrativa. Um exemplo: o trecho de Anjos da noite em que um casal está na Avenida
Paulista e quer ir ao apartamento da mulher (interpretada por Marília Pêra). O rapaz
(Guilherme Leme) diz que vai chamar um táxi; .a mulher fala que não é necessário,
que farão "como no cinema". Dão-se as mãos, fecham os olhos, contam até três.
Corte seco e surgem no apartamento. O rapaz solta uma exclamação ambígua, que se
pode referir tanto a um suposto e inexplicável teletransporte como ao aspecto luxuoso
da decoração (sugerindo a ocorrência uma elipse temporal). Em suma, é possível,
embora não exclusiva, a leitura metalingüística (PUCCI JR., 2003: 62-3).
Em Cena aberta, a exposição dos procedimentos narrativos e das técnicas é
simultaneamente mais complexa e mais acessível. Vai-se aos bastidores, mostra-se o
processo de produção do ilusionismo, exibem-se partes de seu resultado, ressaltamse notas destoantes, como a caracterização de Wagner Moura como Olímpico, em A
hora da estrela (a interpretação é naturalista, ele faz com perfeição o nordestino
arrogante e mau-caráter que namora Macabéa; contudo, não está vestido como um
nordestino humilde que tentasse se aculturar no Rio de,. Janeiro, e sim como Wagner
Moura). É um ensaio de gravação- eis a justificativa para os que só pensam em
ESTUDOS DE CINEMA
332
termos de making of; mas também é possível ver, quase ao mesmo tempo, como nas
célebres figuras de gestalt, a 。ャエセュ¬ョ」ゥ@
entre personagem e ator.
A exposição do processo de criação de programas de TV, combinada com a
fusão de realidade e ficção, leva Cena aberta a um caminho no mínimo incomum.
Talvez se possa dizer que o pós-modernismo na televisão brasileira chegou com 0
programa a um patamar diferenciado.
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O valor estético dos videoclipes para canções de
filmes: marcas autorais como diferencial expressivo
RoDRIGO RIBEIRO BARRETO
(UfBA) 1
QUER ESTEJAM avaliando o terreno da arte ou do que se considera mero
entretenimento, os analistas contemporâneos deparam-se com uma inafastável realidade
pronta a diluir o estabelecimento de polaridades mais radicais no contexto cultural: a
já estabelecida interseção entre os diversos campos de produção. Basta lembrar, em
termos financeiros, a progressiva concentração de empresas- marcadamente a partir
dos anos 1990- voltadas para a produção, veiculação, divulgação e até mesmo venda
direta de bens culturais. Tais conglomerados, como Time Warner Inc., Sony
Corporation ou Viacom, unem os campos musical, televisivo, cinematográfico,
jornalístico, literário, etc., tirando o máximo proveito da sinergia, definida por Peter
Fraser como o "processo através do qual um produto midiático pode ser usado para
ajudar a vender um outro, frequentemente da mesma companhia" (FRASER, 2005: 74).
Essa maximização dos efeitos de venda, no entanto, não impede que certos
realizadores- imersos neste universo de grande competitividade- fujam do já visto e
repetido, buscando sublinhar a sua capacidade expressiva e artística mesmo em produtos
audiovisuais situados no cerne de todo esse interesse mercadológico, a exemplo dos
videoclipes. O leitmotiv deste artigo reside precisamente na identificação de
investimentos artisticamente ambiciosos, de artistas musicais e diretores, neste formato,
por serem estas as instâncias que mais claramente permitem tecer considerações a
respeito do estabelecimento de novas posições autorais no próprio contexto de produção
dos clipes. Sem pretender fugir de sua vinculação comercial, e lidando diretamente
com a interseção com outros campos de produção artística, faz-se aqui a opção pela ,
I. A pesquisa do autor/doutorando é apoiada pelo CNPq na condição de bolsista.
ESTUDOS DE CINEMA
,334
avaliação do valor estético de um subtipo de vídeo musical que está duplamente
entranhado nesta lógica de divulgação e inter-influência: o clipe para canções incluídas
em filmes.
Há quase três décadas, a elaboração de clipes para canções de filmes atende a
interesses tanto da indústria musical quanto da cinematográfica.2 Para cumprir esta
função promocional, no entanto, os videoclipes precisam valer-se como produto
cultural per se, evoluindo para além do mero papel de trailers ou anúncios dos longasmetragens. Como afirma Andrew Goodwin, somam-se a esta dupla demanda
econômica novas exigências narrativas:"( ... ) o clipe tem que vender um filme assim
como um álbum e deve permitir que a narrativa cinemática seja experimentada sem
dela entregar demais" (GOODWIN, 1992: 163). É precisamente na operação de
incorporações originais e inusitadas do material filmico à sua disposição que diretores
e artistas musicais demarcam seu diferencial criativo. Tal originalidade, em última
análise, garante um maior grau de atratividade para as emissoras de TV e público, e
assim o sucesso desses vídeos musicais.
CLASSIFICAÇÃO DOS VIDEOCLIPES
PARA CANÇÕES DE FILMES
Partindo do contexto de produção para a manifestação textual da incidência
filmica, neste tipo específico de videoclipes notam-se diferentes graus de reorganização
do material oriundo dos longas-metragens em questão. A classificação aqui proposta
resume- em três categorias-, um percurso no qual o papel do diretor cinematográfico
na construção de sentido destes vídeos musicais vai sendo gradualmente substituído
pela contribuição/colaboração do diretor de clipes e do artista musical para o formato.
Embora esse processo trate-se - na perspectiva de uma progressiva autonomização
do campo do videoclipe - de uma evidente evolução, não se deve perder de vista que
representantes de cada um dos três grupos descritos continuam a ser produzidos e
veiculados.
A primeira das categorias propostas seria a dos clipes exógenos, nos quais todo
o visual exibido pelo vídeo musical vem do filme promovido, tendo sido, portanto,
inteiramente filmado pelo diretor de cinema. O máximo de trabalho demonstrado na
organização de clipes exógenos é a reedição de diferentes cenas do longa-metragem
2. Além da gravadora, a produção de um videoclipe para canção de filme tem, portanto, coriló
especificidade o acréscimo da influência das instâncias de marketing cinematográficas. Lara M.
Schwartz (2007: 42) sinaliza o papel ativo dos departamentos musicais ("soundtrack department'')
dos estúdios de cinema na criação do videoclipe. A liberação do material filmico, que fará parte da
composição de muitos destes clipes, é feita inclusive através destes departamentos.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
335
de modo coerente com o ritmo musical e a atmosfera sugerida pela canção. Contudo,
há ainda os casos em que até mesmo o trabalho de um editor para o vídeo é dispensado,
optando-se pela apresentação de todo um trecho do filme na íntegra, algo possível
especialmente quando a origem é uma obra cinematográfica musical. Nessa categoria,
o artista musical só estará presente no videoclipe caso ele ou ela seja também um dos
intérpretes/participantes do filme: mantém-se assim a característica do clipe exógeno
de não trazer qualquer material original e exclusivo. Para Caro! Vemallis, videoclipes
assim são"( ... ) os mais francamente semelhantes a anúncios (... ) esses vídeos são
considerados [pelos fãs] como manipuladores e fáceis demais, não sendo encarados
como 'verdadeiros' vídeos" (2004: 204).
Os clipes mistos constituem a maioria dos vídeos para canções de filmes.
Neste diversificado grupo vê-se a reconfiguração de cenas do filme associadas a
material, originalmente captado para o videoclipe, o qual, via de regra, traz o(a)
cantor(a) ou banda em performances musical (canto ou instrumental), dramática,
interpretando um papel, e/ou coreográfica. A junção das imagens filmicas e videoclípicas
pode ser realizada de diferentes modos - edição paralela, colagens, incrustações,
projeções, sobreposições, etc. - e nota-se ainda que variam a proporção, o grau de
diálogo, a importância, enfim, a hierarquia entre o material filmico e o material exclusivo
do clipe. Em todos os casos, no entanto, as participações do artista musical e do
diretor do vídeo são realçadas em relação à categoria anterior.
Por sua vez, nos clipes originais, o destaque das instâncias diretiva e
performática próprias do formato é pleno, seja na concepção/seleção do conceito do
videoclipe ou no protagonismo nele evidenciado. Os videoclipes originais são
inteiramente compostos de material novo, sem a inclusão de cenas dos filmes, ainda
que freqüentemente façam alusão à temática, à ambiência e a personagens da obra
cinematográfica com que se relacionam. Algumas vezes eles apontam a ligação com
o produto audiovisual extraclipe ao trazer a participação de atores dos filmes divulgados;
estes aparecem, no entanto, em situações inéditas, não vistas no cinema ou mesmo
"fora" de seus personagens ("como eles mesmos").
Alguns cantores e diretores conseguem, portanto, driblar interesses puramente
comerciais, transformando mesmo os videoclipes para canções de filmes em obras
afinadas a seus projetos pessoais de criação. Os motivos para esta relevância podem
ser localizados em modificações históricas e contextuais próprias do campo de produção
dos videoclipes; dentre elas, a persistência e popularidade dos videoclipes como produto
de divulgação de canções, o interesse de músicos na esfera visual, o investimento dos
diretores no formato como exercício e satisfação estética, a valorização da novidade
e diversidade nos clipes, além da criação de esferas de reconhecimento e consagração
específicas para os vídeos musicais.
Através da análise de um videoclipe misto (Deadweight) e outro original (Die
Another Day), nos quais se destacam, respectivamente, um diretor (Michel Gondry)
··336
ESTUDOS DE CINEMA
e uma cantora (Madonna), pretende-se esclarecer os pontos apresentados acima,
além de aprofundar a argumentação sobre as possibilidades autorais no campo dos
clipes.
DEADWE/GlfT: O FILME A SERVIÇO DO VIDEOCLIPE
Com uma trilha musical que alterna o passado e a atualidade pop-rock, o filme
Por uma vida menos ordinária (DANNY BOYLE, 1997) manteve, na sua divulgação,
esse mesmo tipo de investimento. Enquanto o trailer trazia Beyond the sea, gravada
em 1959 por Bobby Dario, o videoclipe com cenas do filme aposta na novidade de
Deadweight, composta por Beck especialmente para o longa-metragem. Dirigido por
Michel Gondry (1997), Deadweight é um caso de clipe misto com todos os elementos
funcionando em sintonia, uma vez que: 1) é dada atenção à canção, levando-se em
conta a heterogeneidade de suas ocorrências instrumentais/efeitos, além de algumas
sugestões de sua letra; 2) tira-se bom proveito da imagem, sempre trabalhada por
Beck, sua "aura às vezes angustiada, às vezes cômica" (AUSTERLITZ, 2007: 134),
3) evita-se a obviedade na inserção do material filmico com a cuidadosa seleção de
cenas do filme, aparecendo como devaneios ou delírios do protagonista do clipe; e 4)
organiza-se um vídeo atraente, visual e narrativamente, com trama e ambiência próprias.
O enredo específico do videoclipe Deadweight tem como premissa um jogo de
inversões: na construção de uma atmosfera absurda e onírica, universos polarizados
confluem, confundem-se e/ou trocam de lugar. É interessante notar que essa
transformação da normalidade no clipe não remete diretamente, como seria esperado,
ao tom também fantasioso de Por uma vida menos ordinária. Gondry assume ter se
inspirado no curta-metragem Il était une chaise (Claude Jutra & Norman McLaren,
1957), o qual mostra a disputa entre um homem e uma cadeira, que, pura e
simplesmente, resiste em deixá-lo sentar-se.
Em Deadweight, Beck aparece cantando e, ao mesmo tempo, envolvido em
diferentes situações. Inicialmente, ele é visto à mesa de trabalho, até ser revelado que
seu escritório (com direito a arquivo e cabide de pé) está "montado" em meio às
brincadeiras e passatempos de pessoas em uma praia. Seguindo a mesma
(des)orientação, o personagem irá posteriormente passar suas férias - sentado em
uma cadeira de praia e drinque tropical na mão- em meio à balbúrdia de um escritório
de verdade. A "inabitualidade" do clipe completa-se com outros acontecimentos. No
lar do protagonista, fotos familiares cobrem as paredes, enquanto amostras de papel
de parede ocupam porta-retratos. Durante uma viagem de avião, o passageiro no
interior do avião sofre com a instabilidade do tempo, ao passo que, do lado de fora,
uma ave está pousada placidamente. Na rua, Beck vê um homem carregar seu carro
nas costas. Estas e outras idéias permeiam completamente a obra, criando um conjunto
de circunstâncias que renderiam suficientemente todo um videoclipe: é sintomático,
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
337
por exemplo, que, por si só, uma dessas situações- a imagem da sombra, que assume
o controle e conduz o protagonista - tenha sido pensada para um outro trabalho não
concretizado do diretor. 3 Apesar disso, Gondry faz jus à "encomenda" de um videoclipe
para canção de filme, utilizando o material filmico e unindo-o a suas idéias originais de
uma maneira que não poderia ser mais bem ajustada.
O protagonista de Deadweight - assim como os demais personagens - reage
com bastante naturalidade ao singular mundo do clipe até que a introdução das cenas
de Por uma vida menos ordinária demarca a virada desse comportamento: a partir
daí, o desequilíbrio exibido é construído como originado da relação de Beck com as
imagens do filme e não com o seu inusitado ambiente. Como acontece em alguns
sonhos, 4 há um grau de estranheza aceitável e administrável e um outro nível- exibido
como uma espécie de alucinação do personagem de Beck -, que é causa de seu
desconforto e desnorteamento. Tais delírios são exatamente os trechos emprestados
do filme, que são antecipados por reações involuntárias e incontroláveis do protagonista
do clipe. Em certo momento, por exemplo, vê-se Beck cair de uma cadeira e a cena
seguinte, retirada do filme, mostra o personagem de Ewan McGregor ser jogado no
chão. A imagem do protagonista do clipe, abrindo a boca durante um sonho, toma
outro sentido ao estar associada com um close-up de Stanley Tucci, um dentista na
trama cinematográfica. Além dessa relação de causa e efeito, que bem poderia ser
exemplificada por outras situações do vídeo musical, os materiais filmico e videoclípico
aproximam-se pela construção de equivalências nas ações de seus respectivos
personagens ou na mis-en-scene exibida.
A conclusão de Deadweight é particularmente representativa da sua bem urdida
manobra entre o clipe e o filme. Nela, em mais um momento estranho, os sapatos de
Beck caminham à sua frente, conduzindo-o para uma sala de cinema onde está em
cartaz justamente Por uma vida menos ordinária: o letreiro anuncia o título, o cartaz
do filme é apresentado, e as fotos ilustrativas em sua volta trazem as imagens que
sobressaltaram o protagonista no decorrer do clipe. Dessa maneira, além de fazer
uma detalhada divulgação do filme, Gondry consegue construir um protagonista,
que, neste ponto, está colocado em lugar semelhante ao do espectador, na época do
lançamento do clipe e do filme, isto é, na posição de alguém submetido a certas cenas
mesmo antes de ter assistido à obra cinematográfica. O último toque irônico do diretor
do videoclipe é que, ao entrar no cinema, Beck não assiste ao filme, prevalecendo, no
3. Informação presente no encarte da coletânea oficial de videoclipes de Michel Gondry. Ele atribui
essa idéia a um de seus parceiros, o poeta islandês Sjón Sigurdsson, co-compositor das canções
Joga e Bachelorette, interpretadas por Bjõrk, para as quais Gondry dirigiu os respectivos clipes.
4. Tal possibilidade de interpretação onírica é demarcada pelo aparecimento de Beck, cochilando de
maneira pouco confortável ou acordando bruscamente.
338
ESTUDOS DE CINEMA
fmal, a trama original do clipe com uma última inversão: no espaço fisico destinado à
ficção cinematográfica, o personagem encontra conforto ao assistir uma versão
normalizada de suas desventuras, na qual ele finalmente pode trabalhar em um escritório
e relaxar em uma praia.
DIE ANOTI1ER DAY: NO LUGAR DE JAMES BOND
Se, em Deadweight, o universo próprio do diretor Michel Gond.ty contamina
positivamente o videoclipe para a canção do filme, o vídeo Die another day (Traktor,
2002) trata-se de uma bem-sucedida tentativa de associar a grife James Bond ao
destaque e poder musicais de Madonna. 5 O convite feito à cantora se dá em um duplo
momento de celebração, no qual se comemorava os 40 anos da série cinematográfica
e a produção do seu 20° filme, 007 - Um novo dia para morrer (Lee Tamahori,
2002). Com um grau de liberdade ancorado em sua posição no campo musical, Madonna
distingue-se de cantoras anteriores de bond themes por não aparecer apenas como
intérprete, mas também como compositora e produtora: trabalho realizado junto com
seu parceiro Mirwais e sem a interferência dos habituais produtores e arranjadores da
série. 6 Para completar, a artista negociou uma breve participação como atriz no filme:
de modo coerente com a lógica de subversão de estereótipos femininos constante em
sua carreira, Madonna faz uma ponta como Verity, uma esgrimista lésbica mais
interessada na bond girl do que no famoso agente conquistador.
Uma chave possível de interpretação de Die another day é justamente este
ajuste do videoclipe à constante reinvenção da imagem de Madonna. Como emBeautiful
stranger (Brett Rattner, 1999),7 ela já havia encarnado o papel de charmosa e sexy
espiã- um dos arquétipos femininos desde Mata Hari- a cantora desvia-se da imagem
de objeto de desejo para adotar arquétipos masculinos emDie another day. A coreografia
vigorosa do clipe, exibida como dança e luta, busca, por exemplo, enfatizar esse lado
atlético. Acompanha-se a protagonista ocupar o lugar de um James Bond, resistindo
a uma longa sessão de tortura, da qual escapa de modo tão espetacular quanto faria o
famoso personagem. Ao final do clipe, a silhueta de Madonna é inclusive mostrada
dentro da recorrente íris (diafragma fotográfico), uma das marcas da série que, nas
aberturas dos filmes, enquadra 007. A escolha por esta posição de herói de ação tem
5. Tanto a trilha sonora, que tinha como bônus o videoclipe de Madonna, quanto o single alcançaram
· os primeiros lugares das parada geral e dance nos EUA e Grã Bretanha.
·· 6. Algo que pode explicar mais um diferencial da canção de Madonna, o fato de tratar-se de uma
música do gênero dance e não uma balada grandiloqüente, como temas anteriores de 007.
· 7. Outro clipe original para a canção do filmeAustin Powers The Spy who Shagged Me, uma paródia
à série James Bond.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
339
urna outra explicação também relacionada à trajetória de Madonna: na mesma época
da criação da canção e do clipe, a artista estava explorando a temática da violência em
outros trabalhos (fase American life).
Inteiramente apoiado nas performances vocal, coreográfica e dramática de
Madonna, Die another day pertence à categoria de clipes originais, não trazendo
qualquer cena do filme 007- Um novo dia para morrer. O videoclipe é, no entanto,
francamente inspirado na seqüência de tortura que precede a abertura deste longarnetragern. A idéia desenvolvida pelo Traktor- coletivo de criação responsável pelo
clipe - avança, entretanto, deste nível de ação externa entre a protagonista e seus
algozes para uma dimensão psicológica da personagem na qual urna Madonna de
branco e outra de negro lutam ferozmente em meio a urna espécie de museu dedicado
às aventuras de Jarnes Bond. A construção visual desta disputa íntima entre bem e mal
parte do conteúdo verbal da canção - que fala de análise pessoal, destruição do ego,
pecados, etc. -, faz apelo à memória do espectador e serve ainda para homenagear
vátios momentos da série 007, através de referências a personagens (vilões e bond
girls), figurinos e acessórios utilizados pelo espião e seus inimigos. Entre os filmes
citados estão: 007 contra o Satânico Dr. No (1962); Moscou contra 007 (1963) e 007
contra Goldfinger ( 1964). Em Di e another day, a importância da série cinematográfica
em pleno período de comemoração é ressaltada, portanto, pelo esmero característico
do Traktor, instância diretiva que costuma investir grande parte do orçamento dos
clipes no departamento de arte (cenografia, figurino e elementos de cena).
Procedimento comum nos vídeos musicais, essas citações intertextuais intensificam
- nos clipes para canção de filme - a relação com a obra- divulgada.
CONCLUSÃO
No seu arrazoado sobre a relação entre o cinema e a videoarte, Philippe Dubois
afirma que "cabe também perguntar qual é o cinema que o vídeo convoca e qual o
papel que ele desempenha na trama: quem, cinema ou vídeo, impõe seu jogo ao
outro" (2004: 234). Questionamentos assim parecem pertinentes ao avaliar os
videoclipes para canções de filmes, especialmente quando se percebe que muitas
obras neste formato deixam de estar completamente atreladas às necessidades e
interesses promocionais da indústria do cinema. Nos casos analisados, percebe-se a
não-imposição de urna forma sobre a outra, ou seja, o estabelecimento de urna
associação sirnbiótica, em que o rnateriaVinspiração filmica- com freqüência colocado
culturalmente em um patamar superior de valorização - não obscurece o instigante
material videoclípico.
Por serem obras com abordagens específicas - visuais, narrativas, temáticas
- e com público apreciador próprio, esses vídeos musicais continuam a ser assistidos
e procurados muito tempo depois do arrefecimento da função comercial, que o campo
ESTUDOS DE CINEMA
340
cinematográfico lhes atribuiu. Isso fica evidente na sua petmanência prolongada na
programação dos canais televisivos especializados e na sua inclusão nas coletâneas
oficiais em DVD de cantores, bandas e diretores. Na verdade, esta prova do tempo
nem é o único meio para o reconhecimento da qualidade destes clipes, uma vez que
tal consagração pode ser contemporânea ao lançamento das obras, partindo de instâncias
já estabelecidas nos próprios campos musical e do videoclipe. Ainda utilizando os
clipes analisados como exemplos, podem ser lembrados os prêmios, que tanto
Deadweight quanto Die another day conquistaram da Music Vídeo Production
Association (MVPA Awards 1998 e 2003), além das indicações, nos mesmos anos,
para os Video Music Awards da MTV Certamente, tal situação afigura-se como
decorrente da presença de realizadores de clipes - diretores e performers- com uma
trajetória marcada pela busca de independência e controle sobre seus investimentos
artístico-expressivos; figuras autorais que, inclusive, não põem limites em sua
participação no audiovisual, dividindo-se entre álbuns, longas de ficção, documentários,
videoclipes e atuando, deste modo, em campos cada vez mais interpenetrados.
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SCHWARTZ, Lara M. Making Music Videos. New York: Billboard Books, 2007 .
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York: Columbia University Press. 2004.
Interfaces do cinema multimidiático
de Peter Greenaway
DENISE AzEVEDO DUARTE GUIMARÃES
(UTP)
INTRODUÇÃO
EsTE TRABALHO é um recorte de uma pesquisa mais abrangente, na qual investigo
de que modo as iconografias eletrônicas se. combinam, para quantificar e qualificar a
informação, tanto na TV, quanto no cinema, gerando processos de "transdução" ou
de transcriação, que criam inéditas relações de percepção e novos significados.
Embora consciente do muito que já se escreveu sobre Prospero 's Books (1991 ), 1
tomo como objeto de estudo este filme de Peter Greenaway, para focalizar seu diálogo
ゥョエ・イクオ。セ@
com a TV Dante (série televisual por ele dirigida). Traduzido no Brasil
como A última tempestade, o filme consagrou-se como uma das primeiras obras
cinematográficas em que se toma visível uma radical manipulação das imagens em
movimento, sob a perspectiva de uma experimentação exacerbada. Mesmo sabendo
· ser ainda tecnologicamente inviável, o diretor procurou :fàzer algo absolutamente
. diferente (como afirma em várias entrevistas), acoplando ao seu filme recursos tidos
como televisivos e/ou próprios do videoclipe, sem perder de vista as possibilidades
estéticas de uma reínvenção do cinema.
No intuito de apreender a dimensão experimental e o estranhamento provocado,
naquele início da década de 90, pelas obras de Greenaway, procuro um viés que me
I . O contexto: 1956 a 1987, as imagens eletrônicas eram armazenadas em vídeo-tape analógico. Em
1987 surgiu a gravação eletrônica digital em baixa definição. Greenaway inicia suas experiências
com os recursos eletrônicos e digitais, em 1988, com a mini-série TV Dante, com oito episódios
que vão até I 989. A seguir, lança o filme Prospero 's Books, em 1991. Do mesmo ano é o programa
televisivo Mfor Man, for Movement andfor Mozart, ao qual o diretor imprime a mesma atmosfera
neobarroca das duas obras anteriores.
342
ESTUDOS DE CINEMA
permita flagrar alguns momentos criativos, nos quais seja possível verificar uma
simbiose entre a mente inventiva do cineasta britânico e os recursos tecnológicos,
então emergentes na televisão, que foram por ele transpostos para o cinema e vice:.
versa. Apresentarei, portanto, um estudo comparativo das interfaces do filme com a
televisão, o teatro, a dança e a pintura em termos de intertextualidade, dialogismo e
polifonia -, de modo a privilegiar os recursos como superposições, transparências,
grafismos e similares, que, a meu ver, fazem de cada obra de Greenaway uma espécie
de espetáculo performático neobarroco 2 - conceito aqui explorado com o aporte
teórico de Ornar Calabrase, Jean François Lyotard, Eduardo Subirats, entre outros.
Todos estes recursos e efeitos podem ser considerados multimidiáticos, no
sentido de uma dinâmica diferente dos filmes ou programas de TV, digamos
convencionais, ou seja, produzidos antes do advento da computação gráfica, que veio
proporcionar movimentos bem mais complexos aos elementos audiovisuais nas telas
da contemporaneidade.
O CINEMA MORREU? NUNCA EXISTIU?
OU ... UMA POSSÍVEL REINVENÇÃO DO CINEMA?
Acredito que Greenaway testou as possibilidades técnicas do cinema, ao
radicalizar a exploração de recursos até então limitados à televisão, ao recriar a peça
de Shakespeare em seu filme. A obra apropria-se das potencialidades plásticas da
informação digital e das imagens de síntese, sem no entanto, deixar-se levar apenas
pela sedução das tecnologias mais recentes.
Nesse sentido, valho-me das palavras de Katia Maciel, que, em artigo de 1993,
debruça-se sobre um "cinema que se pergunta se ainda é cinema" e considera a
existência de uma nova geração de "filmes softwares", que têm em vista apenas
efeitos especiais. No entanto, a autora faz uma importante ressalva, que vem corroborar
minha opinião sobre o pioneirismo da obra cinematográfica de Greenaway, diz ela:
( ... ) Há todavia outra tendência no uso das novas tecnologias pelo cinema que, ao
contrário, potencializa a imagem cinematográfica através da reinvenção da própria
linguagem do cinema. É o exemplo de Peter Greenaway em A última Tempestade,
utilizando o Harriet e o HDTV para recriar a montagem do quadro no quadro, utilizando
as novas possibilidades tecnológicas para inserir o extra-campo no campo, seja no
som ou na imagem.( MACIEL apud PARENTE, 1993: 256-7)
2. Este conceito não significa uma retomada daquele período; a defmição de Barroco para Calabrese,
não se reduz a um período específico da cultura mas a uma atitude generalizada e uma quantidade
· formal de objetos que o exprimem. A analogia refere-se ao "clima", podendo haver um Barroco em
qualquer época
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA lV
343
Considerando que o referido ensaio é publicado apenas dois anos após 0
lançamento do filme, fica demonstrada a inovação que ele representou no contexto da
época. Muito embora reconheça que diversas tentativas incipientes foram realizadas
antes, na mesma direção, julgo que nenhuma delas atingiu o patamar de radicalização
experimental alcançado pelo cineasta britânico.
Outro fato relevante para corroborar meu argumento é a apublicação, em 1997,
do livro de Arlindo Machado Pré-cinemas e pós-cinemas, que traz na capa experimentos
pré-cinematográficos de Muybridge, processados numa Painibox computadorizada
para o filme "pós-cinematográfico" de Peter Greenaway Prospero 's Books. É inegável
que a escolha remete ao pioneirismo do cineasta britânico, no que concerne ao conceito
de pós-cinema, desenvolvido por Machado. Referindo-se à virada epistemológica
ocasionada pela rect:pção de filmes em videocassetes, o autor explica que: "A imagem
se oferece, portanto, como um "texto" para ser decifrado ou "lido" pelo espectador
(os vídeos e filmes de Peter Greenaway são a própria evidência disso) e não mais
como paisagem a ser contemplada". (idem: 210)
Ao apontar exemplos de cineastas que conseguiram progressos consideráveis
para a síntese do cinema com o vídeo, numa primeira etapa, e com a informática,
numa etapa posterior, explica Machado:
Uma boa demonstração do estágio de maturidade a que já chegou essa síntese é o
aparecimento recente de filmes que integram magistralmente as imagens eletrônicas
às imagens fotoquímicas convencionais, como é o caso de Prospero 's Books (A
última tempestade/1991) obra de um diretor (Peter Greenaway) que já teve uma
passagem inovadora pelos universo do vídeo e da televisão e que aqui experimenta
as possibilidades gráficas da paleta eletrônica de alta resolução (idem: 213).
O pensamento do autor encontra eco em artigo recente de Bernadette Lyra,
que assinala que Prospero 's Books é o primeiro filme no qual Greenaway "experimenta
procedimentos computadorizados para alterar as imagens" (2007: 41). O referido
artigo tem como aporte teórico Karl Luddwig Pfeiffer, autor que pensa a comunicação
como "uma performance posta em movimento por meio de vários significantes
materializados" (idem: 35).
É exatamente sob o viés dessa questão da materialização dos significantes que
me interessa refletir sobre a experiência performática radical, efetuada, tanto no filme
de 1991, quanto nos programas televisuais para a BBC produzidos pelo diretor, na
mesma época. Acredito que o caráter performático em muitos momentos, operístico
em outros, encontraram a forma ideal para afastarem-se do cinema de ilusão naturalista,
na exploração de recursos computadorizados. Parece, portanto, que as ferramentas
foram utilizadas de modo a resultarem no artificialismo; aliás, uma estratégia
compositiva procurada pelo diretor ao longo de sua carreira.
344
ESTUDOS DE CINEMA
Não é dificil constatar que o artificialismo dos significantes materializados em
suas obras resulta numa estética do excesso, do rebuscamento, responsável pelas
aflorações passíveis de serem consideradas neobarrocas nas produções audiovisuais
de Greenaway. Sem dúvida, a arte barroca antecipou, nunca é demais repetir, elementos
expressivos da (per)formatividade moderna, ao introduzir na criação plástica a
perspectiva em diagonal e a ilusão do movimento vertiginoso- a chamada trompe I 'oeil.
Além disso, as afinidades observadas entre o estilo barroco e a arte
contemporânea inserem-se no debate teórico desenvolvido em torno do conceito de
neobarroco como uma alternativa, frente ao conceito de pós-moderno, para dar conta
dos fenômenos culturais de nossa época. Não cabe aqui um aprofundamento da
questão, muito menos uma discussão teminológica, pois basta a este trabalho a
constatação de que, tanto as diferentes linhas de estudos pós-modernos, quanto os
estudiosos do neobarroco, reconhecem os traços de uma pulsão rítmica do excesso
e da vertigem, em nossa época, que tem expressado em seus objetos culturais a
perda da integridade e da ordem, em termos da instabilidade e mutabilidadde das
formas. Nesse sentido, o grande theathrum mundibarroco revela-se análogo ao grande
happening ·do mundo hodierno, ambos ·presentes nas obras de Greenaway aqui
comentadas.
Penso que, de certo modo, neobarroco e pós-modernidade estariam unidos
por um mesmo projeto: a reivindicação daquilo que a modernidade escamoteou; a
reabilitação do esquecido, do reprimido ou do interdito, na opção pela coincidentia
oppositorum; além de que, uma mesma estratégia os vincularia: a proposta de esquemas
de análises adequados à compreensão dos objetos culturais contemporâneos e o
entendimento de aspectos determinantes das políticas, dos dispositivos e dos efeitos
das imagens hodiernas, em meio à enorme velocidade em que os produtos culturais
são produzidos para serem logo transformados e/ou descartados.
Considero, portanto, apropriado identificar o projeto audiovisual de Peter
Greenaway ao chamado neobarroco contemporâneo, em sua busca do artificialismo
como um esforço experimental na direção da desagregação, do fragmentarismo
perceptivo, de um discurso filmico necessariamente "estranho" em relação aos métodos
convencionais de se fazer cinema ou televisão. Penso que tais estratégias poderiam
ser consideradas "metabarrocas", devido à sua proposta de recriação crítico-inventiva
que vem se opor ao contexto vigente da denotação e da clareza da comunicação, em
favor da incorporação do ecletismo, das antíteses e, até mesmo, de uma certa entropia,
com relação às produções culturais hodiernas.
Assim, é no contexto pós-modernista que Greenaway vai encontrar condições
tecnológicas que lhe permitem a variabilidade de ângulos da percepção das imagens
visuais. Essas, por sua vez, integradas à polifonia auditiva que chega ao limite dos
· ruídos informacionais, tornam-se geradoras de efeitos labirínticos, na exuberância da
. intensificação dos significantes hiperbólicos, muito próximas ao espírito barroco.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
345
Para o multiartista britânico, os procedimentos computadorizados tomam viáveis
a desconstrução dos códigos anteriores, em favor de uma comunicação audiovisual
plurívoca, multissignificativa e renovada. Isso permite que o corte e a montagem
sejam redimensionados, com a articulação dos planos e dos elementos visuais no
espaço da tela, num jogo de superposições e de janelas, além do reiterado aproveitamento
de efeitos gráficos/caligráftcos e das infinitas condições de manipulação da imagem.
DA TV AO CINEMA E VICE--VERSA
Para continuar fundamentando meu raciocínio, lembro que Peter Greenaway,
em 1991 (ano das filmagens de Prospero 's Books) trabalhava também para a BBC
londrina. Ele tinha, portanto, o know how necessário para aventurar-se na utilização
de imagens criadas pelas tecnologias mais recentes, à época.
Entre 1988 e 1989, o cineasta dirigiu a TV Dante; 3 uma mini- série com oito
episódios, correspondentes aos Cantos I a VIII , da parte O inferno, da obra Divina
Comédia (1321), de Dante Alighieri. A produção foi do Charme! Four/ BBC e teve a
colaboração de Tom Philips (autor e ilustrador de uma versão atualizada de O Inferno,
de Dante). No programa, foram utilizados todos os recursos então disponíveis, com
a incorporação de sistemas de computação gráfica sofisticados e imagens pictóricas,
além de citações literárias e comentários de especialistas sob a forma de cabeças
falantes. Essas talking heads apareciam em janelas sobrepostas, criando um jogo de
molduras sobre molduras, num tipo de pseudo-documentários.
Lembro que a referida adaptação dos oito cantos do inferno dantesco foi
destaque principal da Mostra Internacional de vídeo da Fotóptica, no MIS de São
Paulo, em novembro de 1990.
Revendo, para este estudo, o episódio O Inferno, da TV Dante, consegui
perceber, de modo inequí;roco, as raízes do filme Prospero 's Books, na dinâmica da
espacialidade barroca, em constante transformação. Assim como a pintura barroca,
as obras de Greenaway exploram de forma enfática os corpos em movimento, com
seu jogo de luz e sombra, de formas que se expandem por elipse, numa espécie de
impulso alegórico, que aparece também nas produções audiovisuais da segunda metade
do século XX.
Como a formação artística multifacetada do cineasta permitiu um diálogo
extremamente criativo com outras artes, suas obras apresentam-se como um turbilhão
de signos que se sobrepõem, se perpassam, se interpenetram, num tempo iconizado
pelo excesso de imagens e pela multiplicidade de associações intertextuais engendradas.
3. Arlindo Machado, em sua lista dos DEZ PROGRAMAS MAIS IMPORTANTES DA HISTÓRIA
DA TELEVISÃO, coloca a TV Dante em primeiro lugar. (MACHADO, 1998: 16)
346
ESTUDOS DE CINEMA
São tamanhas as identidades, que optei por captar frames do programa de
televisão e do filme, colocando-os lado a lado, estaticamente, para que se possa ter
uma idéia de como o realizador incorporou as técnicas televisuais da TV Dante, de
1989, ao seu filme de 1991. Um dos melhores exemplos de procedimentos recorrentes,
tanto no programa televisivo quanto no filme, é a reprodução de quadros famosos em
movimento, além das reiteradas justaposições, fusões e imagens virtuais simultâneas,
que fazem da tela um verdadeiro caleidoscópio.
O visual saturado de informações sígnicas dos mais diferentes tipos e o caráter
palimpséstico de muitas cenas confirmam o neobarroquismo percebido nas referidas
obras, em seqüências bastante similares.Chamo a atenção para as molduras, telas
dentro das telas, num dinâmico processo de superposições e transparências, que
aparecem tanto na TV Dante quanto em Prospero 's Books. É nesse sentido que
considero o filme como um macrossigno cinésico, composto de imagens híbridas,
fluidas e "deslizantes", altamente sugestivas.
Assim como as obras de Greenaway, a pintura barroca, entendida como a arte
do movimento, caracteriza-se por um olhar anamórfico, que é um modo de extensão
da potência ocular, resultante de uma inversão da perspectiva e que resulta numa
figura aumentada e deformada. Essa reviravolta do olhar "prenuncia a visão ambulante
contemporânea", segundo Nelson Brissac Peixoto, que explica:
( ... ) o movimento que transforma o ponto em linha estabelece conexões que vão
além de uma simples relação entre duas coisas, determinando o lugar onde elas
ganham velocidade. No tecido textual, o movimento corresponde à conjunção
"e... e... e" ; é algo que acontece entre os elementos, mas que não se reduz aos seus
termos. Diferente da lógica binária é uma justaposição ilimitada de conjuntos.
(PEIXOTO apud PARENTE, 1996: 240)
É significativo que o diretor tenha praticado uma experiência de mão dupla,
pois, logo em seguida ao filme, ele realizou o intrigante Mfor Mozart um vídeoprograma performático-experimental, misto de entretenimento, teatro, dança e
animação, em homenagem ao compositor Wolfgang Amadeus Mozart. Trata-se de
um programa televisivo no qual é possível identificar claramente o diálogo explícito
com o filme Prospero 's Books, pois há cenas praticamente idênticas, tanto em sua
dimensão audiovisual, quanto nos recursos tecnológicos utilizados . Dentre os muitos
exemplos que mostrei na apresentação da SOCINE, destaco as imagens reiteradas de
um bailarino nu, sem cabelos e sem pêlos no corpo (no vídeo) que são muito similares
à dança performática realizada por Caliban, em sua primeira aparição no filme.
EXPERIÊNCIAS NO CINEMA, NO VÍDEO ENA TV
347
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Creio, portanto, ser válido afirmar que o filme Prospero 's Books (1991), aqui
tomado como objeto de estudo, juntamente com seu predecesssor imediato na televisão
londrina, a mini-série TV Dante ( 1988-9), podem ser considerados obras audiovisuais
realmente fundantes, porque Peter Greenaway, longe se se conformar aos padrões
estabelecidos pelas tecnologias da época, foi hábil em se apropriar delas para reinventar
radicalmente sua produtividade comercialmente programada, em favor de uma
dimensão estética. Além disso, o cineasta reafirma imediatamente as duas propostas
anteriores, no programa televisivo M is for Man, Movement and Mozart (também de
1991 ), fechando ciclicamente um projeto multimidiático extremamente inovador, tanto
na telinha quanto na tela grande.
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PESQUISA, PÚBLICO E
POLÍTICAS AUDIOVISUAIS
O pensamento industrial cinematográfico
em tempos neoliberais (1990-1993)
ARTIIUR AUTRAN
(UFSCAR)
EsTE ARTIGO se liga diretamente às constatações e inquietações geradas pela
minha tese de doutoramento, O pensamento industrial cinematográfico brasileiro
(AUTRAN, 2004). Na tese optei por um recorte historiográfico que cobria o período
de 1924 a 1990 e analisei os principais eixos do pensamento industrial cinematográfico
entre as produções, concluindo sobre a importância central deste tipo de pensamento
na manutenção da unificação ideológica da corporação cinematográfica. Isto porque
a industrialização da atividade assumiu o caráter ideológico de objetivo central a ser
alcançado pela corporação, posto que a falta de industrialização fosse a principal
causa responsável pela descontinuidade da produção de filmes.
Papel central no pensamento industrial coube ao Estado, identificado desde os
anos 1950 como o principal vetor que possibilitaria a industrialização do cinema, dado
que o mercado ocupado pelo produto norte-americano impossibilitava que a produção
brasileira competisse em condições de igualdade e se tomasse economicamente viável.
O Cinema Independente nos anos 1950 e posteriormente o Cinema Novo tiveram
ação destacada na forma pela qual o Estado foi pensado como motor da industrialização,
pois ambos associaram a luta contra a invasão cultural estrangeira, com a luta econômica
pelo mercado, gerando um amálgama entre as duas perspectivas a partir de um ideário
politicamente de esquerda.
Esta acepção será central para a Embrafilme, a partir do momento em que o
grupo ligado por origem ao Cinema Novo passa a dominá-la em meados dos anos
1970. No entanto, tal acepção já não possuía nenhum solo histórico pois, segundo
José Mário Ortiz Ramos, se nos anos 1960 era ainda possível a esquerda do meio
cinematográfico pensar um "todo nacional" lutando contra o imperialismo,já na década
seguinte isto não fazia mais sentido, posto que o próprio Estado ditatorial apropriavase do discurso nacionalista no campo da cultura ao mesmo tempo em que aprofundava
352
ESTUDOS DE CINEMA
a dependência do país via internacionalização da economia brasileira, descolando assim
uma coisa da outra e tomando aquele discurso "mera justificativa ideológica" ( 1983: 93).
Ademais, havia outro curto-circuito ideológico no discurso da corporação
cinematográfica: esta num momento se voltava para a reivindicação, junto ao governo
de medidas de caráter econômico, com a explicação de que tal se fazia necessário em
defesa de elementos como identidade nacional, cultura brasileira, preservação da
nacionalidade etc. No entanto, não existia da parte da fração da corporação que passou
a dominar a Embrafilme aprofundamento .em tomo da questão da cultura brasileira
expressa nos filmes e quando isto era polemizado por setores descontentes com a
política oficial, estes eram desqualificados em nome da "frente única" na luta pelo
mercado e contra o imperialismo econômico. Por outro lado, quando os filmes tinham
sua baixa performance, no mercado contestada argumentava-se que valia a expressão
da cultura brasileira. Destarte, a discussão passou a mover-se em círculos. A confusão
ideológica entre cultura e mercado chegou a tal ponto que marcou a própria estrutura
da Embrafilme, empresa cujas atividades incluíam desde a produção e a distribuição
de filmes comerciais voltados para as massas até a publicação de livros sobre a história
do cinema brasileiro, direcionados para um público extremamente restrito.
O processo de desgaste da Embrafilme ao longo dos anos 1980 - de par com
a crise econômica quase permanente do cinema brasileiro, ao longo desta década foi enorme, o que pode ser aferido pelos constantes ataques à empresa, não apenas
por parte de setores da corporação descontentes com a distribuição de recursos, mas
ainda pelas freqüentes denúncias em jornais de malversação de dinheíro público com destaque para a campanha desencadeada em 1986 pela Folha de S. Paulo,
denominada maliciosamente de "Este milhão é meu".
Ao final da década de 1980, conforme constata lucidamente Eduardo Escorei,
o cinema brasileiro havia perdido toda a sua "legitimidade social" (2005: 13), de maneira
que não custou muito a Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto
direto após mais de vinte anos de ditadura militar, acabar com a Embrafilme em 1990,
num dos atos iniciais do seu governo.
Dentre as posições em destaque naquele momento, a de Ipojuca Pontes, cineasta
guindado por Collor ao cargo de secretário especial de Cultura e encarregado do
desmonte do aparato federal de cultura que incluía órgãos como a Embrafilme, o
Concine, a Pró-Memória ou a Funarte, é exemplar pela crença irrestrita nos valores
do Estado mínimo e do livre mercado. Significativo deste tipo de ideário neo-liberal
furioso da época é a seguinte asserção:
Assim, como recomendam os novos tempos, é chegada a hora de acabar com a
concepção arcaica e antidemocrática do intervencionismo estatal no campo cultural.
Numa democracia real, cabe à sociedade - e não ao Estado - formular livremente o
encaminhamento de suas próprias relações de criatividade, independentemente de
critérios discriminatórios e projetos governamentais. É criminosa, e contradiz a
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
353
democracia, a pretensão de se fomentar ou criar cultura a partir de ministério ou
qualquer tipo de repartição centralizadora. "(PONTES, 1990: 2)
Sabemos todos o que foram aqueles "novos tempos", os quais, no campo do
cinema, se traduziram numa absoluta ausência de políticas públicas. A evidente
mediocridade das idéias de Ipojuca Pontes foi criticada amplamente na época, por
intelectuais como Sábato Magaldi, que lembrava a importância do Estado na produção
cultural· de países tão diversos como os Estados Unidos, a França e a Alemanha
Ocidental. Ainda segundo o critico teatral, o governo Collor buscava "impor no Brasil
a indigência mental" (MAGALDI, 1990: 2).
Quanto ao campo cinematográfico, havia posições bastante díspares. Entre
aqueles que tentavam se adaptar à nova situação, estava o produtor Luiz Carlos Barreto,
que chega a declarar para a jornalista Susana Schild estar interessado na privatização
da Embrafilme como intermediário de um grupo financeiro (SCHILD, 1990). Segundo
Barreto:
A Embrafilme detém hoje o direito de comercialização e distribuição de 300 títulos.
Com a demanda nacional e internacional de títulos, este patrimônio é um excelente
negócio, desde que vinculado a uma distribuidora eficiente e com penetração
internacional.
[ ...]
O cinema do ano 2000 forma a indústria mais internacionalizada do mundo.
Esta distribuidora permitiria que o cinema brasileiro alcançasse justamente o
que ainda lhe faltaria, a "internacionalização efetiva". Mas atenção, porque os filmes
resultantes dos lucros desta distribuidora deveriam ser: "A criação de um produto
culturalmente nacional mas industrialmente internacional". Ou seja, a percepção clara
do grau de internacionalização da produção audiovisual não era suficiente para afastar
o fantasma da "cultura nacional'', esta, na percepção de Barreto, deve continuar a ser
expressa no produto de circulação pretensamente mundial.
Walter Lima Ir. reverbera algumas questões levantadas por Barreto, ao defender,
por exemplo, que o acervo de filmes produzidos pela Embrafilme teria valor comercial
devido às necessidades de programação das redes de televisão de todo o mundo. Para
o diretor, o "ciclo Embrafilme" havia chegado ao fim, fora correta, portanto, a atitude
de extinguir a empresa. Tal "ciclo" diferia dos outros que compõem a história do
cinema brasileiro pelo fato de ele ter gerado "vícios, fraquezas, compromissos, cinismo,
passividade e muita complacência". Na busca pelas qualidades que marcaram os
outros "ciclos", volta-se decididamente para o passado e defende-se o retomo da
possibilidade legal de o distribuidor estrangeiro investir na produção nacional parte do
imposto cobrado sobre a remessa de lucros, tal como ocorrera na segunda metade
dos anos 1960. O paradoxal no texto de Walter Lima Jr. é ele defender que se deve
354
ESTUDOS DE CINEMA
"tirar o cinema brasileiro da bolha nacionalista onde tem sobrevivido e levá-lo ao
convívio da comunidade cinematográfica internacional", mas reconhecer que nos
anos 1960 a legislação que buscava promover a associação do produtor nacional com
0 distribuidor estrangeiro não levou à penetração do filme brasileiro no mercado
internacional (1990: 8).
Arnaldo Jabor, um tanto confusamente, defendia que: "A grande revolução
cultural seria econômica". A cultura deveria ser proveniente de um mercado que a
ativasse; ao Estado caberia criar condições para tanto, estimulando a formação de
empresas privadas na área cultural que visassem o lucro. E mais uma vez surge a
utopia do mercado internacional, pois segundo o autor, assim como o país já exportava
sapato e laranja, poderia exportar arte, mas uma arte "neo-antropofágica, que devolva
para o exterior nosso produto transformado" (1990: 3).
Seja pela via de uma Embrafilme privatizada, ou por meio das distribuidoras
estrangeiras- estas últimas anteriormente sempre combatidas pelos egressos do Cinema
Novo-, ou ainda através de modernos empresários, o ponto comum destes discursos
é a necessidade de o cinema brasileiro ser alàvancado no mercado mundial, mas isto
numa situação de crise absoluta da produção, de total falta de inserção do produto
brasileiro em quaisquer mercados e da insistência na idéia de produto "culturalmente
nacional" ou "neo-antropofágico" num contexto já marcado pelo processo de
mundialização cultural.
Um movimento de reflexão mais profunda efetuado no momento mesmo da
crise foi buscado por Jean-Claude Bernardet e por Eduardo Escorei, ambos evitando
recorrer a soluções quase milagrosas naquele contexto, tais como a internacionalização
do filme brasileiro. Os dois ensaístas identificam que a crise da Embrafilme já se
configurara claramente desde a gestão de Celso Furtado à frente do Ministério da
Cultura, que promoveu em 1987 uma reforma administrativa na empresa, reforma
incapaz de resolver minimamente os seus problemas, condenando-a em definitivo.
Para Bernardet, a crise então atravessada pelo cinema brasileiro era "estrutural",
pois ela se relacionava com a forma mesma como cinema e Estado desenvolveram
suas relações desde os anos 1930; a seu ver, somente a mudança na "mentalidade"
dos profissionais de cinema proporcionaria uma saída para a situação e neste sentido
ele defende o abandono do modelo do cinema de autor e o reforço da figura do
produtor (1990: 3).
Já Eduardo Escorei entendia que os cineastas não haviam conseguido construir
um novo "projeto de cinema" frente à crise dos últimos anos, fixados que estavam no
"favorecimento estatal" que sofria do mais completo descrédito junto à sociedade.
Isso explicava a facilidade com a qual a Embrafilme fora desmontada. Apesar de tal
quadro, Escorei considerava um erro a forma pela qual o governo havia encaminhado
a extinção da empresa, teria sido mais adequado um fim programado que levasse em
セッョエ。@
as necessidades do cinema brasileiro ( 1990: 11 ).
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
355
Com ou sem a Embrafilme, a ação do Estado continua a ser indispensável como
complemento e apoio à iniciativa privada para, primeiro, regular o mercado, segundo,
assegurar termos justos na competição do filme brasileiro com o importado; e, terceiro
lugar, fazer investimentos que pela própria natureza da atividade são de retorno
muito lento. Assim como qualquer outro setor industrial nascente, o cinema brasileiro
precisa contar com a proteção do Estado para não ser esmagado pela força prodigiosa
da concorrência estrangeira. [ ... ]. Sem a presença do Estado, o país ficará reduzido à
mera condição de mercado consumidor controlado pelo monopólio das grandes
redes de televisão e pelo oligopólio de distribuidores a serviço do cinema importado.
Teremos perdido a batalha pelo domínio da linguagem audiovisual de ponta que
continua a ser a do cinema. Seremos um povo com mais uma carência cultural básica
a impedir o nosso ingresso num estágio superior de civilização, (ESCOREL, op ... cit).
No que pese o refinamento da argumentação de Eduardo Escorei, há clara
reincidência em algumas idéias tradicionais do pensamento industrial cinematográfico,
as quais, a meu ver, estavam na base da crise. Neste sentido pode-se destacar: a
caracterização do cinema como "indústria nascente" e que deveria ser equiparada a
outras indústrias; e principalmente uma perspectiva que isola a televisão do cinema
brasileiro, sem buscar nenhum tipo de relação mais efetiva entre os dois setores.
Mas há algumas pistas presentes nos textos de Jean-Claude Bernardet e Eduardo
Escorei que parecem interessantes no sentido de se tentar compreender o pensamento
industrial cinematográfico e suas transformações: a crítica à matriz de financiamento
do cinema brasileiro baseada num modelo superado de relação com o Estado; a crítica
à dimensão hipertrofiada da figura do autor-diretor; a necessidade premente de criar
um "projeto de cinema" que socialmente seja reconhecido como legítimo; o papel do
cinema como laboratório de ponta da linguagem audiovisual.
O que se pode notar no momento mais agudo da crise de produção do cinema
brasileiro é uma verdadeira ebulição de idéias no campo do pensamento industrial,
mas tudo sem grandes conseqüências. O que caracteriza este período do início dos
anos 1990 é certa descrença da própria corporação em relação ao Estado como vetor
da industrialização, mas, ao mesmo tempo, não se avança em direção a nenhuma
plataforma nova.
A sobrevivência pífia da produção brasileira durante os anos do governo Collor
levou a corporação a se voltar decisivamente para o Estado, mas desta feita através da
defesa das leis de incentivo para o setor e não mais através de um órgão estatal que
concentrasse as decisões sobre o investimento do dinheiro público na produção.
Ou seja, o dinheiro público continuou a financiar a produção, mas gerido de
forma privada. Aliás, possivelmente nunca antes a produção brasileira no seu conjunto
teve tamanha sustentação por parte dos fundos publicos, posto que quase a totalidade
dela hoje dependa das leis de incentivo - cuja principal é, sem dúvida, a Lei do
Audiovisual- e premiações governamentais.
ESTUDOS DE CINEMA
Não deixa de ser curioso o seguinte texto de Arnaldo Jabor publicado pouco
antes de a Lei do Audiovisual ser promulgada.
É a Carta Magna do Cinema, moderna, sem dependências do Estado. É a única
solução. [... ]. Passou por todos os técnicos do Executivo. Foi levada de mão em mão
por produtores guiados pelo Antônio Houaiss e Ruy Solberg. Foi assinada pela
Procuradoria-Geral da Fazenda, pela Receita Federal, pela Assessoria Jurídica da
Casa Civil, e agora repousa na mesa de FHC. Talvez o cinema dos anos 90 possa
começar. Talvez tenha chegado o fim do labirinto. (1993: 8)
Falar em independência em relação ao Estado quando se tem de esperar por
todas estas assinaturas de pessoas ligadas ao governo para que o cinema brasileiro
pudesse sair do "labirinto" é no mínimo incoerente; sem deixar de lembrar que os
recursos da Lei do Audiovisual provêm de imposto devido ao Estado, ou seja, trata-se
de dinheiro público. Mas esta confusão do texto diz muito a respeito da nova estrutura
de fomento ao cinema brasileiro que começava então a ser constituída, tendo por
base principal a renúncia fiscal por parte do Estado.
Cabe-me na pesquisa que estou fazendo no momento verificar as continuidades,
as modificações e eventualmente as novas formas do pensamento industrial
cinematográfico desenvolvido nestes últimos quinze anos. É possível adiantar, para
além da permanência do Estado como eixo central em tomo do qual este pensamento
gira, algumas outras continuidades bastante claras como a insistência no discurso
"culturalista", nas justificativas para o suporte do Estado e que continua a enxergar o
cinema brasileiro como repositório da nacionalidade; além da visão romântica a respeito
do público, que se mistura com a noção de povo, conforme se pode notar de forma
eloqüente em Tapete vermelho (Luis Alberto Pereira, 2006) - no qual o espectador
caipira chega a falar em "meu filme" para se referir à fita de Mazzaroppi que ele deseja
assistir e não consegue. Por outro lado, parece ter havido um avanço considerável no
entendimento da necessidade de ampliação das relações com a televisão, vide o projeto
da ANCINAV e a determinação com que parcela do meio cinematográfico buscou por
meio de legislação vincular o cinema à televisão. Também interessa investigar aqueles
poucos ensaístas, dentre os quais se destacam Jean-Claude Bemardet, Carlos Augusto
Calil e Eduardo Escorei, que problematizam a forma como está estruturada a produção
cinematográfica atual, por perceberem que ela não possibilita a industrialização do
cinema brasileiro e nem mesmo avanços substanciais de mercado. Finalmente, talvez
caiba perguntar se a industrialização deixou de cumprir o papel de laço ideológico da
corporação cinematográfica, para figurar de maneira decorativa entre as razões
eternamente arroladas pelas quais o Estado deve apoiar o cinema brasileiro.
PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS
357
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Diferentes concepções do popular
no cinema brasileiro 1
MIRIAM DE SouzA RossiNI
(UFRGS) 2
O CINEMA convive com a dualidade de ser arte e ser indústria, com cada uma
dessas facetas levando-o para diferentes concepções estéticas e de busca de público.
No Brasil, tal dualidade conduz o cinema brasileiro a uma dicotomia que às vezes
parece insolúvel: como falar para um público heterogêneo, que na sua maioria é
analfabeto, e que, atualmente, está fora das salas de cinema, pois estas se concentram
basicamente em shoppings centers e cobram preços altíssimos pela entrada? Sem
atingir esse grande público, a audiência de um filme é no máximo mediana. No entanto,
é esse o público que realmente se quer alcançar no cinema brasileiro atual?
· Discutir essas questões é adentrar na própria concepção do que é o popular e
das traduções que esse popular ganhou em suas aproximações com a indústria cultural,
justamente porque essa busca por um público mais amplo leva o cinema a dialogar
com elementos daquela indústria, em especial aqueles de mídias que possuem maior
acesso como a televisão e o rádio. Daí a demanda que o cinema cada vez mais
encontra de ser pautado por outros meios de comunicação.
Essa prática não é nova no nosso cinema. É o caso, por exemplo, de músicos
reconhecidos como populares e que acabaram se tomando astros de cil}.ema ou temas
I. Esse texto faz parte das discussões da pesquisa "Convergências tecnológicas e traduções
intersemióticas entre imagens audiovisuais: as aproximações entre cinema e tevê", apoiada pelo
CNPq e desenvolvida junto ao PPG em Comunicação e Informação da Fabico!UFRGS. Participam
do projeto a pesquisadora de cinema Profa. Ora. Fatimarlei Lunardelli (UFRGS/Unisinos ), e os
alunos de Iniciação Científica: Julia Bertoluci de Souza (PIBIC), Aline Rocha (BIC-CNPq); Aline
Almeida Duvoisin (BIC-UFRGS) e Gustavo Coltry (!C Voluntário).
2. Pesquisadora do CNPq.
360
ESTUDOS DE CINEMA
de fihne que iguahnente arrastaram multidões para as salas escuras. Mais recentemente,
diálogo vem se dando com a tevê e as séries televisivas, e seus correspondentes
cinematográficos.
Para discutir as concepções de popular no cinema, este trabalho vai recorrer
a dois livros clássicos na historiografia que se dedicam ao tema no Brasil: as pesquisas
de Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, que abarcam esse conceito no cinema
até os anos 1960; e a pesquisa de José Mário Ortiz Ramos, que abarca os anos 1970
e 1980. Por fim, ver-se-á como essas concepções podem ser atualizadas dos anos
1990 para cá, analisando as interfaces entre cinema e tevê propostas pela Rede
Globo de Televisão e por sua empresa voltada para o campo cinematográfico, a
Globo Filmes.
0
REVENDO AS CONCEPÇÕES DE POPULAR
NO CINEMA NACIONAL
No livro de Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, Cinema: repercussões
em caixa de eco ideológico (1983), os autores procuraram mapear as diferentes.
concepções de popular que atravessaram a história do cinema brasileiro nos seus
primeiros sessenta anos. de existência.
No primeiro capítulo do livro, Nosso. Nosso?, escrito por ambos os autores,
vê-se que até os anos 1910, popular é sinônimo de muito freqüentado e muito visto
pelo público, sem especificar o tipo de público ou a temática do produto. Nos anos
1920, essa concepção já ganha uma conotação nova, e popular começa a se referir às
condições de produção do produto, ou seja, o cinema popular era aquele "pobre e
vagabundo" (1983: 31). Ao mesmo tempo em que o popular passa a se referir a um
tipo de produto mal-acabado tecnicamente (e essa comparação é feita em especial em
relação ao cinema americano), popular também passa a definir o público a quem o
filme se destina (as camadas mais pobres da população) e os seus espaços de exibição
(salas pobres de bairros pobres, ou cinemas do interior).
Ao lado dessa concepção preconceituosa e elitista de popular, vai surgindo
outra, que vê o popular enquanto temática, ou seja, filmes que retratam os hábitos do
povo brasileiro mas de modo refinado e poético, como o faz Humberto Mauro. Essa
concepção de popular torna-se corrente nos anos 1950, e é um dos elementos de
análise, por exemplo, dos filmes da Vera Cruz: aqueles que retratavam o povo e seus
do que
hábitos (como os filmes de Mazzaropi, por exemplo) são mais ーッオャ。イ・セ@
aqueles que retratam os hábitos da burguesia (por exemplo, Floradas na serra, 1954,
de Luciano Salce).
O povo, assim, torna-se objeto e destinatário dos filmes ditos populares. A
diferenciação entre essas concepções acirra-se nos anos 1960. No capítulo "Nacionalpopular. Nacional-popular?", assinado por Maria Rita Galvão, a autora explica que:
.
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
361
embora não haja em textos sobre o cinema a preocupação específica com explicações
dessa ordem, é claramente perceptível a distinção entre um "cinema popular",
entendido como algo que direta. ou indiretamente vem do povo, e o "cinema popular"
dos anos 50 e 60, que pretende dirigir-se ao povo, com intenções didáticas ou
destituído delas (1983: 139)
Aquela noção e!itista de popular, que começa a se criar nos anos 1920, então se
ratifica para alguns tipos de produtos: aqueles que efetivamente eram feitos pelas
camadas populares e que possuíam uma narrativa e uma estética chulas ou vulgares
na concepção dos cineastas que provinham das camadas altas ou médias da população.
O bom filme seria, por conseqüência, como dizem Maria Rita Galvão e Jean-Claude
Bemardet, aquele que usava na sua temática a "matéria-prima popular (que vem do
povo)" (1983: 39), mas sem os aspectos negativos do popular. Um popular para
elevar a consciência do povo e não para diverti-lo.·
No entanto, essa visão simplificadora da cultura e do popular vai entrar em
choque com as necessidades impostas pelo mercado da indústria cultural que está se
estruturando no Brasil na mesma época. Tanto é que nos anos 1950 há um novo
aspecto que se insinua para se pensar o popular no cinema: o filme seria popular se
tivesse aceitação do público. E, para conseguir essa aceitação, o público precisava
não apenas estar na tela, mas ver na tela aqueles elementos que o interessavam.
Nesse sentido, pode-se ver a intensificação de uma prática de produção que se
ramificará em outras vertentes do cinema popular brasileiro: a participação nos filmes
de astros populares de outras mídias. Na verdade, já era comum nas chanchadas
cariocas convidar-se cantores, em especial do rádio, para participarem de projetos
cinematográficos ou para serem astros principais. Personalidades como Vicente
Celestino ou Carmem Miranda tiveram importante participação na popularização de
determinados filmes ou gêneros cinematográficos, como os musicais ou as comédias
musicais e os melodramas.
Enfocar a história de cantores populares também era outra estratégia utilizada,
e um exemplo é o filme sobre Zequinha de Abreu, Tico-tico no fubá, de 1952, de
Adolfo Celi, produzido pela Vera Cruz, e que foi um grande sucesso de público na
época.
No Rio Grande do Sul, dois exemplos seguiriam essa trilha: nos anos 1960 e
1970, os cantores populares Teixeirinha e José Mendes fizeram muito sucesso no cinema
em função de seus trabalhos 。ョエセイゥッ・ウ@
na música. José Mendes morreu no auge do
sucesso, ainda no início dos anos 1970, e participou de apenas três filmes. Teixeirinha,
que faleceu nos anos 1980, chegou a fazer 12 filmes, sendo que alguns deles ainda
constam da lista da Ancine sobre as maiores bilheterias do Brasil desde os anos 1970.
Portanto, nessa busca pelo popular, o cinema acabou mesclando um pouco
das concepções anteriores mapeadas por Galvão e Bemardet: para ser popular um
ESTUDOS DE CINEMA
362
filme precisa atingir um grande número de pessoas, mas também precisa ter uma
temática que corresponda aos anseios desse público. Quando o cinema dialoga com
músicos que são sucesso no rádio (utilizando-se de uma estratégia de cross-media),
ele também busca para si, o prestígio da outra mídia e do seu conteúdo. Por outro
lado, muitos desses filmes possuem um acabamento estético e narrativo que muito
deixa a desejar para um público que busca no filme também um prazer estético.
Os filmes de Teixeirinha são exemplos dessa perspectiva de se compreender o
popular. 3 O cantor era produtor de seus filmes, e por isso influenciava em todos os
aspectos de concepção e realização do projeto, pois tinha em mente os desejos do
"seu púbkco", como costumava dizer. Não permitia requintes técnicos e/ou narrativos,
com medo de não ser entendido. Isso porque, para ele, eram claros os espaços de
exibição de seus filmes: cinemas de bairro ou do interior; circos e salas improvisadas
na periferia das cidades, o que vem a confirmar a visão que se generaliza a partir dos
anos 1930 sobre o popular.
Porém, essa concepção de popular como produtos mal-feitos, realizados para
um público popular que não exigiria requintes de acabamento do produto filmico, foise diluindo ao longo dos anos 1980 e 1990, a fim de ganhar seus novos contornos no
cinema da chamada pós-retomada.
CONCEPÇÕES EM MOVIMENTO
Para se perceber uma das fases dessa transformação, é interessante resgatar a
pesquisa de José Mário Ortiz Ramos, relançada há poucos anos com o título de
Cinema, televisão, publicidade: cultura popular e de massa no Brasil dos anos 70 e
80 (2004). 4 A pesquisa de Ramos, de uma certa forma, continua aquela de Galvão e
Bemardet, que foi até os anos 1960.
Ao avançar mais duas décadas na concepção de popular no cinema, o autor já
percebe o novo cenário da indústria cultural brasileira. Agora, ao invés do rádio, o
meio que mais dialoga com o cinema (ou busca dialogar) é a televisão. As aproximações
entre os dois meios audiovisuais, no entanto, são conflituosas pelas próprias
características do entendimento, do que é fazer cinema e do que é fazer televisão.
O cinema brasileiro dos anos 1960, marcadamente autoral, procurava apagar a
herança de posturas industrializantes do cinema anterior, que eram consideradas
alienadas ou alienantes, como, por exemplo: o roteiro estruturado, a fotografia
impecável, os assuntos considerados burgueses, a montagem invisível. E no campo
3.' .Sobre o assunto ver: ROSSINI, Miriam de Souza. Teixeirinha e o cinema gaúcho. Porto Alegre:
·:. :Fumproarte, 1996.
4 .. Ç> título anterior do livro era: Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995,
. :293p.
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
363
da filmagem, diz o autor, preferia-se adotar uma "total liberdade", que afmal é contrária
às práticas planificadas de ação dos sets de filmagens dos grandes estúdios. Por outro
lado, como a sua atualização tecnológica é demorada e o cinema nacional nunca
conseguiu constituir-se enquanto indústria, o modo de produção artesanal foi
incorporado às próprias características do nosso cinema.
Essas posturas, porém, começam a ser contestadas a partir dos anos 1970,
quando se busca equiparar a qualidade técnica dos produtos audiovisuais brasileiros
(televisivos, cinematográficos, publicitários) a fim de se conquistar novos públicos
para as salas de cinema:
A autonomia das duas esferas, televisiva e cinematográfica, é quebrada diante das
necessidades da produção da ficção popular de massa, que não despreza nenhuma
contribuição na sua voraz obsessão por amplos públicos. Se anteriormente já foi
ultrapassada a barreira com os autores de teatro, agora vemos um processo análogo
com os cineastas. (RAMOS, 2004: 89).
Essa busca, observa-se, é para obter maior sucesso de bilheteria, ou seja, para
buscar aquilo que Ramos chama de "o público popular de massa", que é um público
habituado à nova produção televisiva e que vinha renegando as produÇões
cinematográficas mal-acabadas, técnica e esteticamente produzidas no país.
Apesar de tal demanda, a maioria dos profissionais de cinema no Brasil
continuava vendo, como prejudicial para a sua arte a produção de filmes com maior
apelo de público, e nesse sentido qualquer tentativa de aproximação com a televisãoseja com seus modos de produção e de narração, ou com suas estéticas visuais e
sonoras- era vista como perniciosa. Após uma tentativa frustrada da Embrafilme de
aproximar cineastas e produtores de televisão, Walter Lima Jr. comenta que os cineastas
costumam idealizar seus projetos, enquanto a "tevê é uma coisa apavorante, aquilo é
meio fábríca" (LIMA JR. apud RAMOS, 2004: 84). Por isso, poucos cineastas que já
buscavam fazer filmes mais atraentes para o público, como Antonio Calmon, acabaram
indo para a televisão.
Enquanto o cinema debate-se com suas posturas herdadas dos anos 1960, a tevê,
em especial a Rede Globo, trilha um percurso que busca a eficiência das práticas produtivas
e administrativas a fim de obter um produto audiovisual bem acabado estética e
narrativamente. Além do mais, o capital financeiro que a televisão movimenta, e a atualização
tecnológica que isso permite, deixa claro o estado de miséria do cinema nacional.
O choque entre esses dois universos, que possuem concepções opostas em
todos os aspectos, vai fazer com que a tevê, em especial a Rede Globo, busque sua
própria forma de chegar ao cinema após desenvolver váríos núcleos de dramaturgia.
O apoio ou a co-produção de filmes feitos por membros de sua equipe técnica e
artística é uma dessas estratégias. Assim, o quarteto de comediantes que forma Os
364
ESTUDOS DE CINEMA
Trapalhões e a apresentadora infantil Xuxa Meneghel, por exemplo, são dois grandes
ícones de uma mídia com grande alcance e penetração - a tevê -, e que farão sua
passagem para o cinema, agregando aos seus produtos cinematográficos as
características de populares porque muito vistos e conhecidos.
Embora muito de seu público seja infantil (em especial o da Xuxa), eles levam
multidões ao cinema, e, em épocas de crise, como a dos anos 1990, eles mantiveram
seus produtos nas duas mídias.
Porém, ao contrário dos antigos filmes populares, o acabamento estético e
narrativo de seus produtos filmicos vai melhorando, e inovações tecnológicas vão
sendo incorporadas à produção. Não podem mais ser compreendidos como populares,
portanto, porque mal-feitos, ou porque o povo é o tema da narrativa. Nessa nova
fase, a aceitação do público é o que conta, e ela está vinculada às injunções da indústria
cultural. Ao mesmo tempo, esse público também mudou e refinou sua percepção
estética sobre produtos audiovisuais, já que os absorve constantemente através da
programação televisiva.
A criação da Globo Filmes, em 1998, vai ser a consolidação desse novo filão de
cinema popular brasileiro. Resgatando a idéia de um popular que atraia o público, e
cujos temas o interessem, ver-se-á que a Globo Filmes vai explorar aquilo que ela tem
de mais popular (no sentido de mais visto): os programas de sua grade de programação
que possuem maior audiência, e os astros e estrelas que neles atuam.
É assim, por exemplo, que se compreende o sucesso de filmes como Os normais,
de 2003, de José Alvarenga Jr., e A grande família, de 2007, de Mauricio Faria, que se
baseiam em séries narrativas que ficaram (ou ainda estão) no ar há muitas temporadas,
e que por isso já possuem o reconhecimento do público. Se o público que foi vê-los no
cinema é aquele que antes se pensava como popular, essa é uma outra questão e que
demanda um outro tipo de pesquisa, voltada para recepção. Porém, se lembrarmos que
esses filmes passaram principalmente em salas de shoppins centers que possuem preços
elevados, talvez já se possa perceber que se está lidando também com uma nova·
concepção de público popular (ou talvez de popularidade de um produto).
Ou seja, como Ramos já percebera, a aposta da Rede Globo num padrão de
qualidade estética e narrativa para os seus produtos televisivos passou a marcar os
demais produtos audiovisuais brasileiros; e essa mudança é visível nos filmes 「イ。ウゥャ・ッセ@
Segundo o crítico de cinema Pedro Butcher (2005), a ascensão da mídia televisiva
modificou todas as cinematografias mundiais, porém no Brasil, diz ele, tal fenômeno
produziu algumas peculiaridades, já que a tevê que maior projeção obteve nessa
vinculação com o cinema é a Rede Globo, que desde os anos 1970 tem como objetivo
estabelecer o padrão Globo de qualidade. Por isso, afirma o autor, "todos os filmes
feitos no Brasil a partir dos anos 1990 não escapam desse novo referencial. Eles
podem ser observados como adesões ou reações à nova hegemonia que se formou no
campo audiovisual brasileiro, o 'padrão Globo de qualidade'" (BUTCHER, 2005: 69):
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
365
A entrada da Globo Filmes no mercado cinematográfico vem concretizar aquela
idéia prevista por Ramos, provocando uma revisão nas concepções de popular que
havia no cinema nacional.
A tela da tevê tornou-se a nova fazedora de ídolos, onde transitam até mesmo
os ídolos das outras mídias em busca de maior reconhecimento e afirmação. Músicas
populares ainda existem, e ainda fazem sucesso no mercado fonográfico e radiofônico;
porém é na tevê que eles fazem suas aparições mais glamourosas e/ou emocionadas,
em programas como Amigos (1995), ou Tributo a Leandro (2003), exibidos pela
Rede Globo e contando com a participação de vários músicos sertanejos. E é através
da tevê que muitas vezes eles partem para o cinema, onde reencontram seu público
popular em produtos que não são mais mal-feitos ou pobres. Está aí para provar o
filme sobre a biografia da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano, 2 filhos de
Francisco, de 2005, de Breno Silveira, grande sucesso do cinema brasileiro, com
mais de cinco milhões de espectadores, e que tem como uma de suas produtoras a Globo
Filmes.
Esse embaralhamento de fronteiras nos mostra como é complexo pensar o que
é popular no cinema brasileiro hoje. Percebe-se também que há ainda um imaginário
negativo sobre o que é esse popular e para quem são feitos esses produtos, mas não
há uma situação real e atual que dê conta daquelas concepções passadas.
Afinal, o popular não é mais sinônimo de filmes ruins, chulos ou mal-feitos,
exibidos em espaços tão marginais quanto seu público. A idéia de um popular que
tenha o povo como objeto, sem pensar numa forma comunicativa de expressar seu
conteúdo, também não se aplica mais. A baixa bilheteira de um filme como Antonia,
de 2007, de Tata Amaral, é um exemplo disso. Porém, se o filme não foi bem aceito,
sua versão televisiva, a minissérie Antonia, de 2006, produzida pela Rede Globo e
contando com o mesmo elenco do filme, foi um grande sucesso de audiência. A
distância que houve entre o produto cinematográfico e o televisivo nos permite perceber
ainda aquela diferença de concepção entre os meios de que falava Ramos, e que é a
própria marca de um tipo de cinema brasileiro.
Refletir sobre essas mudanças e sobre essas permanências ajudam este trabalho
a dar respostas mais complexas ao atual panorama do cinema nacional, do que apenas
"engrossar o coro" dos que são contra a entrada da Rede Globo no campo
cinematográfico brasileiro, afirmando que os filmes assinados pela Globo Filmes não
são cinema nacional. 5
5. No texto "A narrativa seriada e suas adaptações para cinema e tevê", apresentado na Intercom
realizada em Santos, em 2007 ,junto à mesa temática "Entre o audiovisual e as audiovisual idades:
questões culturais, estéticas, tecnológicas e de linguagem", discuti o modo como a Globo Filmes
procura apoiar diferentes propostas cinematográficas, e não apenas filmes feitos a partir de sua
grade de programação, capitalizando com isso diferentes capitais simbólicos, vindas tanto do
cinema quanto da tevê.
ESTUDOS DE CINEMA
366
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005.
GALVÃO, Maria Rita & BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa de
eco ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
ORTIZ, José Ramos. Cinema, televisão, publicidade: cultura popular de massa no Brasil
nos anos 1970-1980. 2ed. São Paulo: Annablume, 2004.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
São Paulo: Brasiliense, 1988.
RAMOS, Fernão & MIRANDA, Luiz Felipe de. Enciclopédia do cinema brasileiro. São
Paulo: Senac, 2000.
ROSSINI, Miriam de Souza. Teixeirinha e o cinema gaúcho. Porto Alegre: Fumproarte,
1996.
ROSSINI, Miriam de Souza. A narrativa seriada e suas adaptações para cinema e tevê.
Intercom, 2007, manuscrito.
SANTAELLA, Lúcia. (Arte) & (Cultura): equívocos do elitismo. 2" ed., São Paulo: Cortez,
1990.
Cinema e identidade cultural: o debate
contemporâneo sobre as políticas públicas
do audiovisual no Brasil
LIA BAHIA CESÁRIO
(UFF)
No FINAL do século XX, o neoliberalismo e a globalização alteram os fluxos e
as contradições entre a dominação cultural e a produção nacional do cinema. Na
América Latina, os filmes de Hollywood ocupam em tomo de 85% do tempo de
exibição, até mesmo em nações que recuperaram na década de 90 sua produção
nacional, como o México, Brasil e Argentina. O predomínio mundial do cinema norteamericano do pós-guerra em diante converteu-se em oligopólio a partir da década de
1980, ao controlar simultaneamente a produção, distribuição e exibição em mais de
uma centena de países. "Numa operação mais extensiva do que em qualquer outro
campo cultural, Hollywood impôs um formato de filmes quase único( ... ) com temas
de fácil repercussão em todos os continentes" (GARCIA CANCLINI, 2005: 245).
Diante disso, o cinema de cada país vai procurar estabelecer relações fortes
com códigos de identificação de sua nacionalidade: a língua, as locações, os tipos dos
personagens, as vestimentas, as músicas e as referências literárias que caracterizam
a nacionalidade de um filme. É preciso se perguntar em que medida os cinemas
nacionais não são formas de resistência à hegemonia audiovisual norte-americana e
ao processo da internacionalização da cultura. Enquanto as trocas simbólicas
apresentam equidade, a nação não tem necessidade de afirmar e defender· sua cultura.
Em momentos de crise e desequilíbrio cultural os países criam ações pró-ativas no
intuito de garantir a permanência de valores e tradições. O filme é um produto entre
outros e sua difusão é altamente influenciada pela evolução dos sentimentos em face
do fato nacional. Paradoxalmente, o processo de globalização neoliberal resulta em
um cinema em constante diálogo com o mercado nacional e internacional, dependente
de empresas estrangeiras para sobreviver. As políticas de desregulamentação dos
governos latino-americanos, a partir da década de 1990, propiciaram altos investimentos
368
ESTUDOS DE CINEMA
norte-americanos na cadeia produtiva do audiovisual desses países. As majors e o
circuito de exibição norte-americano se tomam relevantes para a sobrevivência do
cinema nacional, ao mesmo tempo, impõem um modelo mercadológico que deixa
pouco espaço para produções nacionais. Assim, "( ... ) os capitais transnacionais
submetem a programação à uniformidade da oferta internacional mais bem sucedida
e subtraem tempo de exibição a outras cinematografias" (GARCIA CANCLINI, idem:
248). O contexto global é um sistema de poder assimétrico e globalizado, desigual,
dominando pelos conglomerados internacionais, diante da lógica do livre mercado.
Essa lógica configura urna troca desigual de bens simbólicos entre regiões do mundo.
O cinema se torna o emblema das relações de força que vão marcar a
internacionalização da produção cultural, sob a lógica da defesa da identidade nacional,
ainda no período das Grandes Guerras Mundiais. Na contemporaneidade, os cinemas
não encontram mais fronteiras sólidas entre nacional e estrangeiro; a discussão ganha
novos contornos com a participação efetiva de empresas transnacionais no setor e
com o desenvolvimento de mídias de entretenimento audiovisuais. O sistema de
produção, comercialização e consumo cinematográfico não pode ser explicado em
termos de homogeneização, nem de localização. A consolidação do sistema se atinge
articulando ambos os aspectos. A persistência ou ressurgimento do local é agora
atravessado por estruturas e fluxos internacionais.
As temáticas permanecem nacionais, mas os modos de produção transitam
entre o nacional e o internacional. Essa dinâmica interfere diretamente no conteúdo
fma!.da obra audiovisual. A interface nacional-transnacional encontra respaldo nas leis
e políticas públicas adotadas para o setor e transforma os modos de produção que
compõem a cadeia produtiva do audiovisual no Brasil.
POLÍTICAS PÚBLICAS rARA O AUDIOVISUAL NO
BRASIL: ENTRE O NACIONAL E O INTERNACIONAL
As políticas públicas para o audiovisual no Brasil surgem para fomentar e
proteger a produção nacional e regular o mercado interno em tempo de mundialização
da cultura. Na história recente do cinema nacional, várias medidas como a criação da
Lei Rouanet (1991)- agora Artigo I • A- Lei do Audiovisual ( 1993) -, implantação da
Ancine através da MP 2228-1 (200 1) e a implantação dos Funcines (2003) corroboram
a"tendência de um recrudescimento da indústria audiovisual nacional. A partir de
meados dos anos 1990, o Estado brasileiro recupera o sentido da importância social,
política, econômica da produção cinematográfica, tomando-a como estratégia para a
conformação da identidade cultural nacional e como setor industrial a ser fomentado
e.protegido pelo Estado .
. • Há crescimento macro da atividade cinematográfica, a partir de meados dos
anos de '1990. Toda a cadeia produtiva do audiovisual no Brasil é beneficiada com _as
PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS
369
novas leis de incentivo: o volume de público do filme brasileiro atinge uma marca
razoável (com uma média de 11% a 15% de participação no mercado nos últimos
anos), o número de títulos nacionais e o investimento para os mesmos crescem ano
a ano, a participação das majors no mercado brasileiro aumenta e o parque exibidor se
expande no país.
Evolução dos filmes nacionais lançados
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2006
2006
Fonte: Filme B, Database 2006.
Novos parâmetros de ação do Estado e de sua relação com a sociedade são
traçados a partir das leis de incentivo e de agência reguladora (Ancine). Se na época
da Embrafilme o Estado era produtor direto do cinema nacional- cinema de Estado, a partir da Lei do Audiovisual ( 1993 ), o Governo se retira como figura do produtor
estatal, permitindo uma relação direta e obrigatória do produtor de cinema com o
investidor e empresas estrangeiras. "A gestão cultural do Estado na sociedade
contemporânea ocorre de forma diversa dos momentos anteriores, quando assumia
um caráter intervencionista, procurando orientar e conduzir a organização da produção".
(ORTIZ RAMOS e BUENO, 2001: 10). Atualmente sua ação se restringe a fornecer
subsídios e suporte, que serão organizados e distribuídos pelo mercado, sem interferir
diretamente sobre os conteúdos.
O modelo de políticas pública para o audiovisual no Brasil e sua interpenetração
nacional-internacional reflete diferentes abordagens sobre o tema. As reflexões
370
ESTUDOS DE CINEMA
correntes sobre o produto cinematográfico consideram a importância da identidade
nacional para a indústria cultural. Segundo pronunciamento do executivo da FOX,
Marcos Oliveira, durante o Festival do Rio 2005, sua empresa acredita que a força de
mercado de um país está relacionada diretamente à sua produção interna. Tal postulado
tem como conseqüência que o fortalecimento do cinema nacional é fundamental para
o desenvolvimento do mercado do cinema no Brasil como um todo. Esse apelo ao
nacional emanado de uma multinacional do cinema é digno de nota, na medida em que
o cinema hollywoodiano domina o mercado brasileiro e cada vez mais empresas
estrangeiras participam da produção e divulgação do produto nacional.
As atuais políticas para a promoção do setor cinematográfico carregam consigo
contradições: por um lado, os incentivos fiscais garantem a todos o direito de produzir,
por outro, mimetizam um modelo liberal para audiovisual, uma vez que se delega a
decisão às grandes empresas. O Estado abdica do compromisso de construir um
painel cinematográfico, marcado pela diversidade de custos, profissionais, linguagens
e discursos ao deixar a decisão da escolha dos projetos de produção nas mãos das
empresas. Em conseqüência, o mercado é dominado por um pequeno número de
pessoas, restando pouco espaço para a inovação e diversidade.
No Brasil, são as políticas públicas culturais e leis federais que direcionam a
produção audiovisual nacional.' São as empresas estatais as que mais investem pelas
leis de incentivo. No ano de 2006, no que se refere à Lei Rouanet (atual Artigo 1oA),
84% de um total de R$ 37.876.981,00, aportado pelos 20 maiores incentivadores são
empresas estatais; pelo Artigo 1o da Lei do audiovisual, esse valor se reduz para 31%
para as empresas estatais (de um total de R$ 53.589.100,00) (Fonte: Dados Ancine,
2007).
Então, se, por um lado, as políticas públicas para o audiovisual no país são
baseadas na idéia nacional da renúncia fiscal e este mecanismo é utilizado, em sua
maioria, por empresas estatais, por outro, a distribuição desses investimentos nas
regiões do Brasil se mostram bastante desiguais. Observa-se uma alta concentração
de valores aportados nas empresas produtoras nas regiões geográficas do Brasil que
lançaram filmes no ano de 2006. A tabela abaixo expõe a concentração de investimento
em produtoras dos filmes nacionais lançados em 2006, principalmente nos estados do
Rio de Janeiro e de São Paulo.
I. Os incentivos estaduais e municipais para o audiovisual ainda são pouco representativos se
comparado ao montante investido pelas leis federais.
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
371
Filmes lançados em 2006 por UF - valores captados e público
100.000.000
80.000.000
60.000.000
40.000.000
a Total Captado
20.000.000
l!l Público total
SP
Fonte: Ancine 2007.
Estas disparidades estão presentes em todos os setores da cadeia produtiva do
cinema. As políticas e as leis de incentivo à produção audiovisual, com a finalidade de
proteger, fomentar a produção nacional e corrigir as desigualdades do setor, atingem,
com maior ou menor ênfase, todos os setores da cadeia produtiva do cinema (produção,
distribuição e exibição) e vêm diversificando e ampliando sua atuação. A taxação sobre
a remessa de lucro das distribuidoras estrangeiras (Artigo 3° da Lei do Audiovisual), a
obrigatoriedade de o exibi dor programar filmes nacionais em suas salas (cota de
telas) e o Prêmio Adicional de Renda são exemplos de leis que estão sendo adotadas
no país.
A política pública para o audiovisual no Brasil, contudo, se volta mais fortemente
para o setor da produção ainda que de maneira desigual. Os demais setores básicos
da cadeia produtiva distribuição e exibição - ficam nas mãos de empresas estrangeiras.
Um dos questionamentos mais freqüentes ao modelo brasileiro de incentivos ao
audiovisual é que este "( ... ) aponta sua incapacidade de englobar a atividade
cinematográfica em seu todo. Ele não percebe que produzir apenas é insuficiente para
gerar a autosustentabilidade da atividade cinematográfica e, por fim, uma indústria"
(ALMEIDA e BUTCHER, 2003: 32).
No que se refere à distribuição, o investimento estrangeiro das majors em
filmes nacionais cresce a cada ano. De 2002 a 2006 houve um crescimento de 252%
do total de recursos oriundos do Artigo 3° da Lei do Audiovisual: um aumento de R$
18.319 milhões em 2001 para 64.414 em 2006. É importante enfatizar que esse
aumento significativo da participação das majors no orçamento das produções nacionais
ESTUDOS DE CINEMA
372
e do marlcet share do público nacional é resultado do amadurecimento do Artigo 3o da
Lei do Audiovisual. 2
Neste mesmo ano, dos 70 filmes nacionais lançados 26 tiveram recursos
fmanceiros de empresas distribuidoras internacionais (dados Ancine, 2006). Junto a
isso a participação das majors no público de filme nacional cresceu de 38% em 2002,
para 84% em 2006 (ver figura abaixo). Em relação ao número de títulos, em tomo de
60% dos filmes nacionais foram lançadas por distribuidoras brasileiras independentes,
as. majors foram responsáveis somente por 23% do total de títulos.
Market share distribuidoras filme nacional público 2006
Fox
46,2%
UIP
0,9%
Sony
2,3%
6,3%
10,6%
23,9%
Fonte: Database Filme B 2006.
Junto a essa concentração de público em filmes nacionais distribuídos por
majors (e não de variedade de títulos) ocorre uma defasagem entre os elos da cadeia
produtiva no cinema nacional. Muitos filmes nacionais chegam a ser fmalizados, mas
não são exibidos nas telas de cinema por falta de distribuidor. E, quando o produto
2. Artigo 3° da Lei do Audiovisual permite que a empresa estrangeira, contribuinte do Imposto de
Renda paga sobre o crédito ou a remessa de rendimentos decorrentes da exploração de obras
audiovisuais no mercado brasileiro, abata 70% do imposto de renda devido, desde que invista o
referido valor em: desenvolvimento de projetos de produção de obras cinematográficas brasileiras
de longa-metragem de produção independente; co-produção de obras cinematográficas brasileiras
de curta, média e longa metragens, de produção independente; co-produção de telefilmes e
minisséries brasileiras de produção independente.
PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS
373
brasileiro chega ao cinema, ele não consegue seguir a cadeia produtiva que se subdivide
nas seguintes janelas: cinema;.home-vídeo, televisão paga; televisão aberta e outras
mídias. O filme brasileiro fica restrito ao mercado interno e raras vezes chega às
televisões abertas e fechadas; estes são exibidos, em sua maioria, em salas de arte.
Quando se consegue apoio de uma distribuidora norte-americana e de emissora de
televisão, o filme pode vir a se tomar uma grande produção nacional. O filme passa,
então, a fazer parte de um circuito de exibição mais amplo, atingindo maior número
de espectadores.
A exibição no Brasil, como toda a cadeia produtiva do cinema, é dotada de
contradições. As novas dinâmicas do audiovisual acabam por criar novas formas de
comunicação e novos hábitos culturais. A cadeia comunicacional dos filmes se alonga,
transmitindo o valor simbólico do produto para um maior número de pessoas. A tela
de cinema é hoje: "( ... ) apenas a vitrine mais luxuosa de um grande conjunto que
ainda passa por vídeo, televisão por assinatura e TV aberta. Essas múltiplas
possibilidades de exploração de um filme se inter-relacionam" (ALMEIDA e BUTCHER,
idem: 19).
Rodrigo Satumino Braga, da Columbia, chama atenção para o vício de
informação ao focalizar o cinema somente nas salas de exibição - que representam
aproximadamente 25% da receita da atividade cinematográfica. Ele considera que é
preciso se levar em conta os outros veículos de comunicação que exibem os produtos
audiovisuais. Estes são meios eficazes, uma vez que alcançam um maior número de
espectadores e garantem que a fala simbólica, o discurso contido no filme, possa
chegar a diferentes públicos. A sobrevivência do cinema não depende apenas das
projeções nas grandes telas de cinema, mas do desempenho conjunto do campo
audiovisual. "Os filmes de hoje são produtos multimídias, que devem ser financiados
pelos diversos circuitos que os exibem" (GARCIA CANCLINI, 2000: 193).
Ao mesmo tempo em que se abrem novas janelas para a divulgação da obra
audiovisual, o setor de exibição e toda sua cadeia - como a distribuição no Brasil está concentrado fia forte participação das empresas estrangeiras. A chegada dos
multiplex no país, em 1997, - depois da vertiginosa diminuição das salas de cinemas
no país nos anos de 1980 - proporciona novo vigor ao cinema. A entrada do capital
estrangeiro na indústria cinematográfica transforma a dinâmica interna do setor e o
comportamento de seu público. 3 Há um número grande de salas, geralmente em
3. A dominação de filmes norte-americanos no mercado brasileiro é evidente. Grandes produções são
lançadas com um número de cópias que ocupam grande parte das salas de exibição no Brasil. Os
filmes nacionais e outros filmes estrangeiros encontram, então, dificuldades de chegar às salas de
exibição. Quando conseguem, são exibidos em salas menores, atingindo um pequeno número de
espectadores. No interior do país essa distorção aumenta. O número de salas de cinema nas
cidades do interior é reduzido, impossibilitando que alguns filmes consigam ser exibidos uma
única vez.
ESTUDOS DE CINEMA
37.4
shoppings, de tamanhos diferenciados, com uma variedade de filmes para que o
espectador faça sua escolha. Isso cria um novo hábito do público de cinema. "Antes
do multiplex, o único atrativo do espectador era o próprio filme. Depois dele passou
a ser, sobretudo, o próprio espaço" (ALMEIDA e BUTCHER, ibidem: 65). A construção
desses complexos dentro dos shoppings, ilhas de consumo, e a conseqüente elevação
do preço de ingresso promovem uma elitização do hábito de ir ao cinema.
Houve um aumento significativo no preço do ingresso no Brasil: nos anos 70,
o preço médio do ingresso variou de 0,33 a 0,59 dólares. Mas é a partir da década de
90 que o ingresso atinge seu maior valor (gráfico abaixo):
Preço médio ingresso no Brasil por ano (US$)
5,00'
4,50
::: +--/',..,....------\----__-_____-__-_____-____-__-____-____-____-____-____--:------__ _ 3-.60
3,00
2.50
I
I
KMGィN]fZQセ
_ _ __
エMセBッNLZ]^⦅@
2,00
KMセTG]
1,50
+-----------------------
0,50
+-----------------------------1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Fonte: Database Filme B 2006.
Dentro da lógica da participação do capital estrangeiro na atividade
cinematográfica, o mercado exibidor no Brasil é dominado pelo grupo Cinemark que
representa 16% do total de salas no país, seguido pelo Grupo Severiano Ribeiro, com
7% de participação do total de 2.045 salas em 2006.
O advento dos multiplex é acompanhado por uma queda abrupta nos cinemas
de ruas e pela concentração das salas em localidades centrais do país. Na afirmação
de Silva, "o cinema torna-se um negócio não apenas urbano como dirigido para os
grandes centros urbanos" (2007: 107). Somente 8,7% dos municípios brasileiros têm
salas de exibição de cinema (Fonte: Muni c, IBGE, 2006). O desenvolvimento do setor
cinematográfico está diretamente relacionado ao desenvolvimento socioeconômico e,
portanto, ao poder de consumo da população. O parque exibidor brasileiro está
PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS
375
concentrado na região sudeste, que dispõe de 59,2% do total de salas. A região Sul
fica com 15,8% das salas, seguida por Nordeste com 11,2%, Centro-Oeste com 9,5
e finalmente, Norte, com apenas 3,2% das salas do país (Database Filme B, 2006).
Cabe ao exibidor o poder de decidir o que vai ser projetado nas telas, por isso,
sua relação com as empresas de distribuição é estreita. Exibidores e distribuidores
formam uma estrutura comercial capaz de decidir a atividade cinematográfica do
país. A distribuição cinematográfica é o setor intermediário, entre produtor e exibi dor;
este último controla os filmes mais relevantes ou lucrativos da produção mundial,
portanto, a concentração das empresas transnacionais na atividade cinematográfica é
decisiva para que o cinema se tome um negócio pouco voltado para o interesse
público. O grande desafio das indústrias de cinema e audiovisual no Brasil e na América
Latina, neste novo século, não é deslocar as grandes companhias internacionais da
região, mas sim ocupar um espaço justo e eqüitativo dentro da mesma, onde possa
haver circulação democrática, tanto econômica quanto cultural, das imagens locais.
A integração mundial dos mercados e culturas não acaba com as tensões entre
a homogeneização e a afirmação dos efeitos particulares, nem com as desigualdades
entre os países e indivíduos. As contradições só se intensificam e ganham força neste
mundo desterritorializado. A globalização opera com duas vertentes: há forças
dominantes de homogeneização cultural, mas junto a isso estão os processos que
sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levantando a disseminação da
diferença cultuai em todo o globo. As tendências contra-hegemônicas têm a capacidade
de subverter, traduzir e negociar, fazendo com que se assimile o assalto cultural
global sobre as culturas menos favorecidas. As culturas, sentindo-se ameaçadas pelas
forças da globalização, fecham-se em tomo de instituições nacionalistas e há um
movimento de reinvenção do passado no presente.
Há a possibilidade de reapropriação e reorientação dos meios de comunicação.
Na reflexão contemporânea, reorientar eticamente estes meios parece implicar leválos para além dos interesses imediatos do mercado em direção de uma comunidade
coletiva e de coexistência das diferenças. As diferenças das culturas nacionais muitas
vezes persistem sobre as transnacionais, mas o modo como o mercado neoliberal
reorganiza a produção e o consumo converte, muitas vezes, as diferenças em
desigualdades. Muitos afirmam ainda que essas medidas estejam sendo distorcidas,
em favor das majors, dos grandes produtores nacionais ou dos exibidores, gerando
concentração e desigualdade no setor. 4
4. Alguns dados disponíveis indicam a dominação e concentração de alguns produtores, distribuidores
e exibidores no mercado cinematográfico brasileiro. Apenas 13 empresas produtoras de um total
de 144 responderam por 43,2% do público que acorreu às salas de exibição no período 1995 a
2004. Uma concentração ainda mais intensa é observada em relaçãoàs empresas distribuidoras: 14
distribuidoras de um total de 35 foram responsáveis pela presença de 91, I% do público total no
ESTUDOS DE CINEMA
376
A indústria cultural cria novas fonnas de dominação ideológica, que ajudam a
reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo tempo, fómece instrumental para a
construção, fortalecimento de resistência e luta contra as fonnas vigentes de dominação.
A indústria cultural é, portanto, um terreno de lutas sociais importantes e ideologias
políticas rivais. Essas disputas são vivenciadas por meio de imagens, discursos, mitos
e espetáculos veiculados pelos meios de comunicação.
Os cinemas nacionais contemporâneos se inserem dentro dessa luta. Não existe
identidade nacional que não possa ser narrada, o reconhecimento e a narrativa da
diversidade tomam-se definitivos na sociedade moderna. Os cinemas nacionais na
América Latina se configuram como uma possibilidade de luta e resistência dentro da
sociedade da internacionalização da cultura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Paulo Sérgio e BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio
de Janeiro: Aeroplano, 2003.
Relatórios Ancine, 2007.
GARCIA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiçultura(s da
globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
-----··Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005 ..
Database Filme B, 2006.
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.
MUNIC, Perfil dos municípios brasileiros, IBGE, 2006.
ORTIZ RAMOS, José Mario e BUENO, Maria Lucia. "Cultura audiovisuaL e arte.
contemporânea". São Paulo Perspec., Julho/Setembro. vol.l5, n°.3, 2001, pp.l 0-17.
SILVA, Denise Mota da. Vizinhos distantes: circulação cinematowáficano lv{ercosul,
São Paulo: Annablume, 2007.
mesmo período. No setor de exibição, no ano de 2004, os dez maiores exibidores ,concentranim
· 1.033 salas de exibição (52% do total das 1.997 salas de exibição distribuídas peloBrasil). A
predominância destes no mercado tende a privilegiar um modelo ou tipo de obra a ser セG_ョ、ッ@
pelo público. (Sumário Executivo Ancine, 2004).
·. . , ! · '
Cinema independente no Brasil: anos 1950
Luís ALBERTO RocHA MELO (UFF)
NA HISTÓRIA do cinema brasileiro referente aos anos 1950, os filmes que não
foram produzidos pelos grandes estúdios paulistas (Vera Cruz, Maristela) ou pelo
monopólio de Luiz Severiano Ribeiro (Atlântida) são em geral divididos em duas
vertentes opostas.
De um lado, temo-se o grupo de realizadores e criticas ligados ao Partido
Comunista Brasileiro, responsáveis por alguns filmes conhecidos como precursores
do cinema novo dos anos 1960. Entre esses filmes, pode-se citar O saci (dir.: Rodolfo
Nanni; prod.: Brasiliense, 1951-53); Agulha no palheiro (dir.: Alex Viany; prod.:
Flama,l953); Rio, 40 graus (dir.: Nelson Pereira dos Santos; prod.: Equipe Moacyr
Fenelon, 1955) e O grande momento (dir.: Roberto Santos, prod.: Nelson Pereira dos
Santos, 1958). São os chamados "independentes".
De outro, agrupam-se os produtores-distribuidores de comédias musicais
populares; (conhecidas como "chanchadas") produzidas em grande número,
anualmente; refiro-me a títulos como Depois eu conto (dir.: José Carlos Burle; prod.:
Produções Watson Macedo/Cinedistri, 1956); É de chuá! (dir.: Victor Lima; prod.:
Herbert Richers, 1957); Na corda bamba (dir.: Eurides Ramos; prod.: Cinelândia Filmes/
Cinedistri, 1957) e Quem roubou meu samba? (dir.: José Carlos Burle; prod.: Cinedistri/
Cinelândia Filmes, 1958), entre muitos outros. Estes não são considerados
"independentes".
No entanto, em Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz, Roberto Santos cineasta alinhado ao grupo dos "independentes"- afirma que
[ ... ] objetivamente falando- e deixando de lado a questão da temática-, em termos
de produção, nós aqui em São Paulo não fizemos nada mais do que retomar o
sistema de produção da chanchada (SANTOS, apud GALVÃO, 1981: 218).
378
ESTUDOS DE CINEMA
O trecho acima transcrito indica que é possível enxergar no modelo de produção
das comédias musicais, uma fonte de inspiração para a produção independente tentada
pelo grupo dito precursor do cinema novo. Mas é importante ressaltar que, para os
referidos pequenos produtores e distribuidores, que em geral realizavam um volume
bastante grande de comédias musicais populares, o uso do termo "produção
independente" tinha um sentido bem distante da carga ideológica atribuída pelo grupo
dos cineastas ligados à esquerda.
Para os produtores de filmes objetivamente "comerciais", a "independência"
estava ligada às formas de produção, distribuição e exibição desvinculadas dos grandes
estúdios e do monopólio de Severiano Ribeiro, mas não abrangiam questões estéticas
e temáticas. Já para os cineastas e críticos ligados ao PCB, o "cinema independente"
era necessariamente um cinema de preocupações sociais e políticas, que exigiam
temática e tratamento estético diferenciados.
Em relação a esses cineastas ligados à esquerda, deve-se chamar a atenção
para duas utilizações distintas do termo "independente", correspondentes a dois
períodos bem determinados, ambos já cristalizados pela história vigente do cinema
brasileiro.
No primeiro período, situado entre os anos 1951-54, o "cinema independente"
insere-se num programa de ação política motivado por um movimento contraditório,
ao mesmo tempo de defesa da industrialização do cinema brasileiro e de crítica aos
modelos existentes, considerados industriais, representados pelos estúdios paulistas
(Vera Cruz, Maristela).
Em um segundo momento, que se pode localizar entre os anos 1955-63, temse a utilização do termo "independente" associado ao cinema de autor como princípio
ético e político do cinema novo, um cinema que se pretendia socialmente
revolucionário, incluindo em suas premissas a franca e contundente negação de uma
indústria cinematográfica no Brasil.
Os anos 1951-54 serão marcados pela atuação política do grupo ligado
ao PCB, notadamente nos congressos de cinema realizados em 19 52-53 e na realização
de filmes. A partir do livro Revisão crítica do cinema brasileiro, de Glauber Rocha
( 1963 ), será comum enxergar o "cinema independente" como uma tradição originária
do cinema novo. O cinema novo é então assumido como parâmetro a partir do qual se
organizaria toda a história passada, considerada como uma espécie de pré-história do
cinema modemo. 1
I. Esse discurso histórico é característico da geração cinemanovista, como é possível constatar num
depoimento de Eduardo Coutinho sobre o cinema brasileiro, em 1962: "Em certo sentido, é
preciso limpar todo o passado cinematográfico brasileiro para construir um cinema digno de nosso
tempo e de nossas necessidades. Pouco do que existe pode ser aproveitado" (COUTINHO apud
VIANY, 1999: 38) .
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
379
Em seu já citado depoimento a Maria Rita Galvão, Roberto Santos, logo de
início, procura explicitar o significado da expressão "independente". Para ele, trata-se
do cinema que parte do realizador. e não da empresa. Um "filme independente" é
aquele que expressa as idéias de seu realizador; logo, é aquele em que o realizador é de
fato um autor.
Na contraposição "cinema independente" versus "cinema empresarial" Roberto
Santos identifica uma série de contradíções. A começar pelo fato de que os "novos
temas" que os independentes perseguiam e buscavam realizar - temas brasileiros,
com nítidas preocupações sociais - tinham como modelo técnico e formal o aparato
dos grandes estúdios, isto é, do cinema "empresarial" ou "industrial": produções bemcuidadas e tecnicamente impecáveis.
Um modelo "empresarial" ou "industrial" pressupõe um corpo adminístrativo
compatível. No caso do cinema, esse corpo tem o produtor como figura central.
Acontece que o produtor, para a maior parte dos realizadores de esquerda ligados ao
ideário independente, sempre foi visto como uma espécie de inimigo.
Em uma conferência proferida no CEC (Centro de Estudos Cinematográficos
de Belo Horizonte), em 1953, Alex Viany denunciou a "estreiteza de concepção" dos
produtores, referindo-se, no caso, aos "produtores financiadores".
[ ... ] além de não reconhecerem a necessidade de um mínimo de tempo eficaz para a
completa preparação de um roteiro técnico e demais providências preparatórias,
reduzem ainda elementos imprescindíveis à boa consecução dos trabalhos. Veja-se,
por exemplo, o caso dos refletores em Agulha no palheiro: para se conseguir
uniformidade fotográfica e perfeita caracterização dos atores, um mínimo de iluminação
é exigido; no entanto, o produtor, em verdadeira intromissão a setor que não lhe
afeta, julgou que com a metade se conseguiu o mesmo efeito; conclusão - cenas mal
iluminadas, imagens difusas, desarmonia entre os diversos "shots". A uma
planificação desordenada, segue-se uma direção eivada de contratempos, com
estúdios mal montados, carência de materiais indispensáveis, compressão de
despesas prejudicial e o produtor - sempre o produtor - a exigir aceleração nos
trabalhos (1953: 10).
Depreende-se do discurso de Viany a tensão entre a exigência de seguir o
padrão mínimo de qualidade (a preocupação com a "produção bem-cuidada"), e a
improvisação forçada pelo próprio produtor-financiador. Por outro lado, a experiência,
narrada por Viany, refere-se a um filme identificado ao "cinema independente", mas
produzido justamente por uma pequena produtora de comédias musicais populares, a
Flama Produtora Cinematográfica.
No caso particular do cinema carioca, há que se ressaltar as intrincadas relações
entre as pequenas produtoras-distribuidoras em atividade nos anos 1950, o grupo dos
"independentes" e a aceitação popular das comédias musicais. A presença da Atlântida
·380
ESTUDOS DE CINEMA
e a influência de Luiz Severiano Ribeiro no meio cinematográfico são, sem dúvida,
dados diferenciadores a nortear e a configurar essas relações.
Um dos nomes centrais daquele momento era o diretor e produtor Moacyr
Fenelon. Sua atuação política e sua trajetória profissional o tomam estreitamente ligado
ao grupo dos independentes, representado por Alex Viany e por Nelson Pereira dos
Santos, ao mesmo tempo em que o aproximam da prática dos produtores comerciais
das chanchadas.
Tendo sido um dos fundadores da Atlântida, em 1941, Fenelon retirou-se da
empresa em 1948, logo após a entrada de Luiz Severiano Ribeiro como acionista
majoritário. Fora daAtlântida, fundou a Cine-Produções Fenelon e, associando-se aos
estúdios da Cinédia, de Adhemar Gonzaga, produziu filmes como Obrigado, doutor
(1948) e Poeira de estrelas (1948), ambos dirigidos pelo próprio Fenelon, além de
Estou aí (1949); Todos por um (1950) e O falso detetive (1951), três comédias
dirigidas por Cajado Filho.
Em seguida, associando-se com o empresário de comunicações Rubens Berardo
Carneiro, fundou a Flama, produzindo desde o melodrama Milagre de amor (Moacyr
Fenelon, 1951), até a comédia musical carnavalesca Tudo azul (Moacyr Fenelon,
1952) e a comédia dramática Agulha no palheiro, de Alex Viany, esta última, como se
vê um dos marcos do cinema independente, considerado precursor do cinema novo.
É significativo o fato de que, após a morte de Moacyr Fenelon, em 1953, Nelson
Pereira dos Santos o tenha homenageado escolhendo o nome de "Equipe Moacyr
Fenelon" para a cooperativa que realizou Rio, 40 graus.
A Flama brigava pelo mesmo público fiel às comédias da Atlântida. Não por
acaso, os filmes produzidos pelo pequeno estúdio de Berardo e de Fenelon buscavam
.seguir a receita do sucesso popular: melodramas, policiais, musicais carnavalescos. A
Flama procurava, portanto, uma alternativa nos campos da produção, da distribuição
.e da exibição. Para tanto, Fenelon e Berardo vão se associar aos circuitos exibidores
de Vital Ramos de Castro e Pathé, no Rio de Janeiro, além de Francisco Serrador, em
São Paulo, que eram concorrentes de Luiz Severiano Ribeiro. (AUGUSTO, 1989:
125-6)
A estratégia da Flama pressupunha, portanto, a existência de uma rede de
.relações entre produtores, distribuidores e exibidores atuantes no Rio de Janeiro durante
os anos 1950, circuito do qual se aproximavam diretores afinados com o ideário de
esquerda, tais como Moacyr Fenelon e Alex Viany.
Em relação aos produtores de chanchadas, o caso de Watson Macedo é
,_exemplar. Em 1953, tendo dirigido oito filmes para a Atlântida, fundou sua própria
produtora, a Produções Watson Macedo, e realizou diversas comédias de sucesso,
.entre elas É fogo na roupa (Watson Macedo, 1952); O petróleo é nosso (Watson
Macedo, 1954); Carnaval em Marte (Watson Macedo, 1955) e Depois eu conto
(José Carlos Burle, 1956). Uma reportagem publicada no Jornal do Cinema traça a
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
381
trajetória de Watson Macedo como a de um "produtor independente" que "rompe
definitivamente com a Atlântida", e entra em "concorrência" com Luiz Severiano
Ribeiro. Segundo a reportagem,
[... ] Watson nada tinha que temer ao querer se tomar independente. Para tanto, na
verdade, o pior era o circuito de exibição, o primeiro entrave a vencer. Mas, esse
ficou logo resolvido com a Unida, a única distribuidora, até então, de filmes brasileiros.
Resultou desse acordo que as produções seriam distribuídas por ela, através dos
cinemas não ligados à empresa Severiano Ribeiro, o chamado circuito independente.
(GONÇALVES, 1957: 15)
Ou seja, nos anos 1950 a idéia de "independência" poderia inclusive ultrapassar
o círculo dos produtores-diretores, ganhando o terreno dos distribuidores e dos
exibidores (o "circuito independente"). Nesse sentido, um distribuidor como o italiano
Mario Falaschi, dono da Unida Filmes, citada no trecho transcrito acima, vem ocupar
um lugar de primeiro plano no "cinema independente" realizado naquele período.
A trajetória desse italiano de Pisa, que chegou ao Brasil em 1925, é uma das
mais curiosas. Na virada do cinema mudo para o sonoro, empregou-se no setor de
distribuição da Warner Brothers, em São Paulo. Em fms de 1930, tornou-se distribuidor
da Sonofilmes, trabalhando a seguir na DFB (Distribuidora de Filmes Brasileiros) e na
UFA (Universum Film Aktiengesellschaft), distribuidora alemã da qual saiu com a
Segunda Guerra Mundial. Em 1943, integrou a Cooperativa Cinematográfica Brasileira,
que distribuiu os dois primeiros filmes da Atlântida, Moleque Tião (José Carlos Burle,
1943) e É proibido sonhar (Moacyr Fenelon, 1943). Quando Severiano Ribeiro assumiu
a maior parte das ações daAtlântida, em 1947, Falaschi organizou a UCB e, em 1952,
transferiu-se para a Unida Filmes, da qual passou a ser diretor, a partir de 1954.
Com a Unida, Falaschi distribuiu os filmes da Flama, da Produções Watson
Macedo e de outras pequenas produtoras, como a Brasiliense Filmes (produtora do
filme independente O saci, de Rodolfo Nanni, 1952), o Estúdio Pinto Filho (Queridinha
do meu bairro, Felipe Ricci, 1954), a Brasil Vita Filmes (Rua sem sol, Alex Viany,
1954) e até mesmo a "Equipe Moacyr Fenelon", cooperativa de Nelson Pereira dos
Santos que realizou Rio, 40 graus, filme-manifesto do grupo dos "independentes".
Foi, porém, com os filmes carnavalescos da Produções Watson Macedo que a Unida
Filmes se capitalizou.
Portanto, produtores e distribuidores de comédias musicais populares e
realizadores dos filmes ligados à esquerda, não eram grupos que existiram em separado,
sem qualquer tipo de relação. Tomo como exemplo disso que acabo de afirmar o caso
de Lamparina, projeto que Alex Viany desenvolveu com Alinor Azevedo a partir de
uma notícia de jornal sobre um episódio passado em um morro carioca. Um "contrato
particular de trabalho e cessão de direitos autorais", de 1955, entre a Unida Filmes S/
A (contratante) e Alex Viany (contratado), dizia, entre outras coisas, o seguinte:
ESTUDOS DE CINEMA
382
O contratado, proprietário da história, argumento cinematográfico, palavras, diálogos
e roteiro técnico da obra intitulada Lamparina, pelo presente instrumento vende,
cede e dá todos e quaisquer direitos para o contratante explorar comercialmente, no
Brasil e em todos os países do mundo, o citado argumento em sua forma
cinematográfica, em 35 e I 6 mm [... ] Para a execução dos trabalhos aqui estabelecidos,
o contratado compromete-se a ficar à disposição do contratante por prazo
indeterminado, devendo acompanhar todas as fases da produção até que seja por
ele e pelo contratante aprovada a primeira cópia definitiva do filme. O contratado
não poderá escolher artistas e técnicos, bem assim como tomar outras providências
referentes à produção, sem consulta prévia e aprovação do contratante. 2
Os termos do acordo entre a "contratante" Unida Filmes e.o "contratado" Alex
Viany indicam o grau de interferência que a produtora-distribUidora procurava ter na
concepção artística do projeto. Por outro lado, isso deve ter gerado uma tensão quase
insolúvel entre o pragmatismo empresarial e o ideal independente. Não custa lembrar
que Lamparina não foi realizado, fato que não deve ser visto como meramente casual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A. E. T. [pseud.]. "A conferência de A! ex Viany no CEC". Correio do Dia, Belo Horizonte,
08dez 1953.
AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso fera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira/Embrafilme, 1981.
- - - - - · " O desenvolvimento das idéias sobre cinema independente". 30 anos de
cinema paulista, 1950-1980. São Paulo: Cinemateca Brasileira, Cadernos da
Cinemateca, n. 4, 1980.
GONÇALVES, Célio. "A história dos milhões de Watson Macedo;'. Jornal do Cinema
[número extra], Rio de Janeiro, dez 1957.
PACHECO, Matos. "Produzem-se grandes filmes em um estúdio bem pequeno". Última
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"UM italiano (carioca) prepara uma porção de filmes". Jornal do Cinema, n. 37, Rio de
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VlANY, Alex. O processo do Cinema Novo. AVELLAR, José Carlos. (org. ). Rio de Janeiro:
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2. "Contrato particular de trabalho e cessão de direitos autorais". Rio de Janeiro: 12 mai 1955 (datil.).
Documento pertencente ao Acervo Alex Viany, depositado na Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro.
Acervos documentais de arquivos
audiovisuais: desafios e propostas
RAFAEL DE LUNA FREIRE
(UFF)
A FUNÇÃO de uma cinemateca ou de um arquivo de filmes é salvaguardar o
patrimônio fílmico, preservando, de acordo com suas políticas de acervo, um
determinado conjunto de obras cinematográficas, e garantindo -no presente e no
futuro- seu acesso nas condições mais próximas daquelas em que foram concebidas.
A integridade de uma obra cinematográfica não está ligada à preservação de um objeto
apenas - os rolos de negativo de uma câmera, por exemplo -, mas a um amplo
conjunto de materiais relacionados a essa obra, tais como intemegativos e másteres,
copiões e sobras de montagem, diferentes cópias de exibição, trailers e teasers, etc.
Obviamente, o escopo é ainda mais amplo e devem incluir como materiais
constituintes de uma obra- de um longa-metragem em 35 mm, por exemplo- objetos
de outra natureza além da película cinematográfica, como aqueles em suportes
magnéticos e digitais, possivelmente presentes em diferentes etapas na realização,
finalização e exibição da obra.
Mais além, essa visão deve ser ampliada para todo um universo de documentos
que também se relacionam com uma determinada obra e que, numa cinemateca,
costumam ser definidos por diferentes termos, tais como "documentos não-filmicos",
"documentos especiais" ou "documentos diversos", que já espelham seu papel coadjuvante na hierarquia de prioridades do arquivo. Dentre os diversos materiais incluídos
nessa categoria, podem-se citar aqueles ligados diretamente à realização do filme
(roteiros, planilhas de produção, boletins de câmeras, bands de marcação de luz,
etc.), ao lançamento do filme (pôsteres, fotocartazes, fotos still de divulgação, press
releases, postais, discos e cds da trilha sonora, brindes promocionais, etc.) e à recepção
do filme (críticas e reportagens dos jornais, livros e revistas especializadas, documentos
·
de censura, programas de salas de exibição, borderôs de bilheterias, etc.).
384
ESTUDOS DE CINEMA
Esses materiais citados são de importância fundamental, inclusive para a
preservação do contexto de uma obra e dela mesmo em si -lembrando, por exemplo,
de seu papel nos complexos processos de restauração - ou até mesmo dando alguma
informação sobre obras que se perderam definitivamente. Particularmente em relação
ao cinema brasileiro, diante do fato de não ter chegado aos dias de hoje absolutamente
nenhum fragmento das centenas de filmes realizados pioneiramente entre 1898 e
1909 (data dos materiais mais antigos preservados atualmente), as importantes notícias
de jornais, anúncios publicitários, programas de salas de exibição, ingressos de sessões
de cinema e livros memorialísticos se ampliam enormemente ao se constituírem como
as principais fontes de informação sobre parte de um passado cinematográfico recente.
Essa documentação, que inclui materiais de formatos, dimensões e aspectos
os mais variados (de uma crítica de jornal a um banner em material plástico, de um
slide fotográfico a uma carta escrita em papel de seda, de um postal de cartolina a
uma camiseta de algodão), são responsáveis por conferir informações que de outra
maneira, através do exame somente do próprio "filme" (de sua cópia ou negativo),
não seria possível obter. Dados como datas de filmagem, finalização e lançamento,
circuito de exibição, recepção pela crítica e pelos espectadores em diferentes momentos,
público-alvo focado pela campanha de divulgação, entre outros, somente podem ser
alcançados através da pesquisa desses documentos.
A relevância desse "papel" é ainda maior quando se recorda a importância de
se preservar não apenas a produção cinematográfica (os filmes), mas também diferentes
aspectos da atividade cinematográfica como um todo- exibição, distribuição, crítica,
recepção, tecnologia, economia, etc. -e que amplia significativamente o universo de
documentos que devem ser conservados por uma cinemateca.
A desvalorização da "documentação não-filmica" dentro de uma cinemateca
pode advir de duas questões básicas: a primeira é o monopólio das atenções do arquivo
pelo acervo de películas (sejam de nitrato, acetato ou poliéster), cujas complexas
características físico-químicas demandam esforços especiais e exigem para sua
adequada conservação manuseio e reprodução de grande parte dos recursos financeiros
disponíveis. A segunda questão, relacionada com a primeira, deve-se à concepção
generalizada de que a função de uma cinemateca é simplesmente "preservar filmes de
cinema", enquanto outras instituições, como bibliotecas e arquivos públicos, já teriam
como tarefa primordial conservar livros, revistas e outros materiais dessa natureza.
Em relação a esse segundo ponto, é necessário dizer que há documentos
preservados pelas cinematecas que não interessariam a qualquer outro arquivo -tais
como coleções particulares de personalidades ligadas ao cinema, materiais publicitários
de filmes, documentos técnico-administrativos de empresas da atividade
cinematográfica, etc. - e que se encaminhariam para a destruição caso não fossem
acolhidos pelos arquivos audiovisuais.
Por outro lado, uma parte significativa do acervo dos setores de documentação
das cinematecas é constituída por materiais como reportagens e documentos veiculados
PESQUISA, PÚBLICO EPOLÍTICAS AUDIOVISUAIS
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pela imprensa que também são preservados, por exemplo, pela Biblioteca Nacional,
no Rio de Janeiro, para citar a instituição mais conhecida. Entretanto, cabe ressaltar
que a organização da informação num arquivo audiovisual está voltada para seu público
principal- grosso modo, aquele voltado para o cinema e assuntos afins-, num esforço
para que essa informação não apenas seja conservada, como seja facilmente
disponibilizada e direcionada, lembrando que a preservação e acesso são faces da
mesma moeda. Como alguém pode encontrar uma crítica de um jornal sobre um
determinado filme numa hemeroteca tradicional se ele não souber a data exata de seu
lançamento no circuito de salas de exibição? E mesmo que tenha essa data, como
tomará conhecimento de possíveis relançamentos comerciais ou exibições especiais
em mostras e festivais quando também teriam sido publicadas outras críticas sobre
esse mesmo filme?
bibliotecas e museus, uma cinemateca
Combinando características de 。イアオゥカセウL@
consiste no lugar privilegiado para a preservação e o estudo do cinema, uma vez que
a própria disposição de seu acervo documental é pensada para este fim. Além disso,
um arquivo de filmes deve assumir um papel de referência para a sociedade nessa
questão. Um exemplo desse aspecto foi o grande número de pessoas que se
encaminharam ao Setor de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro (MAM-RJ) em busca de materiais de estudo para o concurso da
Ancine, em 2005, cuja prova destinada a contadores, economistas e administradores
incluíam "conhecimentos específicos" sobre a história do cinema brasileiro. Ouvi o
relato de muitos candidatos que estavam completamente desorientadas sobre onde
estudar para o concurso antes de irem à Cinemateca.
Entretanto, grandes dificuldades se impõem às cinematecas para a incorporação,
catalogação e guarda do número gigantesco de documentos que chegam- ou deveriam
chegar- aos arquivos diariamente. Um exemplo de uma maneira de tentar enfrentar
esse desafio foi o estabelecimento de uma parceria estratégica entre a Cinemateca do
MAM e o Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense,
cristalizada na incorporação ao currículo obrigatório do curso de graduação em cinema
da disciplina "Preservação, Restauração e Políticas Audiovisuais"; oferecida no ambiente
da própria Cinemateca.
Uma experiência notável se deu no segundo semestre de 2005, quando o foco
dessa disciplina, então oferecida pelo professor João Luiz Vieira, foi o Setor de
Documentação da Cinemateca. Depois de serem apresentados às diversas atividades
realizadas no setor, lidando diretamente com os materiais e se incorporando à rotina
de trabalho da instituição, os alunos foram convidados a partirem para a prospecção
de materiais para o acervo. Uma lista com o contato de diversas produtoras e cineastas
cariocas foi feita, e cada grupo de alunos ficou encarregado de estabelecer contato
para solicitar a doação de documentos para o acervo da Cinemateca do MAM.
O resultado não poderia ser mais instrutivo para os estudantes. Enquanto uma
grande produtora afirmou a alguns alunos não ter nenhum material para doar de
386
ESTUDOS DE CINEMA
nenhum de seus filmes recentes, outros tiveram mais sorte e conseguiram cartazes,
dvds e materiais promocionais de diversas produções. Os diferentes resultados práticos
dessa atividade levaram os alunos a diversas conclusões, como a de que freqüentemente
é mais dificil obter materiais de grandes produções nacionais distribuídas pelas majors
americanas- que gastam milhões em publicidade, mas cujas fotos, cartazes e releases
desaparecem imediatamente após a carreira comercial do filme -, do que de longasmetragens realizados e lançados em esquemas muito mais precários, mas cujos
responsáveis são de algum modo mais acessíveis, através de contatos pessoais. Desse
modo' percebiam a necessidade de uma cinemateca, estabelecer uma rede de contatos·
-baseada na confiança e respeito mútuos- que se renovava justamente através daqueles
alunos, futuros cineastas, produtores, críticos e técnicos de cinema.
A conscientização dos alunos ia além dessa constatação quando muitos
questionavam a necessidade de se coletar materiais de filmes que eles consideravam
"ruins", como os da Xuxa ou do Padre Marcelo Rossi. Ao final, entretanto, eles se
convenciam do equívoco que representava se atar a esse tipo de valoração subjetiva
que implicaria numa seleção pouco criteriosa, motivados, por exemplo, pela surpresa
de lerem uma crítica publicada no início dos anos 1970, em que um de seus atuais
professores- no passado, crítico de um grande jornal- "esculachava" (nas palavras
dos alunos) um filme então recém-lançado e hoje considerado um dos "dez mais" do
cinema brasileiro, sobretudo para as novas gerações.
A lição oferecida era não apenas da importância desse trabalho, mas de sua
urgência, tomada clara, por exemplo, diante de um caso verificado pelos alunos de
um longa-metragem, então, recém-saído de circuito, cujos cartazes já tinham sido
totalmente destruídos, com exceção de um ou dois emoldurados na parede da produtora.
Mais ainda do que quando se refere ao acervo de películas - os rolos de.
negativos, materiais intermediários, cópias, etc. -, os objetos dos setores de
documentação das cinematecas revelam a necessidade de uma política de prospecção,
ativa e descentralizada por parte dos arquivos audiovisuais.
Uma política de prospecção deve ser ativa por se tratar de um material facilmente
destruído, cujo valor tanto pode ser considerado nulo (às vezes pelos próprios
realizadores que perguntam: "Mas isso te interessa mesmo?") quanto alto (atraindo
fãs, colecionadores e comerciantes que podem se tomar adversários ou aliados nessa
tarefa), e que é produzido em grande escala. Uma política deve ser descentralizada
pela constatação que em nível nacional uma só instituição não é absolutamente capaz
de dar conta de tudo que é necessário, devendo agir em conjunto com outras instituições
através da divisão de tarefas e de uma mútua troca e colaboração.
É mais fácil para a Cinemateca doMAM coletar um programa de um cineclube
carioca, para a Cinemateca de o Capitólio conseguir um cartazete de um curta-metragem
gaúcho, para a Cinemateca de Curitiba receber a doação da biblioteca de um cineasta
amador paranaense, ou para a Cinemateca Brasileira obter um catálogo da Mostra
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
387
Internacional de Cinema de São Paulo, do que um só arquivo ficar responsável por
tudo que circula em nosso país.
Com o avanço irrefreável da internet e da informatização, surgem novos desafios
para as cinematecas, assim como também para os responsáveis pelos setores de
documentação dos arquivos audiovisuais. Atualmente, as fotos de divulgação de longasmetragens são enviadas por e-mail, e assim como podem ser repassadas e copiadas
com um clique, também são apagadas com a mesma facilidade, rapidez e freqüência.
Além disso, uma das mais importantes formas de divulgação de um longa-metragem
em seu lançamento comercial é seu site na internet, freqüentemente repleto de
informações que urgem ser conservadas, como entrevistas com diretores, dados de
bastidores, clipping de críticas e reportagens, fotos e vídeos, etc. Quem está coletando
esses documentos, que embora aparentemente impalpáveis, existem fisicamente dentro
de um HD de computador? O si te de um filme como Deus é brasileiro não está mais
on-line, nem disponível no portal da Columbia Pictures como em 2002. Quem entrar
no domínio do filme Cidade de Deus (www.cidadededeus.com.br) vai ser deslocado
para o portal da Globo Filmes, onde se encontra uma versão diferente e reduzida do
site original que estava na internet quando o filme foi lançado. Um exemplo ainda mais
recente é o do site do filme Querô, lançado em 2007, que contava com um blog
mantido pelo elenco de jovens atores selecionados em oficinas realizadas em
comunidades da Baixada Santista, onde eles comentavam sobre a repercussão do
filme em suas vidas. Esse site, que podia ser consultado na internet na época de
realização do XI Encontro da Socine, na PUC-RJ, em outubro de 2007, já não estava
mais disponível na rede no começo de 2008. Como um pesquisador poderá ter acesso
a esses importantes depoimentos num trabalho futuro? Onde estão esses documentos
hoje? Mais importante ainda: onde estarão daqui a cinco anos? Eles ainda existirão
daqui a dez anos?
Em relação ao blog do si te do filme Querô, este trabalho se refere aos chamados
born digital documents. Mas e quando se fala de documentos em formato analógico
que estão sendo digitalizados? Há um grande número de projetos na área de cinema
voltados para a digitalização de acervos documentais e sua disponibilização em sites
na internet. Dentre eles, pode-se citar o projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro (www.memoriacinebr.com.br), o Projeto Biblioteca Digital das Artes dos
Espetáculos: revistas A Scena Muda e Cinearte (http://www.bjksdigital. museusegall. org.br)
e a disponibilização do acervo documental de Alex Viany (http://www.alexviany.com.br).
A facilidade de acesso à documentação através da internet proporcionada por
essas iniciativas é inquestionável. No entanto, não se deve deixar de atentar para a
necessidade de adequada preservação dos documentos originais, assim como dos
recém-criados arquivos digitais. Os arquivos ou organizações responsáveis por projetos
como esse terão capacidade de conservar esses arquivos digitais nos anos vindouros,
fazendo, inclusive, as regulares migrações de formato que a informatização exige?
388
ESTUDOS DE CINEMA
As próprias cinematecas aprenderam uma lição com a destruição de películas
em nitrato, material altamente inflamável, depois de elas já terem sido copiadas para
películas de acetato, material de segurança, em procedimentos empreendidos
sistematicamente nos anos 1980, numa campanha mundial cujo slogan era nitrate
won 't wait. 1 Embora tenha se alardeado que nenhum nitrato chegaria ao ano 2000,
posteriormente se verificou que muitos materiais em nitrato, quando guardados
adequadamente, permaneciam em boas condições, enquanto parte daquelas primeiras
cópias em acetato se deterioraram devido a então incipiente "síndrome de vinagre".
Outro exemplo semelhante foi à sistemática microfilmagem de coleções de periódicos
realizada nas décadas passadas, que resultou hoje, em muitos casos, na necessidade
de digitalizar novamente os mesmos jornais e revistas diante do mau estado atual dos
microfilmes.
Independente das vantagens e dos alertas, os projetos de digitalização citados
apontam para uma outra questão importante, que é a parceria entre a academia e os
arquivos audiovisuais. A maior parte desses projetos é encaminhada ou acompanhada
por pesquisadores e professores, responsáveis pela condução do trabalho ou da
realização de publicações a partir das informações obtidas dos respectivos acervos.
Diante do gigantesco volume de trabalho do setor de documentação de uma
cinemateca, como sugeriu Nancy Goldman, chefe da Comissão de Catalogação e
Documentação da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), o interesse
dos pesquisadores deve ser sempre aproveitado pelos arquivos no auxilio às suas
atividades internas, como na organização e classificação de documentos. Desse modo,
esses projetos são muito bem-vindos, possibilitando o aporte de recursos e pessoal
que os arquivos não obteriam de outras maneiras.
Por outro lado, a excepcionalidade dessas iniciativas revela a distância atual,
entre dois universos que deveriam manter um maior intercâmbio. Nos últimos anos,
a pesquisa tem se circunscrito cada vez mais exclusivamente ao ambiente universitário.
Praticamente não existem mais bolsas de pesquisa desvinculadas da universidade,
como as oferecidas pela Embrafilme, nas duas edições do Programa Cinetema, por
exemplo, e hoje em dia são pouquíssimas as possibilidades de se conseguir algum
apoio financeiro das agências de fomento para trabalhos que não estejam inseridos no
universo acadêmico ou não sejam encabeçados por professores doutores.
Por outro lado, a rotina atual na academia demanda uma "produtividade" que
dificulta a realização de um trabalho de pesquisa profundo, laborioso e demorado em
meio-à exigência de artigos, publicações e participações em congressos. Enquanto
1.. No caso brasileiro, conferir o seguinte documento: http://www.ctac.gov.br/otelo/acervo/img/
texcor0047.00.pdf, disponibilizado no site do Projeto Grande Othelo 90 anos, que incluiu a
digitalização de seu acervo pessoal.
PESQUISA, PÚBLICO EPOlÍTICAS AUDIOVISUAIS
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isso, é cada vez mais comum que funcionários de arquivos audiovisuais sejam
obrigados a ingressar em programas de pós-graduação para desenvolverem pesquisas
que poderiam ser feitas de forma mais proveitosa no próprio ambiente de trabalho se
fosse possível obter algum tipo de apoio.
Esse divórcio entre academia e arquivos audiovisuais gera prejuízos - ou, no
mínimo, deixa de gerar dividendos - seja para o compromisso de preservação da
memória da atividade cinematográfica, seja para os estudos de cinema, particularmente
àqueles ligados à história do cinema brasileiro. 2
Símbolo dessa distância é a presença ainda tímida- embora as existentes sejam
de grande vigor - de trabalhos oriundos de um diálogo intenso, proveitoso e
conseqüente entre arquivos audiovisuais e a universidade e seus respectivos
funcionários. Cabe a todos investir nesse caminho promissor e necessário.
BIBLIOGRAFIA
BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo:
Annablume, 1995.
EDMONDSON, Ray. Audiovisual archiving: philosophy and principies, UNESCO, 2004.
Disponível em: http://portal.unesco.org/ci/en/ev.php-URL_ID=l5592&URL_
DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=20l.html
GARCÍA, Alfonso Del Amo. Classificar para preservar. México: Cineteca Nacional, 2006.
GOLDMAN, Nancy. Encontro com Nancy Goldman- chefe da comissão de catalogação
e documentação da FIAF, Cinemateca Brasileira, São Paulo, lO a 13 de agosto de 2004.
Notas de aula.
HEFFNER, Hemani. Entrevista oferecida a Ruy Gardnier, Rio de Janeiro, 22 jul2000. In:
Contracampo: revista de cinema, n. 19, 2000. Disponível em: http://
www.contracampo.com.br/19/frarnes.htrn
2. Conforme sugeriu a professora Hilda Machado, essa aproximação entre academia e cinematecas
também representa urna superação da divisão entre trabalho mental e manual, sendo o primeiro
valorizado em relação ao segundo, visto como algo menor.