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EDUCAÇÃO DO DESEJO E ESCUTA

Educar para um grego é educar o desejo. Filósofos e sofistas estruturam um debate como deve ser a educação de um cidadão da polis, de quais métodos devem ser empregados, dos modelos de virtude a serem buscados, especialmente em como o prazer, a vida emocional do indivíduo como um todo, pode ser civilizado segundo uma ou orientação geral. O problema não está somente em pensar o papel do caráter (ethos) que se quer formar nos indivíduos, mas, sobretudo está em situar o papel da linguagem (lógos, entendido como pura razão no caso platônico, ou como convenção no caso sofístico) exerce em relação à emoção (páthos). Pode-se destacar entre o extremo intelectualismo de Platão, que vê no objetivo da formação o domínio racional das emoções, e o extremo convencionalismo sofístico que objetiva a extravasão potente das emoções, a posição aristotélica que defende uma escuta das emoções pela razão individual. Aristóteles aponta para dinâmica de subordinação entre as partes da alma que não se confunde com uma relação de simples comando ou de controle de uma parte sobre a outra.

EDUCAÇÃO DO DESEJO E ESCUTA Apresentação de comunicação XIX Congresso da Sociedade de Estudos Clássicos I Simpósio Luso-Brasileiro de Estudos Clássicos Brasília, 9 de julho de 2013. Por Guilherme Celestino paradigma_x@hotmail.com O problema da escuta na ética aristotélica Burnyeat em seu artigo “Aristotle on learning to be good”, apresenta a ética aristotélica a partir de uma questão que serve de orientação ao presente trabalho. Neste artigo, podemos ver como a acuidade e a profundidade podem estar aliadas à análise filológica e filosófica de um tema antigo, onde encontramos, de modo excepcionalmente claro, a colocação do problema da formação do caráter na ética aristotélica. Os ingleses, com essa maneira de dizer as coisas de modo simples e direto, tornam mais fácil enxergar como a abstração filosófica pode estar intimamente ligada às situações concretas. Desde o título, Burnyeat aponta para o que há de mais fundamental, indo direto à questão mesma de “como nos tornamos melhores”. Esse é certamente o maior problema da ética, e sem dúvida é também o problema que inicia o pensamento ocidental acerca do assunto. Encontramos em Gosta Gronroos em “Listening to reason in Aristotle’s Moral Psycology” uma abordagem similar a de Burnyeat, dando a síntese do que está em questão na formação ética segundo a ética aristotélica: fazer as emoções “escutarem” a racionalidade do lógos, o que para ele significa se tornar “emotionally sound”. A língua inglesa se vale de um formidável adjetivo, “sound”, que em seu vernáculo traz um polissemia que pode pretender dar conta de toda a dificuldade do que seja “escutar” como formar o caráter em sentido ético. O adjetivo "sound" tanto remete ao que é propriamente sonoro, como ao que está em boa condição ou é saudável (Considering his age, his body is quite sound), como algo que é confiável, que demonstra bom juízo (Government bonds are sound investment), como ainda o que é inteiro, completo ou sólido em um sentido abstrato (How sound is her knowledge of the subject?), ainda na Lógica "sound arguments" são aqueles argumentos que além de válidos, têm suas premissas como verdadeiras. Com efeito, Aristóteles indica vários aspectos, (que parecem estar na expressão “emotionally sound” condensados) de como a parte desejante da alma é capaz de seguir (akolouthîen) de modo adequado ao lógos: por ter uma participação (metékhein lógou); por ser persuadido (peíthesthai); por ser obediente (épipeithés, peitharkhein); e por fim, por escuta (katéhkoon). (Cf. EN I 13, 1202b 13-14; I 7,1018a 4; I 13, 1102 b26, 33). Privilegiamos a palavra “escuta” para uma tal síntese em nossa língua, na medida em que permite uma condensação similar, desde que associamos no mesmo semantema além dos sentidos de “seguir”, “obedecer”, e “ouvir”, o da “perfeição”, de modo que associemos o que “soa” com que é “são”. Para a felicidade desta pesquisa podemos encontrar na nossa língua uma construção poética que pode tratar da formação ética em torno do campo semântico da escuta, basta escutarmos atentamente o disco de canções de Gilberto Gil chamado “Gil Luminoso”, e lá encontrar a música “O Som da Pessoa”: A primeira pessoa soa como eu sou A segunda pessoa soa como tu és A terceira pessoa soa como ele e ela também Qualquer pessoa soa toda pessoa boa soa bem A letra da canção diz bem, toda que qualquer pessoa “soa” isto é, possui o lógos, é capaz de com ele pensar, produzir discursos e ser tocado por eles. Porém só naqueles em que lógos é capaz de se verificar por toda parte da alma, desejo, corpo e emoções, ele ressoa. Somente na pessoa que detém virtude, excelência de caráter o lógos não apenas soa, mas também ressoa. (In)atualidade da Escuta Hoje a impressão é que nossa cultura não sabe colocar uma questão como essa. A educação atual (se consideramos seu modelo como definido pelo sistema escolar) quando se propõe a fazer com que uma pessoa se torne melhor, recorre ou ao moderno paradigma da capacitação tecnicista, ou ao velho modelo humanista. O problema implícito é o do que se entende por “tornar alguém melhor”. A sociedade e seus educadores (e por que não seus formadores de opinião) parecem ter uma resposta coerente para isso. O que será que realmente nos faz prosperar na vida? Segundo as soluções consolidadas no mundo contemporâneo, ou bem se busca uma capacitação técnica para profissionalização, como se o bem último das capacidades humanas fosse “ter uma profissão”; ou bem se investe na cultura letrada ao máximo possível, como se isso fosse um bem em si. Ou, ainda, muito pior, coloca-se todo peso na capacitação científica, supondo que esta atinge o extremo humano, e que todo bem humano poderia, em última análise, ser algo redutível à objetividade e/ou reconhecível cientificamente. Mas será que alguém se torna “melhor”, por frequentar teatros e museus, e estar sensibilizado pela arte de modo geral? Ou então por ser capaz de escrever uma dissertação da área de humanidades? Ou seria melhor a vida daqueles que passam por uma capacitação tecnológica ou profissionalizante? Ou, será como quer certa tecnocracia, que a compreensão dos números e estatísticas faz alguém tomar melhores decisões? Ou, ainda, ter acesso a tais informações é o que faz um bom governo, e, portanto, melhora a vida dos governados? Tais asserções fazem parte da moeda corrente dos debates e crenças atuais, e talvez a maior contribuição que possamos dar, não seja a de remetê-las a assertivas, mas a de pontuá-las com a devida interrogação. Entrevemos remeter a essas questões, acentuando a dimensão problemática do que nelas está em jogo, se nos propusermos a fazer determinada leitura de Aristóteles, de sua ética. O recuo a Aristóteles é algo que nos permite retirar da formação o peso tão grande dado ao “intelectualismo”, “tecnicismo” e “eruditismo” que hegemonizam as prática e teorias atuais. Este trabalho busca apreender que compreensão é essa, não evitando suas dificuldades. Não é ingênua a distinção dicotômica que fizemos para mostrar as forças que animam o sistema escolar atual, quando dela se extraí a semelhança como os paradigmas sofísticos e platônicos na antiguidade, na oposição que há nestes entre intelectualismo epistêmico e convencionalismo epistêmico na discussão sobre a educação do caráter. Aristóteles oferece uma alternativa que parece fugir dos paradoxos paralisantes da antiguidade ao valorizar uma terceira via a da “escuta”. Mas é preciso interromper a analogia num ponto. Há um sentido ético da educação que não está presente na discussão moderna da organização escolar. Há, todavia na própria estruturação do sistema escolar moderno a conjugação de um modelo que hora resvala na capacitação técnica, e ora na erudição humanista, não surpreende que a noção de “cidadania” que se busca formar nos jovens indivíduos esteja de tão cheias de ambiguidades insolúveis. Que cidadão se quer formar? Um sujeito que melhor se integre na produção, ou um agente participativo de instituições e governos? Porém para o grego a cidadania não se confunde de forma alguma com a adequação do indivíduo a sociedade – seja pela integração acrítica ao mercado de trabalho, seja pela incorporação crítica às instituições existentes ou governos. A cidadania como ideal da formação política, anda de mãos dadas com a formação ética em sentido estrito, sua realização só é devida pela realização máxima das potências do indivíduo que se efetiva na sua condição política. O grego vê na ação virtuosa o fim de toda educação, independente dela ser economicamente lucrativa, ou socialmente útil. Apenas por uma caricatura poderíamos aproximar a posição platônica e sofística do intelectualismo cientificista e tecnicista e do eruditismo acadêmico ou humanista, nesse ponto, moralistas gregos jamais poderiam ser tão reacionários quanto os educadores modernos. Tomando o sistema escolar como um todo, e paradigma único da educação das sociedades modernas, alguns contrastes decisivos serão necessários para atinarmos o modelo grego da Paideia. A educação (escolar) é voltada para reprodução sociológica dos valores da cultura, enquanto a Paideia visa uma apropriação individualizada dos valores culturais. Sintoma disso são as compreensões liberais e psicológicas da educação que fazem do aluno tábula rasa do conhecimento ensinado, chamada por Paulo Freire de "educação bancária". Sabedoria grega em geral, seja ela de matriz socrática ou não, está mais voltada para a criação do que para a reprodução. A Paideia instruí para a criação, e por isso tem seu modelo na educação técnica, que para os gregos seria algo da nossa moderna visão tecnicista da educação. Tekné envolve poiesis, do sapateiro ao legislador, são feitas atividades produtivas, que envolvem não apenas a utilidade daquilo que é feito, mas também de certa forma, seu sentido final também, não revelam apenas a marca do trabalho humano sobre a matéria, mas a realização desse próprio humano enquanto trabalha. Para mirarmos a distância que nos afasta o paradigma tecnicista moderno da concepção antiga de técnica teríamos de ir lá à questão da alienação do trabalhador moderno de Marx, e a da concepção moderna de técnica segundo o anti-humanismo heideggeriano, o que excede em muito esse trabalho. Temos que os objetivos finalístico da educação moderna: cidadania, profissão, coesão social e nacional, apontam para a quase total ausência de um tema fundamental para educação grega: o prazer. As fontes que se buscava operar no aluno pela educação, o prazer, a corpo, o desejo, são poucas vezes intencionadas na educação moderna encerrada na escola, por conseguinte os objetivos últimos da educação não aparecem também como seu tema associado: a virtude, a vida plena de sentido, a excelência moral, a amizade. A cultura ensinada na escola capacita o sujeito a se empregar socialmente, se tornar profissional, cidadão, chefe executivo, e em certos casos governante - sem ela o sujeito fica a margem da sociedade, com ela no máximo é capaz de ser útil. Existe uma noção autárquica de transcendência ética que se perde, que estava presente no ideal grego de educação tanto nos sofistas como em Platão e Aristóteles. Objetivo deste trabalho não é nem de nostalgia, nem de utopia, não se trata de buscar cultuar ou copiar a Paideia grega. Mas de observa-lhe a distância, de servi-lhe de parâmetro crítico para o presente, talvez para aperfeiçoar os limites ideológicos estreitos que a filosofia da educação pode se prender. Se a base ética de toda educação fica obliterada pelos interesses ideológica da escola moderna, encontramos no esforço mesmo dos pensadores da educação grega a tarefa de distinguir os valores finalístico necessários em toda educação. A dificuldade grega antiga poderia ser formulada modernamente na questão de como o pensar o sujeito ético como um criador e não como um reprodutor de valores. A Paideia como Educação do Desejo Educar para um grego é educar o desejo. Filósofos e sofistas estruturam um debate de como deve ser a educação de um cidadão da polis, de quais métodos devem ser empregados, dos modelos de virtude a serem buscados, especialmente em como o prazer, e a vida emocional como um todo, podem ser cultivados segundo uma norma ou orientação geral. O problema não está somente em pensar o papel do caráter (ethos) que se quer formar nos indivíduos, mas, sobretudo está em situar o papel que a linguagem (lógos, entendido como pura razão no caso platônico, ou como convenção no caso sofístico) exerce em relação à emoção (páthos). Pode-se destacar o extremo intelectualismo de Platão, que vê no objetivo da formação o domínio racional das emoções, e o extremo convencionalismo sofístico que objetiva a extravasão potente das emoções, e entre esses extremos encontra-se a posição aristotélica que defende uma "escuta" das emoções pela razão individual. Aristóteles defende uma posição onde se busca desenvolver uma dinâmica de subordinação entre as partes da alma que não se confunde com uma relação de simples comando ou controle de uma parte por outra. Gabriele Cornelli (em “A paixão Política de Platão: Sobre Cercas Filosóficas e sua Permeabilidade”. Archai: revista de estudos sobre as origens do pensamento ocidental, Brasília, Vol. 0, N. 2, abr. 2010. Disponível em <http://seer.bce.unb.br/index.php/archai/article/view/315/170>) trazendo essa discussão pelo viés da educação política, enfatizando a solução entronizada por Platão que aponta para a fonte de toda educação: o trabalho quase impossível de se ordenar o desejo. Situando especificamente nos desejos de prevaricação, chamado de pleonexía pelo vernáculo grego, o lugar onde a educação política pode ser bem ou mal sucedida. Para ele “O impulso pleonéctico é o desejo ilimitado de “ter mais”: mais poder, mais riqueza, mais reconhecimento social. Trata-se no fundo da versão grega da célebre Lei de Gerson.”. O importante para nós é ver como se situa em uma educação do desejo o princípio de toda a educação possível para os gregos. Que em textos clássicos como o Banquete, República, Mênon e Leis de Platão, ou as Política e as Éticas de Aristóteles e ainda os fragmentos de Górgias, Protágoras, Hípias e dos Anônimos sofísticos poderíamos dividir em três esferas: o da educação da comoção estética, o da educação da vida e sedução erótica e o da educação da persuasão retórica. O tema da contenção/adequação da vontade de oprimir os outros explicitados por Cornelli aparece mais claramente na discussão sobre o papel da persuasão retórica na educação. E tomando ele como referência encontraremos três diferentes modelos de educação do desejo, um platônico voltado para o controle das emoções pela racionalidade epistêmica, outro sofístico da realização plena das emoções pela sua expressão linguística ou cultural. Mas em Aristóteles encontramos um modelo que não é nem o do controle, nem o da soltura, mas o da “escuta”, onde a emoção se torna expressão da racionalidade. Vale a pena retomar o artigo de Burnyeat citado acima, especialmente em suas considerações: a de notar certa inadequação da posição do intelectualismo, proposta por Sócrates, via Platão, como sendo do tipo de realização do tipo da “busca pelo cálice sagrado”, onde ético é o sábio que conquista uma ideia clara e perfeita do bem humano, e consegue talvez por isso refrear todos seus instintos e inclinações. Por outro de apontar para o convencionalismo como fonte de relativismo ético, que parece voltar a fazer fortuna hoje na filosofia contemporânea nas tendências pós-modernistas. O problema da formação do caráter em Aristóteles faz parte da questão grega da Paideia. Ao solucionar a questão pela fundamentação dos valores éticos no bem humano, (a fundamentação da felicidade), Aristóteles entende que as virtudes da ação humana são como uma espécie de “escuta”, respondendo de modo original a célebre questão grega: “as virtudes podem ser ensinadas?”. O ensino da virtude é um problema para os gregos, desde Homero, praticamente todo grande pensador e criador da cultura grega se dedicaram com afinco à questão. A filosofia que trata das coisas humanas nasce com o debate: Sócrates de um lado, sofistas de outro. A posição aristotélica acerca do problema da educação para as virtudes, e como esta se propõe a responder e suplantar tanto a posição socrático-platônica, como a sofística.