ALEX SOARES COSTA (Revisor)
ANA PAULA VIEIRA DE MOURA (Revisora)
FLORA VILLAS CARVALHO (Colaboradora)
JOYCE DE SOUZA SANTOS (Revisora)
JÚLIA VARGAS BATISTA (Organizadora)
MAGDA DOS SANTOS RIBEIRO (Colaboradora)
LARISSA DE OLIVEIRA MAGALHÃES (Colaboradora)
SARA L. FERREIRA CARVALHO (Revisora)
ANAIS DA VI SEMANA DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA DA UFMG
1ª edição
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Belo Horizonte
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
1ª Edição
ISBN: 978-85-54944-34-6
Organização:
Júlia Vargas Batista
Revisão:
Alex Soares Costa
Ana Paula Vieira de Moura
Joyce de Souza Santos
Sara L. Ferreira Carvalho
Colaboração:
Flora Villas Carvalho
Magda dos Santos Ribeiro
Larissa de Oliveira Magalhães
Capa:
Foto – Edgar Corrêa Kanaykõ
Design – Júlia Vargas Batista
Belo Horizonte
2019
Sumário
Apresentação.........................................................................................................................3
A espiritualização da
violência..................................................................................................................................6
Bernardo Miranda Pataro
Algumas notas sobre as antropólogas Elizabeth Steen e Judith Shapiro que estiveram
entre os Tapirapé durante o século
XX.........................................................................................................................................24
Paula Grazielle Viana dos Reis
Da árvore ao rizoma: um estudo das urnas mortuárias pensando os contatosidentidades-alteridades no Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás durante
o período
colonial.................................................................................................................................34
Tayná Bonfim Mazzei Mazza
Patriarcado, patologização e relações de poder: Uma análise do controle de corpos de
mulheres e
homossexuais.......................................................................................................................54
Marco Antonio Gatti Junior
O pensamento descolonial na produção do
espaço...................................................................................................................................60
André Lucas Magalhães dos Santos Silva
Os limites euroamericanos do conceito de Genocídio: Pensando com os povos
ameríndios sobre a atualização da noção de
etnocídio...............................................................................................................................65
Marcio Maia Malta
Os produtores rurais e o rio Jacaré: um estudo de caso em OliveiraMG........................................................................................................................................86
Ana Paula Santos Rodrigues
Ponto de enxergo: relações que transbordam o
Cerrado................................................................................................................................99
Marília Cyrne
Por entre caminhos de Isabelle
Stengers..............................................................................................................................112
Gilberto Amorim Correa Chaves
Reflexões sobre o ativismo indígena entre os
Parkatêjê............................................................................................................................123
Rayane Gomes da Silva
Repensando a divulgação científica e seu lugar na Universidade: Um olhar
antropológico.....................................................................................................................135
Bárbara M. Martinez Viana
Um fragmento de uma memória encontrada: um artefato colonial como fonte para a
educação arqueológica
brasileira............................................................................................................................151
Leonardo Lopes Villaça Klink
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Apresentação
Em outubro de 2018, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG,
aconteceu a VI Semana de Antropologia e Arqueologia em torno da temática “Retrocessos
e resistências”. Em tempos sombrios e diante do obscurantismo prenunciado, o tema da
Semana foi uma maneira de mobilizar os alunos e fomentar as trocas acadêmicas,
intelectuais e também pessoais, alimentando as alianças de trabalho coletivo dos estudantes
entre eles e igualmente entre estes e os docentes. A VI SAA foi idealizada e concretizada
com o objetivo de fomentar as discussões entre estudantes e colegas que se interessam e
atuam em pesquisas e temas relacionados à Antropologia e à Arqueologia, seja trabalhando
diretamente dentro deste arcabouço disciplinar ou em investigações que tomem os métodos
e/ou inspirações antropológicas como referência central. O encontro, assim, não apenas
promoveu e instigou reflexões e debates, mas também se configurou como um espaço vivo
para o exercício da troca e do pensar, possibilitando ações e estratégias que nos permitam
resistir e seguir com nossas convicções intelectuais e políticas.
Um dos principais objetivos do comitê de organização do evento foi, justamente,
fortalecer e consolidar a Semana de Antropologia e Arqueologia, já na sua sexta edição.
Começamos em março de 2018, com um grupo composto por estudantes de graduação do
curso de Antropologia da UFMG, em conjunto com estudantes de pós-graduação e apoio do
Centro Acadêmico de Antropologia e Arqueologia – CALS. O evento despertou e
mobilizou mais de 200 participantes, os quais se envolveram ao longo de cinco dias e noites
em Grupos de Trabalho, mesas de debates, minicursos, Mostra de Filmes, Mostra de
Fotografias, Espaço Brincante, apresentações artísticas e performances.
Assim, os artigos que compõem esta publicação são resultado das discussões e dos
trabalhos apresentados nos mais de dez GTs temáticos, os quais contaram com trabalhos e
temas muito diversos e de grande importância para a Antropologia e Arqueologia. A
presente publicação é uma maneira fundamental de registrar os esforços deste encontro e de
compartilhar as reflexões, avanços e engajamentos dos estudantes com seus temas de
investigação. Mais do que nunca, nossas forças estarão direcionadas para a promoção do
conhecimento, da pesquisa e da curiosidade científica.
O primeiro texto, de Bernardo Miranda Pataro, traz uma série de reflexões em torno
das relações entre religião e violência, discutindo elementos como o fundamentalismo
religioso e a violência religiosa. Em seguida, Paula G. Viana dos Reis, a partir das obras de
Hebert Baldus e Charles Wagley, apresenta alguns apontamentos sobre as antropólogas
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Judith Shapiro e Elizabeth Steen e seus trabalhos de campo entre os Tapirapé, traçando
também relações entre etnografia e fotografia. Partindo do conceito de rizoma, Tayná
Mazza discute as relações entre etnologia, história e arqueologia, analisando escritos sobre
urnas mortuárias encontradas no fim do século XIX e início do século XX, na região do
Triângulo Mineiro. As discussões sobre gênero e ciência são trazidas pelo ensaio de Marco
Gatti, que problematiza as noções de patriarcado e controle sobre corpos de mulheres e
pessoas homossexuais, a partir de trabalhos de Fabíola Rohden (2008) e James Green
(2010). O artigo de André Magalhães, por sua vez, analisa a colonialidade frente a
reprodução espacial, a partir da perspectiva da ferida colonial da dominação e exploração
na América Latina. Já o texto de Márcio Maia Malta, discute as noções de genocídio e
etnocídio no contexto ameríndio, fazendo uma recuperação histórica destes conceitos e suas
possibilidades no contexto latinoamericano. Em seguida, Ana Paula Santos Rodrigues nos
apresenta algumas entrevistas realizadas junto à população rural da cidade de Oliveira-MG,
pensando sobre suas relações com o Rio Jacaré o qual passa hoje por processos de
assoreamento e degradação antrópica. O artigo “Ponto de enxergo: relações que
transbordam o Cerrado”, de Marília Cyrne, busca tratar o Cerrado a partir das experiências
e relações com a terra dos Krahô, povo indígena que faz parte do tronco linguístico MacroJê e que se encontra, atualmente, no estado do Tocantins. O trabalho de Gilberto Amorim,
por seu turno, apresenta um rico debate sobre as contribuições de Isabelle Stengers para o
pensamento antropológico. Rayane Gomes da Silva, em seu artigo, faz alguns
apontamentos sobre o ativismo dos Parkatêjê a partir de trabalho de campo na Terra
Indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, no estado do Pará. Os
trabalhos de Bárbara Martinez e Leonardo Klink trazem discussões sobre experiências e
iniciativas que contribuem para pensar as relações entre a Antropologia e Arqueologia e sua
intersecção com o campo da educação e da divulgação científica no Brasil.
Por fim, em nome do comitê de organização da VI Semana de Antropologia e
Arqueologia, gostaríamos de agradecer imensamente a todas as pessoas que fizeram parte
desta empreitada e do esforço persistente que segue vivo e, espero, firme e politicamente
engajado por muito tempo. Agradecemos igualmente a todos e todas que se inscreveram na
VI SAA e, claro, as/aos estudantes autores e autoras dos trabalhos que compõem esta
publicação. Àquelas que se dispuseram a vir à UFMG falar de suas experiências e
engrandecer o nosso evento. Agradecemos também às professoras e aos professores que
nos auxiliaram no processo de organização e realização da Semana. À Pró-Reitoria de
Assuntos Estudantis - PRAE da UFMG pelo apoio e financiamento por meio das Chamadas
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
PRAE (iniciativa de apoio direto a projetos estudantis, cuja existência foi fundamental para
que nossos planos fossem concretizados); à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
UFMG, pelo apoio institucional, financeiro e logístico, este último sobretudo por meio da
Gerência e do setor de Serviços Gerais da Fafich; ao Departamento de Antropologia e
Arqueologia e ao Colegiado de Graduação em Antropologia da UFMG; à Fundação
Mendes Pimentel - FUMP; e à Revista Três Pontos, cuja parceria nos é imensamente
estimada. A VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG foi construída a muitas
mãos e é com enorme satisfação que finalizamos este evento com a publicação dos Anais
da VI SAA, um dos importantes resultados deste longo processo, que nos envolveu e nos
motivou, na busca pela produção e troca de saberes, mas também pelo engajamento político
que todo conhecimento consigo carrega.
Júlia Vargas
Coordenadora da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Espiritualização da Violência
Bernardo Miranda Pataro
A religião é capaz de nos fornecer informações sobre questões transcendentais,
outrora tidas como inacessíveis, que desafiavam a racionalidade do homem. Ela apresenta
uma perspectiva da vida onde os indivíduos estão interligados em função de um propósito
transcendente, como serve também de referência moral e código de conduta para muitos.
Devido a seus inúmeros mandamentos e práticas voltadas para o estabelecimento da paz,
harmonia e compreensão entre pessoas e povos, ela é vista pela maioria de seus seguidores
como uma maneira de se explicar, através de seus ensinamentos, rituais e doutrinas, as
contradições e injustiças da vida, sendo considerada por alguns o único caminho para a
felicidade. Em função de sua busca por ordem, a religião sempre ocupou um papel de
destaque na sociedade, foi um elemento fundamental na sua organização e condução
espiritual durante muito tempo.
Existem muitas tradições religiosas ao redor do mundo assim como divisões dentro
de uma mesma doutrina. No cristianismo, diferentes grupos possuem interpretações
distintas de sua fonte sagrada, como católicos e evangélicos. Xiitas e sunitas no Islã
discordam quanto a quem seria o legítimo sucessor do Profeta Mohamed a guiar as
comunidades muçulmanas e alguns grupos conservadores judeus como o Neturei Karta são
contra o sionismo defendido por muitos de seus semelhantes.
O avanço da modernidade, em conjunto com o advento do Iluminismo no século
XVIII, que consagrou a razão como paradigma dominante para a compreensão do mundo,
fez com que o papel da religião no Ocidente se alterasse de maneira profunda. O novo
cenário político que consolidou o Estado-Nação como única entidade legítima para
governar, assim como as transformações sociais, científicas e morais desse período,
colocaram em xeque vários princípios e valores da religião de forma a modificar a maneira
como ela é percebida e praticada em todo o mundo. A ampla adoção de valores liberais e
progressistas pelas sociedades modernas não foram bem aceitas por todos.
A proliferação e aceitação de temas polêmicos como o divórcio, aborto, uso de
drogas e homossexualidade provoca uma reação nos indivíduos mais conservadores,
principalmente religiosos, que os levam às vezes a não aceitarem as mudanças que a
modernidade, associada ao processo de globalização, provocam na sociedade e pervertem o
seu desenvolvimento, que deveria ser pautado na moral e tradições religiosas. Aqueles
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
considerados radicais e extremistas fazem qualquer coisa para defenderem a interpretação
de suas respectivas religiões, incluindo o uso da violência. Essas mudanças representam um
desafio para a religião, uma vez que alteram sua relação tanto com o indivíduo quanto com
a sociedade. Porém, ela não se manteve passiva diante de todas essas mudanças. Sua reação
ocorre de diferentes maneiras, variando desde a renovação de suas práticas e abordagens até
a utilização da violência por seus adeptos como ferramenta para se atingir seus objetivos,
visto que há inúmeros casos de conflitos ao longo da história que envolveram a religião de
alguma forma.
As causas da violência religiosa hoje parecem estar ligadas ao avanço dos processos
de secularização e modernização impostos sem consideração ou respeito por aqueles mais
afetados e vulneráveis à essas mudanças. O objetivo desta pesquisa é, portanto, analisar
qual a relação da violência com a religião, uma vez que à primeira vista elas pareçam ser
antagônicas. A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa será uma revisão bibliográfica
acerca do tema e suas variáveis.
Esta pesquisa focará em dois aspectos da relação entre violência e religião: 1) como
a violência é utilizada e legitimada por grupos e indivíduos religiosos; 2) os vínculos entre
o processo de secularização, o fundamentalismo religioso e a violência religiosa.
A Teoria da Secularização
Grace Davie, em seu livro “The Sociology of Religion”, realiza uma extensa análise
da teoria da secularização e apresenta diversos estudos sobre o tema. Essa teoria diz
respeito a um processo complexo que envolve diversas variáveis e não ocorreu no mundo
de forma simultânea e homogênea. De acordo com Davie, muitos estudiosos da religião já
se debruçaram sobre o assunto, uma vez que não há um consenso sobre seu significado ou
consequências.
As transformações ocorridas na sociedade pré-industrial e rural europeia representaram
uma grande ruptura no desenvolvimento religioso regional, tornando esse período
extremamente útil para a discussão do processo de secularização, fazendo inclusive com
que muitos que dispuseram-se a estudar essas importantes mudanças tirassem a conclusão
equivocada de que necessariamente há uma incompatibilidade entre religião e modernidade
(DAVIE, 2007). Os Estados Unidos da América (E.U.A) e muitos países em
desenvolvimento representam, entretanto, uma exceção a essa suposta incompatibilidade,
uma vez que apresentam altos índices de atividade e edificações religiosas.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Karel Dobbelaere (1981, 2002 apud DAVIE, 2007, p. 49) diferencia 3 dimensões da
secularização que atuam em diferentes setores da sociedade: a societal, onde setores da
sociedade
historicamente
controlados
pela
igreja
gradualmente
se
separam;
a
organizacional, que diz respeito à grande variedade de organizações religiosas na
sociedade; e a individual, caracterizada pela fé e atividade religiosa (DAVIE, 2007). Apesar
de ser possível identificar transformações nessas três dimensões, como a diminuição da
procura da igreja para prover saúde ou educação, Davie chama a atenção para o fato de que
a secularização não foi um processo uniforme.
Apesar da separação entre Estado e igreja ser um dos principais pressupostos da
secularização, isso não implica necessariamente que a sua relação deixou de existir com o
advento da modernidade. Na Europa,
(...) As autoridades religiosas continuam a preencher os vazios da provisão
estatal, comandando recursos consideráveis em alguns lugares. As igrejas alemãs,
por exemplo, são grandes fornecedoras de cuidados de saúde e bem-estar para um
grande número de cidadãos alemães. Estruturas educacionais oferecem mais um
exemplo. Em muitas partes da Europa, as igrejas permanecem proprietárias e
gerentes de um número significativo de escolas.[1] (DAVIE, 2007, p. 50, tradução
minha).
O nível de atividade, ou, representatividade religiosa em uma determinada sociedade
depende, portanto, da maneira como o processo de secularização ocorreu em cada lugar. A
religião não perde completamente a sua importância, mas sua relação com a sociedade é
modificada.
Bryan Wilson (1998:49 apud DAVIE, 2007, p. 54) defendia uma teoria clássica da
secularização, onde ele a entendia como “(...) um „processo social fundamental ocorrendo
na organização da sociedade, na cultura e na mentalidade coletiva‟”.[2] (DAVIE, 2007, p. 54
apud WILSON 1998:49, tradução minha). Para Wilson, a secularização é o processo
através do qual as práticas e ideias religiosas perdem sua significância social. A vida
pautada pela racionalidade, expressa nas transformações de comportamento e crenças dos
indivíduos, é característica central das sociedades modernas, manifestando-se de forma
distinta em cada lugar. Outro autor que possuía ideias similares às de Wilson é Steve Bruce,
que afirmava: “o individualismo ameaçou a base comum da crença religiosa e do
comportamento, enquanto a racionalidade rompeu com muitos propósitos da religião e
tornou muitas de suas crenças implausíveis”.[3] (DAVIE, 2007, p.56 apud BRUCE, 1996,
p.230, tradução minha).
Danièle Hervieu-Leger (1986) abordou a questão da secularização de outra forma.
Segundo ela, ao mesmo tempo em que a modernidade pode ser destrutiva para alguns tipos
de religiosidade, ela também cria a necessidade de novos tipos. Os indivíduos são
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
encorajados a buscarem respostas dentre diversas possibilidades possíveis, o que se torna
uma prática comum na sociedade moderna. A partir desse ponto de vista, o processo de
secularização representa então a reorganização das formas religiosas.
David Martin (1978), diferentemente dos demais autores, se coloca contrário
“quanto à inevitabilidade da secularização”, chegando até a afirmar que o conceito não
deveria ser utilizado em função da discordância quanto ao seu significado. Em seu texto “A
general Theory of secularization”, Martin procura analisar os diferentes processos de
secularização deflagrados em lugares distintos no mundo para comparar e entender suas
diferenças. A partir de seus estudos, ele constata que a maneira como a religião foi
introduzida na Europa e na América foi determinante para definir o tipo de relação que
essas sociedades desenvolveriam com ela. Na Europa, essa inserção se deu de acordo com o
padrão de distribuição de poder que vigora a séculos, de forma horizontal, diferentemente
dos Estados Unidos, onde esse processo ocorreu verticalmente (DAVIE, 2007). É
importante lembrarmos que Europa e Estados Unidos são muito diferentes internamente, o
que também contribui para as diferenças nos processos. Em 1978, grande parte da Europa
Central e Leste estava sob domínio comunista, de forma que a secularização fazia parte da
ideologia dominante (DAVIE, 2007).
Como podemos ver, a secularização envolve muitos elementos e dialoga com
diferentes áreas do conhecimento, portanto é um processo multidimensional, e dependendo
de como o abordamos, podemos chegar a conclusões equivocadas. Resumindo as
perspectivas vistas, temos o seguinte referencial teórico:
(...) tanto Berger quanto Bruce concordam que um aumento na faixa de opções
religiosas necessariamente compromete a reconhecida natureza das suposições
religiosas. Se isto necessariamente leva à secularização é uma pergunta mais
difícil – e é o ponto em que Bruce e Berger seguem direções diferentes. A
definição de Wilson do processo de secularização, que a religião declina em
importância social nas sociedades modernas, fornece uma referência importante
para muitos estudiosos. Tal declínio, no entanto, ocorreu mais em alguns lugares
do que em outros – daí a necessidade de se prestar muita atenção às
especificidades da história.[4] (DAVIE, 2007, p. 62, tradução minha).
A partir do final do século vinte, o foco do debate sobre a secularização muda. A
pergunta de como o E.U.A, a nação mais tecnologicamente desenvolvida do mundo,
apresentava índices crescentes de atividade religiosa, fez com que os estudiosos da religião
percebessem que o caso Europeu não era o modelo de secularização que seria adotado pelo
resto do mundo, mas que ele representava uma particularidade, ou até mesmo uma exceção.
Na Europa, portanto, pode-se afirmar que a importância da religião na sociedade diminuiu,
porém isso não se verifica em todos os Estados seculares modernos, uma vez que em cada
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
lugar “Os elementos principais alinharam-se de formas diferentes, levando a futuros
completamente diferentes”.[5] (DAVIE, 2007, p. 63, tradução minha).
O Fundamentalismo Religioso
O “ressurgimento da religião”, conceito caracterizado pela renovação das práticas e
costumes religiosos, é um fenômeno global e, assim como o processo de secularização,
manifesta-se de acordo com as características históricas de cada caso. Peter L. Berger
(1999, apud DAWSON, 2011, p. 150) considera o ressurgimento da religião no final do
século XX como evidencia do fracasso do processo de secularização. Andrew Dawson
(2011) em seu livro “Sociology of Religion”, afirma que o fundamentalismo religioso surge
como parte de um amplo processo de ressurgimento da religião. Entre 1910 e 1915 nos
Estados Unidos, uma série de panfletos com o nome de The Fundamentals: A testemony of
Truth foram distribuídos por um grupo cristão, onde a importância e veracidade de
determinados “fundamentos” contidos na Bíblia eram ressaltados, como a criação da terra
em seis dias, a autenticidade dos milagres e a crucificação e ressurreição de Cristo. Os
“fundamentalistas” eram aqueles “(...) „prontos para batalhar pelos Fundamentos‟.”[6]
(DAWSON, 2011, p. 150 apud RUTHVEN, 2004, pp. I-34, tradução minha).
De acordo com Gary D. Bouma (2007), podemos citar duas causas para o
ressurgimento da religião: 1) Ela representa uma reação ao fracasso das formas de religião
secularmente e liberalmente organizadas e; 2) representa um descontentamento com as
repetidas falhas da justiça, a incapacidade de distribuição de recursos, como comida, de
forma justa, assim como uma reação contra a falha do paradigma humanitário de promover
a paz e prosperidade com justiça e explicações satisfatórias para questões como o mal e a
dor (BOUMA, 2007, p. 188). Segundo o autor, esse ressurgimento religioso geralmente
inclui:
(...) aumento da intensidade de compromisso, maior relevância da identidade
religiosa, a ascensão dos extremos puritanos (Almond, Appleby e Sivan, 2003;
Antoun, 2001; Porter, 2006) e um retorno ao engajamento político para aplicar a
fé seja pelo estabelecimento da Lei da Sharia em países de maioria muçulmana
recém estabelecidos como a Malásia, promover o ensino de 'Ciência Criacionista'
nos Estados Unidos, ou condenando padrões particulares de sexualidade. [7]
(BOUMA, 2007, p. 188 apud BATES 2004, tradução minha).
É necessário fazer uma distinção entre a competição e o conflito, uma vez que
Bouma considera o conflito como sendo uma subcategoria da competição. A competição
religiosa parte do pressuposto de que cada competidor reconhece o direito do outro em
manifestar sua fé, e nesse processo cada um passa a ter uma perspectiva melhor sobre sua
posição na sociedade e a forma como cada um se relaciona com a sua respectiva fé. O
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
conflito religioso, por outro lado, busca subjugar, eliminar ou converter seu adversário. A
migração é um fator de relevância para ambos os casos, uma vez que introduz mais
diversidade na sociedade e aumenta as relações inter-religiosas (BOUMA, 2007). Com o
aumento da diversidade a competição se intensifica, mas não quer dizer necessariamente
que irá resultar em conflito (BOUMA, 2007). A identificação do outro, o diferente, o
inimigo, pressupõe a delimitação de limites ou “fronteiras” que servem de referência para a
ação do indivíduo e/ou grupo religioso, de forma que “Tanto a competição quanto o
conflito exigem o delineamento de fronteiras, tomar a ofensa a alguém ou algo, e
declarando o outro de estar errado, moralmente inferior, ou teologicamente em erro”. [8]
(BOUMA, 2007, p. 193, tradução minha).
As disputas religiosas não derivam apenas da maior diversidade, mas também de
rivalidades internas por recursos como posições de poder e participação nas decisões sobre
o futuro do grupo. De acordo com Bouma, a incapacidade de lidar com as disputas internas,
assim como a falta de um inimigo externo que coloque essas adversidades em segundo
plano, faz com que a intolerância aumente e gere mais conflitos (BOUMA, 2007).
Muitos estudiosos não gostam de usar o termo “fundamentalismo” devido à sua
conotação pejorativa, outros já defendem que seu uso deveria referir-se apenas ao segmento
cristão que o originou. Karen Armstrong (2001) em seu livro “Em nome de Deus”,
considera o conceito insuficiente, uma vez que ele não é capaz de descrever todas as
particularidades que esse fenômeno manifesta.
Já se argumentou que não se pode aplicar esse termo cristão a movimentos que
têm prioridades totalmente diversas. Os fundamentalismos islâmico e judaico, por
exemplo, não se prendem muito à doutrina, o que é um preocupado (sic)
intrinsecamente cristão. Uma tradução literal de "fundamentalismo" em árabe nos
dá usuliyyah, palavra que se refere ao estudo das fontes das várias normas e
princípios da lei islâmica. (1) A maioria dos ativistas rotulados de
“fundamentalistas” no Ocidente não se ocupam dessa ciência islâmica, mas têm
interesses muito diferentes. O uso do termo "fundamentalismo" é, pois, equívoco.
(ARMSTRONG, 2001, p. 7).
É importante ressaltar que o termo é utilizado de forma genérica, o que oculta as
diferenças de interpretações de cada tradição religiosa sobre seus respectivos fundamentos,
homogeneizando grupos de origens e perspectivas distintas. Verifica-se, portanto, as
limitações analíticas do conceito de fundamentalismo (Dawson, 2011, p. 151). O que
significa então “fundamentalismo”?
Alguns autores utilizam o termo para referirem-se a um fenômeno religioso
contemporâneo específico, com origem no século XX, entendido como uma reação ao
processo de modernização e secularização a que as tradições religiosas foram submetidas.
Steve Bruce (2000) propõe um conceito mais abrangente, para quem “o termo
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
„fundamentalismo‟ enquadra-se melhor para os movimentos que respondem aos problemas
criados pela modernização.”[9] (DAWSON, 2011, p. 152 apud BRUCE, 2000, tradução
minha).
O conjunto de transformações provocadas pela modernidade muitas vezes entravam
em choque com alguns pressupostos religiosos. A igualdade de gênero, por exemplo,
colocava em xeque o papel submisso atribuído à mulher pela igreja. Embora cada processo
fundamentalista tenha suas particularidades, seja entre cristãos, muçulmanos ou judeus, ele
caracteriza-se por uma reação a um conjunto de mudanças na sociedade, que abrangem
desde questões religiosas-culturais até socioeconômicas (DAWSON, 2011, p. 153 apud
FRYKENBERG, 1993, pp.233-55; LIEBMAN, 1993, pp.68-87; VOLL, 1991, pp. 345402).
A revolução iraniana de 1979, que destituiu do poder o Xá Mohammad Reza
Pahlev, de alinhamento pró-ocidente, mostrou que o fundamentalismo que surgiu no
Oriente representava uma reação tanto às mudanças internas pelas quais a região estava
passando
quanto
também
à
expansão
do
que
era
percebido
como
“Ocidentalização”.[10](DAWSON, 2011, p.153). A reação Islâmica introduziu um novo
elemento ao fenômeno do fundamentalismo, uma vez que
ele também emergiu como uma reação orquestrada – entendida como uma
campanha contra a jahiliyya ('ignorância sobre a orientação divina') – à suposta
imposição de valores ocidentais, secular/liberais incorporados pelo regime
dominante do Xá.[11] (DAWSON, 2011, p. 154 apud LAWRANCE, 1989;
RIESEBRODTR, 1990).
O fundamentalismo apresenta, portanto, diferentes características dependendo do
contexto em que ele se manifesta. De acordo com Dawson, a “reação à marginalização da
religião”[12] (DAWSON, 2011, p.155, tradução minha), parece ser um dos principais fatores
ideológicos do fundamentalismo, conferindo-lhe um caráter militante/defensivo. Em
seguida, temos a “seletividade ideológica”[13] (DAWSON, 2004, p. 155, tradução minha)
como outro fator, tanto com relação à sua própria tradição religiosa quanto com o contexto
com o qual ele se relaciona (DAWSON, 2011).
Há outras 3 características ideológicas do fundamentalismo que devem ser
mencionadas: “maniqueísmo moral”[14] (DAWSON, 2011, p. 157, tradução minha),
princípio a partir do qual o mundo é divido entre “eleitos/puros” e “corruptos/condenados”;
“absolutismo e inerrância”[15] (DAWSON, 2011, p. 157, tradução minha), que define que as
tradições são verdadeiras e corretas em todos os sentidos, de forma que qualquer
interpretação moderna é rejeitada; e “milenianismo e messianismo”[16] (DAWSON, 2011, p.
157, tradução minha), que diz respeito à perspectiva de que a história culminará ou
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
convergirá para a vontade divina e aqueles que mantiveram-se fiéis aos fundamentos serão
recompensados. (DAWSON, 2011, p. 157 apud Almond, Sivan and Appleby, 1995c, pp.
406-7). A identificação daqueles considerados “infiéis” e “os que serão salvos” é
extremamente importante, pois os fundamentalistas consideram-se guardiões de suas
respectivas tradições sagradas, creem que são especiais.
O mundo para os fundamentalistas deveria ser regido pela vontade divina, logo
julgam ser sua a responsabilidade de modificarem a realidade através da reconstrução das
sociedades a partir de seus respectivos fundamentos religiosos e por isso devem ser
protegidos e reafirmados sobre os valores seculares modernos (DAWSON, 2011). A
certeza de que suas ações representam a vontade divina os impele a agir sobre o mundo e
suas estruturas de poder, que se encontram em decadência. Os fundamentalistas utilizam
diferentes estratégias para atingirem seus objetivos, que refletem em maior ou menor grau
suas tradições e crenças religiosas. Emmanuel Sivan, Gabriel Almond, e R. Appleby
identificaram quatro tipos ideais de estratégias que podem ser adotadas por grupos
fundamentalistas no que diz respeito à sua interação com o “inimigo”.
O objetivo do “conquistador de mundos”[17] (DAWSON, 2011, p.161, tradução
minha) é o controle das estruturas de poder que “deram vida para o inimigo” para que se
possa ter a capacidade de dominá-los ou rechaçá-los. Essa estratégia tem mais chances de
ser implementada em um contexto onde esse feito seja percebido como realizável; se no
curto prazo o controle da sociedade é inviável adota-se uma estratégia de longo prazo,
denominada “transformador de mundos”[18] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha), que
utiliza-se de várias ações como mobilizações sociais, lobbys políticos e “guerra cultural”[19]
(DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) para disseminar suas ideias e gradualmente
enfraquecer as instituições até um eventual colapso, fazendo da sociedade civil seu “campo
de batalha”; “criador de mundos”[20] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) e
“renunciador de mundos”[21] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) diferem das
estratégias anteriores pois não buscam modificar o mundo, mas sim preservar as crenças,
valores e tradições que os definem. No caso do “criador de mundos”, comunidades
religiosas se isolam e representam a “única alternativa viável” ao mundo impuro”, logo
passam a ter o mínimo de contato com aqueles fora de seus grupos e por último há a
estratégia “renunciador de mundos”, que promove uma interação maior com a sociedade de
forma a conduzir projetos educacionais para orientar a conduta dos indivíduos tanto no
próprio grupo quanto na sociedade. (DAWSON, 2011, p. 161-62 apud ALMOND, SIVAN
and APPLEBY 1995ª, pp.445-82; 1995b, pp.425-44).
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O fundamentalismo religioso, assim como o processo de secularização, não é
completamente incompatível com a modernidade, porém se origina desta e manifesta-se de
várias maneiras. Ao passo que o processo de secularização representa a modificação do
papel da religião nas sociedades modernas, o fundamentalismo religioso caracteriza a
reação à essa modificação, de forma que esses dois fenômenos estão ligados e influenciamse ainda hoje, uma vez que o avanço incansável do processo de secularização demanda
novas formas de reação. Essa pressão gera um ciclo onde a reinterpretação e consequente
aplicação das práticas e valores religiosos por fundamentalistas dispostos a utilizarem a
violência torna-se cada vez mais frequente, o que por sua vez instiga uma reação das
sociedades seculares modernas.
A Violência Religiosa
No artigo “Fear and Trembling: Terrorism in Three Religious Traditions”, David C.
Rapoport realiza uma análise da atuação de três grupos terroristas distintos do passado. Os
Thugs ligados ao Hinduísmo, os Assassins ao Islamismo e os Zealots-Sicarii ao Judaísmo.
O terror perpetrado por esses grupos possuía um caráter “sagrado” (que será melhor
esclarecido adiante), auxiliando-os assim a legitimarem suas ações e métodos baseados em
suas respectivas tradições religiosas (RAPOPORT, 1984).
Segundo Rapoport, esses grupos são diferentes dos terroristas modernos e são
considerados seus precursores, uma vez que eles consideravam o terror como sendo
sagrado ou santo e não somente uma forma de se atingir seus objetivos. O propósito da
publicidade gerada pelos terroristas modernos através do terror não é necessariamente o
mesmo dos Thugs, Assassins e Zealots-Sicarii, de modo que, “Para o terrorista sagrado, a
divindade é o público primário, e dependendo de sua concepção religiosa particular, é
concebível até mesmo que ele não precise ou queira que o público testemunhe seus atos”.[22]
(RAPOPORT, 1984, p. 660, tradução minha). De acordo com Rapoport,
O terrorista santo acredita que apenas uma finalidade transcendente que cumpre o
significado do universo pode justificar o terror, e que a divindade revela em
algum momento anterior no tempo tanto os fins quanto os meios e pode até
mesmo participar no processo.[23] (RAPOPORT, 1984, p. 659, tradução minha).
Uma característica marcante dos Thugs é que preferiam evitar que o público
tomasse conhecimento de suas ações, uma vez que seus objetivos são transcendentais e
visavam o assassinato das vítimas com o objetivo de satisfazer a divindade Kali. Os
Assassins, ao contrário, visavam alvos políticos com o objetivo de enviar uma mensagem
islâmica com o objetivo de transformar o mundo de acordo com seus princípios, logo
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necessitavam da atenção do público. Outra diferença entre estes dois grupos é que enquanto
os Thugs obtinham apoio de príncipes para suas operações, os Assassins implantaram seu
próprio estado. Os Zealots-Sicarii possuíam características similares às dos Assassins no
sentido de que também eram motivados por questões messiânicas, pretendendo atingir o
maior número de pessoas. Ambos compreendiam a importância de morrer pela causa, que
representava uma forma de ascensão. Diversamente dos Thugs e Assassins, os ZealotsSicarii são mais livres quanto à escolha da tática (RAPOPORT, 1984).
Como podemos ver, a violência religiosa não é exclusividade da modernidade,
embora esta tenha desencadeado uma reação particular das religiões ao redor do mundo.
Podemos dizer que a motivação dos grupos anteriormente citados é puramente religiosa?
Muitas vezes, a religião é utilizada como pretexto para reivindicações político-sociais e até
mesmo para fundamentar conflitos étnicos, políticos e territoriais. É necessário, portanto,
definirmos com clareza o que queremos dizer quando utilizamos o termo “violência
religiosa”. A esse respeito, Juergensmyer faz as seguintes perguntas:
Estamos olhando para uma guerra prolongada ou um único evento terrorista?
Estamos nos referindo a incidentes contemporâneos ou memórias históricas?
Estamos vendo apenas imagens e eventos religiosos, ou estamos vendo como a
religião é usada em incidentes que são em grande parte para fins sociais ou
políticos?[24] (JUERGENSMYER, 2009, p. 891, tradução minha).
Mark Juergensmyer, em seu artigo “Religious Violence”, realiza uma revisão
bibliográfica sobre este tema, onde ele apresenta autores de diferentes áreas, constituindo
dessa forma um arcabouço teórico bastante amplo. A relação entre religião e violência, a
princípio, parece ser distante. Os ensinamentos religiosos possuem várias referências a paz,
de forma que o princípio da não violência é central para a grande maioria das religiões. A
violência só seria permitida, a partir do ponto de vista religioso, na defesa da própria vida
ou da fé (JUERGENSMYER, 2009). Além de atos violentos cometidos em nome da
religião, existe também a violência simbólica, presente em virtualmente todas as tradições
religiosas, legitimada pela compreensão de que ela representaria a vontade divina. A
“violência religiosa” pode referir-se, portanto, tanto ao seu aspecto simbólico, como
caracterizar vários acontecimentos ao longo da história, perpetrados por indivíduos, grupos
e/ou organizações religiosas (JUERGENSMYER, 2009).
A distinção entre violência simbólica e atos violentos cometidos em nome da
religião não é tão simples quanto parece, uma vez que seus limites são tênues. O tema da
violência religiosa como podemos ver é bastante amplo e envolve diversas variáveis, de
forma que é difícil especificarmos, em cada caso analisado, se as motivações para um
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determinado ato de violência são puramente religiosas ou se envolvem também outros
fatores.
O bombardeamento do World Trade Center foi um ato religioso ou político?
Pode-se dizer que foi um ou ambos, pois é evidente que uma das características
mais significativas do ativismo religioso contemporâneo é que ele representa não
só a politização da religião, mas também a regionalização da política. Por este
último termo refiro-me à maneira como a vida política tem sido englobada pela
imaginação religiosa, e como as lutas sociais e políticas foram atraídas para o
reino do drama cósmico.[25] (JUERGENSMEYER, 2009, p. 891, tradução minha).
A religião introduz a noção do embate cósmico, a grande luta entre o bem e o mal,
que passa então a definir as questões sociais e políticas, fazendo, em alguns casos, com que
seus oponentes sejam desumanizados a tal ponto que passam a ser vistos como uma força
do mal que deve ser subjugada de qualquer maneira. Como dito anteriormente, as religiões
estão impregnadas de violência simbólica. No cristianismo, tem-se a crucificação de cristo,
batalhas épicas foram registradas nas escrituras sagradas do Hinduísmo e há muitos outros
exemplos nas mais diversas tradições religiosas. Mas parece ser o sacrifício a violência
simbólica mais compartilhada entre as religiões. Segundo Juergensmyer,
(...) Na Bíblia hebraica, sagrada para Judeus, Cristãos e Muçulmanos, o livro de
Levítico dá guias detalhados para preparar animais para o abate sacrificial, e a
própria arquitetura dos antigos templos israelenses reflete a centralidade do ato
sacrificial.
Por causa de sua centralidade, algumas das primeiras teorias acadêmicas sobre
violência religiosa começam com o sacrifício.[26] (JUERGENSMYER, 2009, p.
892, tradução minha).
Diversos antropólogos desenvolveram teorias acerca do sacrifício. E. B Taylor
(1870) propôs que o sacrifício representava uma tentativa de subornar os deuses e, com o
avanço das religiões, ele transformou-se em autoprivação; para W. Robertson-Smith
(1889), o sacrifício era uma refeição ritual, cuja destrutividade conduzia a um pacto com a
divindade e; James G. Frazer (1900) para quem o sacrifício era um elemento central da
religião, uma vez que “a matança de reis e homens sagrados permitiu o rejuvenescimento
dos deuses, e o sacrifício simbólico da religião moderna foi visto por Frazer como uma
extensão desta antiga mágica”.
[27]
(JUERGENSMYER, 2009, p. 892-93 apud FRAZER,
1900, tradução minha).
Émile Durkheim também se debruçou sobre a questão do sacrifício, porém as
contribuições mais importantes, que utilizavam da sua perspectiva, vieram de Henri Hubert
e Marcel Mauss (1899). Para eles, o sacrifício representava o elo entre a realidade sagrada e
a profana, uma vez que a vida oferecida para a divindade através do ritual era retribuída
àquele que sacrifica pelo ente supremo. O sacrifício é entendido, portanto, como uma
maneira de se comunicar com as realidades sagrada e profana, conferindo à religião
autoridade e transcendentalidade (JUERGENSMYER, 2009). A abordagem Durkheimiana
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de Hubert e Mauss sofreu muitas críticas por sua grande dependência
de exemplos
Védicos, Judeus e Cristãos (JUERGENSMYER, 2009), fazendo com que alguns estudiosos
revisassem suas teorias de forma a se adequarem a outras situações. Foi o caso de Marcel
Detienne (1979) que teve um foco distinto dos demais, uma vez que constatou a igual
importância, ou até mesmo superior, dos atos de cozinhar e comer o animal sacrificado com
o do sacrifício em si.
Outro autor importante nessa discussão é Maurice Bloch (1992), que desenvolveu
sua teoria a partir de uma revisão dos pressupostos estabelecidos por Hubert e Mauss, de
forma a relacionar “(...) atos simbólicos de violência à atos de guerra e conquista no mundo
real”.[28] (JUERGENSMYER, 2009, p. 893 apud BLOCH, 1992, tradução minha). Apesar
de Bloch se referir a sociedades tribais, ele mostra que o sacrifício, para muitas delas, é
uma forma de empoderamento. Essa noção do empoderamento, segundo Juergensmyer,
pode ser aplicado inclusive aos atos de terrorismo contemporâneos.
A psicologia é outra área que tenta explicar o tema da violência religiosa. Sigmund
Freud foi um dos que contribuíram com a discussão:
(...) Em Totem e tabu (1918), Freud explicou que o instinto destrutivo presente na
natureza humana destruiria uma família, tribo ou sociedade civil se não fosse
simbolicamente deslocado e direcionado para um inimigo sacrificial. [29]
(JUERGENSMYER, 2009, p. 894 apud FREUD, 1918, tradução minha).
Apesar de posteriormente muitas das teorias de Freud terem sido rechaçadas, sua
afirmação de que a violência simbólica pode auxiliar na redução de atos reais de violência
permaneceu. René Girard (1972) merece um destaque dentre os teóricos de linha freudiana,
uma vez que introduziu uma nova perspectiva acerca da motivação do ato de sacrifício.
Para Freud a canalização do instinto agressivo inerente à natureza humana é o que levaria à
necessidade do ritual de sacrifício, porém Girard afirma que a real motivação seria um
“desejo mimético”[30] (JUERGENSMYER, 2009, p.895), que reflete "o desejo de imitar e
superar um rival, e desejar o que um rival deseja”.[31] (JUERGENSMYER, 2009, p. 895
apud GIRARD, 1972, tradução minha). Tanto para Girard quanto para Freud, a violência
simbólica presente em mitos e rituais deveria aliviar o desejo por atos violentos.
Alguns cientistas, entretanto, entendem a religião como sendo uma “expressão da
estrutura social, e a violência religiosa como um instrumento de forças políticas ou sociais
(JUERGENSMYER, 2009, p. 897). A questão central passa a ser então como os ativistas
religiosos comportam-se nas esferas políticas e sociais, fazendo com que David C.
Rapoport (1988), em seus estudos, constatasse que:
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(...) ativistas religiosos utilizam estratégias terroristas especialmente em tempos de expectativas
messiânicas, quando seus atos podem ser justificados em função da percepção da iminência de
transformações apocalípticas da história e da sociedade.[32] (JUERGENSMYER, 2009, p. 897 apud
RAPOPORT, 1988;1991, tradução minha)
Juergensmyer contextualiza o aumento da violência religiosa global com fatores
geopolíticos e também com as consequências da globalização, que traz à tona problemas de
identidade e controle, de maneira que:
Os dois estão ligados, no sentido de que a perda da percepção de pertencimento
leva a um sentimento de impotência. Ao mesmo tempo, o que tem sido percebido
como uma perda de fé no nacionalismo secular é experimentado como uma perda
de agência, bem como de individualidade. Por estas razões a afirmação das
formas tradicionais de identidades religiosas estão ligadas às tentativas de
retomar o poder pessoal e cultural.[33] (JUERGENSMYER, 2004b, p. 6, tradução
minha).
Em alguns casos, o autor também identifica o desejo pela busca de alternativas ao
modelo modernizante Ocidental, afirmando que a violência perpetrada por esses
movimentos é compreensível, uma vez que eles enfrentam a estrutura política em suas
raízes. Os atos de violência desses movimentos podem ser entendidos como uma tentativa
de readquirir o controle da sociedade frente a perda de identidade e consequente sensação
de não-pertencimento. O elemento religioso dos novos nacionalismos confere a eles um
caráter violento, uma vez que a religião fornece a legitimação moral para a prática da
violência. Dessa forma, o monopólio do uso da violência pelo Estado é contestado, pois a
religião representa uma autoridade maior (JUERGENSMYER, 2004a). Por isso, o autor
considera a violência religiosa como sendo revolucionária, uma vez que tem a capacidade
de promover tanto um empoderamento espiritual quanto político.
A relação entre violência religiosa e empoderamento é importante também para os
teólogos. O ritual do sacrifício, para eles, pode ser interpretado como um ato de renovação
e regeneração espiritual (JUERGENSSMYER, 2009). Muitos teólogos conferem à
violência simbólica presente em escrituras sagradas, como aquelas relacionadas às
catástrofes bíblicas, um elemento de purificação e transformação, assim como refletem o
desejo por mais harmonia social (JUERGENSMYER, 2009).
Existe uma abordagem mais holística, de estudos comparativos em religião,
denominada estudos religiosos, tendo Mircea Eliade (1992) como uma das referências na
área. Em seu livro “O Sagrado e o Profano”, Eliade nos apresenta a dicotomia que, segundo
ele, ajudou a delinear o campo de atuação das religiões. A oposição entre aquilo que
constitui o sagrado e o profano é fundamental para entendermos a maneira como a religião
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e o homem religioso agem na realidade, que representa um modo específico de ser no
mundo.
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra
como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da
manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo,
pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está
implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos
revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às
mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas
manifestações das realidades sagrada. (ELIADE, 1992, p. 13)
O profano corresponde então ao mundo “natural”, aquele onde a realidade sagrada,
que é proveniente de uma esfera distinta da nossa, se manifesta. O choque entre as
diferentes manifestações de hierofanias, provenientes da multiplicidade de culturas e povos
que cada vez mais interagiam entre si, tornou-se objeto de estudos, vindo a constituir, já na
Grécia antiga, o precursor de uma ciência das religiões. Bruce Lincoln (1991) foi aluno de
Eliade e trouxe novamente para a discussão sobre violência religiosa a perspectiva
Durkheimiana de Hubert e Mauss do sacrifício. Lincoln “imaginou os atos violentos como
parte de um „discurso de mestre' destinado a interligar o cosmos, o corpo humano e a
sociedade.”[34] (JUERGENSMYER, 2009, p. 904 apud LINCOLN, 1991, tradução minha).
Roger Friedland e Richard Hecht (1996) utilizam-se de um pressuposto central das análises
de Eliade, a existência simultânea de uma realidade sagrada e outra profana, que permite
aos indivíduos religiosos categorizarem a realidade, representando assim uma ruptura tanto
no espaço quanto no tempo (JUERGENSMYER, 2009). Em seus estudos sobre os conflitos
entre cristãos, muçulmanos e judeus pelo controle de Jerusalém, Friedland e Hecht
constataram como as diferentes percepções do sagrado podem gerar violência
(JUENGERSMYER, 2009).
Juergensmyer, a partir de seus estudos, cria o conceito da “guerra cósmica”[35]
(JUERGENSMYER, 2009, p. 904, tradução minha) que, para ele, seria o elemento de
ligação entre a violência simbólica, presente em praticamente todas as tradições religiosas,
e atos reais de violência, uma vez que ele representa a necessidade da busca por ordem pela
religião. Segundo o autor:
O modelo conceitual da guerra cósmica é capaz de abarcar anomalias aparentes tais como o controle persistente das sociedades por forças externas ou a repentina
destruição dos principais edifícios em um moderno centro urbano - e fornecem
um quadro no qual estas anomalias fazem sentido. As imagens de guerra cósmica
fazem o que a religião em geral faz bem: fornecem uma estrutura profunda de
ordem que dá sentido à contradições da vida e esperança que rebate o
desespero.[36] (JUERGENSMYER, 2009, p. 904, tradução minha).
O período secular moderno no qual o mundo encontra-se está inserido, portanto, no
contexto da “guerra cósmica”. E nesses tempos de guerra, a religião oferece o referencial
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para se entender a conjuntura dos acontecimentos, pois é necessário que aqueles dispostos a
batalhar por sua fé sejam capazes de identificar seus inimigos e justificar suas ações, que
muitas vezes podem ser brutais. A suposta decadência promovida pelos símbolos da vida
moderna secular, tanto na forma de ideias quanto de governantes e representantes do Estado
Secular, são percebidos como o inimigo. Enxergar a religião como uma força de ordem,
expõe um paradigma, o de que a violência seria um caminho para a paz em um mundo
preso entre as narrativas secular e transcendentais da história (JUERGENSMYER, 2009).
Notas
[1]
(...) Religious authorities continue to fill the gaps in state provision, commanding in some places
considerable resources. The German churches, for example, are major providers of both healthcare and
welfare for large numbers of German citizens. Educational structures offer a further illustration. In many parts
of Europe, the churches remain the owners and managers of significant numbers of schools. (DAVIE, 2007, p.
50).
[2]
“(…) a „fundamental social process occurring in the organization of Society, in the culture and in the
collective mentalité‟” (DAVIE, 2007, p. 54 apud WILSON 1998:49)
[3]
“Individualism threatened the communal basis of religious belief and behavior, while rationality removed
many of the purposes of religion and rendered many of its beliefs implausible. (DAVIE, 2007, p.56 apud
BRUCE, 1996, p.230)
[4]
(…) both Berger and Bruce agree that an increase in the range of religious choices necessarily undermines
the taken-for-granted nature of religious assumptions. Whether this necessarily leads to secularization is a
more difficult question – the point at which Bruce and Berger go in different directions. Wilson‟s definition of
the secularization process, that religion declines in social significance in modern societies, provides an
important reference in point for many scholars. Such decline, however, has occurred more in some places than
others – hence the need to pay very careful attention to the specificities of history. (DAVIE, 2007, p. 62).
[5]
“The key elements have aligned in different ways, leading to entirely different futures”. (DAVIE, 2007, p.
63).
[6]
“(…) „ready to do battle for the Fundamentals‟.” (DAWSON, 2011, p. 150 apud Ruthven, 2004, pp.I-34)
[7]
(…) increased intensity of commitment, increased salience of religious identity, the rise of puritanical
extremes (Almond, Appleby and Sivan, 2003; Antoun, 2001; Porter, 2006) and a return to political
engagement to apply faith whether by establishing Shariah Law in newly Muslim majority countries like
Malaysia, promoting the teaching of „Creation Science‟ in the USA, or condemning particular patterns of
sexuality. (BOUMA, 2007, p. 188)
[8]
"Competition and conflict both require the drawing of lines, taking offence at someone or something, and
declaring the other to be wrong, morally inferior, or theologically in error”. (BOUMA, 2007, p. 193)
[9]
“the term „fundamentalism‟ is better kept for movements that respond to problems created by
modernization.” (DAWSON, 2011, p. 152 apud BRUCE, 2000).
[10]
“Westernization” (DAWSON, 2011, p.153).
[11]
it also emerged as an orchestrated reaction – understood as a campaign against jahiliyya („ignorance of
divine guidance‟) – to the perceived imposition of Western, secular-liberal values embodied by the dominant
regime of the Shah. (DAWSON, 2011, p. 154 apud LAWRANCE, 1989; RIESEBRODT, 1990).
[12]
“reactivity to the marginalization of religion” (DAWSON, 2011, p.155).
[13]
“ideological selecvity” (DAWSON, 2004, p. 155).
[14]
“moral manicheism” (DAWSON, 2011, p. 157)
[15]
“absolutism and inerrancy” (DAWSON, 2011, p. 157)
[16]
“millennialism and messianism” (DAWSON, 2011, p. 157)
[17]
“world conqueror.” (DAWSON, 2011, p.161).
[18]
“world transformer.” (DAWSON, 2011, p.161).
[19]
“cultural welfare.” (DAWSON, 2011, p.161).
[20]
“world creator.” (DAWSON, 2011, p.161).
[21]
“world renouncer.” (DAWSON, 2011, p.161).
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[22]
For the holy terrorist, the primary audience is the deity, and depending upon his particular religious
conception, it is even conceivable that he does not need or want to have the public witness his deed.
(RAPOPORT, 1984, p. 660).
[23]
The holy terrorist believes that only a transcendent purpose which fulfills the meaning of the universe can
justify terror, and that the deity reveals at some early moment in time both the end and means and may even
participate in the process as well. (RAPOPORT, 1984, p. 659).
[24]
Are we looking at protracted warfare or single terrorist events? Are we referring to contemporary incidents
or historical memories? Are we viewing solely religious images and events, or are we seeing how religion is
used in incidents that are largely for social or political purposes. (JUERGENSMYER, 2009, p. 891).
[25]
Was the bombing of the World Trade Center a religious act or a political one? It can be said to be either or
both, for it is apparent that one of the most significant features of contemporary religious activism is that it
entails not only the politicization of religion, but the religionization of politics. By the latter term I mean the
way in which political life has been encompassed by the religious imagination, and how social and political
struggles have been drawn into the realm of cosmic drama. (JUERGENSMEYER, 2009, p. 891).
[26]
(...) In the Hebrew Bible, sacred to Jews, Christians, and Muslims, the book of Leviticus gives detailed
guides for preparing animals for sacrificial slaughter, and the very architecture of ancient Israeli temples
reflects the centrality of the sacrificial act.
Because of its centrality, some of the earliest scholarly theories about religious violence begin with sacrifice.
(JUERGENSMYER, 2009, p. 892).
[27]
the killing of king and holy man allowed the gods to be rejuvenated, and the symbolic sacrifice of modern
religion Frazer saw as an extension of this ancient magic. (JUERGENSMYER, 2009, p. 892-93 apud
FRAZER, 1900).
[28]
“(…) symbolic acts of violence to acts of warfare and conquest in the real world”. (JUERGENSMYER,
2009, p. 893 apud BLOCH, 1992).
[29]
(...) In Totem and Taboo (1918), Freud explained that the destructive instinct in human nature would tear
apart a family, tribe or civil society if it were not symbolically displaced and directed toward a sacrificial foe.
(JUERGENMYER, 2009, p. 894 apud FREUD, 1918).
[30]
“mimetic desire”. (JUERGENSMYER, 2009, p.895).
[31]
“the urge to imitate and better one‟s rival, and to desire what one‟s rival desires”. (JUERGENMYER,
2009, p. 895 apud GIRARD, 1972).
[32]
(...) terrorist strategies are evoked by religious activists especially in times of messianic expectation, when
their acts may be justified by apocalyptic images of radical transformation of history and society.
(JUERGENSMYER, 2009, p. 897 apud RAPOPORT, 1988;1991).
[33]
The two are linked, in that a loss of a sense of belonging leads to a feeling of powerlessness. At the same
time, what has been perceived as a loss of faith in secular nationalism is experienced as a loss of agency as
well as selfhood. For these reasons the assertion of traditional forms of religious identities are linked to
attempts to reclaim personal and cultural power. (JUERGENSMYER, 2004b, p. 6).
[34]
"envisioned violent acts as part of a „master discourse‟ intended to link together the cosmos, the human
body, and society.” (JUERGENSMYER, 2009, p. 904 apud LINCOLN, 1991).
[35]
“cosmic war”. (JUERGENSMYER, 2009, p. 904).
[36]
The conceptual template of cosmic war is able to embrace apparent anomalies-such as the persistent
control of societies by alien forces or the sudden destruction of major buildings in a modern urban center-and
provide a framework in which these anomalies make sense. The images of cosmic war do what religion in
general does well: provide a deep framework of order that gives meaning to life‟s contradictions and hope that
counters despair. (JUERGENSMYER, 2009, p. 904).
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Algumas notas sobre as antropólogas Elizabeth Steen e Judith Shapiro
que estiveram entre os Tapirapé durante o século XX
Paula Grazielle Viana dos Reis
PPGAn-UFMG Bolsista CNPq – doutorado sanduíche no país – PPGACV-fav-UFG.
Bolsista Capes (2015-2017) www.etnologiaindigena.wordpress.com
Antes de adentrar em uma discussão mais detalhada sobre as reais contribuições das
antropólogas Jutidh Shapiro e Elizabeth Steen para o pensamento antropológico acerca do
povo Tapirapé, é necessário dizer que isso demandaria um plano de trabalho específico.
Como por exemplo, a partir de parcerias entre os estudantes da pós-graduação e da
graduação, como algo parecido ao incentivo a iniciação científica voluntária respaldado
pelo Pro-Reitoria de Pesquisa da UFMG, que organiza anualmente um edital para
cadastramento de novos projetos. Mas sabemos que isso ainda não é possível, uma vez que
apenas os docentes vinculados à instituição podem orientar trabalhos dessa natureza. A
presente comunicação realizada para o grupo de trabalho 1 – Etnologias e Arqueologias
Indígenas organizado pela VI Semana de Antropologia e Arqueologia – no dia 02 de
outubro de 2018, vislumbrou essa questão para possíveis ações futuras até porque
configura-se, apenas, como notas de pesquisas.
Dito isto, já sabemos que não é nenhuma novidade, como bem demonstrou Mariza
Corrêa (CORRÊA, 2003), que para o campo da antropologia, algumas para não dizer muitas
contribuições das mulheres nessa ciência foram historicamente silenciadas. Sendo assim, é
importante dizer, primeiro, como cheguei a essas antropólogas. Basicamente, a partir da
leitura de duas etnografias clássicas feitas entre o povo Tapirapé escritas por Herbert Baldus
Tapirapé: Tribo Tupí no Brasil Central (1970) e de Charles Wagley Welcome of Tears: the
Tapirape indians of Central Brazil ([1977] 1988).
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Fonte: Google Imagens.
Porém, a percepção da presença e da contribuição de forma mais consistente dessas
duas antropólogas não foi notada durante a pesquisa bibliográfica para escrever o plano de
trabalho denominado Ontologia relacional Tapirapé: comparações etnográficas entre
imagens, objetos e escritas (2014) para o processo seletivo de doutorado em antropologia
social pelo PPGAn UFMG. Naquele momento, acessei as seguintes produções científicas
feitas por mulheres entre o povo indígena Tapirapé: os artigos escritos por Judith Shapiro e
publicados no Boletim do Museu Emílio Goeldi em 1968 e uma dissertação de mestrado em
antropologia, que foi escrita por Maria Júlia de Andrade (2010) e defendida no âmbito da
Universidade Federal Fluminense.
No início do doutoramento busquei aprofundar o meu entendimento sobre o povo
indígena Tapirapé a partir das obras de Herbert Baldus e Charles Wagley. Agora, tais notas
etnográficas querem explicitar esse algo mais a partir do entrecruzamento desses trabalhos.
Uma vez que, desde o início vinha percebendo o desafio posto, pois, independente do foco,
qualquer desdobramento a partir dessas obras, levando também em consideração as
fotografias, estão atravessadas por dimensões políticas, éticas, estéticas e epistemológicas.
Não há razão para ser diferente, e que de saída digo que não tenho soluções prontas para
traduzir todas essas dimensões. Por isso, preferi descrever essas dimensões tendo como foco
ou ponto de partida as fotografias. Pois, se é preciso reconhecer que esses livros escritos por
esses antropólogos sobre o povo Tapirapé são fundamentais por nos apresentar
exaustivamente os resultados de seus trabalhos de campo entre os Tapirapé acoplados com
pesquisas em arquivos e acervos com os mais variados documentos escritos, arqueológicos
e iconográficos (fotografias e mapas), o que tornam esses livros não, apenas, fundamentais
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
para pesquisa, mas também tornam tais obras clássicas; já que é possível dizer algo mais a
partir delas.
Herbert Baldus publicou o livro Tapirapé: Tribo Tupí no Brasil Central em 1970 e
deixou expresso nas primeiras linhas grafadas do prefácio que escreveu:
Este livro é para Charles Wagley, a mim ligado pelo amor aos Tapirapé. Escrevi-o
para incentivar o colega a publicar tudo o que sabe sobre esses índios e o que
pensa sobre eles. Wagley ficou muito mais tempo com eles do que eu, conhece-os
muito melhor do que eu (BALDUS, 1970, p. 11).
Por sua vez, Charles Wagley publicou Welcome of Tears: the Tapirape indians of
Central Brazil apenas em 1977 como resultados de suas pesquisas entre os Tapirapé. E
também expressou no prefácio desse livro a importância da obra de Herbert Baldus feita
entre os Tapirapé, apesar da curta duração do trabalho de campo, que, basicamente, se
restringiu há alguns meses (junho a agosto) nos anos de 1935 e 1947. Bem como, dedicou o
livro em memória de Herbert Baldus.
Assim sendo, meu livro é também um gesto de amor com qual cumpro um dever
para com meu falecido colega e amigo. E uma tentativa para organizar minha
própria compreensão da cultura Tapirapé dentro de um esquema integrado. Ao
dirigir-me as generosas palavras acima citadas, Herbert Baldus estava consciente
de que discordávamos com referência a certos aspectos factuais e interpretativos
da cultura Tapirapé (WAGLEY, 1988, p. 16)1.
O livro de Charles Wagley foi traduzido para o português por Elisabeth Mafra
Cabral Nasser e com uma revisão técnica da antropóloga Berta G. Ribeiro. A publicação
Lágrimas de Boas Vindas: os índios Tapirapé do Brasil Central aconteceu, então, no Brasil
somente 10 anos após sua publicação em inglês. Wagley esteve entre os Tapirapé várias
vezes, a primeira ida à aldeia Tampi‟itawa durou cerca de 15 meses em 1939 e 1940, depois
retornou em curtas visitas que duraram alguns dias em 1953 e 1957, já em 1965 pousou por
algumas semanas. Em relação às fotografias feitas com a câmera fotográfica de Charles
Wagley entre os Tapirapé, há as fotos publicadas em seu livro de 1977 traduzido em 1988 e
há também as fotos de arquivo que compõem a coleção Latino-americana/Charles Wagley
foram digitalizadas pela Universidade da Flórida e encontram- se disponíveis para consultas
na internet através do site dessa universidade. Sendo que, grande parte das fotografias
publicadas nos livros de 1977 e 1988 também fazem parte dessa Coleção Latinoamericana/Charles Wagley. O artigo Os Tapirapé, Tenetehara e gurupaenses através das
lentes da máquina de Charles Wagley: uma análise de conteúdo, que resultou numa
pesquisa de Richard Pace (2014) sobre a coleção fotográfica de Wagley, configura-se numa
primeira tentativa de pensar essa coleção. Neste sentido, Pace debruçou-se, especialmente,
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
sobre o conteúdo dessas imagens e propôs uma classificação. Para isso, ele dimensionou a
quantidade de fotos, que atualmente compõem a Coleção Latino-americana, ou ainda,
guardadas sob os cuidados de parentes. Dentre essas fotos disponíveis para consulta, há 511
fotografias feitas possivelmente por Wagley entre os Tapirapé em 1939-1940, 1957, 1965.
Para as fotografias tiradas nas décadas de 1930 e 1940, Wagley usou uma
Rolleiflex TLR (Foto 4). Para as fotos posteriores, ele usou uma Olympus. As
fotografias das décadas de 1930 e 1940 dos Tapirapé e Tenetehara são todas em
preto e branco. (...) As viagens seguintes aos Tapirapé, nos anos de 1950 e 1960,
também resultaram na combinação de fotografias coloridas, em preto e branco e
transparências coloridas (PACE, 2014, p. 676).
Em 1939 e 1940, Wagley contou com a companhia de Eduardo Galvão. Este, um
jovem estudante de antropologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, pode ter sido o
fotógrafo em vários momentos. Houve cooperação entre ambos durante o trabalho de
campo e compartilhamento das máquinas fotográficas. Porém, parcas informações sobre
possíveis fotografias feitas por Galvão durante a ida em Tampi‟itawa.
Em Welcome of tears: the Tapirapé Indians of Central Brazil (1977) consta 59
figuras e todas as fotos são de Wagley, pois não há nenhuma menção a Eduardo Galvão,
nem mesmo na Listagem de ilustrações e mapas do livro, apesar de mencionar o nome de
David Lindroth como responsável pelos mapas. Por sua vez, a obra Lágrimas de Boasvindas: os índios Tapirapé do Brasil Central (1988) é composta de 46 figuras e nessa
editoração não contou com uma listagem para elencá- las. Há outras diferenças na
editoração de 1988 no que tange a organização das fotos ao longo do texto: constam menos
fotos e algumas foram substituídas por outras, que não estão presentes na versão em língua
inglesa. Embora a maioria das fotografias datadas presentes nessas duas obras corresponda
aos anos de 1939 e 1940, ou seja, período correspondente ao primeiro trabalho de campo de
Charles Wagley feito junto com Eduardo Galvão e outros dois estudantes do Museu
Nacional entre os Tapirapé e não há nenhuma menção deste como o fotógrafo de alguma
dessas imagens, também na versão traduzida do livro. Já, na obra de Herbert Baldus é
inegável que o modo como fez suas elucubrações, lançando mão do difusionismo e da
comparação para traçar sua análise (PASSADOR, 2002), levou-me a buscar algumas
referências que ele mesmo apontava reiteradamente no livro Tapirapé: Tribo tupí no Brasil
Central (1970). Pois, antes de publicá-lo, Baldus já tinha escrito alguns artigos para colunas
em jornais (BALDUS, 1948), revistas científicas e publicações de divulgação do Arquivo
Municipal e do Museu Paulista (BALDUS, 1944). A partir da leitura dessas publicações,
obtive alguns dados sobre as pessoas que estiveram com ele durante o trabalho de campo ou
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
alguma indicação de fotógrafos que estiveram entre os Tapirapé depois dele. Com esses
elementos, analisei também o Índice das Fotografias (BALDUS, 1970, p. 508-510) pelo
qual Baldus organizou as diversas fotos que usou para compor seu livro. Sendo que, muitas
delas tratavam se de imagens feitas por diferentes fotógrafos que nem sempre foram pessoas
que estiveram com ele durante o trabalho de campo. O desafio refere-se à maneira
heterogênea como Herbert Baldus traçou sua composição de fotos em seu livro. Ele usou 80
fotos para compor sua obra. Destas, 37 foram registradas por ele durante o trabalho de
campo (1935 e 1947), sendo que no período entre o dia 15 de junho a 10 de agosto de 1935,
Baldus contou com a companhia do missionário escocês Frederico Kegel.
Este tirou algumas fotos, sendo que muitas delas podem ser vistas através do Banco
de Dados do Laboratório da imagem e do som em antropologia da USP e uma outra foto
que Baldus publicou em seu livro (BALDUS, 1970, p.86). Esta foto posada para a câmera
de Kegel, demonstra Baldus entre os Tapirapé. Em julho de 1947, o médico Haroldo
Cândido de Oliveira esteve em campo com Baldus e realizou uma inspeção médica entre os
Tapirapé. Cândido de Oliveira chegou a publicar o diário dessa viagem em Índios sertanejos
do Araguaia: diário de viagem (OlIVEIRA, 1950) contendo algumas fotografias, sendo que
seis delas foram feitas por Baldus entre os Tapirapé2. Herbert Baldus publicou em seu livro
43 fotos de diferentes fotógrafos feitas entre os Tapirapé. Ele escreveu uma breve legenda
para cada foto, embora, muitas vezes, a descrição se refira à ontologia das imagens
fotográficas, o que não me permitiu ter acesso ou, apenas, obter pouquíssimos elementos
sobre o período e/ou quais condições foram feitas cada uma delas. Basicamente, conforme o
índice de fotografias contido no livro, uma foto foi feita por Frederico Kegel, há uma foto
tirada por Mario Baldi (BALDUS, 1970, p. 268), nove fotos foram realizadas por frei Pedro
Secondy O.P.3, onze fotos feitas por Antonio Macedo para o Museu Paulista e vinte uma
fotos registradas por Antonio Macedo para o Museu Etnográfico de Gotemburgo (Goteborg
Etnografiska Museet4).
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Tabela 1
Rede de fotógrafos presentes na publicação Tapirapé: tribo do Brasil Central
de Herbert Baldus
Fotógrafo
N° de Fotos
Herbert Baldus
37
%
46,25
Frederico Kegel
1
1,25
Mario Baldi
1
1,25
Antônio Macedo
Frei Pedro Secondy
Total
32
9
80
40
11,25
100
De modo geral, notei que as fotos foram usadas para demonstrar alguma reflexão
sobre as relações que Baldus estabeleceu durante o trabalho de campo, que logo foram
comparadas com outras pesquisas antropológicas feitas entre os Tupi ou com povos
indígenas que estabeleceram relações de trocas; aqui, não está excluída a guerra, que é uma
troca malsucedida conforme Lévi- Strauss (1982) ou em outros termos relações de afinidade
potencial e virtual (VIVEIROS DE CASTRO, 2011) com os Tapirapé em algum momento
de sua história.
Herbert Baldus esteve atento às pessoas que estiveram entre os Tapirapé, antes e
depois de sua ida às aldeias próximas ao rio Tapirapé. Mais do que dizer quando e como
essas fotos foram tiradas, interessava-lhe mais usá-las como evidências para corroborar
alguma hipótese sobre a origem de um dado traço, costume e comportamento ou de sua
fusão ou dispersão. Quase nada soube sobre como ele teve acesso a essas fotos, apesar das
pesquisas bibliográficas e documentais, há muitas lacunas no que tange às condições de
compartilhamento realizadas por Baldus, embora algumas condições de troca foram
possíveis de serem deduzidas, uma vez que ele foi diretor do Museu Paulista durante certo
tempo.
De fato, entre os anos de 1946 e 1953, esse antropólogo se empenhou em manter
contato com etnólogos e diretores de museus europeus e norte-americanos, e
estabeleceu com eles relações de intercâmbio acadêmico e institucional. Nesse
período, ele trocou mais de 450 cartas com pesquisadores como, entre outros,
Richard Thurnwald, do Institut für Soziologie und Ethnologie de Berlim, Franz
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Casper, do Museum für Völkerkunde de Hamburgo, Fritz Krause, etnólogo que
vivia em Leipzig, Alfred Métraux, etnólogo francês, Robert Lowie, etnólogo
austríaco radicado nos Estados Unidos, Stig Ryden, diretor do Museu de
Etnografia de Gotemburgo, e Ema Ness, diretora do Museu Etnográfico de Oslo.
(FRANÇOZO, 2005, p. 596-597).
De qualquer forma, as lacunas de tais dados colocam essas fotos numa posição de
ambivalência na obra. Em outros termos, o caminho no mínimo se bifurca, se eu manter o
que estou fazendo e me aproximando cada vez mais da história do que da etnologia. Até o
momento, tentei reunir os fotógrafos citados por Herbert Baldus através de uma pesquisa
bibliográfica e documental ao que se refere à quantidade das fotos feitas entre os Tapirapé e
o estado de preservação, acesso e estudo; acionei também as imagens de arquivo tanto de
Baldus e que se encontram no Banco de dados do Laboratório de Imagem e Som em
Antropologia da Universidade de São Paulo (LISA- USP). Retomei as visitas aos sites onde
estão hospedadas as coleções e as imagens de arquivo de Baldus, li sua etnografia e artigos
e percebi essa pequena rede de fotógrafos envolta não só na etnografia de Baldus, mas
também por meio das outras publicações. A título de exemplo, Baldus viajou juntamente
com o fotógrafo e cineasta Harold Schultz, também funcionário do Museu Paulista, a
convite do SPI para a região do Araguaia em 1947 (BALDUS, 1948, p. 306). Schultz
chegou a fotografar os Tapirapé5 e pelo que tudo indica com as leituras sobre a função de
Schultz, antes no SPI e depois no Museu Paulista, que não se restringia apenas em
fotografar, mas também em filmar. Atualmente, essas fotografias compõem o acervo do
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Ou seja, por mais que
Baldus e Schultz trabalharam juntos no Museu Paulista e viajaram até o Araguaia juntos,
mas não trabalharam conjuntamente em campo, uma vez que Baldus foi ao encontro dos
índios Tapirapé e Schultz viajou até os índios Karajá. Apesar de breves referências a esse
episódio por Baldus em alguns artigos, na etnografia não se deteve em analisar as
fotografias feitas por Schultz entre os Tapirapé depois de sua estadia.
Assim, tanto Herbert Baldus (1970) quanto Charles Wagley ([1977] 1988) não
publicaram nenhuma fotografia de Elizabeth Steen e Judith Shapiro. Será que elas tiraram
fotos? Até o momento não consegui encontrar nenhuma resposta conclusiva. As únicas
menções a Elizabeth Steen foram feitas por Charles Wagley (1988) de forma bastante
pontual ao mencionar os primeiros encontros dos Tapirapé com os brancos e não-indígenas.
Já em relação a Judith Shapiro, os antropólogos Baldus (1970) e Wagley ([1977] 1988) não
só fazem menções a essa antropóloga como também analisam suas descrições publicadas
nos dois artigos científicos Cerimonial Distribution in Tapirapé Society (1968a) e
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Tapirapé Kinship (1968b) para o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi
(Antropologia).
Ao ampliar o escopo dessa presente pesquisa bibliográfica, Judith Shapiro também é
mencionada brevemente por Eunice de Paula (2012) e Vandimar Marques (2016). Já em
relação à Elizabeth Steen é possível vislumbrar algumas notas na tese de doutoramento em
antropologia social intitulada Transformações Karajá. Os “antigos” e o “pessoal de hoje”
no mundo dos brancos escrita por Eduardo Nunes. Tal antropólogo empreendeu uma
pesquisa de arquivo no Museu do Índio com os documentos (cartas) de Darcy Siciliano
Bandeira de Mello ao encarregado da Inspetoria do estado de Goyaz do SPI, Alencarliense
Fernandes da Costa e nos conta que Elizabeth Steen, antropóloga estadunidense, passou
pelo Posto Redempção Indígena em 1930 antes de ir aos Tapirapé nesse mesmo ano
(NUNES, 2016, p. 119).
Nota-se que, conforme descreve Charles Wagley (1988, p. 115), os artigos de Judith
Shapiro se inscrevem em uma discussão basilar sobre o parentesco Tupi e as eventuais
mudanças. Uma vez que, “a mudança do grupo doméstico multifamiliar para a família
nuclear foi notada por todos os que visitaram os Tapirapé desde 1939-40. Os grupos
domésticos vêm diminuindo progressivamente. A maloca tradicional habitada por cinco,
seis, ou mesmo sete familiares nucleares há muito já não existe” (WAGLEY, 1988, p. 115).
Tais mudanças registradas por J. Shapiro, quando esteve em em trabalho de campo
em 1966 entre os Tapirapé, dizem de um contexto de deslocamento desse povo para junto
ao posto indígena Heloísa Torres, situado próximo ao povo indígena Karajá, mais próximo
da foz do rio Tapirapé após uma brusca e drástica de população os reduzindo menos de 100
pessoas ou em outros termos de transformações ocorridas devido a um processo de
etnocídio vivenciado pelos índios Tapirapé.
(…) algumas mudanças ocorreram na nomenclatura de parentesco e no seu
emprego desde 1935. Isto foi estudado por Judith Shapiro durante suas visitas em
1966 e 1967 (1968a). Seus dados indicam forte tendência (que acredito ter
começado antes de 1939-40) em relação aos termos de parentesco no nível da
geração dos pais de um indivíduo em mudar do sistema de fusão bifurcada para o
de bifurcação colateral. Assim, muitas vezes o homem não denomina a irmã da
sua mãe ampi (“mãe”), porém cheu urani (“irmãzinha da minha mãe”) e não
chama o irmão do seu pai de cheropu (“pai”), mas de cherowurani (“irmãozinho
do meu pai”). As mulheres denominam o irmão do seu pai de cheropuí
(“paizinho”) e a irmã da sua mãe de ampi ou cheu urani (“irmã da minha mãe”).
Na geração abaixo de ego a terminologia da fusão bifurcada permanece imutável,
mas Shapiro menciona uma forte tendência ao uso de nomes pessoais ou termos
de status de idade tais como chekonomi (“meu rapazinho”) em vez de termos de
parentesco. Ela observa que os termos usados pelas mulheres têm sofrido menos
mudanças do que os utilizados pelos homens. Tais mudanças na terminologia de
parentesco, pelo menos na primeira geração ascendente, indica ênfase no princípio
linear, isto é, os termos para “mãe” e “pai” são usados somente em relação a pais
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
específicos na linha de descendência de um indivíduo. Esta mudança, junto com o
declínio da família extensão matrilocal, “está conectada com o surgimento da
família nuclear como a mais estável unidade de parentesco” (SHAPIRO, 1968: 22
apud WAGLEY, 1988, p. 115).
O intuito, então, de comunicar tais notas buscou, apenas, demonstrar que mesmo que
explicitamente o foco do projeto de tese não fosse pensar e discutir o trabalho dessas
antropólogas, não deixei de estar atenta a presença e contribuição dessas mulheres. Até
porque, a discussão feita por Shapiro sobre parentesco e festas-rituais dizem dos temas da
etnografia que venho realizando entre os índios Apyãwa. Todavia, há complexidades tais
em enveredar por tais caminhos relacionado a história das mulheres na ciência, uma vez
que, no caso delas, as referências são parcas ou mesmo difíceis de serem localizadas e
acessadas desde Brasil. O que leva a pensar na feitura de redes de pesquisas e na
constituição de grupo de trabalho.
Notas
[1]
1 So my book is also a labor of love, written to fulfill my obligation to my departed colleague and
friend and to attempt to organize my own understanding of the Tapirapé culture into na integrated
pattern. Herbert Baldus, when he wrote the warm dedicatory sentences cited above, was aware that
disagreed on certain points of fact and interpretation about the Tapirapé (WAGLEY, 1977, p. xi).
[2]
Essas fotos encontram-se também no Banco de Dados do Laboratório de imagem e do som em
antropologia da Universidade de São Paulo.
[3]
Este frei esteve presente com outros religiosos da Missão Dominicana entre os Tapirapé, que
atuaram durante muitas décadas na região do Araguaia.
[4]
Ver site <http://collections.smvk.se/carlotta-vkm/web/object/1979502>.
[5]
Atualmente, tais matérias fílmicos e fotográficos encontram-se no Banco de Dados Sophia do
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP: <http://bdados.mae.usp.br/Acervo_web/>.
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Tradução Elisabeth Mafra Cabral Nasser. Edição, Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada.
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WAGLEY, Charles; GALVÃO, Eduardo. The Tapirapé. Handbook of South American
Indians III. Washington: Smithsonian Institution. Bureau of American Ethnology. Bulletin
143, 1948.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Da árvore ao rizoma: um estudo das urnas mortuárias pensando os
contatos-identidades-alteridades no Triângulo Mineiro, norte de São Paulo
e sul de Goiás durante o período colonial
Tayná Bonfim Mazzei Mazza (UFU)
Orientador: Marcel Mano
Introdução
Esta pesquisa conjuga interesses da Antropologia, da Arqueologia e da História ao
discutir registros arqueológicos de urnas mortuárias na região do Triângulo Mineiro, norte de
São Paulo e sul de Goiás durante o período colonial. Com base numa série de materiais
arqueológicos, documentais e bibliográficos disponíveis estuda-se esses registros pensando os
contextos de contatos intertribais e interétnicos que se desenvolviam neste período e região,
tendo em vista o processo contínuo de construção e reconstrução de identidades quando do
encontro de diferentes alteridades. Estes encontros, fluxos, interstícios, são estudados a partir
do rizoma, em que “qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.”
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 14), que permite compreendermos a etnologia, a história
indígena e as tradições arqueológicas não como unidades fechadas em si, mas como sistemas
de organização do conhecimento abertos, contidos de dimensões, ramificações, linhas e
trajetos de diversas semióticas.
O ponto de partida desta pesquisa encontra-se nos relatos do memorialista
Hildebrando Pontes, em seu trabalho História de Uberaba e a civilização no Brasil central,
datado de 1930. Pontes descreve o achado de urnas mortuárias em diferentes oportunidades
na proximidade da cidade de Uberaba, no coração do Triângulo Mineiro. Dentre as urnas
descritas, duas delas despertariam por certo a curiosidade de qualquer cientista social numa
leitura atenta. Uma destas urnas foi encontrada quando da construção da chamada Ponte do
Surubi, na localização do barranco direito do Rio Branco, uma ponte exaurida ainda na
década de sessenta, dando lugar a construção da Usina Hidrelétrica dos Peixotos, na represa
dos Peixotos, cidade de Delfinópolis/ MG. Descrevendo a urna, Pontes (1930, p. 13) afirma
que “Naquelas imediações, em 1903, foi descoberta uma igaçava ou igaçaba, na qual
encontraram, de mistura com ossos, uma bela cruz de ouro, com letras.”.
A segunda urna descrita foi encontrada em abril de 1894, no Capão do Mico, à vista
do arraial da Conceição de Araxá, hoje cidade de Araxá/ MG. Segundo Pontes, esta segunda
urna:
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“tinha dimensões muito maiores, envolvido em couro solidamente costurado. [...]
Era o cadáver de um índio velho, peito largo, rosto levemente triangular, maçãs do
rosto saliente e quase imberbe. [...] Na cintura, uma tanga de penas vistosas e nos
artelhos enfeites de penas de uma espécie de chocalho, que produzem sons agudos e
ásperos. Dentro havia, além de um arco e trinta flechas, uma aljava de couro de
cutia, uma rede e duas cuias cobertas de bordados extravagantes[...]. No fundo do
vaso, duas manchas, que o autor acha, sem dúvida, sejam provenientes da comida
que se derramou nas cuias, quando se deu o enterramento” [...]. Retirando o
invólucro, uma verdadeira maravilha se deparou a todas as vistas pela profusão de
desenhos toscos, em que o vermelho e o amarelo gritam, num colorido quente e
belíssimo, colorindo a talha toda. (PONTES, 1930, p. 14).
Tendo em vista as descrições, podemos pensar algumas questões que nos chamam a
atenção, quais sejam:
(I)
A existência de uma cruz de ouro com letras junto aos ossos dentro de uma urna
mortuária; e
(II)
A existência de ampla decoração na segunda urna.
No primeiro caso, é evidente que o artefato cristão em urna indígena evidencia como
as redes de contato transportam elementos materiais e representações simbólicas, pois
nitidamente estão aí associados dois universos ritualísticos funerários inicialmente diferentes.
No segundo caso – o da urna policrômica - sabe-se que, tradicionalmente, as tais urnas
mortuárias, cerâmicas de decoração pintada ou corrugada, e ligadas a enterramentos, foram
associadas aos povos indígenas da Tradição Tupiguarani. No entanto, estudos arqueológicos
(FAGUNDES, 2015) e de história indígena (MANO, 2015), indicam que a região em foco
(Triângulo Mineiro) foi ocupada por grupos da família linguística Jê, conhecidos na
documentação do XVIII pelo termo de “Cayapó”. Pois que somos levamos a nos perguntar o
porquê do achado de urnas mortuárias características da Tradição Tupiguarani, no passado e
no presente, em regiões de ocupação historicamente Jê.
O exercício aqui realizado não se tratou de dar respostas a cada uma dessas
inquietações, mas de ter como fronte o desafio de construir quadros mais abrangentes a
respeito das ocupações indígenas na presente região, que possam desvendar ou dar luz aos
contextos de enterramento dessas urnas, que puderam fazer delas elementos tão curiosos do
ponto de vista de suas características híbridas. Acredita-se que uma das portas para a
compreensão desses achados seja a dinâmica dos contatos que se deram nessa região e
período histórico (colonial), a partir do diálogo entre a Arqueologia, Etnologia e a História,
tendo em vista os fluxos de diferentes grupos e alteridades, num contínuo de rupturas e
continuidades que são expressão do existir e resistir no mundo.
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Do material à vida
Sabe-se que a Arqueologia no Brasil ganhou evidência a partir da criação, na década
de 1960, do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), que esteve sob a
coordenação de Betty Meggers e Clifford Evans. Desde o advento do programa foram
realizadas inúmeras pesquisas de cunho histórico-culturalista, com a intenção de entender
fenômenos de origem e dispersão dos grupos humanos pelo território, atentando para a
difusão de aspectos culturais; fazendo o esforço (talvez precipitado) de conectar os registros
arqueológicos encontrados à identidade étnica e cultural dos povos que puderam ter ocupado
determinada região. E muito embora um programa de grande expressão, empreendeu por
anos a tarefa não tão grata de adequação de sítios e vestígios materiais à constituição de
“tradições” e “fases” no Brasil, deixando de lado o aspecto dinâmico desses artefatos e
ocupações humanas.
Dentre as classificações que culminaram nas Tradições Arqueológicas temos a
diferenciação entre as Tradições Tupiguarani e Aratu-Sapucaí. A primeira tradição é definida
de acordo com Brochado (1980), como cerâmicas confeccionadas pela técnica do
enrolamento em espiral de cordões de barro, e apresentam um cozimento incompleto. As
vasilhas podem ser (a) sem decoração, apenas alisadas, (b) apresentar decoração plástica ou
(c) pintada, isto é, decoração policrômica (vermelho ou preto sobre engobo branco ou
vermelho), corrugada ou escovada. Já a Tradição Aratu-Sapucaí1, é definida por (SCHMITZ
et al, 1982, p. 49) como vasilhas predominantemente simples, produzidas por antiplástico
mineral e formas esféricas e ovoides grandes; urnas funerárias piriformes sem decoração,
lisas e vasos geminados.
Apesar de representar avanços, pois é certo de que as tradições arqueológicas são
modelos de organização do conhecimento, também é certo que toda classificação é, em certa
medida, um modo de desumanização. Por muito tempo a classificação em tradições rejeitou
aqueles artefatos que não se encaixavam nos modelos, deixando os elementos “intrusos”,
como se convencionou chamar, relegados a segundo plano. Com base nesse Programa de
Pesquisas, e como acima mencionado, os estudos arqueológicos empreendidos na região no
Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás passaram a identificar a área como
ocupada no passado por povos pertencentes à tradição Aratu-Sapucaí. Em 1980, Márcia
Angelina Alves dá início ao “Projeto Quebra Anzol”, realizando pesquisas arqueológicas nas
regiões do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro, com prospecções e escavações no vale do
Paranaíba. As primeiras pesquisas se desenvolveram no Município de Perdizes, Vale do
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Quebra Anzol, por ter sido a primeira cidade a coletar vestígios materiais de terrenos, como
uma urna funerária, tigelas, potes, raspadores etc. (ALVES, 1992).
Logo em seguida, com o crescimento desse projeto, vários sítios passaram por
processos de prospecção e escavação, como o sítio Silvia Serrote, no Município de
Guimarânia; o sítio Rezende, nos vales do Piedade e Paranaíba – divisa com o Estado de
Goiás; o sítio Inhazinha, localizado nas jazidas arqueológicas no Município de Perdizes; o
sítio Menezes, na Fazenda São Francisco do Borja, também em Perdizes; e o sítio Rodrigues
Furtado, na Fazendo Morro da Mesa (ALVES, 1992). Mais tarde, essa mesma equipe
desenvolveu o “Projeto Turvo”, localizado no Município de Monte Alto/SP, onde houve a
localização e reconhecimento de áreas arqueológicas, sendo realizados resgates de sítios
arqueológicos como o de Água Limpa (RASTEIRO, 2015, p. 56).
Estes estudos identificaram estes sítios arqueológicos como provenientes de
comunidades de horticultores-ceramistas, nômades, vivendo da caça, da coleta e pesca, tendo
sua cultura material voltada a produção de “uma cerâmica lisa, utilitária e funerária”, além de
viverem em “cabanas ovaladas que formavam verdadeiras aldeias” (ALVES, 1992, p. 37).
Marcelo Fagundes, em seus estudos a respeito da arqueologia no Triângulo mineiro também
indica características semelhantes a respeito da cultura material da região, sendo “cerâmica
representada por cacos bem alisados em sua maioria, geralmente grossos (...) de vasilhas
grandes, provavelmente urnas, até vasilhames bem pequenos.” (FAGUNDES, 2015, p. 141).
Assim como indica João Cabral de Madeiros, em sua pesquisa a respeito dos sítios Inhazinha
e Rodrigues Furtado, no Município de Perdizes, em Minas Gerais,
Diante do exposto, pode-se concluir, que de acordo com os dados corroborados pela
literatura e por meio dos estudos técnicos, que as características da cultura material,
cerâmica e lítica, dos sítios Inhazinha e Rodrigues Furtado são compatíveis com o
que já foi descrito para as populações pretéritas filiadas à tradição Aratú-Sapucaí.
(MEDEIROS, 2007, p. 226).
Apesar dessa aparente unanimidade, uma série de relatos e pesquisas indicam, num
mesmo sítio arqueológico, a ocorrência de materiais que possuem características diferentes
daquelas apontadas pela “tradição de base”. Seriam então “sítios arqueológicos complexos”,
num entendimento dos sítios arqueológicos com artefatos plurais, tais como os achados das
urnas descritas por Hildebrando Pontes (1930) para o Triângulo Mineiro. Exemplos que
servem de motivo para pensar não a intrusão, mas a imbricação de elementos de diferentes
culturas que circulavam em redes por uma determinada região, cuja expressão, na região em
foco, pode ser ilustrada a partir da história dos contatos dos grupos Jê meridionais com seus
diferentes outros.
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Embora não se possa propor uma associação direta entre as tradições arqueológicas e
os grupos historicamente mencionados nas fontes, a escavação recente nessa mesma região
de sítios agricultores ceramistas históricos, datados entre a metade do século XVIII e meados
do XIX, também foram identificados como Aratu-Sapucaí (Magalhães, 2015); assim como a
mencionada “cruz de ouro com letras” na urna indígena descrita por Pontes (1930) que é
indiscutivelmente do período histórico, tornam possível a associação, no mesmo período
(colonial) e área, com povos indígenas denominados nas fontes por “Cayapó”. O termo
“Gentio Cayapó” aparece na documentação histórica em 1723, quando o sertanista Antônio
Pires de Campos entra em contato com grupos da bacia do Paranaíba, no atual sul de Goiás.
Esse sertanista escreve que "Este gentio é de aldêas, e povoam muita terra por ser mui'a
gente, cada aldêa com seu cacique..." (CAMPOS, 1976, p. 181). Embora muito encontrado
posteriormente em relatos de viajantes, cartas, descrições, essa nomenclatura não nos
esclarece de fato quem eram esses povos, já que o termo é de origem exógena, Tupi, e
significa “como macaco” (TURNER, 1992).
Ao que parece, “o termo “Cayapó” é um apelativo aplicado por um olhar estrangeiro a
uma série de grupos provavelmente associados aos Jê meridionais.” (MANO, 2015, p. 520).
Por isso, devemos nos atentar que, assim como as denominações arqueológicas das tradições,
as denominações que aparecem nos documentos históricos, como “Cayapó”, e os modelos
etnológicos são generalizações que escondem uma realidade muito mais complexa. Se a
realidade é múltipla, os modelos fechados não comportam a realidade, mas parte dela. E
como indicam Deleuze e Guattari (2011), não basta dizer o múltiplo, já que “nenhuma
habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir”
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 21). Nesse sentido, é necessário encontrar o múltiplo nas
dimensões de que dispomos, seja a partir dos materiais, dos documentos ou das dinâmicas
culturais, e fazê-las serem vistas, ouvidas, pensadas e pronunciadas.
Sítios arqueológicos encontrados e estudados na presente região demonstram
variabilidade material, vestígios de diferentes tradições em um mesmo local, “fazendo com
que pesquisadores (ROBRAHN-GONZÁLES, 2000; AFONSO, 2005; MANO, 2006)
começassem inclusive a “iniciar um debate ao tratar o estado de São Paulo como terra de
fronteiras”. (RASTEIRO, 2015, p. 55). E não apenas em São Paulo, mas na área que abrange
todo o Planalto Meridional. A arqueóloga Camila Moraes em pesquisas realizadas no limite
do estado de São Paulo e Minas Gerais, indica que no Sítio Água Vermelha 2, não obstante as
cerâmicas encontradas serem de formas duplas e sem decoração, características relacionadas
à Tradição Aratú-Sapucaí,
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Segundo Robrahn-Gonzalez et alii (1998), a ocupação do sítio Água Vermelha 2
estaria relacionada ao processo de diversificação cultural ocorrido na região centrooeste, entre os séculos IX e X. Algumas características da cerâmica, como uso do
caco moído como antiplástico e as formas compostas, seriam associadas à
influência Tupi e o uso de cariapé aos Grupos Uru, indicando cerâmicas de origens
variadas como encontradas no Brasil Central. (AFONSO & MORAES, 2005/2006,
p. 61).
Estas observações ficam claras nas pesquisas de Pereira Jr. sobre os dados que ele pôde
coletar em estudos realizados na região de Franca/SP, quando assinala que,
Devemos fazer notar, entretanto, que em dados casos, entre restos abundantes dessa
cerâmica preciosa tida como de origem tupi-guarani, ocorre um ou outro fragmento
de material que, pela sua apresentação sugere origem diferente, enquanto que em
locais ocorre o contrário, ou seja, o encontro dessa cerâmica melhor entre os restos
de outra mais grosseira acentuadamente diversa. (PEREIRA JR, 1957, p. 134; apud
RASTEIRO, 2015, p. 66).
O mesmo ocorre no relato exposto acima do memorialista Hildebrando Pontes, do
encontro de uma urna na cidade de Araxá, semelhante às descritas entre os Tupinambá, com
características da Tradição Tupiguarani, isto é, cerâmica de decoração e ligada a
enterramentos, em área de ocupação historicamente Jê. Os relatos de Hildebrando mostram
não apenas os contatos intertribais, como também interétnicos, mostrando como no período
colonial os agentes históricos são diversos e as trocas são transculturais.
Essa variabilidade material encontrada nestes sítios nos indica fluxos de povos no
período pré-colonial e colonial que se deram na região do Triângulo Mineiro, norte de São
Paulo e sul de Goiás, indicando ocupações e reocupações dessa região, assim como a clara
situação de contato entre diferentes alteridades, que permitiram tais evidências nos vestígios
materiais encontrados. Tais indícios já apontam para a questão de que os povos indígenas no
Brasil jamais foram imóveis, relegados a ocupação de apenas uma área por toda a sua
existência, mas pelo contrário, sempre estiveram em movimento, ocupando diferentes
espaços, às vezes até concomitantemente.
Um exemplo etnográfico talvez possa ser situado no caso dos povos Tupi2, que não
viviam apenas no litoral brasileiro, mas ocupavam também trechos ao longo do curso do
Amazonas, interrompidos por outros trechos ocupados por falantes de línguas Aruak, Karib,
Tukano e outras menores. (BROCHADO, 1989, p. 66). As comunidades falantes Tupi se
estendiam, de forma interrompida, desde a desembocadura do Amazonas, até o Atlântico,
inclusive ocupando terras baixas “rodeando os planaltos brasileiros habitados por falantes de
línguas do Tronco Macro-Jê.” (BROCHADO, 1989, p. 66-67). O que poderia ter permitido
uma série de contatos interétnicos, tendo como pressuposto a transmissão e predação de
elementos culturais entre os diferentes povos.
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Devemos ter por certo que, seja no período histórico ou pré-colonial, os grupos
humanos sempre se constituíram pelos inúmeros contatos. No presente, como no passado,
uma série de rupturas e continuidades se deram: agenciamentos, alianças, guerras, vivências,
predações, ressignificações, de modo que as populações estão constantemente em processo de
produção de suas vidas, passando por contínuos momentos de transformação. O que parece
importar, não é a imagem cristalizada que se atribui a essas populações indígenas e à sua
expressão material, mas sim o processo, a vida, o devir, o acontecimento do processo daquele
material, que não tem um fim.
Em face das contribuições de Tim Ingold (2015) para a Arqueologia, em específico, e
para as Ciências Humanas, em geral, devemos compreender que ser, não é estar em um lugar,
mas estar ao longo de caminhos. Portanto, devemos ser capazes de nos utilizarmos das
Tradições Arqueológicas não enquanto encerramento, mas enquanto movimento de abertura,
enquanto ponto de partida de um processo de expansão do conhecimento muito maior, que
nos leva a dinâmica das relações humana e animal. Não pensando somente o material, mas a
vida. Segundo Ingold, “se nossa preocupação é habitar este mundo ou estudá-lo, (...) a nossa
tarefa não é fazer o balanço de seu conteúdo, mas seguir o que está acontecendo, rastreando
as múltiplas trilhas do devir, aonde quer que elas conduzam.” (INGOLD, 2015, p. 47). Para
traçar essas trilhas, não devemos nos ater apenas ao material, mas ir de encontro aos
itinerários e dinâmicas humanas que permitiram a produção e significação dos elementos
materiais. A História e Etnologia trazem suas contribuições aos aspectos imateriais, ao
englobar na teia de significados as alteridades, identidades, humanidades dos povos que
estiveram em contato.
As trilhas do devir: da história à cultura
Os relatos descritivos e os documentos históricos produzidos durante o período
colonial posicionaram os indígenas em relação aos agentes coloniais, criando tensões “entre
as políticas que buscavam ou assimilar ou excluir as populações indígenas” e “acirrava-se a
disputa entre aqueles que defendiam a “civilização e catequese” e aqueles “parciais ao
afastamento ou mesmo extermínio das populações nativas.” (MONTEIRO, 2001, p. 29). Daí
nasceram as respectivas visões da aculturação e do extermínio dos povos indígenas. Fadados
ao movimento de uma força primeira que lhe é exterior, a história indígena foi compreendida
como linear ou, às vezes no simétrico oposto da aculturação, como a resistência de uma
história cíclica.
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Por esta realidade, sabe-se hoje que antes mesmo de se estudar, pesquisar e escrever
sobre a história indígena no Brasil, “é preciso antes rever a tendência seguida por sucessivas
gerações de historiadores e antropólogos que buscaram isolar, essencializar e congelar as
populações indígenas em etnias fixas. [...]” (MONTEIRO, 2001, p. 24). Se a história tem sido
opaca, ofuscada, desleal, segundo Carlo Ginzburg (1989, p. 177) “existem zonas privilegiadas
– sinais, indícios – que permitem decifrá-la”, buscando-se a construção de uma história fora
de essencialismos, binarismos, e imagens folclóricas, mas pelo contrário, uma história em que
os indígenas “apareçam como sujeitos históricos que agem politicamente a partir de
interesses próprios, continuamente transformados nas dinâmicas de suas relações sociais.”
(ALMEIDA, 2011, p. 33 apud FERREIRA FILHO, 2015 p. 12).
Tendo em vista estes cuidados, adentramos as trilhas do devir que constituíram a
história indígena do Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás, que permitiram o
contato de uma série de agentes em processos dinâmicos de guerras, alianças, trocas,
consumos, que possibilitaram a produção de vestígios materiais com características híbridas,
e sítios arqueológicos complexos. Segundo Robert Mori (2015, p. 13) o Triângulo Mineiro e
parte do Alto Paranaíba era conhecido até meados do século XIX como “Sertão da Farinha
Podre”, quando as bandeiras paulistas avançavam em busca de riquezas. Ao longo da história
outros nomes foram dados à região, como “Sertão do Gentio Cayapó”³, sendo a região do
Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba na época correspondentes ao sul da Capitania de
Goiás.
No período colonial, os Kayapó, associados aos Jê Meridionais, parecem ter ocupado
um extenso território desde o norte de São Paulo até as imediações do Distrito Federal, e no
sentido leste – oeste, do atual Triângulo Mineiro até ao norte do Mato Grosso do Sul.
(MANO, 2015, p. 521). Entre esses grupos deviam existir hordas de “Cayapó” meridionais,
dos quais os Panará são remanescentes (GIRALDIN, 1997), mas é possível assinalar a
existência de outros povos indígenas dos Jê Meridionais e também não Jês que estavam nos
limites desse território, tais como os Payaguá, os Xacriabá, os Xavante, os Avá-Canoeiro e os
Bororo. (GIRALDIN, 1997, p. 57). Com base nisso, Robert Mori (2015, p. 25) propõe que a
existência de outras etnias indígenas na mesma área de ocupação dos Jê Meridionais –
“Cayapó” pode ter favorecido que outros grupos indígenas que também tenham empreendido
ataques, conflitos e mortes fossem associados à generalização do termo “gentio Cayapó”.
O contato dos Jê Meridionais com os não-índios teve início já nas primeiras décadas
do século XVII. Segundo Vasconcelos (2013), a partir de documentos históricos, têm-se
evidências de que por um período esse contato foi pacífico e de que as aldeias indígenas
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serviram de ponto de parada e reabastecimento das bandeiras paulistas que adentravam o
Brasil Central. Não tardou, porém, para que essa realidade começasse a mudar e as guerras
passassem a ser impetradas por ambos os lados. Do lado não índio, a expansão da economia
mineradora assinalava o motivo fundamental do bandeirismo: a necessidade crônica de mãode-obra indígena para a manutenção da agricultura paulista. (MONTEIRO, 1994, p. 57) e a
limpeza ou desinfestação dos caminhos que levavam às minas. Do lado indígena, e como já
foi proposto (MANO, 2011; 2012), a guerra parece ter sido parte do regime relacional e
simbólico de relação desses grupos Jê com algumas de suas alteridades, num claro processo
de predação exterior para produção interior. Do encontro dessas duas lógicas decorreu uma
das mais longas e sangrentas guerras entre índios e não índios na América colonial
portuguesa.
Houveram diferentes formas de combater o “gentio Cayapó”. A primeira “solução”
encontrada, vinda da Câmara de São Paulo, “foi a proposta de criação de duas campanhas
pagas e lideradas por um comandante”. (MORI, 2015, p. 32) que pouco efeito surtiu. Nesse
contexto o Conde de Sarzedas e Dom Luís Mascarenhas, autorizam qualquer morador da
região a realizar combates contra esses grupos e “dar por captivos todos os que apanharem”
(MASCARENHAS, 1740 apud MORI, 2015, p. 33). A solução seguinte foi a construção de
aldeamentos na região do atual Triângulo Mineiro, entre o rio Grande e Paranaíba, para
receber índios de diferentes etnias (Bororo, Xakriabá, Pareci, Javaé, Kurumaré),
administrados por Antônio Pires de Campos e autorizados a fazer guerra ofensiva ao “gentio
Cayapó”.
Apesar de todas essas tentativas, a resistência desses grupos foi uma constante e seus
ataques perpetuaram-se mesmo após o aldeamento em Maria I. Esse fato deve ser explicado
não apenas pelo desejo de sobrevivência, mas também ao desejo de predar o outro ou, como
dissemos acima, porque a guerra foi parte do regime relacional e simbólico desses grupos
com a alteridade (MANO, 2011; 2012) que implicou, entre outros, no saque de bens
simbólicos e materiais de seus outros para alimentar a sua própria cultura. E o modo mais
eficaz de se predar a alteridade para “Gentio Cayapó” foi a guerra. Seu poderio bélico foi
descrito em diversas ocasiões, e desde a primeira descrição desses grupos feita por Antônio
Pires de Campos:
As armas de que usam são arcos muito grandes e flechas muito compridas e grossas,
e também usam muito de garrotes, que são de páu de quatro ou cinco palmos com
uma grande cabeça bem feita, e tirada, com os quais fazem um tiro em grande
distância, e tão certo que nunca erram a cabeça; e é a arma de que mais se fiam, e se
prezam muito dela. (CAMPOS, 1976, p. 182).
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
De acordo com Giraldin (2001) e Mano (2011) a maior parte dos relatos de ataques
dos Jê Meridionais apontavam um mesmo padrão: “matavam todos, pilhavam bens que
podiam carregar e queimavam as casas.” (GIRALDIN, 2001, p. 63). Por essa estrutura de
ataques contra os não índios, a guerra servia para realizar a predação das partes objetiváveis
do outro, do “inimigo”, numa destruição de corpos “inimigo” e apropriação de seus bens para
a produção de corpos em seu interior. Por isso, a destruição do exterior implica na construção
de pessoas no interior; ocorrendo, assim, como já propôs Carlos Fausto (2001) para os Tupi,
na predação canibal, o consumo produtivo, quando da incorporação do “outro” para a
construção do “nós”. Por isso, assim como para os grupos Tupi existe abertura ou uma força
centrífuga, os povos Jê não são fechados ou centrípetos, mas estão constantemente se
movimento entre os dois pólos, pois ora se abrem para o exterior, predando o outro, o
inimigo, tomando-lhe partes; ora se fecham, ressignificando aquilo que foi tomado como ser
constitutivo da sua própria cultura.
Ao que se pode constatar, as sociedades indígenas vivem num processo histórico
contínuo que opera num misto de permanência e mudança, estrutura e evento. Ideia esta
proposta por Marshall Sahlins (1987), em Ilhas de História, quando ele afirma que a história é
culturalmente ordenada, tanto quanto a cultura é historicamente ordenada. Partindo deste
pressuposto, ele indica que:
A História é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades,
[...] esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor
grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. [...] a cultura é
historicamente reproduzida na ação. [...] as circunstâncias contingentes da ação não
se conformam necessariamente aos significados que lhe são atribuídos [...]. É nestes
termos que a cultura é alterada historicamente na ação (SAHLINS, 1987, p. 7).
Marshall Sahlins compreende o misto entre estrutura e evento, ou seja, a junção entre
estrutura e práxis histórica, pois os indivíduos agem e movimentam a história de acordo com
seus interesses e circunstâncias. E mesmo que a ação seja realizada a partir de pressupostos
culturais daquele indivíduo, a práxis, a ação humana será capaz de movimentar essa estrutura,
as redefinindo constantemente, numa atualização, já que a transformação de uma cultura é
também modo de sua reprodução.
Podemos perceber tanto pela mitologia, quanto pela história do contato do século
XVIII que desde os tempos míticos até o presente, as inovações nos modos de vida dos Jê
Meridionais são, em grande parte, fruto de aquisições feitas em terras alheias, através de
outros grupos humanos. Percebemos essa predação ontológica a partir do mito do gavião-real
gigante, que permeia a cosmologia dos Jê Meridionais. Nesse mito, são apresentadas as
personagens dos irmãos Ngôkon-Kry e Kukryt-Twiri que tiveram papel importante na
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formação da nação desse povo. O gavião foi tido como culpado pela morte de sua avó e
tiveram que travar uma luta contra esse grande gavião procurando vingança. Um dos irmãos,
Ngôkon-Kry foi lá fora, flechou-o e furou-o com sua lança. Depois bateu na cabeça
dele com sua borduna. [...] arrancou uma pena branca do gavião-real e colocou-a na
cabeça. Pintou-se de preto. [...] Os rapazes (mebengàdjyre) arrancaram suas penas e
jogaram-nas para cima dizendo: “Virem aves!” Transformando-se em mutum. É por
isso que, hoje em dia, há espécies diferentes de aves. (LEA, 2012, p. 34).
Nesse mito percebemos a tomada de bens e riquezas materiais e imateriais.
Adquiriram os adornos plumários, mas não só, através dessa batalha conquistaram a criação
de várias aves, assim como adquiriram a glória, o prestígio. Quando os Jê Meridionais entram
em contato com os não-índios a partir do século XVIII, da mesma forma que predaram o
“outro” no tempo mítico, eles predam esses não-índios, pilhando objetos, adornos, e bens
simbólicos.
Segundo César Gordon,
Seja como for, é possível dizer que no caso mebêngôkre, diferentemente do caso
tupi, a morte de um inimigo tem menor produtividade que aquilo que
fenomenologicamente aparece-nos como um „roubo‟. O signo da apropriação
mebêngôkre não é o canibalismo – sabemos que eles não são canibais, não comem o
inimigo –, o signo é uma espécie de captura. (GORDON, 2006, p. 99).
Assim, temos que “Trata-se menos de capturar o corpo (ou partes do corpo) e o
espírito do inimigo do que sua cultura (imaterial e material), ou sua riqueza, sua beleza,
enfim, suas propriedades não imediatamente corpóreas [...]” (GORDON, 2006, p. 97 apud
JUNQUEIRA, 2017, p. 71). Portanto, os Jê Meridionais “têm como motivação da guerra
predar ontologicamente a cultura do outro e adquirir objetos desta outra cultura, sendo,
portanto, a guerra uma forma de conservação do contato com o mundo exterior.”
(JUNQUEIRA, 2014, p. 20). Esta predação da alteridade nos confere certa possibilidade de
afirmar que a cruz de ouro encontrada junto aos ossos dentro de uma urna mortuária, nos
relatos de Hildebrando Pontes expostos acima, se devem a essa predação, à tomada de bens
objetiváveis, como poderia ter sido a cruz, que incorporada e ressignificada, passou a
constituir parte do universo material e simbólico daquele indivíduo enterrado na urna.
Não obstante o contato com os não-índios, pelo seu modo de ser e predar, os Jê
meridionais também estabeleceram redes de contato com diferentes outros. Segundo Marcel
Mano (2015), a área que compreende o Triângulo Mineiro, oeste de Minas e sul de Goiás foi
palco de uma complexa rede de contatos entre diferentes agentes históricos. Desde a década
de 1730,
Uma itinerância da sociedade colonial em direção aos sertões colocou em
movimento sujeitos de diferentes estamentos sociais: homens livres pobres,
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
mestiços, negros forros, foragidos, garimpeiros, roceiros, índios escravos, agentes
do poder colonial etc. (Amantino, 2001; Barbosa, 1971; Souza, 2004) se
locomoviam desde o oeste de Minas cruzando o alto rio São Francisco e a Serra da
Canastra em direção ao atual Triângulo Mineiro e sul de Goiás. Mas ao se porem
em marcha, esses diferentes sujeitos entraram ainda em contato com diferentes
outros. (MANO, 2015, p. 512).
Os Jê Meridionais tiveram sua imagem construída pelos não-índios, como sendo
aqueles “bravios”, “selvagens”, a que “tudo levam de traição e rapina” (CAMPOS, 1976 apud
MANO, 2015, p. 519). Mas ao contrário do que se poderia supor, por mais que a guerra fosse
constitutiva do próprio modo de ser desses povos, eles fizeram alianças e movimentaram seus
interesses de acordo com os diferentes agentes históricos que entraram em contato. À
exemplo da aliança realizada com os negros fugidos, quando houveram “trocas mútuas, ações
conjuntas e alianças entre os “gentios” e os “calhambolas”4 (MANO, 2015, p. 524).
Nesse sentido, índios e negros mantiveram intricadas relações no século XVIII, e cabe
ressaltar, de acordo com Daniela Santos Alves, que “a continuidade e existência dos
quilombos por longos períodos estão intimamente relacionadas com as ajudas de agentes
externos e internos” (GUIMARÃES, 1996; AMANTINO, 2001; RAMOS, 1996 apud
ALVES, 2017, p. 47). Ao que tudo indica, alianças podem ter se realizado devido aos
semelhantes modos de tratamento que a Coroa Portuguesa mantinha com os índios e negros
fugidos, de intenso combate e violências de todas as formas, assim como por sua reação de
resistência e luta contra o controle cruel dos portugueses. Contatos, trocas, agências,
dinâmicas que nos permitem pensar de que forma poderia se dar a construção e
(re)construção de identidade étnica dos Jê Meridionais no período colonial, por estarem em
contato com diferentes agentes, e passarem por processos contínuos de autodeterminação
diante de diferentes alteridades.
A construção da identidade étnica no entre-lugar
A crença de que a cultura é estática, essencializada, imutável, foi dada enquanto mito
e enquanto farsa. Enquanto mito pois ainda é presente nas leituras de mundo de senso comum
que o indígena, para ser indígena, deve ser puro, aquele relegado a seu passado, vivendo em
matas, desprovidos de roupas, com a mesma cosmologia de sempre e sem se utilizar qualquer
máquina ou falar a língua portuguesa. Enquanto farsa porque essa crença não se constitui ao
léu, mas é revestida de propósitos políticos que buscam deslegitimar os povos indígenas
enquanto tais, destituí-los de sua identidade, de sua pertença a si mesmos, para que assim se
lhes possa sacar a terra, atributo tão importante na constituição do ser indígena.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Na contramão desta crença tão bem dissimulada por agentes do poder, se encontra a
acertada constatação de que a cultura é processo dinâmico, é movimento, é transformação.
Manuela Carneiro da Cunha em seus extensos estudos sobre a etnicidade afirma
categoricamente que “a cultura não é algo dado, posto, algo dilapidável também, mas sim
algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados; e é preciso
perceber a dinâmica, a produção cultural.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 239). Assim
temos por certo de que o próprio existir no mundo, e o existir em relação à alteridade, nos
tornam seres em constante processo de mutação. Nenhum povo é fixo, mas se movimenta,
encontrando em todos os lugares aonde chega os seus contrários, permitindo com que o ato
de afirmar e o de incorporar se confunda num só ethos.
Tendo em vista a cultura enquanto constructo inacabado, poderíamos conceber a
identidade da mesma forma. Se num momento se aguçam os elementos e representações que
são particulares de um grupo frente a alteridade, numa reivindicação política ou para se
elucidar a realidade deste grupo social; num outro momento o movimento é de abertura, de
contato, de predação desta alteridade e de ressignificação e re (construção) desta identidade.
Posto que a identidade é atributo simbólico, e enquanto tal está disposta às intrincadas redes
de significação que os homens produzem e são parte.
Pois que, a identidade só poderia se constituir e (re) constituir de forma relacional, se
formando em pontos de encontro, entre séries de variáveis, dentro de um cambiável sistema
interétnico. Considerando a identidade enquanto relacional, Friedrik Barth foi um dos
precursores em direcionar os estudos sobre a identidade não mais para dentro dos grupos
étnicos, mas para a fronteira, baseando-se na premissa de que toda cultura é descontínua, isto
é, dinâmica. Isto indica que - contrariando a visão equivocada de que é a distância e o
isolamento de um grupo social que mantém a diversidade cultural - “as fronteiras étnicas
permanecem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam.” (BARTH, 1997, p. 26). As
categorias étnicas são mantidas apesar e em detrimento dos contatos estabelecidos, em
movimentos de exclusão e incorporação, em transformações nas formas de pertencimento ao
longo dos fluxos da história, que desde a origem são sempre diversificados.
A fronteira que nos interessa é a social, e sua manutenção é dada quando do constante
contato entre grupos com diferentes culturas. O que mantém os grupos étnicos é a evidência
dos traços marcantes de sua cultura em detrimento da cultura do outro, mas isso não quer
dizer que não haja troca, interação, incorporação a partir do contato. Nas fronteiras, se por um
lado os grupos se certificam da garantia de certas persistências, por outro permitem e são
parte da incorporação de códigos e valores externos a serem ressignificados.
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Nesse sentido, a continuidade de uma etnia é mantida na medida em que um grupo, a
partir de traços culturais internos e externos, dentro de um repertório cultural disponível,
simbolicamente se autodesigna enquanto tal, delimitando suas fronteiras de diferenciação,
não obstante, estabelecendo contatos que lhes trarão experiências de renovação de seus traços
culturais. Segundo Paula Monteiro, isto nos permite compreender que a identidade não é dada
em termos de uma natureza essencial a cada grupo social, mas é na verdade um “jogo
simbólico no qual a eficácia depende do manejo competente de elementos culturais.”
(MONTERO, 1997 p. 63).
Manuela Carneiro da Cunha (2009) já indicava que as comunidades étnicas são
formas de organização política muito eficientes para resistência e conquista de espaços. E nos
indica que:
A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso
contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função,
essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste [...]. A
cultura tende ao mesmo tempo a acentuar, tornando-se mais visível, e a se
simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam
diacríticos. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 237).
Tendo em vista estas constatações, poderíamos certamente afirmar que a identidade
dos Jê Meridionais jamais poderia ser dada em termos de uma unidade, na medida em que
diante de diferentes agentes na história, esses povos acionaram diferentes identidades, num
jogo consciente de escolhas de diferentes formas de lidar com o outro. Segundo Marcel
Mano,
“várias diferenças ajudaram a construir e a reconstruir a identidade desses índios no
período em foco. Ao invés de uma identidade única e inequívoca, parte dos dados
sugere, ao contrário disso, a constituição de uma complexa e intricada rede de
representações e ações desses índios sobre seus diferentes outros.” (MANO, 2015,
p. 524).
Home Bhabha (1998) em O local da cultura, nos indica que para entendermos essas
complexas redes de representações e ações de diferentes agentes históricos, não devemos
focar nossos pensamentos nos polos: passado e presente, interior e exterior, inclusão e
exclusão, puro e impuro, tradição e modernidade, primitivo e civilizado, já que estes são
modelos fixos e essencializados que não dão conta da realidade empírica. Ele indica o sujeito
colonial como sendo aquele que se transforma a partir da incerteza que os contatos com os
diferentes outros vão gerar. Nas palavras de Bhabha, o sujeito se torna “o menos que um
duplo”, pois ele não perde a sua cultura, mas também não deixa de absorver traços da cultura
do outro, possuindo elementos culturais diversos em detrimento de seus contatos. É um ser,
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ou um povo, que é representação do outro através da mímica. Essa mímica revela este ser no
“entre-lugar”, na fronteira, onde se dão os contatos e as transformações e (re) construções das
identidades.
Tendo em vista a história indígena na região do Triângulo Mineiro, norte de São
Paulo e sul de Goiás a partir dos indícios, vestígios, pistas sobre os contato interétnicos e
intertribais que se deram, sobretudo na relação dos Jê Meridionais com diferentes agentes
históricos no período colonial, podemos afirmar, com base nas teorias pós-coloniais de
Bhabha, que a identidade desse povo é, como ele mesmo expressa, uma “fixidez deslizante”.
Isto é, há algo de fixo em sua identidade que sempre existiu de forma mais consistente; mas
por outro lado essa identidade sofre contínuos processos de construção e desconstrução, que
abre as possibilidades de deslizamento constantes em vias de aparecimento de um novo ser,
que não deixa de ser o que é, muito embora seja um outro mais complexo.
Nesse sentido, temos por certo que devemos buscar as respostas para construção da
identidade étnica nas figuras complexas híbridas, pois é justamente nos interstícios entre
esses polos que nascem as experiências intersubjetivas que nos permitem uma melhor
compreensão das complexas realidades existentes, como a dos Jê Meridionais, que ora
mantiveram sua relação de contato com o outro pela guerra, ora pelo comércio, ora pela
guerra em comum, ora pelas alianças, mas sempre manipulando a história a seu favor, na
medida em que são sujeitos históricos que constroem suas próprias historicidades.
Um pensamento que não apreenda o movimento, a mutação, a transformação de todas
as coisas não entende o múltiplo. Ao lado de cada polo dicotômico, coexistem milhares de
interstícios que levam de um a outro. Uma realidade que é múltipla, plural, transcultural,
necessita de uma metodologia que seja capaz de captar esse múltiplo. Não é pela raiz da
árvore do conhecimento que se melhor apreende o real, nem pelos polos binários. Segundo
Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, é pelo rizoma.
Num rizoma, há princípios de conexão que fazem com que qualquer ponto possa ser
conectado a outro, e deve sê-lo. Sem raiz, começo ou fim, os pontos não se fixam em
linhagens, hierarquias, cadeias biológicas, políticas, e econômicas, mas permeiam uma gama
de significantes e significados ao entorno de um signo. O rizoma não possui raiz, não
privilegia dimensões, mas age justamente no descentramento do conhecimento, não se
fechando em si mesmo, mas se abrindo a expor as múltiplas dimensões da realidade, seja
aqui, na Arqueologia, na História, na Etnologia.
Assim como na realidade, não há no rizoma unidade central, núcleo, raiz. Há a
multiplicidade de dimensões, que crescem, recuam, se encontram, se desencontram, voltam a
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se conectar, e se desenvolvem, sem regras a qual se submeter, numa conexão (quase) infinita
de possibilidades. E “essas multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de
fuga ou desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às
outras”. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 25). A realidade é rizoma na medida em que seus
múltiplos ramos se desencontram, se rompem, mas podem, a qualquer momento, se
reencontrar, reconstituindo um sujeito, reestruturando um significado, ressignificando um
signo.
Dessa forma, poderemos amplificar o olhar, permitindo alcançar o múltiplo. Na
Arqueologia, não se poderá mais olhar apenas para os objetos, a fim de classificá-los em
tradições, mas para as dinâmicas e processos intrínsecos àquele objeto que permitiram a sua
construção, pensar o sujeito que o produziu, o momento em que se produziu, porque se
produziu. Na História, poderemos enxergar processos rizomáticos, e não mais lineares,
circulares, espiralados, pois os fluxos nos mostram que não há uma história universal do
desenvolvimento humano, mas a história particular de inúmeras sociedades que estão em
contato umas com as outras. Em Etnologia, poderemos problematizar os modelos etnológicos
de classificação dos povos indígenas, pois não há etnia que não tenha se constituído pela
alteridade, sendo por si só um emaranhado profuso da vivência dos seus contatos. Por fim,
ainda compreender que a separação das áreas do saber não nos traz benefício, mas a cegueira,
e que o enxergar depende muito mais da capacidade em articular diferentes saberes, do que
de uma competência especializada.
Considerações finais
Partindo dos relatos de achados de urnas mortuárias na presente região se propôs dar
vida às urnas que não tínhamos em mãos para analisar. A partir dos questionamentos iniciais
se pôde levantar questões a respeito dos contextos de enterramento destas urnas, pensando os
contatos intertribais e interétnicos que se deram no período colonial. Demonstrando,
primeiro, que os sítios complexos são decorrentes de uma série de contatos que se
estabeleceram ao longo da história, e que talvez o exercício de encaixar sítios e artefatos em
tradições arqueológicas seja um exercício ingrato, na medida em que se desconsideram as
dinâmicas dos povos que produziram aquele material, tendo por certo de que os elementos
tidos por tanto tempo como “intrusos” são tão parte constitutiva dos sítios quanto qualquer
outro.
Quanto a história indígena da região do Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul
de Goiás, a partir de uma busca pelos indícios, sinais, evidências contidos nos documentos
históricos, se mostrou também complexa, repleta de contatos que se estabeleceram sobretudo
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no período colonial e que permitiram a compreensão de que a história jamais poderia ser
linear, mas é melhor dada em termos de um rizoma, isto é, sem raiz, mas repleta de platôs,
dimensões, movimentos, encontros, rupturas, que são parte constitutiva do ser e existir desses
povos.
Por fim, o caminho traçado foi o de partir do material para chegar à etnicidade, isto é,
pensar as possibilidades do estudo simbólico da materialidade da cultura dos grupos que
estiveram em contato na região. Dessa forma, chega-se mais uma vez a constatação de que a
cultura não é estática, não está dada, mas está sujeita a contínuos processos dinâmicos de
transformação. Assim como a identidade dos Jê Meridionais, que não pode ser dada enquanto
essência, mas sofre processos de construção e reconstrução a partir dos encontros com as
diferentes alteridades, numa eterna constituição do ser indígena que é dada no entre-lugar.
Notas
[1]A Tradição Arqueológica Aratú-Sapucaí advém da junção de duas tradições arqueológicas. A
tradição Aratú foi formalizada por Valentin Calderón, em 1972, a partir de um estudo pelo
PRONAPA, realizado no Distrito de Aratú, na Bahia de Todos os Santos, embora tenha sido
encontrada em outras regiões do Nordeste, Centro Oeste e Sudeste do Brasil. A tradição Sapucaí,
encontrada em sítios nas regiões de Minas Gerais e São Paulo, chegou a ser considerada inclusive
uma fase da tradição Aratú, mas logo depois foi considerada uma tradição independente. O
levantamento e constituição desta tradição foi realizada por Ondemar Dias, em 1971, então
arqueólogo do PRONAPA. É possível que, por fluxos migratórios, a tradição Aratú tenha chegado até
o Centro-Oeste do Brasil, tendo se filiado aos sítios de Goiás e encontrando não apenas a tradição
Sapucaí, como outras, como a tradição arqueológica Uru, convencionando-se denominar os sítios de
características derivadas dessas tradições de sítios de Tradição Aratú-Sapucaí.
[2]A utilização das nomenclaturas Tupi e Tupi-Guarani neste trabalho “seguem as classificações
propostas por Rodrigues (2002). De acordo com as mesmas, o uso da nomenclatura Tupi ou Proto
Tupi faz referência ao Tronco Linguístico do qual o Tupi Guarani é apenas uma das famílias, com
vários idiomas e povos falantes, entre os quais os mais conhecidos são os Guarani (Mbya, Nhandeva e
Kaiowá)” (MANO, 2009, p. 112).
[3]A região recebeu diferentes denominações, como “Sertão do Rio das Velhas”, “Sertão do Novo
Sul”, “Sertão dos Novos Descobertos do Paranaíba” e, por fim, “Sertão da Farinha Podre” (PONTES,
1978 apud MORI, 2015, p. 13)
[4]“Autores como (Amantino, 2001; Lourenço, 2005; Martins, 2008) já chamaram a atenção para as
influências indígenas nos modos de adaptação das populações dos quilombos.” (MANO, 2015)
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Patriarcado, patologização e relações de poder: Uma análise do controle
de corpos de mulheres e homossexuais
Marco Antonio Gatti Junior
Universidade Federal de Minas Gerais
Introdução
Este ensaio tem o intento de contextualizar por meio da perspectiva feminista a forma
com que o controle dos corpos tem sido legitimada ao longo dos anos pela ciência de diversas
formas, em especial pelas “ciências duras” e suas instituições a lhes conferir autoridade, mas
passando também por âmbitos da vida privada e pública. São utilizados principalmente dois
trabalhos para embasar a análise pretendida à frente. O primeiro de Fabíola Rohden, “O
império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos” (2008), que traz em seu
texto o debate da centralidade da patologização para a medicalização e intervenções nos
corpos das mulheres ao longo da história e a perspectiva histórico-documental de James
Green em “Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX 2010”
que aborda como a patologização física ou psicológica foi utilizada para marcar e encarcerar
homossexuais (no texto trata principalmente de homens) no Brasil do século XX.
Por meio da análise dos dois textos citados, este ensaio tem como objetivo fazer uma
correlação entre os estudos de casos e relatos citados pelo autor e pela autora, utilizando
categorias analíticas trabalhadas por Heleieth Saffioti em “Gênero, patriarcado e violência”
(2015) para lançar luz às formas como são colocadas na realidade a construção da hierarquia
de sexo e os papéis sociais de gênero dentro de um contexto patriarcal. Em especial, intentase colocar em relevo o exercício proposto por Saffioti (2015) que, partindo de Hartmann,
caracteriza a desigualdade social entre os sexos “definindo-se patriarcado como um pacto
masculino para garantir a opressão de mulheres.” (SAFFIOTI, H., 2015, p. 111) e como o
Estado ou a indústria contribuíram ou até mesmo deram base à esse tipo de intervenção.
Não se pretende esgotar todo o debate colocado, e sim estabelecer correlações
conceituais e teóricas de tais relações, suscitando conexões relevantes, buscando contornar
possíveis desafinidades acadêmicas, no intento de entender tais integrações.
Bem além do carnaval
A partir de estudos sobre o desenvolvimento da ciência e da importância de se
repensar os métodos de análise científicos, coloca-se a necessidade de se partir do princípio
destas elaborações, seja qual for a temática escrutinada, para entendermos a produção e a
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consolidação do fazer científico. Neste sentido, não devem ser naturalizados pressupostos,
como se não fossem refutáveis. Partindo destas premissas, Bruno Latour, citando Stenger,
trabalha com a defesa de que o conhecimento é sempre um esforço arriscado que tem que
começar do nada para cada nova proposição em causa (LATOUR, B., 2007, p. 48), não por
negar o que já foi construído, mas pela importância de sempre aprofundar o método científico
para demarcar politicamente.
No que concerne ao desenvolvimento da produção científica sobre a saúde humana,
podemos localizar em seus primórdios o assentamento de suas proposições a partir de bases
essencialistas biológicas. É o que se colhe do estudo de Fabíola Rohden quando debate a
história da ginecologia. Para a autora, a consolidação da disciplina a fez emergir como
ferramenta que “desenha os parâmetros para a distinção entre os sexos”(ROHDEN, F.,
2001, p. 35), e que também contribuiu para o debate eugênico e de sexualidade que foi
construído na ciência no Brasil e no mundo. Tais conclusões extraídas do estudo deste campo
da medicina podem ser estendidas para se compreender como outros corpos são examinados
neste projeto de distinção entre os sexos.
A arqueóloga Loredana Ribeiro trabalha com a crítica feminista ao pensamento
científico hegemônico, onde a interseção de gênero-raça-classe é importante para se pensar a
forma de organizar as ideias e o saber científico como um todo (RIBEIRO, L., 2017, p. 214).
Concomitante a essa crítica, é necessário compreender e formular uma nova forma do pensar
da ciência. Nesse sentido, as ciências humanas e naturais, como a psicologia e a medicina,
tem trabalhado a existência humana enquanto influenciada por fatores biopsicossociais. O
paradigma de compreensão biopsicossocial do ser humano parte de uma lógica de produção
social da saúde, onde o corpo humano é um organismo biológico, psicológico e social.
(PEREIRA,T.; BARROS, M.; AUGUSTO, M., p. 526), contrapondo a noção do Homem
como ser único.
Com o desenvolvimento da medicina da mulher e outras formas de diagnóstico e
pensamento científico, foi sendo construída uma lógica de medicalização de problemas
femininos, que seriam questões biológicas relacionadas ao corpo da mulher e a como a
sociedade lida com tais fenômenos, que ao cabo foram utilizados para justificar o tratamento
ou a reclusão de mulheres. Como Fábiola Rohden trabalha em seu texto, “É quase como se a
mulher, por sua própria natureza, beirasse a patologia.” (ROHDEN, F., 2008, p. 136).
Partindo dessa naturalização biológica da condição da mulher como doente, tratos de caráter
social foram utilizados para reiterar o diagnóstico clínico de tais mulheres estudadas.
Características como abuso de álcool, melancolia, tentativas de suicídio, ninfomania entre
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outras questões que partem da ligação direta com o biológico eram acionados para a
internação, intervenções cirúrgicas e tratamento para as mulheres.
Rohden trabalha principalmente com a hormonização e sobre como os testes em
relação ao útero e os órgãos sexuais femininos eram estudados e utilizados para justificar o
que saísse do padrão de conduta feminino. Tratava-se e encarcerava-se muitas vezes as
mulheres que se afastavam do papel social que deveriam cumprir, sendo estes desvios
responsabilizados por uma constante presença (ou ausência) de hormônios capazes de gerar
mudanças de humor supostamente responsáveis diretas por tais mazelas (em diagnósticos
oportunistas que mais refletiam um padrão moral) para justificar a punição das mesmas.
James Green (2010) trabalha como a prática homossexual foi estudada e patologizada
a partir de 1920, principalmente, também utilizando distúrbios hormonais e respostas
biológicas a fenômenos que fugiam ao padrão de conduta do que deveria ser o masculino,
seja por se aproximar por padrões ditos femininos ou utilizar de categorias morais para
encarcerar na prisão ou em manicômios tais pessoas que não cumpriam seu papel social na
divisão sexual do trabalho. Examinando a relação da medicina com tais estudos sobre corpos,
é possível delimitar qual a forma com que estes estudos diagnosticam distúrbios sociais e
físicos.
É possível estabelecer correlações entre o debate sobre os corpos de mulheres e
homossexuais acerca de como eram utilizados como meios de pesquisar quais desvios eram
percebidos pelas instituições estabelecidas, notadamente a medicina. Nos dois textos,
destaca-se que uma das formas de perceber estes supostos desvios e suas alterações era pelo
diagnóstico de falta ou excesso de hormônios, que seriam responsáveis por fenômenos como
a hipersexualização ou a falta de libido, agressividade e histeria ou passividade e
feminilidade. Pelo texto de Rohden, depreende-se um maior histórico de intervenção física e
modificação direta no corpo da mulher (como retirada do útero), relacionando também ao
psicológico e hormonal, diferente dos homossexuais que, conforme James Green (2010)
salienta, tinham seus “desvios” tratados principalmente nas áreas psiquiátrica e
comportamental, uma vez que suas condutas eram condenadas por se aproximar do feminino
ou mais especificamente das características sexuais femininas secundárias. Apesar das
diferenças, ambos os textos ressaltam a relação entre o biológico e o social na construção da
argumentação médica. A discussão em torno da homossexualidade perpassa em grande escala
o âmbito criminal, onde as características eram utilizadas para relacionar homossexuais à
crimes, como pederastia, estupro, acusações de assassinato, entre outras. “Além do carnaval”
elenca um rol extenso das formas como aconteciam os encarceramentos e também diversas
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intervenções nesses corpos marginalizados para que lhes fossem reeducados ou curados, “A
homossexualidade caiu na categoria das perversões sexuais e o confinamento foi o método
terapêutico utilizado como princípio para „curar‟ esse desvio.” (GREEN, J., 2010, p. 221).
Diferenciando do enfoque criminal utilizado em relação à homossexualidade, a chave
principal para a intervenção imputada às mulheres era a da reprodução, que partia de uma
base corporal material, colocando o útero como centro da “economia corporal feminina”.
Segundo Rohden, seja por controle direto do próprio útero ou dos papéis denominados como
a reprodução do papel social determinado, “Essa dessexualização da mulher era percebida
como uma ameaça ao casamento e a divisão sexual do trabalho, considerados os dois pilares
de sustentação da sociedade e da nação”(ROHDEN, F., 2008, p. 144).
Quando os autores abordam o controle da natalidade e da reprodução de corpos,
destacam as diferenças entre as intervenções em corpos de distintas classes sociais,
ressaltando os ideais eugênicos que animavam tais terapêuticas que retomavam de forma
sistemática às classificações e metodologias semelhantes às utilizadas por Cesare Lombroso,
algumas inclusive com referência direta ao mesmo. Ambos os textos resgatam o
essencialismo biológico fundante desta perspectiva e seu papel na tentativa de “curar” o que
fosse se “comportar de maneira inapropriada”.
Heleieth Saffioti (2015) aborda a relação entre o papel da socialização da mulher que
termina por fundamentar tais essencialismos e patologizações abordadas acima, naturalizando
o debate biológico para que cumpra seu papel e garanta a divisão sexual do trabalho e os
papéis de gênero no sistema patriarcal. Sobre esta relação entre a socialização das mulheres e
seu papel nas relações sociais de sexo, vale destacar quando a autora aponta que:
Obviamente, a socialização faz parte deste processo de se tornar mulher/esposa.
Mas não se trata apenas daquilo que as mulheres introjetaram em seu
inconsciente/consciente. Trata-se de vivências concretas na relação com
homens/maridos (SAFFIOTI, H., 2015, p. 140).
A autora reitera a importância de pensarmos nas relações de poder e como o feminino
tem seu papel subordinado a uma hierarquia abaixo do homem, mas não reduzindo a isso.
Saffioti cita tal hierarquia também entre os próprios homens dentro do sistema patriarcal, seja
por idade, classe social ou com base no racismo. A autora não se aprofunda em tal relação
hierárquica, também deixando uma necessidade de aprofundamento sobre a sexualidade,
visto que também não caminha por tal debate para situar também a questão das mulheres.
A divisão sexual do trabalho é a base da garantia do funcionamento do sistema
capitalista-patriarcal-racista. Relacionando os textos trabalhados, mulheres e homossexuais
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que não se enquadram nesse sistema para garantir a sua reprodução, e dizendo reprodução
principalmente na reprodução e no controle direto do corpo da mulher, o âmbito da
sexualidade e comportamentos marcados pela diferença colocam a necessidade de teorias e
embasamentos científicos reiterados pela população em geral e que ative o controle de certos
corpos deixando a disputa da hegemonia em debate e da categoria da própria ciência.
As relações de poder que tangem os corpos perpassam historicamente por sujeitos e
sujeitas de formas diferentes. Silvia Frederici (2017) retoma a importância do entendimento
da materialidade nas relações que tangem o corpo, seja na caça às “bruxas”, na acumulação
primitiva de capital ou na hierarquia entre homens e mulheres. Tal hierarquia se transforma
durante a história, expondo as formas com que as relações econômicas, de raça/etnia e gênero
na ordem patriarcal se relacionam.
Conclusão
É nítido nos textos de Fabíola Rohden e James Green que a ciência em disputa oscila
de tempos em tempos com argumentos circulares para embasar um ponto de vista que está
presente no controle de corpos e abrangendo debates de vários âmbitos, nos demonstrando a
inexistência da neutralidade no campo científico e a necessidade da disputa do mesmo. Uma
dessas facetas é demonstrada por interesses da indústria farmacêutica, onde o próprio
mercado de hormônios, como cita Rohden (2001; 2010), pauta os estudos e os avanços que
beneficiam a própria mercantilização dos seus produtos. Levantando também sobre a
legitimidade da ciência por si só, sem comprovação de métodos e uma circularidade de
citações e reafirmações entre os próprios pares, sendo vetados até por falta de financiamento
ou pela discrepância na disputa interna da academia de qual sujeito é legitimado e qual
marginalizado, como os próprios textos trabalham e denotam da especificidade de
encarceramento e controle de certos corpos. Os relatos históricos no período estudado
demonstram a legitimação dos seus proponentes, que se situavam entre do pensamento
hegemônico, mostrando como seus valores se naturalizavam no meio científico.
É de suma importância também pensar o papel da reprodução e da divisão sexual do
trabalho para a centralidade do sistema patriarcal e da reprodução conjunta do racismo e
capitalismo. Saffioti (2015) trabalha como método a relação de nó, que entende as relações
entre capital-racismo-patriarcado como inseparáveis. Pensando em relações correlatas, as
formas encarceramento e controle reprodutivo colocam na marginalização papéis sociais
distintos, principalmente quanto ao padrão que as mulheres são colocadas e as intervenções
feitas nesses corpos de forma diferente de acordo com outros recortes.
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O ensaio presente serve ao propósito de levantar questões e relações conceituais,
mesmo entendendo os limites das teorias levantadas e das formas com que elas dialogam
entre si. De acordo com os relatos históricos, é nítida a percepção da aproximação de
homossexuais à feminilidade para a perseguição dos mesmos, assim como da patologização
quase natural do corpo da mulher desde seu nascimento. Faz-se necessário revisitar a teoria
utilizada em relação à sexualidade, ficando o desafio de, partindo de bases materiais, onde a
sexualidade da mulher se resume à divisão sexual do trabalho como forma de reprodução e
restringe formas de socialização entre outros vetos sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução
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RIBEIRO, Loredana. Dossiê Arqueologia e Crítica Feminista no Brasil - uma
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PEREIRA, Thaís Thomé S. O.; BARROS, Monalisa N. dos S.; AUGUSTO, Maria Cecília N.
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Disponível
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Perseu Abramo e Expressão Popular, 2015.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
O pensamento descolonial na produção do espaço
André Lucas Magalhães dos Santos Silva
Seguindo suas jornadas além-mar, as terras que compõem hoje a América Latina
foram escolhidas como destino das naus ditas europeias. Terras desconhecidas pelos
europeus, que passaram a compor o Novo Mundo, colonizado e imaginado por eles. Com
foco na expansão e na acumulação produtiva é que esse Novo Mundo se concebeu dando
bases para a produção do regime capitalista mercantil, posteriormente.
América era, al desembarco, una desilusión de golpe; un contraste que enardecía el
cálculo frustado y que inclinaba a recuperar la merma de la ilusión mediante la
sublimación del bien obtenido. Otra vez la llanura era el mar, sin caminos. América
no era América; tenía que forjársela y que superponérsele la realidad del ensueño en
bruto. Sobre una tierra inmensa, que era la realidad imposible de modificar, se
alzarían las obras precarias de los hombres (ESTRADA, 1996, p. 5) 1.
Frente a esse sonho frustrado dos europeus é que foi preciso, por eles, repensar como
ocupar essas terras – imaginadas por muitos como paraíso e vivida por tantos outros como
inferno. Expropriaram a força diversas etnias, despojadas súbita e violentamente dos seus
meios de subsistência, assim é que as comunidades foram suprimidas para a afirmação desse
novo regime, centrado na figura do indivíduo trabalhador2. Compreendendo a colonialidade
(QUIJANO, 2009), dados os epistemicídios ao longo deste processo, como elemento da
efetivação ideológica da colonização e reafirmada no capitalismo tardio, é que a reflexão
segue para a questão de como, os violentos ataques as visões de mundo, unida a supressão
das comunidades, levou a substituição pela centralidade individual e constituiu a
espacialidade e a (re)produção da América Latina?
Há de se pensar também se o resgate das memórias3 nos leva a superar esse processo
de colonização, dado o pensamento incorporado pela colonialidade, sendo a alternativa
descolonial realmente a opção para a superação? É com a questão posta que nosso futuro se
torna mais nebuloso, pois a construção e superação deste fator nos põe em dúvida em que
caminhos seguir. A construção de alternativas se mostra necessária, mas as formas em que se
dão não evidenciam o que se imagina de futuro. Temos posto um momento de crise das
utopias, um projeto incompleto, um momento melancólico.
O colonialismo, na América Latina, fundou uma estrutura de exploração e dominação
dos corpos, dos recursos de produção e do trabalho. Para efetivar tal estrutura era preciso
reafirmar a centralidade nacional europeia, os enviados divinos4, acumulando os recursos das
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colônias do Novo Mundo. “Afinal, os primeiros estabelecimentos organizados precipuamente
para acumular capital foram forjados aqui com as plantations de cana no Caribe, em Cuba e
Haiti, e, na América do Sul, no Brasil” (PORTO-GONÇALVES, 2015), como também a
exploração mineral, que se deu no continuum processo de colonização.
Com esse processo a colonialidade se engendra a partir dos espistemicídios e da
imposição do modo de se pensar este Novo Mundo. Os indivíduos que são influenciados por
ela são interpelados e tornam-se sujeitos obrigados a trabalhar, descentrados de suas
percepções de mundo. Assim é que na reprodução do colonialismo é que a colonialidade
reafirma o papel central dos escolhidos da Providência, despojando subitamente e
violentamente as diversas etnias de sua reprodução da vida. Forma-se a ferida colonial
(MIGNOLO, 2007), povos dominados foram usurpados de suas perspectivas cognitivas, pois
“forçaram [...] os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo
que fosse útil para a reprodução da dominação” (QUIJANO, 2005).
Pela dissolução das comunidades, de sua produção de vida, da experiência da
consciência étnica produziu-se o Novo Mundo. Com essa dominação era preciso romper com
as experiências anteriores, acabar com os vestígios da vida que se tinha, para que um novo
regime se consolidasse. Foi preciso que se assassinasse as comunidades e impusesse a figura
individual frente a ela. A vida não era mais compartilhada na sua reprodução, mas a produção
individualizada, dando bases para a acumulação das elites que impunham o trabalho aos
sujeitos da colonialidade. Sepultamentos culturais foram promovidos e novos valores
assimilados (FANON, 2008). A colonialidade feriu profundamente os sujeitos que
produziram as bases da América Latina, como também atacou violentamente suas
experiências anteriores ao colonialismo.
É contra essa ferida colonial, que permeia ainda hoje a dinâmica do pensamento, que a
ruptura epistêmica promete produzir movimentos que levariam a descolonização do ser
(MIGNOLO, 2007). Mas é quando a crítica descolonial se propõe mais radical e subversiva é
que acaba caindo numa falsidade e em encontro a “constelação de poder existente” (ZIZEK,
2016). Este sujeito, portador da ferida colonial, que tenta esquivar das medidas
disciplinadoras que o dominam, também é formado pelas mesmas medidas disciplinadoras. A
recuperação das memórias, a busca pelo levantamento das visões de mundo, ou outras
epistemologias, são necessárias para evidenciar as mazelas da colonialidade e recuperar as
faíscas do passado para reacender as chamas do futuro, mas o paradoxo em questão é não
haver um “Corpo positivado preexistente em que se possa fundamentar ontologicamente
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nossa resistência aos mecanismos disciplinadores do poder” (ZIZEK, 2016), neste caso, a
resistência a colonialidade.
A crítica não se dá necessariamente nas recuperações das memórias, do movimento de
resgate e consolidação das outras epistemologias, mas traz aqui se suas proposições seguem
para a descolonização do ser. Vendo nas concretudes do tempo, na (re)produção espacial da
América Latina é que se percebe a dominação imperialista que intervém nos seus indivíduos,
pela imposição do trabalho; pela centralização da perspectiva individual; pela dissolução das
comunidades, presente na vida cotidiana. Com elas que ainda lidamos, quase que
inconscientemente, enquanto buscamos uma identidade étnica anterior.
Se fundamentarmos nossa resistência ao eurocentrismo imperialista na referência a
um núcleo de identidade étnica anterior, automaticamente adotamos a posição de
uma vítima que resiste à modernização, de um objeto passivo sobre o qual operam
os procedimentos imperialistas. Mas se concebermos nossa resistência como um
excesso que resulta do modo brutal como a intervenção imperialista perturbou nossa
identidade anterior, fechado em si mesma, nossa posição se torna muito mais forte,
visto que podemos afirmar que nossa resistência se fundamenta na própria dinâmica
inerente ao sistema imperialista – que o próprio sistema imperialista, por meio de
seu antagonismo intrínseco, ativou as forças que provocaram sua derrocada
(ZIZEK, 2016, p. 276).
Na inversão de objeto passivo que os resgates das identidades étnicas se colocam
como resistência frente a modernização dos procedimentos imperialistas, para um excesso
que resulta da brutal perturbação dessas identidades, fundamentando a dinâmica antagonista é
que teremos a produção da derrocada desse sistema. A partir deste momento é que serão
necessários os vislumbres que os resgates descoloniais se propõem.
[...] a premissa segundo a qual a resistência ao poder é imanente e inerente ao
edifício do poder (no sentido de que é gerada pela dinâmica inerente desse edifício)
não nos obriga a concluir que toda resistência é cooptada de antemão, incluída no
jogo eterno que o Poder joga com ele mesmo – o ponto-chave é que, pelo efeito de
proliferação, de produção de um excesso de resistência, o próprio antagonismo
inerente de um sistema pode muito bem desencadear um processo que leva a sua
ruína (ZIZEK, 2016, p. 276).
Com o acúmulo dessas resistências, dessa perturbação das identidades, assumindo que são
resultado do excesso da dinâmica de modernização, os sujeitos devem também assumir a
colonialidade que os forma. A ferida já está marcada e pertence aos indivíduos.
Enfim, a melancolia invade o imaginário dos sujeitos, seu papel na sociedade
capitalista remete a feridas coloniais, o trabalho cooptado para a reprodução do colonialismo,
como também do capitalismo marcados no espaço. A América Latina é uma região de
periferia do sistema capitalista, repleto de contradições e com efervescentes questões, desde o
colonialismo com uma acumulação primitiva, ao capitalismo tardio, que se desenvolve
desenfreadamente nos momentos atuais. Os indivíduos trabalhadores deram base a as
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estruturas oligárquicas que se mantém no século XXI, uma herança mais que econômica. Os
indivíduos da modernidade interpelaram e reproduziram a colonialidade, dando sentido a sua
vida não mais pelas suas perspectivas, antes centradas na identidade étnica, mas pela
perspectiva do trabalho, que põe a comida na mesa, ou que dignifica o homem. Na superação
do trabalho, que aliena a produção da vida, talvez tenhamos sinais de um futuro e de uma
construção descolonizada do ser, buscando, não na vivência voltada para o indivíduo, mas na
experiência, enquanto partilha da comunidade, possibilidades para dar sentido às coisas e
produzir a vida.
Assim, a ferida colonial perpassa os sujeitos levando ao encontro dos epistemicídios.
Devemos resgatar as memórias com o intuito de sermos resistência e de recuperar os pontos
que nos conectam a novas possibilidades, a fim de alcançar a derrocada desse sistema que
reafirma a colonialidade e explora o trabalho dos indivíduos. Mas tendo consciência que a
resistência é por um excesso resultante do modo brutal a qual as identidades foram
perturbadas e não pela busca de uma fundamentação ontológica dela aos mecanismos
disciplinadores de poder.
Notas
[1] “A América foi, no desembarque, um golpe de decepção; um contraste que inflamava o cálculo
frustrado e que se inclinava a recuperar a perda da ilusão pela sublimação do bem obtido. Mais uma
vez a planície era o mar, sem estradas. América não era a América; teve-se que forjar e sobrepor a
realidade do sonho bruto. Numa terra imensa, que era a realidade impossível de modificar, surgiriam
os trabalhos precários dos homens.” (Tradução do autor).
[2]O trabalho no Novo Mundo se desdobra diversamente. No momento inicial da colonização a
imposição e exploração do trabalho se dá, em grande parte, pela mão de obra escrava. Ao longo do
processo de modernização esse trabalho mantém a exploração, mas agora formalmente livre.
[3] Memórias como luta, resistência, frente a colonização e exploração. Pereira (2014) expõe que
“resistir tornou-se, há muito tempo, uma prática cotidiana de agentes em posição desprivilegiada nos
vários campos das relações de poder, [...] a maior herança tem sido a memória das lutas históricas de
resistência”.
[4] A sobreposição religiosa vem nesse contexto, seguindo a ideia de que um espírito natural dos
homens deveria avançar na história da civilização. A doutrina cristã se encarregava, em suas
proposições filosóficas, de retratar que os homens são o meio para a consecução dos fins de Deus; um
agente divino de um sujeito maior, pois apenas a ação da Providência que conduz a vontade humana
(WOORTMANN, 1997).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Os limites euroamericanos do conceito de Genocídio:
Pensando com os povos ameríndios sobre a atualização da noção de
etnocídio
Marcio Maia Malta
Universidade Federal de Minas Gerais
Orientadora: Profa . Dra. Deborah de Magalhães Lima
Introdução
A dicotomização das violências empreendidas contra minorias étnicas em termos de
genocídio e etnocídio produz ainda hoje efeitos que podem ser perversos e, talvez, o principal
deles seja tomar o etnocídio como um crime “menos violento” e com Natureza distinta do
genocídio, afetando as manifestações visíveis e invisíveis da cultura enquanto “espírito de um
povo” (Volkgeist). Tal assertiva levou e leva, não raro, à agressões aparentemente brandas
associadas ao combate à “destruição física” dos povos ameríndios e/ou às tentativas de
“salvamento” de suas almas. Não se trata de uma tentativa meramente teórica e afastada das
necessidades reais do atual contexto dos povos ameríndios no Brasil. Quando me encontrava
na reta final da pesquisa, uma ampla lista de lideranças indígenas publicaram em 18 de
fevereiro de 2018 um manifesto1 contra a intolerância religiosa e o racismo, definindo como
etnocídio as agressões empreendidas por organizações protestantes. Situação genocida que
se agravará pois, no momento em que escrevo essas palavras, os defensores dos direitos
humanos testemunham as previsões catastróficas em relação ao recém-eleito governo
bolsonarista se atualizarem com velocidade alarmante. O terror psicológico marcado por
avanços e recuos em torno da possibilidade de fusão do Ministério da Agricultura, pecuária e
abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente é um exemplo das produções gratuitas de
violências contra muitas pessoas e suas existências.
Os contextos históricos relacionados aos primeiros enquadramentos do crime de
etnocídio demonstram que essa violência nunca foi relativa. Os aparatos reflexivos
produzidos pela etnologia americanista, do final da década de 70 do século XX em diante,
marcaram uma maior intimidade com as “categorias nativas” ameríndias (VIVEIROS DE
CASTRO, 1999). Ao utilizarmos essas ferramentas fica claro o enquadramento fenomênico
da nossa visão ocidental que emprega concepções metafísicas (espiritual/material) e
objetificantes que não dão conta dos mundos indígenas povoados de agências com estatuto de
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sujeito. O avanço na aceitação jurídica dessas realidades como fatos e não meras
representações coletivas nos parece imprescindível não para a salvação de um Outro frágil,
mas, para que todos nós tenhamos algum futuro.
Origem e antecedentes da noção de etnocídio
A busca pela origem do termo etnocídio levou a quatro autores e três contextos
histórico-etnográficos marcados por profusas violências estatais cometidas contra povos
minoritários: os Judeus (entre outras minorias) em muitos países europeus cujo
antissemitismo existente já na Antiguidade ganhou contornos específicos no século XIX e,
avançou para o XX, notadamente na Alemanha já nos estertores da República de Weimar,
durante a ascensão nazista ao poder e a subsequente eclosão da 2ªGM (EVANS, 2016[2003]);
contra os Mnong gar nas regiões das Terras Altas a nordeste de Saigon no Vietnã do século
XIX, marcado pelo colonialismo francês; No decorrer das 1ª e 2ª Guerras da Indochina e sob
a Ditadura latifundiária e católica de Ngo Dinh Diem, empreendendo um hiper-nacionalismo
sul-vietnamita apoiado pelos EUA (CONDOMINAS, 1991[1965]); e contra os Barí
localizados no nordeste colombiano na fronteira venezuelana do distrito de Santander do
Norte. Em relação aos Barí, na década de 1960, foi delimitada a prática de etnocídio pela
confluência dos assédios de missionários, petrolíferas (COLPET), departamento de assuntos
indígenas colombiano e colonos (JAULIN, 1973[1970]).
Uma Colômbia, que assim como o Peru e Brasil, foi marcada por extermínios das
populações indígenas no século XIX e início do século XX durante o período caucheiro tendo
como exemplo paradigmático os fatos históricos marcados por extrema violência e sadismo
que ganharam a alcunha de Terror de Putumayo (TAUSSIG, 1993[1987]). Na década de
1930, o Estado colombiano aprofundou sua dependência econômica com os EUA,
favorecendo as classes proprietárias e exercendo políticas populistas de caráter liberalizante.
Ações que disseminaram tensões crescentes nas áreas rurais eclodindo em meados da década
de 1940 no fenômeno que ficou conhecido como La Violencia (período entre o final da 2ª
GM e início da década de 1960), cujos precedentes se encontravam em ódios regionais
hereditários de uma aristocracia rural consolidada no século XIX sob forte agressão aos
chamados resguardos indígenas (ABEL&PALACIOS, 2015). A contextualização dessas
situações históricas, que aqui apenas cito de modo muito comprimido, deve ser apreciada
para entendermos que os crimes contra os povos ameríndios não podem ser associados
unicamente com períodos de guerra fruto do cotidiano de práticas colonialistas e neocolonialistas associadas ao que Mbembe definiu como necropolítica (MBEMBE, 2018).
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Foi nesse trajeto eivado de hostilidades que pudemos observar os rastros da origem e
desenvolvimento da noção de etnocídio. Raphael Lemkin (1944) cunhou, pouco antes do
final da 2ª GM, os conceitos de genocídio e genocídio cultural. Uma inflexão de importância
ocorreu quando o conceito de genocídio foi abduzido pela antropologia através do etnógrafo
Georges Condominas (1991[1965]), fruto de sua convivência com os Mnong gar e das
violências contra eles cometidas pela ditadura sul-vietnamita. Nessa conversão, persistiu o
sentido de uma intenção criminosa de homicídio contra coletividades com a alteração do
prefixo genos para ethnòs. O objetivo principal dessa apropriação-variação foi realizar aquilo
que o subgênero de genocídio cultural aparentemente não havia alcançado ao deixar de ser
incluído na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio das Nações
Unidas em 1948: dar visibilidade e profundidade às dimensões das violências criminosas
cometidas contra minorias étnicas. Contudo, essa ação transpositiva sedimentou um dualismo
que já era uma tensão presente nas reflexões de Raphael Lemkin e que esse procurou atenuar
à medida em que aprimorou seu sofisticado arcabouço conceitual. Se, em 1933, Lemkin havia
proposto a tipificação binária barbárie/vandalismo (LIPPI, 2011), anos depois apresentaria
como substitutos o genocídio e o subgênero genocídio cultural. No contexto das proposições
antropológicas de Georges Condominas em 1965, quando foi lavrado o neologismo etnocídio
como violência contra minorias étnicas, a separação cartesiana espírito/corpo do indivíduo
projetada para coletivos humanos manteve-se, mas com um caráter menos reificado e mais
profundo do que o vandalismo e, em menor grau, do que o genocídio cultural. Desse modo, o
etnocídio operaria como um ataque contra a integridade do Volkgeist de uma coletividade, em
oposição ao autoexplicativo fisiocídio, proposto por Condominas (1991) como o processo
final de extinção de um povo.
Georges Condominas (1991) afirmou que o perfil do seu trabalho possuía pretensões
mais etnográficas do que etnológicas. Se foi ele quem cunhou e delineou as considerações
iniciais sobre o neologismo derivado do genocídio, coube a Robert Jaulin (1973) trabalhar
tanto
a definição de genocídio cultural de Lemkin quanto o etnocídio criado por
Condominas. Optando por essa última terminologia, Jaulin e simpatizantes avançaram na
tentativa de sistematização conceitual, e o trabalho inaugural dessa tarefa partiu da
convivência com os Barí na Colômbia. Nos anos seguintes, uma rede colaborativa produziu
duas coletâneas2 com casos etnográficos de toda a América, textos que abordavam as
relações do etnocídio com o Direito, História e Educação.
Esses trabalhos tiveram, ao que parece, importante difusão e impacto, nos países de
língua castelhana. Essa vertente reflexiva de Jaulin possuía uma perspectiva materialista de
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cunho fortemente marxista3, voltando-se para questões da “cultura material” e suas
determinações organizacionais, restringindo boa parte da análise dos efeitos inelutáveis do
etnocídio ao campo sociológico. Ao mesmo tempo, Jaulin (ibidem) nos apresentou a
irredutibilidade das concepções cósmicas Barí frente ao Ocidente, um modo de expressão
humana que, juntamente com outras manifestações indígenas semelhantes, representaria uma
alternativa viável e necessária para o futuro de todos.
Pierre Clastres (1974), em seu famoso ensaio sobre o etnocídio, teve o intuito foi
distinguir claramente entre essa noção e o genocídio a fim de permitir um tratamento mais
científico, necessário diante da situação inflacionária gerada pela grande popularidade
alcançada pelo termo na década 70. Para Clastres (ibidem) genocídio e etnocídio envolveriam
uma recusa da Diferença, contudo, com graus distintos de violência. No caso do genocídio a
Diferença seria absolutamente má, com perspectiva racista e negadora das manifestações
físicas do Outro, levando à pura e simples eliminação física das pessoas. A espiritualidade
humanista do etnocídio consideraria o Outro como relativamente mau e, portanto, perfectível.
Os missionários seriam o exemplo paradigmático daqueles que praticaram esse tipo de crime,
que figurava para Clastres como uma agressão às crenças e modos de vida e que, se não
controlada descambava para as violências físicas levando ao genocídio (ibidem).
A partir de todo esse percurso histórico e teórico, vemos que a segmentarização
antropocêntrica do pensamento ocidental (espiritual/material) levou a classificar agressões
criminosas com pares opositivos: barbárie/vandalismo, genocídio/genocídio cultural (Raphael
Lemkin), etnocídio/fisiocídio (Georges Condominas) e etnocídio/genocídio (Robert Jaulin e
Pierre Clastres), denotando certas qualidades associadas a cada um dos pólos dessas
dicotomias. No campo do vandalismo, genocídio cultural e etnocídio teríamos as ações
indiretas e sutis (traduzidas como gerando um grau menor de violência), voltadas para as
produções culturais visíveis e invisíveis,
apartadas da fisicalidade do indivíduo, com
resvalamentos no campo psicológico a nível tanto individual quanto coletivo e, também, nos
aspectos sociológicos baseados nas imagens funcionalistas bem estabelecidas da unidade,
coesão, equilíbrio. Do lado do genocídio estariam os aspectos visíveis da intenção criminosa,
ataques físicos diretos, principalmente de curto prazo e absolutamente violentos contra as
pessoas.
Essas imagens parecem ter se instalado com pregnância irresistível em nosso
imaginário. Na Antropologia essas distinções tendenciais que mencionei acima se agrupariam
em torno da pedra filosofal da disciplina: a cultura. Entre os múltiplos enquadramentos que
essa noção chave atualmente permite, perdemos de vista muito rapidamente seu aspecto
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mediador, relacional, criativo e inventivo para recairmos em reificações em torno de um
fechamento monadológico holístico que, de fato, é impossível, e cuja ilusão de factibilidade
produz sensações cumulativas de perda-destruição sob a analogia automática Cultura/Espírito
em situações de interação Eu/Outro. E é claro que essa sensação de perda, quando possível,
foi sempre projetada nos Outros “de fora” com um etnocentramento de efeito redobrado. Essa
recorrência é constatável na teoria dos precedentes e contemporâneos teóricos do etnocídio na
antropologia brasileira (teorias da aculturação, mudança cultural, transfiguração étnica,
fricção interétnica). Cabe, desse modo, destacarmos a distinção entre violência relativa e
violência absoluta que perpassa as clássicas definições de etnocídio e genocídio. É possível
quantificar
o
que,
frequentemente,
separa-se
e
nomeia-se
como
agressões
culturais/psicológicas e violências físicas contra minorias étnicas?
Etnocídio na América Latina: Do Universal ao local
No pós 2ª GM, os mecanismos jurídicos internacionais de direitos humanos foram importante
abertura para o enquadramento dos crimes contra coletividades, entretanto, continham um
viés universalista. Não à toa, menos de três décadas depois deu-se na América Latina uma
articulação em torno da promoção da definição da noção de etnocídio e do combate contra
suas manifestações. José Emílio Rolando Ordóñez Cifuentes (1996) apresentou a
receptividade atingida por essa tipologia criminal nas sucessivas reuniões e produções de
documentos na área de direitos humanos voltados para a questão indígena na região. A razão
dessa demanda deveu-se tanto a uma naturalização da prática etnocida sob o espraiado
exercício de um neocolonialismo latino-americano quanto também um “vazio legal
internacional” que essa noção quis suprir. Em 1968, no México, foram criadas as Unidades
de Ense anza sobre Etnocidio y Etnología colonial. Em 1970, houve um colóquio na França
“Le livre blanc de l‟ethnocide en amérique (Etnocidio a través de las Américas , reunião que
rendeu uma importante coletânea de mesmo título organizada por Robert Jaulin. Ainda em
1970, ocorreu o XXXIX Congresso de Americanistas em Lima, no Peru, no qual foram
realizadas importantes considerações em torno do etnocídio, tomando-o como uma destruição
de civilizações inaugurada há mais de quatro séculos com a invasão da América. As
matanças, assimilações forçadas e políticas indigenistas de caráter integracionista ou
assimilacionista denunciadas na década de 70 seriam a continuação dessas violações dos
direitos à existência dos povos originários, na maioria das vezes operadas pelas elites
regionais submetidas por influências externas (ORDÉÑEZ CIFUENTES, 1996, p. 30).
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Cifuentes também indicou outros marcos históricos importantes relacionados à
constatação e aplicação da noção de etnocídio pela antropologia na América Latina. Em 1972
e 1977, encontros realizados em Barbados dialogaram em torno da dominação cultural, em
boa parte realizada por políticas indigenistas. O sistema educacional reproduziria relações
assimétricas baseadas na superioridade/inferioridade entre brancos e indígenas, lógica
também presente nos meios de comunicação de massa que, além disso, mascarariam os
movimentos de resistência indígena contra essa dominação cultural. Em 1974, foi publicado o
livro La Des-civilización, política e práctica del etnocidio, no México, que avançou na
teorização do etnocídio como destruição de civilizações e como insistente negação-agressão
do Outro. Em 1982, foi produzida a Declaração de San José sobre etnodesarrollo y etnocidio
en America Latina que considerou o etnocídio como um crime enquadrável no direito
internacional tal como o genocídio. Nessa ocasião, foi postulado um “projeto étnico” com
aspecto integral baseado em cinco pilares voltados para a “recuperação cultural”: Linguagem,
Consciência Histórica, Saber Tradicional, Território e Identidade Cultural (projeto cultural,
social e político). Também em 1982, entre 4 e 8 de outubro, ocorreu na República de San
Marino o simpósio Derechos de Solidaridad y Derechos de los Pueblos, ocasião na qual o
genocídio foi firmado como principal violação ao direito de existência de um povo. O
etnocídio foi indicado como um modo menos violento desse tipo de agressão. Os
especialistas presentes nesse Simpósio defenderam que a diversidade cultural
era tão
importante quanto a diversidade biológica para a perpetuação da humanidade. As diferenças
culturais seriam índices das riquezas de respostas adaptativas do homem ao longo da história
e cuja manutenção, portanto, seria essencial ao futuro da espécie. Os próprios povos
indígenas geraram declarações em Quito, Equador e Xelajú (Quetzaltenango) envolvendo a
Campanha Continental Indígena, Negra e Popular contrária às comemorações do V
centenário do "descobrimento de América" proposto pela Espanha. Cabe lembrar as
declarações oriundas das
u s
s
u
s
s celebradas em Chimaltenango,
na Guatemala em 1993 e em Oaxtepec, no México. Por fim, Ordé ez Cifuentes aponta os
esforços da Prêmio Nobel da Paz, Rigoberta Menchú Tum no combate ao etnocídio a nível
mundial (ORDÉÑEZ CIFUENTES, 1996, p. 31-2).
Como notou Manuela Carneiro da Cunha (2009b, p. 326-7), foram os movimentos
indígenas que, encabeçando a militância e jogando com as regras da “Cultura”, criaram
resoluções, recomendações e declarações sobre direitos intelectuais e culturais. No final da
década de 1980, esses direitos já abrangiam artefatos, padrões gráficos, objetos arqueológicos
e a “cultura material” em geral. O resultado dessa gigantesca contra-captura indígena,
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segundo Carneiro da Cunha,
marcou uma importante passagem desde o período da
Declaração dos Direitos Humanos em 1948 até 1984. A partir daí ocorreu um afastamento do
posicionamento universalista contra a discriminação e a favor da participação política que
tomava os povos indígenas como parte do patrimônio cultural da humanidade. A partir de
1992, a Carta dos Povos Indígenas e Tribais das Florestas Tropicais e a Carta da Terra dos
Povos Indígenas marcou definitivamente a conversão do universalismo para uma
“ c iz ã ” qu
r
ri u-s
“ u tur ” c mo propriedade particular de cada povo
indígena (ibidem). É essencial retermos essa grande empreitada bem sucedida em saber
apropriar-se da lógica do Outro, fruto da agência indígena. Entretanto, ao buscarmos tracejar
a gravidade das violências geradas por agressões etnocidas é preciso não confundir cultura
com “Cultura”. E muito menos acreditar que essas traduções com fins políticos empreendidas
pelas lógicas ameríndias tratariam-se unicamente de perdas culturais ou identitárias.
Manuela Carneiro da Cunha argumentou (ibidem) que não se poderia tomar a cultura
como fator primário de identificação tendo em vista que ela seria consequência da
organização do grupo étnico e não sua definidora, apesar de ser irredutível para a etnicidade.
Tampouco poderíamos
formar uma lista de traços culturais essenciais que permitiriam
classificar com segurança quem seria ou não membro de uma comunidade étnica qualquer,
pois, não haveria uma previsibilidade dos traços culturais selecionados para a afirmação de
um determinado Nós – nem mesmo a língua seria um elemento imprescindível para a
afirmação étnica (ibidem). Para essa autora, em situações de maior tensão política (diáspora,
contatos intensos) a cultura “original” de um grupo étnico não passaria por simples perdas ou
fusões mas alteraria sua função para uma “cultura de contraste” com aparência enrijecida e
minimalista composta de traços diacríticos (CUNHA, 2009a[1979], p. 237-8). Esse
movimento indicaria os grupos étnicos como sendo, antes de tudo, uma forma de organização
política, uma categoria “nativa”, cuja retórica acionaria uma origem e cultura comuns. Essa
retórica não seria uma mera reação completamente aleatória ao exterior, tendo a cultura como
substrato irredutível. Teríamos, portanto, a “Cultura” inserida em contexto interétnico,
diferente da cultura enquanto contexto “interno”. As relações interétnicas não seriam
resultado de submissão à lógica externa ou à lógica do mais forte; a objetivação da
cultura não estaria condicionada à situação colonial mas seria um meio corrente de
organizar relações com outras lógicas (CUNHA, 2009b, p. 356). A “etnicidade”
apresentaria-se como uma transformação moderna, e nesse sentido manteria uma
continuidade pré-colombiana com o totemismo enquanto prática política produtora de
distintividade por meio da atividade classificatória (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 198).
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O Perigo das projeções e obsessões com a perda cultural
Marshall Sahlins (2007[1996]) cosmologizou o Ocidente, delineando o que Viveiros
de Castro sintetizou como “metafísica naturalista da escassez” (VIVEIROS DE CASTRO,
1999, p. 199) e cujas raízes religiosas seriam mais longínquas que o advento do Iluminismo.
O fundamento cosmológico dessa orientação estaria no mito do Pecado Original e a
consequente Queda Adâmica, que instaurou desde então na humanidade uma falta
constitutiva, uma separação entre homens e entre homens e Mundo. A “verdade disfarçouse”, instalamo-nos numa situação de imperfeição e predisposição corporal para o mal. O
Adão caído e necessitado, com o advento do capitalismo também estaria presente no homem
econômico dos tempos modernos. A sociedade foi fundada por causa da carência mundana. A
Natureza sendo vista como campo do instaurado e da necessidade. A passagem cósmica do
contínuo ao discreto associada a perfeição/imperfeição, também presente nos pensamentos
ameríndios mas nesse caso o momento fundante teria sido fruto de más escolhas4. Enquanto
no Ocidente, tratou-se de uma punição à cobiça pelo Divino (transcendência). A
consequência do acontecimento que instaurou a atual condição humana ocidental foi a autoculpabilização (SAHLINS, ibidem, p. 561-5).
A Queda estabeleceu uma perene zona de opacidade entre real/aparente (a cegueira
epistemológica como deficiência) que perpassaria a divisão espiritual/material (corporal).
Esses fundamentos cosmológicos comporiam o discurso/prática científica que tomou a perda
corporal como um acontecimento negativo inapelável que deveria ser disciplinado e
docilizado (FOUCAULT, 2010), administrado e negociado. A replicação dessa imagem
prototípica da Queda Adâmica, de uma unidade faltante original, empobrecida e culpada está
presente no corpo [d]Eficiente (entre outras modalidades de corporeidades minoritárias) e a
necessidade instaurada de constante vigília-cuidado (trabalho neurótico médico-familiar), e
também de separação entre os que devem viver e os que podem morrer. Esse pessimismo
cosmologicamente marcado por uma unidade faltante original de origem judaíco-cristã
também seria projetado para outros povos. Sahlins chamou de “teoria adâmica esclarecida” a
prática do funcionalismo antropológico de B. Malinowski, que reduziu cultura às
necessidades corporais dos indivíduos. O estrutural-funcionalismo de A. Radcliffe-brown
transpôs para escalas maiores o indivíduo biológico, a sociedade como organismo cujas
instituições manteriam a satisfação das necessidades vitais (SAHLINS, 2007 [1996], p. 569).
Tal trajetória antropológica produziu, com frequência, discursos pessimistas sobre a
transitoriedade do Outro.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Esses modos relacionais ocidentais corroborariam uma obsessão com a perda.
Acrescentemos a isso as proposições de M. Strathern (2014[1999]) acerca da perda na
produção antropológica. Esse dado cosmológico da unidade faltante original e suas
características especificamente ocidentais seria inescapável à prática etnográfica, como
qualquer outra prática de conhecimento euro-americana. Estavam presentes nas expedições
etnográficas do Estreito de Torres de 1898 e seu viés salvacionista do Outro que, em contato
com a “civilização”(Queda-perda) estava em vias de desaparecer.
O desenrolar da atividade antropológica e a crescente institucionalização do método
etnográfico, como base da especificidade desse ramo do conhecimento das ciências humanas,
envolveria também sentimentos de perda. A pressuposição teórica do Holismo e sua
incontornável incompletude. E por fim, a dinâmica envolvida entre campo-observação e
escrita-análise. As reordenações e reposicionamentos dessas áreas fariam com que os
antropólogos levassem consigo a premonição de um sentido de perda (STRATHERN,
ibidem, p. 346). Strathern nos oferece outra preciosa lição. Tão importante como a “imersão”
e o “momento etnográfico”, a “reflexividade” seria essencial para se chegar ao “efeito
etnográfico”. Não se trata da crítica pela crítica e sim de barrar até onde podemos projeções
indevidas no Outro. Essa prudência contribuiria para não incorrermos em um “pessimismo
sentimental”. A meu ver, as teorizações em torno da aculturação, mudança cultural e, de certo
modo do etnocídio, não chegaram a beneficiarem-se dessa reflexividade. Georges
Condominas, Robert Jaulin e Pierre Clastres5 projetaram, com distintos graus, a “metafísica
naturalista da escassez” ocidental nos povos com os quais conviveram, contribuindo para a
separação entre destruição-agressão física (maior violência) e agressão-destruição espiritual
(menor violência) de um povo.
O etnocídio nos Mundos ameríndios
Ao entrarmos nas concepções de mundos ameríndios temos que levar em conta, além
dessa projeção de uma “metafísica naturalista da escassez”, a limitação fenomenológica
ocidental a uma visão científica naturalista que toma as possibilidades de agência em um
gradiente a partir de uma rígida divisão sujeito/objeto que perpassa as subdivisões
animado/inanimado e animal/humano.
No caso dos modos existenciais ameríndios, a produção de pessoas e corporalidades
(SEEGER, DAMATTA & VIVEIROS DE CASTRO,1979) como uma delimitação não
categorial mas posicional dessas subjetividades por meio de um perspectivismo ameríndio
(VIVEIROS DE CASTRO, 1996;2002). Tais qualidades não se enquadram nos limites
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fenomênicos da divisão indivíduo/sociedade e Natureza/Cultura. Tal fato complica em muito
adentrarmos, por exemplo, o campo da nosologia indígena, classificando certos grupos de
relações como “psicológicos” ou “físicos”. Até mesmo o uso do qualificativo “psicológico” é
uma tradução bastante precária e agressiva, quando sua instrumentalização é imposta a
determinadas situações em que o Estado deveria fornecer assistência médica em consonância
com as legislações nacionais e internacionais que estabelecem direitos fundamentais dos
povos originários. Nesse sentido, práticas medicinais biculturais classificadas como
etnomedicina oferecidas a qualquer cidadão no México, países da América Central e Cuba
(Cf. MENA, 2011) parecem o contraponto ao que é praticado no Brasil. Essas considerações
são um ponto nevrálgico para os casos mais gritantes (claramente agressivos para a própria
percepção ocidental quando são tirados da invisibilidade), como o dilema atual envolvendo
os altíssimos índices de “suicídio indígena”6. Entre outros fatos graves cujas resoluções
possíveis imobilizam-se entre o discurso trágico do determinismo cultural acionado
convenientemente por agentes estatais - Isso é da cultura do índio, não tem como combater e o puro e simples discurso violentamente intervencionista - Devemos impedir que ajam a
partir de seus costumes bárbaros e atrasados .
Utilizar esse corpus teórico da Etnologia brasileira do final da década de 1970 em
diante que se beneficiou de uma maior intimidade com as “categorias nativas” (VIVEIROS
DE CASTRO,1999) permite, portanto, diminuir o grau de miopia inerente à nossa condição
ocidental, à prática etnográfica e à tendência histórica em separar de um lado estudos do
contato regados a generalizações distanciadoras e do outro as mônadas analíticas a respeito
dos mundos dos Outros. Nesse sentido, etnocídio não é um completo artifício retórico voltado
para combater injustiças
que acreditamos serem cometidas contra grupos minoritários
simplesmente a partir da nossa percepção de humanismo. Trata-se sim de uma invenção, uma
terceira via que tenta aproximar e tornar visível como essas sociedades apreendem o
infortúnio e como, de fato, para eles na maioria dos casos as relações com os brancos
multiplicam as possibilidades de maus-encontros.
Etnocídio e Cosmovisão
Se retivermos a profundidade do infortúnio que abateu entre os Mnong, o qual
Condominas procurou traduzir, a agressão-destruição do ethnos parecia algo mais complexo
do que a destruição de “patrimônio cultural” ou qualquer outra variação em consonância com
a concepção de cultura em suas definições alemã e francesa de kultur ou civilization
fundamentadas em torno do sentido de “cultivo do espírito” que se afinariam melhor com as
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
definições de vandalismo e genocídio cultural propostas por Raphael Lemkin. Os ataques
nazistas às expressões religiosas judaicas, mais do que a destruição de propriedade privada ou
coletiva, foram crimes que envolveram muito mais que a destruição do patrimônio cultural
como separação metafísica formal. O desenvolvimento do vandalismo para genocídio
cultural sugere que Lemkin iniciou a apreensão dessa profundidade.
A separação analítica etnocídio/genocídio, enquanto tradução de mundos distintos,
enfrenta, portanto, elementos de grande aderência em nosso pensamento, levando à ilusão de
concretude de uma separação abstrata. Todo desenrolar de ação que não se enquadre no
modelo monodologicamente fechado que permita a qualificação “estrutural” e a consequente
imputação de intenção criminosa monolítica relacionada a um único indivíduo, grupo ou
instituição leva à sensação de uma violência diluída no espaço e no tempo, caótica e
descontínua ou com menor grau de intensidade. Uma segunda consideração é a préconcepção de que os alvos atingidos por essa violência molecular seriam mais superficiais,
“externos" e destacados da fisicalidade da pessoa, como se as redes de corporalidades
estivessem circunscritas apenas à concepção de indivíduo e sua corporeidade biológica.
A combinação desses dois elementos normalmente não permite enxergar que
situações inseridas num quadro “não-estrutural” envolvem ímpetos genocidas em curso que
no máximo podemos traduzir como etnocídio, quando há uma reflexão crítica. Sob essa
perspectiva, na passagem do etnocídio para o genocídio, em vez de um agravamento da
violência marcado pela passagem da agressão ao “patrimônio cultural” para a integridade
física das pessoas, teríamos uma máquina cultural7 como resultado da composição de agentes
com interesses e de estruturas distintas transbordando a esfera restrita do aparelho estatal, ou
melhor dizendo, modos de pensar-agir estatais molecularizados numa “sociedade do
controle” deleuziana (DELEUZE, 2013[1992]), na qual qualquer um, a qualquer momento,
pode metamorfosear-se em agente estatal agressor. Esse movimento permite uma gradual
tradução cultural à medida em que os eventos criam possibilidades de multiplicação dos
maus-encontros dados nas próprias lógicas ameríndias, aumentando as interseções das
ressonâncias desses acontecimentos, levando ao enrijecimento das segmentarizações flexíveis
(DELEUZE & GUATTARI, 2008[1980], p. 85). Essa dinâmica torna a gravidade do
fenômeno visível também para ocidentais, adquirindo o padrão de consistência e
continuidade exigido pelos órgãos internacionais ligados aos direitos humanos que procuram
por uma “intencionalidade criminosa clara”, com limites formalmente definíveis ao
“monopólio exclusivo da força” utilizado pelo aparelho estatal e/ou apropriado por grupos
fundamentalistas oportunistas que parasitam as instâncias do poder estatal.
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As ressonâncias genocidas enquanto etnocídio dão a sensação sob nossa visão
ocidental e antropológica de ataques ao espírito coletivo e/ou individual (psicológicas), tais
como regressões legislativas, humilhações étnicas, expropriação cultural, depressão, mania de
perseguição8. Pensando com os povos ameríndios, quando o genocídio começa a ser
anunciado, denunciado, atingindo as partes mais "internas" das corporalidades das pessoas,
que costumamos delimitar como corpo físico (às vezes o aspecto psicológico é também
considerado aqui), frequentemente aconteceu muita violência encabeçada por uma máquina
cultural desgovernada. Clastres (1964) acreditava que o etnocídio com terreno livre
descambava para o genocídio. Para ele, o genocídio seria o etnocídio perfeito. A meu ver, o
etnocídio já é ressonância genocida; e no caso ameríndio, aquilo que as subjetividades
possuem como composições inseparáveis da produção, reprodução e expressão de suas
corporalidades e que classificamos como espírito, objetos culturais (tangíveis e intangíveis
[onomástica] para nós), fenômenos culturais, “território”, mundo sobrenatural, não permite
dizer que o etnocídio seja menos violento que o genocídio. A diferença, me parece, possui
sempre materialidade.
Em vez de insistirmos na dicotomia genocídio = diferença como mau absoluto
(maior violência) versus etnocídio = relatividade do mal na diferença (menor violência),
pensemos que as personificações do mau genocida farão o necessário para converter a
Diferença, buscando eliminá-la para digerir seus despojos irredutíveis. Tal fenômeno não
ocorre por osmose; não temos dois ambientes em que um deles é ativo por ser mais rico em
fatores civilizacionais que transmigram para o outro ambiente passivo, porque menos rico em
tais elementos. Esse raciocínio de fundo evolucionário sempre que teve oportunidade emergiu
nas teorizações semelhantes à noção de etnocídio9. Os efeitos colaterais perversos dessa seara
conceitual podem ser uma pista a mais para entendermos a tímida receptividade da noção de
etnocídio no Brasil. O etnocídio seria “aparentado” com a teoria da aculturação e suas
variações, que comumente foram associadas à perda cultural generalizada e irreversível e à
uma espécie de profetismo apocalíptico de longa data na antropologia. Contudo, a despeito
desse nexo analítico de índole homogeneizante, o exame mais cuidadoso do contexto de
emergência da noção de etnocídio no Nordeste de Saigon fornece uma reflexão mais
aprofundada da questão. O evento ocorreu pouco antes da eclosão da 2ª Guerra da Indochina
(Guerra do Vietnã), e antes que todo um povo fosse arrancado da terra de seus ancestrais para
habitarem campos de refugiados organizados pelas forças especiais norte-americanas. Os
Mnong gar indagaram um embaixador norte-americano que praticava caça esportiva em suas
terras:
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
¿Por qué los vietnamitas quieren arrancarnos de la tierra de nuestros antepassados?
No podemos vivir en otro sitio. Cuando un hombre deja esta tierra para ir a la
plantación o al ejército es siempre temporalmente y con la certeza de que habrá de
volver pronto. ¿ Como podrían entender los genios y los ancestros un abandono
semejante. Quienes emigren se verán pronto privados de su protección y
desaparecerán al poco tiempo. Además, quieren forzarnos a dejar los miir (la
agricultura de rozas) por el arrozal irrigado, que nunca hemos practicado
(CONDOMINAS, 1991, p. 432).
O que eles estão afirmando não me parece que tenha haver com perda cultural,
desorganização social, território e identidade ou mesmo contato interétnico. O afastamento de
pessoas não era um problema em si desde que se respeitasse o tempo certo que reclamava a
volta aos seus. Um espaço cosmopolítico povoado de agências com estatuto de sujeitos cujas
conexões seriam questão de vida ou morte. É essa precedência da cosmovisão e sua
consistência existencial que denuncia uma violência profunda eufemizada com termos como
“reagrupamento territorial”. Essa indagação dos Mnong soa bastante contemporânea se
pensarmos nas agressões crescentes aos povos tradicionais no Brasil em relação às
demarcações das Terras Indígenas. Essas [cosmo]visões evocam a premência de uma
tradução cultural e as possibilidades de rendimentos jurídicos que avancem ainda mais o foco
na prevenção contra os chamados crimes de Lesa-humanidade[s], compensando
minimamente o caráter eurocêntrico da teoria e prática dos direitos humanos.
Conclusão
No caso das populações originárias das Terras Baixas da América do Sul, as grandes
invenções culturais teriam origem no Outro, no fora. Parafraseando Eduardo Viveiros de
Castro, Carneiro da Cunha afirma que nesses regimes amazônicos de “predação cultural” a
formação de cultura seria aculturação (CUNHA, 2009b, p. 361). Pensar a prática etnocida, ao
menos no caso das cosmopolíticas ameríndias, não envolveria, portanto, a destruição de uma
unidade pré-estabelecida (um Volkgeist ou Volkskultur) gerada a partir de uma determinada
interioridade resultante da soma de volições dos componentes de uma coletividade. As
ressonâncias genocidas (etnocídio) remeteriam às interações nas quais multiplicariam-se as
possibilidades de infortúnio. Tomemos o etnocídio como uma tipologia criminal que indique
não apenas fatos consumados (que frequentemente só serão constatáveis a longo prazo) mas,
principalmente, intenções criminosas associadas à multiplicação das chances de infortúnios
dados nas lógicas ameríndias.
Maus encontros — enquanto possibilidade da experimentação de uma posição de
diferença com o perigo palpável de um ponto sem retorno — apresenta-se como um perigo
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recorrente nos mundos ameríndios dada a característica pan-americana da abertura à
diferença. Viveiros de Castro associou o mau-encontro à algumas das agências características
da inimizade ameríndia (mortos, “espíritos”) vistas como “germes de Estado” que nos relatos
indígenas desencadeariam “quase-eventos” capazes de transformar irrevogavelmente
humanos em não-humanos. Essas imagens personificadas do infortúnio retiradas das
cosmopolíticas ameríndias e dotadas de afecções perigosas (raiva, tristeza-saudade) foram
associadas aos brancos desde o primeiro convívio mais íntimo estabelecido com muitos
povos indígenas. As percepções ameríndias sempre tiveram suas próprias elaborações
teóricas a respeito do mal, das doenças e dos perigos que circulam por aí (ALBERT &
RAMOS, 2002). É importante considerarmos, assim, o risco de hipostasearmos o poder de
sociedades que atuam sob o signo do Estado como algo completamente desconhecido da
experiência indígena, como algo altamente dominador e nocivo em si. Por exemplo, numa
situação de intensificação do que traduzimos como mortes indiretas devemos considerar o
acionamento recorrente de noções escatológicas e nosológicas nativas e de suas prescrições e
tabus que regem redefinições e neologizações de contextos incomuns, mas não
incognoscíveis e nem inerentemente aterradores e destrutivos devido à perplexidade
paralisante diante do desconhecido.
O sufixo cídio, enquanto assassinato, remeteria juridicamente não somente à
consumação de um ato criminoso e sua constatação mas também julgaria sua premeditação e
tentativa de atualização. Do modo como tenho enxergado, é disso que se trata o etnocídio:
uma ressonância genocida que já possui uma atualização em curso e que pode ter n desfechos
de acordo com as circunstâncias históricas envolvidas. Associados a essa profunda semiose
do termo estão os contextos que antecederam, mas ganharam maior visibilidade nos eventos
históricos da 2ª GM, Guerra do Vietnã e La Violencia colombiana que produziram crimes em
larga escala contra os povos envolvidos. A partir da apresentação desses três contextos
emergiram períodos prolongados de violências cujos momentos oficialmente reconhecidos
como conflitos foram as partes “mais visíveis” de uma negação concreta da diferença.
As violências desencadeadas nestas circunstâncias atingiram tamanha frequência que
não é estranho que mesmo anos depois alguém que não tenha vivido tais experiências em um
primeiro contato com os fatos registrados, principalmente quando vemos imagens ou
escutamos relatos das atrocidades cometidas contra corpos dos vivos e mortos, paralise nossa
razão aflorando sentimentos que traduzem um misto de revolta, compaixão, apreensão e,
principalmente, angústia. A sensação de que a humanidade perdeu algo pelo caminho, objeto
perdido que nos impulsiona à devoração avassaladora de nossas possibilidades existenciais,
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multiplicando incessantemente nossas necessidades na ânsia de alcançar a restituição da
primeira unidade, fonte de nossa origem. O que a história mostra é que a repulsa ocidental à
diferença nunca teve nada de abstrata. As agressividades etnocidas parecem que sempre
voltaram-se contra Outros bem concretos. O desenvolvimento “moderno” de um maquinário
sofisticado e maior distanciamento entre agressores e agredidos não diminuiu ou tornou a
violência mais sutil, mas aprimorou seus meios de mascaramento científico, seja por
abomináveis equívocos, deliberadas omissões e/ou manipulações dos fatos. O sentido político
dessa noção, portanto, não parte de um humanismo, um universalismo, completamente
estranho ao Outro unicamente para aplacar nossa angústia diante de um mal do qual fazemos
parte e pelo qual muitos de nós também são afetados. A tentativa é oferecer àqueles que não
possuem familiaridade com os “efeitos etnográficos” ou “choque cultural” uma tradução
(obviamente parcial) do modo como cosmopolíticas ameríndias apreendem certos conjuntos
de agressões; como certas desconexões e relações que, para nós passam por outras escalas e
cristalizações podem, para esses povos, representar perigo em vez de segurança. Não se trata
da reprodução de um paternalismo, proteger o indefeso e sim, demonstrar que essas pessoas
reivindicam apenas os meios para realizarem suas autogestões de modos de vida, e que suas
elegantes soluções mostram-se como alternativas de futuro cuja inspiração devemos
apreender com urgência
Retenhamos o caráter imprescindível da tipologia criminal do genocídio criada por
Lemkin que gerou uma ruptura com o nexo de causalidade da guerra para caracterizar certos
crimes de lesa-humanidade[s]. Essa perspectiva também está presente com diferentes ênfases
em Condominas e Jaulin. Os contextos históricos envolvendo os Judeus, Mnong gar e Barí
demonstram que a guerra é apenas o momento que contrai ao máximo o espaço/tempo e
enrijece situações de agressividade generalizada que já ocorriam nos períodos de suposta paz.
Além disso, temos que notar a necessidade de tensionarmos os fundamentos cartesianos de
nosso pensamento que levam a dicotomizar e qualificar a violência em termos de
espírito/corpo. Contudo, para avançar a reflexão acerca do crime de etnocídio, elementos
contidos na tipificação do genocídio devem ser criticamente considerados. São eles a “clara
intenção criminosa” e uma “ ação criminosa continuada” ou um “padrão de consistência” –
características imbricadas com uma lógica estrutural da violência.
A respeito da amplitude dos crimes cometidos no caso da acusação de etnocídio, em
comparação com o genocídio, nos três contextos mencionados, Lemkin, Condominas e Jaulin
operaram com um arcabouço conceitual que continha termos como “grupos étnicos” e
“identidade cultural” que reportam a um nível de sentido importante para as populações
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assim definidas sob o sentimento de pertencimento e reconhecimento comuns. Entretanto, há
diferenças em níveis existenciais ainda mais amplos que não envolvem a “Cultura”.
Importante reiterar essa advertência para refletirmos sobre o atual centro de gravidade dos
conflitos em torno dos direitos territoriais dos indígenas no Brasil. Os “territórios” indígenas
e suas reivindicações passam ao largo do que definimos de modo meramente econômico
como posse da terra, e que, no máximo, traduzimos com frases do tipo “grupos indígenas
possuem uma identidade cultural com seu território”. Pensar a importância da terra como
território é utilizar uma codificação estatal, o que nega o fato de tratar-se de um espaço de
afinização, de parentesco, em que as agências são sinônimo de sujeito e que elas ultrapassam
em muito nossa definição antropocêntrica.
Des-subjetivamos amplos espaços de convivência habitados por agências cuja
existência desconhecemos e que não incluímos na definição de humano. Foi esse ataque a
uma cosmovisão indígena que Condominas demonstrou estar em curso com a retirada dos
Mnong de Sar Luk (suas terras ancestrais) para habitarem campos de refugiados. Essa relação
com a Terra que a Declaración de San José sobre Etnodesarollo y Etnocídio en América
Latina, de 1982, quis afirmar no seu sexto parágrafo10. Ao tomarmos essa discursividade sob
a luz de uma visão atualizada do etnocídio para pensar o “território” nos aproximamos de
outra noção recentemente abordada por Viveiros de Castro e Danowski (2014): Ecocídio.
De um lado teríamos modos de vida baseados em um regime de irresponsabilidade
consumista no qual as pessoas comportariam-se como se o humano pudesse, enfim,
desvencilhar-se dos últimos laços da limitação e finitude do Mundo pós-Queda. Trataria-se
apenas de acelerar essa nova promessa de transcendência tecnológica capaz de levar a uma
“humanidade extra-corpórea” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 78). Essa
dinâmica unilinear e acelerada estaria em cheque com a “intrusão de Gaia”. A consciência
dessa força transcendental e indiferente seria um convite para resistir ao Antropoceno
avançando impavidamente o apocalipse climático antes que a Sociedade absorva as rápidas
mudanças. Estaríamos vivenciando, na verdade, uma guerra civil não declarada, repleta de
múltiplas intencionalidades que interpenetrando-se, dissolveriam “dentro” e “fora”,
organismo e ambiente. Situação que impediria a factibilidade
absurda de um sujeito
universal, policiador que, por meio da Ciência arbitraria uma simples“crise ambiental”. A
oferta irrecusável seria a des-aceleração, abdicação das grandiosidades irresponsáveis e a
compreensão de que humanidade e Mundo estão do mesmo lado (ibidem, p. 147).
Do ponto de vista das cosmologias ameríndias, além do tema das más-escolhas
(distinto da culpa ocidental acarretada pela Queda adâmica), o tempo pré-cosmológico foi
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habitado por uma humanidade primeva altamente transformacional cuja característica
ontológica definidora do ser estaria no antropomorfismo. Ao contrário do Ocidente, nos
mundos ameríndios foi a Natureza que separou-se de um fundo cultural universal. “A ênfase
na práxis indígena seria na produção regrada das transformações” (ibidem, p. 92), o que
significa que, embora esses povos busquem aberturas para a Alteridade, haveria entre eles um
forte sentido de prudência e respeito com os passos dados em seus mundos repletos de
agências, muitas delas perigosas, com às quais buscariam cuidadosas relações de afinidade. O
que definimos “ambiente” nas perspectivas ameríndias seriam sociedades entre outras, “uma
arena internacional, uma cosmopolítica” (ibidem, p. 94). Desse modo não haveria nessas
paragens uma divisão Sociedade/Natureza classificável em termos de Sujeito/objeto. Nessas
cosmovisões familiarizadas com apocalipses periódicos, o Mundo seria inseparável da
proliferação da vida e das agências e suas técnicas estariam ancoradas nessas concepções,
como no caso Yanomami explicitado por Davi Kopenawa:
“Os brancos não se perguntam de onde vem o valor de fertilidade da floresta. Nós o
chamamos në rope. Devem pensar que as plantas crescem sozinhas, à toa. Ou então
acham mesmo que são tão grandes trabalhadores que poderiam fazê-las crescer
apenas com o próprio esforço! Enquanto isso, chegam a nos chamar de preguiçosos,
porque não destruímos tantas árvores como eles! Essas palavras ruins me deixam
com raiva. Não somos nem um pouco preguiçosos! As imagens da saúva koyo e do
lagarto waima aka moram dentro de nós e sabemos trabalhar sem descanso em
nossas roças, debaixo do sol. Mas não fazemos isso do mesmo modo que os
brancos. Preocupamo-nos com a floresta e pensamos que desbastá-la sem medida só
vai matá-la. A imagem de Omama nos diz, ao contrário: “Abram suas roças sem
avançar longe demais (...)”(KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 468-9).
Estamos numa encruzilhada pois os chamados “modernos” mesmo sendo
confrontados com a inevitabilidade do abandono de modos de vida altamente nocivos, em sua
maioria não parecem dispostos a isso. O que estaria posto não seria o impossível retorno de
todos os “modernos” às florestas e afins mas a possibilidade de um “devir-índio” que estaria
ocorrendo em “setores importantes da “população” brasileira de um modo completamente
inesperado”(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 158). A prevenção contra o
etnocídio sob o panorama atual estaria distante do discurso sobre um Outro frágil e carente de
tutela. São os povos indígenas e tradicionais e sua prudência com o estar no Mundo que tanto
evitam o pior (Como Kopenawa nos lembra, quando o último xamã morrer o céu desabará de
vez) como oferecem alguma saída de futuro desse labirinto infernal no qual nos metemos.
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Notas
[1]
<https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/liderancas-indigenas-lancammanifesto-contra-onda-de-intolerancia-religiosa>.
[2] Le livre blanc de l‟ethnocide en amérique (1972) publicado em espanhol como El etnocidio a
través de las Américas (1976) e La Des-civilización, política e prátctica del etnocidio (1974).
[3] Essa qualidade parece operar inconscientemente, pois em uma das coletâneas de textos reunidos
por Jaulin a teoria marxista é considerada como parte da prática etnocida.
[4] Nas narrativas miticas a instauração da atual realidade dos homens não seria marcada portanto
pela culpa. As figuras que encarnam essa passagem são positivadas: “Cegos ou mancos, vesgos ou
manetas, são figuras mitológicas frequentes pelo mundo afora, que nos deixam confusos porque seu
estado nos aparece como uma carência. Mas, assim como um sistema que a subtração de elementos
torna discreto fica logicamente mais rico, apesar de estar numericamente mais pobre, os mitos
frequentemente atribuem aos aleijados e doentes uma significação positiva: eles encarnam os modos
da mediação. Encaramos o aleijão e a doença como privações do ser, e, portanto,um mal. Entretanto,
se a morte é tão real quanto a vida e se, consequentemente, só existe o ser, todas as condições mesmo
as patológicas, são positivas a seu modo”(LÉVI-STRAUSS, 2004[1964], p. 76).
[5] Como mencionei no último capítulo, Pierre Clastres desenvolveu posições críticas que não deixam
de ser reflexividade, principalmente em torno das visões excessivamente materialistas e que que
negavam a agência política dos povos indígenas. Ao acrescentarmos outras considerações em torno da
imanência da guerra sua obra aproximou-se bastante da ideia de socialidade proposta por Strathern na
Melanesia e depois predada para pensar a afinidade potencial nas Terras Baixas da América do Sul. A
meu ver, Clastres não viveu para também refletir sobre concepções de subjetividades para além do
indivíduo. Ele estava em nítida sintonia com a crescente auto-critica americanista, não fossem sua
morte prematura em 1977, talvez a proposta da noção de Pessoa para pensar os povos ameríndios
tivesse contado com a participação de Clastres em 1979.
[6] Em uma coletânea recente (ARÁUZ & APARÍCIO, 2017) o fenômeno que definimos como
suicídio é abordado em mais de dez sociedades ameríndias, entre elas os Ye‟kuana, Ticuna, Matses,
Sorowahas, Suruwahas, Aikewara, Karaja e Kaiowa. A partir desses múltiplos casos destacam-se duas
observações de maior importância. Primeiro, na maioria desses casos o “suicídio” é um homicídio
causado por agências personificadas associadas a certas afecções perigosas quando uma pessoa rompe
ou escapa de modo prolongado a uma determinada rede de corporalidade. Segundo, o chamado
encontro [neo]colonial não pode ser visto como único, principal e até mesmo um fator determinante
na eclosão de “suicídios”. Isso não exclui o fato de que a convivência com não-indígenas aumente a
frequência desses acontecimentos dados sob lógicas ameríndias. As políticas públicas ignoram com
frequência a alteridade fenomênica dessas situações, implantando programas de combate e prevenção
de “suicídio”, que em vez de mitigar, recrudescem os aspectos negativos de situações apontadas como
problemáticas pelas próprias lideranças indígenas.
[7] Essa noção foi utilizada por Robert Jaulin (1973[1970]) e Pierre Clastres (2004[1974]) em suas
reflexões a respeito de etnocídio. O conceito pós-estrutural de máquina foi desenvolvido por Félix
Guattari pela primeira vez em 1969 numa coletânea traduzida em português como Psicanálise e
Transversalidade: ensaios de análise institucional (GUATTARI, 2004 [1969]). Por questão de espaço
não poderei desenvolver esse tópico aqui, mas a noção de máquina cultural me parece essencial para
pensarmos o contexto brasileiro atual em termos da necropolitica proposta por Achille Mbembe e da
sociedade da atenção sugerida por Jonathan Crary em Capitalismo Tardio e os fins do sono (CRARY,
2016). Para além das violências “mais visíveis”, essa chave interpretativa permitiria compreender
melhor o contexto generalizado das crescentes violências normatizadas na sociedade civil e Estado.
Num momento em que a Modernidade proporcionou aos indivíduos uma maior sensibilidade
psicológica (como nos sugeriu Norbert Elias em A Sociedade de Cortes), não deixa de ser curioso que
o aparelhamento da violência estatal tenha aprimorado técnicas sofisticadas de terror, tortura e
punição (FOUCAULT, 2010) “psicológicos”. Das armas “não-letais” às torturas por privação do sono
e superexcitação sensorial, os exemplos se multiplicam, principalmente com as inúmeras telas que
atualmente capturam nosso tempo e atenção, numa mobilização estressante dos nossos afetos.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
[8] Tomar as agressões às complexas redes de afetos ameríndias como simples patologização em
termos ocidentais têm efeitos violentos tanto no campo discursivo como nas aplicações de assistência
médica.
[9] Refiro-me aos congêneres teóricos (as teorias do difusionismo, da mudança cultural, aculturação)
que precederam as primeiras conceitualizações do etnocídio e que no Brasil desenvolveram variações
sofisticadas (transfiguração étnica, fricção interétnicas) como mostrou Viveiros de Castro (1999). O
que há em comum em todas essas proposições é a referência ao Outro sempre nos termos de um
monólogo pessimista da perda salpicado de formais considerações relativísticas.
[10] “Para los pueblos indios la tierra no es sólo un objeto de posesión y de producción. Constituye la
base de su existencia en los aspectos físico y espiritual en tanto que entidad autónoma. El espacio
territorial es el fundamento y la razón de su relación con el universo y el sustento de su cosmovisión”
(<http://www.flacsoandes.edu.ec/biblio/catalog/resGet.php?resId=13135>).
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Os produtores rurais e o rio Jacaré: um estudo de caso em Oliveira-MG
Ana Paula Santos Rodrigues
PPGAN-UFMG
O presente estudo é parte de uma pesquisa mais ampla, sobre as relações estabelecidas
pela população do município de Oliveira, localizado no centro-oeste mineiro, com o rio
Jacaré. O Jacaré é um rio de cerca de 160 km. de extensão, que atravessa sete cidades e serve
ao abastecimento de Oliveira, que abriga algumas de suas nascentes. Atualmente, o rio
encontra-se extremamente degradado e sofre com um assoreamento intenso, já tendo perdido
algumas lagoas marginais, nascentes e várzeas. Oliveira também passou por uma crise hídrica
entre 2013 e 2014, que levou ao cancelamento de aulas e atividades culturais como o
carnaval, levantando na esfera pública a importância de se falar sobre o rio. A exploração
antrópica da bacia do Jacaré é ampla e antiga¹, sendo a principal causadora da degradação do
rio, por isso, a fim de entender porque ele está tão degradado, busquei compreender quais
modos de existência e compreensão do mundo estão presentes nos muitos atores que se
relacionam com ele. Para isso, entrevistei moradores e ex-moradores, frequentadores
ocasionais, estudiosos, ambientalistas, agentes do estado e produtores rurais. Também visitei
trechos do rio, fazendas, reuniões, eventos ambientalistas e realizei pesquisas bibliográficas
em livros sobre o município e no jornal Gazeta de Minas. Para este artigo, levarei em
consideração principalmente as 4 entrevistas realizadas com produtores rurais que possuem
propriedades banhadas pelo Jacaré. Como nossas entrevistas e conversas extrapolaram o tema
do rio, trato, também, do entendimento desses produtores sobre o meio ambiente de forma
geral. Três temas foram centrais nesta pesquisa: a relação dos produtores rurais com o rio
Jacaré e o meio ambiente, a relação com a legislação ambiental e com os agentes do Estado, e
a relação com os ambientalistas. Alguns nomes dos entrevistados foram mantidos e outros
modificados de acordo com suas preferências.
O rio Jacaré
Em Oliveira são retiradas do Jacaré cerca de 0,252 m³/s sendo 0,023 m³/s para
dessedentação animal 0,028 m³/s para a indústria, 0,167 m³/s para o abastecimento humano e
0,033 m³/s para a irrigação, o que indica que o maior uso das águas do rio no município é
para o abastecimento humano. Porém, não é apenas a retirada de água que impacta em sua
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preservação. Para compreender porque o Jacaré está tão degradado precisamos levar em conta
a ocupação do solo em sua bacia, que possui uma a área de 211.141,70 hectares, sendo que
destes mais de 184.032 hectares são ocupados por usos antrópicos, isto é, cerca de 86% da
área total (IGAM, 2011, p.123). Para uma noção mais completa da exploração antrópica da
região, na tabela abaixo podemos ver os resultados de um estudo realizado em 2011, onde
foram mapeadas 8 classes de ocupação do solo, a classe “outros usos” representa os usos
antropizados (pastagem, solo exposto, e outras) que após a classificação das imagens foram
agrupados em uma só categoria:
Bacia do Rio Jacaré: classes de cobertura do solo.
Fonte: Plano diretor da Bacia Hidrográfica do Rio das Mortes, 2011, p.123.
O grande uso antrópico da área da bacia do rio Jacaré traz muitos prejuízos
socioambientais. Oliveira e Santo Antônio do Amparo- que apresentam as maiores áreas
urbanas da bacia- chegam, juntas, a um número de quase 564 voçorocas mapeadas em uma
área de quase 784 hectares (Ferreira e Ferreira, 2009). As voçorocas são agravadas pelo mau
uso do solo: grande parte da região onde se encontram é tomada pela pastagem e pelo plantio
de café e outros gêneros que não são capazes de fazer a proteção contra a erosão provocada
pela chuva. Segundo Ildeano Silva, muitas nascentes do Jacaré estão próximas ou dentro de
voçorocas, e ele teme que isso as leve ao assoreamento.
O assoreamento é um dos principais problemas socioambientais encontrados no Jacaré
e se caracteriza como um processo onde o solo nas margens de um rio é erodido e os
sedimentos são carregados para dentro de seu curso. Este processo geralmente se deve à
perda da mata ciliar, que faz com que partículas do solo lavado pela chuva escoem para o rio
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sem nenhum impedimento. O excesso de partículas depositados no leito pode formar bancos
de areia e tornar o fluxo da água mais pesado, o que propicia enchentes e a quebra das bases
de pontes que estiverem em seu caminho (Pena, 2016). O processo de assoreamento também
leva à perda de profundidade e interfere na biodiversidade do lugar: como as águas se tornam
barrentas com os sedimentos depositados, a luz do sol não consegue penetrá-las, dificultando
a proliferação de algas e outras plantas aquáticas, o que traz consequências para todo o
ecossistema local (Martins, 2011).
No caso do Jacaré, o assoreamento é tão intenso que em muitos locais podemos
caminhar pelo rio sem que a água atinja os joelhos. A quebra da base da ponte localizada no
Km.619 da BR381 é outro fato que pode ser creditado ao assoreamento do rio, sem contar a
perda de algumas espécies de peixes. Como foi dito, o assoreamento se deve, na maioria das
vezes, à perda da mata ciliar e da proteção vegetal de morros próximos ao rio, mas no caso do
Jacaré podemos citar como agravante o projeto Pró-Várzeas, um empreendimento realizado
nos anos 1970, que retirou os meandros do rio em cerca de 18 quilômetros.
O afundamento da calha do rio, causado pela extração de areia, é outro problema
importante a ser lembrado, posto que dificulta seu transbordamento, fazendo desaparecer
várzeas e lagoas marginais. A dificuldade de recarga da bacia hidrográfica é outro problema
encontrado e é o foco do trabalho da ONG Gramds (Grupo Ambiental de Desenvolvimento
Sustentável), que tem como mote que a causa da degradação do rio está, na verdade, no solo,
que passou por um processo de compactação ao longo do tempo, o que impede que a água
penetre na bacia, prejudicando as águas subterrâneas, o que dificulta a manutenção e o
surgimento de nascentes. Também precisamos citar a poluição, visto que o Jacaré recebe uma
grande carga de dejetos em algumas cidades por onde passa, inclusive em Oliveira, que
aguarda há pelo menos 30 anos a construção da estação de tratamento de esgoto.
Como podemos perceber, existem conflitos sobre quais os reais motivos da degradação
do Jacaré. Alguns colocam a degradação como fruto de erros antigos, que não devem ser
esmiuçados, ou de fatores naturais, como a pobreza do solo na região. A maioria das pessoas
apontou como problema maior a extração de areia, mas também foram citados o plantio de
eucalipto, a criação de búfalas, a criação de gado, a diminuição das chuvas, a poluição
provocada por empresas (principalmente laticínios), a poluição gerada por esgoto não tratado,
o lixo jogado pela população, o plantio de tomate, o excesso de poços artesianos, o excesso
de irrigação de modo geral, o risco de contaminação devido à proximidade com rodovias, a
mineração, a exploração do cascalho e o uso da água retirada diretamente do rio para
abastecimento da população oliveirense. Muitas atividades apontadas como foco da
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degradação possuem relação com a exploração agrícola, como a lavoura, a pecuária e a
silvicultura, e podemos dizer que as causas da degradação são múltiplas e advém da junção
de pequenos processos, o que torna mais difícil compreender e combater o problema.
Também se encontram, no rio, projetos de sociedade distintos, muitas vezes conflitantes.
Aqui, lembramos a afirmação de Zhouri (2007), que mostra que “o mundo material é
entrecortado por sujeitos sociais que elaboram projetos distintos de uso e significação do
espaço, seja ele rural ou urbano” (ZHOURI, 2007, p. 2), sendo distintos os projetos de
agentes do estado, ambientalistas ou produtores rurais. O Jacaré pode ser lugar de religião, de
lazer, de proteção, de exploração econômica, dependendo do grupo social a que pertence o
entrevistado, sua história de vida, etc. Ao tratar do problema urgente de sua degradação, a
visão dos produtores rurais é de suma importância, pois eles são o grupo social que possui
uma relação mais próxima com o rio, sendo dependentes diretamente da exploração do
ambiente para seu sustento, e atores chave no que diz respeito à conservação do Jacaré, posto
que suas práticas vão determinar, em grande medida, o futuro do rio. Por isso, é importante
perceber quais conceitos de “natureza” estão em jogo, qual a relação dos produtores com as
leis ambientais e agentes do Estado, além da relação estabelecida entre produtores rurais e o
movimento ambientalista que se dedica atualmente à preservação do Jacaré no município de
Oliveira.
Os produtores rurais
Visitei 3 fazendas próximas ao Jacaré, pertencentes a quatro produtores rurais.
Rosemaire e João são cunhados e vizinhos, e ambos moram nas mesmas casas desde que
nasceram, no povoado do Jacaré. Inácio é pai de Amadeu e eles compraram juntos a fazenda
chamada Diamante, em outra parte do rio. Inácio e Amadeu não moram na terra, mas os
outros entrevistados sim. Todos os entrevistados trabalham nas propriedades, num regime de
agricultura familiar (porém, contratam trabalhadores ocasionalmente). Rosemaire aluga parte
da terra para a Gerdau.
Rosemaire me conta que sua família sempre morou ali, e os velhos muros de pedra do
curral atestam esta história. Segundo ela, eles estão ali “desde sempre”. Teriam sido feitos
por pessoas escravizadas? Não sei, o que se sabe é que Rosemaire herdou a fazenda de seu
avô, que gostava muito dela. Quando cheguei ao local, ela estava alimentando o gado, mas
me disse que trabalha cuidando da casa e dos filhos. O curral está instalado logo ao lado de
sua casa, e em seu quintal avistamos o rio.
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Rosemaire não vai tanto ao Jacaré, embora brincasse nele quando criança. Seu filho,
por sua vez, gosta muito de pescar. Ela se lembra de que o rio tinha cheias muito mais fortes,
e fala da diminuição das chuvas. Conta-me também que se mudou para a cidade por um
tempo, por questões de saúde da filha, mas quis voltar para seu lugar de origem. Na casa,
verduras, bananeiras, plantas ornamentais, fogão à lenha, piso de cimento batido. Ao lado do
muro, vejo uma casca de cobra. Pergunto se tem muita cobra por ali. Rosemaire diz que sim,
muitas: jararaca, cascavel. Ela tem muito medo, mas é ela mesma quem mata quando aparece.
Na região também há muitos lobos e é possível ouvir seus uivos à noite.
A forma como cheguei nessa fazenda foi através do policial ambiental Antônio, que me
levou à região, e Rosemaire foi a única produtora rural com quem consegui conversar. As
mulheres têm um histórico de desvalorização no campo, gerando um maior êxodo da parte
delas (Abramovay, 1995), o que pode ser um dos motivos para eu não ter encontrado
nenhuma mulher administradora de alguma fazenda. No caso oliveirense, segundo o censo
agropecuário realizado em 2017 pelo IBGE, dos 1292 imóveis rurais do município, 1.072
pertenciam a pessoas do sexo masculino, e apenas 120 a pessoas do sexo feminino. A
desigualdade de raça também é gritante: 1.044 proprietários brancos, e apenas 55 pretos e 87
pardos.
Em um estudo realizado no Paraná por Abramovay et al. (1995), 10 de 16 mulheres
entrevistadas consideravam o trabalho na agricultura muito pesado, sofrido e cansativo e foi
atestado que a dupla jornada de trabalho é muito comum entre elas. Esta realidade ainda não
mudou significativamente, e na região de Oliveira, além da dupla jornada ainda existem
mulheres que recebem menos por dia de trabalho na panha de café ou em outras atividades
agrícolas. Outro aspecto importante que impacta na desigualdade de gênero no campo é que
na agricultura familiar ainda é comum que o pai administre o dinheiro gerado pelo trabalho
dos filhos e filhas, e das esposas, garantindo um controle patriarcal sobre a família
(Abramovay et.al, 1995).
Na conversa com Rosemaire não pude perceber muitas questões ligadas ao trabalho
agrícola, visto que ela tem como prioridade o trabalho doméstico, mas percebi um apreço
pelo lugar em que nasceu e mora e aparentemente poucas preocupações ambientais, embora
ela perceba muitas mudanças no rio, como o fato de não ter cheias tão fortes quanto antes e
estar com a calha mais afundada.
Ao lado da fazenda Jacaré está a propriedade de João, pecuarista que é casado há
poucos anos, e que já viveu muito tempo sozinho na pequena casa herdada dos pais, onde
nasceu (de parteira) e vive até hoje. Enquanto caminhamos pelo mato ele diz que não há
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nada melhor do que viver em contato com a natureza. Percebo seu apreço por aquele lugar e
pelo rio. A coisa que ele e sua esposa Ivani mais gostam é pescar. Se pudessem, pescavam o
dia inteiro: nem trabalhavam, ela diz. Ivani conta que conversou com o ambientalista Ildeano
Silva, para que ele a orientasse sobre como preservar a nascente que está no terreno.
Atualmente, João cria búfalas e vende seu leite para os Laticínios Bom Destino. O leite
de búfala é mais caro e muitas pessoas optam por produtos feitos a partir dele porque ele tem
menos colesterol. As búfalas são um gado rústico e só necessitam de pastagem e um pouco de
complemento para a alimentação. Elas também gostam de se esbaldar na água dos rios, e
João mora a poucos metros do Jacaré.
Todos os entrevistados concordam que o Jacaré está muito degradado, mas cada um
fala que o problema é uma atividade que não fazem: quem cria vacas culpa a criação de
búfalas, quem cria búfalas culpa o eucalipto e assim por diante, mas o produtor rural Inácio,
que tem 82 anos, pensa um pouco diferente. Ele diz que ele e os outros produtores rurais têm
responsabilidade sim sobre a degradação, mas o porquê disso deve ser compreendido.
Também diz que é preciso que o governo incentive os produtores, pois o que acontece agora
é que eles precisam arcar privadamente com a preservação que beneficia toda a sociedade.
Em suas palavras:
Alguns, maioria dos produtores rurais, também não amam a natureza. A maioria.
Porque se todos amassem a natureza, o produtor rural era um guardião da natureza,
porque ele tá ali todo dia, todo dia ele tá ali. Mas tem que amar a natureza, não tem
que pensar só nele. Se ele pensar, tiver humanidade, e pensar na população, porque
também são todos iguais, são todos irmãos, ele seria um guardião da natureza.
Agora o que às vezes o meio ambiente quer, isso aí minha filha, tá inverso. Porque
você vê, hoje a lei diz claramente que a água não é do produtor rural, ele tem que
cuidar dela e não é dono, porque o dia que ele precisa de água tem que requerer uma
outorga, então se ele for mais racional ele fala “eu não vou cuidar da água porque
ela não é minha, ela é do poder público”, né? Agora, se ela é do poder público, o
que que o poder público teria que fazer? Bancar custo. Pra conservação das
nascentes, nesse caso, do rio (Inácio em entrevista, 2018).
Inácio aponta a contradição: o produtor rural é quem possui mais chances de proteger a
“natureza”, visto que é o que está mais próximo dela, mas ao mesmo tempo precisa explorála para sobreviver economicamente e não têm condições econômicas de preservá-la. A
população rural também sofre com o descaso do governo e com a ideia de que o campo é o
lugar do atraso. Inácio foi vice-presidente do sindicato dos produtores rurais e já ouviu de um
prefeito que os produtores deveriam “pegar um carrinho de mão e arrumar as estradas rurais”
ao invés de cobrar isso da prefeitura. As políticas públicas, quando existem, muitas vezes são
impostas ao campo sem diálogo, de maneira autoritária e sem levar em conta os modos de
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vida da população. Como aponta Galizzoni, em um trabalho realizado com populações rurais
de Minas Gerais:
As famílias são unânimes em afirmar que as leis ambientais só prejudicam os mais
pobres, e todos gostariam que elas mudassem. É necessário notar sobre esse aspecto
repressivo da lei: ela rebate de forma desigual sobre grandes e pequenos
possuidores de terra, gerando verdadeira repulsa por parte dos agricultores que
possuem parcelas pequenas de terra em obedecer a elas, já que as leis não se
adequam à realidade das terras dos agricultores e restringem muito suas
possibilidades produtivas. Tal qual ocorre em outras áreas de Minas Gerais; cabe
aos pequenos produtores o custo da conservação ambiental. Entretanto, eles
recebem pouquíssimos incentivos ou compensações por isto (Galizoni, 2005, p.92) .
As realidades enfrentadas por pequenos e grandes produtores são diferentes, bem como
as racionalidades que guiam suas ações. Como salienta Laschefski et al., observa-se que
muitas vezes os problemas específicos dos pequenos agricultores, que vivem uma maior
pressão material e possuem menor acesso a bens do mercado, são apropriados “de forma
generalizada na defesa dos interesses de atores vinculados ao agronegócio globalizado”,
acabando “por inserir todos os grupos em iguais condições no aparato legal, sem considerar
as especificidades existentes”(LASCHEFSKI et al., 2012, p.408 . Portanto, vale lembrar que
falar sobre a falta de diálogo e a repressão da lei sobre os pequenos agricultores não é o
mesmo que defender a flexibilização das leis ambientais para atividades de grande impacto,
como monoculturas extensas, grandes projetos minerários, etc., conforme vem sendo
argumentado por alguns setores do meio empresarial.
Inácio é enfático sobre o aspecto repressivo do poder público e, como muitos outros
entrevistados, cita a corrupção dos órgãos ambientais, que não realizam seu trabalho de forma
correta. A palavra meio ambiente é usada em seu discurso como sinônimo de natureza, mas
também de órgãos ambientais e de ambientalistas, os dois últimos vistos como distantes e
pouco conhecedores da realidade dos produtores rurais. Nas palavras de Inácio:
Nós estamos todos reconhecendo que estamos precisando de olhar pra esse lado.
Agora, uma coisa que eu me revolto é deles falarem que o produtor rural é
criminoso, pelo contrário, ele é um guardião da natureza porque ele tá ali todo dia,
se ele quiser ajudar, ele tá ali todo dia, ele tem mais condição de permanecer no
local, porque as pessoas da cidade vêm e cuida e vão embora, né, e ele tá sempre
ali. Porque ele depende da terra pra sobreviver. Por isso que eu acho que o Meio
Ambiente, o poder público, tinha que ajudar nessa parte com custos financeiros, e o
produtor reconhecer que ele tem que fazer melhor da parte dele também. Não é só o
meio ambiente não, porque eu reconheço que pro meio ambiente também fica
complicado, porque é isso que eu tô falando, eles não estão todo dia. Hoje tá muito
avançado a fiscalização, esses trem, mas a gente nem convem falar da fiscalização,
não deve” (Inácio, em entrevista, 2018- grifo meu).
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Muitos pequenos produtores estabelecem estratégias de usos que preservam recursos
essenciais (como as nascentes), e alguns possuem conhecimento de formas mais sustentáveis
de produção e até gostariam de utilizá-las, mas isso seria muito oneroso. O plantio direto, por
exemplo, é visto como melhor para a preservação do solo, mas é mais caro, o que faria
necessário um investimento público. Sobre esse assunto, Inácio comenta: “Isso é um negócio
fundamental isso que eu tô falando sobre plantio direto. Porque nós temos necessidade de
alimentar, ou mesmo pra recursos financeiros, porque você tem a propriedade, ela custou
dinheiro, ele tem que tirar dinheiro dela. Ele tem que viver dela, ele, a família. Há a
necessidade de usar a terra, e se puder usar de uma maneira menos ofensiva à natureza não
é muito melhor?” (Inácio, em entrevista, 2018 .
Em 2016 a engenheira florestal Miriam Silva realizou 12 entrevistas por questionário
com produtores rurais na sub-bacia do córrego dos Bois, que é a parte da bacia do Jacaré de
onde é retirada a água para o abastecimento de Oliveira. Da área total da sub-bacia 40,70%
do território é ocupado por pastagem, 35,84% por cafezal e 18,84% por vegetação nativa. O
conflito do uso e ocupação do solo nas áreas destinadas à preservação corresponde a 25,58%
do território das áreas de APP (Área de Preservação Permanente), evidenciando a presença de
atividade antrópica nas áreas legalmente protegidas. O uso conflitivo mais comum nas APP é
a pastagem (Silva, 2016).
Sobre a relação dos produtores com o local e o impacto destas relações sobre o meio
ambiente, a pesquisadora chegou à seguinte conclusão:
Constata-se que a maioria dos proprietários rurais, arrendatários e suas famílias não
possuem ligação afetiva com as suas terras e sim apenas um vínculo econômico.
Chega-se a essa conclusão, pois a maioria dos proprietários não reside em seus
imóveis rurais, grande parte das terras não foi herdada, foi adquirida por compra ou
arrendada, apenas alguns dos filhos contribuem com as atividades e, em geral, não
há interesse dos herdeiros em dar continuidade às atividades agropecuárias.
Esse fator poderá influenciar negativamente o desenvolvimento sustentável da subbacia em longo prazo pois, atualmente, os produtores utilizam os recursos naturais
disponíveis de modo que sua atividade agropecuária seja rentável e, em geral, não
há preocupação com a conservação desses recursos para as futuras gerações. Na
hipótese de ocorrência de degradação ambiental que interfira na produtividade do
agronegócio, é bem provável que os proprietários rurais e arrendatários procurem
outras terras mais produtivas ou mudem de negócio (Silva, 2016, p. 130).
Em minha pesquisa também percebi o fator econômico como principal mediador da
relação dos produtores rurais com o meio ambiente, mas convém lembrar que este
predomínio do valor econômico é comum na vida da maioria das pessoas que vivem num
sistema capitalista de consumo. Esperar que os produtores rurais colocassem a “natureza”
como valor acima do lucro significa esperar que não tivessem uma mentalidade capitalista, o
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que seria contrário à sociedade em que vivem e na qual foram criados. Os produtores que eu
entrevistei e visitei não vivem no luxo- pelo contrário. A degradação que eventualmente
produzem não é produzida por ganância, mas uma consequência da tentativa de sobreviver da
melhor maneira possível em suas terras.
Em conversa com Amadeu, o agricultor que era mais crítico ao “pessoal do meio
ambiente”, ele disse que o principal problema do rio era a extração de areia, mas apontou
para a parede da casa onde estávamos e disse: todos querem construir casas. Obviamente, as
leis ambientais existem para que a produção seja feita de forma adequada, mas o problema
realmente é profundo e precisamos pensar qual nosso papel de consumidores de natureza, de
“povo da mercadoria” (KOPENAWA e ALBERT, 2015), pois nós também fazemos parte do
circuito da degradação ambiental.
É preciso uma mudança civilizatória, pois atualmente a produção agrícola é governada
pelo mercado, o que torna comum em Oliveira e outras localidades cenas como tomates e
outros alimentos sendo jogados fora por não atingirem o preço mínimo para venda, mesmo
que essa produção tenha tido custos humanos e ambientais, e mesmo que pessoas ainda sejam
assoladas pela fome. No Brasil, a maioria dos trabalhadores não são donos da terra, trabalham
às vezes sem folga e são muito explorados. O campo ainda é um mundo invisibilizado e
desvalorizado. É preciso que se enxergue a importância do campo e que sejam feitas políticas
públicas que diminuam a desigualdade e incentivem a preservação ambiental, mas o que
vemos, como aponta Carvalho (2005) é a colocação dos produtores rurais ora “como
criminosos ambientais, ora como heróis salvadores do bucólico mundo rural” (CARVALHO,
2005, p.133).
Outros atores na rede
Algumas pessoas na cidade de Oliveira se organizam na defesa do rio Jacaré. Uns
criticam os produtores rurais, expressando sua desesperança :“Fazendeiro só quer saber de
pasto”, disse-me um ambientalista em entrevista. Outros tentam trazer os produtores para a
defesa do meio ambiente, apontando a eles quais vantagens poderiam obter com isso. A ONG
Gramds faz um trabalho com agricultores familiares do Ouro Fino, comunidade onde estão
localizadas muitas nascentes do Jacaré. Eles ajudam na recuperação do solo nas propriedades
rurais, de modo a possibilitar a recarga subterrânea da bacia hidrográfica. Janice, presidente
da ONG, comenta que foram muito bem recebidos pelos produtores, que abraçaram sem
ressalvas o projeto. Aqui é importante lembrar que se trata de pequenos produtores, que
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plantam apenas para sua subsistência. No material de divulgação da Gramds encontramos a
seguinte posição:
É oportuno e relevante explicitar e ressaltar que os articuladores da implantação do
Programa Produtor de Água em Oliveira são firmes defensores dos proprietários
rurais interessados em práticas de boa sustentabilidade ambiental, principalmente na
adequada gestão de Águas, com foco em soluções e não em problemas. E sem
demonizar a atividade pecuária e menos ainda denegrir a memória de ancestrais que
praticaram equívocos de gestão ambiental por anos e anos, séculos e séculos, por
desconhecimento das consequências de seus atos.
Se hoje nós temos uma melhor visão sobre o que fazer e o que não fazer, façamos a
revitalização do Rio Jacaré em reparação ao passado e pela construção de uma
realidade que não nos condene no julgamento de futuras gerações” (Texto de
divulgação, ONG Gramds) .
Existe um impasse: se por um lado os produtores rurais não se mostram preocupados
com a preservação ambiental, por outro, eles não podem ser apenas cerceados, visto que a
preservação depende de uma mudança real de atitude por parte deles. No que tange à
fiscalização e cumprimento das leis, a polícia ambiental oliveirense não possui meios de fazer
seu trabalho. Para se ter uma ideia, existem apenas 4 policiais para atender a todas as
ocorrências relacionadas ao meio ambiente em 7 cidades da região. Em relação à
conscientização, o caminho ainda é longo, mas o policial florestal Antônio acredita que
houve sim um avanço neste tema. Em suas palavras:
Hoje em dia tá mudando muito, tá melhorando, o pessoal tá bem mais consciente.
Mas ainda você encontra aqueles que não respeita, não quer gastar em por um
bebedor pro gado beber uma água no curral, solta o gado pro gado ir todo pro rio.
Ainda existe muita gente que desobedece. Tem melhorado, nesses 6 anos que eu
trabalhei na polícia florestal eu notei uma grande melhora. Pessoal tem se
conscientizado bastante, pelo nosso trabalho, pela divulgação de televisão. Sempre
tem aquela porcentagem de gente que não tá nem aí né, tem a água lá e quer fazer o
gado dele beber, quer tirar o lucro dele daquela propriedade ali.” (Antônio, em
entrevista, 2018).
O ambientalista Ildeano Silva conta que era um destruidor, mas hoje é um protetor
ferrenho e reconhecido do meio ambiente. O produtor rural Inácio também conta que
modificou sua visão com o tempo e as dificuldades passadas com as secas. Hoje, ele, que já
se dedicou à produção de carvão, optou por não desmatar: “tem coisas aí que estão liberadas
e eu não vou tirar, porque eu fico pensando na geração futura, né, porque a gente já sofreu
aqui com o negócio de planta, com falta de chuva, então eu já fico pensando no futuro, na
geração futura, dos que virão. Porque eu vejo que sem água não tem nada, né? (Inácio, em
entrevista, 2018).
Todos os entrevistados e entrevistadas nessa pesquisa concordam sobre a importância
do rio Jacaré. Cito como exemplo a conversa com o ex-vereador Rosymar, na qual este
demonstrou certa resistência em relação aos discursos ambientalistas- dizendo que
ambientalistas se preocupam mais com as árvores do que com as pessoas- mas ao ser
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perguntado sobre a importância do rio foi taxativo: “é muito importante, nós somos feitos de
água!” Na fala de Wagner, encarregado geral do SAAE (Serviço Autônomo de Água e
Esgoto), órgão responsável pelo abastecimento público de Oliveira, também é perceptível a
preocupação com o rio, que é denominado por ele como a “menina dos olhos” de Oliveira,
em suas palavras: “ nossa solução”.
É bastante claro que o meio ambiente está se tornando um valor aos poucos, mas
quando confrontado com o valor econômico ele perde sua força quase totalmente. Poucos
colocam o rio Jacaré acima do ganho econômico, e os que colocam não são bem vistos.
Muitos não acreditam que suas ações prejudiquem o rio, ou que prejudiquem ao ponto dele
um dia desaparecer. Muitos, também, não se importam se ele de fato desaparecer, contanto
que isso não os atinja.
Como afirma Israel Ramos, os ambientalistas ainda são taxados como chatos quando
tentam falar sobre o assunto. Há 20 anos na defesa do rio, o ativista comentou que, em todas
as cidades por onde o rio passa, não se encontram nem 3 pessoas que cuidem dele e que
sempre esbarra na indiferença da população oliveirense: segundo ele, se começa a falar do rio
numa roda de amigos, logo as pessoas saem, e “um soldado sozinho não faz a guerra, nem
uma andorinha faz verão”. Como aponta Inácio: “pra cuidar da natureza, sinceramente, é
por amor à ela, pra te falar a verdade. Por amor à vida, afinal de contas. Porque sem água
não tem vida, é isso que eu tenho que te explicar” (Inácio, em entrevista, 2018).
Considerações finais
O mundo material é a base para a vida humana, os “recursos naturais” são condições de
existência e podem ser apropriados de diversas formas, de acordo com os modos de
produção, sistemas simbólicos ou outros fatores sociais agregados a esta materialidade. Deste
modo, ideias particulares sobre a natureza, a ecologia e o meio ambiente estão em constante
inter relação com outras noções, o que implica processos de negociações e conflitos, que são
políticos. Isso implica que as mudanças ambientais não sejam neutras, e que a apropriação
dos recursos naturais sejam mediados por relações desiguais de poder (ULLOA, 2002). O rio
é parte de uma disputa que não diz apenas sobre como suas águas serão utilizadas ou sobre
quais construções simbólicas predominarão ao se tratar do meio ambiente: as relações com o
Jacaré dizem de um projeto civilizatório, do que é a boa vida para as pessoas que vivem a sua
volta, e todo este contexto deve ser levado em conta para compreender os fios que tecem o
rio, bem como os motivos de sua degradação.
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Os produtores rurais são agentes chave tanto para compreender a degradação do Jacaré,
quanto para a construção de seu futuro. É perceptível nesta pesquisa que eles não estão fora
da lógica capitalista, onde o mundo natural é utilizado como recurso para a produção e o
lucro, porém, outras questões perpassam a relação com o ambiente, como a afetividade com o
local em que vivem. Concordamos com Laschefski et al. (2012), que alguns agricultores
familiares já incluíram, em parte, a visão de que se deve preservar a “natureza”, porém, são as
materialidades de seus modos de vida, explicitada pela pressão econômica, que explicam as
aparentes contradições nos seus atos. As políticas ambientais são, na maior parte das vezes,
repressivas, porém, seria mais efetivo que existissem políticas de incentivo à produção
sustentável. As formas de relação entre produtores rurais, Estado e ambientalistas variam,
porém, é certo que sem a atuação dos produtores rurais é impossível avançar na recuperação e
preservação do rio Jacaré.
Notas
[1] A colonização portuguesa da região de Oliveira se deu no século XVII, através do estabelecimento
de fazendas para a agricultura e pecuária, diferente de muitas cidades mineiras fundadas neste período
por possuirem pedras e metais preciosos. Anteriormente, a região era habitada pelo povo Cataguá
(ALMEIDA e RIBEIRO, 2011).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, Ricardo [et al]. Juventude e agricultura familiar: desafios dos novos
padrões sucessórios. Brasília: Unesco, 1998.
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Oliveira: Editora Gazeta de Minas, 2011.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Ponto de enxergo: relações que transbordam o Cerrado
Marília Cyrne
“O limite é a primeira coisa fora da qual nada é encontrado e a primeira coisa em que tudo
deve ser encontrado”(Ranajit Guha
Introdução
Esse trabalho tem como objetivo pensar o Cerrado através das relações que os Krahô
experienciam entre agentes Humanos e Não-Humanos, procurando contribuir para o
debate que visa entender o conceito de T/terra não apenas na potência da palavra
escrita,
mas também
nas
outras
palavras
transbordamento: Planeta/solo, Globo/superfície,
que
ela
evoca,
obrigando
Concebido/vivido (IUBEL;
o
seu
SOARES-
PINTO, 2017, p. 8). Para isso, com base em pesquisa bibliográfica e trabalhos de campo,
foram analisadas as relações a partir da perspectiva do xamanismo desse povo, o que
foi incentivado pela tese de doutorado de Marcela Coelho de Souza onde, ao falar do
xamanismo dos povos Jê do Brasil Central, aponta para o seu aspecto cerimonialista,
seu desenvolvimento restrito e a ausência de fermentados e alucinógenos como
resultado da etnologia aí exercida, que teve um enfoque mais sociológico. Somado a isso,
ao falar do corpo como feito e não como fato, destaca que antes de ser um princípio de
individuação e um modo de construção do sujeito, ele parece operar como um modo de
objetivação do sujeito em uma forma de vida específica, o que traz também a noção do Outro
e nos faz lembrar de que existem vários “outros” além dos mortos, como os animais e o
Cupem, com o qual esse corpo que passa por uma singularização dentro de uma
singularização tem a possibilidade de interação [COELHO DE SOUZA 2002, p. 370-398], já
que ele apreende seus conhecimentos de um animal, vegetal ou algum outro ser
(MELATTI, 1978, p.92).
Os Krahô, que autodenominam-se Mehin (mesma carne, mesmo jeito) (COELHO DE
SOUZA, 2002, p. 192), fazem parte do Tronco Linguístico Macro-Jê, e tiveram os
primeiros contatos com os europeus no início do século XIX, quando ainda ocupavam
a região na divisa do Maranhão com o Piauí. Contudo, encontram-se já, há muitas gerações,
no estado do Tocantins, entre os rios Manoel Alvez Pequeno e Vermelho, na Terra
Indígena Krahô, que possui mais de 300.000 hectares, uma das maiores áreas contínuas de
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Cerrado preservado do país, demarcada nos anos 1940 após sofrerem uma chacina por parte
de fazendeiros da região (OLIVEIRA, 2006, p. 57). Mas muitas são as pressões externas que
os afetam atualmente, como o avanço forte do agronegócio, a hidrelétrica de Estreito, a
T-0104 e caçadores de animais silvestres, que se utilizam inclusive do fogo para a
realização dessa atividade, o fogo não manejado, o que gera tensões sobre as quais tento
refletir brevemente ao fim do trabalho em conjunto com as concepções ontológicas dos
Mehin.
O Cerrado cantado
Em março desse ano, 2018, Getúlio Krahô passou alguns dias na minha casa,
por conta de um projeto outro que estamos desenvolvendo. E em uma das noites
conversávamos sobre a presente pesquisa, que busca entender as relações que se dão dentro
do Cerrado, mas não só em termos de bioma, e perguntei se ele poderia cantar uma música
sobre, para que eu utilizasse na pesquisa. Ele então cantou por vinte minutos, sentado na
mesa redonda da minha sala, parando no meio só para avisar que continuaria cantando. Não
tenho a transcrição dela nem a tradução exata, mas é um canto1 sobre as relações que
acontecem no Cerrado. Nessas relações, o Cerrado aparece como o Ken (as chapadas).
Debaixo dessas chapadas é que a queixada fica sentada, e questiona-se qual é o caminho
que ela vai tomar para procurar o seu alimento. A anta que passa pela porteira é a anta preta.
E há também o Gavião, que se assusta com a árvore quando pousa em cima dela, em
busca e na espera de caça. Uma série de relações estão aí constantemente
acontecendo. Depois que terminou de cantar, Getúlio concluiu:
“O Cerrado é bom, quem são criador do Cerrado que nasceram e percebeu
todos os seus movimentos. No Cerrado tem tanto biólogo e antropólogo que
já aprendeu aí dentro, que são pesquisadores. Dentro do Cerrado tem um
bocado de material, dentro da montanha, na caverna. Quem começou a criar
o Cerrado foi Papahm, que criou tudo pra nós e deixou tudo pra nós de presente e
que ainda até hoje estamos usando. Água, ambiente, respeito. Mas todos nós somos
criador. Dentro do Cerrado tem todos os bichos que sabiam manobrar as
conversa. No Cerrado tem a água, que corre na veia da gente, a gente bebe. Água
que faz os movimento nos corpo da gente. A gente bebe, lava o rosto, banha, cuida,
nós usa no mundo todo(...). Então a água cria nos todos. Todos os bichos bebe
água, peixe é da água e é criador de água. Que fornece pra nós e a gente pega” 2.
Esse pequeno texto é resultado de um trabalho que, dentro de um ano,
procurou sistematizar bibliografias que fizessem emergir as relações entre os Krahô e o
“Cerrado”, em conjunto com dados coletados em campo nesse mesmo período, mas também
em momentos anteriores a ele, quando quem escreve aí já se relacionava. A idéia desse
estudo começou a se formar em setembro de 2017, quando estava na Terra Indígena Krahô
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
para participar de um ritual de fim de luto do finado Secundo. Era um período em que o
Cerrado, não só da região do Tocantins, queimava em incêndios. Os Mehin consideram
“normal” essa situação nesta época
do
calendário,
situação
potencializada
pelo
atraso nas chuvas. Eles já vinham sugerindo que eu realizasse pesquisa com eles,
mas nunca falavam o assunto, e quando um dia os acompanhei para apagar o fogo,
percebia que ali não era “apenas” uma situação de evitar que o fogo se alastrasse, assim
como já havia presenciado, em outras situações, como nas roças, que não eram atividades
que se davam “apenas” com o intuito de subsistência. Havia algo mais. A relação ali não
era, mais uma vez, a que eu estava habituada.
Esse é em si um dos problemas fundantes da antropologia, que é a própria divisão
entre Natureza e Cultura, e que também é uma questão anterior a ela. Dentro disso, seguindo
Viveiros
de
Castro,
ao
invés
de
pensar
grandes
divisores,
propus pensar as
diversas multiplicidades, não com o intuito de abolir as divisas, mas de buscar sua
complexidade infinita (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 16-17). Isso se dá a partir
do que experiencio entre os próprios Mehin e pelas leituras das etnografias produzidas
acerca destes, pois a partir disso, como tentarei evocar durante o texto, lançar mão
desses conceitos da forma como sempre foi feita, usando-os como dados, não é
possível nesse contexto, e é necessário exercitar o pensamento a operar em outras
linguagens.
O Cerrado é o Ken, e não só
O “Cerrado” aqui aparece entre aspas pois, como o canto que Getúlio trás, e também
como a fala de outros Mehin demonstram, tudo parece estar em constante movimento e
em construção. A idéia de um Cerrado tal como concebida pelo Cupem (não
indígena), como uma natureza dada e sem agencialidades, não parece ser profícua para
pensar o que e os Krahó apontam como realidades de múltiplos domínios e relações,
como aparece na fala de Sidney Pohypej:“Não faz sentido pra gente quando escutamos
vocês Cupem (não indígena) falarem em seres humanos. Em seres vivos um pouco mais, mas
ainda assim é estranho. Mas tudo tem vida”3.
As relações que aí ocorrem conectam e afastam corpos Humanos e também
não Humanos, pois o Cerrado é o Ken, mas não só, pois transborda ao conceito ocidental de
um bioma natural, para nos remeter aos corpos que aí se encontram. Em uma conversa com
um ancião sobre a minha pesquisa, em janeiro desse ano, ele me disse: “Vocês brancos,
gostam muito desse negócio de papel. Mas eu mesmo larguei a escola muito cedo,
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
mas sei das coisas. Eu sei por exemplo que a água pensa”. A mesma água esta nos
corpos e que cria e que é criada. E se estende pelas roças, pois aparece nas categorias nativas
de Cerrado, como apontado mais a frente. Em seu estudo sobre as roças, Morim de Lima
(2016), ao enfocar a batata-doce e suas relações, demonstra que ela conta as trajetórias
das famílias (são as mulheres que costumam plantar, presentear e receber de presente,
guardar as batatas), assim como relações de predação (as mulheres caçam a batata-doce, o
que também exige também uma série de cuidados e negociações), e ao falar sobre o
Cerrado, nos apresenta que os múltiplos domínios citados no parágrafo acima são
povoados por uma diversidade de seres. As paisagens aí não são rígidas, mas sim ambientes
inacabados e dinâmicos, constantemente forjados através de uma relação criativa entre os
seres vivos, identificados e nomeados pelos Mehin através de sistematizações abertas e ao
mesmo tempo relacionadas e integradas, onde leva-se em conta espécies vegetais, animais,
altitude, tipo de solo, microclima; onde o reino animal não aparece nomeado, trazendo a
reflexão de como acontece, ou onde está a divisão entre Humanos e Não-Humanos (e Cultura
e Natureza). A terminologia da qual se lança mão é a mesma que muitas vezes é utilizada
para vegetais e humanos, sendo categorias de nomes que precisam especificar a quem se
relacionam, incluindo termos das partes do corpo, de parentesco e de certos objetos
(MORIM DE LIMA, 2016, p. 57-60), e o vocabulário utilizado para se referir ao que é
humano não coloca a humanidade como algo dado, mas sim como uma condição, que
vai sendo modificada por intensificadores que são menos substantivo e mais pronomes,
possuindo uma grande variabilidade de contexto desses pronomes, evocando desde a
parentela imediata do ego até todos os humanos, ou mesmo todos os seres dotados de
consciência (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 125). A atitude para com todos os
seres é moral e construída na ordem do parentesco.
A singularização na singularização: Wajaká
Nessas
relações
há
os
que
possuem
a
capacidade
de
realizar
o
deslocamento necessário para interagir com os Outros. Seus corpos trazem as
perspectivas que os fazem ver. São, nas palavras de Getúlio, os pontos de enxergo, sendo
que o enxergar está bem longe de apenas ver, pois olhar não é só ver, assim como
escutar não é só ouvir e compreender. Todos um sentir do corpo está ligado, é global
(MORIM DE LIMA, 2016, p. 245). É inclusive dessa interação e da sustentação dessa
com o Outro que se produz a singularização e a afirmação tanto da pessoa quanto do
grupo.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Mas, antes de continuar a falar sobre isso, e justamente para ser possível
continuar falando, gostaria de colocar uma reflexão sobre ponto de enxergo, com o intuito de
deixá-lo em aberto, pois ele ainda será evocado mais algumas vezes no decorrer da escrita,
por parecer ser o mais adequado nesse momento: ponto de enxergo é perspectiva, como já foi
falado, mas também é não só perspectiva. Esse tipo de reflexão vem e volta desde o
começo do ano, sobre o motivo de não haverem palavras como as que utilizo
aqui para que seja compreendido em sua extensão e/ou potência pela leitura, diferente do
que acontece na escuta (isso menos porque considero o ouvir acima do ver, mas mais por
supor que do movimento da hierarquização dos sentidos se segue outro, que é o do
esvaziamento do próprio ver, dentro do entendimento ocidental [INGOLD, 2008]). E
disso emergem três possíveis conclusões, sem nenhuma definida, e que podem ser um
pouco de cada, ainda alguma outra. Pode ser que mais tempo de campo seja necessário. Ou,
mesmo que eu nunca tenha visto esse conceito por escrito, pode ser que uma maior leitura de
minha parte auxiliasse em uma maior delimitação dele. E, por fim, entendendo que o que
acontece aqui é uma tentativa de tradução, e que “traduzir é presumir que um equívoco
sempre existe; é comunicar por diferenças, em vez de silenciar o Outro, presumindo uma
univocidade - a semelhança essencial - entre o que o Outro e Nós estamos
dizendo”(VIVEIROS DE CASTRO 2004b, p. 10), comecei a pensar o alcance das nossas
palavras, e a pesar que nas traduções existem possibilidades de pontes, mas que também
há perdas, e talvez não de significado, mas da própria perspectiva ou do próprio
ponto de enxergo, e talvez, ao menos por enquanto, nomear seja o suficiente
(CADENA,
2015, p. 27-30).
Retomando o assunto, é dentro da chave das relações então que se dá a verificação da
humanidade onde, como já foi dito, se estabelece matizes dentro de um contínuo de parentela
e de humanidade entre os sujeitos e distingue os que habitam o cosmos ameríndio,
também como resultados quase sempre reversíveis de feitura, quase sempre porque há
fronteiras que quando cruzadas fazem com que um corpo se torne imune ao
(re)aparentamento, como os mortos, uma outra forma de ser Outro. Quando se
morre,
se
perde
o
princípio individualizador,
que
é
o
corpo, onde reside
privilegiadamente o eu, e fica a alma, o karon, que todos possuem, incluindo animais,
vegetais e artefatos, como o maracá. Se o karon está ligado a identidade individual da
pessoa, com uma particularidade de só manifestar-se no lugar de indivíduo, e nunca junto
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
a ele, iniciando seu processo de desgaste só quando sai do corpo de forma definitiva
(COELHO DE SOUZA, 2002, p. 542-545).
Mas existem vários “Outros” além dos mortos, como por exemplo os animais
e os estranhos. Há entre eles diferenças importantes que se referem a corporalidade e ao
processo de aparentamento que correspondem à sua construção. Os animais se definem por
não ter um corpo humano, e isso nem é possível de forma total. E sobre os estranhos,
onde entra o não-indígena, é possível tomar várias medidas em relação a essas diferenças. A
terminologia a eles geralmente destinada é a mesma utilizada para se falar do que ou
de quem não apresenta nada de reconhecível da forma Timbira, em uma classificação mais
genérica, onde sua natureza, no sentido multinaturalista, é mantida em suspenso.
Nessa classificação parece que a possibilidade de conversão ou o desejo por ela é uma
questão mantida em aberto, o que não é um sinônimo de hostilidade guerreira, pois a guerra é
apenas uma das instituições de relação entre os Timbira, sendo uma outra
possibilidade a troca, o que traz a necessidade da diferenciação entre o estrangeiro e
inimigo próximo preferencial, que podem ser os Humanos e os estranhos, e dos
Humanos, que podem ser amigos e inimigos. O estranho tem um potencial transformativo,
o que faz com que ele seja algo profundamente perigoso e qualquer relação
nessa
esfera deve ser cercada de cuidados (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 351-458).
Todos esses Humanos e esses Outros, sejam Humanos ou Não, podem se
relacionar ou não, havendo limitações aí devido ao seu corpo (ou a falta de). Enquanto que o
karon é o princípio individual e sua origem é misteriosa, o corpo é algo que está em
constante circulação, ainda que essa circulação deva ser muito controlada por quem a produz,
inclusive porque ela é passível de se dar nas fronteira da humanidade (COELHO DE
SOUZA 2002, p. 354-637). Mas há um corpo, um ponto de enxergo específico, que
capaz de adotar a perspectiva da subjetividade estrangeira e pode contribuir para entender
as relações entre os Outros e os Outros fora de bifurcações modernas, dentre todos: o do
wajaká, o xamã. E é esse o corpo que busco entender aqui, em interação com outros
corpos Não-Humanos, incentivo que
vem
dos
próprio
Mehin,
e
também
dos
antropólogos aqui citados. Viveiros de Castro aponta que são os xamãs que se dedicam a
comunicar e administrar esses pontos de vista que se cruzam, de Humanos e NãoHumanos, é essa a pessoa, multinatural por determinação e ofício, que é capaz de transitar
entre perspectivas e sem perder a própria condição de sujeito, e que faz assim as traduções
necessárias entre as instituições, pois são capazes de voltar dessas experienciações para
contar o que acontece (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 117-120;135). Na chave do
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
xamanismo Jê, o material etnográfico tem um peso muito grande no aspecto sociológico, em
detrimento do cosmológico, não pouco comparada ao contexto amazônico, e o que se
sobressai disso é a falta de bebidas fermentadas e alucinógenas e um desenvolvimento
relativamente restrito do xamanismo, com o cerimonialismo ocupando lugar nas práticas mais
individualizadas (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 553-554).
Para a transição e interação entre mundos ser uma possibilidade, o corpo do
wajaká precisa ser construído de forma diferente, e assim os conhecimentos vindos de
fora dos limites da Humanidade se tornam possíveis de apreensão, a partir do
desenvolvimento de habilidades imprescindíveis a isso. Além de conhecer um número
razoável de plantas mágico-medicinais, wajakás podem ver os espíritos dos mortos (já ouvi
relatos de Krahôs que não são pajés e que tiveram esse tipo de encontro), entrar em contato
com eles e consultá-los; conversa com determinados animais, de quem aprende novos
remédios; possui substâncias mágicas dentro de seu próprio corpo; sabe tirar ou colocar
feitiços; faz entrar novamente no corpo de alguém o espírito que dele se tenha retirado
(MELATTI, 1963, p. 1-2).
Nessa movimentação de ensinar e aprender, a boa escuta (campa) e a boa
visão (hõmpu) são fundamentais. A boa visão pode ser entendida como a faculdade de
ver além, acessando mundos invisíveis das almas tanto de Humanos como de não
Humanos, e conseguir se comunicar com elas, o que é uma especialidade desenvolvida
pelos pajés, que enxergam tudo de longe e transitam entre os mundos, assim como os bons
caçadores e das mulheres artes. Não é possível haver conhecimento dissociado de seu
conhecedor (isso com qualquer corpo), e nem que a transmissão dele ocorra sem
permitir que todas as partes participem dessa relação. Aí separações entre mente e corpo,
representação e sensação, razão e emoção, sujeito e ambiente não são produtivas (MORIM
DE LIMA, 2016, p. 42-60; 244-246]. A perspectiva que esse corpo específico adota, assim
como todos os outros corpos, não é apenas uma representação, pois estas são próprias do
espírito, enquanto que o ponto de vista reside no corpo (mas lembrando que a capacidade de
assumir um ponto de vista pertence sim a alma) (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.128).
O sangue do wajaká é diferente, no sentido de ser “mais limpo”. Em alguma situação,
e isso varia de caso para caso, um Outro escolhe a pessoa, entra em contato, resolve
conversar. Pode ser enquanto o Krahô fuma. Pode ser na roça, na caçada, no sonho.
Esse Outro, entrando em contato, transmite os conhecimentos que se espera de um
pajé, alguns dizem que na própria língua Mehin. Não aceitar é perigoso, e pode levar à
morte. O corpo humano é o local onde a humanidade se confronta, isso porque esse é
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
o instrumento da expressão do sujeito, e ao mesmo tempo que é o que possibilita ver o
outrem (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 131). Os resguardos, inerentes ao tipo de
compreensão
e
apreensão
do conhecimento que lhes é esperado, são duros, é um
sofrimento, como dizem, alguns mais que outros. Os de pajé de cobra e de chuva são os
mais rígidos4. O xamanismo também parece exigir a observância de resguardo. Entre os
Krahô, a abstinência alimentar é uma maneira de se tornar uma pessoa mais suscetível ao
contato com os espíritos, mas a isso parece ser dado menos importância na formação do xamã
(COELHO DE SOUZA, 2002, p. 558).
Há também nessa transformação do corpo a dimensão dos cantos no
aprendizado xamânico, que também se ligam aos sonhos e os encontros no Cerrado, e
apresentam um vasto conhecimento acerca deste, não interessando apenas o que é conhecido,
mas como o é, como se dá. Eles são a língua falada dos espíritos, são fala e escuta, e
também são visão, já que olhar não é ver e escutar não é ouvir e compreender (MORIM DE
LIMA, 2016, p. 245-250). O que remete novamente a Ingold, ao dizer que os olhos e
ouvidos não devem ser compreendidos como partes para o registro de sensações mas,
sim, como órgãos do corpo como um todo em cujo movimento, dentro do ambiente,
consiste a atividade de percepção. Inclusive, ouvir com os olhos e ver com os ouvidos são
peculiaridades da atividade xamânica (INGOLD, 2008, p. 29-42). O wajaká, antes desse
processo, possui a visão simples (into pyxit). Depois, ela passa a ser uma visão dupla,
larga, que vê além (into pijakrut)5, e é a esse ponto de enxergo, que novamente coloco
aqui, não é apenas e não só, o enxergar, que é possibilitado acessar e interagir com os
mundos de forma tão singular.
Se em um primeiro período da pesquisa identifiquei nas bibliografias e nas falas dos
Krahô indicações para buscar entender o sujeito xamã como corpo privilegiado
para compreender as relações entre Humanos e Não-Humanos dentro do que
entendemos, em nossas categorias, por Cerrado, isso foi se confirmando a partir do
último campo, realizado em agosto de 2018, e da revisão da etnografia já consultada e o
cruzamento de ambos com novas leituras, e assim foi se incorporando de forma mais
consistente o que eu mesma pretendo quando penso “sujeito xamã”. Em agosto,
quando falei em sujeito com os Mehin, houve um estranhamento, ao que eles repetiram que
“tudo tem vida”, assim como tudo tem karon, alma. Aos que tem alma, a quem se
confere agencialidade, intencionalidade, capacidade de afecção, isso através do ponto
de vista, se confere a posição de sujeito (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 126). Ao
mesmo tempo, houve oportunidades, a partir de setembro, de expor a presente pesquisa em
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
um encontro de etnologia realizado na UFSCAR e na Semana de Antropologia e Arqueologia
da UFMG, o que foi de grande contribuição para novas reflexões.
Mundos que não são apenas os mesmos
Os muitos mundos aqui presentes são os mundos que o Cupem violentamente
tenta encaixar no Cerrado, e que não “cabe”. Alguns deles, tangíveis para nós, são colocados
como desfavoráveis, quando possuem muito mais diversidade ecológica do que é
tradicionalmente representado. Para exemplificar: Vandana Shiva diz que, no entendimento
local globalizador, ou Ocidental Moderno, menos diversidade é apreendida do que nas
outras formas de saber (SHIVA, 2003, p. 23-27). Os ocidentais apreendem 11 tipos
principais de vegetação para o Cerrado, que são: formações campestres – campo limpo,
campo sujo e campo rupestre; savânicas – cerrado sentido restrito, parque do cerrado,
palmeiral
e
vereda;
florestais
– cerradão, mata seca, mata ciliar e mata de galeria
(CHAVEIRO; BARREIRA, 2010, p. 19). Os Mehin, entretanto, experienciam ao menos 17
biomas marcados por “espécies companheiras” (Donna Haraway), listados por Morim de
Lima e que recupero aqui: Põ (Cerrado), Hocôti (Cerradão), Apãc (Transição entre
mata de galeria e Cerrado típico), Irõm (mata de galeria, onde são abertas as roças),
Ikrãti (cabeça do Irõm, início da mata), Caprum (vegetação de gramínea na cabeceira
do Irõm), Harê (vereda, onde encontram-se os buritis, a beira de riachos e brejos.
Quando é verão e o capim está seco, é chamada põre, e quando é inverno e o capim é alto,
põte), Carãnti (campos cerrados), Atu (campos limpos), Hawên (vegetação fechada de
mata seca associada ao topo da serra), Hopkaj (formação que se assemelha ao cerrado
típico), Hohkajakôt (formação diferenciada dentro do Cerrado típico), Pã (formação florestal
que se assemelha ao Hawên mas cujas árvores são mais baixas), Pur (roça), Hipe
(capoeiras em diferentes estágios florestais. Quando é capoeira nova, chama-se Hipe
tu, e quando velha, Hipe wei), e o Ken (serra).
Também dentro da própria antropologia os povos do Cerrado foram vistos
como “primitivos” em relação aos povos das florestas tropicais e dos Andes, estando
condenados a esse
ambiente
menos favorecido, desfavorável e hostil a ocupação
humana, em razão fundamentalmente
dos
limites
que
coloca
para
o
tipo
de
agricultura que grupos não tradicionais praticam (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 2164), abordagem essa que nunca se restringiu aos limites da própria antropologia e que
também fornece justificativa para sua ocupação, visto que nada cresce, a não ser
“monoculturas com sementes geneticamente modificadas”. Aí, o estabelecimento de
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
atividades do agronegócio, associadas aos interesses dos complexos empresariais e de
bancos cujos capitais são de inúmeros países pertencentes ao
ocorre
sobre
dicotomias
como
hemisfério
norte,
“atrasados-modernos”, “marginal-produtivo”. Os
conflitos socioterritoriais que ocorrem, e que vão se ampliando, remarcam a geopolítica
internacional do capital, para muito além de ser apenas uma questão econômica, ela mesma
rearranjando espacialmente suas atividades produtivas a fim de atingir determinadas taxas
de lucro. Um seleto grupo de corporações empresariais, ligadas ao complexo da soja,
do milho, da cana, dos agora rebatizados “defensivos fitossanitários” encontram, no
Cerrado, um amplo espaço para seus investimentos, desde a falsa idéia de
“disponibilidade de terras” até o apoio do Estado no tocante ao financiamento de
projetos, isenções
de
impostos,
entre
outros
benefícios,
vide
o
Plano
de
Desenvolvimento Agrícola (PDA), Matopiba.
Essas idéias todas não se sustentam apenas na ofensiva sobretudo Européia
e Norte-americana contra os Mundos e modos de vida dos indígenas e povos
tradicionais. A Modernidade, com a Ciência, traz o contraste entre um passado arcaico
e estável, que demarca as simetrias de ruptura do tempo e de vencidos e vencedores, e que
cria duas zonas de estudo do ser completamente distintas, a dos humanos e a dos nãohumanos (LATOUR, 1994, p. 09-16). Nesse tipo de prática, a Natureza é uma
precondição
da
existência
que fornece as matérias-primas da vida e que forma as
necessidades e os instintos humanos, bem como um meio-ambiente não social, e é
passível de manipulação. Aí o nível cultural dos povos pode ser medido de acordo com
sua interferência e a forma como ela se dá. Importante demarcar que isso não quer dizer
que natureza e cultura tenham um único significado no pensamento ocidental
(STRATHERN, 2014, p. 27; 50), mas que esse tipo de procedimento que
impulsiona
referências para as representações coletivas de parte significativa do imaginário
social, legitimando e justificando os ataques supracitados.
Assim, tudo é permitido e facilitado no tocante à exploração do que é entendido, pelos
Modernos, como Recursos Naturais, e terras, recursos hídricos, condições climáticas e
vegetativas estão à disposição, pela ótica do Mercado e do Estado e, tendo em vista
o abastecimento de mercados e a concorrência internacional, imensas extensões de
terra tem sido compradas por corporações estrangeiras, especialmente as chinesas e as
européias. Como dito um pouco antes, essa postura predadora não se volta apenas para de
acumulação capital (XAVIER, 2014, p. 70-73). Refere-se também ao domínio que busca
ir além e se fazer a partir da invisibilidade, negando a saberes outros o que eles são ou
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
estão, e atribuindo adjetivos como “primitivo”, ao mesmo tempo que se considera o
saber ocidental como o único científico; também faz desaparecer seus mundos, e para
isso é necessário destruir inclusive as próprias condições para essas existências, de
forma muito semelhante às monoculturas.
Então, nos deparamos com o equívoco, uma comunicação onde pode-se falar a mesma
coisa, Cerrado, mas como foi demonstrado no texto, não se fala sobre a mesma coisa,
pois estão sendo proferidas de mundos distintos (CADENA, 2018, p. 98) (lembrando que o
xamã é um corpo que consegue administrar essas traduções). Equívocos são gerados
durante as traduções, que não se limitam as palavras escritas ou faladas, e não podem
ser cancelados, mas podem ser controlados com o intuito de evitar que se transforme
o que é diferente no mesmo. As dissonâncias geradas nessas traduções podem ser
profícuas quando reconhecem seu papel nas diferenças e nos maus-entendidos que emergem
dela, já que as relações não se conectam
apenas
pelas
similaridades,
mas
também
pelas diferenças, o que sugere a possibilidade do reconhecimento dessas diferenças,
e as reconhecendo, há a permissão do diálogo, pois a comunicação se dá também através
delas, na contramão do silenciamento do Outro (CADENA, 2015, p. 27]. Mas, há ainda
um desdobramento do equívoco, o dissenso. Nele, continua existindo a diferença no que
se fala, ao que se acrescenta uma disputa sobre o que é falar, sobre quem pode falar, pois
ao forçar perspectivas diferentes a serem iguais (CADENA, 2018, p. 99-102), indo de
encontro ao que Vandana Shiva traz sobre forças hegemônicas perseguirem a
impossibilidade de outros mundos, elevam-se as tensões em diversos níveis.
No mundo dos Outros, o mundo que se vê como tudo prova ser insuficiente, e nossos
conceitos e nomenclaturas,
como
Pohypej
diz
sobre
seres
humanos
e
as
taxonomias recuperadas de Morim de Lima, se mostram estreitos e/ou escassos.
Encerro aqui com a compreensão de que as informações aqui expostas servem de
incentivo para pensar que as relações que ocorrem, a partir do Ponto de Enxergo do
wajaká, com seu corpo forjado na diferença dentro da diferença, sua relação com os
Outros, podem ser profícuas para enxergar o Cerrado para além de divisas dadas e fixas,
e onde homens, mulheres, pajés, onças, pássaros, plantas, constroem relações; onde o
Cerrado é o Ken, mas não só, obrigando o transbordamento do conceito, entendendo a
potência do Outro, e que a dificuldade de levar isso realmente a sério, de assumir o
equívoco, e de entender que não há provavelmente um esvaziamento no ato da tradução, mas
sim uma perda da própria palavra Cerrado, ou Pedra ou Água ou Terra, e assim vai, o
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
que é sintoma da nossa própria dificuldade de pensar outros mundos possíveis, mas que a
revelia de tudo isso, (r)existem.
Para os Mehin.
Notas
[1] Os Krahô costumam usar a palavra cantoria.
[2] Comunicação pessoal, março de 2018.
[3] Nota de campo, agosto de 2018.
[4] Notas de campo, agosto de 2018.
[5] Notas de campo, agosto de 2018
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Por entre caminhos de Isabelle Stengers
Gilberto Amorim Correa Chaves 1
UFMG
“Antropo-cego”: “o processo de criação de mundo por meio do qual mundos
heterogêneos que não se fazem por meio de práticas que separam ontologicamente
os humanos (ou a cultura) dos não humanos (ou a natureza) – nem necessariamente
concebem como tal as diferentes entidades presentes em seus agenciamentos – são
ambos obrigados a operar com essa distinção (deliberadamente destruída) e excedêla. (DE LA CADENA, 2018, p.10)
“No tempo das catástrofes” (STENGERS, 2015) e do “antropo-cego” (DE LA
CADENA, 2018), os homens forçam as vistas para se enxergarem e fecham os olhos para os
não-humanos2. Enquanto isso, as comunidades que tradicionalmente se mostravam
interessantes ao estudo antropológico (principalmente os povos ameríndios) obrigam a
disciplina a olhar respeitosamente para outros seres que povoam o cosmos. Assim, a
antropologia (em seu sentido mais lato, entendida como o estudo do homem) se vê desafiada
a incorporar esses seres no debate: as árvores, os animais, rios, lagos, montanhas, vento, ar,
lua, sol, etc.
Esse movimento de incorporação das potências não-humanas pressiona a disciplina a
reavaliar o que tem definido historicamente como campo do “social” e do “natural”,
ampliando o escopo de sujeitos que podem participar (e que participam efetivamente) das
relações sociais e culturais. Desse modo, os seres para além do humano passam a ser
“levados a sério” pelo estudo antropológico, pensados como agentes dotados de
intencionalidades, propósitos e subjetividades particulares.
A perspectiva adotada aqui contraria a ultrapassada noção de que os não-humanos
compõem apenas o campo de projeção da imaginação humana, do particular ou subjetivo, da
superstição ou crendice, que nos serve apenas de pano de fundo para discursos sobre o que
compreendemos como cultura ou sociedade. A abordagem deste trabalho propõe pensar
nessas animações como seres que não são/estão confinados ao pensamento humano, como
objetos de um discurso ou de uma narrativa, mas como animações que são capazes de objetar,
de retrucar, de contestar e contradizer.
Levando em conta o aparato conceitual tradicional da antropologia em contraste com
o modo de produção da vida desses outros seres, observa-se certo esgotamento conceitual
fundado no antropocentrismo inerente à constituição da disciplina, baseado no exclusivismo
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
do humano frente à natureza, que é apreendida como subserviente às ações humanas. Nesse
ponto, a “intrusão de Gaia” (STENGERS, 2017) – a insurgência de crescentes ameaças
ecológicas e catástrofes ambientais do presente e do futuro – tem muito para nos dizer e
ensinar, pois sua manifestação promove certo descentramento do humano em relação ao
cosmos em que vive. O desafio então é desacelerar e encarar esse fundamento
antropocêntrico da disciplina, visando possibilitar novas condições de engendrarmos
descrições que possam reconhecer e trabalhar a partir do descentramento, abrindo passagem a
abordagens que permitam vivenciar novas coalizões políticas (ou, melhor dizendo,
“cosmopolíticas”) que apontem para continuidades entre seres humanos, não-humanos e seus
respectivos mundos.
Assim como propõe o etnólogo Eduardo Viveiros de Castro3, a intenção é de se criar
uma antropologia “anti-narcísica”, isto é, a reformulação das teorias antropológicas, a partir
de uma nova antropologia do conceito que contraefetue um novo conceito de antropologia
(2015). Indagando sobre a forma como a antropologia deve ver o “outro”, ou penser
autrement, ele sugere:
“aceitar a oportunidade e a relevância desta tarefa de “penser autrement” (Foucalt) o
pensamento – de pensar “outramente”, pensar outra mente, pensar com outras
mentes – é comprometer-se com o projeto de elaboração de uma teoria
antropológica da imaginação conceitual, sensível à criatividade e reflexividade
inerentes à vida de todo coletivo, humano e não-humano” (p.25, 2015).
A tarefa dessa nova antropologia vai muito além do estudo do conteúdo exclusivamente
humano, a disciplina deve estar aberta a reconhecer e, portanto, trabalhar com todas as
potencialidades inerentes ao coletivo não-humano, possibilitando o surgimento de um campo
teórico baseado na noção de “multivocalidades”, das sensibilidades e reflexividades que são
evocadas pelas muitas vozes que constituem a formação dos saberes sobre o mundo a nossa
volta.
Isabelle Stengers
Nascida em 1949, Isabelle Stengers é uma filósofa de nacionalidade Belga que vem
discutindo questões importantes sobre as crises climáticas e catástrofes ambientais,
ocasionadas pelo avanço do capitalismo ao redor do mundo. A autora possui uma formação
acadêmica interdisciplinar: graduou-se em química pela Universidade Livre de Bruxelas,
onde leciona desde 1989 até os dias de hoje, na cadeira de “Práticas de produção de Saberes”.
Escreveu sua tese de doutorado sobre o filósofo e matemático Alfred Norton Whitehead e em
1979 publicou em coautoria com Ilya Prigogine o livro La Nouvelle aliance (A nova
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Aliança), no qual discute o caráter construído das leis físicas. Além disso, desenvolveu
trabalhos com outros filósofos europeus, especialmente, Félix Guattari e Bruno Latour.
A abordagem teórica da autora vai ao encontro do campo de estudos conhecido
como Social Studies in Science, que agrupa pesquisadores e especialistas em ciências
humanas que investem contra o ideal de uma ciência pura, pautada no conhecimento técnico
como instrumento consolidador. Este campo ainda em formação, introduzido por Michel
Callon e Bruno Latour, visa o estudo das dimensões sociais da ciência, questionando a
separação desta com a sociedade, ou seja, a defesa da não separação entre conhecimentos e
exercício do poder, digamos em outras palavras, da natureza e da cultura (LATOUR, 2013).
Assim como propõe Isabelle Stengers, “[...] estudar a ciência à maneira de um projeto social
como outro qualquer, nem mais descolado das preocupações do mundo, nem mais universal
ou racional do que qualquer outro” (2002, p.11). Nessa perspectiva, o cientista não passa de
mais um membro de uma comunidade específica, ele não é a ilustração gloriosa do espírito
crítico ou a encarnação da racionalidade lúcida, o cientista faz o que aprendeu a fazer
(STENGERS, 2002).
Os estudos interdisciplinares da autora a faz ser considerada uma ponte que liga os
paradigmas estabelecidos das ciências (ditas) naturais com as inquietudes conflitantes das
ciências (ditas) humanas. No entanto, a autora tornou-se particularmente interessante à
antropologia contemporânea, especialmente por seus escritos sobre questões que se referem
ao que podemos chamar de antropoceno4, aos efeitos da atividade humana sobre o planeta
Terra e suas consequências.
Animismo
O animismo é um conceito clássico do pensamento antropológico, Edward Burnett
Tylor, antropólogo britânico representante da escola do evolucionismo social, em Primitive
Culture, definiu animismo como “a doutrina dos seres espirituais” (TYLOR, 1871). Tylor
estava na busca dos fundamentos elementares do pensamento religioso, encarando a
possibilidade de se agrupar uma multiplicidade de ideias e concepções espiritualistas em
diferentes populações sob o conceito de religião primitiva. Em suma, o modo de pensar
animista era concebido como o fundo pré-histórico de todas as crenças.
Essa concepção evolucionista de uma religião primitiva que seria mais atrasada em
relação à sociedade civilizada, proposta por Tylor, foi substancialmente criticada por outros
antropólogos, desse modo, não vou me ater a formular, especificamente, uma crítica a sua
definição. Apesar disso, é necessário estabelecer o que pretendo chamar de animismo neste
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
texto. Partindo de uma significação mais objetiva e geral, entendendo que o animismo possui
uma definição conflituosa, opto por considerá-lo como certo modo de pensamento e ação em
que seres não-humanos, incluídos: espíritos, animais e plantas; possuem subjetividades,
intenções e agência, semelhante aos humanos.
É importante evidenciar que por ser uma categoria em constante disputa, é preciso
tomar muito cuidado para não cair em certos reducionismos. O primeiro deles é reduzir a
experiência animista à aspectos associados exclusivamente ao discurso, levado em conta
apenas por sua eficácia simbólica, por meios de metáfora, crença ou superstição. O segundo
reducionismo muito comum, mas extremamente equivocado, é considerar o animismo como
uma religião primitiva ou como se fosse uma “confusão ontológica” dos nativos em definir
aquilo que classificam e atribuem como sendo “gente” ou humano.
Para escapar dessas armadilhas reducionistas, considero que esse modo de relação
com o não-humano não está presente apenas na mitologia ou no discurso, agarrados a
regimes ontológicos específicos, o animismo define de forma pragmática a ação do sujeito,
ao mesmo tempo em que age sobre seu modo de ser e de se perceber no mundo. Este seria o
animismo proposto por Stengers, diferentemente daquele definido pela tradição
antropológica, trata-se antes de constituir um ato político, uma maneira de se fazer política
com o “outro”, de levar a sério ético-moralmente as múltiplas vozes que gritam em nosso
cosmos.
É desse modo que a autora acredita ser possível reativar certas práticas animistas por
intermédio de práticas modernas. No entanto, reativar não significaria resgatar algo do
passado nem se apropriar de algo inteiramente exógeno, mas sinalizaria uma possibilidade de
criação e resistência. Resistência que não significa, como sugeriu Zourabichvilli (2004) em
sua leitura de Deleuze, reação ou denúncia, mas sim modo de afirmar uma existência, de criar
novos possíveis.
Reativar o animismo
Em seu texto “Reativar o Animismo” (2017) Stengers discute questões importantes
que tratam das possibilidades de se reativar ou retomar certas práticas marginalizadas e
desqualificadas pelo mundo moderno-capitalista - dominado pelo cientificismo objetivo das
Ciências com “c” maiúsculo. Assim, em combate com o modo de vida capitalista e contra
todo o processo de unificação ontológica da modernidade, ela recupera o ativismo das bruxas
“neopagãs” norte-americanas5, reinterpretando os estudos sobre aquilo que chamamos de
magia e feitiçaria, tomando estas como mecanismos de resistência política e de desobediência
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
civil. É diante desse cenário mundial regulado pelos grandes acordos econômicos que pautam
a globalização capitalística, aonde o mundo é cada vez mais desencantado pelas realizações
científicas, que a Filósofa propõe reativar o Animismo.
No sentido proposto por Stengers, reativar não significa reaver ou ressuscitar o
passado como ele era, pensando em termos de uma tradição “verdadeiramente” autêntica. A
autora também contesta a ideia de que as práticas animistas estariam restritas a regimes
ontológicos específicos. Trata-se antes, de “sentir a fumaça que paira sobre nossas narinas”6 –
a fumaça das bruxas queimadas, das mulheres assassinadas pela inquisição (pelo poder
hegemônico), acusadas de se apropriarem da magia para algo maligno. Reativar então,
“significa recuperar e, neste caso, recuperar a capacidade de honrar a experiência, toda
experiência que nos importa, não como “nossa”, mas sim como experiência que nos “anima”,
que nos faz testemunhar o que não somos nós” (2017, p.11) .
Assim como sugere Renato Stuzstman em seu artigo “Reativar a feitiçaria e outras
receitas de resistência – pensando com Isabelle Stengers” (2018), a insistência deliberada da
autora em termos como feitiçaria ou magia seria insistir numa desterritorialização, num devir
minoritário no sentido deleuzo-guattariano, levando em conta que estas foram palavras
utilizadas para desqualificar práticas não cristãs e não científicas. Sendo assim, o próprio ato
de nomear feitiçaria ou magia é, portanto, o ato de reativá-las, uma vez que as palavras são
capazes de nos fazerem pensar e sentir. Em suma, afirma Stutzman, reativar “não se trata de
recuperar um passado ou se apropriar de algo inteiramente outro, mas sim de produzir
agenciamentos, novas conexões” (2018, p.334).
Nesse processo de reativação da magia como possibilidade de transformação de
práticas modernas, a autora relaciona o animismo ao conceito deleuzo-guattariano de
“agenciamento” – que segundo ela pode ser entendido como uma reunião de componentes
heterogêneos, em que a existência é definida pela própria participação nos agenciamentos e a
agência pertenceria ao agenciamento em si. Desse modo, a autora define animismo não como
uma ontologia predominante em alguma região, mas sim em termos de “agenciamentos que
geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e
também de sentir, pensar e imaginar” (STENGERS, 2017, p.16).
Animismo como arte rizomática
Stengers, seguindo a trilha deixada por Deleuze e Guattarri, sugere que “a reativação
da magia só pode ser uma operação rizomática” e, mais do que isso, o animismo, segundo
ela, deve ser considerado como uma “arte rizomática” (STENGERS, 2017). Segundo o
pensamento deleuzo-guatarriano:
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
"Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer
com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a
traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes,
inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao
múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções
movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e
transborda. Ele constitui multiplicidades" (DELEUZE & GUATTARRI,
“Capitalismo e Esquizofrenia”, p.31 apud ZOURABICHVILI, “Vocabulário de
Deleuze”, p.51-52).
Essa proposta - por si só um manifesto - cunha um novo modo de pensamento, um
modelo de resistência ético-política com a intenção de combater o privilégio secular ocupado
pela figura hierárquica da árvore, com suas raízes profundas e frutos prometidos, portadora
da Ciência como tronco e difundida em nosso imaginário de conhecimento científico. O
rizoma é um caule subterrâneo no todo ou em parte, que possui crescimento múltiplo
horizontal, Deleuze e Guattarri se apropriam desta noção da botânica e aplicam à filosofia.
Segundo eles, as estruturas de pensamento quebram os rizomas, o aprisionam, as teorias
reduzem seu objeto e cortam toda a multiplicidade dele. O rizoma tem pavor à unidade, ao
pesadelo do pensamento linear, ele é sempre aberto a experimentações, a ser atravessado e
transfigurado por linhas de intensidade: é sempre por rizoma que o desejo se move e produz.
Não podemos mais apontar compartimentos, o rizoma é algo que se espalha por todos os
cantos, não há justificativa para seguirmos uma linha reta unidirecional (o método
cartesiano), as linhas tortas se conectam, se confundem, multiplicam as conexões e a
intensidade delas. São nesses termos que temos oportunidade de criar novos sentidos, micropercepções-conexões que se confundem, diluídas uma sobre a outra, conectando-se em todas
as direções.
Nesse ponto me vem à mente outra imagem conceitual apresentada por Deleuze e
utilizada pela autora ao se referir a sua “proposição cosmopolítica”, a figura do “Idiota”. Esse
personagem conceitual tomado de empréstimo de Dostoiévski é aquele que sempre
desacelera os outros, “que resiste à maneira como a situação é apresentada, cujas urgências
mobilizam o pensamento ou a ação. E resiste não porque a apresentação seja falsa, não
porque as urgências sejam mentirosas, mas porque „há algo de mais importante‟”
(STENGERS, 2018, p.444).
A eficácia do Idiota não está em desfazer os fundamentos dos saberes, em criar uma
noite “onde todos os gatos são pardos”, mas sim em complicar a pretensão daqueles que se
sentem autorizados a se dizer proprietários dos saberes. O idiota é importante ao criar um
espaço de hesitação, ele nos alerta para que não precipitemos, para que não nos sintamos
autorizados a nos pensar como detentores do significado daquilo que sabemos. Assim, a
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
proposição cosmopolítica trata-se antes de desacelerar e de reconhecer a passagem de um
pavor que nos faz balbuciar as nossas seguranças. Como demonstra Stengers, “é esse pavor
que podemos escutar no grito, dizem, um dia entoado por Cromwell: „My Brethren, by the
bowels of Christ I beseech you, bethink that you may be mistaken!‟”7 (2018, p.447).
Ao tratar da questão da experimentação animal em laboratórios, Stengers observa
que os ritos, expressões, comportamentos e condutas próprias dos cientistas dentro dos
laboratórios testemunham a necessidade dos pesquisadores de se protegerem, no sentido de
que essa fabricação de protocolos produz “zonas de desafeto”, isto é, produzem certa
insensibilidade para que possam agir sem “peso na consciência”, sem necessariamente ter que
desacelerar e avaliar as consequências para os outros que estão sendo acionados em suas
pesquisas. Como afirma Stengers,
“A necessidade de “decidir” quanto à legitimidade de uma experimentação teria
então por correlato a invenção de restrições destinadas ativamente a essas manobras
de proteção, forçando os pesquisadores implicados a se expor, a decidir “em
presença” daquilo que será eventualmente vítima de sua decisão” (2018, p.449).
Trata-se de uma questão ética, de discutir o papel e a ação do cientista/pesquisador e
de questionar sobre as consequências de suas práticas no mundo, especialmente, as práticas
de produção de conhecimentos. Nesse sentido, a proposição (que não é propositiva)
cosmopolítica de Stengers tem um duplo movimento: convida os cientistas a saírem de seus
laboratórios - microcosmos controlado e ambiente produzido artificialmente - e faz o
movimento de volta ao convidar o “cosmos” a entrar dentro do laboratório. Isto é, pautar a
composição de um pensamento que se construa “em presença”, reconhecer a existência das
outras agências e tirar da invisibilidade a responsabilidade de nossas ações.
Depois dessa breve introdução ao pensamento deleuzo-guattariano e voltando mais
especificamente à questão do animismo, a autora afirma que aquilo que temos tido
propriamente como ciência validou o animismo, visto que se não fosse assim a própria
terminologia não existiria. Nesse ponto, ela propõe adotar no lugar da figura hierárquica de
uma árvore, o encanto do que Deleuze e Guattarri chamavam de rizoma, “conectando
práticas, preocupações e modos heterogêneos de dar sentido aos habitantes da Terra, sem que
nenhum deles fosse privilegiado e todos fossem passíveis de se conectar uns com os outros.”
(STENGERS, 2017, p.5)
Dessa forma, seguindo as conexões simbióticas propiciadas pelo “anarquismo
ecológico” do rizoma e “pensando pelo meio”, chegamos ao ponto em que a experiência
transformadora das realidades animistas não deve ser analisada em termos de “demonstração”
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prática de suas existências – visando provar que não é uma ficção vivenciada e extrapolada
pela categoria de superstição e crendice. Em outras palavras, sugere a autora, não devemos
“mobilizar as categorias de superstição, crença ou eficácia simbólica na tentativa de explicar
o que os peregrinos alegam experimentar.” (STENGERS, 2017, p.5) Devemos, ao contrário,
compreender que estas realidades requerem um meio que não responde às demandas
científicas.
O animismo, nesse sentido, pode vir a ser um nome em prol da recuperação desses
agenciamentos, uma vez que reivindicar sua eficácia não é de nossa alçada. Sendo assim,
“contra a insistente paixão envenenada por desmembrar e desmitificar, o animismo afirma o
que todos os agenciamentos exigem para não nos escravizar: que não estamos sozinhos no
mundo”. (op.cit, p. 15)
A intrusão de Gaia
Já faz algum tempo que a “humanidade” sabe - e sente culpa ou remorso - daquilo
que a “civilização moderna” causou ao planeta terra. Uma imagem, até certo ponto clássica,
de que a humanidade está pisoteando no berço onde nasceu; e outra imagem, até certo ponto
“moderna”, difundida no senso comum, de que um dia graças a um determinado avanço
científico e tecnológico - que ainda (ou sempre) estará por vir - deixaria este berço para trás,
partindo em busca de recursos em outros planetas. Estas imagens são importantes porque
passam a coexistir a partir da construção de uma sensibilidade e percepção do “custo”
ecológico e social daquilo que homem branco civilizado chamou de progresso e de
desenvolvimento.
Gaia, não se trata de “um rio” ou “uma floresta”, e sim na verdade de uma entidade
impessoal composta por processos viventes: “uma multidão anônima de micro-organismos,
mas também o clima, os oceanos, as terras férteis, tudo de que nós dependemos mas que
tratamos como se fosse auto-evidente.” (STENGERS, 2017, p.121) Stengers ao nomear Gaia,
ao invés de Terra, pretende afirmar que este “ser” que faz a intrusão em nossas histórias é um
ser de potência tal que não se pode domar, algo que nos ultrapassa, que antes nós ignoramos
por certa garantia de estabilidade, mas que agora nos apresenta a sua dimensão hiper-irritável.
Não podemos dominá-la, como sugere a autora, no entanto, somos capazes de ofendê-la, de
provocá-la até um ponto em que abandone seu estado de estabilidade.
Gaia, enquanto “ser capaz”, existente na repercussão de todos os seus processos,
torna-se um sujeito. E a sua manifestação – a intrusão – implica que nós não somos mais os
únicos sujeitos da nossa história e que devemos – caso queiramos sobreviver ao tempo das
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catástrofes – aprender a compor e negociar com esse ser temível, saber não ofendê-la,
mantendo uma relação de paz com ela. Stengers anuncia: “é a ofensa, e não a vingança, que é
temível.” (2017, p.123)
Em relação a isso, como indicado no início deste texto, os povos que
tradicionalmente interessaram ao estudo antropológico sempre mantiveram uma relação de
proximidade e respeito com Gaia, mais do que isso, de reverência e admiração às agências
não-humanas. Sem se deixar capturar pela armadilha do exotismo inerente a tal afirmação,
notadamente, os povos indígenas aparecem como um caso exemplar dessa relação de respeito
mútuo com a natureza e os seres que a compõe. De uma forma mais geral, estes povos nunca
tiveram a ingenuidade de pensar essa Mãe-Terra, responsável por garantir sua nutrição, como
uma mãe que não se ofende e que vive em prol de sua cria. Pelo contrário, para eles, esta mãe
que nutre, ao mesmo tempo, pode ser ofendida e se tornar um ser terrível, por isso deve ser
sempre respeitada e protegida.
O povo do ocidente, de fato, não foi ensinado a prestar atenção nessas intrusões
extra-humanas, não estão aparelhados tecnicamente e, muito menos, preparados
intelectualmente para isso. Stengers faz questão de relembrar que há apenas vinte anos atrás
aqueles que se objetavam ao processo desenvolvimentista e se inquietavam com os estragos
produzidos pelo progresso, eram chamados de irracionais. Coisa que acontece até hoje: a
visão preconceituosa de que os povos indígenas ou outras populações tradicionais causam
mazelas à sociedade devido aos seus modos próprios de vida contra-desenvolvimentista. O
mundo ocidental foi construído a partir da difusão de um imaginário que diz para todos: “nós
precisamos arriscar”, “precisamos seguir em frente”, “precisamos crescer”; sem levar em
conta aqueles que sofrerão as consequências. Quem é colocado em risco pelas inovações
tecno-científicas? Certamente, afirma a filósofa, não serão os responsáveis por elas.
(STENGERS, 2017)
Objetores do crescimento e cosmopolítica
São muitos os exemplos de pessoas que se posicionam politicamente (e muitas vezes
com a própria vida) contra esse tipo de desenvolvimento e progresso tecno-científico
estabelecido atualmente pelo modo de produção moderno-capitalista. A autora denomina
esses sujeitos de “objetores do crescimento”, os quais sob diferentes formas:
[...] “buscam fazer coincidir, e buscam nos mostrar que podemos fazer coincidir
maneiras de viver junto, de trabalhar junto, maneiras de viver no sentido concreto
do termo, de produzir também, e que exigem um pensamento, uma imaginação, a
criação de um entendimento com aquilo com o que nós vivemos e entre nós,
praticando no fundo o Reclaim” (STENGERS, 2017, p.125).
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Reclaim, segundo Stengers, “é se reapropriar, é também curar, é também tornar-se
novamente capaz.” (2017, p.125) Capaz de se criar vínculos, de se lutar contra não só aqueles
que causaram a separação entre nós e Gaia, entre humanos e não-humanos, mas de nos
curarmos dessa separação, de nos tornarmos novamente capazes. Portanto, práticas como
hortas coletivas, trocas e reabilitação de sementes, permacultura, e tudo isso, são interessantes
porque nos falam não só de uma relação às coisas, mas de uma relação aos seres nãohumanos, à natureza e, por fim, trata-se também de uma relação entre nós mesmos. Assim,
diz Stengers,
“Ecologia no sentido justamente de que não se trata de uma harmonia a reencontrar,
trata-se de imaginação a recriar, que nos permita inventar, produzir, criar novos
tipos de relação uns com os outros e com aquilo de que nós vivemos e aquilo com o
que nós vivemos” (2017, p.126).
Tendo em vista todo esse quadro traçado acima, a partir das impressões de Stengers
torna-se evidente de que necessitamos de exploradores de novos possíveis, de mediadores
que permitam a difusão das experiências, vivenciadas em todos os lugares. Que se produza
então, uma nova ecologia cultural, e aqui não a cultura com C maiúsculo (ou a cultura com
aspas), mas a cultura do fazer-com, fazer-com as coisas e fazer uns com os outros. E tão
importante quanto isso tudo, está o pensar - que não é neutro politicamente – que no sentido
de Deleuze, como afirma Stengers, “é esse pensamento coletivo, que podemos chamar de
cultura, se nos lembrarmos que cultura é a própria vida” (2017, p.126).
Notas
[1] Graduando em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: <gilberto-amorim2011@hotmail.com>.
[2] Ressalta-se que o termo “não-humanos” será utilizado no texto apenas como recurso de escrita,
uma vez que a definição a partir da negativa reduz de maneira significativa a multiplicidade de
agências abarcadas pelo termo e homogeneíza os diversos seres que a compõe.
[3] No primeiro capítulo de seu Livro “Metafísicas Canibais”.
[4] Termo que vem sendo utilizado por alguns pesquisadores para indicar a entrada do planeta terra
em um novo período geológico, que teria sucedido o Homoloceno, no qual os efeitos da ação
antrópica, principalmente a partir da economia industrial baseada na energia fóssil e o consumo
crescente do espaço, tempo e matéria-prima, adquiriram a dimensão de uma força física dominante no
planeta.
[5] Reclaiming Tradition Witchcraft: comunidade de pessoas e organização religiosa sem fins
lucrativos, com viés marcadamente feminista, fundada em 1980 por Diana Baker e Starhawk, visando
a união entre espiritualidade e política.
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[6] Eis o refrão de Starhawk que Stengers insiste em repetir: A história das bruxas queimadas é a
história do triunfo da modernidade cristã e do próprio capitalismo.
[7] “Meus irmãos, pelas entranhas de Cristo, suplico-lhes, creiam que possam estar enganados!”
(tradução minha).
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Reflexões sobre o ativismo indígena entre os Parkatêjê¹
Rayane Gomes da Silva²
Universidade Federal do Pará
Introdução
Esse trabalho se projeta sobre minhas pesquisas em campo na Terra Indígena Mãe
Maria e ao processo de remoção dos Parkatêjê para essa aldeia. Analisarei a figura da sua
liderança, o Capitão Krôhôkrenhum, seu poder de articulação e mediação frente aos conflitos
existentes desde a situação de contato até a cadeia de relações que se seguiram a partir disso.
Propus essa pesquisa pensando na conjuntura dos grandes projetos que os cercam, no seu
ambiente e nas suas relações dentro e fora dela, tendo em vista o contexto no qual está
inserida: intervenções e decretos estatais quanto à demarcação de terras, o corte pela Rodovia
BR 222 e pelas linhas de transmissão de energia da Eletronorte, assim como a influência da
Estrada de Ferro Carajás, da Companhia Vale3.
A Terra Indígena Mãe Maria está localizada no município de Bom Jesus do Tocantins,
a 30 km de Marabá. É pertencente ao povo Gavião, de origem Timbira e da família
linguística Jê, onde os Gavião se constituíram, a princípio, por três grupos: os Parkatêjê, os
Kyikatêjê e os Akrãtikatêjê. Antes da junção, esses grupos viviam separadamente em
territórios distintos localizados próximos de Itupiranga/Pa, na margem do Rio Tocantins, que
compreende as cabeceiras do rio Moju e Capim e em outras áreas próximas da cidade de
Imperatriz, no Maranhão.
Os Gaviões foram contactados e realocados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e
pela FUNAI entre os anos de 1943 e 1983, por intervenções do Estado em controlar conflitos
e pela implementação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí4, o que resultou nas suas sucessivas
remoções em uma única área (Ferraz, 1983). Seu reagrupamento aconteceu na aldeia que
denominaram de Kupejipôkti, que significa “os que estão lutando no meio do kupe - não
índio”. Apesar de compartilharem vários traços em comum, esses grupos ficaram conhecidos
como Comunidade Parkatêjê, denominando-se assim por muito tempo. É Gilberto Azanha
(1984), parafraseando Curt Nimuendajú (1971) que analisa as formas de organização
Timbira, grupo a qual pertencem, e em como eles se estruturam e resistem:
Todos estes grupos apresentavam como características comuns a língua, o corte de
cabelo, a morfologia da aldeia e a corrida com toras. Nimuendajú assim se expressa
a respeito da unidade dos grupos Timbira: “A unidade do povo Timbira e a sua
classificação na família lingüística Jê são tão evidentes que até hoje não foram
postas em dúvida por ninguém que se ocupou seriamente do assumpto” (op.cit:7).
Ribeiro que fala também da expansão dos grupos Timbira “para além do
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Tocantins...naquellas vastas extensões do Pará e de Goyaz” – afirmava: “Seus
costumes gerais diversificam em pouco; e de ordinário na privada linguagem... se
acha aquela diferença trivial que a distância de umas e outras povoações da mesma
raça lhe permite” (1 841; 186). Nimuendajú somente nos dá indicações sobre como
esta unidade operava na prática, isto é, sobre o modo como mais de três dezenas de
grupos “semelhantes”, vivendo em um mesmo território, se inter-relacionavam. Fala
sobre bandos que se separaram de grupos maiores, de algumas alianças intergrupais
e de bandos que se fundiram dando origem a um novo grupo (principalmente op.cit.
40-111). Fala portanto de cisões, alianças e da guerra (AZANHA, 1984, p. 8).
A remoção compulsória e a coexistência desses grupos geraram conflitos de ordem
interna e externa. A natureza dos conflitos internos desses grupos realocados na mesma aldeia
tem a ver com os aspectos da sua estrutura social e a própria forma de organização Timbira,
de expansão, cisão e guerra. Nesse sentido, sua relação com as demais aldeias Jê-Timbira é
de vizinhança, em um mecanismo que Azanha chamou de “aproximação e distância”, onde
migram de acordo em que se tornam populosos ou por conflitos com a liderança. O fator
externo se dá pelo contingente territorial da região devido a expansão capitalista de cunho
desenvolvimentista que o Sudeste Paraense sustenta. Um desses exemplos é a implementação
das redes de transmissão de energia da Eletronorte, cujo corte na aldeia aconteceu na área de
um desses grupos:
O anúncio da construção da rede de transmissão adquiriu uma face catastrófica,
sobretudo para os componentes da aldeia do “Trinta”; a experiência e o êxito da
comercialização da castanha sem a intermediação dos agentes tutelares regionais e o
rearranjo das relações com os agentes da FUNAI eram recentes, assim como a
manipulação de novos mecanismos de controle territorial (…) Um decreto-lei do
então presidente da República (n.º 80.100 de 08.08.1977) fora promulgado para
legitimar a “concessão da servidão de uso” para a empresa da faixa de terra no
interior da reserva indígena, indicando que a comunidade deveria receber
“indenização” pela cessão. Apesar da indignação entre os componentes do “Trinta”,
as discussões que envolveram, progressivamente, os agentes da FUNAI a níveis
local, regional e nacional, assessores independentes e representantes da empresa
diziam respeito aos critérios para o seu estabelecimento (FERRAZ, 1983, p. 152154).
Devido a natureza e a intensidade de relações desses grupos entre si, o problema
territorial passou a ser um catalisador de conflitos. E a busca pelo controle político decorrente
da gestão financeira das indenizações que a Vale faz pelos prejuízos causados pelo corte do
território foram o alvo para disputas intergrupais, sobretudo, pela participação ativa junto à
liderança da comunidade, em um cenário de constante pressão territorial e expropriação de
terras, ao qual coube aos Gavião a defesa de seu território.
Capitão Toprãmre Krôhôkrenhum Jõpaipaire e a Chefia Indígena dos Parkatêjê
A chefia política na comunidade Parkatêjê obedece às formas de organização Timbira
definida por Nimuendaju (1971), no século XIX, analisando-os como uma unidade em
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conjunto, mesmo sendo grupos distintos. Nas aldeias, a chefia é conduzida geralmente pelos
homens, mas as mulheres também exercem atividades importantes que se constituem em Mãe
Maria. Há o grupo dos velhos, que representa outra instância importante na vida política
Timbira, onde geralmente estes velhos foram os seus fundadores e possuem uma vasta
experiência de vida para os mais jovens, dando conselhos e influenciando na valorização da
cultura e tradição (Ferraz, 1983; Avila, 2004).
O livro Me ikwy Tekjê Ri (2011), que significa “Isto Pertence ao Meu Povo”, conta a
trajetória de Capitão e da comunidade Parkatêjê a partir das próprias narrativas de
Krôhôkrenhum, sua vivência em lutas e adversidades, principalmente contra o
desaparecimento do seu povo, da sua língua e da sua cultura, antes e depois de chegar em
Mãe Maria. A transmissão de conhecimentos e a materialidade desse livro, junto de um
documentário produzido e organizado por profissionais de diversas áreas e em colaboração
dos Gavião Parkatêjê tiveram como objetivo registrar a vivência desse líder.
Capitão Krôhôkrenhum visava a continuidade da sua população através da
preservação de suas práticas tradicionais, era um cantador. O canto é uma das formas de
expressão dos xamãs em contato com o sobrenatural, um fenômeno relacionado à
composição da pessoa e do corpo (Vilaça, 2000) que podemos observar nas narrativas de
Capitão, no livro citado acima. Embora não haja relatos de que Capitão se apresentasse como
um xamã, apenas como líder político e conselheiro, seu livro relata memórias e trechos de
cura com as mãos pelos seus antepassados, inclusive, menciona que qualquer Parkatêjê pode
curar através das mãos:
Antigamente os velhos curavam com a mão mesmo, com a mão mesmo. Passava a
mão até melhorar. Nossa mão também melhora, não é só doutor que melhora. Nossa
mão e até a mão do pajé também. Mas não é só a mão do pajé que resolve não,
qualquer mão, mesmo. Vocês são meninas novas, vocês devem experimentar botar
a mão, talvez a mão de vocês sirva pra qualquer coisa. Você, brincando, passa a
mão, acaba a dor. Qualquer dor. Alguém lhe pede pra passar a mão, porque parece
que você sabe curar a doença. Tornam a pedir: “Experimenta de novo pra mim,
experimenta, pra ver se você é boa”. Então a pessoa fica boazinha, curada e você já
fica bem conhecida. É verdade. Aconteceu com a minha barriga, eu lembro: minha
mãe, minha tia mais velha tinham mão boa pra curar… Eu falo pra Jonhapý que
minha tia era boa pra tira dor de barriga. Parecia com homem, apertava, apertava,
apertava, até desmanchar completamente a dor (Toprãmre Krôhokrenhum
Jõpaipaire, 2011, p. 109).
Krôhôkrenhum aprendeu a cantar a sozinho, na prática, embrenhado nas matas ou
dançando e cantando nos rituais tradicionais do Pàn e Hàk (Arara e Gavião) e Tep, Xêrêtêre
e Têre (Peixe, Arraia e Lontra), e era assim que costumava passar seus ensinamentos aos
mais jovens. Liderou sua aldeia por mais de 60 anos (faleceu em 2016), e foi um dos
pioneiros a habitar Mãe Maria. Através dele, a luta pela continuidade do seu povo, a
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reconstrução da sua etnia e a preservação das práticas tradicionais, como as “brincadeiras”
(rituais) da corrida de toras, o jogo de flechas, as pinturas corporais e a perfuração nos lábios
dos jovens, foram integradas à rotina da aldeia. Sofrido por ataques constantes das supostas
guerras entre si ou dizimado por doenças contagiosas que surgiram entre eles, seu povo
ficava espalhado em diversas aldeias no Pará, até serem realocados em Mãe Maria. Suas
ações políticas tomaram frente nas negociações para a autonomia da produção da castanha,
antes realizada pela Funai e com pouca participação no lucro. Também esteve à frente das
principais negociações com empreiteiras privadas e entidades ligadas à salvaguarda dos
direitos indígenas, viajando muitas vezes para Belém, Brasília ou São Paulo. Empenhado no
aumento da sua população e na construção de uma coletividade, sua figura passou a se
constituir como a de um chefe político na gênese das relações territoriais, à frente da
comunidade Parkatêjê.
Lanço mão dessa situação e a aproximo à ideia de “A Sociedade Contra o Estado”, de
Pierre Clastres (1934), ao falar de uma filosofia política indígena que nega um Estado
regulador de poder coercitivo e centralizado na figura do chefe ou do líder político. Para ele,
a organização política das sociedades da América indígena, em sua maioria, se distinguiria
pelo gosto da coletividade e na ausência de autoridade. Como traço pertinente do seu
argumento, o que se deve reter disso é a falta de estratificação social e da autoridade de
poder dessas sociedades. Segundo Clastres, o poder está no grupo, o líder político exerce
uma chefia de “status” e ele pode ser destituído ou trocado a qualquer momento, possuindo
alguns traços suplementares para a sua qualificação, como a de apaziguador (moderador do
grupo), generoso com seus bens (não acumular, mas distribuir; avareza e poder não são
compatíveis), bom orador (chave de acesso para a chefia) e ter o privilégio da poliginia
(distinção do líder exercer direito sobre as mulheres do grupo, em troca exige-se do chefe
generosidade de bens e talento oratório). Essa é a constituição das sociedades “primitivas”
em Clastres, a esfera política que sanciona a passagem da natureza para a cultura: a troca de
bens, de mulheres e de palavras. Marina Vanzolini (2011) e Renato Sztutman (2013)
apontam para uma revisão da obra de Clastres a partir de idéias lançadas no contexto
xinguano de políticas partidárias e das suas metamorfoses, ao qual contribuem para a
discussão da tese contra o Estado, e a complementam ao contexto ameríndio:
Parece-me que a idéia do “contra-Estado”, sobretudo quando confrontada nas
etnografias de povos ameríndios, foi tomada pelos etnólogos de maneira por
demais literal, para não dizer ingênua (…). Segundo Clastres, a “sociedade
primitiva” - generalização que tem como inspiração as sociedades das terras baixas
da América do Sul – é “contra o Estado”, e não “sem” o Estado. Dizer que elas são
“sem Estado” seria defini-las pela falta, seria privá-las de capacidade de
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organização e gestão de assuntos que dizem respeito à vida coletiva (…). Trata-se,
pois, de uma tese ousada que sugere que a filosofia política ocidental pode ser
transformada pela filosofia política indígena (SZTUTMAN, 2013, p. 4-5).
Há algumas identificações na sociedade Parkatêjê com a aproximação da teoria de
Pierre Clastres quanto à qualidade do cacique ou chefe político, formas tradicionais de
liderança que podem ser facilmente identificadas nas narrativas de Krôhôkrenhum em seu
livro de memórias:
Se você é brigador, se você é lutador, bem tranquilo, você não é nervoso, nem tem
medo, não tem água no olho, fica duro, aí que a gente procura pra ser cacique;
também não pode ficar fuxicando, contar história, mentindo. É homem sério
mesmo. Sendo assim, quando uma pessoa precisa de cacique, ela nos chama.
Quando meu avô era vivo, ele falava que não queria que eu ficasse com ciúme da
caça e eu aprendi isso com ele. Por isso eu sou duro, eu estou ainda andando
forte.Ele estava falando assim, porque ficar com ciúme não presta, não dá certo!
Quando alguém caça, ele tem que deixar tudo pros parentes. O dia em que aquele
homem mais caçador aparecer sem nada, os outros dão a caça pra ele, deixam ele
levar. Deixam, porque um dia ele já trouxe também. (Ensinando a não ser sovina).
O chefe pode ser tirado. Qualquer homem vai e diz assim: “Eu não gosto de você,
porque você já me enganou várias vezes, você já mentiu, você já mentiu pra mim.”
Não pode tirar da aldeia, mas ninguém faz as coisas pra ele, aí tem de sair mesmo.
Imediatamente. Sai na hora! Um chega e diz: “Agora eu vou ficar!”. Vale mais a
vontade do povo. Ele continua morando na aldeia, mas não é mais chefe (Toprãmre
Krôhokrenhum Jõpaipaire, 2011, p. 103-149).
O pensamento político das comunidades indígenas em Mãe Maria está relacionado à
resistência dos componentes territoriais que exercem um poder de coerção a partir desse
território, o que torna difícil a sua reorganização enquanto sociedade, pois desarticula sua
coletividade causando conflitos internos. São 16 aldeias existentes hoje na T.I.M.M. e se
constituíram como pequenas unidades políticas, cada uma delas brigando pela sua
reorganização, um campo minado. Aparentemente, as cisões em Mãe Maria ocorrem por
questionamentos decorrentes da gestão financeira das compensações e indenizações que a
Vale faz pelos prejuízos causados no controle territorial. A concentração do poder político,
nesse sentido, não estaria na chefia, ou no povo, mas no poder coercitivo e violento da
relação de controle territorial que essas empresas exercem dentro da T.I. Isso implica, ainda
em Clastres, um outro aspecto: o da guerra.
A guerra é, nesse sentido, contra o Estado, e as “sociedades primitivas”, “para-aguerra”. Essas comunidades indígenas autônomas e autárquicas eram descritas pelo
autor como “comunidades indivisas”, isto é, como não baseadas em relações entre
dominantes e dominados. Para ele, sequer a diferença entre homens e mulheres
poderia ser pensada alí como Divisão, uma vez que não está baseada na
expropriação ou na dominação, mas sim na complementaridade. Se em “Troca e
poder” a violência é contra a sociedade, é a arma do Estado, em “Arqueologia da
violência”, outra forma de violência – não mais externa e sim interna – passa a ser
aquilo que se opõe ao Estado, agora fundado num desenvolvimento da troca. A
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violência guerreira aparece em “Arqueologia da violência” como interrupção de um
ciclo de trocas – desta vez entre as diferentes comunidades -, trocas que podem agir
em prol da unificação política (SZTUTMAN, 2013, p. 13).
Isso nos remete às formas de organização Timbira que Gilberto Azanha (1984)
analisou. A dinâmica Timbira de expansão e cisão, é, notadamente, marca da trajetória desses
povos. Suas cisões ocorrem como processos gradativos de diferenciações. É o que Clastres
chama de “complementaridade e recusa”, onde a guerra, como expressão de rivalidades, é a
garantia da permanência dessa dispersão.
Ativismo Político e Consciência Histórica
O interesse econômico pela Amazônia e a disputa por parte desses territórios têm
evidenciado uma competição violenta que afeta diretamente seus habitantes. O Sudeste
paraense é caracterizado por essa lógica. A mudança compulsória de território dos grupos
étnicos aqui citados resultou no englobamento dessas características e os seus
desdobramentos a esses projetos atuaram como fator determinante de lutas pela manutenção
do seu lugar e a busca da sua identidade. Ferraz (1983) analisa esse contexto:
O modo como as suas relações com o território vem se constituindo em objeto de
preocupação política desses grupos locais atualmente em Mãe Maria é revelado no
conjunto das estratégias empreendidas nos últimos trinta anos, relativas à
salvaguarda e proteção das terras em que habitam, reivindicações de recompensas
do Estado por perdas sofridas, através de processos indenizatórios e ações judiciais
para reposição de terras, além de programas especiais de assistência, como formas
de compensação. A compreensão de um processo de crise permanente em que vive
a sociedade parkatêjê está vinculada, por sua vez, à compreensão de outros
processos igualmente abrangentes, que envolvem a reorganização cultural, política e
a afirmação da identidade, traduzindo a elaboração das estratégias de reprodução da
sociedade parkatêjê, no contexto do sudeste paraense. Estas estratégias, por sua vez,
dizem respeito à convivência de três grupos locais que compõem, atualmente, a
aldeia chamada Kupejipôkti […]
Território, é, portanto, elemento base para qualquer análise de um estudo etnológico
da região, tendo em vista seu processo de configuração. Utilizo emprestado o conceito de
João Pacheco de Oliveira (1998) sobre situação territorial que permite uma análise do
processo histórico que muito se encaixa nesse contexto. O processo de territorialização que
esses povos ainda vivem em Mãe Maria é dinâmico, e o caráter dos acordos indenizatórios
das aldeias não são definitivos: eles estão em constantes transformações e sucessíveis
contatos com empresas que cortam a sua área, o que acaba regulando suas relações. Nesse
sentido, Pacheco analisa a situação territorial e o modo de vida dos índios que habitam as
reservas indígenas como imposição de instituições e são objetos do exercício paternalista da
tutela. O que é interessante reter no artigo do Pacheco é a forma que ele coloca a situação
como um fato histórico que “instaura uma nova relação da sociedade com o território,
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deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência sociocultural” (Pacheco de
Oliveira, 1998, p. 54).
Nesse sentido, a noção de territorialização é definida como um processo de
reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural
mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a
constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle
social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o
passado (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 54).
Ribeiro Junior (2014) também reflete sobre a situação de Mãe Maria e evidencia que
esses povos lutam contra a soberania de dominação existente do capital, e leva em
consideração vários conflitos que ocorreram na trajetória da instituição de suas terras, como
os conflitos intergrupais que resultaram em cisões, subdivisões e a criação de novos
aldeamentos5.
A junção desses 3 grupos em uma mesma comunidade resultou em um conjunto de
estratégias do seu líder em alianças políticas, cerimoniais e matrimoniais para permanecerem
unidos frente às relações de contato (grileiros, posseiros e latifundiários):
Tanto a denominação comum - Parkatêjê - quanto a reunião dos grupos em uma
única aldeia com a finalidade controlar o ressurgimento de hostilidades internas
fazem parte do conjunto de estratégias pessoais de Krôhôkrenhum para assegurar
tanto a coesão do grupo e sua unidade política frente aos distintos agentes do
contato, como a legitimação do exercício da sua chefia sobre todo o grupo. Para
consolidar as mudanças verificadas com a comercialização autônoma da produção
de castanha a partir de 1976 (Ferraz, 1983, pp. 68 ss.), nas relações com os nãoíndios das redondezas era necessário mostrarem-se "muitos" e "unidos", iguais
enquanto Parkatêjê, numa clara expressão de fortalecimento da identidade
(FERRAZ, 1983, p. 3).
Ao mesmo tempo em que permaneciam unidos enquanto Comunidade Parkatêjê,
acontecia que seus processos de transformação social também foram se diferenciando, o que
resultou como fator determinante para que líderes indígenas dos outros grupos locais
levantassem suas pautas pela reivindicação do seu lugar, consequentemente, na luta pela
reposição de suas terras, exigindo separadamente acordos indenizatórios por seus antigos
territórios. Mesmo com as cisões, uma questão é fundamental para o entendimento das
relações entre esses grupos: seu processo de transformação política e social, e Krôhôkrenhum
liderou o seu grupo desde o começo para esse fim.
Gostaria de trazer para reflexão o debate da proposição cosmopolítica que Marisol De
La Cadena (2010) realiza em torno de uma política étnica de categorias indígenas como pauta
de reivindicação de lutas. Em “Cosmopolitics in the Andes”, cuja política indígena tem sido
resoluta enquanto “política étnica”, onde o ativismo é interpretado como uma busca para que
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
os direitos culturais desses povos prevaleçam. Nesse artigo, Marisol levanta questões que
argumentam sobre a indigeneidade como uma formação que excede a noção de política como
de costume, em uma arena povoada pela disputa do poder e à sua representação junto ao
Estado.
The political reconfiguration that is currently taking place in Latin America may
mark epochal changes in the continent. Electoral results in Bolivia and Ecuador
have led international and national analysts to interpret these changes as a (sub)
continental re-turn to the left, but what is unprecedented is the presence of regional
indigenous social movements as a constituent element of these transformations.
Their demands tend to disturb political agendas and conceptual settlements, progressive and conservative alike (DE LA CADENA, 2010, p. 334-335).
Isso significa a utilização dos saberes tradicionais no engajamento de movimentos de
resistência baseados na reivindicação das causas indígenas contra a destruição do seu povo e
do seu território. As pautas de reivindicação dos Gavião também estão intimamente ligadas à
questão do território, sobretudo, pela garantia da integridade do seu espaço, a preservação do
seu povo e do meio que os cercam.
A reconfiguração política que atualmente está acontecendo nesses países da América
Latina demonstra profundas mudanças na História, onde a presença dos movimentos sociais
indígenas atua como elemento constituinte dessas relações. Seu ativismo é transformador e a
demanda de reivindicação desses povos sinalizam perturbar agendas políticas e
assentamentos conceituais, pró-progressivos e conservadores (De La Cadena, 2010, p. 335).
De forma análoga, Spensy Pimentel (2012) analisa a situação dos Kaiowá e Guarani e a
região do agronegócio no Mato Grosso do Sul, identificando a situação de grupos indígenas
em áreas de vulnerabilidade e superpopulação. O maior problema enfrentado por eles é
expresso nas estatísticas de atentados contra as suas vidas e a violência nos espaços que
vivem, seja pelos conflitos entre as famílias dentro das reservas indígenas e o confinamento
involuntário nessas terras, ou pelos conflitos com fazendeiros e políticos com grandes
empreendimentos econômicos, caso do agronegócio. A análise que Pimentel oferece é a partir
da observação do discurso xamânico dos Kaiowa e Guarani em sua luta pelo território e aos
fenômenos naturais ligados à terra:
A situação atual dos Kaiowa e Guarani nos oferece a oportunidade de
observar o discurso xamânico em um contexto bem diferente. No sul de Mato
Grosso do Sul, não são a mineração e o desmatamento as ameaças. Não se
trata de impedir a devastação da floresta – ela já aconteceu, ao longo do século
XX, e de uma maneira radical, como se viu. A reflexão tecida pelos indígenas
em sua luta pela reconquista de seu território está repleta de considerações a
respeito da ação de seres relacionados à terra, às águas e aos fenômenos
meteorológicos – seus parentes, aliados – e de uma crítica à transformação
dessa terra e de seus recursos em mercadorias. Usualmente, a reflexão mais
densa é realizada pelos nhanderu e nhandesy, como são conhecidas algumas
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
pessoas de prestígio, em função de seus conhecimentos xamânicos e posição
social. Os Kaiowá e Guarani que sustentam as práticas xamânicas20
consideram, em primeiro lugar, que as atitudes dos karaí (brancos ou não
índios) – o desmatamento generalizado em MS, a irresponsabilidade com
relação aos rios e as terras – são extremamente perniciosas para a saúde e o
equilíbrio do cosmo. Além disso, é a própria manutenção das práticas
xamânicas, segundo eles, que pode dar alguma chance à sobrevivência dos
próprios karaí, tendo em vista que as consequências nefastas de nossa
negligência e crueldade já são visíveis por todos os lados (PIMENTEL, 2012,
p. 141).
Os artigos de De La Cadena e Pimentel simultaneamente fazem referência aos pontos
de vista envolvidos nas relações políticas, tendo como relação as diferentes visões de
mundo e à ação destes sujeitos à natureza e visão cosmopolítica das coisas. É nessa
perspectiva que De La Cadena e Pimentel aproximam seu pensamento ao de Isabelle
Stangers (2005) em “desacelerar o raciocínio”:
How can we present a proposal intended, not to say what is, or what ought to be, but
to provoke thought, a proposal that requires no other verification than the way in
which it is able to “slow down” reasoning and create an opportunity to arouse a
slightly different awareness of the problems and situations mobilizing us?
(STENGERS, 2005).
Desacelerar o raciocínio aparece em Stengers como uma proposição que se quer
separada das questões da autoridade e generalidade que se agenciam em torno da noção
de teoria, no sentido do domínio das coisas na política, como a sua desestabilização, um
modo de pensar a partir da ciência. Renato Sztutman (2018) é quem analisa e traduz o
conceito de “slow down” de Stengers em seu artigo “Reativar a Feitiçaria e Outras
Receitas de Resistência – pensando com Isabelle Stengers”, e explora os sentidos de
“reclaim” da autora como possibilidade de uma retomada ou reativação das práticas
marginalizadas no mundo moderno, como a magia e a feitiçaria, apontando modalidades
de resistência política.
Pequenas Considerações
O processo de integração na Terra Indígena Mãe Maria resultou nos desdobramentos
de resistência e recomposição demográfica como aparato de defesa no sentido de fortalecer
suas tradições e reconstruir, a partir do contato e do controle ativo do seu território, suas
identidades. Isso se conecta com o caso dos Kayapó e da consciência social que eles
desenvolveram a partir do contato ao lidar com componentes estrangeiros e a reafirmação de
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
uma identidade étnica capaz de assumir sua própria autonomia e variadas formas de ações
coletivas, sem que, no entanto, estejam “perdendo a sua cultura” (Turner, 1993).
A importância de revisitar autores que pensam mudança e desenvolvimento de grupos
étnicos levando em consideração suas transformações a partir das suas próprias perspectivas,
dentro das relações de poder e ações de enfrentamentos é pensar memória e cultura desses
povos não do ponto de vista de como as coisas foram, mas como serão.
Notas
[1] Trabalho apresentado na VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG/2018.
[2] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia - PPGA - da UFPA.
[3] Para uma revisão desse período, consultar: BELTRÃO, Jane Felipe.
Laudo Antropológico
Reserva Indígena Mãe Maria a propósito da BR-222. Campinas, 1998.
[4] Para compreender o contexto desses empreendimentos, consultar: HÉBETTE, J. (Coord.). A
Amazônia no processo de integração nacional. Belém: UFPA/NAEA, 1974.
[5] Para uma análise geral precisaria ir a campo tentar compreender em que termos os próprios Gavião
de Mãe Maria se definem, e tentar incluir o que é esse território para eles.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Repensando a divulgação científica e seu lugar na Universidade: Um olhar
antropológico
Bárbara M. Martinez Viana
Orientadora: Karla Cunha Pádua
Universidade do Estado de Minas Gerais
Introdução
A presente pesquisa de natureza interdisciplinar desenvolvida no Mestrado em
Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais- UEMG teve início no primeiro
semestre de 2018. O estudo tem como foco o projeto de divulgação científica, chamado
“Universidade das Crianças” (UC), desenvolvido na Universidade Federal de Minas GeraisUFMG. Trata-se de um projeto de extensão que propõe divulgar a ciência para o público
infantil, a partir de dúvidas que as próprias crianças tenham sobre o corpo humano e o meio
ambiente. Foi criado pelo Núcleo de Divulgação Científica da UFMG e existe desde 2006
como um projeto interdisciplinar, que envolve colaboradores de várias áreas, como Medicina,
Belas Artes, Ciências Sociais e Educação.
Parte-se do entendimento de que, através das dúvidas das crianças, seja possível
entendê-las em seu mundo, a partir de seu próprio ponto de vista, de suas percepções e
visões. Entende-se que, essas perspectivas sejam também construídas a partir do que o
contexto social oferece, assim, valoriza-se a necessidade de considerar as crianças como
atores sociais plenos (COUTINHO et al., 2017).
O contato com as crianças se dá a partir das oficinas que o Projeto de Divulgação
Científica promove em escolas. A equipe do Projeto vai até às escolas e conversa com as
crianças sobre ciência e os saberes construídos até os dias de hoje. Entende-se, neste
contexto, que a produção do conhecimento começa a partir da pergunta, logo, é importante
atribuir poder a elas, para então, dar mais visibilidade e voz às crianças.
Em um momento anterior à oficina (uma ou duas semanas antes), é deixada na escola
uma caixa, onde as crianças poderão colocar suas perguntas sobre o corpo humano e meio
ambiente. O objetivo das oficinas e dos espaços organizados é oferecer um local acolhedor
para que as crianças se sintam seguras para fazer as perguntas. O intuito é criar uma
discussão menos hierárquica, tentando desconstruir a universidade como única detentora de
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
saber legítimo e propondo um diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido,
nas oficinas são alcançados meios de discutir e incorporar aspectos culturais e sociais.
Considerando o Projeto UC como contexto de pesquisa, destaca-se a função social da
Universidade que perpassa a divulgação científica e a extensão. Dessa forma, pode-se
interpretar a Universidade como um espaço de significar o aprendizado e lugar de troca de
saberes (SANTOS, 2013). Lugar, também, de propor ações associadas à funções sociais
ligando as práticas acadêmicas às demandas além dos muros universitários. Nessa medida, é
pretendido entender a universidade pública e sua relação com os compromissos sociais
construídos por meio da extensão. Em via de destacar a Universidade como produto de seu
tempo, discutiremos a divulgação científica e os desafios que ameaçam sua valoração ao
considerar o contexto político atual.
Considerando o papel social da divulgação científica, tendo em vista seu alcance
interno e externo à Universidade, abordaremos o contexto político atual e os desafios
colocados para o desempenho de projetos de extensão continuarem executando suas tarefas
dentro da Universidade.
Para alcançar os sujeitos em busca de denotar a relevância social do projeto
“Universidade das Crianças”, será adotada a metodologia qualitativa e o instrumento da
entrevista narrativa com a intenção de ouvir a voz dos participantes desse projeto de
divulgação científica. Em primeira instância, pretende-se efetuar um levantamento de
participantes do Projeto Universidade das Crianças que contemple sujeitos de 2006 (ano
inicial de funcionamento) até o presente momento. O intuito é compreender como o material
é construído por esses sujeitos dentro do Projeto e como ele chega às crianças. Para isso, uma
das etapas será a realização de uma Oficina com crianças da Escola Municipal Dom Bosco,
na qual serão usados os materiais produzidos pelo UC, como livros impressos e vídeos de
animação publicados no site1. Na Oficina será usada uma metodologia específica de
investigação etnográfica com crianças para entender como esse material de fato é
compreendido por esse público externo à Universidade.
A abordagem antropológica, escolhida para orientar o estudo, nos conduz
necessariamente à etnografia, ao levar em conta os atores sociais e suas agências em um dado
contexto. A abordagem etnográfica considera “os atores sociais com uma participação ativa e
dinâmica e modificadora das estruturas sociais” e preocupa-se “em revelar as relações e
interações significativas de modo a desenvolver a reflexividade sobre a ação de pesquisar,
tanto pelo pesquisador quanto pelo pesquisado. (MATTOS, 2001, p. 41). Nesse sentido, a
entrevista narrativa se coloca como um grande ganho na pesquisa, por considerar a
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
reflexividade dos atores, na medida em que ajudará a entender a imersão dos atores na “rede
de relações” (LATOUR, 2012). No desenvolvimento da pesquisa, o Projeto “UC” será
pensado a partir da teoria de rede, na perspectiva de Latour (2012), buscando compreender a
ação dos atores nele envolvidos. Segundo o autor, um importante aspecto das redes é que elas
são híbridas, compostas por atores humanos e não-humanos. O que define um ator dentro da
rede são as suas relações entre as diversas entidades em ação (COUTINHO et al., 2014).
A importância da pesquisa em ação: o contexto político e a valoração da ciência
Considerando o contexto político atual de corte de verbas para a educação, a
Universidade pode ser conceituada como uma das Instituições que mais vem sofrendo com
esse cenário. Os recursos para pesquisas estão sendo afetados diretamente, os cientistas que
antes não buscavam o apoio da sociedade para conseguir recursos, hoje se veem em lugar de
seguir diferentes ações. Convencer uma sociedade que não foi ensinada a enxergar o valor
das produções científicas é um desafio que se tornou necessário (ESCOBAR, 2018).
Nem sempre o diálogo comunidade científica e sociedade foi valorizado, pelo fato de
existir um abismo entre ambos. Segundo Escobar (2018), “a divulgação científica sempre foi
deficiente no Brasil, mas nunca fez tanta falta quanto agora, pelo fato da crise orçamentária
ter afetado a ciência brasileira nos últimos anos”, principalmente pelo “desgoverno” atual
que, por meio da PEC 552 congelou os gastos na educação.
O auge do regime fiscal em 2016 no poder do governo Temer foi a saúde e a
educação. O intuito foi congelar os gastos federais em saúde e educação ao patamar de 2017.
Para isso, o piso de gasto da Receita Líquida de Impostos (RLI) em educação e a Recente
Corrente Líquida (RCL) da saúde tiveram como referência os gastos de 2017 reajustados pela
inflação. Áreas como a ciência, tecnologia e humanidades estão sendo refletidos de maneira
muito pesada na Educação. Os cortes realizados este ano somam cerca de R$ 4,3 bilhões, que
representam quase 50% da verba total de financiamento para a produção de conhecimento
nesses dois anos (MAHIN,2017).
Considerando esse atual contexto político, que afeta a viabilidade de projetos de
divulgação científica dentro das universidades, é ainda mais fundamental o desenvolvimento
de pesquisas que mostrem para a sociedade brasileira a sua necessidade e relevância. Esta
pesquisa de mestrado sendo desenvolvida com intuito de fortalecer a valoração e visibilidade
da divulgação científica e do seu papel educativo, o que mostra a relevância do tema tratado.
Trabalhos dentro desse tema, ao trazer à tona o papel social da universidade de potencializar
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
os meios que divulgam a ciência, manifestam um diferencial no contexto contemporâneo
brasileiro, no sentido de revelar o potencial educativo dos projetos de divulgação científica.
Em um contexto de congelamento de gastos para educação e produção científica nas
Universidades, nunca se precisou tanto do consentimento social para conseguir verba para
esses setores. Portanto, discutir esse assunto na contemporaneidade é dar força para a ciência
e para a importância da divulgação científica dentro e fora da universidade. Entretanto, como
afirma Escobar (2018), “a divulgação científica não vai trazer o orçamento da ciência
brasileira de volta, é preciso um investimento a longo prazo e de caráter
educativo”(ESCOBAR,2018, p. 34). Essa conscientização sobre a importância da ciência não
vai surgir espontaneamente na sociedade, é algo que precisa ser construído, semeado e
irrigado diariamente. Escobar (2018) chama essa tarefa de um grande desafio. Desafio esse
que a presente pesquisa está disposta a se envolver, no que se refere relevar a temática da
divulgação científica e visibiliza-la no contexto da pesquisa em educação, tendo seu
diferencial ao trazê-la na perspectiva antropológica.
Essa perspectiva pode ajudar a valorizar os conhecimentos produzidos na
Universidade, mas não aqueles que se colocam dentro de uma perspectiva dos saberes
colonizadores, mas aqueles que se constroem no diálogo com a alteridade e abertos a novas
epistemes.3 Projetos de extensão como o Universidade das Crianças parecem ter potencial
para discutir a ciência nessas outras perspectivas, menos colonizadoras e mais dialógicas, daí
a importância desse projeto, aberto a ouvir as vozes dos diferentes atores sociais nele
envolvidos.
A Divulgação Científica se classifica nesse viés de integrar vários atores sociais na
dinâmica de construção da ciência. Essa também é uma forma de viabilizar essa construção
da ciência que acontece por meio de relações estabelecidas socialmente, as quais constituem
o meio crítico necessário, constituído de cidadãos que trazem consigo os valores culturais de
seu tempo.
Há que se destacar que formas de visibilizar essa conduta dentro das construções
científicas têm significativo valor, pois a ciência faz parte do cotidiano das pessoas, embora
ela seja “ frequentemente apresentada como algo completamente desvinculado de seu dia-adia” (MASSARANI, 1999, p. 26). Isto é algo que a Divulgação Científica tenta desconstruir.
A presente pesquisa fundamentada em uma perspectiva antropológica se faz relevante dentro
dessa desconstrução, no sentido de protagonizar os sujeitos na composição da ciência.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
A utilização da teoria ator rede se remete nessa visibilidade da construção da ciência
conjugada aos indivíduos sociais, até mesmo por sua construção poder ser entendida a partir
dessa rede de relações em que os atores sociais fazem parte dessa dinâmica.
A ciência moderna está estruturada em uma base analítica: “dividir para
compreender”. Porém, segundo Latour (1994), é preciso recusar o que essa modernidade nos
impõe. Para resolver esse problema, um dos meios é o diálogo interdisciplinar. A
Universidade, bem como Projetos de Divulgação científica devem existir como lugar de
intervenções técnicas para dialogar esse problema moderno.
Acreditamos que é necessário conduzir a divulgação científica propondo uma
educação construída na horizontalidade, objetivando a contextualização cultural junto a
ciência. Afinal, a cultura tem influência na política de produção do saber, logo ela precisa ser
levada em conta. Por isso, no ponto de vista do saber e da cultura, somos desafiados a
aprender com e na diferença mediante o respeito e o reconhecimento do outro (DA SILVA,
2011). Na alfabetização, segundo Paulo Freire (1987), alfabetiza-se também o indivíduo em
seu mundo, para que nele reencontra-se com os outros e nos outros, companheiros de seu
pequeno “círculo de culturas”. Assim acreditamos que a construção da ciência, considerada
dentro de uma perspectiva cultural, para acessar o cotidiano das pessoas e desconstruir o que
não a visibiliza enquanto importante na vida, e no tempo histórico.
Base teórica e metodologia da pesquisa
Com o intuito de utilizar do saber antropológico para entender a Universidade e suas
relações com os compromissos sociais construídos por meio da extensão é relevante levar em
conta pesquisas que abordam a universidade e o papel da extensão e da divulgação científica,
a fim de efetuar uma investigação junto às produções existentes da comunidade científica.
A Extensão é denotada por seu importante papel enquanto cumpre as funções sociais
dentro da Universidade. A divulgação científica dentro desse contexto, precisa ser entendida,
então, como forma de prestar contas à sociedade dos investimentos realizados por ela no que
tange a universidade pública. (CASTILHO et al. 2011).
[...] essa prática extensionista, desde sua emergência no universo acadêmico, ter
sido associada à função social para além dos muros universitários e significada
como espaço de intervenção – lugar de propor ações. (SANTOS, 2013, p. 4).
Ações essas significativas tanto para públicos internos, como alunos, quanto para o
público externo beneficiado. Logo, pensar a universidade e as ações de extensão são também
maneiras de pensar em um trabalho que requer um direcionamento, que considera esse um
espaço de produção e negociação de saberes. (SANTOS, 2013).
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Em via de tentar entender a produção de saberes que a extensão universitária constrói
é de suma relevância evidenciar no âmbito da pesquisa em educação os sujeitos que “fazem a
universidade acontecer”. Porém, nesse entendimento, protagoniza-se a prática de ensino,
olhando para os sujeitos sociais também através dos projetos de extensão universitária. Para
tanto, optamos por olhar para esses sujeitos de forma estrutural, utilizando como base a
teoria ator-rede (TAR) de Latour, na qual ele aborda que, tudo que existe são actantes
(humanos e não humanos), e sua relação entre as diversas entidades em ação. Portanto, um
ator nunca pode ser compreendido como uma entidade isolada, eles estão sempre imersos em
suas relações. (COUTINHO et al., 2017). Com base nessa teoria, é possível reconhecer os
envolvidos no Projeto UC como atores para visibilizar e entender o importante papel de cada
um deles na rede de relações.
Assim, busca-se criar como Latour propõe, um universo democrático de atores. Na
Teoria Ator Rede a noção de rede remete a fluxos, circulações e alianças, “nas quais os atores
envolvidos interferem e sofrem interferência constante” (FREIRE, 2006, p.55). Nessa
perspectiva, os processos de produção e divulgação do conhecimento podem ser vistos como
efeito de rede, que emergem nas conexões humanas e não humanas. (COUTINHO et al.,
2017).
Essa visibilidade dos sujeitos na construção do conhecimento e na vida social, assim
como o papel social da Universidade, é que a presente pesquisa pretende ressaltar. Entretanto,
“a sociedade, por sua vez, nunca enxergou, nem foi ensinada a enxergar a importância ou a
relevância da ciência para as suas vidas” (ESCOBAR, 2018, p.32), por isso, pensamos que
esse trabalho é uma forma de revelar esse valor, a partir do foco em um projeto específico e
sob o olhar de diferentes atores.
É relevante também frisar a importância de se falar do papel da pesquisa e da extensão
na construção da comunicação direta da universidade com a sociedade, ainda mais neste atual
tempo histórico e político, que não valoriza a educação e que tende a calar o sujeito e
principalmente a universidade. Para mudar essa realidade histórica, é ainda mais necessário o
desenvolvimento de uma atitude crítica que estimule os sujeitos a lutar para transformá-la
(MUNIZ, 2018).
A antropologia pode contribuir com esse processo ao destacar o papel dos diferentes
sujeitos que constroem conhecimento dentro da Universidade e a sua importância na
valorização desse conhecimento para construir melhores pontes de comunicação entre
sociedade e comunidade científica. Ao instrumentalizar interpretações, a antropologia traz
propostas metodológicas de análise desse contexto de construção da ciência e da sua
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
influência no ensino e no cotidiano das pessoas. Analisar antropologicamente a divulgação
científica, nessa perspectiva, permite interpretar o ensino de ciências, a partir do olhar dos
sujeitos da pesquisa e numa perspectiva horizontal e cultural.
Considerando que a construção do saber também é uma construção sociocultural,
acreditamos que por meio desse diálogo interdisciplinar é possível compreender as
aprendizagens provocadas pelo projeto de divulgação científica “Universidade das Crianças”
nos sujeitos que dele participam ou participaram.
Entretanto, para compreender a dinâmica de funcionamento a partir dos atores que
constituem o Projeto UC, é necessário considerar o papel da Divulgação Científica, como um
mecanismo relevante que influencia ações. Para tanto, a presente pesquisa terá como base,
teorias que abordam a “cultura científica”. Esta, pode ser também entendida como o
desenvolvimento da ciência vista em sua produção e divulgação. A concepção de cultura
científica pode ser considerada variável ao ser estudada historicamente. Envolvem valores,
posturas e práticas e concebem expectativas de difusão social e cultural. (Fonseca, M. A., &
de Oliveira, B. J, 2015).
Quando se fala em cultura científica é preciso entender pelo menos três
possibilidades de sentido que se oferecem pela própria estrutura lingüística da
expressão: 1. Cultura da ciência. Aqui é possível vislumbrar ainda duas alternativas
semânticas: a) cultura gerada pela ciência; b) cultura própria da ciência. (VOGT,
2003).
No que tange à cultura da própria ciência, ela pode ser entendida a partir de sua
produção e divulgação. O contexto de divulgação científica favorece essa interpretação. A
divulgação científica pode ser considerada simbólica em seu importante papel social para
ampliação do conhecimento, tendo função educativa de construir um modelo de relação entre
ciência e sociedade. Também tem como relevante característica contribuir para a
horizontalidade e acesso ao saber, se manifestando com importante viés educacional que
intermedia a ampliação do conhecimento.
A ciência também se performa na divulgação e busca democratizar o acesso ao
conhecimento científico, além de estabelecer condições para a chamada “alfabetização
científica”. Contribui, portanto, para incluir os cidadãos no debate sobre temas especializados
e que podem impactar sua vida e seu trabalho.
Para compreender como o conhecimento científico circula, Carlos Vogt (2003)
ressalta quatro quadrantes para entender sua dinâmica e os principais componentes de cada
quadrante, que o autor analisará como um espiral da cultura científica.
“A partir da produção e da circulação do conhecimento científico entre cientistas, a
espiral evolui para o segundo quadrante, o do ensino da ciência e da formação de
cientistas; continua, então, para o terceiro quadrante, em que se amplia no ensino
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
para a ciência; e completa o ciclo, no quarto quadrante, para identificar aí a
divulgação científica. Em cada quadrante estão os elementos que contribuem para
que melhor se entenda a dinâmica do processo da cultura científica. No primeiro, os
próprios cientistas são emissores e destinatários da ciência; no segundo, cientistas e
professores dirigem-se a estudantes; no terceiro, cientistas, professores, diretores de
museus e animadores culturais da ciência destinam conteúdos científicos a
estudantes e a um amplo público jovem; no quarto quadrante, jornalistas e cientistas
seriam os emissores -e, aqui, os destinatários seriam constituídos pela sociedade em
geral e, mais especificamente, pela sociedade organizada em suas diferentes
instituições, principalmente as da sociedade civil, o que tornaria o cidadão o
destinatário principal desta interlocução da cultura científica. Ao mesmo tempo,
outros atores aparecem nos quadrantes. Universidades, centros de pesquisa, órgãos
governamentais, agências de fomento, congressos e revistas científicas estão no
primeiro; no segundo, acumulando funções, outra vez as Universidades, o sistema
de ensino fundamental e médio e o sistema de pós-graduação; no terceiro, os
museus e as feiras de ciência; e, no quarto, as revistas de divulgação científica, as
páginas dos jornais voltadas ao tema, os programas de TV etc.” (VOGT, 2003).
Percebendo e analisando esse espiral em quadrantes publicados no site “FAPESP na
mídia” (2003), é possível localizar o Projeto Universidade das Crianças se manifestando de
diferentes formas nessa demonstração. Em se tratando do primeiro quadrante, já podemos
perceber que a produção científica e a Universidade se destaca como componente. Já no
segundo quadrante, o ensino de ciências é destinado dos cientistas e professores para os
estudantes, assim como o Projeto UC se propõe dentro de sua dinâmica de funcionamento.
Por fim, no quarto quadrante está a Divulgação Científica, onde a sociedade em geral e suas
diferentes instituições a compõem, e por finalidade, se estabelecem esse processo de
construção da ciência. Nesse último quadrante, estão também os meios de divulgação, como
as revistas e sites, aos quais o Projeto Universidade das Crianças também se destaca. Fazendo
esse panorama geral do espiral e como o Projeto UC se destaca neles é possível perceber sua
função em meio a construção da cultura científica e como os sujeitos têm prática ativa dentro
no funcionamento dessa dinâmica.
A presente pesquisa, ao levar em conta esse espiral da cultura científica, julga como
relevante localizar e mapear os sujeitos a partir de uma perspectiva antropológica, de forma a
estruturar essa análise segundo a teoria ator-rede, analisando o Projeto UC e os agentes que
compõem esse funcionamento. Essa rede levará em conta o UC como um espaço produtor de
diálogo científico e sociocultural. Nessa medida, é relevante levar em conta a espiral da
cultura científica, pois ela pretende representar a dinâmica constitutiva das relações inerentes
e necessárias entre ciência e cultura. (VOGT, 2003).
A cultura se destaca como um dos temas centrais nas discussões antropológicas,
também pelo fato de que para entender o paradoxo da enorme diversidade cultural da
realidade humana é preciso passar pela significação cultural. O fato é que a humanidade é
resultado do meio cultural em que é socializada, logo, para compreender seus
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
comportamentos no contexto estudado é preciso considerar o seu meio cultural e o que foi
aprendido nele (LARAIA, 2001).
Um dos desafios do pesquisador é compreender como e porque cada indivíduo que faz
parte do seu contexto estudado opera dentro daquele meio. Logo, considerar o conceito de
cultura é um ponto inicial de compreensão de comportamentos e para o entendimento do
modo como a cultura estabelece e estrutura as relações sociais.
Considerar o conceito de cultura para a pesquisa em educação é uma forma de situar o
pesquisador dentro do seu contexto de estudo. A cultura é construída socialmente, os
indivíduos são agentes dentro dela e operam o seu dinamismo, influenciando e sofrendo
interferência o tempo todo. Logo, a produção da ciência também precisa ser considerada em
um contexto cultural, pois, ciência e cultura há séculos determinam o cotidiano da
humanidade. Cultura e ciência estão presentes na vida cotidiana, mesmo que as pessoas não
associem suas atitudes constituintes de um processo de construção e transformação cultural e
científico. Portanto, o público ou o quarto quadrante (VOGT, 2003) são parte integrante do
processo de criação dessa dinâmica (ILDEU DE CASTRO et al. 2002, p.165).
Por isso, é importante relevar a perspectiva cultural e antropológica para embasar a
pesquisa em um contexto de análise de Divulgação Científica, “formas de expressão, que
sempre associadas a manifestações culturais, apropriam-se da ciência” (ILDEU DE CASTRO
et al. 2002, p.168).
Para efetivação metodológica da pesquisa, em primeira instância, pretendemos efetuar
um levantamento de participantes do Projeto Universidade das Crianças que contemple
sujeitos de 2006 (ano inicial de funcionamento) até o presente momento, para fins de
realização de entrevistas narrativas, elaboradas de modo a estimular esses “atores” a contar
suas experiências vividas no projeto. Nessa instância, o enfoque da pesquisa narrativa é o
alcance das experiências biográficas. Essa metodologia, pode também ser classificada como
um caminho para alcançar as opiniões subjetivas dos sujeitos da pesquisa (FLICK, 2012).
Quando induzida, a reflexividade do sujeito a partir da narrativa, podemos acessar um
alcance da experiência vivida pelo sujeito no Projeto Universidade das Crianças (BOLIVAR,
2006). A narrativa como meio metodológico, pode abranger uma análise dos aspectos
essenciais das vivências do sujeito, que marcam suas experiências. Para Jorge Larrosa Bondía
(2002), experiência é o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe
acontecendo ao longo da vida e o modo como se dá sentido aos acontecimentos.
Segundo Flick (2012), deve-se formular a pergunta narrativa geradora de forma mais
ampla, embora suficiente para produzir o foco desejado. Para tanto, a pergunta geradora deve
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induzir uma narrativa que conduza um início, meio e fim, no sentido que o entrevistado
contemple em sua fala todos esses diferentes momentos. Portanto, para compreender as
experiências vividas pelos sujeitos também denominados na presente pesquisa como atores e
suas experiências vividas na “rede de relações” do projeto Universidade das Crianças.
Assim, busca-se criar, como Latour propõe, um universo democrático de atores e das
experiências que compõem essa rede. Na “Teoria Ator Rede” a noção de rede remete à
fluxos, circulações e alianças, “nas quais os atores envolvidos interferem e sofrem
interferência constante” (FREIRE, 2006, p.55). Nessa perspectiva, os processos de produção
e divulgação do conhecimento podem ser vistos como efeito de rede, que emergem nas
conexões humanas e não humanas (COUTINHO et al., 2017).
Como critérios de seleção dos sujeitos da pesquisa, definimos entrevistar: uma
bolsista do curso “Cinema de Animação”, que tem pelo menos dois anos de participação e
hoje contribui com o Projeto como voluntária e dois professores coordenadores, sendo uma a
fundadora do UC e que coordena o grupo até hoje, e outro professor que efetiva trabalho no
projeto desde 2015. Dentro da perspectiva da entrevista narrativa, elaboramos a seguinte
pergunta geradora: “Conte-nos sobre a sua participação no Universidade das Crianças,
começando pelas funções e compromissos assumidos no desenvolvimento do projeto,
detalhando sobre as principais aprendizagens e possíveis mudanças ocorridas na sua vida
acadêmica e, por fim, comentando como você concebe os resultados desse trabalho para o
público infantil”.
Com o objetivo de alcançar o público externo à universidade, a partir de um
levantamento, serão contatadas pelo menos duas crianças, que já tenham participado de uma
oficina promovida pelo UC. Ainda considerando o público externo, será promovida uma
oficina na Escola Municipal Dom Bosco (com a qual mantenho ligação voluntária), que fica
localizada na região noroeste de Belo Horizonte. Serão considerados pelo menos cinco alunos
do ciclo básico com idade de 8/10 anos. A oficina será promovida para que as crianças
conheçam os materiais produzidos pelo Projeto, os livros e vídeos de animação divulgados
no site. Nesse sentido, através de uma perspectiva de viés etnográfico a oficina será um meio
de entender qual o impacto causado pelo material produzido pelo Projeto no público infantil,
não obstante, dando visibilidade aos conhecimentos produzidos na Universidade.
Na oficina promovida na escola, a metodologia de análise seguirá abordagem de
investigação etnográfica. A Oficina será um espaço em que elas conheceram os livros e
assistirão aos vídeos de animação, um espaço dinâmico e que requer muita observação por
parte do pesquisador. A prática etnográfica com crianças é um assunto tratado no livro
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética (2003), no qual é discutido
que, para efetuar a prática etnográfica é preciso considerar os sujeitos da pesquisa em seu
contexto, além de seu tempo social e histórico. No livro, Graue Elizabeth et al. (2003)
ressalta que a criança deve ser compreendida significativamente em seu contexto e em suas
experiências culturalmente mediadas. O trabalho com esse público requer uma atenção
principalmente aos contextos que limitam a criança, por exemplo, por uma presença adulta.
Um dos segredos é tomar as decisões de alteridade feitas pelas crianças neste contexto, dando
visibilidade as suas ações.
A abordagem será interpretativa e etnográfica, considerando os atores sociais como uma
participação ativa, dinâmica e modificadora das estruturas sociais.
“O sujeito da pesquisa, historicamente ator das ações sociais e interacionais,
contribui para significar o universo pesquisado exigindo a constante reflexão
e reestruturação do processo de questionamento do pesquisador”
(MATTOS, 2001, p. 51).
Nessa medida, vê-se que o pesquisador também faz parte da “equação” no que se
refere ao resultado da pesquisa, pois ele carrega consigo suas vivências e visões culturais ao
interpretar o outro. É preciso considerar essa instância, porém, com o olhar treinado e
academicamente preparado o pesquisador estará apto para etnografar seu contexto de
pesquisa com uma visão interpretativa potencialmente científica. Este é um método
conhecido no campo antropológico seguindo várias vertentes, porém a aqui utilizada, será a
vertente interpretativa, técnica de Clifford Geertz (1998). Para o autor as culturas devem ser
lidas e entendidas como textos, no qual o ser humano está imerso. Ele entende que essa
prática epistemológica tem que tentar “ver as coisas como os outros veem”. A tarefa é: “ o
entendimento do entendimento”. Portanto seu método se baseia em; 1. Interpretar os
elementos culturais e como as ações têm significações simbólicas dentro daquele contexto; 2.
Tratar os fenômenos culturais como sistemas significativos ; 3.Leitura das sociedades como
textos ou como análogas a textos (GEERTZ, 1998).
Entretanto, para que esta leitura seja de fato eficaz, é preciso segundo Geertz, fazer
uma descrição densa da cultura estudada, sendo essa uma trama que precisa ser interpretada,
através de uma “descrição densa”. O autor afirma que, o ato de etnografar não é apenas
observar e sim interpretar, para tanto, é preciso mergulhar naquela trama e estar com o olhar
treinado para interpretar as ações simbólicas dentro do contexto. Segundo Geertz, praticar a
etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar
genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante (1978). Para isso, será
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
importante também lançar mão da análise de documentos relatos ao Projeto Universidade das
Crianças.
A partir desse olhar etnográfico, buscaremos entender a interação dos “atores” na rede
de relações a partir de suas narrativas, no que se refere as entrevistas e dos comportamentos e
ações na oficina.
“As redes ou os atores-redes são formados por aquilo que Latour
chama de “processos de translação”, ou seja, um processo em que
dois ou mais actantes tornam-se de tal modo relacionados que um
exerce força sobre o outro. Isso significa que, para fazer parte de
uma rede, os actantes devem ser reunidos de modo a trabalharem
juntos, o que pode significar mudanças nas formas em que atuam”
(COUTINHO et al., 2017, p.7).
Para entender como os “atores” que passaram pelo projeto influenciam nessa rede,
será considerada a etnografia como um importante meio de compreender as narrativas desses
atores. Essas, por sua vez, relevam o seu papel epistemológico na compreensão de si, no
sentido de entender os relatos como construções sociais, que expressam as perspectivas dos
diferentes atores e o significado local da ação. (MATTOS, 2001).
Nesta perspectiva, entende-se que o sujeito pode expressar a interpretação do seu
contexto social através da narrativa. Logo, entender essa narrativa, é também considerar o
contexto e a condição sócio histórica do sujeito, para então analisar seu discurso. A
Universidade e o projeto de Divulgação Científica são locais de partida para essa
compreensão.
“A finalidade primordial da universidade é a produção de
conhecimento, a pesquisa científica, a procura dos princípios e
mecanismos que conduzam à inovação tecnológica, os estudos
literários, as especulações filosóficas e a criação artística. A
investigação nos domínios da ciência e da cultura são os postulados
da universidade que contribuem para a formação do cidadão
possibilitando-lhe o exercício de funções especializadas em todas
as áreas das humanidades, da ciência e tecnologia.” (LOPES, 1998,
p.214).
Contudo, a intenção dessa pesquisa é compreender o papel formador da universidade
e da divulgação científica na vida de diferentes atores sociais e a partir da perspectiva
daqueles que participaram do projeto UC. O intuito da pesquisa é entender a partir das
narrativas desses atores sociais, como esse caráter formador vem se manifestando e se
evidenciando. Além disso, será possível potencializar esse trabalho dando ênfase a como o
material produzido na Universidade chega ao público infantil, que não obstante, também
compõe essa rede.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Defende-se essa metodologia, pois ela viabiliza o protagonismo do sujeito em seu
contexto social, induz a valorização e importância de sua ação para transformação de seu
tempo histórico. A antropologia considera os sujeitos como atores sociais ativos imersos em
suas relações e no diálogo com a educação pode contribuir para a construção de saberes
horizontais. Esta construção, pode tornar os sujeitos mais participativos e os espaços mais
democráticos potencializando mudanças. Acredita-se que a partir dessa abordagem é possível
interpretar as ações dos sujeitos como seres culturalmente constituídos e induzir ações em
prol da universidade e do estreitamento dos seus laços com aqueles que estão fora dos seus
muros.
Metas da pesquisa
O principal objetivo da pesquisa é compreender o papel formador da divulgação
científica na perspectiva dos diferentes atores envolvidos no projeto Universidade das
Crianças (UC), para então descrever a ação dos atores envolvidos no Projeto UC por meio da
teoria ator-rede. Através da perspectiva dos indivíduos, levantaremos as
aprendizagens
provocadas pelo Projeto Universidade das Crianças na vida de quem dele participa/
participou. Posteriormente, como meio de alcançar o público externo, os materiais produzidos
pelo UC- UFMG serão a base para analisar seu o potencial formador para público infantil.
Logo, se alcançadas as metas já mencionadas, será cabível entender o papel de projetos de
extensão como o UC no fortalecimento do compromisso social da universidade.
Notas
[1] <http://www.universidadedascriancas.org/>.
[2] O intuito foi congelar os gastos federais em saúde e educação ao patamar de 2017. A PEC do novo
regime fiscal é, na verdade, a PEC da desvinculação da saúde e da educação. [...] No Brasil, o mínimo
para os gastos públicos com educação, estabelecido pelo Artigo 212 da Constituição Federal, é de
18% da Receita Líquida de Impostos (RLI). Já o mínimo para a saúde foi modificado recentemente
por meio da Emenda Constitucional 86, que estabelece um percentual da Recente Corrente Líquida
(RCL) de forma escalonada, 13,2% da RCL em 2016, 13,7% em 2017, 14,2% em 2018, 14,7% em
2019 e 15% a partir de 2020. (DWECK; ROSSI, 2016).
[3] Para aprofundar esse debate, encontramos, entre outras possibilidades, o movimento epistêmico,
teórico e político chamado de decolonial, que propõe compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. Está relacionado
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
à emancipação do sujeito e libertação da realidade colonial e a forma como essa realidade estabelece
hierarquias de conhecimento e poder. (BALLESTRIN,2013).
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Um fragmento de uma memória encontrada: Um artefato colonial como
fonte para a educação arqueológica brasileira
Leonardo Lopes Villaça Klink¹
Introdução
Entre os dias 15 e 18 de maio ocorreu minha primeira ida ao Rio de Janeiro, com o
intuito de divulgar minha pesquisa “Um engenho e seu Potencial para Práticas Educativas em
arquelogia”, apresentando-a ao III Seminário Internacional em Memória Social, promovido
pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Após a apresentação do
trabalho citado, decidi ir ao Parque Henrique Lage – grande área verde situada aos pés do
Corcovado – antes de partir. Logo depois de uma visita à Escola de Artes Visuais resolvi
explorar mais um pouco o lugar, ainda mais depois de saber da existência de um engenho de
manufatura açucareira séculos atrás, fato não mencionado e sinalizado em placas ao longo do
parque.
Pouco atrás da Escola, me deparei com as ruínas de uma estrutura colonial
provenientes do século XVII ao XVIII, a tal lavanderia escrava. O local possui um fácil
acesso, mas mediante o uso de calçados adequados e uma boa iluminação “móvel”.
Acompanhado de outras duas estudantes com as lanternas de seus celulares conseguimos
identificar alguns aspectos arquitetônicos materiais e imateriais da lavanderia; a escuridão no
local, o barulho dos pingos de água atrelados ao peso histórico tornam a experiência única e
totalmente fenomenológica; já desenvolvendo em mim um fascínio a ponto de produzir
cientificamente sobre.
Após uma boa observação na pequena construção, me deparei com um pequeno
fragmento brilhante ao iluminar um canal de água situado no chão. O “caco” logo de cara me
pareceu antigo pela forma bruta com que a argila constituiu o centro da cerâmica e pela
presença de marcas de dedos (digitais) durante o processo de molde estrutural da massa
térrea. Sem pensar duas vezes – e ainda prestes a partir para Minas Gerais – decidi recolher
aquele pequeno resquício material – mas com um grande potencial arqueológico – com a
intenção de extrair o máximo de informações sobre o determinado local partindo de uma
cultura material, ligando-a anacronicamente ou não à paisagem em que se encontrava.
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Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
Devido às dificuldades em se datar artefatos no Brasil em questão da grande lista de
espera nas universidades e também pela escassez e alto valor cobrado pelos laboratórios
brasileiros que utilizam a datação via Carbono 14 ou Radiocarbono; decidi me aprofundar
utilizando-a simplesmente como um fragmento do período colonial, ao contrário de situar sua
produção – tratando por exemplo a peça como proveniente do final do século XVIII ou XIX –
; para uma didática mais ligada ao factual, se tratando de disciplinas tão cronológicas como a
Arqueologia e a História.
O histórico do Parque
Situado no bairro Jardim Botânico, a história do Parque Henrique Lage – conhecido
previamente como as terras do Engenho d‟El Rey – se desenvolve primeiramente com a
presença dos aborígenes Tupis dados como Tamoios no território do próprio parque até a
Lagoa Rodrigo de Freitas. O termo “Tamoio” – derivado da língua Tupi, expressado como
anciões, avós ou velhos – em si não é apresentado como uma etnia e/ou nomenclatura de uma
tribo específica, mas sim de uma união feita pelas tribos Tupinambá, Tupiniquins,
Temiminós, Goitacás e Aimorés. Através de fontes escritas, orais e materiais é possível
detectar as formas de resistência à colonização e ao lamentoso processo “civilizatório”
imposto aos nativos pelos europeus; dessas diversas repressões sistêmicas surgiram os
motivos para a união dos ameríndios litorâneos – estabelecidos nas atuais cidades de Bertioga
(SP) ao Cabo Frio (RJ) – denominada posteriormente de Confederação dos Tamoios (15541567).
O território foi composto por três engenhos de açúcar entre os séculos XVI e XIX. A
Lavanderia dos Escravos compõe atualmente as ruínas do que já foi antigamente o Engenho
d‟El Rey, futuramente incorporado a mais terras titulando-o de Engenho Nossa Senhora da
Conceição da Lagoa (após 1660). Outro monumento que se manteve em pé durante todos
esses anos para a compreensão do movimento econômico do mercantilismo canavieiro é a
Capela de Nossa Senhora da Cabeça, construída próxima à casa grande e data da mesma
década da lavanderia, confirmado por via de prospecções e levantamentos arqueológicos na
ermida e ao seu redor, o qual se encontrou estilhaços de vidro e louças provenientes do
período de funcionamento do engenho local.
Por esse caminho era escoada a produção de açúcar – o “ouro melado” – do
Engenho D‟el Rey, situado na lagoa de Sacopenapã – atual Rodrigo de Freitas, mais
precisamente onde está o Parque Lage – até a Enseada de Botafogo. O engenho
pertencia a Antonio Salema, governador do Rio de Janeiro. Já naquele tempo,
política e negócios se misturavam (BRITO, 2017).
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O Engenho d‟El Rey foi construído pelo Capitão-mor Cristovão de Barros, e passou a
ser administrado pelo governador português Antonio Salema entre 1575 e 1577. Para a
fundação e produção da cana-de-açúcar na região e a mando de Salema, roupas infectadas
com varíola foram deixadas por todo território da Lagoa Piraguá (Lagoa Rodrigo de Freitas)
– local em que os Tamoios em grande parte residiam –, infectando os nativos ao se
aproximarem ou ao se vestirem com as roupas contaminadas. Esse homicídio em massa
serviu como método de expansão de terras, agora não mais habitadas pelos indígenas – que
após algumas tentativas, foram trocados pela mão de obra africana no empreendimento –,
mobilizando ainda mais economicamente o ciclo do açúcar na Comarca.
Figura 1. "Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas tomada da Capelinha da Chácara do Tosta", FACCHINETTI,
Nicola Antonio (1879). Fonte:<http://historia.jbrj.gov.br/fotos/imagens.htm>.
Figura 2. Vista lateral da Capela de N. S. da Cabeça.
Fonte:<http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/proj_capela_nscabeca.shtm>.
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O engenho segue sob administração de Salema até 1577 e é vendido para o vereador
Diogo Amorim Soares; que expande o empreendimento e o anexa às terras da região,
tornando-a uma propriedade com um grande capital a qual transfigurando-se posteriormente
em “Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa”. Em 1808, o rei Dom João VI se
apropria dessas terras e empreende ali uma fábrica de pólvora, a Real Fábrica de Pólvora da
Lagoa Rodrigo de Freitas, em funcionamento até 1831.
São João da Lagoa – Ordenado o decreto de 13 de junho de 1808, ao Conselho da
Fazenda, que se incorporassem, nos próprios da Real Coroa, o Engenho e Terras
sitas na Lagoa Rodrigo de Freitas, por sua competente avaliação, para o
estabelecimento de uma Fábrica de Pólvora, e todas as demais que fossem
necessárias para a fundição de peças de artilharia e canos de espingarda, e realizada
a incorporação, em conformidade com aquele decreto [...] Daí teve origem o
estabelecimento de uma nova Paróquia perpétua, com o título de S. João da Lagoa,
na Capela de N. Sra. da Conceição, que era do mesmo engenho, e fora construída
muito antes de 1732, enquanto se não edificava outra igreja própria (PIZARRO,
1820, apud LAVÔR, 1983).
Figura 3. Antiga fábrica de pólvora do Rio de Janeiro, durante o século XIX. Atualmente um museu. Fonte:
<http://www.riodejaneiroaqui.com/portugues/casa-dos-piloes.html>.
A lavanderia dos escravos e os sítios que a circundam
Além da “Real Fábrica de Pólvora” – onde atualmente se estabelece o Museu Sítio
Arqueológico Casa dos Pilões – e da ermida de Nossa Senhora da Cabeça, é possível
encontrar outro resquício de um engenho pela região do bairro Jardim Botânico; a Lavanderia
dos Escravos, situada no Parque Henrique Lage sob as seguintes coordenadas: 22º57‟34” S
43º12‟43” W. Antes de adentrar nessa edificação carregada de valor histórico e emocional já
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é possível notar alguns aspectos arquitetônicos coloniais, como as rochas que compõe seu
chão e suas paredes; presentes na formação de alguns engenhos de cana que datam desse
mesmo período, século XVII.
A pequena lavanderia escrava é composta por um lavadouro logo na entrada e ao
centro de três blocos de pedras por lado, utilizadas pelos escravos para ensaboar, lavar, torcer
e bater roupas; um pequeno cômodo ao fundo no lado esquerdo e pela queda d‟água na parte
superior ao lavadouro, acabada em tijolos de barro menores aos usados tipicamente nessas
construções.
Uma das questões que permanece é sobre a possibilidade ou não de se considerar a
Lavanderia um sítio arqueológico. Definindo um sítio como uma área delimitada de ações,
experiências e convívios sociais pré-coloniais, históricos ou contemporâneos com suas
respectivas paisagens; é o local em que se encontram vestígios os quais os pesquisadores
desfrutam de informações particulares sobre cada um desses povos produtores de matéria.
Com essa breve e sucinta definição, é possível compreender também que o número de
artefatos encontrados nesses sítios influenciam em sua definição, independente da
nomenclatura do período que datam, já que meia dúzia de peças podem estar ali sem o devido
pertencimento cronológico à paisagem. Entre os constituintes de um sítio histórico está o
valor das estruturas, que são basicamente obras manuais humanas, ou seja; a elas em si são
atribuídas o valor de sítio arqueológico devido aos componentes que as alicerçam.
Quando é evidente a presença de artefactos, a decisão da existência de um sítio
arqueológico é mais problemática, uma vez que um simples artefacto pode ser
insuficiente para a delimitação da presença de sítio. Se um local tiver […] um só
artefacto, deverá o local ser documentado como sítio arqueológico ? A resposta é:
depende do objectivo do projecto. Assim, se o projecto for de carta arqueológica, é
necessário localizar o achado, mencionando explicitamente que se trata de um
artefacto isolado. Do ponto de vista de protecção ou de minimização, este local não
tem interesse, pelo que não é relevante indicá-lo como sítio arqueológico, sendo
obrigatório […] indicar a presença de artefactos isolados no local (BICHO, 2012, p.
95).
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Figura 4. Vista do interior da Lavanderia. Figura 5. Queda d'água. Figura 6. Procura por mais fragmentos.
Vale ressaltar que a Capela de N. S. da Cabeça, a antiga Fábrica de Pólvora e as
demais edificações no Jardim Botânico se estabelecem em um mesmo plano históricoidentitário. A presença de cultura material colonial terrosa na lavanderia, junto às outras em
sítios arqueológicos descobertos ou ainda desconhecidos só podem comprovar o movimento
escravo pela região, os quais deixaram involuntariamente e sem muito cuidado restos de seus
simples objetos rotineiros, que se tornarão futuros objetos de estudos cujos pesquisadores se
dedicarão à descoberta de novos rastros imateriais de suas passagens através da
materialidade.
Seja no contexto de seus usos sociais e econômicos cotidianos, seja em seus usos
rituais, seja quando reclassificados como itens de coleções, peças de acervos
museológicos ou patrimônios culturais, os objetos materiais existem sempre,
necessariamente, como partes integrantes de sistemas classificatórios. Esta condição
lhes assegura o poder não só de tornar visíveis e estabilizar determinadas categorias
socio-culturais, demarcando fronteiras entre estas, como também o poder, não
menos importante, de constituir sensivelmente formas específicas de subjetividade
individual e coletiva (GONÇALVES, 2007, p. 8).
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Figura 7. Mapa em 3D demarcando (em uma linha amarela) a distância entre os respectivos constituintes que
compunham a área do engenho. Fonte: Google Earth.
Pensando em um engenho como um local que funcionava à base de vidas
“substituíveis”, é fácil entender que um cemitério nas redondezas era necessário. Foi então
que em 1979 durante uma reforma de uma empresa que se estende até o Jardim Botânico, foi
achado e demarcado o respectivo cemitério da senzala do Engenho de Nossa Senhora da
Conceição da Fazenda de Rodrigo de Freitas (LAVÔR, 1983, p. 71).
Foi então que o pesquisador João Conrado Niemeyer solicitou ao Museu Nacional um
teste de carbono 14 nas ossadas encontradas, acondicionadas até 1981. Os resultados do
exame indicaram sua vivência em um período aproximado entre 200 e 300 anos atrás, não
sendo considerados contemporâneos. Com a reconstrução óssea foi identificado um homem
com a estatura média de 1,70 m, e pela arcada dentária e crânio foi relacionado com os
escravos africanos.
Outro sítio que dialoga arqueologicamente e historicamente com o referenciado nas
fotos acima e com os já comentados no capítulo anterior – vide imagens 2, 3 e 4 –, é o Jardim
das Princesas localizado no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Entre os materiais recolhidos
no Jardim estão 23 fragmentos de vasilhames cerâmicos vitrificados, tratados como supostos
grés. Com algumas sondagens e com uma trincheira de aproximadamente 90 centímetros de
profundidade encovada próxima aos locais de reparo hidráulico no jardim foram encontrados
estilhaços de grés e vidros, telhas em pedaços desproporcionais, botões, pregos e tijolos.
[...] o grès, tendo sido lavado em água corrente, tomando-se o cuidado necessário
para não esfregar em demasia as peças, a fim de não prejudicá-las. Foram colocadas
para secar de forma natural, efetuando-se, em seguida, a numeração individual e o
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devido acondicionamento. As peças foram desenhadas, fotografadas e medidas.
Com o material preparado foi realizada uma tentativa de remontagem dos
fragmentos existentes, visando a possível reconstituição dos vasilhames e o
posterior estudo dos mesmos, com a finalidade de contribuir para a compreensão
dos aspectos sócio-econômicos e culturais de grupos sociais não mais existentes
(MENDONÇA; BELTRÃO, 1996, p. 145).
O Jardim das Princesas, localizado no bairro São Cristóvão, foi um lugar de passagens
de portugueses, jesuítas, escravos, indígenas e da Família Imperial; racionalmente, um
depósito de objetos descartados sucessivamente em seus respectivos períodos.
Análise morfológica e as possibilidades da cerâmica
Entre algumas das problemáticas em trabalhar com cultura material é possível ver
durante o processo de documentação e datação de peças, sendo dificultado pela exatidão
procurada pelos pesquisadores do ramo. Há resultados concretos quando as amostras mantêm
em si a radiação absorvida, com restos de alimentos ou qualquer presença orgânica em sua
superfície, possibilitando a estimativa de sua idade através de testes químicos, biológicos e
radioativos. Um mal manejo de objetos arqueológicos pode comprometer com a validez de
alguns desses exames, que já não apresentam com 100% de factualidade os resultados.
O teste via Radiocarbono é funcional em ossadas, cerâmicas, carvão preservado,
madeira, couro, etc. Em sua maioria é necessário a extração de uma pequena quantidade,
variando de 20 miligramas – plantas, madeira, sementes, farelo cerâmico e fios de cabelo – à
10 gramas – ossos cremados e sedimentos orgânicos –; no caso das arcadas dentárias (dentes)
é crucial sua própria presença.
Trabalhando com um período Histórico em que a porcentagem de letrados no Brasil
correspondia majoritariamente à elite, analisar e estudar objetos que estão ligados a povos
sem o advento da escrita ou que sua cultura foi diretamente coagida por uma etnia dominante
que se intitulava superior promovendo a segregação do “diferente”, é extremamente
problemático.
Utilizando-me da Arqueologia Histórica pós-processualista como uma revitalizadora
material, lidei com as mais variadas formas de fontes primárias e secundárias; a escrita como
a busca de informações partindo de documentos, fontes arquitetônicas da própria lavanderia
comparando-a com a de engenhos remanescentes do século XVI e XVII, cartas da mesma
época e de documentações geradas por arqueólogos e historiadores, para complementar.
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Figura 8. Face exterior do fragmento. Nota-se uma possível fratura de alça. Figura 9. Fragmento de parede (face
interna) com marcas da produção manual.
A peça com esmalte – vidrada – em seu interior e exterior, junto às demais
informações sobre os sítios históricos próximos ao Parque Henrique Lage, sugere algumas
possibilidades acerca de sua proveniência e utilização. Entre elas estão: o grés (stoneware)
brasileiro ou europeu, as peroleiras (olive jars) que compunham as caravelas e os galeões,
telhas coloniais sem um padrão de molde ou um jarro aguadeiro; todas as probabilidades com
um limite cronológico, no caso o século XIX. Seus usos enquanto uma peroleira ou grés
intactos poderia ser tanto para conter água e bebidas alcoólicas como cerveja e vinho assim
como também para receptáculo de especiarias, tintas e suprimentos os quais eram solicitados
durante as longas viagens marítimas.
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Figura 10. Lateral da cerâmica, há minerais visíveis em sua composição.
A intenção do artigo em si não é a de autenticar a peça como referente a tais séculos,
mas sim interligar alguns fatos locais à cultura material apresentando as alternativas para uma
legitimação ou não da lavanderia como sítio a partir da cerâmica fragmentada, sem uma
comprovação por exames químicos. Além da importância de levar às salas de aula os
questionamentos tratados no decorrer dessa pesquisa, independente do nível de formação dos
discentes, legitimando a aproximação entre comunidade e Arqueologia.
Entre as funções do arqueólogo como educador, está o dever de aproximar os feitos
humanos do passado ao interesse presente. A arqueologia deve caminhar com o
público, e não somente ser para o mesmo; o qual coloca o profissional como um
selecionador e separador de fatos que devem ser repassados às comunidades
levando em conta o que precisam ou não saber. Recapitulando, todos carregam
histórias a serem contadas, de diferentes pontos de vista ao do arqueólogo, com isso
surge a importância do caminhar entre educador e sociedade; o historiador como
mediador de diálogos entre a história do passado já tratada nos ambientes
acadêmicos e os relatos do presente vindos pela hereditariedade de fontes orais da
população (KLINK, 2018, p. 5).
Arqueologia em sala de aula
A oficina “Um artefato colonial como fonte para a educação arqueológica brasileira”
foi apresentada por mim ao terceiro período do curso de História da Universidade do Estado
de Minas Gerais (UEMG) Unidade Campanha, no dia 09 de julho de 2018. A proposta inicial
foi sensibilizá-los, torná-los críticos e adverti-los sobre a importância e eficácia do trabalho
arqueológico brasileiro em sala de aula, com o apoio de métodos instrutivos.
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Entre as alternativas metodológicas da apresentação utilizei-me de um vocabulário
bem didático e explicativo junto à introdução dos discentes à Arqueologia situando-os ao
histórico do Parque e ao artefatual. Os slides apresentaram um “educacional” bem imagético
com as imagens dos patrimônios apresentados em suma neste artigo além da reprodução de
um vídeo encontrado na plataforma audiovisual do YouTube para compreenderem
estilisticamente o que realmente é a Lavanderia dos Escravos, aproximando-os do lugar
mesmo que remotamente.
Figura 11. Relatando sobre os bens que compõe os antigos engenhos do bairro Jardim Botânico, RJ. Foto:
Marcio Machado.
O fragmento foi passado aos alunos junto de um pedaço de telha contemporânea à
outra, para perceberem as diferenças entre elas e relatarem em uma folha de papel suas
opiniões para os seguintes questionamentos: “Quais as características mais marcantes em
ambas as peças que as distingue?”, “Quando o objeto assumia sua forma intacta, qual sua
possível aparência e utilização?”, “Vocês acreditam que essa cerâmica esteve presente na
rotina no Brasil Colonial? Se sim, em qual século vocês a estimam?”.
Enquanto foi iniciado ao lado esquerdo o repasse dos dois objetos e a folha para o
preenchimento, resolvi passar no outro lado gravuras ao final do livro “Introdução à
Arqueologia Brasileira”, do autor Angyone Costa. A intenção foi expor a riqueza cultural
brasileira como artefatos e cerâmicas marajoaras, mas previamente alertando-os que o mesmo
é anacrônico à minha apresentação.
Com o capítulo sobre as probabilidades acerca da peça como o grés
europeu/brasileiro, a peroleira, o jarro ou bacia de escravos aguadeiros e uma possível telha,
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os discentes contribuíram com o seminário tanto com questionamentos quanto com suas
respostas às perguntas feitas por mim ou até mesmo entre eles. Um dos alunos até mesmo se
arriscou a formular com um esboço a cerâmica em seu período de utilização com um desenho
a grafite, adotando para si o formato de uma bacia ou jarro com alças.
A questão abordada foi sobre como é possível situar e entender quaisquer artefatos
arqueológicos somente com as probabilidades da paisagem em que estão inseridos, técnica
presente na pré-datação; ou seja, trabalhando a documentação com os levantamentos
históricos regionais, sendo eles pela oralidade de certas habitações presentes ali com os
relatos ou pelos registros de escrita mantidos em centros históricos ou secretarias de cultura.
Gráfico 1. Relação em porcentagem dos 12 alunos que responderam as perguntas propostas. Fonte: Prática em
sala, 2018.
Considerações finais
Cerâmicas vidradas como a do fragmento são geralmente encontradas em sítios
históricos do século XIX relacionados a ocupações escravas, como em engenhos e senzalas.
A datação de uma única peça ainda totalmente disforme e partida fica quase impossível,
nesse caso houve assimilações morfológicas com outras peças nesse mesmo contexto
histórico para ao menos conseguir supor acerca de sua aparência e funcionalidade enquanto
utensílio funcional.
A Arqueologia Histórica brasileira é mais do que uma ramificação da Arqueologia;
uma área voltada aos estudos dos subalternos e todos os que sofreram um silenciamento a
partir dos encontros europeus com os povos autóctones sul-americanos e de sua mão de obra
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materializada, servindo como fontes para reconstruções históricas êmicas, conferindo-lhes
seus referentes méritos para a formação da atual sociedade brasileira.
Notas
[1] Graduando em História. Pesquisador na área de Arqueologia - Universidade do Estado de Minas
Gerais, Unidade Campanha. E-mail: leonardoklink@gmail.com.
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