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ALEX SOARES COSTA (Revisor) ANA PAULA VIEIRA DE MOURA (Revisora) FLORA VILLAS CARVALHO (Colaboradora) JOYCE DE SOUZA SANTOS (Revisora) JÚLIA VARGAS BATISTA (Organizadora) MAGDA DOS SANTOS RIBEIRO (Colaboradora) LARISSA DE OLIVEIRA MAGALHÃES (Colaboradora) SARA L. FERREIRA CARVALHO (Revisora) ANAIS DA VI SEMANA DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA DA UFMG 1ª edição Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Belo Horizonte 2019 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG 1ª Edição ISBN: 978-85-54944-34-6 Organização: Júlia Vargas Batista Revisão: Alex Soares Costa Ana Paula Vieira de Moura Joyce de Souza Santos Sara L. Ferreira Carvalho Colaboração: Flora Villas Carvalho Magda dos Santos Ribeiro Larissa de Oliveira Magalhães Capa: Foto – Edgar Corrêa Kanaykõ Design – Júlia Vargas Batista Belo Horizonte 2019 Sumário Apresentação.........................................................................................................................3 A espiritualização da violência..................................................................................................................................6 Bernardo Miranda Pataro Algumas notas sobre as antropólogas Elizabeth Steen e Judith Shapiro que estiveram entre os Tapirapé durante o século XX.........................................................................................................................................24 Paula Grazielle Viana dos Reis Da árvore ao rizoma: um estudo das urnas mortuárias pensando os contatosidentidades-alteridades no Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás durante o período colonial.................................................................................................................................34 Tayná Bonfim Mazzei Mazza Patriarcado, patologização e relações de poder: Uma análise do controle de corpos de mulheres e homossexuais.......................................................................................................................54 Marco Antonio Gatti Junior O pensamento descolonial na produção do espaço...................................................................................................................................60 André Lucas Magalhães dos Santos Silva Os limites euroamericanos do conceito de Genocídio: Pensando com os povos ameríndios sobre a atualização da noção de etnocídio...............................................................................................................................65 Marcio Maia Malta Os produtores rurais e o rio Jacaré: um estudo de caso em OliveiraMG........................................................................................................................................86 Ana Paula Santos Rodrigues Ponto de enxergo: relações que transbordam o Cerrado................................................................................................................................99 Marília Cyrne Por entre caminhos de Isabelle Stengers..............................................................................................................................112 Gilberto Amorim Correa Chaves Reflexões sobre o ativismo indígena entre os Parkatêjê............................................................................................................................123 Rayane Gomes da Silva Repensando a divulgação científica e seu lugar na Universidade: Um olhar antropológico.....................................................................................................................135 Bárbara M. Martinez Viana Um fragmento de uma memória encontrada: um artefato colonial como fonte para a educação arqueológica brasileira............................................................................................................................151 Leonardo Lopes Villaça Klink P á g in a |3 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Apresentação Em outubro de 2018, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, aconteceu a VI Semana de Antropologia e Arqueologia em torno da temática “Retrocessos e resistências”. Em tempos sombrios e diante do obscurantismo prenunciado, o tema da Semana foi uma maneira de mobilizar os alunos e fomentar as trocas acadêmicas, intelectuais e também pessoais, alimentando as alianças de trabalho coletivo dos estudantes entre eles e igualmente entre estes e os docentes. A VI SAA foi idealizada e concretizada com o objetivo de fomentar as discussões entre estudantes e colegas que se interessam e atuam em pesquisas e temas relacionados à Antropologia e à Arqueologia, seja trabalhando diretamente dentro deste arcabouço disciplinar ou em investigações que tomem os métodos e/ou inspirações antropológicas como referência central. O encontro, assim, não apenas promoveu e instigou reflexões e debates, mas também se configurou como um espaço vivo para o exercício da troca e do pensar, possibilitando ações e estratégias que nos permitam resistir e seguir com nossas convicções intelectuais e políticas. Um dos principais objetivos do comitê de organização do evento foi, justamente, fortalecer e consolidar a Semana de Antropologia e Arqueologia, já na sua sexta edição. Começamos em março de 2018, com um grupo composto por estudantes de graduação do curso de Antropologia da UFMG, em conjunto com estudantes de pós-graduação e apoio do Centro Acadêmico de Antropologia e Arqueologia – CALS. O evento despertou e mobilizou mais de 200 participantes, os quais se envolveram ao longo de cinco dias e noites em Grupos de Trabalho, mesas de debates, minicursos, Mostra de Filmes, Mostra de Fotografias, Espaço Brincante, apresentações artísticas e performances. Assim, os artigos que compõem esta publicação são resultado das discussões e dos trabalhos apresentados nos mais de dez GTs temáticos, os quais contaram com trabalhos e temas muito diversos e de grande importância para a Antropologia e Arqueologia. A presente publicação é uma maneira fundamental de registrar os esforços deste encontro e de compartilhar as reflexões, avanços e engajamentos dos estudantes com seus temas de investigação. Mais do que nunca, nossas forças estarão direcionadas para a promoção do conhecimento, da pesquisa e da curiosidade científica. O primeiro texto, de Bernardo Miranda Pataro, traz uma série de reflexões em torno das relações entre religião e violência, discutindo elementos como o fundamentalismo religioso e a violência religiosa. Em seguida, Paula G. Viana dos Reis, a partir das obras de Hebert Baldus e Charles Wagley, apresenta alguns apontamentos sobre as antropólogas P ágina |4 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Judith Shapiro e Elizabeth Steen e seus trabalhos de campo entre os Tapirapé, traçando também relações entre etnografia e fotografia. Partindo do conceito de rizoma, Tayná Mazza discute as relações entre etnologia, história e arqueologia, analisando escritos sobre urnas mortuárias encontradas no fim do século XIX e início do século XX, na região do Triângulo Mineiro. As discussões sobre gênero e ciência são trazidas pelo ensaio de Marco Gatti, que problematiza as noções de patriarcado e controle sobre corpos de mulheres e pessoas homossexuais, a partir de trabalhos de Fabíola Rohden (2008) e James Green (2010). O artigo de André Magalhães, por sua vez, analisa a colonialidade frente a reprodução espacial, a partir da perspectiva da ferida colonial da dominação e exploração na América Latina. Já o texto de Márcio Maia Malta, discute as noções de genocídio e etnocídio no contexto ameríndio, fazendo uma recuperação histórica destes conceitos e suas possibilidades no contexto latinoamericano. Em seguida, Ana Paula Santos Rodrigues nos apresenta algumas entrevistas realizadas junto à população rural da cidade de Oliveira-MG, pensando sobre suas relações com o Rio Jacaré o qual passa hoje por processos de assoreamento e degradação antrópica. O artigo “Ponto de enxergo: relações que transbordam o Cerrado”, de Marília Cyrne, busca tratar o Cerrado a partir das experiências e relações com a terra dos Krahô, povo indígena que faz parte do tronco linguístico MacroJê e que se encontra, atualmente, no estado do Tocantins. O trabalho de Gilberto Amorim, por seu turno, apresenta um rico debate sobre as contribuições de Isabelle Stengers para o pensamento antropológico. Rayane Gomes da Silva, em seu artigo, faz alguns apontamentos sobre o ativismo dos Parkatêjê a partir de trabalho de campo na Terra Indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, no estado do Pará. Os trabalhos de Bárbara Martinez e Leonardo Klink trazem discussões sobre experiências e iniciativas que contribuem para pensar as relações entre a Antropologia e Arqueologia e sua intersecção com o campo da educação e da divulgação científica no Brasil. Por fim, em nome do comitê de organização da VI Semana de Antropologia e Arqueologia, gostaríamos de agradecer imensamente a todas as pessoas que fizeram parte desta empreitada e do esforço persistente que segue vivo e, espero, firme e politicamente engajado por muito tempo. Agradecemos igualmente a todos e todas que se inscreveram na VI SAA e, claro, as/aos estudantes autores e autoras dos trabalhos que compõem esta publicação. Àquelas que se dispuseram a vir à UFMG falar de suas experiências e engrandecer o nosso evento. Agradecemos também às professoras e aos professores que nos auxiliaram no processo de organização e realização da Semana. À Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis - PRAE da UFMG pelo apoio e financiamento por meio das Chamadas P á g in a |5 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG PRAE (iniciativa de apoio direto a projetos estudantis, cuja existência foi fundamental para que nossos planos fossem concretizados); à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, pelo apoio institucional, financeiro e logístico, este último sobretudo por meio da Gerência e do setor de Serviços Gerais da Fafich; ao Departamento de Antropologia e Arqueologia e ao Colegiado de Graduação em Antropologia da UFMG; à Fundação Mendes Pimentel - FUMP; e à Revista Três Pontos, cuja parceria nos é imensamente estimada. A VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG foi construída a muitas mãos e é com enorme satisfação que finalizamos este evento com a publicação dos Anais da VI SAA, um dos importantes resultados deste longo processo, que nos envolveu e nos motivou, na busca pela produção e troca de saberes, mas também pelo engajamento político que todo conhecimento consigo carrega. Júlia Vargas Coordenadora da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG P á g in a |6 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Espiritualização da Violência Bernardo Miranda Pataro A religião é capaz de nos fornecer informações sobre questões transcendentais, outrora tidas como inacessíveis, que desafiavam a racionalidade do homem. Ela apresenta uma perspectiva da vida onde os indivíduos estão interligados em função de um propósito transcendente, como serve também de referência moral e código de conduta para muitos. Devido a seus inúmeros mandamentos e práticas voltadas para o estabelecimento da paz, harmonia e compreensão entre pessoas e povos, ela é vista pela maioria de seus seguidores como uma maneira de se explicar, através de seus ensinamentos, rituais e doutrinas, as contradições e injustiças da vida, sendo considerada por alguns o único caminho para a felicidade. Em função de sua busca por ordem, a religião sempre ocupou um papel de destaque na sociedade, foi um elemento fundamental na sua organização e condução espiritual durante muito tempo. Existem muitas tradições religiosas ao redor do mundo assim como divisões dentro de uma mesma doutrina. No cristianismo, diferentes grupos possuem interpretações distintas de sua fonte sagrada, como católicos e evangélicos. Xiitas e sunitas no Islã discordam quanto a quem seria o legítimo sucessor do Profeta Mohamed a guiar as comunidades muçulmanas e alguns grupos conservadores judeus como o Neturei Karta são contra o sionismo defendido por muitos de seus semelhantes. O avanço da modernidade, em conjunto com o advento do Iluminismo no século XVIII, que consagrou a razão como paradigma dominante para a compreensão do mundo, fez com que o papel da religião no Ocidente se alterasse de maneira profunda. O novo cenário político que consolidou o Estado-Nação como única entidade legítima para governar, assim como as transformações sociais, científicas e morais desse período, colocaram em xeque vários princípios e valores da religião de forma a modificar a maneira como ela é percebida e praticada em todo o mundo. A ampla adoção de valores liberais e progressistas pelas sociedades modernas não foram bem aceitas por todos. A proliferação e aceitação de temas polêmicos como o divórcio, aborto, uso de drogas e homossexualidade provoca uma reação nos indivíduos mais conservadores, principalmente religiosos, que os levam às vezes a não aceitarem as mudanças que a modernidade, associada ao processo de globalização, provocam na sociedade e pervertem o seu desenvolvimento, que deveria ser pautado na moral e tradições religiosas. Aqueles P á g in a |7 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG considerados radicais e extremistas fazem qualquer coisa para defenderem a interpretação de suas respectivas religiões, incluindo o uso da violência. Essas mudanças representam um desafio para a religião, uma vez que alteram sua relação tanto com o indivíduo quanto com a sociedade. Porém, ela não se manteve passiva diante de todas essas mudanças. Sua reação ocorre de diferentes maneiras, variando desde a renovação de suas práticas e abordagens até a utilização da violência por seus adeptos como ferramenta para se atingir seus objetivos, visto que há inúmeros casos de conflitos ao longo da história que envolveram a religião de alguma forma. As causas da violência religiosa hoje parecem estar ligadas ao avanço dos processos de secularização e modernização impostos sem consideração ou respeito por aqueles mais afetados e vulneráveis à essas mudanças. O objetivo desta pesquisa é, portanto, analisar qual a relação da violência com a religião, uma vez que à primeira vista elas pareçam ser antagônicas. A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa será uma revisão bibliográfica acerca do tema e suas variáveis. Esta pesquisa focará em dois aspectos da relação entre violência e religião: 1) como a violência é utilizada e legitimada por grupos e indivíduos religiosos; 2) os vínculos entre o processo de secularização, o fundamentalismo religioso e a violência religiosa. A Teoria da Secularização Grace Davie, em seu livro “The Sociology of Religion”, realiza uma extensa análise da teoria da secularização e apresenta diversos estudos sobre o tema. Essa teoria diz respeito a um processo complexo que envolve diversas variáveis e não ocorreu no mundo de forma simultânea e homogênea. De acordo com Davie, muitos estudiosos da religião já se debruçaram sobre o assunto, uma vez que não há um consenso sobre seu significado ou consequências. As transformações ocorridas na sociedade pré-industrial e rural europeia representaram uma grande ruptura no desenvolvimento religioso regional, tornando esse período extremamente útil para a discussão do processo de secularização, fazendo inclusive com que muitos que dispuseram-se a estudar essas importantes mudanças tirassem a conclusão equivocada de que necessariamente há uma incompatibilidade entre religião e modernidade (DAVIE, 2007). Os Estados Unidos da América (E.U.A) e muitos países em desenvolvimento representam, entretanto, uma exceção a essa suposta incompatibilidade, uma vez que apresentam altos índices de atividade e edificações religiosas. P ágina |8 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Karel Dobbelaere (1981, 2002 apud DAVIE, 2007, p. 49) diferencia 3 dimensões da secularização que atuam em diferentes setores da sociedade: a societal, onde setores da sociedade historicamente controlados pela igreja gradualmente se separam; a organizacional, que diz respeito à grande variedade de organizações religiosas na sociedade; e a individual, caracterizada pela fé e atividade religiosa (DAVIE, 2007). Apesar de ser possível identificar transformações nessas três dimensões, como a diminuição da procura da igreja para prover saúde ou educação, Davie chama a atenção para o fato de que a secularização não foi um processo uniforme. Apesar da separação entre Estado e igreja ser um dos principais pressupostos da secularização, isso não implica necessariamente que a sua relação deixou de existir com o advento da modernidade. Na Europa, (...) As autoridades religiosas continuam a preencher os vazios da provisão estatal, comandando recursos consideráveis em alguns lugares. As igrejas alemãs, por exemplo, são grandes fornecedoras de cuidados de saúde e bem-estar para um grande número de cidadãos alemães. Estruturas educacionais oferecem mais um exemplo. Em muitas partes da Europa, as igrejas permanecem proprietárias e gerentes de um número significativo de escolas.[1] (DAVIE, 2007, p. 50, tradução minha). O nível de atividade, ou, representatividade religiosa em uma determinada sociedade depende, portanto, da maneira como o processo de secularização ocorreu em cada lugar. A religião não perde completamente a sua importância, mas sua relação com a sociedade é modificada. Bryan Wilson (1998:49 apud DAVIE, 2007, p. 54) defendia uma teoria clássica da secularização, onde ele a entendia como “(...) um „processo social fundamental ocorrendo na organização da sociedade, na cultura e na mentalidade coletiva‟”.[2] (DAVIE, 2007, p. 54 apud WILSON 1998:49, tradução minha). Para Wilson, a secularização é o processo através do qual as práticas e ideias religiosas perdem sua significância social. A vida pautada pela racionalidade, expressa nas transformações de comportamento e crenças dos indivíduos, é característica central das sociedades modernas, manifestando-se de forma distinta em cada lugar. Outro autor que possuía ideias similares às de Wilson é Steve Bruce, que afirmava: “o individualismo ameaçou a base comum da crença religiosa e do comportamento, enquanto a racionalidade rompeu com muitos propósitos da religião e tornou muitas de suas crenças implausíveis”.[3] (DAVIE, 2007, p.56 apud BRUCE, 1996, p.230, tradução minha). Danièle Hervieu-Leger (1986) abordou a questão da secularização de outra forma. Segundo ela, ao mesmo tempo em que a modernidade pode ser destrutiva para alguns tipos de religiosidade, ela também cria a necessidade de novos tipos. Os indivíduos são P á g in a |9 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG encorajados a buscarem respostas dentre diversas possibilidades possíveis, o que se torna uma prática comum na sociedade moderna. A partir desse ponto de vista, o processo de secularização representa então a reorganização das formas religiosas. David Martin (1978), diferentemente dos demais autores, se coloca contrário “quanto à inevitabilidade da secularização”, chegando até a afirmar que o conceito não deveria ser utilizado em função da discordância quanto ao seu significado. Em seu texto “A general Theory of secularization”, Martin procura analisar os diferentes processos de secularização deflagrados em lugares distintos no mundo para comparar e entender suas diferenças. A partir de seus estudos, ele constata que a maneira como a religião foi introduzida na Europa e na América foi determinante para definir o tipo de relação que essas sociedades desenvolveriam com ela. Na Europa, essa inserção se deu de acordo com o padrão de distribuição de poder que vigora a séculos, de forma horizontal, diferentemente dos Estados Unidos, onde esse processo ocorreu verticalmente (DAVIE, 2007). É importante lembrarmos que Europa e Estados Unidos são muito diferentes internamente, o que também contribui para as diferenças nos processos. Em 1978, grande parte da Europa Central e Leste estava sob domínio comunista, de forma que a secularização fazia parte da ideologia dominante (DAVIE, 2007). Como podemos ver, a secularização envolve muitos elementos e dialoga com diferentes áreas do conhecimento, portanto é um processo multidimensional, e dependendo de como o abordamos, podemos chegar a conclusões equivocadas. Resumindo as perspectivas vistas, temos o seguinte referencial teórico: (...) tanto Berger quanto Bruce concordam que um aumento na faixa de opções religiosas necessariamente compromete a reconhecida natureza das suposições religiosas. Se isto necessariamente leva à secularização é uma pergunta mais difícil – e é o ponto em que Bruce e Berger seguem direções diferentes. A definição de Wilson do processo de secularização, que a religião declina em importância social nas sociedades modernas, fornece uma referência importante para muitos estudiosos. Tal declínio, no entanto, ocorreu mais em alguns lugares do que em outros – daí a necessidade de se prestar muita atenção às especificidades da história.[4] (DAVIE, 2007, p. 62, tradução minha). A partir do final do século vinte, o foco do debate sobre a secularização muda. A pergunta de como o E.U.A, a nação mais tecnologicamente desenvolvida do mundo, apresentava índices crescentes de atividade religiosa, fez com que os estudiosos da religião percebessem que o caso Europeu não era o modelo de secularização que seria adotado pelo resto do mundo, mas que ele representava uma particularidade, ou até mesmo uma exceção. Na Europa, portanto, pode-se afirmar que a importância da religião na sociedade diminuiu, porém isso não se verifica em todos os Estados seculares modernos, uma vez que em cada P á g i n a | 10 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG lugar “Os elementos principais alinharam-se de formas diferentes, levando a futuros completamente diferentes”.[5] (DAVIE, 2007, p. 63, tradução minha). O Fundamentalismo Religioso O “ressurgimento da religião”, conceito caracterizado pela renovação das práticas e costumes religiosos, é um fenômeno global e, assim como o processo de secularização, manifesta-se de acordo com as características históricas de cada caso. Peter L. Berger (1999, apud DAWSON, 2011, p. 150) considera o ressurgimento da religião no final do século XX como evidencia do fracasso do processo de secularização. Andrew Dawson (2011) em seu livro “Sociology of Religion”, afirma que o fundamentalismo religioso surge como parte de um amplo processo de ressurgimento da religião. Entre 1910 e 1915 nos Estados Unidos, uma série de panfletos com o nome de The Fundamentals: A testemony of Truth foram distribuídos por um grupo cristão, onde a importância e veracidade de determinados “fundamentos” contidos na Bíblia eram ressaltados, como a criação da terra em seis dias, a autenticidade dos milagres e a crucificação e ressurreição de Cristo. Os “fundamentalistas” eram aqueles “(...) „prontos para batalhar pelos Fundamentos‟.”[6] (DAWSON, 2011, p. 150 apud RUTHVEN, 2004, pp. I-34, tradução minha). De acordo com Gary D. Bouma (2007), podemos citar duas causas para o ressurgimento da religião: 1) Ela representa uma reação ao fracasso das formas de religião secularmente e liberalmente organizadas e; 2) representa um descontentamento com as repetidas falhas da justiça, a incapacidade de distribuição de recursos, como comida, de forma justa, assim como uma reação contra a falha do paradigma humanitário de promover a paz e prosperidade com justiça e explicações satisfatórias para questões como o mal e a dor (BOUMA, 2007, p. 188). Segundo o autor, esse ressurgimento religioso geralmente inclui: (...) aumento da intensidade de compromisso, maior relevância da identidade religiosa, a ascensão dos extremos puritanos (Almond, Appleby e Sivan, 2003; Antoun, 2001; Porter, 2006) e um retorno ao engajamento político para aplicar a fé seja pelo estabelecimento da Lei da Sharia em países de maioria muçulmana recém estabelecidos como a Malásia, promover o ensino de 'Ciência Criacionista' nos Estados Unidos, ou condenando padrões particulares de sexualidade. [7] (BOUMA, 2007, p. 188 apud BATES 2004, tradução minha). É necessário fazer uma distinção entre a competição e o conflito, uma vez que Bouma considera o conflito como sendo uma subcategoria da competição. A competição religiosa parte do pressuposto de que cada competidor reconhece o direito do outro em manifestar sua fé, e nesse processo cada um passa a ter uma perspectiva melhor sobre sua posição na sociedade e a forma como cada um se relaciona com a sua respectiva fé. O P á g i n a | 11 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG conflito religioso, por outro lado, busca subjugar, eliminar ou converter seu adversário. A migração é um fator de relevância para ambos os casos, uma vez que introduz mais diversidade na sociedade e aumenta as relações inter-religiosas (BOUMA, 2007). Com o aumento da diversidade a competição se intensifica, mas não quer dizer necessariamente que irá resultar em conflito (BOUMA, 2007). A identificação do outro, o diferente, o inimigo, pressupõe a delimitação de limites ou “fronteiras” que servem de referência para a ação do indivíduo e/ou grupo religioso, de forma que “Tanto a competição quanto o conflito exigem o delineamento de fronteiras, tomar a ofensa a alguém ou algo, e declarando o outro de estar errado, moralmente inferior, ou teologicamente em erro”. [8] (BOUMA, 2007, p. 193, tradução minha). As disputas religiosas não derivam apenas da maior diversidade, mas também de rivalidades internas por recursos como posições de poder e participação nas decisões sobre o futuro do grupo. De acordo com Bouma, a incapacidade de lidar com as disputas internas, assim como a falta de um inimigo externo que coloque essas adversidades em segundo plano, faz com que a intolerância aumente e gere mais conflitos (BOUMA, 2007). Muitos estudiosos não gostam de usar o termo “fundamentalismo” devido à sua conotação pejorativa, outros já defendem que seu uso deveria referir-se apenas ao segmento cristão que o originou. Karen Armstrong (2001) em seu livro “Em nome de Deus”, considera o conceito insuficiente, uma vez que ele não é capaz de descrever todas as particularidades que esse fenômeno manifesta. Já se argumentou que não se pode aplicar esse termo cristão a movimentos que têm prioridades totalmente diversas. Os fundamentalismos islâmico e judaico, por exemplo, não se prendem muito à doutrina, o que é um preocupado (sic) intrinsecamente cristão. Uma tradução literal de "fundamentalismo" em árabe nos dá usuliyyah, palavra que se refere ao estudo das fontes das várias normas e princípios da lei islâmica. (1) A maioria dos ativistas rotulados de “fundamentalistas” no Ocidente não se ocupam dessa ciência islâmica, mas têm interesses muito diferentes. O uso do termo "fundamentalismo" é, pois, equívoco. (ARMSTRONG, 2001, p. 7). É importante ressaltar que o termo é utilizado de forma genérica, o que oculta as diferenças de interpretações de cada tradição religiosa sobre seus respectivos fundamentos, homogeneizando grupos de origens e perspectivas distintas. Verifica-se, portanto, as limitações analíticas do conceito de fundamentalismo (Dawson, 2011, p. 151). O que significa então “fundamentalismo”? Alguns autores utilizam o termo para referirem-se a um fenômeno religioso contemporâneo específico, com origem no século XX, entendido como uma reação ao processo de modernização e secularização a que as tradições religiosas foram submetidas. Steve Bruce (2000) propõe um conceito mais abrangente, para quem “o termo P á g i n a | 12 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG „fundamentalismo‟ enquadra-se melhor para os movimentos que respondem aos problemas criados pela modernização.”[9] (DAWSON, 2011, p. 152 apud BRUCE, 2000, tradução minha). O conjunto de transformações provocadas pela modernidade muitas vezes entravam em choque com alguns pressupostos religiosos. A igualdade de gênero, por exemplo, colocava em xeque o papel submisso atribuído à mulher pela igreja. Embora cada processo fundamentalista tenha suas particularidades, seja entre cristãos, muçulmanos ou judeus, ele caracteriza-se por uma reação a um conjunto de mudanças na sociedade, que abrangem desde questões religiosas-culturais até socioeconômicas (DAWSON, 2011, p. 153 apud FRYKENBERG, 1993, pp.233-55; LIEBMAN, 1993, pp.68-87; VOLL, 1991, pp. 345402). A revolução iraniana de 1979, que destituiu do poder o Xá Mohammad Reza Pahlev, de alinhamento pró-ocidente, mostrou que o fundamentalismo que surgiu no Oriente representava uma reação tanto às mudanças internas pelas quais a região estava passando quanto também à expansão do que era percebido como “Ocidentalização”.[10](DAWSON, 2011, p.153). A reação Islâmica introduziu um novo elemento ao fenômeno do fundamentalismo, uma vez que ele também emergiu como uma reação orquestrada – entendida como uma campanha contra a jahiliyya ('ignorância sobre a orientação divina') – à suposta imposição de valores ocidentais, secular/liberais incorporados pelo regime dominante do Xá.[11] (DAWSON, 2011, p. 154 apud LAWRANCE, 1989; RIESEBRODTR, 1990). O fundamentalismo apresenta, portanto, diferentes características dependendo do contexto em que ele se manifesta. De acordo com Dawson, a “reação à marginalização da religião”[12] (DAWSON, 2011, p.155, tradução minha), parece ser um dos principais fatores ideológicos do fundamentalismo, conferindo-lhe um caráter militante/defensivo. Em seguida, temos a “seletividade ideológica”[13] (DAWSON, 2004, p. 155, tradução minha) como outro fator, tanto com relação à sua própria tradição religiosa quanto com o contexto com o qual ele se relaciona (DAWSON, 2011). Há outras 3 características ideológicas do fundamentalismo que devem ser mencionadas: “maniqueísmo moral”[14] (DAWSON, 2011, p. 157, tradução minha), princípio a partir do qual o mundo é divido entre “eleitos/puros” e “corruptos/condenados”; “absolutismo e inerrância”[15] (DAWSON, 2011, p. 157, tradução minha), que define que as tradições são verdadeiras e corretas em todos os sentidos, de forma que qualquer interpretação moderna é rejeitada; e “milenianismo e messianismo”[16] (DAWSON, 2011, p. 157, tradução minha), que diz respeito à perspectiva de que a história culminará ou P á g i n a | 13 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG convergirá para a vontade divina e aqueles que mantiveram-se fiéis aos fundamentos serão recompensados. (DAWSON, 2011, p. 157 apud Almond, Sivan and Appleby, 1995c, pp. 406-7). A identificação daqueles considerados “infiéis” e “os que serão salvos” é extremamente importante, pois os fundamentalistas consideram-se guardiões de suas respectivas tradições sagradas, creem que são especiais. O mundo para os fundamentalistas deveria ser regido pela vontade divina, logo julgam ser sua a responsabilidade de modificarem a realidade através da reconstrução das sociedades a partir de seus respectivos fundamentos religiosos e por isso devem ser protegidos e reafirmados sobre os valores seculares modernos (DAWSON, 2011). A certeza de que suas ações representam a vontade divina os impele a agir sobre o mundo e suas estruturas de poder, que se encontram em decadência. Os fundamentalistas utilizam diferentes estratégias para atingirem seus objetivos, que refletem em maior ou menor grau suas tradições e crenças religiosas. Emmanuel Sivan, Gabriel Almond, e R. Appleby identificaram quatro tipos ideais de estratégias que podem ser adotadas por grupos fundamentalistas no que diz respeito à sua interação com o “inimigo”. O objetivo do “conquistador de mundos”[17] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) é o controle das estruturas de poder que “deram vida para o inimigo” para que se possa ter a capacidade de dominá-los ou rechaçá-los. Essa estratégia tem mais chances de ser implementada em um contexto onde esse feito seja percebido como realizável; se no curto prazo o controle da sociedade é inviável adota-se uma estratégia de longo prazo, denominada “transformador de mundos”[18] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha), que utiliza-se de várias ações como mobilizações sociais, lobbys políticos e “guerra cultural”[19] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) para disseminar suas ideias e gradualmente enfraquecer as instituições até um eventual colapso, fazendo da sociedade civil seu “campo de batalha”; “criador de mundos”[20] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) e “renunciador de mundos”[21] (DAWSON, 2011, p.161, tradução minha) diferem das estratégias anteriores pois não buscam modificar o mundo, mas sim preservar as crenças, valores e tradições que os definem. No caso do “criador de mundos”, comunidades religiosas se isolam e representam a “única alternativa viável” ao mundo impuro”, logo passam a ter o mínimo de contato com aqueles fora de seus grupos e por último há a estratégia “renunciador de mundos”, que promove uma interação maior com a sociedade de forma a conduzir projetos educacionais para orientar a conduta dos indivíduos tanto no próprio grupo quanto na sociedade. (DAWSON, 2011, p. 161-62 apud ALMOND, SIVAN and APPLEBY 1995ª, pp.445-82; 1995b, pp.425-44). P á g i n a | 14 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG O fundamentalismo religioso, assim como o processo de secularização, não é completamente incompatível com a modernidade, porém se origina desta e manifesta-se de várias maneiras. Ao passo que o processo de secularização representa a modificação do papel da religião nas sociedades modernas, o fundamentalismo religioso caracteriza a reação à essa modificação, de forma que esses dois fenômenos estão ligados e influenciamse ainda hoje, uma vez que o avanço incansável do processo de secularização demanda novas formas de reação. Essa pressão gera um ciclo onde a reinterpretação e consequente aplicação das práticas e valores religiosos por fundamentalistas dispostos a utilizarem a violência torna-se cada vez mais frequente, o que por sua vez instiga uma reação das sociedades seculares modernas. A Violência Religiosa No artigo “Fear and Trembling: Terrorism in Three Religious Traditions”, David C. Rapoport realiza uma análise da atuação de três grupos terroristas distintos do passado. Os Thugs ligados ao Hinduísmo, os Assassins ao Islamismo e os Zealots-Sicarii ao Judaísmo. O terror perpetrado por esses grupos possuía um caráter “sagrado” (que será melhor esclarecido adiante), auxiliando-os assim a legitimarem suas ações e métodos baseados em suas respectivas tradições religiosas (RAPOPORT, 1984). Segundo Rapoport, esses grupos são diferentes dos terroristas modernos e são considerados seus precursores, uma vez que eles consideravam o terror como sendo sagrado ou santo e não somente uma forma de se atingir seus objetivos. O propósito da publicidade gerada pelos terroristas modernos através do terror não é necessariamente o mesmo dos Thugs, Assassins e Zealots-Sicarii, de modo que, “Para o terrorista sagrado, a divindade é o público primário, e dependendo de sua concepção religiosa particular, é concebível até mesmo que ele não precise ou queira que o público testemunhe seus atos”.[22] (RAPOPORT, 1984, p. 660, tradução minha). De acordo com Rapoport, O terrorista santo acredita que apenas uma finalidade transcendente que cumpre o significado do universo pode justificar o terror, e que a divindade revela em algum momento anterior no tempo tanto os fins quanto os meios e pode até mesmo participar no processo.[23] (RAPOPORT, 1984, p. 659, tradução minha). Uma característica marcante dos Thugs é que preferiam evitar que o público tomasse conhecimento de suas ações, uma vez que seus objetivos são transcendentais e visavam o assassinato das vítimas com o objetivo de satisfazer a divindade Kali. Os Assassins, ao contrário, visavam alvos políticos com o objetivo de enviar uma mensagem islâmica com o objetivo de transformar o mundo de acordo com seus princípios, logo P á g i n a | 15 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG necessitavam da atenção do público. Outra diferença entre estes dois grupos é que enquanto os Thugs obtinham apoio de príncipes para suas operações, os Assassins implantaram seu próprio estado. Os Zealots-Sicarii possuíam características similares às dos Assassins no sentido de que também eram motivados por questões messiânicas, pretendendo atingir o maior número de pessoas. Ambos compreendiam a importância de morrer pela causa, que representava uma forma de ascensão. Diversamente dos Thugs e Assassins, os ZealotsSicarii são mais livres quanto à escolha da tática (RAPOPORT, 1984). Como podemos ver, a violência religiosa não é exclusividade da modernidade, embora esta tenha desencadeado uma reação particular das religiões ao redor do mundo. Podemos dizer que a motivação dos grupos anteriormente citados é puramente religiosa? Muitas vezes, a religião é utilizada como pretexto para reivindicações político-sociais e até mesmo para fundamentar conflitos étnicos, políticos e territoriais. É necessário, portanto, definirmos com clareza o que queremos dizer quando utilizamos o termo “violência religiosa”. A esse respeito, Juergensmyer faz as seguintes perguntas: Estamos olhando para uma guerra prolongada ou um único evento terrorista? Estamos nos referindo a incidentes contemporâneos ou memórias históricas? Estamos vendo apenas imagens e eventos religiosos, ou estamos vendo como a religião é usada em incidentes que são em grande parte para fins sociais ou políticos?[24] (JUERGENSMYER, 2009, p. 891, tradução minha). Mark Juergensmyer, em seu artigo “Religious Violence”, realiza uma revisão bibliográfica sobre este tema, onde ele apresenta autores de diferentes áreas, constituindo dessa forma um arcabouço teórico bastante amplo. A relação entre religião e violência, a princípio, parece ser distante. Os ensinamentos religiosos possuem várias referências a paz, de forma que o princípio da não violência é central para a grande maioria das religiões. A violência só seria permitida, a partir do ponto de vista religioso, na defesa da própria vida ou da fé (JUERGENSMYER, 2009). Além de atos violentos cometidos em nome da religião, existe também a violência simbólica, presente em virtualmente todas as tradições religiosas, legitimada pela compreensão de que ela representaria a vontade divina. A “violência religiosa” pode referir-se, portanto, tanto ao seu aspecto simbólico, como caracterizar vários acontecimentos ao longo da história, perpetrados por indivíduos, grupos e/ou organizações religiosas (JUERGENSMYER, 2009). A distinção entre violência simbólica e atos violentos cometidos em nome da religião não é tão simples quanto parece, uma vez que seus limites são tênues. O tema da violência religiosa como podemos ver é bastante amplo e envolve diversas variáveis, de forma que é difícil especificarmos, em cada caso analisado, se as motivações para um P á g i n a | 16 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG determinado ato de violência são puramente religiosas ou se envolvem também outros fatores. O bombardeamento do World Trade Center foi um ato religioso ou político? Pode-se dizer que foi um ou ambos, pois é evidente que uma das características mais significativas do ativismo religioso contemporâneo é que ele representa não só a politização da religião, mas também a regionalização da política. Por este último termo refiro-me à maneira como a vida política tem sido englobada pela imaginação religiosa, e como as lutas sociais e políticas foram atraídas para o reino do drama cósmico.[25] (JUERGENSMEYER, 2009, p. 891, tradução minha). A religião introduz a noção do embate cósmico, a grande luta entre o bem e o mal, que passa então a definir as questões sociais e políticas, fazendo, em alguns casos, com que seus oponentes sejam desumanizados a tal ponto que passam a ser vistos como uma força do mal que deve ser subjugada de qualquer maneira. Como dito anteriormente, as religiões estão impregnadas de violência simbólica. No cristianismo, tem-se a crucificação de cristo, batalhas épicas foram registradas nas escrituras sagradas do Hinduísmo e há muitos outros exemplos nas mais diversas tradições religiosas. Mas parece ser o sacrifício a violência simbólica mais compartilhada entre as religiões. Segundo Juergensmyer, (...) Na Bíblia hebraica, sagrada para Judeus, Cristãos e Muçulmanos, o livro de Levítico dá guias detalhados para preparar animais para o abate sacrificial, e a própria arquitetura dos antigos templos israelenses reflete a centralidade do ato sacrificial. Por causa de sua centralidade, algumas das primeiras teorias acadêmicas sobre violência religiosa começam com o sacrifício.[26] (JUERGENSMYER, 2009, p. 892, tradução minha). Diversos antropólogos desenvolveram teorias acerca do sacrifício. E. B Taylor (1870) propôs que o sacrifício representava uma tentativa de subornar os deuses e, com o avanço das religiões, ele transformou-se em autoprivação; para W. Robertson-Smith (1889), o sacrifício era uma refeição ritual, cuja destrutividade conduzia a um pacto com a divindade e; James G. Frazer (1900) para quem o sacrifício era um elemento central da religião, uma vez que “a matança de reis e homens sagrados permitiu o rejuvenescimento dos deuses, e o sacrifício simbólico da religião moderna foi visto por Frazer como uma extensão desta antiga mágica”. [27] (JUERGENSMYER, 2009, p. 892-93 apud FRAZER, 1900, tradução minha). Émile Durkheim também se debruçou sobre a questão do sacrifício, porém as contribuições mais importantes, que utilizavam da sua perspectiva, vieram de Henri Hubert e Marcel Mauss (1899). Para eles, o sacrifício representava o elo entre a realidade sagrada e a profana, uma vez que a vida oferecida para a divindade através do ritual era retribuída àquele que sacrifica pelo ente supremo. O sacrifício é entendido, portanto, como uma maneira de se comunicar com as realidades sagrada e profana, conferindo à religião autoridade e transcendentalidade (JUERGENSMYER, 2009). A abordagem Durkheimiana P á g i n a | 17 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG de Hubert e Mauss sofreu muitas críticas por sua grande dependência de exemplos Védicos, Judeus e Cristãos (JUERGENSMYER, 2009), fazendo com que alguns estudiosos revisassem suas teorias de forma a se adequarem a outras situações. Foi o caso de Marcel Detienne (1979) que teve um foco distinto dos demais, uma vez que constatou a igual importância, ou até mesmo superior, dos atos de cozinhar e comer o animal sacrificado com o do sacrifício em si. Outro autor importante nessa discussão é Maurice Bloch (1992), que desenvolveu sua teoria a partir de uma revisão dos pressupostos estabelecidos por Hubert e Mauss, de forma a relacionar “(...) atos simbólicos de violência à atos de guerra e conquista no mundo real”.[28] (JUERGENSMYER, 2009, p. 893 apud BLOCH, 1992, tradução minha). Apesar de Bloch se referir a sociedades tribais, ele mostra que o sacrifício, para muitas delas, é uma forma de empoderamento. Essa noção do empoderamento, segundo Juergensmyer, pode ser aplicado inclusive aos atos de terrorismo contemporâneos. A psicologia é outra área que tenta explicar o tema da violência religiosa. Sigmund Freud foi um dos que contribuíram com a discussão: (...) Em Totem e tabu (1918), Freud explicou que o instinto destrutivo presente na natureza humana destruiria uma família, tribo ou sociedade civil se não fosse simbolicamente deslocado e direcionado para um inimigo sacrificial. [29] (JUERGENSMYER, 2009, p. 894 apud FREUD, 1918, tradução minha). Apesar de posteriormente muitas das teorias de Freud terem sido rechaçadas, sua afirmação de que a violência simbólica pode auxiliar na redução de atos reais de violência permaneceu. René Girard (1972) merece um destaque dentre os teóricos de linha freudiana, uma vez que introduziu uma nova perspectiva acerca da motivação do ato de sacrifício. Para Freud a canalização do instinto agressivo inerente à natureza humana é o que levaria à necessidade do ritual de sacrifício, porém Girard afirma que a real motivação seria um “desejo mimético”[30] (JUERGENSMYER, 2009, p.895), que reflete "o desejo de imitar e superar um rival, e desejar o que um rival deseja”.[31] (JUERGENSMYER, 2009, p. 895 apud GIRARD, 1972, tradução minha). Tanto para Girard quanto para Freud, a violência simbólica presente em mitos e rituais deveria aliviar o desejo por atos violentos. Alguns cientistas, entretanto, entendem a religião como sendo uma “expressão da estrutura social, e a violência religiosa como um instrumento de forças políticas ou sociais (JUERGENSMYER, 2009, p. 897). A questão central passa a ser então como os ativistas religiosos comportam-se nas esferas políticas e sociais, fazendo com que David C. Rapoport (1988), em seus estudos, constatasse que: P á g i n a | 18 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG (...) ativistas religiosos utilizam estratégias terroristas especialmente em tempos de expectativas messiânicas, quando seus atos podem ser justificados em função da percepção da iminência de transformações apocalípticas da história e da sociedade.[32] (JUERGENSMYER, 2009, p. 897 apud RAPOPORT, 1988;1991, tradução minha) Juergensmyer contextualiza o aumento da violência religiosa global com fatores geopolíticos e também com as consequências da globalização, que traz à tona problemas de identidade e controle, de maneira que: Os dois estão ligados, no sentido de que a perda da percepção de pertencimento leva a um sentimento de impotência. Ao mesmo tempo, o que tem sido percebido como uma perda de fé no nacionalismo secular é experimentado como uma perda de agência, bem como de individualidade. Por estas razões a afirmação das formas tradicionais de identidades religiosas estão ligadas às tentativas de retomar o poder pessoal e cultural.[33] (JUERGENSMYER, 2004b, p. 6, tradução minha). Em alguns casos, o autor também identifica o desejo pela busca de alternativas ao modelo modernizante Ocidental, afirmando que a violência perpetrada por esses movimentos é compreensível, uma vez que eles enfrentam a estrutura política em suas raízes. Os atos de violência desses movimentos podem ser entendidos como uma tentativa de readquirir o controle da sociedade frente a perda de identidade e consequente sensação de não-pertencimento. O elemento religioso dos novos nacionalismos confere a eles um caráter violento, uma vez que a religião fornece a legitimação moral para a prática da violência. Dessa forma, o monopólio do uso da violência pelo Estado é contestado, pois a religião representa uma autoridade maior (JUERGENSMYER, 2004a). Por isso, o autor considera a violência religiosa como sendo revolucionária, uma vez que tem a capacidade de promover tanto um empoderamento espiritual quanto político. A relação entre violência religiosa e empoderamento é importante também para os teólogos. O ritual do sacrifício, para eles, pode ser interpretado como um ato de renovação e regeneração espiritual (JUERGENSSMYER, 2009). Muitos teólogos conferem à violência simbólica presente em escrituras sagradas, como aquelas relacionadas às catástrofes bíblicas, um elemento de purificação e transformação, assim como refletem o desejo por mais harmonia social (JUERGENSMYER, 2009). Existe uma abordagem mais holística, de estudos comparativos em religião, denominada estudos religiosos, tendo Mircea Eliade (1992) como uma das referências na área. Em seu livro “O Sagrado e o Profano”, Eliade nos apresenta a dicotomia que, segundo ele, ajudou a delinear o campo de atuação das religiões. A oposição entre aquilo que constitui o sagrado e o profano é fundamental para entendermos a maneira como a religião P á g i n a | 19 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG e o homem religioso agem na realidade, que representa um modo específico de ser no mundo. O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagrada. (ELIADE, 1992, p. 13) O profano corresponde então ao mundo “natural”, aquele onde a realidade sagrada, que é proveniente de uma esfera distinta da nossa, se manifesta. O choque entre as diferentes manifestações de hierofanias, provenientes da multiplicidade de culturas e povos que cada vez mais interagiam entre si, tornou-se objeto de estudos, vindo a constituir, já na Grécia antiga, o precursor de uma ciência das religiões. Bruce Lincoln (1991) foi aluno de Eliade e trouxe novamente para a discussão sobre violência religiosa a perspectiva Durkheimiana de Hubert e Mauss do sacrifício. Lincoln “imaginou os atos violentos como parte de um „discurso de mestre' destinado a interligar o cosmos, o corpo humano e a sociedade.”[34] (JUERGENSMYER, 2009, p. 904 apud LINCOLN, 1991, tradução minha). Roger Friedland e Richard Hecht (1996) utilizam-se de um pressuposto central das análises de Eliade, a existência simultânea de uma realidade sagrada e outra profana, que permite aos indivíduos religiosos categorizarem a realidade, representando assim uma ruptura tanto no espaço quanto no tempo (JUERGENSMYER, 2009). Em seus estudos sobre os conflitos entre cristãos, muçulmanos e judeus pelo controle de Jerusalém, Friedland e Hecht constataram como as diferentes percepções do sagrado podem gerar violência (JUENGERSMYER, 2009). Juergensmyer, a partir de seus estudos, cria o conceito da “guerra cósmica”[35] (JUERGENSMYER, 2009, p. 904, tradução minha) que, para ele, seria o elemento de ligação entre a violência simbólica, presente em praticamente todas as tradições religiosas, e atos reais de violência, uma vez que ele representa a necessidade da busca por ordem pela religião. Segundo o autor: O modelo conceitual da guerra cósmica é capaz de abarcar anomalias aparentes tais como o controle persistente das sociedades por forças externas ou a repentina destruição dos principais edifícios em um moderno centro urbano - e fornecem um quadro no qual estas anomalias fazem sentido. As imagens de guerra cósmica fazem o que a religião em geral faz bem: fornecem uma estrutura profunda de ordem que dá sentido à contradições da vida e esperança que rebate o desespero.[36] (JUERGENSMYER, 2009, p. 904, tradução minha). O período secular moderno no qual o mundo encontra-se está inserido, portanto, no contexto da “guerra cósmica”. E nesses tempos de guerra, a religião oferece o referencial P á g i n a | 20 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG para se entender a conjuntura dos acontecimentos, pois é necessário que aqueles dispostos a batalhar por sua fé sejam capazes de identificar seus inimigos e justificar suas ações, que muitas vezes podem ser brutais. A suposta decadência promovida pelos símbolos da vida moderna secular, tanto na forma de ideias quanto de governantes e representantes do Estado Secular, são percebidos como o inimigo. Enxergar a religião como uma força de ordem, expõe um paradigma, o de que a violência seria um caminho para a paz em um mundo preso entre as narrativas secular e transcendentais da história (JUERGENSMYER, 2009). Notas [1] (...) Religious authorities continue to fill the gaps in state provision, commanding in some places considerable resources. The German churches, for example, are major providers of both healthcare and welfare for large numbers of German citizens. Educational structures offer a further illustration. In many parts of Europe, the churches remain the owners and managers of significant numbers of schools. (DAVIE, 2007, p. 50). [2] “(…) a „fundamental social process occurring in the organization of Society, in the culture and in the collective mentalité‟” (DAVIE, 2007, p. 54 apud WILSON 1998:49) [3] “Individualism threatened the communal basis of religious belief and behavior, while rationality removed many of the purposes of religion and rendered many of its beliefs implausible. (DAVIE, 2007, p.56 apud BRUCE, 1996, p.230) [4] (…) both Berger and Bruce agree that an increase in the range of religious choices necessarily undermines the taken-for-granted nature of religious assumptions. Whether this necessarily leads to secularization is a more difficult question – the point at which Bruce and Berger go in different directions. Wilson‟s definition of the secularization process, that religion declines in social significance in modern societies, provides an important reference in point for many scholars. Such decline, however, has occurred more in some places than others – hence the need to pay very careful attention to the specificities of history. (DAVIE, 2007, p. 62). [5] “The key elements have aligned in different ways, leading to entirely different futures”. (DAVIE, 2007, p. 63). [6] “(…) „ready to do battle for the Fundamentals‟.” (DAWSON, 2011, p. 150 apud Ruthven, 2004, pp.I-34) [7] (…) increased intensity of commitment, increased salience of religious identity, the rise of puritanical extremes (Almond, Appleby and Sivan, 2003; Antoun, 2001; Porter, 2006) and a return to political engagement to apply faith whether by establishing Shariah Law in newly Muslim majority countries like Malaysia, promoting the teaching of „Creation Science‟ in the USA, or condemning particular patterns of sexuality. (BOUMA, 2007, p. 188) [8] "Competition and conflict both require the drawing of lines, taking offence at someone or something, and declaring the other to be wrong, morally inferior, or theologically in error”. (BOUMA, 2007, p. 193) [9] “the term „fundamentalism‟ is better kept for movements that respond to problems created by modernization.” (DAWSON, 2011, p. 152 apud BRUCE, 2000). [10] “Westernization” (DAWSON, 2011, p.153). [11] it also emerged as an orchestrated reaction – understood as a campaign against jahiliyya („ignorance of divine guidance‟) – to the perceived imposition of Western, secular-liberal values embodied by the dominant regime of the Shah. (DAWSON, 2011, p. 154 apud LAWRANCE, 1989; RIESEBRODT, 1990). [12] “reactivity to the marginalization of religion” (DAWSON, 2011, p.155). [13] “ideological selecvity” (DAWSON, 2004, p. 155). [14] “moral manicheism” (DAWSON, 2011, p. 157) [15] “absolutism and inerrancy” (DAWSON, 2011, p. 157) [16] “millennialism and messianism” (DAWSON, 2011, p. 157) [17] “world conqueror.” (DAWSON, 2011, p.161). [18] “world transformer.” (DAWSON, 2011, p.161). [19] “cultural welfare.” (DAWSON, 2011, p.161). [20] “world creator.” (DAWSON, 2011, p.161). [21] “world renouncer.” (DAWSON, 2011, p.161). P á g i n a | 21 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG [22] For the holy terrorist, the primary audience is the deity, and depending upon his particular religious conception, it is even conceivable that he does not need or want to have the public witness his deed. (RAPOPORT, 1984, p. 660). [23] The holy terrorist believes that only a transcendent purpose which fulfills the meaning of the universe can justify terror, and that the deity reveals at some early moment in time both the end and means and may even participate in the process as well. (RAPOPORT, 1984, p. 659). [24] Are we looking at protracted warfare or single terrorist events? Are we referring to contemporary incidents or historical memories? Are we viewing solely religious images and events, or are we seeing how religion is used in incidents that are largely for social or political purposes. (JUERGENSMYER, 2009, p. 891). [25] Was the bombing of the World Trade Center a religious act or a political one? It can be said to be either or both, for it is apparent that one of the most significant features of contemporary religious activism is that it entails not only the politicization of religion, but the religionization of politics. By the latter term I mean the way in which political life has been encompassed by the religious imagination, and how social and political struggles have been drawn into the realm of cosmic drama. (JUERGENSMEYER, 2009, p. 891). [26] (...) In the Hebrew Bible, sacred to Jews, Christians, and Muslims, the book of Leviticus gives detailed guides for preparing animals for sacrificial slaughter, and the very architecture of ancient Israeli temples reflects the centrality of the sacrificial act. Because of its centrality, some of the earliest scholarly theories about religious violence begin with sacrifice. (JUERGENSMYER, 2009, p. 892). [27] the killing of king and holy man allowed the gods to be rejuvenated, and the symbolic sacrifice of modern religion Frazer saw as an extension of this ancient magic. (JUERGENSMYER, 2009, p. 892-93 apud FRAZER, 1900). [28] “(…) symbolic acts of violence to acts of warfare and conquest in the real world”. (JUERGENSMYER, 2009, p. 893 apud BLOCH, 1992). [29] (...) In Totem and Taboo (1918), Freud explained that the destructive instinct in human nature would tear apart a family, tribe or civil society if it were not symbolically displaced and directed toward a sacrificial foe. (JUERGENMYER, 2009, p. 894 apud FREUD, 1918). [30] “mimetic desire”. (JUERGENSMYER, 2009, p.895). [31] “the urge to imitate and better one‟s rival, and to desire what one‟s rival desires”. (JUERGENMYER, 2009, p. 895 apud GIRARD, 1972). [32] (...) terrorist strategies are evoked by religious activists especially in times of messianic expectation, when their acts may be justified by apocalyptic images of radical transformation of history and society. (JUERGENSMYER, 2009, p. 897 apud RAPOPORT, 1988;1991). [33] The two are linked, in that a loss of a sense of belonging leads to a feeling of powerlessness. At the same time, what has been perceived as a loss of faith in secular nationalism is experienced as a loss of agency as well as selfhood. For these reasons the assertion of traditional forms of religious identities are linked to attempts to reclaim personal and cultural power. (JUERGENSMYER, 2004b, p. 6). [34] "envisioned violent acts as part of a „master discourse‟ intended to link together the cosmos, the human body, and society.” (JUERGENSMYER, 2009, p. 904 apud LINCOLN, 1991). [35] “cosmic war”. (JUERGENSMYER, 2009, p. 904). [36] The conceptual template of cosmic war is able to embrace apparent anomalies-such as the persistent control of societies by alien forces or the sudden destruction of major buildings in a modern urban center-and provide a framework in which these anomalies make sense. The images of cosmic war do what religion in general does well: provide a deep framework of order that gives meaning to life‟s contradictions and hope that counters despair. (JUERGENSMYER, 2009, p. 904). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Editora Companhia das Letras, 2009. Disponível em <http://alma.indika.cc/wp-content/uploads/2015/04/Em-Nome-de-Deus-KarenArmstrong.pdf>. Acesso em nov. de 2016. 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P á g i n a | 24 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Algumas notas sobre as antropólogas Elizabeth Steen e Judith Shapiro que estiveram entre os Tapirapé durante o século XX Paula Grazielle Viana dos Reis PPGAn-UFMG Bolsista CNPq – doutorado sanduíche no país – PPGACV-fav-UFG. Bolsista Capes (2015-2017) www.etnologiaindigena.wordpress.com Antes de adentrar em uma discussão mais detalhada sobre as reais contribuições das antropólogas Jutidh Shapiro e Elizabeth Steen para o pensamento antropológico acerca do povo Tapirapé, é necessário dizer que isso demandaria um plano de trabalho específico. Como por exemplo, a partir de parcerias entre os estudantes da pós-graduação e da graduação, como algo parecido ao incentivo a iniciação científica voluntária respaldado pelo Pro-Reitoria de Pesquisa da UFMG, que organiza anualmente um edital para cadastramento de novos projetos. Mas sabemos que isso ainda não é possível, uma vez que apenas os docentes vinculados à instituição podem orientar trabalhos dessa natureza. A presente comunicação realizada para o grupo de trabalho 1 – Etnologias e Arqueologias Indígenas organizado pela VI Semana de Antropologia e Arqueologia – no dia 02 de outubro de 2018, vislumbrou essa questão para possíveis ações futuras até porque configura-se, apenas, como notas de pesquisas. Dito isto, já sabemos que não é nenhuma novidade, como bem demonstrou Mariza Corrêa (CORRÊA, 2003), que para o campo da antropologia, algumas para não dizer muitas contribuições das mulheres nessa ciência foram historicamente silenciadas. Sendo assim, é importante dizer, primeiro, como cheguei a essas antropólogas. Basicamente, a partir da leitura de duas etnografias clássicas feitas entre o povo Tapirapé escritas por Herbert Baldus Tapirapé: Tribo Tupí no Brasil Central (1970) e de Charles Wagley Welcome of Tears: the Tapirape indians of Central Brazil ([1977] 1988). P á g i n a | 25 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Fonte: Google Imagens. Porém, a percepção da presença e da contribuição de forma mais consistente dessas duas antropólogas não foi notada durante a pesquisa bibliográfica para escrever o plano de trabalho denominado Ontologia relacional Tapirapé: comparações etnográficas entre imagens, objetos e escritas (2014) para o processo seletivo de doutorado em antropologia social pelo PPGAn UFMG. Naquele momento, acessei as seguintes produções científicas feitas por mulheres entre o povo indígena Tapirapé: os artigos escritos por Judith Shapiro e publicados no Boletim do Museu Emílio Goeldi em 1968 e uma dissertação de mestrado em antropologia, que foi escrita por Maria Júlia de Andrade (2010) e defendida no âmbito da Universidade Federal Fluminense. No início do doutoramento busquei aprofundar o meu entendimento sobre o povo indígena Tapirapé a partir das obras de Herbert Baldus e Charles Wagley. Agora, tais notas etnográficas querem explicitar esse algo mais a partir do entrecruzamento desses trabalhos. Uma vez que, desde o início vinha percebendo o desafio posto, pois, independente do foco, qualquer desdobramento a partir dessas obras, levando também em consideração as fotografias, estão atravessadas por dimensões políticas, éticas, estéticas e epistemológicas. Não há razão para ser diferente, e que de saída digo que não tenho soluções prontas para traduzir todas essas dimensões. Por isso, preferi descrever essas dimensões tendo como foco ou ponto de partida as fotografias. Pois, se é preciso reconhecer que esses livros escritos por esses antropólogos sobre o povo Tapirapé são fundamentais por nos apresentar exaustivamente os resultados de seus trabalhos de campo entre os Tapirapé acoplados com pesquisas em arquivos e acervos com os mais variados documentos escritos, arqueológicos e iconográficos (fotografias e mapas), o que tornam esses livros não, apenas, fundamentais P á g i n a | 26 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG para pesquisa, mas também tornam tais obras clássicas; já que é possível dizer algo mais a partir delas. Herbert Baldus publicou o livro Tapirapé: Tribo Tupí no Brasil Central em 1970 e deixou expresso nas primeiras linhas grafadas do prefácio que escreveu: Este livro é para Charles Wagley, a mim ligado pelo amor aos Tapirapé. Escrevi-o para incentivar o colega a publicar tudo o que sabe sobre esses índios e o que pensa sobre eles. Wagley ficou muito mais tempo com eles do que eu, conhece-os muito melhor do que eu (BALDUS, 1970, p. 11). Por sua vez, Charles Wagley publicou Welcome of Tears: the Tapirape indians of Central Brazil apenas em 1977 como resultados de suas pesquisas entre os Tapirapé. E também expressou no prefácio desse livro a importância da obra de Herbert Baldus feita entre os Tapirapé, apesar da curta duração do trabalho de campo, que, basicamente, se restringiu há alguns meses (junho a agosto) nos anos de 1935 e 1947. Bem como, dedicou o livro em memória de Herbert Baldus. Assim sendo, meu livro é também um gesto de amor com qual cumpro um dever para com meu falecido colega e amigo. E uma tentativa para organizar minha própria compreensão da cultura Tapirapé dentro de um esquema integrado. Ao dirigir-me as generosas palavras acima citadas, Herbert Baldus estava consciente de que discordávamos com referência a certos aspectos factuais e interpretativos da cultura Tapirapé (WAGLEY, 1988, p. 16)1. O livro de Charles Wagley foi traduzido para o português por Elisabeth Mafra Cabral Nasser e com uma revisão técnica da antropóloga Berta G. Ribeiro. A publicação Lágrimas de Boas Vindas: os índios Tapirapé do Brasil Central aconteceu, então, no Brasil somente 10 anos após sua publicação em inglês. Wagley esteve entre os Tapirapé várias vezes, a primeira ida à aldeia Tampi‟itawa durou cerca de 15 meses em 1939 e 1940, depois retornou em curtas visitas que duraram alguns dias em 1953 e 1957, já em 1965 pousou por algumas semanas. Em relação às fotografias feitas com a câmera fotográfica de Charles Wagley entre os Tapirapé, há as fotos publicadas em seu livro de 1977 traduzido em 1988 e há também as fotos de arquivo que compõem a coleção Latino-americana/Charles Wagley foram digitalizadas pela Universidade da Flórida e encontram- se disponíveis para consultas na internet através do site dessa universidade. Sendo que, grande parte das fotografias publicadas nos livros de 1977 e 1988 também fazem parte dessa Coleção Latinoamericana/Charles Wagley. O artigo Os Tapirapé, Tenetehara e gurupaenses através das lentes da máquina de Charles Wagley: uma análise de conteúdo, que resultou numa pesquisa de Richard Pace (2014) sobre a coleção fotográfica de Wagley, configura-se numa primeira tentativa de pensar essa coleção. Neste sentido, Pace debruçou-se, especialmente, P á g i n a | 27 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG sobre o conteúdo dessas imagens e propôs uma classificação. Para isso, ele dimensionou a quantidade de fotos, que atualmente compõem a Coleção Latino-americana, ou ainda, guardadas sob os cuidados de parentes. Dentre essas fotos disponíveis para consulta, há 511 fotografias feitas possivelmente por Wagley entre os Tapirapé em 1939-1940, 1957, 1965. Para as fotografias tiradas nas décadas de 1930 e 1940, Wagley usou uma Rolleiflex TLR (Foto 4). Para as fotos posteriores, ele usou uma Olympus. As fotografias das décadas de 1930 e 1940 dos Tapirapé e Tenetehara são todas em preto e branco. (...) As viagens seguintes aos Tapirapé, nos anos de 1950 e 1960, também resultaram na combinação de fotografias coloridas, em preto e branco e transparências coloridas (PACE, 2014, p. 676). Em 1939 e 1940, Wagley contou com a companhia de Eduardo Galvão. Este, um jovem estudante de antropologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, pode ter sido o fotógrafo em vários momentos. Houve cooperação entre ambos durante o trabalho de campo e compartilhamento das máquinas fotográficas. Porém, parcas informações sobre possíveis fotografias feitas por Galvão durante a ida em Tampi‟itawa. Em Welcome of tears: the Tapirapé Indians of Central Brazil (1977) consta 59 figuras e todas as fotos são de Wagley, pois não há nenhuma menção a Eduardo Galvão, nem mesmo na Listagem de ilustrações e mapas do livro, apesar de mencionar o nome de David Lindroth como responsável pelos mapas. Por sua vez, a obra Lágrimas de Boasvindas: os índios Tapirapé do Brasil Central (1988) é composta de 46 figuras e nessa editoração não contou com uma listagem para elencá- las. Há outras diferenças na editoração de 1988 no que tange a organização das fotos ao longo do texto: constam menos fotos e algumas foram substituídas por outras, que não estão presentes na versão em língua inglesa. Embora a maioria das fotografias datadas presentes nessas duas obras corresponda aos anos de 1939 e 1940, ou seja, período correspondente ao primeiro trabalho de campo de Charles Wagley feito junto com Eduardo Galvão e outros dois estudantes do Museu Nacional entre os Tapirapé e não há nenhuma menção deste como o fotógrafo de alguma dessas imagens, também na versão traduzida do livro. Já, na obra de Herbert Baldus é inegável que o modo como fez suas elucubrações, lançando mão do difusionismo e da comparação para traçar sua análise (PASSADOR, 2002), levou-me a buscar algumas referências que ele mesmo apontava reiteradamente no livro Tapirapé: Tribo tupí no Brasil Central (1970). Pois, antes de publicá-lo, Baldus já tinha escrito alguns artigos para colunas em jornais (BALDUS, 1948), revistas científicas e publicações de divulgação do Arquivo Municipal e do Museu Paulista (BALDUS, 1944). A partir da leitura dessas publicações, obtive alguns dados sobre as pessoas que estiveram com ele durante o trabalho de campo ou P á g i n a | 28 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG alguma indicação de fotógrafos que estiveram entre os Tapirapé depois dele. Com esses elementos, analisei também o Índice das Fotografias (BALDUS, 1970, p. 508-510) pelo qual Baldus organizou as diversas fotos que usou para compor seu livro. Sendo que, muitas delas tratavam se de imagens feitas por diferentes fotógrafos que nem sempre foram pessoas que estiveram com ele durante o trabalho de campo. O desafio refere-se à maneira heterogênea como Herbert Baldus traçou sua composição de fotos em seu livro. Ele usou 80 fotos para compor sua obra. Destas, 37 foram registradas por ele durante o trabalho de campo (1935 e 1947), sendo que no período entre o dia 15 de junho a 10 de agosto de 1935, Baldus contou com a companhia do missionário escocês Frederico Kegel. Este tirou algumas fotos, sendo que muitas delas podem ser vistas através do Banco de Dados do Laboratório da imagem e do som em antropologia da USP e uma outra foto que Baldus publicou em seu livro (BALDUS, 1970, p.86). Esta foto posada para a câmera de Kegel, demonstra Baldus entre os Tapirapé. Em julho de 1947, o médico Haroldo Cândido de Oliveira esteve em campo com Baldus e realizou uma inspeção médica entre os Tapirapé. Cândido de Oliveira chegou a publicar o diário dessa viagem em Índios sertanejos do Araguaia: diário de viagem (OlIVEIRA, 1950) contendo algumas fotografias, sendo que seis delas foram feitas por Baldus entre os Tapirapé2. Herbert Baldus publicou em seu livro 43 fotos de diferentes fotógrafos feitas entre os Tapirapé. Ele escreveu uma breve legenda para cada foto, embora, muitas vezes, a descrição se refira à ontologia das imagens fotográficas, o que não me permitiu ter acesso ou, apenas, obter pouquíssimos elementos sobre o período e/ou quais condições foram feitas cada uma delas. Basicamente, conforme o índice de fotografias contido no livro, uma foto foi feita por Frederico Kegel, há uma foto tirada por Mario Baldi (BALDUS, 1970, p. 268), nove fotos foram realizadas por frei Pedro Secondy O.P.3, onze fotos feitas por Antonio Macedo para o Museu Paulista e vinte uma fotos registradas por Antonio Macedo para o Museu Etnográfico de Gotemburgo (Goteborg Etnografiska Museet4). P á g i n a | 29 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Tabela 1 Rede de fotógrafos presentes na publicação Tapirapé: tribo do Brasil Central de Herbert Baldus Fotógrafo N° de Fotos Herbert Baldus 37 % 46,25 Frederico Kegel 1 1,25 Mario Baldi 1 1,25 Antônio Macedo Frei Pedro Secondy Total 32 9 80 40 11,25 100 De modo geral, notei que as fotos foram usadas para demonstrar alguma reflexão sobre as relações que Baldus estabeleceu durante o trabalho de campo, que logo foram comparadas com outras pesquisas antropológicas feitas entre os Tupi ou com povos indígenas que estabeleceram relações de trocas; aqui, não está excluída a guerra, que é uma troca malsucedida conforme Lévi- Strauss (1982) ou em outros termos relações de afinidade potencial e virtual (VIVEIROS DE CASTRO, 2011) com os Tapirapé em algum momento de sua história. Herbert Baldus esteve atento às pessoas que estiveram entre os Tapirapé, antes e depois de sua ida às aldeias próximas ao rio Tapirapé. Mais do que dizer quando e como essas fotos foram tiradas, interessava-lhe mais usá-las como evidências para corroborar alguma hipótese sobre a origem de um dado traço, costume e comportamento ou de sua fusão ou dispersão. Quase nada soube sobre como ele teve acesso a essas fotos, apesar das pesquisas bibliográficas e documentais, há muitas lacunas no que tange às condições de compartilhamento realizadas por Baldus, embora algumas condições de troca foram possíveis de serem deduzidas, uma vez que ele foi diretor do Museu Paulista durante certo tempo. De fato, entre os anos de 1946 e 1953, esse antropólogo se empenhou em manter contato com etnólogos e diretores de museus europeus e norte-americanos, e estabeleceu com eles relações de intercâmbio acadêmico e institucional. Nesse período, ele trocou mais de 450 cartas com pesquisadores como, entre outros, Richard Thurnwald, do Institut für Soziologie und Ethnologie de Berlim, Franz P á g i n a | 30 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Casper, do Museum für Völkerkunde de Hamburgo, Fritz Krause, etnólogo que vivia em Leipzig, Alfred Métraux, etnólogo francês, Robert Lowie, etnólogo austríaco radicado nos Estados Unidos, Stig Ryden, diretor do Museu de Etnografia de Gotemburgo, e Ema Ness, diretora do Museu Etnográfico de Oslo. (FRANÇOZO, 2005, p. 596-597). De qualquer forma, as lacunas de tais dados colocam essas fotos numa posição de ambivalência na obra. Em outros termos, o caminho no mínimo se bifurca, se eu manter o que estou fazendo e me aproximando cada vez mais da história do que da etnologia. Até o momento, tentei reunir os fotógrafos citados por Herbert Baldus através de uma pesquisa bibliográfica e documental ao que se refere à quantidade das fotos feitas entre os Tapirapé e o estado de preservação, acesso e estudo; acionei também as imagens de arquivo tanto de Baldus e que se encontram no Banco de dados do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo (LISA- USP). Retomei as visitas aos sites onde estão hospedadas as coleções e as imagens de arquivo de Baldus, li sua etnografia e artigos e percebi essa pequena rede de fotógrafos envolta não só na etnografia de Baldus, mas também por meio das outras publicações. A título de exemplo, Baldus viajou juntamente com o fotógrafo e cineasta Harold Schultz, também funcionário do Museu Paulista, a convite do SPI para a região do Araguaia em 1947 (BALDUS, 1948, p. 306). Schultz chegou a fotografar os Tapirapé5 e pelo que tudo indica com as leituras sobre a função de Schultz, antes no SPI e depois no Museu Paulista, que não se restringia apenas em fotografar, mas também em filmar. Atualmente, essas fotografias compõem o acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Ou seja, por mais que Baldus e Schultz trabalharam juntos no Museu Paulista e viajaram até o Araguaia juntos, mas não trabalharam conjuntamente em campo, uma vez que Baldus foi ao encontro dos índios Tapirapé e Schultz viajou até os índios Karajá. Apesar de breves referências a esse episódio por Baldus em alguns artigos, na etnografia não se deteve em analisar as fotografias feitas por Schultz entre os Tapirapé depois de sua estadia. Assim, tanto Herbert Baldus (1970) quanto Charles Wagley ([1977] 1988) não publicaram nenhuma fotografia de Elizabeth Steen e Judith Shapiro. Será que elas tiraram fotos? Até o momento não consegui encontrar nenhuma resposta conclusiva. As únicas menções a Elizabeth Steen foram feitas por Charles Wagley (1988) de forma bastante pontual ao mencionar os primeiros encontros dos Tapirapé com os brancos e não-indígenas. Já em relação a Judith Shapiro, os antropólogos Baldus (1970) e Wagley ([1977] 1988) não só fazem menções a essa antropóloga como também analisam suas descrições publicadas nos dois artigos científicos Cerimonial Distribution in Tapirapé Society (1968a) e P á g i n a | 31 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Tapirapé Kinship (1968b) para o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia). Ao ampliar o escopo dessa presente pesquisa bibliográfica, Judith Shapiro também é mencionada brevemente por Eunice de Paula (2012) e Vandimar Marques (2016). Já em relação à Elizabeth Steen é possível vislumbrar algumas notas na tese de doutoramento em antropologia social intitulada Transformações Karajá. Os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos escrita por Eduardo Nunes. Tal antropólogo empreendeu uma pesquisa de arquivo no Museu do Índio com os documentos (cartas) de Darcy Siciliano Bandeira de Mello ao encarregado da Inspetoria do estado de Goyaz do SPI, Alencarliense Fernandes da Costa e nos conta que Elizabeth Steen, antropóloga estadunidense, passou pelo Posto Redempção Indígena em 1930 antes de ir aos Tapirapé nesse mesmo ano (NUNES, 2016, p. 119). Nota-se que, conforme descreve Charles Wagley (1988, p. 115), os artigos de Judith Shapiro se inscrevem em uma discussão basilar sobre o parentesco Tupi e as eventuais mudanças. Uma vez que, “a mudança do grupo doméstico multifamiliar para a família nuclear foi notada por todos os que visitaram os Tapirapé desde 1939-40. Os grupos domésticos vêm diminuindo progressivamente. A maloca tradicional habitada por cinco, seis, ou mesmo sete familiares nucleares há muito já não existe” (WAGLEY, 1988, p. 115). Tais mudanças registradas por J. Shapiro, quando esteve em em trabalho de campo em 1966 entre os Tapirapé, dizem de um contexto de deslocamento desse povo para junto ao posto indígena Heloísa Torres, situado próximo ao povo indígena Karajá, mais próximo da foz do rio Tapirapé após uma brusca e drástica de população os reduzindo menos de 100 pessoas ou em outros termos de transformações ocorridas devido a um processo de etnocídio vivenciado pelos índios Tapirapé. (…) algumas mudanças ocorreram na nomenclatura de parentesco e no seu emprego desde 1935. Isto foi estudado por Judith Shapiro durante suas visitas em 1966 e 1967 (1968a). Seus dados indicam forte tendência (que acredito ter começado antes de 1939-40) em relação aos termos de parentesco no nível da geração dos pais de um indivíduo em mudar do sistema de fusão bifurcada para o de bifurcação colateral. Assim, muitas vezes o homem não denomina a irmã da sua mãe ampi (“mãe”), porém cheu urani (“irmãzinha da minha mãe”) e não chama o irmão do seu pai de cheropu (“pai”), mas de cherowurani (“irmãozinho do meu pai”). As mulheres denominam o irmão do seu pai de cheropuí (“paizinho”) e a irmã da sua mãe de ampi ou cheu urani (“irmã da minha mãe”). Na geração abaixo de ego a terminologia da fusão bifurcada permanece imutável, mas Shapiro menciona uma forte tendência ao uso de nomes pessoais ou termos de status de idade tais como chekonomi (“meu rapazinho”) em vez de termos de parentesco. Ela observa que os termos usados pelas mulheres têm sofrido menos mudanças do que os utilizados pelos homens. Tais mudanças na terminologia de parentesco, pelo menos na primeira geração ascendente, indica ênfase no princípio linear, isto é, os termos para “mãe” e “pai” são usados somente em relação a pais P á g i n a | 32 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG específicos na linha de descendência de um indivíduo. Esta mudança, junto com o declínio da família extensão matrilocal, “está conectada com o surgimento da família nuclear como a mais estável unidade de parentesco” (SHAPIRO, 1968: 22 apud WAGLEY, 1988, p. 115). O intuito, então, de comunicar tais notas buscou, apenas, demonstrar que mesmo que explicitamente o foco do projeto de tese não fosse pensar e discutir o trabalho dessas antropólogas, não deixei de estar atenta a presença e contribuição dessas mulheres. Até porque, a discussão feita por Shapiro sobre parentesco e festas-rituais dizem dos temas da etnografia que venho realizando entre os índios Apyãwa. Todavia, há complexidades tais em enveredar por tais caminhos relacionado a história das mulheres na ciência, uma vez que, no caso delas, as referências são parcas ou mesmo difíceis de serem localizadas e acessadas desde Brasil. O que leva a pensar na feitura de redes de pesquisas e na constituição de grupo de trabalho. Notas [1] 1 So my book is also a labor of love, written to fulfill my obligation to my departed colleague and friend and to attempt to organize my own understanding of the Tapirapé culture into na integrated pattern. Herbert Baldus, when he wrote the warm dedicatory sentences cited above, was aware that disagreed on certain points of fact and interpretation about the Tapirapé (WAGLEY, 1977, p. xi). [2] Essas fotos encontram-se também no Banco de Dados do Laboratório de imagem e do som em antropologia da Universidade de São Paulo. [3] Este frei esteve presente com outros religiosos da Missão Dominicana entre os Tapirapé, que atuaram durante muitas décadas na região do Araguaia. [4] Ver site <http://collections.smvk.se/carlotta-vkm/web/object/1979502>. [5] Atualmente, tais matérias fílmicos e fotográficos encontram-se no Banco de Dados Sophia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP: <http://bdados.mae.usp.br/Acervo_web/>. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Maria Júlia Gomes. A construção da Takãra em Majtyri: etnografia de uma aldeia Tapirapé. Dissertação de mestrado em Antropologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2010. BALDUS, Herbert. Os Tapirapé, tribo tupi no Brasil Central. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, vol. XCVI. 1944. BALDUS, Herbert. Relatório da Seção de Etnologia. Revista do Museu Paulista, Nova Série, São Paulo, vol. 2, p. 305-308. 1948. P á g i n a | 33 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG BALDUS, Herbert. Tribos da Bacia do Araguaia e o Serviço de Proteção aos Índios. Revista do Museu Paulista, Nova Série, São Paulo, II, p. 137-168, 1948. BALDUS, Herbert. Aspectos da organização social tapirapé: tripartição, dualidade e graus de idade. Revista do Museu Paulista, São Paulo, vol. XVII. (82), (83). 1967 BALDUS, Herbert. Tapirapé: Tribo tupí no Brasil Central. Edusp, Companhia Editora Nacional, SP, 1970. CORRÊA, Mariza. Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2003. 278p. FRANÇOZO, Mariana. O Museu Paulista e a história da antropologia no Brasil entre 1946 e 1956. Revista de Antropologia, v. 48, n. 2, p. 585-612, 2005. LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. São Paulo: Editora Vozes, 1982. MARQUES, Vandimar. Vermelho e negro: Beleza, sentimentos e proteção entre os Tapirapé. Tese de doutorado. Goiânia: Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura visual. FAV-UFG, 2016. NUNES, Eduardo Soares. Transformações Karajá. Os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos. Tese de doutorado em antropologia social, PPGAS-UNB. Brasília, 2016. PASSADOR, Luiz Henrique. Herbert Baldus e a antropologia no Brasil. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Campinas: Unicamp. 2002. PAULA, Eunice Dias de. Eventos de fala entre os Apyãwa (Tapirapé) na perspectiva da etnossintaxe: singularidades em textos orais e escritos. Tese de doutorado em Letras. Universidade Federal de Goiás, 2012. SHAPIRO, J. Ceremonial Distribution in Tapirapé Society. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, p. 20, 1968. SHAPIRO, J. Tapirapé Kinship. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, p. 32, 1968. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 2ª ed. São Paulo: Cosac & Naify. [2002] 2011. WAGLEY, Charles. Welcome of tears: the Tapirapé Indians of Central Brazil. New York: Oxford University Press, 1977. WAGLEY, Charles. 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Com base numa série de materiais arqueológicos, documentais e bibliográficos disponíveis estuda-se esses registros pensando os contextos de contatos intertribais e interétnicos que se desenvolviam neste período e região, tendo em vista o processo contínuo de construção e reconstrução de identidades quando do encontro de diferentes alteridades. Estes encontros, fluxos, interstícios, são estudados a partir do rizoma, em que “qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 14), que permite compreendermos a etnologia, a história indígena e as tradições arqueológicas não como unidades fechadas em si, mas como sistemas de organização do conhecimento abertos, contidos de dimensões, ramificações, linhas e trajetos de diversas semióticas. O ponto de partida desta pesquisa encontra-se nos relatos do memorialista Hildebrando Pontes, em seu trabalho História de Uberaba e a civilização no Brasil central, datado de 1930. Pontes descreve o achado de urnas mortuárias em diferentes oportunidades na proximidade da cidade de Uberaba, no coração do Triângulo Mineiro. Dentre as urnas descritas, duas delas despertariam por certo a curiosidade de qualquer cientista social numa leitura atenta. Uma destas urnas foi encontrada quando da construção da chamada Ponte do Surubi, na localização do barranco direito do Rio Branco, uma ponte exaurida ainda na década de sessenta, dando lugar a construção da Usina Hidrelétrica dos Peixotos, na represa dos Peixotos, cidade de Delfinópolis/ MG. Descrevendo a urna, Pontes (1930, p. 13) afirma que “Naquelas imediações, em 1903, foi descoberta uma igaçava ou igaçaba, na qual encontraram, de mistura com ossos, uma bela cruz de ouro, com letras.”. A segunda urna descrita foi encontrada em abril de 1894, no Capão do Mico, à vista do arraial da Conceição de Araxá, hoje cidade de Araxá/ MG. Segundo Pontes, esta segunda urna: P á g i n a | 35 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG “tinha dimensões muito maiores, envolvido em couro solidamente costurado. [...] Era o cadáver de um índio velho, peito largo, rosto levemente triangular, maçãs do rosto saliente e quase imberbe. [...] Na cintura, uma tanga de penas vistosas e nos artelhos enfeites de penas de uma espécie de chocalho, que produzem sons agudos e ásperos. Dentro havia, além de um arco e trinta flechas, uma aljava de couro de cutia, uma rede e duas cuias cobertas de bordados extravagantes[...]. No fundo do vaso, duas manchas, que o autor acha, sem dúvida, sejam provenientes da comida que se derramou nas cuias, quando se deu o enterramento” [...]. Retirando o invólucro, uma verdadeira maravilha se deparou a todas as vistas pela profusão de desenhos toscos, em que o vermelho e o amarelo gritam, num colorido quente e belíssimo, colorindo a talha toda. (PONTES, 1930, p. 14). Tendo em vista as descrições, podemos pensar algumas questões que nos chamam a atenção, quais sejam: (I) A existência de uma cruz de ouro com letras junto aos ossos dentro de uma urna mortuária; e (II) A existência de ampla decoração na segunda urna. No primeiro caso, é evidente que o artefato cristão em urna indígena evidencia como as redes de contato transportam elementos materiais e representações simbólicas, pois nitidamente estão aí associados dois universos ritualísticos funerários inicialmente diferentes. No segundo caso – o da urna policrômica - sabe-se que, tradicionalmente, as tais urnas mortuárias, cerâmicas de decoração pintada ou corrugada, e ligadas a enterramentos, foram associadas aos povos indígenas da Tradição Tupiguarani. No entanto, estudos arqueológicos (FAGUNDES, 2015) e de história indígena (MANO, 2015), indicam que a região em foco (Triângulo Mineiro) foi ocupada por grupos da família linguística Jê, conhecidos na documentação do XVIII pelo termo de “Cayapó”. Pois que somos levamos a nos perguntar o porquê do achado de urnas mortuárias características da Tradição Tupiguarani, no passado e no presente, em regiões de ocupação historicamente Jê. O exercício aqui realizado não se tratou de dar respostas a cada uma dessas inquietações, mas de ter como fronte o desafio de construir quadros mais abrangentes a respeito das ocupações indígenas na presente região, que possam desvendar ou dar luz aos contextos de enterramento dessas urnas, que puderam fazer delas elementos tão curiosos do ponto de vista de suas características híbridas. Acredita-se que uma das portas para a compreensão desses achados seja a dinâmica dos contatos que se deram nessa região e período histórico (colonial), a partir do diálogo entre a Arqueologia, Etnologia e a História, tendo em vista os fluxos de diferentes grupos e alteridades, num contínuo de rupturas e continuidades que são expressão do existir e resistir no mundo. P á g i n a | 36 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Do material à vida Sabe-se que a Arqueologia no Brasil ganhou evidência a partir da criação, na década de 1960, do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), que esteve sob a coordenação de Betty Meggers e Clifford Evans. Desde o advento do programa foram realizadas inúmeras pesquisas de cunho histórico-culturalista, com a intenção de entender fenômenos de origem e dispersão dos grupos humanos pelo território, atentando para a difusão de aspectos culturais; fazendo o esforço (talvez precipitado) de conectar os registros arqueológicos encontrados à identidade étnica e cultural dos povos que puderam ter ocupado determinada região. E muito embora um programa de grande expressão, empreendeu por anos a tarefa não tão grata de adequação de sítios e vestígios materiais à constituição de “tradições” e “fases” no Brasil, deixando de lado o aspecto dinâmico desses artefatos e ocupações humanas. Dentre as classificações que culminaram nas Tradições Arqueológicas temos a diferenciação entre as Tradições Tupiguarani e Aratu-Sapucaí. A primeira tradição é definida de acordo com Brochado (1980), como cerâmicas confeccionadas pela técnica do enrolamento em espiral de cordões de barro, e apresentam um cozimento incompleto. As vasilhas podem ser (a) sem decoração, apenas alisadas, (b) apresentar decoração plástica ou (c) pintada, isto é, decoração policrômica (vermelho ou preto sobre engobo branco ou vermelho), corrugada ou escovada. Já a Tradição Aratu-Sapucaí1, é definida por (SCHMITZ et al, 1982, p. 49) como vasilhas predominantemente simples, produzidas por antiplástico mineral e formas esféricas e ovoides grandes; urnas funerárias piriformes sem decoração, lisas e vasos geminados. Apesar de representar avanços, pois é certo de que as tradições arqueológicas são modelos de organização do conhecimento, também é certo que toda classificação é, em certa medida, um modo de desumanização. Por muito tempo a classificação em tradições rejeitou aqueles artefatos que não se encaixavam nos modelos, deixando os elementos “intrusos”, como se convencionou chamar, relegados a segundo plano. Com base nesse Programa de Pesquisas, e como acima mencionado, os estudos arqueológicos empreendidos na região no Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás passaram a identificar a área como ocupada no passado por povos pertencentes à tradição Aratu-Sapucaí. Em 1980, Márcia Angelina Alves dá início ao “Projeto Quebra Anzol”, realizando pesquisas arqueológicas nas regiões do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro, com prospecções e escavações no vale do Paranaíba. As primeiras pesquisas se desenvolveram no Município de Perdizes, Vale do P á g i n a | 37 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Quebra Anzol, por ter sido a primeira cidade a coletar vestígios materiais de terrenos, como uma urna funerária, tigelas, potes, raspadores etc. (ALVES, 1992). Logo em seguida, com o crescimento desse projeto, vários sítios passaram por processos de prospecção e escavação, como o sítio Silvia Serrote, no Município de Guimarânia; o sítio Rezende, nos vales do Piedade e Paranaíba – divisa com o Estado de Goiás; o sítio Inhazinha, localizado nas jazidas arqueológicas no Município de Perdizes; o sítio Menezes, na Fazenda São Francisco do Borja, também em Perdizes; e o sítio Rodrigues Furtado, na Fazendo Morro da Mesa (ALVES, 1992). Mais tarde, essa mesma equipe desenvolveu o “Projeto Turvo”, localizado no Município de Monte Alto/SP, onde houve a localização e reconhecimento de áreas arqueológicas, sendo realizados resgates de sítios arqueológicos como o de Água Limpa (RASTEIRO, 2015, p. 56). Estes estudos identificaram estes sítios arqueológicos como provenientes de comunidades de horticultores-ceramistas, nômades, vivendo da caça, da coleta e pesca, tendo sua cultura material voltada a produção de “uma cerâmica lisa, utilitária e funerária”, além de viverem em “cabanas ovaladas que formavam verdadeiras aldeias” (ALVES, 1992, p. 37). Marcelo Fagundes, em seus estudos a respeito da arqueologia no Triângulo mineiro também indica características semelhantes a respeito da cultura material da região, sendo “cerâmica representada por cacos bem alisados em sua maioria, geralmente grossos (...) de vasilhas grandes, provavelmente urnas, até vasilhames bem pequenos.” (FAGUNDES, 2015, p. 141). Assim como indica João Cabral de Madeiros, em sua pesquisa a respeito dos sítios Inhazinha e Rodrigues Furtado, no Município de Perdizes, em Minas Gerais, Diante do exposto, pode-se concluir, que de acordo com os dados corroborados pela literatura e por meio dos estudos técnicos, que as características da cultura material, cerâmica e lítica, dos sítios Inhazinha e Rodrigues Furtado são compatíveis com o que já foi descrito para as populações pretéritas filiadas à tradição Aratú-Sapucaí. (MEDEIROS, 2007, p. 226). Apesar dessa aparente unanimidade, uma série de relatos e pesquisas indicam, num mesmo sítio arqueológico, a ocorrência de materiais que possuem características diferentes daquelas apontadas pela “tradição de base”. Seriam então “sítios arqueológicos complexos”, num entendimento dos sítios arqueológicos com artefatos plurais, tais como os achados das urnas descritas por Hildebrando Pontes (1930) para o Triângulo Mineiro. Exemplos que servem de motivo para pensar não a intrusão, mas a imbricação de elementos de diferentes culturas que circulavam em redes por uma determinada região, cuja expressão, na região em foco, pode ser ilustrada a partir da história dos contatos dos grupos Jê meridionais com seus diferentes outros. P á g i n a | 38 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Embora não se possa propor uma associação direta entre as tradições arqueológicas e os grupos historicamente mencionados nas fontes, a escavação recente nessa mesma região de sítios agricultores ceramistas históricos, datados entre a metade do século XVIII e meados do XIX, também foram identificados como Aratu-Sapucaí (Magalhães, 2015); assim como a mencionada “cruz de ouro com letras” na urna indígena descrita por Pontes (1930) que é indiscutivelmente do período histórico, tornam possível a associação, no mesmo período (colonial) e área, com povos indígenas denominados nas fontes por “Cayapó”. O termo “Gentio Cayapó” aparece na documentação histórica em 1723, quando o sertanista Antônio Pires de Campos entra em contato com grupos da bacia do Paranaíba, no atual sul de Goiás. Esse sertanista escreve que "Este gentio é de aldêas, e povoam muita terra por ser mui'a gente, cada aldêa com seu cacique..." (CAMPOS, 1976, p. 181). Embora muito encontrado posteriormente em relatos de viajantes, cartas, descrições, essa nomenclatura não nos esclarece de fato quem eram esses povos, já que o termo é de origem exógena, Tupi, e significa “como macaco” (TURNER, 1992). Ao que parece, “o termo “Cayapó” é um apelativo aplicado por um olhar estrangeiro a uma série de grupos provavelmente associados aos Jê meridionais.” (MANO, 2015, p. 520). Por isso, devemos nos atentar que, assim como as denominações arqueológicas das tradições, as denominações que aparecem nos documentos históricos, como “Cayapó”, e os modelos etnológicos são generalizações que escondem uma realidade muito mais complexa. Se a realidade é múltipla, os modelos fechados não comportam a realidade, mas parte dela. E como indicam Deleuze e Guattari (2011), não basta dizer o múltiplo, já que “nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 21). Nesse sentido, é necessário encontrar o múltiplo nas dimensões de que dispomos, seja a partir dos materiais, dos documentos ou das dinâmicas culturais, e fazê-las serem vistas, ouvidas, pensadas e pronunciadas. Sítios arqueológicos encontrados e estudados na presente região demonstram variabilidade material, vestígios de diferentes tradições em um mesmo local, “fazendo com que pesquisadores (ROBRAHN-GONZÁLES, 2000; AFONSO, 2005; MANO, 2006) começassem inclusive a “iniciar um debate ao tratar o estado de São Paulo como terra de fronteiras”. (RASTEIRO, 2015, p. 55). E não apenas em São Paulo, mas na área que abrange todo o Planalto Meridional. A arqueóloga Camila Moraes em pesquisas realizadas no limite do estado de São Paulo e Minas Gerais, indica que no Sítio Água Vermelha 2, não obstante as cerâmicas encontradas serem de formas duplas e sem decoração, características relacionadas à Tradição Aratú-Sapucaí, P á g i n a | 39 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Segundo Robrahn-Gonzalez et alii (1998), a ocupação do sítio Água Vermelha 2 estaria relacionada ao processo de diversificação cultural ocorrido na região centrooeste, entre os séculos IX e X. Algumas características da cerâmica, como uso do caco moído como antiplástico e as formas compostas, seriam associadas à influência Tupi e o uso de cariapé aos Grupos Uru, indicando cerâmicas de origens variadas como encontradas no Brasil Central. (AFONSO & MORAES, 2005/2006, p. 61). Estas observações ficam claras nas pesquisas de Pereira Jr. sobre os dados que ele pôde coletar em estudos realizados na região de Franca/SP, quando assinala que, Devemos fazer notar, entretanto, que em dados casos, entre restos abundantes dessa cerâmica preciosa tida como de origem tupi-guarani, ocorre um ou outro fragmento de material que, pela sua apresentação sugere origem diferente, enquanto que em locais ocorre o contrário, ou seja, o encontro dessa cerâmica melhor entre os restos de outra mais grosseira acentuadamente diversa. (PEREIRA JR, 1957, p. 134; apud RASTEIRO, 2015, p. 66). O mesmo ocorre no relato exposto acima do memorialista Hildebrando Pontes, do encontro de uma urna na cidade de Araxá, semelhante às descritas entre os Tupinambá, com características da Tradição Tupiguarani, isto é, cerâmica de decoração e ligada a enterramentos, em área de ocupação historicamente Jê. Os relatos de Hildebrando mostram não apenas os contatos intertribais, como também interétnicos, mostrando como no período colonial os agentes históricos são diversos e as trocas são transculturais. Essa variabilidade material encontrada nestes sítios nos indica fluxos de povos no período pré-colonial e colonial que se deram na região do Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás, indicando ocupações e reocupações dessa região, assim como a clara situação de contato entre diferentes alteridades, que permitiram tais evidências nos vestígios materiais encontrados. Tais indícios já apontam para a questão de que os povos indígenas no Brasil jamais foram imóveis, relegados a ocupação de apenas uma área por toda a sua existência, mas pelo contrário, sempre estiveram em movimento, ocupando diferentes espaços, às vezes até concomitantemente. Um exemplo etnográfico talvez possa ser situado no caso dos povos Tupi2, que não viviam apenas no litoral brasileiro, mas ocupavam também trechos ao longo do curso do Amazonas, interrompidos por outros trechos ocupados por falantes de línguas Aruak, Karib, Tukano e outras menores. (BROCHADO, 1989, p. 66). As comunidades falantes Tupi se estendiam, de forma interrompida, desde a desembocadura do Amazonas, até o Atlântico, inclusive ocupando terras baixas “rodeando os planaltos brasileiros habitados por falantes de línguas do Tronco Macro-Jê.” (BROCHADO, 1989, p. 66-67). O que poderia ter permitido uma série de contatos interétnicos, tendo como pressuposto a transmissão e predação de elementos culturais entre os diferentes povos. P á g i n a | 40 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Devemos ter por certo que, seja no período histórico ou pré-colonial, os grupos humanos sempre se constituíram pelos inúmeros contatos. No presente, como no passado, uma série de rupturas e continuidades se deram: agenciamentos, alianças, guerras, vivências, predações, ressignificações, de modo que as populações estão constantemente em processo de produção de suas vidas, passando por contínuos momentos de transformação. O que parece importar, não é a imagem cristalizada que se atribui a essas populações indígenas e à sua expressão material, mas sim o processo, a vida, o devir, o acontecimento do processo daquele material, que não tem um fim. Em face das contribuições de Tim Ingold (2015) para a Arqueologia, em específico, e para as Ciências Humanas, em geral, devemos compreender que ser, não é estar em um lugar, mas estar ao longo de caminhos. Portanto, devemos ser capazes de nos utilizarmos das Tradições Arqueológicas não enquanto encerramento, mas enquanto movimento de abertura, enquanto ponto de partida de um processo de expansão do conhecimento muito maior, que nos leva a dinâmica das relações humana e animal. Não pensando somente o material, mas a vida. Segundo Ingold, “se nossa preocupação é habitar este mundo ou estudá-lo, (...) a nossa tarefa não é fazer o balanço de seu conteúdo, mas seguir o que está acontecendo, rastreando as múltiplas trilhas do devir, aonde quer que elas conduzam.” (INGOLD, 2015, p. 47). Para traçar essas trilhas, não devemos nos ater apenas ao material, mas ir de encontro aos itinerários e dinâmicas humanas que permitiram a produção e significação dos elementos materiais. A História e Etnologia trazem suas contribuições aos aspectos imateriais, ao englobar na teia de significados as alteridades, identidades, humanidades dos povos que estiveram em contato. As trilhas do devir: da história à cultura Os relatos descritivos e os documentos históricos produzidos durante o período colonial posicionaram os indígenas em relação aos agentes coloniais, criando tensões “entre as políticas que buscavam ou assimilar ou excluir as populações indígenas” e “acirrava-se a disputa entre aqueles que defendiam a “civilização e catequese” e aqueles “parciais ao afastamento ou mesmo extermínio das populações nativas.” (MONTEIRO, 2001, p. 29). Daí nasceram as respectivas visões da aculturação e do extermínio dos povos indígenas. Fadados ao movimento de uma força primeira que lhe é exterior, a história indígena foi compreendida como linear ou, às vezes no simétrico oposto da aculturação, como a resistência de uma história cíclica. P á g i n a | 41 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Por esta realidade, sabe-se hoje que antes mesmo de se estudar, pesquisar e escrever sobre a história indígena no Brasil, “é preciso antes rever a tendência seguida por sucessivas gerações de historiadores e antropólogos que buscaram isolar, essencializar e congelar as populações indígenas em etnias fixas. [...]” (MONTEIRO, 2001, p. 24). Se a história tem sido opaca, ofuscada, desleal, segundo Carlo Ginzburg (1989, p. 177) “existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la”, buscando-se a construção de uma história fora de essencialismos, binarismos, e imagens folclóricas, mas pelo contrário, uma história em que os indígenas “apareçam como sujeitos históricos que agem politicamente a partir de interesses próprios, continuamente transformados nas dinâmicas de suas relações sociais.” (ALMEIDA, 2011, p. 33 apud FERREIRA FILHO, 2015 p. 12). Tendo em vista estes cuidados, adentramos as trilhas do devir que constituíram a história indígena do Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás, que permitiram o contato de uma série de agentes em processos dinâmicos de guerras, alianças, trocas, consumos, que possibilitaram a produção de vestígios materiais com características híbridas, e sítios arqueológicos complexos. Segundo Robert Mori (2015, p. 13) o Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba era conhecido até meados do século XIX como “Sertão da Farinha Podre”, quando as bandeiras paulistas avançavam em busca de riquezas. Ao longo da história outros nomes foram dados à região, como “Sertão do Gentio Cayapó”³, sendo a região do Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba na época correspondentes ao sul da Capitania de Goiás. No período colonial, os Kayapó, associados aos Jê Meridionais, parecem ter ocupado um extenso território desde o norte de São Paulo até as imediações do Distrito Federal, e no sentido leste – oeste, do atual Triângulo Mineiro até ao norte do Mato Grosso do Sul. (MANO, 2015, p. 521). Entre esses grupos deviam existir hordas de “Cayapó” meridionais, dos quais os Panará são remanescentes (GIRALDIN, 1997), mas é possível assinalar a existência de outros povos indígenas dos Jê Meridionais e também não Jês que estavam nos limites desse território, tais como os Payaguá, os Xacriabá, os Xavante, os Avá-Canoeiro e os Bororo. (GIRALDIN, 1997, p. 57). Com base nisso, Robert Mori (2015, p. 25) propõe que a existência de outras etnias indígenas na mesma área de ocupação dos Jê Meridionais – “Cayapó” pode ter favorecido que outros grupos indígenas que também tenham empreendido ataques, conflitos e mortes fossem associados à generalização do termo “gentio Cayapó”. O contato dos Jê Meridionais com os não-índios teve início já nas primeiras décadas do século XVII. Segundo Vasconcelos (2013), a partir de documentos históricos, têm-se evidências de que por um período esse contato foi pacífico e de que as aldeias indígenas P á g i n a | 42 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG serviram de ponto de parada e reabastecimento das bandeiras paulistas que adentravam o Brasil Central. Não tardou, porém, para que essa realidade começasse a mudar e as guerras passassem a ser impetradas por ambos os lados. Do lado não índio, a expansão da economia mineradora assinalava o motivo fundamental do bandeirismo: a necessidade crônica de mãode-obra indígena para a manutenção da agricultura paulista. (MONTEIRO, 1994, p. 57) e a limpeza ou desinfestação dos caminhos que levavam às minas. Do lado indígena, e como já foi proposto (MANO, 2011; 2012), a guerra parece ter sido parte do regime relacional e simbólico de relação desses grupos Jê com algumas de suas alteridades, num claro processo de predação exterior para produção interior. Do encontro dessas duas lógicas decorreu uma das mais longas e sangrentas guerras entre índios e não índios na América colonial portuguesa. Houveram diferentes formas de combater o “gentio Cayapó”. A primeira “solução” encontrada, vinda da Câmara de São Paulo, “foi a proposta de criação de duas campanhas pagas e lideradas por um comandante”. (MORI, 2015, p. 32) que pouco efeito surtiu. Nesse contexto o Conde de Sarzedas e Dom Luís Mascarenhas, autorizam qualquer morador da região a realizar combates contra esses grupos e “dar por captivos todos os que apanharem” (MASCARENHAS, 1740 apud MORI, 2015, p. 33). A solução seguinte foi a construção de aldeamentos na região do atual Triângulo Mineiro, entre o rio Grande e Paranaíba, para receber índios de diferentes etnias (Bororo, Xakriabá, Pareci, Javaé, Kurumaré), administrados por Antônio Pires de Campos e autorizados a fazer guerra ofensiva ao “gentio Cayapó”. Apesar de todas essas tentativas, a resistência desses grupos foi uma constante e seus ataques perpetuaram-se mesmo após o aldeamento em Maria I. Esse fato deve ser explicado não apenas pelo desejo de sobrevivência, mas também ao desejo de predar o outro ou, como dissemos acima, porque a guerra foi parte do regime relacional e simbólico desses grupos com a alteridade (MANO, 2011; 2012) que implicou, entre outros, no saque de bens simbólicos e materiais de seus outros para alimentar a sua própria cultura. E o modo mais eficaz de se predar a alteridade para “Gentio Cayapó” foi a guerra. Seu poderio bélico foi descrito em diversas ocasiões, e desde a primeira descrição desses grupos feita por Antônio Pires de Campos: As armas de que usam são arcos muito grandes e flechas muito compridas e grossas, e também usam muito de garrotes, que são de páu de quatro ou cinco palmos com uma grande cabeça bem feita, e tirada, com os quais fazem um tiro em grande distância, e tão certo que nunca erram a cabeça; e é a arma de que mais se fiam, e se prezam muito dela. (CAMPOS, 1976, p. 182). P á g i n a | 43 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG De acordo com Giraldin (2001) e Mano (2011) a maior parte dos relatos de ataques dos Jê Meridionais apontavam um mesmo padrão: “matavam todos, pilhavam bens que podiam carregar e queimavam as casas.” (GIRALDIN, 2001, p. 63). Por essa estrutura de ataques contra os não índios, a guerra servia para realizar a predação das partes objetiváveis do outro, do “inimigo”, numa destruição de corpos “inimigo” e apropriação de seus bens para a produção de corpos em seu interior. Por isso, a destruição do exterior implica na construção de pessoas no interior; ocorrendo, assim, como já propôs Carlos Fausto (2001) para os Tupi, na predação canibal, o consumo produtivo, quando da incorporação do “outro” para a construção do “nós”. Por isso, assim como para os grupos Tupi existe abertura ou uma força centrífuga, os povos Jê não são fechados ou centrípetos, mas estão constantemente se movimento entre os dois pólos, pois ora se abrem para o exterior, predando o outro, o inimigo, tomando-lhe partes; ora se fecham, ressignificando aquilo que foi tomado como ser constitutivo da sua própria cultura. Ao que se pode constatar, as sociedades indígenas vivem num processo histórico contínuo que opera num misto de permanência e mudança, estrutura e evento. Ideia esta proposta por Marshall Sahlins (1987), em Ilhas de História, quando ele afirma que a história é culturalmente ordenada, tanto quanto a cultura é historicamente ordenada. Partindo deste pressuposto, ele indica que: A História é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, [...] esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. [...] a cultura é historicamente reproduzida na ação. [...] as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhe são atribuídos [...]. É nestes termos que a cultura é alterada historicamente na ação (SAHLINS, 1987, p. 7). Marshall Sahlins compreende o misto entre estrutura e evento, ou seja, a junção entre estrutura e práxis histórica, pois os indivíduos agem e movimentam a história de acordo com seus interesses e circunstâncias. E mesmo que a ação seja realizada a partir de pressupostos culturais daquele indivíduo, a práxis, a ação humana será capaz de movimentar essa estrutura, as redefinindo constantemente, numa atualização, já que a transformação de uma cultura é também modo de sua reprodução. Podemos perceber tanto pela mitologia, quanto pela história do contato do século XVIII que desde os tempos míticos até o presente, as inovações nos modos de vida dos Jê Meridionais são, em grande parte, fruto de aquisições feitas em terras alheias, através de outros grupos humanos. Percebemos essa predação ontológica a partir do mito do gavião-real gigante, que permeia a cosmologia dos Jê Meridionais. Nesse mito, são apresentadas as personagens dos irmãos Ngôkon-Kry e Kukryt-Twiri que tiveram papel importante na P á g i n a | 44 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG formação da nação desse povo. O gavião foi tido como culpado pela morte de sua avó e tiveram que travar uma luta contra esse grande gavião procurando vingança. Um dos irmãos, Ngôkon-Kry foi lá fora, flechou-o e furou-o com sua lança. Depois bateu na cabeça dele com sua borduna. [...] arrancou uma pena branca do gavião-real e colocou-a na cabeça. Pintou-se de preto. [...] Os rapazes (mebengàdjyre) arrancaram suas penas e jogaram-nas para cima dizendo: “Virem aves!” Transformando-se em mutum. É por isso que, hoje em dia, há espécies diferentes de aves. (LEA, 2012, p. 34). Nesse mito percebemos a tomada de bens e riquezas materiais e imateriais. Adquiriram os adornos plumários, mas não só, através dessa batalha conquistaram a criação de várias aves, assim como adquiriram a glória, o prestígio. Quando os Jê Meridionais entram em contato com os não-índios a partir do século XVIII, da mesma forma que predaram o “outro” no tempo mítico, eles predam esses não-índios, pilhando objetos, adornos, e bens simbólicos. Segundo César Gordon, Seja como for, é possível dizer que no caso mebêngôkre, diferentemente do caso tupi, a morte de um inimigo tem menor produtividade que aquilo que fenomenologicamente aparece-nos como um „roubo‟. O signo da apropriação mebêngôkre não é o canibalismo – sabemos que eles não são canibais, não comem o inimigo –, o signo é uma espécie de captura. (GORDON, 2006, p. 99). Assim, temos que “Trata-se menos de capturar o corpo (ou partes do corpo) e o espírito do inimigo do que sua cultura (imaterial e material), ou sua riqueza, sua beleza, enfim, suas propriedades não imediatamente corpóreas [...]” (GORDON, 2006, p. 97 apud JUNQUEIRA, 2017, p. 71). Portanto, os Jê Meridionais “têm como motivação da guerra predar ontologicamente a cultura do outro e adquirir objetos desta outra cultura, sendo, portanto, a guerra uma forma de conservação do contato com o mundo exterior.” (JUNQUEIRA, 2014, p. 20). Esta predação da alteridade nos confere certa possibilidade de afirmar que a cruz de ouro encontrada junto aos ossos dentro de uma urna mortuária, nos relatos de Hildebrando Pontes expostos acima, se devem a essa predação, à tomada de bens objetiváveis, como poderia ter sido a cruz, que incorporada e ressignificada, passou a constituir parte do universo material e simbólico daquele indivíduo enterrado na urna. Não obstante o contato com os não-índios, pelo seu modo de ser e predar, os Jê meridionais também estabeleceram redes de contato com diferentes outros. Segundo Marcel Mano (2015), a área que compreende o Triângulo Mineiro, oeste de Minas e sul de Goiás foi palco de uma complexa rede de contatos entre diferentes agentes históricos. Desde a década de 1730, Uma itinerância da sociedade colonial em direção aos sertões colocou em movimento sujeitos de diferentes estamentos sociais: homens livres pobres, P á g i n a | 45 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG mestiços, negros forros, foragidos, garimpeiros, roceiros, índios escravos, agentes do poder colonial etc. (Amantino, 2001; Barbosa, 1971; Souza, 2004) se locomoviam desde o oeste de Minas cruzando o alto rio São Francisco e a Serra da Canastra em direção ao atual Triângulo Mineiro e sul de Goiás. Mas ao se porem em marcha, esses diferentes sujeitos entraram ainda em contato com diferentes outros. (MANO, 2015, p. 512). Os Jê Meridionais tiveram sua imagem construída pelos não-índios, como sendo aqueles “bravios”, “selvagens”, a que “tudo levam de traição e rapina” (CAMPOS, 1976 apud MANO, 2015, p. 519). Mas ao contrário do que se poderia supor, por mais que a guerra fosse constitutiva do próprio modo de ser desses povos, eles fizeram alianças e movimentaram seus interesses de acordo com os diferentes agentes históricos que entraram em contato. À exemplo da aliança realizada com os negros fugidos, quando houveram “trocas mútuas, ações conjuntas e alianças entre os “gentios” e os “calhambolas”4 (MANO, 2015, p. 524). Nesse sentido, índios e negros mantiveram intricadas relações no século XVIII, e cabe ressaltar, de acordo com Daniela Santos Alves, que “a continuidade e existência dos quilombos por longos períodos estão intimamente relacionadas com as ajudas de agentes externos e internos” (GUIMARÃES, 1996; AMANTINO, 2001; RAMOS, 1996 apud ALVES, 2017, p. 47). Ao que tudo indica, alianças podem ter se realizado devido aos semelhantes modos de tratamento que a Coroa Portuguesa mantinha com os índios e negros fugidos, de intenso combate e violências de todas as formas, assim como por sua reação de resistência e luta contra o controle cruel dos portugueses. Contatos, trocas, agências, dinâmicas que nos permitem pensar de que forma poderia se dar a construção e (re)construção de identidade étnica dos Jê Meridionais no período colonial, por estarem em contato com diferentes agentes, e passarem por processos contínuos de autodeterminação diante de diferentes alteridades. A construção da identidade étnica no entre-lugar A crença de que a cultura é estática, essencializada, imutável, foi dada enquanto mito e enquanto farsa. Enquanto mito pois ainda é presente nas leituras de mundo de senso comum que o indígena, para ser indígena, deve ser puro, aquele relegado a seu passado, vivendo em matas, desprovidos de roupas, com a mesma cosmologia de sempre e sem se utilizar qualquer máquina ou falar a língua portuguesa. Enquanto farsa porque essa crença não se constitui ao léu, mas é revestida de propósitos políticos que buscam deslegitimar os povos indígenas enquanto tais, destituí-los de sua identidade, de sua pertença a si mesmos, para que assim se lhes possa sacar a terra, atributo tão importante na constituição do ser indígena. P á g i n a | 46 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Na contramão desta crença tão bem dissimulada por agentes do poder, se encontra a acertada constatação de que a cultura é processo dinâmico, é movimento, é transformação. Manuela Carneiro da Cunha em seus extensos estudos sobre a etnicidade afirma categoricamente que “a cultura não é algo dado, posto, algo dilapidável também, mas sim algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados; e é preciso perceber a dinâmica, a produção cultural.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 239). Assim temos por certo de que o próprio existir no mundo, e o existir em relação à alteridade, nos tornam seres em constante processo de mutação. Nenhum povo é fixo, mas se movimenta, encontrando em todos os lugares aonde chega os seus contrários, permitindo com que o ato de afirmar e o de incorporar se confunda num só ethos. Tendo em vista a cultura enquanto constructo inacabado, poderíamos conceber a identidade da mesma forma. Se num momento se aguçam os elementos e representações que são particulares de um grupo frente a alteridade, numa reivindicação política ou para se elucidar a realidade deste grupo social; num outro momento o movimento é de abertura, de contato, de predação desta alteridade e de ressignificação e re (construção) desta identidade. Posto que a identidade é atributo simbólico, e enquanto tal está disposta às intrincadas redes de significação que os homens produzem e são parte. Pois que, a identidade só poderia se constituir e (re) constituir de forma relacional, se formando em pontos de encontro, entre séries de variáveis, dentro de um cambiável sistema interétnico. Considerando a identidade enquanto relacional, Friedrik Barth foi um dos precursores em direcionar os estudos sobre a identidade não mais para dentro dos grupos étnicos, mas para a fronteira, baseando-se na premissa de que toda cultura é descontínua, isto é, dinâmica. Isto indica que - contrariando a visão equivocada de que é a distância e o isolamento de um grupo social que mantém a diversidade cultural - “as fronteiras étnicas permanecem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam.” (BARTH, 1997, p. 26). As categorias étnicas são mantidas apesar e em detrimento dos contatos estabelecidos, em movimentos de exclusão e incorporação, em transformações nas formas de pertencimento ao longo dos fluxos da história, que desde a origem são sempre diversificados. A fronteira que nos interessa é a social, e sua manutenção é dada quando do constante contato entre grupos com diferentes culturas. O que mantém os grupos étnicos é a evidência dos traços marcantes de sua cultura em detrimento da cultura do outro, mas isso não quer dizer que não haja troca, interação, incorporação a partir do contato. Nas fronteiras, se por um lado os grupos se certificam da garantia de certas persistências, por outro permitem e são parte da incorporação de códigos e valores externos a serem ressignificados. P á g i n a | 47 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Nesse sentido, a continuidade de uma etnia é mantida na medida em que um grupo, a partir de traços culturais internos e externos, dentro de um repertório cultural disponível, simbolicamente se autodesigna enquanto tal, delimitando suas fronteiras de diferenciação, não obstante, estabelecendo contatos que lhes trarão experiências de renovação de seus traços culturais. Segundo Paula Monteiro, isto nos permite compreender que a identidade não é dada em termos de uma natureza essencial a cada grupo social, mas é na verdade um “jogo simbólico no qual a eficácia depende do manejo competente de elementos culturais.” (MONTERO, 1997 p. 63). Manuela Carneiro da Cunha (2009) já indicava que as comunidades étnicas são formas de organização política muito eficientes para resistência e conquista de espaços. E nos indica que: A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste [...]. A cultura tende ao mesmo tempo a acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 237). Tendo em vista estas constatações, poderíamos certamente afirmar que a identidade dos Jê Meridionais jamais poderia ser dada em termos de uma unidade, na medida em que diante de diferentes agentes na história, esses povos acionaram diferentes identidades, num jogo consciente de escolhas de diferentes formas de lidar com o outro. Segundo Marcel Mano, “várias diferenças ajudaram a construir e a reconstruir a identidade desses índios no período em foco. Ao invés de uma identidade única e inequívoca, parte dos dados sugere, ao contrário disso, a constituição de uma complexa e intricada rede de representações e ações desses índios sobre seus diferentes outros.” (MANO, 2015, p. 524). Home Bhabha (1998) em O local da cultura, nos indica que para entendermos essas complexas redes de representações e ações de diferentes agentes históricos, não devemos focar nossos pensamentos nos polos: passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão, puro e impuro, tradição e modernidade, primitivo e civilizado, já que estes são modelos fixos e essencializados que não dão conta da realidade empírica. Ele indica o sujeito colonial como sendo aquele que se transforma a partir da incerteza que os contatos com os diferentes outros vão gerar. Nas palavras de Bhabha, o sujeito se torna “o menos que um duplo”, pois ele não perde a sua cultura, mas também não deixa de absorver traços da cultura do outro, possuindo elementos culturais diversos em detrimento de seus contatos. É um ser, P á g i n a | 48 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG ou um povo, que é representação do outro através da mímica. Essa mímica revela este ser no “entre-lugar”, na fronteira, onde se dão os contatos e as transformações e (re) construções das identidades. Tendo em vista a história indígena na região do Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás a partir dos indícios, vestígios, pistas sobre os contato interétnicos e intertribais que se deram, sobretudo na relação dos Jê Meridionais com diferentes agentes históricos no período colonial, podemos afirmar, com base nas teorias pós-coloniais de Bhabha, que a identidade desse povo é, como ele mesmo expressa, uma “fixidez deslizante”. Isto é, há algo de fixo em sua identidade que sempre existiu de forma mais consistente; mas por outro lado essa identidade sofre contínuos processos de construção e desconstrução, que abre as possibilidades de deslizamento constantes em vias de aparecimento de um novo ser, que não deixa de ser o que é, muito embora seja um outro mais complexo. Nesse sentido, temos por certo que devemos buscar as respostas para construção da identidade étnica nas figuras complexas híbridas, pois é justamente nos interstícios entre esses polos que nascem as experiências intersubjetivas que nos permitem uma melhor compreensão das complexas realidades existentes, como a dos Jê Meridionais, que ora mantiveram sua relação de contato com o outro pela guerra, ora pelo comércio, ora pela guerra em comum, ora pelas alianças, mas sempre manipulando a história a seu favor, na medida em que são sujeitos históricos que constroem suas próprias historicidades. Um pensamento que não apreenda o movimento, a mutação, a transformação de todas as coisas não entende o múltiplo. Ao lado de cada polo dicotômico, coexistem milhares de interstícios que levam de um a outro. Uma realidade que é múltipla, plural, transcultural, necessita de uma metodologia que seja capaz de captar esse múltiplo. Não é pela raiz da árvore do conhecimento que se melhor apreende o real, nem pelos polos binários. Segundo Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, é pelo rizoma. Num rizoma, há princípios de conexão que fazem com que qualquer ponto possa ser conectado a outro, e deve sê-lo. Sem raiz, começo ou fim, os pontos não se fixam em linhagens, hierarquias, cadeias biológicas, políticas, e econômicas, mas permeiam uma gama de significantes e significados ao entorno de um signo. O rizoma não possui raiz, não privilegia dimensões, mas age justamente no descentramento do conhecimento, não se fechando em si mesmo, mas se abrindo a expor as múltiplas dimensões da realidade, seja aqui, na Arqueologia, na História, na Etnologia. Assim como na realidade, não há no rizoma unidade central, núcleo, raiz. Há a multiplicidade de dimensões, que crescem, recuam, se encontram, se desencontram, voltam a P á g i n a | 49 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG se conectar, e se desenvolvem, sem regras a qual se submeter, numa conexão (quase) infinita de possibilidades. E “essas multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras”. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 25). A realidade é rizoma na medida em que seus múltiplos ramos se desencontram, se rompem, mas podem, a qualquer momento, se reencontrar, reconstituindo um sujeito, reestruturando um significado, ressignificando um signo. Dessa forma, poderemos amplificar o olhar, permitindo alcançar o múltiplo. Na Arqueologia, não se poderá mais olhar apenas para os objetos, a fim de classificá-los em tradições, mas para as dinâmicas e processos intrínsecos àquele objeto que permitiram a sua construção, pensar o sujeito que o produziu, o momento em que se produziu, porque se produziu. Na História, poderemos enxergar processos rizomáticos, e não mais lineares, circulares, espiralados, pois os fluxos nos mostram que não há uma história universal do desenvolvimento humano, mas a história particular de inúmeras sociedades que estão em contato umas com as outras. Em Etnologia, poderemos problematizar os modelos etnológicos de classificação dos povos indígenas, pois não há etnia que não tenha se constituído pela alteridade, sendo por si só um emaranhado profuso da vivência dos seus contatos. Por fim, ainda compreender que a separação das áreas do saber não nos traz benefício, mas a cegueira, e que o enxergar depende muito mais da capacidade em articular diferentes saberes, do que de uma competência especializada. Considerações finais Partindo dos relatos de achados de urnas mortuárias na presente região se propôs dar vida às urnas que não tínhamos em mãos para analisar. A partir dos questionamentos iniciais se pôde levantar questões a respeito dos contextos de enterramento destas urnas, pensando os contatos intertribais e interétnicos que se deram no período colonial. Demonstrando, primeiro, que os sítios complexos são decorrentes de uma série de contatos que se estabeleceram ao longo da história, e que talvez o exercício de encaixar sítios e artefatos em tradições arqueológicas seja um exercício ingrato, na medida em que se desconsideram as dinâmicas dos povos que produziram aquele material, tendo por certo de que os elementos tidos por tanto tempo como “intrusos” são tão parte constitutiva dos sítios quanto qualquer outro. Quanto a história indígena da região do Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás, a partir de uma busca pelos indícios, sinais, evidências contidos nos documentos históricos, se mostrou também complexa, repleta de contatos que se estabeleceram sobretudo P á g i n a | 50 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG no período colonial e que permitiram a compreensão de que a história jamais poderia ser linear, mas é melhor dada em termos de um rizoma, isto é, sem raiz, mas repleta de platôs, dimensões, movimentos, encontros, rupturas, que são parte constitutiva do ser e existir desses povos. Por fim, o caminho traçado foi o de partir do material para chegar à etnicidade, isto é, pensar as possibilidades do estudo simbólico da materialidade da cultura dos grupos que estiveram em contato na região. Dessa forma, chega-se mais uma vez a constatação de que a cultura não é estática, não está dada, mas está sujeita a contínuos processos dinâmicos de transformação. Assim como a identidade dos Jê Meridionais, que não pode ser dada enquanto essência, mas sofre processos de construção e reconstrução a partir dos encontros com as diferentes alteridades, numa eterna constituição do ser indígena que é dada no entre-lugar. Notas [1]A Tradição Arqueológica Aratú-Sapucaí advém da junção de duas tradições arqueológicas. A tradição Aratú foi formalizada por Valentin Calderón, em 1972, a partir de um estudo pelo PRONAPA, realizado no Distrito de Aratú, na Bahia de Todos os Santos, embora tenha sido encontrada em outras regiões do Nordeste, Centro Oeste e Sudeste do Brasil. A tradição Sapucaí, encontrada em sítios nas regiões de Minas Gerais e São Paulo, chegou a ser considerada inclusive uma fase da tradição Aratú, mas logo depois foi considerada uma tradição independente. O levantamento e constituição desta tradição foi realizada por Ondemar Dias, em 1971, então arqueólogo do PRONAPA. É possível que, por fluxos migratórios, a tradição Aratú tenha chegado até o Centro-Oeste do Brasil, tendo se filiado aos sítios de Goiás e encontrando não apenas a tradição Sapucaí, como outras, como a tradição arqueológica Uru, convencionando-se denominar os sítios de características derivadas dessas tradições de sítios de Tradição Aratú-Sapucaí. [2]A utilização das nomenclaturas Tupi e Tupi-Guarani neste trabalho “seguem as classificações propostas por Rodrigues (2002). De acordo com as mesmas, o uso da nomenclatura Tupi ou Proto Tupi faz referência ao Tronco Linguístico do qual o Tupi Guarani é apenas uma das famílias, com vários idiomas e povos falantes, entre os quais os mais conhecidos são os Guarani (Mbya, Nhandeva e Kaiowá)” (MANO, 2009, p. 112). [3]A região recebeu diferentes denominações, como “Sertão do Rio das Velhas”, “Sertão do Novo Sul”, “Sertão dos Novos Descobertos do Paranaíba” e, por fim, “Sertão da Farinha Podre” (PONTES, 1978 apud MORI, 2015, p. 13) [4]“Autores como (Amantino, 2001; Lourenço, 2005; Martins, 2008) já chamaram a atenção para as influências indígenas nos modos de adaptação das populações dos quilombos.” (MANO, 2015) P á g i n a | 51 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, Marisa Coutinho; DE MORAES, Camila Azevedo. O sítio Água Branca: interações culturais dos grupos ceramistas no norte do estado de São Paulo. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 15-16, p. 59-71, 2006. ALVES, Marcia Angelina. As estruturas arqueológicas do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro-Minas Gerais. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 2, p. 27-47, 1992. ALVES, Daniela Santos. Do Alto do Espia: gentios, calhambolas e vadios no sertão do Campo Grande – séc. 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VASCONCELOS, Eduardo Alves. Investigando a hipótese Cayapó do Sul-Panará. Tese Doutorado, Universidade de Campinas, 2013. P á g i n a | 54 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Patriarcado, patologização e relações de poder: Uma análise do controle de corpos de mulheres e homossexuais Marco Antonio Gatti Junior Universidade Federal de Minas Gerais Introdução Este ensaio tem o intento de contextualizar por meio da perspectiva feminista a forma com que o controle dos corpos tem sido legitimada ao longo dos anos pela ciência de diversas formas, em especial pelas “ciências duras” e suas instituições a lhes conferir autoridade, mas passando também por âmbitos da vida privada e pública. São utilizados principalmente dois trabalhos para embasar a análise pretendida à frente. O primeiro de Fabíola Rohden, “O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos” (2008), que traz em seu texto o debate da centralidade da patologização para a medicalização e intervenções nos corpos das mulheres ao longo da história e a perspectiva histórico-documental de James Green em “Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX 2010” que aborda como a patologização física ou psicológica foi utilizada para marcar e encarcerar homossexuais (no texto trata principalmente de homens) no Brasil do século XX. Por meio da análise dos dois textos citados, este ensaio tem como objetivo fazer uma correlação entre os estudos de casos e relatos citados pelo autor e pela autora, utilizando categorias analíticas trabalhadas por Heleieth Saffioti em “Gênero, patriarcado e violência” (2015) para lançar luz às formas como são colocadas na realidade a construção da hierarquia de sexo e os papéis sociais de gênero dentro de um contexto patriarcal. Em especial, intentase colocar em relevo o exercício proposto por Saffioti (2015) que, partindo de Hartmann, caracteriza a desigualdade social entre os sexos “definindo-se patriarcado como um pacto masculino para garantir a opressão de mulheres.” (SAFFIOTI, H., 2015, p. 111) e como o Estado ou a indústria contribuíram ou até mesmo deram base à esse tipo de intervenção. Não se pretende esgotar todo o debate colocado, e sim estabelecer correlações conceituais e teóricas de tais relações, suscitando conexões relevantes, buscando contornar possíveis desafinidades acadêmicas, no intento de entender tais integrações. Bem além do carnaval A partir de estudos sobre o desenvolvimento da ciência e da importância de se repensar os métodos de análise científicos, coloca-se a necessidade de se partir do princípio destas elaborações, seja qual for a temática escrutinada, para entendermos a produção e a P á g i n a | 55 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG consolidação do fazer científico. Neste sentido, não devem ser naturalizados pressupostos, como se não fossem refutáveis. Partindo destas premissas, Bruno Latour, citando Stenger, trabalha com a defesa de que o conhecimento é sempre um esforço arriscado que tem que começar do nada para cada nova proposição em causa (LATOUR, B., 2007, p. 48), não por negar o que já foi construído, mas pela importância de sempre aprofundar o método científico para demarcar politicamente. No que concerne ao desenvolvimento da produção científica sobre a saúde humana, podemos localizar em seus primórdios o assentamento de suas proposições a partir de bases essencialistas biológicas. É o que se colhe do estudo de Fabíola Rohden quando debate a história da ginecologia. Para a autora, a consolidação da disciplina a fez emergir como ferramenta que “desenha os parâmetros para a distinção entre os sexos”(ROHDEN, F., 2001, p. 35), e que também contribuiu para o debate eugênico e de sexualidade que foi construído na ciência no Brasil e no mundo. Tais conclusões extraídas do estudo deste campo da medicina podem ser estendidas para se compreender como outros corpos são examinados neste projeto de distinção entre os sexos. A arqueóloga Loredana Ribeiro trabalha com a crítica feminista ao pensamento científico hegemônico, onde a interseção de gênero-raça-classe é importante para se pensar a forma de organizar as ideias e o saber científico como um todo (RIBEIRO, L., 2017, p. 214). Concomitante a essa crítica, é necessário compreender e formular uma nova forma do pensar da ciência. Nesse sentido, as ciências humanas e naturais, como a psicologia e a medicina, tem trabalhado a existência humana enquanto influenciada por fatores biopsicossociais. O paradigma de compreensão biopsicossocial do ser humano parte de uma lógica de produção social da saúde, onde o corpo humano é um organismo biológico, psicológico e social. (PEREIRA,T.; BARROS, M.; AUGUSTO, M., p. 526), contrapondo a noção do Homem como ser único. Com o desenvolvimento da medicina da mulher e outras formas de diagnóstico e pensamento científico, foi sendo construída uma lógica de medicalização de problemas femininos, que seriam questões biológicas relacionadas ao corpo da mulher e a como a sociedade lida com tais fenômenos, que ao cabo foram utilizados para justificar o tratamento ou a reclusão de mulheres. Como Fábiola Rohden trabalha em seu texto, “É quase como se a mulher, por sua própria natureza, beirasse a patologia.” (ROHDEN, F., 2008, p. 136). Partindo dessa naturalização biológica da condição da mulher como doente, tratos de caráter social foram utilizados para reiterar o diagnóstico clínico de tais mulheres estudadas. Características como abuso de álcool, melancolia, tentativas de suicídio, ninfomania entre P á g i n a | 56 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG outras questões que partem da ligação direta com o biológico eram acionados para a internação, intervenções cirúrgicas e tratamento para as mulheres. Rohden trabalha principalmente com a hormonização e sobre como os testes em relação ao útero e os órgãos sexuais femininos eram estudados e utilizados para justificar o que saísse do padrão de conduta feminino. Tratava-se e encarcerava-se muitas vezes as mulheres que se afastavam do papel social que deveriam cumprir, sendo estes desvios responsabilizados por uma constante presença (ou ausência) de hormônios capazes de gerar mudanças de humor supostamente responsáveis diretas por tais mazelas (em diagnósticos oportunistas que mais refletiam um padrão moral) para justificar a punição das mesmas. James Green (2010) trabalha como a prática homossexual foi estudada e patologizada a partir de 1920, principalmente, também utilizando distúrbios hormonais e respostas biológicas a fenômenos que fugiam ao padrão de conduta do que deveria ser o masculino, seja por se aproximar por padrões ditos femininos ou utilizar de categorias morais para encarcerar na prisão ou em manicômios tais pessoas que não cumpriam seu papel social na divisão sexual do trabalho. Examinando a relação da medicina com tais estudos sobre corpos, é possível delimitar qual a forma com que estes estudos diagnosticam distúrbios sociais e físicos. É possível estabelecer correlações entre o debate sobre os corpos de mulheres e homossexuais acerca de como eram utilizados como meios de pesquisar quais desvios eram percebidos pelas instituições estabelecidas, notadamente a medicina. Nos dois textos, destaca-se que uma das formas de perceber estes supostos desvios e suas alterações era pelo diagnóstico de falta ou excesso de hormônios, que seriam responsáveis por fenômenos como a hipersexualização ou a falta de libido, agressividade e histeria ou passividade e feminilidade. Pelo texto de Rohden, depreende-se um maior histórico de intervenção física e modificação direta no corpo da mulher (como retirada do útero), relacionando também ao psicológico e hormonal, diferente dos homossexuais que, conforme James Green (2010) salienta, tinham seus “desvios” tratados principalmente nas áreas psiquiátrica e comportamental, uma vez que suas condutas eram condenadas por se aproximar do feminino ou mais especificamente das características sexuais femininas secundárias. Apesar das diferenças, ambos os textos ressaltam a relação entre o biológico e o social na construção da argumentação médica. A discussão em torno da homossexualidade perpassa em grande escala o âmbito criminal, onde as características eram utilizadas para relacionar homossexuais à crimes, como pederastia, estupro, acusações de assassinato, entre outras. “Além do carnaval” elenca um rol extenso das formas como aconteciam os encarceramentos e também diversas P á g i n a | 57 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG intervenções nesses corpos marginalizados para que lhes fossem reeducados ou curados, “A homossexualidade caiu na categoria das perversões sexuais e o confinamento foi o método terapêutico utilizado como princípio para „curar‟ esse desvio.” (GREEN, J., 2010, p. 221). Diferenciando do enfoque criminal utilizado em relação à homossexualidade, a chave principal para a intervenção imputada às mulheres era a da reprodução, que partia de uma base corporal material, colocando o útero como centro da “economia corporal feminina”. Segundo Rohden, seja por controle direto do próprio útero ou dos papéis denominados como a reprodução do papel social determinado, “Essa dessexualização da mulher era percebida como uma ameaça ao casamento e a divisão sexual do trabalho, considerados os dois pilares de sustentação da sociedade e da nação”(ROHDEN, F., 2008, p. 144). Quando os autores abordam o controle da natalidade e da reprodução de corpos, destacam as diferenças entre as intervenções em corpos de distintas classes sociais, ressaltando os ideais eugênicos que animavam tais terapêuticas que retomavam de forma sistemática às classificações e metodologias semelhantes às utilizadas por Cesare Lombroso, algumas inclusive com referência direta ao mesmo. Ambos os textos resgatam o essencialismo biológico fundante desta perspectiva e seu papel na tentativa de “curar” o que fosse se “comportar de maneira inapropriada”. Heleieth Saffioti (2015) aborda a relação entre o papel da socialização da mulher que termina por fundamentar tais essencialismos e patologizações abordadas acima, naturalizando o debate biológico para que cumpra seu papel e garanta a divisão sexual do trabalho e os papéis de gênero no sistema patriarcal. Sobre esta relação entre a socialização das mulheres e seu papel nas relações sociais de sexo, vale destacar quando a autora aponta que: Obviamente, a socialização faz parte deste processo de se tornar mulher/esposa. Mas não se trata apenas daquilo que as mulheres introjetaram em seu inconsciente/consciente. Trata-se de vivências concretas na relação com homens/maridos (SAFFIOTI, H., 2015, p. 140). A autora reitera a importância de pensarmos nas relações de poder e como o feminino tem seu papel subordinado a uma hierarquia abaixo do homem, mas não reduzindo a isso. Saffioti cita tal hierarquia também entre os próprios homens dentro do sistema patriarcal, seja por idade, classe social ou com base no racismo. A autora não se aprofunda em tal relação hierárquica, também deixando uma necessidade de aprofundamento sobre a sexualidade, visto que também não caminha por tal debate para situar também a questão das mulheres. A divisão sexual do trabalho é a base da garantia do funcionamento do sistema capitalista-patriarcal-racista. Relacionando os textos trabalhados, mulheres e homossexuais P á g i n a | 58 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG que não se enquadram nesse sistema para garantir a sua reprodução, e dizendo reprodução principalmente na reprodução e no controle direto do corpo da mulher, o âmbito da sexualidade e comportamentos marcados pela diferença colocam a necessidade de teorias e embasamentos científicos reiterados pela população em geral e que ative o controle de certos corpos deixando a disputa da hegemonia em debate e da categoria da própria ciência. As relações de poder que tangem os corpos perpassam historicamente por sujeitos e sujeitas de formas diferentes. Silvia Frederici (2017) retoma a importância do entendimento da materialidade nas relações que tangem o corpo, seja na caça às “bruxas”, na acumulação primitiva de capital ou na hierarquia entre homens e mulheres. Tal hierarquia se transforma durante a história, expondo as formas com que as relações econômicas, de raça/etnia e gênero na ordem patriarcal se relacionam. Conclusão É nítido nos textos de Fabíola Rohden e James Green que a ciência em disputa oscila de tempos em tempos com argumentos circulares para embasar um ponto de vista que está presente no controle de corpos e abrangendo debates de vários âmbitos, nos demonstrando a inexistência da neutralidade no campo científico e a necessidade da disputa do mesmo. Uma dessas facetas é demonstrada por interesses da indústria farmacêutica, onde o próprio mercado de hormônios, como cita Rohden (2001; 2010), pauta os estudos e os avanços que beneficiam a própria mercantilização dos seus produtos. Levantando também sobre a legitimidade da ciência por si só, sem comprovação de métodos e uma circularidade de citações e reafirmações entre os próprios pares, sendo vetados até por falta de financiamento ou pela discrepância na disputa interna da academia de qual sujeito é legitimado e qual marginalizado, como os próprios textos trabalham e denotam da especificidade de encarceramento e controle de certos corpos. Os relatos históricos no período estudado demonstram a legitimação dos seus proponentes, que se situavam entre do pensamento hegemônico, mostrando como seus valores se naturalizavam no meio científico. É de suma importância também pensar o papel da reprodução e da divisão sexual do trabalho para a centralidade do sistema patriarcal e da reprodução conjunta do racismo e capitalismo. Saffioti (2015) trabalha como método a relação de nó, que entende as relações entre capital-racismo-patriarcado como inseparáveis. Pensando em relações correlatas, as formas encarceramento e controle reprodutivo colocam na marginalização papéis sociais distintos, principalmente quanto ao padrão que as mulheres são colocadas e as intervenções feitas nesses corpos de forma diferente de acordo com outros recortes. P á g i n a | 59 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG O ensaio presente serve ao propósito de levantar questões e relações conceituais, mesmo entendendo os limites das teorias levantadas e das formas com que elas dialogam entre si. De acordo com os relatos históricos, é nítida a percepção da aproximação de homossexuais à feminilidade para a perseguição dos mesmos, assim como da patologização quase natural do corpo da mulher desde seu nascimento. Faz-se necessário revisitar a teoria utilizada em relação à sexualidade, ficando o desafio de, partindo de bases materiais, onde a sexualidade da mulher se resume à divisão sexual do trabalho como forma de reprodução e restringe formas de socialização entre outros vetos sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOX KELLER. Qual foi o impacto do Feminismo na Ciência?. Cadernos Pagu, 27, 2006, pp. 13-34. FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax – São Paulo: Editora Elefante, 2017. GREEN, James. Além do carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Tradução Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. – São Paulo: Editora UNESP, 2000 (cap.3 – controle e cura). LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: NUNES, J. A. E ROQUE, R. (orgs). Objetos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2007, pp. 40-61 RIBEIRO, Loredana. Dossiê Arqueologia e Crítica Feminista no Brasil - uma apresentação. Revista de Arqueologia, [S.l.], v. 30, n. 2, p. 03-07, dez. 2017 PEREIRA, Thaís Thomé S. O.; BARROS, Monalisa N. dos S.; AUGUSTO, Maria Cecília N. de A. O cuidado em saúde: o paradigma biopsicossocial e a subjetividade em foco. Mental, Barbacena, v.9, n.17, p.523-536, dez.2011. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167944272011000200002&lng=pt&nrm=iso>. (acesso em 04/10/2018). ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, V.15, suplementar, 2008, pp.133-152. ___________. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher . 2nd ed. rev. and enl. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. Antropologia & Saúde collection. 224 p. ISBN 978- 85-7541-399-9 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2ºed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo e Expressão Popular, 2015. P á g i n a | 60 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG O pensamento descolonial na produção do espaço André Lucas Magalhães dos Santos Silva Seguindo suas jornadas além-mar, as terras que compõem hoje a América Latina foram escolhidas como destino das naus ditas europeias. Terras desconhecidas pelos europeus, que passaram a compor o Novo Mundo, colonizado e imaginado por eles. Com foco na expansão e na acumulação produtiva é que esse Novo Mundo se concebeu dando bases para a produção do regime capitalista mercantil, posteriormente. América era, al desembarco, una desilusión de golpe; un contraste que enardecía el cálculo frustado y que inclinaba a recuperar la merma de la ilusión mediante la sublimación del bien obtenido. Otra vez la llanura era el mar, sin caminos. América no era América; tenía que forjársela y que superponérsele la realidad del ensueño en bruto. Sobre una tierra inmensa, que era la realidad imposible de modificar, se alzarían las obras precarias de los hombres (ESTRADA, 1996, p. 5) 1. Frente a esse sonho frustrado dos europeus é que foi preciso, por eles, repensar como ocupar essas terras – imaginadas por muitos como paraíso e vivida por tantos outros como inferno. Expropriaram a força diversas etnias, despojadas súbita e violentamente dos seus meios de subsistência, assim é que as comunidades foram suprimidas para a afirmação desse novo regime, centrado na figura do indivíduo trabalhador2. Compreendendo a colonialidade (QUIJANO, 2009), dados os epistemicídios ao longo deste processo, como elemento da efetivação ideológica da colonização e reafirmada no capitalismo tardio, é que a reflexão segue para a questão de como, os violentos ataques as visões de mundo, unida a supressão das comunidades, levou a substituição pela centralidade individual e constituiu a espacialidade e a (re)produção da América Latina? Há de se pensar também se o resgate das memórias3 nos leva a superar esse processo de colonização, dado o pensamento incorporado pela colonialidade, sendo a alternativa descolonial realmente a opção para a superação? É com a questão posta que nosso futuro se torna mais nebuloso, pois a construção e superação deste fator nos põe em dúvida em que caminhos seguir. A construção de alternativas se mostra necessária, mas as formas em que se dão não evidenciam o que se imagina de futuro. Temos posto um momento de crise das utopias, um projeto incompleto, um momento melancólico. O colonialismo, na América Latina, fundou uma estrutura de exploração e dominação dos corpos, dos recursos de produção e do trabalho. Para efetivar tal estrutura era preciso reafirmar a centralidade nacional europeia, os enviados divinos4, acumulando os recursos das P á g i n a | 61 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG colônias do Novo Mundo. “Afinal, os primeiros estabelecimentos organizados precipuamente para acumular capital foram forjados aqui com as plantations de cana no Caribe, em Cuba e Haiti, e, na América do Sul, no Brasil” (PORTO-GONÇALVES, 2015), como também a exploração mineral, que se deu no continuum processo de colonização. Com esse processo a colonialidade se engendra a partir dos espistemicídios e da imposição do modo de se pensar este Novo Mundo. Os indivíduos que são influenciados por ela são interpelados e tornam-se sujeitos obrigados a trabalhar, descentrados de suas percepções de mundo. Assim é que na reprodução do colonialismo é que a colonialidade reafirma o papel central dos escolhidos da Providência, despojando subitamente e violentamente as diversas etnias de sua reprodução da vida. Forma-se a ferida colonial (MIGNOLO, 2007), povos dominados foram usurpados de suas perspectivas cognitivas, pois “forçaram [...] os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação” (QUIJANO, 2005). Pela dissolução das comunidades, de sua produção de vida, da experiência da consciência étnica produziu-se o Novo Mundo. Com essa dominação era preciso romper com as experiências anteriores, acabar com os vestígios da vida que se tinha, para que um novo regime se consolidasse. Foi preciso que se assassinasse as comunidades e impusesse a figura individual frente a ela. A vida não era mais compartilhada na sua reprodução, mas a produção individualizada, dando bases para a acumulação das elites que impunham o trabalho aos sujeitos da colonialidade. Sepultamentos culturais foram promovidos e novos valores assimilados (FANON, 2008). A colonialidade feriu profundamente os sujeitos que produziram as bases da América Latina, como também atacou violentamente suas experiências anteriores ao colonialismo. É contra essa ferida colonial, que permeia ainda hoje a dinâmica do pensamento, que a ruptura epistêmica promete produzir movimentos que levariam a descolonização do ser (MIGNOLO, 2007). Mas é quando a crítica descolonial se propõe mais radical e subversiva é que acaba caindo numa falsidade e em encontro a “constelação de poder existente” (ZIZEK, 2016). Este sujeito, portador da ferida colonial, que tenta esquivar das medidas disciplinadoras que o dominam, também é formado pelas mesmas medidas disciplinadoras. A recuperação das memórias, a busca pelo levantamento das visões de mundo, ou outras epistemologias, são necessárias para evidenciar as mazelas da colonialidade e recuperar as faíscas do passado para reacender as chamas do futuro, mas o paradoxo em questão é não haver um “Corpo positivado preexistente em que se possa fundamentar ontologicamente P á g i n a | 62 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG nossa resistência aos mecanismos disciplinadores do poder” (ZIZEK, 2016), neste caso, a resistência a colonialidade. A crítica não se dá necessariamente nas recuperações das memórias, do movimento de resgate e consolidação das outras epistemologias, mas traz aqui se suas proposições seguem para a descolonização do ser. Vendo nas concretudes do tempo, na (re)produção espacial da América Latina é que se percebe a dominação imperialista que intervém nos seus indivíduos, pela imposição do trabalho; pela centralização da perspectiva individual; pela dissolução das comunidades, presente na vida cotidiana. Com elas que ainda lidamos, quase que inconscientemente, enquanto buscamos uma identidade étnica anterior. Se fundamentarmos nossa resistência ao eurocentrismo imperialista na referência a um núcleo de identidade étnica anterior, automaticamente adotamos a posição de uma vítima que resiste à modernização, de um objeto passivo sobre o qual operam os procedimentos imperialistas. Mas se concebermos nossa resistência como um excesso que resulta do modo brutal como a intervenção imperialista perturbou nossa identidade anterior, fechado em si mesma, nossa posição se torna muito mais forte, visto que podemos afirmar que nossa resistência se fundamenta na própria dinâmica inerente ao sistema imperialista – que o próprio sistema imperialista, por meio de seu antagonismo intrínseco, ativou as forças que provocaram sua derrocada (ZIZEK, 2016, p. 276). Na inversão de objeto passivo que os resgates das identidades étnicas se colocam como resistência frente a modernização dos procedimentos imperialistas, para um excesso que resulta da brutal perturbação dessas identidades, fundamentando a dinâmica antagonista é que teremos a produção da derrocada desse sistema. A partir deste momento é que serão necessários os vislumbres que os resgates descoloniais se propõem. [...] a premissa segundo a qual a resistência ao poder é imanente e inerente ao edifício do poder (no sentido de que é gerada pela dinâmica inerente desse edifício) não nos obriga a concluir que toda resistência é cooptada de antemão, incluída no jogo eterno que o Poder joga com ele mesmo – o ponto-chave é que, pelo efeito de proliferação, de produção de um excesso de resistência, o próprio antagonismo inerente de um sistema pode muito bem desencadear um processo que leva a sua ruína (ZIZEK, 2016, p. 276). Com o acúmulo dessas resistências, dessa perturbação das identidades, assumindo que são resultado do excesso da dinâmica de modernização, os sujeitos devem também assumir a colonialidade que os forma. A ferida já está marcada e pertence aos indivíduos. Enfim, a melancolia invade o imaginário dos sujeitos, seu papel na sociedade capitalista remete a feridas coloniais, o trabalho cooptado para a reprodução do colonialismo, como também do capitalismo marcados no espaço. A América Latina é uma região de periferia do sistema capitalista, repleto de contradições e com efervescentes questões, desde o colonialismo com uma acumulação primitiva, ao capitalismo tardio, que se desenvolve desenfreadamente nos momentos atuais. Os indivíduos trabalhadores deram base a as P á g i n a | 63 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG estruturas oligárquicas que se mantém no século XXI, uma herança mais que econômica. Os indivíduos da modernidade interpelaram e reproduziram a colonialidade, dando sentido a sua vida não mais pelas suas perspectivas, antes centradas na identidade étnica, mas pela perspectiva do trabalho, que põe a comida na mesa, ou que dignifica o homem. Na superação do trabalho, que aliena a produção da vida, talvez tenhamos sinais de um futuro e de uma construção descolonizada do ser, buscando, não na vivência voltada para o indivíduo, mas na experiência, enquanto partilha da comunidade, possibilidades para dar sentido às coisas e produzir a vida. Assim, a ferida colonial perpassa os sujeitos levando ao encontro dos epistemicídios. Devemos resgatar as memórias com o intuito de sermos resistência e de recuperar os pontos que nos conectam a novas possibilidades, a fim de alcançar a derrocada desse sistema que reafirma a colonialidade e explora o trabalho dos indivíduos. Mas tendo consciência que a resistência é por um excesso resultante do modo brutal a qual as identidades foram perturbadas e não pela busca de uma fundamentação ontológica dela aos mecanismos disciplinadores de poder. Notas [1] “A América foi, no desembarque, um golpe de decepção; um contraste que inflamava o cálculo frustrado e que se inclinava a recuperar a perda da ilusão pela sublimação do bem obtido. Mais uma vez a planície era o mar, sem estradas. América não era a América; teve-se que forjar e sobrepor a realidade do sonho bruto. Numa terra imensa, que era a realidade impossível de modificar, surgiriam os trabalhos precários dos homens.” (Tradução do autor). [2]O trabalho no Novo Mundo se desdobra diversamente. No momento inicial da colonização a imposição e exploração do trabalho se dá, em grande parte, pela mão de obra escrava. Ao longo do processo de modernização esse trabalho mantém a exploração, mas agora formalmente livre. [3] Memórias como luta, resistência, frente a colonização e exploração. Pereira (2014) expõe que “resistir tornou-se, há muito tempo, uma prática cotidiana de agentes em posição desprivilegiada nos vários campos das relações de poder, [...] a maior herança tem sido a memória das lutas históricas de resistência”. [4] A sobreposição religiosa vem nesse contexto, seguindo a ideia de que um espírito natural dos homens deveria avançar na história da civilização. A doutrina cristã se encarregava, em suas proposições filosóficas, de retratar que os homens são o meio para a consecução dos fins de Deus; um agente divino de um sujeito maior, pois apenas a ação da Providência que conduz a vontade humana (WOORTMANN, 1997). P á g i n a | 64 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ESTRADA, E. M. Radiografía de la pampa. 2. ed. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: Editorial Universidad de Costa Rica, 1996. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. SciELO-EDUFBA, 2008. MIGNOLO, W. Desobediência Epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. In: Caderno de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, nº 35, p. 287-324, 2008. PEREIRA, E. A. D. Resistência descolonial: Estratégias e táticas territoriais. Revista Terra Livre, p. 266, 2014. Disponivel em: <http://www.agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/issue/view/52>. Acesso em: 22 maio 2018. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Pela Vida, pela Dignidade e pelo Território: um novo léxico teórico político desde as lutas sociais na América Latina/Abya Yala/Quilombola. Polis. Revista Latinoamericana, n. 41, 2015. Disponivel em: <https://journals.openedition.org/polis/11027#article-11027>. Acesso em: 19 maio 2018. QUIJANO, A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, A., et al. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Pespectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. 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Deborah de Magalhães Lima Introdução A dicotomização das violências empreendidas contra minorias étnicas em termos de genocídio e etnocídio produz ainda hoje efeitos que podem ser perversos e, talvez, o principal deles seja tomar o etnocídio como um crime “menos violento” e com Natureza distinta do genocídio, afetando as manifestações visíveis e invisíveis da cultura enquanto “espírito de um povo” (Volkgeist). Tal assertiva levou e leva, não raro, à agressões aparentemente brandas associadas ao combate à “destruição física” dos povos ameríndios e/ou às tentativas de “salvamento” de suas almas. Não se trata de uma tentativa meramente teórica e afastada das necessidades reais do atual contexto dos povos ameríndios no Brasil. Quando me encontrava na reta final da pesquisa, uma ampla lista de lideranças indígenas publicaram em 18 de fevereiro de 2018 um manifesto1 contra a intolerância religiosa e o racismo, definindo como etnocídio as agressões empreendidas por organizações protestantes. Situação genocida que se agravará pois, no momento em que escrevo essas palavras, os defensores dos direitos humanos testemunham as previsões catastróficas em relação ao recém-eleito governo bolsonarista se atualizarem com velocidade alarmante. O terror psicológico marcado por avanços e recuos em torno da possibilidade de fusão do Ministério da Agricultura, pecuária e abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente é um exemplo das produções gratuitas de violências contra muitas pessoas e suas existências. Os contextos históricos relacionados aos primeiros enquadramentos do crime de etnocídio demonstram que essa violência nunca foi relativa. Os aparatos reflexivos produzidos pela etnologia americanista, do final da década de 70 do século XX em diante, marcaram uma maior intimidade com as “categorias nativas” ameríndias (VIVEIROS DE CASTRO, 1999). Ao utilizarmos essas ferramentas fica claro o enquadramento fenomênico da nossa visão ocidental que emprega concepções metafísicas (espiritual/material) e objetificantes que não dão conta dos mundos indígenas povoados de agências com estatuto de P á g i n a | 66 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG sujeito. O avanço na aceitação jurídica dessas realidades como fatos e não meras representações coletivas nos parece imprescindível não para a salvação de um Outro frágil, mas, para que todos nós tenhamos algum futuro. Origem e antecedentes da noção de etnocídio A busca pela origem do termo etnocídio levou a quatro autores e três contextos histórico-etnográficos marcados por profusas violências estatais cometidas contra povos minoritários: os Judeus (entre outras minorias) em muitos países europeus cujo antissemitismo existente já na Antiguidade ganhou contornos específicos no século XIX e, avançou para o XX, notadamente na Alemanha já nos estertores da República de Weimar, durante a ascensão nazista ao poder e a subsequente eclosão da 2ªGM (EVANS, 2016[2003]); contra os Mnong gar nas regiões das Terras Altas a nordeste de Saigon no Vietnã do século XIX, marcado pelo colonialismo francês; No decorrer das 1ª e 2ª Guerras da Indochina e sob a Ditadura latifundiária e católica de Ngo Dinh Diem, empreendendo um hiper-nacionalismo sul-vietnamita apoiado pelos EUA (CONDOMINAS, 1991[1965]); e contra os Barí localizados no nordeste colombiano na fronteira venezuelana do distrito de Santander do Norte. Em relação aos Barí, na década de 1960, foi delimitada a prática de etnocídio pela confluência dos assédios de missionários, petrolíferas (COLPET), departamento de assuntos indígenas colombiano e colonos (JAULIN, 1973[1970]). Uma Colômbia, que assim como o Peru e Brasil, foi marcada por extermínios das populações indígenas no século XIX e início do século XX durante o período caucheiro tendo como exemplo paradigmático os fatos históricos marcados por extrema violência e sadismo que ganharam a alcunha de Terror de Putumayo (TAUSSIG, 1993[1987]). Na década de 1930, o Estado colombiano aprofundou sua dependência econômica com os EUA, favorecendo as classes proprietárias e exercendo políticas populistas de caráter liberalizante. Ações que disseminaram tensões crescentes nas áreas rurais eclodindo em meados da década de 1940 no fenômeno que ficou conhecido como La Violencia (período entre o final da 2ª GM e início da década de 1960), cujos precedentes se encontravam em ódios regionais hereditários de uma aristocracia rural consolidada no século XIX sob forte agressão aos chamados resguardos indígenas (ABEL&PALACIOS, 2015). A contextualização dessas situações históricas, que aqui apenas cito de modo muito comprimido, deve ser apreciada para entendermos que os crimes contra os povos ameríndios não podem ser associados unicamente com períodos de guerra fruto do cotidiano de práticas colonialistas e neocolonialistas associadas ao que Mbembe definiu como necropolítica (MBEMBE, 2018). P á g i n a | 67 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Foi nesse trajeto eivado de hostilidades que pudemos observar os rastros da origem e desenvolvimento da noção de etnocídio. Raphael Lemkin (1944) cunhou, pouco antes do final da 2ª GM, os conceitos de genocídio e genocídio cultural. Uma inflexão de importância ocorreu quando o conceito de genocídio foi abduzido pela antropologia através do etnógrafo Georges Condominas (1991[1965]), fruto de sua convivência com os Mnong gar e das violências contra eles cometidas pela ditadura sul-vietnamita. Nessa conversão, persistiu o sentido de uma intenção criminosa de homicídio contra coletividades com a alteração do prefixo genos para ethnòs. O objetivo principal dessa apropriação-variação foi realizar aquilo que o subgênero de genocídio cultural aparentemente não havia alcançado ao deixar de ser incluído na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio das Nações Unidas em 1948: dar visibilidade e profundidade às dimensões das violências criminosas cometidas contra minorias étnicas. Contudo, essa ação transpositiva sedimentou um dualismo que já era uma tensão presente nas reflexões de Raphael Lemkin e que esse procurou atenuar à medida em que aprimorou seu sofisticado arcabouço conceitual. Se, em 1933, Lemkin havia proposto a tipificação binária barbárie/vandalismo (LIPPI, 2011), anos depois apresentaria como substitutos o genocídio e o subgênero genocídio cultural. No contexto das proposições antropológicas de Georges Condominas em 1965, quando foi lavrado o neologismo etnocídio como violência contra minorias étnicas, a separação cartesiana espírito/corpo do indivíduo projetada para coletivos humanos manteve-se, mas com um caráter menos reificado e mais profundo do que o vandalismo e, em menor grau, do que o genocídio cultural. Desse modo, o etnocídio operaria como um ataque contra a integridade do Volkgeist de uma coletividade, em oposição ao autoexplicativo fisiocídio, proposto por Condominas (1991) como o processo final de extinção de um povo. Georges Condominas (1991) afirmou que o perfil do seu trabalho possuía pretensões mais etnográficas do que etnológicas. Se foi ele quem cunhou e delineou as considerações iniciais sobre o neologismo derivado do genocídio, coube a Robert Jaulin (1973) trabalhar tanto a definição de genocídio cultural de Lemkin quanto o etnocídio criado por Condominas. Optando por essa última terminologia, Jaulin e simpatizantes avançaram na tentativa de sistematização conceitual, e o trabalho inaugural dessa tarefa partiu da convivência com os Barí na Colômbia. Nos anos seguintes, uma rede colaborativa produziu duas coletâneas2 com casos etnográficos de toda a América, textos que abordavam as relações do etnocídio com o Direito, História e Educação. Esses trabalhos tiveram, ao que parece, importante difusão e impacto, nos países de língua castelhana. Essa vertente reflexiva de Jaulin possuía uma perspectiva materialista de P á g i n a | 68 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG cunho fortemente marxista3, voltando-se para questões da “cultura material” e suas determinações organizacionais, restringindo boa parte da análise dos efeitos inelutáveis do etnocídio ao campo sociológico. Ao mesmo tempo, Jaulin (ibidem) nos apresentou a irredutibilidade das concepções cósmicas Barí frente ao Ocidente, um modo de expressão humana que, juntamente com outras manifestações indígenas semelhantes, representaria uma alternativa viável e necessária para o futuro de todos. Pierre Clastres (1974), em seu famoso ensaio sobre o etnocídio, teve o intuito foi distinguir claramente entre essa noção e o genocídio a fim de permitir um tratamento mais científico, necessário diante da situação inflacionária gerada pela grande popularidade alcançada pelo termo na década 70. Para Clastres (ibidem) genocídio e etnocídio envolveriam uma recusa da Diferença, contudo, com graus distintos de violência. No caso do genocídio a Diferença seria absolutamente má, com perspectiva racista e negadora das manifestações físicas do Outro, levando à pura e simples eliminação física das pessoas. A espiritualidade humanista do etnocídio consideraria o Outro como relativamente mau e, portanto, perfectível. Os missionários seriam o exemplo paradigmático daqueles que praticaram esse tipo de crime, que figurava para Clastres como uma agressão às crenças e modos de vida e que, se não controlada descambava para as violências físicas levando ao genocídio (ibidem). A partir de todo esse percurso histórico e teórico, vemos que a segmentarização antropocêntrica do pensamento ocidental (espiritual/material) levou a classificar agressões criminosas com pares opositivos: barbárie/vandalismo, genocídio/genocídio cultural (Raphael Lemkin), etnocídio/fisiocídio (Georges Condominas) e etnocídio/genocídio (Robert Jaulin e Pierre Clastres), denotando certas qualidades associadas a cada um dos pólos dessas dicotomias. No campo do vandalismo, genocídio cultural e etnocídio teríamos as ações indiretas e sutis (traduzidas como gerando um grau menor de violência), voltadas para as produções culturais visíveis e invisíveis, apartadas da fisicalidade do indivíduo, com resvalamentos no campo psicológico a nível tanto individual quanto coletivo e, também, nos aspectos sociológicos baseados nas imagens funcionalistas bem estabelecidas da unidade, coesão, equilíbrio. Do lado do genocídio estariam os aspectos visíveis da intenção criminosa, ataques físicos diretos, principalmente de curto prazo e absolutamente violentos contra as pessoas. Essas imagens parecem ter se instalado com pregnância irresistível em nosso imaginário. Na Antropologia essas distinções tendenciais que mencionei acima se agrupariam em torno da pedra filosofal da disciplina: a cultura. Entre os múltiplos enquadramentos que essa noção chave atualmente permite, perdemos de vista muito rapidamente seu aspecto P á g i n a | 69 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG mediador, relacional, criativo e inventivo para recairmos em reificações em torno de um fechamento monadológico holístico que, de fato, é impossível, e cuja ilusão de factibilidade produz sensações cumulativas de perda-destruição sob a analogia automática Cultura/Espírito em situações de interação Eu/Outro. E é claro que essa sensação de perda, quando possível, foi sempre projetada nos Outros “de fora” com um etnocentramento de efeito redobrado. Essa recorrência é constatável na teoria dos precedentes e contemporâneos teóricos do etnocídio na antropologia brasileira (teorias da aculturação, mudança cultural, transfiguração étnica, fricção interétnica). Cabe, desse modo, destacarmos a distinção entre violência relativa e violência absoluta que perpassa as clássicas definições de etnocídio e genocídio. É possível quantificar o que, frequentemente, separa-se e nomeia-se como agressões culturais/psicológicas e violências físicas contra minorias étnicas? Etnocídio na América Latina: Do Universal ao local No pós 2ª GM, os mecanismos jurídicos internacionais de direitos humanos foram importante abertura para o enquadramento dos crimes contra coletividades, entretanto, continham um viés universalista. Não à toa, menos de três décadas depois deu-se na América Latina uma articulação em torno da promoção da definição da noção de etnocídio e do combate contra suas manifestações. José Emílio Rolando Ordóñez Cifuentes (1996) apresentou a receptividade atingida por essa tipologia criminal nas sucessivas reuniões e produções de documentos na área de direitos humanos voltados para a questão indígena na região. A razão dessa demanda deveu-se tanto a uma naturalização da prática etnocida sob o espraiado exercício de um neocolonialismo latino-americano quanto também um “vazio legal internacional” que essa noção quis suprir. Em 1968, no México, foram criadas as Unidades de Ense anza sobre Etnocidio y Etnología colonial. Em 1970, houve um colóquio na França “Le livre blanc de l‟ethnocide en amérique (Etnocidio a través de las Américas , reunião que rendeu uma importante coletânea de mesmo título organizada por Robert Jaulin. Ainda em 1970, ocorreu o XXXIX Congresso de Americanistas em Lima, no Peru, no qual foram realizadas importantes considerações em torno do etnocídio, tomando-o como uma destruição de civilizações inaugurada há mais de quatro séculos com a invasão da América. As matanças, assimilações forçadas e políticas indigenistas de caráter integracionista ou assimilacionista denunciadas na década de 70 seriam a continuação dessas violações dos direitos à existência dos povos originários, na maioria das vezes operadas pelas elites regionais submetidas por influências externas (ORDÉÑEZ CIFUENTES, 1996, p. 30). P á g i n a | 70 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Cifuentes também indicou outros marcos históricos importantes relacionados à constatação e aplicação da noção de etnocídio pela antropologia na América Latina. Em 1972 e 1977, encontros realizados em Barbados dialogaram em torno da dominação cultural, em boa parte realizada por políticas indigenistas. O sistema educacional reproduziria relações assimétricas baseadas na superioridade/inferioridade entre brancos e indígenas, lógica também presente nos meios de comunicação de massa que, além disso, mascarariam os movimentos de resistência indígena contra essa dominação cultural. Em 1974, foi publicado o livro La Des-civilización, política e práctica del etnocidio, no México, que avançou na teorização do etnocídio como destruição de civilizações e como insistente negação-agressão do Outro. Em 1982, foi produzida a Declaração de San José sobre etnodesarrollo y etnocidio en America Latina que considerou o etnocídio como um crime enquadrável no direito internacional tal como o genocídio. Nessa ocasião, foi postulado um “projeto étnico” com aspecto integral baseado em cinco pilares voltados para a “recuperação cultural”: Linguagem, Consciência Histórica, Saber Tradicional, Território e Identidade Cultural (projeto cultural, social e político). Também em 1982, entre 4 e 8 de outubro, ocorreu na República de San Marino o simpósio Derechos de Solidaridad y Derechos de los Pueblos, ocasião na qual o genocídio foi firmado como principal violação ao direito de existência de um povo. O etnocídio foi indicado como um modo menos violento desse tipo de agressão. Os especialistas presentes nesse Simpósio defenderam que a diversidade cultural era tão importante quanto a diversidade biológica para a perpetuação da humanidade. As diferenças culturais seriam índices das riquezas de respostas adaptativas do homem ao longo da história e cuja manutenção, portanto, seria essencial ao futuro da espécie. Os próprios povos indígenas geraram declarações em Quito, Equador e Xelajú (Quetzaltenango) envolvendo a Campanha Continental Indígena, Negra e Popular contrária às comemorações do V centenário do "descobrimento de América" proposto pela Espanha. Cabe lembrar as declarações oriundas das u s s u s s celebradas em Chimaltenango, na Guatemala em 1993 e em Oaxtepec, no México. Por fim, Ordé ez Cifuentes aponta os esforços da Prêmio Nobel da Paz, Rigoberta Menchú Tum no combate ao etnocídio a nível mundial (ORDÉÑEZ CIFUENTES, 1996, p. 31-2). Como notou Manuela Carneiro da Cunha (2009b, p. 326-7), foram os movimentos indígenas que, encabeçando a militância e jogando com as regras da “Cultura”, criaram resoluções, recomendações e declarações sobre direitos intelectuais e culturais. No final da década de 1980, esses direitos já abrangiam artefatos, padrões gráficos, objetos arqueológicos e a “cultura material” em geral. O resultado dessa gigantesca contra-captura indígena, P á g i n a | 71 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG segundo Carneiro da Cunha, marcou uma importante passagem desde o período da Declaração dos Direitos Humanos em 1948 até 1984. A partir daí ocorreu um afastamento do posicionamento universalista contra a discriminação e a favor da participação política que tomava os povos indígenas como parte do patrimônio cultural da humanidade. A partir de 1992, a Carta dos Povos Indígenas e Tribais das Florestas Tropicais e a Carta da Terra dos Povos Indígenas marcou definitivamente a conversão do universalismo para uma “ c iz ã ” qu r ri u-s “ u tur ” c mo propriedade particular de cada povo indígena (ibidem). É essencial retermos essa grande empreitada bem sucedida em saber apropriar-se da lógica do Outro, fruto da agência indígena. Entretanto, ao buscarmos tracejar a gravidade das violências geradas por agressões etnocidas é preciso não confundir cultura com “Cultura”. E muito menos acreditar que essas traduções com fins políticos empreendidas pelas lógicas ameríndias tratariam-se unicamente de perdas culturais ou identitárias. Manuela Carneiro da Cunha argumentou (ibidem) que não se poderia tomar a cultura como fator primário de identificação tendo em vista que ela seria consequência da organização do grupo étnico e não sua definidora, apesar de ser irredutível para a etnicidade. Tampouco poderíamos formar uma lista de traços culturais essenciais que permitiriam classificar com segurança quem seria ou não membro de uma comunidade étnica qualquer, pois, não haveria uma previsibilidade dos traços culturais selecionados para a afirmação de um determinado Nós – nem mesmo a língua seria um elemento imprescindível para a afirmação étnica (ibidem). Para essa autora, em situações de maior tensão política (diáspora, contatos intensos) a cultura “original” de um grupo étnico não passaria por simples perdas ou fusões mas alteraria sua função para uma “cultura de contraste” com aparência enrijecida e minimalista composta de traços diacríticos (CUNHA, 2009a[1979], p. 237-8). Esse movimento indicaria os grupos étnicos como sendo, antes de tudo, uma forma de organização política, uma categoria “nativa”, cuja retórica acionaria uma origem e cultura comuns. Essa retórica não seria uma mera reação completamente aleatória ao exterior, tendo a cultura como substrato irredutível. Teríamos, portanto, a “Cultura” inserida em contexto interétnico, diferente da cultura enquanto contexto “interno”. As relações interétnicas não seriam resultado de submissão à lógica externa ou à lógica do mais forte; a objetivação da cultura não estaria condicionada à situação colonial mas seria um meio corrente de organizar relações com outras lógicas (CUNHA, 2009b, p. 356). A “etnicidade” apresentaria-se como uma transformação moderna, e nesse sentido manteria uma continuidade pré-colombiana com o totemismo enquanto prática política produtora de distintividade por meio da atividade classificatória (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 198). P á g i n a | 72 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG O Perigo das projeções e obsessões com a perda cultural Marshall Sahlins (2007[1996]) cosmologizou o Ocidente, delineando o que Viveiros de Castro sintetizou como “metafísica naturalista da escassez” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 199) e cujas raízes religiosas seriam mais longínquas que o advento do Iluminismo. O fundamento cosmológico dessa orientação estaria no mito do Pecado Original e a consequente Queda Adâmica, que instaurou desde então na humanidade uma falta constitutiva, uma separação entre homens e entre homens e Mundo. A “verdade disfarçouse”, instalamo-nos numa situação de imperfeição e predisposição corporal para o mal. O Adão caído e necessitado, com o advento do capitalismo também estaria presente no homem econômico dos tempos modernos. A sociedade foi fundada por causa da carência mundana. A Natureza sendo vista como campo do instaurado e da necessidade. A passagem cósmica do contínuo ao discreto associada a perfeição/imperfeição, também presente nos pensamentos ameríndios mas nesse caso o momento fundante teria sido fruto de más escolhas4. Enquanto no Ocidente, tratou-se de uma punição à cobiça pelo Divino (transcendência). A consequência do acontecimento que instaurou a atual condição humana ocidental foi a autoculpabilização (SAHLINS, ibidem, p. 561-5). A Queda estabeleceu uma perene zona de opacidade entre real/aparente (a cegueira epistemológica como deficiência) que perpassaria a divisão espiritual/material (corporal). Esses fundamentos cosmológicos comporiam o discurso/prática científica que tomou a perda corporal como um acontecimento negativo inapelável que deveria ser disciplinado e docilizado (FOUCAULT, 2010), administrado e negociado. A replicação dessa imagem prototípica da Queda Adâmica, de uma unidade faltante original, empobrecida e culpada está presente no corpo [d]Eficiente (entre outras modalidades de corporeidades minoritárias) e a necessidade instaurada de constante vigília-cuidado (trabalho neurótico médico-familiar), e também de separação entre os que devem viver e os que podem morrer. Esse pessimismo cosmologicamente marcado por uma unidade faltante original de origem judaíco-cristã também seria projetado para outros povos. Sahlins chamou de “teoria adâmica esclarecida” a prática do funcionalismo antropológico de B. Malinowski, que reduziu cultura às necessidades corporais dos indivíduos. O estrutural-funcionalismo de A. Radcliffe-brown transpôs para escalas maiores o indivíduo biológico, a sociedade como organismo cujas instituições manteriam a satisfação das necessidades vitais (SAHLINS, 2007 [1996], p. 569). Tal trajetória antropológica produziu, com frequência, discursos pessimistas sobre a transitoriedade do Outro. P á g i n a | 73 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Esses modos relacionais ocidentais corroborariam uma obsessão com a perda. Acrescentemos a isso as proposições de M. Strathern (2014[1999]) acerca da perda na produção antropológica. Esse dado cosmológico da unidade faltante original e suas características especificamente ocidentais seria inescapável à prática etnográfica, como qualquer outra prática de conhecimento euro-americana. Estavam presentes nas expedições etnográficas do Estreito de Torres de 1898 e seu viés salvacionista do Outro que, em contato com a “civilização”(Queda-perda) estava em vias de desaparecer. O desenrolar da atividade antropológica e a crescente institucionalização do método etnográfico, como base da especificidade desse ramo do conhecimento das ciências humanas, envolveria também sentimentos de perda. A pressuposição teórica do Holismo e sua incontornável incompletude. E por fim, a dinâmica envolvida entre campo-observação e escrita-análise. As reordenações e reposicionamentos dessas áreas fariam com que os antropólogos levassem consigo a premonição de um sentido de perda (STRATHERN, ibidem, p. 346). Strathern nos oferece outra preciosa lição. Tão importante como a “imersão” e o “momento etnográfico”, a “reflexividade” seria essencial para se chegar ao “efeito etnográfico”. Não se trata da crítica pela crítica e sim de barrar até onde podemos projeções indevidas no Outro. Essa prudência contribuiria para não incorrermos em um “pessimismo sentimental”. A meu ver, as teorizações em torno da aculturação, mudança cultural e, de certo modo do etnocídio, não chegaram a beneficiarem-se dessa reflexividade. Georges Condominas, Robert Jaulin e Pierre Clastres5 projetaram, com distintos graus, a “metafísica naturalista da escassez” ocidental nos povos com os quais conviveram, contribuindo para a separação entre destruição-agressão física (maior violência) e agressão-destruição espiritual (menor violência) de um povo. O etnocídio nos Mundos ameríndios Ao entrarmos nas concepções de mundos ameríndios temos que levar em conta, além dessa projeção de uma “metafísica naturalista da escassez”, a limitação fenomenológica ocidental a uma visão científica naturalista que toma as possibilidades de agência em um gradiente a partir de uma rígida divisão sujeito/objeto que perpassa as subdivisões animado/inanimado e animal/humano. No caso dos modos existenciais ameríndios, a produção de pessoas e corporalidades (SEEGER, DAMATTA & VIVEIROS DE CASTRO,1979) como uma delimitação não categorial mas posicional dessas subjetividades por meio de um perspectivismo ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO, 1996;2002). Tais qualidades não se enquadram nos limites P á g i n a | 74 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG fenomênicos da divisão indivíduo/sociedade e Natureza/Cultura. Tal fato complica em muito adentrarmos, por exemplo, o campo da nosologia indígena, classificando certos grupos de relações como “psicológicos” ou “físicos”. Até mesmo o uso do qualificativo “psicológico” é uma tradução bastante precária e agressiva, quando sua instrumentalização é imposta a determinadas situações em que o Estado deveria fornecer assistência médica em consonância com as legislações nacionais e internacionais que estabelecem direitos fundamentais dos povos originários. Nesse sentido, práticas medicinais biculturais classificadas como etnomedicina oferecidas a qualquer cidadão no México, países da América Central e Cuba (Cf. MENA, 2011) parecem o contraponto ao que é praticado no Brasil. Essas considerações são um ponto nevrálgico para os casos mais gritantes (claramente agressivos para a própria percepção ocidental quando são tirados da invisibilidade), como o dilema atual envolvendo os altíssimos índices de “suicídio indígena”6. Entre outros fatos graves cujas resoluções possíveis imobilizam-se entre o discurso trágico do determinismo cultural acionado convenientemente por agentes estatais - Isso é da cultura do índio, não tem como combater e o puro e simples discurso violentamente intervencionista - Devemos impedir que ajam a partir de seus costumes bárbaros e atrasados . Utilizar esse corpus teórico da Etnologia brasileira do final da década de 1970 em diante que se beneficiou de uma maior intimidade com as “categorias nativas” (VIVEIROS DE CASTRO,1999) permite, portanto, diminuir o grau de miopia inerente à nossa condição ocidental, à prática etnográfica e à tendência histórica em separar de um lado estudos do contato regados a generalizações distanciadoras e do outro as mônadas analíticas a respeito dos mundos dos Outros. Nesse sentido, etnocídio não é um completo artifício retórico voltado para combater injustiças que acreditamos serem cometidas contra grupos minoritários simplesmente a partir da nossa percepção de humanismo. Trata-se sim de uma invenção, uma terceira via que tenta aproximar e tornar visível como essas sociedades apreendem o infortúnio e como, de fato, para eles na maioria dos casos as relações com os brancos multiplicam as possibilidades de maus-encontros. Etnocídio e Cosmovisão Se retivermos a profundidade do infortúnio que abateu entre os Mnong, o qual Condominas procurou traduzir, a agressão-destruição do ethnos parecia algo mais complexo do que a destruição de “patrimônio cultural” ou qualquer outra variação em consonância com a concepção de cultura em suas definições alemã e francesa de kultur ou civilization fundamentadas em torno do sentido de “cultivo do espírito” que se afinariam melhor com as P á g i n a | 75 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG definições de vandalismo e genocídio cultural propostas por Raphael Lemkin. Os ataques nazistas às expressões religiosas judaicas, mais do que a destruição de propriedade privada ou coletiva, foram crimes que envolveram muito mais que a destruição do patrimônio cultural como separação metafísica formal. O desenvolvimento do vandalismo para genocídio cultural sugere que Lemkin iniciou a apreensão dessa profundidade. A separação analítica etnocídio/genocídio, enquanto tradução de mundos distintos, enfrenta, portanto, elementos de grande aderência em nosso pensamento, levando à ilusão de concretude de uma separação abstrata. Todo desenrolar de ação que não se enquadre no modelo monodologicamente fechado que permita a qualificação “estrutural” e a consequente imputação de intenção criminosa monolítica relacionada a um único indivíduo, grupo ou instituição leva à sensação de uma violência diluída no espaço e no tempo, caótica e descontínua ou com menor grau de intensidade. Uma segunda consideração é a préconcepção de que os alvos atingidos por essa violência molecular seriam mais superficiais, “externos" e destacados da fisicalidade da pessoa, como se as redes de corporalidades estivessem circunscritas apenas à concepção de indivíduo e sua corporeidade biológica. A combinação desses dois elementos normalmente não permite enxergar que situações inseridas num quadro “não-estrutural” envolvem ímpetos genocidas em curso que no máximo podemos traduzir como etnocídio, quando há uma reflexão crítica. Sob essa perspectiva, na passagem do etnocídio para o genocídio, em vez de um agravamento da violência marcado pela passagem da agressão ao “patrimônio cultural” para a integridade física das pessoas, teríamos uma máquina cultural7 como resultado da composição de agentes com interesses e de estruturas distintas transbordando a esfera restrita do aparelho estatal, ou melhor dizendo, modos de pensar-agir estatais molecularizados numa “sociedade do controle” deleuziana (DELEUZE, 2013[1992]), na qual qualquer um, a qualquer momento, pode metamorfosear-se em agente estatal agressor. Esse movimento permite uma gradual tradução cultural à medida em que os eventos criam possibilidades de multiplicação dos maus-encontros dados nas próprias lógicas ameríndias, aumentando as interseções das ressonâncias desses acontecimentos, levando ao enrijecimento das segmentarizações flexíveis (DELEUZE & GUATTARI, 2008[1980], p. 85). Essa dinâmica torna a gravidade do fenômeno visível também para ocidentais, adquirindo o padrão de consistência e continuidade exigido pelos órgãos internacionais ligados aos direitos humanos que procuram por uma “intencionalidade criminosa clara”, com limites formalmente definíveis ao “monopólio exclusivo da força” utilizado pelo aparelho estatal e/ou apropriado por grupos fundamentalistas oportunistas que parasitam as instâncias do poder estatal. P á g i n a | 76 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG As ressonâncias genocidas enquanto etnocídio dão a sensação sob nossa visão ocidental e antropológica de ataques ao espírito coletivo e/ou individual (psicológicas), tais como regressões legislativas, humilhações étnicas, expropriação cultural, depressão, mania de perseguição8. Pensando com os povos ameríndios, quando o genocídio começa a ser anunciado, denunciado, atingindo as partes mais "internas" das corporalidades das pessoas, que costumamos delimitar como corpo físico (às vezes o aspecto psicológico é também considerado aqui), frequentemente aconteceu muita violência encabeçada por uma máquina cultural desgovernada. Clastres (1964) acreditava que o etnocídio com terreno livre descambava para o genocídio. Para ele, o genocídio seria o etnocídio perfeito. A meu ver, o etnocídio já é ressonância genocida; e no caso ameríndio, aquilo que as subjetividades possuem como composições inseparáveis da produção, reprodução e expressão de suas corporalidades e que classificamos como espírito, objetos culturais (tangíveis e intangíveis [onomástica] para nós), fenômenos culturais, “território”, mundo sobrenatural, não permite dizer que o etnocídio seja menos violento que o genocídio. A diferença, me parece, possui sempre materialidade. Em vez de insistirmos na dicotomia genocídio = diferença como mau absoluto (maior violência) versus etnocídio = relatividade do mal na diferença (menor violência), pensemos que as personificações do mau genocida farão o necessário para converter a Diferença, buscando eliminá-la para digerir seus despojos irredutíveis. Tal fenômeno não ocorre por osmose; não temos dois ambientes em que um deles é ativo por ser mais rico em fatores civilizacionais que transmigram para o outro ambiente passivo, porque menos rico em tais elementos. Esse raciocínio de fundo evolucionário sempre que teve oportunidade emergiu nas teorizações semelhantes à noção de etnocídio9. Os efeitos colaterais perversos dessa seara conceitual podem ser uma pista a mais para entendermos a tímida receptividade da noção de etnocídio no Brasil. O etnocídio seria “aparentado” com a teoria da aculturação e suas variações, que comumente foram associadas à perda cultural generalizada e irreversível e à uma espécie de profetismo apocalíptico de longa data na antropologia. Contudo, a despeito desse nexo analítico de índole homogeneizante, o exame mais cuidadoso do contexto de emergência da noção de etnocídio no Nordeste de Saigon fornece uma reflexão mais aprofundada da questão. O evento ocorreu pouco antes da eclosão da 2ª Guerra da Indochina (Guerra do Vietnã), e antes que todo um povo fosse arrancado da terra de seus ancestrais para habitarem campos de refugiados organizados pelas forças especiais norte-americanas. Os Mnong gar indagaram um embaixador norte-americano que praticava caça esportiva em suas terras: P á g i n a | 77 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG ¿Por qué los vietnamitas quieren arrancarnos de la tierra de nuestros antepassados? No podemos vivir en otro sitio. Cuando un hombre deja esta tierra para ir a la plantación o al ejército es siempre temporalmente y con la certeza de que habrá de volver pronto. ¿ Como podrían entender los genios y los ancestros un abandono semejante. Quienes emigren se verán pronto privados de su protección y desaparecerán al poco tiempo. Además, quieren forzarnos a dejar los miir (la agricultura de rozas) por el arrozal irrigado, que nunca hemos practicado (CONDOMINAS, 1991, p. 432). O que eles estão afirmando não me parece que tenha haver com perda cultural, desorganização social, território e identidade ou mesmo contato interétnico. O afastamento de pessoas não era um problema em si desde que se respeitasse o tempo certo que reclamava a volta aos seus. Um espaço cosmopolítico povoado de agências com estatuto de sujeitos cujas conexões seriam questão de vida ou morte. É essa precedência da cosmovisão e sua consistência existencial que denuncia uma violência profunda eufemizada com termos como “reagrupamento territorial”. Essa indagação dos Mnong soa bastante contemporânea se pensarmos nas agressões crescentes aos povos tradicionais no Brasil em relação às demarcações das Terras Indígenas. Essas [cosmo]visões evocam a premência de uma tradução cultural e as possibilidades de rendimentos jurídicos que avancem ainda mais o foco na prevenção contra os chamados crimes de Lesa-humanidade[s], compensando minimamente o caráter eurocêntrico da teoria e prática dos direitos humanos. Conclusão No caso das populações originárias das Terras Baixas da América do Sul, as grandes invenções culturais teriam origem no Outro, no fora. Parafraseando Eduardo Viveiros de Castro, Carneiro da Cunha afirma que nesses regimes amazônicos de “predação cultural” a formação de cultura seria aculturação (CUNHA, 2009b, p. 361). Pensar a prática etnocida, ao menos no caso das cosmopolíticas ameríndias, não envolveria, portanto, a destruição de uma unidade pré-estabelecida (um Volkgeist ou Volkskultur) gerada a partir de uma determinada interioridade resultante da soma de volições dos componentes de uma coletividade. As ressonâncias genocidas (etnocídio) remeteriam às interações nas quais multiplicariam-se as possibilidades de infortúnio. Tomemos o etnocídio como uma tipologia criminal que indique não apenas fatos consumados (que frequentemente só serão constatáveis a longo prazo) mas, principalmente, intenções criminosas associadas à multiplicação das chances de infortúnios dados nas lógicas ameríndias. Maus encontros — enquanto possibilidade da experimentação de uma posição de diferença com o perigo palpável de um ponto sem retorno — apresenta-se como um perigo P á g i n a | 78 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG recorrente nos mundos ameríndios dada a característica pan-americana da abertura à diferença. Viveiros de Castro associou o mau-encontro à algumas das agências características da inimizade ameríndia (mortos, “espíritos”) vistas como “germes de Estado” que nos relatos indígenas desencadeariam “quase-eventos” capazes de transformar irrevogavelmente humanos em não-humanos. Essas imagens personificadas do infortúnio retiradas das cosmopolíticas ameríndias e dotadas de afecções perigosas (raiva, tristeza-saudade) foram associadas aos brancos desde o primeiro convívio mais íntimo estabelecido com muitos povos indígenas. As percepções ameríndias sempre tiveram suas próprias elaborações teóricas a respeito do mal, das doenças e dos perigos que circulam por aí (ALBERT & RAMOS, 2002). É importante considerarmos, assim, o risco de hipostasearmos o poder de sociedades que atuam sob o signo do Estado como algo completamente desconhecido da experiência indígena, como algo altamente dominador e nocivo em si. Por exemplo, numa situação de intensificação do que traduzimos como mortes indiretas devemos considerar o acionamento recorrente de noções escatológicas e nosológicas nativas e de suas prescrições e tabus que regem redefinições e neologizações de contextos incomuns, mas não incognoscíveis e nem inerentemente aterradores e destrutivos devido à perplexidade paralisante diante do desconhecido. O sufixo cídio, enquanto assassinato, remeteria juridicamente não somente à consumação de um ato criminoso e sua constatação mas também julgaria sua premeditação e tentativa de atualização. Do modo como tenho enxergado, é disso que se trata o etnocídio: uma ressonância genocida que já possui uma atualização em curso e que pode ter n desfechos de acordo com as circunstâncias históricas envolvidas. Associados a essa profunda semiose do termo estão os contextos que antecederam, mas ganharam maior visibilidade nos eventos históricos da 2ª GM, Guerra do Vietnã e La Violencia colombiana que produziram crimes em larga escala contra os povos envolvidos. A partir da apresentação desses três contextos emergiram períodos prolongados de violências cujos momentos oficialmente reconhecidos como conflitos foram as partes “mais visíveis” de uma negação concreta da diferença. As violências desencadeadas nestas circunstâncias atingiram tamanha frequência que não é estranho que mesmo anos depois alguém que não tenha vivido tais experiências em um primeiro contato com os fatos registrados, principalmente quando vemos imagens ou escutamos relatos das atrocidades cometidas contra corpos dos vivos e mortos, paralise nossa razão aflorando sentimentos que traduzem um misto de revolta, compaixão, apreensão e, principalmente, angústia. A sensação de que a humanidade perdeu algo pelo caminho, objeto perdido que nos impulsiona à devoração avassaladora de nossas possibilidades existenciais, P á g i n a | 79 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG multiplicando incessantemente nossas necessidades na ânsia de alcançar a restituição da primeira unidade, fonte de nossa origem. O que a história mostra é que a repulsa ocidental à diferença nunca teve nada de abstrata. As agressividades etnocidas parecem que sempre voltaram-se contra Outros bem concretos. O desenvolvimento “moderno” de um maquinário sofisticado e maior distanciamento entre agressores e agredidos não diminuiu ou tornou a violência mais sutil, mas aprimorou seus meios de mascaramento científico, seja por abomináveis equívocos, deliberadas omissões e/ou manipulações dos fatos. O sentido político dessa noção, portanto, não parte de um humanismo, um universalismo, completamente estranho ao Outro unicamente para aplacar nossa angústia diante de um mal do qual fazemos parte e pelo qual muitos de nós também são afetados. A tentativa é oferecer àqueles que não possuem familiaridade com os “efeitos etnográficos” ou “choque cultural” uma tradução (obviamente parcial) do modo como cosmopolíticas ameríndias apreendem certos conjuntos de agressões; como certas desconexões e relações que, para nós passam por outras escalas e cristalizações podem, para esses povos, representar perigo em vez de segurança. Não se trata da reprodução de um paternalismo, proteger o indefeso e sim, demonstrar que essas pessoas reivindicam apenas os meios para realizarem suas autogestões de modos de vida, e que suas elegantes soluções mostram-se como alternativas de futuro cuja inspiração devemos apreender com urgência Retenhamos o caráter imprescindível da tipologia criminal do genocídio criada por Lemkin que gerou uma ruptura com o nexo de causalidade da guerra para caracterizar certos crimes de lesa-humanidade[s]. Essa perspectiva também está presente com diferentes ênfases em Condominas e Jaulin. Os contextos históricos envolvendo os Judeus, Mnong gar e Barí demonstram que a guerra é apenas o momento que contrai ao máximo o espaço/tempo e enrijece situações de agressividade generalizada que já ocorriam nos períodos de suposta paz. Além disso, temos que notar a necessidade de tensionarmos os fundamentos cartesianos de nosso pensamento que levam a dicotomizar e qualificar a violência em termos de espírito/corpo. Contudo, para avançar a reflexão acerca do crime de etnocídio, elementos contidos na tipificação do genocídio devem ser criticamente considerados. São eles a “clara intenção criminosa” e uma “ ação criminosa continuada” ou um “padrão de consistência” – características imbricadas com uma lógica estrutural da violência. A respeito da amplitude dos crimes cometidos no caso da acusação de etnocídio, em comparação com o genocídio, nos três contextos mencionados, Lemkin, Condominas e Jaulin operaram com um arcabouço conceitual que continha termos como “grupos étnicos” e “identidade cultural” que reportam a um nível de sentido importante para as populações P á g i n a | 80 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG assim definidas sob o sentimento de pertencimento e reconhecimento comuns. Entretanto, há diferenças em níveis existenciais ainda mais amplos que não envolvem a “Cultura”. Importante reiterar essa advertência para refletirmos sobre o atual centro de gravidade dos conflitos em torno dos direitos territoriais dos indígenas no Brasil. Os “territórios” indígenas e suas reivindicações passam ao largo do que definimos de modo meramente econômico como posse da terra, e que, no máximo, traduzimos com frases do tipo “grupos indígenas possuem uma identidade cultural com seu território”. Pensar a importância da terra como território é utilizar uma codificação estatal, o que nega o fato de tratar-se de um espaço de afinização, de parentesco, em que as agências são sinônimo de sujeito e que elas ultrapassam em muito nossa definição antropocêntrica. Des-subjetivamos amplos espaços de convivência habitados por agências cuja existência desconhecemos e que não incluímos na definição de humano. Foi esse ataque a uma cosmovisão indígena que Condominas demonstrou estar em curso com a retirada dos Mnong de Sar Luk (suas terras ancestrais) para habitarem campos de refugiados. Essa relação com a Terra que a Declaración de San José sobre Etnodesarollo y Etnocídio en América Latina, de 1982, quis afirmar no seu sexto parágrafo10. Ao tomarmos essa discursividade sob a luz de uma visão atualizada do etnocídio para pensar o “território” nos aproximamos de outra noção recentemente abordada por Viveiros de Castro e Danowski (2014): Ecocídio. De um lado teríamos modos de vida baseados em um regime de irresponsabilidade consumista no qual as pessoas comportariam-se como se o humano pudesse, enfim, desvencilhar-se dos últimos laços da limitação e finitude do Mundo pós-Queda. Trataria-se apenas de acelerar essa nova promessa de transcendência tecnológica capaz de levar a uma “humanidade extra-corpórea” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 78). Essa dinâmica unilinear e acelerada estaria em cheque com a “intrusão de Gaia”. A consciência dessa força transcendental e indiferente seria um convite para resistir ao Antropoceno avançando impavidamente o apocalipse climático antes que a Sociedade absorva as rápidas mudanças. Estaríamos vivenciando, na verdade, uma guerra civil não declarada, repleta de múltiplas intencionalidades que interpenetrando-se, dissolveriam “dentro” e “fora”, organismo e ambiente. Situação que impediria a factibilidade absurda de um sujeito universal, policiador que, por meio da Ciência arbitraria uma simples“crise ambiental”. A oferta irrecusável seria a des-aceleração, abdicação das grandiosidades irresponsáveis e a compreensão de que humanidade e Mundo estão do mesmo lado (ibidem, p. 147). Do ponto de vista das cosmologias ameríndias, além do tema das más-escolhas (distinto da culpa ocidental acarretada pela Queda adâmica), o tempo pré-cosmológico foi P á g i n a | 81 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG habitado por uma humanidade primeva altamente transformacional cuja característica ontológica definidora do ser estaria no antropomorfismo. Ao contrário do Ocidente, nos mundos ameríndios foi a Natureza que separou-se de um fundo cultural universal. “A ênfase na práxis indígena seria na produção regrada das transformações” (ibidem, p. 92), o que significa que, embora esses povos busquem aberturas para a Alteridade, haveria entre eles um forte sentido de prudência e respeito com os passos dados em seus mundos repletos de agências, muitas delas perigosas, com às quais buscariam cuidadosas relações de afinidade. O que definimos “ambiente” nas perspectivas ameríndias seriam sociedades entre outras, “uma arena internacional, uma cosmopolítica” (ibidem, p. 94). Desse modo não haveria nessas paragens uma divisão Sociedade/Natureza classificável em termos de Sujeito/objeto. Nessas cosmovisões familiarizadas com apocalipses periódicos, o Mundo seria inseparável da proliferação da vida e das agências e suas técnicas estariam ancoradas nessas concepções, como no caso Yanomami explicitado por Davi Kopenawa: “Os brancos não se perguntam de onde vem o valor de fertilidade da floresta. Nós o chamamos në rope. Devem pensar que as plantas crescem sozinhas, à toa. Ou então acham mesmo que são tão grandes trabalhadores que poderiam fazê-las crescer apenas com o próprio esforço! Enquanto isso, chegam a nos chamar de preguiçosos, porque não destruímos tantas árvores como eles! Essas palavras ruins me deixam com raiva. Não somos nem um pouco preguiçosos! As imagens da saúva koyo e do lagarto waima aka moram dentro de nós e sabemos trabalhar sem descanso em nossas roças, debaixo do sol. Mas não fazemos isso do mesmo modo que os brancos. Preocupamo-nos com a floresta e pensamos que desbastá-la sem medida só vai matá-la. A imagem de Omama nos diz, ao contrário: “Abram suas roças sem avançar longe demais (...)”(KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 468-9). Estamos numa encruzilhada pois os chamados “modernos” mesmo sendo confrontados com a inevitabilidade do abandono de modos de vida altamente nocivos, em sua maioria não parecem dispostos a isso. O que estaria posto não seria o impossível retorno de todos os “modernos” às florestas e afins mas a possibilidade de um “devir-índio” que estaria ocorrendo em “setores importantes da “população” brasileira de um modo completamente inesperado”(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 158). A prevenção contra o etnocídio sob o panorama atual estaria distante do discurso sobre um Outro frágil e carente de tutela. São os povos indígenas e tradicionais e sua prudência com o estar no Mundo que tanto evitam o pior (Como Kopenawa nos lembra, quando o último xamã morrer o céu desabará de vez) como oferecem alguma saída de futuro desse labirinto infernal no qual nos metemos. P á g i n a | 82 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Notas [1] <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/liderancas-indigenas-lancammanifesto-contra-onda-de-intolerancia-religiosa>. [2] Le livre blanc de l‟ethnocide en amérique (1972) publicado em espanhol como El etnocidio a través de las Américas (1976) e La Des-civilización, política e prátctica del etnocidio (1974). [3] Essa qualidade parece operar inconscientemente, pois em uma das coletâneas de textos reunidos por Jaulin a teoria marxista é considerada como parte da prática etnocida. [4] Nas narrativas miticas a instauração da atual realidade dos homens não seria marcada portanto pela culpa. As figuras que encarnam essa passagem são positivadas: “Cegos ou mancos, vesgos ou manetas, são figuras mitológicas frequentes pelo mundo afora, que nos deixam confusos porque seu estado nos aparece como uma carência. Mas, assim como um sistema que a subtração de elementos torna discreto fica logicamente mais rico, apesar de estar numericamente mais pobre, os mitos frequentemente atribuem aos aleijados e doentes uma significação positiva: eles encarnam os modos da mediação. Encaramos o aleijão e a doença como privações do ser, e, portanto,um mal. Entretanto, se a morte é tão real quanto a vida e se, consequentemente, só existe o ser, todas as condições mesmo as patológicas, são positivas a seu modo”(LÉVI-STRAUSS, 2004[1964], p. 76). [5] Como mencionei no último capítulo, Pierre Clastres desenvolveu posições críticas que não deixam de ser reflexividade, principalmente em torno das visões excessivamente materialistas e que que negavam a agência política dos povos indígenas. Ao acrescentarmos outras considerações em torno da imanência da guerra sua obra aproximou-se bastante da ideia de socialidade proposta por Strathern na Melanesia e depois predada para pensar a afinidade potencial nas Terras Baixas da América do Sul. A meu ver, Clastres não viveu para também refletir sobre concepções de subjetividades para além do indivíduo. Ele estava em nítida sintonia com a crescente auto-critica americanista, não fossem sua morte prematura em 1977, talvez a proposta da noção de Pessoa para pensar os povos ameríndios tivesse contado com a participação de Clastres em 1979. [6] Em uma coletânea recente (ARÁUZ & APARÍCIO, 2017) o fenômeno que definimos como suicídio é abordado em mais de dez sociedades ameríndias, entre elas os Ye‟kuana, Ticuna, Matses, Sorowahas, Suruwahas, Aikewara, Karaja e Kaiowa. A partir desses múltiplos casos destacam-se duas observações de maior importância. Primeiro, na maioria desses casos o “suicídio” é um homicídio causado por agências personificadas associadas a certas afecções perigosas quando uma pessoa rompe ou escapa de modo prolongado a uma determinada rede de corporalidade. Segundo, o chamado encontro [neo]colonial não pode ser visto como único, principal e até mesmo um fator determinante na eclosão de “suicídios”. Isso não exclui o fato de que a convivência com não-indígenas aumente a frequência desses acontecimentos dados sob lógicas ameríndias. As políticas públicas ignoram com frequência a alteridade fenomênica dessas situações, implantando programas de combate e prevenção de “suicídio”, que em vez de mitigar, recrudescem os aspectos negativos de situações apontadas como problemáticas pelas próprias lideranças indígenas. [7] Essa noção foi utilizada por Robert Jaulin (1973[1970]) e Pierre Clastres (2004[1974]) em suas reflexões a respeito de etnocídio. O conceito pós-estrutural de máquina foi desenvolvido por Félix Guattari pela primeira vez em 1969 numa coletânea traduzida em português como Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional (GUATTARI, 2004 [1969]). Por questão de espaço não poderei desenvolver esse tópico aqui, mas a noção de máquina cultural me parece essencial para pensarmos o contexto brasileiro atual em termos da necropolitica proposta por Achille Mbembe e da sociedade da atenção sugerida por Jonathan Crary em Capitalismo Tardio e os fins do sono (CRARY, 2016). Para além das violências “mais visíveis”, essa chave interpretativa permitiria compreender melhor o contexto generalizado das crescentes violências normatizadas na sociedade civil e Estado. Num momento em que a Modernidade proporcionou aos indivíduos uma maior sensibilidade psicológica (como nos sugeriu Norbert Elias em A Sociedade de Cortes), não deixa de ser curioso que o aparelhamento da violência estatal tenha aprimorado técnicas sofisticadas de terror, tortura e punição (FOUCAULT, 2010) “psicológicos”. Das armas “não-letais” às torturas por privação do sono e superexcitação sensorial, os exemplos se multiplicam, principalmente com as inúmeras telas que atualmente capturam nosso tempo e atenção, numa mobilização estressante dos nossos afetos. P á g i n a | 83 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG [8] Tomar as agressões às complexas redes de afetos ameríndias como simples patologização em termos ocidentais têm efeitos violentos tanto no campo discursivo como nas aplicações de assistência médica. [9] Refiro-me aos congêneres teóricos (as teorias do difusionismo, da mudança cultural, aculturação) que precederam as primeiras conceitualizações do etnocídio e que no Brasil desenvolveram variações sofisticadas (transfiguração étnica, fricção interétnicas) como mostrou Viveiros de Castro (1999). O que há em comum em todas essas proposições é a referência ao Outro sempre nos termos de um monólogo pessimista da perda salpicado de formais considerações relativísticas. [10] “Para los pueblos indios la tierra no es sólo un objeto de posesión y de producción. Constituye la base de su existencia en los aspectos físico y espiritual en tanto que entidad autónoma. El espacio territorial es el fundamento y la razón de su relación con el universo y el sustento de su cosmovisión” (<http://www.flacsoandes.edu.ec/biblio/catalog/resGet.php?resId=13135>). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABEL, Christopher & PALACIOS, Marcos.. Colômbia, 1930-1958 in: BETHELL, Leslie (org.): A América Latina após 1930: México, América Central, Caribe e Repúblicas Andinas. São Paulo: Edusp, Volume IX, 2015. ALBERT, Bruce & RAMOS, Alcida (org.). Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte -amazônico . São Paulo: Editora Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 2002. ARÁUZ, Lorena Campos & APARICIO, Miguel;______ (org.). Etnografías del suicidio em América del Sur. Quito: Universidad Politécnica Salesiana, 2017. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Da cultura residual mas irredutível in:_____, Cultura com aspas e outros ensaios. 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O Jacaré é um rio de cerca de 160 km. de extensão, que atravessa sete cidades e serve ao abastecimento de Oliveira, que abriga algumas de suas nascentes. Atualmente, o rio encontra-se extremamente degradado e sofre com um assoreamento intenso, já tendo perdido algumas lagoas marginais, nascentes e várzeas. Oliveira também passou por uma crise hídrica entre 2013 e 2014, que levou ao cancelamento de aulas e atividades culturais como o carnaval, levantando na esfera pública a importância de se falar sobre o rio. A exploração antrópica da bacia do Jacaré é ampla e antiga¹, sendo a principal causadora da degradação do rio, por isso, a fim de entender porque ele está tão degradado, busquei compreender quais modos de existência e compreensão do mundo estão presentes nos muitos atores que se relacionam com ele. Para isso, entrevistei moradores e ex-moradores, frequentadores ocasionais, estudiosos, ambientalistas, agentes do estado e produtores rurais. Também visitei trechos do rio, fazendas, reuniões, eventos ambientalistas e realizei pesquisas bibliográficas em livros sobre o município e no jornal Gazeta de Minas. Para este artigo, levarei em consideração principalmente as 4 entrevistas realizadas com produtores rurais que possuem propriedades banhadas pelo Jacaré. Como nossas entrevistas e conversas extrapolaram o tema do rio, trato, também, do entendimento desses produtores sobre o meio ambiente de forma geral. Três temas foram centrais nesta pesquisa: a relação dos produtores rurais com o rio Jacaré e o meio ambiente, a relação com a legislação ambiental e com os agentes do Estado, e a relação com os ambientalistas. Alguns nomes dos entrevistados foram mantidos e outros modificados de acordo com suas preferências. O rio Jacaré Em Oliveira são retiradas do Jacaré cerca de 0,252 m³/s sendo 0,023 m³/s para dessedentação animal 0,028 m³/s para a indústria, 0,167 m³/s para o abastecimento humano e 0,033 m³/s para a irrigação, o que indica que o maior uso das águas do rio no município é para o abastecimento humano. Porém, não é apenas a retirada de água que impacta em sua P á g i n a | 87 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG preservação. Para compreender porque o Jacaré está tão degradado precisamos levar em conta a ocupação do solo em sua bacia, que possui uma a área de 211.141,70 hectares, sendo que destes mais de 184.032 hectares são ocupados por usos antrópicos, isto é, cerca de 86% da área total (IGAM, 2011, p.123). Para uma noção mais completa da exploração antrópica da região, na tabela abaixo podemos ver os resultados de um estudo realizado em 2011, onde foram mapeadas 8 classes de ocupação do solo, a classe “outros usos” representa os usos antropizados (pastagem, solo exposto, e outras) que após a classificação das imagens foram agrupados em uma só categoria: Bacia do Rio Jacaré: classes de cobertura do solo. Fonte: Plano diretor da Bacia Hidrográfica do Rio das Mortes, 2011, p.123. O grande uso antrópico da área da bacia do rio Jacaré traz muitos prejuízos socioambientais. Oliveira e Santo Antônio do Amparo- que apresentam as maiores áreas urbanas da bacia- chegam, juntas, a um número de quase 564 voçorocas mapeadas em uma área de quase 784 hectares (Ferreira e Ferreira, 2009). As voçorocas são agravadas pelo mau uso do solo: grande parte da região onde se encontram é tomada pela pastagem e pelo plantio de café e outros gêneros que não são capazes de fazer a proteção contra a erosão provocada pela chuva. Segundo Ildeano Silva, muitas nascentes do Jacaré estão próximas ou dentro de voçorocas, e ele teme que isso as leve ao assoreamento. O assoreamento é um dos principais problemas socioambientais encontrados no Jacaré e se caracteriza como um processo onde o solo nas margens de um rio é erodido e os sedimentos são carregados para dentro de seu curso. Este processo geralmente se deve à perda da mata ciliar, que faz com que partículas do solo lavado pela chuva escoem para o rio P á g i n a | 88 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG sem nenhum impedimento. O excesso de partículas depositados no leito pode formar bancos de areia e tornar o fluxo da água mais pesado, o que propicia enchentes e a quebra das bases de pontes que estiverem em seu caminho (Pena, 2016). O processo de assoreamento também leva à perda de profundidade e interfere na biodiversidade do lugar: como as águas se tornam barrentas com os sedimentos depositados, a luz do sol não consegue penetrá-las, dificultando a proliferação de algas e outras plantas aquáticas, o que traz consequências para todo o ecossistema local (Martins, 2011). No caso do Jacaré, o assoreamento é tão intenso que em muitos locais podemos caminhar pelo rio sem que a água atinja os joelhos. A quebra da base da ponte localizada no Km.619 da BR381 é outro fato que pode ser creditado ao assoreamento do rio, sem contar a perda de algumas espécies de peixes. Como foi dito, o assoreamento se deve, na maioria das vezes, à perda da mata ciliar e da proteção vegetal de morros próximos ao rio, mas no caso do Jacaré podemos citar como agravante o projeto Pró-Várzeas, um empreendimento realizado nos anos 1970, que retirou os meandros do rio em cerca de 18 quilômetros. O afundamento da calha do rio, causado pela extração de areia, é outro problema importante a ser lembrado, posto que dificulta seu transbordamento, fazendo desaparecer várzeas e lagoas marginais. A dificuldade de recarga da bacia hidrográfica é outro problema encontrado e é o foco do trabalho da ONG Gramds (Grupo Ambiental de Desenvolvimento Sustentável), que tem como mote que a causa da degradação do rio está, na verdade, no solo, que passou por um processo de compactação ao longo do tempo, o que impede que a água penetre na bacia, prejudicando as águas subterrâneas, o que dificulta a manutenção e o surgimento de nascentes. Também precisamos citar a poluição, visto que o Jacaré recebe uma grande carga de dejetos em algumas cidades por onde passa, inclusive em Oliveira, que aguarda há pelo menos 30 anos a construção da estação de tratamento de esgoto. Como podemos perceber, existem conflitos sobre quais os reais motivos da degradação do Jacaré. Alguns colocam a degradação como fruto de erros antigos, que não devem ser esmiuçados, ou de fatores naturais, como a pobreza do solo na região. A maioria das pessoas apontou como problema maior a extração de areia, mas também foram citados o plantio de eucalipto, a criação de búfalas, a criação de gado, a diminuição das chuvas, a poluição provocada por empresas (principalmente laticínios), a poluição gerada por esgoto não tratado, o lixo jogado pela população, o plantio de tomate, o excesso de poços artesianos, o excesso de irrigação de modo geral, o risco de contaminação devido à proximidade com rodovias, a mineração, a exploração do cascalho e o uso da água retirada diretamente do rio para abastecimento da população oliveirense. Muitas atividades apontadas como foco da P á g i n a | 89 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG degradação possuem relação com a exploração agrícola, como a lavoura, a pecuária e a silvicultura, e podemos dizer que as causas da degradação são múltiplas e advém da junção de pequenos processos, o que torna mais difícil compreender e combater o problema. Também se encontram, no rio, projetos de sociedade distintos, muitas vezes conflitantes. Aqui, lembramos a afirmação de Zhouri (2007), que mostra que “o mundo material é entrecortado por sujeitos sociais que elaboram projetos distintos de uso e significação do espaço, seja ele rural ou urbano” (ZHOURI, 2007, p. 2), sendo distintos os projetos de agentes do estado, ambientalistas ou produtores rurais. O Jacaré pode ser lugar de religião, de lazer, de proteção, de exploração econômica, dependendo do grupo social a que pertence o entrevistado, sua história de vida, etc. Ao tratar do problema urgente de sua degradação, a visão dos produtores rurais é de suma importância, pois eles são o grupo social que possui uma relação mais próxima com o rio, sendo dependentes diretamente da exploração do ambiente para seu sustento, e atores chave no que diz respeito à conservação do Jacaré, posto que suas práticas vão determinar, em grande medida, o futuro do rio. Por isso, é importante perceber quais conceitos de “natureza” estão em jogo, qual a relação dos produtores com as leis ambientais e agentes do Estado, além da relação estabelecida entre produtores rurais e o movimento ambientalista que se dedica atualmente à preservação do Jacaré no município de Oliveira. Os produtores rurais Visitei 3 fazendas próximas ao Jacaré, pertencentes a quatro produtores rurais. Rosemaire e João são cunhados e vizinhos, e ambos moram nas mesmas casas desde que nasceram, no povoado do Jacaré. Inácio é pai de Amadeu e eles compraram juntos a fazenda chamada Diamante, em outra parte do rio. Inácio e Amadeu não moram na terra, mas os outros entrevistados sim. Todos os entrevistados trabalham nas propriedades, num regime de agricultura familiar (porém, contratam trabalhadores ocasionalmente). Rosemaire aluga parte da terra para a Gerdau. Rosemaire me conta que sua família sempre morou ali, e os velhos muros de pedra do curral atestam esta história. Segundo ela, eles estão ali “desde sempre”. Teriam sido feitos por pessoas escravizadas? Não sei, o que se sabe é que Rosemaire herdou a fazenda de seu avô, que gostava muito dela. Quando cheguei ao local, ela estava alimentando o gado, mas me disse que trabalha cuidando da casa e dos filhos. O curral está instalado logo ao lado de sua casa, e em seu quintal avistamos o rio. P á g i n a | 90 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Rosemaire não vai tanto ao Jacaré, embora brincasse nele quando criança. Seu filho, por sua vez, gosta muito de pescar. Ela se lembra de que o rio tinha cheias muito mais fortes, e fala da diminuição das chuvas. Conta-me também que se mudou para a cidade por um tempo, por questões de saúde da filha, mas quis voltar para seu lugar de origem. Na casa, verduras, bananeiras, plantas ornamentais, fogão à lenha, piso de cimento batido. Ao lado do muro, vejo uma casca de cobra. Pergunto se tem muita cobra por ali. Rosemaire diz que sim, muitas: jararaca, cascavel. Ela tem muito medo, mas é ela mesma quem mata quando aparece. Na região também há muitos lobos e é possível ouvir seus uivos à noite. A forma como cheguei nessa fazenda foi através do policial ambiental Antônio, que me levou à região, e Rosemaire foi a única produtora rural com quem consegui conversar. As mulheres têm um histórico de desvalorização no campo, gerando um maior êxodo da parte delas (Abramovay, 1995), o que pode ser um dos motivos para eu não ter encontrado nenhuma mulher administradora de alguma fazenda. No caso oliveirense, segundo o censo agropecuário realizado em 2017 pelo IBGE, dos 1292 imóveis rurais do município, 1.072 pertenciam a pessoas do sexo masculino, e apenas 120 a pessoas do sexo feminino. A desigualdade de raça também é gritante: 1.044 proprietários brancos, e apenas 55 pretos e 87 pardos. Em um estudo realizado no Paraná por Abramovay et al. (1995), 10 de 16 mulheres entrevistadas consideravam o trabalho na agricultura muito pesado, sofrido e cansativo e foi atestado que a dupla jornada de trabalho é muito comum entre elas. Esta realidade ainda não mudou significativamente, e na região de Oliveira, além da dupla jornada ainda existem mulheres que recebem menos por dia de trabalho na panha de café ou em outras atividades agrícolas. Outro aspecto importante que impacta na desigualdade de gênero no campo é que na agricultura familiar ainda é comum que o pai administre o dinheiro gerado pelo trabalho dos filhos e filhas, e das esposas, garantindo um controle patriarcal sobre a família (Abramovay et.al, 1995). Na conversa com Rosemaire não pude perceber muitas questões ligadas ao trabalho agrícola, visto que ela tem como prioridade o trabalho doméstico, mas percebi um apreço pelo lugar em que nasceu e mora e aparentemente poucas preocupações ambientais, embora ela perceba muitas mudanças no rio, como o fato de não ter cheias tão fortes quanto antes e estar com a calha mais afundada. Ao lado da fazenda Jacaré está a propriedade de João, pecuarista que é casado há poucos anos, e que já viveu muito tempo sozinho na pequena casa herdada dos pais, onde nasceu (de parteira) e vive até hoje. Enquanto caminhamos pelo mato ele diz que não há P á g i n a | 91 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG nada melhor do que viver em contato com a natureza. Percebo seu apreço por aquele lugar e pelo rio. A coisa que ele e sua esposa Ivani mais gostam é pescar. Se pudessem, pescavam o dia inteiro: nem trabalhavam, ela diz. Ivani conta que conversou com o ambientalista Ildeano Silva, para que ele a orientasse sobre como preservar a nascente que está no terreno. Atualmente, João cria búfalas e vende seu leite para os Laticínios Bom Destino. O leite de búfala é mais caro e muitas pessoas optam por produtos feitos a partir dele porque ele tem menos colesterol. As búfalas são um gado rústico e só necessitam de pastagem e um pouco de complemento para a alimentação. Elas também gostam de se esbaldar na água dos rios, e João mora a poucos metros do Jacaré. Todos os entrevistados concordam que o Jacaré está muito degradado, mas cada um fala que o problema é uma atividade que não fazem: quem cria vacas culpa a criação de búfalas, quem cria búfalas culpa o eucalipto e assim por diante, mas o produtor rural Inácio, que tem 82 anos, pensa um pouco diferente. Ele diz que ele e os outros produtores rurais têm responsabilidade sim sobre a degradação, mas o porquê disso deve ser compreendido. Também diz que é preciso que o governo incentive os produtores, pois o que acontece agora é que eles precisam arcar privadamente com a preservação que beneficia toda a sociedade. Em suas palavras: Alguns, maioria dos produtores rurais, também não amam a natureza. A maioria. Porque se todos amassem a natureza, o produtor rural era um guardião da natureza, porque ele tá ali todo dia, todo dia ele tá ali. Mas tem que amar a natureza, não tem que pensar só nele. Se ele pensar, tiver humanidade, e pensar na população, porque também são todos iguais, são todos irmãos, ele seria um guardião da natureza. Agora o que às vezes o meio ambiente quer, isso aí minha filha, tá inverso. Porque você vê, hoje a lei diz claramente que a água não é do produtor rural, ele tem que cuidar dela e não é dono, porque o dia que ele precisa de água tem que requerer uma outorga, então se ele for mais racional ele fala “eu não vou cuidar da água porque ela não é minha, ela é do poder público”, né? Agora, se ela é do poder público, o que que o poder público teria que fazer? Bancar custo. Pra conservação das nascentes, nesse caso, do rio (Inácio em entrevista, 2018). Inácio aponta a contradição: o produtor rural é quem possui mais chances de proteger a “natureza”, visto que é o que está mais próximo dela, mas ao mesmo tempo precisa explorála para sobreviver economicamente e não têm condições econômicas de preservá-la. A população rural também sofre com o descaso do governo e com a ideia de que o campo é o lugar do atraso. Inácio foi vice-presidente do sindicato dos produtores rurais e já ouviu de um prefeito que os produtores deveriam “pegar um carrinho de mão e arrumar as estradas rurais” ao invés de cobrar isso da prefeitura. As políticas públicas, quando existem, muitas vezes são impostas ao campo sem diálogo, de maneira autoritária e sem levar em conta os modos de P á g i n a | 92 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG vida da população. Como aponta Galizzoni, em um trabalho realizado com populações rurais de Minas Gerais: As famílias são unânimes em afirmar que as leis ambientais só prejudicam os mais pobres, e todos gostariam que elas mudassem. É necessário notar sobre esse aspecto repressivo da lei: ela rebate de forma desigual sobre grandes e pequenos possuidores de terra, gerando verdadeira repulsa por parte dos agricultores que possuem parcelas pequenas de terra em obedecer a elas, já que as leis não se adequam à realidade das terras dos agricultores e restringem muito suas possibilidades produtivas. Tal qual ocorre em outras áreas de Minas Gerais; cabe aos pequenos produtores o custo da conservação ambiental. Entretanto, eles recebem pouquíssimos incentivos ou compensações por isto (Galizoni, 2005, p.92) . As realidades enfrentadas por pequenos e grandes produtores são diferentes, bem como as racionalidades que guiam suas ações. Como salienta Laschefski et al., observa-se que muitas vezes os problemas específicos dos pequenos agricultores, que vivem uma maior pressão material e possuem menor acesso a bens do mercado, são apropriados “de forma generalizada na defesa dos interesses de atores vinculados ao agronegócio globalizado”, acabando “por inserir todos os grupos em iguais condições no aparato legal, sem considerar as especificidades existentes”(LASCHEFSKI et al., 2012, p.408 . Portanto, vale lembrar que falar sobre a falta de diálogo e a repressão da lei sobre os pequenos agricultores não é o mesmo que defender a flexibilização das leis ambientais para atividades de grande impacto, como monoculturas extensas, grandes projetos minerários, etc., conforme vem sendo argumentado por alguns setores do meio empresarial. Inácio é enfático sobre o aspecto repressivo do poder público e, como muitos outros entrevistados, cita a corrupção dos órgãos ambientais, que não realizam seu trabalho de forma correta. A palavra meio ambiente é usada em seu discurso como sinônimo de natureza, mas também de órgãos ambientais e de ambientalistas, os dois últimos vistos como distantes e pouco conhecedores da realidade dos produtores rurais. Nas palavras de Inácio: Nós estamos todos reconhecendo que estamos precisando de olhar pra esse lado. Agora, uma coisa que eu me revolto é deles falarem que o produtor rural é criminoso, pelo contrário, ele é um guardião da natureza porque ele tá ali todo dia, se ele quiser ajudar, ele tá ali todo dia, ele tem mais condição de permanecer no local, porque as pessoas da cidade vêm e cuida e vão embora, né, e ele tá sempre ali. Porque ele depende da terra pra sobreviver. Por isso que eu acho que o Meio Ambiente, o poder público, tinha que ajudar nessa parte com custos financeiros, e o produtor reconhecer que ele tem que fazer melhor da parte dele também. Não é só o meio ambiente não, porque eu reconheço que pro meio ambiente também fica complicado, porque é isso que eu tô falando, eles não estão todo dia. Hoje tá muito avançado a fiscalização, esses trem, mas a gente nem convem falar da fiscalização, não deve” (Inácio, em entrevista, 2018- grifo meu). P á g i n a | 93 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Muitos pequenos produtores estabelecem estratégias de usos que preservam recursos essenciais (como as nascentes), e alguns possuem conhecimento de formas mais sustentáveis de produção e até gostariam de utilizá-las, mas isso seria muito oneroso. O plantio direto, por exemplo, é visto como melhor para a preservação do solo, mas é mais caro, o que faria necessário um investimento público. Sobre esse assunto, Inácio comenta: “Isso é um negócio fundamental isso que eu tô falando sobre plantio direto. Porque nós temos necessidade de alimentar, ou mesmo pra recursos financeiros, porque você tem a propriedade, ela custou dinheiro, ele tem que tirar dinheiro dela. Ele tem que viver dela, ele, a família. Há a necessidade de usar a terra, e se puder usar de uma maneira menos ofensiva à natureza não é muito melhor?” (Inácio, em entrevista, 2018 . Em 2016 a engenheira florestal Miriam Silva realizou 12 entrevistas por questionário com produtores rurais na sub-bacia do córrego dos Bois, que é a parte da bacia do Jacaré de onde é retirada a água para o abastecimento de Oliveira. Da área total da sub-bacia 40,70% do território é ocupado por pastagem, 35,84% por cafezal e 18,84% por vegetação nativa. O conflito do uso e ocupação do solo nas áreas destinadas à preservação corresponde a 25,58% do território das áreas de APP (Área de Preservação Permanente), evidenciando a presença de atividade antrópica nas áreas legalmente protegidas. O uso conflitivo mais comum nas APP é a pastagem (Silva, 2016). Sobre a relação dos produtores com o local e o impacto destas relações sobre o meio ambiente, a pesquisadora chegou à seguinte conclusão: Constata-se que a maioria dos proprietários rurais, arrendatários e suas famílias não possuem ligação afetiva com as suas terras e sim apenas um vínculo econômico. Chega-se a essa conclusão, pois a maioria dos proprietários não reside em seus imóveis rurais, grande parte das terras não foi herdada, foi adquirida por compra ou arrendada, apenas alguns dos filhos contribuem com as atividades e, em geral, não há interesse dos herdeiros em dar continuidade às atividades agropecuárias. Esse fator poderá influenciar negativamente o desenvolvimento sustentável da subbacia em longo prazo pois, atualmente, os produtores utilizam os recursos naturais disponíveis de modo que sua atividade agropecuária seja rentável e, em geral, não há preocupação com a conservação desses recursos para as futuras gerações. Na hipótese de ocorrência de degradação ambiental que interfira na produtividade do agronegócio, é bem provável que os proprietários rurais e arrendatários procurem outras terras mais produtivas ou mudem de negócio (Silva, 2016, p. 130). Em minha pesquisa também percebi o fator econômico como principal mediador da relação dos produtores rurais com o meio ambiente, mas convém lembrar que este predomínio do valor econômico é comum na vida da maioria das pessoas que vivem num sistema capitalista de consumo. Esperar que os produtores rurais colocassem a “natureza” como valor acima do lucro significa esperar que não tivessem uma mentalidade capitalista, o P á g i n a | 94 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG que seria contrário à sociedade em que vivem e na qual foram criados. Os produtores que eu entrevistei e visitei não vivem no luxo- pelo contrário. A degradação que eventualmente produzem não é produzida por ganância, mas uma consequência da tentativa de sobreviver da melhor maneira possível em suas terras. Em conversa com Amadeu, o agricultor que era mais crítico ao “pessoal do meio ambiente”, ele disse que o principal problema do rio era a extração de areia, mas apontou para a parede da casa onde estávamos e disse: todos querem construir casas. Obviamente, as leis ambientais existem para que a produção seja feita de forma adequada, mas o problema realmente é profundo e precisamos pensar qual nosso papel de consumidores de natureza, de “povo da mercadoria” (KOPENAWA e ALBERT, 2015), pois nós também fazemos parte do circuito da degradação ambiental. É preciso uma mudança civilizatória, pois atualmente a produção agrícola é governada pelo mercado, o que torna comum em Oliveira e outras localidades cenas como tomates e outros alimentos sendo jogados fora por não atingirem o preço mínimo para venda, mesmo que essa produção tenha tido custos humanos e ambientais, e mesmo que pessoas ainda sejam assoladas pela fome. No Brasil, a maioria dos trabalhadores não são donos da terra, trabalham às vezes sem folga e são muito explorados. O campo ainda é um mundo invisibilizado e desvalorizado. É preciso que se enxergue a importância do campo e que sejam feitas políticas públicas que diminuam a desigualdade e incentivem a preservação ambiental, mas o que vemos, como aponta Carvalho (2005) é a colocação dos produtores rurais ora “como criminosos ambientais, ora como heróis salvadores do bucólico mundo rural” (CARVALHO, 2005, p.133). Outros atores na rede Algumas pessoas na cidade de Oliveira se organizam na defesa do rio Jacaré. Uns criticam os produtores rurais, expressando sua desesperança :“Fazendeiro só quer saber de pasto”, disse-me um ambientalista em entrevista. Outros tentam trazer os produtores para a defesa do meio ambiente, apontando a eles quais vantagens poderiam obter com isso. A ONG Gramds faz um trabalho com agricultores familiares do Ouro Fino, comunidade onde estão localizadas muitas nascentes do Jacaré. Eles ajudam na recuperação do solo nas propriedades rurais, de modo a possibilitar a recarga subterrânea da bacia hidrográfica. Janice, presidente da ONG, comenta que foram muito bem recebidos pelos produtores, que abraçaram sem ressalvas o projeto. Aqui é importante lembrar que se trata de pequenos produtores, que P á g i n a | 95 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG plantam apenas para sua subsistência. No material de divulgação da Gramds encontramos a seguinte posição: É oportuno e relevante explicitar e ressaltar que os articuladores da implantação do Programa Produtor de Água em Oliveira são firmes defensores dos proprietários rurais interessados em práticas de boa sustentabilidade ambiental, principalmente na adequada gestão de Águas, com foco em soluções e não em problemas. E sem demonizar a atividade pecuária e menos ainda denegrir a memória de ancestrais que praticaram equívocos de gestão ambiental por anos e anos, séculos e séculos, por desconhecimento das consequências de seus atos. Se hoje nós temos uma melhor visão sobre o que fazer e o que não fazer, façamos a revitalização do Rio Jacaré em reparação ao passado e pela construção de uma realidade que não nos condene no julgamento de futuras gerações” (Texto de divulgação, ONG Gramds) . Existe um impasse: se por um lado os produtores rurais não se mostram preocupados com a preservação ambiental, por outro, eles não podem ser apenas cerceados, visto que a preservação depende de uma mudança real de atitude por parte deles. No que tange à fiscalização e cumprimento das leis, a polícia ambiental oliveirense não possui meios de fazer seu trabalho. Para se ter uma ideia, existem apenas 4 policiais para atender a todas as ocorrências relacionadas ao meio ambiente em 7 cidades da região. Em relação à conscientização, o caminho ainda é longo, mas o policial florestal Antônio acredita que houve sim um avanço neste tema. Em suas palavras: Hoje em dia tá mudando muito, tá melhorando, o pessoal tá bem mais consciente. Mas ainda você encontra aqueles que não respeita, não quer gastar em por um bebedor pro gado beber uma água no curral, solta o gado pro gado ir todo pro rio. Ainda existe muita gente que desobedece. Tem melhorado, nesses 6 anos que eu trabalhei na polícia florestal eu notei uma grande melhora. Pessoal tem se conscientizado bastante, pelo nosso trabalho, pela divulgação de televisão. Sempre tem aquela porcentagem de gente que não tá nem aí né, tem a água lá e quer fazer o gado dele beber, quer tirar o lucro dele daquela propriedade ali.” (Antônio, em entrevista, 2018). O ambientalista Ildeano Silva conta que era um destruidor, mas hoje é um protetor ferrenho e reconhecido do meio ambiente. O produtor rural Inácio também conta que modificou sua visão com o tempo e as dificuldades passadas com as secas. Hoje, ele, que já se dedicou à produção de carvão, optou por não desmatar: “tem coisas aí que estão liberadas e eu não vou tirar, porque eu fico pensando na geração futura, né, porque a gente já sofreu aqui com o negócio de planta, com falta de chuva, então eu já fico pensando no futuro, na geração futura, dos que virão. Porque eu vejo que sem água não tem nada, né? (Inácio, em entrevista, 2018). Todos os entrevistados e entrevistadas nessa pesquisa concordam sobre a importância do rio Jacaré. Cito como exemplo a conversa com o ex-vereador Rosymar, na qual este demonstrou certa resistência em relação aos discursos ambientalistas- dizendo que ambientalistas se preocupam mais com as árvores do que com as pessoas- mas ao ser P á g i n a | 96 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG perguntado sobre a importância do rio foi taxativo: “é muito importante, nós somos feitos de água!” Na fala de Wagner, encarregado geral do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto), órgão responsável pelo abastecimento público de Oliveira, também é perceptível a preocupação com o rio, que é denominado por ele como a “menina dos olhos” de Oliveira, em suas palavras: “ nossa solução”. É bastante claro que o meio ambiente está se tornando um valor aos poucos, mas quando confrontado com o valor econômico ele perde sua força quase totalmente. Poucos colocam o rio Jacaré acima do ganho econômico, e os que colocam não são bem vistos. Muitos não acreditam que suas ações prejudiquem o rio, ou que prejudiquem ao ponto dele um dia desaparecer. Muitos, também, não se importam se ele de fato desaparecer, contanto que isso não os atinja. Como afirma Israel Ramos, os ambientalistas ainda são taxados como chatos quando tentam falar sobre o assunto. Há 20 anos na defesa do rio, o ativista comentou que, em todas as cidades por onde o rio passa, não se encontram nem 3 pessoas que cuidem dele e que sempre esbarra na indiferença da população oliveirense: segundo ele, se começa a falar do rio numa roda de amigos, logo as pessoas saem, e “um soldado sozinho não faz a guerra, nem uma andorinha faz verão”. Como aponta Inácio: “pra cuidar da natureza, sinceramente, é por amor à ela, pra te falar a verdade. Por amor à vida, afinal de contas. Porque sem água não tem vida, é isso que eu tenho que te explicar” (Inácio, em entrevista, 2018). Considerações finais O mundo material é a base para a vida humana, os “recursos naturais” são condições de existência e podem ser apropriados de diversas formas, de acordo com os modos de produção, sistemas simbólicos ou outros fatores sociais agregados a esta materialidade. Deste modo, ideias particulares sobre a natureza, a ecologia e o meio ambiente estão em constante inter relação com outras noções, o que implica processos de negociações e conflitos, que são políticos. Isso implica que as mudanças ambientais não sejam neutras, e que a apropriação dos recursos naturais sejam mediados por relações desiguais de poder (ULLOA, 2002). O rio é parte de uma disputa que não diz apenas sobre como suas águas serão utilizadas ou sobre quais construções simbólicas predominarão ao se tratar do meio ambiente: as relações com o Jacaré dizem de um projeto civilizatório, do que é a boa vida para as pessoas que vivem a sua volta, e todo este contexto deve ser levado em conta para compreender os fios que tecem o rio, bem como os motivos de sua degradação. P á g i n a | 97 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Os produtores rurais são agentes chave tanto para compreender a degradação do Jacaré, quanto para a construção de seu futuro. É perceptível nesta pesquisa que eles não estão fora da lógica capitalista, onde o mundo natural é utilizado como recurso para a produção e o lucro, porém, outras questões perpassam a relação com o ambiente, como a afetividade com o local em que vivem. Concordamos com Laschefski et al. (2012), que alguns agricultores familiares já incluíram, em parte, a visão de que se deve preservar a “natureza”, porém, são as materialidades de seus modos de vida, explicitada pela pressão econômica, que explicam as aparentes contradições nos seus atos. As políticas ambientais são, na maior parte das vezes, repressivas, porém, seria mais efetivo que existissem políticas de incentivo à produção sustentável. As formas de relação entre produtores rurais, Estado e ambientalistas variam, porém, é certo que sem a atuação dos produtores rurais é impossível avançar na recuperação e preservação do rio Jacaré. Notas [1] A colonização portuguesa da região de Oliveira se deu no século XVII, através do estabelecimento de fazendas para a agricultura e pecuária, diferente de muitas cidades mineiras fundadas neste período por possuirem pedras e metais preciosos. Anteriormente, a região era habitada pelo povo Cataguá (ALMEIDA e RIBEIRO, 2011). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Ricardo [et al]. 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P á g i n a | 98 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG KOPENAWA, David e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo, Cia das Letras, 2015. LASCHEFSKI, Klemens Augustinus; DUTRA, Carina; DOULA, Sheila Maria. A legislação ambiental como foco de conflitos: uma análise a partir das representações sociais da natureza dos pequenos agricultores em Minas Gerais, Brasil. Sociedade & Natureza, v. 24, n. 3, p. 405-417, 2012. MARTINS, Eduardo Ribeiro. Meio ambiente. In. História Contemporânea de Oliveira (1961-2011). Org. Almeida, Márcio e Ribeiro, João Bosco. Oliveira: Editora Gazeta de Minas, 2011. PENA, Rodolfo F. Alves. Assoreamento de rios. Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/geografia/assoreamento-rios.htm>. Acesso em 08 de outubro de 2016. SILVA, Mirian de Sousa. Indicadores de sustentabilidade para a gestão do manancial de abastecimento público de Oliveira, MG. Lavras : UFLA, 2016. ULLOA, Astrid. 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P á g i n a | 99 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Ponto de enxergo: relações que transbordam o Cerrado Marília Cyrne “O limite é a primeira coisa fora da qual nada é encontrado e a primeira coisa em que tudo deve ser encontrado”(Ranajit Guha Introdução Esse trabalho tem como objetivo pensar o Cerrado através das relações que os Krahô experienciam entre agentes Humanos e Não-Humanos, procurando contribuir para o debate que visa entender o conceito de T/terra não apenas na potência da palavra escrita, mas também nas outras palavras transbordamento: Planeta/solo, Globo/superfície, que ela evoca, obrigando Concebido/vivido (IUBEL; o seu SOARES- PINTO, 2017, p. 8). Para isso, com base em pesquisa bibliográfica e trabalhos de campo, foram analisadas as relações a partir da perspectiva do xamanismo desse povo, o que foi incentivado pela tese de doutorado de Marcela Coelho de Souza onde, ao falar do xamanismo dos povos Jê do Brasil Central, aponta para o seu aspecto cerimonialista, seu desenvolvimento restrito e a ausência de fermentados e alucinógenos como resultado da etnologia aí exercida, que teve um enfoque mais sociológico. Somado a isso, ao falar do corpo como feito e não como fato, destaca que antes de ser um princípio de individuação e um modo de construção do sujeito, ele parece operar como um modo de objetivação do sujeito em uma forma de vida específica, o que traz também a noção do Outro e nos faz lembrar de que existem vários “outros” além dos mortos, como os animais e o Cupem, com o qual esse corpo que passa por uma singularização dentro de uma singularização tem a possibilidade de interação [COELHO DE SOUZA 2002, p. 370-398], já que ele apreende seus conhecimentos de um animal, vegetal ou algum outro ser (MELATTI, 1978, p.92). Os Krahô, que autodenominam-se Mehin (mesma carne, mesmo jeito) (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 192), fazem parte do Tronco Linguístico Macro-Jê, e tiveram os primeiros contatos com os europeus no início do século XIX, quando ainda ocupavam a região na divisa do Maranhão com o Piauí. Contudo, encontram-se já, há muitas gerações, no estado do Tocantins, entre os rios Manoel Alvez Pequeno e Vermelho, na Terra Indígena Krahô, que possui mais de 300.000 hectares, uma das maiores áreas contínuas de P á g i n a | 100 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Cerrado preservado do país, demarcada nos anos 1940 após sofrerem uma chacina por parte de fazendeiros da região (OLIVEIRA, 2006, p. 57). Mas muitas são as pressões externas que os afetam atualmente, como o avanço forte do agronegócio, a hidrelétrica de Estreito, a T-0104 e caçadores de animais silvestres, que se utilizam inclusive do fogo para a realização dessa atividade, o fogo não manejado, o que gera tensões sobre as quais tento refletir brevemente ao fim do trabalho em conjunto com as concepções ontológicas dos Mehin. O Cerrado cantado Em março desse ano, 2018, Getúlio Krahô passou alguns dias na minha casa, por conta de um projeto outro que estamos desenvolvendo. E em uma das noites conversávamos sobre a presente pesquisa, que busca entender as relações que se dão dentro do Cerrado, mas não só em termos de bioma, e perguntei se ele poderia cantar uma música sobre, para que eu utilizasse na pesquisa. Ele então cantou por vinte minutos, sentado na mesa redonda da minha sala, parando no meio só para avisar que continuaria cantando. Não tenho a transcrição dela nem a tradução exata, mas é um canto1 sobre as relações que acontecem no Cerrado. Nessas relações, o Cerrado aparece como o Ken (as chapadas). Debaixo dessas chapadas é que a queixada fica sentada, e questiona-se qual é o caminho que ela vai tomar para procurar o seu alimento. A anta que passa pela porteira é a anta preta. E há também o Gavião, que se assusta com a árvore quando pousa em cima dela, em busca e na espera de caça. Uma série de relações estão aí constantemente acontecendo. Depois que terminou de cantar, Getúlio concluiu: “O Cerrado é bom, quem são criador do Cerrado que nasceram e percebeu todos os seus movimentos. No Cerrado tem tanto biólogo e antropólogo que já aprendeu aí dentro, que são pesquisadores. Dentro do Cerrado tem um bocado de material, dentro da montanha, na caverna. Quem começou a criar o Cerrado foi Papahm, que criou tudo pra nós e deixou tudo pra nós de presente e que ainda até hoje estamos usando. Água, ambiente, respeito. Mas todos nós somos criador. Dentro do Cerrado tem todos os bichos que sabiam manobrar as conversa. No Cerrado tem a água, que corre na veia da gente, a gente bebe. Água que faz os movimento nos corpo da gente. A gente bebe, lava o rosto, banha, cuida, nós usa no mundo todo(...). Então a água cria nos todos. Todos os bichos bebe água, peixe é da água e é criador de água. Que fornece pra nós e a gente pega” 2. Esse pequeno texto é resultado de um trabalho que, dentro de um ano, procurou sistematizar bibliografias que fizessem emergir as relações entre os Krahô e o “Cerrado”, em conjunto com dados coletados em campo nesse mesmo período, mas também em momentos anteriores a ele, quando quem escreve aí já se relacionava. A idéia desse estudo começou a se formar em setembro de 2017, quando estava na Terra Indígena Krahô P á g i n a | 101 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG para participar de um ritual de fim de luto do finado Secundo. Era um período em que o Cerrado, não só da região do Tocantins, queimava em incêndios. Os Mehin consideram “normal” essa situação nesta época do calendário, situação potencializada pelo atraso nas chuvas. Eles já vinham sugerindo que eu realizasse pesquisa com eles, mas nunca falavam o assunto, e quando um dia os acompanhei para apagar o fogo, percebia que ali não era “apenas” uma situação de evitar que o fogo se alastrasse, assim como já havia presenciado, em outras situações, como nas roças, que não eram atividades que se davam “apenas” com o intuito de subsistência. Havia algo mais. A relação ali não era, mais uma vez, a que eu estava habituada. Esse é em si um dos problemas fundantes da antropologia, que é a própria divisão entre Natureza e Cultura, e que também é uma questão anterior a ela. Dentro disso, seguindo Viveiros de Castro, ao invés de pensar grandes divisores, propus pensar as diversas multiplicidades, não com o intuito de abolir as divisas, mas de buscar sua complexidade infinita (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 16-17). Isso se dá a partir do que experiencio entre os próprios Mehin e pelas leituras das etnografias produzidas acerca destes, pois a partir disso, como tentarei evocar durante o texto, lançar mão desses conceitos da forma como sempre foi feita, usando-os como dados, não é possível nesse contexto, e é necessário exercitar o pensamento a operar em outras linguagens. O Cerrado é o Ken, e não só O “Cerrado” aqui aparece entre aspas pois, como o canto que Getúlio trás, e também como a fala de outros Mehin demonstram, tudo parece estar em constante movimento e em construção. A idéia de um Cerrado tal como concebida pelo Cupem (não indígena), como uma natureza dada e sem agencialidades, não parece ser profícua para pensar o que e os Krahó apontam como realidades de múltiplos domínios e relações, como aparece na fala de Sidney Pohypej:“Não faz sentido pra gente quando escutamos vocês Cupem (não indígena) falarem em seres humanos. Em seres vivos um pouco mais, mas ainda assim é estranho. Mas tudo tem vida”3. As relações que aí ocorrem conectam e afastam corpos Humanos e também não Humanos, pois o Cerrado é o Ken, mas não só, pois transborda ao conceito ocidental de um bioma natural, para nos remeter aos corpos que aí se encontram. Em uma conversa com um ancião sobre a minha pesquisa, em janeiro desse ano, ele me disse: “Vocês brancos, gostam muito desse negócio de papel. Mas eu mesmo larguei a escola muito cedo, P á g i n a | 102 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG mas sei das coisas. Eu sei por exemplo que a água pensa”. A mesma água esta nos corpos e que cria e que é criada. E se estende pelas roças, pois aparece nas categorias nativas de Cerrado, como apontado mais a frente. Em seu estudo sobre as roças, Morim de Lima (2016), ao enfocar a batata-doce e suas relações, demonstra que ela conta as trajetórias das famílias (são as mulheres que costumam plantar, presentear e receber de presente, guardar as batatas), assim como relações de predação (as mulheres caçam a batata-doce, o que também exige também uma série de cuidados e negociações), e ao falar sobre o Cerrado, nos apresenta que os múltiplos domínios citados no parágrafo acima são povoados por uma diversidade de seres. As paisagens aí não são rígidas, mas sim ambientes inacabados e dinâmicos, constantemente forjados através de uma relação criativa entre os seres vivos, identificados e nomeados pelos Mehin através de sistematizações abertas e ao mesmo tempo relacionadas e integradas, onde leva-se em conta espécies vegetais, animais, altitude, tipo de solo, microclima; onde o reino animal não aparece nomeado, trazendo a reflexão de como acontece, ou onde está a divisão entre Humanos e Não-Humanos (e Cultura e Natureza). A terminologia da qual se lança mão é a mesma que muitas vezes é utilizada para vegetais e humanos, sendo categorias de nomes que precisam especificar a quem se relacionam, incluindo termos das partes do corpo, de parentesco e de certos objetos (MORIM DE LIMA, 2016, p. 57-60), e o vocabulário utilizado para se referir ao que é humano não coloca a humanidade como algo dado, mas sim como uma condição, que vai sendo modificada por intensificadores que são menos substantivo e mais pronomes, possuindo uma grande variabilidade de contexto desses pronomes, evocando desde a parentela imediata do ego até todos os humanos, ou mesmo todos os seres dotados de consciência (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 125). A atitude para com todos os seres é moral e construída na ordem do parentesco. A singularização na singularização: Wajaká Nessas relações há os que possuem a capacidade de realizar o deslocamento necessário para interagir com os Outros. Seus corpos trazem as perspectivas que os fazem ver. São, nas palavras de Getúlio, os pontos de enxergo, sendo que o enxergar está bem longe de apenas ver, pois olhar não é só ver, assim como escutar não é só ouvir e compreender. Todos um sentir do corpo está ligado, é global (MORIM DE LIMA, 2016, p. 245). É inclusive dessa interação e da sustentação dessa com o Outro que se produz a singularização e a afirmação tanto da pessoa quanto do grupo. P á g i n a | 103 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Mas, antes de continuar a falar sobre isso, e justamente para ser possível continuar falando, gostaria de colocar uma reflexão sobre ponto de enxergo, com o intuito de deixá-lo em aberto, pois ele ainda será evocado mais algumas vezes no decorrer da escrita, por parecer ser o mais adequado nesse momento: ponto de enxergo é perspectiva, como já foi falado, mas também é não só perspectiva. Esse tipo de reflexão vem e volta desde o começo do ano, sobre o motivo de não haverem palavras como as que utilizo aqui para que seja compreendido em sua extensão e/ou potência pela leitura, diferente do que acontece na escuta (isso menos porque considero o ouvir acima do ver, mas mais por supor que do movimento da hierarquização dos sentidos se segue outro, que é o do esvaziamento do próprio ver, dentro do entendimento ocidental [INGOLD, 2008]). E disso emergem três possíveis conclusões, sem nenhuma definida, e que podem ser um pouco de cada, ainda alguma outra. Pode ser que mais tempo de campo seja necessário. Ou, mesmo que eu nunca tenha visto esse conceito por escrito, pode ser que uma maior leitura de minha parte auxiliasse em uma maior delimitação dele. E, por fim, entendendo que o que acontece aqui é uma tentativa de tradução, e que “traduzir é presumir que um equívoco sempre existe; é comunicar por diferenças, em vez de silenciar o Outro, presumindo uma univocidade - a semelhança essencial - entre o que o Outro e Nós estamos dizendo”(VIVEIROS DE CASTRO 2004b, p. 10), comecei a pensar o alcance das nossas palavras, e a pesar que nas traduções existem possibilidades de pontes, mas que também há perdas, e talvez não de significado, mas da própria perspectiva ou do próprio ponto de enxergo, e talvez, ao menos por enquanto, nomear seja o suficiente (CADENA, 2015, p. 27-30). Retomando o assunto, é dentro da chave das relações então que se dá a verificação da humanidade onde, como já foi dito, se estabelece matizes dentro de um contínuo de parentela e de humanidade entre os sujeitos e distingue os que habitam o cosmos ameríndio, também como resultados quase sempre reversíveis de feitura, quase sempre porque há fronteiras que quando cruzadas fazem com que um corpo se torne imune ao (re)aparentamento, como os mortos, uma outra forma de ser Outro. Quando se morre, se perde o princípio individualizador, que é o corpo, onde reside privilegiadamente o eu, e fica a alma, o karon, que todos possuem, incluindo animais, vegetais e artefatos, como o maracá. Se o karon está ligado a identidade individual da pessoa, com uma particularidade de só manifestar-se no lugar de indivíduo, e nunca junto P á g i n a | 104 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG a ele, iniciando seu processo de desgaste só quando sai do corpo de forma definitiva (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 542-545). Mas existem vários “Outros” além dos mortos, como por exemplo os animais e os estranhos. Há entre eles diferenças importantes que se referem a corporalidade e ao processo de aparentamento que correspondem à sua construção. Os animais se definem por não ter um corpo humano, e isso nem é possível de forma total. E sobre os estranhos, onde entra o não-indígena, é possível tomar várias medidas em relação a essas diferenças. A terminologia a eles geralmente destinada é a mesma utilizada para se falar do que ou de quem não apresenta nada de reconhecível da forma Timbira, em uma classificação mais genérica, onde sua natureza, no sentido multinaturalista, é mantida em suspenso. Nessa classificação parece que a possibilidade de conversão ou o desejo por ela é uma questão mantida em aberto, o que não é um sinônimo de hostilidade guerreira, pois a guerra é apenas uma das instituições de relação entre os Timbira, sendo uma outra possibilidade a troca, o que traz a necessidade da diferenciação entre o estrangeiro e inimigo próximo preferencial, que podem ser os Humanos e os estranhos, e dos Humanos, que podem ser amigos e inimigos. O estranho tem um potencial transformativo, o que faz com que ele seja algo profundamente perigoso e qualquer relação nessa esfera deve ser cercada de cuidados (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 351-458). Todos esses Humanos e esses Outros, sejam Humanos ou Não, podem se relacionar ou não, havendo limitações aí devido ao seu corpo (ou a falta de). Enquanto que o karon é o princípio individual e sua origem é misteriosa, o corpo é algo que está em constante circulação, ainda que essa circulação deva ser muito controlada por quem a produz, inclusive porque ela é passível de se dar nas fronteira da humanidade (COELHO DE SOUZA 2002, p. 354-637). Mas há um corpo, um ponto de enxergo específico, que capaz de adotar a perspectiva da subjetividade estrangeira e pode contribuir para entender as relações entre os Outros e os Outros fora de bifurcações modernas, dentre todos: o do wajaká, o xamã. E é esse o corpo que busco entender aqui, em interação com outros corpos Não-Humanos, incentivo que vem dos próprio Mehin, e também dos antropólogos aqui citados. Viveiros de Castro aponta que são os xamãs que se dedicam a comunicar e administrar esses pontos de vista que se cruzam, de Humanos e NãoHumanos, é essa a pessoa, multinatural por determinação e ofício, que é capaz de transitar entre perspectivas e sem perder a própria condição de sujeito, e que faz assim as traduções necessárias entre as instituições, pois são capazes de voltar dessas experienciações para contar o que acontece (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 117-120;135). Na chave do P á g i n a | 105 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG xamanismo Jê, o material etnográfico tem um peso muito grande no aspecto sociológico, em detrimento do cosmológico, não pouco comparada ao contexto amazônico, e o que se sobressai disso é a falta de bebidas fermentadas e alucinógenas e um desenvolvimento relativamente restrito do xamanismo, com o cerimonialismo ocupando lugar nas práticas mais individualizadas (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 553-554). Para a transição e interação entre mundos ser uma possibilidade, o corpo do wajaká precisa ser construído de forma diferente, e assim os conhecimentos vindos de fora dos limites da Humanidade se tornam possíveis de apreensão, a partir do desenvolvimento de habilidades imprescindíveis a isso. Além de conhecer um número razoável de plantas mágico-medicinais, wajakás podem ver os espíritos dos mortos (já ouvi relatos de Krahôs que não são pajés e que tiveram esse tipo de encontro), entrar em contato com eles e consultá-los; conversa com determinados animais, de quem aprende novos remédios; possui substâncias mágicas dentro de seu próprio corpo; sabe tirar ou colocar feitiços; faz entrar novamente no corpo de alguém o espírito que dele se tenha retirado (MELATTI, 1963, p. 1-2). Nessa movimentação de ensinar e aprender, a boa escuta (campa) e a boa visão (hõmpu) são fundamentais. A boa visão pode ser entendida como a faculdade de ver além, acessando mundos invisíveis das almas tanto de Humanos como de não Humanos, e conseguir se comunicar com elas, o que é uma especialidade desenvolvida pelos pajés, que enxergam tudo de longe e transitam entre os mundos, assim como os bons caçadores e das mulheres artes. Não é possível haver conhecimento dissociado de seu conhecedor (isso com qualquer corpo), e nem que a transmissão dele ocorra sem permitir que todas as partes participem dessa relação. Aí separações entre mente e corpo, representação e sensação, razão e emoção, sujeito e ambiente não são produtivas (MORIM DE LIMA, 2016, p. 42-60; 244-246]. A perspectiva que esse corpo específico adota, assim como todos os outros corpos, não é apenas uma representação, pois estas são próprias do espírito, enquanto que o ponto de vista reside no corpo (mas lembrando que a capacidade de assumir um ponto de vista pertence sim a alma) (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.128). O sangue do wajaká é diferente, no sentido de ser “mais limpo”. Em alguma situação, e isso varia de caso para caso, um Outro escolhe a pessoa, entra em contato, resolve conversar. Pode ser enquanto o Krahô fuma. Pode ser na roça, na caçada, no sonho. Esse Outro, entrando em contato, transmite os conhecimentos que se espera de um pajé, alguns dizem que na própria língua Mehin. Não aceitar é perigoso, e pode levar à morte. O corpo humano é o local onde a humanidade se confronta, isso porque esse é P á g i n a | 106 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG o instrumento da expressão do sujeito, e ao mesmo tempo que é o que possibilita ver o outrem (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 131). Os resguardos, inerentes ao tipo de compreensão e apreensão do conhecimento que lhes é esperado, são duros, é um sofrimento, como dizem, alguns mais que outros. Os de pajé de cobra e de chuva são os mais rígidos4. O xamanismo também parece exigir a observância de resguardo. Entre os Krahô, a abstinência alimentar é uma maneira de se tornar uma pessoa mais suscetível ao contato com os espíritos, mas a isso parece ser dado menos importância na formação do xamã (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 558). Há também nessa transformação do corpo a dimensão dos cantos no aprendizado xamânico, que também se ligam aos sonhos e os encontros no Cerrado, e apresentam um vasto conhecimento acerca deste, não interessando apenas o que é conhecido, mas como o é, como se dá. Eles são a língua falada dos espíritos, são fala e escuta, e também são visão, já que olhar não é ver e escutar não é ouvir e compreender (MORIM DE LIMA, 2016, p. 245-250). O que remete novamente a Ingold, ao dizer que os olhos e ouvidos não devem ser compreendidos como partes para o registro de sensações mas, sim, como órgãos do corpo como um todo em cujo movimento, dentro do ambiente, consiste a atividade de percepção. Inclusive, ouvir com os olhos e ver com os ouvidos são peculiaridades da atividade xamânica (INGOLD, 2008, p. 29-42). O wajaká, antes desse processo, possui a visão simples (into pyxit). Depois, ela passa a ser uma visão dupla, larga, que vê além (into pijakrut)5, e é a esse ponto de enxergo, que novamente coloco aqui, não é apenas e não só, o enxergar, que é possibilitado acessar e interagir com os mundos de forma tão singular. Se em um primeiro período da pesquisa identifiquei nas bibliografias e nas falas dos Krahô indicações para buscar entender o sujeito xamã como corpo privilegiado para compreender as relações entre Humanos e Não-Humanos dentro do que entendemos, em nossas categorias, por Cerrado, isso foi se confirmando a partir do último campo, realizado em agosto de 2018, e da revisão da etnografia já consultada e o cruzamento de ambos com novas leituras, e assim foi se incorporando de forma mais consistente o que eu mesma pretendo quando penso “sujeito xamã”. Em agosto, quando falei em sujeito com os Mehin, houve um estranhamento, ao que eles repetiram que “tudo tem vida”, assim como tudo tem karon, alma. Aos que tem alma, a quem se confere agencialidade, intencionalidade, capacidade de afecção, isso através do ponto de vista, se confere a posição de sujeito (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 126). Ao mesmo tempo, houve oportunidades, a partir de setembro, de expor a presente pesquisa em P á g i n a | 107 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG um encontro de etnologia realizado na UFSCAR e na Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG, o que foi de grande contribuição para novas reflexões. Mundos que não são apenas os mesmos Os muitos mundos aqui presentes são os mundos que o Cupem violentamente tenta encaixar no Cerrado, e que não “cabe”. Alguns deles, tangíveis para nós, são colocados como desfavoráveis, quando possuem muito mais diversidade ecológica do que é tradicionalmente representado. Para exemplificar: Vandana Shiva diz que, no entendimento local globalizador, ou Ocidental Moderno, menos diversidade é apreendida do que nas outras formas de saber (SHIVA, 2003, p. 23-27). Os ocidentais apreendem 11 tipos principais de vegetação para o Cerrado, que são: formações campestres – campo limpo, campo sujo e campo rupestre; savânicas – cerrado sentido restrito, parque do cerrado, palmeiral e vereda; florestais – cerradão, mata seca, mata ciliar e mata de galeria (CHAVEIRO; BARREIRA, 2010, p. 19). Os Mehin, entretanto, experienciam ao menos 17 biomas marcados por “espécies companheiras” (Donna Haraway), listados por Morim de Lima e que recupero aqui: Põ (Cerrado), Hocôti (Cerradão), Apãc (Transição entre mata de galeria e Cerrado típico), Irõm (mata de galeria, onde são abertas as roças), Ikrãti (cabeça do Irõm, início da mata), Caprum (vegetação de gramínea na cabeceira do Irõm), Harê (vereda, onde encontram-se os buritis, a beira de riachos e brejos. Quando é verão e o capim está seco, é chamada põre, e quando é inverno e o capim é alto, põte), Carãnti (campos cerrados), Atu (campos limpos), Hawên (vegetação fechada de mata seca associada ao topo da serra), Hopkaj (formação que se assemelha ao cerrado típico), Hohkajakôt (formação diferenciada dentro do Cerrado típico), Pã (formação florestal que se assemelha ao Hawên mas cujas árvores são mais baixas), Pur (roça), Hipe (capoeiras em diferentes estágios florestais. Quando é capoeira nova, chama-se Hipe tu, e quando velha, Hipe wei), e o Ken (serra). Também dentro da própria antropologia os povos do Cerrado foram vistos como “primitivos” em relação aos povos das florestas tropicais e dos Andes, estando condenados a esse ambiente menos favorecido, desfavorável e hostil a ocupação humana, em razão fundamentalmente dos limites que coloca para o tipo de agricultura que grupos não tradicionais praticam (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 2164), abordagem essa que nunca se restringiu aos limites da própria antropologia e que também fornece justificativa para sua ocupação, visto que nada cresce, a não ser “monoculturas com sementes geneticamente modificadas”. Aí, o estabelecimento de P á g i n a | 108 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG atividades do agronegócio, associadas aos interesses dos complexos empresariais e de bancos cujos capitais são de inúmeros países pertencentes ao ocorre sobre dicotomias como hemisfério norte, “atrasados-modernos”, “marginal-produtivo”. Os conflitos socioterritoriais que ocorrem, e que vão se ampliando, remarcam a geopolítica internacional do capital, para muito além de ser apenas uma questão econômica, ela mesma rearranjando espacialmente suas atividades produtivas a fim de atingir determinadas taxas de lucro. Um seleto grupo de corporações empresariais, ligadas ao complexo da soja, do milho, da cana, dos agora rebatizados “defensivos fitossanitários” encontram, no Cerrado, um amplo espaço para seus investimentos, desde a falsa idéia de “disponibilidade de terras” até o apoio do Estado no tocante ao financiamento de projetos, isenções de impostos, entre outros benefícios, vide o Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA), Matopiba. Essas idéias todas não se sustentam apenas na ofensiva sobretudo Européia e Norte-americana contra os Mundos e modos de vida dos indígenas e povos tradicionais. A Modernidade, com a Ciência, traz o contraste entre um passado arcaico e estável, que demarca as simetrias de ruptura do tempo e de vencidos e vencedores, e que cria duas zonas de estudo do ser completamente distintas, a dos humanos e a dos nãohumanos (LATOUR, 1994, p. 09-16). Nesse tipo de prática, a Natureza é uma precondição da existência que fornece as matérias-primas da vida e que forma as necessidades e os instintos humanos, bem como um meio-ambiente não social, e é passível de manipulação. Aí o nível cultural dos povos pode ser medido de acordo com sua interferência e a forma como ela se dá. Importante demarcar que isso não quer dizer que natureza e cultura tenham um único significado no pensamento ocidental (STRATHERN, 2014, p. 27; 50), mas que esse tipo de procedimento que impulsiona referências para as representações coletivas de parte significativa do imaginário social, legitimando e justificando os ataques supracitados. Assim, tudo é permitido e facilitado no tocante à exploração do que é entendido, pelos Modernos, como Recursos Naturais, e terras, recursos hídricos, condições climáticas e vegetativas estão à disposição, pela ótica do Mercado e do Estado e, tendo em vista o abastecimento de mercados e a concorrência internacional, imensas extensões de terra tem sido compradas por corporações estrangeiras, especialmente as chinesas e as européias. Como dito um pouco antes, essa postura predadora não se volta apenas para de acumulação capital (XAVIER, 2014, p. 70-73). Refere-se também ao domínio que busca ir além e se fazer a partir da invisibilidade, negando a saberes outros o que eles são ou P á g i n a | 109 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG estão, e atribuindo adjetivos como “primitivo”, ao mesmo tempo que se considera o saber ocidental como o único científico; também faz desaparecer seus mundos, e para isso é necessário destruir inclusive as próprias condições para essas existências, de forma muito semelhante às monoculturas. Então, nos deparamos com o equívoco, uma comunicação onde pode-se falar a mesma coisa, Cerrado, mas como foi demonstrado no texto, não se fala sobre a mesma coisa, pois estão sendo proferidas de mundos distintos (CADENA, 2018, p. 98) (lembrando que o xamã é um corpo que consegue administrar essas traduções). Equívocos são gerados durante as traduções, que não se limitam as palavras escritas ou faladas, e não podem ser cancelados, mas podem ser controlados com o intuito de evitar que se transforme o que é diferente no mesmo. As dissonâncias geradas nessas traduções podem ser profícuas quando reconhecem seu papel nas diferenças e nos maus-entendidos que emergem dela, já que as relações não se conectam apenas pelas similaridades, mas também pelas diferenças, o que sugere a possibilidade do reconhecimento dessas diferenças, e as reconhecendo, há a permissão do diálogo, pois a comunicação se dá também através delas, na contramão do silenciamento do Outro (CADENA, 2015, p. 27]. Mas, há ainda um desdobramento do equívoco, o dissenso. Nele, continua existindo a diferença no que se fala, ao que se acrescenta uma disputa sobre o que é falar, sobre quem pode falar, pois ao forçar perspectivas diferentes a serem iguais (CADENA, 2018, p. 99-102), indo de encontro ao que Vandana Shiva traz sobre forças hegemônicas perseguirem a impossibilidade de outros mundos, elevam-se as tensões em diversos níveis. No mundo dos Outros, o mundo que se vê como tudo prova ser insuficiente, e nossos conceitos e nomenclaturas, como Pohypej diz sobre seres humanos e as taxonomias recuperadas de Morim de Lima, se mostram estreitos e/ou escassos. Encerro aqui com a compreensão de que as informações aqui expostas servem de incentivo para pensar que as relações que ocorrem, a partir do Ponto de Enxergo do wajaká, com seu corpo forjado na diferença dentro da diferença, sua relação com os Outros, podem ser profícuas para enxergar o Cerrado para além de divisas dadas e fixas, e onde homens, mulheres, pajés, onças, pássaros, plantas, constroem relações; onde o Cerrado é o Ken, mas não só, obrigando o transbordamento do conceito, entendendo a potência do Outro, e que a dificuldade de levar isso realmente a sério, de assumir o equívoco, e de entender que não há provavelmente um esvaziamento no ato da tradução, mas sim uma perda da própria palavra Cerrado, ou Pedra ou Água ou Terra, e assim vai, o P á g i n a | 110 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG que é sintoma da nossa própria dificuldade de pensar outros mundos possíveis, mas que a revelia de tudo isso, (r)existem. Para os Mehin. Notas [1] Os Krahô costumam usar a palavra cantoria. [2] Comunicação pessoal, março de 2018. [3] Nota de campo, agosto de 2018. [4] Notas de campo, agosto de 2018. [5] Notas de campo, agosto de 2018 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CADENA, Marisol de la. Earth beings : ecologies of practice across Andean worlds. Duke University Press, Durham e Londres, 2015. CADENA, Marisol de la. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 95-117, 2018. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo: Hucitec, 1978. CHAVEIRO, Eguimar Felício; BARREIRA, Celene Cunha Monteiro Antunes. Cartografia de um pensamento do Cerrado. In: PELÁ, Márcia; CASTILHO, Denis. Cerrados: perspectivas e olhares. Goiânia: Editora Vieira, 2010. COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. O Traço e o Círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos. 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P á g i n a | 112 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Por entre caminhos de Isabelle Stengers Gilberto Amorim Correa Chaves 1 UFMG “Antropo-cego”: “o processo de criação de mundo por meio do qual mundos heterogêneos que não se fazem por meio de práticas que separam ontologicamente os humanos (ou a cultura) dos não humanos (ou a natureza) – nem necessariamente concebem como tal as diferentes entidades presentes em seus agenciamentos – são ambos obrigados a operar com essa distinção (deliberadamente destruída) e excedêla. (DE LA CADENA, 2018, p.10) “No tempo das catástrofes” (STENGERS, 2015) e do “antropo-cego” (DE LA CADENA, 2018), os homens forçam as vistas para se enxergarem e fecham os olhos para os não-humanos2. Enquanto isso, as comunidades que tradicionalmente se mostravam interessantes ao estudo antropológico (principalmente os povos ameríndios) obrigam a disciplina a olhar respeitosamente para outros seres que povoam o cosmos. Assim, a antropologia (em seu sentido mais lato, entendida como o estudo do homem) se vê desafiada a incorporar esses seres no debate: as árvores, os animais, rios, lagos, montanhas, vento, ar, lua, sol, etc. Esse movimento de incorporação das potências não-humanas pressiona a disciplina a reavaliar o que tem definido historicamente como campo do “social” e do “natural”, ampliando o escopo de sujeitos que podem participar (e que participam efetivamente) das relações sociais e culturais. Desse modo, os seres para além do humano passam a ser “levados a sério” pelo estudo antropológico, pensados como agentes dotados de intencionalidades, propósitos e subjetividades particulares. A perspectiva adotada aqui contraria a ultrapassada noção de que os não-humanos compõem apenas o campo de projeção da imaginação humana, do particular ou subjetivo, da superstição ou crendice, que nos serve apenas de pano de fundo para discursos sobre o que compreendemos como cultura ou sociedade. A abordagem deste trabalho propõe pensar nessas animações como seres que não são/estão confinados ao pensamento humano, como objetos de um discurso ou de uma narrativa, mas como animações que são capazes de objetar, de retrucar, de contestar e contradizer. Levando em conta o aparato conceitual tradicional da antropologia em contraste com o modo de produção da vida desses outros seres, observa-se certo esgotamento conceitual fundado no antropocentrismo inerente à constituição da disciplina, baseado no exclusivismo P á g i n a | 113 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG do humano frente à natureza, que é apreendida como subserviente às ações humanas. Nesse ponto, a “intrusão de Gaia” (STENGERS, 2017) – a insurgência de crescentes ameaças ecológicas e catástrofes ambientais do presente e do futuro – tem muito para nos dizer e ensinar, pois sua manifestação promove certo descentramento do humano em relação ao cosmos em que vive. O desafio então é desacelerar e encarar esse fundamento antropocêntrico da disciplina, visando possibilitar novas condições de engendrarmos descrições que possam reconhecer e trabalhar a partir do descentramento, abrindo passagem a abordagens que permitam vivenciar novas coalizões políticas (ou, melhor dizendo, “cosmopolíticas”) que apontem para continuidades entre seres humanos, não-humanos e seus respectivos mundos. Assim como propõe o etnólogo Eduardo Viveiros de Castro3, a intenção é de se criar uma antropologia “anti-narcísica”, isto é, a reformulação das teorias antropológicas, a partir de uma nova antropologia do conceito que contraefetue um novo conceito de antropologia (2015). Indagando sobre a forma como a antropologia deve ver o “outro”, ou penser autrement, ele sugere: “aceitar a oportunidade e a relevância desta tarefa de “penser autrement” (Foucalt) o pensamento – de pensar “outramente”, pensar outra mente, pensar com outras mentes – é comprometer-se com o projeto de elaboração de uma teoria antropológica da imaginação conceitual, sensível à criatividade e reflexividade inerentes à vida de todo coletivo, humano e não-humano” (p.25, 2015). A tarefa dessa nova antropologia vai muito além do estudo do conteúdo exclusivamente humano, a disciplina deve estar aberta a reconhecer e, portanto, trabalhar com todas as potencialidades inerentes ao coletivo não-humano, possibilitando o surgimento de um campo teórico baseado na noção de “multivocalidades”, das sensibilidades e reflexividades que são evocadas pelas muitas vozes que constituem a formação dos saberes sobre o mundo a nossa volta. Isabelle Stengers Nascida em 1949, Isabelle Stengers é uma filósofa de nacionalidade Belga que vem discutindo questões importantes sobre as crises climáticas e catástrofes ambientais, ocasionadas pelo avanço do capitalismo ao redor do mundo. A autora possui uma formação acadêmica interdisciplinar: graduou-se em química pela Universidade Livre de Bruxelas, onde leciona desde 1989 até os dias de hoje, na cadeira de “Práticas de produção de Saberes”. Escreveu sua tese de doutorado sobre o filósofo e matemático Alfred Norton Whitehead e em 1979 publicou em coautoria com Ilya Prigogine o livro La Nouvelle aliance (A nova P á g i n a | 114 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Aliança), no qual discute o caráter construído das leis físicas. Além disso, desenvolveu trabalhos com outros filósofos europeus, especialmente, Félix Guattari e Bruno Latour. A abordagem teórica da autora vai ao encontro do campo de estudos conhecido como Social Studies in Science, que agrupa pesquisadores e especialistas em ciências humanas que investem contra o ideal de uma ciência pura, pautada no conhecimento técnico como instrumento consolidador. Este campo ainda em formação, introduzido por Michel Callon e Bruno Latour, visa o estudo das dimensões sociais da ciência, questionando a separação desta com a sociedade, ou seja, a defesa da não separação entre conhecimentos e exercício do poder, digamos em outras palavras, da natureza e da cultura (LATOUR, 2013). Assim como propõe Isabelle Stengers, “[...] estudar a ciência à maneira de um projeto social como outro qualquer, nem mais descolado das preocupações do mundo, nem mais universal ou racional do que qualquer outro” (2002, p.11). Nessa perspectiva, o cientista não passa de mais um membro de uma comunidade específica, ele não é a ilustração gloriosa do espírito crítico ou a encarnação da racionalidade lúcida, o cientista faz o que aprendeu a fazer (STENGERS, 2002). Os estudos interdisciplinares da autora a faz ser considerada uma ponte que liga os paradigmas estabelecidos das ciências (ditas) naturais com as inquietudes conflitantes das ciências (ditas) humanas. No entanto, a autora tornou-se particularmente interessante à antropologia contemporânea, especialmente por seus escritos sobre questões que se referem ao que podemos chamar de antropoceno4, aos efeitos da atividade humana sobre o planeta Terra e suas consequências. Animismo O animismo é um conceito clássico do pensamento antropológico, Edward Burnett Tylor, antropólogo britânico representante da escola do evolucionismo social, em Primitive Culture, definiu animismo como “a doutrina dos seres espirituais” (TYLOR, 1871). Tylor estava na busca dos fundamentos elementares do pensamento religioso, encarando a possibilidade de se agrupar uma multiplicidade de ideias e concepções espiritualistas em diferentes populações sob o conceito de religião primitiva. Em suma, o modo de pensar animista era concebido como o fundo pré-histórico de todas as crenças. Essa concepção evolucionista de uma religião primitiva que seria mais atrasada em relação à sociedade civilizada, proposta por Tylor, foi substancialmente criticada por outros antropólogos, desse modo, não vou me ater a formular, especificamente, uma crítica a sua definição. Apesar disso, é necessário estabelecer o que pretendo chamar de animismo neste P á g i n a | 115 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG texto. Partindo de uma significação mais objetiva e geral, entendendo que o animismo possui uma definição conflituosa, opto por considerá-lo como certo modo de pensamento e ação em que seres não-humanos, incluídos: espíritos, animais e plantas; possuem subjetividades, intenções e agência, semelhante aos humanos. É importante evidenciar que por ser uma categoria em constante disputa, é preciso tomar muito cuidado para não cair em certos reducionismos. O primeiro deles é reduzir a experiência animista à aspectos associados exclusivamente ao discurso, levado em conta apenas por sua eficácia simbólica, por meios de metáfora, crença ou superstição. O segundo reducionismo muito comum, mas extremamente equivocado, é considerar o animismo como uma religião primitiva ou como se fosse uma “confusão ontológica” dos nativos em definir aquilo que classificam e atribuem como sendo “gente” ou humano. Para escapar dessas armadilhas reducionistas, considero que esse modo de relação com o não-humano não está presente apenas na mitologia ou no discurso, agarrados a regimes ontológicos específicos, o animismo define de forma pragmática a ação do sujeito, ao mesmo tempo em que age sobre seu modo de ser e de se perceber no mundo. Este seria o animismo proposto por Stengers, diferentemente daquele definido pela tradição antropológica, trata-se antes de constituir um ato político, uma maneira de se fazer política com o “outro”, de levar a sério ético-moralmente as múltiplas vozes que gritam em nosso cosmos. É desse modo que a autora acredita ser possível reativar certas práticas animistas por intermédio de práticas modernas. No entanto, reativar não significaria resgatar algo do passado nem se apropriar de algo inteiramente exógeno, mas sinalizaria uma possibilidade de criação e resistência. Resistência que não significa, como sugeriu Zourabichvilli (2004) em sua leitura de Deleuze, reação ou denúncia, mas sim modo de afirmar uma existência, de criar novos possíveis. Reativar o animismo Em seu texto “Reativar o Animismo” (2017) Stengers discute questões importantes que tratam das possibilidades de se reativar ou retomar certas práticas marginalizadas e desqualificadas pelo mundo moderno-capitalista - dominado pelo cientificismo objetivo das Ciências com “c” maiúsculo. Assim, em combate com o modo de vida capitalista e contra todo o processo de unificação ontológica da modernidade, ela recupera o ativismo das bruxas “neopagãs” norte-americanas5, reinterpretando os estudos sobre aquilo que chamamos de magia e feitiçaria, tomando estas como mecanismos de resistência política e de desobediência P á g i n a | 116 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG civil. É diante desse cenário mundial regulado pelos grandes acordos econômicos que pautam a globalização capitalística, aonde o mundo é cada vez mais desencantado pelas realizações científicas, que a Filósofa propõe reativar o Animismo. No sentido proposto por Stengers, reativar não significa reaver ou ressuscitar o passado como ele era, pensando em termos de uma tradição “verdadeiramente” autêntica. A autora também contesta a ideia de que as práticas animistas estariam restritas a regimes ontológicos específicos. Trata-se antes, de “sentir a fumaça que paira sobre nossas narinas”6 – a fumaça das bruxas queimadas, das mulheres assassinadas pela inquisição (pelo poder hegemônico), acusadas de se apropriarem da magia para algo maligno. Reativar então, “significa recuperar e, neste caso, recuperar a capacidade de honrar a experiência, toda experiência que nos importa, não como “nossa”, mas sim como experiência que nos “anima”, que nos faz testemunhar o que não somos nós” (2017, p.11) . Assim como sugere Renato Stuzstman em seu artigo “Reativar a feitiçaria e outras receitas de resistência – pensando com Isabelle Stengers” (2018), a insistência deliberada da autora em termos como feitiçaria ou magia seria insistir numa desterritorialização, num devir minoritário no sentido deleuzo-guattariano, levando em conta que estas foram palavras utilizadas para desqualificar práticas não cristãs e não científicas. Sendo assim, o próprio ato de nomear feitiçaria ou magia é, portanto, o ato de reativá-las, uma vez que as palavras são capazes de nos fazerem pensar e sentir. Em suma, afirma Stutzman, reativar “não se trata de recuperar um passado ou se apropriar de algo inteiramente outro, mas sim de produzir agenciamentos, novas conexões” (2018, p.334). Nesse processo de reativação da magia como possibilidade de transformação de práticas modernas, a autora relaciona o animismo ao conceito deleuzo-guattariano de “agenciamento” – que segundo ela pode ser entendido como uma reunião de componentes heterogêneos, em que a existência é definida pela própria participação nos agenciamentos e a agência pertenceria ao agenciamento em si. Desse modo, a autora define animismo não como uma ontologia predominante em alguma região, mas sim em termos de “agenciamentos que geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e também de sentir, pensar e imaginar” (STENGERS, 2017, p.16). Animismo como arte rizomática Stengers, seguindo a trilha deixada por Deleuze e Guattarri, sugere que “a reativação da magia só pode ser uma operação rizomática” e, mais do que isso, o animismo, segundo ela, deve ser considerado como uma “arte rizomática” (STENGERS, 2017). Segundo o pensamento deleuzo-guatarriano: P á g i n a | 117 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG "Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades" (DELEUZE & GUATTARRI, “Capitalismo e Esquizofrenia”, p.31 apud ZOURABICHVILI, “Vocabulário de Deleuze”, p.51-52). Essa proposta - por si só um manifesto - cunha um novo modo de pensamento, um modelo de resistência ético-política com a intenção de combater o privilégio secular ocupado pela figura hierárquica da árvore, com suas raízes profundas e frutos prometidos, portadora da Ciência como tronco e difundida em nosso imaginário de conhecimento científico. O rizoma é um caule subterrâneo no todo ou em parte, que possui crescimento múltiplo horizontal, Deleuze e Guattarri se apropriam desta noção da botânica e aplicam à filosofia. Segundo eles, as estruturas de pensamento quebram os rizomas, o aprisionam, as teorias reduzem seu objeto e cortam toda a multiplicidade dele. O rizoma tem pavor à unidade, ao pesadelo do pensamento linear, ele é sempre aberto a experimentações, a ser atravessado e transfigurado por linhas de intensidade: é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Não podemos mais apontar compartimentos, o rizoma é algo que se espalha por todos os cantos, não há justificativa para seguirmos uma linha reta unidirecional (o método cartesiano), as linhas tortas se conectam, se confundem, multiplicam as conexões e a intensidade delas. São nesses termos que temos oportunidade de criar novos sentidos, micropercepções-conexões que se confundem, diluídas uma sobre a outra, conectando-se em todas as direções. Nesse ponto me vem à mente outra imagem conceitual apresentada por Deleuze e utilizada pela autora ao se referir a sua “proposição cosmopolítica”, a figura do “Idiota”. Esse personagem conceitual tomado de empréstimo de Dostoiévski é aquele que sempre desacelera os outros, “que resiste à maneira como a situação é apresentada, cujas urgências mobilizam o pensamento ou a ação. E resiste não porque a apresentação seja falsa, não porque as urgências sejam mentirosas, mas porque „há algo de mais importante‟” (STENGERS, 2018, p.444). A eficácia do Idiota não está em desfazer os fundamentos dos saberes, em criar uma noite “onde todos os gatos são pardos”, mas sim em complicar a pretensão daqueles que se sentem autorizados a se dizer proprietários dos saberes. O idiota é importante ao criar um espaço de hesitação, ele nos alerta para que não precipitemos, para que não nos sintamos autorizados a nos pensar como detentores do significado daquilo que sabemos. Assim, a P á g i n a | 118 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG proposição cosmopolítica trata-se antes de desacelerar e de reconhecer a passagem de um pavor que nos faz balbuciar as nossas seguranças. Como demonstra Stengers, “é esse pavor que podemos escutar no grito, dizem, um dia entoado por Cromwell: „My Brethren, by the bowels of Christ I beseech you, bethink that you may be mistaken!‟”7 (2018, p.447). Ao tratar da questão da experimentação animal em laboratórios, Stengers observa que os ritos, expressões, comportamentos e condutas próprias dos cientistas dentro dos laboratórios testemunham a necessidade dos pesquisadores de se protegerem, no sentido de que essa fabricação de protocolos produz “zonas de desafeto”, isto é, produzem certa insensibilidade para que possam agir sem “peso na consciência”, sem necessariamente ter que desacelerar e avaliar as consequências para os outros que estão sendo acionados em suas pesquisas. Como afirma Stengers, “A necessidade de “decidir” quanto à legitimidade de uma experimentação teria então por correlato a invenção de restrições destinadas ativamente a essas manobras de proteção, forçando os pesquisadores implicados a se expor, a decidir “em presença” daquilo que será eventualmente vítima de sua decisão” (2018, p.449). Trata-se de uma questão ética, de discutir o papel e a ação do cientista/pesquisador e de questionar sobre as consequências de suas práticas no mundo, especialmente, as práticas de produção de conhecimentos. Nesse sentido, a proposição (que não é propositiva) cosmopolítica de Stengers tem um duplo movimento: convida os cientistas a saírem de seus laboratórios - microcosmos controlado e ambiente produzido artificialmente - e faz o movimento de volta ao convidar o “cosmos” a entrar dentro do laboratório. Isto é, pautar a composição de um pensamento que se construa “em presença”, reconhecer a existência das outras agências e tirar da invisibilidade a responsabilidade de nossas ações. Depois dessa breve introdução ao pensamento deleuzo-guattariano e voltando mais especificamente à questão do animismo, a autora afirma que aquilo que temos tido propriamente como ciência validou o animismo, visto que se não fosse assim a própria terminologia não existiria. Nesse ponto, ela propõe adotar no lugar da figura hierárquica de uma árvore, o encanto do que Deleuze e Guattarri chamavam de rizoma, “conectando práticas, preocupações e modos heterogêneos de dar sentido aos habitantes da Terra, sem que nenhum deles fosse privilegiado e todos fossem passíveis de se conectar uns com os outros.” (STENGERS, 2017, p.5) Dessa forma, seguindo as conexões simbióticas propiciadas pelo “anarquismo ecológico” do rizoma e “pensando pelo meio”, chegamos ao ponto em que a experiência transformadora das realidades animistas não deve ser analisada em termos de “demonstração” P á g i n a | 119 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG prática de suas existências – visando provar que não é uma ficção vivenciada e extrapolada pela categoria de superstição e crendice. Em outras palavras, sugere a autora, não devemos “mobilizar as categorias de superstição, crença ou eficácia simbólica na tentativa de explicar o que os peregrinos alegam experimentar.” (STENGERS, 2017, p.5) Devemos, ao contrário, compreender que estas realidades requerem um meio que não responde às demandas científicas. O animismo, nesse sentido, pode vir a ser um nome em prol da recuperação desses agenciamentos, uma vez que reivindicar sua eficácia não é de nossa alçada. Sendo assim, “contra a insistente paixão envenenada por desmembrar e desmitificar, o animismo afirma o que todos os agenciamentos exigem para não nos escravizar: que não estamos sozinhos no mundo”. (op.cit, p. 15) A intrusão de Gaia Já faz algum tempo que a “humanidade” sabe - e sente culpa ou remorso - daquilo que a “civilização moderna” causou ao planeta terra. Uma imagem, até certo ponto clássica, de que a humanidade está pisoteando no berço onde nasceu; e outra imagem, até certo ponto “moderna”, difundida no senso comum, de que um dia graças a um determinado avanço científico e tecnológico - que ainda (ou sempre) estará por vir - deixaria este berço para trás, partindo em busca de recursos em outros planetas. Estas imagens são importantes porque passam a coexistir a partir da construção de uma sensibilidade e percepção do “custo” ecológico e social daquilo que homem branco civilizado chamou de progresso e de desenvolvimento. Gaia, não se trata de “um rio” ou “uma floresta”, e sim na verdade de uma entidade impessoal composta por processos viventes: “uma multidão anônima de micro-organismos, mas também o clima, os oceanos, as terras férteis, tudo de que nós dependemos mas que tratamos como se fosse auto-evidente.” (STENGERS, 2017, p.121) Stengers ao nomear Gaia, ao invés de Terra, pretende afirmar que este “ser” que faz a intrusão em nossas histórias é um ser de potência tal que não se pode domar, algo que nos ultrapassa, que antes nós ignoramos por certa garantia de estabilidade, mas que agora nos apresenta a sua dimensão hiper-irritável. Não podemos dominá-la, como sugere a autora, no entanto, somos capazes de ofendê-la, de provocá-la até um ponto em que abandone seu estado de estabilidade. Gaia, enquanto “ser capaz”, existente na repercussão de todos os seus processos, torna-se um sujeito. E a sua manifestação – a intrusão – implica que nós não somos mais os únicos sujeitos da nossa história e que devemos – caso queiramos sobreviver ao tempo das P á g i n a | 120 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG catástrofes – aprender a compor e negociar com esse ser temível, saber não ofendê-la, mantendo uma relação de paz com ela. Stengers anuncia: “é a ofensa, e não a vingança, que é temível.” (2017, p.123) Em relação a isso, como indicado no início deste texto, os povos que tradicionalmente interessaram ao estudo antropológico sempre mantiveram uma relação de proximidade e respeito com Gaia, mais do que isso, de reverência e admiração às agências não-humanas. Sem se deixar capturar pela armadilha do exotismo inerente a tal afirmação, notadamente, os povos indígenas aparecem como um caso exemplar dessa relação de respeito mútuo com a natureza e os seres que a compõe. De uma forma mais geral, estes povos nunca tiveram a ingenuidade de pensar essa Mãe-Terra, responsável por garantir sua nutrição, como uma mãe que não se ofende e que vive em prol de sua cria. Pelo contrário, para eles, esta mãe que nutre, ao mesmo tempo, pode ser ofendida e se tornar um ser terrível, por isso deve ser sempre respeitada e protegida. O povo do ocidente, de fato, não foi ensinado a prestar atenção nessas intrusões extra-humanas, não estão aparelhados tecnicamente e, muito menos, preparados intelectualmente para isso. Stengers faz questão de relembrar que há apenas vinte anos atrás aqueles que se objetavam ao processo desenvolvimentista e se inquietavam com os estragos produzidos pelo progresso, eram chamados de irracionais. Coisa que acontece até hoje: a visão preconceituosa de que os povos indígenas ou outras populações tradicionais causam mazelas à sociedade devido aos seus modos próprios de vida contra-desenvolvimentista. O mundo ocidental foi construído a partir da difusão de um imaginário que diz para todos: “nós precisamos arriscar”, “precisamos seguir em frente”, “precisamos crescer”; sem levar em conta aqueles que sofrerão as consequências. Quem é colocado em risco pelas inovações tecno-científicas? Certamente, afirma a filósofa, não serão os responsáveis por elas. (STENGERS, 2017) Objetores do crescimento e cosmopolítica São muitos os exemplos de pessoas que se posicionam politicamente (e muitas vezes com a própria vida) contra esse tipo de desenvolvimento e progresso tecno-científico estabelecido atualmente pelo modo de produção moderno-capitalista. A autora denomina esses sujeitos de “objetores do crescimento”, os quais sob diferentes formas: [...] “buscam fazer coincidir, e buscam nos mostrar que podemos fazer coincidir maneiras de viver junto, de trabalhar junto, maneiras de viver no sentido concreto do termo, de produzir também, e que exigem um pensamento, uma imaginação, a criação de um entendimento com aquilo com o que nós vivemos e entre nós, praticando no fundo o Reclaim” (STENGERS, 2017, p.125). P á g i n a | 121 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Reclaim, segundo Stengers, “é se reapropriar, é também curar, é também tornar-se novamente capaz.” (2017, p.125) Capaz de se criar vínculos, de se lutar contra não só aqueles que causaram a separação entre nós e Gaia, entre humanos e não-humanos, mas de nos curarmos dessa separação, de nos tornarmos novamente capazes. Portanto, práticas como hortas coletivas, trocas e reabilitação de sementes, permacultura, e tudo isso, são interessantes porque nos falam não só de uma relação às coisas, mas de uma relação aos seres nãohumanos, à natureza e, por fim, trata-se também de uma relação entre nós mesmos. Assim, diz Stengers, “Ecologia no sentido justamente de que não se trata de uma harmonia a reencontrar, trata-se de imaginação a recriar, que nos permita inventar, produzir, criar novos tipos de relação uns com os outros e com aquilo de que nós vivemos e aquilo com o que nós vivemos” (2017, p.126). Tendo em vista todo esse quadro traçado acima, a partir das impressões de Stengers torna-se evidente de que necessitamos de exploradores de novos possíveis, de mediadores que permitam a difusão das experiências, vivenciadas em todos os lugares. Que se produza então, uma nova ecologia cultural, e aqui não a cultura com C maiúsculo (ou a cultura com aspas), mas a cultura do fazer-com, fazer-com as coisas e fazer uns com os outros. E tão importante quanto isso tudo, está o pensar - que não é neutro politicamente – que no sentido de Deleuze, como afirma Stengers, “é esse pensamento coletivo, que podemos chamar de cultura, se nos lembrarmos que cultura é a própria vida” (2017, p.126). Notas [1] Graduando em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: <gilberto-amorim2011@hotmail.com>. [2] Ressalta-se que o termo “não-humanos” será utilizado no texto apenas como recurso de escrita, uma vez que a definição a partir da negativa reduz de maneira significativa a multiplicidade de agências abarcadas pelo termo e homogeneíza os diversos seres que a compõe. [3] No primeiro capítulo de seu Livro “Metafísicas Canibais”. [4] Termo que vem sendo utilizado por alguns pesquisadores para indicar a entrada do planeta terra em um novo período geológico, que teria sucedido o Homoloceno, no qual os efeitos da ação antrópica, principalmente a partir da economia industrial baseada na energia fóssil e o consumo crescente do espaço, tempo e matéria-prima, adquiriram a dimensão de uma força física dominante no planeta. [5] Reclaiming Tradition Witchcraft: comunidade de pessoas e organização religiosa sem fins lucrativos, com viés marcadamente feminista, fundada em 1980 por Diana Baker e Starhawk, visando a união entre espiritualidade e política. P á g i n a | 122 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG [6] Eis o refrão de Starhawk que Stengers insiste em repetir: A história das bruxas queimadas é a história do triunfo da modernidade cristã e do próprio capitalismo. [7] “Meus irmãos, pelas entranhas de Cristo, suplico-lhes, creiam que possam estar enganados!” (tradução minha). REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS TRINDADE, Rafael. Deleuze-Rizoma. Disponível <https://razaoinadequada.com/2013/09/21/deleuze-rizoma/> Acesso em: 29/05/2018. em: BAILÃO, André S. et al. Entreviver-desafios cosmopolíticos contemporâneos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 13-22, 2018. CADENA, Marisol de la. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 95-117, 2018. DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze transcrição integral do vídeo. (1995) Realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações]. LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de uma antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 2013. STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34, 2002. __________________. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, abril de 2018. __________________. “Gaia”. Intervenção apresentada durante a jornada Art e Culture de la Terre, no Théâtre Dunois, em Paris, em 15 de janeiro de 2011. Vídeo disponível em: https://vimeo.com/24011454.Tradução e adaptação Realizada por Deborah Danowski in Catálogo do Fórum.Doc; 2017. Pp. 120 – 127. __________________. Reativar o Animismo. Caderno de leituras, N.62, [Chão da Feira]; publicado em maio de 2017. Tradução Jamille Pinheiro Dias. SZTUTMAN, Renato. Reativar a feitiçaria e outras receitas de resistência-pensando com Isabelle Stengers. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 338-360, 2018. TYLOR, Edward. Primitive Culture. Researches into the Development of Mythology, Philosphy, Religion, Language, Art, and Custom. London: John Murray, [1871] 1903. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. P á g i n a | 123 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Reflexões sobre o ativismo indígena entre os Parkatêjê¹ Rayane Gomes da Silva² Universidade Federal do Pará Introdução Esse trabalho se projeta sobre minhas pesquisas em campo na Terra Indígena Mãe Maria e ao processo de remoção dos Parkatêjê para essa aldeia. Analisarei a figura da sua liderança, o Capitão Krôhôkrenhum, seu poder de articulação e mediação frente aos conflitos existentes desde a situação de contato até a cadeia de relações que se seguiram a partir disso. Propus essa pesquisa pensando na conjuntura dos grandes projetos que os cercam, no seu ambiente e nas suas relações dentro e fora dela, tendo em vista o contexto no qual está inserida: intervenções e decretos estatais quanto à demarcação de terras, o corte pela Rodovia BR 222 e pelas linhas de transmissão de energia da Eletronorte, assim como a influência da Estrada de Ferro Carajás, da Companhia Vale3. A Terra Indígena Mãe Maria está localizada no município de Bom Jesus do Tocantins, a 30 km de Marabá. É pertencente ao povo Gavião, de origem Timbira e da família linguística Jê, onde os Gavião se constituíram, a princípio, por três grupos: os Parkatêjê, os Kyikatêjê e os Akrãtikatêjê. Antes da junção, esses grupos viviam separadamente em territórios distintos localizados próximos de Itupiranga/Pa, na margem do Rio Tocantins, que compreende as cabeceiras do rio Moju e Capim e em outras áreas próximas da cidade de Imperatriz, no Maranhão. Os Gaviões foram contactados e realocados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e pela FUNAI entre os anos de 1943 e 1983, por intervenções do Estado em controlar conflitos e pela implementação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí4, o que resultou nas suas sucessivas remoções em uma única área (Ferraz, 1983). Seu reagrupamento aconteceu na aldeia que denominaram de Kupejipôkti, que significa “os que estão lutando no meio do kupe - não índio”. Apesar de compartilharem vários traços em comum, esses grupos ficaram conhecidos como Comunidade Parkatêjê, denominando-se assim por muito tempo. É Gilberto Azanha (1984), parafraseando Curt Nimuendajú (1971) que analisa as formas de organização Timbira, grupo a qual pertencem, e em como eles se estruturam e resistem: Todos estes grupos apresentavam como características comuns a língua, o corte de cabelo, a morfologia da aldeia e a corrida com toras. Nimuendajú assim se expressa a respeito da unidade dos grupos Timbira: “A unidade do povo Timbira e a sua classificação na família lingüística Jê são tão evidentes que até hoje não foram postas em dúvida por ninguém que se ocupou seriamente do assumpto” (op.cit:7). Ribeiro que fala também da expansão dos grupos Timbira “para além do P á g i n a | 124 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Tocantins...naquellas vastas extensões do Pará e de Goyaz” – afirmava: “Seus costumes gerais diversificam em pouco; e de ordinário na privada linguagem... se acha aquela diferença trivial que a distância de umas e outras povoações da mesma raça lhe permite” (1 841; 186). Nimuendajú somente nos dá indicações sobre como esta unidade operava na prática, isto é, sobre o modo como mais de três dezenas de grupos “semelhantes”, vivendo em um mesmo território, se inter-relacionavam. Fala sobre bandos que se separaram de grupos maiores, de algumas alianças intergrupais e de bandos que se fundiram dando origem a um novo grupo (principalmente op.cit. 40-111). Fala portanto de cisões, alianças e da guerra (AZANHA, 1984, p. 8). A remoção compulsória e a coexistência desses grupos geraram conflitos de ordem interna e externa. A natureza dos conflitos internos desses grupos realocados na mesma aldeia tem a ver com os aspectos da sua estrutura social e a própria forma de organização Timbira, de expansão, cisão e guerra. Nesse sentido, sua relação com as demais aldeias Jê-Timbira é de vizinhança, em um mecanismo que Azanha chamou de “aproximação e distância”, onde migram de acordo em que se tornam populosos ou por conflitos com a liderança. O fator externo se dá pelo contingente territorial da região devido a expansão capitalista de cunho desenvolvimentista que o Sudeste Paraense sustenta. Um desses exemplos é a implementação das redes de transmissão de energia da Eletronorte, cujo corte na aldeia aconteceu na área de um desses grupos: O anúncio da construção da rede de transmissão adquiriu uma face catastrófica, sobretudo para os componentes da aldeia do “Trinta”; a experiência e o êxito da comercialização da castanha sem a intermediação dos agentes tutelares regionais e o rearranjo das relações com os agentes da FUNAI eram recentes, assim como a manipulação de novos mecanismos de controle territorial (…) Um decreto-lei do então presidente da República (n.º 80.100 de 08.08.1977) fora promulgado para legitimar a “concessão da servidão de uso” para a empresa da faixa de terra no interior da reserva indígena, indicando que a comunidade deveria receber “indenização” pela cessão. Apesar da indignação entre os componentes do “Trinta”, as discussões que envolveram, progressivamente, os agentes da FUNAI a níveis local, regional e nacional, assessores independentes e representantes da empresa diziam respeito aos critérios para o seu estabelecimento (FERRAZ, 1983, p. 152154). Devido a natureza e a intensidade de relações desses grupos entre si, o problema territorial passou a ser um catalisador de conflitos. E a busca pelo controle político decorrente da gestão financeira das indenizações que a Vale faz pelos prejuízos causados pelo corte do território foram o alvo para disputas intergrupais, sobretudo, pela participação ativa junto à liderança da comunidade, em um cenário de constante pressão territorial e expropriação de terras, ao qual coube aos Gavião a defesa de seu território. Capitão Toprãmre Krôhôkrenhum Jõpaipaire e a Chefia Indígena dos Parkatêjê A chefia política na comunidade Parkatêjê obedece às formas de organização Timbira definida por Nimuendaju (1971), no século XIX, analisando-os como uma unidade em P á g i n a | 125 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG conjunto, mesmo sendo grupos distintos. Nas aldeias, a chefia é conduzida geralmente pelos homens, mas as mulheres também exercem atividades importantes que se constituem em Mãe Maria. Há o grupo dos velhos, que representa outra instância importante na vida política Timbira, onde geralmente estes velhos foram os seus fundadores e possuem uma vasta experiência de vida para os mais jovens, dando conselhos e influenciando na valorização da cultura e tradição (Ferraz, 1983; Avila, 2004). O livro Me ikwy Tekjê Ri (2011), que significa “Isto Pertence ao Meu Povo”, conta a trajetória de Capitão e da comunidade Parkatêjê a partir das próprias narrativas de Krôhôkrenhum, sua vivência em lutas e adversidades, principalmente contra o desaparecimento do seu povo, da sua língua e da sua cultura, antes e depois de chegar em Mãe Maria. A transmissão de conhecimentos e a materialidade desse livro, junto de um documentário produzido e organizado por profissionais de diversas áreas e em colaboração dos Gavião Parkatêjê tiveram como objetivo registrar a vivência desse líder. Capitão Krôhôkrenhum visava a continuidade da sua população através da preservação de suas práticas tradicionais, era um cantador. O canto é uma das formas de expressão dos xamãs em contato com o sobrenatural, um fenômeno relacionado à composição da pessoa e do corpo (Vilaça, 2000) que podemos observar nas narrativas de Capitão, no livro citado acima. Embora não haja relatos de que Capitão se apresentasse como um xamã, apenas como líder político e conselheiro, seu livro relata memórias e trechos de cura com as mãos pelos seus antepassados, inclusive, menciona que qualquer Parkatêjê pode curar através das mãos: Antigamente os velhos curavam com a mão mesmo, com a mão mesmo. Passava a mão até melhorar. Nossa mão também melhora, não é só doutor que melhora. Nossa mão e até a mão do pajé também. Mas não é só a mão do pajé que resolve não, qualquer mão, mesmo. Vocês são meninas novas, vocês devem experimentar botar a mão, talvez a mão de vocês sirva pra qualquer coisa. Você, brincando, passa a mão, acaba a dor. Qualquer dor. Alguém lhe pede pra passar a mão, porque parece que você sabe curar a doença. Tornam a pedir: “Experimenta de novo pra mim, experimenta, pra ver se você é boa”. Então a pessoa fica boazinha, curada e você já fica bem conhecida. É verdade. Aconteceu com a minha barriga, eu lembro: minha mãe, minha tia mais velha tinham mão boa pra curar… Eu falo pra Jonhapý que minha tia era boa pra tira dor de barriga. Parecia com homem, apertava, apertava, apertava, até desmanchar completamente a dor (Toprãmre Krôhokrenhum Jõpaipaire, 2011, p. 109). Krôhôkrenhum aprendeu a cantar a sozinho, na prática, embrenhado nas matas ou dançando e cantando nos rituais tradicionais do Pàn e Hàk (Arara e Gavião) e Tep, Xêrêtêre e Têre (Peixe, Arraia e Lontra), e era assim que costumava passar seus ensinamentos aos mais jovens. Liderou sua aldeia por mais de 60 anos (faleceu em 2016), e foi um dos pioneiros a habitar Mãe Maria. Através dele, a luta pela continuidade do seu povo, a P á g i n a | 126 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG reconstrução da sua etnia e a preservação das práticas tradicionais, como as “brincadeiras” (rituais) da corrida de toras, o jogo de flechas, as pinturas corporais e a perfuração nos lábios dos jovens, foram integradas à rotina da aldeia. Sofrido por ataques constantes das supostas guerras entre si ou dizimado por doenças contagiosas que surgiram entre eles, seu povo ficava espalhado em diversas aldeias no Pará, até serem realocados em Mãe Maria. Suas ações políticas tomaram frente nas negociações para a autonomia da produção da castanha, antes realizada pela Funai e com pouca participação no lucro. Também esteve à frente das principais negociações com empreiteiras privadas e entidades ligadas à salvaguarda dos direitos indígenas, viajando muitas vezes para Belém, Brasília ou São Paulo. Empenhado no aumento da sua população e na construção de uma coletividade, sua figura passou a se constituir como a de um chefe político na gênese das relações territoriais, à frente da comunidade Parkatêjê. Lanço mão dessa situação e a aproximo à ideia de “A Sociedade Contra o Estado”, de Pierre Clastres (1934), ao falar de uma filosofia política indígena que nega um Estado regulador de poder coercitivo e centralizado na figura do chefe ou do líder político. Para ele, a organização política das sociedades da América indígena, em sua maioria, se distinguiria pelo gosto da coletividade e na ausência de autoridade. Como traço pertinente do seu argumento, o que se deve reter disso é a falta de estratificação social e da autoridade de poder dessas sociedades. Segundo Clastres, o poder está no grupo, o líder político exerce uma chefia de “status” e ele pode ser destituído ou trocado a qualquer momento, possuindo alguns traços suplementares para a sua qualificação, como a de apaziguador (moderador do grupo), generoso com seus bens (não acumular, mas distribuir; avareza e poder não são compatíveis), bom orador (chave de acesso para a chefia) e ter o privilégio da poliginia (distinção do líder exercer direito sobre as mulheres do grupo, em troca exige-se do chefe generosidade de bens e talento oratório). Essa é a constituição das sociedades “primitivas” em Clastres, a esfera política que sanciona a passagem da natureza para a cultura: a troca de bens, de mulheres e de palavras. Marina Vanzolini (2011) e Renato Sztutman (2013) apontam para uma revisão da obra de Clastres a partir de idéias lançadas no contexto xinguano de políticas partidárias e das suas metamorfoses, ao qual contribuem para a discussão da tese contra o Estado, e a complementam ao contexto ameríndio: Parece-me que a idéia do “contra-Estado”, sobretudo quando confrontada nas etnografias de povos ameríndios, foi tomada pelos etnólogos de maneira por demais literal, para não dizer ingênua (…). Segundo Clastres, a “sociedade primitiva” - generalização que tem como inspiração as sociedades das terras baixas da América do Sul – é “contra o Estado”, e não “sem” o Estado. Dizer que elas são “sem Estado” seria defini-las pela falta, seria privá-las de capacidade de P á g i n a | 127 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG organização e gestão de assuntos que dizem respeito à vida coletiva (…). Trata-se, pois, de uma tese ousada que sugere que a filosofia política ocidental pode ser transformada pela filosofia política indígena (SZTUTMAN, 2013, p. 4-5). Há algumas identificações na sociedade Parkatêjê com a aproximação da teoria de Pierre Clastres quanto à qualidade do cacique ou chefe político, formas tradicionais de liderança que podem ser facilmente identificadas nas narrativas de Krôhôkrenhum em seu livro de memórias: Se você é brigador, se você é lutador, bem tranquilo, você não é nervoso, nem tem medo, não tem água no olho, fica duro, aí que a gente procura pra ser cacique; também não pode ficar fuxicando, contar história, mentindo. É homem sério mesmo. Sendo assim, quando uma pessoa precisa de cacique, ela nos chama. Quando meu avô era vivo, ele falava que não queria que eu ficasse com ciúme da caça e eu aprendi isso com ele. Por isso eu sou duro, eu estou ainda andando forte.Ele estava falando assim, porque ficar com ciúme não presta, não dá certo! Quando alguém caça, ele tem que deixar tudo pros parentes. O dia em que aquele homem mais caçador aparecer sem nada, os outros dão a caça pra ele, deixam ele levar. Deixam, porque um dia ele já trouxe também. (Ensinando a não ser sovina). O chefe pode ser tirado. Qualquer homem vai e diz assim: “Eu não gosto de você, porque você já me enganou várias vezes, você já mentiu, você já mentiu pra mim.” Não pode tirar da aldeia, mas ninguém faz as coisas pra ele, aí tem de sair mesmo. Imediatamente. Sai na hora! Um chega e diz: “Agora eu vou ficar!”. Vale mais a vontade do povo. Ele continua morando na aldeia, mas não é mais chefe (Toprãmre Krôhokrenhum Jõpaipaire, 2011, p. 103-149). O pensamento político das comunidades indígenas em Mãe Maria está relacionado à resistência dos componentes territoriais que exercem um poder de coerção a partir desse território, o que torna difícil a sua reorganização enquanto sociedade, pois desarticula sua coletividade causando conflitos internos. São 16 aldeias existentes hoje na T.I.M.M. e se constituíram como pequenas unidades políticas, cada uma delas brigando pela sua reorganização, um campo minado. Aparentemente, as cisões em Mãe Maria ocorrem por questionamentos decorrentes da gestão financeira das compensações e indenizações que a Vale faz pelos prejuízos causados no controle territorial. A concentração do poder político, nesse sentido, não estaria na chefia, ou no povo, mas no poder coercitivo e violento da relação de controle territorial que essas empresas exercem dentro da T.I. Isso implica, ainda em Clastres, um outro aspecto: o da guerra. A guerra é, nesse sentido, contra o Estado, e as “sociedades primitivas”, “para-aguerra”. Essas comunidades indígenas autônomas e autárquicas eram descritas pelo autor como “comunidades indivisas”, isto é, como não baseadas em relações entre dominantes e dominados. Para ele, sequer a diferença entre homens e mulheres poderia ser pensada alí como Divisão, uma vez que não está baseada na expropriação ou na dominação, mas sim na complementaridade. Se em “Troca e poder” a violência é contra a sociedade, é a arma do Estado, em “Arqueologia da violência”, outra forma de violência – não mais externa e sim interna – passa a ser aquilo que se opõe ao Estado, agora fundado num desenvolvimento da troca. A P á g i n a | 128 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG violência guerreira aparece em “Arqueologia da violência” como interrupção de um ciclo de trocas – desta vez entre as diferentes comunidades -, trocas que podem agir em prol da unificação política (SZTUTMAN, 2013, p. 13). Isso nos remete às formas de organização Timbira que Gilberto Azanha (1984) analisou. A dinâmica Timbira de expansão e cisão, é, notadamente, marca da trajetória desses povos. Suas cisões ocorrem como processos gradativos de diferenciações. É o que Clastres chama de “complementaridade e recusa”, onde a guerra, como expressão de rivalidades, é a garantia da permanência dessa dispersão. Ativismo Político e Consciência Histórica O interesse econômico pela Amazônia e a disputa por parte desses territórios têm evidenciado uma competição violenta que afeta diretamente seus habitantes. O Sudeste paraense é caracterizado por essa lógica. A mudança compulsória de território dos grupos étnicos aqui citados resultou no englobamento dessas características e os seus desdobramentos a esses projetos atuaram como fator determinante de lutas pela manutenção do seu lugar e a busca da sua identidade. Ferraz (1983) analisa esse contexto: O modo como as suas relações com o território vem se constituindo em objeto de preocupação política desses grupos locais atualmente em Mãe Maria é revelado no conjunto das estratégias empreendidas nos últimos trinta anos, relativas à salvaguarda e proteção das terras em que habitam, reivindicações de recompensas do Estado por perdas sofridas, através de processos indenizatórios e ações judiciais para reposição de terras, além de programas especiais de assistência, como formas de compensação. A compreensão de um processo de crise permanente em que vive a sociedade parkatêjê está vinculada, por sua vez, à compreensão de outros processos igualmente abrangentes, que envolvem a reorganização cultural, política e a afirmação da identidade, traduzindo a elaboração das estratégias de reprodução da sociedade parkatêjê, no contexto do sudeste paraense. Estas estratégias, por sua vez, dizem respeito à convivência de três grupos locais que compõem, atualmente, a aldeia chamada Kupejipôkti […] Território, é, portanto, elemento base para qualquer análise de um estudo etnológico da região, tendo em vista seu processo de configuração. Utilizo emprestado o conceito de João Pacheco de Oliveira (1998) sobre situação territorial que permite uma análise do processo histórico que muito se encaixa nesse contexto. O processo de territorialização que esses povos ainda vivem em Mãe Maria é dinâmico, e o caráter dos acordos indenizatórios das aldeias não são definitivos: eles estão em constantes transformações e sucessíveis contatos com empresas que cortam a sua área, o que acaba regulando suas relações. Nesse sentido, Pacheco analisa a situação territorial e o modo de vida dos índios que habitam as reservas indígenas como imposição de instituições e são objetos do exercício paternalista da tutela. O que é interessante reter no artigo do Pacheco é a forma que ele coloca a situação como um fato histórico que “instaura uma nova relação da sociedade com o território, P á g i n a | 129 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência sociocultural” (Pacheco de Oliveira, 1998, p. 54). Nesse sentido, a noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 54). Ribeiro Junior (2014) também reflete sobre a situação de Mãe Maria e evidencia que esses povos lutam contra a soberania de dominação existente do capital, e leva em consideração vários conflitos que ocorreram na trajetória da instituição de suas terras, como os conflitos intergrupais que resultaram em cisões, subdivisões e a criação de novos aldeamentos5. A junção desses 3 grupos em uma mesma comunidade resultou em um conjunto de estratégias do seu líder em alianças políticas, cerimoniais e matrimoniais para permanecerem unidos frente às relações de contato (grileiros, posseiros e latifundiários): Tanto a denominação comum - Parkatêjê - quanto a reunião dos grupos em uma única aldeia com a finalidade controlar o ressurgimento de hostilidades internas fazem parte do conjunto de estratégias pessoais de Krôhôkrenhum para assegurar tanto a coesão do grupo e sua unidade política frente aos distintos agentes do contato, como a legitimação do exercício da sua chefia sobre todo o grupo. Para consolidar as mudanças verificadas com a comercialização autônoma da produção de castanha a partir de 1976 (Ferraz, 1983, pp. 68 ss.), nas relações com os nãoíndios das redondezas era necessário mostrarem-se "muitos" e "unidos", iguais enquanto Parkatêjê, numa clara expressão de fortalecimento da identidade (FERRAZ, 1983, p. 3). Ao mesmo tempo em que permaneciam unidos enquanto Comunidade Parkatêjê, acontecia que seus processos de transformação social também foram se diferenciando, o que resultou como fator determinante para que líderes indígenas dos outros grupos locais levantassem suas pautas pela reivindicação do seu lugar, consequentemente, na luta pela reposição de suas terras, exigindo separadamente acordos indenizatórios por seus antigos territórios. Mesmo com as cisões, uma questão é fundamental para o entendimento das relações entre esses grupos: seu processo de transformação política e social, e Krôhôkrenhum liderou o seu grupo desde o começo para esse fim. Gostaria de trazer para reflexão o debate da proposição cosmopolítica que Marisol De La Cadena (2010) realiza em torno de uma política étnica de categorias indígenas como pauta de reivindicação de lutas. Em “Cosmopolitics in the Andes”, cuja política indígena tem sido resoluta enquanto “política étnica”, onde o ativismo é interpretado como uma busca para que P á g i n a | 130 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG os direitos culturais desses povos prevaleçam. Nesse artigo, Marisol levanta questões que argumentam sobre a indigeneidade como uma formação que excede a noção de política como de costume, em uma arena povoada pela disputa do poder e à sua representação junto ao Estado. The political reconfiguration that is currently taking place in Latin America may mark epochal changes in the continent. Electoral results in Bolivia and Ecuador have led international and national analysts to interpret these changes as a (sub) continental re-turn to the left, but what is unprecedented is the presence of regional indigenous social movements as a constituent element of these transformations. Their demands tend to disturb political agendas and conceptual settlements, progressive and conservative alike (DE LA CADENA, 2010, p. 334-335). Isso significa a utilização dos saberes tradicionais no engajamento de movimentos de resistência baseados na reivindicação das causas indígenas contra a destruição do seu povo e do seu território. As pautas de reivindicação dos Gavião também estão intimamente ligadas à questão do território, sobretudo, pela garantia da integridade do seu espaço, a preservação do seu povo e do meio que os cercam. A reconfiguração política que atualmente está acontecendo nesses países da América Latina demonstra profundas mudanças na História, onde a presença dos movimentos sociais indígenas atua como elemento constituinte dessas relações. Seu ativismo é transformador e a demanda de reivindicação desses povos sinalizam perturbar agendas políticas e assentamentos conceituais, pró-progressivos e conservadores (De La Cadena, 2010, p. 335). De forma análoga, Spensy Pimentel (2012) analisa a situação dos Kaiowá e Guarani e a região do agronegócio no Mato Grosso do Sul, identificando a situação de grupos indígenas em áreas de vulnerabilidade e superpopulação. O maior problema enfrentado por eles é expresso nas estatísticas de atentados contra as suas vidas e a violência nos espaços que vivem, seja pelos conflitos entre as famílias dentro das reservas indígenas e o confinamento involuntário nessas terras, ou pelos conflitos com fazendeiros e políticos com grandes empreendimentos econômicos, caso do agronegócio. A análise que Pimentel oferece é a partir da observação do discurso xamânico dos Kaiowa e Guarani em sua luta pelo território e aos fenômenos naturais ligados à terra: A situação atual dos Kaiowa e Guarani nos oferece a oportunidade de observar o discurso xamânico em um contexto bem diferente. No sul de Mato Grosso do Sul, não são a mineração e o desmatamento as ameaças. Não se trata de impedir a devastação da floresta – ela já aconteceu, ao longo do século XX, e de uma maneira radical, como se viu. A reflexão tecida pelos indígenas em sua luta pela reconquista de seu território está repleta de considerações a respeito da ação de seres relacionados à terra, às águas e aos fenômenos meteorológicos – seus parentes, aliados – e de uma crítica à transformação dessa terra e de seus recursos em mercadorias. Usualmente, a reflexão mais densa é realizada pelos nhanderu e nhandesy, como são conhecidas algumas P á g i n a | 131 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG pessoas de prestígio, em função de seus conhecimentos xamânicos e posição social. Os Kaiowá e Guarani que sustentam as práticas xamânicas20 consideram, em primeiro lugar, que as atitudes dos karaí (brancos ou não índios) – o desmatamento generalizado em MS, a irresponsabilidade com relação aos rios e as terras – são extremamente perniciosas para a saúde e o equilíbrio do cosmo. Além disso, é a própria manutenção das práticas xamânicas, segundo eles, que pode dar alguma chance à sobrevivência dos próprios karaí, tendo em vista que as consequências nefastas de nossa negligência e crueldade já são visíveis por todos os lados (PIMENTEL, 2012, p. 141). Os artigos de De La Cadena e Pimentel simultaneamente fazem referência aos pontos de vista envolvidos nas relações políticas, tendo como relação as diferentes visões de mundo e à ação destes sujeitos à natureza e visão cosmopolítica das coisas. É nessa perspectiva que De La Cadena e Pimentel aproximam seu pensamento ao de Isabelle Stangers (2005) em “desacelerar o raciocínio”: How can we present a proposal intended, not to say what is, or what ought to be, but to provoke thought, a proposal that requires no other verification than the way in which it is able to “slow down” reasoning and create an opportunity to arouse a slightly different awareness of the problems and situations mobilizing us? (STENGERS, 2005). Desacelerar o raciocínio aparece em Stengers como uma proposição que se quer separada das questões da autoridade e generalidade que se agenciam em torno da noção de teoria, no sentido do domínio das coisas na política, como a sua desestabilização, um modo de pensar a partir da ciência. Renato Sztutman (2018) é quem analisa e traduz o conceito de “slow down” de Stengers em seu artigo “Reativar a Feitiçaria e Outras Receitas de Resistência – pensando com Isabelle Stengers”, e explora os sentidos de “reclaim” da autora como possibilidade de uma retomada ou reativação das práticas marginalizadas no mundo moderno, como a magia e a feitiçaria, apontando modalidades de resistência política. Pequenas Considerações O processo de integração na Terra Indígena Mãe Maria resultou nos desdobramentos de resistência e recomposição demográfica como aparato de defesa no sentido de fortalecer suas tradições e reconstruir, a partir do contato e do controle ativo do seu território, suas identidades. Isso se conecta com o caso dos Kayapó e da consciência social que eles desenvolveram a partir do contato ao lidar com componentes estrangeiros e a reafirmação de P á g i n a | 132 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG uma identidade étnica capaz de assumir sua própria autonomia e variadas formas de ações coletivas, sem que, no entanto, estejam “perdendo a sua cultura” (Turner, 1993). A importância de revisitar autores que pensam mudança e desenvolvimento de grupos étnicos levando em consideração suas transformações a partir das suas próprias perspectivas, dentro das relações de poder e ações de enfrentamentos é pensar memória e cultura desses povos não do ponto de vista de como as coisas foram, mas como serão. Notas [1] Trabalho apresentado na VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG/2018. [2] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia - PPGA - da UFPA. [3] Para uma revisão desse período, consultar: BELTRÃO, Jane Felipe. Laudo Antropológico Reserva Indígena Mãe Maria a propósito da BR-222. Campinas, 1998. [4] Para compreender o contexto desses empreendimentos, consultar: HÉBETTE, J. (Coord.). A Amazônia no processo de integração nacional. Belém: UFPA/NAEA, 1974. [5] Para uma análise geral precisaria ir a campo tentar compreender em que termos os próprios Gavião de Mãe Maria se definem, e tentar incluir o que é esse território para eles. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida Rita (orgs). Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial do Estado; Paris: IRD, 2000. ÁVILA, Thiago. Não é do jeito que eles quer, é do jeito que nós quer: os Krahô e a Biodiversidade. Dissertação de Mestrado, UnB, Departamento de Antropologia, 2004. AZANHA, Gilberto. "Forma Timbira": Estrutura e Resistência. São Paulo: Dissertação de mestrado, FFLCH/USP, 1984. DE OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. 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Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify. Pp. 345-399, 2002. P á g i n a | 135 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Repensando a divulgação científica e seu lugar na Universidade: Um olhar antropológico Bárbara M. Martinez Viana Orientadora: Karla Cunha Pádua Universidade do Estado de Minas Gerais Introdução A presente pesquisa de natureza interdisciplinar desenvolvida no Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais- UEMG teve início no primeiro semestre de 2018. O estudo tem como foco o projeto de divulgação científica, chamado “Universidade das Crianças” (UC), desenvolvido na Universidade Federal de Minas GeraisUFMG. Trata-se de um projeto de extensão que propõe divulgar a ciência para o público infantil, a partir de dúvidas que as próprias crianças tenham sobre o corpo humano e o meio ambiente. Foi criado pelo Núcleo de Divulgação Científica da UFMG e existe desde 2006 como um projeto interdisciplinar, que envolve colaboradores de várias áreas, como Medicina, Belas Artes, Ciências Sociais e Educação. Parte-se do entendimento de que, através das dúvidas das crianças, seja possível entendê-las em seu mundo, a partir de seu próprio ponto de vista, de suas percepções e visões. Entende-se que, essas perspectivas sejam também construídas a partir do que o contexto social oferece, assim, valoriza-se a necessidade de considerar as crianças como atores sociais plenos (COUTINHO et al., 2017). O contato com as crianças se dá a partir das oficinas que o Projeto de Divulgação Científica promove em escolas. A equipe do Projeto vai até às escolas e conversa com as crianças sobre ciência e os saberes construídos até os dias de hoje. Entende-se, neste contexto, que a produção do conhecimento começa a partir da pergunta, logo, é importante atribuir poder a elas, para então, dar mais visibilidade e voz às crianças. Em um momento anterior à oficina (uma ou duas semanas antes), é deixada na escola uma caixa, onde as crianças poderão colocar suas perguntas sobre o corpo humano e meio ambiente. O objetivo das oficinas e dos espaços organizados é oferecer um local acolhedor para que as crianças se sintam seguras para fazer as perguntas. O intuito é criar uma discussão menos hierárquica, tentando desconstruir a universidade como única detentora de P á g i n a | 136 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG saber legítimo e propondo um diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, nas oficinas são alcançados meios de discutir e incorporar aspectos culturais e sociais. Considerando o Projeto UC como contexto de pesquisa, destaca-se a função social da Universidade que perpassa a divulgação científica e a extensão. Dessa forma, pode-se interpretar a Universidade como um espaço de significar o aprendizado e lugar de troca de saberes (SANTOS, 2013). Lugar, também, de propor ações associadas à funções sociais ligando as práticas acadêmicas às demandas além dos muros universitários. Nessa medida, é pretendido entender a universidade pública e sua relação com os compromissos sociais construídos por meio da extensão. Em via de destacar a Universidade como produto de seu tempo, discutiremos a divulgação científica e os desafios que ameaçam sua valoração ao considerar o contexto político atual. Considerando o papel social da divulgação científica, tendo em vista seu alcance interno e externo à Universidade, abordaremos o contexto político atual e os desafios colocados para o desempenho de projetos de extensão continuarem executando suas tarefas dentro da Universidade. Para alcançar os sujeitos em busca de denotar a relevância social do projeto “Universidade das Crianças”, será adotada a metodologia qualitativa e o instrumento da entrevista narrativa com a intenção de ouvir a voz dos participantes desse projeto de divulgação científica. Em primeira instância, pretende-se efetuar um levantamento de participantes do Projeto Universidade das Crianças que contemple sujeitos de 2006 (ano inicial de funcionamento) até o presente momento. O intuito é compreender como o material é construído por esses sujeitos dentro do Projeto e como ele chega às crianças. Para isso, uma das etapas será a realização de uma Oficina com crianças da Escola Municipal Dom Bosco, na qual serão usados os materiais produzidos pelo UC, como livros impressos e vídeos de animação publicados no site1. Na Oficina será usada uma metodologia específica de investigação etnográfica com crianças para entender como esse material de fato é compreendido por esse público externo à Universidade. A abordagem antropológica, escolhida para orientar o estudo, nos conduz necessariamente à etnografia, ao levar em conta os atores sociais e suas agências em um dado contexto. A abordagem etnográfica considera “os atores sociais com uma participação ativa e dinâmica e modificadora das estruturas sociais” e preocupa-se “em revelar as relações e interações significativas de modo a desenvolver a reflexividade sobre a ação de pesquisar, tanto pelo pesquisador quanto pelo pesquisado. (MATTOS, 2001, p. 41). Nesse sentido, a entrevista narrativa se coloca como um grande ganho na pesquisa, por considerar a P á g i n a | 137 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG reflexividade dos atores, na medida em que ajudará a entender a imersão dos atores na “rede de relações” (LATOUR, 2012). No desenvolvimento da pesquisa, o Projeto “UC” será pensado a partir da teoria de rede, na perspectiva de Latour (2012), buscando compreender a ação dos atores nele envolvidos. Segundo o autor, um importante aspecto das redes é que elas são híbridas, compostas por atores humanos e não-humanos. O que define um ator dentro da rede são as suas relações entre as diversas entidades em ação (COUTINHO et al., 2014). A importância da pesquisa em ação: o contexto político e a valoração da ciência Considerando o contexto político atual de corte de verbas para a educação, a Universidade pode ser conceituada como uma das Instituições que mais vem sofrendo com esse cenário. Os recursos para pesquisas estão sendo afetados diretamente, os cientistas que antes não buscavam o apoio da sociedade para conseguir recursos, hoje se veem em lugar de seguir diferentes ações. Convencer uma sociedade que não foi ensinada a enxergar o valor das produções científicas é um desafio que se tornou necessário (ESCOBAR, 2018). Nem sempre o diálogo comunidade científica e sociedade foi valorizado, pelo fato de existir um abismo entre ambos. Segundo Escobar (2018), “a divulgação científica sempre foi deficiente no Brasil, mas nunca fez tanta falta quanto agora, pelo fato da crise orçamentária ter afetado a ciência brasileira nos últimos anos”, principalmente pelo “desgoverno” atual que, por meio da PEC 552 congelou os gastos na educação. O auge do regime fiscal em 2016 no poder do governo Temer foi a saúde e a educação. O intuito foi congelar os gastos federais em saúde e educação ao patamar de 2017. Para isso, o piso de gasto da Receita Líquida de Impostos (RLI) em educação e a Recente Corrente Líquida (RCL) da saúde tiveram como referência os gastos de 2017 reajustados pela inflação. Áreas como a ciência, tecnologia e humanidades estão sendo refletidos de maneira muito pesada na Educação. Os cortes realizados este ano somam cerca de R$ 4,3 bilhões, que representam quase 50% da verba total de financiamento para a produção de conhecimento nesses dois anos (MAHIN,2017). Considerando esse atual contexto político, que afeta a viabilidade de projetos de divulgação científica dentro das universidades, é ainda mais fundamental o desenvolvimento de pesquisas que mostrem para a sociedade brasileira a sua necessidade e relevância. Esta pesquisa de mestrado sendo desenvolvida com intuito de fortalecer a valoração e visibilidade da divulgação científica e do seu papel educativo, o que mostra a relevância do tema tratado. Trabalhos dentro desse tema, ao trazer à tona o papel social da universidade de potencializar P á g i n a | 138 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG os meios que divulgam a ciência, manifestam um diferencial no contexto contemporâneo brasileiro, no sentido de revelar o potencial educativo dos projetos de divulgação científica. Em um contexto de congelamento de gastos para educação e produção científica nas Universidades, nunca se precisou tanto do consentimento social para conseguir verba para esses setores. Portanto, discutir esse assunto na contemporaneidade é dar força para a ciência e para a importância da divulgação científica dentro e fora da universidade. Entretanto, como afirma Escobar (2018), “a divulgação científica não vai trazer o orçamento da ciência brasileira de volta, é preciso um investimento a longo prazo e de caráter educativo”(ESCOBAR,2018, p. 34). Essa conscientização sobre a importância da ciência não vai surgir espontaneamente na sociedade, é algo que precisa ser construído, semeado e irrigado diariamente. Escobar (2018) chama essa tarefa de um grande desafio. Desafio esse que a presente pesquisa está disposta a se envolver, no que se refere relevar a temática da divulgação científica e visibiliza-la no contexto da pesquisa em educação, tendo seu diferencial ao trazê-la na perspectiva antropológica. Essa perspectiva pode ajudar a valorizar os conhecimentos produzidos na Universidade, mas não aqueles que se colocam dentro de uma perspectiva dos saberes colonizadores, mas aqueles que se constroem no diálogo com a alteridade e abertos a novas epistemes.3 Projetos de extensão como o Universidade das Crianças parecem ter potencial para discutir a ciência nessas outras perspectivas, menos colonizadoras e mais dialógicas, daí a importância desse projeto, aberto a ouvir as vozes dos diferentes atores sociais nele envolvidos. A Divulgação Científica se classifica nesse viés de integrar vários atores sociais na dinâmica de construção da ciência. Essa também é uma forma de viabilizar essa construção da ciência que acontece por meio de relações estabelecidas socialmente, as quais constituem o meio crítico necessário, constituído de cidadãos que trazem consigo os valores culturais de seu tempo. Há que se destacar que formas de visibilizar essa conduta dentro das construções científicas têm significativo valor, pois a ciência faz parte do cotidiano das pessoas, embora ela seja “ frequentemente apresentada como algo completamente desvinculado de seu dia-adia” (MASSARANI, 1999, p. 26). Isto é algo que a Divulgação Científica tenta desconstruir. A presente pesquisa fundamentada em uma perspectiva antropológica se faz relevante dentro dessa desconstrução, no sentido de protagonizar os sujeitos na composição da ciência. P á g i n a | 139 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG A utilização da teoria ator rede se remete nessa visibilidade da construção da ciência conjugada aos indivíduos sociais, até mesmo por sua construção poder ser entendida a partir dessa rede de relações em que os atores sociais fazem parte dessa dinâmica. A ciência moderna está estruturada em uma base analítica: “dividir para compreender”. Porém, segundo Latour (1994), é preciso recusar o que essa modernidade nos impõe. Para resolver esse problema, um dos meios é o diálogo interdisciplinar. A Universidade, bem como Projetos de Divulgação científica devem existir como lugar de intervenções técnicas para dialogar esse problema moderno. Acreditamos que é necessário conduzir a divulgação científica propondo uma educação construída na horizontalidade, objetivando a contextualização cultural junto a ciência. Afinal, a cultura tem influência na política de produção do saber, logo ela precisa ser levada em conta. Por isso, no ponto de vista do saber e da cultura, somos desafiados a aprender com e na diferença mediante o respeito e o reconhecimento do outro (DA SILVA, 2011). Na alfabetização, segundo Paulo Freire (1987), alfabetiza-se também o indivíduo em seu mundo, para que nele reencontra-se com os outros e nos outros, companheiros de seu pequeno “círculo de culturas”. Assim acreditamos que a construção da ciência, considerada dentro de uma perspectiva cultural, para acessar o cotidiano das pessoas e desconstruir o que não a visibiliza enquanto importante na vida, e no tempo histórico. Base teórica e metodologia da pesquisa Com o intuito de utilizar do saber antropológico para entender a Universidade e suas relações com os compromissos sociais construídos por meio da extensão é relevante levar em conta pesquisas que abordam a universidade e o papel da extensão e da divulgação científica, a fim de efetuar uma investigação junto às produções existentes da comunidade científica. A Extensão é denotada por seu importante papel enquanto cumpre as funções sociais dentro da Universidade. A divulgação científica dentro desse contexto, precisa ser entendida, então, como forma de prestar contas à sociedade dos investimentos realizados por ela no que tange a universidade pública. (CASTILHO et al. 2011). [...] essa prática extensionista, desde sua emergência no universo acadêmico, ter sido associada à função social para além dos muros universitários e significada como espaço de intervenção – lugar de propor ações. (SANTOS, 2013, p. 4). Ações essas significativas tanto para públicos internos, como alunos, quanto para o público externo beneficiado. Logo, pensar a universidade e as ações de extensão são também maneiras de pensar em um trabalho que requer um direcionamento, que considera esse um espaço de produção e negociação de saberes. (SANTOS, 2013). P á g i n a | 140 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Em via de tentar entender a produção de saberes que a extensão universitária constrói é de suma relevância evidenciar no âmbito da pesquisa em educação os sujeitos que “fazem a universidade acontecer”. Porém, nesse entendimento, protagoniza-se a prática de ensino, olhando para os sujeitos sociais também através dos projetos de extensão universitária. Para tanto, optamos por olhar para esses sujeitos de forma estrutural, utilizando como base a teoria ator-rede (TAR) de Latour, na qual ele aborda que, tudo que existe são actantes (humanos e não humanos), e sua relação entre as diversas entidades em ação. Portanto, um ator nunca pode ser compreendido como uma entidade isolada, eles estão sempre imersos em suas relações. (COUTINHO et al., 2017). Com base nessa teoria, é possível reconhecer os envolvidos no Projeto UC como atores para visibilizar e entender o importante papel de cada um deles na rede de relações. Assim, busca-se criar como Latour propõe, um universo democrático de atores. Na Teoria Ator Rede a noção de rede remete a fluxos, circulações e alianças, “nas quais os atores envolvidos interferem e sofrem interferência constante” (FREIRE, 2006, p.55). Nessa perspectiva, os processos de produção e divulgação do conhecimento podem ser vistos como efeito de rede, que emergem nas conexões humanas e não humanas. (COUTINHO et al., 2017). Essa visibilidade dos sujeitos na construção do conhecimento e na vida social, assim como o papel social da Universidade, é que a presente pesquisa pretende ressaltar. Entretanto, “a sociedade, por sua vez, nunca enxergou, nem foi ensinada a enxergar a importância ou a relevância da ciência para as suas vidas” (ESCOBAR, 2018, p.32), por isso, pensamos que esse trabalho é uma forma de revelar esse valor, a partir do foco em um projeto específico e sob o olhar de diferentes atores. É relevante também frisar a importância de se falar do papel da pesquisa e da extensão na construção da comunicação direta da universidade com a sociedade, ainda mais neste atual tempo histórico e político, que não valoriza a educação e que tende a calar o sujeito e principalmente a universidade. Para mudar essa realidade histórica, é ainda mais necessário o desenvolvimento de uma atitude crítica que estimule os sujeitos a lutar para transformá-la (MUNIZ, 2018). A antropologia pode contribuir com esse processo ao destacar o papel dos diferentes sujeitos que constroem conhecimento dentro da Universidade e a sua importância na valorização desse conhecimento para construir melhores pontes de comunicação entre sociedade e comunidade científica. Ao instrumentalizar interpretações, a antropologia traz propostas metodológicas de análise desse contexto de construção da ciência e da sua P á g i n a | 141 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG influência no ensino e no cotidiano das pessoas. Analisar antropologicamente a divulgação científica, nessa perspectiva, permite interpretar o ensino de ciências, a partir do olhar dos sujeitos da pesquisa e numa perspectiva horizontal e cultural. Considerando que a construção do saber também é uma construção sociocultural, acreditamos que por meio desse diálogo interdisciplinar é possível compreender as aprendizagens provocadas pelo projeto de divulgação científica “Universidade das Crianças” nos sujeitos que dele participam ou participaram. Entretanto, para compreender a dinâmica de funcionamento a partir dos atores que constituem o Projeto UC, é necessário considerar o papel da Divulgação Científica, como um mecanismo relevante que influencia ações. Para tanto, a presente pesquisa terá como base, teorias que abordam a “cultura científica”. Esta, pode ser também entendida como o desenvolvimento da ciência vista em sua produção e divulgação. A concepção de cultura científica pode ser considerada variável ao ser estudada historicamente. Envolvem valores, posturas e práticas e concebem expectativas de difusão social e cultural. (Fonseca, M. A., & de Oliveira, B. J, 2015). Quando se fala em cultura científica é preciso entender pelo menos três possibilidades de sentido que se oferecem pela própria estrutura lingüística da expressão: 1. Cultura da ciência. Aqui é possível vislumbrar ainda duas alternativas semânticas: a) cultura gerada pela ciência; b) cultura própria da ciência. (VOGT, 2003). No que tange à cultura da própria ciência, ela pode ser entendida a partir de sua produção e divulgação. O contexto de divulgação científica favorece essa interpretação. A divulgação científica pode ser considerada simbólica em seu importante papel social para ampliação do conhecimento, tendo função educativa de construir um modelo de relação entre ciência e sociedade. Também tem como relevante característica contribuir para a horizontalidade e acesso ao saber, se manifestando com importante viés educacional que intermedia a ampliação do conhecimento. A ciência também se performa na divulgação e busca democratizar o acesso ao conhecimento científico, além de estabelecer condições para a chamada “alfabetização científica”. Contribui, portanto, para incluir os cidadãos no debate sobre temas especializados e que podem impactar sua vida e seu trabalho. Para compreender como o conhecimento científico circula, Carlos Vogt (2003) ressalta quatro quadrantes para entender sua dinâmica e os principais componentes de cada quadrante, que o autor analisará como um espiral da cultura científica. “A partir da produção e da circulação do conhecimento científico entre cientistas, a espiral evolui para o segundo quadrante, o do ensino da ciência e da formação de cientistas; continua, então, para o terceiro quadrante, em que se amplia no ensino P á g i n a | 142 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG para a ciência; e completa o ciclo, no quarto quadrante, para identificar aí a divulgação científica. Em cada quadrante estão os elementos que contribuem para que melhor se entenda a dinâmica do processo da cultura científica. No primeiro, os próprios cientistas são emissores e destinatários da ciência; no segundo, cientistas e professores dirigem-se a estudantes; no terceiro, cientistas, professores, diretores de museus e animadores culturais da ciência destinam conteúdos científicos a estudantes e a um amplo público jovem; no quarto quadrante, jornalistas e cientistas seriam os emissores -e, aqui, os destinatários seriam constituídos pela sociedade em geral e, mais especificamente, pela sociedade organizada em suas diferentes instituições, principalmente as da sociedade civil, o que tornaria o cidadão o destinatário principal desta interlocução da cultura científica. Ao mesmo tempo, outros atores aparecem nos quadrantes. Universidades, centros de pesquisa, órgãos governamentais, agências de fomento, congressos e revistas científicas estão no primeiro; no segundo, acumulando funções, outra vez as Universidades, o sistema de ensino fundamental e médio e o sistema de pós-graduação; no terceiro, os museus e as feiras de ciência; e, no quarto, as revistas de divulgação científica, as páginas dos jornais voltadas ao tema, os programas de TV etc.” (VOGT, 2003). Percebendo e analisando esse espiral em quadrantes publicados no site “FAPESP na mídia” (2003), é possível localizar o Projeto Universidade das Crianças se manifestando de diferentes formas nessa demonstração. Em se tratando do primeiro quadrante, já podemos perceber que a produção científica e a Universidade se destaca como componente. Já no segundo quadrante, o ensino de ciências é destinado dos cientistas e professores para os estudantes, assim como o Projeto UC se propõe dentro de sua dinâmica de funcionamento. Por fim, no quarto quadrante está a Divulgação Científica, onde a sociedade em geral e suas diferentes instituições a compõem, e por finalidade, se estabelecem esse processo de construção da ciência. Nesse último quadrante, estão também os meios de divulgação, como as revistas e sites, aos quais o Projeto Universidade das Crianças também se destaca. Fazendo esse panorama geral do espiral e como o Projeto UC se destaca neles é possível perceber sua função em meio a construção da cultura científica e como os sujeitos têm prática ativa dentro no funcionamento dessa dinâmica. A presente pesquisa, ao levar em conta esse espiral da cultura científica, julga como relevante localizar e mapear os sujeitos a partir de uma perspectiva antropológica, de forma a estruturar essa análise segundo a teoria ator-rede, analisando o Projeto UC e os agentes que compõem esse funcionamento. Essa rede levará em conta o UC como um espaço produtor de diálogo científico e sociocultural. Nessa medida, é relevante levar em conta a espiral da cultura científica, pois ela pretende representar a dinâmica constitutiva das relações inerentes e necessárias entre ciência e cultura. (VOGT, 2003). A cultura se destaca como um dos temas centrais nas discussões antropológicas, também pelo fato de que para entender o paradoxo da enorme diversidade cultural da realidade humana é preciso passar pela significação cultural. O fato é que a humanidade é resultado do meio cultural em que é socializada, logo, para compreender seus P á g i n a | 143 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG comportamentos no contexto estudado é preciso considerar o seu meio cultural e o que foi aprendido nele (LARAIA, 2001). Um dos desafios do pesquisador é compreender como e porque cada indivíduo que faz parte do seu contexto estudado opera dentro daquele meio. Logo, considerar o conceito de cultura é um ponto inicial de compreensão de comportamentos e para o entendimento do modo como a cultura estabelece e estrutura as relações sociais. Considerar o conceito de cultura para a pesquisa em educação é uma forma de situar o pesquisador dentro do seu contexto de estudo. A cultura é construída socialmente, os indivíduos são agentes dentro dela e operam o seu dinamismo, influenciando e sofrendo interferência o tempo todo. Logo, a produção da ciência também precisa ser considerada em um contexto cultural, pois, ciência e cultura há séculos determinam o cotidiano da humanidade. Cultura e ciência estão presentes na vida cotidiana, mesmo que as pessoas não associem suas atitudes constituintes de um processo de construção e transformação cultural e científico. Portanto, o público ou o quarto quadrante (VOGT, 2003) são parte integrante do processo de criação dessa dinâmica (ILDEU DE CASTRO et al. 2002, p.165). Por isso, é importante relevar a perspectiva cultural e antropológica para embasar a pesquisa em um contexto de análise de Divulgação Científica, “formas de expressão, que sempre associadas a manifestações culturais, apropriam-se da ciência” (ILDEU DE CASTRO et al. 2002, p.168). Para efetivação metodológica da pesquisa, em primeira instância, pretendemos efetuar um levantamento de participantes do Projeto Universidade das Crianças que contemple sujeitos de 2006 (ano inicial de funcionamento) até o presente momento, para fins de realização de entrevistas narrativas, elaboradas de modo a estimular esses “atores” a contar suas experiências vividas no projeto. Nessa instância, o enfoque da pesquisa narrativa é o alcance das experiências biográficas. Essa metodologia, pode também ser classificada como um caminho para alcançar as opiniões subjetivas dos sujeitos da pesquisa (FLICK, 2012). Quando induzida, a reflexividade do sujeito a partir da narrativa, podemos acessar um alcance da experiência vivida pelo sujeito no Projeto Universidade das Crianças (BOLIVAR, 2006). A narrativa como meio metodológico, pode abranger uma análise dos aspectos essenciais das vivências do sujeito, que marcam suas experiências. Para Jorge Larrosa Bondía (2002), experiência é o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e o modo como se dá sentido aos acontecimentos. Segundo Flick (2012), deve-se formular a pergunta narrativa geradora de forma mais ampla, embora suficiente para produzir o foco desejado. Para tanto, a pergunta geradora deve P á g i n a | 144 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG induzir uma narrativa que conduza um início, meio e fim, no sentido que o entrevistado contemple em sua fala todos esses diferentes momentos. Portanto, para compreender as experiências vividas pelos sujeitos também denominados na presente pesquisa como atores e suas experiências vividas na “rede de relações” do projeto Universidade das Crianças. Assim, busca-se criar, como Latour propõe, um universo democrático de atores e das experiências que compõem essa rede. Na “Teoria Ator Rede” a noção de rede remete à fluxos, circulações e alianças, “nas quais os atores envolvidos interferem e sofrem interferência constante” (FREIRE, 2006, p.55). Nessa perspectiva, os processos de produção e divulgação do conhecimento podem ser vistos como efeito de rede, que emergem nas conexões humanas e não humanas (COUTINHO et al., 2017). Como critérios de seleção dos sujeitos da pesquisa, definimos entrevistar: uma bolsista do curso “Cinema de Animação”, que tem pelo menos dois anos de participação e hoje contribui com o Projeto como voluntária e dois professores coordenadores, sendo uma a fundadora do UC e que coordena o grupo até hoje, e outro professor que efetiva trabalho no projeto desde 2015. Dentro da perspectiva da entrevista narrativa, elaboramos a seguinte pergunta geradora: “Conte-nos sobre a sua participação no Universidade das Crianças, começando pelas funções e compromissos assumidos no desenvolvimento do projeto, detalhando sobre as principais aprendizagens e possíveis mudanças ocorridas na sua vida acadêmica e, por fim, comentando como você concebe os resultados desse trabalho para o público infantil”. Com o objetivo de alcançar o público externo à universidade, a partir de um levantamento, serão contatadas pelo menos duas crianças, que já tenham participado de uma oficina promovida pelo UC. Ainda considerando o público externo, será promovida uma oficina na Escola Municipal Dom Bosco (com a qual mantenho ligação voluntária), que fica localizada na região noroeste de Belo Horizonte. Serão considerados pelo menos cinco alunos do ciclo básico com idade de 8/10 anos. A oficina será promovida para que as crianças conheçam os materiais produzidos pelo Projeto, os livros e vídeos de animação divulgados no site. Nesse sentido, através de uma perspectiva de viés etnográfico a oficina será um meio de entender qual o impacto causado pelo material produzido pelo Projeto no público infantil, não obstante, dando visibilidade aos conhecimentos produzidos na Universidade. Na oficina promovida na escola, a metodologia de análise seguirá abordagem de investigação etnográfica. A Oficina será um espaço em que elas conheceram os livros e assistirão aos vídeos de animação, um espaço dinâmico e que requer muita observação por parte do pesquisador. A prática etnográfica com crianças é um assunto tratado no livro P á g i n a | 145 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética (2003), no qual é discutido que, para efetuar a prática etnográfica é preciso considerar os sujeitos da pesquisa em seu contexto, além de seu tempo social e histórico. No livro, Graue Elizabeth et al. (2003) ressalta que a criança deve ser compreendida significativamente em seu contexto e em suas experiências culturalmente mediadas. O trabalho com esse público requer uma atenção principalmente aos contextos que limitam a criança, por exemplo, por uma presença adulta. Um dos segredos é tomar as decisões de alteridade feitas pelas crianças neste contexto, dando visibilidade as suas ações. A abordagem será interpretativa e etnográfica, considerando os atores sociais como uma participação ativa, dinâmica e modificadora das estruturas sociais. “O sujeito da pesquisa, historicamente ator das ações sociais e interacionais, contribui para significar o universo pesquisado exigindo a constante reflexão e reestruturação do processo de questionamento do pesquisador” (MATTOS, 2001, p. 51). Nessa medida, vê-se que o pesquisador também faz parte da “equação” no que se refere ao resultado da pesquisa, pois ele carrega consigo suas vivências e visões culturais ao interpretar o outro. É preciso considerar essa instância, porém, com o olhar treinado e academicamente preparado o pesquisador estará apto para etnografar seu contexto de pesquisa com uma visão interpretativa potencialmente científica. Este é um método conhecido no campo antropológico seguindo várias vertentes, porém a aqui utilizada, será a vertente interpretativa, técnica de Clifford Geertz (1998). Para o autor as culturas devem ser lidas e entendidas como textos, no qual o ser humano está imerso. Ele entende que essa prática epistemológica tem que tentar “ver as coisas como os outros veem”. A tarefa é: “ o entendimento do entendimento”. Portanto seu método se baseia em; 1. Interpretar os elementos culturais e como as ações têm significações simbólicas dentro daquele contexto; 2. Tratar os fenômenos culturais como sistemas significativos ; 3.Leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos (GEERTZ, 1998). Entretanto, para que esta leitura seja de fato eficaz, é preciso segundo Geertz, fazer uma descrição densa da cultura estudada, sendo essa uma trama que precisa ser interpretada, através de uma “descrição densa”. O autor afirma que, o ato de etnografar não é apenas observar e sim interpretar, para tanto, é preciso mergulhar naquela trama e estar com o olhar treinado para interpretar as ações simbólicas dentro do contexto. Segundo Geertz, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante (1978). Para isso, será P á g i n a | 146 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG importante também lançar mão da análise de documentos relatos ao Projeto Universidade das Crianças. A partir desse olhar etnográfico, buscaremos entender a interação dos “atores” na rede de relações a partir de suas narrativas, no que se refere as entrevistas e dos comportamentos e ações na oficina. “As redes ou os atores-redes são formados por aquilo que Latour chama de “processos de translação”, ou seja, um processo em que dois ou mais actantes tornam-se de tal modo relacionados que um exerce força sobre o outro. Isso significa que, para fazer parte de uma rede, os actantes devem ser reunidos de modo a trabalharem juntos, o que pode significar mudanças nas formas em que atuam” (COUTINHO et al., 2017, p.7). Para entender como os “atores” que passaram pelo projeto influenciam nessa rede, será considerada a etnografia como um importante meio de compreender as narrativas desses atores. Essas, por sua vez, relevam o seu papel epistemológico na compreensão de si, no sentido de entender os relatos como construções sociais, que expressam as perspectivas dos diferentes atores e o significado local da ação. (MATTOS, 2001). Nesta perspectiva, entende-se que o sujeito pode expressar a interpretação do seu contexto social através da narrativa. Logo, entender essa narrativa, é também considerar o contexto e a condição sócio histórica do sujeito, para então analisar seu discurso. A Universidade e o projeto de Divulgação Científica são locais de partida para essa compreensão. “A finalidade primordial da universidade é a produção de conhecimento, a pesquisa científica, a procura dos princípios e mecanismos que conduzam à inovação tecnológica, os estudos literários, as especulações filosóficas e a criação artística. A investigação nos domínios da ciência e da cultura são os postulados da universidade que contribuem para a formação do cidadão possibilitando-lhe o exercício de funções especializadas em todas as áreas das humanidades, da ciência e tecnologia.” (LOPES, 1998, p.214). Contudo, a intenção dessa pesquisa é compreender o papel formador da universidade e da divulgação científica na vida de diferentes atores sociais e a partir da perspectiva daqueles que participaram do projeto UC. O intuito da pesquisa é entender a partir das narrativas desses atores sociais, como esse caráter formador vem se manifestando e se evidenciando. Além disso, será possível potencializar esse trabalho dando ênfase a como o material produzido na Universidade chega ao público infantil, que não obstante, também compõe essa rede. P á g i n a | 147 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Defende-se essa metodologia, pois ela viabiliza o protagonismo do sujeito em seu contexto social, induz a valorização e importância de sua ação para transformação de seu tempo histórico. A antropologia considera os sujeitos como atores sociais ativos imersos em suas relações e no diálogo com a educação pode contribuir para a construção de saberes horizontais. Esta construção, pode tornar os sujeitos mais participativos e os espaços mais democráticos potencializando mudanças. Acredita-se que a partir dessa abordagem é possível interpretar as ações dos sujeitos como seres culturalmente constituídos e induzir ações em prol da universidade e do estreitamento dos seus laços com aqueles que estão fora dos seus muros. Metas da pesquisa O principal objetivo da pesquisa é compreender o papel formador da divulgação científica na perspectiva dos diferentes atores envolvidos no projeto Universidade das Crianças (UC), para então descrever a ação dos atores envolvidos no Projeto UC por meio da teoria ator-rede. Através da perspectiva dos indivíduos, levantaremos as aprendizagens provocadas pelo Projeto Universidade das Crianças na vida de quem dele participa/ participou. Posteriormente, como meio de alcançar o público externo, os materiais produzidos pelo UC- UFMG serão a base para analisar seu o potencial formador para público infantil. Logo, se alcançadas as metas já mencionadas, será cabível entender o papel de projetos de extensão como o UC no fortalecimento do compromisso social da universidade. Notas [1] <http://www.universidadedascriancas.org/>. [2] O intuito foi congelar os gastos federais em saúde e educação ao patamar de 2017. A PEC do novo regime fiscal é, na verdade, a PEC da desvinculação da saúde e da educação. [...] No Brasil, o mínimo para os gastos públicos com educação, estabelecido pelo Artigo 212 da Constituição Federal, é de 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI). Já o mínimo para a saúde foi modificado recentemente por meio da Emenda Constitucional 86, que estabelece um percentual da Recente Corrente Líquida (RCL) de forma escalonada, 13,2% da RCL em 2016, 13,7% em 2017, 14,2% em 2018, 14,7% em 2019 e 15% a partir de 2020. (DWECK; ROSSI, 2016). [3] Para aprofundar esse debate, encontramos, entre outras possibilidades, o movimento epistêmico, teórico e político chamado de decolonial, que propõe compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. Está relacionado P á g i n a | 148 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG à emancipação do sujeito e libertação da realidade colonial e a forma como essa realidade estabelece hierarquias de conhecimento e poder. (BALLESTRIN,2013). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista brasileira de ciência política, n. 11, p. 89-117, 2013. BOLIVAR, A. e JËSUS, D. La investigación biográfica y narrativa en Iberoamérica: Campos de desarrollo y estado actual, en: Forum: Qualitative Social Research, Volumen 7, N° 4, Art. 12. Septiembre de 2006. BONDÍA LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, Jan/Fev/Mar/Abr 2002. CASTILHO, A. de; FACÓ, J. F. B. A divulgação científica na universidade pública: case Universidade Federal do ABC. In: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2011. p. 1-15. CHASSOT, Attico. 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P á g i n a | 151 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Um fragmento de uma memória encontrada: Um artefato colonial como fonte para a educação arqueológica brasileira Leonardo Lopes Villaça Klink¹ Introdução Entre os dias 15 e 18 de maio ocorreu minha primeira ida ao Rio de Janeiro, com o intuito de divulgar minha pesquisa “Um engenho e seu Potencial para Práticas Educativas em arquelogia”, apresentando-a ao III Seminário Internacional em Memória Social, promovido pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Após a apresentação do trabalho citado, decidi ir ao Parque Henrique Lage – grande área verde situada aos pés do Corcovado – antes de partir. Logo depois de uma visita à Escola de Artes Visuais resolvi explorar mais um pouco o lugar, ainda mais depois de saber da existência de um engenho de manufatura açucareira séculos atrás, fato não mencionado e sinalizado em placas ao longo do parque. Pouco atrás da Escola, me deparei com as ruínas de uma estrutura colonial provenientes do século XVII ao XVIII, a tal lavanderia escrava. O local possui um fácil acesso, mas mediante o uso de calçados adequados e uma boa iluminação “móvel”. Acompanhado de outras duas estudantes com as lanternas de seus celulares conseguimos identificar alguns aspectos arquitetônicos materiais e imateriais da lavanderia; a escuridão no local, o barulho dos pingos de água atrelados ao peso histórico tornam a experiência única e totalmente fenomenológica; já desenvolvendo em mim um fascínio a ponto de produzir cientificamente sobre. Após uma boa observação na pequena construção, me deparei com um pequeno fragmento brilhante ao iluminar um canal de água situado no chão. O “caco” logo de cara me pareceu antigo pela forma bruta com que a argila constituiu o centro da cerâmica e pela presença de marcas de dedos (digitais) durante o processo de molde estrutural da massa térrea. Sem pensar duas vezes – e ainda prestes a partir para Minas Gerais – decidi recolher aquele pequeno resquício material – mas com um grande potencial arqueológico – com a intenção de extrair o máximo de informações sobre o determinado local partindo de uma cultura material, ligando-a anacronicamente ou não à paisagem em que se encontrava. P á g i n a | 152 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Devido às dificuldades em se datar artefatos no Brasil em questão da grande lista de espera nas universidades e também pela escassez e alto valor cobrado pelos laboratórios brasileiros que utilizam a datação via Carbono 14 ou Radiocarbono; decidi me aprofundar utilizando-a simplesmente como um fragmento do período colonial, ao contrário de situar sua produção – tratando por exemplo a peça como proveniente do final do século XVIII ou XIX – ; para uma didática mais ligada ao factual, se tratando de disciplinas tão cronológicas como a Arqueologia e a História. O histórico do Parque Situado no bairro Jardim Botânico, a história do Parque Henrique Lage – conhecido previamente como as terras do Engenho d‟El Rey – se desenvolve primeiramente com a presença dos aborígenes Tupis dados como Tamoios no território do próprio parque até a Lagoa Rodrigo de Freitas. O termo “Tamoio” – derivado da língua Tupi, expressado como anciões, avós ou velhos – em si não é apresentado como uma etnia e/ou nomenclatura de uma tribo específica, mas sim de uma união feita pelas tribos Tupinambá, Tupiniquins, Temiminós, Goitacás e Aimorés. Através de fontes escritas, orais e materiais é possível detectar as formas de resistência à colonização e ao lamentoso processo “civilizatório” imposto aos nativos pelos europeus; dessas diversas repressões sistêmicas surgiram os motivos para a união dos ameríndios litorâneos – estabelecidos nas atuais cidades de Bertioga (SP) ao Cabo Frio (RJ) – denominada posteriormente de Confederação dos Tamoios (15541567). O território foi composto por três engenhos de açúcar entre os séculos XVI e XIX. A Lavanderia dos Escravos compõe atualmente as ruínas do que já foi antigamente o Engenho d‟El Rey, futuramente incorporado a mais terras titulando-o de Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa (após 1660). Outro monumento que se manteve em pé durante todos esses anos para a compreensão do movimento econômico do mercantilismo canavieiro é a Capela de Nossa Senhora da Cabeça, construída próxima à casa grande e data da mesma década da lavanderia, confirmado por via de prospecções e levantamentos arqueológicos na ermida e ao seu redor, o qual se encontrou estilhaços de vidro e louças provenientes do período de funcionamento do engenho local. Por esse caminho era escoada a produção de açúcar – o “ouro melado” – do Engenho D‟el Rey, situado na lagoa de Sacopenapã – atual Rodrigo de Freitas, mais precisamente onde está o Parque Lage – até a Enseada de Botafogo. O engenho pertencia a Antonio Salema, governador do Rio de Janeiro. Já naquele tempo, política e negócios se misturavam (BRITO, 2017). P á g i n a | 153 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG O Engenho d‟El Rey foi construído pelo Capitão-mor Cristovão de Barros, e passou a ser administrado pelo governador português Antonio Salema entre 1575 e 1577. Para a fundação e produção da cana-de-açúcar na região e a mando de Salema, roupas infectadas com varíola foram deixadas por todo território da Lagoa Piraguá (Lagoa Rodrigo de Freitas) – local em que os Tamoios em grande parte residiam –, infectando os nativos ao se aproximarem ou ao se vestirem com as roupas contaminadas. Esse homicídio em massa serviu como método de expansão de terras, agora não mais habitadas pelos indígenas – que após algumas tentativas, foram trocados pela mão de obra africana no empreendimento –, mobilizando ainda mais economicamente o ciclo do açúcar na Comarca. Figura 1. "Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas tomada da Capelinha da Chácara do Tosta", FACCHINETTI, Nicola Antonio (1879). Fonte:<http://historia.jbrj.gov.br/fotos/imagens.htm>. Figura 2. Vista lateral da Capela de N. S. da Cabeça. Fonte:<http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/proj_capela_nscabeca.shtm>. P á g i n a | 154 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG O engenho segue sob administração de Salema até 1577 e é vendido para o vereador Diogo Amorim Soares; que expande o empreendimento e o anexa às terras da região, tornando-a uma propriedade com um grande capital a qual transfigurando-se posteriormente em “Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa”. Em 1808, o rei Dom João VI se apropria dessas terras e empreende ali uma fábrica de pólvora, a Real Fábrica de Pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas, em funcionamento até 1831. São João da Lagoa – Ordenado o decreto de 13 de junho de 1808, ao Conselho da Fazenda, que se incorporassem, nos próprios da Real Coroa, o Engenho e Terras sitas na Lagoa Rodrigo de Freitas, por sua competente avaliação, para o estabelecimento de uma Fábrica de Pólvora, e todas as demais que fossem necessárias para a fundição de peças de artilharia e canos de espingarda, e realizada a incorporação, em conformidade com aquele decreto [...] Daí teve origem o estabelecimento de uma nova Paróquia perpétua, com o título de S. João da Lagoa, na Capela de N. Sra. da Conceição, que era do mesmo engenho, e fora construída muito antes de 1732, enquanto se não edificava outra igreja própria (PIZARRO, 1820, apud LAVÔR, 1983). Figura 3. Antiga fábrica de pólvora do Rio de Janeiro, durante o século XIX. Atualmente um museu. Fonte: <http://www.riodejaneiroaqui.com/portugues/casa-dos-piloes.html>. A lavanderia dos escravos e os sítios que a circundam Além da “Real Fábrica de Pólvora” – onde atualmente se estabelece o Museu Sítio Arqueológico Casa dos Pilões – e da ermida de Nossa Senhora da Cabeça, é possível encontrar outro resquício de um engenho pela região do bairro Jardim Botânico; a Lavanderia dos Escravos, situada no Parque Henrique Lage sob as seguintes coordenadas: 22º57‟34” S 43º12‟43” W. Antes de adentrar nessa edificação carregada de valor histórico e emocional já P á g i n a | 155 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG é possível notar alguns aspectos arquitetônicos coloniais, como as rochas que compõe seu chão e suas paredes; presentes na formação de alguns engenhos de cana que datam desse mesmo período, século XVII. A pequena lavanderia escrava é composta por um lavadouro logo na entrada e ao centro de três blocos de pedras por lado, utilizadas pelos escravos para ensaboar, lavar, torcer e bater roupas; um pequeno cômodo ao fundo no lado esquerdo e pela queda d‟água na parte superior ao lavadouro, acabada em tijolos de barro menores aos usados tipicamente nessas construções. Uma das questões que permanece é sobre a possibilidade ou não de se considerar a Lavanderia um sítio arqueológico. Definindo um sítio como uma área delimitada de ações, experiências e convívios sociais pré-coloniais, históricos ou contemporâneos com suas respectivas paisagens; é o local em que se encontram vestígios os quais os pesquisadores desfrutam de informações particulares sobre cada um desses povos produtores de matéria. Com essa breve e sucinta definição, é possível compreender também que o número de artefatos encontrados nesses sítios influenciam em sua definição, independente da nomenclatura do período que datam, já que meia dúzia de peças podem estar ali sem o devido pertencimento cronológico à paisagem. Entre os constituintes de um sítio histórico está o valor das estruturas, que são basicamente obras manuais humanas, ou seja; a elas em si são atribuídas o valor de sítio arqueológico devido aos componentes que as alicerçam. Quando é evidente a presença de artefactos, a decisão da existência de um sítio arqueológico é mais problemática, uma vez que um simples artefacto pode ser insuficiente para a delimitação da presença de sítio. Se um local tiver […] um só artefacto, deverá o local ser documentado como sítio arqueológico ? A resposta é: depende do objectivo do projecto. Assim, se o projecto for de carta arqueológica, é necessário localizar o achado, mencionando explicitamente que se trata de um artefacto isolado. Do ponto de vista de protecção ou de minimização, este local não tem interesse, pelo que não é relevante indicá-lo como sítio arqueológico, sendo obrigatório […] indicar a presença de artefactos isolados no local (BICHO, 2012, p. 95). P á g i n a | 156 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Figura 4. Vista do interior da Lavanderia. Figura 5. Queda d'água. Figura 6. Procura por mais fragmentos. Vale ressaltar que a Capela de N. S. da Cabeça, a antiga Fábrica de Pólvora e as demais edificações no Jardim Botânico se estabelecem em um mesmo plano históricoidentitário. A presença de cultura material colonial terrosa na lavanderia, junto às outras em sítios arqueológicos descobertos ou ainda desconhecidos só podem comprovar o movimento escravo pela região, os quais deixaram involuntariamente e sem muito cuidado restos de seus simples objetos rotineiros, que se tornarão futuros objetos de estudos cujos pesquisadores se dedicarão à descoberta de novos rastros imateriais de suas passagens através da materialidade. Seja no contexto de seus usos sociais e econômicos cotidianos, seja em seus usos rituais, seja quando reclassificados como itens de coleções, peças de acervos museológicos ou patrimônios culturais, os objetos materiais existem sempre, necessariamente, como partes integrantes de sistemas classificatórios. Esta condição lhes assegura o poder não só de tornar visíveis e estabilizar determinadas categorias socio-culturais, demarcando fronteiras entre estas, como também o poder, não menos importante, de constituir sensivelmente formas específicas de subjetividade individual e coletiva (GONÇALVES, 2007, p. 8). P á g i n a | 157 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Figura 7. Mapa em 3D demarcando (em uma linha amarela) a distância entre os respectivos constituintes que compunham a área do engenho. Fonte: Google Earth. Pensando em um engenho como um local que funcionava à base de vidas “substituíveis”, é fácil entender que um cemitério nas redondezas era necessário. Foi então que em 1979 durante uma reforma de uma empresa que se estende até o Jardim Botânico, foi achado e demarcado o respectivo cemitério da senzala do Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Fazenda de Rodrigo de Freitas (LAVÔR, 1983, p. 71). Foi então que o pesquisador João Conrado Niemeyer solicitou ao Museu Nacional um teste de carbono 14 nas ossadas encontradas, acondicionadas até 1981. Os resultados do exame indicaram sua vivência em um período aproximado entre 200 e 300 anos atrás, não sendo considerados contemporâneos. Com a reconstrução óssea foi identificado um homem com a estatura média de 1,70 m, e pela arcada dentária e crânio foi relacionado com os escravos africanos. Outro sítio que dialoga arqueologicamente e historicamente com o referenciado nas fotos acima e com os já comentados no capítulo anterior – vide imagens 2, 3 e 4 –, é o Jardim das Princesas localizado no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Entre os materiais recolhidos no Jardim estão 23 fragmentos de vasilhames cerâmicos vitrificados, tratados como supostos grés. Com algumas sondagens e com uma trincheira de aproximadamente 90 centímetros de profundidade encovada próxima aos locais de reparo hidráulico no jardim foram encontrados estilhaços de grés e vidros, telhas em pedaços desproporcionais, botões, pregos e tijolos. [...] o grès, tendo sido lavado em água corrente, tomando-se o cuidado necessário para não esfregar em demasia as peças, a fim de não prejudicá-las. Foram colocadas para secar de forma natural, efetuando-se, em seguida, a numeração individual e o P á g i n a | 158 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG devido acondicionamento. As peças foram desenhadas, fotografadas e medidas. Com o material preparado foi realizada uma tentativa de remontagem dos fragmentos existentes, visando a possível reconstituição dos vasilhames e o posterior estudo dos mesmos, com a finalidade de contribuir para a compreensão dos aspectos sócio-econômicos e culturais de grupos sociais não mais existentes (MENDONÇA; BELTRÃO, 1996, p. 145). O Jardim das Princesas, localizado no bairro São Cristóvão, foi um lugar de passagens de portugueses, jesuítas, escravos, indígenas e da Família Imperial; racionalmente, um depósito de objetos descartados sucessivamente em seus respectivos períodos. Análise morfológica e as possibilidades da cerâmica Entre algumas das problemáticas em trabalhar com cultura material é possível ver durante o processo de documentação e datação de peças, sendo dificultado pela exatidão procurada pelos pesquisadores do ramo. Há resultados concretos quando as amostras mantêm em si a radiação absorvida, com restos de alimentos ou qualquer presença orgânica em sua superfície, possibilitando a estimativa de sua idade através de testes químicos, biológicos e radioativos. Um mal manejo de objetos arqueológicos pode comprometer com a validez de alguns desses exames, que já não apresentam com 100% de factualidade os resultados. O teste via Radiocarbono é funcional em ossadas, cerâmicas, carvão preservado, madeira, couro, etc. Em sua maioria é necessário a extração de uma pequena quantidade, variando de 20 miligramas – plantas, madeira, sementes, farelo cerâmico e fios de cabelo – à 10 gramas – ossos cremados e sedimentos orgânicos –; no caso das arcadas dentárias (dentes) é crucial sua própria presença. Trabalhando com um período Histórico em que a porcentagem de letrados no Brasil correspondia majoritariamente à elite, analisar e estudar objetos que estão ligados a povos sem o advento da escrita ou que sua cultura foi diretamente coagida por uma etnia dominante que se intitulava superior promovendo a segregação do “diferente”, é extremamente problemático. Utilizando-me da Arqueologia Histórica pós-processualista como uma revitalizadora material, lidei com as mais variadas formas de fontes primárias e secundárias; a escrita como a busca de informações partindo de documentos, fontes arquitetônicas da própria lavanderia comparando-a com a de engenhos remanescentes do século XVI e XVII, cartas da mesma época e de documentações geradas por arqueólogos e historiadores, para complementar. P á g i n a | 159 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Figura 8. Face exterior do fragmento. Nota-se uma possível fratura de alça. Figura 9. Fragmento de parede (face interna) com marcas da produção manual. A peça com esmalte – vidrada – em seu interior e exterior, junto às demais informações sobre os sítios históricos próximos ao Parque Henrique Lage, sugere algumas possibilidades acerca de sua proveniência e utilização. Entre elas estão: o grés (stoneware) brasileiro ou europeu, as peroleiras (olive jars) que compunham as caravelas e os galeões, telhas coloniais sem um padrão de molde ou um jarro aguadeiro; todas as probabilidades com um limite cronológico, no caso o século XIX. Seus usos enquanto uma peroleira ou grés intactos poderia ser tanto para conter água e bebidas alcoólicas como cerveja e vinho assim como também para receptáculo de especiarias, tintas e suprimentos os quais eram solicitados durante as longas viagens marítimas. P á g i n a | 160 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Figura 10. Lateral da cerâmica, há minerais visíveis em sua composição. A intenção do artigo em si não é a de autenticar a peça como referente a tais séculos, mas sim interligar alguns fatos locais à cultura material apresentando as alternativas para uma legitimação ou não da lavanderia como sítio a partir da cerâmica fragmentada, sem uma comprovação por exames químicos. Além da importância de levar às salas de aula os questionamentos tratados no decorrer dessa pesquisa, independente do nível de formação dos discentes, legitimando a aproximação entre comunidade e Arqueologia. Entre as funções do arqueólogo como educador, está o dever de aproximar os feitos humanos do passado ao interesse presente. A arqueologia deve caminhar com o público, e não somente ser para o mesmo; o qual coloca o profissional como um selecionador e separador de fatos que devem ser repassados às comunidades levando em conta o que precisam ou não saber. Recapitulando, todos carregam histórias a serem contadas, de diferentes pontos de vista ao do arqueólogo, com isso surge a importância do caminhar entre educador e sociedade; o historiador como mediador de diálogos entre a história do passado já tratada nos ambientes acadêmicos e os relatos do presente vindos pela hereditariedade de fontes orais da população (KLINK, 2018, p. 5). Arqueologia em sala de aula A oficina “Um artefato colonial como fonte para a educação arqueológica brasileira” foi apresentada por mim ao terceiro período do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Campanha, no dia 09 de julho de 2018. A proposta inicial foi sensibilizá-los, torná-los críticos e adverti-los sobre a importância e eficácia do trabalho arqueológico brasileiro em sala de aula, com o apoio de métodos instrutivos. P á g i n a | 161 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG Entre as alternativas metodológicas da apresentação utilizei-me de um vocabulário bem didático e explicativo junto à introdução dos discentes à Arqueologia situando-os ao histórico do Parque e ao artefatual. Os slides apresentaram um “educacional” bem imagético com as imagens dos patrimônios apresentados em suma neste artigo além da reprodução de um vídeo encontrado na plataforma audiovisual do YouTube para compreenderem estilisticamente o que realmente é a Lavanderia dos Escravos, aproximando-os do lugar mesmo que remotamente. Figura 11. Relatando sobre os bens que compõe os antigos engenhos do bairro Jardim Botânico, RJ. Foto: Marcio Machado. O fragmento foi passado aos alunos junto de um pedaço de telha contemporânea à outra, para perceberem as diferenças entre elas e relatarem em uma folha de papel suas opiniões para os seguintes questionamentos: “Quais as características mais marcantes em ambas as peças que as distingue?”, “Quando o objeto assumia sua forma intacta, qual sua possível aparência e utilização?”, “Vocês acreditam que essa cerâmica esteve presente na rotina no Brasil Colonial? Se sim, em qual século vocês a estimam?”. Enquanto foi iniciado ao lado esquerdo o repasse dos dois objetos e a folha para o preenchimento, resolvi passar no outro lado gravuras ao final do livro “Introdução à Arqueologia Brasileira”, do autor Angyone Costa. A intenção foi expor a riqueza cultural brasileira como artefatos e cerâmicas marajoaras, mas previamente alertando-os que o mesmo é anacrônico à minha apresentação. Com o capítulo sobre as probabilidades acerca da peça como o grés europeu/brasileiro, a peroleira, o jarro ou bacia de escravos aguadeiros e uma possível telha, P á g i n a | 162 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG os discentes contribuíram com o seminário tanto com questionamentos quanto com suas respostas às perguntas feitas por mim ou até mesmo entre eles. Um dos alunos até mesmo se arriscou a formular com um esboço a cerâmica em seu período de utilização com um desenho a grafite, adotando para si o formato de uma bacia ou jarro com alças. A questão abordada foi sobre como é possível situar e entender quaisquer artefatos arqueológicos somente com as probabilidades da paisagem em que estão inseridos, técnica presente na pré-datação; ou seja, trabalhando a documentação com os levantamentos históricos regionais, sendo eles pela oralidade de certas habitações presentes ali com os relatos ou pelos registros de escrita mantidos em centros históricos ou secretarias de cultura. Gráfico 1. Relação em porcentagem dos 12 alunos que responderam as perguntas propostas. Fonte: Prática em sala, 2018. Considerações finais Cerâmicas vidradas como a do fragmento são geralmente encontradas em sítios históricos do século XIX relacionados a ocupações escravas, como em engenhos e senzalas. A datação de uma única peça ainda totalmente disforme e partida fica quase impossível, nesse caso houve assimilações morfológicas com outras peças nesse mesmo contexto histórico para ao menos conseguir supor acerca de sua aparência e funcionalidade enquanto utensílio funcional. A Arqueologia Histórica brasileira é mais do que uma ramificação da Arqueologia; uma área voltada aos estudos dos subalternos e todos os que sofreram um silenciamento a partir dos encontros europeus com os povos autóctones sul-americanos e de sua mão de obra P á g i n a | 163 Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG materializada, servindo como fontes para reconstruções históricas êmicas, conferindo-lhes seus referentes méritos para a formação da atual sociedade brasileira. Notas [1] Graduando em História. Pesquisador na área de Arqueologia - Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade Campanha. E-mail: leonardoklink@gmail.com. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINI, Camilla. 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