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II Colóquio Internacional Mudanças Estruturais no Jornalismo. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília, 2013. ISSN: 2237-4248 Disponível em: www.surlejournalisme.com Estatuto do jornalista brasileiro: contornos e perspectivas para o futuro José Ricardo da Silveira• Veruska Sayonara de Góis• Resumo: O jornalismo tem se configurado como uma profissão de limites fluidos. Exercida de forma majoritária nas empresas privadas, o controle para entrada na profissão depende apenas do livre arbítrio patronal. Para se discutir um estatuto, seria necessário partir de uma visão da profissão e, consequentemente, do espaço que ela ocupa no campo ou esfera pública. A princípio, um estatuto é um agregado de normas que define as condições e a maneira de ser (de se comportar) de um grupo social, em cada cultura. Além dessa perspectiva genérica dos estatutos baseados no hábito e na tradição, temos aqueles de natureza mais formal, como os voltados ao universo profissional. O estatuto profissional ocupa o lugar de mediador e definidor do espaço de atuação de cada trabalhador a ele vinculado. Propõe-se a existência de um estatuto público da profissão “Jornalismo”, em uma base consensual mínima entre as diversas formas de pensar a atividade jornalística. Tal estatuto estaria constituído por documentos internacionais; documentos/normas estatais e normas privadas, um arcabouço normativo delimitador do jornalismo, bem como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ, 2007). Palavras-chave: Estatuto do jornalista, Regulamentação, Legislação Jornalística. Introdução Se observássemos o trabalho do jornalista sem conhecer os bastidores que o caracterizam, é possível que tivéssemos a sensação de que o produto de sua ação profissional – o artigo, a matéria simples, a reportagem – seria algo que quase se esgotaria nele mesmo, sem raízes mais profundas. No entanto, ao conhecermos os meandros desse trabalho, podemos perceber que o mesmo é dotado de uma série de conexões com outras esferas da realidade, especialmente a política, a econômica e a cultural, que interferem diretamente em sua constituição. A face • Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Jornalista, doutor pela Universidade de Brasília (Comunicação) e pela Université de Rennes I (menção Information-Communication). E-mail: ricardosilveira@uern.br • Professora do Departamento de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Jornalista e advogada, mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: veruskasayonara@uern.br 274 política (com a palavra em sentido amplo) é uma das mais atuantes na formação do discurso midiático, visto que permeia a construção de sentido no que tange aos fatos da realidade. Neste texto, buscamos abordar como o estabelecimento de um estatuto para o jornalista, nos domínios social e jurídico-normativo, tem impactado no desenvolvimento do seu trabalho, e como ele pode impactar mais profundamente, caso seja mais arrojado no segundo domínio. O estatuto é a linha mestra de condução das ações ou mesmo da reflexão sobre elas. Sem um estatuto definido ou almejado, nem os profissionais, tampouco a sociedade que consome esse trabalho jornalístico pode ter parâmetros para julgar o resultado da ação jornalística, vê-la como boa ou ruim, especialmente no que diz respeito às emissões da radiodifusão, que usam o espaço no espectro eletromagnético, uso autorizado pelo Congresso Nacional, no caso brasileiro. Natureza pública da atividade jornalística Ao analisá-lo enquanto atividade torna-se fácil perceber o caráter público do jornalismo, especialmente se considerarmos as consequências das mensagens que ele veicula e que influenciar os mais diversos segmentos da vida (social, política, cultural etc.). As mensagens do jornalismo convencional não são produzidas com a pretensão de influenciarem apenas a vida privada, longe disso estão as suas motivações. Apesar de em alguns casos terem por foco a vida do indivíduo em seu círculo privado, notadamente em algumas editorias de determinados veículos (moda, lazer, etc.), o alvo do jornalismo deve ser, principalmente, os assuntos coletivos. É nos anseios da coletividade onde está encastelada a função precípua do jornalismo, por mais que os desvios de seus cânones sejam recorrentes, fruto de pressões oriundas, na maior parte dos casos, de agentes econômicos ou políticos. A dimensão política desse processo é central para compreendermos os interesses por trás de qualquer desvio ou mesmo a ação direcionada para se atingir determinado fim. Como já é praticamente de amplo domínio – mais ainda da literatura especializada – não há possibilidade de neutralidade no jornalismo, por mais que, algumas vezes, discursos descuidados insistam em apregoar essa fábula. Os posicionamentos jornalísticos, os enquadramentos, sempre possuem um motivo que encontra eco na seara política, que em seu nível escuda a econômica, e é dessa constatação que emerge a importância de percebermos como se delineia o estatuto do profissional jornalista, como ele é percebido na esfera social e jurídica. 275 Pelo seu exercício na esfera pública, dependendo do caso, o jornalista pode ganhar notoriedade, ocupar postos que lhe credenciam a opinar sobre diversos assuntos que são caros à coletividade, ou seja, lhe é dada a oportunidade de influenciar na constituição da realidade. Sua prática, em tese, sempre seria carregada de significados nobres ligados ao sentimento de liberdade, de democracia, de equidade, mesmo que saibamos que nem sempre isso ocorre em virtude da interferência de interesses privados que podem permear o trabalho jornalístico em suas mais diversas fases. Silva (2010) chega a propor o jornalismo como teoria democrática, em cujo bojo estaria o fortalecimento de um fluxo de informação que privilegiasse a pluralidade e a justiça, num sentido emancipatório da coletividade. Sem dúvida isso é desejável, porém, também é inegável que a despeito de seu estatuto público, os jornalistas estão inseridos num ambiente de interesses privados, no qual, muitas vezes, eles operam no sentido de dizer (ou não dizer) algo que venha a consolidar as expectativas dos grupos que influenciam as organizações jornalísticas para as quais trabalham. Levando em conta a visão de Max Weber, chegaremos a um ponto de classificar os jornalistas como demagogos, quando ostentam uma imagem de políticos (WEBER, 2007). O jornalista na perspectiva weberiana Poderíamos iniciar este tópico lembrando que ao lado de seus próprios interesses privados, há certos “usos públicos” aos quais se presta o próprio jornalista no desenvolvimento de seu trabalho. É fato que nos reportamos a outra época, logo após a Primeira Guerra Mundial, quando Weber (2007) apontou que o jornalista perdera muito de sua capacidade de impor-se como um chefe político, ao mesmo tempo em que considerava esses políticos verdadeiros demagogos. Quanto a esses usos públicos, realizamos uma leitura do texto de Weber identificando fortes traços com a realidade atual do jornalista. O “uso público” ao qual nos referimos não diz respeito ao fato de que o trabalho do jornalista seria usado obrigatoriamente em favor da coletividade. É verdade que há casos em que isso pode ser verificado como, por exemplo, numa cobertura de guerra na qual o jornalista venha a apresentar múltiplas visões acerca do conflito. É óbvio que em um caso como esse tal comportamento significa um comprometimento em prol da coletividade. Porém, o uso público ao qual nos referimos também diz respeito a uma atitude utilitarista por parte dos grupos dominantes em relação ao próprio jornalista, 276 transformando-o em um agente de seus interesses, fazendo-o operar a demagogia apontada por Weber. Ele lembra ainda que as organizações jornalísticas continuavam influentes, dando o tom quanto aos rumos de muitos aspectos da vida social, porém, os jornalistas, naquele momento, não podiam se gabar de exercer de forma independente a mesma influência. A própria atuação na então guerra recente, quando teria havido distorção dos fatos, os desqualificavam para a ocupação de posições de destaque. Na percepção weberiana, os jornalistas atravessavam um momento depressivo e que, por mais intelectuais que pudessem parecer, não passavam muitas vezes de presenças que eram toleradas, a fim de favorecer os interesses de grupos privados: São exatamente os jornalistas de grande notoriedade que se vêem compelidos a enfrentar situações particularmente cruéis. É de mencionar, por exemplo, a circunstância de freqüentar os salões dos poderosos da Terra, aparentemente em pé de igualdade, vendo-se, em geral e mesmo com frequência, adulado, porque temido, tendo, ao mesmo tempo, consciência perfeita de que, abandonada a sala, o anfitrião sentir-se-á, talvez, obrigado a se justificar diante dos demais convidados por haver feito comparecer esses “lixeiros da imprensa” (WEBER, 2007, p. 83). Por falar nos “lixeiros da imprensa” apontados por Weber, não faz muito tempo, irritado com uma pergunta de um repórter, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) mandou o jornalista “chafurdar no lixo” (JOAQUIM, 2013). Essa situação descrita por Weber é perfeitamente visível no mundo atual, quando o jornalista é necessário, sem que sua presença seja obrigatoriamente desejada. Trata-se de uma clara avaliação do custo / benefício. Todavia é manifesta a realidade que o jornalista atua publicamente no sentido de interferir na realidade, e, para isso, necessita de um estatuto que lhe ofereça o respaldo exigido para tamanha empreitada. O jornalista almeja se sentir investido de uma tarefa, de uma missão social que alguém (um ser indefinido, multifacetado, diluído na sociedade) lhe confiou. Ele sabe o que esperam dele, sem ter a certeza se conseguirá atingir o objetivo ou se seguirá firme na busca pelo atendimento dessa expectativa alheia. Seu papel político é inerente a sua própria prática, que influencia processos sociais passíveis de afetar milhares ou até milhões de pessoas. Sua responsabilidade, na maioria dos casos, é incompatível com a sua remuneração ou o seu reconhecimento em outras esferas da vida, além da própria dimensão política. Weber mesmo aponta essa desvalorização do ponto de vista financeiro já no início do século XX, algo que permanece muito forte. Frente a uma remuneração sofrível, muitas vezes o jornalista busca no reconhecimento social o seu pagamento. 277 A necessidade de um estatuto da profissão Considerando uma definição mais geral e sintética, temos que estatuto é “um conjunto de normas que definem o estado, ou seja, a condição ou o modo de ser de um grupo social” (ABBAGNANO, 1999, p. 367). A mesma obra aponta o significado de status, que acaba por estar muito ligado ao sentido de estatuto, já que este último normatiza as possibilidades de ação dos indivíduos de determinado status, que é uma “condição ou modo de ser, especialmente em sentido sociológico, como pertencente a determinado estrato social” (ABBAGNANO, 1999, p. 921). Numa abordagem mais jurídica, “[...] o status decorre dos direitos subjetivos que lhe confere a própria lei, [por exemplo], o direito de exercer qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (CF: art. 5º, XIII)” (ACQUAVIVA, 2010, p. 804, ênfase do autor). Assim, ao buscarmos visualizar um estatuto no qual poderia ser enquadrado o jornalista, temos o desafio de delimitar a circunscrição que nos interessa, ou seja, estaremos observando-o em seu domínio profissional, considerando ainda a interface com o papel político desse jornalista na dinâmica social. Entendemos que, ao considerarmos a existência e efetividade desse estatuto, devemos ter consciência de como o mesmo é estruturado, especialmente como o jornalista tem acesso ao espaço social que o legitima. Góis (2012, p. 38) aponta que: o direito de ser informado, por parte da sociedade, imbrica-se com o direito de informar do jornalista. Já o direito de informar do jornalista liga-se ao direito geral de se informar, com a anuência do regime especial de titularidade para o jornalista. São interdependentes, por fim. Para informar, o jornalista precisa se informar, e necessita ainda de liberdade interna. A autora aponta que essa liberdade interna começa com a própria decisão independente do jornalista em aderir à profissão, assumindo assim, mesmo que em muitos casos de forma inconsciente, um papel político no processo de distribuição da informação. Nesta exposição temos o lugar social do estatuto, algo definido coletiva e paulatinamente no decorrer do desenvolvimento das sociedades ocidentais. Aos poucos, essas sociedades delimitaram a importância e o papel do jornalista, instrumentalizando-o, especialmente para interferir – ou estar a serviço, como podem preferir alguns – nas ações que importam para face política das relações sociais. 278 Esse lugar social impõe certa fluidez aos contornos do próprio estatuto, que vai se configurando num espaço cultural e profissional, que não conta necessariamente com algum decreto que o institua, mas, antes, necessita de uma compreensão e conscientização, mesmo que tácita, dos indivíduos envolvidos nas relações sociais (diretas ou indiretas) do jornalista. Essa fluidez, em seu âmbito, guarda o próprio ethos do jornalista. Ao compreendermos o ethos como “valores, preferências, intenções e finalidades” (LÓPEZ PAN apud BARROS FILHO, 2003, p. 105), elementos aqui percebidos como vinculados à natureza moral do profissional, observamos que a questão é complexa, pois não deixa de lidar com a subjetividade do humano. Esse ethos deve ser analisado como mantenedor de um vínculo com os costumes e tradições que permeiam a própria atividade jornalística, absorvendo, também o ideal democrático inerente à essência do jornalismo. Todavia, é notório que a política como espaço de relações de forças e busca do equilíbrio de visões acerca da vida vem sofrendo ataques. A política tem passado por tentativas de desqualificação e, sem política, não há democracia, pois é em sua dimensão onde o mundo social ganha significado concreto no que tange às relações de força entre os grupos. Marco Aurélio Nogueira nos alerta que há uma conspiração contra a política, num cenário em que estamos assistindo a um complicado processo de desgaste. Pode parecer paradoxal, mas a política perde fôlego na exata proporção em que se espetaculariza, converte-se em show, em algo a ser consumido como um produto qualquer, ou seja, em que vai sendo digerida pelo mundo da mídia eletrônica (NOGUEIRA, 2001, p. 21). Não é excessivo apontar que os jornalistas devem se manter atentos a isso quando refletem sobre seu estatuto na esfera social. Isso, pelo fato de que esse processo de espetacularização da política perpassa o seu espaço de trabalho, seja tal espaço as organizações jornalísticas ou mesmo espaços autônomos de emissão jornalística (blogs, sites especializados em política etc.). Não é aceitável que indivíduos instrumentalizados com as informações necessárias sejam simplórios ao ponto de não perceberem que o jornalista exerce um poder em seu métier, mesmo que esse poder possa ser dosado e controlado de forma exógena por agentes políticos e econômicos interessados. Ou seja, o jornalista pode ser visto como instrumento em algumas situações. Sofrendo interferências 279 externas ou aderindo “espontaneamente” à lógica desqualificadora da política, o fato é que o jornalista participa desse movimento. Do ponto de vista jurídico e/ou normativo, no Brasil, não existe um documento único, lei ou código dispondo sobre a profissão de jornalista. Essa é uma diferença marcante em relação a países como Portugal, onde uma lei organiza a profissão (Lei n.º 64/2007 de 6 de novembro, Primeira alteração à Lei n.º 1/99, de 13 de janeiro, que aprovou o Estatuto do Jornalista). Mas há muitos movimentos, no Brasil, para dotar o jornalista de um estatuto que lhe dê mais segurança e independência face ao sistema econômico com o qual ele relaciona-se. Podemos relacionar desde leis e decretos que foram editados e, após algum tempo também invalidados, até códigos de ética criados e aperfeiçoados, bem como ideias em torno de regulamentações disciplinares que, ao mesmo tempo em que normatizariam o trabalho do jornalista, o protegeriam das investidas explícitas ou implícitas das pressões econômicas. Enfim, existem tentativas de formalizar um estatuto do jornalista que lhe dê mais emancipação para a execução do seu trabalho, o que, em última instância, beneficiaria a própria sociedade, visto que se dotaria de mais equilíbrio o composto de forças que agem nas relações sociais e políticas. Um estatuto jurídico para a profissão de jornalismo no Brasil No caso dos diplomas legais que vigeram nas últimas décadas e que se relacionam ao trabalho dos jornalistas, tivemos a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250 / 67), cuja maior parte dos artigos não foi recepcionada pela Constituição Federal (CF) de 1988, entendimento firmado pelo STF em 2008; sendo também possível citar o Decreto-Lei nº 972/69, que dispunha sobre o exercício da profissão de jornalista, inclusive instituindo a obrigatoriedade do diploma, exigência derrubada também pelo STF em 2009. Assim, no âmbito do Poder Judiciário, com base na ação do STF, integram o estatuto da profissão documentos como a Certidão de Julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-7 (ADPF 130-7), emitida no julgamento de constitucionalidade inconstitucionalidade da da Lei de Imprensa, obrigatoriedade do bem como diploma a de decisão jornalismo acerca de (Recurso Extraordinário - RE 511961). 280 Compõem ainda o estatuto do jornalismo documentos como o Código Civil brasileiro e o Código Penal, no que tocam à regulamentação infraconstitucional das liberdades e garantias já expressas na CF por meio do Poder Legislativo. No aspecto deontológico, os jornalistas brasileiros já contam com o seu código de ética, editado a primeira vez em 1985 e reformulado em agosto de 2007. Nele há uma preocupação com a veracidade dos fatos, com o respeito à pessoa humana, com a pluralidade, dentre outros aspectos. Em 2003 também houve mais uma tentativa formal de criar o Conselho Federal de Jornalistas (CFJ), com os seus respectivos conselhos regionais, que substituiriam a regulamentação da profissão através das DRTs (Delegacias Regionais do Trabalho). Após pesado ataque da mídia convencional, especialmente no espaço da radiodifusão, forças contrárias se articularam no Congresso Nacional e pressionaram pela retirada da proposta de pauta, no que lograram êxito. Partindo da definição de estatuto já delimitada, busca-se ainda abordar o estabelecimento de um estatuto para o jornalista no domínio jurídico-normativo. Pode-se dizer que existe um estatuto a partir de documentos normativos esparsos, tendo por fio condutor a Constituição. A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 220, praticamente estabelece um estatuto para o jornalismo. A Constituição de um país é um documento político-jurídico que configura organicamente o Estado e estabelece valores e decisões fundamentais. Juridicamente, a Constituição é o documento normativo de maior hierarquia, devendo todos as demais normas se compatibilizarem com ela em termos de conteúdo. É necessário pensar, assim, um estatuto para o jornalismo a partir das definições constitucionais. Como nos aponta Saraiva (2006, p. 31), “a Constituição é um sistema (...). A constitucionalização da mídia não é apenas um status constitucional, mas deve ser sobremaneira uma dimensão real de participação nas decisões políticas e legislativas da governança brasileira”. Há referências à profissão jornalística em várias passagens da CF, e o próprio artigo 220 está situado no Capítulo V, denominado “Da Comunicação Social” (este inserido no Título VIII, Da Ordem Social). A Constituição brasileira, que acompanha os principais tratados internacionais na proteção às liberdades individuais, elegeu um catálogo de valores, direitos e garantias para proteger expressamente. Constam desse catálogo, além do regime político democrático, a economia capitalista, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. No artigo 5° da CF (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) – considerado cláusula pétrea, por não poder ser modificado por outras leis – está a base de todo o 281 sistema jurídico brasileiro, pois é onde estão descritos os direitos e garantias que reforçam a primazia do sujeito no conjunto de leis. A positivação dos direitos individuais constitui elemento fundamental para a sua obrigatoriedade e imperatividade. Essa consagração jurídicopositiva dos direitos do homem é uma garantia de que se reconhece, na Carta Magna, uma relação jurídica entre governado (sujeito ativo) e o Estado e suas autoridades (sujeitos passivos) (SILVA, 2001, p. 422). Os direitos distinguem-se das garantias, pois enquanto aqueles declaram ou afirmam posições jurídicas favoráveis ao cidadão, estas expressam formas de segurança dos direitos (resguardam o conteúdo das liberdades). Entre as garantias, têm-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (artigo 5°, caput, CF). A manifestação do pensamento é livre, sendo vedado o anonimato (art. 5°, IV, CF). Dentro dessa sistematização da liberdade de pensamento, encontram-se várias liberdades, como a liberdade de culto, liberdade de informação jornalística, liberdade de cátedra, liberdade científica, liberdade artística e liberdade de imprensa. O termo “imprensa” abrange, no sentido utilizado, o conjunto de meios de comunicação social, o próprio sistema midiático – “media” ou mídia – sendo respeitada essa liberdade que, entretanto, encontra restrições. A restrição tem origem em outros direitos e garantias, de forma a manter um sistema de direitos em equilíbrio, com limitações e sem previsão de natureza absoluta para direito algum. Os delineamentos desse campo de estudo (limítrofe entre a Comunicação e o Direito) localizam-se, na área epistemológica da Comunicação, nas Estratégias e Políticas de Comunicação; ao passo que, na área jurídica, estariam no Direito da Comunicação. As Estratégias e Políticas de Comunicação abrangem as construções legislativas, políticas e sociais que modelam as relações de poder envolvendo os meios de comunicação e a esfera pública. Já o Direito da Comunicação é considerado uma nova disciplina, ou “ramo da ciência do Direito que tem como objeto o estudo das normas jurídicas que visam a atividade humana de buscar, difundir e receber opiniões” (FARIAS, 2004, p. 95). É de se destacar, assim, que sobressai uma ordenação constitucional da comunicação (MARTINS, 2009, p. 219), um arranjo organizado, que configura um estado ou estatuto da comunicação social e, mais especificamente, da profissão jornalística. Lemos no caput do artigo 220 da CF: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer 282 forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Aqui, mesclam-se as liberdades de manifestação do pensamento, enquanto direito político; a liberdade de crença e consciência; as liberdades artísticas, criativas e filosóficas; e ainda a liberdade de profissão e informação; em estreita correlação com o artigo 5º da mesma Constituição. O artigo 5º da CF, a partir do caput, traz liberdades pessoais e profissionais, como a liberdade em sentido amplo (caput); liberdade de manifestação do pensamento com vedação do anonimato (inciso IV); garantia do direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (inciso V); liberdade de consciência e crença (inciso VI); liberdade da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como sua expressão, independentemente de censura ou licença (inciso IX); inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (inciso X); liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (inciso XIII); garantia do acesso à informação, resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV); liberdade de associação (inciso XVII); direito à propriedade (inciso XXII); entre outros. Nesse sentido, percebe-se a clara vocação do jornalismo para o regime político democrático, visto que seu exercício demanda uma série de liberdades, que seriam inviáveis em um regime autoritário. Tais liberdades não são apenas dos meios de comunicação, mas dos agentes profissionais que neles atuam – caso dos jornalistas. O jornalismo engloba em seu estatuto, portanto, o uso das liberdades democráticas por seus agentes, o que nos leva à cláusula de consciência. Segundo Meyer-Pflug (2009, p. 52): Dentro dessa liberdade [de imprensa] há ainda a proteção ao que se denomina de “cláusula de consciência”, ou seja, o direito de o comunicador não ser obrigado a cumprir imposições ou posições que conflitem com as suas próprias convicções e não sofrer restrição por esta razão. O conteúdo da cláusula de consciência pouco tem sido discutido no Brasil. A Constituição não aborda expressamente a cláusula de consciência para o jornalista, o que não faz com que a mesma esteja excluída do estatuto desse profissional, pois é a própria CF que traz abertura à inclusão de novos direitos, no parágrafo 2º de seu art. 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos 283 princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. De maneira que a hermenêutica constitucional desse item permite a incorporação de direitos e garantias previstos em acordos internacionais aos quais o país tenha aderido, como é o caso do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos). De acordo com a CADH (1969): Artigo 13º - Liberdade de pensamento e de expressão (...) 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. Para além da integração por mecanismos hermenêuticos, a partir da CF, os acordos dos quais o Brasil é signatário foram internalizados, constituindo-se em ordenamento jurídico nacional. No caso da CADH, temos que ela foi ‘internalizada’ de maneira oficial pelo Decreto 678/1992, que promulga a referida convenção no nosso sistema jurídico. Entre os documentos internacionais, temos ainda a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), da Organização das Nações Unidas (ONU). A DUDH foi estabelecida através da Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, sendo considerada costume internacional do ponto de vista jurídico, e, portanto, norma internacional. Observando-se, em especial, a CADH, a vedação à cláusula de consciência seria uma restrição absurda à liberdade de expressão jornalística, podendo se configurar esta restrição por meios indiretos e privados (conforme art. 13.3 da CADH). Acerca da cláusula de consciência, vale recordar que ela é prevista no Código de Ética dos Jornalistas (CEJ) brasileiros: Art. 13. A cláusula de consciência é um direito do jornalista, podendo o profissional se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam as suas convicções. Parágrafo único. Esta disposição não pode ser usada como argumento, motivo ou desculpa para que o jornalista deixe de ouvir pessoas com opiniões divergentes das suas. Comumente esquecido, o Código de Ética dos Jornalistas brasileiros também integra o estatuto desse profissional. Elaborado de forma classista nos congressos 284 promovidos pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), o CEJ dispõe de força moral e, mais ainda, de força constitucional. É facilmente comprovável o fato que o CEJ repete diversas vezes dispositivos constitucionais, completando seu sentido de forma específica para o jornalismo. O que ocorre, entretanto, é que se tenta retirar qualquer poder do CEJ por ele não ter sido elaborado como lei, através do Congresso Nacional. Esquece-se o óbvio: que o Código de Ética dos Jornalistas brasileiros enuncia princípios, direitos e disposições de cunho constitucional. Conclusões Com base na discussão aqui apresentada, pode-se concluir acerca da existência de um estatuto do jornalista no Brasil, tanto de caráter social quanto normativo. Assim, há um quadro sociocultural no qual se localiza o jornalista, que ocupa um espaço ou circunscrição, mesmo com fronteiras fluídas. O estatuto jurídico não aparece em um código, lei ou documento único, mas em um conjunto de normas orientadas a partir da Constituição Federal. Tradicionalmente, o cânone ou ethos do jornalismo aponta para sua atuação enquanto atividade pública, e até mesmo fortemente política. Mas a operacionalidade ou concretude do estatuto é ameaçada pela fragmentação política, pela própria desvalorização da política. As novas tecnologias, as recentes configurações de tempo, espaço e realidade pressionam os meios de comunicação, de maneira a favorecer o individualismo e os privativismos. Percebe-se esse fenômeno de maneira notável na erosão das profissões, em especial, a profissão jornalística, invadida pela publicidade e pelo entretenimento. Resgatando a perspectiva histórica no Brasil, lembremos que o país viveu uma ditadura militar, tendo passado à democracia há pouco mais de duas décadas. A própria história constitucional do Brasil é truncada por golpes de estado recorrentes, por parte dos militares. A cultura de autoridade e o ranço militarista permeiam as instituições democráticas, de maneira a evidenciar uma fragilidade do estatuto do jornalista ainda maior, visto que temos uma democracia recente e instável, não acostumada a conviver e respeitar as liberdades que ela própria dispõe em sua Constituição. Ao final, acrescenta-se a pouca força normativa dessa Constituição, fator que também contribui fortemente para a debilidade do estatuto do jornalista nos campos social e normativo. A Constituição de 1988 foi um documento pactuado em uma transição 285 política, marcando a abertura para a democracia. Para que fosse promulgada, exigiu muitos compromissos de ambos os lados (pró-ditadura e pró-democracia), terminando, ao final, como uma Constituição prolixa, carregada de muitos compromissos e garantias, mas que não pode, por si só, assegurar o seu próprio cumprimento. Assim, essa CF trata de diversos dos compromissos exigidos para a abertura política em um texto longo e detalhado; preocupa-se em garantir vários direitos, mas não tem a necessária força política para efetivá-los, permanecendo apenas nas boas intenções. Esse é o motivo porque até agora não realizou a constitucionalização da mídia e não cumpriu as exigências do estatuto jurídico do jornalista. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico Acquaviva. 4. ed. atual. e ampl. São Paulo: Rideel, 2010. BARROS FILHO, Clóvis. Ética na comunicação. 4. ed. São Paulo: Summus, 2003. BRASIL. Constituição Federal. 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