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As (Des)Analogias entre Racismo e Especismo

Revista Brasileira de Direito Animal

O ensaio trata de uma das mais importantes peçasargumentativas na defesa do status moral dos animais não-humanos,a saber, aquela que evoca a semelhança moral entre duas formas dediscriminação preconceituosa - racismo e especismo. A análise iniciacaracterizando o que é um argumentum per analogiam e seu papel naÉtica Animal. Deixando de lado os pontos mais conhecidos dessaaproximação analógica, na segunda parte, o estudo focaliza os aspectoscompartilhados mais sutis e, na terceira, o que há de moralmentedesanálogo entre atitudes racistas e especistas. O objetivo é mostrarque seria enganador inferir que há uma simetria rigorosa entre ambosos preconceitos, ao contrário do que é usualmente sustentado pormuitos eticistas.

As (des)analogias entre racismo e especismo Carlos M. Naconecy* Resumo: O ensaio trata de uma das mais importantes peças argumentativas na defesa do status moral dos animais não-humanos, a saber, aquela que evoca a semelhança moral entre duas formas de discriminação preconceituosa - racismo e especismo. A análise inicia caracterizando o que é um argumentum per analogiam e seu papel na Ética Animal. Deixando de lado os pontos mais conhecidos dessa aproximação analógica, na segunda parte, o estudo focaliza os aspectos compartilhados mais sutis e, na terceira, o que há de moralmente desanálogo entre atitudes racistas e especistas. O objetivo é mostrar que seria enganador inferir que há uma simetria rigorosa entre ambos os preconceitos, ao contrário do que é usualmente sustentado por muitos eticistas. Palavras-chave: ética aplicada, ética animal, analogia, racismo, especismo. Abstract: This essay deals with one of the most important arguments in defence of the moral status of non-human animals, i.e., the one that asserts the moral similarities between two forms of prejudice - racism and speciesism. Firstly, the analysis characterizes an argumentum per analogiam and its role in Animal Ethics. Secondly, putting aside the most known points of that analogy, it focuses on the most subtle shared aspects, and then on what is not analogous between racist and speciesist attitudes. The aim is to show that it would not be appropriate to claim an accurate symmetry of the both prejudices, contrary to usual statements made by various ethicists. Keywords: applied ethics, animal ethics, analogy, racism, speciesism. * Filósofo pela UFRGS e doutor em Filosofia pela PUCRS. Foi pesquisador visitante em Ética Animal na Universidade de Cambridge. É membro do Oxford Centre for Animal Ethics e autor do livro Ética & Animais, edipurs, 2006. Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 169 Sumário: 1. Introdução; 2. Especismo é análogo ao racismo... Mas o que há de errado no racismo?; 3. Especismo é análogo ao racismo... Mas o que é analogia?; 4. Os problemas com o argumento analógico em ética animal; 5. O que há de análogo entre racismo e especismo; 5.1. Analogia na estereotipação; 5.2. Analogia na validação social; 5.3. Analogia na inversão do preconceito; 5.4. Analogia no enfoque libertador; 5.5. Analogia na arbitrariedade dos conceitos biológicos de “raça” e de “espécie” como substratos morais; 6. O que há de desanálogo entre racismo e especismo; 6.1. “Raça” é uma noção mais ilusória em termos factuais que a de “espécie”: a diferença biológica entre primatas e peixes não é análoga à diferença entre pessoas brancas e negras; 6.2. A subordinação de um escravo humano ao seu senhor não é análoga à subordinação de um “pet” ao seu dono; 6.3. Dizer “eu não gosto de gatos” não é análogo a dizer “eu não gosto de negros”; 7. Considerações finais; 8. Referências 1. Introdução Uma revisão abrangente da literatura em Ética Animal (e dos manifestos ativistas do movimento de Libertação Animal / Direitos dos Animais) mostraria que o esqueleto lógico e retórico da defesa moral dos animais não-humanos envolve basicamente dois movimentos argumentativos. O primeiro deles, o Argumento dos Casos Marginais, é reativo. O segundo, de teor propositivo, objeto do presente ensaio, é uma instância do argumentum per analogiam. Tal argumento evoca a semelhança moral entre um raciocínio ou uma atitude racista, de um lado, e um preconceito especista, de outro. Trata-se, com efeito, de moeda corrente no debate em Ética Animal e está presente praticamente em todos os trabalhos nessa área. Entende-se como especismo a discriminação preconceituosa baseada na noção de espécie (biológica), notadamente contra os animais (não-humanos), acarretando sua opressão. O termo especista foi cunhado para comunicar a ideia de que os praticantes do especismo exibem uma insensibilidade moral tão ou mais tosca e brutal que a dos racistas. 170 | Revista Brasileira de Direito Animal Pesquisadores e ativistas da defesa animal tomam como fortemente intuitivo e saliente um paralelismo moral entre especismo, racismo, sexismo e outros “-ismos”, que, não obstante, é passível de uma análise mais refinada. Pelo bem da simplicidade, neste trabalho, limitaremos a analogia ao caso do racismo, embora o argumento analógico se aplique também às situações sexistas, elitistas, nacionalistas e muitas outras semelhantes. Veremos, portanto, quais são os aspectos compartilhados e quais são as principais assimetrias entre essas duas formas de discriminação preconceituosa. Em outras palavras, em que, analiticamente, o preconceito racista e o especista se aproximam e se separam em termos morais. O argumento em tela é o seguinte: (i) O racismo é errado, os racistas são imorais e as atitudes racistas são injustas. (ii) Ora, o especismo é análogo ao racismo: ambos tratam de modo moralmente diferente indivíduos que são semelhantes nos aspectos moralmente relevantes – baseados (no primeiro caso) na espécie biológica da criatura e (no segundo) na raça da pessoa. (iii) Logo, o especismo também é moralmente condenável. Todo o esforço eticista nessa argumentação consiste em trazer à luz o que há de comum nas discriminações racistas e especistas, demonstrando, assim, que a opressão a pessoas de outras raças e a opressão a animais estão conceitualmente vinculadas de forma logicamente paralela. A questão aqui é a seguinte: são eticamente corretas aquelas práticas “facialmente neutras”, que, por não fazerem referência à raça dos envolvidos nem à sua cor, não são discriminatórias? Se sim, então serão eticamente corretas também aquelas ações “zoologicamente neutras”, que não dependem do fato de que os pacientes dessas ações têm pernas, patas ou asas. Devemos notar, primeiramente, que a analogia estrutural entre racismo e especismo não é evidente para a grande parte das pessoas, uma vez que, supostamente, a maioria dos antirracistas não são também antiespecistas.1 Comecemos nossa análise da validade do argumento analógico lembrando que o argumento que compara racismo e especismo não basta por si Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 171 só. Essa comparação não prova que o especismo é errado – até que se mostre por que o racismo também é errado. E por que o racismo é errado em termos morais? 2. Especismo é análogo ao racismo... Mas o que há de errado no racismo? A resposta à pergunta anterior – por que o racismo é errado? – é conhecida: raça é uma classificação biológica que diz respeito ao aspecto corporal visível de um individuo e que não envolve sua capacidade de ser prejudicado ou beneficiado, vale dizer, seus interesses, necessidades, desejos e bem-estar básicos. Esse fato, como salienta Paola Cavalieri2, determina a priori que “raça” não pode desempenhar um papel direto em ética, tanto quanto a função reprodutiva ou a estrutura genital também não o podem em uma moral sexista. Historicamente, teses racistas foram usadas à larga para justificar a escravidão negra e o holocausto judeu. O pensamento racista forneceu até o final do século XIX um suporte a políticas imperialistas e ao poder colonialista. O racismo ainda se reflete concretamente nas políticas do apartheid, nas doutrinas da superioridade racial anti-semitas e nos movimentos de protesto anti-imigrantistas. A despeito do conceito de raça estar hoje cientificamente desacreditado, ele ainda exerce uma forte influência ideológica e é amplamente utilizado na linguagem cotidiana. Um dos primeiros teóricos a popularizar o termo “racismo” foi a antropóloga Ruth Benedict na obra Race and Racism, definindo-o como “o dogma de que um grupo étnico está condenado por natureza à inferioridade congênita e outro grupo à superioridade congênita”.3 Racismo – como o especismo – constitui um processo de alocação de status moral, no qual há desvalorização, desconsideração e degradação de indivíduos em virtude de serem categorizados como pertencentes, ou não pertencentes, a uma determinada classe. 172 | Revista Brasileira de Direito Animal Semelhantemente ao especismo, o racismo pode apresentar uma versão superficial ou qualificada.4 Na primeira modalidade, os atributos corporais são considerados índices morfológicos da pertença à raça, a qual se submete a uma hierarquia de natureza moral. O racismo superficial opera uma discriminação com base na pigmentação da epiderme, formato do crânio, da pálpebra ou de algum outro atributo externo qualquer. Ora, esses atributos são tão irrelevantes para as capacidades individuais, tais como ser um bom cidadão, um bom vizinho ou um bom ser humano, quanto a calvície de uma pessoa também o é para fins das suas aptidões humanas. Com efeito, se a cor escura da pele de uma pessoa fosse importante para estabelecer seu status moral, então uma pessoa branca tão bronzeada a ponto de parecer negra teria o mesmo status da primeira. A versão superficial do racismo foi aquela que, por exemplo, pautou a relação entre os navegadores europeus e os índios no continente americano. No caso da escravatura negra (para nos limitar ao exemplo ocidental mais óbvio), o raciocínio superficial do racista poderia ser o seguinte: (i) Pessoas brancas e pessoas negras são visivelmente diferentes. (ii) Sabe-se que os brancos têm pensamentos sofisticados, ideais nobres, consciência moral, etc. (iii) Logo, os negros não estão naturalmente equipados para as ciências, artes, política, etc. Importa notar que não é essa versão do racismo que deve receber a atenção por parte da Ética Animal. Raras pessoas acreditam que, pelo simples fato de que a pele branca e a pele negra têm diferentes cores, pessoas brancas e pessoas negras são diferentes tipos de pessoas nos aspectos mais relevantes. Em outras palavras, as modalidades superficiais do racismo e do especismo não são as mais importantes para o animalismo, em virtude de serem estatisticamente incomuns nos dias de hoje. Atualmente, poucos ainda abraçam a idéia de que a cor da pele define diretamente o status moral de uma pessoa – tanto quanto poucas pessoas ainda crêem que ter quatro patas é o fato relevante para não se receber respeito moral. Com efeito, seria Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 173 algo bastante raro encontrar um especista que afirmasse que o número de patas dos animais, por si só, justifica a escravatura animal. Geralmente racistas e especistas não consideram a raça ou a espécie como um fator negativo ou desqualificador de per si. Uma pessoa branca racista, em vez de dizer “eu não gosto de negros porque são negros”, racionalizará sua aversão ao grupo racial, evocando traços ou qualidades supostamente associados à negritude, tais como indolência, criminalidade, promiscuidade e outros. Passemos agora à modalidade qualificada do racismo e, correspondentemente, a do especismo. Ao ser criticado de que a cor da pele ou a forma facial é um critério arbitrário ou irrelevante para o direito a ser livre, um racista pode conceder que apelar à raça não oferece mesmo um critério comparativo direto de status moral. Ele poderia objetar, entretanto, que há uma correspondência entre características fenotípicas e a presença/ausência de capacidades moralmente relevantes. Diria ele que a cor da pele de alguém é apenas um indício, um sinal, um índice das capacidades inferiores da pessoa envolvida pela epiderme daquela cor. Deste modo, a pertença à raça seria um modo econômico de marcar indiretamente essas diferenças de capacidades: pessoas negras são intelectualmente menos hábeis, menos sensíveis ou menos virtuosas. O racista acrescentaria em seguida que tais atributos psicológicos são, sim, moralmente relevantes. Na versão qualificada do racismo, em suma, não são as características morfológicas que constituem o foco da discriminação. O racista, neste caso, crê que a natureza, a essência ou a identidade imperfeita do “outro” é tanto responsável por essas marcas físicas superficiais quanto por incapacidades e desqualificações congênitas de ordem psicológica, intelectual, moral, cultural ou física – traços estes plenamente presentes na raça– modelo. Por essa razão, um branco racista pode pensar que negros são naturalmente incapazes de pensamentos sofisticados, ideais nobres ou sentir remorso do mesmo modo que as pessoas brancas. Tais defeitos não são tidos como culturais ou sociais. 174 | Revista Brasileira de Direito Animal Essas imperfeições são consideradas inferioridades inatas, portanto imutáveis.5 O raciocínio racista, que pode ser acompanhado implícita ou explicitamente por teorias racistas, tem o seguinte esqueleto lógico: (i) Os seres humanos estão divididos em raças. (ii) Algumas dessas raças são superiores a outras no sentido físico, psicológico, intelectual ou moral. (iii) Essa superioridade é devido a diferenças biológicas herdadas ou congênitas. (iv) Esses tipos biológicos, naturais ou essenciais, explicam a expressão das diferenças de comportamento e/ou capacidades das diferentes pessoas. (v) Isso explica as diferenças culturais entre os povos. (vi) As diferenças culturais explicam a relação de superioridade de um grupo (e.g., sociedades européias ou de origem européia) sobre outro grupo (e.g., africanos ou indígenas). (vii) Raças superiores têm o direito de (na versão forte) escravizar, controlar, civilizar ou melhorar as raças inferiores, ou (na versão moderada) preservar sua própria pureza ou proteger seus privilégios. Na lógica racista, um processo de significação de diferenças funda um sistema de categorização e hierarquização de grupos, no qual a camada dominante tem acesso a recursos e a camada dominada não o tem. A partir dessa noção de diferença, legitimada biologicamente, resulta, como aponta Neil Thompson na sua obra Anti-Discriminatory Practice, uma lógica de exclusão, marginalização e opressão de dupla face.6 Na primeira delas, a noção de diferença étnica é convertida na ideia de deficiência, na noção de falta. Ou seja, aquilo que constitui a identidade cultural, algo supostamente positivo e que enriquece a sociedade, é tomado pelo racista como um desvio do padrão etnocêntrico. Neste caso, diferenças étnicas são traduzidas em déficits raciais. O segundo fundamento racista consiste em assumir que uma característica biológica, real ou imaginária, como a cor da pele, está necessariamente vinculada à posse de outras características de valor inferior: a habilidade intelectual dos negros é reduzida, sua capacidade de trabalho é menor, etc. Para fins da analogia racismo/especismo aqui tratada, importa que a percepção racis- Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 175 ta é oriunda de uma patologização ou inferiorização naturalizada do grupo oprimido, fundada na biologia. 3. Especismo é análogo ao racismo... Mas o que é analogia? Foi dito anteriormente que afirmar que o especismo é análogo ao racismo não basta como argumento moral em Ética Animal até que se esclareça por que o racismo é errado. Feito isso, o argumento também exigirá que se mostre o que há de análogo entre ambos. É o que veremos a seguir. A analogia – ou o raciocínio a simili –, segundo o Tratado da Argumentação de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca7, é caracterizada como uma similitude de estruturas, cuja fórmula genérica é: A está para B assim como C está para D. No raciocínio analógico, o conjunto de termos C e D (o foro da analogia), que é bem mais conhecido, estriba o outro conjunto A e B (o tema da analogia), cuja estrutura se pretende esclarecer ou avaliar. A analogia-padrão comporta quatro termos: “O homem está para Deus como a criança está para o adulto”; “O bispo está para os seus fiéis como o pastor para as suas ovelhas”. Em Ética Animal, a relação a ser esclarecida – especismo-espécie – é retirada de uma relação que já se conhece – racismo-raça –, transferindo-se assim o objeto da crítica moral. O núcleo lógico da analogia é uma suposta similitude de relações: a relação entre A e B é semelhante à relação conhecida entre C e D. O ponto importante consiste em que a analogia sempre envolve uma semelhança, não uma identidade, entre realidades heterogêneas ou gêneros diferentes. Em outras palavras, deve haver uma diferença de natureza ou de ordem, em vez de grau, entre ambas as relações semelhantes. Devido a essa heterogeneidade dos elementos, a analogia se distingue da comparação. Em “O bispo está para os seus fiéis como o pastor para as suas ovelhas” não se trata de justificar a partir da mesma categoria: 176 | Revista Brasileira de Direito Animal bispo e pastor não são realidades do mesmo gênero, nem são do mesmo gênero as realidades eclesiástica e pastoril. Ainda em virtude dessa heterogeneidade, a analogia também se distingue do raciocínio por meio de exemplo: “bispo-fiéis” e “pastor-ovelhas” não são dois casos particulares aparentados de uma mesma regra ou domínio. Cabe notar, entretanto, que nos contextos jurídicos parece ser esse o sentido de analogia adotado. Os juristas tendem a identificar uma analogia quando os analogados particulares são subsumíveis a uma regra ou lei geral, o que se afasta da interpretação aqui exposta.8 De qualquer modo, no seu sentido próprio, deve haver tanto um conteúdo de coincidência quanto de diversidade em cada analogia, diferenciando-se, dessa forma, da mera homologia. 4. Os problemas com o argumento analógico em Ética Animal Em Ética Animal, o uso típico do argumentum per analogiam consiste em afirmar que, dado um juízo que estipula uma obrigação moral em relação a uma classe de sujeitos (uma raça oprimida), existe a mesma obrigação relativa à outra classe de sujeitos (uma espécie oprimida), em que se crê que a razão que determinou o juízo moral a respeito da primeira classe também seja válida em relação à segunda. Vejamos um exemplo. A crença de que é injusto restringir a liberdade dos negros para atender aos interesses dos brancos nos leva a regra de que também não se deve aprisionar animais a fim de atender aos interesses humanos. Note-se que não é necessário que a analogia envolva todos os aspectos semelhantes entre os domínios humano e animal, tampouco a maioria deles: já será suficiente que ela se baseie nos traços relevantes. Neste caso, o aspecto analógico a respeito do qual a discriminação racista é semelhante à discriminação especista é, precisamente, a irrelevância de uma propriedade P (e.g., ter pele escura ou não sa- Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 177 ber falar) entre um grupo de indivíduos no que tange à moralidade da restrição da liberdade física. Como ocorre em qualquer analogia, tem-se um conteúdo conceitual comum e análogo (a irrelevância moral) e quatro analogados (os sujeitos da relação analógica: racismo, raça, especismo, espécie). Nas seções seguintes, analisaremos a problemática da relação analógica racismo/especismo em particular. Por ora, trataremos das objeções gerais ao raciocínio por analogia em Ética Animal. Há, inicialmente, quatro ameaças possíveis ao argumentum per analogiam no cenário animalista: (i) O refutador pode tentar desqualificar a estrutura e a função argumentativa da analogia como recurso de prova, inclusive em Ética Animal, asseverando que semelhança de relações não constitui uma prova válida. Comparações não ofereceriam um suporte para juízos com pretensão de validade. (ii) O refutador pode protestar que a suposta semelhança ou paralelismo entre racismo/especismo é de qualidade bastante fraca ou imperfeita entre os termos comparados.9 Neste sentido, Donald Graft, no ensaio Speciesism, anota que (...) pela sua natureza, argumentos por analogia não são definitivos, mas apenas sugestivos. Eles dependem de uma inferência de que se duas coisas são semelhantes em alguns aspectos, então elas devem ser semelhantes em outros. Mas tais inferências podem estar erradas; argumentos por analogia podem falhar.10 (iii) O refutador pode tentar desmontar a analogia pela direção contrária, apelando para sua superação. De um modo geral, no debate em Ética Animal, o argumentador animalista irá pôr racismo e especismo em pé de igualdade, afirmando a existência de um princípio comum ou uma mesma estrutura normativa entre ambos. Neste caso, admite-se que racismo e especismo sejam apenas exemplos diferentes de uma mesma relação xDy, em que x e y têm como valores ora os termos “racismo-raça”, ora “especismo-espécie” e D é a relação discriminatória propriamente dita. A tese aqui é a de que o especismo seria apenas mais um caso na generalização do conceito de discriminação: tanto o 178 | Revista Brasileira de Direito Animal racista quanto o especista se movem eticamente no interior de uma única e mesma área normativa. Desse modo, paradoxalmente, ao estender seu campo de aplicação, a analogia desapareceria devido ao seu próprio sucesso. Perelman e OlbrechtsTyteca exprimem essa peculiar vulnerabilidade lógica na seguinte passagem: A analogia é um instrumento de argumentação instável. Isso porque quem lhe rejeita as conclusões tenderá a afirmar que não há “sequer analogia” e minimizará o valor do enunciado reduzindo-o a uma vaga comparação ou a uma aproximação puramente verbal. Mas quem invoca uma analogia tenderá, quase invariavelmente, a afirmar que há mais do que uma simples analogia. Esta fica assim entalada entre duas rejeições, a de seus adversários e a de seus partidários.11 (iv) O refutador, por fim, pode propor dilatar tanto os limites da analogia moral a ponto de esvaziar seu papel de persuasão e convicção. O objetor poderia argumentar, por exemplo, que, semelhantemente ao racismo, constitui preconceito privilegiar animais em detrimento de vegetais. Ou ainda protestar que tudo que existe naturalmente sobre o planeta (e.g., pedras e rochas) é alvo de atitudes discriminatórias e opressivas por parte dos humanos. Ele diria que, se deixar de fora da comunidade moral a raça “errada” constitui racismo e deixar de fora a espécie “errada” constitui especismo, então deixar as coisas inanimadas de fora da consideração moral também configura discriminação preconceituosa “naturalicista” ou “physiocista”. O refutador da analogia concluiria a partir daí que, se esse prolongamento é inadequado, é porque a primeira (a analogia especista) já o era desde o início, impugnando, assim, o argumento analógico animalista na sua íntegra. 5. O que há de análogo entre racismo e especismo Veremos, nesta seção e na seguinte, os aspectos compartilhados e algumas das diferenças-chave entre uma discriminação Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 179 motivada por um animus racial e uma motivada por um animus zoológico. Ao alienar e marginalizar a parte oprimida, racismo e especismo compartilham um sistema de opressão, estigmatização de classe, vitimização de grupo e degradação de seus membros. Em termos amplos, o aspecto compartilhado pelo racismo e especismo é o de que “eles” são essencialmente diferentes e inferiores a “nós”. Em ambas as formas de discriminação da alteridade, o “outro” é excluído porque lhe falta algo que é possuído pelo grupo excludente e considerado como medida de valor. Isso dá margem a uma lógica dualista de hierarquização. O cerne do racismo é uma cegueira a respeito daquilo que constitui a humanidade compartilhada entre brancos e negros, assim como o especista é cego quanto à animalidade distribuída entre humanos e porcos. O racista se incompatibiliza com o universalismo humanista assim como o especista o faz em relação ao universalismo animalista. A maioria das pessoas vê como moralmente reprovável defender uma supremacia branca, que outrora gerou os horrores inimagináveis praticados pelos regimes escravocratas ao longo da história das civilizações. O termo “especismo” insinua que, pelo mesmo tipo de razão moral, defender a supremacia humana é algo mau e perverso. Supõe-se que esse favoritismo injusto, igualmente contrário à eqüidade, explica o horror do tratamento das diferentes espécies de animais entre nós no planeta. Sendo ambas, racismo e especismo, expressões condenatórias e acusatórias por definição, segue-se que (i) chamar uma atitude de racista ou de especista equivale a acusar aquele que a protagonizou, (ii) é contraditório dizer que tal atitude é moralmente justificável e (iii) é redundante dizer que racismo ou especismo é algo que se desaprova moralmente. Em termos lógicos, o essencial nesta discussão a respeito do especismo em Ética Animal é a idéia de que não é possível, mantendo a consistência, negar a importância moral da raça e, ao mesmo tempo, assumir a importância moral da espécie. Já em termos metafísicos, a crítica de Carol J. Adams, avançada no 180 | Revista Brasileira de Direito Animal ensaio Caring about Suffering: A Feminist Exploration, é particularmente iluminadora. Segundo Adams, a distinção entre (humanos) brancos-negros e a diferenciação humano-animal são estruturalmente análogas no sentido de que ambas consistem em díades que organizam o mundo. Isso significa que os conceitos “ser branco” e “ser humano” constituem-se a partir da mera negação – o “não-negro”, o “não-animal”, o “não-outro”. Tal metafísica dualista, na melhor das hipóteses, obstaculiza uma perspectiva de continuidade e de relação entre os diferentes e, na pior, faz com que o lado dominado das díades esteja a serviço do lado dominador. A conexão analógica racismo/especismo fica evidente, de acordo com Adams, em face dos típicos comentários racistas do passado (e possivelmente ainda do presente) de que os negros eram animais, eram como animais ou estavam próximos aos animais.12 A fim de prosseguirmos nesta análise, será útil recapitular como alguns dos principias eticistas entendem a analogia racismo/especismo em Ética Animal. Richard Ryder, o criador do conceito de especismo, evoca essa relação analógica afirmando o seguinte: Eu uso a palavra ‘especismo’ para descrever a discriminação generalizada que é praticada pelo homem contra as outras espécies e para traçar um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são, ambas, formas de preconceito (...) e ambas as formas de preconceito mostram uma desconsideração egoísta pelos interesses dos outros e pelo seu sofrimento.13 A analogia em tela, segundo o filósofo norte-americano Tom Regan, dá-se quando do ponto de vista da justiça elementar, (...) os interesses de alguns seres humanos não podem ser ignorados e não podem contar menos que os interesses semelhantes de outros seres humanos simplesmente porque eles não pertencem à raça ou ao gênero “correto”. O mesmo é verdade em relação à pertença à espécie.14 Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 181 Peter Singer, responsável pela divulgação de tais noções há três décadas, diz, na obra fundadora da Ética Animal contemporânea, Libertação Animal, que “deveria ser óbvio que as objeções fundamentais ao racismo (...) aplicam-se igualmente ao especismo”.15 Mais adiante, o pensador australiano declara que os racistas violam o princípio da igualdade ao conferirem mais peso aos interesses de membros de sua própria raça quando há um conflito entre seus interesses e os daqueles que pertencem a outras raças. (...) Analogamente, os especistas permitem que os interesses de sua própria espécie se sobreponham àqueles maiores de membros de outras espécies. O padrão é idêntico em todos os casos.16 Gary Francione, por sua vez, caracteriza o paralelismo analógico na seguinte passagem: Racismo, sexismo, especismo e outras formas de descriminação são todas análogas ao compartilhar a falsa noção de que alguma característica moralmente irrelevante (raça, sexo, espécie) possa ser usada para excluir da comunidade moral seres com interesses ou para subavaliar interesses, em uma violação explícita do princípio de igual consideração.17 Mais recentemente, Mark Rowlands, na obra Animals Like Us, abordou o paralelismo aqui tratado baseado na noção de mérito, envolvendo dois princípios.18 O princípio de igualdade estabelece que todos os membros da comunidade moral devem ser tratados com igual consideração, a menos que haja diferenças moralmente relevantes entre eles. O princípio do mérito afirma que qualquer fator pelo qual uma criatura não é responsável não é um fator moralmente relevante. Ou seja, caberia a um individuo uma menor consideração moral que a outro se houvesse uma diferença entre ambos obtida por merecimento. Ora, diferenças raciais entre duas pessoas não podem ser moralmente relevantes precisamente porque não são fruto de merecimento: uma pessoa simplesmente nasce pertencendo a uma raça e ela nada pode fazer a respeito disso. Da mesma forma, a espécie 182 | Revista Brasileira de Direito Animal a qual uma criatura pertence não é algo sobre o qual ela tenha algum controle. Um cão não é responsável pelo fato de ter nascido como cão: ele simplesmente nasce como tal. Tampouco ele é responsável pelo nível de alguma capacidade (inteligência, linguagem, autoconsciência, etc.) que os cães possuem, em comparação com o dos humanos. Na ausência de qualquer responsabilidade quanto a tais condições, não faria sentido elogiar ou culpar uma criatura por ter nascido como uma pessoa negra ou como um animal. A consideração moral por um cão não pode ser reduzida pelo fato de se trata de um cão, e não um humano. Do mesmo modo, a raça, ou qualquer suposta capacidade inerente a essa, não pode ser relevante à consideração moral que prestamos a uma pessoa. No interior do debate em Ética Animal, os pontos essenciais de aproximação analógica mencionados anteriormente já são bem conhecidos. Cumpre, entretanto, analisarmos a seguir alguns aspectos menos explícitos desse paralelismo e ainda pouco mencionados na literatura dessa área. 5.1. Analogia na estereotipação Denota racismo a afirmação de que certas características negativas são típicas de pessoas negras: negros são indolentes porque, afinal, são negros. O especismo assemelha-se ao racismo quanto (i) à sua capacidade de gerar justificativas simples, sólidas e aparentemente científicas para uma divisão moral e (ii) no sentido de fornecer soluções econômicas para os casos de conflitos de interesses entre “nós” e “os outros”. Um racista que adota um estereótipo negativo de pessoas negras, ao encontrar uma delas que lhe desperte sentimentos positivos, tenderá a considerar essa pessoa como uma exceção à regra, em vez de abandonar o estereótipo. Analogamente, isso acontece na eleição de algumas espécies privilegiadas de animais: alguém pode não ver a relação entre o status moral de seu gato de companhia, de um Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 183 lado, e o de porcos, de outro. Ao se defrontar com evidências em prol da sensibilidade ou da consciência dos gatos, a pessoa continuará a sustentar preconceitos discriminatórios quanto a porcos, rejeitando a extensão moral a outras espécies. Joan Dunayer, na obra Animal Equality, assinala atitudes decorrentes desse processo de estereotipação. Assim como um racista vê um individuo negro como a corporificação de toda a raça negra, também um caçador tem a impressão de que está sempre atirando no mesmo pássaro cada vez que caça19. O termo “espécime” concebe justamente essa idéia de que a ave abatida é um mero representante da espécie caçada. Em ambos os casos, a individualidade da vítima é simplesmente anulada por meio do achatamento do sujeito (humano e animal) no plano da coletividade. Há ainda outra semelhança de mesmo teor. Tanto o racista quanto o especista pensam que o membro mais incapacitado do grupo preferencial merece consideração ou respeito antes que o membro mais habilitado do grupo inferior. Neste caso, uma pessoa branca com deficiência mental mereceria atenção moral antes que um negro superdotado, tanto quanto um humano em estado de coma mereceria ser respeitado antes que um cão adulto. 5.2. Analogia na validação social Se, por um lado, o conteúdo psicológico e subjetivo do preconceito fornece a base para o aspecto coletivo e institucional da dominação, por outro, tanto no racismo quanto no especismo há uma validação social do preconceito que o perpetua. De fato, uma pessoa branca não escolhe aleatoriamente tomar os negros como moralmente inferiores, mas, em vez disso, é informada por uma estrutura social e institucional. As pessoas também não decidem espontaneamente comer animais, coisificando-os. Isso sugere que racismo e especismo não são sedutores devido ao 184 | Revista Brasileira de Direito Animal seu mero apelo intelectual. Humanos/animais, bem como brancos/negros, constituem grupos de interesses socialmente antagônicos, o que pode ser traduzido na idéia de que “quanto mais para eles, menos para nós”. 5.3. Analogia na inversão do preconceito Assim como todos os animais pertencem a uma espécie biológica, todas as pessoas pertencem a grupo étnico ou cultural (ou a uma “raça”). Mas assim como uma atitude racista nem sempre favorece a própria raça daquele que o adota (uma pessoa negra pode descriminar outros negros ao identificar seus próprios interesses com o dos brancos), um animalista pode praticar o especismo ao adotar uma atitude misantrópica, por exemplo, ao valorizar a extinção da humanidade, ou pelo menos uma redução drástica da população humana, em virtude do mal praticado aos animais no nosso planeta. 5.4. Analogia no enfoque libertador Toda e qualquer abordagem antidiscriminatória irá visar a emancipação do oprimido, que identificado como “diferente”, é vítima de um tratamento degradante. Como anota Thompson, há basicamente dois enfoques antidiscriminatórios possíveis para garantir uma igualdade de recursos, oportunidades e possibilidades de vida: (i) o da minimização e achatamento das diferenças entre “nós” e “os outros” e (ii) o do realce e valorização dessas diferenças. Analisemos cada um deles: (i) A primeira abordagem buscaria a minimização das diferenças entre brancos-negros ou humanos-animais a fim de reduzir a posição desvantajosa dos segundos, integrando-os ao todo social dominante. O risco aqui seria o da mera assimilação de um grupo pelo grupo mais poderoso, negando ou abandonando a identidade do oprimido. O problema de tal abordagem é a Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 185 gestação potencial da idéia de superioridade: parece ser vantajoso para os negros a adoção de standards brancos, como parece ser melhor para os animais se tornarem quase humanos – crença esta implícita nas atitudes de antropomorfização dos animais (“pets”) em nossa sociedade. A tentativa de minimização máxima das diferenças é problemática também por outro fator. Pessoas brancas e pessoas negras apresentam algumas diferenças biológicas bem definidas, sendo que as diferentes constituições físicas entre brancos e negros dão origem a certas necessidades e interesses também distintos entre ambos. Não é por outra razão que disponibilizar loções de proteção solar fator 30 para pessoas brancas e não para pessoas negras não equivale a uma atitude racista, uma vez que negros tem uma melhor resistência aos efeitos nocivos da radiação solar que os brancos. O fato de os afro-americanos terem uma maior probabilidade de ficarem cegos por glaucoma que caucasianos implicaria uma prioridade no acesso a diagnósticos preventivos dessa doença. Supõe-se também que pessoas brancas tenham maior risco de ataques cardíacos, o que seria outro fator importante em termos de disponibilização de recursos médicos. Entretanto, o ponto relevante aqui é outro: a passagem eticamente condenável do domínio da biologia para o da moralidade ocorre quando se atribui um significado moral a tais diferenças, de modo a permitir a opressão do diferente. Esse precisamente foi o caso quando os nazistas se ocuparam com medições antropométricas da cabeça dos judeus em busca de alguma fundamentação biológica para uma psicologia moral que lhes conviesse, justificando uma política de perseguição sistemática antissionista. (ii) Na segunda abordagem, a diversidade entre as criaturas, na medida em que enriquece nosso mundo, é uma característica a ser valorada, afirmada e mesmo celebrada. Procede-se, deste modo, uma inversão do enfoque anterior. Como bem salienta Thompson, “a ‘abordagem da diversidade’ busca enfrentar a discriminação ao apresentar diferenças como qualidades positi- 186 | Revista Brasileira de Direito Animal vas das quais se beneficiar, em vez de uma base para a discriminação negativa e injusta.”20 Em outra passagem, o autor sustenta que “diferença é, portanto, uma questão-chave. (...) Diversidade e diferença podem ser vistas como trunfos [assets] a serem valorizados e celebrados – fontes de estimulação e enriquecimento, em vez de problemas a serem resolvidos.”21 O risco desta segunda abordagem, obviamente, é o de tender a ignorar as realidades particulares da injustiça a que se submetem as vítimas da discriminação preconceituosa. Qual a contribuição das considerações anteriores para o debate em Ética Animal? Assim como os diversos grupos étnicos não se confundem entre si, mas constituem um rico caldo de diferenciação cultural, as diferentes espécies de animais também não constituem uma massa amorfa denominada de Reino Animal. Com efeito, a diferença de capacidades e de habilidades entre os animais não é um fato sutil para o senso comum. O homem médio reconhece perfeitamente tal disparidade biológica. Conseqüentemente, as diferentes constituições físicas e mentais das diferentes espécies darão margem a diferentes necessidades e interesses. Tal diferenciação é justamente o que pauta as variadas relações humano-animal na nossa sociedade. É ela que localiza o papel de cada espécie dentro da estrutura social humana. Tomemos o caso dos animais de companhia. A imensa popularidade dos cães e dos gatos como “pets” releva claramente o reconhecimento dessa diferenciação. Não é por uma razão de estética que relativamente poucas pessoas escolhem répteis e anfíbios, no lugar de mamíferos, para compartilhar sua casa (inclusive pensadores e ativistas animalistas). As pessoas percebem que o repertório comportamental dos cães é mais rico que o das iguanas. Tal discriminação, em si mesma, é preconceituosa contra os répteis? Não, na medida em que não se atribui um significado moral a tais diferenças de modo que permita a opressão dos lagartos. Em outras palavras, do fato biológico da diferença entre um cão e uma iguana nada se conclui em prol da coisificação do último. Para a presente discussão, resulta que achatar Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 187 as particularidades de cada cultura tentando anular o racismo seria análogo a ignorar as diferentes capacidades e necessidades dos animais para tentar combater o especismo. 5.5. Analogia na arbitrariedade dos conceitos biológicos de “raça” e de “espécie” como substratos morais Outro aspecto compartilhado entre racismo e especismo consiste em que tanto o conceito de raça como o de espécie estão a serviço de propósitos injustos, envolvendo preconceito, intolerância, opressão e violência. No entanto, ambos os conceitos já foram taxonomicamente problematizados pelas ciências contemporâneas, o que implica o solapamento das teorias racistas e especistas neles fundados. Não nos deteremos aqui na análise do conceito de raça, cabendo apenas lembrar que se trata de um conceito desacreditado cientificamente em nossos dias, o que já bastaria para a implosão das teorias racistas a partir de suas bases.22 E quanto ao conceito de espécie? Daniel Elstein, no artigo Species as a Social Construction: Is Species Morally Relevant?, logrou identificar uma questão paralela, pondo-a nos seguintes termos: Mas em quase toda discussão filosófica dos direitos dos animais (com algumas notáveis exceções), o conceito tem sido pressuposto e não analisado, como se o “problema” tivesse sido resolvido. O uso do termo “espécie” dentro do contexto filosófico dos direitos dos animais tem sido raramente tratado. Por que isso? Ou seja, por que os filósofos se sentem confortáveis discutindo questões sobre a relevância moral das espécies sem primeiramente perguntar o que a espécie é ou o que deveríamos querer dizer ao falarmos sobre espécies no contexto dos direitos dos animais? 23 Elstein prescreve que o conceito de espécie seja removido do debate em Ética Animal, assim como o conceito de raça em ou- 188 | Revista Brasileira de Direito Animal tros contextos, em virtude de ambos serem vagos, indefinidos e equívocos. Uma análise mais criteriosa, segundo ele, revelaria a absurdidade do uso de “raça” e de “espécie” como critérios morais. À primeira vista, uma vez que espécie é considerado um conceito objetivo, isto é, que dá conta de um fato biológico, o especismo nele baseado parece escapar de qualquer arbitrariedade. Tradicionalmente, espécie é definida como uma entidade natural constituída de indivíduos que compartilham características comuns, ancestrais comuns ou isolamento reprodutivo (cruzamento com geração de prole viável). Entretanto, como Donald Graft apontou em seus escritos24, o conceito de espécie biológica é problemático no sentido fenotípico, genealógico e genético, sendo assim incapaz de dar qualquer suporte objetivo a uma posição moral. Há diferentes concepções a respeito do que seja uma espécie biológica. Segundo a abordagem essencialista do conceito de espécie, haveria um conjunto de propriedades que todos e apenas os membros de um certo grupo possuem, sendo a espécie tal grupo de indivíduos. O problema com essa taxionomia baseada em tipos é sua arbitrariedade metafísica: é possível dividir o mundo em animais e não-animais, ou humanos e não-humanos, ou brancos e não-brancos, e assim por diante, resultando correspondentemente em moralidades zoocêntricas, humanistas, racistas, etc. A propósito da exigência antropológica pela existência real de um tipo natural chamado de “humanidade”, Stephen Clark, no ensaio Enlarging the Community: Companion Animals, assinala que as espécies biológicas não são categorias ou classes naturais identificadas por características comuns: Uma espécie, em termos contemporâneos, não é um conjunto de criaturas com uma natureza essencial e compartilhada. (...) Talvez todos os humanos por nós conhecidos atualmente possam falar. (...) Mesmo assim, poderíamos descobrir uma tribo genuinamente humana que tenha perdido o dom da linguagem propriamente dita. Não há Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 189 qualquer natureza única apresentada pelos membros das espécies de modo seguro.25 Há uma segunda concepção, segundo a qual espécie é um grupo de indivíduos com isolamento reprodutivo. Humanos e chimpanzés, por exemplo, não podem cruzar e, por isso, constituiriam espécies diferentes. Mas esse conceito biológico também carece de precisão, pois há algumas espécies com isolamento reprodutivo, mas idênticas morfologicamente, enquanto que outras podem cruzar, mas são fenotipicamente diferentes. Leões e tigres podem acasalar, produzindo prole viável, mas são reconhecidos como sendo de espécies diferentes, enquanto que térmitas-soldados pertencem à mesma espécie, mas não podem acasalar. De acordo com Graft, uma ambigüidade na teoria evolucionária sobre se o cruzamento deve ser atual ou potencial e exceções concernentes à geração de prole viável sugerem que a espécie é uma mera construção teórica, “(...) uma área borrada no continuum de espaço-tempo dos organismos, delimitada vagamente por uma faixa eclética de critérios heurísticos”.26 Tal continuum biológico implicaria, consequentemente, um continuum em qualquer sistema moral eventualmente fundado na noção de espécie. Uma terceira dificuldade é a de que esse conceito tem aplicabilidade restrita no mundo natural, não dando conta das criaturas com reprodução assexuada, como é o caso de vários microorganismos, fungos, insetos, crustáceos e muitos outros. Um quarto problema com a noção de isolamento reprodutivo diz respeito a um ponto no espaço-tempo para o recorte de uma espécie: Começando com humanos e movendo-se lentamente ao longo da gradação em direção aos ancestrais, nunca se encontra uma fronteira mágica na qual os organismos de cada lado não possam cruzar e, portanto, na qual se possa dizer ‘a consideração moral cessa aqui’ (ou na qual se possa dizer ‘a humanidade começa aqui’).27 190 | Revista Brasileira de Direito Animal Resulta disso que um gradualismo evolucionário referente à noção de espécie conduziria, novamente, a um gradualismo de status ou de significação moral. Por último, Graft crê que a tentativa de recuar das manifestações fenotípicas ao genótipo a fim de demarcar a espécie ainda enfrenta as seguintes questões: (i) a magnitude da diferença de conteúdo genético entre humanos e chimpanzés, em torno de 1%, é grande o suficiente para justificar as distinções morais traçadas entre ambos? Os humanos não deveriam ser considerados macacos, ao estarem mais próximos geneticamente dos chimpanzés que os chipanzés dos orangotangos? (ii) Quais genes são aqueles que conferem estatuto moral? (responder que são aqueles que distinguem humanos e chimpanzés equivale obviamente a fugir da questão). (iii) Concedendo que o conteúdo genético seja relevante, por que a fronteira relevante é o nível da espécie, em vez do nível do reino, filo, ordem, subespécie, indivíduo ou do próprio gene? A conclusão de Graft é que tal conceito, por admitir tantas exceções e ambigüidades, se apresenta como uma mera construção teórica arbitrária e, assim sendo, não poderia oferecer uma base moral. A contingência ou a falta de objetividade do conceito não autorizaria a generalização de uma concepção moral nele baseada. Segundo esse autor, “em suma, está claro que o conceito de espécie não pode suportar o peso de um sistema de ética.”28 Recapitulemos o resultado analógico desta seção. Na ausência de uma ontologia racial objetiva não é possível erigir qualquer hierarquia racial; analogamente, se uma taxonomia fixa de espécies animais não é um fato científico reconhecido pacificamente, estaria ameaçado qualquer ranking moral entre diferentes espécies de animais. Esse descrédito científico quanto aos conceitos tradicionais de raça e de espécie, todavia, não seria suficiente para solapar o racismo e o especismo como teorias, na medida em que tais conceitos ainda servem suficiente bem para a maioria dos propósitos morais correntes. No que tange à primeira noção, há que se notar que, embora não haja verdadei- Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 191 ramente raças no sentido estrito (mas, sim, grupos étnicos), há racismo – racismo este que nunca dependeu muito de definições científicas ao longo da história da humanidade. Quanto à noção de espécie, Mary Warren, no seu livro Moral Status, sustenta um argumento semelhante: Por exemplo, a maioria de nós sabe muito bem o que são leões e provavelmente poderia listar algumas das características que nos capacita a reconhecer leões quando os vemos, ou (mais frequentemente) quando vemos fotos deles. Mas muito poucos de nós poderiam formular uma definição precisa e substantiva de “leão” que fosse suficiente para resolver todas as questões concebíveis sobre o que deveria e o que não deveria contar como um membro da espécie Pantera leo. Felizmente, não precisamos uma definição tão precisa, uma vez que raramente nos confrontamos com animais que não podem ser prontamente classificados ou como leões ou como nãoleões com base no nosso critério ordinário. Se e quando encontrarmos – ou produzirmos geneticamente – tais animais, então poderemos precisar refinar nosso critério de “leãodade” a fim de decidir como chamar esses animais e como tratá-los.29 Tais considerações conduzem a outra aproximação racismo/ especismo, a saber, mesmo que os conceitos tradicionais de raça e de espécie não tenham realidade ontológica creditada cientificamente, no sentido de categorias naturais ou essenciais, a construção social da raça e a da espécie, incluindo seus usos ideológicos, são reais na nossa sociedade. Independentemente de qual seja a definição atual de raça ou de espécie, o racismo e o especismo continuarão existindo sempre que as necessidades e os interesses do “outro grupo” forem ignorados pela ótica que adota ambos os conceitos. 6. O que há de desanálogo entre racismo e especismo A questão que passaremos a problematizar é se racismo e especismo são igualmente imorais, como muitos eticistas animalistas parecem supor. E mais: sendo igualmente injustos, racis- 192 | Revista Brasileira de Direito Animal mo e especismo devem ser moralmente condenados em face do mesmo tipo de injustiça? Antes de abordarmos os pontos particulares de desanalogia entre racismo e especismo, há que se notar que mesmo uma semelhança parcial entre a discriminação contra humanos e o preconceito contra animais frequentemente parece ofensiva para muitos, segundo os quais seria um erro crasso comparar estupro, escravidão e genocídio de seres humanos com o tratamento usual dos animais na nossa sociedade.30 A ênfase em tal simetria também é criticada como estratégia persuasiva do ativismo, na medida em que amplifica desnecessariamente o foco moral, diluindo eticamente a problemática animal em um contexto de macroinjustiça, trivializando-a. Leslie Francis e Richard Norman consideram que a própria expressão “libertação animal” encerra um exagero bizarro, uma vez que a noção de libertação implicaria uma relação igualitária entre criaturas iguais, isto é, algo válido apenas entre opressores humanos e oprimidos humanos.31 Mas, para além dessa objeção preliminar, quais seriam os desafios pontuais a uma aproximação analógica entre racismo e especismo? É o que veremos a seguir. 6.1. “Raça” é uma noção mais ilusória em termos factuais que a de “espécie”: a diferença biológica entre primatas e peixes não é análoga à diferença entre pessoas brancas e negras Para que um argumento por analogia atenda aos propósitos da Ética Animal ou do Movimento de Libertação Animal, é necessário que a demarcação da espécie seja tão moralmente arbitrária quanto o marco da raça. A questão, então, é se a fronteira da espécie é igualmente arbitrária nesse sentido. Ou seja, fundar o status moral de um indivíduo sobre a cor da sua epiderme é algo perfeitamente paralelo a vincular o status moral de uma criatura à sua espécie biológica? Este não parece ser o caso. Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 193 Vimos que o racismo, na sua versão superficial, se caracteriza pela oposição à ideia de igualdade moral entre pessoas de aparência física diferentes. Na versão qualificada, justifica-se a superioridade das pessoas brancas, digamos, em termos de sua capacidade intelectual. Nesse viés, o erro do racismo é simplesmente factual, pois não há comprovação científica da relação entre os genes responsáveis pela cor da pigmentação da pele e os que formam o sistema nervoso central. A presença de melanina é apenas uma defesa contra radiação solar ou uma forma de regular nutrientes, como a vitamina D. A tese de que algumas raças são superiores a outras no sentido moral é falsa, neste aspecto, em virtude da mera ausência de uma base empírica que a sustente. Mas enquanto que as capacidades mentais de todos os membros (normais) das diferentes etnias humanas são iguais, mesmo que se manifestem de modos distintos, as capacidades de todos os membros do reino animal não o são. Uma objeção de teor semelhante atingiria também a analogia racismo / sexismo, como lembra Robyn Eckersley no ensaio Beyond Human Racism32: as diferenças entre dois humanos de duas raças (etnias ou culturas) distintas podem ser bem maiores que as diferenças entre homens e mulheres da mesma raça. Para a Ética Animal, a passagem analógica seria até mais frágil, uma vez que as diferenças entre humanos e animais são ainda muito maiores que as diferenças entre pessoas brancas e negras ou entre homens e mulheres. É fato que a pele negra tem uma cor bem diferente da pele branca, mas disso não se segue que pessoas negras e pessoas brancas tenham diferenças humanas fundamentais. Dito de outra forma, a pigmentação da epiderme é irrelevante para a noção de humanidade. Mas os diferentes modos pelos quais mamíferos, aves e répteis “estão no mundo” ou “veem o mundo” não é irrelevante para a “animalidade” dos animais. Mary Midgley, em Animals and Why They Matter, explicitou esse ponto de assimetria entre racismo e especismo. Segundo 194 | Revista Brasileira de Direito Animal Midgley, enquanto que a insignificância moral da demarcação se aplica para o caso da raça, a distinção entre espécies não é arbitrária ou desimportante em termos morais – ao contrário, ela é crucial. Evocar, portanto, o racismo para esclarecer o conceito de especismo seria enganador, conforme Midgley: Não é verdade que, a fim de saber como tratar um ser humano, você deve primeiro descobrir a que raça ele pertence. (...) Mas em relação a um animal, saber a espécie é absolutamente essencial. Um tratador de zoológico, a quem é dito para esperar a chegada de um animal e preparar um lugar para recebê-lo, não pode nem mesmo começar a fazer isso sem uma informação bem mais detalhada. Poderia ser uma hiena ou um hipopótamo, um tubarão, uma águia, um tatu, um píton ou uma abelha rainha. Mesmo os membros de espécies muito semelhantes e proximamente aparentadas podem ter necessidades inteiramente diferentes a respeito de temperatura e suprimento de água, material sobre o qual repousar, espaço para se exercitar, isolamento, companhia e muitas outras coisas. Suas visões e experiências de mundo, portanto, devem ser profundamente diferentes.33 Por definição, a descriminação racista consiste em determinar o tratamento de uma pessoa, não segundo seus interesses, preferências e necessidades individuais, mas conforme a sua raça. Ora, não apenas o conceito de raça é supérfluo para o conceito de humanidade, mas, sobretudo, não há qualquer propriedade, habilidade ou característica objetiva que as pessoas negras tenham, ou deixem de ter, tal que justifique receber salários menores ou sofrer mais violência policial. Pessoas negras compartilham com pessoas brancas todas as capacidades moralmente relevantes para que sejam beneficiadas por um tratamento igualitário e justo em todos os contextos. A despeito de eventuais diferenças sócio-culturais entre ambos, caucasianos e afro-descendentes não têm necessidades básicas diferentes tais que sejam relevantes do ponto de vista moral. Em outras palavras, o racista vê diferenças onde elas não existem. O ponto avançado por Midgley, em suma, é o de que, enquanto que desconsiderar a raça de um ser humano é eticamen- Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 195 te justificável, negligenciar a espécie biológica de um animal pode significar ignorar suas necessidades, o que é moralmente condenável. As capacidades físicas e psicológicas de chimpanzés e salmões são significativamente diferentes, e isso faz com que suas necessidades físicas e psicológicas também o sejam e, consequentemente, o modo eticamente correto de tratá-los também seja bastante distinto. Chimpanzés e salmões têm uma forma essencialmente diferente de ver o mundo, comunicar-se com outros animais, moverem-se sobre o planeta e tudo o mais. Em termos de modus vivendi, se a diferença entre mamíferos e peixes não é qualitativamente semelhante à diferença entre pessoas brancas e negras, então, no que tange a diferenças moralmente relevantes, ignorar a espécie do animal não é análogo a ignorar a cor ou a raça das pessoas. Com efeito, seria um erro moral levar em conta a cor da pele de alguém ao decidir a quem alugar nosso apartamento. Mas, ao pensarmos em alimentar ou alojar uma criatura, se não tomarmos em consideração a sua espécie, a poremos em risco. Um bebê humano e um bebê foca, afinal, têm diferentes necessidades de cuidado, espaço e dieta. Entretanto, como aponta Evelyn Pluhar, na obra Beyond Prejudice34, para fins de Ética Aplicada, não devemos confundir (i) a desconsideração de necessidades (moralmente relevantes) com (ii) a desconsideração das diferenças (empiricamente relevantes) nas formas de atendimento de tais necessidades. Midgley parece esquecer que dois indivíduos podem ser bastante diferentes sem diferirem em aspectos moralmente relevantes: um felino prefere repousar em cima de árvores. Um homem, em cima de uma cama. Isso indica apenas que a necessidade de repouso é parte integrante do bem-estar de ambos – e isso é moralmente significativo. 196 | Revista Brasileira de Direito Animal 6.2. A subordinação de um escravo humano ao seu senhor não é análoga à subordinação de um “pet” ao seu dono O que há de logicamente comum nas diferentes formas de discriminação preconceituosa, tais como o especismo, racismo, sexismo e outros “-ismos”? Todas essas modalidades compartilham uma mesma lógica de dominação (da alteridade), uma lógica de hierarquia de valor (ao supor o status maior daquele que está em cima no ranking axiológico) e uma lógica de dualismo de valor (no par “eu – o outro”, “meu grupo – o outro grupo”, em oposição mutuamente excludente e exclusiva). À luz dessa perspectiva, Beth Dixon, no ensaio The Feminist Connection between Women and Animals, marca uma distinção conceitual entre subordinação e opressão, de grande valia para o debate em Ética Animal. Segundo Dixon, não é completamente óbvio em que casos, nos quais humanos subordinam animais, teremos situações de exploração: Essa dificuldade surge porque a relação de subordinação não estabelece, por si mesma, que um contexto é opressivo e explorador. Podemos usar essa relação para descrever contextos que não são opressivos. Um subordinado é: (a) alguém de uma classe ou grau mais baixo ou inferior ou (b) alguém sujeito à autoridade ou ao controle de outrem. Diferenças de postos nas forças armadas são algumas instâncias de subordinação que não são moralmente objetáveis. Ou, no segundo sentido, dizemos que as crianças são subordinadas à autoridade ou ao controle dos seus pais. Nenhum desses contextos envolve necessariamente opressão ou exploração. Assim, a relação de subordinação não implica automaticamente que um contexto é opressivo. Ademais, (...) referência à subordinação dos interesses de x aos interesses de y não garante que estaremos nos referindo apenas a contextos opressivos e exploradores.35 Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 197 Posta em termos kantianos, a semelhança crucial entre o erro moral do racismo e o do especismo consiste em que tanto o escravo humano quanto o escravo animal têm uma dignidade (ao contrário de coisas, que têm um preço) e esta resulta desrespeitada. As considerações levantadas na passagem anterior, todavia, explicam porque a relação entre um animal de companhia e seu companheiro humano não é moralmente comparável à relação entre um negro cativo e seu proprietário escravagista. Ambos, cão e escravo, estão evidentemente subordinados aos seus mestres, mas ter um cão de companhia não é, no sentido moral, igualmente criticável a ter um escravo humano. Para que a analogia tivesse a validade que se supõe, o bem-estar, as necessidades e os interesses de ambos, cão e escravo, teriam que ser semelhantemente contrariados. Por mais degradante que seja o tratamento dispensado aos dois, não é este o caso, uma vez que as capacidades mentais de ambos são distintas. Esse ponto também foi mencionado por Bonnie Steinbock no artigo Speciesism and the Idea of Equality36. Steinbock lembra que as capacidades intelectuais dos seres humanos possibilitam o desejo pelo respeito próprio, diferentemente do restante do Reino Animalia. Em face desse desejo, constitutivo da condição humana, um escravo humano é capaz de indignar-se, já que pode compreender que a escravatura afronta sua dignidade. Isso não se passaria com um cavalo, mesmo que ele fosse tratado claramente como escravo, ao ser condenado a puxar uma carroça durante toda a sua miserável vida. 6.3. Dizer “eu não gosto de gatos” não é análogo a dizer “eu não gosto de negros” Este tópico diz respeito a um modelo normativo de círculos concêntricos de obrigações morais, no qual nós ocuparíamos o seu centro. Nessa concepção, quanto mais próxima de nós uma criatura está, mais obrigações morais teremos com ela. Tal pro- 198 | Revista Brasileira de Direito Animal ximidade poderia ser interpretada em termos biológicos (dada pelo compartilhamento genético), afetivos (dada por nossas preferências subjetivas) ou interacionais (dada pelo grau das possibilidades de nossa interação com o outro). O fator afetivo carrega maiores dificuldades nesse modelo. Com efeito, segundo uma gradação decrescente, a maioria das pessoas se sente mais próxima a seus pais/filhos, passando aos nascidos na mesma cidade, aos do mesmo estado e, finalmente, aos conterrâneos do mesmo país – em detrimento de pessoas estranhas ou estrangeiras. Mas também é verdade que muitas pessoas no interior das sociedades ocidentais contemporâneas se sentem mais próximas a um cão adotado (como um membro canino da sua família) do que a um primo distante. Essa proximidade sócio-familiar justificaria salvar o cão de companhia em vez de um humano estranho em uma situação de dilema. De qualquer modo, o grande desafio para tal modelo moral concêntrico é o de justificar obrigações especiais em face de uma maior proximidade entre humanos (em comparação à distância entre humanos e animais) sem que isso também acarrete uma legitimação do racismo, pois muitos de nós também se sentem subjetivamente mais próximos a outras pessoas com a mesma cor de pele. Nessa perspectiva, outro aspecto de desanalogia racismo/ especismo diz respeito à (im)possibilidade (ontológica e, por conseguinte, moral) de compreensão da perspectiva do “outro”. A falha de um cidadão europeu em compreender o ponto de vista de um africano parece mais passível de reprovação moral que a falha de uma pessoa em compreender o ponto de vista de um gato. Como nota Bernard Williams, a atitude de uma pessoa branca em supor que uma “visão de mundo branca” não pode ser suprimida configura uma crença racista. Haveria, em paralelo a tal atitude, uma crença especista análoga? Novamente, este não parece ser o caso: uma compreensão humana do mundo animal não poderia ser por nós transcendida, pois se trata de uma limitação não contingente da condição do agente humano. Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 199 Este fato, conforme Williams, marca outra desanalogia entre racismo e especismo: Essa é a razão pela qual o especismo é falsamente modelado pelo racismo e pelo sexismo, que realmente são preconceitos. Supor que há um ineliminável entendimento branco ou macho do mundo e pensar que a única escolha é se negros ou mulheres devem ser beneficiados pelas “nossas” práticas (brancas e machas) ou ser prejudicados por elas: isto já é ser preconceituoso. Mas no caso das relações humanas com animais, os análogos a tais pensamentos são simplesmente corretos.37 No ensaio The Priority of Human Interest38, Lawrence Becker argumenta na mesma direção. Assinala Becker que uma pessoa branca exibiria uma falha no seu caráter moral ao adotar, consciente ou inconscientemente, a convicção de que relações de reciprocidade com negros são impróprias. Por certo que ela também revelaria outra falha moral ao crer que a tentativa de estabelecer uma empatia com pessoas negras é desprovida de valor. Tal atitude, obviamente racista, seria condenável, mas não de forma análoga à atitude de se recusar à reciprocidade e à empatia com os animais. É bem verdade que um ordenamento típico de preferências intersubjetivas está psicologicamente sujeito a alterações: muitas pessoas priorizam seus animais a seus familiares, e outras, seus amigos a seus familiares. A questão aqui, entretanto, é se alguém que se recusa a interagir com os animais é digno de culpa ou reprovação moral semelhantemente àquela pessoa branca que não quer interagir com pessoas negras. Este não parece ser o caso. Em outras palavras, dizer “eu não gosto de gatos” não teria a mesma gravidade moral que dizer “eu não gosto de pessoas negras”. 7. Considerações finais Quanto ao aspecto crítico, o conceito de especismo é funcionalmente similar à noção de racismo, sendo, portanto, dis- 200 | Revista Brasileira de Direito Animal cursivamente útil para denunciar inconsistências da posição antropocêntrica, como anota Midgley. Trata-se de tirar partido do fato de que a maioria das pessoas crê justificadamente que o racismo é errado e que as ações racistas devem ser punidas. De qualquer forma, o intuito deste ensaio não foi o de desqualificar a aproximação analógica entre racismo e especismo, no que tange às bases comuns que sustentam atitudes opressivas e práticas de violência contra as vítimas do grupo oprimido. Muito pelo contrário: são precisamente esses aspectos compartilhados que explicam por que os animais são ainda hoje escravizados por intermédio da mesma lógica que escravizou milhões de africanos ao longo de vários séculos da nossa história. Todavia, no interior do debate em Ética Animal, há o risco de que o enfatizar de modo ligeiro e de forma crua as semelhanças morais entre racismo e especismo nos distraia quanto às diferenças entre ambos os analogados. Isso pode sugerir um paralelismo rigoroso ou completo entre racismo e especismo, o que seria enganador. Referências ADAMS, Carol J. Caring about Suffering: A Feminist Exploration. In: DONOVAN, Josephine; ADAMS, Carol J. (Eds.). Beyond Animal Rights: A Feminist Caring Ethic for the Treatment of Animals. New York: The Continuum Publishing Company, 1996, p.170-96. BECKER, Lawrence C. The Priority of Human Interests. In: MILLER, Harlan B.; WILLIAMS, William. H. (Eds.). Ethics and Animals. Clifton: The Humana Press, 1983. p.240-1. CAVALIERI, Paola. The Animal Question: Why Nonhuman Animals Deserve Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2001. CLARK, Stephen. R. L. Enlarging the Community: Companion Animals. In: ALMOND, Branda. (Ed.). Introducing applied ethics. 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Notas 1 Aqueles que, adotando um viés kantiano, condenassem o racismo com base no desrespeito pela racionalidade/autonomia moral dos membros da raça oprimida provavelmente seriam os mesmos que excluiriam os animais da consideração moral com base justamente na falta dessas mesmas capacidades. Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 203 2 CAVALIERI, Paola. The Animal Question: Why Nonhuman Animals Deserve Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2001. p.72. 3 SKILLEN, Anthony J. Racism. In: CHADWICK, Ruth. (Ed.). Encyclopedia of Applied Ethics. San Diego: Academic Press, 1998. v. 3. p.779. 4 SKILLEN, p. 778-9. 5 SKILLEN, p.779. 6 THOMPSON, Neil. Anti-Discriminatory Practice. 4.ed. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2006. 7 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.423-453. Alguns pontos relevantes para a presente análise são retomados nas obras Retóricas, também de Chaïm Perelman, e Introdução à Retórica, de Olivier Reboul. 8 Observam Perelman e Olbrechts-Tyteca que “em direito, o raciocínio por analogia propriamente dita se limita, ao que parece, ao confronto, acerca de pontos particulares, entre direitos positivos distintos pelo tempo, pelo espaço geográfico ou pela matéria tratada. Em contrapartida, todas as vezes que se buscam similitudes entre sistemas, estes são considerados exemplos de um direito universal; assim também, todas as vezes que se argumenta em favor da aplicação de uma determinada regra a novos casos, afirma-se, por isso mesmo, que se está no interior de uma única área.” – PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, p.426. 9 A crítica, basicamente, é a de que um argumento por analogia, por se tratar de uma indução e não de uma dedução, sempre irá inferir uma conclusão como apenas provavelmente verdadeira. De modo mais conhecido em Ética Animal, o argumento por analogia é frequentemente avançado para inferir a presença de consciência em animais não-humanos. 10 GRAFT, Donald A. Speciesism. In: CHADWICK, Ruth. (Ed.). Encyclopedia of Applied Ethics. San Diego: Academic Press, 1998. v. 4. p. 192-3. 11 PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, p.447. 12 ADAMS, Carol J. Caring about Suffering: A Feminist Exploration. In: DONOVAN, Josephine; ADAMS, Carol J. (Eds.). Beyond Animal Rights: 204 | Revista Brasileira de Direito Animal A Feminist Caring Ethic for the Treatment of Animals. New York: The Continuum Publishing Company, 1996. p. 174-6. 13 RYDER, Richard. D. Victims of Science: The Use of Animals in Research. London: Davis-Poynter, 1975, p.16 apud COHEN, Carl, REGAN, Tom. The Animal Rights Debate. Lanham: Rowman & Littlefield, 2001. p.62. 14 REGAN, Tom. Indirect Duty Views. In: COHEN, Carl; REGAN, Tom. The Animal Rights Debate. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2001. p.170. 15 SINGER, Peter. Libertação Animal. Porto Alegre: Lugano, 2004. p.8. 16 SINGER, p.11. 17 FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000. p.173. 18 ROWLANDS, M. Animals Like Us. London: Verso, 2002. p.48-54. 19 DUNAYER, J. Animal Equality: language and liberation. Derwood: Ryce, 2001. p.58. 20 THOMPSON, p.41. 21 THOMPSON, p.174, grifo do autor. 22 O discurso racista tem como pressuposto que diferenças raciais representam determinadas diferenças inalteráveis na tipologia de importantes dimensões humanas. Para o homem médio, a noção de raça é bastante simples, envolvendo aparência física e ancestralidade: brancos têm pele clara e filhos brancos; negros têm pele escura e filhos negros. Entretanto, apesar do senso comum ainda acolher essa idéia, ao longo século XX, geneticistas e antropólogos derrubaram a tese de uma pertença pura a classes, da existência de uma taxonomia essencialista de diferentes raças humanas, como um fato científico a ser estudado cientificamente. O consenso atual é o de que a noção biológica de raça não é objetiva: há uma dispersão dos supostos traços raciais em todas as populações humanas sobre o planeta. Naomi Zack esclarece: “Os genes da estrutura óssea, cor da pele e textura do cabelo, que são associados à pertença racial social, não são herdados simultaneamente. Há uma maior variação desses traços ‘raciais’ dentro de qualquer raça do que entre qualquer uma das raças reconhe- Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 205 cidas, como grupos. Dentro da espécie humana como um todo, a variação genética que ocorre randomicamente – isto é, entre duas pessoas quaisquer – constitui 0,2% de todo o material genético humano. Desses 0,2%, ou 1/500, 85% ocorre localmente, ou entre dois indivíduos quaisquer que por acaso sejam vizinhos, 7% ocorre dentro das raças e 8% ocorre entre raças. Assim, o montante da diferença genética humana devido à diferença de raças é 8% de 0,2%, ou menos de 1/6000 (...). É claro que 1/6000, embora pequena, pode ser importante. Mas não há nenhuma evidência que seja. Nenhuma essência racial já foi alguma vez identificada. Não há genes gerais para a raça, tais que, uma vez identificados, sua presença pudesse ser usada para prever características raciais mais especificas ou secundárias. Nenhuma das diferenças físicas associadas à diferença racial na sociedade está correlacionada com qualquer diferença importante no talento, função ou habilidade humana.” (ZACK, Naomi. Race and Racial Discrimination. In: LaFOLLETTE, Hugh. (Ed.). The Oxford Handbook of Practical Ethics. Oxford: Oxford University Press, 2005. p.259.). Ou seja, a semelhança genética entre dois africanos pode ser menor do que aquela entre um africano e um escandinavo. A conclusão é que a categorização de indivíduos por meio do conceito de raça, usualmente baseada em diferenças fenotípicas (traços morfológicos significativos ou atributos corporais visíveis), como características faciais, cor da pele e tipo do cabelo, não tem correlação com diferenças genotípicas. Em zoologia, raça é sinônimo de subespécie. O conceito de raça é aplicável somente dentro de espécies de animais cujos grupos foram isolados uns dos outros por um tempo suficientemente longo para que seu patrimônio genético se diferencie significativamente – o que não se aplica à espécie humana. De qualquer modo, o que importa em termos morais é a posição científica atual de que não há diferenças inatas, tais como personalidade ou inteligência, que estejam fundadas na categoria de raça. Tampouco ela é cientificamente útil para fornecer uma explicação causal do comportamento humano. Sendo um conceito desacreditado cientificamente, o que se entende por raça seria, portanto, um mero constructo social e ideológico, sem base nas ciências biológicas, nem referência a fatos biológicos, independentes da nossa interpretação. Reconhecida como uma categoria socialmente construída, nos anos 50, o conceito de raça 206 | Revista Brasileira de Direito Animal perdeu lugar para o de “grupo étnico”, que denota um compartilhamento de uma mesma origem histórica, uma interação social próxima, cultura e estilo de vida comuns, bem como o mesmo senso de identidade. Esse deslocamento conceitual, no entanto, dá margem à crítica de B. Klug quanto à outra desanalogia entre racismo e especismo: a discriminação especista parte necessariamente de distinções entre aparências físicas, enquanto que o preconceito racista pode ser efetivado apenas sobre as noções de (i) ancestralidade ou (ii) de pertença a um grupo – independentemente da aparência física daquele que é discriminado. Ou seja, é possível a prática de racismo mesmo contra aqueles que, digamos, não se parecem visivelmente negros ou judeus, mas a discriminação contra animais sempre depende da sua identificação visual. (KLUG, B. Speciesism: Some Skeptical Remarks about “Prejudice against Animals”. Trabalho apresentado na International Conference on the Philosophy of Hans Jonas, Hebrew University, 12-5 jan. 1992 apud WALDAU, Paul. The Specter of Speciesism: Buddhist and Christian Views of Animals. Oxford: Oxford University Press, 2002. p.41.). 23 ELSTEIN, Daniel. Species as a Social Construction: Is Species Morally Relevant?. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, v.1, n.3, 2003, p.9-10, grifos do autor. 24 GRAFT, Donald. Against Strong Speciesism. Journal of Applied Philosophy, v.14, n. 2, p.107-18, 1997 e Speciesism. In: CHADWICK, Ruth. (Ed.). Encyclopedia of Applied Ethics. San Diego: Academic Press, 1998. v. 4, p. 191-205. 25 CLARK, Stephen. R. L. Enlarging the Community: Companion Animals. In: ALMOND, Branda. (Ed.). Introducing applied ethics. Oxford: Blackwell Publishers, 1995. p.324. 26 GRAFT, 1998, p.191. 27 GRAFT, 1998, p.200. 28 GRAFT, 1997, p.117. 29 WARREN, Mary Anne. Moral Status: obligations to persons and other living things. Oxford: Oxford University Press, 1997. p.27. Ano 5 | Volume 6 | Jan - Jun 2010 | 207 30 Mais recentemente, tal crítica recebeu voz em face de uma campanha da organização não-governamental PETA (People for the Ethical Treatment of Animals) comparando o holocausto judeu com o holocausto animal. 31 FRANCIS, Leslie P.; NORMAN, Richard. Some Animals Are More Equal Than Others. Philosophy, n. 53, 1978, p.527. 32 ECKERSLEY, Robyn. Beyond Human Racism. Environmental Values, n. 7, p. 165-82, 1998, p.171. 33 MIDGLEY, Mary. Animals and Why They Matter. Athens: The University of Georgia Press, 1983. p.98-99. Midgley ressalta ainda que a pertença à espécie não é apenas moralmente importante em se tratando de pacientes morais, mas também é relevante para a identificação de agentes morais. Na medida em que a capacidade de inteligência e de deliberação moral do individuo é condição necessária para uma criatura ser um agente moral pleno, determinar se uma espécie é dotada de autonomia moral implica determinar se seus membros portam, ou não, direitos e responsabilidades morais. 34 PLUHAR, E.B. Beyond Prejudice: the moral significance of human and nonhuman animals. Durham: Duke, 1995. p. 131. 35 DIXON, Beth A. The Feminist Connection between Women and Animals. Environmental Ethics, v.18, p.181-94, Summer 1996, p.186, grifo do autor. 36 STEINBOCK, Bonnie. Speciesism and the Idea of Equality. Philosophy, n.53, p.247-56, 1978. p.253. 37 WILLIAMS, Bernard. Ethics and the Limits of Philosophy. London: Fontana Press, 1985, p.118-9. 38 BECKER, Lawrence C. The Priority of Human Interests. In: MILLER, Harlan B.; WILLIAMS, William. H. (Eds.). Ethics and Animals. Clifton: The Humana Press, 1983. p.240-1. 208 | Revista Brasileira de Direito Animal